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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AMOR SEM LIMITES - P.2 / Robert A. Heinlein
AMOR SEM LIMITES - P.2 / Robert A. Heinlein

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Minerva, era simplesmente ótimo ter Dora por perto, sempre. Não era por sua beleza física... que não era assim tão fora do comum pelos critérios habituais — embora ela fosse totalmente linda para mim. Nem era por seu interesse entusiástico em partilhar Eros — embora ela fosse realmente entusiasmada, estivesse pronta a qualquer momento, e sempre com o estopim curto. Era hábil naquilo, e ficou mais ainda. O sexo é uma arte que se aprende, assim como patinação no gelo, caminhar no arame ou saltos ornamentais; não é instinto. Ah, dois animais se unem por instinto, mas é preciso inteligência e uma disposição paciente para transformar a cópula numa arte elevada e intensa. Dora era boa nisso e ficava cada vez melhor; estava sempre ansiosa para aprender, livre de fetiches ou preconceitos tolos, desejando pacientemente praticar qualquer coisa que tivesse aprendido ou lhe tivessem ensinado — e isso com aquela qualidade espiritual que transforma um exercício laborioso num sacramento vivo.

Mas, Minerva, o amor é o que ainda existe quando a gente não está excitado.

 

 

 

 

Dora era boa companhia a qualquer momento; porém, quanto mais duras ficavam as coisas, melhor companhia ela era. Ah, ela se aborrecia com os ovos quebrados porque as galinhas estavam sob sua responsabilidade; ela não reclamava por estar com sede. Em vez de ficar me chateando para fazer alguma coisa com aquele galo, ela imaginou o que devia ser feito e o fez — empurrou todas as galinhas para dentro com o outro galo, amarrou os pés do quebrador de ovos e colocou-o de lado, enquanto fazia a separação entre as gaiolas; depois 0 galo menor ficou confinado na solitária e não perdemos mais nenhum ovo.

Mas as situações verdadeiramente duras ainda estavam por vir; ela não se aborreceu absolutamente com isso e jamais se mostrou teimosa quando eu não tinha tempo para explicar as coisas. Minerva, grande parte da viagem foi uma morte lenta, outras partes eram constituídas de perigos súbitos que podiam ter significado uma morte rápida. Ela teve uma paciência sem fim na primeira parte e sempre manteve a cabeça fria e ajudou nas últimas. Querida, você é terrivelmente instruída — mas você é uma moça da cidade e sempre esteve num planeta civilizado; talvez seja melhor eu explicar algumas coisas.

Talvez você estivesse perguntando a si mesma: "Esta viagem é necessária? E, se é, por que fazê-la da maneira mais difícil?"

"Necessária... " Tendo feito uma coisa que um Howard nunca devia fazer, ou seja, casar com uma efêmera, eu tinha três alternativas:

Levá-la para morar entre os Howards. Dora recusou isso... apesar de que eu tentaria convencê-la do contrário se ela tivesse dito "sim". Uma vida-curta sozinha numa comunidade de vidas-longas quase certamente entrará em depressão suicida; eu tinha visto isso, primeiro no meu amigo Slayton Ford, e vi muitas vezes desde então. Eu não queria que isso acontecesse a Dora. Quer o número de anos que lhe cabiam fosse dez ou mil, eu queria que ela os gozasse.

Podíamos também ficar em Top Dollar ou — o que era a mesma coisa — perto de uma das aldeias daquele pequeno pedaço do planeta que estava colonizado então. Eu quase preferi isto, porque o artifício do "Bill Smith" ajudaria — por algum tempo.

Mas apenas por um curto tempo. Os poucos Howards de Novas Origens — os Magees e três outras famílias, pelo que me lembro — haviam todos chegado incógnitos — "mascarados", no jargão dos Howards — e por artifícios simples puderam confundir as coisas por ali sem nunca serem apanhados.-Vovó Magee pôde "morrer", depois aparecer como "Deborah Simpson", em outra fazenda Howard. Quanto mais pessoas houvesse no planeta, mais fácil seria fazer isto — especialmente após a chegada da quarta leva, todos como carga hibernada e, portanto, não tendo travado relações uns com os outros.

Mas Bill Smith era casado com uma efêmera. Se eu ficasse perto das partes colonizadas, teria que ter muito cuidado para manter meus cabelos tingidos — não só na minha cabeça, mas por todo o corpo, para que algum incidente não me traísse —_ e depois ter cuidado para "envelhecer" tão depressa quanto minha mulher. Pior, teria que evitar as pessoas que haviam conhecido bem Ernest Gibbons — isso é o mesmo que dizer a maior parte de Top Dollar —, ou alguém veria o meu perfil, ouviria minha voz e começaria a imaginar coisas, pois não tive nenhuma possibilidade de fazer cirurgia plástica ou qualquer coisa desse tipo. Em outras ocasiões, quando era indispensável mudar o nome e a identidade, eu sempre mudei de localização também, sendo essa a única maneira segura de fazê-lo. Mesmo a cirurgia plástica não me disfarçava por muito tempo; eu me regenerava com muita facilidade. Certa vez tive o nariz cortado (a alternativa parecia ser cortar o meu pescoço); dez anos mais tarde ele estava exatamente como é agora, grande e feio.

Não que eu estivesse nervoso demais por poderem descobrir que eu era um Howard. Mas, se eu ia ter que viver mascarado, quanto mais cuidado eu tivesse com esses truques cosméticos, mais Dora perceberia que eu era diferente dela — diferente da maneira mais triste de todas, um marido e uma mulher que vivem em padrões de tempo diferentes.

Minerva, pareceu-me que a única maneira pela qual eu podia dar à minha linda e nova esposa um aperto de mão honesto seria levando-a para longe de ambos os tipos de pessoas, vidas-longas e curtas, onde eu pudesse parar de fingir e pudéssemos ignorar a diferença, esquecê-la e sermos felizes. Assim, resolvi levá-la para bem longe do alcance das outras pessoas; resolvi isto antes de voltarmos para a cidade, no próprio dia em que me casei com ela.

Isso parecia a melhor resposta a uma situação de outra maneira impossível, mas não tão irreversível como um salto de pára-quedas. Se ela ficasse muito solitária, se viesse a odiar a aparência da minha cara feia, poderia levá-la para as colônias outra vez; seria ainda jovem o bastante para fisgar outro marido. Eu tinha isto em mente, Minerva, porque algumas de minhas mulheres se haviam cansado de mim com bastante rapidez. Eu havia combinado com Zack Briggs (ao mesmo tempo que havia combinado com John Magee, para atuar como agente de Zack) para perguntar a John o que havia acontecido com Bill Smith e a professorinha. Era possível que eu precisasse me afastar do planeta algum dia.

Mas por que não mandei Zack nos colocar no ponto do mapa que eu havia escolhido como lugar provável para a nossa fazenda?... com tudo quanto iríamos precisar para começar a eXplorá-la e, dessa forma, evitar uma viagem longa e perigosa. Sem o risco de morrer de sede, ou por causa dos lobos, ou das insídias das montanhas, ou o que quer que fosse.

Minerva, isso foi há muito tempo, e posso explicar apenas em termos da tecnologia disponível lã e então. A Andy J. não podia aterrar; ela sofrerá inspeções em órbita em torno de Secundus ou algum outro planeta adiantado. Seu barco de carga podia aterrar em qualquer campo grande e plano, mas exigia no mínimo um radar refletor de canto para pousar, depois tinha que ter muitas toneladas métricas de água para levantar novamente. O barco do capitão era o único bote da Andy J. capaz de aterrar em qualquer lugar que um piloto hábil pudesse descei- com ele, e depois levantar sem ajuda. Mas sua capacidade de carga era de cerca de dois selos de correio — e eu precisava de mulas, arados e uma porção de outras coisas.

Além disso, eu precisava aprender como sair daquelas montanhas após entrar nelas. Eu não podia levar Dora para lá sem estar razoavelmente certo de poder tirá-la outra vez. Não seria justo! Não é nenhum pecado não ter requisitos de mãe-pioneira — mas é trágico tanto para o marido como para a mulher descobrir isso tarde demais.

Assim, não o fizemos de maneira difícil; fizemos da única maneira para aquele tempo e lugar. Mas nunca fiz o esforço de um cálculo de massa para uma espaçonave se erguer como fiz para decidir o que levar e o que deixar naquela viagem. Primeiro, o parâmetro básico: quantas carroças na coluna? Eu queria tanto três carroças que podia sentir seu gosto. Uma terceira carroça significaria supérfluos para Dora, mais ferramentas para mim, mais livros e coisas parecidas para nós dois, e (melhor!) uma casa pré-construída para abrigar minha noiva grávida quase instantaneamente na chegada.

Mas três carroças significavam dezoito mulas de tiro, mais mulas de reserva — acrescente seis pela regra empírica —, o que significava mais metade do tempo gasto atrelando e desatrelando, dando água aos animais e cuidando deles de outras formas. Acrescente carroças e mulas suficientes e em algum ponto sua marcha diária será zero; um homem só não poderia dar conta do trabalho. Pior, deveria haver pontos nas montanhas onde eu teria que desatrelar as carroças, movê-las uma de cada vez para um espaço mais aberto — voltar para cada carroça deixada atrás, trazê-la —, processo que tomaria o dobro do tempo para uma coluna de três carroças do que para uma de duas, e aconteceria mais vezes, até muito mais vezes, com três carroças do que com duas. Nessa progressão poderíamos ter três filhos no caminho, em vez de chegarmos lá antes do nascimento do primeiro.

Fui salvo dessa tolice pelo fato de só haver duas carroças de viagem disponíveis em Nova Pittsburgh. Acho que teria resistido à tentação de qualquer maneira — mas eu tinha comigo na carroça leve em que viemos de Top Dollar as ferragens para três, depois gastei aquela ferragem extra em outras coisas, trocando-a com o fabricante de carroças. Eu não podia esperar que ele construísse uma terceira carroça; tanto a estação do ano como a estação do útero de Dora fixavam-me datas fatais a que eu tinha de atender.

Há muito a dizer quanto a ter apenas uma carroça — é o equipamento padrão há muitos séculos e em vários planetas para uma família migrar por terra —, quando se viaja em grupo. Já dirigi essas marchas.

Mas uma carroça sozinha... Um acidente pode ser desastroso.

Duas carroças oferecem mais do dobro com que trabalhar no local de destino, e é um seguro de vida durante a marcha. Você pode perder uma carroça, reagrupar-se e continuar em frente.

Planejei, então, duas carroças, Minerva, embora Zack me debitasse três conjuntos de ferragens Stoga; depois não vendi aquele terceiro conjunto até o último minuto.

Aqui está como se carrega um comboio de carroças para sobrevivência:

Primeiro, faça uma lista de tudo quanto possa precisar e de tudo quanto gostaria de levar:

Carroças, rodas sobressalentes, eixos sobressalentes

Mulas, arreios, ferragens sobressalentes, couro para arreios, selas

Água

Comida

Roupas

Cobertores

Armas, munições e ferramentas para consertos

Remédio, drogas, instrumentos cirúrgicos, ataduras

Livros

Arados

Grade

Ancinho de campo

Pás, ancinho manual, enxadas, semeadeiras, forcados de três, cinco e sete dentes

Segadeira

Ferramentas de ferreiro Ferramentas de carpinteiro Fogão de ferro

Latrina, do tipo autodescarregável

Lampiões a óleo

Moinho de vento e bomba

Serra movida pela força do vento

Ferramentas para conserto de couro e arreios

Cama, mesa, cadeiras, pratos, panelas, frigideiras, equipamento para comer e cozinhar

Binóculo, microscópio, conjunto para análise da água

Pedra de amolar

Carrinho de mão

Batedeira de manteiga

Baldes, peneiras, pequenas ferragens sortidas

Vaca leiteira e touro

Galinhas

Sal para o gado e para as pessoas

Fermento embalado, fermento de partida

Sementes de vários tipos

Moedor para farinha de grãos, moedor de carne

 

Não pare aí; pense "grande". Esqueça-se do fato de que você já sobrecarregou uma coluna de carroças muito mais longa. Dê busca na imaginação, confira os manifestos da Andy /., dê busca na sua própria nave, examine o estoque do Armazém Geral do Rick, fale com John Magee e inspecione sua casa, fazenda e anexos — se esquecer agora, será impossível voltar para buscar.

Instrumentos musicais, material para escrever, diário, calendários

Roupas de bebê, enxoval de recém-nascidos

Roda de fiar, tear, materiais de costura — carneiro!

Tanino, materiais e ferramentas para curtir couro

Relógios de parede e de bolso

Legumes de raiz, mudas de árvores frutíferas, outras sementes

Etc, etc, etc.

 

Agora comece a suprimir — fazer cortes —, comece a calcular os pesos.

Corte o touro, a vaca, o carneiro; substitua por cabras com pêlos suficientemente longos para valer a pena cortar. Ei você esqueceu a tesoura para a tosquia!

A oficina do ferreiro fica, mas reduzida a uma bigorna e a um mínimo de ferramentas — o fole você tem que fazer. Em geral qualquer coisa de madeira é riscada, mas um pequeno suprimento de ferro forjado, por pesado que seja, deve ser levado; você irá fazer coisas que não sabia que podia fazer.

A segadeira se transforma numa foice com cabo e armadura de gadanha, três lâminas sobressalentes; o ancinho de campo é riscado.

O moinho de vento fica, bem como a serra (surpresa!) — mas com um mínimo de ferragens; você não vai usar qualquer um dos dois logo.

Livros... Quais desses livros você pode dispensar, Dora?

Reduza à metade a quantidade de roupas, dobre a dos sapatos, acrescente mais botas e não se esqueça dos sapatos das crianças. Sim, sei fazer mocassins, barcos de pele de foca e essas coisas; acrescente linha encerada. Sim, temos que ter os melhores cabos que possamos comprar, ou não atravessaremos o passo. O dinheiro não vale nada; peso e volume são tudo o que conta — nossa riqueza total é o que as mulas puderem levar através daquela brecha.

Minerva, foi sorte minha e de Dora eu estar em minha sexta aventura pioneira e haver planejado o carregamento de espaçonaves muitos anos antes de ter alguma vez carregado uma carroça coberta — porque os princípios são os mesmos; as espaçonaves são as carroças cobertas da galáxia. Reduza-as para o peso que as mulas podem puxar, depois corte dez por cento, não importa o quanto isso doa; um eixo partido — quando você não pode substituí-lo — pode bem significar um pescoço partido.

Depois acrescente mais água para chegar até noventa e cinco por cento; a carga de água diminui a cada dia.

Agulhas de tricô! Dora sabe tricotar? Senão, ensine a ela. Passei muitas horas solitárias no espaço tricotando suéteres e meias. Fio de lã? Levará muito tempo antes que Dora possa cardar a tosquia das cabras em boa lã — e ela pode tricotar para o bebê enquanto viajarmos; isso a deixará feliz. A lã não pesa muito. Podem-se fazer agulhas de madeira; mesmo agulhas curvas de metal podem ser improvisadas. Mas pegue dos dois tipos no Armazém do Rick.

Ah, meu Deus, quase me esquecia de levar um machado!

Lâminas de machado e um cabo, gancho de escova, picareta... Minerva, eu acrescentei, suprimi, descartei e pesei cada coisa em Nova Pittsburgh — e não estávamos nem a três quilômetros de lá, a caminho de Separação, quando vi que estávamos sobrecarregados. Naquela noite paramos na cabana de um colono, e troquei uma bigorna nova de trinta quilos pela dele, de quinze quilos, elas por elas, com o coração partido. Troquei outros artigos pesados de que precisaríamos mais tarde por um presunto defumado, uma fatia de toucinho e mais milho para as mulas — sendo as últimas rações de emergência.

Aliviamos a carga novamente em Separação, e consegui outro barril de água em troca e enchi-o, porque agora eu tinha espaço para outro e sabia que uma carga pesada de água era autocorrigível.

Acho que aquele barril extra salvou as nossas vidas.

 

A faixa verde para a qual Lazarus-Woodrow havia apontado perto da brecha do Passo Desesperado provou ser mais longe do que ele havia calculado. No último dia em que avançaram penosamente em direção a ela, nem homem nem mula tiveram nada para beber, desde a madrugada do dia anterior. Smith estava delirando; as mulas mal estavam em condições de trabalhar, arrastavam-se vagarosamente com as cabeças baixas.

Dora quis parar de beber quando seu marido parou. Ele disse a ela:

— Ouça-me, mocinha estúpida, você está grávida. Compreende? Ou vai ser preciso um lábio inchado para convencê-la? Guardei quatro litros quando servimos às mulas; você viu.

— Não preciso de quatro litros, Woodrow.

— Cale-se. Isso é para você, para a cabra e para as galinhas. E os gatos... os gatos não bebem muito. Dorável, essa água toda não significa nada dividida pelas dezesseis mulas, mas durará muito para os filhotes pequenos.

— Sim, senhor. E quanto à sra. Lei toa?

— Ah, aquela maldita leitoa! Bem... darei a ela meio litro quando pararmos esta noite, e servirei eu mesmo. Provavelmente ela o derramará e arrancará o seu polegar, do jeito que está. E servirei a você eu mesmo, medindo a água e vendo-a bebê-la.

No entanto, após um dia longo e uma noite inquieta, e depois um dia interminável, eles chegaram finalmente às primeiras árvores. Parecia quase fresco ali e Smith achou que podia sentir o cheiro de água... em algum lugar. Não pôde ver nenhuma.

— Buck! Ô, Buck! Faça o círculo!

O mulo chefe não respondeu; ele não havia falado o dia inteiro. Mas fez a coluna formar um círculo, colocou as carroças nos cantos e empurrou a parelha guia para dentro do V a fim de ser desatrelada.

Smith chamou os cachorros e disse-lhes para procurarem água, depois começou a desencilhar. Em silêncio sua mulher juntou-se a ele, servindo a mula de fora de cada parelha enquanto Smith soltava a mula próxima. Ele apreciou o silêncio dela. Dora era telepática para as emoções, pensou ele.

Agora, se eu fosse água em algum lugar por aqui, onde eu estaria? Devia fazer simpatias? Ou procurar primeiro na superfície? Ele estava razoavelmente certo de que nenhum córrego corria para fora daquele bosque, mas não poderia ter certeza sem percorrer toda a encosta até o pé da colina. Selar Beulah? Bolas, Beulah estava pior do que ele. Começou a desamarrar das laterais da segunda carroça as seções enroladas da cerca de estacas. Ele não via lobos havia três dias, o que significava que estavam três dias mais próximos do seu problema seguinte com os animais.

— Dora, se você estiver disposta, pode dar-me uma mão com isto.

Ela não fez nenhum comentário pelo fato de o marido nunca antes tê-la deixado ajudar a levantar a cerca; simplesmente se preocupou com o seu aspecto esgotado e cansado e pensou no quarto de litro de água que havia roubado e escondido — como ela poderia convencê-lo a bebê-la?

Mal tinham terminado quando Fritz deu um latido excitado ao longe.

 

Minerva, era uma nascente — um fio de água que saía de uma parede rochosa, corria uns dois metros e formava uma poça sem nenhuma saída. Nenhuma naquela época do ano, devo dizer, porque pude ver onde ela transbordava na estação da cheia. Pude ver também bastantes vestígios de animais — pegadas de lobos e de cabras da pradaria, e outras que não pude identificar. Tive a sensação de que estava sendo visto e tentei desenvolver olhos atrás da minha cabeça. Estava escuro perto da nascente; as árvores e a vegetação rasteira eram mais espessas e o sol estava baixando.

Eu estava num dilema. Não sei como aconteceu uma das mulas livres não ter descoberto esta nascente ao mesmo tempo ou antes dos cachorros; as mulas podem sentir o cheiro da água. Mas era certo chegarem ali logo, e eu não queria que bebessem depressa demais. Por mais sensata que seja uma mula, beberá em excesso e depressa demais se estiver com muita sede. Aquelas mulas estavam com uma sede extrema; eu mesmo queria observar cada uma, para não deixá-las caírem Je cansaço.

Além disso, eu não queria que elas pisassem dentro daquela poça; estava clara, parecia limpa.

Os cães acabaram de beber. Olhei para Fritz e desejei que ele pudesse falar tão bem como uma mula. Eu tinha alguma coisa com que escrever? Não, nem uma maldita coisa! Se eu dissesse a ele para chamar Dora, Fritz tentaria... mas ela viria? Eu lhe havia dito claramente para ficar na cerca até eu voltar. Minerva, eu não estava pensando direito; o calor e a falta de água haviam-me afetado. Eu devia ter dado a Dora instruções para eventualidades... porque, se eu ficasse afastado muito tempo e começasse a escurecer, ela viria procurar-me de qualquer maneira.

Que diabo, eu não tinha nem levado um balde!

Nesse ínterim, tive pelo menos bastante senso para beber duas mãos cheias de água, à moda de Gedeão. Isso pareceu desanuviar um pouco a minha cabeça.

Deixei cair as alças do meu macacão, tirei a camisa, encharquei-a na água e dei-a a Fritz.

— Ache Dora! Traga Dora! Depressa!

Acho que ele pensou que eu tinha enlouquecido, mas partiu levando a camisa molhada.

Depois a primeira mula apareceu — o velho Buck, louvado fosse Alá!... e eu estraguei um chapéu.

Aquele chapéu que Zack havia trazido de presente para mim. Supostamente era um chapéu para qualquer tempo, tão poroso que deixava passar o ar, no entanto tão avesso à água que podia conservar a cabeça da gente seca num aguaceiro. A primeira alegação era apenas moderadamente verdadeira; a última eu não tinha tido oportunidade de testar.

Buck bufou e estava todo animado para entrar na água ate os joelhos; eu o detive. Então lhe ofereci um chapéu cheio de água. Depois um segundo. E um terceiro.

— Basta por enquanto, Buck. Reunião. Chamada para água.

Com a garganta molhada Buck pôde fazer isso. Soltou um berro de trombeta que era conversa de mula, não inglês, e não tentarei reproduzi-lo, mas significava "Façam fila para a água" e nada mais. "Entrem em forma para serem encilhados" era outro tipo de berro.

Depois eu tentei lutar com uma dúzia de mulas loucas de sede. Mas eu, Buck, Beulah, que era o braço direito de Buck, Lady Macbeth, que estava acostumada a ajudar Buck também — e um chapéu que não era muito à prova d'água —, conseguimos. Nunca aprendi como era estabelecida a precedência entre as mulas, mas elas sabiam e Buck impunha isso; o toque de água sempre as encontrava em fila na mesma ordem, e o céu que ajudasse o jovem que tentasse furar a fila; o mínimo que ele podia esperar era uma orelha mordida.

No momento em que o último havia recebido um chapéu cheio de água, este estava em petição de miséria — mas ali vinha Dora com Fritz, seu fuzil de agulha na mão direita e (glória a Deus!) dois baldes na mão esquerda.

— Toque de água! — disse eu ao meu sargento. — Ponha-as em forma outra vez, Buck!

Com dois baldes e dois de nós trabalhando, demos um balde cheio para cada mula com bastante rapidez. Depois apanhei minha camisa com Fritz, lavei um pouco os baldes, enchi-os e anunciei um terceiro toque de água, dizendo a Buck para deixá-las beberem da poça.

Ele fez isso, mas ainda manteve a disciplina. Quando Dora e eu partimos, cada um com um balde de água numa das mãos e um revólver pronto na outra, Buck ainda estava exigindo delas que bebessem uma de cada vez, segundo a precedência.

O sol quase tinha se posto quando Dora, eu e os cães chegamos de volta às carroças, e estava quase completamente escuro quando terminamos de dar água às cabras, à leitoa, aos gatos e às galinhas. Depois comemoramos. Minerva, juro solenemente: com o meio balde de água que reservamos para nós, Dora e eu ficamos completamente bêbados.

 

Apesar das decisões anteriores de não parar antes do passo, acampamos ali durante três dias — mas dias muito úteis. As mulas pastaram o tempo todo e se encheram: bastante água, bastante forragem. Alvejei uma cabra da pradaria na nascente; o que não pudemos comer Dora cortou em fatias e usou para fazer charque. Enchi todos os barris — não foi tão fácil como pode parecer, porque Buck e eu tivemos que abrir um caminho até a nascente, depois tive que cavar um pouco e levar as carroças uma de cada vez; isso tomou-me Mas havíamos cozinhado carne fresca e tudo quanto podíamos comer — e tomamos banho quente! Com sabão. Com xampu• E fiz a barba. Levei o grande caldeirão de ferro de Dora até a poça, ela levou o balde, fiz uma fogueira — depois nos revezamos tirando a sujeira, um tomando conta enquanto o outro se lavava.

Quando rodamos em direção ao passo na manhã do quarto dia, não só estávamos em ótima forma, como Dora e eu cheirávamos bem, e ficávamos dizendo isso um ao outro, animados.

Nunca mais tivemos falta de água. Havia neve em algum lugar acima de nós; podia-se senti-la na brisa e algumas vezes vislumbrar um branco ao longe, numa sela entre dois picos. Quanto mais subíamos, mais vezes encontrávamos riachos, água que nunca chegava à pradaria num ano tão seco. A forragem era verde e boa.

Paramos numa pequena pastagem nas montanhas perto do passo. Deixei Dora lá com as carroças, as mulas e instruções firmes sobre o que fazer no caso de eu não voltar.

— Espero estar de volta ao escurecer. Se não estiver, você pode esperar uma semana. Não mais. Compreende?

— Compreendo.

— Muito bem. No fim de uma semana, alivie o peso da primeira carroça, jogando fora qualquer coisa que você possa dispensar na viagem. Ponha toda a comida naquela carroça, esvazie os barris da segunda carroça e coloque-os na primeira, solte a leitoa e as galinhas e volte. Encha seus barris naquele regato que atravessamos hoje cedo. Depois disso, não pare para nada; rode o dia inteiro desde a madrugada até escurecer. Você deve chegar a Separação na metade do tempo que levamos para chegar até aqui. Está bem?

— Não, senhor.

Minerva, alguns séculos antes eu teria começado a me irritar nesse ponto. Mas eu havia aprendido. Levei cerca de um décimo de segundo para perceber que não poderia obrigá-la a fazer coisa alguma — sem estar presente —, e que uma promessa feita sob coação não funcionava.

— Está bem, Dora, diga-me por que não e o que você pretende fazer em vez disso. Se eu não gostar, talvez nós dois voltemos para Separação.

— Woodrow, embora você não tenha dito, está me pedindo para fazer o que deveria fazer (e o que eu faria) se "casse viúva.

- Sim, está certo — assenti. — Querida, se eu não voltar em uma semana, você estará viúva. Não haverá nenhuma dúvida.

— Compreendo isso. Compreendo também por que está deixando as carroças aqui; você não tem certeza de poder dar a volta com elas lá em cima.

— É. Provavelmente foi isso o que aconteceu com os grupos anteriores. Chegaram a um ponto onde não puderam continuar e não puderam dar a volta... depois tentaram um ou outro e caíram.

— Sim. Mas, meu marido, você pretende afastar-se apenas por um dia... meio dia para ir, meio dia para voltar. Woodrow, não vou presumir que você esteja morto... não poderia! — Ela olhou para mim firmemente e seus olhos se encheram de lágrimas, mas não chorou. — Preciso ver o seu corpo, tenho que ter certeza. Se tiver certeza, voltarei para Separação tão rápida e seguramente quanto possível. E depois para os Magees, como você mandou; terei o seu filho e o criarei para ser tão parecido com o pai quanto possível. Mas precisarei ter certeza.

— Dora, Dora! Em uma semana você terá certeza. Não será preciso procurar os meus ossos.

— Posso terminar, Woodrow? Se você não estiver de volta esta noite, estarei sozinha. Amanhã de madrugada partirei na Betty, com outra mula de sela me seguindo. Ao meio-dia voltarei.

"Talvez, se não puder encontrá-lo, descubra um ponto mais elevado por onde possa passar com uma carroça e fazê-la dar a volta. Se encontrar um ponto desses, levarei uma carroça para cima. Eu a usarei como base e procurarei mais adiante. Poderia não ter visto a sua pista. Ou poderia ter acompanhado pistas de mulas... mas você não está montado. Seja o que for, procurarei várias vezes. Até não haver absolutamente nenhuma esperança! Depois... irei para Separação tão depressa quanto as mulas possam me levar.

"Mas, meu querido, se você estiver vivo... talvez com uma perna quebrada, mas vivo... se você ainda tiver uma faca ou mesmo apenas as mãos, não creio que um lobo ou qualquer coisa possa matá-lo. Se você estiver vivo, hei de encontrá-lo, Com certeza!"

Recuei, então. Conferi os relógios com ela e combinei a que horas voltaria. Depois Buck e eu, montado em Beulah, partimos para explorar adiante.

Minerva, pelo menos quatro grupos haviam tentado aquele passo; nenhum havia voltado. Estou absolutamente certo de que todos eles fracassaram por estarem ansiosos demais, sem paciência suficiente, não querendo voltar quando o risco era grande demais.

Paciência eu havia aprendido. Os séculos podem não dar sabedoria a um homem, mas ou ele adquire paciência ou não conseguirá atravessá-los vivo. Naquela primeira manhã encontramos o primeiro ponto, que era estreito demais. Ah, alguém havia dinamitado aquilo e provavelmente contornara aquela curva. Mas ela era estreita demais para ser segura; assim, dinamitei mais um pouco. Ninguém em seu juízo perfeito leva uma carroça para as montanhas sem dinamite ou algo semelhante; não se pode tirar pedacinhos de rocha maciça com um palito ou mesmo uma picareta, sem se arriscar a ainda estar lá quando a neve chegar.

Mas eu não estava usando dinamite. Qualquer um com uma pequena quantidade de produtos químicos pode fazer tanto dinamite como pólvora negra, e eu pretendia fazer ambos... mais tarde. O que eu tinha comigo era uma geléia explosiva mais eficiente e mais flexível — e insensível a choque, perfeitamente segura, na carroça e no alforje.

Coloquei aquela primeira carga numa rachadura onde achei que ela produziria o melhor resultado; instalei o estopim, mas não o acendi. Depois levei as duas mulas para trás, contornando a curva, e exerci meu talento histriônico o melhor que pude para explicar a Buck e a Beulah que ia haver um barulho alto, um bang! Mas que este não podia feri-los, que não se preocupassem. Em seguida voltei, acendi o estopim, corri de volta até eles e cheguei a tempo de passar um braço no pescoço de cada um — e olhei para o relógio.

— Agora! — exclamei, e a montanha respondeu-me com um tá-bum!

Beulah estremeceu, mas ficou firme: Buck disse interrogativamente:

— Paaang?

Concordei. Ele assentiu e voltou a comer as folhas.

Nós três subimos e demos uma olhada. Estava bom e largo agora. Não muito nivelado, mas três explosões pequenas cuidaram disso.

— O que acha, Buck?

Ele olhou cuidadosamente para um lado e outro da trilha. — Dus carr? — Uma carroça.

— Est bomm.

Exploramos um pouco adiante e planejamos o trabalho do dia seguinte; depois voltei na hora prometida e cheguei ao acampamento cedo.

Levei uma semana para tornar um par de quilômetros seguro até outra pequena pastagem, uma área coberta de capim suficientemente grande para dar a volta com uma carroça de cada vez. Depois foi preciso um longo dia para levar nossas carroças, uma de cada vez, até essa base seguinte. Alguém havia conseguido chegar até ali; encontrei uma roda de carroça quebrada — e recolhi o aro de aço e o cubo. Assim continuamos, dia após dia, devagar, monotonamente. Por fim atravessamos a brecha e seguimos — serra abaixo, a maior parte do tempo.

Mas isso foi pior, não melhor. O rio que eu tinha certeza de existir lá, pelos fotomapas tirados do espaço, estava muito abaixo de nós, e tivemos ainda que descer, descer, descer e segui-lo por uma longa distância antes de podermos chegar a um lugar onde a garganta se abria num vale adequado para colonização. Mais explosões, o corte interminável da galharia, e algumas vezes tive que explodir árvores. Mas a parte mais trabalhosa foi fazer descer aquelas carroças com cordas nos lugares mais íngremes. Eu não me importava com lugares íngremes, quando subia o morro (o que ainda encontramos); seis parelhas de mulas podem arrastar uma única carroça na subida de qualquer encosta em que possam fincar os cascos. Mas na descida...

Certamente aquelas carroças tinham freios. Mas se a inclinação fosse grande, a carroça derraparia e depois cairia pela margem, com mulas e tudo.

Eu não podia deixar isso acontecer uma vez sequer. Nem jamais arriscaria que acontecesse. Podíamos perder uma carroça e seis mulas e ainda continuar. Mas eu não era descartável. (Dora não estaria na carroça.) Se aquela carroça se soltasse, minhas probabilidades de saltar fora seriam de cinqüenta por cento.

Se a inclinação era bastante forte para me dar um vestígio de dúvida sequer de que não poderia segurar a carroça com os freios, fazíamos isso da maneira mais difícil: usávamos a corda cara, importada, para segurá-la na descida dessas inclinações. Levávamos a corda para longe, desimpedida e livre para correr, passávamos a extremidade três vezes em torno de uma árvore bastante forte para segurá-la, prendíamos no eixo traseiro; depois as nossas quatro mulas mais firmes, Ken e Daisy, Beau e Belle, levavam a carroça para baixo a passo lento (sem cocheiro) seguindo Buck, enquanto eu mantinha a tensão da corda, soltando-a muito devagar.

Se o terreno permitia, Dora e Betty tomavam posição a meio caminho da descida para transmitir ordens a Buck. Mas eu não podia deixar que elas ficassem na própria trilha; se aquela corda se partisse, daria uma chicotada. Assim, talvez metade do tempo Buck e eu trabalhamos sem ligação, fazendo isso numa lentidão mortal e dependendo do julgamento dele.

Se não havia uma árvore firme para segurar apropriadamente em boa posição — e isso aconteceu diversas vezes —, tínhamos então que esperar enquanto eu inventava alguma coisa. Podia ser qualquer coisa: passar uma corda entre duas árvores, depois instalar uma corda até uma terceira árvore; um apoio numa rocha nua usando grampos cravados — eu odiava usá-los, porque tinha que fazer minha inspeção bem no eixo traseiro, caminhando atrás, e Deus que nos ajudasse se eu tropeçasse. Depois isso era seguido por um serviço que tomava tempo, o de recolher aqueles grampos — quanto mais dura a rocha, melhor o apoio, porém mais penoso o trabalho de arrancá-los, e eu tinha que arrancá-los; poderia precisar deles mais adiante.

Algumas vezes não havia nem árvores nem rochas. Certa vez doze mulas viradas de costas ao longo da trilha é que serviram de apoio, com Dora acalmando-as enquanto eu inspecionava o eixo traseiro e Buck controlava o progresso.

Na pradaria fizemos muitas vezes trinta quilômetros por dia. Uma vez tendo atravessado o Passo Desesperado e começado a descer a garganta, a distância percorrida naquele terreno podia ser zero durante dias sem fim, enquanto eu preparava a trilha adiante; depois fazíamos até dez quilômetros se não havia nenhuma descida forte que exigisse cordas. Eu tinha apenas uma regra inviolável; a trilha tinha que estar completamente preparada a partir de uma base com espaço suficiente para fazer a volta até a seguinte, antes que uma carroça se movesse.

Minerva, isso foi tão terrivelmente lento que o meu "calendário" emparelhou comigo; a lei toa deu à luz — e não tínhamos saído das montanhas.

Não me lembro de jamais ter tomado uma decisão tão difícil. Dora estava em boa forma, mas já na metade da gravidez. Deveríamos voltar (como havia prometido a mim mesmo, sem dizer a ela), ou continuar e esperar alcançar terreno mais baixo e razoavelmente plano antes de chegar sua nora? O que seria mais fácil para ela?

Tive que consultá-la — mas eu tinha que decidir. A responsabilidade não pode ser partilhada. Eu sabia qual seria sua decisão antes mesmo de levar o assunto até ela.

Mas isso demonstraria simplesmente sua esplêndida coragem; era eu que tinha experiência tanto na questão de viagens pelo sertão como na de parto de crianças.

Estudei aqueles fotomapas novamente sem aprender nada de novo. Em algum ponto adiante a garganta se abria num largo vale de rio — mas a que distância? Eu não sabia, porque não sabia também onde estávamos. Havíamos começado com um odômetro na roda traseira direita da carroça da frente; eu o tinha regulado novamente a partir do zero, quando chegamos ao passo, mas ele havia durado apenas um dia ou dois; uma rocha ou alguma coisa quebrara-o. Eu não sabia sequer que altura havíamos conseguido descer desde o passo, ou quanta altura mais tínhamos que perder para chegar embaixo.

Animais e equipamentos: razoável. Havíamos perdido duas mulas. Garota Bonita havia tropeçado por sobre a beira certa noite e quebrara uma perna; tudo quanto pude fazer por ela foi libertá-la do seu sofrimento. Não a carneei porque tínhamos carne fresca, e, de qualquer maneira, eu não poderia fazer isso sem que as outras mulas vissem. John Cevadamilho havia simplesmente se levantado e morrido uma noite — ou provavelmente fora morto por um lobo; estava parcialmente devorado quando o encontramos.

Três galinhas estavam mortas e dois leitões não sobreviveram, mas a leitoa pareceu disposta a amamentar os outros.

Só restavam duas rodas sobressalentes. Se perdesse mais duas, a roda quebrada seguinte me obrigaria a abandonar uma carroça.

Foram as rodas que fizeram com que me decidisse.

(Omitidas aproximadamente sete mil palavras que reiteravam as dificuldades para descer a garganta.)

 

Quando saímos naquele platô, pudemos ver o vale estendendo-se diante de nós.

Um lindo vale, Minerva, largo, verdejante e encantador — milhares e milhares de hectares de terras ideais para fazendas. O rio que vinha da garganta, manso agora, serpeava preguiçosamente entre margens baixas. Diante de nós, muito, muito longe, havia um alto pico coroado de neve. A linha da neve permitiu-me estimar sua altura — em torno de seis mil metros, porque tínhamos agora descido para o subtrópico, e apenas uma montanha muito alta podia conservar tanta neve durante um verão longo e muito quente.

Aquela montanha linda e aquele luxuriante vale verde deram-me uma impressão de déjà-vu. Depois a identifiquei o monte Hood, na região em que nasci la na velha Terra, porque eu o havia visto pela primeira vez quando rapaz. Mas aquele vale e aquele pico coberto de neve nunca tinham sido vistos pelos homens.

Gritei para Buck fazer alto.

— Dorável, estamos em casa. Será em algum lugar descendo esse vale.

— "Em casa" — repetiu ela. — Ah, meu querido!

— Não fungue.

— Eu não estava fungando! — respondeu ela, fungando. — Mas guardei um choro muito bom e, quando tiver tempo, vou usá-lo.

— Está bem, querida — concordei —, quando você tiver tempo. Vamos dar um nome àquela montanha: "montanha Dora".

— Não, o nome dela não é esse. — Ela ficou pensativa. — É monte Esperança. E tudo isso embaixo é o vale Feliz.

— Durável Dora, você é uma sentimental incurável.

— Veja quem fala! — Ela afagou a barriga, inchada quase até o máximo. — Esse é o vale Feliz porque é onde vou ter este animalzinho esfomeado... e aquele é o monte Esperança porque é.

Buck havia voltado para a primeira carroça e estava esperando para descobrir por que havíamos parado.

— Buck — disse eu, apontando —, lá está o nosso lar. Conseguimos. Lar, rapaz. Fazenda.

Buck examinou o vale.

— Est bomm.

 

...em seu sono, Minerva. Não lobos, não havia uma marca em Buck. Ataque da coronária, acho eu, embora eu não o tenha aberto para descobrir. Ele estava simplesmente velho e cansado. Antes de partirmos, eu havia tentado pô-lo para pastar com John Magee. Mas Buck não queria isso. Nós éramos a família dele, Dora, Beulah e eu, e ele queria ir junto. Assim, fiz dele chefe das mulas e não o deixei trabalhar — quero dizer, nunca montei nele e nunca o encilhei. Ele trabalhou, como chefe das mulas, e o seu discernimento paciente levou-nos em segurança até o vale Feliz. Não o teríamos conseguido sem ele.

Talvez pudesse ter vivido mais alguns anos solto no pasto. Ou poderia ter definhado de solidão logo após partirmos. Quem pode julgar?

Nem pensei em carneá-lo; acho que Dora teria abortado se eu sequer ventilasse essa idéia. Mas era bobagem enterrar uma mula quando os lobos e o tempo em breve cuidariam da sua carcaça. Então, enterrei-o.

É preciso um buraco extremamente grande para enterrar uma mula; se aquela não fosse uma terra macia de fundo de rio, eu ainda estaria lá.

Mas primeiro eu tinha que cuidar dos problemas pessoais. Ken ficava logo abaixo de Beulah na precedência da fila da água e era um mulo firme e forte que falava razoavelmente bem. Por outro lado, Beulah tinha sido auxiliar de Buck durante toda a viagem — mas eu nunca tinha ouvido falar de uma tropa de mulas chefiadas por uma fêmea.

Minerva, com o Homo sapiens isto não importaria, pelo menos não atualmente, em Secundus. Mas com algumas espécies de animais importa. O chefe dos elefantes é fêmea. O chefe das galinhas é o galo, não uma galinha. O chefe dos cães pode ser de qualquer sexo. Numa espécie em que o sexo controla o assunto, é melhor o homem seguir-lhe os hábitos.

Resolvi verificar se Beulah podia dar conta disso; disse a ela, então, para pô-las em linha para encilhar, tanto para teste como porque eu queria afastar as mulas enquanto enterrava Buck — elas estavam nervosas e inquietas; a morte do chefe deixara-as perturbadas. Não sei o que as mulas acham da morte, mas não são indiferentes a ela.

Ela começou a trabalhar prontamente, e fiquei de olho em Kenny. Ele aceitou aquilo e tomou o seu lugar habitual perto de Daisy. Uma vez tendo-as encilhado, Beulah foi a única que restou; três mulas já haviam morrido.

Eu disse a Dora que queria que os animais se afastassem algumas centenas de metros. Poderia ela cuidar disso, com Beulah como chefe de marcha? Ou ela se sentiria mais segura se eu o fizesse? ... e criei um segundo problema: Dora queria estar presente quando eu enterrasse Buck. Mais do que isso...

— Woodrow, posso ajudar a cavar? Buck era meu amigo também, você sabe.

— Dora — disse eu —, concordaria com qualquer coisa proposta por uma mulher grávida, exceto que fizesse alguma coisa que pudesse prejudicá-la.

— Mas, querido, eu me sinto fisicamente bem, só que estou muito abalada por causa de Buck. Por isso quero ajudar.

— Acho que você está em boa forma também, e quero que continue assim. Você pode ajudar mais ficando na carroça. Dora, não tenho meio algum de cuidar de um bebê prematuro, e não quero ter que enterrar um bebê, além de Buck. Seus olhos se arregalaram.

— Você acha que isso pode acontecer?

— Querida, não sei. Conheci mulheres cujos bebês foram submetidos a privações inacreditáveis. Vi outras os perderem por motivos que nem consegui descobrir quais eram. A única regra que tenho a respeito disso é: não corra riscos desnecessários. Este não é necessário.

Replanejamos outra vez as coisas para atender aos interesses de nós dois, embora isso levasse uma hora extra. Desatrelei a segunda carroça e levantei a cerca novamente, coloquei as quatro cabras dentro da cerca e deixei Dora naquela carroça. Depois levei a primeira carroça trezentos ou quatrocentos metros adiante, desencilhei as mulas e disse a Beulah para mantê-las juntas — pedi a Ken que a ajudasse, deixei Fritz para ajudá-la também e levei Lady Mac de volta comigo para vigiar os lobos ou o que quer que fosse. A visibilidade era boa — nenhuma moita, nenhum capim alto; o lugar parecia um parque bem tratado. Mas eu ia ter que ficar dentro de um buraco; não queria alguma coisa avançando furtivamente em cima de mim ou sobre a carroça.

— Lady Macbeth. Fique de sentinela no alto. Suba! Dora ficou dentro da carroça, como combináramos. Levei todo aquele dia para cuidar do nosso velho amigo,

com um intervalo para almoço e algumas pequenas paradas para beber água e retomar o fôlego à sombra da carroça — paradas que partilhei com Lady Mac, deixando-a deitar-se cada vez que eu subia. Mais uma interrupção...

A tarde ia em meio e eu havia cavado quase o suficiente quando Lady Mac me chamou asperamente. Saí daquele buraco depressa, com o explosivo na mão, esperando lobos.

Apenas um dragão...

Não fiquei especialmente surpreso, Minerva; o estado da turfa bem-aparada, quase como um gramado, parecia indicar dragões em vez de cabras da pradaria. Aqueles dragões não são perigosos, a menos que um caia por acaso em cima da gente. São vagarosos, estúpidos e estritamente vegetarianos. Ah, são feios o bastante para serem assustadores; parecem-se com tricerátopos ¹ de seis pernas. Mas isso é tudo. Os lobos os deixam em paz porque morder a couraça não é vantajoso para eles.

¹ Grandes dinossauros herbívoros cretáceos com três chifres, uma carapaça ou espinhaço ósseo no pescoço e cascos fendidos. (N. da T.)

 

Juntei-me a Dora na carroça.

— Já viu isso alguma vez, querida?

— Não de perto. Santo Deus, é enorme.

— Esse é grande, sem dúvida. Mas provavelmente irá embora. Não vou gastar uma carga com ele se não for necessário.

Mas a maldita coisa não foi embora. Minerva, acho que ele foi tão estúpido que confundiu a carroça com um dragão fêmea. Ou vice-versa, é difícil distinguir o macho da fêmea. Mas eles são definitivamente bissexuais; dois dragões amontoados são um espetáculo notável.

Quando ele chegou a cem metros, atravessei a cerca e levei Lady Mac comigo, porque ela estava tremendo de ansiedade. Duvido que ela alguma vez tivesse visto um; eles foram afastados das imediações de Top Dollar muito antes de ela ter nascido. Ela dançou de excitação, latindo asperamente mas tomando cuidado.

Tive esperança de que Lady o fizesse ir embora, mas aquele rinoceronte deformado não prestou atenção; seguiu em frente pesada e vagarosamente, direto para a carroça. Então fiz cócegas nele com meu fuzil de agulha onde ele devia ter lábios, para atrair-lhe a atenção. Ele parou, espantado acho eu, e abriu bem a boca. Isso era o que eu precisava, porque não queria gastar a força máxima da pólvora explodindo aquele flanco couraçado. Portanto... Explosão mínima, bem dentro da boca: um dragão a menos.

Ele ficou parado por um momento, depois caiu devagar. Chamei Lady e voltei para a cerca. Dora estava esperando.

— Posso dar uma olhada nele? Olhei para o sol.

— Querida, vou ter que fazer o possível para cuidar de Buck antes de escurecer; depois vou trazer as mulas de volta para que nos levem mais adiante. A menos que você esteja querendo acampar com a sepultura de um lado e um dragão morto do outro.

Ela não insistiu, e voltei a trabalhar. Em mais de uma hora eu havia aprofundado e alargado bastante o buraco. Tirei a talha, com roldana tripla, prendi-a ao eixo traseiro, amarrei as patas de trás de Buck, passei o gancho no laço e peguei a parte frouxa da corda.

Dora havia vindo comigo.

— Espere um minuto, querido. — Ela parou para fazer festa no pescoço de Buck, depois se inclinou e o beijou na testa. — Pronto, Woodrow. Agora.

Puxei a corda. Por um momento pensei que a carroça fosse andar, apesar de estar freada. Depois Buck começou a deslizar e caiu dentro da sepultura. Soltei o gancho, depois enchi a cova depressa, fechando em vinte minutos um buraco que me havia tomado a maior parte do dia para cavar. Dora esperou.

Terminei.

— Suba para a carroça, Dorável; acabou-se.

— Lazarus, gostaria de saber alguma coisa para dizer. Você sabe?

Pensei naquilo. Eu havia ouvido mil sermões de enterro; não gostara da maioria deles. Assim, inventei um:

— Qualquer que seja o Deus que exista, por favor cuide desta ótima pessoa. Ela sempre fez o melhor que pôde. Amém.

(Omitido)

...mesmo aqueles primeiros anos não foram muito duros, porque no Vale Feliz dava qualquer coisa, duas ou três colheitas por ano. Mas devíamos ter dado a ele o nome de "Vale do Dragão".

Os lobos já eram bastante maus, especialmente os pequenos, que caçavam em alcatéias, e que encontramos naquele lado da serra da Muralha. Mas aqueles malditos dragões! Quase me deixaram fora de mim. Quando se perde o mesmo campo de batatas quatro vezes seguidas, isso começa a irritar.

Os lobos eu podia envenenar, e o fiz. Podia caçá-los com armadilhas também, se mudasse de sistema todas as vezes. Ou podia colocar uma isca à noite, ficar sentado em silêncio e pegar a maior parte da alcatéia, em silêncio, com um fuzil de agulha. Podia fazer uma porção de coisas e fiz, e as mulas aprenderam a se proteger deles também, dormindo bem juntas à noite e sempre com uma de sentinela, como codornizes ou babuínos. Sempre que ouvia o berro de "Lobo!", eu acordava depressa e tentava entrar na brincadeira — mas as mulas raramente me deixavam algum; elas não só podiam pisoteá-los, como alcançá-los e pegar algum ou todos da alcatéia que tentassem escapar. Perdemos três mulas e seis cabras para os lobos, mas os lobos ouviram a notícia e começaram a guardar uma boa distância de nós.

Mas aqueles dragões! Eram grandes demais para se pegar em armadilhas e não comiam veneno; salada era tudo o que Queriam. Mas o que um dragão pode fazer com um milharal em uma noite não devia acontecer nem a Sodoma e Gomorra- Arco e flecha era uma arma inútil contra eles, e um fuzil de agulha apenas fazia-lhes cócegas. Eu podia matar com um explosivo, força total diretamente através da couraça, ou força mínima da maneira pela qual peguei aquele primeiro, se conseguisse fazer o meu alvo abrir a boca. Mas, ao contrário dos lobos, eles eram estúpidos demais para guardar distância quando estavam perdendo.

No primeiro verão em que pude plantar, matei mais de cem dragões tentando salvar minhas plantações... o que foi uma derrota para mim e uma vitória para os dragões. Não só o fedor era terrível (o que se pode fazer com uma carcaça daquele tamanho?), mas, muito pior, as minhas cargas estavam se acabando e eles não pareciam estar.

Nenhuma eletricidade. O rio Buck não tinha desnível suficiente onde nos estabelecemos para se pensar em tentar construir uma roda-d'água, mesmo que eu tivesse de destruir uma carroça para construí-la. O moinho de vento que eu havia trazido era na realidade nada mais do que engrenagens e outras ferragens; o moinho propriamente dito eu teria que construir, desde as velas até a torre. Entretanto, até que eu tivesse eletricidade, não tinha meios de recarregar as baterias.

Dora resolveu isso. Ainda estávamos morando naquele primeiro conjunto, nada mais do que um muro alto de adobe apenas suficiente para cercar as carroças e trazer as cabras para dentro à noite, enquanto dormíamos na primeira carroça junto com o bebê Zack e cozinhávamos num forno holandês de barro; e entre fumaça, cabras, galinhas, os cheiros acres que os bebês não podem evitar de exalar e a latrina, que tinha de ficar dentro do muro... bem, o fedor dos dragões mortos não era muito perceptível.

Estávamos acabando de jantar, Dora vestida com seus rubis, como sempre, para o jantar, e observávamos as luas e as estrelas — a melhor hora do dia, sempre, exceto que, quando devia estar admirando nosso primeiro filho mamar e apreciando o céu, eu estava resmungando sobre eletricidade e que diabo podia fazer quanto àqueles incômodos dragões.

Eu havia pensado em várias maneiras simples de produzir eletricidade — simples se você estivesse num planeta civilizado ou mesmo num lugar como Nova Pittsburgh, com seu carvão e sua indústria metalúrgica incipiente — quando usei por acaso um termo muito fora de moda. Em vez de falar em quilowatts, megadinacentímetros por segundo ou coisa parecida, comentei que me contentaria com dez cavalos de qualquer maneira que pudesse consegui-los.

Dora nunca havia visto um cavalo, mas sabia o que era.

— Amado, dez mulas não serviriam? — perguntou ela.

(Omitido)

Estávamos em nosso vale havia sete anos quando a primeira carroça apareceu. O jovem Zack estava quase com sete anos e começando a me ajudar um pouco — ou achava que estava, e encorajei-o a tentar. Andy tinha cinco e Helen ia fazer quatro. Havíamos perdido Persephone, e Dora estava grávida outra vez, por isso mesmo. Dora havia insistido em começar outro bebê imediatamente, sem esperar um dia, uma hora sequer, e ela estava certa. Depois de sabermos que ela engravidara, nosso moral subiu da noite para o dia. Perdemos Persephone; ela fora um bebê encantador. Mas paramos de nos lamentar e, em vez disso, olhamos para a frente. Eu esperava outra menina, mas estava disposto a aceitar qualquer bebê — não havia meio de controlar o sexo de uma criança, lá e então.

Tudo considerado, estávamos em ótima forma, com uma fazenda próspera, uma família saudável e feliz, bastante gado, um conjunto muito maior, com uma casa construída no interior, encostada no muro do fundo, um moinho de vento que acionava uma serra, moia grãos ou fornecia eletricidade para os meus explosivos.

Quando vi aquela carroça, meu primeiro pensamento foi que ia ser bom ter vizinhos. Mas meu segundo pensamento foi que eu ia ficar orgulhoso, muito orgulhoso em apresentar minha ótima família e nossa fazenda a estes recém-chegados.

Dora subiu comigo até o telhado e observou a carroça; ainda estava a mais de quinze quilômetros de distância, não podia chegar antes da noite. Pus o meu braço em torno dela.

— Excitada, querida?

— Sim. Embora nunca me sentisse só; você não deixou. Quantos acha que devo esperar para jantar?

— Hum... Só uma carroça. Uma família. Minha melhor estimativa é um casal, sem filhos, ou com um ou dois. Mais do que isso me surpreenderia.

— A mim também, querido, mas haverá bastante para comer.

— E vista algumas roupas em nossos filhos antes que eles cheguem aqui... não gostaria que pensassem que estamos criando selvagens, não é?

— Devo vestir-me também?

— Que pergunta! Isso é com você, Lil Pernalonga... mas quem foi que disse, no mês passado, que nunca havia usado seu vestido de festa?

— Você vai usar o saiote, Lazarus?

— Pode ser. Posso até tomar um banho. Vou precisar de um, porque vou passar o resto do dia limpando o recinto

as cabras e uma porção de outras coisas... para fazer este lugar parecer tão limpo quanto possível. Mas esqueça o nome "Lazarus", querida; sou Bill Smith outra vez.

— Vou me lembrar disso... Bill. Vou tomar banho, também, antes que eles cheguem aqui... porque vou ficar com calor e ocupada, cozinhando, limpando a casa, dando banho nas crianças e tentando ensinar a elas como serem apresentadas a estranhos. Elas nunca viram mais ninguém; querido, não estou certa de que acreditem que exista mais alguém.

— Elas se comportarão. — Eu estava certo de que sim. Dora e eu tínhamos as mesmas idéias sobre educação de crianças. Ela elogiava-as, não gritava nunca com elas, punia-as quando necessário e imediatamente (nunca u a momento de espera), depois terminava com aquilo e esquecia. Éramos tão pródigos em afeição após uma surra como em qualquer outra ocasião... ou um pouco mais. Surras eles tinham que levar (Dora geralmente usava uma vara) porque, sem exceção durante os séculos, os meus filhos foram uns endiabrados que tiravam vantagem da rotina de doçura e condescendência. Algumas das minhas mulheres não se conformavam com os pequenos monstros que eu gerava... mas Dora estava de acordo comigo neste ato selvagem desde o início. Em conseqüência, ela criou a ninhada mais civilizada que jamais tive.

Quando aquela carroça estava talvez a um quilômetro de distância, montei e fui encontrá-los — depois fiquei surpreso e desapontado. Uma família, sim, se a gente considerar um homem e dois filhos crescidos como uma família. Nenhuma mulher, nenhuma criança. Fiquei pensando em como eles achavam que iam se estabelecer.

O filho mais moço não estava inteiramente crescido; sua barba era rala e desalinhada. No entanto, era mais alto e mais pesado do que eu, e era o menor dos três. O pai e o irmão estavam montados; ele estava guiando — guiando realmente; eles não estavam usando um mulo chefe. Não havia nenhum gado além das mulas que eu pudesse ver, embora eu não tentasse olhar dentro da carroça.

Não gostei da aparência deles e mudei de idéia quanto a vizinhos. Esperei que eles seguissem pelo vale, pelo menos por uns cinqüenta quilômetros.

Os dois que estavam montados traziam armas no cinto — o que era razoável em região de lobos. Eu próprio estava com um fuzil de agulha à vista, bem como uma faca no cinto — e talvez outras coisas não à vista, porque não considero diplomático exibir muitas ferragens ao encontrar-me com estranhos.

Quando me aproximei, eles pararam e o cocheiro deteve as suas mulas. Fiz Beulah parar a cerca de dez passos da parelha guia.

— Boa tarde — disse eu. — Bem-vindos ao Vale Feliz. Sou Bill Smith.

O mais velho dos três me examinou dos pés à cabeça. É difícil definir a expressão de um homem quando ele usa uma barba cheia, mas, pelo pouco que pude ver, não havia expressão nenhuma — prudência, talvez. Meu próprio rosto estava liso, fora recém-barbeado, e eu estava usando um macacão limpo, em homenagem às visitas. Eu mantinha o rosto barbeado porque Dora o preferia assim e porque eu estava me conservando "jovem" para combinar com Dora. Eu estava usando meu melhor olhar amistoso — mas dizia comigo mesmo: "Você tem dez segundos para responder à minha saudação e dizer quem é... ou vai perder um pouco da melhor comida de Novas Origens".

Ele simplesmente deixou o prazo correr; eu tinha contado em silêncio sete chimpanzés quando ele sorriu de repente através daquele rosto coberto de musgo.

— Ora, isso é muito amável de sua parte, rapaz.

— Bill Smith — repeti. — E não percebi o seu nome.

— Provavelmente porque eu não o disse — respondeu ele. — Meu nome é Montgomery. "Monty" para os meus amigos, e não tenho nenhum inimigo, pelo menos não por muito tempo. Certo, Darby?

— Certo, papai — concordou o outro que estava montado.

— E este é meu filho Darby, e aquele guiando as mulas do exército é Dan. Digam "Alô", meninos.

— Alô — disseram eles.

— Alô, Darby. Alô, Dan, Monty, a sra. Montgomery está com você? — Apontei com a cabeça para a carroça, ainda sem tentar olhar para dentro dela. A carroça de um homem é tão particular quanto a sua casa.

— Por que você está perguntando isso agora?

— Porque — respondi, mantendo ainda minha aparência amistosamente idiota — quero correr em casa para dizer à sra. Smith quantos teremos para jantar.

— Bem! Vocês ouviram isso, meninos? Fomos convidados para jantar. Isso é muito amável também, não é, Dan?

— É, papai.

— E aceitamos com o maior prazer. Não é, Darby? — É, papai.

Eu estava ficando cansado do eco, mas conservei minha expressão amável.

— Monty, você ainda não me disse quantos são.

— Ah! Apenas três. Mas comemos por seis. — Deu uma palmada na coxa e riu da própria piada. — Certo, Dan?

— Certo, papai.

— Então toque essas mulas, Dan; temos motivos para nos apressar, agora.

Interrompi o eco para dizer:

— Espere, Monty. Não há necessidade de cansar demais suas mulas.

— O quê? As mulas são minhas, filho.

— São, e faça o que quiser com elas, mas fui mandado na frente para que a sra. Smith tenha tempo de se preparar para receber vocês. Vejo que está usando um relógio. — Olhei para o meu. — Sua anfitriã estará à espera de vocês dentro de uma hora. A menos que precisem de mais tempo para chegar lá, desencilhar e dar água às suas mulas.

— Ah, essas mulas podem esperar até depois do jantar. Se chegarmos cedo, esperaremos um pouco.

— Não — disse eu com firmeza. — Uma hora, não antes. Você sabe como uma senhora se sente com relação a hóspedes que chegam antes que ela esteja pronta para recebê-los. Apresse-a, e ela poderá estragar o seu jantar. Façam o que quiserem com as mulas... mas há um lugar fácil para dar água a elas, uma pequena praia, onde o rio passa mais perto da casa. É muito bom lugar para vocês se prepararem um pouco também... antes de jantarem com uma senhora. Mas não venham até a casa antes de uma hora.

— Sua mulher parece muito especial... para um lugar como esse no sertão.

— Ela é — respondi. — Para casa, Beulah.

Passei do trote para o galope rápido de Beulah e não consegui dominar uma sensação desagradável entre as minhas omoplatas até ter certeza de estar longe demais para constituir um alvo. Há apenas um animal perigoso; apesar disso, a gente é forçado às vezes a fingir que ele é tão doce e inocente como uma cobra.

Não parei para desencilhar Beulah; corri para dentro. Dora ouviu minha chegada precipitada, estava na porta do recinto.

— O que há, querido? Problemas?

— Pode ser. Três homens, não gosto deles. Apesar disso, prometi-lhes um jantar. As crianças já comeram? Podemos pô-las na cama agora e convencê-las de que, se emitirem um som sequer, serão esfoladas vivas. Não mencionei crianças, não vamos mencioná-las, e vou dar uma olhada rápida por ai para me certificar de não haver nada à vista que denuncie "crianças".

— Tentarei. Sim, já dei de comer a elas.

 

Na hora exata Lazarus Long recebeu seus hóspedes na porta do recinto. Eles se aproximaram, guiando a carroça e montados, da direção da praia que ele havia descrito. Assim, presumiu que haviam dado de beber aos seus animais, mas notou, com um leve desprezo, que eles não se haviam dado ao trabalho de desencilhar suas parelhas para o que certamente ia ser uma longa espera. Ficou satisfeito, porém, ao notar que todos os três Montgomerys haviam feito alguns esforços para se arrumar — talvez fossem comportar-se; talvez seu sexto sentido para problemas estivesse hiperaguçado pela estada longa demais no sertão.

Lazarus estava vestido com a sua melhor roupa — saiote com equipamento completo, salvo que o efeito era estragado por uma camisa de trabalho desbotada, originária de Nova Pittsburgh. Mas era realmente sua melhor roupa, usada apenas nos aniversários das crianças. Nos outros dias, ele usava qualquer coisa, desde macacão até a pele, dependendo do trabalho e do tempo.

Após haver apeado, Montgomery fez uma pausa e examinou seu anfitrião.

— Nossa, não estamos elegantes?

— Em homenagem a vocês, cavalheiros. Guardo isso para ocasiões muito especiais.

— É mesmo? É muito amável de sua parte nos homenagear, Red. Não é, Dan?

— Certo, papai.

— Meu nome é Bill, Monty. Não "Red". Podem deixar suas armas na carroça.

— Bem! Isso agora não é muito amável. Nós sempre usamos nossas armas. Não usamos, Darby?

— Certo, papai. E, se papai diz que seu nome é "Red", esse é o seu nome.

— Ora, ora, Darby, eu não disse isso. Se Red prefere chamar-se Tom, Dick ou Harry, isso é assunto dele. Mas não nos sentimos vestidos sem as nossas armas, e essa é a verdade, Bill. Ora, eu uso a minha até para dormir. Aqui.

Lazarus estava parado na porta aberta do recinto. Ele não se moveu para dar passagem e deixar seus visitantes entrarem.

— Essa é uma precaução razoável... em viagem. Mas cavalheiros não usam armas quando jantam com uma senhora. Deixem-nas aqui ou ponham-nas dentro da carroça, o que preferirem.

Lazarus pôde sentir a tensão aumentar, pôde ver os dois moços observando o pai à espera de instruções. Lazarus ignorou-os e manteve seu sorriso fácil dirigido para Montgomery, enquanto forçava os músculos a ficarem frouxos como algodão. Agora mesmo? O urso recuaria? Ou consideraria aquilo um desafio?

Montgomery abriu o rosto num sorriso largo.

— Ora, claro, vizinho... se é isso o que você quer... Devo tirar minhas calças também?

— Apenas suas armas, cavalheiro.

(Ele é destro. Se eu fosse destro e estivesse usando o que você está usando, onde estaria a minha segunda arma? Ali, acho eu — mas, se assim for, ela deve ser pequena... um fuzil de agulha ou, provavelmente, um revólver de assassino de nariz arrebitado, bem fora de moda. Os filhos também são destros?)

Os Montgomerys colocaram seus cintos com as armas no banco da carroça e voltaram. Lazarus afastou-se e convidou-os a entrar, depois repôs a tranca no lugar quando fechou a porta. Dora estava esperando, vestida com seu "vestido de festa". Pela primeira vez, desde um dia muito quente na pradaria, ela não usava seus rubis na refeição da noite.

— Querida, este é o sr. Montgomery e estes são seus filhos, Darby e Dan. Minha esposa, a sra. Smith.

Dora inclinou-se numa reverência.

— Sejam bem-vindos, sr. Montgomery, Darby e Dan,

— Chame-me de "Monty", sra. Smith... e qual é o seu nome? Lugar bem bonito vocês têm aqui... para ser tão perdido no campo.

— Se os cavalheiros me derem licença, tenho duas coisas a fazer para pôr o jantar na mesa. — Dora virou-se rapidamente e entrou depressa na cozinha.

— Alegro-me por você gostar dele, Monty — Lazarus respondeu. — Foi o melhor que pudemos fazer até agora, enquanto começávamos a fazenda. — O muro do fundo do recinto tinha quatro cômodos construídos encostados nele: depósito, cozinha, quarto e viveiro. Todos tinham portas que davam para o conjunto, mas apenas a porta da cozinha estava aberta. Os cômodos intercomunicavam-se.

Do lado de fora da porta da cozinha ficava o forno holandês; dentro da cozinha havia um fogão usado para cozinhar outras coisas e para tudo quando chovia. Isso e um barril de água eram até agora o equipamento de cozinha mais importante de Dora — mas o marido havia-lhe prometido água corrente "em alguma ocasião antes de você se tornar avó, minha adorada". Ela não o havia pressionado a respeito disso; a casa crescia e ficava mais bem equipada a cada ano.

Além do forno holandês, e paralela aos quartos, havia uma mesa longa com bancos. Na outra parede ao lado do depósito havia uma privada; esta, um barril de água e duas tinas de madeira feitas com metades de um barril constituíam, até agora, o "banheiro-latrina-pia" deles. Um monte de terra com uma pá enfiada estava ao lado da privada; a fossa estava sendo enchida outra vez devagar.

— Você se saiu muito bem — concedeu Montgomery.

— Mas não devia ter posto a sua privada na parte de dentro. Não sabe disso?

— Há outra privada lá fora — disse-lhe Lazarus Long.

— Usamos esta o mínimo possível, e tento impedir que ela fique cheirando muito. Mas não se pode esperar que uma mulher saia depois de escurecer, não numa região de lobos.

— Uma porção de lobos, hein?

— Não tantos quantos costumava haver. Vocês viram alguns dragões quando vieram pelo vale?

— Vimos uma porção de ossos. Parecia que uma praga havia atingido a região.

— Mais ou menos isso — concordou Lazarus. — Lady! Sentada! — Ele acrescentou: — Monty, diga a Darby que não é seguro chutar aquela cadela, ela pode atacar. Ela é um cão de guarda, responsável por esta casa, e sabe disso.

— Você ouviu o que o homem disse, Darby. Deixe a cadela em paz.

— Então é melhor ela não farejar perto de mim! Não gosto de cachorros. Ela rosnou para mim.

— Ela rosnou porque você a chutou quando ela o cheirou. O que é dever dela — disse Lazarus diretamente para o filho mais velho. — Se eu não estivesse presente, a cadela poderia ter-lhe rasgado. Deixe-a em paz e ela o deixará em paz.

— Bill — disse Montgomery —, é melhor você pô-la do lado de fora enquanto comemos. — Dito como uma sugestão, isso soou como uma ordem.

— Não.

— Cavalheiros, o jantar está servido.

— Estamos indo, querida. Lady. Sentinela, alerta! — A cadela olhou para Darby, mas correu imediatamente escada acima até o telhado, usando os degraus da escada de mão sem hesitação. Lá, fez um cuidadoso giro do horizonte antes de se sentar onde pudesse observar tanto o lado de fora como o jantar abaixo dela.

O jantar teve mais sucesso pela comida do que como festa. A conversa limitou-se principalmente a trivialidades entre os dois homens mais velhos. Darby e Dan simplesmente comeram. Dora respondeu laconicamente às surtidas que Montgomery fez em sua direção e deixou de ouvir qualquer uma que considerasse pessoal demais. Os filhos pareceram surpresos de ver seus pratos guarnecidos com garfo, faca, pinça de segurar e colher, depois usaram principalmente a faca e os dedos; o pai fez algum esforço para usar aqueles instrumentos, ficando com um bocado de comida enfiada na barba.

Dora havia enchido a mesa com galinha frita quente, presunto frio em fatias, purê de batatas e molho de galinha, pão de milho quente e pão de trigo integral com gordura de toicinho, uma caneca de leite de cabra em cada lugar, salada de alface e tomates com cobertura de queijo de cabra ralado e cebolas, beterrabas cozidas, rabanetes frescos e morangos frescos com leite de cabra. Como prometeram, os Montgomerys comeram por seis e Dora ficou satisfeita por haver preparado bastante comida.

Por fim, Montgomery empurrou seu banco para trás e arrotou, reconhecido.

— Nossa, acertou em cheio! Dona Smith, a senhora pode cozinhar para nós o tempo todo. Certo, Dan?

— Certo, papai.

— Estou satisfeita de haverem apreciado o jantar, cavalheiros. — Ela levantou-se e começou a tirar a mesa. Lazarus levantou-se e começou a ajudá-la.

— Ah, sente-se, Bill — disse Montgomery. — Quero fazer-lhe algumas perguntas.

— Vá em frente e faça — disse Lazarus, continuando a empilhar os pratos.

— Você disse que não havia mais ninguém no vale.

— Isso é correto.

— Então acho que vamos ficar aqui mesmo. Dona Smith é uma cozinheira muito boa.

— Vocês são bem-vindos para acamparem aqui esta noite. Depois encontrarão terras excelentes mais adiante rio abaixo. Como lhes disse, tomei posse de tudo isto.

— Estava querendo falar com você sobre isso. Não parece direito um homem tomar posse de toda a melhor terra.

— Não é a melhor terra, Monty; há milhares de hectares tão bons quanto estes. A única diferença é que arei e cultivei esta parte.

— Bem, não vamos discutir sobre isso. Nós temos mais votos do que você. Quatro votando, quero dizer, e nós três votando da mesma maneira. Certo, Darby?

— Certo, papai.

— Isso não está sujeito a voto, Monty.

— Ora, vamos! A maioria sempre está certa. Mas não vamos discutir. Foi uma boa refeição, agora um pouco de diversão. Você gosta de lutar?

— Não especialmente.

— Não seja um desmancha-prazeres. Dan, acha que pode com ele?

— Claro, papai.

— Está bem. Bill, primeiro você luta com Dan... aqui no meio, e eu serei o juiz. Façam tudo direito e honestamente.

— Monty, não vou lutar.

— Ah, claro que vai. Dona Smith! É melhor vir para cá, a senhora não vai querer perder isto.

— Estou ocupada agora — gritou Dora. — Irei logo.

— É melhor se apressar. Depois você luta com Darby, Bill... depois comigo.

— Nada de luta, Monty. É hora de vocês irem para a sua carroça.

— Mas você quer lutar, rapaz. Eu não lhe disse qual é o prêmio. O vencedor dorme com Dona Smith. — Seu segundo revólver apareceu quando ele disse isso. — Enganei você, não foi?

Da cozinha, Dora acertou com um tiro a arma em sua mão exatamente quando apareceu uma faca no pescoço de Dan. Lazarus atirou com cuidado na perna de Montgomery, depois com mais cuidado ainda alvejou Darby — enquanto Lady Macbeth se atirava na sua garganta. A luta havia durado menos de dois segundos.

— Lady. Sentada. Bom tiro, Dorável. — Ele afagou Lady Macbeth. — Muito bem, Lady, boa cadela.

— Obrigada, querido. Devo acabar com Monty?

— Espere um momento. — Lazarus passou por cima e olhou para o homem ferido no chão. — Tem alguma coisa a dizer, Montgomery?

— Seus canalhas! Não nos deram uma oportunidade.

— Dei a você uma porção de oportunidades. Você não as aproveitou. Dora? Você quer? O privilégio é seu.

— Não especialmente.

— Muito bem. — Lazarus apanhou o segundo revólver de Montgomery, notou que era realmente uma peça de museu, mas não parecia estar estragado. Usou-o para liquidar o seu dono.

Dora começou a tirar o vestido.

— Espere um momento, querido, enquanto tiro isto; não quero sujá-lo de sangue. — Uma vez sem o vestido, sua gravidez apareceu um pouco. Ela também estava com várias outras armas, bem como um cinto de revólver preso abaixo dos quadris.

Lazarus estava tirando o saiote e os outros enfeites.

— Não é preciso ajudar, querida; você já fez o trabalho de um dia inteiro... e muito bem! Jogue para mim apenas o meu macacão mais velho.

— Mas quero ajudar. O que é que você vai fazer com eles?

— Pô-los em sua carroça, levá-los rio abaixo para que os lobos cuidem deles e voltar com a carroça. — Ele olhou para o sol. — Resta uma hora ou mais de claridade. Tempo suficiente.

— Lazarus, não quero você longe de mim! Não agora.

— Está perturbada com isso, minha Dorável?

— Um pouco. Não muito. Ah... fiquei excitada com isso, tenho vergonha de dizer. Perversa, hein?

— Lil Pernalonga, qualquer coisa a deixa excitada. Sim, é um tanto perverso... mas uma reação surpreendentemente comum para o primeiro encontro de alguém com a morte. Nada de que se envergonhar, desde que você não fique habituada; é apenas um reflexo. A propósito, esqueça o macacão; posso limpar o sangue mais facilmente de mim do que do tecido. — Ele retirou a tranca e abriu a porta enquanto falava.

— Já vi a morte antes. Fiquei muito mais perturbada quando tia Helen morreu... e nem um pouco excitada.

— Uma morte violenta, devo dizer. Querida, quero levar estes corpos para fora do muro antes que o sangue encharque mais o chão. Podemos discutir isso mais tarde.

— Você vai precisar de ajuda para pô-los na carroça. E não quero ficar longe de você, realmente não quero.

Lazarus parou e olhou para ela.

— Você está mais perturbada do que deixou transparecer. Isso é comum também... firme no ato, depois uma reação tardia. Vamos combinar, então. Não posso conceber deixar as crianças sozinhas esse tempo todo, nem as quero numa carroça carregada com toda essa carne estragada. Suponha que eu me afaste apenas uma pequena distância esta noite, digamos trezentos metros ou coisa parecida, enquanto você começa a aquecer uma chaleira de água. Vou querer outro banho depois deste serviço, mesmo que consiga não me sujar com uma só gota de sangue.

— Sim, senhor.

— Dora, você não parece feliz.

— Vou fazer como você quer. Mas eu podia acordar Zaccur e mandá-lo cuidar dos outros. Ele está acostumado a isso.

— Muito bem, querida. Mas primeiro vamos pô-los na carroça. Você pode segurá-los pelos pés enquanto eu os arrasto. Se você vomitar, é melhor ir cuidar das crianças enquanto termino isso.

— Não vou vomitar. Comi muito pouco.

— Não comi muito também. — Eles continuaram com aquele serviço horrível; Lazarus continuou a falar: — Dora, você fez um serviço perfeito.

— Percebi seu sinal. Você me deu bastante tempo.

— Eu não tinha certeza de que ele iria forçar uma solução final mesmo quando fiz o sinal.

— Realmente, querido? Eu sabia que eles pretendiam matar você e estuprar-me antes mesmo de se sentarem para comer. Você não sentiu isso? Assim, certifiquei-me de que comessem bastante... para que ficassem vagarosos.

— Dora, você sente realmente as emoções... não sente?

— Presto atenção no que pensam, querido. Quando são tão fortes assim, fico atenta. Mas eu não tinha certeza de como você resolveria a situação. Decidi que me deixaria estuprar a noite inteira se isso fosse necessário para você ter uma oportunidade segura.

O marido respondeu sobriamente:

— Dora, só permitirei que você seja estuprada se essa for a única maneira possível de salvar-lhe a vida. Esta noite isso não foi necessário. Graças a Deus! Mas Montgomery me deixou preocupado no portão. Três armas expostas abertamente e a minha ainda debaixo do saiote... poderia ter sido um problema. Já que ele pretendia me pegar de qualquer maneira, devia tê-lo feito naquela hora. Dorável, três quartos do sucesso de qualquer luta estão em não se hesitar quando chega a hora. É por isso que estou tão orgulhoso de você.

— Mas você armou aquilo, Lazarus. Você fez sinal para eu tomar posição, ficou de pé quando ele o mandou sentar-se, você deu a volta até a ponta da mesa e atraiu os olhares deles... e ficou fora da minha linha de fogo. Obrigada. Tudo o que tive de fazer foi atirar quando ele sacou o revólver.

— É claro que fiquei fora da sua linha de fogo, querida; esta não é a minha primeira vez. Mas foi o seu tiro certeiro que me deu tempo de enfiar a faca em Dan em vez de ter que cuidar do pai primeiro. E Lady me fez o mesmo favor com Darby. Vocês duas evitaram que eu tivesse de estar em três lugares ao mesmo tempo, o que sempre achei difícil.

— Você treinou a nós duas.

— Hum, sim. O que não diminui absolutamente o fato admirável de você ter esperado até ele próprio se trair... depois, não ter perdido uma fração de segundo em acertá-lo. Como se fosse uma veterana de cem combates a tiro, em vez de nenhum. Você pode dar a volta e segurar as mulas enquanto abro a traseira da carroça?

— Sim, querido.

Ela havia apenas alcançado a parelha guia e falado tranqüilizadoramente com elas, quando Lazarus gritou: — Dora! Venha aqui um minuto. Ela voltou; ele disse:

— Olhe para isto.

Era um pedaço de pedra chata que ele havia retirado do fundo da carroça e depositado no chão ao lado dos corpos. Tinha a inscrição:

 

BUCK

NASCIDO NA TERRA

3031 D.C.

MORTO NESTE LUGAR

N.O. 37

Ele sempre fez o máximo

 

— Lazarus, não compreendo. Posso compreender por que eles pretendiam estuprar-me... provavelmente fui a primeira mulher que viram em muitas semanas. Posso até compreender que eles quisessem matá-lo, ou fazer qualquer coisa para me pegar. Mas por que roubariam isto?

— Não é exatamente "por quê", querida... As pessoas que não respeitam a propriedade das outras fazem qualquer coisa... e roubam qualquer coisa que não esteja pregada. Mesmo que isso não lhes sirva para nada. — E acrescentou: — Se eu tivesse sabido disso antes, não lhes daria oportunidade nenhuma. Essas pessoas devem ser destruídas imediatamente. O problema é identificá-las.

Minerva, Dora foi a única mulher que amei sem reservas, fjão sei se posso explicar por quê. Eu não a amava dessa maneira quando me casei com ela; ela ainda não havia tido uma oportunidade para me ensinar o que o amor pode ser. Ah, eu a amava, mas com o amor do pai extremoso por uma filha favorita, ou talvez o amor que se pode dedicar a um animal de estimação.

Resolvi casar-me com ela não por amor em qualquer sentido mais profundo, mas simplesmente porque aquela criança adorável, que me havia proporcionado tantas horas de felicidade, queria demais uma coisa — um filho meu —, e só havia uma maneira de eu poder dar a ela o que ela queria e ainda satisfazer o meu amor-próprio. Assim, quase friamente, calculei o custo e decidi que o preço era bastante baixo pelo que ela queria. Isso não podia custar-me muito; ela era uma efêmera. Cinqüenta, sessenta, setenta, no máximo oitenta anos, e ela estaria morta. Eu podia dar-me ao luxo de dispender esse espaço trivial de tempo para tornar feliz a vida lamentavelmente curta da minha filha adotiva — foi como imaginei a coisa. Não era muito, e eu podia dar-me a esse luxo. Portanto, que assim fosse.

Todo o resto foi apenas um caso de não aceitar meias medidas; fazer o que fosse necessário para atingir o objetivo principal. Contei a você algumas das possibilidades; pode ser que eu não tenha mencionado que pensei em retomar o comando da Andy J, enquanto Dora vivesse, mandar Zaccur Briggs assumir o lado da sociedade em terra ou comprar a parte dele, se isso não lhe conviesse. Mas, embora oitenta e tantos anos numa espaçonave não me assustassem, para Dora seria uma vida inteira e podia não lhe convir. Além disso, uma nave não é um lugar ideal para se criar filhos — o que fazer quando eles crescessem? Largá-los em algum lugar sem conhecer nada senão a rotina de bordo? Não era bom.

Decidi que o marido de uma efêmera tinha que ser um efêmero, de todas as maneiras que lhe fossem possíveis. Os corolários dessa decisão fizeram com que terminássemos no Vale Feliz.

Vale Feliz — a mais feliz de todas as minhas vidas. Quanto mais eu tinha o privilégio de viver com Dora, mais 3 amava. Ela me ensinou a amar amando-me, e eu aprendi, bastante devagar; eu não era um aluno muito bom, com os meus hábitos arraigados, e não tinha o talento natural dela. Mas aprendi. Aprendi que a felicidade suprema consiste em desejar manter a outra pessoa segura, apaixonada e feliz, e ter o privilégio de tentar.

E a mais triste também. Quanto mais completamente aprendia isso — vivendo dia após dia com Dora —, mais feliz eu era... e mais eu sofria, numa parte da minha mente com o conhecimento de que aquele podia ser apenas um período passageiro que devia terminar cedo demais — e, quando estivesse terminado, eu não me casaria outra vez por quase cem anos. Depois me casei, porque Dora me ensinou a enfrentar a morte também. Ela estava tão consciente da própria morte, da certeza da brevidade de sua vida, quanto eu. Mas ela me ensinou a viver agora, não deixar coisa alguma estragar o hoje... até que finalmente superei a tristeza de ser condenado a viver.

 

Divertimo-nos maravilhosamente! Trabalhando como burros de carga, tínhamos sempre coisas demais para fazer, e apreciávamos cada minuto. Nunca estávamos apressados demais para gozar a vida. Algumas vezes era apenas uma palmadinha na bunda e uma perto nos seios quando eu passava depressa pela cozinha, e o seu sorriso rápido em sinal de gratidão; outras vezes uma hora de indolência no telhado, empregada observando o pôr-do-sol, as estrelas e as luas, geralmente com Eros para torná-la mais doce.

Acho que se poderia dizer que o sexo foi o nosso único divertimento constante durante um certo número de anos (e nunca deixou de estar em primeiro lugar, porque Dora era tão entusiástica aos setenta como aos dezessete anos — apenas não tão flexível). Geralmente eu estava cansado demais para jogar xadrez, embora eu tivesse feito para nós um conjunto de peças; não tínhamos nenhum outro jogo e provavelmente não o teríamos jogado de qualquer maneira — éramos ocupados demais. Ah, fazíamos outras coisas; muitas vezes um de nós lia em voz alta enquanto o outro tricotava, cozinhava ou coisa parecida. Ou cantávamos juntos, entoando o ritmo enquanto empilhávamos com o forcado grãos ou estrume.

Trabalhávamos juntos o máximo possível; a divisão do trabalho obedecia apenas aos limites naturais. Não posso conceber um bebê ou dar-lhe de mamar, mas posso fazer tudo o mais por uma criança. Dora não podia fazer algumas coisas que eu fazia porque eram muito pesadas para ela, especialmente quando sua gravidez estava muito adiantada. Ela possuía mais talento para cozinhar do que eu (eu tinha séculos de experiência, mas não o seu toque), e ela podia cozinhar enquanto cuidava de um bebê e atendia às crianças menores, as que eram pequenas demais para se juntarem a mim nos campos. Mas eu cozinhava, especialmente a refeição matinal, enquanto ela organizava as crianças e ajudava a cuidar da fazenda e especialmente da horta. Ela não entendia nada de fazenda, mas aprendeu.

Também não conhecia construção — mas aprendeu. Enquanto eu fazia a maior parte do trabalho difícil, ela fazia a maior parte dos tijolos de adobe, sempre com a quantidade certa de palha. O adobe não era muito adequado ao clima — chovia demais, e pode ser desencorajador ver uma parede derreter-se porque uma chuva inesperada nos pegou antes de a cobrirmos.

Mas constrói-se com o que se tem, e ajudou muito o fato de eu ter as capotas das carroças para prender nas paredes mais expostas até imaginar um meio de impermeabilizar uma parede de adobe. Não pensei numa cabana de troncos; a madeira boa ficava muito longe. Eu e as mulas levávamos um dia inteiro para trazer dois troncos, o que os tornava muito onerosos para a maioria das construções. Em vez disso, arranjei-me com material menor que crescia ao longo das margens do rio Buck e arrastava os troncos apenas para as vigas.

Nem queria construir uma casa que não fosse tão à prova de fogo quanto pudesse fazê-la. Certa vez o bebê Dora quase morreu queimado; eu não ia fazer Dora e seus filhos correrem tal risco outra vez.

Entretanto, descobrir como tornar um telhado tanto impermeável como à prova de fogo quase me deixou desnorteado.

Passei pela resposta centenas de vezes antes de reconhecê-la. Quando o vento, o tempo, a putrefação, os lobos e os insetos tinham feito o pior contra um dragão morto, o que restava era quase indestrutível. Descobri isso quando tentei queimar o que restava de um grande animal que estava desagradavelmente perto do nosso recinto. Nunca descobri por que isso acontecia. Talvez a bioquímica daqueles dragões tenha sido investigada desde então, mas eu não tinha nem o equipamento, nem tempo, nem interesse; estava ocupado demais lutando pela vida de minha família e fiquei simplesmente encantado ao saber que aquilo era verdade. Cortei o couro da barriga em encerados à prova d'água e de fogo; o couro das costas e dos lados deu um telhado excelente. Mais tarde descobri muitos usos para os ossos.

Nós dois ensinávamos as crianças, tanto dentro de casa como fora. Talvez os nossos filhos tivessem uma educação muito estranha... mas uma moça que pode moldar uma sela confortável e bonita contando apenas com uma mula morta e não muita coisa mais, resolver de cabeça equações de segundo grau, atirar certeiramente com revólver ou flecha, preparar uma omelete leve e saborosa, recitar páginas após páginas de Shakespeare, carnear um porco e curá-lo, não pode ser chamada de ignorante pelos padrões de Novas Origens. Todos os nossos meninos e meninas podiam fazer tudo isso e mais. Devo admitir que falavam um tipo de inglês bastante floreado, especialmente depois que criaram o Teatro Novo Globo e montaram uma a uma todas as peças do velho Bill. Isto lhes deu, sem dúvida, estranhas idéias a respeito da cultura e da história da Velha Terra, mas não pude ver em quê o fato poderia prejudicá-los. Tínhamos apenas alguns livros encadernados, principalmente de referência; os doze livros "divertidos" foram manuseados até a morte.

Os nossos filhos não viam nada de estranho em aprender a ler no Como quiserdes [1]. Ninguém lhes disse que isso era muito difícil para eles, e eles devoraram tudo, encontrando "línguas em árvores, livros nos riachos que corriam, sermões nas pedras e o bem em todas as coisas".

 

Embora fosse estranho ouvir uma menina de cinco anos falar em escansão e em períodos exclusos, os polissílabos rolavam graciosamente dos seus lábios infantis. Mas eu preferia isso a uma linguagem idiota de uma era posterior à de Bill.

Logo abaixo de Shakespeare em popularidade, e em primeiro lugar quando Dora estava inchando outra vez, ficavam os meus livros de medicina, especialmente os de anatomia, obstetrícia e ginecologia. Qualquer nascimento era um acontecimento — gatinhos, bacorinhos, potros, cachorrinhos, cabritos —, mas um bebê novo de Dora era um super-acontecimento, acontecimento que sempre punha mais impressões digitais naquela ilustração padrão, um corte da mãe e do bebê aos nove meses. Finalmente retirei essa ilustração e várias pranchas que se seguiam, as que mostravam o parto normal, e preguei-as em cartazes para evitar o uso e os rasgões nos meus livros — depois anunciei que eles podiam olhar aquelas fotografias o quanto quisessem, mas que tocar numa acarretaria uma surra. Fui forçado a dar uma surra em Iseult para manter a lei, o que magoou seu velho pai muito mais do que sua bunda de criança, embora ela salvasse meu prestígio aplaudindo minhas palmadas suaves com altos gritos e lágrimas.

Meus livros de medicina tiveram um efeito estranho. Nossos filhos conheciam, desde a mais tenra infância, todos os monossílabos ingleses corretos para a anatomia e as funções humanas; Helen Mayberry nunca havia usado gíria com Dora em criança; Dora falava da mesma forma correta diante dos filhos. Uma vez tendo eles começado a ler os meus livros, porém, o esnobismo intelectual se estabeleceu; eles adoravam aqueles polissílabos em latim. Se eu dizia "útero" (como sempre fiz), algum pirralho de seis anos me informava, com tranqüila autoridade, que o livro dizia "uterus". Ou Undine podia entrar correndo com a notícia de que Billy Costeletas Grandes estava "copulando" com Sedosa, ao que as crianças corriam para fora até o curral das cabras para observar. Em alguma ocasião por volta dos quinze anos, elas geralmente se recuperavam desta bobagem e voltavam a falar como seus pais; portanto, acho que isso não os prejudicou.

O motivo de minha própria lubricidade não servir de espetáculo, como o que todos os animais proporcionavam, era, acho eu, apenas meus próprios hábitos sem propósito mas muito antigos. Não acho que isso chegasse a aborrecer Dora, porque não pareceu aborrecê-la nas ocasiões em que aconteceu — como aconteceu; a intimidade era escassa e ficou cada vez mais escassa, até que construímos a nossa casa grande, cerca de doze ou treze anos após entrarmos no vale — tempo indefinido, porque durante anos trabalhei nela quando podia; depois nos mudamos para lá sem terminá-la, porque estávamos estourando as paredes de nossa primeira casa e outro bebê (Ginny) estava a caminho.

Dora não se perturbava com a falta de intimidade porque sua doce luxaria era totalmente inocente, ao passo que a minha era marcada pela cultura em que eu fora criado — cultura essa completamente psicótica, especialmente nesse assunto. Dora fez muito para curar essas cicatrizes. Mas nunca atingi sua inocência angélica.

Não me refiro à inocência da ignorância infantil; refiro-me à verdadeira inocência da mulher adulta e inteligente, informada e que não possui maldade. Dora era tão irredutível quanto inocente, sempre consciente de que era responsável por seus próprios atos. Ela sabia que "o rabo acompanha a Pele do animal, que não se pode ficar um pouco grávida, que não constitui bondade enforcar um homem vagarosamente". Ela podia tomar uma decisão difícil sem se perturbar e depois agüentar as conseqüências se o seu julgamento terminasse sendo errado. Podia pedir desculpas a uma criança ou a uma mula. Mas isso raramente era necessário; sua própria honestidade não a levava a tomar decisões erradas muitas vezes.

E ela não flagelava a si própria quando cometia um engano. Corrigia-o o melhor que podia, aprendia com ele e não perdia o sono por causa disso.

Embora seus antepassados lhe tivessem proporcionado esse potencial, deve ser creditado a Helen Mayberry havê-la orientado e permitido que isso se desenvolvesse. Helen Mayberry era sensível e sensata. Pensando nisso, os traços se complementam. Uma pessoa que é sensível sem ser sensata é toda confusa, não age adequadamente. Uma pessoa que é sensata e não é sensível... nunca conheci uma e não estou certo de que uma pessoa assim possa existir.

Helen Mayberry nascera na Terra, mas havia se desvencilhado dos seus maus antecedentes ao emigrar; ela não transmitiu ao bebê Dora e à menina Dora que crescia os padrões doentios de uma cultura agonizante. Soube uma parte disto pela própria Helen, porém aprendi mais sobre Helen com Dora, a Mulher. Durante o longo tempo que tive para travar conhecimento com aquela estranha com quem me havia casado (os casais sempre começam como estranhos, não importa há quanto tempo se conheçam), soube que Dora conhecia o tipo de relação que certa vez existira entre mim e Helen Mayberry, incluindo o fato de que eram econômicas bem como sociais e físicas.

Isto não tornou Dora ciumenta da "tia" Helen; o ciúme era apenas uma palavra para Dora, palavra essa que não significava mais para ela do que o pôr-do-sol para uma minhoca; a capacidade de sentir ciúme nunca se desenvolvera nela. Dora considerava os acordos entre mim e Helen como naturais, razoáveis e apropriados. Na verdade, estou certo de que o exemplo de Helen foi o fator decisivo para Dora me escolher como seu companheiro, porque não podiam ter sido o meu charme e a minha beleza, ambos desprezíveis. Helen não havia ensinado a Dora que o sexo era alguma coisa sagrada; ensinou-lhe, por norma e exemplo, que o sexo é uma maneira de as pessoas serem felizes juntas.

Veja aqueles três abutres que nós matamos... Em vez do que eram, se eles fossem homens bons e decentes — ah, homens como Ira e Galahad —, e dadas as mesmas circunstâncias, quatro homens com apenas uma mulher e a situação com probabilidade de continuar como estava, acho que Dora teria adotado fácil e naturalmente a poliandria... e teria conseguido convencer-me de que essa era a única solução feliz, da maneira como ela própria a considerava.

Nem teria ela, acrescentando mais maridos, rompido seus votos matrimoniais. Dora não havia prometido ser fiel apenas a mim; não deixo uma mulher prometer isso, porque algumas vezes chega um dia em que ela não pode cumprir.

Dora podia ter feito felizes quatro homens decentes e honrados. Dora não tinha nenhuma das atitudes doentias que impedem uma pessoa de amar cada vez mais; Helen havia cuidado disso. E, como acentuavam os gregos, um homem só não pode extinguir o fogo do Vesúvio. Ou foram os romanos? Não importa, é verdade. Dora provavelmente teria sido até mais feliz num casamento poliândrico. E se ela fosse mais feliz, segue-se, como a noite ao dia, que eu também teria sido — embora eu não possa imaginar ser mais feliz do que era. No entanto, mais músculos fortes, masculinos, teriam tornado a vida mais fácil para mim; eu tinha sempre coisas demais para fazer. Mais companhia podia ter sido agradável também, sou forçado a supor — a companhia de homens que Dora considerasse aceitáveis. Quanto à própria Dora, ela possuía bastante amor dentro de si para prodigalizá-lo a mim e a uma dúzia de filhos; mais três maridos não teriam esgotado seus recursos, ela era uma fonte que nunca secava.

Mas a questão é hipotética. Aqueles três Montgomerys eram tão diferentes de Galahad e Ira que era difícil pensar neles como sendo da mesma raça. Eram canalhas que mereciam a morte, e foi isso que conseguiram. Fiquei sabendo pouca coisa sobre eles, pela leitura do conteúdo da sua carroça. Minerva, eles não eram pioneiros; não havia sequer o mínimo naquela carroça para começar uma fazenda. Nem um arado, nem um saco de sementes... E seus oito mulos eram todos castrados. Não sei o que eles achavam que estavam fazendo. Exploravam apenas para se divertir, talvez? Depois voltariam para a "civilização" quando se cansassem disso? Ou esperavam descobrir se algum dos grupos de pioneiros que haviam partido por cima do passo tinham conseguido atravessá-lo — e pudessem ser aterrorizados até a submissão? Não sei, nunca saberei. Nunca entendi a mentalidade dos gângsteres — simplesmente sei o que fazer com gângsteres.

Assim sendo, eles cometeram o engano fatal de enfrentar a doce e meiga Dora. Ela não só disparou no momento exato, como arrancou à bala a arma da mão do inimigo, em vez de acertar no alvo muito mais fácil, a barriga ou o peito dele. Importante? Extremamente importante, para mim. A arma dele estava apontada para mim. Se Dora acertasse nele, em vez de na sua arma, mesmo que o tiro dela o matasse, o último reflexo do bandido provavelmente — certamente, acho eu — teria feito seus dedos se crisparem e eu teria sido atingido. Você pode imaginar isso de meia dúzia de maneiras, todas más.

Acidente feliz? Absolutamente. Dora estava apontando para ele da escuridão da cozinha. Quando ele sacou aquela arma, ela instantaneamente mudou seu ponto de pontaria e alvejou a arma. Foi sua primeira — e última — luta a tiros. Mas era uma verdadeira atiradora, aquela moça! As horas que havíamos passado aprimorando sua habilidade renderam. Mais raro do que a habilidade, porém, foi o julgamento frio com o qual ela decidiu tentar o alvo muito mais difícil. Não pude treiná-la nisso; tinha que ter nascido com ela. O que ocorreu... se você se lembrar, o pai dela tomou o mesmo tipo de decisão em uma fração de segundo como último ato antes de morrer.

 

Passaram-se mais sete anos antes que outra carroça aparecesse no Vale Feliz — três carroças viajando juntas, três famílias com filhos, verdadeiros pioneiros. Ficamos satisfeitos em vê-los e fiquei especialmente feliz em ver os filhos deles. Porque eu estava fazendo mágica com ovos. Ovos verdadeiros. Óvulos humanos.

Meu tempo estava acabando; nossos filhos mais velhos estavam crescendo.

Minerva, você sabe tudo o que a raça humana aprendeu sobre genética. Você sabe que as Famílias Howard foram criadas endogamicamente a partir de um conjunto razoavelmente pequeno de genes e que a endogamia tendeu a livrá-los dos maus genes, mas você conhece também o alto preço pago em defeituosos. Ainda está sendo pago, devo acrescentar; em toda parte onde há Howards há também santuários para os defeituosos. Nem existe qualquer fim para isso; novas mutações desfavoráveis, despercebidas até que sejam reforçadas, é o preço que nós, animais, temos que pagar pela evolução. Talvez haja uma maneira mais barata algum dia... Não havia nenhuma em Novas Origens mil c duzentos anos atrás

O jovem Zack era um rapaz robusto, cuja voz era decididamente de barítono. Seu irmão, Andy, não tinha mais voz de soprano no coro da nossa família, embora sua voz ainda fosse rachada. O bebê Helen não era mais nenhum bebê — não menstruava ainda, mas pelo que eu via, isso poderia acontecer a qualquer momento.

Quero dizer que Dora e eu estávamos tendo que pensar no assunto, forçados a considerar alternativas difíceis. Devíamos empilhar sete crianças nas carroças e dirigir-nos de volta através da Muralha? Se conseguíssemos atravessar, devíamos deixar os quatro mais velhos com os Magees ou alguém, e depois voltar para casa com os três mais moços? Sozinhos? Ou cantar os louvores do Vale Feliz, sua beleza e sua riqueza, tentar levar um grupo de pioneiros de volta pela serra e, assim, evitar tais crises no futuro?

Eu havia esperado, com otimismo demais, que outros nos seguissem quase imediatamente — um, dois ou três anos —, já que havia deixado uma trilha transitável para carroças atrás de mim. Mas não sou dos que choram sobre o leite derramado ou após o cavalo ser roubado. O que podia ter acontecido não interessava; o problema era o que fazer com os nossos fogosos filhos, agora que estavam crescendo.

Não adiantava falar com eles sobre o "pecado", mesmo que eu fosse capaz de tal hipocrisia — o que não sou, especialmente com crianças. Nem poderia ter passado essa idéia. Dora teria ficado chocada e magoada, e entre as suas habilidades não estava a de mentir convincentemente. Nem eu queria encher nossos filhos com tais bobagens; a mãe angelical deles era a libertina mais feliz e sempre disposta do Vale Feliz — até mais do que eu e as cabras — e nunca pretendeu ser o contrário.

Devíamos relaxar e deixar a natureza seguir o seu antigo curso? Aceitar a idéia de que nossas filhas iriam dentro em pouco (cedo demais?) ter relações com nossos filhos e estarmos preparados para aceitar o preço? Esperar pelo menos um neto defeituoso em cada dez? Eu não tinha dados com os quais estimar o custo com qualquer exatidão maior do que essa, porque Dora não sabia nada sobre os seus antepassados e, embora eu soubesse um pouco sobre os meus, não sabia o suficiente. Tudo quanto eu tinha era aquela velha regra empírica extremamente rudimentar.

Assim, ganhamos tempo.

Recaímos em outra velha e segura regra empírica: nunca faça hoje o que pode adiar até amanhã se amanhã puder melhorar as possibilidades.

Mudamo-nos, então, para a nossa nova casa enquanto ela ainda não estava terminada, mas com o bastante para termos um dormitório de moças, um dormitório de rapazes e um quarto para mim e Dora com um berçário adjacente.

Mas não nos iludimos quanto a termos resolvido o problema. Em vez disso discutimos o problema abertamente, certificamo-nos de que os três mais velhos sabiam do que se tratava, quais eram os riscos e por que seria vantajoso esperar. Tampouco as crianças mais moças foram excluídas deste ensinamento; apenas não se exigiu delas que ouvissem, quando ficavam chateadas com detalhes técnicos por serem moças demais para que se interessassem por eles.

Dora insistiu num detalhe, algo que Helen Mayberry havia feito para ela cerca de vinte anos antes. Anunciou que, quando a pequena Helen começasse a menstruar, declararíamos feriado e daríamos uma festa, com Helen como convidada de honra. Daí por diante, a cada ano, esse dia seria conhecido como o "Dia de Helen", e seria assim com Iseult e Undine e pela fila abaixo até haver um feriado anual para cada moça.

Helen mal pôde esperar para passar da infância para a juventude — e quando passou, alguns meses mais tarde, ficou insuportavelmente presunçosa. Acordou a todos aos gritos, anunciando o fato.

— Mamãe! Papai! Olhem, aconteceu! Zack! Andy! Acordem! Venham ver!

Se doeu, ela não o mencionou. Provavelmente não doeu; Dora não era sujeita a cólicas menstruais, e nenhum de nós disse às meninas para esperá-las. Sendo eu mesmo convexo em vez de côncavo, evito comentar a teoria de que essas dores sejam um reflexo condicionado; não acho que tenha direito a uma opinião — você pode perguntar a Ishtar.

O fato resultou também em eu ser visitado por uma delegação de dois, Zack e Andy, com Zack como porta-voz:

— Olhe, papai, achamos esplêndido, próprio e adequado que o dia da nossa irmã Helen seja marcado com sons alegres e animação, proclamando assim a legítima herança da nossa irmã. Mas sinceramente, papai, parece-me...

— Acabe com isso e diga logo.

— Bem, e quanto aos meninos?!

Com os diabos, eu reinstituí a cavalaria!

Não como uma inspiração súbita. Zack fizera um pedido difícil; tive que dar voltas antes de encontrar uma resposta exeqüível. Claro, há ritos de passagem para os homens assim como para as mulheres; é assim em todas as culturas, mesmo naquelas que não têm consciência disso. Quando eu era menino, era o primeiro terno com calças compridas. E há outros, como a circuncisão na puberdade, provas de dor, matar alguma fera temível — inúmeros.

Nenhum destes servia para os nossos meninos. Alguns eu desaprovava, outros eram impossíveis — a circuncisão, por exemplo. Eu tenho esta mutação sem importância, nenhum prepúcio. Mas isso é um dominante ligado ao Y, e transmito-o a todos os meus filhos homens. Os meninos sabiam disto, mas relutei em mencionar o fato outra vez, discuti-o em relação às maneiras intermináveis pelas quais a transição para o início da virilidade era comemorada algumas vezes — enquanto tentava pensar numa resposta para a pergunta principal-

— Olhem, meninos — eu disse finalmente —, vocês dois sabem tudo sobre reprodução e genética que lhes pude ensinar. Vocês dois sabem o que significa o "Dia de Helen", não sabem? Andy?

Andy não respondeu; seu irmão mais velho disse:

— Claro que ele sabe, papai. Significa que Helen pode ter bebês agora, da mesma forma que mamãe. Você sabe disso, Andy. — Andy concordou com a cabeça, os olhos redondos. — Todos nós sabemos, papai, até os garotos. Bem, não tenho certeza quanto a Ivar; ele é tão pequeno! Mas Iseult e Undine sabem disso. Helen tem dito a elas que vai emparelhar com mamãe... ter o seu primeiro bebê já.

Controlei os calafrios que senti. Deixe-me resumir isto: eu não disse a eles que essa era uma má idéia; ao contrário, levei um longo tempo extraindo respostas deles, coisas que os dois sabiam, mas nas quais ainda não tinham pensado tão pessoalmente — como Helen podia ter um bebê a menos que algum deles o pusesse dentro dela; como Helen ainda era pequena demais para formar um bebê, apesar de o Dia de Helen marcar o fato de ela agora ser vulnerável; como e por que, mesmo quando Helen fosse grande o bastante dentro de alguns anos, um bebê de Helen com um de seus irmãos podia ser uma tragédia, em vez dos lindos bebês que mamãe sempre fazia. Eles falaram, os olhos de Andy crescendo o tempo todo — eu simplesmente forneci as perguntas principais.

Fui ajudado nisto pelo fato de uma pequena mula, Dançarina, ter ficado no cio pela primeira vez quando achei que não estava bastante crescida para ter um potro. Assim, mandei Zack pô-la separada num cercado — e ela abriu a coices um buraco na cerca, e conseguiu o que queria; Vaqueiro cobriu-a. Realmente, o potro era grande demais para ela e tive que intervir, interromper a coisa e tirá-lo aos pedaços — um serviço rotineiro de cirurgia veterinária de emergência, mas um espetáculo impressionante e sangrento para dois meninos, que ajudavam o pai controlando a mula enquanto ele operava.

Não, na verdade eles não queriam que nada parecido com isso acontecesse a Helen. Não, senhor!

Minerva, eu os tapeei um pouco. Eu não disse a eles que a maneira pela qual Helen se estava espalhando na base e nas medidas já havia tornado claro para o médico da família

— eu — que ela era uma fábrica natural de bebês melhor do que a mãe, e estaria suficientemente grande para o seu primeiro, muito mais moça do que Dora quando teve Zaccur; eu não disse a eles que as probabilidades de um bebê saudável num acasalamento de irmão com irmã eram maiores do que as probabilidades de um bebê defeituoso. Certamente não disse!

Em vez disso, tornei-me lírico sobre como as moças eram criaturas maravilhosas, que milagre era elas poderem fazer bebês, como eram preciosas e como era um orgulhoso privilégio do homem amá-las, acariciá-las e protegê-las -protegê-las até de suas próprias loucuras, porque Helen podia comportar-se exatamente como a Dançarina, mostrando-se impaciente e tola. Portanto, não a deixem tentá-los, meninos, repilam-na, exatamente como vêm fazendo. Eles o prometeram com lágrimas nos olhos.

Não lhes pedi que prometessem isso ou qualquer coisa

— mas o fato deu-me a idéia: fazer a "princesa" Helen armá-los cavaleiros.

As crianças se apossaram dessa idéia e correram com ela; Histórias da corte do rei Artur era um dos livros que Dora havia levado consigo porque Helen Mayberry o havia dado a ela. Tivemos, então, Sir Zaccur, o Forte, c Sir Andrew, o Valente, e duas damas de honra, esperando com bastante ansiedade; Iseult e Undine sabiam que também seriam "princesas" assim que começassem a menstruar. Ivar era escudeiro dos dois cavaleiros e seria armado cavaleiro ele próprio quando sua voz mudasse. Só Elf ainda era pequeno demais para entrar na brincadeira.

Isso funcionou como um expediente temporário. Suponho que a "princesa" Helen tenha sido protegida mais do que desejava. No entanto, se ela não podia atrair seus fiéis cavaleiros para dentro dos milharais, eles puxavam o banco para ela nas refeições, faziam-lhe reverências muitas vezes e geralmente se dirigiam a ela como "gentil princesa"... consideravelmente mais vezes do que jamais o fiz para minhas irmãs.

Antes do primeiro aniversário do Dia de Helen aquelas três novas famílias caíram das montanhas e a crise terminou. Foi Sammy Roberts, e não um dos irmãos dela, que abriu pela primeira vez as coxas da "princesa" Helen. Certamente, como ela disse à mãe imediatamente (ainda influência de Helen Mayberry), Dora beijou-a e disse que ela era uma boa menina, que fosse procurar papai e pedisse que ele a examinasse — eu o examinei e ela não se ferira, nada que merecesse menção. Mas isso deu a Dora algum controle sobre a questão, da mesma forma que Helen Mayberry havia orientado Dora mais ou menos na mesma idade — como Dora me havia dito muito antes disso. Em conseqüência, nossa filha mais velha não ficou grávida até ter quase a mesma idade e ficar um pouco mais cheia do que Dora quando nos casamos. Ole Hanson casou-se com Helen; Sven Hanson, eu, Dora e Ingrid ajudamos os jovens a começarem sua fazenda, Helen achava que o bebê era de Ole, e pelo que sei ela tinha razão. Nenhum problema. Nenhum problema também quando Zack se casou com Hilda Hanson. No Vale Feliz a gravidez era equivalente ao noivado; não posso lembrar-me de alguma moça que se tenha casado sem essa prova de aptidão. Certamente nenhuma tias nossas filhas.

Ter vizinhos era ótimo.

(Omitido)

...não só trouxe sua rabeca ao cruzar a Muralha, como sabia tocá-la. Eu sabia tocar um pouco e, embora não tivesse tocado um violino por cerca de cinqüenta anos, descobri que a aptidão me voltava. Dessa forma, revezávamo-nos, porque Papai também gostava de dançar. Assim:

— Formem quadrilhas!

"Cumprimentem a dama! Agora, a dama do outro lado! A moça do canto! A moça da direita! Cumprimentem a sua dama e façam um trono para ela. Todos de pé, e não a deixem cair; façam girar todas as damas."

"Moisés viveu muito tempo atrás.

O rei disse 'sim'; Moisés disse 'não'! (Dêem-se as mãos, virem para a direita.)

Faraó era o primeiro nome desse rei;

Fê-los viver uma vida de vergonha! (Allemande[2] à esquerda! Com um dosey-doh[3]! Depois vão para casa e girem!)

... disse 'sim' e as ondas se abriram. (Primeiro casal, atravesse o mar Vermelho! Agora a moça do canto e o homem da direita! O rapaz do canto, a moça da esquerda, circulem e continuem vindo da direita e da esquerda!)

 

Um grupo feliz na margem oposta,

Portanto, entrem todos em forma e girem mais uma vez!

O rei chora sozinho na margem egípcia;

O Povo Eleito não é mais escravo!

 

Portanto, beije sua dama e cochiche no seu ouvido; Depois, faça-a sentar-se e traga-lhe uma cerveja. (Intervalo!)"

 

Ah, como nos divertíamos! Dora aprendeu a dançar logo que se tornou avó — e ainda estava dançando quando era trisavô. Nos primeiros anos as festas eram mais freqüentes na nossa casa, porque tínhamos a casa maior e um conjunto suficientemente grande para uma grande festa. Começávamos a dançar no fim da tarde e dançávamos até não poder mais ver o próprio par; depois havia um bufê, jantar à luz de velas e ao luar; depois cantávamos um pouco e dormíamos por toda parte — em todos os quartos, no telhado, em camas improvisadas, alguns nas carroças — e, se alguém alguma vez dormiu sozinho, nunca ouvi falar nisso. E não havia problema algum se as coisas ficassem um tanto licenciosas.

Na manhã seguinte provavelmente haveria uma representação dupla pelos Atores da Taverna da Sereia, uma comédia e uma tragédia, depois seria tempo para aqueles que moravam mais longe reunirem seus filhos, atrelarem suas mulas e rodarem, enquanto aqueles que moravam mais perto ajudavam na limpeza antes de fazerem a mesma coisa consigo.

Ah, lembro-me de um pequeno problema: um homem deixou o olho de sua mulher preto por motivo fútil, ao que os seis homens mais próximos dele jogaram-no para fora do portão e passaram a tranca. Isso o deixou com tanta raiva que ele atrelou e partiu... e dirigiu-se de volta pela Grande Garganta acima, em direção ao Passo Desesperado — fato que não foi percebido por algum tempo, porque sua mulher e seu filho se mudaram para a casa da irmã, marido e filhos, e lá ficaram, em poligamia — embora não fosse a única. Não havia nenhuma lei sobre casamento ou sexo — nenhuma lei sobre coisa alguma durante muitos anos —, exceto que incorrer na desaprovação dos vizinhos, tal como deixar a mulher com um olho preto, significava arriscar o ostracismo, mais ou menos a pior coisa que podia acontecer a um pioneiro abaixo de ser linchado.

Mas os imigrantes têm uma tendência a ser sensuais, e encaram isso tranqüilamente. A inteligência superior sempre inclui um forte impulso sexual, e os pioneiros do Vale Feliz haviam passado por uma relação dupla, primeiro na decisão de deixarem a Terra, e depois ao decidirem enfrentar o Passo Desesperado. Tínhamos, portanto, verdadeiros sobreviventes no Vale Feliz, espertos, cooperativos, engenhosos, tolerantes .— dispostos a lutar quando necessário, mas com pouca probabilidade de lutar por motivos fúteis. O sexo não é fútil, mas lutar por causa dele geralmente é bastante tolo. Só é característico de um homem que não está certo da sua virilidade, o que não descrevia nenhum destes homens; eles estavam seguros de si mesmos, não havia necessidade de provar isso. Nada de covardes, nada de ladrões, nada de fracos, nada de arrogantes — a exceção rara não durou o suficiente para contar. Ou morreu como aqueles três primeiros, ou fugiu de nós como aquele idiota que deu um soco na mulher.

Estes raros expurgos eram sempre rápidos e informais. Durante muitos anos a única lei que tivemos foi a Regra de Ouro, não escrita mas obedecida rigorosamente.

Numa comunidade dessa os tabus inúteis sobre o sexo não podiam durar; para começar, eles não tendiam a ser trazidos para dentro do nosso vale. Ah, a endogamia confinada não era bem vista; estes pioneiros não eram ignorantes a respeito de genética, nem de controle da concepção. Mas a atitude era pragmática; não me lembro de ter ouvido alguma vez alguém falar contra o incesto, que era apenas uma alegre travessura sem conseqüências. Mas lembro-me de uma moça que se casou com seu meio-irmão abertamente e teve vários filhos com ele — presumo que fossem dele. Pode ter havido cochichos, mas isso não os levou ao ostracismo. Qualquer padrão de casamento era tratado como assunto particular dos parceiros envolvidos, não como algo a ser aprovado pela comunidade. Lembro-me de dois casais jovens que resolveram unir suas fazendas, depois construíram uma casa bem grande, aumentando a maior das duas casas e transformando a outra num celeiro. Ninguém perguntou quem dormia com quem; presumiu-se que era um casamento a quatro, e sem dúvida Ja era antes de eles aumentarem aquela casa e unirem seus recursos. Não era da conta de ninguém, apenas da deles.

Entre essas pessoas o plural de "esposa" era "tempero" [4].

Uma comunidade pioneira, pobre em tudo o mais, sempre cria seus próprios divertimentos — com o sexo encabeçando a lista. Não tínhamos nenhum artista profissional, nenhum teatro (a menos que se conte o teatro amador criado pelos nossos filhos), nenhum cabaré, nenhuma diversão que dependesse de eletrônica sofisticada, nenhum periódico, poucos livros. Certamente essas reuniões do Clube de Dança do Vale Feliz continuavam como orgias moderadas, depois de ficar escuro demais para se dançar e as crianças mais moças serem postas na cama para dormir — como podia ser de outra maneira? Mas era tudo bastante moderado; um casal podia sempre ir dormir na própria carroça e ignorar o tranqüilo luau em outra parte. Nenhuma compulsão em qualquer sentido — bolas, eles não tinham que dançar.

Mas ninguém deixava de ir àquelas festas semanais, se pudesse. Eram particularmente agradáveis para os mais moços; davam-lhes uma oportunidade de se conhecerem e namorar. Talvez a maioria dos primeiros filhos tenha sido concebida em nossas festas; havia oportunidade para isso. Por outro lado, uma moça não tinha que entregar-se se isso não lhe conviesse. Mas era comum uma moça se casar aos quinze, dezesseis anos, e os noivos não eram muito mais velhos — primeiro casamento tardio é um costume de cidade grande, nunca encontrado numa cultura pioneira.

Dora e eu? Mas, Minerva, eu disse a você antes.

(Omitido)

...começaram o programa de fretes para fora do vale no ano em que Gibbie nasceu e Zack tinha, ah, dezoito anos, eu acho — tenho que ficar convertendo os anos de Novas Origens em anos padrões. De qualquer maneira, ele era mais alto do que eu, não muito menos de dois metros, e concentrava talvez oitenta quilos; e Andy era quase tão grande e forte como ele. Faziam pressão sobre mim para não esperar porque eu sabia que Zack podia casar-se qualquer dia — e eu não podia enviar uma carroça por cima do passo só com Andy. Ivar tinha apenas nove, anos — era de grande ajuda na fazenda, mas não estava crescido suficientemente para este serviço.

Mas não pude encontrar cocheiros além dos da minha própria família. Havia apenas cerca de doze famílias no vale; elas não estavam lá há muito tempo, e não sentiam ainda a necessidade de comprar coisas que eu sentia.

Eu queria três carroças novas, não só porque as minhas três estavam ficando velhas como também porque Zack ia precisar de uma quando se casasse. Bem como Andy. E eu podia ter que dar uma a Helen como dote, se e quando. O mesmo se aplicava a arados e vários tipos de equipamentos metálicos para fazendas. Prósperos como éramos, o Vale Feliz não podia ser inteiramente auto-suficiente sem uma indústria de metais — o que vale dizer: não por muitos anos.

Eu tinha uma outra longa lista de coisas para comprar...

(Omitido)

...num programa trimestral. Mas os alimentos que cinqüenta e tantos fazendeiros podiam mandar para fora não podiam comprar muita coisa do outro lado, competindo com fazendeiros que não tinham a despesa de transportar por tropa de mulas por cima da Muralha e através da pradaria; eu ainda subvencionava nossa ligação com a civilização fazendo saques contra John Magee, a serem debitados à minha participação na Andy J. e, assim, trazia coisas para o vale que não poderíamos ter de outra maneira. Algumas eu conservava — Dora teve água corrente dentro de casa depois da primeira viagem que os nossos rapazes fizeram, bem a tempo de cumprir minha promessa a ela, porque Zack engravidou Hilda logo depois que voltou; o primeiro bebê deles, Ingrid Dora, e o término do banheiro de Dora ocorreram quase ao mesmo tempo. Outras coisas eu vendi aos outros fazendeiros em troca de trabalho. Mas a linhagem de mulas de Buck, forte, inteligente e todas elas capazes de aprender a falar, corrigiu finalmente o nosso saldo comercial, uma vez que aqueles dois poços foram perfurados na pradaria e pude levar uma tropa de mulas até o centro de Separação sem perder metade dela. Isto significou remédios, livros e muitas outras coisas para o nosso vale.

(Omitido)

Lazarus Long não pretendeu surpreender a mulher. Mas nenhum deles jamais bateu na porta do próprio quarto. Encontrando-a fechada, ele a abriu devagarinho na possibilidade de Dora estar cochilando.

Em vez disso encontrou-a parada na janela, com o espelho voltado para a luz, arrancando cuidadosamente um longo fio de cabelo branco.

Ele olhou para ela com um choque de consternação, depois se endireitou e disse:

— Adorável...

— Oh! — Ela virou-se. — Você me assustou. Não o ouvi entrar, querido.

— Desculpe. Quer me dar isso?

— Isso o quê, Woodrow?

Fui até ela, inclinei-me e apanhei o cabelo prateado.

— Isto. Adorada, cada cabelo da sua cabeça é precioso para mim. Posso ficar com ele?

Ela não respondeu. Ele viu que os olhos dela estavam cheios de água. Começaram a transbordar.

— Dora, Dora — repetiu ele apressado —, por que está chorando, minha amada?

— Desculpe, Lazarus. Não pretendi que você me visse fazendo isto.

— Mas por que faz isso, Dorável? Tenho muito mais cabelos brancos do que você.

Ela respondeu o que ele não havia dito, em vez do que ele disse:

— Querido, eu sei quando alguém está... devo dizer "trapaceando", já que você nunca mentiu para mim.

— Por quê, Dorável? O meu cabelo é grisalho.

— Sim, senhor. Você não pretendeu surpreender-me, eu sei... e eu não quis bisbilhotar quando limpei seu escritório. Encontrei seu estojo de cosméticos, Lazarus, há mais de um ano. É uma espécie de mentira, não é?... quando você faz alguma coisa para o seu cabelo ruivo anelado parecer grisalho? Algo parecido com o que eu faço, suponho, quando arranco os cabelos grisalhos.

— Você está arrancando os cabelos grisalhos desde que soube que eu me fazia parecer mais velho? Ah, querida!

— Não, não, Lazarus! Estou arrancando-os há séculos. Muito mais tempo do que isso. Céus, querido, já sou bisavó... e pareço ser. Mas o que você faz, cuidadoso como é a respeito e bondoso como é por tentar... E eu aprecio isso! Mas não faz você parecer da minha idade; simplesmente o faz parecer prematuramente grisalho.

— Provavelmente. Embora eu tenha direito a cabelos grisalhos, Dorável... meu cabelo era branco como neve não muitos anos antes de você nascer. Foi preciso algo muito mais drástico do que cosméticos, ou arrancar os cabelos, para me fazer parecer moço outra vez. Mas nunca pareceu haver motivo algum para mencionar isso.

Ele aproximou-se dela, passou o braço pela sua cintura, apanhou o espelho, atirou-o sobre a cama e virou-a de frente para a janela.

— Dora, suas lágrimas são uma façanha, não algo para esconder. Olhe para lá. Casas de fazenda até as colinas e muitas mais que não podemos ver daqui. Quantas pessoas do Vale Feliz descendem do seu corpo esguio?

— Nunca contei.

— Eu sim; mais da metade delas... e estou orgulhoso de você. Seus seios estão mastigados pelos bebês, seu ventre apresenta marcas de distensão... suas condecorações de honra, Adorável. De valor. Elas a tornam mais bonita, portanto, fique de pé, empertigada e ereta, minha adorada, e esqueça os cabelos de prata. Seja o que você é, e em grande estilo!

— Sim, Lazarus. Não me importo com eles... fiz isso para agradá-lo.

— Dorável, você não pode deixar de me agradar, sempre agradou. Quer que deixe o meu cabelo voltar ao natural? Para mim não é perigoso ser um Howard... aqui no Vale Feliz com meus próprios parentes todos em torno.

— Não me importo, querido. Apenas não o faça por minha causa. Se facilitar as coisas para você, sendo Primeiro Colono e tudo isso, parecer um pouco mais velho, então faça-o.

— Isso facilita quando lido com outras pessoas. E não há nenhum problema; conheço a rotina tão bem que posso fazer isso dormindo. Mas, Dora... escute-me, querida. Zack Briggs virá a Top Dollar em alguma ocasião nos próximos dez anos; você viu a carta de John. Não é muito tarde para ir para Secundus. Lá eles poderão fazê-la parecer uma garota outra vez, se é isso que você quer... e acrescentar muitos anos-extras também. Cinqüenta. Talvez cem.

Ela custou a responder.

— Lazarus, você está insistindo para eu fazer isto?

— Estou oferecendo. Mas o corpo é seu, queridíssima. A vida é sua.

Ela ficou olhando para fora da janela.

— "Mais da metade deles", você disse.

— Com a porcentagem aumentando. Nossos filhos procriam como gatos. Bem como os filhos deles.

— Lazarus, na verdade resolvemos isto muitos, muitos anos atrás. Mas agora é ainda mais verdadeiro. Não desejo deixar o nosso vale, mesmo para ir conhecer lá fora. Não quero deixar os nossos filhos. Nem os filhos dos nossos filhos, nem os filhos deles. E certamente não iria querer voltar parecendo uma garota... para observar o nascimento dos nossos tetranetos. Você tem razão; mereci meus cabelos brancos. E agora vou usá-los!

— Essa é a garota com quem me casei! Essa é a minha Dorável Dora! — Ele ergueu mais a mão, cobriu um seio com ela e beliscou o bico. Ela deu um pulo, depois relaxou. — Eu sabia a sua resposta, mas tinha que perguntar. Minha querida, a idade não pode debilitá-la, nem o hábito extinguir sua variedade infinita. Quando as outras mulheres saciam, você dá mais fome ainda!

Ela sorriu.

— Não sou Cleópatra, Woodrow.

— Moça, essa é a sua opinião. Mas o que é a sua opinião comparada com a minha? Lil Pernalonga, já vi milhares e milhares de mulheres além de você... e afirmo que você faz Cleópatra parecer feia.

— Língua lisonjeira! — disse ela baixinho. — Tenho certeza de que você nunca teve uma mulher que o recusasse.

— É verdade, apenas porque nunca me arrisquei a ser recusado; espero que me convidem. Sempre.

— Você está esperando para ser convidado? Está bem, estou convidando. Depois é melhor eu começar a fazer o jantar.

— Não tenha tanta pressa, Lil. Primeiro vou jogar você naquela cama. Depois vou levantar sua saia. Depois vou ver se encontro algum cabelo branco naquele lugar. Se encontrar, arranco-o para você.

— Animal. Patife. Bode velho lascivo. — Ela sorriu encantada. — Pensei que não nos íamos incomodar mais em arrancar cabelos brancos.

— Estávamos falando do cabelo da sua cabeça, Bisavó. Mas este outro lugar está tão jovem como sempre... e melhor do que nunca. Assim, vamos arrancar cuidadosamente qualquer cabelo branco da sua linda... dos seus lindos cachos castanhos.

— Doçura de bode velho. Se você encontrar algum, será bem-vindo. Mas tenho arrancado desse lugar com mais cuidado ainda do que do meu couro cabeludo. Deixe-me tirar este vestido.

— Puxa! Espere. Essa é a Lil Pernalonga, a cadela mais depravada do Vale Feliz, sempre com pressa. Tire o vestido se quiser, mas vou procurar Lurton e dizer a ele para selar Melhor Menino e ir pedir o jantar e uma cama à sua irmã Marje e Lyle. Depois vou voltar para arrancar esses vergonhosos cachos grisalhos. O jantar vai se atrasar, receio.

— Não me importo se você não se importar, adorado.

— Essa é a minha Lil. Querida, não há um só homem no vale que não a agarrasse e tentasse encontrar outro vale se você lhe desse o mais ligeiro encorajamento... isso inclui os seus próprios filhos e os seus genros... todos os homens daqui desde os catorze anos.

— Ah, não é verdade! Lisonja outra vez.

— Quer apostar? Pensando melhor, não perderemos tempo arrancando cabelos brancos de qualquer lugar. Depois que eu disser ao nosso caçula para sumir durante a noite, quero encontrar você usando apenas rubis e um sorriso. Porque você não vai fazer jantar; vamos arranjar um piquenique frio em vez disso e levá-lo junto com um cobertor para o telhado... e apreciar o pôr-do-sol.

— Sim, senhor. Ah, querido, eu o amo! ef ou ff?

— Deixo essa escolha para Lil Pernalonga. (Cerca de trinta e nove mil palavras omitidas) Lazarus abriu a porta do quarto com todo o cuidado,

olhou para dentro, olhou interrogativamente para sua filha Elf — uma mulher de meia-idade surpreendentemente linda, com cachos ruivos chamejantes, salpicados ligeiramente de branco.

— Entre, papai — disse ela. — Mamãe está acordada. Ela levantou-se para sair, levando consigo a bandeja do

jantar.

Ele olhou para a bandeja, subtraiu mentalmente o que ainda estava lá do que havia visto deixar a cozinha — chegou a um total próximo demais de zero para agradá-lo. Mas não disse nada, foi simplesmente até a beira da cama e sorriu para sua mulher. Dora respondeu ao sorriso. Ele inclinou-se e beijou-a, depois se sentou onde Elf estivera.

— Como vai a minha querida?

— Simplesmente ótima, Woodrow, Ginny... não, Elf. Elf me trouxe um jantar muito gostoso. Gostei muito dele. Mas pedi a ela para pôr meus rubis em mim antes de me dar de comer... você notou?

— Claro que notei, Linda. Quando foi que Lil Pernalonga jantou alguma vez sem os seus rubis?

Ela não respondeu, seus olhos se fecharam. Lazarus ficou em silêncio, observou sua respiração, contou suas batidas cardíacas tomando o pulso no seu pescoço.

— Está ouvindo-os, Lazarus? — Seus olhos estavam abertos outra vez.

— Ouvindo o que, Dorável?

— Os gansos selvagens. Eles devem estar bem em cima da casa.

— Ah, sim, certamente.

— Eles chegaram cedo este ano. — Isso pareceu cansá-la; ela fechou os olhos outra vez. Ele esperou.

— Querido? Quer cantar a "Canção de Buck"?

— Certamente, Adorável Dora. — Lazarus limpou a garganta e começou:

 

"Há uma escola

Ao lado da casa de penhores

Onde Dora assiste a suas aulas.

Ao lado da escola

Há um curral de mulas

Onde mora Buck, o amigo de Dora".

 

Ela fechou os olhos outra vez; por isso, ele cantou os outros versos muito baixinho. Mas, quando terminou, ela sorriu para ele.

— Obrigada, querido; isso foi encantador. Isso sempre foi encantador. Mas estou um pouco cansada... se eu dormir, você ainda estará aqui?

— Estarei sempre aqui, querida. Agora durma.

Ela sorriu outra vez e seus olhos se fecharam. Pouco depois sua respiração foi ficando mais lenta enquanto dormia.

Sua respiração parou.

Lazarus esperou um longo tempo antes de chamar Ginny e Elf.

 

Segundo intervalo

Mais dos cadernos de notas de Lazarus Long

Diga sempre que ela é linda, especialmente se não for.

 

Se você fizer parte de uma sociedade que vota, então vote. Pode não haver nenhum candidato e nenhuma medida a favor dos quais você queira votar... mas é certo haver ambos contra os quais queira votar. Em caso de dúvida, vote contra. Por esta regra poucas vezes você errará.

 

Se isto for muito irracional para o seu gosto, consulte algum tolo bem intencionado (sempre há um por perto) e peça conselho a ele. Depois vote no sentido contrário. Isto lhe permitirá ser um bom cidadão (se for esse o seu desejo) sem dispender a enorme quantidade de tempo que o exercício da cidadania verdadeiramente inteligente exige.

 

Ingrediente supremo para um casamento feliz: pague à vista ou passe sem ele. Os juros debitados não absorvem apenas o orçamento familiar; a consciência do débito destrói também a felicidade doméstica.

 

Aqueles que se recusam a apoiar e defender o Estado não têm direito à proteção por esse Estado. Matar um anarquista ou um pacifista não deve ser definido como "assassinato" num sentido legal. O crime contra o Estado, se houver, deve ser "Usar armas mortais dentro dos limites da cidade", "Criar um risco de tráfego", "Pôr em perigo os espectadores", ou outra contravenção qualquer.

Contudo, o Estado pode razoavelmente impor uma proteção a esses exóticos animais não sociais sempre que eles correrem perigo de extinção. Um macho pacifista autêntico raramente é visto fora da Terra, e é duvidoso que algum tenha sobrevivido aos problemas lá... o que é lamentável, porque eles têm as maiores bocas e os menores cérebros de qualquer dos primatas.

A variedade de anarquista com boca pequena espalhou-se pela galáxia na própria leva inicial da Diáspora; não há necessidade de protegê-los. Mas eles muitas vezes revidam com um tiro.

 

Outro ingrediente para um casamento feliz: orce o supérfluo primeiro!

 

Ainda outro: Providencie para que ela tenha sua própria escrivaninha — depois mantenha as mãos afastadas desta!

 

E outro: Numa discussão familiar, se for verificado que você tem razão... peça desculpas imediatamente!

 

"Deus dividiu-se numa miríade de partes para que pudesse ter amigos." Isto pode não ser verdade, mas soa bem — e não é mais tolo do que qualquer outra teologia.

 

Para se conservar jovem é preciso cultivar incessantemente a capacidade de desaprender as velhas imposturas.

 

A história registra algum caso em que a maioria estivesse certa?

 

Quando a raposa morder... sorria!

 

"Crítico" é o homem que não cria nada e por isso sente-se qualificado para julgar o trabalho dos homens criativos. Há uma lógica nisto; ele é imparcial — odeia igualmente todas as pessoas criativas.

 

O dinheiro é verdadeiro. Se um homem fala da sua honra, faça-o pagar à vista.

 

Nunca amedronte um homem pequeno. Ele o matará.

 

Apenas um patife sádico — ou um tolo — conta a verdade nua durante acontecimentos sociais.

 

Este pequeno lagarto triste me contou que era um brontossauro pelo lado da sua mãe. Eu não ri; as pessoas que se gabam dos ancestrais muitas vezes têm muito pouco em que se apoiar. Achar graça nelas não custa nada e aumenta a felicidade num mundo no qual esta é sempre escassa.

 

Ao manusear um inseto que dá ferroadas, mova-se muito devagar.

 

Achar que o mundo é uma coisa trivial é entrar às cegas na fantasia — e numa fantasia boba, porque o mundo real é estranho e maravilhoso.

 

A diferença entre a ciência e os assuntos vagos é que a ciência exige raciocínio, ao passo que os outros assuntos exigem apenas erudição.

 

A cópula é essencialmente espiritual — ou simplesmente um exercício amistoso. Pensando melhor, tire o "simplesmente". A cópula não é "simplesmente" — mesmo quando é apenas um passatempo feliz para dois estranhos. Mas a cópula no seu ápice espiritual é tão maior do que a união física que se torna diferente em espécie bem como em grau.

A característica mais triste da homossexualidade não é que ela seja "errada" ou "pecaminosa", ou mesmo que não Possa produzir prole -..... mas sim que nela é mais difícil se atingir esta união espiritual. Não impossível — mas as cartas estão dispostas contra ela.

 

Mas — lamentavelmente — muitas pessoas nunca atingem a participação espiritual mesmo com o auxílio da vantagem homem-mulher; elas estão condenadas a vagarem pela vida sozinhas.

 

O tato é o sentido mais fundamental. O bebê o usa completamente antes de nascer e muito antes de aprender a usar a visão, a audição ou o paladar, e nenhum ser humano jamais deixa de precisar dele. Dê a seus filhos pouco dinheiro para gastar — mas muitos afagos.

 

O segredo é o começo da tirania.

 

A maior força produtiva é o egoísmo humano.

 

Tenha cuidado com as bebidas fortes. Elas podem fazê-lo atirar nos cobradores de impostos — e errar.

 

A profissão de curandeiro tem muitas vantagens. Oferece um alto status, com um meio de vida seguro, isento de trabalho no sentido fatigante e laborioso. Na maioria das sociedades oferece privilégios e imunidades legais não concedidas aos outros homens. Mas é difícil compreender como um homem que recebeu um mandato do Alto para espalhar mensagens de alegria a todo o gênero humano possa estar seriamente interessado em fazer uma coleta para pagar o seu salário; isso faz com que se suspeite de que o curandeiro esteja no mesmo nível moral de qualquer outro homem.

 

Mas é um trabalho admirável para quem tem estômago para isso.

 

Uma prostituta deve ser julgada pelos mesmos critérios que os outros profissionais que oferecem serviços mediante pagamento — tais como dentistas, advogados, cabeleireiros, médicos, bombeiros, etc. Ela é profissionalmente competente? Dá boa conta do serviço? É honesta com seus clientes? É possível que a porcentagem de prostitutas honestas e competentes seja maior do que a de bombeiros e muito maior do que a de advogados. E enormemente maior do que a de professores.

 

Minimize seus therbligs [5] até eles se tornarem automáticos; isto dobrará seu tempo de vida efetivo — e assim lhe dará tempo para apreciar as borboletas, os gatinhos e os arco-íris.

 

Você notou como elas se parecem com as orquídeas? Encantadoras!

 

A especialização num campo não se estende a outros campos. Mas os especialistas muitas vezes acham que sim. Quanto mais limitado o seu campo de conhecimentos, maior a probabilidade de eles pensarem assim.

 

Nunca tente ser mais teimoso do que um gato.

 

Investir contra moinhos de vento causa mais danos a nós do que aos moinhos.

 

Ceda à tentação; pode ser que ela não se apresente outra vez.

 

Acordar uma pessoa desnecessariamente não deve ser considerado um crime grave. Isto é, da primeira vez.

 

"Vá para o inferno!", ou outro insulto direto, é a única resposta que uma pergunta indiscreta merece.

 

A maneira correta de pontuar uma frase que começa: "Naturalmente não é da minha conta, mas... " é colocar um ponto após a palavra "mas". Não se esforce excessivamente para fornecer um ponto a esse imbecil. Cortar sua garganta é apenas um prazer passageiro e fará com que você fique falado.

 

Um homem não insiste na beleza física de uma mulher que reforça o seu moral. Após algum tempo ele percebe que ela é bonita — apenas não havia notado a princípio.

 

Um papagaio é melhor companhia do que uma pessoa que se orgulha de ser "franca".

 

"No amor e na guerra vale tudo" — que mentira desprezível!

 

Cuidado com a falácia do "Cisne Negro". A lógica dedutiva é tautológica; não há nenhum meio de se obter uma nova verdade dela, e ela manipula afirmações falsas tão facilmente como as verdadeiras. Se você não puder se lembrar disso, poderá dar-se mal — com perfeita lógica. Os projetistas dos primeiros computadores chamavam a isto de "Lei de Elsl", isto é, "Entra lixo, sai lixo".

A lógica indutiva é muito mais difícil — mas pode produzir novas verdades.

 

Um "pregador de peças" merece aplausos pelo seu espírito segundo a qualidade deste. Bastonadas devem servir. Espíritos excepcionais deveriam ter direito a ser afogados. Mas ser preso numa estaca sobre um formigueiro devia ser reservado para os mais espirituosos.

 

As leis naturais não têm piedade.

 

No planeta Tranqüilo, perto de KM 849 (G-O), vive um pequeno animal conhecido como knafn. É herbívoro, não tem nenhum inimigo natural, permite que se chegue perto dele facilmente e pode servir como animal de estimação — urna espécie de cachorrinho de seis pernas com escamas. Fazer festa nele é muito agradável; ele se torce de prazer e irradia euforia numa certa faixa que os seres humanos podem captar. Vale a viagem.

Algum dia algum menino inteligente descobrirá um meio Je gravar esta irradiação, depois algum menino inteligente verá oportunidades comerciais nisso — e não demorará muito para que isso seja regulamentado e taxado.

Enquanto isso, falsifiquei aquele nome e número de catálogo; ele fica a vários milhares de anos-luz em outra direção. Egoísmo de minha parte...

 

A liberdade começa quando a gente diz à sra. Grundy para ir soltar papagaio.

Cuide dos colhões e os feijões cuidarão de si mesmos. Tente ter dinheiro para a fuga — não, não seja fanático a respeito disso.

 

Se "todo mundo conhece" fulano e beltrano, então isso não é verdade, pelo menos por dez mil a um.

 

Os rótulos políticos — tais como realista, comunista, democrata, populista, fascista, liberal, conservador e assim por diante — nunca são critérios básicos. A raça humana se divide politicamente entre aqueles que querem que o povo seja controlado e aqueles que não desejam isso. Os primeiros são idealistas inspirados pelos mais altos motivos, para o maior bem do maior número de pessoas. Os últimos são avarentos grosseiros, desconfiados e destituídos de altruísmo. Mas são vizinhos mais agradáveis do que os da outra espécie.

 

Nem todos os gatos são pardos após a meia-noite. Há uma variedade infinita...

 

O pecado consiste apenas em magoar as outras pessoas desnecessariamente. Todos os outros "pecados" são bobagens inventadas. Magoar-se a si próprio não é pecado — é apenas estupidez.

 

Ser generoso é inato; ser altruísta é uma perversidade adquirida. Nenhuma semelhança...

 

É impossível um homem amar sua esposa de todo o coração sem amar um pouco todas as mulheres. Suponho que o inverso deva ser verdadeiro em relação às mulheres.

 

Pode-se errar sendo cético demais tão facilmente como sendo confiante demais.

 

A cortesia formal entre marido e mulher é até mais importante do que entre estranhos.

 

Qualquer coisa grátis vale o que se paga por ela.

 

Não guarde alho junto com os outros alimentos.

 

O clima é o que esperamos, o tempo é o que obtemos.

 

Pessimista por política, otimista por temperamento — é possível ser ambos. Como? Não assumindo nunca um risco desnecessário e minimizando os riscos que se podem evitar. Isto permite tomar parte no jogo com felicidade, despreocupado pela certeza do resultado.

 

Não confunda o "dever" com o que as outras pessoas esperam de você; são coisas totalmente diferentes. O dever é uma dívida que a pessoa tem consigo mesma para cumprir obrigações assumidas voluntariamente. Pagar esta dívida pode consistir em qualquer coisa, desde anos de trabalho paciente até a disposição imediata de morrer. Isso pode ser difícil, mas a recompensa é o auto-respeito.

Mas não há absolutamente nenhuma recompensa em fazer o que as outras pessoas esperam de você, e fazer isso é não só difícil como impossível. É mais fácil lidar com um ladrão do que com o aproveitador que quer "apenas alguns minutos do seu tempo, por favor — isto não tomará muito tempo"- O tempo é todo o seu capital, e os minutos da sua vida são dolorosamente poucos. Se você se permitir cair no vício de concordar com estes pedidos, eles se avolumarão rapidamente até o ponto de estes parasitas usarem cem por cento do seu tempo — e exigirem mais!

Portanto, aprenda a dizer "Não" — e seja bruto quando necessário.

Do contrário você não terá tempo para cumprir o seu dever, para fazer o seu próprio trabalho e certamente nenhum tempo para o amor e a felicidade. As formigas roerão sua vida sem deixar nada para você.

(Esta regra não significa que você não deva fazer um favor a um amigo, ou mesmo a um estranho. Mas deixe que a escolha seja sua. Não faça apenas por "esperarem" isso de você.)

 

"Vim, vi, ela venceu." (O original em latim parece ter sido mutilado.)[6]

 

Uma comissão é uma forma de vida com seis ou mais pernas e nenhum cérebro.

 

Os animais podem ser levados à loucura colocando-se todos juntos num recinto pequeno demais. O homo sapiens é o único animal que faz isso voluntariamente consigo mesmo.

 

Não tente dizer a última palavra. Você pode ouvi-la.

 

Variações sobre um tema

XIII

Boondock

— Ira — disse Lazarus Long —, você viu esta lista? — Ele estava recostado no escritório do Líder da Colônia, Ira Weatheral, em Boondock, a maior (única) colônia no planeta Tertius. Com eles estavam Justin Foote, 45.°, recém-chegado de Nova Roma, em Secundus.

— Lazarus, Arabelle endereçou esta carta a você. Não a mim.

— Essa emproada absurda ainda vai me deixar aborrecido. Sua Extrema Ubiqüidade Madame Presidenta Temporária Arabelle Foote-Hedrick parece achar que foi coroada Rainha dos Howards. Estou tentado a voltar e pegar aquele martelo de juiz. — Lazarus passou a lista a Weatheral. — Dê uma olhada nisso, Ira. Justin, você teve alguma coisa a ver com isto?

— Não, Sênior. Arabelle me disse para entregá-la e me deu instruções para informá-lo dos meios para garantir a entrega da correspondência atrasada de várias eras... o que apresenta problemas para as datas pré-Diáspora. Mas não considero suas idéias práticas. Posso dizer que conheço mais a história da Terra do que ela.

— Estou certo de que conhece. Acho que ela copiou essa lista de uma enciclopédia. Não me aborreça com as idéias dela. Ah, você pode transcrevê-las e dar-me a raiz cúbica, mas não vou ocupar-me com elas. Quero as suas idéias, Justin.

— Obrigado, Ancestral...

— Chame-me de Lazarus.

— Lazarus. O motivo oficial da minha visita é informar a ela sobre esta colônia...

— Justin — interrompeu Ira rapidamente —, Arabelle acha que tem jurisdição sobre Tertius?

— Receio que sim, Ira.

— Bem — Lazarus riu com desprezo —, ela não tem. Mas está tão longe que não causará prejuízo se desejar intitular-se "Imperatriz de Tertius". Nossa situação é esta, Justin. Ira é o Líder da Colônia, ainda estamos na viagem inaugural. Eu sou o Prefeito; Ira faz o trabalho, mas eu bato o martelo nas reuniões da comunidade. Há sempre colonos que acham que uma colônia pode funcionar como um planeta de cidades grandes; assim eu presido para jogar água fria nas discussões idiotas. Quando eu estiver pronto para começar esse negócio de viagem no tempo à custa do governo, eliminaremos o cargo de Líder da Colônia e Tra assumirá como prefeito.

"Mas examine o estabelecimento como entender, conte os narizes, examine qualquer registro, faça o que quiser. Bem-vindo a Tertius, a maior coloniazinha deste lado do centro galáctico. Esteja em casa, filho."

— Obrigado, Lazarus, eu ficaria... colonizando... mas quero continuar como arquivista-chefe até terminar de editar suas memórias.

— Ah, aquela droga... — disse Lazarus — queime-a!

— Lazarus — disse Ira —, não fale assim. Tolerei os seus caprichos durante anos para registrá-las.

— Bobagem. Paguei a você quando segurei o martelo e impedi a Duquesa Horrível de bani-lo para Felicidade. Você tem o que quer... por que se preocupar com as minhas memórias?

— Eu me preocupo.

— Bem... Talvez Justin possa editá-las. Atena! Palas Atena [7], você está aí, querida?

— Ouvindo, Lazarus — veio uma voz doce de soprano de um alto-falante sobre a escrivaninha de Ira.

— Suas memórias incluem as minhas memórias, não incluem?

— Certamente, Lazarus. Cada palavra que você disse desde que Ira o salvou...

— "Salvou" não, querida. Raptou.

— Revisão... desde que Ira o raptou daquele pulgueiro, e todas as suas memórias anteriores.

— Obrigado, querida. Está vendo, Justin? Se você tem que separar botões, faça-o aqui. A não ser que você tenha negócios por terminar em Secundus. De família, ou coisa parecida.

— Nada de família. Filhos crescidos, mas nenhuma esposa. Minha substituta está fazendo o meu serviço, e nomeei-a minha sucessora... sujeita à aprovação pelos curadores. Mas sinto-me alarmado. Ah... e quanto à minha nave?

— Minha nave, você quer dizer. Não me refiro ao meu iate Dora, mas àquele autopaquete em que você chegou. O Pombo-Correio. Pertence a uma empresa que pertence a outra empresa da qual sou o acionista majoritário. Aceitarei a entrega e isso poupará a Arabelle metade do tempo da locação.

— É mesmo? A senhora Presidenta Temporária não alugou aquele autopaquete, Lazarus; ela requisitou-o para serviço público.

— Bem, bem! — Lazarus sorriu. — Talvez eu a processe. Justin, não há nada nos artigos do contrato sob o qual Secundus foi colonizado que permita a requisição de propriedade privada pelo Estado. Correto, Ira?

— Tecnicamente correto, Lazarus. Embora haja muitos precedentes para domínio eminente na terra.

— Ira, eu discuto até isso. Mas você já ouviu falar alguma vez que isso tenha sido aplicado a naves espaciais?

— Nunca. A menos que você conte a Novas Fronteiras.

— Ai! Ira, não requisitei a Novas Fronteiras; roubei-a para salvar nossas peles.

— Eu estava pensando na parte de Slayton Ford nisso, não na sua. Requisição construtiva, talvez?

— Hum... É bastante mesquinho de sua parte falar nisso, um par de milhares de anos após a morte dele. Além do mais, se Slayton não fizesse o que fez, eu não estaria aqui e você não estaria aqui. Nem qualquer um de nós. Com os diabos, Ira!

— Acalme-se, vovô. Eu estava simplesmente acentuando que um chefe de Estado algumas vezes tem que fazer coisas que nunca faria como um indivíduo comum. Mas, se Arabelle pode requisitar o Pombo-Correio quando este desce em Secundus, então você pode fazer o mesmo em Tertius. Cada um de vocês é chefe de Estado de um planeta autônomo. Dê uma lição a ela.

— Ah... Ira, não me tente. Isso aconteceu uma vez comigo. Se se tomar um hábito, porá um fim às viagens interestelares. Não tocarei naquela nave sob nenhuma dessas desculpas legais inconsistentes. Mas ela é minha, imediatamente, e se Justin quiser ficar, poderá entregá-la a mim e a devolverei à empresa de transportes. Vamos voltar para aquela lista. Estão vendo o que a velha morcega deseja? As ocasiões e lugares sobre os quais ela quer que eu dê informações?

— Parece um itinerário interessante.

— Parece, hein? Então faça isso você. "Batalha de Hastings; Primeira, Terceira e Quarta Cruzadas; Batalha de Orleans; Queda de Constantinopla; Revolução Francesa; Batalha de Waterloo." Termópilas e outros dezenove encontros entre estranhos aguerridos. Estou surpreso por ela não ter-me pedido para ser juiz na luta entre Davi e Golias. Sou medroso, Ira. Só luto quando não posso fugir... como ela acha que consegui viver por tanto tempo? A matança não é um esporte para ser assistido. Se a história diz que uma batalha teve lugar num determinado ponto num dia particular, então estarei em alguma outra parte, ou em outra ocasião, bem longe, sentado numa taverna, bebendo cerveja e dando beliscões nas garçonetes. E não driblando fogo de morteiro para alimentar a curiosidade vampiresca de Arabelle.

— Tentei sugerir isso — disse Justin. — Mas ela disse que era um projeto oficial das Famílias.

— Oficial uma ova! Falei com ela sobre isso apenas para me certificar da organização da correspondência atrasada. Sou um covarde por profissão... e não estou trabalhando para ela. Irei para onde e quando quiser, para ver o que desejar... e tentarei não antagonizar os caipiras locais. Especialmente os que estão lutando uns com os outros; isso os torna sensíveis nos gatilhos.

— Lazarus — disse Ira Weatheral —, você nunca disse o que planeja ver.

— Bem... Nenhuma batalha. As batalhas são muito bem documentadas para o meu gosto. Mas há uma porção de coisas interessantes na história terrena... coisas pacíficas não muito bem documentadas por terem sido pacíficas. Quero ver o Partenon no máximo da sua glória. Descer o Mississipi com Sam Clemens ¹ como piloto. Ir à Palestina nas três primeiras décadas da era cristã e tentar localizar um certo carpinteiro transformado em rabino... decidir se esse homem realmente existiu.

¹ Samuel Langhorne Clemens, nome verdadeiro de Mark Twain (1835-1910). (N. da T.)

 

Justin Foote ficou surpreso.

— Você quer dizer o Messias cristão? Muitas histórias sobre ele são admitidas como mito, mas...

— Como é que você sabe que são mitos? Mas o fato de ele ter existido realmente é o ponto que nunca foi estabelecido. Tome Sócrates, quatro séculos antes... sua historicidade é tão firmemente estabelecida como a de Napoleão. O mesmo não se dá com o carpinteiro de Nazaré. Apesar do cuidado com que os romanos mantinham os registros e o cuidado semelhante com que os judeus mantinham os seus, nenhum dos acontecimentos que deviam estar registrados puderam ser encontrados nos registros contemporâneos.

"Mas, se eu dedicar trinta anos a isso, poderei encontrar. Conheço o latim e o grego daquele tempo e sou da mesma forma fluente em hebreu clássico; tudo quanto preciso acrescentar é aramaico. Se eu o encontrar, posso acompanhá-lo. Gravar suas palavras com um microgravador, ver se conferem com o que alegam ter ele dito.

"Mas não aceitarei nenhuma aposta. A historicidade de Jesus é a questão mais escorregadia de toda a história, porque durante séculos não pôde ser contestada. Eles enforcariam você por perguntar... ou o queimariam na estaca."

— Estou maravilhado — disse Ira. — Meu conhecimento da história da Terra não é tão completo como pensei que fosse. Contudo, concentrei-me no período desde a morte de Ira Howard até a fundação de Nova Roma.

— Filho, você nem mesmo experimentou isso. Mas, deixando de parte esta história estranha ("estranha" porque a maioria dos líderes religiosos importantes estão fortemente documentados, ao passo que este continua tão esquivo como as lendas do rei Artur), não estou à procura dos grandes acontecimentos. Preferia conhecer Galileu, dar uma olhada na obra de Michelangelo, assistir a uma estréia de uma das peças do velho Bill [8] no Teatro Globo, coisas assim. Gostaria particularmente de voltar à minha própria infância, ver se as coisas estão como me lembro delas.

Ira piscou os olhos.

— Correr o risco de se encontrar consigo mesmo?

— Por que não?

— Bem... há paradoxos, não há?

— Como? Se eu voltar, então voltei. Aquele velho clichê sobre alvejar o seu avô antes de ele conceber seu pai, depois puf! Como uma bolha de sabão! E todos os descendentes também, inclusive vocês dois, entre outros... isto não tem sentido. O fato de eu estar aqui e vocês estarem aqui significa que não fiz isso... ou não farei isso; os tempos de verbo não foram feitos para a viagem no tempo... mas isso não significa que eu nunca tenha voltado e dado uma espiada. Não tenho nenhuma vontade de olhar para mim mesmo quando era enxerido; é a era que me interessa. Se me encontrar comigo mesmo quando era garotinho, ele... eu... não me reconheceria; seria um estranho para aquele pirralho. Ele nem olharia para mim; eu sei, eu era ele.

— Lazarus — interrompeu Justin Foote —, se você pretende visitar essa era, gostaria de chamar sua atenção para uma coisa em que a senhora Presidenta Temporária está interessada... porque eu estou interessado. Uma gravação do que foi dito e feito exatamente na reunião das Famílias em 2012 da era cristã.

— Impossível.

— Espere um momento, Justin — interrompeu Ira. — Lazarus, você se recusou a falar sobre essa reunião alegando que os outros que estavam lá não poderiam contestar a sua versão. Mas uma gravação seria algo justo para todos.

— Ira, eu não disse que não faria; disse que era impossível.

— Não compreendo.

— Não posso fazer uma gravação daquela reunião porque eu não estava lá.

— Você me deixa perdido outra vez. Todos os registros e suas próprias declarações mostram que você estava lá.

— Novamente não temos uma linguagem adequada para viagens no tempo. Certamente eu estava lá, como Woodrow Wilson Smith. Estava lá, comportei-me como uma peste e ofendi uma porção de pessoas. Mas não tinha um gravador comigo. Vamos dizer que Dora e as gêmeas me deixem lá outra vez (eu, Lazarus Long, não aquele moço) e que Ishtar me equipe com um gravador implantado atrás do meu rim direito, com seu minimicrofone aflorando de dentro da minha orelha direita. Muito bem, vamos supor que com esse equipamento não notem que eu estou gravando.

"Mas, Ira, o que você não compreende, apesar de ter presidido muitas reuniões das Famílias, é que eu não chegaria a entrar na sala. Naquele tempo, era mais difícil de se penetrar numa reunião executiva das Famílias do que numa conspiração de feiticeiras. Os guardas estavam armados e ansiosos; era um período difícil. Que identidade eu podia usar? NI ao a de Woodrow Wilson Smith; ele estava lá. Lazarus Long? Não havia nenhum Lazarus Long nas listas das Famílias. Tentar fingir ser alguém aceitável mas não capaz de entrar? Impossível. Havia apenas alguns milhares de nós, então, e cada membro era conhecido de uma grande porcentagem do resto; o homem que não pudesse ser confirmado corria o risco horrível de ser enterrado no porão. Nenhuma pessoa não identificada jamais entrou lá; havia muita coisa em jogo. Olá, Minerva! Entre, querida."

— Olá, Lazarus. Ira, estou sendo importuna?

— Absolutamente, querida.

— Obrigada. Alô, Atena.

— Alô, minha irmã.

Minerva esperou ser apresentada.

— Minerva — disse Ira —, você se lembra de Justin Foote, o arquivista-chefe, não?

— Certamente, trabalhei com ele muitas vezes. Bem-vindo a Tertius, sr. Foote.

— Obrigado, Minerva. — Justin Foote gostou do que viu: uma jovem alta, magra, com um porte ereto, busto pequeno e firme, longos cabelos castanhos presos em parte e escovados diretamente para baixo, um rosto sóbrio e inteligente, mais simpático do que bonito, mas que desabrochava em beleza cada vez que ela dava um dos seus rápidos sorrisos. — Mas, Ira, preciso voltar depressa para Secundus e me candidatar ao rejuvenescimento. Esta jovem trabalhou comigo " muitas vezes"... contudo fiquei tão senil que não me recordo dessas ocasiões. Desculpe-me, querida senhora.

Minerva dirigiu-lhe outro dos seus sorrisos, depois ficou séria instantaneamente.

— Foi minha culpa, senhor; eu devia ter explicado logo. Quando trabalhei com o senhor, eu era uma computadora. Computadora executiva de Secundus, servindo ao sr. Weatheral, depois Presidente Temporário. Mas agora sou de carne e osso, e já faz três anos.

Justin Foote piscou.

— Compreendo. Espero compreender.

— Sou uma coisa construída, senhor, não nascida de mulher. Um clone composto de vinte e três pais doadores, forçados até a maturidade in vitro. Mas o "eu" que sou, meu ego, foi o da computadora que costumava trabalhar com o senhor quando os computadores dos arquivos precisaram de assistência da computadora executiva. Fui clara?

— Hã... tudo quanto posso dizer, srta. Minerva, é que estou encantado por vê-la em carne e osso. Um seu criado, senhorita.

— Ora, não me chame de senhorita, chame-me de Minerva. De qualquer maneira, não devo ser chamada de senhorita; esse não é um título honorífico reservado para as virgens entre os de carne e osso? Ishtar, uma das minhas mães e minha projetista principal, deflorou-me cirurgicamente antes de me despertar.

— E isso não é tudo! — veio a voz do teto.

— Atena — disse Minerva, reprovadoramente. — Irmã, você está embaraçando o nosso hóspede.

— Eu não, mas talvez você esteja, minha irmã.

— Estou, sr. Foote? Espero que não. Mas ainda estou aprendendo a ser um ser humano. Quer me dar um beijo? Gostaria de beijá-lo; conhecemo-nos um ao outro há quase um século e sempre gostei do senhor. Quer?

— Agora quem o está embaraçando, irmã?

— Minerva — disse Ira. Ela ficou séria de repente.

— Eu não devia ter dito isso? Lazarus interrompeu:

— Não preste atenção a Ira, Justin; ele é um velho atrasado. Minerva é uma "prima" beijoqueira para a maioria da colônia; ela está recuperando o tempo perdido. Além do mais, ela é uma espécie de prima para praticamente todos nós, por parte dos seus vinte e três pais. Beijá-la é um desafio. Atena, deixe sua irmã em paz enquanto ela consegue mais um "primo" com seus beijos.

— Sim, Lazarus. Amigo velho!

— Atena, se eu pudesse estender a mão através dessa série de fios, eu bateria em você. — Lazarus acrescentou: — Vá em frente, Justin.

— Hã... Minerva, não beijo uma moça há muitos anos. Estou sem prática.

— Sr. Foote, eu não pretendia embaraçá-lo. Estou simplesmente encantada em vê-lo novamente. O senhor não precisa me beijar. Ou, se pretende beijar-me na intimidade, será muito bem-vindo.

— Não se arrisque, Justin — aconselhou a computadora. — Sou sua amiga.

— Atena!

— Eu ia acrescentar — disse o arquivista-chefe — que provavelmente preciso de mais prática para "aprender a ser um ser humano" do que você. Se você aceitar minha falta de leito, prima, aceito sua doce oferta. Segure-se.

Minerva deu um sorriso rápido, caiu nos seus braços esparramou-se em cima dele como um gato, fechou os olhos e abriu a boca. Ira estudou um papel em sua escrivaninha. Lazarus nem fingiu que não estava vendo. Ele notou que Justin Foote se entregou àquilo de coração... a velha ave de rapina podia estar sem prática, mas não havia esquecido os rudimentos.

Quando eles se separaram, a computadora deu um assovio respeitoso.

— Fiiiuuu... Justin, bem-vindo ao clube.

— É — disse Ira secamente —, não se pode dizer que uma pessoa esteja oficialmente em Tertius até que ele ou ela tenha recebido um beijo de boas-vindas de Minerva. Agora que o protocolo está cumprido, sente-se. Minerva, minha querida, você veio para algum fim?

— Sim, senhor. — Ela se acomodou ao lado de Justin Foote num sofá em frente a Ira e Lazarus... e tomou a mão de Justin. — Eu estava no Dora com as gêmeas, e Dora estava ensinando astrogação a elas quando o paquete apareceu em nosso céu e...

— Certamente, Lazarus. Um exercício vivo? Dora nunca perderia uma oportunidade dessas. Ela se dividiu imediatamente e fez cada uma delas acompanhá-lo independentemente. Mas, uma vez que o autopaquete aterrou, pedi a Dora para perguntar a Atena quem estava nele... e, assim que a cápsula se abriu, minhas irmãs me disseram: Justin — ela apertou a mão dele —, e apressei-me para saudá-lo. E para oferecer acomodações. Ira, cuidaram de Justin? Um lugar para dormir, coisas assim?

— Ainda não, minha querida. Estávamos apenas começando a conversar... ele mal teve tempo de sé livrar do anestésico.

— Acho que o antídoto fez efeito — comentou Foote.

— O primo Justin acabou de tomar uma segunda dose, Ira — acrescentou a computadora. — Pulso rápido, mas firme.

— Isso é o suficiente, Atena. Você ia sugerir alguma coisa, minha querida?

— Sim. Passei por casa e falei com Ishtar. Estamos de acordo. Sujeito à sua aprovação e à de Lazarus.

— Você quer dizer que conseguimos um voto? — interrompeu Lazarus. — Justin, este planeta é governado pelas mulheres.

— Não é assim em toda parte?

— Não, apenas na maioria. Lembro-me de um lugar em que uma cerimônia de casamento sempre terminava com a morte da mãe da noiva se esta não tivesse sido usada antes. Acho que isso era exagerar a coisa, mas tendia a...

— Esqueça isso, vovô — disse Ira conciliadoramente..— Justin teria que editá-lo. Justin, o que Minerva estava dizendo é que nossa casa é sua. Não é, Lazarus?

— Certamente. É uma casa de loucos, Justin, mas a comida é boa e o preço é correto. Isto é, grátis. São apenas os seus nervos que pagam.

— Realmente, não tenho nenhuma intenção de importunar. Não há alguém que possa alugar-me um quarto? Não por dinheiro, suponho que o dinheiro de Secundus não seja negociável aqui, mas por artefatos que trouxe, coisas que vocês ainda não fabricam.

— Você pode negociar o dinheiro de Secundus por meu intermédio, se precisar — respondeu Lazarus. — Quanto aos artefatos, pode ser que fique surpreso com o que estamos fabricando.

— Pode ser que não; sei que um pantógrafo universal foi trazido para cá. Assim, trouxe novos artigos criativos, principalmente diversões... cubos solares e coisas parecidas. Músicas divertidas, pornográficas, oníricas, outros tipos... todas publicadas desde que vocês deixaram Secundus.

— Bem planejado — acrescentou Lazarus. — Acho que a colonização era mais divertida antes, quando os pioneiros não tinham escolha senão se estabelecer e lutar com denodo, e não se tinha certeza de quem ia vencer, a gente ou o planeta. A maneira pela qual fazemos isso agora é como esmagar um inseto com uma marreta. Justin, os seus bagulhos obterão um alto preço, mas venda-os aos poucos... porque cada um será copiado assim que você o solte. Nenhum direito autoral, não há meio de fazê-lo cumprir. Mas isso ainda não dará para você alugar um quarto; estamos na fase da hospedagem-com-os-parentes. É melhor você aceitar a nossa oferta; chove quase todas as noites nesta época do ano.

Justin Foote ficou desanimado.

— Receio invadir a sua privacidade. Ira, posso tomar emprestado este sofá onde estou sentado? Por pouco tempo? Depois...

— Pare com isso, Justin. — Lazarus levantou-se. — Pilho, você está sofrendo das atitudes de cidade grande. Você e bem-vindo por uma semana ou um século. Você é não só meu descendente em linha reta, através de Harriet Foote, acho eu, como primo beijoqueiro de Minerva. Vamos levá-lo Para casa, Minerva. O que é que você fez com os meus demônios?

— Estão do lado de fora.

— Confio em que as tenha prendido em estacas.

— Não, mas elas estão um tanto zangadas.

— É bom para o metabolismo delas. Ira, decrete um feriado.

— Farei isso... logo que tiver examinado os planos do conversor de minério com Atena.

— O que significa que você vai descobrir o que foi que ela decidiu.

— Diga isso outra vez! — disse a computadora.

— Tena — disse Lazarus conciliadoramente —, você tem se associado demais com Dora. Quando Minerva fazia o seu serviço, ela era delicada, amável, respeitosa e humilde.

— Alguma reclamação quanto ao meu trabalho, vovô?

— Apenas os seus modos, querida. Na presença de um convidado...

— Justin não é um convidado; ele é da família. Ele é um primo beijoqueiro da minha irmã; portanto, é meu primo também. Q. e. d.

— Não gosto de discutir. Cuidado com Tena, Justin; ela ainda o pegará.

— Acho o raciocínio de Atena não só lógico, como cordialmente agradável. Obrigado, minha prima beijoqueira.

— Gosto de você, Justin; você foi amável com minha irmã. Não se preocupe se eu o pegar; não planejo aceitar um clone pelo menos durante cem anos... primeiro tenho que organizar este planeta. Assim, não espere; você me verá mais ou menos dentro de um século. Você me reconhecerá; minha aparência será exatamente igual à de Minerva.

— Porém mais barulhenta.

— Lazarus, você diz as coisas mais amáveis. Beije-o por mim, irmã gêmea.

— Vamos embora, Minerva; Tena me confundiu outra vez.

— Espere um momento, Lazarus, por favor. Ira, combinei outra coisa com Ishtar, mas apenas como tentativa... por não estar certa dos desejos de Justin.

— Ah, não os conheço tampouco. Quer que eu pergunte a ele?

— Hã... sim.

— Em relação a você?

Minerva ficou espantada. Justin Foote ficou espantado.

— Vamos esclarecer as coisas — disse Atena. — Justin, Minerva estava perguntando a Ira se você quer que ela arranje para você uma esposa convidada. Ira disse que não sabe, mas que descobrirá... depois perguntou se ela estava se apresentando voluntariamente para o privilégio. Tudo claro? Justin, minha irmã é tão nova na condição de carne e osso, que algumas vezes fica insegura.

Lazarus refletiu que não via uma moça corar — por esse motivo — havia três séculos ou mais. Nem os dois homens pareciam estar à vontade. Ele falou em tom de censura:

— Tena, você é uma excelente engenheira... e uma péssima diplomata.

— O quê? Ora, bobagem. Economizei para eles bilhões de nanossegundos.

— Cale a boca, querida; os seus circuitos estão embaralhados. Justin, Minerva é quase certamente a única moça deste planeta que pode se perturbar com a ajuda pouco prestimosa de Tena... porque ela é provavelmente a única que revela alguma tendência de se ligar a um único homem.

A computadora deu uma risada.

— Eu disse a você para ficar quieta — Lazarus advertiu severamente.

Ira falou calmamente:

— Minerva é livre, Lazarus.

— Quem disse que ela não era? Fique quieto também, até que o Sênior (que sou eu, filho) termine de falar. Justin, Minerva encontrará para você uma companhia para jantar... ela já encontrou, acho eu. Depois disso, é com você. Se você e sua companhia para jantar não combinarem, sem dúvida você poderá imaginar alguma outra coisa. Tena, vou desligá-la na casa esta noite; estou desconvidando-a para jantar. Você não aprendeu a se comportar na presença de outros.

— Ah, Lazarus, não pretendia aborrecê-lo.

— Bem... — Lazarus olhou em volta. A fisionomia de Ira estava impassível, Minerva parecia infeliz. Justin Foote disse:

— Sênior, estou certo de que Atena não tinha nenhuma má intenção. Aprecio que ela me declare seu "primo beijoqueiro"; achei isso uma amabilidade carinhosa. Espero que você reconsidere e deixe-a reunir-se a nós no jantar.

— Muito bem, Tena; Justin interferiu a seu favor. Mas quanto a você, Dora e as gêmeas, logo vou precisar de uma vara para usar sobre vocês, garotas. Justin, Minerva, vamos embora. Ira, Tena... vejo vocês em casa. Não perca tempo naquele conversor, Ira; Tena fez um serviço perfeito.

Do lado de fora do quartel-general colonial, Justin Foote encontrou um barco insignificante esperando — não o que o havia trazido do porto celeste; este trazia um par de gêmeas ruivas... eram garotas, embora parecessem ter decidido isso apenas recentemente. Doze, talvez treze anos. Ambas estavam usando cintos com revólveres sobre os quadris magros, com o que ele esperava que fossem armas de brinquedo. Uma usava insígnias de capitão nos ombros nus. Cada uma tinha onze mil trezentas e duas sardas. pelo que pôde estimar.

Ambas saltaram para fora do barco e esperaram. Um conjunto de sardas disse:

— Já era hora.

Discriminação — disse o outro.

— Parem de apitar e sejam amáveis — ordenou Lazarus. — Justin, estas são minhas filhas gêmeas: Lápis-Lazúli e Lorelei Lee. Sr. Justin Foote, queridas, o arquivista-chefe dos Curadores.

As garotas olharam uma para a outra, depois fizeram uma reverência profunda em perfeito sincronismo.

— Bem-vindo a Tertius, arquivista-chefe Foote! — disseram em coro.

— Encantadoras!

— Sim, garotas, isso foi amável. Quem lhes ensinou?

— Mamãe Hamadríade nos ensinou...

— ... e mamãe Ishtar disse que essa seria uma boa ocasião para fazê-lo.

— Mas eu sou Lori; ela é Lazi.

— Eu sou a capita Lápis-Lazúli Long, no comando da nave estelar Dora, e ela é minha tripulante. Nos dias pares.

— Até amanhã. Dia ímpar.

— Lazarus não pode distinguir-nos...

— ... e ele não é nosso pai; nunca tivemos pai.

— Ele é nosso irmão, não tem autoridade verdadeira...

— ... ele apenas nos domina pela força bruta...

— ... mas algum dia isso vai mudar.

— Para dentro do barco, seus demônios amotinados — disse Lazarus alegremente —, antes que eu rebaixe vocês a aprendizes de espaçonautas.

Elas saltaram para dentro do barco e sentaram-se na frente, voltadas para a popa.

— Ameaças...

— ... com linguagem abusiva...

— ... e sem o devido processo.

Lazarus não pareceu tê-las ouvido. Ele e Justin ajudaram Minerva a entrar no barco e sentaram-na na popa voltada para a frente; eles se sentaram dos dois lados dela.

— Capita Lazúli. — Sim, senhor?

— Quer dizer ao barco, por favor, que nos leve para casa?

— Sim, senhor. Humpty Dumpty... para casa!

A pequena embarcação partiu, atingiu uma velocidade constante de dez nós, bamboleando segundo os desníveis do solo.

— E agora, capita — disse Lazarus —, como confundiu o nosso convidado, por favor, esclareça-o.

— Sim, senhor. Nós não somos gêmeas, não temos sequer a mesma mãe...

— ... e o amigo velho não é nosso pai; é nosso irmão.

— Dia par!

— Então faça-o funcionar.

— Correção — disse Lazarus. — Sou pai de vocês porque as adotei, com o consentimento escrito das suas mães.

— Irrelevante...

— ... e ilegal; não foi com o nosso consentimento...

— ... e imaterial de qualquer maneira, porque nós três, Lazarus, Lorelei e eu, somos trigêmeos univitelinos e, portanto, gozamos dos mesmos direitos sob qualquer jurisdição racional... o que esta, infelizmente, não é. Assim, ele bate em nós. Ilegal e brutalmente.

— Capita, lembre-me de arranjar uma vara maior.

— Sim, senhor. Mas gostamos do amigo de qualquer maneira, apesar do seu comportamento sadomasoquista. Porque ele é realmente nós. Compreende?

— Senhorita... Quero dizer, capitão, não estou certo de ter compreendido. Acho que escorreguei numa deformação do espaço a caminho daqui e não consegui escapar.

A capita dos dias pares sacudiu a cabeça.

— Desculpe, senhor, mas isso não é possível. Devo pedir-lhe para aceitar minha palavra nesse sentido... a menos que o senhor saiba manipular números imperiais e física de campo Libby. O senhor sabe?

— Não. Você sabe? — Ora, certamente...

— ... nós somos gênios.

— Parem de tentar impressioná-lo, garotas, e cumpram essa ordem. Eu mesmo explicarei.

— Gostaria que o fizesse, Lazarus. Eu não sabia que tinha filhos pequenos. Ou irmãs, o que acho ainda mais desconcertante. Elas estão registradas? Embora eu não possa ver tudo o que entra nos arquivos, há muitos anos tem havido uma retransmissão automática para mim de qualquer coisa a respeito do Sênior.

— Eu sabia, e é por essa razão que você não ouviu nada. Registradas, sim, mas com os nomes de suas mães... mães-hospedeiras, na verdade, mas não comunicadas como tal. Mas deixei um registro selado, na correspondência atrasada, da verdadeira genealogia envolvida, para ser aberto por você ou seu sucessor quando eu morrer ou no ano de 2 070 da Diáspora, o que ocorrer primeiro, para garantir que elas recebessem certas bugigangas, tais como a minha segunda melhor cama...

— E a Dora!

— Cale-se! Fique dando palpite e sua irmã ganhará a Dora; você não será capita nem nos dias alternados. Escolhi essa data, Justin, porque espero que elas sejam adultas, então; elas realmente são gênios. Não tentarei a viagem pelo tempo até então, porque elas são capita e tripulante do meu iate... apenas em terra, agora, mas futuramente o serão no espaço. Quanto a como elas são minhas irmãs (e o são), foi usado um procedimento cirúrgico ilegal, clandestino... proscrito, pode-se dizer, pela Clínica de Secundus, a fim de cloná-las a partir de mim. Um pouco parecido com o caso de Minerva, porém mais simples.

— Muito mais simples — concordou Minerva. — Operei para mim quando ainda era uma computadora... e falhei dezessete vezes antes de conseguir um clone perfeito. Eu não poderia fazer isso agora, embora Atena pudesse. Mas nossas garotas foram clonadas por um cirurgião de carne e osso (a reprodução do cromossomo X foi tudo de que ele necessitou), e ele conseguiu isso em ambos os casos na primeira tentativa; Laz e Lor nasceram no mesmo dia.

— Hum... Sim, acho que a Senhora Diretora, dra. Hildegarde, teria uma opinião desagradável dessas coisas. Sem nenhuma reflexão sobre a sua competência profissional (alta, presumo), acho-a um pouco, hã, conservadora.

— Assassina.

— Totalitária primitiva.

— Três vezes...

— ... pois que direito tem ela de dizer que não podemos existir...

— ... ou Minerva. Mente criptocriminosa!

— Basta, garotas; vocês expressaram sua opinião, não gostam dela.

— Ela teria assassinado você também, amigo velho.

— Lori, eu disse que bastava. Supondo que a política de Nelly Hildegarde fosse cumprida, eu não estaria aqui, você não estaria aqui, Laz não estaria aqui, nem Minerva. Mas ela não é "assassina", porque nós quatro estamos aqui.

— E estou encantado — comentou Justin Foote. — Ter três moças charmosas acrescentadas às nossas Famílias através de uma infração das regras prova algo de que suspeito há muito tempo: as regras servem melhor quando violadas.

— Um homem sábio...

— ... e com covinhas também. Sr. Foote, gostaria de se casar comigo e com minha irmã?

— Diga "sim"! Ela sabe cozinhar, mas eu sou carinhosa.

— Parem com isso, garotas — pediu Minerva.

— Por quê? Você já o reservou para si? Foi por isso que não pudemos entrar? Sr. Foote, Minerva é nossa mamãe temporária por edito...

— ... o que é manifestamente injusto...

— ... porque ela é realmente anos e anos mais moça do que nós...

— ... e isso nos dá três mães para evitar em vez da única regulamentar.

— Parem com isso — ordenou Lazarus. — Vocês duas sabem cozinhar, mas nenhuma de vocês é muito carinhosa.

— Então por que você nos faz carinho, amigo?

— ... impulso incestuoso suprimido, talvez?

— Merde. Porque vocês duas são imaturas, inseguras e assustadas.

As ruivas olharam uma para a outra. — Lori?

— Eu ouvi. A menos que esteja tendo alucinações.

— Não, eu também ouvi.

— É hora de chorar?

— É melhor não fazermos isso. O sr. Foote não iria querer ver como o nosso amigo cai aos pedaços quando choramos.

— Não o faremos. Haveria dois choros e um tremor de queixo, que ele vai ter. A menos que o sr. Foote queira ver.

— Quer, sr. Foote?

— Justin, venderei qualquer uma delas barato. Farei um preço ainda melhor num negócio em conjunto.

— Ah... obrigado, Lazarus, mas receio que elas possam chorar para mim... então eu cairia aos pedaços. Podemos mudar de assunto? Como é que você conseguiu realizar esta tripla, hã, irregularidade? Pode-se perguntar? A dra. Hildegarde dirige uma organização muito rigorosa.

— Bem, no caso desses dois anjinhos aí...

— Sarcasmo, agora...

— ... e não muito inteligente.

— ... fiquei tão desconcertado quanto Nelly Hildegarde. Na ocasião, Ishtar Hardy, mãe dessa...

— Não, dela.

— Vocês duas são partes intercambiáveis e, além disso, foram confundidas na semana em que nasceram, e ninguém sabe qual delas é você; nem você sabe.

— Ah, sim, eu sei! Algumas vezes ela vai embora, mas eu estou sempre bem aqui.

Lazarus parou no meio do vôo e ficou pensativo.

— Essa pode ser a afirmação mais sucinta que já ouvi da tese solipsista. Anote-a.

— Se eu anotar você ficará com o crédito dela.

— Quero simplesmente guardá-la para a posteridade... idéia essa incompatível com a própria tese. Minerva, preserve-a para mim.

— Registrada, Lazarus.

— Minerva tem uma memória quase tão exata como quando era computadora. Eu estava dizendo: Ishtar foi temporariamente chefe da clínica, tendo Nelly saído de licença; por isso, o acesso ao meu tecido não foi problema. Eu estava então num estado de falta de hedonismo agudo, e as mães delas tiveram essa idéia para restaurar o meu interesse pela vida. O único problema era fazer a cirurgia genética não permitida pelas regras da Clínica de Secundus. Como e quem... disseram-me com firmeza para não perguntar. Você pode perguntar a Minerva; ela estava metida nessa trapaça.

— Lazarus, essa foi uma lembrança que eu não trouxe comigo quando estava selecionando o que enfiar neste crânio.

— Está vendo, Justin? Só me permitem saber o que elas consideram bom para mim. Assim sendo, este tratamento heróico funcionou; não me aborreci desde então. Outras descrições podem ser aplicadas... mas não essa.

— Lori, você percebe um duplo sentido?

— Não, apenas uma insinuação pouco velada. Ignore-a com dignidade.

— Mas a princípio eu não sabia do meu estranho parentesco com este par. Ah, não pude deixar de saber que Ishtar e Hamadríade... uma das filhas de Ira; você a conheceu?

— Há alguns anos. Uma garota encantadora.

— Bastante. Ambas as mães delas são encantadoras. (Eu não podia ignorar que as duas estavam grávidas; elas passavam a maior parte do seu tempo comigo. Mas, embora estivessem inchando como cachorrinhos envenenados, ignoraram isso; portanto, não perguntei.)

Justin assentiu com a cabeça. — Privacidade.

— Não, apenas teimosia. Nunca permiti que o hábito da privacidade me impedisse de bisbilhotar quando isso me interessava. Fiquei de mau humor, isso é tudo. Duas garotas estão comigo todos os dias, são como filhas para mim, e obviamente tão mimadas como a Filha do Faraó... e elas não me contam nada. Fico teimoso então, e cuido mais delas. Até que um dia Galahad... ele é o marido delas... bem, não exatamente; você verá. Galahad me convidou para descer, e lá estavam elas, cada uma com uma das duas ruivinhas mais bonitas que já vi.

— Vamos dar um choro?

— Vocês já superaram isso; vocês duas se parecem comigo agora.

— Ou acrescentaremos um terceiro choro por isso?

— Não percebi logo que há algo errado; estava simplesmente satisfeito. Bem como espantado por elas terem produzido bebês tão parecidos como gêmeos univitelinos...

— O que somos, exceto que somos trigêmeos.

— Algumas semanas de brincadeiras com estes bebês, porém, fizeram com que o meu gênio natural e minha mente desconfiada deduzissem que as garotas me haviam tapeado. Eu não estava então no banco de esperma, pelo que sei, mas tenho bastante consciência dos truques que podem ser aplicados num cliente indefeso passando pela antigeria; assim, com lógica infalível cheguei à resposta errada: estes bebês são minhas filhas por inseminação artificial não mencionada a mim. E acuso-as disso. E elas negam. E explico que não estou com raiva, mas, bem pelo contrário, espero que estes pequenos querubins sejam meus.

— "Querubins."

— Ignore isso. Ele está simplesmente tentando impressionar o sr. Foote.

— Querubins naquela ocasião, quero dizer, apesar de uma tendência a morder. Quero que elas sejam minhas e Partilhem o meu nome e os meus bens. Elas, então, consultam os colegas de conspiração: Minerva e Galahad. Minerva estava metida nisso até seus dispositivos de segurança.

— Lazarus, você precisava de uma família.

— Absolutamente certo, querida. Estou sempre em melhor situação com uma família; ela me mantém inofensivamente ocupado e faz com que não fique aborrecido. Justin, mencionei que Minerva me permitiu adotá-la?

— Nós não fomos consultadas!

— Olhem, garotas, segundo as regras deste formigueiro, posso desadotá-las neste minuto, se esse for o desejo de vocês. Cortar o nó. Ser apenas seu irmão genético por circunstâncias em que não tive mais influência do que vocês. Renunciar a toda autoridade sobre vocês duas. Avisem-me.

As duas garotas olharam uma para a outra rapidamente. Depois uma disse: — Lazarus... — Sim, Lorelei?

— Lápis-Lazúli e eu discutimos isso, e nós duas achamos que você é exatamente o pai que queremos.

— Obrigado, minhas queridas.

— E, para confirmar isso, estamos cancelando dois choros e um tremor de queixo.

— Isso é muito agradável.

— E, além disso, queremos que nos faça carinho... porque nós estamos nos sentindo muito imaturas, inseguras e assustadas.

Lazarus piscou os olhos.

— Não quero que vocês se sintam assim, jamais. Mas... Bem, o carinho pode esperar?

— Ah, certamente... papai. Sabemos que temos um convidado. Mas talvez você e o sr. Foote se reúnam a nós no banho, está bem? Antes do jantar?

— Está bem, Justin? Tomar banho com os meus demônios é arriscado, porém divertido. Não o faço muitas vezes porque elas transformam isso num acontecimento social e perdem tempo. Faça como quiser; não deixe torcerem o seu braço.

— Certamente preciso de um banho. Eu estava limpo quando estava trancado naquela pequena cápsula... mas quanto tempo fiquei nela? Realmente não sei. E um banho sempre deve ser um acontecimento social se houver tempo.. • e boa companhia. Obrigado, senhoras; aceito.

— E eu também aceito — interrompeu Minerva. — Estou me convidando. Justin, Tertius é primitivo comparado com Secundus, mas o banheiro da nossa família é bonito e bastante grande para sociabilidades. "Decadente", como Lazarus o chama.

— Projetei-o para ser decadente, Justin. Bons encanamentos são a fina flor da decadência, e uma coisa de que sempre gostei quando pude consegui-la.

— Ah... minhas roupas ainda estão no escritório de Ira. Meus artigos de toalete também. Foi distração, desculpem.

— Não importa. Ira pode trazer sua bolsa, mas ele é distraído também. Depiladores, desodorantes, perfumes... nenhum problema. Emprestarei a você uma toga ou coisa parecida.

— Amigo velho! Quero dizer "papai". Isso significa que teremos de nos vestir para jantar?

— Chamem-me amigo velho; estou calejado. Façam como quiserem, queridas... exceto que, como de hábito, mamãe Hamadríade terá que aprovar qualquer cosmético. Voltando ao modo como consegui estas filhas que são minhas irmãs, Justin: tendo conferenciado, esta quadrilha de piratas genéticos entregou-se à misericórdia do tribunal. Eu. Assim, adotei estas duas, registramo-las, e o registro será esclarecido um dia, como expliquei. Como Minerva desistiu da profissão de computadora e assumiu as aflições de que a carne é herdeira é uma história mais longa. Quer resumi-la, querida? ... e contar a ele mais tarde, se desejar?

— Sim, papai.

— Que insolência, querida! Você é uma mulher crescida agora. Justin, quando acordamos esta queridinha, ela era mais ou menos do tamanho e da idade biológica desses dois demônios deformados... lembre-me de tomar a temperatura delas, Minerva. Adotei Minerva porque ela precisava de um pai. Agora não precisa mais.

— Lazarus, sempre precisarei de você como pai.

— Obrigado, minha querida, mas aceito isso apenas como um cumprimento agradável. Conte a Justin a sua história.

— Está bem. Justin, você está familiarizado com as teorias a respeito da autoconsciência dos computadores?

— Várias delas. Como você sabe, meu trabalho é principalmente com computadores.

— Permita-me dizer, falando pela experiência, que todas as teorias são vazias. Como um computador se torna autoconsciente continua um mistério tão grande, mesmo para os computadores, quanto o milenar mistério da autoconsciência dos seres de carne e osso. Ela simplesmente existe. Mas, pelo que eu sabia (e sabia muito em virtude da biblioteca que estava encerrada nas minhas memórias então, e ainda está nas memórias de Atena), a autoconsciência nunca surge num computador projetado apenas para lógica dedutiva e cálculos matemáticos, não importa quão grande seja. Se ele, porém, é projetado para lógica indutiva, se é capaz de avaliar dados, deduzir hipóteses destes, testá-las, reconstruí-las para se adaptarem a novos dados, fazer comparações aleatórias dos resultados e alterar essas reconstruções, isto é, exercer julgamento da maneira como faz um ser de carne e osso, então a autoconsciência pode ocorrer. Mas não sei por que e nenhum computador sabe. Ela apenas ocorre. Minerva sorriu.

— Desculpe, não tive a intenção de ser pedante. Lazarus imaginou que eu poderia entrar num cérebro humano vazio, um cérebro clone, usando técnicas utilizadas para conservar memórias nas clínicas de rejuvenescimento. Quando discutimos isto, eu tinha toda a biblioteca técnica da Clínica Howard de Secundus em mim... roubado, de certa maneira. Não a tenho mais; tive que separar e escolher o que levar comigo quando entrei neste crânio. Portanto, não me lembro muito do que fiz, não mais do que um cliente de rejuvenescimento sabe tudo o que foi feito com ele; você teria que obter detalhes com Atena, que ainda os possui... que, a propósito, nunca teve o despertar bastante doloroso por que passa um computador quando começa a se conhecer pela primeira vez, porque deixei um pedaço de mim em Atena, hã, como um fermento. Atena mal se lembra de ter sido Minerva em certa ocasião... mais ou menos da maneira como nós de carne e osso — Minerva se endireitou, sorriu e ficou orgulhosa — nos lembramos de um sonho como algo não muito real. E eu me lembro de ter sido Minerva, a computadora, mais ou menos da mesma maneira. Lembro-me de todos os meus contatos com pessoas, com muita nitidez... porque preferi conservá-los, copiá-los dentro deste crânio. No entanto, se alguém me perguntasse como eu cuidava do sistema de transporte de Nova Roma... bem, sei que cuidava, mas não como fazia isso.

Ela sorriu outra vez.

— Essa é a minha história: uma computadora que ansiava por ser de carne e osso e que tinha amigos queridos que tornaram isso possível... e nunca me arrependi; adoro ser de carne e osso... e quero amar todo mundo. — Ela olhou para Justin Foote com muita seriedade. — Lazarus disse a verdade; nunca fui uma esposa convidada; tenho apenas três anos de idade como ser de carne e osso. Caso me escolha, você pode me achar esquisita e tímida... mas não relutante. Devo-lhe muito.

— Minerva — disse Lazarus —, encurrale-o num canto em alguma outra ocasião. Você não contou a Justin o que ele queria saber; você deixou de lado a trapaça.

— Ah!

— E quando você estava filosofando sobre a consciência dos computadores, deixou de lado o ponto principal, parece-me, um que eu conheço mas você pode não conhecer, embora fosse uma computadora e eu não. Porque este ponto principal se aplica tanto aos computadores como aos seres de carne e osso. Minha querida... e Justin... e não fará mal a vocês duas, gêmeas erráticas, ouvirem isto... toda maquinaria é animista... "humanística", quero dizer, mas esse termo ficou decadente. Qualquer máquina é um conceito de um projetista humano; reflete o cérebro humano, seja ela um carrinho de mão ou um computador gigante. Portanto, não há nada de misterioso na foto de uma máquina projetada por um ser humano mostrar uma autoconsciência humana; e o mistério está na própria consciência, onde quer que seja encontrada. Eu tinha uma cama de armar, para acampamento, que gostava de me morder. Não digo que ela fosse consciente... mas aprendi a aproximar-me dela com cuidado.

"Mas, Minerva, querida, já vi alguns computadores grandes, quase tão espertos como você, que nunca desenvolveram a autoconsciência. Pode dizer-nos por quê?"

— Confesso que não posso, Lazarus. Gostaria de perguntar a Atena quando chegarmos a casa.

— Ela provavelmente também não sabe; nunca conheceu qualquer outro computador grande exceto Dora. Capita Lazúli, qual é a coisa mais antiga de que você se lembra? Certa vez você, ou sua companheira de crime, afirmou lembrar-se de ter mamado.

— É claro que nos lembramos! Todo mundo não se lembra?

— Não. Eu, por exemplo, não me lembro. Fui um bebê de mamadeira; não me lembro disso. Não vale a pena lembrar. Em conseqüência, tenho olhado para os seios e os admirado, desde então. Diga-me, alguma de vocês, ao se lembrar da amamentação, pode se lembrar de qual de suas mães estava dando de mamar?

— Naturalmente! — disse Lorelei desdenhosamente. — Mamãe Ishtar tem seios grandes...

— ... e mamãe Hamadríade tem seios muito menores, mesmo quando estão cheios de leite...

— Mas ela dava exatamente a mesma quantidade de leite.

— De sabor diferente, porém, Era bom mudar a cada refeição. Variedade.

— Mas gostávamos de ambos os sabores! Conte a ele, Laz.

— Basta. Vocês chegaram aonde eu queria. Justin, estas garotas eram autoconscientes e conscientes das outras pessoas, de suas mães pelo menos, numa idade em que um bebê de creche é apenas um glóbulo pastoso... o que diz alguma coisa sobre os motivos por que as creches nunca funcionaram bem. Quero o contraponto: Minerva, de que é que você se lembra quando era um clone não-despertado?

— Ora, de nada, Lazarus. Bem, alguns sonhos estranhos quando estava me colocando (colocando minhas memórias escolhidas) dentro do meu novo eu, este. Mas não comecei isso até Ishtar dizer que o clone estava suficientemente grande. E não foi senão pouco antes de retirar-me do meu antigo eu e Ishtar me acordar. Isso não pode ser instantâneo, Justin; um cérebro de proteína não absorve os dados à velocidade de um computador; Ishtar me fez ser muito lenta e cuidadosa. Depois, por um curto espaço de tempo (um curto espaço de tempo humano), fiquei nos dois lugares, no computador e no crânio; em seguida, entreguei o computador e deixei-o transformar-se em Palas Atena, e Ishtar me acordou. Mas, Lazarus, um clone in vitro não é consciente; é como um feto no útero. Não há nenhum estímulo. Correção: há um estímulo mínimo, e nada que deixe uma pista permanente de memória. A menos que se contem os relatórios de regressão sob hipnose.

— Não há necessidade de contá-los — replicou Lazarus. — Verdadeiros ou falsos, esses casos são irrelevantes. O contraponto relevante é "estímulo mínimo". Querida, aqueles computadores grandes com potencial de consciência mas sem autoconsciência são assim porque ninguém se deu ao trabalho de amar aquelas pobres coisas. Isso é tudo. Bebês ou computadores grandes... eles se tornam conscientes ao receber uma grande quantidade de atenção pessoal. De "amor", como é chamado geralmente. Minerva, essa teoria combina com os seus anos anteriores?

Minerva ficou sobriamente pensativa.

— Isso foi cerca de um século atrás, em tempo humano... digamos um milhão de vezes isso, em tempo de computador. Sei, pelos registros, que fui montada alguns anos antes de Ira assumir o cargo. Mas as lembranças pessoais mais antigas que tenho (e essas lembranças eu guardei e não deixei em Atena ou no computador de Nova Roma), a mais antiga de que posso lembrar-me era esperar ansiosa e alegremente pela próxima vez em que Ira falasse comigo.

— Não preciso insistir no ponto — afirmou Lazarus. — A gente dá o seio aos bebês, faz cócegas nos dedos dos pés deles, fala com eles, sopra nos seus umbigos e os faz rir. Os computadores não têm umbigo, mas a atenção funciona da mesma forma com eles. Justin, Minerva me disse que não deixou nada dela no computador sob o palácio.

— Isso é correto. Deixei-o intacto como computador e programado para todos os seus deveres... mas não me atrevi a deixar qualquer lembrança pessoal, qualquer parte do eu, não podia deixá-lo lembrar-se de que certa ocasião fora Minerva; isso não teria sido justo para com ele. Lazarus me preveniu, e tive muito cuidado, verificando todos os bilhões de terminais e limpando-os quando necessário.

— Perdi uma parte de alguma forma — disse Justin Foote. — Você fez isto em Nova Roma... mas foi acordada aqui apenas há três anos?

— Três anos maravilhosos! Você compreende...

— Deixe-me interrompê-la, querida; contarei a ele a trapaça. Mas primeiro... Justin, você teve contato com o computador executivo de Nova Roma desde que emigramos? Naturalmente que teve... mas você estava no escritório da Madame Presidenta Temporária quando ela o estava usando?

— Ah, sim, várias vezes. Ontem mesmo... não, quero dizer o ontem antes de eu partir; fico me esquecendo de que perdi o tempo da viagem.

— Que nome ela usa quando fala com ele?

— Acho que não usa nenhum nome. Estou quase certo de que não usa.

— Ah, pobrezinho!

— Não, Minerva — disse Lazarus calmamente. — Você deixou-o com boa saúde; ele simplesmente não acordará até ter uma patroa, ou um patrão, que o aprecie. O que talvez não demore — acrescentou ele sombriamente.

— Pode ser a qualquer momento — confirmou Justin Foote. — Lazarus, aquela velha... ah!... cancele isso. Arabelle adora estar em evidência. Comparece a reuniões públicas, aparece no Coliseu. Levanta-se e acena com o lenço. Parece estranho, após a maneira calma como Ira dirigiu as coisas.

— Compreendo. Um alvo imóvel. Sete a dois como ela será assassinada nos próximos cinco anos.

— Nada de apostas. Sou um estatístico, Lazarus.

— Realmente. Está bem... Trapaças. Uma porção delas. Ishtar montou uma Clínica Howard auxiliar no palácio. Sua desculpa: eu, o Sênior. Mas é um disfarce para uma bio-instalação muito mais extensa. Minerva escolheu seus pais; Ishtar roubou os tecidos e falsificou alguns registros. Enquanto isso, nossa amiga magrela, minha filha Minerva...

— Ela não é magrela! Ela tem o corpo certo para a altura, o tipo e a bio-idade!

— ... e com curvas deliciosas!

— ... tinha duplicado o seu eu de computadora num porão do meu iate Dora, colocando o contrato em meu nome e debitando-o a mim; ninguém se atreveu a perguntar por que o Sênior (algumas vantagens da idade, especialmente entre os Howards) queria um computador enorme num iate que já tinha um dos computadores mais sofisticados do céu. Enquanto estava lá na minha cobertura emprestada, onde não era permitida a ida de ninguém, além de uma curta lista tão desonesta quanto eu, um clone estava crescendo numa instalação montada num quarto que eu não usava.

"Chegada a hora de emigrar, uma caixa muito grande, contendo o que era então um clone muito pequeno, vai para o porto celeste marcada como parte da minha bagagem pessoal (esta bagagem ficava entre nós, naturalmente) e é carregada para dentro do Dora sem inspeção, sendo essa uma prerrogativa de ser presidente... porque, como vocês podem lembrar-se, não entreguei o martelo de juiz de volta a Arabelle até os nossos transportes terem decolado e eu estar prestes a subir com a nave eu mesmo, com Ira e o resto do meu grupo pessoal a bordo.

"Enquanto estou levando o clone para bordo, Minerva se retira da computadora executiva e está segura e confortável num porão do Dora... com as suas entranhas atulhadas com todos os tipos de dados da Grande Biblioteca e todos os registros da Clínica Howard, inclusive o material secreto e confidencial. Uma extravagância muito satisfatória, Justin, o divertimento melhor, mais limpo e ilegal que já tive desde que roubei a Novas Fronteiras. Mas estou contando isto a você não para me vangloriar, ou não muito, mas para perguntar se fomos tão espertos quanto achamos que fomos. Algum boato? Você desconfiou de alguma coisa errada? E Arabelle?"

— Tenho certeza de que Arabelle não suspeita. Nem ouvi dizer que Nelly Hildegarde tenha rompido qualquer vaso sangüíneo. Hum, eu desconfiei de uma coisa.

— Realmente. Onde falhamos?

— Dificilmente essa é a palavra certa, Lazarus. Minerva, quando tive ocasião de consultar você enquanto Ira era Presidente Temporário, como falávamos?

— Ora, você foi sempre muito amável, Justin. Sempre me dizia por que queria alguma coisa, em vez de me dizer simplesmente para consegui-la. Você conversava, também; nunca tinha pressa demais em ser agradável. É por isso que me lembro de você com tanto carinho.

— Foi por isso, Lazarus, que senti o cheiro de algo morto atrás da tapeçaria. Você e seu grupo haviam partido havia cerca de uma semana quando eu quis alguma coisa da computadora executiva. Quando se tem uma velha amiga com uma voz agradável... sua voz está inalterada, Minerva; eu devia tê-la reconhecido... mas eu estava deslumbrado pela sua aparência. Quando você chama esta velha amiga e a resposta vem numa voz monótona, mecânica... e qualquer desvio da linguagem da programação é respondido por: "PROGRAMA NULO... REPITA... AGUARDANDO PROGRAMA", então você sabe que uma velha amiga está morta. — Ele sorriu para a garota entre eles. — Assim, não posso dizer a você como estou encantado em saber que a minha velha amiga renasceu como uma moça encantadora.

Minerva apertou as mãos dele, corou ligeiramente e não disse nada.

— Hum... Justin, você comentou isso com alguém?

— Ancestral, acha que sou um tolo? Cuido da minha própria vida.

— Desculpe, mais ou menos grau 2. Não, você não é um tolo, a menos que volte e vá trabalhar para a velha megera.

— Quando é que a próxima leva de imigrantes virá nesta direção? Odeio desperdiçar o trabalho que fiz sobre a sua vida, e odiaria abandonar minha biblioteca pessoal.

— Bem, senhor, não se pode dizer quando passará um bonde a esta hora da noite. Discutirei isso mais tarde. — Lazarus acrescentou: — Lá está a nossa casa, em frente.

Justin Foote olhou, enxergou um edifício parcialmente visível através das árvores e virou-se para trás a fim de falar com Minerva.

— Uma coisa que você disse antes, prima, eu não compreendi. Você disse "Devo-lhe tanto". Se fui amável com você, em Nova Roma, quero dizer, você foi pelo menos igualmente amável comigo. Provavelmente o débito é no outro sentido; você foi sempre muito prestativa.

Em vez de responder, ela olhou para Lazarus. Este disse:

— Assunto seu, minha querida. Minerva respirou fundo, depois disse:

— Pretendo dar a vinte e três dos meus filhos os nomes dos meus vinte e três pais.

— É mesmo? Isso parece muito generoso e apropriado.

— Você não é meu primo, Justin... você é meu pai. Um deles.

 

Variações sobre um tema

XIV

Bacanália

Depois que a pista através das árvores vorazes na extremidade norte de Boondock vira para a direita, divisa-se a casa de Lazarus Long. Mal a notei, porém, quando a vi pela primeira vez; estava estupidificado demais com uma afirmação feita por Minerva Long. Eu, seu pai? Eu?

— Feche a boca, filho — disse o Sênior. — Você está provocando corrente de ar. Querida, você o assustou.

— Ah, meu Deus!

— Agora deixe de parecer uma corça assustada, ou serei forçado a segurar seu nariz e administrar-lhe cinqüenta gramas de álcool etílico de oitenta graus disfarçado em suco de frutas. Você não fez nada errado. Justin, você se interessa por álcool etílico disfarçado?

— Sim — concordei ardentemente. — Lembro-me de uma ocasião na minha mocidade quando isso e uma outra coisa eram tudo quanto me interessava.

— Se a outra coisa não eram mulheres, descobriremos um cubículo monástico onde você possa beber em paz. Mas eram... eu o conheço mais do que você pensa. Está bem, teremos uma libação ou seis. Não com essas duas, elas são bêbadas potenciais.

— Caluniador...

— ... embora lamentavelmente verdadeiro...

— ... mas fizemos isso apenas uma vez...

— ... e não faremos outra vez!

— Não prometam demais, garotas; vocês podem embebedar-se sem perceber. É melhor conhecer a própria resistência do que ser traído pela ignorância. Cresçam, aumentem um pouco de peso, e serão capazes de enfrentar isso. Ou Ishtar confundiu os genes de vocês, o que não aconteceu. Agora, quanto a esta outra questão, Justin. Sim, você é um dos pais de Minerva... e isso é uma recomendação muito alta, porque aqueles vinte e três pares de cromossomos foram retirados de tecidos de milhares de pessoas superiores, usando uma matemática espantosa para cuidar da multiplicidade de variáveis, mais o conhecimento de genética de Ishtar e alguns conselhos desnecessários de minha parte, antes que esta queridinha conseguisse a mistura precisa que desejava ser.

Comecei a estabelecer o problema-tipo em minha mente — sim, esse seria um problema difícil, extremamente mais difícil do que o problema genético comum de aconselhar um homem e uma mulher — depois desisti porque tive a encantadora resposta pela mão esquerda dela. Lazarus ainda estava falando:

— Minerva podia ter sido homem, com dois metros de altura, pesando cem quilos, com a constituição de Joe Colossus, e amoroso como um mulo garanhão. Em vez disso, ela preferiu ser o que é: magra, mulher, tímida... não tenho certeza se ela preferiu este último. Preferiu, querida?

— Não, Lazarus; ninguém sabe que genes controlam isso. Acho que o herdei de Hamadríade.

— Acho que você o herdou de uma computadora que eu conhecia... e trouxe consigo tudo quanto havia, porque Atena certamente não é tímida. Não importa. Alguns dos pais-doadores de Minerva estão mortos; alguns estão vivos, mas ignoram que um pedaço de tecido de um clone em estase ou de um banco de tecidos vivos foi tomado emprestado... como no seu caso. Alguns sabem que são pais-doadores... eu, por exemplo, e você ouviu mencionar Hamadríade. Você conhecerá outros, estando alguns em Tertius, onde isso não é segredo. Mas a consangüinidade não é próxima em relação a ninguém. Um vinte e três avós? Os conselheiros genéticos não passariam isso por um computador; é um risco aceitável. Mais o fato de nenhum de nós, pais-doadores de Minerva, ter qualquer esqueleto conhecido pendurado em nossas árvores genealógicas. Você pode ter filhos com ela em segurança; e eu também.

— Mas você me recusou! — Minerva me espantou por causa da veemência com que acusou Lazarus. Por um momento ela não foi tímida; seus olhos faiscaram.

— Ora, ora, querida. Você estava apenas há um ano fora do tubo de ensaio e não completamente crescida, embora Ishtar forçasse você a menstruar ainda in vitro. Pergunte-me em outra ocasião; pode ser que eu a espante.

— "Espante" ou surpreenda?

— Esqueça essa velha piada. Justin, eu simplesmente quis deixar claro que o seu parentesco com Minerva, embora bastante íntimo a ponto de fazer Minerva ficar sentimental, é realmente tão pequeno que você mal se qualifica como um "primo beijoqueiro".

— Estou muito sentimental quanto a isso — confessei ao Sênior. — Muito satisfeito e profundamente honrado... embora não possa imaginar por que fui escolhido.

— Se você quiser saber que par de cromossomos foi tirado de você, e por quê, é melhor perguntar a Ishtar e mandá-la consultar Atena; duvido de que Minerva ainda saiba.

— Mas eu sei; guardei aquelas memórias. Justin, eu queria conservar alguma capacidade em matemática. Era uma escolha entre você e o professor Owens, de Libby... então escolhi você; você é meu amigo.

(Bem, eu respeito Jake Hardy-Owens; sou apenas um matemático aplicado, ele é um teórico brilhante.)

— Quaisquer que sejam seus motivos, querida prima beijoqueira, estou encantado por me haver escolhido como um dos seus pais-doadores.

— Aterrado, comodoro! — anunciou uma das ruivas duplicadas, Lápis-Lazúli, quando o pequeno barco parou, batendo com força. (Parecia um trenó de fazenda, e fiquei surpreso ao vê-lo numa colônia nova.)

— Obrigado, capita — respondeu Lazarus.

As gêmeas saltaram para fora; o Sênior e eu ajudamos Minerva a sair — uma ajuda desnecessária, que ela aceitou com graciosa dignidade, sendo esse outro aspecto da vida colonial que me surpreendeu, porque Nova Roma era bastante avara nessas cerimônias arcaicas. (Notei repetidas vezes que os boondocks eram não só mais formalmente amáveis, como mais casualmente à vontade nesse sentido do que os secundianos. Suponho que as minhas idéias da vida na fronteira se tenham alimentado demais em romances: homens rústicos e barbados repelindo animais perigosos, mulas puxando carroças cobertas em direção a horizontes distantes.)

— Capita — disse Lazúli —, Humpty Dumpty... vá Para a cama! — O barco afastou-se, bamboleando; as garotinhas se reuniram a nós, uma segurando a minha mão livre, e a outra a mão livre do Sênior, com Minerva entre nós. Estas sardentas de cabelos de fogo teriam tido toda a minha atenção se Minerva não estivesse lá. Não gosto compulsiva-mente de crianças; alguns jovens me parecem bastante venenosos, especialmente os precoces. No caso delas, porém, eu achava sua solene precocidade encantadora, em vez de irritante... e ver as feições do Sênior, ríspidas em vez de bonitas e com aquele nariz grande demais, inconfundivelmente reproduzido mas transformado em feições atraentes de garotas... bem, se eu estivesse sozinho, teria rido com prazer.

 

— Esperem um momento — disse eu, e segurei a mão de Lorelei. Com isso, fiz com que todos parassem, enquanto eu olhava outra vez. — Lazarus, quem é o arquiteto?

— Não sei — respondeu ele. — Morreu há mais de quatro mil anos. O original pertenceu ao chefe político de Pompéia, uma cidade destruída há mais ou menos o mesmo tempo. Vi um modelo dela, restaurado, num museu de um lugar chamado Denver, e tirei fotografias; ele me agradou. Essas fotografias já se foram há muito tempo, mas verificou-se que, quando tentei descrevê-lo para Atena, ela possuía uma informação, na seção histórica das suas entranhas, sobre as ruínas dessa mesma casa... e dela, e da minha descrição, ela projetou esta versão. Algumas modificações sem importância, nada que mudasse suas proporções harmoniosas. Depois Atena construiu-a, usando extensões e ligações de rádio. Ela é prática para este clima; o tempo aqui é muito parecido com o de Pompéia, e eu prefiro uma casa voltada para dentro, para um pátio. É mais segura, mesmo num lugar tão seguro como este.

— A propósito, onde está Atena? A própria computadora principal, quero dizer.

— Aqui. Ela ainda estava no Dora quando construiu isto; agora está debaixo da casa. Ela construiu seu lar subterrâneo primeiro, depois, construiu nossa casa em cima dele.

— Uma computadora prefere sentir-se segura — disse Minerva simplesmente — e perto do seu próprio pessoal. Lazarus... desculpe-me, querido, mas você inverteu uma seqüência de tempo; isso foi há mais de três anos.

— Ah, inverti realmente. Minerva, quando você tiver vivido tanto quanto eu, e viverá, você se verá invertendo as seqüências do tempo interminavelmente, um contratempo da condição de carne e osso que você tem que aceitar quando dá o mergulho. Correção, Justin... "Minerva", não "Atena".

— Contudo foi Atena que o construiu... agora — acrescentou Minerva —, já que o planejamento e os detalhes desta construção e outras são coisas que deixei em Atena, onde elas devem estar, e separei apenas uma memória simplificada de tê-la construído... eu queria lembrar-me pelo menos disso.

— Quem quer que a tenha construído — disse eu —, é linda. — Fiquei perturbado de repente. Uma coisa é aceitar intelectualmente a idéia espantosa de que uma jovem tenha tido uma vida anterior como computadora... e mesmo aceitar que se tenha trabalhado com essa computadora anos atrás e a anos-luz de distância. Mas esta discussão me trouxe, de repente, a crença emocional de que esta encantadora moça, com o seu braço cálido enfiado no meu, havia sido na realidade uma computadora há tão pouco tempo, que havia construído esta nova casa... enquanto era computadora. Isso me abalou... embora eu seja um velho historiógrafo, e minha capacidade de me espantar tenha sido embotada mesmo antes do meu primeiro rejuvenescimento.

 

Entramos, e minha perturbação foi dissipada pela acolhida. Todos nós ganhamos beijos — duas jovens bonitas, uma das quais reconheci ao ouvir seu nome, a filha de Ira, Hamadríade, e ela se parecia com ele; a outra, uma loura escultural cujo nome, Ishtar, me era familiar pela conversa, e um rapaz tão bonito quanto as mulheres e que parecia familiar, embora não pudesse identificá-lo. Até as gêmeas de cabelos de fogo insistiram em beijar-me, já que não me haviam saudado dessa maneira anteriormente.

Em Boondock, o beijo de saudação não é o beijinho ritual que se dá em Nova Roma; até as gêmeas me beijaram de uma maneira que me deixou certo do sexo delas — já ganhei beijos mais frios de mulheres crescidas cujas intenções eram diretas e imediatas. Mas o rapaz, apresentado como "Galahad", me espantou. Ele me apertou nos braços, com beijos no rosto seguidos por um beijo na minha boca digno de um Ganimedes [9] — o que me surpreendeu, mas tentei corresponder o melhor que pude.

Em vez de me soltar, ele bateu com força nas minhas costas e disse:

— Justin, dá cócegas na minha raiz vê-lo novamente! Ah, isto é maravilhoso!

Afastei o meu rosto a fim de olhar para o dele. Devo ter ficado confuso, porque ele piscou e depois disse, magoado:

— Ish, orgulhei-me cedo demais! Hamaquerida, arranje-me uma toalha, estou chorando. Ele esqueceu-se de mim... depois de todas as coisas que disse.

— Obadiah Jones — disse eu —, o que é que você está fazendo aqui?

— Chorando. Sendo humilhado diante de minha família.

Não sei há quanto tempo não o via. Devia fazer mais de um século, já que fazia esse tempo eu deixara o campus Howard. Ele era, então, um jovem brilhante, especialista em culturas antigas, e tinha um senso de humor cheio de malícia. Lembrei-me, depois de vasculhar a memória, de ter partilhado uma Sete Horas com ele e duas outras sábias, que haviam ficado muito felizes com isso — mas não pude me lembrar de suas fisionomias nem de quem eram; o que podia lembrar era da sua companhia brincalhona, alegre e turbulenta.

— Obadiah — disse eu severamente —, por que você está se chamando Galahad? Está se escondendo da polícia outra vez? Lazarus, estou chocado de encontrar este, hã, machão em sua casa... tranque as suas filhas!

— Ah, esse nome! — disse ele com voz entrecortada. — Não o repita, Justin. Eles não o conhecem. Quando me reformei mudei de nome. Você não vai me denunciar? Prometa-me, querido! — De repente ele sorriu e disse em voz animada: — Venha para o átrio e vamos encher você de rum. Lazi, quem está de serviço?

— Lori. Dia par. Mas vou ajudar. Rum puro?

— É melhor temperá-lo. Quero acrescentar as boas-vindas que os Bórgias costumavam dar aos velhos amigos.

— Certamente, tio carinhoso. Quem são os Bórgias?

— Uma família dos maiores dias da ascensão e queda da Velha Terra, torrão de açúcar. Os Howards de sua época. Muito afáveis ao receber seus convidados. Eu descendo deles, e seus segredos me foram transmitidos por tradição oral.

— Laz — disse Lazarus —, peça a Atena um relatório minucioso sobre os Bórgias antes de preparar o drinque para Justin.

— Compreendo; lá vai ele outra vez...

— ... então faremos cócegas nele...

— ... e sopraremos em suas orelhas...

— ... até ele gritar Pax...

— ... e prometer Ventas...

— ... ele não é problema. Venha, Lazi.

 

Achei a aldeia de Boondock agradavelmente pouco impressionante, mais agradável e menos impressionante do que havia esperado. Ira e Lazarus haviam aceito apenas sete mil em sua primeira leva de candidatos, que montava a mais de noventa mil; portanto, a população atual de Tertius não podia estar muito acima de dez mil habitantes, e era, na verdade, ligeiramente menor.

Boondock parecia ter apenas algumas centenas de pessoas e estava concentrada em alguns edifícios pequenos para fins públicos e semipúblicos, estando a maioria dos colonos espalhados pelo campo. A casa de Lazarus Long era de longe a estrutura mais impressionante que eu já havia visto — sem contar o grande cone achatado do iate do Sênior e o volume muito maior de um cargueiro robô espacial, no campo celeste, onde o meu paquete havia aterrado. (O campo celeste era um lugar plano de alguns quilômetros de largura; não se podia chamá-lo de porto. Não havia nenhum depósito ali. Devia ter um autofarol, já que aterrei com segurança; eu não o vi.)

Esta instalação rudimentar não me havia preparado para a casa do Sênior. Suas linhas e sua planta eram simples; aquele romano morto havia muito tempo escolhera um bom projetista. Era um jardim murado, resumindo-se a própria casa a seus quatro muros. Mas tinha dois andares, e cada um podia dividir-se, pareceu-me, em doze ou até dezesseis quartos grandes, mais os espaços auxiliares habituais. Vinte e quatro ou mais quartos para uma família de oito? O rico mais espalhafatoso de Nova Roma podia exibir o ego em tal espaço, mas isto parecia pouco apropriado numa colônia nova, bem como fora de tom com o que eu havia aprendido em minha longa pesquisa das vidas do Sênior.

Simples. Metade do edifício era destinada a uma clínica de rejuvenescimento, uma clínica de terapia e uma enfermaria; tinha-se acesso a elas pelo vestíbulo, sem passar pela parte íntima da casa. O número de aposentos familiares que restava era indefinido; a maioria das paredes internas era removível. A Clínica Howard e as instalações médicas poderiam ser mudadas para um lugar próximo quando a colônia precisasse de instalações maiores, quando o tamanho da família do Sênior exigisse mais espaço doméstico.

(Tive sorte porque, ao chegar, nenhum cliente estava sendo rejuvenescido, nenhum paciente estava na enfermaria — ou a maioria dos adultos estaria ocupada.)

O tamanho da sua família parecia tão vago quanto o número de quartos. Pensei que fossem oito — três homens: o Sênior, Ira e Galahad; três mulheres: Ishtar, Hamadríade e Minerva; duas meninas: Lorelei Lee e Lápis-Lazúli — mas eu não sabia da existência de duas meninas começando a andar, e um menino pequeno. Além disso, não fui nem o primeiro nem o último a ser instado a se mudar para lá e ficar quanto tempo desejasse. Se essa estada era na qualidade de convidado ou de membro da família do Sênior, era algo que podia também não ficar claro para um estranho.

Além disso, os parentescos dentro da família eram vagos. Os colonos são sempre famílias; um colono sozinho é uma contradição. Mas todos os da colônia Tertius eram Howards, e nós, Howards, tínhamos adotado todos os tipos de casamento, acho eu, exceto a monogamia pela vida inteira.

Mas Tertius não tem nenhuma lei sobre o casamento; o Sênior não as considera necessárias. As poucas leis existentes estão no contrato de emigração, redigido em conjunto por Ira e Lazarus. Contém os compromissos habituais sobre o estabelecimento das fazendas, sendo o líder da colônia árbitro absoluto até o momento em que renunciar. Mas não diz uma única palavra sobre casamento e parentesco. Os colonos registram seus filhos; os Howards sempre fazem isso — neste caso, com a computadora Atena como delegada dos arquivos. Ao rever tais registros, porém, descobri que o parentesco dos filhos era expresso em códigos de classificação genética, não pelos casamentos e pela ascendência putativa. Os geneticistas das Famílias vinham insistindo neste sistema havia várias gerações (e eu concordo), mas ele torna o trabalho do genealogista mais difícil, especialmente se os casamentos não tiverem sido absolutamente registrados, como era o caso algumas vezes.

Encontrei um casal com onze filhos, seis dele, cinco dela, nenhum deles. Compreendi isso quando li seus códigos — totalmente incompatíveis. Conheci-os mais tarde, uma bela família que vivia numa fazenda próspera, e não havia nenhuma sugestão de que o enxame de filhos não fosse senão "deles".

A família do Sênior, porém, era mais vaga ainda. A ascendência genética em cada caso era uma questão de registro, certamente — mas quem era casado com quem?

O banheiro deles era tão "decadente" como fora prometido; era uma sala de descanso, bem como de reanimação, e planejada para o relaxamento e diversão da família. Estendia-se por todo um lado do andar térreo, e suas paredes podiam ser recolhidas a fim de que se abrisse para o jardim quando fazia tempo bom — como naquele dia, bastante quente.

Possuía tudo que um sibarita invejoso poderia desejar: uma fonte no centro, combinando com a fonte do jardim, e cada uma com beiras confortavelmente largas nas quais se podia sentar enquanto se banhava os pés cansados e se apreciava um drinque; uma sauna num dos cantos; um enorme chuveiro na outra extremidade, com espaço para vários ciclos, a fim de ser desfrutado concomitantemente, sem esperar a vez; um longo tanque de imersão com profundidade até os joelhos na extremidade azul, e até o queixo na vermelha, flanqueado por duas banheiras confortáveis para duas ou três pessoas; sofás para cochilar, para se refrescar, para suar e para conversar e ter contatos íntimos; uma mesa de cosméticos com um grande espelho duplo no qual se podia ver as costas tão prontamente como a frente, simplesmente pedindo a ajuda de Atena; um canto suficientemente grande para uma dúzia de pessoas no qual o acolchoado do chão era macio como uma cama, e com uma profusão de travesseiros grandes e pequenos, duros e macios; um balcão de refrescos pegado à cozinha — e, se deixei de citar alguma coisa, a omissão é minha, não dos projetistas. Todos os artigos mais comuns estavam naturalmente à mão.

Achei a iluminação aleatória, até que percebi que Atena a estava mudando interminavelmente de forma a não fazê-la incidir nos olhos de ninguém, enquanto mudava a intensidade da luz em todas as partes daquela grande sala para adaptá-la ao que estava acontecendo — luz forte para maquilagem, luz velada para o descanso, e assim por diante — e para combinar com as personalidades também; nossas pequenas ruivas estavam coroadas de luz, não importava o quanto pulassem por ali — e como pulavam!

Havia música suave lá e no jardim, ou a pedido em qualquer lugar, escolhida por Atena, a menos que alguém pedisse alguma coisa — parecia que ela armazenava em seu interior todas as músicas que haviam sido compostas. Ou ela podia harmonizar com as gêmeas enquanto continuava a tomar parte em três conversas diferentes em outras partes do salão de banho. Uma computadora autoconsciente da sua capacidade — suficientemente grande para dirigir Secundus — pode e muitas vezes deve falar simultaneamente em muitos lugares, mas eu nunca vira isso antes dessa maneira, a ponto de notar. Mas os computadores grandes muitas vezes não são membros da família.

O resto da casa era quase desautomatizado — uma questão de gosto, porque a capacidade de Atena estava em grande parte ociosa. Minha anfitriã cozinhava realmente, com Atena ajudando apenas para impedir que alguma coisa se queimasse e observando o tempo de outras maneiras — duas vezes, a conselho de Atena, Hamadríade deixou o salão de banho, uma vez com tanta pressa que fugiu nua e pingando, não parando sequer para pegar um roupão de banho.

Tomar banho com Lazi e Lori era realmente divertido; elas davam gritinhos, risos, e as frases eram interrompidas várias vezes antes de uma delas terminá-la (levantei a hipótese de as gêmeas se comunicarem por telepatia, e tive uma desconfiança incômoda de que algumas vezes liam os pensamentos das pessoas na presença destas... mas não estava ansioso para descobrir isso) — tudo encantadoramente tosco e infantilmente inocente.

Primeiro, elas me cobriram todo de sabão líquido perfumado e exigiram que eu fizesse o mesmo. Ameaçaram-me com um tremor de queixo quando resisti um pouco, e disseram em voz alta que o "tio carinhoso" (meu velho amigo Obadiah, agora Galahad) as lavava melhor, e todos sabiam como ele era preguiçoso — ou que eu não gostava delas o bastante para acariciá-las ensaboadas e que, se elas se casassem comigo, eu iria junto com elas em sua nave espacial; que, por enquanto, elas ainda eram virgens, embora não por falta de oportunidade, e não se preocupavam em nada com isso, porque tanto a mamãe Hamadríade como a mamãe Ishtar as estavam instruindo em sensualidade, elementar e avançada, e acelerariam o curso se eu por acaso quisesse casar-me com elas. "Não aceleraria, mamãe Hamadríade? — conte a ele!"

Hamadríade, a um metro de distância (ela estava ensaboando Ira), garantiu-nos que aceleraria, se elas pudessem convencer-me a casar-me com elas tão depressa. Presumi que as jovens me gozavam e que a mãe delas — uma de suas mães — estava aderindo à brincadeira. Fiquei imaginando, desde então, se perdera uma oportunidade de ouro. Lazarus estava a uma distância em que podia ouvir; não lhes disse para pararem de me provocar, aconselhou-me simplesmente a não oferecer a elas mais do que um contrato de dez anos, porque a capacidade de atenção delas era limitada — o que as deixou indignadas — e aconselhou-as, se pretendiam casar-se naquela noite, a cortarem as unhas dos pés primeiro, o que as deixou ainda mais indignadas. Em conseqüência, pararam de me dar banho para atacá-lo de ambos os lados.

Isto terminou com uma delas sob cada um dos meus braços e ainda lutando. Lazarus perguntou se eu aceitaria custódia ou se devia deixá-las cair na extremidade profunda do tanque. Aceitei a custódia, lavamo-nos uns aos outros no chuveiro e entramos no tanque de imersão juntos — e eu estava de pé dentro dele, com água até os ombros, de costas para o jardim e sustentando-as um pouco, com um braço em cada uma, porque seus pés não tocavam o fundo, quando alguém colocou as mãos sobre os meus olhos.

As gêmeas gritaram, em voz aguda, "tia Tammy!" e levitaram para fora da água enquanto eu me virava para olhar. Tamara Sperling — pensei que ela estivesse em Secundus, isolada no norte do país. Tamara, a Soberba, a Superlativa, a Única — na minha opinião (e de muitos outros), a maior artista de sua profissão. Estou certo de que não sou o único homem que preferiu continuar solteiro por um longo tempo quando ela deixou Nova Roma.

Ela havia chegado, viu que a família estava na sala de banho, deixou o vestido cair no jardim e entrou correndo, sem parar para tirar suas sandálias altas. Viu-me e cegou-me com suas mãos encantadoras.

Por quê? Ela era minha companheira de jantar — e (se eu pudesse confiar num diálogo que havia ouvido naquela tarde) desejava ser minha esposa convidada, se eu quisesse. Cinqüenta anos antes eu havia oferecido a ela qualquer contrato que quisesse aceitar, todas as vezes que me deixou visitá-la, e havia finalmente calado a boca apenas após ela me haver dito repetida, paciente e amavelmente que não pretendia mais ter filhos e não se casaria outra vez por qualquer outro motivo. Mas lá estava ela, rejuvenescida (não que isso importasse), parecendo gloriosamente moça e saudável — e uma colona. Fiquei imaginando quem seria o homem que a havia convencido a fazer isso. Invejei-o e imaginei que qualidades super-humanas ele possuía — mas, quaisquer que fossem elas, se Tamara quisesse partilhar uma cama comigo, mesmo por uma noite e apenas em memória dos velhos tempos, eu tomaria o que os deuses ofereciam e não me preocuparia com ele; a saúde dela é interminavelmente divisível. Tamara!... sinos repicam diante do seu nome.

Ela beijou as duas meninas molhadas, depois caiu de joelhos e me beijou.

Depois disse baixinho, roçando sua boca contra a minha:

— Meu querido, quando soube que você estava aqui, apressei-me. Mi laroona d'vashti meedth du?

— Sim! E qualquer outra noite que você tiver livre.

— Não tão depressa com o inglês, doreeth mi; estou aprendendo-o devagar, porque minha filha quer que os seus assistentes em rejuvenescimento falem uma língua desconhecida para a maioria dos clientes... e porque a nossa família fala tanto inglês como galacta.

— Você é agora rejuvenescedora? E tem uma filha aqui?

— Ishtar datter mi... você não sabia, ptsen mi-mi? Não, sou apenas enfermeira. Mas estou estudando, e Ishtar espera que eu seja técnica assistente em meio punhado de anos. Bom... não?

— É bom, suponho. Mas que perda para a arte!

— Lisondor — disse ela alegremente, despenteando meus cabelos molhados. — Mesmo rejuvenescida (você notou?), aqui a arte não dá para viver. Há muitas dispostas, mais agradáveis, mais moças e mais bonitas. — As gêmeas tinham ficado conosco, ouvindo quietas por um momento. Tamara estendeu ambos os braços e apertou-as contra si. — Exemplo: estas minhas netas. Ansiosas por ficarem altas para poderem deitar-se e ficarem baixas. — Ela beijou cada uma delas. — E elas têm cachos ruivos. Eu não.

Comecei a dizer que a idade e os cachos ruivos não importavam, depois percebi que um cumprimento feito a Tamara dessa forma podia fazer os queixos tremerem. Mas não precisei falar; o esguicho abrira-se outra vez.

— Tia Tammy, nós não estamos ansiosas...

— ... apenas com vontade e práticas...

— ... e de qualquer maneira ele não vai casar-se conosco .

— ... ele apenas brinca a respeito...

— ... e você não pode ser nossa avó...

— ... porque isso a tornaria avó do nosso amigo velho...

— ... o que é ilógico, impossível e ridículo...

— ... por isso você tem que ser a nossa "tia Tammy".

Achei a lógica das duas duplamente entimemática [10], se não um non sequitur[11] total, mas concordei com ela porque a idéia de Tamara ser avó do Sênior era impossível de aceitar.

Assim, mudei de assunto:

— Tamara querida, permita-me tirar suas sandálias e então você poderá reunir-se a nós no tanque. Ou devo sair e me enxugar?

Ela não precisou responder:

— Precisamos correr e nos aprontar...

— ... porque mamãe Hamadríade terminou seu rosto e começou os bicos dos seios...

— ... logo, se não andarmos depressa, teremos que jantar com as nossas peles completamente nuas...

— ... e para uma festa não ficaria bem...

— ... e é melhor vocês dois se apressarem também...

— ... ou o amigo velho atirará o jantar aos porcos. Desculpem!

Saí e deixei Tamara enxugar-me — era desnecessário, porque havia um jato de ar quente à mão. Mas, se Tamara me oferece qualquer coisa, minha resposta é "sim". Demorou um pouco; "perdemos" tempo em contatos e conversa. (Haverá melhor maneira de passar o tempo?)

Quando fiquei seco e imaginando se devia tentar a bancada dos cosméticos (não uso muitos cosméticos, apenas depilatórios), uma das gêmeas voltou correndo com uma roupa para mim, uma clâmide [12] azul. Ela disse, ofegante:

— Lazarus disse para experimentar isto ou dizer do que gostaria... mas que você não precisa usar coisa alguma se não quiser, porque a noite está quente e você é considerado da família por ser pai de Minerva, um deles.

Achei que as tinha identificado agora pelo padrão das sardas.

— Obrigado, Lorelei; vou usá-la. — Sempre achei que um guardanapo é suficiente para se jantar numa casa devidamente aquecida... ou ao ar livre, em particular, numa noite quente. Mas, como convidado de honra, embora "da família", eu não poderia ir nu, quando eles se estão dando ao trabalho de serem festivamente formais.

— Não há de quê, e sou a capita Lazúli. Mas não faz mal, ela sou eu. Com licença! — E desapareceu.

Vesti-me; saímos para o jardim e apanhamos o vestido de Tamara — e ele combinava com a túnica que eu usava. A mesma tonalidade de azul, quero dizer, com um sabor de Idade-de-Ouro-da-Grécia. O dela era como neblina azul. O corpete prendia-se ao ombro direito e descia diagonalmente até a cintura, à esquerda. A saia era mais comprida que a minha — mas isso era apropriado; os gregos da Idade de Ouro usavam as saias mais curtas do que as mulheres, em vez do inverso, que é mais comum em Secundus. (Eu não sabia ainda qual era o hábito em Tertius.) Nós combinávamos, e fiquei satisfeito.

Acidente? Os "acidentes" perto do Sênior eram geralmente planejados.

Comemos no jardim, um sofá para cada casal, dispostos em hexágono com a fonte no sexto lado. Atena fez a água dançar, bem como as luzes, para combinar com o que quer que estivesse tocando. Todas as mulheres exceto Tamara ajudaram com o primeiro serviço; Lori e Lazi bancaram Hebe [13] daí por diante — de qualquer maneira era impossível mantê-las pregadas ao sofá. Quando a festa começou, Ira estava com Minerva, Lazarus com Ishtar, Galahad com Hamadríade, e as gêmeas juntas. Mas as mulheres moviam-se em volta como peças de xadrez, partilhando um sofá, algumas garfadas, um pouco de carinho, depois mudando de lugar — todas exceto Tamara, cuja bunda redonda, firme e macia ficou pousada no meu colo a festa inteira. Foi mesmo bom ela não ter se mexido; não sou tímido, mas prefiro não exibir o reflexo galante a menos que precise dele imediatamente — e eu estava muito consciente do seu querido corpo quente contra o meu.

Mas, enquanto Lazarus começava o repasto com Ishtar, na vez seguinte em que olhei em sua direção era Minerva quem se reclinava contra ele — e na outra, uma das gêmeas, qual delas não estou certo. E assim por diante.

Não vou descrever a festa, exceto para dizer que não a esperava numa colônia jovem, e para acrescentar que paguei altos preços por uma comida inferior em restaurantes famosos na Nova Roma.

Todos, exceto Lazarus e suas irmãs, estavam usando trajes pseudogregos coloridos. Mas Lazarus estava vestido como um chefe escocês de dois e meio milênios atrás — saiote, gorro, bolsa de pele, punhal, antiga espada de dois gumes, etc. A espada ele deixou de lado, mas à mão, como se esperasse precisar dela. Posso afirmar seguramente que ele nunca teve direito de se vestir como um chefe pelas regras daqueles clãs há muito perdidos. Há dúvidas de que ele tenha direito de usar qualquer traje escocês. Certa vez ele disse que era "meio escocês e meio soda", mas em outra ocasião ele contou a Ira Weatheral que havia usado o saiote pela primeira vez numa ocasião (pouco antes do vôo da Novas Fronteiras) em que a moda era popular no seu país de origem — descobriu que gostava dele, e daí por diante usava o saiote quando os costumes locais permitiam.

Naquela noite ele foi ao extremo e acrescentou um bigode selvagem para combinar com os seus enfeites.

Suas irmãs gêmeas estavam vestidas exatamente como ele. Eu estava ainda imaginando se tudo aquilo era para me homenagear, para me impressionar ou para me divertir. Talvez os três.

 

Eu teria alegremente passado aquelas três horas tranqüilo, alimentando Tamara e deixando-a alimentar-me, banhado na paz de espírito produzida pelo seu contato, mas o círculo fechado de felicidade (e era fechado; a voz de Atena agora vinha da fonte) mostrou que o Sênior esperava que partilhássemos a companhia, falando e ouvindo por turnos, tão ritualmente como em qualquer salão dirigido pelo protocolo em Nova Roma. E assim fizemos, em harmonia partilhada e amável — com as gêmeas contribuindo com um tom de graça inesperada, mas geralmente conseguindo conter sua exuberância e sendo "adultas". O Sênior começou a coisa, usando Ira como Estimulador.

— Ira, o que diria você se um deus entrasse por aquele vestíbulo?

— Diria a ele para limpar os pés. Ishtar não permite deuses com pés sujos nesta casa.

— Mas todos os deuses têm pés de barro.

— Não foi isso o que você disse ontem.

— Isto não é ontem, Ira. Já vi mil deuses e todos tinham pés de barro. Todos foram impostores, em primeiro lugar — Lazarus contou com os dedos — para favorecer os feiticeiros; em segundo, para favorecer os reis; e em terceiro, sempre para favorecer os feiticeiros. Depois conheci o milésimo primeiro. — O Sênior fez uma causa.

Ira olhou para mim.

— Neste ponto supõe-se que eu diga, "Conte!" ou alguma insinceridade dessas, depois o resto de vocês concordará:

Sim, sim, Lazarus!", o que tem o seu mérito; o resto de nós teria pelo menos vinte minutos sem interrupção para beber sofregamente e em demasia.

"Mas vou enganá-lo. Ele está querendo contar como tratou os deuses da Jockaira apenas com uma espingarda de brinquedo e superioridade moral. Desde que esta mentira já está em suas memórias em quatro versões conflitantes, por que devemos ser sobrecarregados com uma quinta?"

— Não foi uma espingarda de brinquedo; foi uma espingarda Remington Mark 19, de carga completa, uma arma superior no seu tempo... e após eu os haver retalhado, o fedor era pior do que no Salão dos Hormônios na manhã seguinte ao dia de pagamento. E minha superioridade nunca é moral; consiste sempre em fazer primeiro, antes que ele faça a mim. Mas o ponto da história que Ira não me deixa contar é que aqueles palermas eram deuses verdadeiros, porque nem feiticeiros nem reis estavam gravados nos despojos; eram falsificados também. Aquelas pessoas bem vestidas eram propriedade, para benefício único de seus deuses (deuses no sentido de um homem poder ser deus para um cachorro), o que eu havia suspeitado quase da primeira vez, quando eles deixaram o pobre Slayton Ford fora de si e quase o mataram. Mas, da segunda vez, cerca de oitocentos ou novecentos anos mais tarde, Andy Libby e eu provamos que isso era assim. "Como? ", perguntarão vocês...

— Nós não perguntamos.

— Obrigado, Ira. Porque, depois de todo esse tempo, a Jockaira não havia mudado em nada. A língua, os costumes, as construções... estavam imutáveis. Isto pode acontecer apenas com animais domesticados. Um animal selvagem, tal como o homem, altera os seus hábitos segundo as circunstâncias; ele se ajusta. Muitas vezes pensei que gostaria de voltar e ver se as pessoas bem vestidas tinham se tornado selvagens após perderem seus donos. Ou elas simplesmente se deitaram e morreram? Mas eu não estava muito tentado a isso; Andy e eu tivemos sorte de sair daquele planeta ainda com as nossas gônadas, pela maneira como estavam latindo em nossos calcanhares.

— Compreende o que quero dizer, Justin? A versão número 3 tinha a Jockaira caindo em coma no momento em que os seus chefes foram queimados... e Libby absolutamente não aparece nessa versão.

— Papai Ira, você não compreende o amigo velho...

— ... ele não conta mentiras...

— ... ele é um artista criativo...

— ... que fala por parábolas...

— ... e emancipou aqueles Jabberwockies...

— ... que estavam cruelmente oprimidos.

— Justin — disse Ira Weatheral —, tive problemas para enfrentar um Lazarus Long. Mas três? Rendo-me. Venha cá, Lori, e deixe-me morder sua orelha. Minerva, minha adorada, deixe disso, lave suas lindas mãos, depois veja se Justin precisa de mais vinho. Justin, você é o único que tem notícias a dar. Quais são as notícias da Bolsa?

— Sempre em baixa. Se você possui participações em Secundus, é melhor dar-me instruções para o seu corretor. Lazarus, notei que você classificou o "homem" como animal selvagem...

— E é. Pode-se matá-lo, mas não se pode domá-lo. Os piores banhos de sangue da história decorrem das tentativas de domá-lo.

— Eu não estava discutindo isso, Ancestral. Sou um historiógrafo matemático; sou perito nisso. Mas chegaram notícias aqui do vôo da Vanguard? A Vanguard original, quero dizer... pré-Diáspora.

Lazarus endireitou-se tão de repente que quase atirou Ishtar fora do sofá. Ele segurou-a.

— Desculpe, querida. Justin... continue falando.

— Não tenciono falar propriamente da Vanguard...

— Quero notícias dela. Não ouço nenhuma objeção; assim, está resolvido. Fale, filho!

Tendo o protocolo do salão de festas desmoronado, eu falei, primeiro revendo um pouco de história antiga. Embora isso quase tenha sido esquecido, a Novas Fronteiras não foi a primeira nave estelar. Ela tinha uma irmã mais velha, a Vanguard, que partiu do sistema solar alguns anos antes da momentosa data em que Lazarus comandou a Novas Fronteiras. Ela se dirigia para a alfa de Centauro, mas nunca chegou lá — nenhum sinal de visita jamais foi encontrado no único planeta possível, um tipo terráqueo, em volta da alfa de Centauro A, a única estrela do tipo C daquele volume.

Mas a própria nave foi encontrada por acidente, em órbita aberta a uma longa distância de onde devia estar por qualquer suposição racional baseada em sua missão — descoberta há quase um século, e isto mostra as dificuldades da historiografia quando as naves são os meios mais rápidos de comunicação; esta história ecoou em Secundus através de quatro planetas coloniais antes de chegar aos arquivos — alguns anos após Lazarus deixar Nova Roma, alguns anos antes de eu ir para Boondock como correio (nominal) da Presidenta Temporária. Não que o atraso de um século importe, porque as notícias interessavam apenas aos especialistas antiquados. Para a maioria das pessoas era uma confirmação desinteressante de um pedacinho inconseqüente de história antiga.

Tudo dentro da Vanguard estava morto, enquanto a própria nave estava dormindo, seu conversor fechado automaticamente, sua atmosfera quase esgotada, seus registros tão destruídos, ilegíveis, incompletos ou ressecados a ponto de perturbar a gente. A Vanguard interessa apenas aos antiquários e semelhantes — embora ela continue um tesouro inesgotável para desviados tais como eu, se não a perdermos novamente. O espaço é profundo.

O interessante quanto à descoberta, porém, é que, quando o curso da Vanguard foi reconstituído balisticamente por computador, mostrou que ela havia passado perto de uma estrela do tipo do Sol sete séculos antes. Uma verificação daquele sistema revelou um planeta do tipo da Terra; descobriu-se ser habitado pelo Homo sapiens. Mas não da Diáspora. Da Vanguard.

— Lazarus, não há dúvida possível. Aqueles poucos milhares de selvagens naquele planeta (designado como "ilha Pitcairn" [14], o número do catálogo me escapa) descendem de alguns que chegaram lá, presumivelmente no barco da nave, sete séculos antes de serem encontrados. Ele reverteram á fase pré-civilizada de colheita de frutos, e, se o planeta, em vez da nave, tivesse sido descoberto primeiro, poderia ter-se iniciado outra daquelas histórias sobre uma raça de seres humanos não vindos da Velha Terra.

"Mas a gíria deles, introduzida num analisador-sintetizador lingüístico, reproduziu aquela versão de inglês que era a língua de trabalho da Vanguard. Vocabulário reduzido, novas palavras, sintaxe degenerada... mas a mesma língua."

— Os mitos deles Justin, os mitos deles! — pediu Galahad-Obadiah com insistência.

Fui forçado a admitir que não tinha tudo gravado em fita, mas prometi fazer uma cópia completa para ele e mandá-la pela primeira nave.

— Mas, Sênior, o interessante é que esses selvagens eram tão bravios e ferozes que, ao lidar com eles, foram mortos mais cientistas do que selvagens...

— Hurra para eles. Filho, aqueles selvagens estavam cuidando da própria vida em seu próprio planeta. Um intruso pode esperar o que quer que receba. Compete a ele manter-se em guarda.

— Suponho que sim. Três cientistas foram comidos antes de descobrirem como lidar com estes pseudo-aborígines. Isto é, por meio de robôs humanóides de controle remoto. Mas o ponto que eu queria acentuar não era sua ferocidade, mas sua inteligência. Acreditem-me ou não, por todos os testes que puderam ser usados, esses homens bravios, esses selvagens, mostraram-se superiores ao normal. Muito superiores. Pela curva do sino, eles se situam na gama dos "excepcionalmente dotados" e até dos "mais que gênios".

— Você espera que eu fique surpreso? Por quê?

— Bem... Selvagens. E provavelmente procriados em estreita consangüinidade.

— Você está me tentando, Justin; você me conhece bem... embora provavelmente Ira o tenha nomeado Estimulador. Está bem, vou morder a isca. "Selvagem" descreve uma condição cultural, não um grau de inteligência. Nem a endogamia estraga um conjunto de genes se as condições de sobrevivência forem extremas; já que você os descreve como canibais, eles provavelmente comem os membros defeituosos. Pelo estado em que se encontrava a nave, é justo supor que seus ancestrais tenham aterrado com pouco ou nada... provavelmente com as mãos nuas e um chapéu cheio de ignorância... caso em que apenas os mais capazes, os mais espertos, poderiam sobreviver. Justin, a tripulação daquela primeira nave tinha em média uma inteligência muito maior do que os Howards que fugiram na Novas Fronteiras; eles foram selecionados pela inteligência... ao passo que os Howards originais escolhidos foram selecionados apenas pela longevidade, não pelo poder mental. Os seus selvagens descenderam unicamente de gênios... depois, só Alá sabe por quantas provações passaram; os estúpidos morreram, ficando apenas os mais espertos para se reproduzirem. O que se pode concluir?

Admiti que havia feito uma pergunta tentadora, a fim de ver como ele responderia. O Sênior assentiu com a cabeça.

— Sei que você não é estúpido, filho; fiz Atena recapitular para mim os seus ancestrais. Mas quantas vezes tenho ficado espantado de ver como os moderadamente brilhantes e os moderadamente bem-informados (o que não descreve ninguém neste círculo feliz; portanto, ninguém precisa fingir modéstia), quantas vezes essas pessoas um tanto superiores têm problemas em enfrentar o velho problema da bolsa-de-seda-e-orelha-da-porca. Se a hereditariedade não fosse avassaladora-mente mais importante do que o ambiente, poder-se-ia ensinar cálculo a um cavalo.

"Na minha mocidade constituía um artigo de fé entre a elite intelectual auto-intitulada eles poderem ensinar cálculo a um cavalo... se começassem bastante cedo, gastassem bastante dinheiro, fornecessem ensino especial, tivessem uma paciência infinita e um cuidado constante de não magoar o seu ego eqüino. Eles eram tão sinceros que parecia uma ingratidão completa o cavalo persistir em ser um cavalo. Especialmente porque eles estavam certos... se "começar bastante cedo" for definido como um milhão de anos ou mais.

"Mas esses selvagens conseguirão; eles não podem deixar de vencer. O problema, invertido, é horrivelmente mais interessante. Justin, você sabe que os Howards mataram a Velha Terra?"

— Sei.

— Ora, ora, filho, você não deve responder de maneira a cortar a conversa... deixando-nos assim sem nada o que fazer senão ficar bêbados e fazer carinho nas garotas.

— Ótimo! — gritou Obadiah-Galahad. — Vamos a isso! — Ele estava com Minerva no momento; agarrou-a e virou-a de frente para ele. — Pequena qualquer-que-seja-o-seu-nome, quer dizer suas últimas palavras?

— Quero.

— "Quero" o quê?

— Apenas "quero". Essa é a minha última palavra.

— Galahad — disse Ishtar —, se você vai estuprar Minerva, arraste-a para longe da fonte. Quero ouvir o que Justin quer dizer com isso.

— Como posso estuprá-la se ela não luta? — queixou-se ele.

— Você sempre foi capaz de resolver esse problema. Mas faça isso em silêncio. Justin, estou chocada. Parece-me que fomos bastante generosos fornecendo novas tecnologias ao Velho Lar Terra... e não há muito mais que possamos dar a eles. O último transporte de emigrantes não voltou apenas meio lotado?

— Vou responder a isso — resmungou Lazarus. — Justin pode enfeitar a coisa. Não todos os Howards. Dois. Andy Libby forneceu a arma; eu dei o golpe de graça. As viagens espaciais mataram a Terra.

— Vovô, não compreendo. — Ishtar ficou perturbada.

— Ela me chama assim quando faço travessuras — confidenciou-me o Sênior. — É a sua maneira de bater em mim. Ish querida, você é jovem e amável, e passou sua vida estudando biologia, não história. A Terra estava condenada de qualquer maneira; as viagens espaciais apenas apressaram o processo. Em 2012 ela não servia para se viver... assim, passei o século seguinte em outro lugar, embora a outra propriedade do sistema solar esteja longe de ser atraente. Não vi a Europa ser destruída, perdi uma ditadura horrível em meu país de origem. Voltei quando as coisas pareciam toleráveis, descobri que não estavam... e foi então que os Howards tiveram que fugir.

"Mas as viagens espaciais não podem aliviar a pressão de um planeta que ficou superpovoado demais, nem mesmo com as naves de hoje, e provavelmente com qualquer nave futura... porque as pessoas estúpidas não deixarão as encostas do seu lar vulcânico, mesmo quando ele começa a soltar fumaça e ribombar. O que as viagens espaciais fazem é drenar os melhores cérebros: aqueles bastante espertos para verem a catástrofe antes que ela aconteça e com garra para pagarem o preço (abandonarem o lar, bens, amigos, parentes, tudo) e partir. Essa é uma fração minúscula de um por cento. Mas é o suficiente."

— É a curva de sino outra vez — disse eu a Ishtar. — Se, como acha Lazarus, e as estatísticas o apóiam, todas as migrações vêm principalmente da extremidade direita da curva de incidência normal da capacidade humana, então isso funciona como um mecanismo de seleção pelo qual o novo planeta mostrará uma curva de sino com um tipo de inteligência muito mais elevado do que a população de onde proveio... e o velho planeta terá uma média quase imperceptivelmente mais estúpida.

— Imperceptível exceto por uma coisa! — objetou Lazarus. — Essa fração minúscula que mal aparece estatisticamente é o cérebro. Lembro-me de um país que perdeu uma guerra importante por perseguir uma simples meia dúzia de gênios. A maioria das pessoas não sabe pensar, a maior parte das restantes não quer pensar, a pequena fração que pensa geralmente pode fazê-lo muito bem. A fração extremamente minúscula que pensa regularmente, com precisão, criativamente e sem auto-ilusão... a longo prazo estas são as únicas pessoas que contam... e são elas próprias que emigram quando é fisicamente possível fazê-lo.

"Como disse Justin, estatisticamente ela mal aparece. Mas qualitativamente ela faz toda a diferença. Corte a cabeça de uma galinha e ela não morrerá imediatamente; esvoaçará de um lado para outro mais energicamente do que nunca. Por algum tempo. Depois morrerá.

"Foi isso o que as viagens espaciais fizeram à Terra: cortaram sua cabeça. Durante dois mil anos seus melhores cérebros têm emigrado. O que restou está esvoaçando com mais dificuldade do que nunca... sem nenhum objetivo, e morrerá muito mais cedo. Em breve, acho eu. Não me sinto culpado por isso; não vejo nenhum pecado naqueles bastante espertos para escapar, se puderem fazê-lo... e o estertor da morte da Terra já era claro e forte no século XX, pelo tempo da Terra, quando eu era moço e as viagens espaciais mal tinham começado... nem mesmo começado em termos interestelares. Ela levou mais dois séculos e mais um pouco para deixar isso funcionando. Não posso contar a primeira migração dos Howards; ela foi involuntária, e eles não eram os melhores cérebros.

"A última migração Howard para Secundus foi mais importante; abalou alguns dos palermas e deixou-os para trás. As migrações não-Howard foram mais importantes ainda. Muitas vezes fiquei imaginando o que teria acontecido se não tivesse havido nenhuma restrição política contra a migração da China; os poucos chineses que atingiram as estrelas parecem sempre ser vencedores; desconfio que o chinês médio é mais esperto do que o resto dos descendentes da Terra.

"Não que a inclinação do olho ou a cor da pele importe hoje, ou mesmo importe no momento da verdade. Um dos primeiros Howards foi Robert C. M. Lee, de Richmond, Virgínia... alguém sabe seu nome originalmente?"

— Eu sei — respondi.

— É claro que você sabe, Justin; portanto, fique quieto... e isso inclui você, Atena. Alguém mais?

Ninguém respondeu; Lazarus continuou:

— Seu nome de nascimento era Lee Choy Moo; ele nasceu em Cingapura e seus pais vieram de Cantão, na China... e, de todas as pessoas na Novas Fronteiras, ele era um matemático que só perdia para Andy Libby.

— Santo Deus! — disse Hamadríade. — Eu descendo dele... mas não sabia que era um grande matemático.

— Você sabia que ele era chinês?

— Lazarus, não estou certa do que significa "chinês"; não estudei muito a história terrestre. Não é uma religião? Como "judeu"?

— Não exatamente, querida. A questão é que isso não importa mais. Só alguns sabem, e ninguém se importa com o fato de que o famoso Zaccur Barstow, meu sócio de crimes, era um quarto negro. Essa palavra significa alguma coisa para você, Hamaquerida? Não é uma religião.

— A palavra significa "preto"; assim, suponho que um dos seus avós seja da África.

— Isso mostra o que resulta de supor qualquer coisa a partir de um único dado. Dois dos avós de Zack, ambos mulatos, vieram de Los Angeles, minha terra natal. Já que a minha linhagem se misturou com a dele muito tempo atrás, provavelmente qualquer um de vocês pode invocar sua ascendência africana. O que é estatisticamente equivalente a afirmar descender de Carlos Magno. Já fui longe demais, e é hora de escolhermos um novo Estimulador e um novo Respondedor. As viagens espaciais arruinaram a Velha Terra... esse é um ponto de vista. O reverso da medalha, mais feliz e mais importante a longo prazo, é que isso melhorou a raça. Provavelmente a salvou também, mas que melhorou é certo. O homo sapiens é agora não só muito mais numeroso do que jamais o foi na Terra; é um animal melhor, mais esperto e mais eficiente de qualquer maneira mensurável. Além disso este Respondedor não fala; que algum outro continue. Lazi, pare de tentar fazer-me cócegas e vá chatear Galahad; Minerva precisa descansar.

— Lazarus — disse Ishtar —, só uma resposta, por favor. Uma coisa que você disse sobre os Howards me fez pensar. Você pareceu colocar toda a ênfase na inteligência. Você não considera importante a longevidade?

Fiquei espantado ao ver o mais velho homem vivo carrancudo por causa disso, custando a responder. Certamente essa era uma pergunta que ele havia resolvido em sua mente pelo menos mil anos antes. Tentei evitar a dúvida e descobri que não podia, na verdade, impedi-la.

— Ishtar, a única resposta verbal correta para isso é "sim e não"... o que quer dizer simplesmente que me falta linguagem para definir alguma coisa que é clara como cristal dentro de mim, e o tem sido há séculos. Mas aqui está parte da verdade: muito tempo atrás um vida-curta me provou que nós todos vivemos a mesma quantidade de tempo. — Ele relanceou os olhos para Minerva, ela respondeu ao seu olhar solenemente. — Porque todos nós vivemos agora. Ela... ele.. não estava defendendo aquela falácia de Georg Cantor [15], que deturpou a matemática pré-Libby por tanto tempo; hã, ele... estava afirmando uma verdade objetiva verificável. Cada indivíduo vive sua vida no presente, independentemente de como os outros possam medir essa vida em anos.

"Mas aqui está outra parte da verdade. A vida é longa demais quando o homem não a está gozando agora. Vocês se lembram de quando eu não estava, e quis acabar com ela. A sua habilidade (e velhacaria, minha querida, e não enrubesça) mudou isso, e saboreio o presente novamente. Mas talvez eu nunca tenha dito a vocês que me aproximei do meu primeiro rejuvenescimento com apreensões, com medo de que ele tornasse o meu corpo jovem, sem fazer o meu espírito rejuvenescer... e não se dêem ao trabalho de me dizer que "espírito" é uma palavra nula; sei que ela é indefinível, .. mas para mim significa alguma coisa.

"E aqui está ainda mais um pouco da verdade e tentarei falar sobre ela. Embora a vida longa possa ser um fardo, em grande parte ela é uma bênção. Dá tempo suficiente para aprender, tempo suficiente para pensar, tempo suficiente para não ter pressa, tempo suficiente para amar.

"Basta de assuntos sérios. Galahad, escolha um assunto leve e, Justin, esqueça a filosofia; já falei demais. Ishtar, minha querida, traga a sua longa e encantadora carcaça para cá, deite-se e deixe-me provê-la de conhaque; quero-a suficientemente relaxada para o que pretendo fazer com você mais tarde."

Ela veio prontamente até ele, parando apenas para beijar Ira em cumprimento a uma promessa. Depois disse baixinho, mas claramente, ao nosso Ancestral:

— Nosso amado, não é preciso conhaque para me tornar completamente disposta para o que quer que tenha em mente.

— Anestesia, mamãe Ishtar. Planejo mostrar a você uma coisa que a Grande Ana me ensinou e que não me atrevi a arriscar em todos estes anos. Pode ser que você não viva ate amanhã. Assustada?

— Ah, terrivelmente assustada! — Ela sorriu, preguiçosa e feliz.

Galahad cobriu a boca de Lápis-Lazúli com a mão; e a mordeu-o.

— Pare com isso, Laz. Vamos todos observar isso... pode ser novo.


 

Variações sobre um tema

XV

Ágape

Acordei devagar na manhã seguinte, espreguicei-me na cama e vivi novamente minha Bacanália de Boas-Vindas. Eu estava numa cama grande num quarto do andar térreo, com a parede do jardim ainda aberta, como estava quando o grupo foi para as camas. Não podia ouvir ninguém, embora (como me lembrava) Tamara e Ira tivessem estado comigo. Ou Ira nos havia visitado mais cedo?

Não importa, todos eles nos visitaram em algum momento antes de Atena cantar para dormirmos; parece que me lembrava de seis ou sete ao mesmo tempo naquela cama grande, contando Tamara e eu. Não, Tamara saiu uma vez, deixando-me à mercê das gêmeas tagarelas — que estavam quase quietas. Elas disseram que queriam garantir a mim que eu não teria que me casar com elas a fim de ser membro da família — de qualquer maneira, ficaram afastadas a maior parte do tempo — porque iam ser piratas quando fossem bastante grandes — mas ficar em terra metade do tempo — e abrir um bordel em cima de um salão de bilhar — e eu iria vê-las lá?

Elas tiveram que me explicar ambos os termos; depois cantaram para mim uma pequena canção que parecia em parte retórica e em parte inglês antigo, mas incluía ambos os termos. Beijei-as e prometi que, quando elas abrissem esse estúdio, eu seria o mais fiel admirador delas — promessa essa que não toe preocupou; mais ou menos nessa idade a maioria das moças (todas as minhas filhas) têm a ambição de se tornar grandes hetairas; poucas tentam esta arte, das mais exigentes — ou o fazem apenas pelo tempo suficiente para descobrir que não têm uma vocação verdadeira.

Achei que elas tinham mais probabilidade de se tornar piratas; as gêmeas univitelinas de Lazarus Long podiam descobrir uma maneira de fazer o crime compensar, apesar das profundidades enormes do espaço.

Minha Bacanália de Boas-Vindas havia-se estendido da festa para a cama com as diversões habituais, salvo que foram feitas em casa em vez dos dispendiosos (e muitas vezes monótonos) atos profissionais que uma anfitriã da moda em Nova Roma oferece. Lazarus e suas irmãs-filhas começaram-nas com o que pode ter sido uma autêntica dança popular escocesa (quem sabe, atualmente?): Lazarus dançando feroz e vigorosamente (depois de toda aquela comida e bebida!), suas duas cópias em miniatura mantendo o ritmo exatamente com ele — ao som agudo das gaitas de fole proporcionado por Atena... que eu não teria reconhecido se não fosse um amador de música antiga, bem como um profissional de história antiga. As moças continuaram com um número extra, uma dança de espadas, enquanto Lazarus fingia desmaiar de cansaço.

Ira, para espanto meu, apresentou-se como um mágico hábil. Pergunta: ele tinha essa habilidade durante todos aqueles anos em que dirigiu o planeta?

Galahad cantou uma balada com um virtuosismo profissional e grande alcance e controle, o que me espantou quase da mesma forma, porque parecia recordar-me de que ele costumava cantar sempre desafinado. Mas quando ele repetiu com um lenço enfiado na boca, percebi que tinha sido enganado. Atena tinha feito aquilo tudo. Depois ele se fingiu de morto com três viúvas lindas, Minerva, Hamadríade e Ishtar. Não vou descrever o diálogo, exceto para dizer que elas pareciam alegres em perdê-lo.

Tamara encerrou cantando Meus braços ainda o envolvem — atribuída com provas vagas ao Cantor Cego, mas antiga de qualquer maneira. Há muito tempo pensava nela como a Canção de Tamara e chorei de felicidade; não estava sozinho: todos choraram. As gêmeas se banharam em lágrimas, chorando alto... e, quando ela chegou àquela última linha, "... sempre que os gansos selvagens o trouxerem, amor, meus braços o apertarão com força", fiquei espantado de ver que as feições angulosas do Sênior estavam tão molhadas quanto as minhas.

Levantei-me, espiei em volta da alcova e refresquei-me o bastante para encarar outras pessoas. Saí para o jardim e encontrei Galahad. Beijei-o e aceitei uma feliz-manhã num copo gelado. Era suco de frutas recém-espremidas — uma ameaça para as papilas gustativas acostumadas a xícaras matinais "envenenadas" por vários processos químicos.

— Sou o cozinheiro esta manhã — disse ele —, por isso é melhor comer os seus ovos fritos ou cozidos. — Depois ele respondeu à pergunta que um hóspede não faz: — Se você tivesse acordado mais cedo, teria tido mais escolha; Lazarus afirma que não sei ferver água. Mas todos já foram embora.

— É mesmo?

— Si. Ira foi para o escritório... trabalhar, talvez dormir. Tamara voltou para os seus pacientes com um recado para você de que espera estar em casa esta noite... mas com uma palavra a Hamadríade para levá-lo para a cama, massagear os músculos de seu ombro e pô-lo para dormir cedo; por isso não estou certo de que ela espere voltar... não voltará se achar que seus pacientes precisam dela. Lazarus foi a algum lugar, e não se deve perguntar. Minerva está com as gêmeas, e a aula pode ser no Dora; muitas vezes é. Ishtar recebeu um chamado para encanar um braço quebrado numa fazenda ao norte daqui. Hamadríade levou os nossos filhos a um piquenique, para não perturbá-lo, seu devasso preguiçoso. Cozidos ou fritos?

Ele já os estava fritando; então respondi:

— Cozidos.

— Ótimo, comerei estes eu mesmo. Para agüentar até o almoço.

— Eu quis dizer "fritos".

— Então porei mais três, querido. Você vai ficar, não vai? Responda "sim" ou porei as gêmeas em cima de você.

— Galahad, eu quero...

— Então está combinado.

— ... mas há problemas. — Mudei de assunto. — Você disse "Hamadríade levou os nossos filhos para um piquenique..." Não conheci toda a sua família?

— Querido, não exibimos o nosso caçula no momento em que alguém põe os pés no vestíbulo, impondo-lhe assim o ônus de ficar insinceramente extático. Mas geralmente há alguém com eles; Lazarus tem idéias firmes sobre educação de crianças. Atena fica de olho e ouvido neles... mas não pode Pegá-los. Lazarus diz que uma criança amedrontada precisa ser segurada no colo e acariciada agora, não mais tarde. Ele acredita em bater na hora, também; isso nivela, nossos filhos não são nem mimados nem tímidos. Lazarus é especialmente rigoroso quanto a não deixar uma criança pequena acordar sozinha... portanto, agora você sabe por que o beijei dando boa-noite um pouco cedo. Para que Ishtar pudesse ajudar a mantê-lo acordado enquanto eu dormia com os nossos três mais novos.

— Você dorme realmente com eles?

— Bem... Quando Elf fica pulando em cima do meu estômago, isso me deixa inquieto. Mas ser mijado não me acorda... geralmente. O plantão de carinho não é mau; nós nos revezamos de forma que é só de nove em nove noites. Ou de dez em dez, se a gente opta por ficar. Mas isso pode mudar da noite para o dia. Suponha que tenhamos um cliente de rejuvenescimento... Um ou mais clientes põem Ishtar, Tamara, Hamadríade e a mim fora de circulação a maior parte do tempo. Acrescente que Lazarus pode partir logo que decida que Laz e Lor estejam crescidas. Depois suponha que todas as nossas queridas comecem a ter bebês.

Galahad sorriu para mim.

— Quanto tempo é preciso para quatro mulheres dispostas fazerem mais quatro bebês? Ou seis, quando as gêmeas entrarem no programa de produção, como ameaçam pelo menos duas vezes por semana? Justin querido, queremos que você fique, mas não será tudo como na noite passada. Se as responsabilidades da vida de família o preocupam, você estará melhor em Nova Roma, onde pode contratar pessoas para fazerem o que não lhe agrada fazer você mesmo.

— Galahad — disse eu seriamente —, pare de se empanturrar um momento, querido. Você não me assusta com pipi de criança. Eu estava levantando à noite para consolar bebês chorões cem anos antes de você nascer. Pretendo colonizar, pretendo casar-me novamente, pretendo criar filhos. Eu havia planejado voltar para Secundus a fim de terminar umas coisas, depois voltar com a segunda vaga. Mas pode ser que eu mande tudo isso para o diabo e fique... porque alguns dos comentários do Sênior ontem à noite eram dirigidos a mim. Pelo menos os recebi como coisa pessoal... sobre ter garra para abandonar tudo e ir; Secundus é um vulcão soltando fumaça; aquela velha megera pode provocar um banho de sangue. Banho esse que pode incluir-me, simplesmente porque sou um burocrata importante.

Respirei fundo e continuei:

— O que não compreendo é por que pareço ter sido convidado para reunir-me à família do Sênior. Por quê?

— Não é pelo seu rosto bonito — respondeu Galahad.

— Sei disso. Ah, eu não chego a assustar cachorros com ele, mas é apenas um rosto.

— Ele não é muito mau. Um cirurgião cosmético pode fazer maravilhas. Sou o segundo melhor cirurgião cosmético deste planeta... e há somente dois. A prática seria boa para mim e, como você acentuou, não tem nada a perder.

— Com os diabos, querido, não me goze! Responda à minha pergunta.

— As gêmeas gostam de você.

— É mesmo? Acho-as encantadoras. Mas a opinião de adolescentes inexperientes não pode pesar muito.

— Justin, não deixe as palhaçadas delas o enganarem; elas são adultas em tudo, exceto a altura... e são gêmeas univitelinas do nosso Ancestral. Elas têm o talento dele para olhar dentro de uma pessoa e identificar se ela é má. Lazarus as deixa à vontade porque confia em que elas atirem para matar... e que não atirem se não pretenderem matar.

Contive a respiração.

— Você está dizendo que aqueles dois pequenos revólveres que elas levam não são de brinquedo?

Meu velho amigo Obadiah olhou como se eu tivesse dito alguma coisa obscena.

— Ora, Justin! Lazarus não deixaria uma mulher sair desta casa desarmada.

— Por quê? Esta colônia parece pacífica. O que deixei de notar?

— Não muito, acho eu. O grupo avançado de Lazarus certificou-se de que este subcontinente estava razoavelmente livre de grandes predadores. Mas trouxemos conosco o tipo de duas pernas, e, apesar da seleção, Lazarus não acha que sejam anjos. Ele não estava procurando anjos; eles não seriam os melhores pioneiros. Ah, ontem Minerva estava usando uma pequena saia. Você pensou nisso? Considerando o calor?

— Não especialmente.

— Ela usa seu revólver preso à coxa. Apesar disso, Lazarus não a deixa sair sozinha; as gêmeas são as suas guarda -costas habituais. Como pessoa de carne e osso, ela tem apenas três anos de idade; não atira tão bem como as gêmeas e é mais confiante do que elas. Que tal a sua pontaria?

— Apenas razoável. Comecei a tomar aulas quando resolvi emigrar. Mas não tenho tido tempo para praticar.

— É melhor encontrar tempo. Não que Lazarus se aborreça por causa disso; ele se sente responsável pelas nossas mulheres, não pelos homens. Mas, se você pedir ajuda (eu pedi, bem como Ira), ele o treinará em tudo, desde apenas as mãos até armas improvisadas... com dois mil anos de truques sujos no meio. É com você, velho querido... mas aqui está o que isso fez por mim. Como você sabe, eu era um rato de campus... um estudioso vasculhando atentamente velhos arquivos... nunca usei armas. Depois fiz o rejuvenescimento, tornei-me rejuvenescedor e fiquei ainda menos inclinado a andar armado. Mas, durante catorze anos, fui treinado regularmente pelo campeão de todos os tempos em como permanecer vivo. O resultado? Sou firme e orgulhoso. Ainda não tive que matar ninguém. — Galahad sorriu de repente. — Mas o dia é uma criança.

— Galahad, esse é um dos motivos pelo qual concordei em cumprir uma pequena missão tola para a sra. Arabelle: para descobrir coisas como essa. Muito bem, aceito o seu conselho seriamente. Mas você não respondeu à minha pergunta.

— Bem... conheço você há muito tempo, bem como Ira. Bem como Minerva, embora você tenha dificuldade em acreditar nisso. Hamadríade já o encontrara, mas não chegou a conhecê-lo senão ontem à noite. Ishtar conhecia você apenas pelo seu gráfico, mas é uma das suas defensoras mais fortes. O fator decisivo, porém, é este: Tamara quer você em nossa família.

— Tamara!

— Você parece espantado.

— E estou.

— Não vejo por quê. Ela arranjou alguém para substituí-la a fim de estar aqui ontem à noite. Ela o ama, Justin; você não sabe disso?

— Hã... — Meu cérebro estava aturdido. — Sim, sei disso. Mas Tamara ama a todos.

— Não, só aqueles que precisam do seu amor, e ela sabe sempre quem são. Uma empatia incrível, ela vai ser uma grande rejuvenescedora. Nesta família Tamara pode ter qualquer coisa que quiser... e acontece que ela quer você... para ficar conosco, viver conosco, reunir-se a nós.

— Macacos... me mordam! — (Tamara?)

— Pouco provável. Se eu acreditasse em mordidas, não acreditaria que alguém escolhido por Tamara Sperling pudesse correr esse perigo. — Galahad sorriu, uma expressão feliz que era mais charmosa do que sua beleza extraordinária. Tentei lembrar-me se ele era bonito assim cem anos atrás. Não sou indiferente à beleza masculina, mas a minha sensualidade não é perfeitamente equilibrada; na presença de uma mulher simples e um homem bonito, eu tendo a olhar para a mulher. Portanto, nunca serei um esteta; falta-me julgamento em questões de beleza. Peço desculpas por antecipação a qualquer mulher que ache ofensiva minha atitude primitiva.

Mas partilharei uma cama com Galahad, preterindo uma beleza feminina egocêntrica; ele é carinhoso, amável e uma boa companhia, com um jeito brincalhão maroto, parecido com o das gêmeas. Passou-me pela mente a idéia de que gostaria de conhecer sua irmã — ou mãe, ou filha —, uma versão feminina dele em caráter e personalidade, bem como em aparência.

Tamara! O que foi dito acima era espuma no alto da minha mente, porque fui incapaz de enfrentar imediatamente as implicações da notícia de Galahad.

— Feche a boca, querido — ele continuou. — Fiquei tão espantado quanto você. Mas, mesmo que não fôssemos amigos há anos, à moção de Tamara eu teria votado por você, para que pudesse estudá-lo. Tamara nunca comete um engano. Mas você estava tão doente da mente que precisou disso tudo dela? Ou tão super-humano que ela quis tudo isso de você? Mas você não é nenhum dos dois, ou não consegui percebê-lo. Não está doente, acho eu, a não ser por uma pontinha de febre de ganso selvagem. Pode ser super-humano, mas nenhum de nós descobriu isso ontem à noite. Se você é um supergaranhão, você se conteve. Hamadríade disse ao café que uma mulher é feliz em seus braços. Mas ela não insinuou que você fosse o maior amante da galáxia.

"Ser um dos pais de Minerva é um ponto a seu favor, nenhum deles tem qualquer defeito sério; Ishtar certificou-se disso... Ishtar sabe mais a seu respeito do que você mesmo; ela pode ler um gráfico genético da mesma maneira que as outras pessoas podem ler letras impressas... e a própria Minerva é a prova de que não foi cometido nenhum engano. Quero dizer, olhe para Minerva; doce como a brisa da manhã e tão bonita como Hamadríade à sua própria maneira, e com um nível de inteligência tão alto que você não acreditaria. , . no entanto, tão modesta que é quase humilde.

"Mas o caso é Tamara. Seu destino foi decidido antes de você chegar a esta casa. Viagem vagarosa para casa, não foi?"

— Bem... não se espera velocidade de um barco. Embora eu ficasse surpreso de encontrar um numa colônia jovem. Eu esperava carroças puxadas por mulas.

— Uma porção delas também. Mas Lazarus diz que desta vez ele viajou com " sete elefantes"... trouxemos uma quantidade enorme de equipamento. Aquele é um barco com superpotência, reconstruído segundo as especificações de Lazarus, e podia ter trazido você aqui num quinto do tempo que levou. Mas Ira fez Lazarus saber que ele queria tempo para fazer algumas visitas. Assim, Lazarus provavelmente disse a qualquer das gêmeas que estivesse no comando (ou avisou-a de alguma forma; ele é quase telepático com elas) para proporcionar-lhe uma viagem longa e vagarosa. O que você teve, e aposto que Laz e Lor nunca mudaram de expressão.

— Não mudaram.

— Estava certo disso. Elas não são crianças... você devia vê-las comandarem uma nave espacial. De qualquer maneira, Ira falou com Ishtar, depois com Tamara; depois fizemos uma conferência de família e decidimos o seu destino. Lazarus confirmou-o enquanto você brincava com as gêmeas, que tiveram uma oportunidade de vetar isso mais tarde. Mas elas ratificaram imediatamente. Elas não só gostam de você, como os desejos de tia Tammy são lei.

Eu ainda estava estatelado.

— Aparentemente aconteceu muita coisa de que não suspeitei.

— Não era para você suspeitar. Um cozinheiro melhor teria ficado para preparar o seu café, se eu não tivesse sido escalado para contar a você (velhos amigos e tudo isso), e para responder perguntas.

— Estou confuso a respeito daquela conferência. Pensei que Tamara tivesse chegado a casa pouco antes do jantar.

— Ela chegou. Ah... Atena, você está ouvindo, querida?

— Tio Carinhoso, você sabe que não ouço conversas particulares.

— Uma ova que não! Não faz mal, Justin, Tena guarda segredos. Diga-lhe como chamar alguém, Tena.

— Diga-me com quem você deseja falar, Justin; tenho ligações de rádio com todas as fazendas. Ou com qualquer lugar. E sempre posso alcançar Ira e Lazarus.

— Obrigado, Tena. Agora, se você tem que ouvir, finja que não ouve. A conferência foi aqui, Justin; Tena trouxe as vozes de Tamara e Ira. Poderia ter trazido vozes do barco... mas você era o assunto. A propósito, Tena é um dos motivos por que esta família não está explorando fazendas; em vez disso, fornecemos serviços que as colônias geralmente não têm tão cedo. Ah, você pode explorar uma fazenda, se quiser; pedimos em concessão um bom pedaço de terra. Ou há outras maneiras de ganhar a vida. Muito bem, fiz o melhor que pude. Deseja interrogar-me?

— Galahad, acho que compreendo tudo, mas por que Tamara me quer na sua família?

— Você terá que perguntar a ela. Eu disse a você que estava inspecionando o seu halo. Não consigo vê-lo.

— Não o uso com tempo quente. Obadiah, não fique fazendo palhaçadas; isto é terrivelmente importante para mim. Por que você fica dizendo que os desejos de Tamara decidiram isso?

— Você a conhece, homem.

— Sei como os desejos dela são importantes para mim. Mas eu a amo há muitos anos. — Contei a ele coisas que há muito tempo guardava comigo. — Foi assim que tudo aconteceu. Uma grande hetaira nunca propõe um contrato e geralmente não presta atenção se um homem for atrevido o bastante para propor ele mesmo. Mas eu... bem, tornei-me uma praga. Tamara finalmente me convenceu de que ela só se casara para ter filhos, e não pretendia ter mais. Estou certo de que o dinheiro não foi o motivo...

— Não poderia ser. Ah, não quero dizer que Tamara seja tola assim; ouvi-a dizer que já que o dinheiro é o símbolo universal para o valor recebido, deve-se aceitá-lo orgulhosamente. Mas Tamara não se casaria por dinheiro; ela não acharia que... ou talvez achasse; acho que vou perguntar a ela. Hum ... interessante. A nossa Tamara é uma pessoa complexa. Desculpe, querido; eu o interrompi.

— Digo que o dinheiro não foi o motivo, porque ela tinha pretendentes com dez a cem vezes a minha modesta fortuna. Apesar disso, não se casou com nenhum deles. Então calei a boca e fiquei contente de ter parte de Tamara... passar noites com ela quando me fosse permitido, partilhar sua companhia em círculos de felicidade em outras ocasiões, pagar-lhe o máximo que podia... tanto quanto ela aceitasse, quero dizer; ela muitas vezes fixou seus honorários recusando parte de um presente ... ela fez comigo; não sei o que fazia com os clientes ricos.

"Anos e anos disso, depois ela anunciou que ia aposentar-se... e fiquei espantado. Eu tinha feito um rejuvenescimento nessa época, mas não havia notado que ela estava mais velha. Mas ela foi firme a respeito disso, e deixou Nova Roma.

"Galahad, isso me deixou impotente. Ah, não incapaz, mas o que tinha sido êxtase transformou-se em simples exercício que não valia o trabalho. Já aconteceu isso com você alguma vez?"

— Não. Talvez eu deva dizer "Ainda não", já que ainda estou funcionando no meu segundo século.

— Então você não sabe o que quero dizer.

— Apenas indiretamente. Mas posso citar uma coisa que Lazarus disse certa vez? Ele estava falando com Ira, mas não havia segredo; você encontrará isso no rascunho das suas memórias.

" 'Ira', disse ele, 'houve muitos anos em que mal me preocupei com mulheres... não só não casadas como solteiras. Afinal de contas, quanta variedade pode haver no atrito escorregadio de membranas mucosas?

"'Depois percebi que havia uma variedade infinita nas mulheres como pessoas... e que o sexo era o carrinho mais direto para se conhecer uma mulher... caminho esse de que elas gostam, e de que nós gostamos, e muitas vezes o único caminho que pode romper barreiras e permitir um conhecimento íntimo.

"'E, ao descobrir isto, ganhei um interesse renovado no próprio divertimento amistoso, fiquei feliz como um rapaz com o seu primeiro seio nu e quente na mão. Mais feliz... porque nunca mais voltei a ser simplesmente um pistão no cilindro dela; cada mulher é um indivíduo único que vale a pena conhecer; e, se dedicarmos bastante tempo a isso, podemos descobrir que não amamos um ao outro. Mas, pelo menos, oferecemos um ao outro prazer e um abrigo contra as preocupações; não estávamos simplesmente nos masturbando, com o outro sendo apenas um boneco sexual.'

"Isso é mais ou menos o que Lazarus disse, Justin. Você passou por alguma coisa assim?"

— Sim. De certa forma. Um longo período em que o sexo não valia o sacrifício. Mas superei isso com uma mulher tão boa à sua própria maneira como Tamara, embora eu não a amasse, nem ela a mim. Ela me ensinou uma coisa que eu havia esquecido; que o sexo pode ser amistoso e agradável sem o amor intenso que eu sentia por Tamara. Você compreende, uma amiga minha, mulher de outro amigo, e ambos eram meus íntimos... como dádiva especial ela me apresentou a outra hetaira, uma grande beleza, e arranjou para mim umas férias com ela... pagas pelos meus amigos; eles podiam arcar com esse ônus, ela é rica. Esta linda hetaira, Magdalene...

— Maggie! — Galahad parecia encantado.

— Bem, sim, ela usava esse nome de guerra. "Magdalene" era o nome da sua vocação. Mas, quando ela soube que eu cuidava dos arquivos, revelou-me o seu nome de registro.

— Rebecca Sperling-Jones.

— Então você a conhece!

— Toda a minha vida, Justin querido; eu mamei naqueles seios lindos. Ela é minha mãe, querido... que coincidência encantadora!

Fiquei encantado também, porém mais interessado em outra coisa.

— Então foi daí que você conseguiu sua beleza.

— Foi, mas também do meu pai genético. Becky (Maggie) disse que me pareço mais com ele.

— Realmente? Se me permite, vou examinar sua linhagem quando voltar para Secundus. — Um arquivista não deve consultar os arquivos por curiosidade pessoal; eu estava contando com a amizade ao sugerir isso.

— Querido, você não vai voltar para Secundus. Mas pode obter isso com Atena remontando diretamente até o primeiro tombo na moita após a morte de Ira Howard. Mas vamos falar de mamãe. Ela é divertida, não é? E também uma beldade.

— Ambos. Eu disse a você o quanto ela fez por mim. Sua mãe supôs que aquelas férias iriam ser divertidas, divertidas para nós dois, e foram realmente!... E eu me esqueci de que estava desinteressado do sexo. Não estou falando da técnica; desconfio de que qualquer hetaira de alto preço de Nova Roma seja tão habilidosa quanto qualquer cortesã famosa da história. Refiro-me à atitude dela. Maggie é divertida como companhia, na cama ou fora dela. Rugas de riso, mas não rugas de preocupação.

Galahad assentiu, enquanto limpava o ovo do seu prato.

— Sim, mamãe é assim. Ela me proporcionou uma infância muito feliz, Justin, tão feliz que fiquei irritado ao ser posto para fora quando os meus dezoito anos chegaram. Mas ela foi carinhosa na época. Após a minha festa da maioridade, ela me lembrou que ia mudar-se também, e voltar para a sua profissão. Seu contrato com papai, meu pai adotivo, era um contrato a termo, que findaria quando eu ficasse legalmente adulto... portanto, se eu quisesse ver Maggie outra vez (e eu queria!), teria que ter erva viva na mão, nenhum desconto para a família. Já que eu era um pesquisador assistente, pobre mas honesto, que ganhava apenas duas ou três vezes o que valia, eu não podia passar trinta segundos sequer com ela, muito menos uma noite; os honorários de mamãe eram sempre altos como o céu.

Galahad ficou pensativo, porém feliz.

— Santo Deus, isso parece ter sido muito tempo atrás... mais de um século e meio, Justin. Não percebi que Becky... Maggie... mamãe... que Magdalene estava sendo tanto esperta como bondosa. Eu só era adulto legal e fisicamente e, se ela não tivesse cortado o cordão umbilical, eu teria ficado por ali, uma criança supercrescida, atrapalhando a sua vida e interferindo com a sua vocação. Cresci, e, quando me casei, minha primeira mulher deu à nossa primeira filha o nome de Magdalene e pediu a Maggie para ser a madrinha... depois, eu mal podia acreditar que aquela linda criatura me houvesse gerado, e eu não tinha nenhum anseio especial de bancar o Édipo diante da sua beleza magnífica; eu amava demais minha mulher. Sim, Maggie é uma ótima moça... embora me tenha mimado quando criança. Essas férias foram a única vez que esteve com ela?

— Não. Mas não muitas vezes. Como você diz, ela era dispendiosa. Ofereceu-me um desconto de cinqüenta por cento...

— Bem! Você impressionou-a.

— ... porque sabia que eu não era rico. Mas, mesmo assim, eu não podia gozar a sua companhia muitas vezes. No entanto, ela me fez superar minha depressão emocional, e sou grato a ela. Uma ótima mulher, Galahad; você tem razão de ter orgulho dela.

— Acho que sim. Mas Justin, querido, sua menção desse desconto me dá a certeza de que ela se lembra de você da mesma maneira afetuosa...

— Ah, acho isso difícil. Faz anos, Galahad.

— Não seja modesto, querido; Maggie agarrava todas as moedas que o tráfico pudesse render. Mas a "coincidência encantadora" é mais do que apenas o fato de você ter tido minha mãe ... afinal de contas, por altos que fossem seus honorários, Nova Roma tem muitos homens ricos bastante atraentes para Maggie aceitá-los. O aspecto "encantador" é que, neste exato minuto, ela está a cerca de quarenta quilômetros ao sul daqui.

— Não!

— Si, si, si! Peça a Atena para chamá-la. Você pode falar com ela dentro de trinta segundos.

— Ah... ainda acho que ela não se lembrará de mim.

— Acho que sim. Mas não há pressa. Se você está surpreso, imagine quão surpreso estou eu. Eu nada tinha a ver com a lista dos emigrantes; estava metido até o rabo em reunir o que Ishtar havia pedido para as clínicas. Justin, eu não sabia que Maggie se havia casado outra vez. Assim, estávamos aqui há um par de semanas, o grupo do quartel-general, com uma instalação temporária e ainda comendo e dormindo no Dora, quando o primeiro transporte aterrou. Depois ficamos ocupados desembarcando pessoas e suprimentos numa seqüência elaborada por Lazarus e chefiada por Ira.

"Era minha tarefa, uma vez tendo construído minha cabana... à mão; Atena não tinha nenhuma extensão externa na época..."

— Pobre tio Carinhoso!

— Quem não escuta conversas particulares?

— Tenho que mantê-lo na linha, querido. Era Minerva que não tinha nenhuma mão externa então; eu não estava nem incubada.

— Bem... você está com as memórias dela, Tena; isso é um mero detalhe técnico.

— Não para mim, querido. A cadelinha sem-vergonha levou consigo algumas memórias que não queria partilhar com a sua gêmea bem-amada. E trancou um banco inteiro que deixou aqui para que eu não pudesse tocá-lo sem um abracadabra, quer dado por ela, quer pelo vovô. Mas você pode destrancá-lo, Justin... se tanto minha gêmea como Lazarus morrerem.

— Nesse caso, Atena — consegui responder rapidamente —, espero que se passe muito tempo até que eu possa abri-lo.

— Bem... quando você coloca a coisa dessa maneira, eu concordo. Mas não posso deixar de imaginar que segredos sombrios e crimes inenarráveis estão trancados em meu minuto-teta-noventa-e-sete-B-direito-alef? As estrelas tremerão em seus cursos? Mas o tio Carinhoso trabalhou duro dois dias, Justin... provavelmente o único trabalho honesto que já fez alguma vez.

— Recuso-me a comentar, Tena. Justin, minha tarefa era a de médico examinador, para a qual fui qualificado com um diploma quase novo. Assim, Ishtar e Hamadríade estão esvaziando as malas dos emigrantes, dando-lhes seus antídotos, e eu estou examinando-os para me certificar de terem feito a viagem em segurança... apressadamente porque ainda não consegui descobrir outro médico naquele desfile de carne.

"Ergo os olhos da minha máquina o tempo suficiente apenas para notar que a próxima vítima é mulher, gritar por cima do ombro 'Dispa-se, por favor' e mudar a regulagem. Depois olho duas vezes... e digo: 'Olá, mamãe, como é que você chegou aqui?'

"Isto fez com que ela me dirigisse um segundo olhar. Depois deu seu sorriso grande e feliz e disse: 'Voei numa vassoura, Obadiah. Dê-me um beijo e diga-me onde pôr minhas roupas. O médico está por aí?'

"Justin, deixei a fila se amontoar enquanto fazia um exame completo em Maggie... apropriado, porque ela estava grávida e certifiquei-me de que tudo corria bem com o seu filho... mas também para tagarelar e ficar em dia. Casada novamente, quatro filhos atualmente, mulher de fazendeiro, com o nariz queimado de sol e feliz como nunca.

"Casou-se muito romanticamente. Mamãe ouviu a notícia sobre a abertura de um planeta virgem, foi ao escritório de recrutamento que Ira tinha no edifício do Harriman Trust para se inteirar a respeito. Isso me espantou muito; mamãe é a última pessoa de quem eu teria suspeitado estar ansiosa para ser pioneira."

— Bem... concordo, Galahad. Mas não suponho que alguém me escolha como um pioneiro provável, tampouco.

— Talvez não. Nem eu. Mas Maggie apresentou seu requerimento imediatamente, e encontrou um dos seus clientes ricos fazendo o mesmo. Vão a algum lugar comer algo e falar a respeito... deixam o restaurante, registram um contrato de prazo indeterminado, voltam para o escritório de recrutamento, retiram seus requerimentos isolados e apresentam um em conjunto como casal. Não direi que isso os fez serem aceitos, mas quase nenhum solteiro fora aceito para a primeira leva.

— Eles sabiam disso?

— Ora, certamente! O funcionário do recrutamento preveniu-os antes de aceitar suas taxas isoladas. Foi isso que eles deixaram para discutir. Eles já sabiam que serviam um para o outro na cama, mas Maggie queria descobrir se ele pretendia ser fazendeiro. Acredite ou não, era isso o que ela queria; e ele queria saber se ela sabia cozinhar e estava disposta a ter filhos. E ela estava: "Ótimo, concordamos; vamos em frente com isso!" Maggie mandou restaurar sua fertilidade, e eles plantaram seu primeiro bebê sem esperar para ver se eram aceitos.

— Isso provavelmente decidiu o assunto — declarei.

— Você acha? Por quê?

— Se eles trocaram seus requerimentos para mostrar que Magdalene engravidara. Se Lazarus deixou passar os requerimentos. Galahad, o nosso Ancestral ajuda as pessoas que dão grandes mordidas.

— Hum, sim. Justin, por que você está esperando?

— Não estou. Eu tinha que ter certeza de que o convite era sério. Ainda não sei por quê. Mas não sou nenhum tolo, vou ficar.

— Maravilhoso! — Galahad levantou-se de um salto, deu a volta na mesa, beijou-me outra vez, despenteou meu cabelo e me abraçou. — Estou feliz por todos nós, querido, e tentaremos fazê-lo feliz. — Ele sorriu... e vi de repente sua mãe nele. Difícil imaginar a glamourosa Magdalene com filhos e calos, mulher de um fazendeiro da fronteira; mas lembrei-me do velho provérbio sobre as melhores esposas. Galahad continuou: — As gêmeas não tinham certeza de poderem confiar em mim numa missão tão delicada; estavam com medo de que eu fracassasse.

— Galahad, nunca houve uma oportunidade que eu recusasse; apenas tinha que estar certo de que era bem-vindo. Ainda não sei por quê.

— Ah! Estávamos falando de Tamara e nos desviamos do assunto. Justin, não é do conhecimento público como foi difícil rejuvenescer o nosso Ancestral desta vez, embora as gravações que você tem editado possam insinuar isso...

— Mais do que insinuar.

— Mas não tudo. Ele estava quase morto, e apenas mantê-lo vivo enquanto o reconstruíamos foi bastante difícil. Mas conseguimos isso; você não encontrará outro técnico com a capacidade de Ishtar. No entanto, quando o tínhamos em boa forma, numa bio-idade quase tão jovem quanto a de agora, ele voltou a piorar. O que se faz quando um cliente vira o rosto, reluta em falar, não quer comer... e apesar disso não tem nada de errado fisicamente? É mal. Fica acordado a noite inteira em vez de se arriscar a dormir? Muito mal.

— Quando ele... Esqueça; Ishtar sabia o que fazer. Ela subiu as montanhas e trouxe Tamara de volta. Ela não estava rejuvenescida, então...

— Isso não importaria.

— Importou, Justin. Você teria visto desvantagem em Tamara enfrentar Lazarus. Bem, Tamara teria superado a desvantagem; tenho confiança nela. Mas sua bio-idade e aparência estavam por volta de oitenta na escala Hardy; isto tornou a coisa mais fácil, porque Lazarus, apesar do corpo renovado, estava sentindo o peso dos anos. Mas Tamara parecia velha... e cada cabelo branco era uma vantagem. As rugas em seu rosto, a barriguinha redonda, seios pendulares, varizes... ela era como ele se sentia... dessa forma, ele não se importou em tê-la por perto durante uma crise em que... bem, percebi que ele não podia suportar a visão de nós, que parecíamos moços. Só foi preciso isso; ela curou-o...

— Sim, ela é uma curadora. — (Como eu sabia disso!)

— Ela é uma grande curadora. É isso que ela está fazendo agora, curando um jovem casal que perdeu o primeiro filho... cuidando da mãe, que passou um mau pedaço fisicamente, dormindo com ambos. Nós todos dormimos com ela; Tamara sempre sabe quando precisamos dela. Lazarus precisava nessa ocasião, ela sentiu isso, e ficou com ele até ele ficar bem. Ah, após a noite passada isto pode ser difícil de acreditar, mas os dois desistiram do sexo. Há anos e anos. Lazarus, há mais de meio século, e Tamara não se uniu com ninguém desde que se aposentou,

Galahad sorriu.

— Aqui está um caso do paciente curando o médico; ao fazer Lazarus se recuperar a ponto de convidá-la a partilhar sua cama, a própria Tamara encontrou um novo interesse na vida. Ela viveu com Lazarus o tempo suficiente para curar-lhe o espírito, depois anunciou que estava de partida. Para se candidatar ao rejuvenescimento.

— Lazarus pediu a ela para se casar com ele?

— Acho que não, Justin, e nem Tamara nem Lazarus insinuaram tal coisa. Tamara colocou isso de maneira completamente diferente. Estávamos todos tomando um café no jardim da cobertura do palácio, quando Tamara perguntou a Ira se podia participar da sua migração... a migração era apenas de Ira, então; Lazarus havia dito repetidas vezes que não iria. Acho que ele já tinha em mente tentar a viagem pelo tempo. Ira disse a Tamara para considerar isso resolvido, e para não se preocupar quanto às restrições que seriam publicadas quando fizesse o anúncio. Justin, Ira teria dado a ela o palácio com a mesma facilidade; ela havia salvo Lazarus, e nós todos sabíamos disso,

"Mas você conhece Tamara. Ela agradeceu a ele e disse que pretendia qualificar-se completamente, a começar pelo rejuvenescimento. Depois veria o que poderia aprender para ser útil numa colônia, exatamente como Hamadríade planejava fazer... e, 'Hamadríade, você quer dormir com Lazarus esta noite?' Justin, você devia ter ouvido a agitação que isso provocou!"

— Por que agitação? — perguntei. — Pelo que você disse antes, Lazarus havia readquirido seu interesse no esporte amistoso. Hamadríade tinha algum motivo para não querer substituir Tamara?

— Hamadríade queria, embora estivesse perturbada pela maneira como Tamara descarregara a questão sobre ela...

— Isso não parece coisa de Tamara. Se Hamadríade não quisesse fazer isso, Tamara teria sabido sem perguntar.

— Justin, quando se trata de emoções de pessoas, Tamara sempre sabe o que está fazendo. Era Lazarus que ela estava querendo pegar, não Hamadríade. Nosso Ancestral tem uma timidez estranha, pelo menos tinha, na época. Ele estava dormindo com Tamara havia um mês... e fingindo que não estava. Era fútil como um gato querendo esconder-se num chão de ladrilhos. Mas o pedido delicadamente rude de Tamara, para Hamadríade substituí-la como concubina dele, forçou a divulgação do fato e provocou um choque frontal de vontades entre Lazarus e Tamara. Justin, você conhece os dois: quem venceu?

O velho pseudoparadoxo — eu sabia que Tamara podia ser inabalável.

— Não posso imaginar, Galahad.

— Nenhum dos dois, porque, uma vez que Lazarus parou de gaguejar sobre como ambos, ele e Hamadríade, estavam sendo embaraçados sem necessidade, Tamara retirou amavelmente sua sugestão, depois calou a boca. Calou a boca sobre isso, calou a boca sobre rejuvenescimento, calou a boca sobre migração, deixou o passo seguinte por conta de Lazarus, e ganhou a discussão deixando de discutir. Justin, é difícil chutar Tamara para fora da cama de alguém...

— Eu acharia isso impossível.

— Imagino que Lazarus também achou. Que discussões eles tiveram no meio da noite eu não sei... mas Lazarus ficou sabendo que ela não partiria para o rejuvenescimento até ele prometer nunca dormir sozinho enquanto ela estivesse fora. Mas ela prometeu, em troca, voltar para a cama dele logo que completasse a antigeria.

"Assim, certa manhã Lazarus anunciou a détente... ruborizado e quase gaguejando. Justin, a idade verdadeira do nosso Ancestral aparece mais em algumas das suas atitudes antigas sobre o sexo do que de qualquer outra maneira."

— Não o notei ontem à noite, Galahad... e esperava por isso, tendo estudado suas memórias com tanto cuidado.

— Sim, mas você o viu ontem à noite cerca de catorze anos após termos estabelecido nossa família... porque foi aquela manhã que fez isso. Apesar de não o formalizarmos até depois de as gêmeas nascerem, embora nesta ocasião elas fossem no máximo ligeiras protuberâncias. Acredite-me, Lazarus achou difícil capitular... e procurou um buraco para escapar mesmo então. Ele anunciou, bastante agressivamente, que havia prometido a Tamara não dormir sozinho enquanto ela estivesse passando pela antigeria. Depois disse mais ou menos estas palavras: "Ira, você me disse que podiam ser encontradas senhoras profissionais na cidade. Que devo fazer para encontrar uma que aceite um contrato por esse período de tempo?" Tenho que citá-lo em inglês, porque ele estava usando eufemismos que geralmente desdenha.

"O que Lazarus não sabia era que Ishtar nos havia programado como atores hipnotizados em seus papéis. Talvez você tenha notado que ele é sensível a lágrimas de mulher."

— E todo mundo não é? Eu notei.

— Ira fingiu não saber a que profissão Lazarus se referia... o que deu a Hamadríade tempo para cair em prantos e fugir... ao que Ishtar se levantou e disse; "Vovô... como pôde?"... ela estava derramando lágrimas também... e correu atrás de Hamadríade. Depois foi a vez de Tamara ligar os pingos de chuva e seguir as outras duas. Isso deixou a nós três, homens, juntos.

"Ira ficou muito formal e disse: 'Se me der licença, Sênior, tentarei encontrar e consolar minha filha'... inclinou-se, deu-nos as costas abruptamente e saiu. O que deixou a coisa comigo. Justin, eu não sabia o que fazer. Eu sabia que Ishtar esperava dificuldades, porque Tamara a havia prevenido. Mas eu não esperava ser deixado para fazer a trapaça sozinho.

"Lazarus disse: 'Que porcaria dos infernos! Filho, o que fiz agora?' Bem, eu podia responder isso. Eu disse: 'Vovô, você magoou os sentimentos de Hamadríade'.

"Depois me mostrei cuidadosamente desinteressado. Recusei-me a especular por que havia ficado magoada, não podia imaginar onde ela poderia ter ido... a menos que tivesse ido para casa, que eu sabia ser em algum lugar nos subúrbios. Recusei-me a agir como seu intermediário, tudo segundo as instruções de Ishtar no sentido de bancar o burro, como se fosse um estúpido, deixando assim que as mulheres cuidassem do assunto.

"Então Lazarus teve que descobrir Hamadríade ele mesmo, o que fez com a ajuda de Atena... quero dizer, Minerva."

— Isto tudo é novidade para mim, tio Carinhoso — disse Atena.

— Se é, querida, por favor esqueça.

— Ah, esquecerei! — respondeu a computadora. — Exceto que vou guardá-lo e usá-lo daqui a cem anos, mais ou menos. Justin, se eu cair em prantos, após ser de carne e osso, você vai me procurar e consolar?

— Provavelmente. Quase certamente.

— Vou me lembrar disso, garoto amoroso. Você é simpático.

Fingi não ouvir, mas Galahad repetiu:

— "Garoto amoroso"?

— Foi isso que eu disse, querido. Desculpe, tio Carinhoso, mas você é obsoleto. Se você não tivesse ido dormir cedo, saberia por quê.

Fiquei em silêncio enquanto fazia uma anotação mental para dali a cem anos — anotação que envolvia Palas Atena como um ser de carne e osso, e a deixava impotente.

Esta conversa à parte foi interrompida bruscamente; Atena avisou-nos que Lazarus estava chegando. Galahad acenou os braços.

— Ei! Vovô! Aqui atrás!

— Estou indo. — Lazarus beijou-me ao passar, fez o mesmo com Galahad ao passar perto dele e agarrou o que restava do segundo café da manhã de Galahad (um pãozinho com geléia feito em casa), enfiou-o na boca e disse: — Bem? Ele lutou contra o anzol?

— Não da maneira como você fez com Hamadríade, vovô. Eu estava exatamente contando isso a Justin... como a Hamaquerida o enganou e estabeleceu assim a nossa família.

— Meu Deus, que mentira! — Lazarus serviu-se da xícara quente de Galahad. — Justin, Galahad é um rapaz amável, mas romântico. Eu sabia exatamente o que queria realizar; portanto, comecei estuprando Hamadríade. Isso destruiu sua resistência e agora ela dorme com qualquer um, até com Galahad. Tudo o mais se seguiu em seqüência lógica. — Ele acrescentou: — Você ainda pretende voltar para Secundus?

— Talvez eu não tenha compreendido o que Galahad esteve me contando. Pensei que estivesse me comprometendo a entrar para... — Parei. — Lazarus, não sei com o que estou comprometido, e não sei no que estou entrando.

Lazarus assentiu com a cabeça.

— Deve-se fazer concessões à juventude, Justin; Galahad ainda não fala claramente.

— Obrigado, vovô. Isso é demais. Vendi a ele a idéia. Agora você o deixou pensando.

— Quieto, filho. Deixe-me explicar isso. Você está entrando para uma família. Está comprometido com o bem-estar das crianças. Todas elas, não apenas qualquer uma que você possa ter gerado. — Ele olhou para mim e esperou.

— Lazarus, eu criei um certo número de filhos...

— Eu sei.

— Acho que não desapontei nenhum ainda. Muito bem, três que eu não vi, mais as suas duas (suas irmãs ou filhas adotivas), mais outros à medida que cheguem. Correto?

— Sim. Mas não é um compromisso pela vida inteira; isso não é prático para um Howard. Esta família pode sobreviver a nós todos... espero. Mas um adulto pode optar pela saída a qualquer momento, e assim ficar comprometido apenas com os garotos que estiverem à mão... a caminho ou no útero. Digamos, até um máximo de dezoito anos. Contudo, suponho que o resto da família preferiria liberar uma pessoa dessas de suas responsabilidades a fim de vê-la pelas costas. Não posso imaginar um relacionamento feliz que continue durante anos após alguém ter anunciado que deseja sair. Você pode?

— Bem... não. Mas não deixarei que isso me preocupe.

— Naturalmente isso pode não acontecer dessa maneira. Suponha que Ishtar e Galahad decidam constituir uma família separada...

— Agora espere um insignificante minuto, vovô! Você não pode se livrar de mim tão facilmente! Ish não vai me querer, exceto como parte do pacote. Eu sei, tentei fazê-la casar-se comigo anos atrás.

— ... e quis levar os nossos três mais moços com eles. Não os impediríamos, nem tentaríamos dissuadir as crianças que preferissem ir com eles. Os três deles são de Galahad...

— Lá vai ele outra vez! Vovô, você pôs Undine dentro de Ish no tanque; foi por isso que demos a ela esse nome. Elf é seu ou de Ira; Hamaquerida me contou. E ninguém tem nenhuma dúvida quanto a Andrew Jackson. Justin, eu sou estéril.

— ... com base na probabilidade estatística, tanto da contagem de espermatozóides como no fato de ele se manter tão ocupado com isso. Mas Ishtar lê os gráficos genéticos e mantém reserva sobre esses assuntos; preferimos que seja dessa maneira. Mas é muito pouco provável que Hamadríade tenha dito isso alguma vez, ou que tenha ou venha a ter alguma vez um filho com Ira. Nenhum risco genético, Ishtar tem certeza. E o fato de que ainda tenhamos que ter quaisquer defeituosos nesta colônia me dá uma grande confiança na habilidade de Ishtar em ler um gráfico genético; ela investigou a primeira leva, um trabalho que lhe provocou uma fadiga ocular durante meses. Apesar de tudo, Ira está um pouco inquieto a respeito e nem fica parado perto de Hamadríade quando ela está fértil... uma atitude irracional, acho, porque sou perseguido por ela eu mesmo. Lembro-me muito bem de uma ocasião no passado quando tudo o que os Howards tinham era a porcentagem da ascendência mútua ... e tinham defeituosos demais. Naturalmente, uma mulher hoje em dia, com um gráfico genético limpo, se dá melhor casada com o irmão do que com um estranho de outro planeta... mas os velhos fantasmas custam a morrer.

"O que equivale, Justin, a três pais (quatro, com você), três mães, mais quatro quando Minerva pedir para cancelar a proteção da sua adolescência... um número sempre variável de crianças para serem ensinadas, surradas e amadas... e sempre a possibilidade de o número de pais ser aumentado ou diminuído. Mas esta casa é minha, está em meu nome, e a mantive assim porque a planejei de modo a abrigar uma família, não para tornar alegre a vida de bodes como Galahad..."

— Mas tornou! Obrigado, vovô querido.

— ... mas pensando no bem-estar das crianças. Já vi catástrofes atingirem colônias que pareciam tão seguras quanto esta. Justin, um desastre pode varrer tudo, exceto uma mãe e um pai desta família, e as nossas crianças ainda assim crescerão normalmente e felizes. Este é o único objetivo a longo prazo de uma família. Achamos que a nossa organização garante mais este objetivo do que uma família de um casal. Quando entrar, você se comprometerá com este objetivo... isso é tudo.

Respirei profundamente.

— Onde é que assino? — perguntei.

— Não vejo utilidade alguma em contratos de casamento por escrito; não se pode fazê-los cumprir... ao passo que, se os parceiros quiserem fazê-lo funcionar, nenhum instrumento por escrito será necessário. Se você deseja seriamente reunir-se a nós, basta uma inclinação de cabeça.

— Quero!

— ... mas, se você desejar um ritual, Laz e Lor ficariam encantadas em inventar um bem sofisticado... e podemos todos chorar juntos...

— ... e na sua noite de núpcias Justin irá dormir com as crianças, para ficar sabendo como isso é sério.

— Mude isso, Galahad. Se você deseja acrescentar esse toque, deve fazê-lo na noite anterior, para que ele tenha uma oportunidade razoável de desistir se não puder agüentar.

— Lazarus, apresento-me como voluntário para o plantão das fraldas esta noite; estou calejado nessas coisas.

— Duvido que as mulheres o deixem.

— E você não viverá até amanhã — acrescentou Galahad. — Elas são um grupo emotivo. Ontem à noite foi fácil para você. É melhor ficar com o plantão do pipi.

— Galahad pode ter razão; eu deveria examinar seu coração. Assim sendo... fique quieto, Galahad. Justin, esta casa não é uma cadeia. A organização é não só mais segura para as crianças, como mais flexível para os adultos. Quando perguntei a você se pretendia voltar para Secundus, eu quis dizer simplesmente isso. Um adulto pode ficar afastado por um ano, dez anos, qualquer espaço de tempo para qualquer fim... e saber que estão cuidando das crianças e ele ou ela será bem-vindo novamente. As gêmeas e eu temos estado fora do planeta várias vezes e estaremos outra vez. E... bem, você sabe que eu pretendo tentar esta experiência de viagem pelo tempo. Isso não envolverá muito decorrer de tempo nesta estrutura... mas envolve um ligeiro elemento de risco.

— "Ligeiro!" Isso significa que o velhinho está fora de si. Esteja certo de dar-lhe um beijo de despedida quando ele partir, Justin; ele não voltará.

Fiquei alarmado ao ver que Galahad não estava brincando. Lazarus disse calmamente:

— Galahad, está bem dizer isso a mim. Mas não diga isso diante das mulheres. Ou das crianças. — Ele continuou, dirigindo-se a mim: — Naturalmente que há um elemento de risco; em qualquer coisa há. Mas não numa viagem pelo tempo propriamente dita, como Galahad parece pensar. — (Galahad estremeceu.) — O risco é o mesmo que na visita a qualquer planeta; alguém lá pode não gostar de você. Mas o salto no tempo ocorre no ambiente mais seguro possível; no espaço com uma nave em volta da gente... qualquer risco virá depois.

Lazarus sorriu.

— Foi por isso que fiquei tão irritado com aquela velha vaca Arabelle... dizendo-me para ir assistir a batalhas! Justin, a melhor coisa quanto aos tempos modernos é que estamos tão afastados que a guerra não é mais prática. Mas... Contei a você o que vou usar como viagem de experiência?

— Não. Tive a impressão, pela sra. Presidenta Temporária, de que você já havia aperfeiçoado a técnica.

— É possível que eu a tenha deixado pensar isso. Mas Arabelle não distinguiria um número imperial de um edito imperial; ela não sabe fazer as perguntas corretas.

— Acho que não sei também, Lazarus; esse não é o meu campo da matemática.

— Se estiver interessado, Dora pode ensinar a você...

— Ou eu, garoto amoroso.

— Ou Tena. Que idéia é essa de chamar Justin de "garoto amoroso", Tena? Você está tentando seduzi-lo?

— Não, ele prometeu seduzir-me... daqui a cerca de cem anos.

Lazarus olhou para mim, pensativo; tentei fingir que não havia ouvido a troca de palavras.

— Hum... talvez seja melhor você tomar aquelas lições com Dora, Justin. Você ainda não esteve com Dora, mas pense nela como uma garota de oito anos de idade; ela não tentará seduzi-lo. Mas ela é o computador-piloto mais brilhante do espaço, e pode ensinar-lhe mais do que você quer saber sobre as transformações do campo Libby. Eu estava dizendo que temos certeza da teoria, mas queria uma opinião separada. Assim, pensei em perguntar a Mary Sperling...

— Espere um momento! — disse eu. — Lazarus, em todos os arquivos só há, estou certo, uma Mary Sperling. Eu descendo dela, Tamara descende dela...

— Uma porção de Howards descendem dela, filho; Mary teve mais de trinta filhos, um recorde respeitável para aquele tempo.

— Então você quer dizer que a velha Mary Sperling nascida em 1953, pelo calendário gregoriano, morta a...

— Ela não morreu, Justin; essa é a questão. Então voltei lá e conversei com ela.

Minha cabeça estava zonza.

— Lazarus, estou confuso. Você está me dizendo que já fez uma viagem pelo tempo? Quase dois mil anos? Não, quero dizer, mais de dois mil anos...

— Justin, se você ficar calado, contarei tudo.

— Desculpe, Sênior.

— Chame-me de "Sênior" e mandarei as gêmeas fazerem cócegas em você. Quero dizer que fui, no tempo atual, até a estrela PK3722 e o Planeta das Pessoas Pequenas. Essa designação é obsoleta, e a nova catalogação não a liga com esse planeta porque Libby e eu decidimos fazer uma gozação; achamos que esse era um lugar do qual os seres humanos deviam ficar afastados.

"Mas as Pessoas Pequenas são a fonte dos conceitos que Andy Libby elaborou como teoria de campo, que qualquer um pode usar, e todos os pilotos do espaço, computadores e humanos, usam. Mas nunca voltei lá porque ... bem, Mary e eu fomos íntimos. Tão íntimos que foi um choque para mim quando ela "passou por cima". Mais perturbador do que uma morte, de certa forma.

"Mas os anos suavizam uma lembrança, e eu quis consultar. Assim, as gêmeas e eu partimos no Dora para tentar achar esse planeta, por um conjunto de coordenadas e uma balística que Andy havia estabelecido, havia muito tempo. A balística estava ligeiramente desviada, mas uma estrela não se desloca muito em apenas dois mil anos; nós a encontramos.

"Não houve nenhum problema; eu havia prevenido Lor e Laz, com toda a solenidade, do perigo sutil do lugar. Elas escutaram, e isso as tornou tão imunes ao lugar quanto eu... não tentadas a trocarem suas personalidades individuais por uma pseudo-imortalidade. Na verdade, elas se divertiram um bocado; o lugar é fascinante, e seguro em todos os outros sentidos. Não havia mudado muito, era um parque enorme.

"Eu orbitei primeiro. O planeta é deles, e eles têm forças que não conhecemos. O mesmo que da última vez; um Doppelgänger[16] de uma Pessoa Pequena apareceu no Dora e nos convidou para visitá-los... só que desta vez ela me chamou pelo nome... mentalmente (eles não usam comunicação oral), e admitiu ser Mary Sperling. Isso me abalou, mas eram boas notícias. Ela, "a coisa", quero dizer, pareceu moderadamente satisfeita de me ver, mas não especialmente interessada; não era como encontrar uma querida e velha amiga, era mais como encontrar uma estranha, que, apesar de tudo, se lembrava do que aquela velha amiga se lembrava."

— Compreendo — disse a computadora. — Algo como Minerva e eu, hein?

— Sim, querida... exceto que você tinha uma personalidade mais positiva, no seu primeiro dia, do que aquela criatura que usava o nome da minha velha amiga... e você tem ficado cada vez mais positiva nos últimos três anos.

— Amigo velho, aposto que você diz isso a todas as garotas.

— Pode ser. Por favor, fique calada, querida. Nada mais a dizer, Justin, salvo que aterramos e ficamos alguns dias, e Dora e eu consultamos as Pessoas Pequenas sobre a teoria do campo do espaço-tempo, enquanto as gêmeas escutavam e se divertiam bancando as turistas. Mas, Justin, quando as Famílias partiram de lá, voltando para a Terra na Novas Fronteiras, deixamos cerca de dez mil para trás, como você deve se lembrar.

— Onze mil, cento e oitenta e três — respondi —, segundo o livro de bordo da Novas Fronteiras.

— Foi isso o que registramos? Devia ter sido mais, talvez porque o número registrado foi reconstituído, já que não pôde ser passado em revista; portanto, quase certamente havia crianças não registradas entre aqueles que preferiram ficar para trás; ficamos lá um bom pedaço. Mas o número exato não importa, Justin, digamos dez mil redondos. O ambiente sendo favorável, quantos você esperaria encontrar lá após dois mil anos?

Usei a expansão arbitrária:

— Aproximadamente dez à vigésima segunda... o que é ridículo. Eu esperaria ou um ótimax estabilizado, digamos dez à décima, ou uma catástrofe malthusiana, em não mais que sete ou oito séculos.

— Justin, não havia nenhum. Nem qualquer sinal de que os homens tivessem estado lá alguma vez.

— O que aconteceu com eles?

— O que aconteceu com o Homem de Neanderthal? O que acontece com qualquer campeão quando é derrotado? Justin, o que adianta esforçar-se quando se está tão superado que não há disputa? As Pessoas Pequenas têm a utopia perfeita: nenhum conflito, nenhuma competição, nenhum problema de população, nenhuma pobreza, harmonia perfeita com seu lindo planeta. O paraíso, Justin! As Pessoas Pequenas são todas as coisas que os filósofos e líderes religiosos, durante toda a história, têm insistido para que a raça humana se torne.

"Talvez eles sejam perfeitos, Justin. Talvez eles sejam o que a raça humana pode se tornar... em outro milhão de anos. Ou dez milhões.

"Mas, quando digo que a utopia deles me assusta, que a considero mortal para os seres humanos, e que eles próprios me parecem o fim da linha, não estou fazendo pouco deles. Ah, não! Eles sabem muito mais matemática e ciências do que eu... ou não teria ido lá consultá-los. Não posso imaginar lutar com eles porque isso não seria uma luta; eles já teriam vencido contra qualquer coisa que pudéssemos tentar. Se nos tornássemos antipáticos a eles, posso imaginar o que aconteceria... e não quero descobrir. Mas não vejo qualquer perigo, desde que os deixemos em paz, porque não temos coisa alguma que eles queiram. Assim, parece-me... mas o que vale a opinião de um velho Neanderthal? Eu os compreendo tão pouco quanto aquele gatinho ali entende de astrogação.

"Não sei o que aconteceu com os Howards que ficaram para trás. Alguns podem ter passado para cima e ter sido assimilados, como Mary Sperling. Não perguntei, não queria saber. Alguns podem ter afundado na apatia dos comedores de lótus e morrido. Duvido que muitos tenham se reproduzido, embora seja possível que houvesse seres subumanos por ali, conservados como animais de estimação. Em caso afirmativo, eu não estava nem um pouco interessado nisso. Consegui o que queria: uma opinião que confirmava uma excentricidade matemática da física de campo. Depois reuni minhas garotas e parti.

"Fizemos uma coisa antes de partirmos daquelas vizinhanças: um levantamento fotográfico minucioso do planeta deles. Depois mandamos Atena examiná-lo quando voltamos. Tena?"

— Claro, amigo velho. Justin, se há algum artefato humano sobre a superfície daquele planeta, ele tem menos de meio metro de diâmetro.

— Presumo, então, que estejam todos mortos — disse Lazarus sombriamente — e não voltarei lá. Não, a viagem para PK3722 não é uma viagem experimental pelo tempo, mas apenas um salto estelar comum. A viagem experimental será da mesma forma simples e bastante segura, porque não envolverá a aterrissagem num planeta. Quer ir junto? Ou devemos levar Galahad?

— Vovô — disse Galahad seriamente —, sou jovem, bonito, saudável e feliz, e pretendo continuar assim; você não vai me levar como voluntário em nenhum desses piqueniques insensatos. Não vou dar mais nenhum salto estelar de qualquer tipo; sou do tipo que gosta de ficar em casa. Já fiz uma aterrissagem com o audacioso piloto Lorelei na travessia. Foi o bastante; estou convencido.

— Ora, rapaz, seja razoável — disse Lazarus amavelmente. — Quando fizermos isto, minhas garotas terão idade suficiente para quererem atenção masculina ativa... que eu não vou fornecer; perderia todo o controle sobre elas. Pense nisso como seu dever.

— Quando você começa a falar de dever, fico com urticária. O problema, vovô, é que você é um afeminado, com medo de duas garotinhas.

— Pode ser. Porque elas não serão garotinhas por muito mais tempo. E então, Justin?

Pensei furiosamente. Ser convidado pelo Sênior para fazer uma viagem estelar em sua companhia não é honra que se recuse. Que isso incluísse uma tentativa de viajar pelo tempo não me preocupava; a idéia parecia irreal. Mas não podia ser perigosa ou ele não estaria levando suas irmãs-filhas consigo — e, além disso, eu achava que Lazarus era indestrutível: um passageiro com ele devia estar seguro. Gigolô para suas garotas? Lazarus estava gozando Galahad, eu tinha certeza... assim como tinha certeza de que Lazi e Lori resolveriam essas questões segundo suas conveniências.

— Lazarus — falei finalmente —, irei a qualquer parte aonde você me peça para ir.

— Espere! — objetou Galahad. — Vovô, Tamara não vai gostar disto.

— Não há problema, filho. Tamara é bem-vinda e acho que ela gostará disso. Ela não é medrosa como algumas pessoas que não mencionaremos.

— O quê? — Galahad endireitou-se na cadeira. — Levar Tamara embora... e Justin... e nossas gêmeas... e você próprio? Metade da família? E deixar o resto de nós aqui para se lamentar? — Galahad respirou fundo e suspirou. — Está bem, desisto. Vou como voluntário. Mas deixe Justin e Tamara em casa. E as gêmeas, não podemos arriscá-las. Você será o piloto, eu cozinharei. Isto é, enquanto durarmos.

— Galahad revela traços inesperados de nobreza — disse Lazarus para ninguém em particular. — Isso ainda o matará. Esqueça isso, filho; não preciso de cozinheiro, Dora cozinha melhor do que qualquer um de nós. As gêmeas insistirão em ir, eu preciso supervisioná-las em dois saltos pelo tempo; mais tarde elas terão que fazê-lo sozinhas.

Lazarus virou-se para mim.

— Justin, embora você seja bem-vindo, será uma viagem monótona. Você só saberia ter viajado pelo tempo porque eu lhe teria dito. Tenho em mente ir a um planeta fácil de achar porque Libby e eu o pesquisamos e ele determinou sua balística com precisão. Não estou planejando aterrar; é um lugar moderadamente perigoso. Mas é um planeta que posso usar como relógio.

"Isto pode parecer bobagem. Mas é difícil ter certeza da data no espaço, a não ser pelos nossos relógios de bordo, em particular os relógios de desagregação radioativa do seu computador. Determinar a hora pelo exame dos corpos celestes é difícil e envolve medições sutis e cálculos demorados, é mais prático aterrar num planeta civilizado, bater na porta de alguém e perguntar.

"Há exceções... qualquer sistema estelar com efemérides [17] conhecidas dos seus planetas, tal como aqui, na estrela Secundus, ou no Sistema Solar e outros... se Dora tiver tais dados em suas entranhas, ela pode olhar para esse sistema e ler a hora pelos seus planetas como se estes fossem ponteiros de um relógio. Libby fez isso da Novas Fronteiras com o sistema solar.

"Mas nesta viagem experimental estarei calibrando um relógio de viagem pelo tempo... é outra questão, e nova. Deixei alguma coisa em órbita daquele planeta numa data conhecida. Mais tarde não pude encontrá-la, apesar de tê-la equipado para que pudesse encontrá-la com certeza. Ah... era o caixão de Andy Libby.

"Muito bem, vou olhar outra vez, tentando dividir duas datas conhecidas. Se eu o encontrar, terei começado a calibragem de um relógio de viagem pelo tempo... bem como terei provado que a teoria da viagem pelo tempo é correta. Estão me acompanhando?"

— Acho que sim — admiti —, até o ponto de ver que é uma prova experimental. Mas a teoria de campo está tão afastada da minha própria especialidade que não posso dizer mais nada.

— Não é preciso. Eu próprio não compreendo isso muito bem. O primeiro computador projetado para dirigir o êxodo Libby-Sheffield era um reflexo da mente única de Andy; tudo desde então são aperfeiçoamentos. Se um piloto diz à gente que compreende e usa o computador simplesmente porque ele é mais rápido, não viaje com ele; é um impostor. Hein, Tena?

— Eu entendo de astrogação — disse a computadora —, porque Minerva duplicou em mim os circuitos e a programação de astrogação de Dora. Mas não acho que seja possível discutir isso em inglês, ou mesmo em galacta, ou qualquer língua que use elementos de palavras. Posso imprimir as equações básicas e mostrar assim um quadro estático (uma parte) de um processo dinâmico. Devo fazê-lo?

— Não se incomode — disse Lazarus.

— Santo Deus, não! — ecoei. — Obrigado, Atena, mas não tenho nenhuma ambição de ser piloto estelar.

— Galahad — disse Lazarus —, que tal levantar sua carcaça preguiçosa e descobrir alguma coisa para o almoço? Digamos cerca de quatro mil calorias para cada um. Justin, perguntei se você pretendia voltar para Secundus porque não quero que volte.

— Está bem para mim!

— Palas Atena, faça uma gravação particular disto, ligada a mim e ao arquivista-chefe Foote.

— Programa funcionando, sr. Presidente. Galahad ergueu as sobrancelhas e saiu abruptamente.

— Arquivista-chefe, a situação em Nova Roma está se tornando crítica?

— Sr. Presidente, em minha opinião está — respondi com cuidado —, embora eu não seja mais do que um diletante em dinâmica social. Mas... não vim aqui para entregar uma mensagem tola da sra. Presidenta Temporária. Vim aqui esperando conversar com você a respeito.

Lazarus olhou para mim longa e pensativamente — e tive um vislumbre de parte daquilo que o torna único. Ele tem a capacidade de dedicar atenção total ao que quer que faça, seja isso uma questão de vida ou morte, ou algo tão trivial como dançar para divertir um convidado. Reconheci isso porque Tamara tem a mesma capacidade; ela a exibe dedicando atenção total à pessoa com quem está.

Ela não tem uma beleza excepcional, nem, suponho, é tecnicamente mais hábil do que qualquer das várias outras profissionais — ou mesmo algumas amadoras. Não importa. É esta capacidade de concentração total que a torna diferente das outras mulheres da sua vocação indulgente.

Acho que o Sênior estende isso a tudo. Agora ele havia "apanhado o martelo" de repente; e sua computadora o percebeu imediatamente; Galahad notou isso quase com a mesma velocidade — e eu parei de me preocupar.

— Nunca supus — disse ele — que o chefe dos registros das Famílias bancasse o mensageiro de uma mensagem inútil. Portanto, conte-me os seus motivos.

Elaborá-la? Não, as explicações podiam se seguir.

— Sr. Presidente, os arquivos devem ser duplicados fora de Secundus. Vim aqui para ver se isso pode ser feito em Tertius.

— Continue.

— Eu nunca vi desordem civil. Não estou certo dos sintomas nem de quanto leva para eles se transformarem em violência aberta. Mas o povo de Secundus não está acostumado a leis e regras arbitrárias que mudam da noite para o dia. Acho que haverá problemas. Eu acreditaria haver cumprido os deveres do meu cargo se garantisse que a destruição dos arquivos não pudesse significar a perda dos nossos registros. Os cofres são subterrâneos... mas não invulneráveis. Imaginei onze maneiras de alguns ou todos arquivos poderem ser destruídos.

— Se há onze maneiras, então há uma duodécima, uma décima terceira, e assim por diante. Você discutiu isto com alguém?

— Não! — E acrescentei, mais calmo: — Não quero pôr idéias dentro da cabeça de ninguém.

— Foi bom. Algumas vezes o melhor que se pode fazer quanto a um ponto fraco é não chamar atenção para ele.

— Foi o que me pareceu, Sênior. — E continuei: — Mas, quando principiei a me preocupar, comecei a tentar fazer alguma coisa para proteger os registros. Instituí uma política de fazer, para o arquivo morto, duplicatas de todos os dados processados no momento em que entram nos arquivos. Eu tinha em mente copiar todos os arquivos, depois embarcá-los para alguma parte. Mas não tinha fundos, ou bastante dinheiro próprio, para pagar os cubos de memória. Eles deviam ser Welton Granulação-Superior, ou seriam volumosos demais para embarcar.

— Quando é que você começou a copiar os novos acréscimos?

— Pouco depois da reunião dos Curadores. Eu esperava que Susan Barstow fosse eleita. Quando Arabelle Foote-Hedrick ganhou... bem, isso me perturbou. Devido a um incidente anos atrás, quando estávamos ambos no campus. Pensei em renunciar. Mas eu havia começado o trabalho em suas memórias.

— Justin, acho que você se enganou quanto ao seu motivo para ficar. Você suspeitou de que Arabelle pudesse fazer uma nomeação interna diferente da do seu substituto.

— Isso é possível, Sênior.

— Mas irrelevante. Você usou Weltons para estas cópias?

— Ah, sim. Pude conseguir fundos pelo menos para isso.

— Onde estão eles? Ainda no Pombo-Correio? Acho que fiquei espantado.

— Vamos, vamos! — disse o Sênior. — Eles são importantes para você. Espera que eu pense que os deixou a anos-luz de distância?

— Sr. Presidente, os cubos estão na minha bagagem... ainda no escritório do líder da colônia, Weatheral.

— Palas Atena?

— Atrás do sofá das visitas, sr. Presidente. O líder da colônia me disse para lembrá-lo de trazer para casa a bagagem do sr. Foote.

— Talvez possamos fazer melhor. Arquivista-chefe, se você permitir a Palas Atena o acesso ao código das suas malas, ela tem extensões no escritório de Ira para copiar esses cubos imediatamente. Depois você pode parar de se preocupar; Palas Atena já tem os arquivos em si, até o dia em que deixei Arabelle ficar com o martelo outra vez.

Sei que o meu rosto mostrou aquilo. O Sênior riu e disse:

— Por que e como? Porque você não é o único a achar que os registros das Famílias devem ser preservados. Como? Nós os roubamos, filho, nós os roubamos. Eu controlava a computadora executiva e usei-a para copiar tudo... genealogias, história, minutas das reuniões das Famílias, tudo... com um programa dominante para impedir o seu computador chefe de saber o que eu estava fazendo.

"Bem debaixo do seu nariz, arquivista-chefe... mas não o deixei saber para sua proteção; eu não queria que Arabelle suspeitasse do fato e o interrogasse. Isso teria dado idéias a ela, e ela já tinha muitas. O único problema foi surrupiar bastantes cubos Welton. Mas você está sentado neles neste exato momento, cerca de vinte metros abaixo do seu rabo. E, quando Palas Atena ler os da sua bagagem, a duplicação dos arquivos estará completa até a data em que você deixou Secundus. Sente-se melhor?"

— Muito melhor, sr. Presidente. — Suspirei. — Posso ficar com a consciência limpa. Agora me sinto livre para renunciar.

— Não faça isso.

— Sênior?

— Fique aqui, sim. Mas não renuncie. Sua substituta está continuando e você confia nela. Arabelle não pode legalmente pôr lá o seu homem de confiança por nomeação interina, a menos que você renuncie, já que a sua nomeação veio dos Curadores. Não que a legalidade fosse preocupá-la... mas novamente não vamos pôr idéias na cabeça dela. Quantos Curadores estão em Secundus?

— "Estão" em Secundus, Sênior? Ou residem em Secundus?

— Não tergiverse, filho.

— Sr. Presidente, não estou tergiversando. Há duzentos e oitenta e dois Curadores Sêniores. Desse número, cento e noventa e cinco residem em Secundus, os outros oitenta e sete representam os Howards em outros planetas. Coloquei isso assim porque é necessária uma maioria de dois terços para aprovar uma moção política... dois terços de um quorum numa reunião decenal, ou dois terços do número total, ou cento e oitenta e oito numa reunião de emergência, a menos que todos os Curadores em toda parte tenham sido notificados, o que pode levar anos. Menciono isto porque, se você fosse convocar uma reunião de emergência, poderia ser impossível reunir os cento e oitenta e oito votos necessários para demitir a sra. Presidenta Temporária.

O Sênior piscou para mim.

— Sr. arquivista, o que lhe deu a idéia de que eu convocaria uma reunião dos Curadores? Ou tentaria demitir a nossa querida irmã Arabelle?

— Sua pergunta parecia conduzir a isso, Sênior... e lembro-me de uma ocasião em que você retomou o martelo.

— Completamente diferente. Meus motivos então eram egoístas. A velha franga estava prestes a estragar meus planos apoderando-se de Ira. As circunstâncias eram bastante diferentes, o que significa que eu podia conseguir isso incólume... o que não posso hoje. Filho, apesar do que os registros mostram, Arabelle não desistiu daquele martelo voluntariamente; tomei-o dela. Depois, no curto período de tempo que levamos para terminar e partir, eu a mantive prisioneira.

— Realmente, sr. Presidente? Ela parece não guardar ressentimentos. Fala de sua pessoa nos termos mais elogiosos.

O Sênior deu seu sorriso preguiçoso e cínico.

— Isso é porque somos ambos pragmáticos. Tive o cuidado de salvar as aparências e me certificar de que ela soubesse disso; agora ela nada tem a ganhar falando mal de mim... e tem alguma coisa a perder, porque adquiriu um status semi-sagrado. O status dela depende em parte do meu, e ela sabe disso. Assim mesmo... Bem, se algum dia me encontrar no mesmo planeta que ela (pouco provável, não sou tolo), terei muito cuidado ao passar pelas portas e coisas parecidas.

"Vou contar-lhe como aconteceu, e você verá por que não posso fazer isso duas vezes. Depois de ter entregado o martelo a ela, Ira mudou-se do palácio... propriamente dito. Contudo, até partirmos, continuei a morar na cobertura do palácio... também propriamente dito; o palácio é minha residência oficial. Como eu ainda permanecia lá, Minerva ainda estava ligada. Em conseqüência, ela pôde prevenir-me quando os tiras de Arabelle agarraram Ira. Saí de um sono profundo e peguei o martelo."

Lazarus franziu o cenho.

— Uma computadora executiva de âmbito planetário é uma ameaça, Justin. Quando era Minerva com Ira dando ordens, funcionava otimamente. Mas veja o que fiz com ela e extrapole o que algum outro poderia fazer. Arabelle, por exemplo. Hã... Tena, dê a Justin uma amostra da voz de Arabelle.

— Sim, sr. Presidente. "Arquivista-chefe Foote, aqui é a Presidenta Temporária. Tenho a honra de anunciar que fui capaz de convencer o nosso distinto Ancestral, Lazarus Long, Presidente Permanente das Famílias Howard, a assumir para nós a liderança titular das Famílias durante o período lamentavelmente curto que resta até ele embarcar novamente para um novo mundo. Por favor, dêem a esta proclamação distribuição completa entre os nossos subordinados. Continuarei a cuidar dos detalhes de rotina, mas o Presidente deseja que vocês tenham liberdade de consultá-lo a qualquer momento. Falando pelos Curadores e pelo Presidente, aqui é Arabelle Foote-Hedrick, Presidenta Temporária das Famílias Howard."

— Ora, isso é exatamente o que ela disse a mim.

— É. Minerva fez um bom serviço. Ela pegou exatamente a pomposidade certa do fraseado, bem como o tom baixo da voz de Arabelle, e até aquela fungada que ela usa como pontuação.

— Essa não era Arabelle? Eu não tinha a mínima desconfiança.

— Justin, quando aquela mensagem foi para você (e uma igual para todo mundo suficientemente importante para tanto), Arabelle estava no maior e mais sofisticado apartamento do Palácio... e muito aborrecida pelo fato de as portas não se abrirem, o transporte não vir e nenhum dos dispositivos de comunicação funcionar... exceto quando eu queria falar com ela. Bolas, não permiti sequer que tomasse uma xícara de café até ela se acalmar e concordar que eu era o Presidente e estava dirigindo as coisas.

"Depois disso demo-nos muito bem, ficando até um tanto íntimos. Fiz tudo para ela, exceto soltá-la. Ela assumiu a rotina (ou não queria aborrecer-me), o que era seguro porque Minerva a teria picado em pedaços se ela saísse da linha... e ela sabia disso. Ela e eu até aparecemos juntos num noticiário na manhã em que parti, e Arabelle fez o seu discurso como uma dama, e o meu público, graças a ela, foi da mesma forma sinceramente insincero.

"Mas agora", Lazarus Long continuou, "ela está com o computador executivo e, se eu voltasse, lançaria o meu chapéu primeiro. Não, Justin, eu não estava perguntando sobre os Curadores em Secundus com qualquer intenção de convocar uma reunião; pelo contrário, estava pensando que quaisquer vinte Curadores podem convocar uma reunião de emergência e esperando que eles a considerem como você (fútil) e não tentem. Ela pode agarrá-los e embarcá-los para Felicidade. Ou, se tiver coragem (acho que ela tem), podia deixá-los fazerem sua reunião; depois, se esta fosse contra ela, embarcar todos os Curadores que aparecerem para Felicidade. Mas garanto que ela não desistirá sem luta. Peguei-a desprevenida; ela não se deixará pegar duas vezes."

— Então isso significa um banho de sangue.

— Pode ser que essa seja a única saída. Mas você e eu não podemos evitar a situação. Em todas as questões de governo a resposta correta geralmente é: Não faça nada. Esta é uma dessas ocasiões... para exercer inação criativa. Fique sentado imóvel. Espere.

— Mesmo quando se sabe que as coisas estão saindo erradas?

— Mesmo quando se sabe disso, Justin. A comichão de ser salvador do mundo não deve ser cocada; raramente faz algum bem, e pode encurtar drasticamente sua vida. Vejo três possibilidades importantes: Arabelle pode ser assassinada. Os Curadores elegerão então outro Presidente Temporário, desejavelmente um com bom senso. Ou ela pode durar até a reunião seguinte, dez anos depois, na qual os Curadores podem exercer algum senso. Ou pode ficar esperta, não se expor ao assassinato, enquanto consolida o seu poder tão fortemente que será preciso uma revolução para se livrar dela.

"Considero a última menos provável, assassinato como a mais provável... e nenhuma delas é da nossa conta aqui em Tertius. Há um bilhão de pessoas em Secundus; deixe-as cuidarem disso. Você e eu salvamos os arquivos e isso é bom; as Famílias mantêm sua continuidade.

"Dentro de alguns anos importaremos equipamento para você, ou seu sucessor, para instalar o tipo de negócio computadorizado que você tem em Secundus. Atena pode armazenar os dados até estarmos instalados. Enquanto isso, deixarei o recado de que os arquivos estão aqui ecoar também pelos planetas desabitados. Vou anunciar, também, que esta é uma sede alternativa das Famílias, onde os Curadores são bem-vindos para se reunirem."

— Sr. Presidente — disse Atena —, o sr. Jones perguntou se eu sei quando o senhor estará pronto para almoçar.

— Por favor, diga a ele que estaremos lá num momento. Nenhuma pressa em nada disto, Justin; seja paciente, os problemas tendem a se resolver por si mesmos... e paciente é tudo quanto se pode ser quando leva anos divulgar uma mensagem, mesmo entre os planetas mais densamente povoados. Portanto, espere cem anos. Um recado particular para você. Você é um de nós agora? Membro desta família e pai de nossos filhos?

— Sim. Quero ser.

— Você quer formalizar isso? Muito bem, aqui está um contrato curto, e mais tarde você pode ter qualquer ritual que quiser. Justin, você é nosso irmão? Até as estrelas envelhecerem e o nosso sol esfriar? Você lutará por nós, mentirá por nós, nos amará... e nos deixará amá-lo? — Sim.

— Isso resolve o caso; Atena registrará... registro aberto, Atena.

— Registrado, Lazarus. Bem-vindo à família, Justin!

— Obrigado, Atena.

— A mensagem particular é esta, Justin. Tamara me pediu para dizer a você, se você se casasse conosco, que ela vai pedir a Ishtar para cancelar sua imunidade à gravidez. Ela não disse que isso era exclusivamente para você. Pelo contrário, disse-me que espera ter filhos com cada um de nós tão rapidamente quanto possível; aí ela se sentiria pelo menos completamente na família. Apesar de tudo, estou certo de que tal decisão foi provocada pela sua chegada... assim, o resto de nós esperará e aplaudirá enquanto você planta o primeiro... nossa Tammy vai gostar disso.

Meus olhos se encheram de lágrimas de repente, mas mantive minha voz firme.

— Lazarus, não acho que seja isso o que Tamara quer. Acho que ela quer apenas ser completamente um membro da família... e eu também!

— Bem... talvez seja. De qualquer maneira, Ishtar guarda as respostas genéticas consigo. Talvez ponhamos em fila todas as garotas e vejamos o que um galo novo pode fazer. Fim da conferência restrita, Tena.

— Está certo, amigo velho. E daqui a cem anos você pode pôr em fila todos os homens para mim. Aposto que poderei agarrá-los.

— Provavelmente, querida.

 

Variações sobre um tema

XVI

Eros

— Lazarus, quer passear comigo? Lá fora? — perguntou Minerva.

— Irei se você sorrir. Ela esboçou um sorriso.

— Nenhum de nós tem muita vontade de sorrir hoje. Mas tentarei.

— Com a breca, querida, você sabe que eu não partirei em nenhuma ocasião, nestas condições. Exatamente como no salto de calibragem que as gêmeas e eu demos.

— Sim, querido. Podemos ir? Ele apalpou o saiote dela.

— Acho que sim. Onde está o seu revólver?

— Preciso usá-lo? Quando você está comigo? Usá-lo-ei sem falta... enquanto você estiver fora.

— Bem... É um mau precedente. Está bem. Eles pararam no vestíbulo. Minerva disse:

— Atena, querida, por favor diga a Tamara que estarei de volta a tempo de ajudar com o jantar.

— Sem dúvida, mana. Espere... a garota Tammy diz que não precisa de ajuda; logo, não se apresse.

— Obrigada, irmã. E agradeça a Tammy por mim. — Eles deixaram a casa e começaram a subir uma colina suave. Pouco depois ela disse: — Amanhã.

— Amanhã — repetiu Lazarus. — Mas não faça isso parecer um canto fúnebre. Já disse tudo isso a você, embora esta viagem dure para mim dez anos T de tempo dispendido, será no máximo de algumas semanas para vocês em casa, e menos ainda para as gêmeas. Qual é o motivo para ficar solene?

Em vez de responder, ela perguntou:

— Quanto tempo viverei?

— Hein? Minerva, que tipo de pergunta é essa? Não muito, se negligenciar as precauções ordinárias, tais como andar armada e ficar alerta. Você quer dizer sua expectativa de vida... bem, se os geneticistas souberem do que estão falando, você tem exatamente a expectativa com que eu nasci, e não importa que eu seja uma anomalia; transmito isso para você. Entretanto, mesmo que eles estejam enganados quanto àquele gene complexo do duodécimo par de cromossomos, não há dúvida possível de que você é uma Howard em todos os genes. Portanto, está em condições de viver dois séculos sem fazer força. Com disposição de passar pelo rejuvenescimento cada vez que atingir a menopausa, porém, não posso imaginar quanto tempo você durará... eles ficam sabendo mais a respeito todos os anos. Desde que você queira viver, provavelmente. Por quanto tempo será isso?

— Não sei, Lazarus.

— Então o que a está preocupando, querida? Lamenta ter desistido de ser uma computadora para ser de carne e osso, vulnerável?

— Ah, não! — Depois ela acrescentou: — Mas algumas vezes isso magoa.

— Sim. Algumas vezes.

— Lazarus... se você tem certeza de que vai voltar... por que você reorientou Dora para que sua afeição se fixe em Lori e Lazi em vez de cm você?

— Isso é tudo o que a está preocupando? Uma precaução de rotina, é tudo. Por que Ira fez um novo testamento quando estabelecemos a nossa família? Por que todos nós temos testamentos guardados com Tena? Minhas irmãs serão donas do Dora; elas já o dirigem. Se alguma coisa me acontecer... lembra-se de uma coisa que você disse anos atrás? Você disse a Ira que se destruiria, em vez de servir a outro senhor.

— Acha provável que eu deixasse de ter uma lembrança dessas? Aquele dia conduziu a este, por concatenação inevitável. Lazarus, deixei para trás muitas das minhas memórias... mas pesquisei e repesquisei todas as conversas que Minerva já teve com você. Cada palavra.

— Então você sabe por que não me arriscarei a magoar uma computadora que acha que é uma garotinha... e por que não me atrevo a arriscar uma disfunção emocional numa computadora de pilotagem em algum lugar lá fora entre as estrelas... quando a vida das minhas irmãs depende dessa computadora. Minerva, eu teria unido Dora a Lori e Lazi apenas por causa de Dora; ela precisa amar e ser amada. Mas, se eu tivesse negligenciado em fazer isso como precaução de segurança pelas gêmeas... bem, um homem que se recusa a levar em conta a própria morte ao fazer planos é um tolo. Um tolo egoísta que não ama ninguém.

— Você não é isso, Lazarus, você nunca foi isso.

— Ah, sim, fui! Levei anos intermináveis para aprender. Novamente ela deixou o tempo passar antes de falar.

— Lazarus... muitas vezes fiquei pensando sobre Llita.

— Sobre Llita? Hein?

— E sobre ela, mais ainda do que sobre Llita. Pareço-me realmente com ela?

Ele parou e ficou olhando para ela. Estavam perto do alto da colina agora, não podendo ser vistos da casa.

— Não sei. Como posso saber? Mil anos... As lembranças se desvanecem e se misturam. Acho que você se parece com ela. Sim, parece.

— É por isso que você não pode me amar? Cometi algum engano terrível desejando parecer-me com ela?

— Mas, querida... eu a amo.

— É mesmo? Lazarus, você nunca partilhou esta dádiva comigo. — De repente ela desenrolou o saiote e deixou-o cair na grama. — Olhe para mim, Lazarus. Eu não sou ela. Por sua causa gostaria de poder ser. Mas não sou... e que fiz eu? Eu era uma computadora, tão ingênua! Não pretendi magoá-lo, não pretendi evocar fantasmas em sua mente! Pode me perdoar isto?

— Minerva! Pare, querida! Não há nada a perdoar.

— O tempo urge, você está de partida. Pode me perdoar realmente? Porá um filho seu dentro de mim antes de ir? — Seus olhos estavam derramando lágrimas, mas ficaram olhando para ele com firmeza. — Quero um filho seu, Lazarus. Não pedirei duas vezes... mas não posso deixá-lo partir sem pedir. Em minha ignorância fiz-me parecer com ela... porque você a amava... mas você pode fechar os olhos!

— Amada...

— Sim, Lazarus?

— Ira fecha os olhos? Recusa-se a vê-la?

— Não.

— E Justin? Ou Galahad? Se você pode suportar o meu rosto feio, posso certamente suportar o seu rosto adorável... e, com um pouco de sorte, ele se parecerá mais com você do que comigo. Vamos voltar para casa.

O rosto dela se ergueu.

— O que há de errado com este pequeno bosque?

— Hum. Sim. Agora.

 

Variações sobre um tema

XVII

Narciso

— Vamos rever isso outra vez, garotas — disse Lazarus. — Tanto os marcadores de tempo como os pontos de referência do encontro. Dora, você pode ver o globo?

— Poderei se você tirar as mãos do caminho, amigo velho.

— Desculpe, querida, chame-me de Lazarus; não sou seu irmão.

— Quando Lazi e Lori me fizeram sua irmã adotiva, você entrou de graça. Lógico? Lógico. Não lute, amigo; você gosta.

— Está bem, eu gosto, irmã Dora — concordou Lazarus. — Agora cale a boca e deixe-me falar.

— Sim, senhor, comodoro — respondeu o computador-piloto. — Mas tenho isso tudo em diga-me-três-vezes. Não que eu precise desses marcadores de tempo desajeitados... estou calibrada, amigo, calibrada.

— Dora, suponha que aconteça alguma coisa com essa calibragem.

— Não posso. Se uma unidade enguiçar, recaio no di-ga-me-duas-vezes enquanto apago essa unidade e a restauro.

— É mesmo? Você tem estado eufórica desde que as gêmeas a adotaram. Ensinei você a ser pessimista, Dora. Um piloto que não é pessimista não vale coisa alguma.

— Desculpe, comodoro. Vou calar a boca.

— Fale se tiver alguma coisa a dizer. Mas não para depreciar as precauções de segurança. É a minha própria pele preciosa que estou tentando proteger, Dora; portanto, ajude-me. Posso imaginar uma dúzia de maneiras de as suas entranhas poderem me danificar, quer por erro, quer por catástrofe natural... bem como você, mas não adianta preocupar-se. Mas adianta tentar antecipar o que se pode fazer a respeito disso.

"Tome um caso no qual você esteja funcionando perfeitamente, mas as gêmeas não possam usá-la. Pelo programa, após me deixarem cair, vocês voltarão todas à estrutura do tempo-base e a Nova Roma, e as gêmeas perguntarão pela correspondência atrasada nos arquivos. Quem sabe? Pode haver alguma esperando lá agora mesmo."

— Irmão — interrompeu Lorelei —, "agora" não significa nada. Temos estado em fase irrelevante desde que decolamos.

— Não sofisme, querida. O "agora" a que me refiro é o ano 2.072 da Diáspora ou o 4.291 gregoriano, seu ano de idade adulta. Se é que é.

— Laz, você ouviu isso?

— Você estava pedindo, Lor. Cale-se e deixe o irmão falar.

— O problema está nas próprias palavras, Lorelei. Vocês, garotas... vocês três podem passar parte do trajeto até a Terra inventando uma língua nova e uma sintaxe apropriada para viagens pelo espaço-tempo. Mas este caso imaginário... Vocês aterram em Secundus, vão até os arquivos e perguntam se foi aberta alguma correspondência atrasada com o nome de vocês. Ou de Justin, ou de Ira. Ou mesmo endereçada a mim, como Lazarus Long, ou como Woodrow Wilson Smith. Posso tentar várias maneiras, porque estarei tentando isso de um "agora" alguns séculos antes de a correspondência atrasada transformar-se num meio rotineiro de preservar documentos.

"Portanto, vocês pegam o que quer que haja e voltam para o iate Dora... e o encontram de fechadura trancada, com um xerife guardando-o. Confiscado."

— O que!?

— Dora, por favor, não grite no meu ouvido. Isto é um caso hipotético.

— É melhor esse xerife saber atirar direito — disse Lápis-Lazúli sombriamente.

— Lazi — respondeu o irmão —, você já me ouviu dizer nove mil e dezenove vezes que não andamos armados para nos dar coragem holandesa[18]. Se um revólver a faz sentir-se com três metros de altura e invulnerável, é melhor você ir desarmada e deixar sua irmã dar todos os tiros que forem necessários. Agora me diga por que você não atirou no xerife.

— Sim! — disse Dora. — Quero ser salva!

— Cale a boca, Dora. Laz?

— Hã... não atiramos em tiras. Nunca.

— Não é bem assim. Não atiramos em tiras se houver alguma maneira de evitá-lo. É mais seguro beijar uma cascavel. Em dois mil e poucos anos sempre encontrei um meio de evitar isso... embora eu tenha atirado bastante perto certa vez, para distrair a atenção dela. Circunstâncias únicas. Mas, neste caso hipotético, atirar num tira é pior do que inútil; a Presidenta Temporária confiscou sua nave.

— Socorro — cochichou Dora.

— Por quê? A sra. Barstow nunca faria nada tão rude!

— Eu não disse que foi Susan Barstow. Mas Arabelle, se tivesse continuado, teria gostado de aplicar esse tipo de proeza nos Longs. Digamos que Susan tenha caído morta e que a nova PT seja tão má como Arabelle. Nada de nave e nada de bens... o que é que vocês vão fazer? Lembrem-se, estou dependendo de vocês... ou ficarei preso lá na Idade Média. O que é que vocês vão fazer?

— "Quando em perigo ou em dúvida... corra em círculos, berre e grite" [19] — recitou Dora.

— Ah, pare com isso, Dora — disse Lápis-Lazúli. — Não entramos em pânico, isso é certo. Temos dez anos nos quais imaginar uma... Ei! Espere um momento; estou usando a estrutura errada. Podemos levar cem anos se necessário. Ou mais.

— Cem anos é bastante — disse Lorelei. — Em menos tempo do que isso podemos roubar outra nave.

— Pense "grande" — aconselhou Lazarus. — Roube as Plêiades. É muito melhor não roubar nada, Lor.

— Você certa vez roubou uma nave estelar.

— Porque não havia tempo para fazer mais nada. Com bastante tempo à sua disposição, porém, é melhor ser razoavelmente honesta... não infringir regras cuja violação possa fazer você ser apanhada. O dinheiro é a arma universal; adquiri-lo simplesmente exige tempo e engenhosidade, e algumas vezes trabalho. Levantem bastante dinheiro e pode ser que vocês comprem Dora de volta. Se isso for impossível, com muito menos dinheiro vocês podem ir para Tertius, onde Ira e a família descobrirão alguma maneira de pôr as mãos numa nave estelar. Aí vocês podem programá-la com o material que Dora deixou em Atena... e vir buscar-me. — E ninguém vai vir salvar-me?

— Dora, querida, isso não aconteceu, e é extremamente pouco provável que aconteça. Mas, se acontecesse e as gêmeas não pudessem salvá-la... digamos que o seu novo dono a tivesse levado metade do caminho para o outro lado da galáxia...

— Vou esmagá-lo da primeira vez que ele tentar aterrar!

— Dora, deixe de ser imbecil. Se alguma vez a perdermos (o que é muito pouco provável) e as gêmeas não puderem salvá-la, mas puderem salvar-me (então, se você tiver cuidado de si mesma, sem nenhuma aterragem forçada ou qualquer outra tolice), nós a acharemos e a levaremos de volta. Nós três. Não importa quantos anos isso leve. Laz? Lori?

— Sem dúvida! "Um por todos e todos por um!" E não somos só nós quatro, Dora; é a família inteira... todos os adultos, todas as nove crianças (podem ser mais, então) e Atena. Irmão, quando Ira propôs que todos nós adotássemos como último nome "Long", gostei tanto disso que não pude gritar com bastante força. Mana, você é Dora Long... e os Longs se ajudam uns aos outros!

— Sinto-me melhor — admitiu a computadora, com uma fungada.

— Você nunca teve nada por que se sentir mal, Dora — continuou Lazarus. — Você começou isto insistindo em que minhas precauções eram desnecessárias. Inventei, então, uma situação na qual elas seriam necessárias... especialmente se as gêmeas não puderem chegar aos programas que você deixou com Atena, caso em que elas poderiam ter que recair nos marcadores de tempo e recalibrar. Assim, estou com elas presas em outro planeta e completamente sem dinheiro... Então, o primeiro problema é pôr as mãos em dinheiro. Acham que podem fazer isso, garotas? Em cem anos? Sem serem apanhadas em alguma coisa que as pusesse numa confusão ainda maior?

As gêmeas olharam uma para a outra.

— Lor?

— Naturalmente, Laz. Irmão, é aí que abrimos o nosso bordel sobre um bilhar. Ou em alguma parte.

— Não acho que vocês duas tenham uma vocação verdadeira. E os seus narizes são lamentavelmente como o meu. Isto é, feios.

— Nossos narizes são um atrativo...

— ... porque nos fazem parecer com você...

— ... então, o que é mexerico comum agora, mas inacreditável...

— ... torna-se bastante verossímil logo que o cliente der uma olhada para nós...

— ... e, além dos narizes, nossa aparência é muito boa...

— ... "construídas como privadas de tijolos", você nos disse...

— ... e ruivas naturais, o que Tammy diz ser dinheiro em caixa...

— ... e parecendo exatamente iguais, mas podendo dar "variedade" a eles...

— ... simplesmente com uma de nós não usando depilatório...

— ... o que nos tornará um espetacular número de irmãs a preços muito altos; Maggie disse isso...

— ... e se você acha que ser calejada não é uma vocação bastante verdadeira...

— ... o que pode ser verdade, e concordamos que nunca seremos a grande artista que Tammy é, apesar de tudo...

— ... Nova Roma vai ficar espantada ao ver como é intensa a nossa vocação...

— ... quando a segurança do nosso irmão está em jogo!

Lazarus respirou fundo.

— Obrigado, queridas. Embora talvez vocês venham a experimentar isso algum dia, espero que não precisem fazê-lo para me salvar. Estou contando mais com a capacidade matemática de vocês, c sua habilidade como navegadoras, do que com a inegável beleza física e espiritual de vocês.

— Ouviu isso, Lor? Dessa vez ele acrescentou "espiritual".

— Acho que ele falou sério.

— Espero que sim. Isso é até melhor do que nos dizer que temos seios tão bonitos como os de Minerva. O que não temos, na verdade.

— Sim, vocês têm — disse o irmão delas, distraído. — Vamos voltar aos pontos de referência e coisas parecidas.

— Acho que vocês deviam dar um beijo nele — disse Dora.

— Mais tarde. Agora vejam, garotas, primeiro encontro, exatamente dez anos T após me soltarem... apesar de vocês terem soltado o corpo de Andy primeiro. Como? Laz ou Lor... não Dora. Naturalmente você sabe tudo isto, Dora; esta revisão é para seres de carne e osso. Falíveis. Laz?

— Fazer Dora descongelá-lo, trazer o seu corpo até quase a temperatura de cremação e pô-lo dentro da atmosfera numa longa inclinação, logo abaixo da velocidade orbital, para que ele se queime completamente, ou quase, antes de atingir... e calcular a balística para atingir as montanhas, no caso de não estar completamente queimado, porque não desejamos ferir ninguém.

— Que montanhas e como vão encontrá-las? Lor?

— Estas, bem aqui. Primeiro ponto de referência, este grande rio que banha o vale central. Onde este outro grande rio chega do oeste é o nosso ponto de referência ao norte, o abismo no qual ele termina é o ponto de referência ao sul; nenhum ponto de referência a oeste. O Arkansas é mais ou menos o meio dessa faixa. As montanhas Ozark são as únicas da faixa... mas atire para o lado sul das montanhas, esta escarpa; o lado norte não é o Arkansas. Irmão, por que isso importa?

— Sentimento, Lorelei. Por mais longe que Andy tenha viajado, e por pequeno que fosse o tempo que passou na Terra, ele estava sempre com saudades do seu lugar de nascimento. A única canção que ele conhecia era uma com um refrão de "Arkansaw, eu vos adoro!" Eu costumava ficar enjoado dela. Mas prometi a ele que levaria o seu corpo de volta ao Arkansas, e isso pareceu confortá-lo quando ele morreu... portanto, faremos isso. Quem sabe? Talvez o doce sujeitinho fique sabendo... o que compensará o trabalho de cumprir seus últimos desejos. Primeiros pontos de referência de encontro?

— Este grande canyon — respondeu Lápis-Lazúli. — Segui-lo para leste e virar para o sul, este ponto preto redondo. Uma cratera do impacto de um meteoro. Nenhum ponto de referência digno de confiança e bom em qualquer século a não ser este canyon, o maior da Terra. Memorizamos a relação espacial entre canyon e cratera para que possamos localizá-lo de qualquer ângulo. Se a luz for certa.

— Estou certa de poder vê-lo numa escuridão de breu — afirmou Dora.

— Dora querida, este exercício se baseia nas presunções pessimistas que Lor e Laz possam ter para achá-lo sem a sua ajuda. Quero que elas conheçam a geografia da Terra tão bem que não tenham que aterrar e olhar para um letreiro de estrada. Nenhuma aproximação perto do solo, absolutamente... exceto para me desembarcar e me recolher. Não pretendo provocar o medo de discos voadores; não desejo chamar nenhuma atenção... algum caipira pode dar-me um tiro. É uma falta de sorte esta nave ter uma forma tal que poderia ser descrita como "disco voador".

— O que é que há com a minha aparência? — perguntou Dora. — Minha aparência é ótima!

— Querida, você é construída como uma privada de tijolos... para uma nave estelar. Você é linda. Acontece que os objetos voadores não-identificados, os ÓVNIS, são também chamados de "discos voadores". Não acredito em paradoxos... mas não desejo chamar nenhuma atenção.

— Irmão, talvez nós sejamos um desses ÓVNIS de que você nos falou.

— Hein? Pode ser, suponho. Se assim for, não vamos ser alvejados. Quero uma viagem tranqüila. Se tudo correr bem, talvez possamos deixar uma de vocês descer ao solo comigo na próxima viagem... embora macacos me mordam se não acho que uma ruiva de penteado alto é mais conspícua do que um ovni. Está bem, a cratera. Pretendo estar lá antes do pôr-do-sol e após o nascer do sol, desde menos dez dias até mais dez dias e mais dez anos. Se eu não estiver lá, o que é que vocês farão?

Lápis-Lazúli respondeu:

— Procuraremos você meio ano T mais tarde, no alto da maior pirâmide de Gizé (isto é, aqui) à meia-noite... só que dessa vez procuraremos você de menos trinta dias até mais trinta, porque você não tem certeza de quando poderá chegar lá e poderá conseguir isso apenas uma vez... subornos e coisas. Irmão, devemos sair meio ano-luz e reentrar no eixo do tempo? Ou ficamos em órbita e esperamos?

— Isso é com vocês. Não usarei o encontro egípcio a menos que me depare com algum palerma que torne para mim pouco saudável encontrar com vocês no Arizona. Se eu perder ambas as datas, o que farão vocês? Lori?

— Procuraremos você outra vez em ambos os lugares em onze anos e em onze anos e meio.

— E depois?

Lorelei olhou para a irmã.

— Irmão, com esta parte nós não concordamos...

— ... e isso vale para Dora também...

— Certamente que vale!

— ... porque não presumiremos que você esteja morto...

— ... não importa quantas vezes você perca o encontro...

— ... assim, começaremos a verificar ambos os pontos dia após dia...

— ... e noite após noite...

— ... e mais de nove horas de diferença de hora local significa algumas órbitas parciais estranhas para conferir o nascer e o pôr-do-sol no Arizona e ainda conferir as meias-noites no Egito...

— ... mas Dora pode fazer isso...

— Pode apostar que posso!

— ... e ficaremos procurando você dia após dia...

— ... e ano após ano...

— ... até que você apareça, Sênior.

— Capita Lorelei, se eu perder quatro datas de encontro, estarei morto. Pode presumi-lo. Devo pôr isso por escrito?

— Comodoro Long, se você estiver morto, não poderá dar ordens. Isso é lógico.

— Se você presumir que não estou morto, então minhas ordens ainda se aplicarão... e você deverá desistir da busca. Pela mesma lógica.

— Sênior, se você estiver fora da nave e fora de contato, então dificilmente estará em posição de dar quaisquer ordens. Se você quer ser recolhido, porém, haverá serviço diário da hora da queda mais onze e meio anos T em diante...

— ... e assim por diante, por diante, por diante, porque foi isso o que prometemos à família...

— ... mesmo que tenhamos de ir para casa ocasionalmente para rejuvenescimento...

— ... e para ter bebês, mas nada disso tomará qualquer tempo nessa estrutura de tempo... como você acentuou em relação a outra coisa.

— Motim.

As gêmeas olharam uma para a outra.

— Eu respondo a isso, Laz; tenho que responder... dia ímpar. Comodoro, como você nos ensinou antes de nos deixar assumir o comando no espaço, um comodoro é realmente um passageiro, porque o capitão de uma nave não pode renunciar sequer a um pouquinho da sua responsabilidade total. Portanto, "motim" não é uma palavra que possa ser aplicada.

Lazarus suspirou.

— Criei um par de advogadas espaciais brilhantes.

— Irmão, foi isso o que você nos ensinou. Você ensinou.

— Está bem, ensinei. Vocês ganharam a discussão. Mas é bobagem falar em verificar todos os dias, ano após ano, indefinidamente. Nunca vi a prisão da qual não pudesse escapar em menos de um ano... e já estive num grande número delas. Talvez eu deva cancelar todo salto... não, não, não vou discutir isso! Agora, quanto aos marcadores de tempo, se alguma coisa forçá-las a recalibrar: é bastante simples aterrar e descobrir a data gregoriana exata... mas isso é exatamente o que não quero que façam... porque nenhuma de vocês tem experiência em enfrentar culturas estranhas. Meter-se-iam em confusões e eu não estaria por perto para ajudá-las.

— Irmão, você acha que somos tão estúpidas assim?

— Não, Laz, não acho que vocês sejam estúpidas. Vocês duas têm exatamente o potencial cerebral com que comecei... e não sou estúpido, ou não teria vivido tanto. Além do mais, vocês têm uma instrução muito maior do que eu tinha na sua idade. Mas, queridas, é da Idade Média que estamos falando. Vocês duas foram criadas para esperar um tratamento racional... coisa que não receberiam. Não me atrevo a deixá-las pôr o pé em terra nessa era, mesmo comigo ao lado de vocês, até depois de havê-las treinado interminavelmente em como ser consistentemente irracionais no que fizerem e disserem. Verdadeiramente.

"Não importa", continuou Lazarus, "vocês têm duas maneiras de ver as horas no espaço. Uma é o método de Libby, monótono mas exeqüível, vendo as posições dos planetas do sistema solar. O problema com esse método é que, a menos que vocês passem um tempo terrivelmente longo em observações difíceis, podem confundir uma configuração com outra quase igual... mas vários milhares de anos anterior ou posterior.

"Usamos, portanto, as marcações de tempo que podemos encontrar na superfície da própria Terra. A determinação radioativa da data daquela cratera de impacto é provavelmente próxima... mas, de qualquer maneira, se a cratera não estiver lá, vocês chegaram cedo por alguns séculos. As datas da construção da Grande Muralha da China são bastante boas, o mesmo sendo válido para as pirâmides egípcias. As datas do Canal de Suez e do Canal do Panamá são exatas... bem como, infelizmente, a data da destruição da Europa... mas não tentem observá-la! Mantenham os anteparos levantados e dêem o fora depressa; esse é um ano em que uma nave espacial estranha seria alvejada, se vocês forem bastante descuidadas para serem vulneráveis. Na verdade, se qualquer marcador do tempo desta lista mostrar que vocês estão depois de 1940 gregoriano, dêem o fora imediatamente!... e corram para uma data anterior.

"Basta, por enquanto; está chegando a hora de dormir pelo meu tipo de tempo, por irrelevante que isso possa ser para qualquer coisa fora desta nave. Quero que estudem todo este material até poderem recitá-lo dormindo, datas, o que procuram e como achar, mesmo que não tenham um globo terrestre onde olhar. Alguém acha que pode ganhar de mim nas cartas? Não falem todas ao mesmo tempo."

— Eu posso — disse Dora —, se você prometer não roubar ao embaralhar.

— Mais tarde, Dora — disse a capita Lorelei. — Agora vamos contar a ele.

— Ah! Está bem, ficarei bem quieta.

— Contar-me o quê? — perguntou Lazarus.

— Que é tempo de você nos fecundar... Lazarus.

— A nós duas — concordou Lápis-Lazúli.

Lazarus contou mentalmente dez chimpanzés — depois mais dez.

— Absolutamente fora de questão!

Elas olharam uma para a outra. Lorelei disse:

— Sabíamos que você ia dizer isso...

— ... mas a única questão é se você fará isso gentil e amigavelmente...

— ... ou diremos a Ish que você disse "não", e ela fará isso para nós... seu esperma... do banco de esperma...

— ... mas ficaríamos muito mais felizes se o nosso amado irmão, que sempre tem sido bom para nós...

— ... mas que agora vai levar um tiro no rabo na Idade Média ...

— ... vai desistir dos seus preconceitos tolos apenas uma vez...

— ... e tratar-nos como mulheres biologicamente maduras...

— ... em vez das crianças que éramos...

— ... Ira, Galahad e Justin não nos tratam como crianças...

— ... mas você trata, e isso não é apenas humilhante; é de partir o coração, quando podemos nunca mais vê-lo outra vez...

— ... quando você não criou nenhum caso verdadeiramente ao ter relações com Minerva...

— ... para não mencionar Tammy, Hamaquerida e Ish...

— Parem com isso! Elas pararam.

— Concordo com uma possibilidade remota a respeito delas três, embora matematicamente muito pouco provável.

— Matematicamente bastante provável, Lazarus — disse Lorelei calmamente —, porque estávamos todos nisso. Justin, Ira e Galahad relutaram nas ocasiões certas da mesma maneira como garantiram que o primeiro filho de Minerva era de Ira e o primeiro de Tammy era de Justin. Mas se isso não funcionasse (para qualquer uma das quatro, não "três"), então Ishtar corrigiria pelo banco de esperma.

— Eu não estou no banco de esperma!

As garotas trocaram olhares. Lápis-Lazúli perguntou:

— Quer apostar?

— Isso é uma aposta de trouxa, amigo — disse Dora. Lazarus ficou pensativo.

— A menos que Ishtar me tenha enganado há quase vinte anos. Quando era seu cliente de rejuvenescimento.

— Suponho que ela possa ter feito isso, Lazarus — disse Lorelei calmamente. — Mas não o fez, ao que eu saiba... e este esperma é fresco. Congelado há não mais de um ano, todo ele. Depois do dia em que você anunciou a data para esta viagem.

— Impossível.

— É melhor não dizer "Impossível". Qual é o recipiente perfeito para manter o esperma fresco e vivo até que um técnico possa pô-lo no banco?

Lazarus ficou muito pensativo.

— Bem... Macacos... me... mordam!

— Correto, irmão. Ponha uma mulher em volta dele. Você estava tendo, hã, tanto cuidado em escolher suas companheiras de cama pelos seus ciclos, de forma a não deixar nenhum bebê atrás... e elas estavam tendo, hã, tanto cuidado em ver Ish ou Galahad logo que você dormia... bem como falsificando calendários também. A questão é, amado irmão nosso, que você não é o dono dos seus genes... ninguém é. Ouvimos você dizer isso, ao discutir como Minerva foi construída. Os genes pertencem à raça; são simplesmente emprestados ao indivíduo enquanto vive. E nós todos, sabendo que você ia tentar essa coisa imprudente, resolvemos que, embora você seja livre para jogar fora sua vida, não é livre para desperdiçar um padrão genético único.

Lazarus mudou de assunto.

— Por que vocês dizem "quatro"?

— Irmão, você tem vergonha de Minerva? — respondeu Lorelei. — Não acredito nisso. Nem Laz.

— Ora... Não, não tenho vergonha dela, tenho orgulho! Que diabo, vocês duas sempre conseguiram confundir-me.

Eu simplesmente não sabia que ela tinha contado a alguém. Eu não contei.

— Quem ela recorreria senão a nós? — perguntou a outra gêmea.

— Você quer dizer "A quem ela recorreria".

— Que diabo, irmão, esta é uma péssima ocasião para corrigir a nossa gramática! Minerva procurou-nos em busca de conselho... e conforto! Porque estávamos na mesma posição difícil que ela em relação a você. Em que ela estava, quero dizer, porque ela saiu do mato parecendo tão cheia de si como uma gata. Você a fez feliz...

—... quando estava se acabando de tanto chorar...

—... e ela ficará feliz agora, mesmo que não tenha...

—... porque uma vez é o bastante como símbolo, e se ela não.

—... Ish resolverá isso...

—... e naturalmente sabíamos disso quando você finalmente desistiu de vacilar e fez o que devia ter feito por ela anos atrás...

— ... porque ajudamos a preparar a coisa de forma a que ela pudesse pegá-lo sozinho e torcer o seu braço...

— ... e dissemos a ela que, se as lágrimas não bastassem, devia recorrer a um pouco de tremor no queixo...

— ... e isso funcionou e ela está feliz...

— ... mas que diabo, nós não estamos tão felizes, absolutamente, mas não choraremos para você...

— ... nem faremos nosso queixo tremer; isso seria infantil. Se você não fizer isso simplesmente porque nos ama...

— ... então para o diabo com isso, e provavelmente não recorreremos sequer ao banco de esperma. Em vez disso...

— ... pode ser melhor mandar Ish nos esterilizar...

— ... permanentemente... não apenas interromper a fertilidade temporariamente...

— ... e desistiremos de ser mulheres, já que somos um fracasso nisso.

— Parem com isso! Se vocês não vão chorar para mim, para que essas lágrimas?

— Essas lágrimas não são de choro, irmão — disse Lápis-Lazúli com calma dignidade. — São de puro desespero. Vamos, Lor; aplicamos um murro e erramos... vamos para a cama.

— Estou indo, irmã.

— Se o comodoro nos der licença.

— Com os diabos, ele não dará! Sentem-se novamente. Garotas, será que podemos conversar calmamente sobre isto sem vocês duas me torturarem?

As duas jovens se sentaram outra vez. A capita Lorelei olhou para a irmã e disse:

— Laz concorda em que eu fale por nós duas. Nada de torturas.

— Vocês duas operam os seus cérebros em série ou em paralelo? — disse Lazarus, pensativo.

— Nós... não achamos que isso seja relevante para a discussão.

— É apenas interesse científico. Se vocês puderem me ensinar como fazer isso, nós três poderemos formar um ótimo time.

— Isso só pode ser hipotético, Lazarus... já que nos rejeita.

— Que diabo, garotas! Eu não as rejeitei, eu nunca as rejeitarei.

Elas não disseram nada; ele continuou, embaraçado:

— Há dois aspectos nisto: um é genético, o outro é emocional. Genético... Nós três somos um caso estranho; homem e mulher, contudo quase idênticos. Mais do que quase... quarenta e cinco, quarenta e seis avós, para ser exato. O que torna a probabilidade de um mau reforço muito maior do que para irmãos comuns. Mas, além disso, somos Howards apenas por cortesia, porque os nossos genes não sofreram cerca de vinte e quatro séculos de seleção sistemática. Estou tão perto da frente da coluna que não houve absolutamente nenhuma seleção. Meus quatro avós estavam entre os primeiros selecionados; portanto, quando nasci, em 1912 gregoriano, não tinha atrás de mim nenhuma endogamia, nenhuma seleção, nenhuma limpeza do conjunto de genes. E vocês, queridas, estão no mesmo apuro, porque mesmo esses quarenta e seis avós de cromossomos vêm de mim, já que eles copiam o meu quadragésimo quinto. Apesar disso, vocês duas parecem querer aceitar este alto risco de reforço.

Ele fez uma pausa. Não houve comentários. Ele encolheu os ombros e continuou:

— A objeção emocional vem apenas de mim; vocês duas não parecem tê-la... é razoável, suponho, já que o conceito em que ela se baseia (do Velho Testamento) foi substituído pelo conceito de seguir o conselho dos geneticistas das Famílias. Não estou discutindo a sabedoria disso; concordo com eles... já que dizem "não" a um casal de estranhos sem parentesco tão prontamente como a irmãos, se os gráficos de genes derem "não" como resposta. Mas eu estava falando de sentimentos, não de ciência. Acredito que somente os estudiosos ainda lêem o Velho Testamento, mas a cultura em que fui criado estava encharcada das atitudes dele... o "Cinturão da Bíblia", vocês me ouviram chamá-lo assim. Garotas, é difícil uma criança se libertar de qualquer tabu com que tenha sido doutrinada nos seus primeiros anos. Mesmo que ela saiba mais tarde que eles não têm sentido.

"Tentei proceder melhor com vocês duas. Tive tempo suficiente para separar meus tabus e meus preconceitos do que sei realmente, e tentei (tentei com muito esforço!) não infligir a vocês duas quaisquer das bobagens irracionais com que me alimentaram sob o pretexto de me educarem. Aparentemente tive sucesso, ou nunca teríamos chegado a este impasse. Mas aí está ele... Vocês duas são jovens modernas... mas, embora partilhemos o mesmo gene, sou um velho selvagem de uma época muito sombria." Ele suspirou. "Lamento."

Lorelei olhou para a irmã; as duas se levantaram.

— Sênior, pode dar-nos licença?

— Hein? Nenhuma contestação?

— Sênior, uma discussão emocional não permite nenhuma refutação. Quanto ao resto, por que devemos cansá-lo com argumentos quando já se decidiu?

— Bem... talvez tenham razão. Mas ouviram-me cortesmente. Quero dedicar-lhes o mesmo respeito.

— Não é necessário, Sênior. — Seus olhos e os de sua irmã estavam marejados de lágrimas; elas as ignoraram. — Estamos certas do seu respeito e, à sua maneira, do seu amor. Podemos ir?

Antes que Lazarus pudesse responder, a computadora disse francamente:

— Ei! Quero dar meu palpite nisso!

— Dora! — repreendeu-a Lorelei.

— Não me venha com isso, Lor. Não vou ficar educadamente calada enquanto minha família faz papel de idiota. Amigo, Lor não contou a você sobre o mau-olhado que elas pretendem infligir-lhe... e que eu ainda posso. E o farei!

— Dora, não queremos esse tipo de ajuda. Laz e eu concordamos nisso.

— É verdade. Mas vocês não me pediram para votar a respeito disso. E não sou nenhuma dama, nunca fui. Amigo velho, você sabe que não faz nenhuma diferença para mim quem faz o quê a quem; não me importa nada... exceto que é muito engraçado ouvi-las gritar e resmungar. Mas você está sendo mesquinho com minhas irmãs. Lor e Laz falaram sobre o fato de você não poder fazer esta viagem sem a ajuda delas... e rejeitaram esse trunfo como estando abaixo da dignidade delas, ou alguma asneira dessas. Mas eu não tenho nenhuma dignidade. Sem a minha ajuda ninguém faz uma viagem pelo tempo. Bolas, se eu entrar em greve, vocês não poderão nem voltar para Tertius. Poderão?

Lazarus ficou ironicamente surpreso, depois sorriu.

— Motim outra vez. Dorável, concordo com o seu argumento; você pode nos manter aqui fora (onde quer que seja "aqui") até morrermos de fome. Desconfiei séculos atrás de que um ser de carne e osso poderia algum dia se encontrar exatamente numa situação irremediável destas. Mas, querida, não permitirei que suas ameaças afetem a minha decisão. Você pode impedir a minha viagem pelo tempo... mas duvido que deixe Lor e Laz morrerem de fome. Vocês as levará para casa.

— Ah, diabo, vovô... você está sendo mesquinho outra vez. Você não passa de um verdadeiro filho da puta! Sabe disso?

— Culpado em ambas as acusações, Dora — admitiu Lazarus.

— E Lor e Laz estão sendo estupidamente obstinadas. Lor, ele ofereceu-lhe delicadamente uma oportunidade de dizer o que quisesse... e você recusou. Sua cadela teimosa!

— Dora, comporte-se.

— Para quê? Vocês três não se comportam! Assoem seus narizes, sentem-se e contem tudo ao amigo. Ele tem direito a isso.

— Talvez seja melhor vocês fazerem isso — disse Lazarus amavelmente. — Sentem-se, garotas, e conversem comigo. Dora? Fique firme entre as âncoras, garotinha... e ainda a levaremos para o porto.

— Sim, senhor comodoro! Mas você dê um jeito nessas duas cadelas tolas. Hein?

— Tentarei. Quem é a porta-voz desta vez? Laz?

— Não importa — respondeu Lápis-Lazúli. — Eu falarei por nós. Não se preocupe com Dora. Quando perceber que estamos contentes em aceitar sua decisão, ela deixará de dificultar as coisas.

— Ah, você acha isso, acha? Componha-se, Laz... ou estaremos de volta a Boondock antes que você possa dizer "pseudo-infinitos de Libby".

— Por favor, Dora, deixe-me contar ao irmão.

— Certifique-se apenas de contar-lhe tudo... ou direi a ele coisas que aconteceram aqui um ano inteiro antes de ele dizer que vocês tinham idade suficiente. Lazarus piscou e ficou interessado.

— Bem, bem! Vocês roubaram um desfile por minha conta?

— Bem, mamãe Ishtar nos disse que tínhamos idade suficiente. Era você que estava sendo ranzinza quanto a isso.

— Hum... combinado. Algum dia preciso contar a vocês uma coisa que aconteceu comigo, quando era moço, numa torre de igreja.

— Estou certa de que gostaríamos de ouvir isso, irmão... mas você quer nos ouvir agora?

— Quero. Dora e eu ficaremos calados.

— Deixe-me dizer, como prefácio, que não vamos pedir a Ishtar que lhe contrarie os desejos usando o banco de esperma. Mas há outras possibilidades às quais dificilmente você pode objetar. Considere como nascemos. Eu podia facilmente ter um clone implantado do meu próprio tecido, bem como Lor, embora possamos trocar os clones... por motivos puramente sentimentais, já que temos genes idênticos. Você vê alguma coisa errada nisso? Genética ou emocionalmente? Ou de outra forma?

— Hum... não. Fora do comum... mas isso é com vocês.

— Tão fácil (já que Ishtar tem tecido vivo seu in vitro), como clonar você... e Lorelei e eu teríamos gêmeos univitelinos, ambos "Lazarus Long" em todos os genes... faltando apenas sua longa experiência. Você acharia isso ofensivo?

— Hein? Agora espere um minuto! Deixe-me pensar.

— Deixe-me acrescentar que consideramos isto como um último recurso... se você estiver morto. Se você não voltar.

— Não comece a fungar outra vez! Ah, se eu estiver morto, não poderei votar nisso, não é?

— Não; porque se nós não fizermos isso, então Ishtar plantará o seu clone em uma das outras... ou nela mesma, com a ajuda de Galahad. Mas se Lorelei Lee e eu fizermos isso... gostaríamos muito mais de fazê-lo com a sua bênção.

— Hum... considerando que estaria morto... está bem, está bem, têm a minha bênção. Apenas uma coisa...

— O que, irmão?

— Castigue a pestinha. Ou as "pestinhas". Fui terrível. Vocês duas eram suficientes para seis... mas eu fui intratável. Se a gente não impõe a autoridade desde o berço, ele... eles... eu, que diabo, "eu" darei a vocês tanto desgosto que suas vidas não merecerão ser vividas.

— Tentaremos enfrentar... "você", Lazarus... e temos a vantagem de saber que, hã, você não passa mesmo de um filho da puta.

— Ai! Estou sangrando?

— Você manda com o seu queixo, irmão. A verdade é que você nos mimou... e pode ser que achemos difícil não mimá-lo. Teremos em mente, porém, o seu conselho. Mas queremos dizer isto antes de abandonarmos o assunto da genética. Quantos filhos você teve?

— Hã... demais, talvez.

— Você sabe exatamente quantos, bem como nós... e é um número suficientemente grande para ser verificado como um universo estatístico. Quantos eram defeituosos?

— Hã... nenhum, pelo que eu saiba.

— Exatamente nenhum. Ishtar deu-se ao trabalho de verificar, e Justin confirmou isso pelo seu estudo dos arquivos. Irmão, não sei quão fora do comum isto pode ter sido no século XX gregoriano... mas você tem um gráfico de genes limpo... e portanto nós também, naturalmente.

— Agora espere um minuto! Não estou realmente atualizado em genética, mas...

— ... mas Ishtar está. Quer discutir com ela? Nós aceitamos as afirmações dela; Lor e eu não somos geneticistas... ainda. Mas temos, registrado em Dora, o relatório formal de Ishtar sobre o seu gráfico genético. Se você quiser. Não que achemos que isso faça alguma diferença; você está nos rejeitando por motivos que nada têm a ver com a genética.

— Agora vá devagar! Não estou rejeitando vocês.

— É isso que nos parece. Somos construções artificiais; os hábitos soi-disant "incestuosos" de outra época e circunstâncias totalmente diferentes não se aplicam a nós, e você sabe disso; isso é apenas uma desculpa para evitar uma coisa que você não quer fazer. Acasalar-se conosco pode ser mas-turbação, mas não pode ser incesto porque não somos suas irmãs. Não somos suas parentas em qualquer sentido normal; nós somos você. Todos os nossos genes vêm de você. Se nós o amamos (e amamos), e se você nos ama (e ama, um pouco, à sua moda indireta e cautelosa), é um narcisista, ama a si mesmo. Mas desta vez, se você ao menos pudesse entender, esse amor narcisista pode ser consumado. — Ela parou e engoliu em seco. — Isso é tudo. Vamos Lor; vamos dormir.

— Esperem, garotas! Laz, Ishtar diz que isso é seguro?

— Você me ouviu dizer isso. Mas você não quer fazer... então para o diabo com isso!

— Eu nunca, em tempo algum, disse que não queria. Por que você acha que parei de fazer carinho em vocês duas, macaquinhas espertas, quando começaram a crescer?

— Ora, amigo!

— Porque devo ser o próprio Narciso... porque acho que as minhas duas gêmeas idênticas são as donas mais lindas, mais sexy. , . e mais assanhadas que já vi.

— Você acha? Acha realmente?

— Vocês me ouviram. Parem de tremer os seus malditos queixos! Por isso, quando vocês começaram a ficar "boas", comecei a manter minhas mãos longe de vocês. Mas... se Ishtar diz que está bem...

— Ela disse!

— Suponho que, desta vez, posso conseguir dois minutos para cada uma de vocês.

Lorelei ficou ofegante.

— Você ouviu isso, Laz?

— Ouvi. "Dois minutos."

— Rude, bruto e vulgar. — Insultante.

— Enfurecedor.

— Mas aceitamos...

— ... agora mesmo!

 

Da capo [20]

I

As colinas verdes

O iate estelar Dora pairou dois metros acima do pasto, com a escotilha inferior iridescente aberta. Lazarus deu em Lazi e Lori um último abraço rápido e saltou para o chão — rolou com o impacto, ficou de pé e afastou-se apressadamente do campo da nave. Acenou, e a nave se ergueu em linha reta para o alto, uma nuvem negra, redonda contra as estrelas. Depois foi embora.

Ele olhou rapidamente em torno de si — A Ursa Maior... a Estrela Polar... está bem, cerca daquele lado, estrada adiante, e... fantasma de César! Um touro!

Saltou a cerca, evitando-a por centímetros, alguns metros à frente do touro.

Lazarus estava se movendo tão depressa que sua velocidade tornou necessária outra aterrissagem, rolando. Terminou no meio de uma estrada de terra sulcada, enquanto refletia que muitas aterrissagens desse tipo não melhorariam sua aparência. Apalpou os bolsos, especialmente um bolso extra escondido pela aba do seu macacão, e decidiu que não faltava nada. Sentiu a falta do conforto de uma arma na cintura — mas sabia que qualquer tipo de revólver seria um erro, para esse tempo e lugar. O fac-símile de um canivete grande era tudo o que levava.

Seu chapéu... A vala? Não. Dez metros dentro da cerca... que bem poderiam ser dez quilômetros; o touro estava de olho nele. Não era necessário um chapéu, e se alguém o encontrasse e notasse que não era propriamente comum... bem, não havia nada que o ligasse a ele. Esqueça.

Estrela Polar outra vez... Aquela cidade devia estar a cerca de oito quilômetros por essa estrada, direto como voa a tartaruga. Ele partiu.

 

Lazarus parou em frente à tipografia do Democrata, do condado de Dade [21], olhando para as folhas colocadas dentro da vitrina, mas sem ler. Estava pensando. Acabara de ter um choque, e a simulação de continuar a ler jornais afixados permitiu-lhe fazer isso com calma. Ele havia lido uma data, e agora precisava reconstituir um pouco de história antiga. Primeiro de agosto, 1916 — mil novecentos e dezesseis?

Viu refletido no vidro o vulto que se aproximava pela calçada — pesadão, de meia-idade, usando um cinturão de revólver quase escondido pela barriga, que transbordava, um revólver no coldre da coxa direita, uma estrela do lado esquerdo do peito; quanto ao mais, estava vestido de maneira muito parecida com Lazarus. Ele continuou a olhar para a primeira página afixada do Journal, de Kansas City.

— Bom dia. Lazarus virou.

— Bom dia... delegado.

— Apenas guarda, filho. Estranho por aqui? — Sim.

— De passagem? Ou em casa de alguém?

— De passagem. A menos que encontre trabalho.

— Essa é uma boa resposta. Qual é a sua profissão?

— Fui criado numa fazenda. Mas entendo de mecânica em geral. Ou qualquer coisa, por um dólar honesto.

— Bem, vou lhe dizer. Não há muitos fazendeiros contratando gente agora. Quanto ao resto, as coisas são meio paradas no verão. Hum, você não é um daqueles IWW [22], não?

— "IW" o quê?

— Um wobbly [23], filho... você não lê os jornais? Esta é uma comunidade cordial, sempre disposta a receber visitantes.

Mas não desse tipo. — A lei local ergueu uma das mãos para limpar o suor e fez um sinal de reconhecimento da loja [24]. Lazarus sabia como responder-lhe... e decidiu não fazer isso. "Onde fica a sua loja?" Essa é uma boa pergunta, oficial, portanto não deixemos que seja feita.

— Bem, já que você não é um deles — continuou o guarda —, pode perguntar por aí e ver se alguém precisa de ajuda. — Olhou para a primeira página, que Lazarus fingia ler. — Terrível o que esses submarinos estão fazendo, não é?

Lazarus concordou.

— Contudo — acrescentou o oficial —, se as pessoas ficassem em casa e cuidassem da própria vida, isso não aconteceria. Viva e deixe viver, eu sempre digo. Que igreja você freqüenta?

— Bem, minha família é presbiteriana.

— É mesmo? Parece que você não a tem freqüentado ultimamente. Bem, eu mesmo falto algumas vezes, quando os peixes estão mordendo. Mas... Vê aquela igreja no fim da rua? A torre através dos olmos. Se você encontrar trabalho, ora, venha domingo, às dez horas; permita-me estender-lhe a mão direita da amizade. Metodista episcopal, mas não há muita diferença. Esta é uma comunidade tolerante.

— Obrigado, oficial; estarei lá.

— Ótimo. Muito tolerante. Principalmente metodistas e batistas... apenas alguns mórmons nas fazendas em redor. Bons vizinhos, sempre pagam suas contas. Alguns católicos, e ninguém é contra eles por causa disso. Ora, temos até um judeu.

— Parece uma boa cidade.

— E é. Opção local e vida limpa. Apenas uma coisa... se você não encontrar trabalho... a cerca de oitocentos metros além da igreja você encontrará um letreiro dos limites da cidade. Se estiver desempregado e não tiver um endereço, é melhor estar do outro lado dele ao pôr-do-sol.

— Compreendo.

— Ou terei de prendê-lo. Nenhuma animosidade; a coisa simplesmente é assim. Nenhum vagabundo ou preto após o pôr-do-sol. Não faço as regras, filho; apenas faço-as serem cumpridas ... e é assim que o juiz Marstellar define um vagabundo. Algumas das nossas boas senhoras o têm pressionado... coisas roubadas dos varais e outras parecidas. Assim, são dez dólares ou dez dias... o que não é muito ruim, porque o xadrez fica na minha casa. A comida não é caprichada porque só me dão quarenta centavos por dia para alimentar um prisioneiro... embora por mais cinqüenta centavos você possa comer o que nós comemos. Nenhuma intenção de tornar as coisas difíceis, você compreende... mas apenas porque o juiz e o prefeito pretendem manter este lugar sossegado e dentro da lei.

— Compreendo. Certamente nenhuma animosidade... porque o senhor não terá ocasião de me prender.

— Alegra-me sabê-lo. Qualquer coisa em que possa ajudá-lo, filho, basta avisar-me.

— Obrigado. Talvez o senhor possa me ajudar neste momento. Conhece alguma privada que um estranho possa usar? Ou é melhor eu tentar agüentar até estar fora da cidade e poder encontrar algumas moitas?

— Ah — o guarda sorriu —, acho que podemos ser hospitaleiros a esse ponto. O tribunal possui um toalete verdadeiro com descarga... mas não está funcionando. Deixe-me pensar. O ferreiro, adiante nesta rua, algumas vezes atende automobilistas de passagem. Irei até lá com você.

— Isso é muito amável de sua parte.

— Será um prazer. É melhor dizer-me o seu nome.

— Ted Bronson

O ferreiro estava aparando o casco de um animal jovem e castrado. Ergueu os olhos.

— Olá, diácono.

— Olá, Tom. Este jovem amigo meu, do Kansas, Ted Bronson, está com um problema urgente. Ele pode usar a sua privada?

O ferreiro examinou Lazarus.

— Sirva-se, Ted. Tente agüentar até chegar ao fundo da seção de arreios.

— Obrigado, sr. Tom.

Lazarus seguiu o caminho atrás da loja; ficou satisfeito ao descobrir que a privada tinha uma porta sem fendas e podia ser fechada por dentro. Meteu a mão no bolso extra escondido pela aba do macacão e tirou o dinheiro.

Notas de papel convincentes em todos os detalhes; eram cópias restauradas de originais do Museu de História Antiga de Nova Roma — "contrafações" por definição, mas as restaurações eram tão perfeitas que Lazarus não teria hesitado em passá-las em qualquer banco — exceto por uma coisa: que datas tinham elas?

Separou apressadamente o papel-moeda em dois montes: 1916 e antes, e pós-1916; depois, sem hesitar ou parar para contar, enfiou as notas usáveis num bolso, rasgou uma página do catálogo da Montgomery Ward [25] dentro da caixa de sabugos de milho, embrulhou as notas inúteis para que não pudessem ser identificadas como dinheiro e jogou o embrulho dentro da fossa. Em seguida, tirou as moedas que ainda estavam naquele bolso secreto e conferiu suas datas.

Notou que a maioria delas trazia datas de cunhagem comprometedoras — estas acompanharam o papel-moeda. Gastou um segundo inteiro admirando uma réplica perfeita de moeda de cinco centavos — que coisa bonita! Pensou gravemente, pelo menos por dois segundos, numa maciça moeda de ouro de vinte dólares. Ouro era ouro; seu valor não diminuiria se ele a derretesse ou batesse até transformá-la numa massa informe. Mas ela era um risco até ele poder desfigurá-la, porque o palhaço da próxima cidade poderia não ser tão amistoso quanto o desta. Lá foi ela para baixo.

Sentiu-se aliviado então. Dinheiro "falso" era um crime sério ali, dava um certo número de anos em prisões desagradáveis e de onde era difícil fugir. Mas a falta de dinheiro era um inconveniente corrigível. Lazarus havia pensado em chegar absolutamente sem dinheiro algum, depois havia concordado em levar o suficiente para alguns dias, para permitir-lhe olhar em volta, reorientar-se, habituar-se aos costumes e à língua outra vez, antes de ter que lutar pela vida — nunca havia pensado em tentar levar o bastante para dez anos.

Não importava, aquilo era mais divertido — e um bom exercício para a tarefa muito mais difícil de enfrentar uma era que nunca havia conhecido. A Inglaterra elisabetana — esse seria um verdadeiro desafio.

Contou o que lhe restara: três dólares e oitenta e sete centavos. Nada mau.

— Pensei que você tivesse caído lá dentro — disse o ferreiro. — Sente-se melhor?

— Muito melhor. Obrigado.

— De nada. O diácono Ames afirma que você é mecânico.

— Sou hábil com ferramentas.

— Já trabalhou alguma vez numa ferraria?

— Já.

— Deixe-me ver suas mãos. — Lazarus deixou suas palmas serem inspecionadas. O ferreiro disse: — Sujeito de cidade.

Lazarus não fez comentários.

— Ou será que você conseguiu essas mãos macias na prisão?

— Suponho que isso possa explicar o fato. Obrigado mais uma vez pelo uso das suas instalações.

— Espere um pouquinho. Trinta centavos por hora e você fará o que eu mandar... e poderei despedi-lo após a primeira hora.

— Está bem.

— Conhece alguma coisa sobre automóveis?

— Um pouco.

— Veja se consegue fazer aquele Tin Lizzie [26] funcionar. — O ferreiro apontou com a cabeça para o lado oposto da loja.

Lazarus saiu e examinou o Ford que havia notado ali antes. Sua carroceria traseira havia sido retirada e em seu lugar fora colocada uma caixa de madeira para convertê-la numa caminhonete. Os raios de suas rodas mostravam indícios de estradas lamacentas, mas parecia estar em boas condições. Ele tirou o banco da frente, verificou a gasolina com uma vareta que encontrou ali — meio tanque. Verificou a água, colocou mais um pouco, depois abriu o capo e examinou o motor.

O fio do magneto para a bobina não estava ligado; ele religou-o.

Puxou o freio de mão — achou que não estava muito firme; calçou as rodas. Só então ligou a ignição, abriu o afogador e atrasou a faísca.

Colocou o polegar cuidadosamente ao lado dos dedos em vez de em volta da manivela — depois trouxe a manivela até o alto, empurrou e virou-a.

O motor fez um barulho forte; o carrinho tremeu. Ele correu para o lado do motorista, estendeu a mão, avançou a faísca três pontos e regulou o afogador para marcha lenta.

O ferreiro estava observando.

— Está bem, desligue e venha dar-me um pouco de vento na forja. — Nenhum deles mencionou o fio desligado.

Quando o ferreiro — Tom Heimenz — acabou de almoçar, Lazarus caminhou duas quadras até um armazém por onde havia passado, comprou um litro de leite cru tipo A — cinco centavos, três centavos de depósito da garrafa —, olhou para um pão de um níquel, depois resolveu comprar um pão grande de dez centavos; ele não havia tomado café. Voltou até a loja do ferreiro e saboreou com prazer seu almoço, enquanto ouvia as opiniões do sr. Heimenz.

Ele era republicano progressista, mas desta vez ia mudar; o sr. Wilson nos havia mantido fora da guerra.

— Não que ele tenha feito bem ao país de qualquer outra forma; o alto custo de vida está pior do que nunca... e além disso, ele é pró-Inglaterra. Mas aquele tolo, Hughes [27], nos envolveria na guerra da Europa da noite para o dia. É uma escolha difícil. Eu gostaria de votar em La Follette [28], mas eles não tiveram senso suficiente para indicá-lo. A Alemanha vai vencer e ele sabe disso... e vamos parecer muito tolos tentando tirar as castanhas do fogo para os ingleses.

 

Lazarus concordou solenemente.Heimenz disse a "Ted" para aparecer às sete da manhã seguinte. Mas pouco antes do nascer do sol, quase três dólares mais rico e com o estômago bem forrado com salsichas, queijo e bolachas, Lazarus estava além do letreiro dos limites da cidade, indo para oeste. Ele não tinha nada contra a cidade ou o ferreiro, mas não havia arriscado essa viagem para passar dez anos numa cidade do interior a trinta centavos por hora. Pretendia mover-se por ali e recapturar o sabor da época.

Além disso, Heimenz tinha sido muito perguntador. Lazarus não havia se importado com a inspeção de suas mãos ou a sugestão de que tinha acabado de sair da cadeia, e o fio desligado serviu de contrapeso. Quando, porém, Lazarus fugira à pergunta sobre o seu sotaque com generalidades, o ferreiro havia tentado apertá-lo para saber exatamente onde ele havia morado no Território Índio em criança e quando sua família viera do Canadá.

Uma comunidade maior significaria menos perguntas pessoais e mais oportunidade de pôr as mãos em mais de trinta centavos por hora sem ter que roubá-los.

Estava andando havia uma hora quando deparou com um automobilista em dificuldades, um velho médico rural atormentado por um pneu vazio num Maxwell. Lazarus desmontou uma lanterna lateral a óleo de carvão e mandou o médico segurá-la enquanto remendava a câmara de ar, recolocava o pneu e o enchia, recusando depois uma gorjeta.

— Red — disse o dr. Chaddock —, você sabe guiar estes troços a gasolina?

Lazarus admitiu que sabia.

— Bem, filho, já que você está indo para oeste de qualquer maneira, o que diz de me levar até Lamar [29], depois uma cama improvisada no sofá da minha sala de espera, café da manhã... e quatro moedas pelo seu trabalho?

— Digo "sim" a tudo isso, doutor... salvo que não há necessidade de desperdiçar dinheiro comigo. Não estou quebrado.

— Tolice e bobagem. Discuta isso pela manhã. Estou completamente extenuado; este dia começou antes do raiar do sol. Eu costumava enrolar as rédeas em torno do chicote e dormir até a égua nos levar para casa. Mas estas coisas são estúpidas.

Após uma refeição de ovos estrelados, presunto frito, batatas, panquecas com melado e manteiga da roça, conserva de melancia, conserva de morangos, creme grosso e muito café tomado no pires e soprado — a caseira do médico, sua velha irmã solteirona, ficara oferecendo coisas a Lazarus, insistindo em que ele não estava comendo o bastante para manter vivo um passarinho — ele partiu novamente, um dólar mais rico, muito mais limpo e parecendo menos caipira, porque cuspe, Shinola e suor haviam melhorado a aparência dos seus sapatos, e a srta. Nettie havia insistido em dar-lhe algumas roupas velhas.

— Podem servir para você, Roderick, ou para o Exército de Salvação. Tome, leve esta gravata também; o doutor não a usa mais. Vai ficar bem em você quando procurar trabalho, eu sempre digo... afirmo que dificilmente abro a porta de tela para dar comida ou roupa a um homem, se ele não estiver usando gravata.

Ele aceitou tudo, consciente de que ela tinha razão, consciente também de que o dr. Chaddock teria passado uma noite ruim tentando dormir no seu automóvel, enquanto sua irmã se preocupava, se Lazarus não tivesse aparecido — contas liquidadas. A srta. Nettie fez um embrulho bem-feito das roupas dele; ele lhe agradeceu e prometeu enviar-lhe um cartão-postal de Kansas City — depois abandonou o embrulho na primeira moita que encontrou, sentindo um pouco de arrependimento, porque aquelas roupas podiam durar indefinidamente, apesar do aspecto usado que tinham. Mas tinham um corte ligeiramente anacrônico, e ele nunca esperara usá-las mais tempo do que o necessário — e um homem na estrada não podia parecer-se com um trabalhador migrante, o que a srta. Nettie provavelmente não sabia.

Ele encontrou a estrada de ferro, mas evitou a estação. Postou-se na extremidade norte da cidade e esperou. Um trem de passageiros e um de carga passaram em direção ao sul; depois, por volta das dez horas, apareceu um trem de carga indo em direção ao norte, ainda adquirindo velocidade vagarosamente; Lazarus embarcou num salto. Não fez nenhum esforço para não ser visto e o guarda-freios deixou-o dormir por um dólar — um dólar falso; seus dólares autênticos estavam agora sob uma atadura do lado de dentro da sua coxa esquerda.

O guarda-freios avisou-o de que podia haver um detetive da estrada na parada seguinte — não dê a ele mais do que um dólar —, e ele encontraria Pinkertons [30] nos pátios de manobras de kc [31] se ele fosse até lá... portanto, não vá: aqueles engraçadinhos aceitariam o seu dólar e dar-lhe-iam uma surra de qualquer maneira. Lazarus agradeceu-lhe e pensou em perguntar que linha era aquela — a Missouri Pacific? —, mas resolveu que isso não importava; ela ia para o norte e o conselho do guarda-freios permitiu-lhe saber que ia a uma distância suficiente para servir-lhe.

Após um longo dia quente, metade dele numa gôndola e metade num vagão fechado vazio, o que representou uma pequena melhoria, Lazarus saltou quando o trem passou pelo Swope Park. Estava num tal estado de cansaço e sujeira que quase se arrependeu de não haver comprado uma passagem. Mas tirou isso da cabeça, sabendo que chegar a uma cidade grande sem dinheiro podia terminar em "trinta dólares ou trinta dias", em vez da tarifa mais moderada de uma cidade pequena. Afinal, tinha quase seis dólares, a maior parte deles em dinheiro "verdadeiro".

Notou, encantado, que o Swope Park parecia familiar apesar dos séculos. Apressou-se em atravessá-lo e encontrou o fim da linha do bonde. Enquanto esperava pelo serviço pouco freqüente dos dias de semana, pagou com uma moeda de cinco centavos um sorvete de três bolas e tomou-o com prazer, sentindo paz em sua alma. Com outros cinco centavos fez um longo passeio de bonde com uma baldeação que o levou ao centro de Kansas City. Lazarus apreciou cada minuto e desejou que o passeio fosse mais longo. Como a cidade era tranqüila, limpa e sombreada pelas árvores! Como era docemente bucólica!

Lembrou-se de outra ocasião em que havia visitado a velha cidade em que morara — em que século? Em alguma época no começo da Diáspora, pensou —, quando um cidadão que se aventurasse pelos canyons imundos de suas ruas usaria um capacete de aço simulando uma peruca, um colete à prova de balas e proteção na frente das calças, óculos com couraça, luvas que cobriam juntas de metal e outras armas escondidas e ilegais — mas raramente saía nas ruas; era mais discreto limitar-se às cápsulas de transporte, e sair apenas nos subúrbios vigiados — especialmente depois de escurecer.

Mas aqui e agora as armas eram legais — e ninguém as usava.

Desceu do bonde na McGee e encontrou a ACM, perguntando a um policial. Lá, por meio dólar, deram-lhe a chave de um pequeno cubículo, uma toalha e uma pequena barra de sabonete.

 

Após se espojar num banho de chuveiro, Lazarus voltou ao saguão, e notou telefones, tanto Bell como Home, no balcão, com um aviso chamadas locais 5 "cents" — pague ao empregado do balcão. Pediu para usar os catálogos de telefones e encontrou no catálogo do Sistema Bell: "Chapman, Bowles, & Finnegan, advogados" — Edifício R. A. Long, sim, isso tinha sentido. Procurou novamente e encontrou "Chapman, Arthur J., advogado", com um endereço no Paseo.

Esperar até o dia seguinte? Não faria mal verificar se Justin tinha as respostas corretas. Entregou um níquel ao empregado do balcão e pediu o telefone Bell.

— Número, por favor!

— Central, ligue-me, por favor, com Atwater 1-2-2-4... Alô? É da casa do sr. Arthur J. Chapman, o advogado?

— É ele quem fala.

— O sr. Ira Howard me disse que ligasse para o senhor, conselheiro.

— Interessante. Quem é você?

— "A vida é curta."

— "Mas os anos são longos" — respondeu o advogado.

— "Não enquanto os Dias Maus não vêm."

— Muito bem. O que posso fazer pelo senhor? Problemas?

— Não, senhor. Aceitará um envelope para ser entregue ao secretário da Fundação?

— Sim. Pode trazê-lo ao meu escritório?

— Amanhã de manhã, senhor?

— Digamos por volta das nove e meia. Tenho que estar no tribunal às dez.

— Obrigado, senhor; estarei aí. Boa noite.

— De nada. Boa noite para o senhor.

 

Havia uma escrivaninha no saguão, com outro aviso para falar com o empregado do balcão, juntamente com uma homilia: "Você já escreveu para sua mãe esta semana?" Lazarus pediu uma folha de papel e um envelope dizendo (sinceramente) que queria escrever para casa. O empregado deu-os a ele.

— Isto é o que gostamos de ouvir, sr. Jenkins. Tem certeza de que uma folha basta?

— Se não bastar, pedirei outra. Obrigado.

Após o café da manhã (café e uma rosca, cinco centavos) Lazarus localizou uma papelaria na Grand Avenue e investiu quinze centavos em cinco envelopes que se aninhavam em série, voltou para a acm e preparou-os, depois os entregou em mãos ao sr. Chapman — apesar dos lábios franzidos em desaprovação da secretária do sr. Chapman.

O envelope de fora dizia: "Secretário da Fundação Ira Howard".

O seguinte dizia: "Ao secretário da Associação das Famílias Howard do ano de 2100 d.C".

O seguinte dizia: "Por favor, mantenha nos arquivos das Famílias durante mil anos. Recomenda-se atmosfera inerte".

O quarto dizia: "Para ser aberto pelo arquivista-chefe em exercício no ano gregoriano de 4291".

O quinto envelope dizia: "Por favor, entregue a pedido a Lazarus Long ou a qualquer membro de sua família da colônia Tertius".

Dentro deste envelope estava o envelope da acm que continha o bilhete que Lazarus havia escrito na noite anterior; o envelope continha todos os nomes da sua família de Boondock, com Lápis-Lazúli e Lorelei Lee encabeçando a lista:

 

4 de agosto de 1916 greg.

"Queridas:

Enganei-me. Cheguei há três dias — três anos mais cedo! Mas ainda quero que vocês me peguem exatamente dez anos T após terem me soltado, na cratera de impacto, isto é, a 2 de agosto de 1926 gregoriano.

Por favor, afirmem a Dora que isto não é culpa dela. É ou minha ou de Andy — ou talvez os instrumentos de que dispúnhamos então não fossem suficientemente precisos. Se Dora desejar recalibrar (não é necessário, porque o encontro permanece exatamente a dez anos T da queda), digam a ela para conseguir com Atena eclipses do Sol pela Luna para estes dez anos — não tive tempo de procurá-los porque acabei de chegar a Kansas City.

Tudo está absolutamente bem. Gozo de boa saúde, tenho dinheiro suficiente e estou perfeitamente seguro. Escreverei outras cartas e mais longas — mais bem preservadas, não tive tempo de gravar esta a água-forte — usando todas as caixas de correios que Justin sugeriu.

Beijem todos por mim. Segue carta comprida.

Meu amor imorredouro, Amigo Velho.

  1. S.: Espero que sejam um menino e uma menina — isso seria engraçado!"

 

 

Da capo

II

O fim de uma era

25 de setembro de 1916 greg.

Queridas Laz-Lor:

Esta é a segunda das muitas cartas que tentarei enviar, usando todas as caixas de correspondência atrasada que Justin sugeriu — três firmas de advogados, o Banco Chase National, uma cápsula de tempo a ser remetida com instruções a um tal dr. Gordon Hardy via W. W. Smith via um cofre de segurança (pessoa simples, inofensiva e pouco digna de confiança, esse Smith; ele provavelmente a abrirá e, portanto, a destruirá — embora não me lembre dela, de um modo ou de outro), e todos os outros subterfúgios que decorei. Se eu puder introduzir apenas uma nos arquivos imediatamente antes da Diáspora, ela deve ser entregue quando vocês a pedirem, no fim do ano gregoriano de 4291, pelo programa que elaboramos.

Com sorte, vocês receberão dúzias de cartas, todas ao mesmo tempo. Arrumadas por datas, devem constituir um registro dos próximos dez anos. Pode haver lacunas no relato (cartas que deixarão de chegar) — nesse caso, preencherei essas lacunas (após vocês me pegarem) ditando a Atena, para manter minha promessa a Justin e a Galahad de um relatório completo. Quanto a mim, ficarei satisfeito se apenas uma chegar — e digam a Atena para continuar trabalhando naquela idéia de cápsulas-do-tempo-cum-correspondência-atrasada para séculos ainda mais anteriores; devia haver algum meio de torná-la à prova de erros.

Usarei uma grande variedade de endereços — mais um truque que imaginei. Vou mandar uma carta nos envelopes múltiplos habituais para o computador executivo de Secundus, ano 2000 da Diáspora, para ser aberta e lida pelo computador (intocada por mãos humanas!) com um programa para reter a mensagem e entregá-la ao líder da colônia, em Tertius, no dia seguinte ao da nossa partida.

Não acredito em paradoxos. Ou Minerva recebeu essa mensagem antes de vocês nascerem, arquivou-a no arquivo morto, transmitiu-a a Atena, e agora (o agora de vocês) Ira está com ela e passou-a a vocês duas — ou ela deixou absolutamente de chegar. Nenhuma anomalia, nenhum paradoxo — sucesso total ou fracasso total. Tive a idéia pelo fato de o computador executivo abrir, ler e tomar providências a respeito de inúmeras mensagens escritas, não as referindo ao Presidente Temporário ou a qualquer ser humano a menos que necessário.

Mensagem básica: (Isto estava no meu primeiro bilhete e estará em todas as cartas). Cometi um erro na calibragem e cheguei três anos mais cedo. Isto não foi por culpa de Dora, e não deixem de dizer a ela que eu disse isso, antes de contar-lhe o que aconteceu. Tranqüilizem-na. Apesar dos seus modos de menino turbulento, ela é muito vulnerável e não deve ser magoada. Se eu lhe tivesse dado números suficientemente precisos, ela teria atingido qualquer fração de segundo que eu tivesse pedido; disto estou certo.

Momento e lugar do encontro básico continua dez anos T após vocês terem me lançado, e na cratera de impacto do meteoro no Arizona, outros momentos e lugares de encontro figurados do básico, como antes. Meu erro altera a data gregoriana do encontro para 2 de agosto de 1926 — mas ainda dez anos após a queda, como planejado.

Se Dora se preocupar menos encontrando o erro na data que dei a ela, aqui estão marcações de tempo em que ela pode confiar: datas gregorianas dos eclipses totais do Sol pela Luna em relação à Terra entre 2 de agosto de 1916 e 2 de agosto de 1926 gregorianos.

 

8 de junho de 1918                         10 de setembro de 1923

29 de maio de 1919                       24 de janeiro de 1925

21 de setembro de 1922    14 de janeiro de 1926

 

Se Dora quiser ser ainda mais meticulosa pode obter qualquer data antiga do sistema solar com Atena; a Grande Biblioteca de Nova Roma preservou um material inesgotável desse tipo. Mas Dora tem em suas próprias entranhas tudo aquilo de que realmente precisa.

 

Recapitulação:

  1. Apanhem-me dez anos T após terem me soltado.
  2. Cheguei três anos mais cedo — erro meu, não de Dora.
  3. Estou ótimo, saudável, em segurança, firme, sentindo falta das minhas queridas, e mando lembranças para vocês todos.

Agora as aventuras cabeludas e assustadoras de um viajante-pelo-tempo... Para começar, elas não foram nem cabeludas nem assustadoras. Tive cuidado para não chamar atenção, fiquei tão retraído como um camundongo num espetáculo de gatos. Sempre que os nativos passam lama azul em seus umbigos, eu passo lama azul no meu com a mesma solenidade. Concordo com a política de qualquer um que fale comigo, freqüento a igreja que ele freqüenta — embora admita timidamente que tenha faltado ultimamente —, ouço em vez de falar (o que vocês podem achar difícil de acreditar), e nunca dou respostas malcriadas. Se alguém tenta roubar-me, não o mato ou sequer lhe quebro os braços; calo a boca e deixo-o tirar tudo quanto possa encontrar em mim. Meu propósito inabalável é estar na beira daquela cratera no Arizona daqui a dez anos; não devo permitir que nada ponha em risco o nosso encontro. Não estou aqui para reformar este mundo; estou simplesmente visitando outra vez os lugares da minha juventude.

Tem sido mais fácil do que eu esperava. O meu sotaque deu algum problema a princípio. Mas ouvi e agora falo com um sotaque da Zona do Milho, tão áspero como quando eu era moço. É espantoso como as lembranças voltaram. Confirmo pela experiência a teoria de que as lembranças da infância são permanentes, embora a pessoa possa "esquecê-las" até serem reestimuladas. Deixei esta cidade quando era mais moço do que vocês duas; já estive em mais de duzentos planetas desde então, e esqueci a maioria deles.

Mas vejo que conheço esta cidade.

Algumas mudanças... mas mudanças na outra direção da entropia; agora a estou vendo como era quando eu tinha quatro anos T de idade. Eu tenho quatro anos de idade em qualquer outro lugar desta cidade. Tenho evitado aquele bairro e ainda não tentei ver minha primeira família — a idéia me deixa um pouco inquieto. Bem, eu a verei, antes de partir em viagem pelo país; não tenho medo de ser reconhecido por eles. Impossível! Pareço um homem moço e muito — acho eu — como era quando realmente jovem. Mas ninguém aqui jamais viu como seria o menino de quatro anos de idade quando crescesse. Meu único risco estaria em tentar dizer a verdade. Não que acreditassem em mim — ninguém aqui acredita sequer em viagens espaciais, quanto mais em viagens pelo tempo —, mas porque correria o risco de ser preso como "maluco" — termo não-científico que significa que a pessoa a quem se aplica esse rótulo tem uma visão do mundo diferente da aceita.

Kansas City em 1916... Vocês me soltaram num pasto; pulei a cerca e caminhei até a cidade mais próxima. Ninguém nos viu — diga a Dora que ela fez isso com a habilidade de um batedor de carteiras. A cidade era agradável, o povo amável; fiquei um dia para me reorientar, depois segui em frente para uma cidade maior, fiz o mesmo lá e consegui roupas para transformar-me de um trabalhador de fazenda em alguém que não fosse conspícuo numa cidade. (Vocês, queridas, que nunca usam roupas quando não precisam — exceto em ocasiões festivas —, teriam dificuldade em acreditar como o status aqui e agora é revelado pelas roupas. Muito mais do que em Nova Roma — e aqui se pode olhar para uma pessoa e dizer sua idade, sexo, status social, status econômico, ocupação provável, instrução aproximada e muitas outras coisas, apenas pela roupa. Estas pessoas até nadam vestidas — não estou brincando; perguntem a Atena. Minhas queridas, elas dormem com roupas!)

Tomei um trem para Kansas City. Peçam a Atena para mostrar uma fotografia de um desta era. Esta cultura é prototécnica, apenas começando a mudar da força do músculo humano e animal para a força gerada. Essas que existem se originam da queima de combustíveis naturais, do vento ou das quedas-d'água. Algumas destas são convertidas em força elétrica primitiva, mas este trem era impelido pela queima do carvão para produzir vapor, que se expandia.

A força atômica não é sequer uma teoria; é uma fantasia de sonhadores, levados menos a sério do que Papai Noel. Quanto ao método para impulsionar Dora, ninguém tem a menor idéia de haver qualquer maneira de compreender a estrutura do espaço-tempo.

(Posso estar errado. As muitas histórias de Óvnis e de visitantes estranhos, em todas as eras, sugerem que não sou o primeiro viajante pelo tempo; já houve milhares, ou milhões. Mas talvez a maioria deles relutem tanto em perturbar os "selvagens nativos" como eu.)

Ao chegar a Kansas City hospedei-me num hilton religioso. Se vocês receberam meu bilhete de chegada, ele estava em papel com o emblema dele. (Espero que esse bilhete seja o último que eu tenha de confiar a papel e tinta — mas levou tempo para conseguir redução fotográfica e gravação. A tecnologia e os materiais disponíveis aqui e agora são muito primitivos, mesmo quando tenho privacidade para usar outras técnicas.)

Como base temporária, este hilton religioso oferece vantagens. É barato, e ainda não tive tempo de adquirir todo o dinheiro local de que vou precisar. É limpo e seguro, comparado com os hiltons comerciais que custam o mesmo. Fica perto do centro comercial. Oferece tudo de que preciso agora e não mais. E é monástico.

"Monástico"? Não fiquem surpresas, meus amores. Espero permanecer solteiro durante todos estes dez anos, enquanto sonho fantasias felizes com todas as minhas queridas, tantos anos e anos-luz de distância.

Por quê? Os costumes locais... Aqui o acasalamento de homem com mulher é proibido pela lei a menos que especificamente autorizado pelo Estado, numa monogamia obrigatória com conseqüências legais, sociais e econômicas intermináveis.

Tais leis são feitas para serem violadas — e o são. A cerca de três quadras ou algumas centenas de metros deste hilton monástico, a ACM, começa a "zona", uma área dedicada a prostituição feminina ilícita mas tolerada — e os preços são baixos. Não, não sou preguiçoso demais para andar até lá; conversei com algumas destas mulheres — elas "percorrem um itinerário" oferecendo seus serviços aos homens na rua. Mas, minhas queridas, essas mulheres não são artistas reconhecidas, orgulhosas da sua grande vocação. Ah, queridas, não! São marafonas patéticas, furtivas e envergonhadas. Elas estão no fundo da pirâmide social, e muitas (a maioria?) estão escravizadas a homens que tomam seus parcos ganhos.

Não acho que haja uma Tamara, ou mesmo uma pseudo-Tamara, em toda Kansas City. Fora da "zona" há mulheres mais moças e mais bonitas disponíveis por preços mais altos e por acordos mais complexos — mas o status delas ainda é zero. Não o de artistas orgulhosas e felizes. Assim, elas não constituem nenhuma tentação; eu não conseguiria apagar da minha mente a maneira revoltante pela qual elas são maltratadas pelas leis e pelos costumes locais.

(Gratifiquei aquelas com quem falei; o tempo é dinheiro para elas.)

Também há mulheres que não pertencem à profissão.

Pela minha vida anterior aqui, sei que uma alta porcentagem tanto de mulheres "solteiras" como de mulheres "casadas" (uma dicotomia nítida, muito mais do que em Tertius ou mesmo em Secundus) — arriscam um acasalamento não autorizado por divertimento, aventura, amor ou por outros motivos. Muitas mulheres aqui ficam assim disponíveis algumas vezes e com alguns homens — embora não com todos os homens nem todo o tempo; aqui e agora o esporte é necessariamente clandestino.

Nem me falta confiança, nem contraí a atitude "moral" local.

Mas a resposta ainda é "não". Por quê?

Primeiro motivo; é muito provável levar-se um tiro no rabo!

Não é piada, queridas. Aqui e agora quase todas as mulheres são como uma propriedade de algum homem. Marido, pai, namorado, noivo — alguém. Se este pega você, pode matá-lo — e a opinião pública é tal que é pouco provável ele ser punido. Mas se você o matar... será pendurado pelo pescoço até morrer, morrer, morrer!

Parece um preço excessivo. Não pretendo arriscar.

Há um pequeno número, porém apreciável, de mulheres que não são "propriedade" de homem algum — então o que o está retendo, Lazarus?

O custo indireto, para começar. (É melhor não contar isto a Galahad; partiria seu coração.) As negociações são geralmente demoradas, complexas e muito caras — e é provável que ela considere o "sucesso" como o equivalente a uma proposta de contrato pela vida inteira.

Além disso, é muito provável que ela fique grávida. Eu devia ter pedido a Ishtar que anulasse minha fertilidade para esta viagem. (Estou terrivelmente satisfeito de não ter pedido.) (E estou derretido por vocês, queridas, meus outros egos — e obrigado para sempre a vocês por terem me dado um empurrão. — Eu não poderia iniciar aquilo, por mais ansiosamente que quisesse!)

Laz e Lor, acreditem nisto: as mulheres maduras aqui não sabem quando estão férteis. Confiam na sorte ou em métodos contraceptivos que vão do arriscado ao inútil. Além do mais, elas não conseguem saber mesmo com os seus médicos — que não sabem muito a respeito eles próprios. (Não há geneticistas.) A terapia é muito primitiva em 1916. A maioria dos médicos está se esforçando, acho eu, mas a arte mal saiu da fase do médico-feiticeiro. Há apenas cirurgia tosca e alguns remédios — a maioria dos quais sei serem inúteis ou prejudiciais. Quanto à contracepção — segurem-se com força —, é proibida por lei.

Outra lei feita para ser violada — e o é. Mas a lei e os costumes retardam o progresso nesses assuntos. Atualmente (1916) o método mais comum envolve um revestimento elastômero usado pelo homem — em outras palavras, eles "se acasalam" sem se tocar. Parem de gritar; vocês nunca terão que se submeter a isso. Mas é tão ruim como parece.

Reservei meu motivo mais forte para o fim. Queridas, fui mimado. Em 1916 um banho uma vez por semana é considerado suficiente pela maioria das pessoas, demais para algumas. Os outros hábitos combinam com esse. Tal coisa, quando inevitável, pode ser ignorada. Tenho bastante consciência de que eu mesmo cheiro mal como um bode velho com muita rapidez. Apesar de tudo, tendo gozado a companhia de seis das mais deliciosas criaturas da galáxia — bem, prefiro esperar. Bolas, dez anos não é muito tempo.

 

Se vocês receberam uma das cartas que enviarei durante os próximos dez anos, então devem ter corrido para verificar os anos gregorianos de 1916 a 1919. Escolhi 1919-1929 tanto para saboreá-la — uma década de classe, o último período feliz na história da Velha Terra — como também para evitar a primeira das Guerras Planetárias Terrenas, aquela conhecida agora (já começou) como a Guerra Européia, que depois será chamada a Guerra Mundial, e depois, ainda mais tarde, a Primeira Guerra Mundial, e designada na maioria das histórias antigas como Fase Primeira da Primeira Guerra Planetária Terrena.

Não se preocupem; manterei distância dela. Isto envolve mudanças em meus planos de viagem, mas nenhuma no resgate de 1926. Tenho poucas lembranças desta guerra; era moço demais. Mas lembro-me (provavelmente de aulas do colégio em vez de memória direta) de que este país entrou nela em 1917 e de que a guerra terminou no ano seguinte — e essa data eu lembro exatamente, porque foi o meu sexto aniversário e pensei que o barulhão e as comemorações fossem para mim.

O que não posso lembrar é a data exata em que este país entrou na guerra. Pode ser que eu não a tenha verificado ao planejar esta excursão; meu propósito era chegar depois de 11 de novembro de 1918, o dia em que a guerra terminou, e dei um desconto do que julguei ser uma margem confortável. Eu estava preparando aqueles dez anos com todo o cuidado, porque os dez anos seguintes, 1929-1939, não são decididamente uma década de classe — e terminam com o começo da Segunda Fase da Primeira Guerra Planetária Terrena.

Não tenho nenhum meio possível de examinar essa data

— mas encontro uma pista brilhante em minha memória: a frase "os canhões de agosto". Essa frase tem uma viva associação em minha memória com esta guerra — e ela se adapta, porque me lembro de que fazia um tempo quente, estivai (agosto é verão aqui) quando vovô (o avô materno de vocês, queridas) me levou para o quintal dos fundos e me explicou o que era a "guerra" e por que precisávamos vencer.

Não acho que ele me tenha feito compreendê-la — mas lembro-me da ocasião, lembro-me do seu modo sério, lembro-me do tempo (quente) e da hora do dia (logo antes do jantar).

Muito bem, espero que este país declare guerra em agosto próximo; vou esconder-me em julho — porque não tenho nenhum interesse nesta guerra. Sei que lado ganhará (o lado em que este país estiver), mas sei também que "a guerra para terminar todas as guerras" (ela era chamada assim!) foi uma derrota desastrosa tanto para os "vencedores" como para os "vencidos" — ela levou inevitavelmente ao Grande Colapso e fez com que eu saísse deste planeta. Nada que eu possa fazer mudará nada disso; não há nenhum paradoxo.

Dessa forma, vou me meter no buraco até ela terminar. Quase todas as nações da Terra finalmente tomaram partido

— mas muitas não lutaram, e a guerra nem chegou perto delas, especialmente das nações ao sul daqui, das Américas Central e do Sul; portanto, é para lá que provavelmente irei.

Mas tenho quase um ano para planejar isso. É fácil aqui ser qualquer coisa que se afirme ser — nenhuma carteira de identidade, nada de códigos de computador, nenhuma impressão digital, nada de cpf. Vejam vocês, este planeta tem agora tantas pessoas quanto Secundus (no "agora" de vocês)

— apesar disso os nascimentos não são sequer registrados, em grande parte deste país (o meu não foi, a não ser com as Famílias), e um homem é quem quer que diga que é! Não há nenhuma formalidade quanto a deixar este país. É ligeiramente mais difícil voltar para ele, mas tenho um tempo interminável para cuidar disso.

Mas devo, por medida comum de prudência, afastar-me durante o decorrer desta guerra. Por quê? Convocação. Macacos me mordam se vou tentar explicar esta palavra a garotas que mal sabem o que é a guerra, mas significa "exércitos escravos" — e significa para mim que eu devia ter pedido a Ishtar para fazer-me parecer pelo menos duas vezes mais velho do que pareço agora. Se eu ficar por aqui muito tempo, arriscar-me-ei a tornar-me um "herói" involuntário numa guerra que estava terminada antes de eu ter idade suficiente para ir à escola.

Isto me parece ridículo.

Assim, vou concentrar-me em acumular dinheiro para sustentar-me por dois anos — converter isso em ouro (cerca de oito quilos, não muito pesado) —, depois, no dia 1.° de julho próximo, irei para o sul. Será um pequeno problema, porque este país está conduzindo uma guerra de fronteira em pequena escala com o que fica bem ao sul. (Ir para o norte está fora de questão; aquele país já está metido na Grande Guerra.) O oceano a leste tem navios de guerra submarinos; estes têm uma tendência a atirar em qualquer coisa que flutue. Mas o oceano do outro lado está livre desta praga. Se eu tomar um navio indo para o sul, num porto marítimo do lado oeste deste país, terminarei fora das zonas de luta. Nesse ínterim, preciso melhorar o meu espanhol — muito parecido com o galacta, porém mais bonito. Encontrarei uma professora — não, Laz, não uma horizontal. Você nunca pensa em outra coisa?

(Por falar nisso, querida, em que mais vale a pena pensar? Dinheiro?)

Sim, dinheiro, no momento, e tenho planos para isso. O país está prestes a eleger um chefe do governo — e sou o único homem na Terra que sabe quem será eleito. Por que isso ficou em minha memória? Dê uma olhada no meu nome registrado nas Famílias.

Assim, o meu problema premente é pôr as mãos no dinheiro para apostar nessa eleição. O que ganhar usarei para jogar na Bolsa — exceto que isso não será jogo, porque este país já está numa economia de guerra e eu sei que continuará.

Gostaria de poder aceitar apostas na eleição em vez de colocá-las — mas isso é muito arriscado para a minha pele; não tenho as ligações políticas certas.

Vocês compreendem... Não, é melhor eu explicar como esta cidade é organizada.

Kansas City é um lugar agradável. Tem ruas sombreadas por árvores, bairros residenciais encantadores, um sistema de bulevares e parques conhecido em todo o planeta. Sua pavimentação excelente encoraja as carruagens-automóveis que estão começando a ficar populares. A maior parte deste país ainda está mergulhada profundamente na lama; as ruas bem pavimentadas de Kansas City têm mais destes veículos autopropelidos do que puxados a cavalo.

A cidade é próspera, sendo o segundo maior centro comercial e de transportes da área agrícola mais produtiva da Terra — cereais, carne, porco. Os aspectos feios deste comércio estão embaixo, no fundo dos rios, enquanto os cidadãos moram em belas colinas cobertas de vegetação. Numa manhã úmida, quando o vento vem daquela direção, sente-se às vezes um mau cheiro dos currais de gado; do contrário, o ar é claro, limpo e lindo.

É uma cidade tranqüila. O tráfego nunca é denso, e o clop-clop dos cascos dos cavalos ou a campainha de alarme de um bonde elétrico serve apenas para acentuar o silêncio — o ruído das crianças brincando é mais alto.

Galahad está mais interessado em como uma cultura usa o seu lazer do que em sua economia — bem como eu, porque ganhar a vida é controlado pelas circunstâncias. Mas não a diversão. Por diversão não quero dizer sexo. O sexo não pode tomar tempo demais dos seres humanos amadurecidos além da adolescência (exceto alguns extravagantes como o Casanova da fábula — e Galahad naturalmente — "Tiro o meu chapéu para o duque!").

Em 1916 (nada do que digo se aplica necessariamente dez anos mais tarde, e certamente não cem anos mais tarde; este é o próprio fim de uma era), nesta época o morador típico de Kansas City faz a sua própria diversão; seus acontecimentos sociais estão associados a igrejas, a parentes de sangue ou por afinidade, ou ambos — jantares, piqueniques, esportes (não jogo de apostas), ou simplesmente visitas e conversas. A maior parte disto custa pouco ou nada, exceto a despesa para sustentar suas igrejas — que tanto são clubes sociais como templos de fé religiosa.

A maior diversão comercial chama-se "quadros animados" — espetáculos dramáticos apresentados com figuras silenciosas de sombra em preto e branco tremulando contra uma parede vazia. Isto é bastante novo, muito popular e muito barato — são chamados "espetáculos de um níquel" por causa da moeda cobrada como entrada. Cada bairro (definido como distância para ir a pé) tem pelo menos um teatro desses. Esta forma de diversão e seus derivados tecnológicos tinham finalmente (terão) tanto a ver com a destruição deste padrão social como as carruagens-automóveis (peçam a opinião de Galahad sobre isto), mas — em 1916 — nenhum dos dois ainda perturbou o que parece ser um padrão estável e bastante utópico.

A anomia ¹ ainda não se estabeleceu, as normas são fortes, os costumes são obrigatórios e ninguém aqui e agora acreditaria que o ronco ocasional é a respiração de Cheyne-Stokes de uma cultura prestes a morrer. A instrução está no nível mais alto que esta cultura jamais atingirá — minhas queridas, as pessoas de 1916 simplesmente não acreditariam em 2016. Elas não acreditarão sequer que estão prestes a ser envolvidas na primeira das guerras finais; é por isso que o homem cujo nome me deram está prestes a ser reeleito. "Somos neutros." "Orgulhosos demais para lutar". "Ele nos manteve fora da guerra." Sob estes slogans eles estão marchando para o precipício, sem saber que ele está lá.

¹ Ausência de leis ou regras de organização. (N. da T.)

 

(Eu próprio estou deprimido — a percepção tardia é um mal... especialmente quando é previsão.)

Agora vamos olhar para o lado de baixo desta cidade encantadora:

A cidade é uma democracia nominal. Na verdade não é nada disso. É governada por um político que não exerce nenhum cargo. As eleições são rituais solenes — e os resultados são os que ele ordena. As ruas são lindamente pavimentadas porque suas companhias as calçam — para lucro dele. As escolas são excelentes, e ensinam realmente — porque este monarca deseja que seja assim. Ele é pragmaticamente benigno e não exagera. O "crime" (que significa qualquer coisa ilegal e inclui tanto a prostituição como o jogo) é franqueado através dos seus lugar-tenentes; ele próprio nunca toca nele.

Grande parte destes crimes-por-definição são manipulados por uma organização chamada algumas vezes de "A Mão Negra" — mas em 1916 ela geralmente não tem nenhum nome e nunca é vista. Mas é por isso que não me atrevo a aceitar apostas nas eleições; eu estaria invadindo o monopólio de um destes lugar-tenentes deste político — o que seria muito perigoso para a minha saúde.

Em vez disso, apostarei pelas regras locais e ficarei de boca calada.

O cidadão "respeitável", com o seu lar, jardim e igreja agradáveis e filhos felizes, não vê nada disto e (acho eu) suspeita pouco e pensa nisso ainda menos. A cidade é dividida em áreas com limites rígidos, embora não marcados. Os descendentes dos antigos escravos moram numa área que constitui um amortecedor entre a parte "bem" da cidade e a área dominada e habitada pelos monopolistas franqueadores de coisas tais como o jogo e a prostituição. À noite as áreas se misturam apenas sob convenções tácitas. Durante o dia não há nada a notar. O chefe mantém uma disciplina rígida mas conserva-a simples. Ouvi dizer que ele tem apenas três regras invioláveis: Mantenha as ruas bem pavimentadas. Não toque nas escolas. Não mate ninguém ao sul de uma certa rua.

Em 1916 isso funciona otimamente — mas não por muito mais tempo.

Preciso parar; tenho um encontro numa companhia fotográfica para usar um laboratório — em particular. Depois tenho que voltar para o ganha-pão desonesto — separar as pessoas dos dólares, sem dor e tanto quanto possível legalmente.

Amor para sempre e todo o caminho de volta.

P.S. Vocês deviam me ver de chapéu derby!

 

Da capo

III

Maureen

O sr. Theodore Bronson, né Woodrow Wilson Smith, também conhecido como Lazarus Long, deixou seu apartamento no Armour Boulevard e foi guiando seu carro, um Ford landaulet, até uma esquina da 31st Street, onde o estacionou num telheiro atrás de uma casa de penhores — porque achava ruim deixar um automóvel na rua à noite. Não que o carro tivesse custado muito a Lazarus; ele o havia adquirido em conseqüência da crença de um otimista de Denver de que dois ases mais um par aparecendo podiam certamente derrotar um par de valetes — o sr. "Jenkins" devia estar blefando. Mas o sr. "Jenkins" tinha um valete de reserva.

Tinha sido um inverno lucrativo, e Lazarus esperava uma primavera ainda mais próspera. Suas estimativas sobre um mercado de guerra de certos estoques e utilidades geralmente tinham sido corretas, e a diversificação dos seus investimentos era bastante ampla para que ele não fosse prejudicado por uma estimativa errada, já que a maioria das suas estimativas eram corretas — elas dificilmente podiam ser erradas, desde que ele havia antecipado a guerra submarina crescente, sabendo o que finalmente levaria este país a entrar na guerra da Europa.

Observar o mercado deixava-lhe tempo para outros "investimentos" no otimismo de outras pessoas, algumas vezes no bilhar, outras nas cartas. Ele gostava mais de bilhar, mas achava as cartas mais compensadoras. Durante todo o inverno jogou ambos, e sua fisionomia simples e bastante amistosa, quando ornada com o seu olhar estúpido, marcava-o como um otário natural — aspecto esse que ele acentuava vestindo-se como um caipira recém-chegado à cidade.

Lazarus não se importava com outros vigaristas das salas de bilhar, trapaceiros dos jogos de cartas ou "leitores" de cartas; ele simplesmente ficava calado e aceitava quaisquer ganhos graduais oferecidos a ele, depois "perdia a coragem" e saía antes da matança. Ele gostava desses jogos desonestos; era mais fácil — e mais agradável — tomar dinheiro de um ladrão do que jogar honestamente para ganhar, e não custava tanto sono; ele sempre saía de um jogo desonesto cedo, mesmo quando estava perdendo. Mas raramente perdia tempo.

Os ganhos ele reinvestia no mercado.

Todo o inverno ele permaneceu como "Red Jenkins", morando na ACM e não gastando quase nada. Quando o tempo estava muito ruim, ficava em casa e lia, evitando as ruas íngremes e geladas. Certa vez viu uma parelha de cavalos grandes tentando corajosamente puxar um caminhão pesado para o alto da ladeira íngreme da 10th Street, acima da Grand Avenue. Um dos cavalos escorregou sobre o gelo e quebrou uma perna — Lazarus ouviu o osso da canela estalar. Isso deixou-o doente e ele quis chicotear o cocheiro — por que o tolo não tinha dado a volta pelo caminho mais comprido?

Esses dias eram melhores quando passados em seu quarto ou na Biblioteca Pública Central, perto da acm — centenas de milhares de livros verdadeiros, livros encadernados, que podia segurar com as mãos. Eles o tentaram quase a ponto de negligenciar sua busca de dinheiro. Durante esse inverno cruel ele passou cada hora livre lá, reatando relações com os seus amigos mais antigos — Mark Twain, com ilustrações de Dan Beard; dr. Conan Doyle; a Maravilhosa Terra de Oz, como descrita pela Royal Historian e retratada em cores por John R. Neil; Rudyard Kipling; Herbert George Wells; Júlio Verne...

Lazarus sentiu que podia facilmente passar todos os próximos dez anos naquele edifício maravilhoso.

Quando a falsa primavera chegou, porém, começou a pensar em se mudar do centro comercial e alterar novamente a sua persona. Estava se tornando difícil ser identificado como otário tanto nas paradas como no pôquer; seu programa de investimentos estava completo; tinha dinheiro suficiente no Fidelity Savings & Trust Bank para permitir-lhe desistir da austeridade da acm, encontrar um endereço melhor e apresentar um aspecto mais próspero ao mundo — essencial para o seu objetivo final nessa cidade: reencontrar a sua primeira família —, e não restava muito tempo antes do seu prazo final em julho.

A aquisição de um carro apresentável cristalizou os seus planos. Passou o dia seguinte transformando-se em "Theodore Bronson": transferiu sua conta bancária para o Missouri Savings Bank, uma rua adiante, e sacou uma ampla quantia; visitou um barbeiro e mandou alterar o estilo do seu cabelo e do bigode; foi até a Browning, King & Co. e comprou roupas adequadas a um jovem comerciante conservador. Depois se dirigiu de carro para o sul e passou pelo Linwood Boulevard, à procura de letreiros de "Aluga-se". Suas exigências eram simples: um apartamento mobiliado com um endereço e uma fachada respeitáveis, sua própria cozinha e banheiro — e a pequena distância a pé de um salão de bilhar na 31st Street.

Ele não pretendia ganhar desonestamente naquela sala de jogos; aquele era um dos dois lugares onde esperava encontrar um membro da sua primeira família.

Lazarus encontrou aquilo de que precisava, mas no Armour Boulevard em vez do Linwood, e bastante afastado daquela sala de jogos. Isto fez com que alugasse duas vagas de garagem — o que foi difícil, porque Kansas City ainda não estava acostumada a fornecer alojamento para automóveis. Mais dois dólares por mês e conseguiu espaço num telheiro perto do seu apartamento; por três dólares ao mês conseguiu um telheiro atrás da loja de penhores perto do Salão de Bilhar Hora Feliz.

Ele iniciou uma rotina: passava a noite das oito até às dez na sala de jogos, freqüentava a igreja do Linwood Boulevard que sua família freqüentava (tinha freqüentado), ia ao centro durante as manhãs quando os negócios o exigiam — de bonde; Lazarus considerava o automóvel um aborrecimento no centro de Kansas City, e gostava de andar de bonde. Começou a ter lucros em seus investimentos, convertendo o produto em antigas moedas de ouro e guardando-as num cofre num terceiro banco, o Commonwealth. Esperava completar a liquidação, com ouro suficiente para sustentá-lo até 11 de novembro de 1918, bem antes da data da sua partida.

Em suas horas vagas mantinha o seu landaulet brilhando, cuidava da sua manutenção ele mesmo, e guiava-o por prazer. Trabalhou também vagarosamente, com cuidado e em privacidade num serviço de alfaiate: fez um colete de camurça que não era nada mais do que bolsos, cada um para guardar uma moeda de ouro de vinte dólares. Quando terminado, recheado e com os bolsos costurados, planejava cobri-lo, por dentro e por fora, com um paletó que havia usado como molde. Ia ficar quente demais, mas um cinturão de dinheiro não bastava para tanto ouro — e dinheiro que tilintava em vez de farfalhar era o único tipo que ele tinha certeza de poder usar fora do país em tempo de guerra. Além disso, quando cheio, ele seria quase um colete à prova de balas — nunca se sabia o que havia depois da esquina, e aqueles países latino-americanos eram transitórios.

Todos os sábados à tarde tomava aulas de conversação em espanhol com um professor do Colégio Westport que morava perto. Tudo considerado, ele se mantinha agradavelmente ocupado e no programa

 

Naquela noite, após trancar seu Ford landaulet no telheiro atrás da loja de penhores, Lazarus deu uma olhada na cervejaria ao lado, achando que seu avô devia tomar uma caneca de Muehlebach ali antes de ir para casa. O problema de como encontrar sua primeira família facilmente e com naturalidade lhe havia ocupado a mente de tempos em tempos todo o inverno. Queria ser aceito como amigo na casa deles (sua!), mas não podia subir os degraus da frente, tocar a campainha da porta e se anunciar como um primo há muito perdido — nem mesmo como um amigo de um amigo de Paducah [32]. Ele não tinha nenhum relacionamento que pudesse justificar isso; e, se tentasse uma mentira complexa, tinha certeza de que o seu avô a perceberia.

Assim, havia resolvido fazer uma lenta abordagem dupla: a igreja freqüentada por sua família (exceto seu avô) e o esconderijo usado por seu avô quando queria afastar-se da família de sua filha.

Lazarus lembrava-se da igreja — e sua memória foi confirmada no primeiro domingo em que foi lá, com um choque que o perturbou ainda mais do que saber que estava três anos adiantado.

Viu sua mãe e confundiu-a momentaneamente com uma de suas irmãs gêmeas.

Quase instantaneamente, porém, percebeu o porquê: Maureen Johnson Smith era a mãe genética das suas univitelinas, tão certamente como era sua própria mãe. Apesar de tudo, isso o abalou, e ele ficou satisfeito de haver vários hinos e um longo sermão, durante os quais se acalmou. Evitou olhar para ela e passou o tempo tentando identificar seus irmãos e irmãs.

Desde então, ele viu a mãe mais duas vezes na igreja e pôde olhar para ela sem vacilar, e até ver que essa jovem matrona bonita era compatível com a memória desbotada que tinha de sua mãe. Mas achou ainda que nunca a teria reconhecido se não fosse sua lembrança nítida de Lápis-Lazúli e Lorelei Lee. Havia esperado ilogicamente uma mulher muito mais velha, mais como ela era quando ele saíra de casa.

O fato de ir à igreja não fez com que se encontrasse com ela, ou seus irmãos, embora o pastor o houvesse apresentado a outros paroquianos. Mas ele continuou a ir de automóvel para a igreja, pensando no dia em que poderia ser amável, oferecer a ela e a seus irmãos condução para casa — seis quadras além, no Benton Boulevard; o tempo na primavera nem sempre era seco.

Ele não tinha tanta certeza quanto ao esconderijo de seu avô. Estava certo de que esse era o lugar onde o "vovô" costumava ir dez ou doze anos mais tarde — mas ele viria aqui quando Woodie Smith ainda não tinha (tem) cinco anos?

Tendo examinado a cervejaria alemã — e notado que ela havia mudado seu nome de repente para O Jardim Suíço — entrou na sala de jogos. As mesas estavam todas ocupadas; ele foi para os fundos, onde havia uma mesa de bilhar, uma para jogos de cartas e uma para xadrez ou damas; não havendo nenhum jogo disponível, aquela pareceu-lhe uma boa ocasião de praticar alguns "enganos" em três tabelas.

Vovô! Seu avô estava sozinho na mesa de xadrez; Lazarus reconheceu-o imediatamente.

Lazarus não alterou o passo. Foi em direção à estante de tacos, hesitou quando estava prestes a passar pela mesa de xadrez e olhou para a disposição das peças. Ira Johnson ergueu os olhos — pareceu reconhecer Lazarus, pareceu prestes a falar e depois mudou de idéia.

— Desculpe-me — disse Lazarus. — Não tive intenção de interromper.

— Não faz mal — disse o velho. (Com que idade? Para Lazarus ele parecia tanto mais velho como mais moço do que devia ser. E mais baixo. Quando foi que ele nasceu? Quase dez anos antes da Guerra Civil.) — Estou apenas brincando com um problema de xadrez.

— Quantas jogadas para o mate? — O senhor joga?

— Um pouco. — Lazarus acrescentou: — Meu avô me ensinou. Mas não tenho jogado ultimamente.

— Quer jogar?

— Se o senhor deseja enfrentar um jogador enferrujado...

Ira Johnson apanhou um peão branco e um preto, colocou-os atrás das costas e estendeu os punhos fechados. Lazarus apontou e descobriu que havia escolhido as peças pretas.

Vovô começou a arrumar as peças.

— Meu nome é Johnson — disse ele. — Eu sou Ted Bronson, cavalheiro.

Apertaram-se as mãos; Ira Johnson avançou seu peão do rei até quatro; Lazarus respondeu de acordo.

Jogaram em silêncio. Na sexta jogada Lazarus desconfiou de que o avô estava recriando um dos jogos principais de Steinitz [33]; na nona ele teve certeza. Devia usar a fuga que Dora havia descoberto? Não, isso pareceria um roubo — naturalmente um computador podia jogar xadrez melhor do que um homem. Concentrou-se em jogar o melhor possível sem tentar a variação sutil de Dora.

Lazarus levou um xeque-mate na vigésima nona jogada das brancas, e pareceu-lhe que o jogo principal havia sido perfeitamente reproduzido — Wilhelm Steinitz contra algum russo, qual era o nome dele? Precisava perguntar a Dora. Fez sinal a um marcador e começou a pagar pelo jogo; seu avô empurrou sua moeda para o lado, insistiu em pagar pelo uso da mesa e acrescentou para o marcador:

— Filho, traga-nos duas salsaparrilhas. Está bem, sr. Bronson? Ou o rapaz pode trazer-lhe uma cerveja daqueles hunos da porta ao lado.

— Salsaparrilha está ótimo, obrigado. — Pronto para uma revanche?

— Após recuperar o fôlego. O senhor joga um jogo duro, sr. Johnson.

— Puxa! O senhor disse que estava enferrujado.

— Estou. Mas meu avô me ensinou quando eu era muito pequeno, depois jogou comigo todos os dias durante anos.

— Conte. Tenho um neto com quem jogo. Tyke não está no colégio ainda, mas dou-lhe apenas um cavalo de vantagem.

— Talvez ele jogue comigo. Pau a pau.

— Ora! Dê-lhe um cavalo de vantagem, da mesma forma que eu. — O sr. Johnson pagou as bebidas e gratificou o rapaz com um níquel. — Qual é o seu negócio, sr. Bronson?... se me permite perguntar.

— Claro. Trabalho por conta própria. Compro coisas, vendo coisas. Ganho um pouco, perco um pouco.

— É mesmo? Então vai vender-me a Ponte de Brooklyn?

— Lamento, senhor, vendi-a na semana passada. Mas posso oferecer-lhe uma pechincha pelos "prisioneiros espanhóis.

O sr. Johnson sorriu, aborrecido.

— Acho que isso me ensinará.

— Mas, sr. Johnson, se eu lhe dissesse que era um jogador desonesto, o senhor não me deixaria jogar xadrez com o seu neto.

— Talvez sim, talvez não. Vamos arrumar de novo? É sua vez de jogar com as brancas.

Com a primeira jogada permitindo-lhe controlar o ritmo, Lazarus fez uma lenta e cuidadosa preparação do seu ataque. Seu avô foi igualmente cuidadoso, não deixando nenhuma abertura em sua defesa. Eles se equilibravam tanto, que Lazarus levou quarenta e uma jogadas e suou muito para transformar a vantagem da primeira jogada num mate.

— Quer desempatar?

Ira Johnson sacudiu a cabeça.

— Dois jogos por noite é o meu limite. Dois desses estão acima do meu limite. Obrigado; o senhor joga muito bem, para um homem que está "enferrujado". — Ele afastou a cadeira. — Está na hora de eu ir para o estábulo.

— Está chovendo.

— Eu vi. Ficarei na entrada à espera do bonde.

— Estou com o meu automóvel aqui. Ficaria honrado em levá-lo para casa.

— Hein? Não há necessidade disso. Moro a apenas uma quadra da parada do bonde onde desço; e, se eu ficar um pouco molhado, estarei em casa e posso me secar.

(São quatro quadras e o senhor vai ficar encharcado, vovô.)

— Sr. Johnson, vou ter que girar a manivela daquele carrinho de qualquer maneira, a fim de ir para casa. Não será nenhum incômodo deixá-lo em qualquer lugar; gosto de guiar. Em cerca de três minutos, pararei em frente e buzinarei. Se o senhor estiver lá, ótimo. Se não estiver, presumirei que prefere não aceitar carona de estranhos e não ficarei ofendido.

— Não seja suscetível. Onde está o seu automóvel? Irei com o senhor.

— Não, por favor. Não há necessidade de nós dois sairmos na chuva para uma tarefa de um só homem. Vou sair pelos fundos através do beco, depois estarei no meio-fio quase antes de o senhor chegar à porta da frente. — (Lazarus resolveu ser teimoso; vovô podia sentir o cheiro de um camundongo muito antes que um gato... e ficaria imaginando por que Ted Bronson tinha uma garagem à mão quando afirmava morar a uma distância própria para se ir de automóvel. Mau. Como você vai enfrentar isso, rapaz? Você tem que contar a vovô um monte de mentiras ou nunca verá o interior daquela casa — sua própria casa! — para se encontrar com o resto da família. Mas a complexidade é contrária ao princípio básico da mentira bem-sucedida, e vovô foi o próprio homem que lhe ensinou isso. Contudo, a verdade podia não servir, e ficar em silêncio seria igualmente inútil. Como é que você vai resolver isto? Considere que vovô c tão desconfiado quanto você e duas vezes mais astuto.)

Ira Johnson levantou-se.

— Obrigado, sr. Bronson; estarei na porta da frente. Quando Lazarus acabou de girar a manivela do seu landaulet, havia estabelecido uma tática e esboçado uma política a longo prazo; (a) dê a volta no quarteirão; este carro deve estar molhado; (b) não use este telheiro outra vez; é melhor ter este saltador de pocinhas de água suja roubado do que deixar um buraco na sua história forjada; (c) quando entregar o telheiro, veja se o tio Dattelbaum tem um velho jogo de xadrez; (d) faça suas mentiras concordarem com o que você disse, inclusive aquela verdade apressada demais sobre quem lhe ensinou a jogar xadrez; (e) conte o máximo de verdades possível, mesmo que elas não soem bem — mas, que diabo, você devia ser um enjeitado... e isso não combina com ter um avô, a menos que você invente outras complexidades, cada uma das quais podendo voltar-se contra você e denunciá-lo

 

Quando Lazarus tocou a buzina, Ira Johnson saiu correndo e entrou às pressas.

— Para onde agora? — perguntou Lazarus.

Seu avô explicou como chegar à casa da filha e acrescentou:

— E uma máquina e tanto para chamar de "carrinho".

— Consegui um bom preço pela Ponte de Brooklyn. Devo virar em Linwood ou seguir os trilhos do bonde?

— Como quiser. Já que se descartou da ponte, poderia me falar sobre esses "prisioneiros espanhóis". Ê um bom investimento?

Lazarus concentrou-se durante algum tempo em guiar seu veículo ao longo dos trilhos, enquanto os evitava.

— Sr. Johnson, evitei sua pergunta sobre o que faço para viver.

— Isso é da sua conta.

— Eu realmente tenho jogado.

— Outra vez da sua conta.

— E corri para fora deixando o senhor pagar a taxa da mesa uma segunda vez, bem como a bebida. Não pretendia fazer isso.

— E daí? Trinta centavos, mais uma gorjeta de um níquel. Menos cinco centavos do que o bonde me teria custado. Isso faz da sua metade quinze centavos. Se isso o preocupa, da próxima vez que passar por um cego ponha isso no chapéu dele. Estou ganhando uma carona com motorista numa noite de chuva. Barato. Este ônibus dificilmente custaria cinco centavos.

— Muito bem. Eu queria ser correto com o senhor... porque gostei do jogo e espero jogar com o senhor outra vez.

— O prazer foi mútuo. Gosto do jogo quando um homem me faz trabalhar.

— Obrigado. Agora, para responder à sua pergunta adequadamente: sim, joguei no passado. Não é isso que o faço agora. Trabalho por conta própria. Comprando coisas, vendendo coisas... mas não a Ponte de Brooklyn. Quanto ao golpe do prisioneiro espanhol, tentaram isso comigo. Eu negocio no mercado de cereais, mercadorias compradas a termo e coisas parecidas. Faço o mesmo com ações. Mas não vou tentar vender-lhe coisa alguma. Não sou nem corretor nem operador da Bolsa; em vez disso, trabalho através de corretores estabelecidos. Ah, sim, mais uma coisa... não mascateio informações sobre cotações. Dou a um homem o que me parece uma boa informação... ele perde a camisa e me culpa. Então não dou.

— Sr. Bronson, eu não tinha nada que lhe perguntar sobre o seu negócio. Isso foi bisbilhotice da minha parte. Mas foi feita com intenção amistosa.

— Recebi-a amistosamente, por isso quis dar uma resposta adequada.

— Bisbilhotice, da mesma forma. Não preciso saber os seus antecedentes.

— É exatamente isso, sr. Johnson, não tenho antecedentes. Sou um jogador.

— Nada muito errado nisso. 0 bilhar é um jogo aberto, como o xadrez. É difícil roubar.

— Bem... faço uma coisa que o senhor pode considerar roubo.

— Olhe, filho... se precisa de um confessor, posso dizer-lhe onde encontrar um. Eu não sou.

— Desculpe.

— Não pretendi ser rude. Mas o senhor tem alguma coisa em mente.

— Ah, não muito, talvez. Isso se relaciona com o fato de não ter nenhum antecedente. Nenhum. Então vou à igreja... para conhecer pessoas. Para conhecer gente boa. Pessoas respeitáveis. Pessoas que um homem sem nenhum antecedente de outra forma nunca poderia conhecer.

— Sr. Bronson, todo mundo tem algum antecedente. Lazarus entrou no Benton Boulevard antes de responder.

— Eu não, sr. Johnson. Bem, nasci... em alguma parte. Graças ao homem que me permitiu chamá-lo de "avô" e sua mulher, tive uma infância muito boa. Mas eles se foram há muito e... bolas, nem sei se meu nome é Ted Bronson.

— Acontece. O senhor é órfão?

— Acho que sim. E bastardo, provavelmente. É esta a casa? — Lazarus parou uma casa antes da sua-deles.

— A seguinte, com a luz da varanda acesa. Lazarus avançou e parou outra vez.

— Foi bom conhecê-lo, sr. Johnson.

— Não se apresse. Estas pessoas... Bronson, que cuidaram de você. Onde foi isso?

— "Bronson" é um nome que escolhi num calendário. Achei que soaria melhor do que Ted Jones ou Ted Smith. Provavelmente nasci na parte sul do Estado. Mas não posso provar nem isso.

— E mesmo? Exerci a medicina nessa região em certa época. Em que condado?

(Sei que você exerceu, vovô... portanto, vamos ter cuidado agora.)

— Condado de Greene. Não quero dizer que nasci lá; quero dizer apenas que me disseram que vim de um orfanato em Springfield.

— Então provavelmente não fiz o seu parto; minha clínica era mais ao norte. Ora! Mas podemos ser parentes.

— Hein? Quero dizer, desculpe-me, dr. Johnson.

— Não me chame de "doutor", Ted; abandonei esse titulo quando deixei de fazer partos. O que quero dizer é isto: quando o vi pela primeira vez, você me espantou. Porque você é a imagem escarrada do meu irmão mais velho, Edward... que era engenheiro em St. Louis e San Francisco... até perder seus freios a ar, e isso acabou com os seus modos levianos. Ele tinha namoradas em Fort Scott, St. Louis, Wichita e Memphis; não tenho nenhum motivo para achar que ele tenha negligenciado Springfield. Pode ser. Lazarus sorriu.

— Devo chamá-lo de "tio"?

— Como quiser.

— Ah, não devo! O que quer que tenha acontecido, não há nenhum meio de provar. Mas seria bom ter uma família.

— Filho, pare de ficar embaraçado por causa disso. Um médico da roça aprende que esses contratempos são muito mais comuns do que a maioria das pessoas sonham. Alexander Hamilton e Leonardo da Vinci estão no mesmo barco que você, para mencionar apenas dois dos muitos grandes homens com direito a usar a contrabanda [34]. Portanto fique ereto e orgulhoso, e cuspa nos olhos deles. Vejo que a luz da sala ainda está acesa; o que diria de uma xícara de café?

— Ah, não gostaria de incomodá-lo... ou perturbar sua família.

— Não aconteceria nenhum dos dois. Minha filha sempre deixa a marmita sobre o fogão para mim. Se ela por acaso estiver embaixo de roupão (pouco provável), subirá voando pelas escadas dos fundos, depois reaparecerá instantaneamente pelas escadas da frente, vestida no maior capricho. Como um cavalo do corpo de bombeiros quando toca a campainha; não sei como ela faz isso. Entre.

 

Ira Johnson abriu a porta da frente, depois gritou ao entrar:

— Maureen! Tenho companhia comigo.

— Estou indo, papai. — A sra. Smith encontrou-se com eles no vestíbulo, andando com uma serena dignidade e vestida como se esperasse visitas. Ela sorriu e Lazarus controlou sua excitação.

— Maureen, quero apresentar-lhe o sr. Theodore Bronson. Minha filha, Ted... a sra. Brian Smith.

Ela ofereceu-lhe a mão.

— O senhor é muito bem-vindo, sr. Bronson — disse a sra. Smith em tons ricos e quentes que fizeram Lazarus pensar em Tamara.

Lazarus tomou-lhe a mão amavelmente, sentiu seus dedos formigarem, teve que se controlar para não fazer uma reverência profunda e beijá-la. Limitou-se a uma pequena inclinação, depois soltou-a imediatamente.

— Estou honrado, sra. Smith.

— Entre e sente-se.

— Obrigado, mas é tarde, e eu estava simplesmente deixando o seu pai em meu caminho para casa.

— O senhor tem que ir embora tão depressa? Eu estava somente cerzindo meias e lendo o Ladie's Home Journal... nada importante.

— Maureen, prometi ao sr. Bronson uma xícara de café. Ele trouxe-me para casa do clube de xadrez e evitou que me encharcasse.

— Sim, papai, imediatamente. Pegue o seu chapéu e faça-o sentar-se. — Ela sorriu e saiu.

Lazarus deixou que o avô o conduzisse à sala de visitas, depois aproveitou os momentos em que sua mãe não estava à vista para se acalmar e olhar em volta. Além do fato de a sala haver encolhido, parecia-se muito com o que se lembrava dela; um piano de armário onde ela o havia ensinado a tocar; lareira a gás, com troncos, cujo console era encimado por espelho bisotado; uma estante com portas de vidro; reposteiros pesados e cortinas de renda; a fotografia do casamento dos seus pais emoldurada com a licença de casamento com corações e flores, e contrapondo-se a isto uma reprodução de As respigadeiras de Millet, e outros quadros grandes e pequenos; uma cadeira de balanço, outra de plataforma com um tamborete, cadeiras retas, cadeiras de braços, mesas, lampadário, tudo amontoado e numa mistura confortável de carvalho e bordo. Lazarus sentiu-se em casa; até o papel de parede pareceu-lhe familiar — exceto que ele percebeu, inquieto, que lhe haviam oferecido a cadeira do pai.

Um arco, coberto por um reposteiro de contas, dava para a sala de estar, agora escura. Lazarus tentou lembrar-se do que devia haver lá e imaginou se ela teria a mesma aparência familiar. A sala de visitas estava imaculadamente arrumada e limpa, e permanecia assim, ele sabia, apesar de a família ser grande, pois a sala de estar era usada principalmente pelas crianças, enquanto essa sala era reservada para os mais velhos e os convidados. Quantas crianças seriam agora? Nancy, depois Carol, Brian Júnior, George, Marie — e ele próprio —, e, já que estavam no começo de 1917, Dickie devia ter cerca de três anos, e Ethel ainda estaria nas fraldas.

O que era aquilo atrás da cadeira de sua mãe? Seria?... Sim, é o meu elefante! Woodie, seu diabinho, você sabe que não pode brincar aqui, e tudo tem que voltar para sua caixa de brinquedos antes de você subir para dormir; essa era uma regra clara. O animal de brinquedo era pequeno (cerca de quinze centímetros de altura), feito de pano estofado e cinzento de tanto manuseio; Lazarus ficou ressentido por esse tesouro — dele! — estar confiado a uma criança pequena... depois conseguiu rir de si mesmo, embora a emoção persistisse. Sentiu-se tentado a roubar o brinquedo.

— Desculpe-me. O senhor estava dizendo, sr. Johnson?

— Eu disse que fui delegado temporariamente in loco parentis; meu genro foi para Plattsburg e...

Lazarus perdeu o resto do comentário; a sra. Smith voltou num ruge-ruge macio de anáguas de cetim, trazendo uma bandeja carregada. Lazarus saltou para ajudá-la; ela sorriu e deixou que ele a ajudasse.

Nossa! Aquela era a louça Haviland que ele não tivera permissão de tocar até ganhar suas primeiras calças compridas. E o serviço de café da Companhia — bule de prata maciça, jarro de creme, açucareiro e pinças, as colheres de lembrança da Exposição de Colombo. Guardanapos pequenos de linho, guardanapos de chá combinando, fatias finas de bolo inglês, um prato de prata lavrada — como você fez isto em três minutos ou menos? Você certamente está bancando o orgulhoso pródigo! Não, não seja tolo, Lazarus; ela está fazendo com que seu pai se sinta orgulhoso, recebendo o seu convidado — você é um estranho sem rosto.

— As crianças estão todas na cama? — perguntou o sr. Johnson.

— Todas, menos Nancy — respondeu a sra. Smith, servindo-os. — Ela e o namorado foram ao Isis e devem estar em casa daqui a pouco.

— O espetáculo terminou há meia hora.

— Há algum mal em eles pararem para um sorvete? A sorveteria fica numa esquina brilhantemente iluminada, bem no ponto onde eles pegam o bonde.

— Uma moça não devia ficar na rua depois de escurecer sem um acompanhante.

— Papai, estamos em 1917, não em 1890. Ele é um bom rapaz... e não posso esperar que eles percam um episódio do filme em série... Pearl White é muito emocionante; Nancy me conta a respeito. E havia um filme principal de William S. Hart esta noite, ouvi dizer; eu mesma gostaria de ver isso.

— Bem, ainda tenho a minha espingarda. — Papai!

Lazarus concentrou-se em se lembrar de comer o bolo com o garfo.

— Ela está tentando educar-me — disse vovô, mal-humorado. — Não vai funcionar.

— Estou certa de que o sr. Bronson não está interessado em nossos problemas de família — disse a sra. Smith calmamente. — Se fossem problemas. O que não são. Posso aquecer o seu café, sr. Bronson?

— Obrigado, senhora.

— Está certo, ele não está. Mas deviam falar com a Nancy logo. Maureen, olhe Ted de perto. Tá o viu alguma vez antes?

A mãe examinou Lazarus por cima da xícara, colocou-a no pires e disse:

— Sr. Bronson, quando o senhor entrou, tive uma sensação estranha. Na igreja, não foi?

Lazarus admitiu que esse podia ter sido o caso. As sobrancelhas do avô se ergueram.

— É mesmo? Preciso avisar o vigário. Mas, mesmo que vocês tenham se encontrado lá...

— Não nos encontramos na igreja, papai. Tendo que pastorear o meu zoológico, mal tenho tempo de falar com o reverendo e a sra. Draper. Agora que estou pensando nisso, porém, estou certa de ter visto o sr. Bronson lá domingo passado. A gente nota uma cara nova entre as familiares.

— Filha, assim sendo, não é o que eu quis dizer. Com quem Ted se parece? Não, não importa... ele não se parece com o seu tio Ned?

A mãe olhou outra vez para Lazarus. — Sim, vejo uma semelhança. Mas ele se parece mais ainda com você, papai.

— Não, Ted é de Springfield. Todos os meus pecados foram mais ao norte...

— Papai!

— Filha, pare de se preocupar por eu sacudir o esqueleto da família. É possível que... Ted, posso contar?

— Certamente, sr. Johnson. Como o senhor disse, não há nada de que se envergonhar... e eu não estou envergonhado.

— Ted é órfão, Maureen, um enjeitado. Se Ned não estivesse aquecendo os dedos dos pés no inferno, eu faria algumas perguntas indiscretas a ele. A época e o lugar estão corretos, e Ted certamente parece nosso parente.

— Papai, acho que o senhor está embaraçando o nosso convidado.

— Não estou. E não seja tão petulante, mocinha. Você é uma mulher crescida, com filhos; pode suportar uma conversa franca.

— Sra. Smith, não estou embaraçado. Quem quer que tenham sido meus pais, tenho orgulho deles. Deram-me um corpo forte, saudável, e um cérebro que atende às minhas necessidades ...

— Bem falado, rapaz!

— .. ,e, embora tivesse orgulho em afirmar que seu pai é meu tio e a senhora minha prima, se assim fosse, parece mais provável que os meus pais tenham sido levados por uma epidemia de tifo naquela região; as datas combinam muito bem.

O sr. Johnson franziu o cenho.

— Que idade você tem, Ted?

Lazarus pensou depressa e resolveu ser da idade de sua mãe.

— Tenho trinta e cinco anos.

— Ora, essa é exatamente a minha idade!

— Realmente, sra. Smith? Se a senhora não tivesse tornado claro que tem uma filha com idade suficiente para ir ao cinema com um rapaz, eu teria pensado que a senhora tinha cerca de dezoito anos.

— Ah, deixe disso! F"u tenho oito filhos.

— Impossível!

— Maureen não aparenta a idade que tem — concordou seu pai. — Não mudou desde que era noiva. Isso é de família; a mãe dela não tem nenhum cabelo branco hoje. — (Onde está vovó?... oh, sim, então não pergunte.) — Mas, Ted, você não aparenta trinta e cinco também. Fai o teria imaginado na metade da casa dos vinte.

— Bem, não sei exatamente quantos anos tenho. Mas não posso ser mais moço do que isso. Posso ser um pouco mais velho. — (Muito mais, vovô!) — Mas deve ser isso, porque, quando me perguntam, respondo 4 de julho de 1882.

— Ora, esse é o meu aniversário! (Sim, mamãe, eu sei.)

— Realmente, sra. Smith? Não tive intenção de roubar-lhe o aniversário. Vou adiantar alguns dias... digamos 1.º de julho. Já que de qualquer maneira não tenho certeza.

— Ah, não faça isso! Papai, o senhor deve trazer o sr. Bronson para jantar em nosso aniversário conjunto.

— Acha que Brian gostaria disso?

— Certamente que gostaria! Vou escrever-lhe a respeito disso. Ele estará em casa muito antes, de qualquer maneira. Sabe, Brian sempre diz: "Quanto mais gente, mais divertido!" Estaremos à sua espera, sr. Bronson.

— Sra. Smith, isso é muita bondade sua, mas espero partir numa longa viagem de negócios no dia 1.° de julho.

— Acho que o senhor deixou papai assustá-lo. Ou é a perspectiva de jantar com oito crianças barulhentas? Não importa: meu marido o convidará ele próprio... e depois veremos o que o senhor diz.

— Enquanto isso, Maureen, pare de forçá-lo; você o deixou agitado. Deixem-me ver uma coisa. Fiquem de pé os dois, um ao lado do outro. Vamos, Ted; ela não vai mordê-lo.

— Sra. Smith?

Ela encolheu os ombros e cobriu-se de covinhas, depois aceitou sua mão para se levantar da cadeira de balanço.

— Papai sempre quer "ver alguma coisa".

Lazarus ficou de pé ao lado de Maureen, de frente para o avô, e tentou ignorar a fragrância dela — um toque de água-de-colônia, mas principalmente o perfume leve, quente e delicioso de uma mulher doce e saudável. Lazarus ficou com medo de pensar no assunto, teve cuidado de não deixá-lo transparecer em sua fisionomia. Mas isso o atingiu como um golpe forte.

— Vamos. Aproximem-se os dois da banca da lareira e mirem-se no espelho. Ted, não houve nenhuma epidemia de tifo naquela região em 82. Nem em 83.

— Verdade, sr. Johnson? Naturalmente não posso me lembrar. (Eu não devia ter feito essa brincadeira! Desculpe, vovô. O senhor acreditaria na verdade? O senhor poderia... dentre todos os homens que já conheci. Não se arrisque, rapaz, esqueça isso!)

— Não. Apenas o número usual de tolos burros, preguiçosos demais para construírem suas privadas a uma distância apropriada dos seus poços. O que, tenho certeza, não pode descrever os seus pais. Não posso imaginar nada quanto à sua mãe, mas acho que o seu pai morreu com a mão no acelerador, ainda tentando obter o controle. Maureen?

A sra. Smith contemplava o seu reflexo e o do convidado. Ela disse devagar:

— Papai... o sr. Bronson e eu nos parecemos o bastante para sermos irmão e irmã.

— Não, primos-irmãos. Embora com Ned morto não haja meio algum de prová-lo. Acho...

O sr. Johnson foi interrompido por um grito vindo do patamar da escada da frente:

— Mamãe! Vovô! Quero que me abotoem!

— Woodie, seu patife, volte para cima! — respondeu Ira Johnson.

Em vez disso, a criança desceu — pequena, do sexo masculino, sardenta e de cabelo avermelhado, vestindo um macacão de dormir com a aba oscilando atrás dele. Olhou para Lazarus com olhos redondos e desconfiados. Lazarus sentiu um calafrio descer-lhe pela espinha e tentou não olhar para a criança.

— Quem é esse?

— Desculpe-me, sr. Bronson — disse a sra. Smith rapidamente. Depois acrescentou depressa: — Venha cá, Woodrow.

— Não se preocupe, Maureen — disse o pai dela. — Vou levá-lo para cima e fazer bolhas no traseiro dele... depois vou abotoá-lo.

— Você e que outros seis? — perguntou o menino.

— Eu, sozinho, e um taco de beisebol.

A sra. Smith atendeu calma e rapidamente às necessidades do menino. Depois o fez sair às pressas da sala e subir as escadas. Ela voltou e sentou-se.

— Maureen, isso foi apenas uma desculpa — disse o pai dela. — Woodie sabe abotoar-se. Ele está velho demais para essa roupa de bebê. Vista um camisolão nele.

— Papai, podemos discutir isso em outra ocasião? O sr. Johnson encolheu os ombros.

— Exagerei outra vez. Ted, esse é o jogador de xadrez, Ele é um sujeito notável. Recebeu o nome por causa do presidente Wilson, mas não é "orgulhoso demais para lutar". É um diabinho.

— Papai!

— Está bem, está bem... mas é verdade. É disso que gosto em Woodie. Ele irá longe.

— Por favor, desculpe-nos, sr. Bronson — pediu a sra. Smith. — Meu pai e eu algumas vezes discordamos um pouco em como criar um menino. Mas não devemos sobrecarregá-lo com isso.

— Maureen, simplesmente não a deixarei fazer de Woodie um pequeno Lorde Fauntleroy [35].

— Não há perigo disso, papai; ele puxou a você. Meu pai esteve na guerra de 98, sr. Bronson, e na insurreição...

 

— E na Revolta dos Boxers.

— ...e ele não consegue esquecer isso...

— É claro que não. Conservo o meu velho 38 do exército debaixo do travesseiro, quando o meu genro está fora.

— Nem quero que ele esqueça; tenho orgulho do meu pai, sr. Bronson, e espero que todos os meus filhos cresçam com o mesmo espírito dele. Mas quero que aprendam a falar cortesmente, também.

— Maureen, prefiro que Woodie seja malcriado comigo do que tímido. Ele aprenderá a falar cortesmente dentro em breve; os meninos mais velhos cuidarão disso. Uma lição de boas maneiras reforçada por um olho preto é inesquecível. Sei por experiência própria.

A discussão foi interrompida pelo toque da campainha da porta.

— Deve ser Nancy — disse o sr. Johnson, e levantou-se para atender.

Lazarus ouviu Nancy dar boa-noite a alguém; depois se levantou também para ser apresentado, e só não ficou espantado porque já havia visto a irmã mais velha na igreja e sabia que ela parecia uma edição mais moça de Laz e Lor. Ela falou com ele amavelmente, mas correu para cima assim que lhe deram licença.

— Sente-se, sr. Bronson.

— Obrigado, sra. Smith, mas a senhora esteve acordada esperando sua filha voltar. Ela voltou; portanto, irei embora.

— Ah, não há nenhuma pressa; papai e eu somos como corujas.

— Muito obrigado. Apreciei o café e o bolo, e muito especialmente a companhia. Mas é hora de dar boa-noite. Vocês foram muito amáveis.

— Se o senhor precisa ir, sr. Bronson... Veremos o senhor na igreja domingo?

— Espero estar lá, senhora.

 

Lazarus foi para casa atordoado, o corpo alerta mas os pensamentos em outra parte. Chegou ao seu apartamento, trancou-se por dentro, verificou as janelas e as persianas automaticamente, tirou as roupas e começou a encher a banheira. Depois olhou para si mesmo sombriamente no espelho do banheiro.

— Seu idiota estúpido — disse ele com intensidade. — Seu filho da puta precipitado! Será que não consegue fazer nada direito?

Não, aparentemente não, nem mesmo algo tão simples como reatar o conhecimento com sua mãe. Vovô não tinha se constituído num problema; o velho bode não lhe tinha feito surpresas — além de ser mais baixo e menor do que Lazarus lembrava. Ele era da mesma forma rabugento, desconfiado, cínico, formalmente amável, beligerante — e encantador —, como Lazarus lembrava.

Tinha havido momentos de ansiedade, quando ele se "colocara à disposição do tribunal". Mas o jogo dera melhor resultado do que Lazarus esperava — através de uma semelhança familiar insuspeitada. Lazarus não só nunca havia visto o irmão mais velho do avô (morto antes de Woodie Smith nascer), como havia se esquecido de ter existido alguma vez um Edward Johnson.

O tio Ned estava arrolado nas Famílias? Pergunte a Justin. Esqueça, não é importante. Mamãe havia acertado em cheio: Lazarus parecia-se com o avô. E com sua mãe, como vovô havia acentuado. Mas isso havia resultado apenas em conjecturas a respeito do querido velho tio Ned e seus "modos levianos", que mamãe não se importava de escutar, já que tinha certeza de que seu convidado não estava embaraçado.

Embaraçado? Isso havia mudado seu status de estranho para "primo". Lazarus teve vontade de beijar o tio Ned e agradecer-lhe por aqueles "modos levianos" que haviam tornado o parentesco plausível. Vovô acreditava na teoria — naturalmente; era dele — e sua filha parecia disposta a tratá-la como uma hipótese possível. Lazarus, você precisaria apenas da pista interna... se não fosse um rematado idiota!

Ele experimentou a água do banho — fria. Fechou a torneira e abriu o ralo. Uma promessa de água quente durante todo o dia tinha sido um atrativo quando Lazarus havia alugado este antro bolorento. Mas o zelador desligava o aquecedor de água antes de se deitar, e qualquer um que quisesse água quente depois das nove era um tolo. Bem, ele se qualificava como tolo, e talvez a água fria fizesse mais pelo seu estado instável do que a quente — mas ele desejara um banho demorado e quente para acalmar-lhe os nervos e ajudá-lo a pensar.

Ele havia se enamorado de sua mãe.

Aceite isso, Lazarus. Isto é impossível, e você não sabe como enfrentá-lo. Em mais de dois mil anos de uma desventura tola atrás da outra, esta é a enrascada mais absurda em que você já se meteu.

Ah, claro, um filho ama sua mãe. Como "Woodie Smith", Lazarus nunca havia duvidado disso. Sempre havia dado um beijo de boa-noite em sua mãe (geralmente), abraçava-a quando a via (se não estivesse com pressa), lembrava-se do seu aniversário (quase sempre), agradecia a ela pelos bolinhos ou pelo bolo que deixava para ele sempre que chegava tarde (exceto quando ele se esquecia), e algumas vezes lhe havia dito que a amava.

Ela tinha sido uma boa mãe. Nunca havia gritado com ele (ou com qualquer um deles) e, quando necessário, usava uma vara imediatamente e o assunto era encerrado — nunca aquela rotina de espere-até-seu-pai-chegar. Lazarus ainda podia sentir aquela vara de pessegueiro na barriga das pernas; ela o havia feito levitar, melhor do que Thurston, o Grande, numa idade muito tenra.

Lembrou-se também de que, à medida que ficava mais velho, descobriu que tinha orgulho da aparência dela — sempre arrumada, ereta e invariavelmente encantadora com seus amigos — não como algumas mães dos outros meninos.

— Ah, claro, um menino ama sua mãe — e Woodie havia sido abençoado com uma das melhores.

Mas isto não era o que Lazarus sentia por Maureen Johnson Smith, jovem matrona encantadora, exatamente da "sua" própria idade. A visita essa noite havia sido uma deliciosa agonia — porque ele nunca tinha sido, em todas as suas vidas, tão intoleravelmente atraído, nunca ficara tão sexualmente obcecado por qualquer mulher em qualquer parte ou ocasião. Durante aquela curta visita, Lazarus tinha sido forçado a ter o maior cuidado para não deixar sua paixão transparecer — e um cuidado especial para não parecer galante demais, não ser mais do que impessoalmente amável; pela expressão, tom de voz ou qualquer outra coisa poderia arriscar-se a despertar as desconfianças sempre atentas do avô, que não suspeitara da tempestade de desejos que se havia apoderado dele assim que tocara a mão dela.

Lazarus baixou os olhos para a prova da sua paixão, rígida e ereta, e deu-lhe um tapa.

— Para que você está em pé? Não há nada a fazer. Este é o Cinturão da Bíblia.

Era, realmente! Vovô não acreditava na Bíblia, nem vivia pelos padrões do Cinturão da Bíblia; apesar disso, Lazarus tinha certeza de que, se os provocasse violando esses padrões, o avô atiraria nele com uma impassibilidade total, em benefício do genro. Provavelmente o velho deixaria o primeiro tiro passar ao largo e dar-lhe-ia uma oportunidade de fugir. Mas Lazarus não estava disposto a apostar a vida nisso. Agindo pelo genro, vovô poderia sentir-se obrigado a atirar certeiramente — e Lazarus sabia como o velho atirava bem.

Esqueça isso, esqueça isso, ele não ia dar, quer ao avô, quer ao pai, qualquer motivo para atirarem, ou mesmo para ficarem com raiva — e você esqueça isso também, sua serpente cega! Lazarus imaginou quando o seu pai estaria em casa, e tentou lembrar-se de como ele era — mas sua memória estava anuviada. Lazarus sempre tinha sido mais chegado ao avô Johnson do que ao pai; não só o pai muitas vezes estava fora a negócios, como também o vovô ficava em casa durante o dia e dispunha-se a perder tempo com Woodie.

Seus outros avós? Viviam em algum lugar no Ohio — Cincinnati? Não importa, a lembrança deles era tão apagada que não parecia valer a pena tentar vê-los.

Ele havia completado tudo o que pretendia fazer em Kansas City — e, se tivesse juízo, seria o momento de partir agora. Falte à igreja no domingo, fique longe da sala de jogos, desça na segunda-feira e venda o restante dos seus bens — e parta! Suba no Ford — não, venda-o e tome um trem para San Francisco; lá pegue o primeiro navio para o sul. Mande para vovô e Maureen bilhetes amáveis, postos no correio de Denver ou San Francisco, dizendo que lamenta, mas que uma viagem de negócios, etc. — mas dê o fora da cidade!

Porque Lazarus sabia que a atração não tinha sido unilateral. Ele pensou que havia evitado que o avô imaginasse sua tempestade emocional... mas Maureen tinha tido consciência dela — e não ficara ressentida. Não, ficara lisonjeada e satisfeita. Eles haviam entrado na mesma freqüência imediatamente e, sem uma palavra ou qualquer olhar ou contato significativo, o transreceptor dela havia respondido a ele, silenciosamente... depois, quando a oportunidade tornara isso possível, ela havia respondido abertamente, uma vez com um convite para jantar — a que o avô se havia oposto —, e ela havia prontamente revidado de uma maneira que o tornara aceitável pelos costumes. Depois uma segunda vez, no momento em que estava partindo, com a sugestão também perfeitamente aceitável de que esperava vê-lo na igreja.

Bem, por que uma jovem matrona, mesmo de 1917, não deveria ficar satisfeita — lisonjeada e não ofendida — de saber que um homem queria levá-la para a cama com toda a urgência e tratá-la com uma suave brutalidade? Se as unhas dele estivessem limpas... e se o seu hálito fosse doce... se os seus modos fossem amáveis e respeitosos — por que não? Uma mulher com oito filhos não é nenhuma virgem nervosa; está acostumada com um homem em sua cama, em seus braços, dentro do seu corpo — e Lazarus teria apostado o seu último centavo como Maureen gostava disso.

Lazarus não tinha nenhum motivo então, ou no começo de sua vida, para suspeitar de que Maureen Smith alguma vez tivesse sido algo além de "fiel" pelos mais rigorosos padrões do Cinturão da Bíblia. Não tinha nenhum motivo para pensar que ela estivesse sequer flertando com ele. Os modos dela não haviam sugerido isso; duvidava de que jamais sugerissem. Mas ele tinha uma certeza profunda de que ela estava tão fortemente atraída quanto ele, de que ela sabia exatamente aonde isso podia levar — e desconfiou de que ela tivesse percebido que nada senão vigilância os impediria.

(Contudo, um pai residente e oito filhos, mais os costumes contemporâneos relativos ao que podia e não podia ser feito, constituíam um bocado de vigilância! O cinto de castidade de Llita dificilmente poderia ser mais eficiente.)

Vamos puxar isso para o meio do soalho e deixar o gato farejar. "Pecado"? O "pecado", como o "amor", eram palavras difíceis de definir. Elas vinham em dois sabores amargos, mas completamente diferentes. A primeira consistia em violar os tabus da tribo. Esta paixão que ele sentia era certamente pecaminosa pelos tabus da tribo em que havia nascido — incestuosos, em primeiro grau.

Mas provavelmente não podia constituir incesto para Maureen.

Para si mesmo? Ele sabia que "incesto" era um conceito religioso, não científico, e os últimos vinte anos haviam lavado da sua mente quase o último vestígio do seu tabu tribal. O que restara não era mais do que o cheiro de cebola numa boa salada; tornava Maureen mais atraentemente proibida (se fosse possível!); isso não o assustou. Maureen não parecia ser sua mãe — porque ela não estava de acordo com as suas lembranças, quer como mulher jovem, quer como velha.

O outro significado de "pecado" era mais fácil de definir porque não estava anuviado pelos conceitos sombrios da religião e do tabu: pecado é o comportamento que ignora o bem-estar dos outros.

Suponhamos que ele ficasse por ali e conseguisse de alguma forma (convencionemos uma oportunidade segura) levar Maureen para a cama com sua plena cooperação. Ela se arrependeria disso mais tarde? Adultério? A palavra significava alguma coisa naquele lugar.

Mas ela era uma Howard, uma das primeiras quando o casamento entre Howards era um contrato com pagamento em dinheiro, com os olhos bem abertos, pagamento da Fundação por cada filho nascido dessa união — e Maureen havia cumprido o contrato, oito filhos já pagos, e continuaria produzindo por, hã, cerca de quinze anos mais. Talvez para ela "adultério" significasse "violação do contrato" em vez de "pecado" — ele não sabia.

Mas essa não é a questão, rapaz; a verdadeira questão é a única que alguma vez o impediu quando a tentação coincidiu com a oportunidade — e desta vez ele não podia consultar nem Ishtar nem qualquer geneticista. A probabilidade de um mau resultado era ligeira quando havia tantas barreiras no caminho de qualquer resultado. Mas esse era exatamente o risco que ele sempre se recusara a assumir: a possibilidade de dar uma desvantagem congênita a uma criança.

Ei, espere um minuto! Nenhum resultado desses podia resultar porque nada havia resultado. Ele conhecia cada um dos seus irmãos, vivos no momento ou ainda por nascer, e não havia defeituosos no lote. Nenhum.

Nenhum risco, portanto.

Mas... isso se baseava na presunção de que sua teoria de "não-paradoxo" era uma lei da natureza. Mas você tem consciência, há muito tempo, de que a própria teoria de "não-paradoxo" envolve um paradoxo — um sobre o qual você silenciou para não alarmar Laz e Lor e o resto da sua "atual" família (aquela atual, não esta); a saber, a idéia de que o livre-arbítrio e a predestinação são dois aspectos da mesma verdade matemática, e a diferença é simplesmente lingüística, não semântica: a idéia de que o seu próprio livre-arbítrio não pode mudar os acontecimentos aqui e agora porque os atos do seu livre-arbítrio aqui e agora já faziam parte do que havia acontecido em qualquer "aqui c agora" posterior.

O que por sua vez dependia de uma idéia solipsista que ele havia sustentado desde quando podia se lembrar teias de aranha, tudo isso!

Lazarus, você não sabe os problemas que pode causai'.

Logo, não faça isso! Dê o fora da cidade agora e não volte absolutamente para Kansas City! Porque, se voltar, você pode estar certo de que vai tentar tirar as calças de Maureen ... e ela vai respirar fundo c ajudar. Daí por diante só Alá sabe — mas pode ser trágico para ela e trágico para outros; e, quanto a você, seu garanhão estúpido, todo colhões e nenhum cérebro, pode fazer com que lhe dêem um tiro no rabo... exatamente como as gêmeas previram.

Neste caso, já que você não vai ver sua família outra vez, não tem sentido esperar na América do Sul que esta guerra acabe. Você já viu o suficiente desta era condenada; peça às meninas para o recolherem agora.

 

A cintura dela era realmente fina assim? Ou ela a apertava?

Bolas, não importava como ela era constituída! Como com Tamara, isso simplesmente não importava.

 

"Queridas Laz e Lor:

Queridas, mudei de planos. Vi a minha primeira família, e não há mais nada que eu deseje fazer nesta era — nada por que valha a pena suar durante a maior parte de dois anos na estagnação, enquanto esta guerra se arrasta até o seu fim sangrento e inútil. Assim, quero que me apanhem agora, na cratera do impacto. Esqueçam-se do Egito; não posso ir para lá agora.

Por 'apanhem-me agora' quero dizer a 3 de março de 1917 gregoriano — repito, terceiro dia de março de 1917 gregoriano, na cratera de impacto daquele meteoro no Arizona.

Muita coisa para contar a vocês quando as vir. Enquanto isso.

Meu amor imorredouro,

Lazarus."

 

Foi a voz dela? Ou sua fragrância? Ou alguma outra coisa?

 

Da capo

IV

Lar

27 de março de 1917 greg.

Amada família:

Repetição da mensagem básica: cheguei aqui três anos mais cedo — 2 de agosto de 1916 —, mas ainda quero ser recolhido exatamente dez anos T após a queda, em 2 de agosto de 1926 — repito, seis. Pontos e alternativas de encontro da data básica como antes. Por favor, convençam Dora de que isto é conseqüência dos maus dados que lhe dei, e não é culpa dela.

Estou me divertindo enormemente. Acertei os meus negócios e depois entrei em contato com a minha primeira família, procurando meu avô (Ira Johnson, Ira), e travei relações com ele primeiro — e, com o auxílio de uma mentira horrenda e uma semelhança familiar muito feliz, vovô está convencido de que sou um filho não registrado do seu irmão (falecido). Não sugeri isto; foi idéia dele próprio. Em conseqüência, é sólida — e agora sou um primo "há muito perdido" em meu primeiro lar. Não morando lá, mas bem-vindo, o que é muito agradável.

Deixem-me dar um resumo da família, já que todos vocês descendem de três deles: vovô, mamãe e Woodie.

Vovô: é descrito naquele refugo que Justin esteve condensando. Nenhuma mudança, Justin, salvo que, em vez de ter dois metros de altura e ser talhado em granito, vovô é quase exatamente do meu tamanho. Estou passando ao lado dele cada minuto que me permite, o que em geral significa jogar xadrez com ele várias vezes por semana.

Mamãe: tomem Lar e Lor e acrescentem cinco quilos nos melhores lugares, depois acrescentem quinze anos T e um pedaço grande de dignidade. (Parem de tremer seus malditos queixos!) Acrescentem cabelos até a cintura, mas sempre enrolados no alto. Não sei realmente como é mamãe além da cabeça e das mãos, devido ao costume curioso daqui de se usar roupas no corpo todo em todas as ocasiões. E quero dizer "no corpo todo". Sei que mamãe tem tornozelos finos porque certa vez os vi. Mas nunca me atreveria a ficar olhando para eles; vovô me atiraria para fora da casa.

Papai: ele está fora agora. Esqueci como ele é — esqueci a fisionomia deles todos, exceto vovô (que usa a mesma fisionomia que eu!). Mas vi fotografias de papai e ele se parece um pouco com o presidente Teddy Roosevelt — isto é, "Theodore", Atena, não "Franklin" — no caso de você ter uma fotografia em suas entranhas.

Nancy: Laz e Lor como eram três anos-padrões antes de eu partir. Não com tantas sardas e muito digna — exceto quando escorrega. Tem uma consciência aguda dos homens (jovens), e acho que vovô está insistindo com mamãe para contar a ela imediatamente sobre a organização dos Howards, para ele ter a certeza de que ela se casará dentro das Famílias.

Carol: Laz e Lor outra vez, porém dois anos mais moça do que Nancy. Ela está tão interessada em rapazes quanto Nancy — mas frustrada; mamãe a mantém de rédeas curtas. Ela faz o queixo tremer, o que mamãe ignora.

Brian Junior: cabelos escuros, parece-se mais com papai. Jovem capitalista em ascensão. Faz um itinerário de entrega de jornais e ao mesmo tempo acende os lampiões a gás da rua. Tem um contrato para a entrega de volantes de propaganda para o cine-teatro local, que subempreitou ao irmão mais moço e outros quatro meninos; paga a eles em entradas para o teatro, ficando com algumas para seu próprio uso e vendendo o resto com desconto (quatro cents em vez de cinco) no colégio. Trabalha com uma carrocinha de gasosa (uma bebida doce, efervescente) no verão, mas planeja franqueá-la ao irmão mais moço neste próximo verão; ele tem outro empreendimento em vista. (Pelo que me lembro, Brian ficou rico bastante moço.)

Deixem-me explicar uma coisa sobre a nossa família. Eles são prósperos pelos padrões de aqui e agora — mas não demonstram isso a não ser por morarem numa casa grande num bom bairro. Não só papai é um homem de negócios bem-sucedido, como também esta é uma época em que a dotação Howard para os bebês é substancial em termos de poder aquisitivo — e mamãe já teve oito. Para todos vocês, ser um Howard significa uma herança genética e uma tradição — mas aqui e agora isso significa dinheiro à vista para os bebês — um esquema para criação de gado, e nós somos o gado.

Acho que papai deve estar investindo o dinheiro que mamãe ganha tendo bebês Howard; certamente não o estão gastando — e isto está de acordo com as minhas próprias lembranças vagas. Não sei o que foi feito pelos meus irmãos, mas recebi uma quantia inicial quando me casei pela primeira vez — dinheiro que eu não esperava e que nada tinha a ver com as dotações Howard que minha primeira mulher ganhou por ser fértil e ter boa vontade. Já que me casei durante uma estagnação econômica, isto fez uma grande diferença. Voltando às crianças — os meninos não apenas trabalham; eles têm que trabalhar — ou não terão nada senão roupas e comida. As meninas recebem mesadas muito pequenas, mas têm que fazer o trabalho de casa e ajudar com as crianças menores. Isto porque é muito difícil para uma moça ganhar dinheiro nesta sociedade — mas um rapaz que saia e tente tem oportunidades sem fim. (Isto mudará antes de o século terminar, mas em 1917 é verdade.) Todas as crianças dos Smiths trabalham em casa (mamãe paga uma lavadeira um dia por semana, isso é tudo), mas um menino (ou menina) que encontre trabalho remunerado fora é dispensado do trabalho em casa. Ele tampouco tem que repor este tempo fora; fica com o que ganha e gasta ou guarda, sendo o último encorajado por papai, que aumenta essas economias.

Se vocês pensam que papai e mamãe estão intencionalmente fazendo de seus filhos cavadores de dinheiro, estão certos.

George: dez anos T de idade, sócio mais moço, sombra e ajudante de Brian Júnior. Isto terminará dentro de alguns anos com George dando um soco na boca de Brian.

Marte: oito anos e uma menina turbulenta cheia de sardas. Mamãe está tendo dificuldades ao tentar fazer dela uma "dama". (Mas a suave teimosia de mamãe — da biologia — acabarão vencendo. Marie cresceu como a beleza da família, com beaux sob seus pés — e eu os odiava porque houve um período em que fui o animal de estimação dela. Marie foi a única das minhas irmãs a quem fui chegado. É possível ser solitário numa família grande, e eu o fui — exceto por vovô, sempre, e Marie, por um breve período.)

Woodrow Wilson Smith: ainda faltando vários meses para cinco anos, é um pirralho tão agressivo como nunca se viu. Estou aterrado de ser forçado a admitir que este pequeno biltre fedorento é a erva daninha que cresceu para ser a flor mais formosa da humanidade, a saber, o próprio Amigo Velho. Até agora, ele havia cuspido no meu chapéu quando este estava presumivelmente fora do seu alcance no cabide do vestíbulo; referiu-se a mim depreciativamente várias vezes, das quais "Aqui está aquele almofadinha do derby outra vez!" foi a mais suave; chutou o meu estômago quando tentei erguê-lo (erro meu; eu não queria tocá-lo, mas achei que devia romper o meu constrangimento irracional); acusou-me de roubar no xadrez quando na verdade ele é que estava roubando — chamou minha atenção para alguma coisa fora da janela, depois andou com a minha rainha uma casa; peguei-o no ato e cobrei isso dele. E assim por diante, ad nauseam.

Mas continuei a jogar xadrez com ele porque: (a) Estou resolvido a me dar com toda a minha primeira família durante o breve tempo em que estiver aqui; (b) Woodie joga xadrez a qualquer oportunidade, e vovô e eu somos os únicos jogadores de xadrez por aqui que aturam os seus modos venenosos. (Vovô o surra quando necessário; eu não tenho esse privilégio. No entanto, se eu não tivesse receio de descobrir o que aconteceria, poderia estrangulá-lo. O que aconteceria? Metade da história humana desapareceria e o resto seria alterado além do ponto de reconhecimento? Não, "paradoxo" é uma palavra nula; o fato de eu estar aqui prova que controlarei o meu gênio o tempo suficiente para me livrar do pequeno animal.)

Richard: três anos e tão afetuoso quanto Woodie é difícil. Gosta de se sentar no meu colo e ouvir histórias. Sua favorita é sobre duas gêmeas ruivas, chamadas Laz e Lor, que pilotam um navio aéreo através do céu. Sinto uma terna tristeza por Dickie, porque ele morrerá (morreu) bastante moço, ao atacar um lugar chamado Iwo Jima.

Ethel: um sorriso celestial numa extremidade e uma fralda molhada na outra. De pouca conversa.

Essa é a minha (nossa) família em 1917. Espero ficar em kc até papai voltar — em breve, agora — e depois partir; uma parte disto é difícil para mim, por agradável que seja a maior parte. Pode ser que dê uma olhada neles quando esta guerra terminar — mas provavelmente não; não quero estragar as minhas boas-vindas.

Para tornar claro o que foi dito acima, devo explicar alguns dos costumes daqui. Até papai chegar em casa, meu status vem através de vovô, é o de um amigo com quem ele joga xadrez; não pode ser nada mais, embora ele — e talvez mamãe — acredite que eu seja filho do tio Ned. Por quê? Porque sou um homem solteiro "moço", e pelas regras locais uma mulher casada não pode ter um homem solteiro moço como amigo, particularmente quando o marido está fora da cidade. O tabu é tão forte que não me atrevo sequer a dar a aparência de violá-lo... por causa de mamãe. Nem ela me encorajaria a isso. Nem vovô o permitiria.

Assim, serei bem-vindo em minha própria casa apenas se for lá para ver vovô. Se eu telefonar, devo perguntar por ele. E assim por diante.

Ah, é permissível, num dia chuvoso, eu oferecer condução para casa a membros da família Smith que estejam na igreja. Tenho permissão de fazer quase qualquer coisa pelas crianças, desde que não as "mime" — o que mamãe define como gastar muito mais do que cinco cents com uma delas. No sábado passado tive licença para levar seis delas a um piquenique na minha carruagem-automóvel. Estou ensinando Brian a guiá-la. Meu interesse pelas crianças é considerado compreensível por mamãe e por vovô devido à minha infância "solitária" e "despojada" como "órfão".

A única coisa que nunca devo fazer é ficar sozinho com mamãe. Não entro na minha própria casa a não ser publicamente, acompanhado de vovô; os vizinhos notariam. Sou meticuloso quanto a isso; não arriscarei causar problemas para mamãe com um tabu tribal.

Estou escrevendo esta no meu apartamento, numa máquina de imprimir em que vocês não acreditariam, e tenho que parar a fim de levá-la ao centro e reduzi-la fotograficamente duas vezes, depois gravá-la, laminá-la, selá-la para a correspondência atrasada e pô-la numa caixa — o que toma um dia inteiro, porque preciso usar um laboratório alugado e destruir as fases intermediárias à medida que prossigo; isto não é algo que eu me atreva a deixar num apartamento do qual o zelador tem a chave. Quando eu voltar da América do Sul, farei minha própria instalação de um laboratório, uma que possa levar no automóvel. As estradas pavimentadas serão mais comuns na próxima década, e espero viajar por elas. Mas quero continuar enviando estas cartas e por tantas caixas de correspondência atrasada quanto possível, na esperança de que pelo menos uma resista aos séculos e chegue até vocês. Como disse Justin, o maior problema é conseguir que pelo menos uma dure os três próximos séculos — e continuarei tentando.

Todo o meu amor para todos vocês,

Lazarus.

 

Da capo

Vivace

V

3 DE MARÇO DE 1917- CÁISER CONSPIRA COM MÉXICO E JAPÃO ATACAR USA — TELEGRAMA DE ZIMMERMANN [36] AUTÊNTICO

2 DE ABRIL DE 1917: O PRESIDENTE FALA AO CONGRESSO — PEDE GUERRA

6 DE ABRIL DE 1917: A AMÉRICA ENTRA NA GUERRA — O CONGRESSO DECLARA QUE "EXISTE UM ESTADO DE BELIGERÂNCIA"

 

Lazarus Long ficou tão surpreso pela data do irrompimento da guerra com a Alemanha como deixou de ficar surpreso pelo próprio fato. Foi apanhado tão desprevenido que não foi senão mais tarde que analisou por que "a percepção tardia" em que havia confiado provou ser ainda mais míope do que a previsão.

O reinicio da guerra submarina sem restrições no começo de 1917 não o havia surpreendido; estava de acordo com as lembranças das suas primeiras lições de história. O telegrama de Zimmermann não o perturbou, embora não se lembrasse dele; combinava com um padrão de que ele se lembrava — novamente da história, não das lembranças diretas de uma criança muito pequena — um período de três anos, de 1914 a 1917, em que os Estados Unidos haviam passado lentamente da neutralidade para a guerra. Woodie Smith ainda não tinha dois anos quando a guerra começou, e ainda completava cinco quando o seu país entrou nela; Lazarus não tinha lembranças de primeira mão dos negócios estrangeiros de uma época em que Woodie era pequeno demais para compreender essas improbabilidades remotas.

O horário que Lazarus havia fixado, desde que descobrira haver chegado três anos mais cedo, tinha funcionado tão bem que ele não percebeu que o seu "relógio" estava errado, até que o acontecimento lhe bateu no rosto. Quando conseguiu encontrar tempo para analisar seu engano, viu que havia cometido o principal pecado contra a sobrevivência: havia acreditado em seus próprios desejos. Desejara acreditar no seu horário.

Não tinha querido deixar a sua primeira família recém-encontrada tão rapidamente. Nenhum deles. Mas especialmente Maureen.

Maureen... Uma vez tendo decidido permanecer até 1.º de julho como havia planejado originalmente, após uma longa noite de luta com a sua alma perturbada — uma noite de indecisão, preocupação e cartas escritas e destruídas — descobriu que podia permanecer e tratar a sra. Brian Smith com uma polidez amistosa porém formal, evitar qualquer sinal de interesse por ela mais pessoal do que os costumes permitiam. Conseguiu manter o seu humor celibatário — feliz por estar perto dela quando isso era possível sem fazer com que o nariz da sra. Grundy se torcesse — ou o nariz ainda mais agudo do seu avô.

Lazarus tinha sido realmente feliz. Como com Tamara — ou as gêmeas — ou qualquer das suas queridas —, o acasalamento não era necessário para amar. Quando era aconselhável, ele podia baixar os fogos e esquecer isso. Nunca deixou, por um instante sequer, de ter consciência da tremenda atração física desta mulher que tinha sido sua mãe mais de dois mil anos atrás (em alguma direção estranha) — mas a questão foi engavetada; isso não afetou suas maneiras ou diminuiu sua felicidade quando lhe era permitido estar perto dela. Ele acreditava que Maureen sabia o que ele estava fazendo (ou deixando de fazer) e por quê, e que ela apreciava a sua discrição.

Durante todo o mês de março procurou meios aprovados de vê-la. Brian Júnior quis aprender a guiar; vovô decidiu que ele tinha idade suficiente, portanto Lazarus ensinou a de — apanhava-o em casa e deixava-o lá de volta — e muitas vezes foi recompensado com uma visão rápida de Maureen. Lazarus descobriu até um meio (além do xadrez) de chegar a Woodie. Levou o menino ao Teatro Hipódromo para ver o mágico Thurston, o Grande — depois prometeu levá-lo (quando abrisse, no verão) ao parque de diversões, um lugar que era o próprio céu para Woodie. Isto consolidou uma trégua entre eles.

Lazarus levou o menino para casa depois do teatro, ferrado no sono e com não mais do que o desgaste normal, e foi recompensado com um café com vovô e Maureen.

Lazarus prontificou-se a ajudar com a tropa de escoteiros patrocinada pela igreja; George era lobinho, e Brian estava trabalhando para ser pioneiro. Lazarus achou agradável ser chefe escoteiro assistente — e vovô convidou-o para entrar quando ele deu aos meninos uma carona para casa.

Lazarus prestava pouca atenção aos assuntos estrangeiros. Continuou a comprar o Post, de Kansas City, porque o jornaleiro da esquina da 31st Street com a Troost o considerava um freguês regular — sujeito verdadeiramente bacana, que pagava um níquel por um jornal de um penny e não esperava troco. Mas Lazarus raramente o lia, nem mesmo as notícias do mercado, pois havia encerrado suas transações.

 

Na semana que começava no domingo, 1.º de abril, Lazarus não pretendia ver sua família por dois motivos: vovô estava fora e seu pai estava em casa. Lazarus não tencionava encontrar-se com o pai até poder conseguir isso natural e facilmente através de vovô. Em vez disso, ficou em casa, cozinhou para si mesmo, pôs em dia alguns serviços, fez trabalhos mecânicos no seu landaulet, limpou-o e poliu-o, e escreveu uma longa carta para sua família em Tertius.

Esta ele levou consigo na quinta-feira de manhã, pretendendo prepará-la para a correspondência atrasada. Comprou um jornal, como de hábito, na esquina da 315' com a Troost; após se sentar num bonde, deu uma olhada na primeira página — depois rompeu o hábito de aproveitar o percurso para lê-lo cuidadosamente. Em vez de ir para a Companhia Fotográfica de Kansas City foi para a sala de leitura da Biblioteca Pública Central e passou duas horas pondo-se em dia com o mundo — com os jornais locais, o Times, de Nova York, de terça-feira, onde leu o texto da mensagem do presidente ao Congresso — "Deus ajudando-a, ela não pode fazer outra coisa!" — e o Tribune, de Chicago, do dia anterior. Notou que o Tribune, o inimigo mais constante da Inglaterra fora a imprensa de língua alemã, estava agora mudando de atitude.

Depois foi até o banheiro dos homens, picou em pedaços pequenos a carta que havia preparado, jogou na latrina e puxou a descarga.

Foi até o Banco Missouri Savings e encerrou sua conta. Foi depois até o escritório da Estrada de Ferro Santa Fé, no centro da cidade, e comprou uma passagem para Los Angeles com um privilégio de parada por trinta dias em Flagstaff, no Arizona. Passou numa papelaria e depois no Banco Commonwealth, onde pediu o seu cofre; retirou dele uma caixa menor, cheia de ouro. Pediu para usar o banheiro do banco; sua condição de cliente locatário de cofre fez com que obtivesse este favor.

Com as moedas de ouro distribuídas nos treze bolsos do seu paletó, do colete e das calças, Lazarus não parecia mais elegante — tendia a curvar-se aqui e ali —, mas, se ele andasse com cuidado, não tilintaria. Assim, caminhou com todo o cuidado, levando o seu níquel à mão ao embarcar num bonde; depois ficou de pé na plataforma traseira em vez de se sentar. Não ficou sossegado até estar fechado e trancado no seu apartamento.

Parou para fazer e comer um sanduíche, depois começou o serviço de alfaiate, cosendo as moedas amarelas dentro dos bolsos do colete de camurça que havia feito anteriormente. Depois o cobriu com o paletó que havia usado como molde. Lazarus esforçou-se para trabalhar devagar, restaurando as costuras com tanto cuidado que a função do vestuário não poderia ser detectada por ninguém que não o estivesse usando.

Por volta da meia-noite comeu outro sanduíche e voltou a trabalhar.

Quando ficou satisfeito com o caimento e a aparência, pôs o paletó de dinheiro de lado, colocou um cobertor dobrado sobre a mesa onde estivera trabalhando e sobre ele uma alta e pesada máquina de escrever Oliver. Atacou o monstro barulhento com dois dedos; " Kansas City, 5 de abril de 1917 gregoriano

 

Queridas Lor e Laz:

emergência. Preciso ser recolhido. Espero estar na cratera de impacto na segunda-feira, 9 de abril de 1917, repito, nove de abril de mil novecentos e dezessete. Posso chegar um ou dois dias atrasado. Esperarei lá dez dias, se possível. Se não for recolhido, tentarei manter o encontro de 1926 (mil novecentos e vinte e seis).

Obrigado!

Lazarus."

 

Lazarus datilografou dois originais desta, depois endereçou dois conjuntos de envelopes, usando alternativas diferentes em cada um e endereçando os envelopes de fora, um para o seu contato local e o outro para um endereço em Chicago. Depois redigiu um recibo de venda:

 

" Por um dólar na mão e outras boas e valiosas considerações, vendo e transfiro todo o meu interesse, direito e propriedade de um automóvel Ford modelo T, carroceria tipo landaulet, motor número 1290408, a Ira Johnson e garanto a ele e seus sucessores que este bem móvel está livre e desembaraçado e que sou o único proprietário com pleno direito de transferir a propriedade.

 

(a) Theodore Bronson

6 de abril de 1917 A.D."

 

Colocou-o num envelope comum, juntou-o aos outros, bebeu um copo de leite e foi para a cama.

Dormiu dez horas sem se perturbar com os gritos de "Extra! Extra!" pelo bulevar; ele os havia esperado, seu subconsciente ignorou-os e deixou-o descansar — esperava ficar muito ocupado por muitos dias.

Quando o seu relógio interior o chamou, levantou-se, tomou banho e barbeou-se rapidamente. Preparou e comeu um desjejum reforçado, limpou sua cozinha, retirou todos os artigos perecíveis da geladeira e jogou-os na lata de lixo na varanda de serviço dos fundos. Girou o cartão do gelo para Não quero gelo hoje e deixou quinze centavos em cima da geladeira, depois de esvaziar o recipiente da pingadeira.

Havia um litro de leite fresco ao lado do gelo. Ele não o havia pedido, mas assim mesmo colocou seis centavos numa garrafa vazia, com um bilhete dizendo ao leiteiro para não deixar leite até a próxima vez em que ele deixasse dinheiro fora.

Encheu uma valise — artigos de toalete, meias, roupas de baixo, camisas e colarinhos (para Lazarus, aqueles engomados colarinhos altos simbolizavam todos os tabus e preconceitos dessa era, que de outra forma era agradável) —, depois deu uma busca rápida no apartamento à procura de qualquer coisa de natureza pessoal. O aluguel estava pago até o fim de abril; tendo sorte ele esperava estar no Dora muito antes disso. Com má sorte estaria na América do Sul — mas com sorte pior estaria em algum outro lugar, qualquer lugar, e com outro nome; ele queria que "Ted Bronson desaparecesse sem deixar vestígios.

Pouco depois havia, esperando na porta da frente, uma valise, um sobretudo, um terno de inverno, um jogo de xadrez de marfim e ébano e uma máquina de escrever. Acabou de se vestir, tendo o cuidado de colocar os três envelopes e a passagem num bolso interno do paletó. O colete do dinheiro era quente demais, mas não incômodo; o peso distribuído não estava mal.

Empilhou tudo isso no compartimento traseiro do carro, foi até a subestação postal do lado sul, registrou duas cartas e foi de lá para a loja de penhores ao lado do Salão de Rilhar Hora Feliz. Notou, com uma alegria perversa, que O Jardim Suíço estava com as persianas abaixadas e um letreiro que dizia FECHADO.

O sr. Dattelbaum estava disposto a trocar a máquina de escrever por um revólver, mas quis cinco dólares a mais pela pequena pistola Colt que Lazarus escolheu. Lazarus deixou o penhorista conduzir ambos os lados da troca.

Lazarus vendeu a máquina de escrever e o terno, deixou seu sobretudo e recebeu de volta um certificado de penhor, um revólver e uma caixa de balas. Na verdade estava dando o sobretudo ao sr. Dattelbaum, já que não tinha nenhuma intenção de resgatá-lo — mas Lazarus obteve o que queria, mais três dólares em dinheiro; havia-se livrado de coisas de que não precisava mais e dado ao seu amigo o prazer de uma última troca.

O revólver coube num bolso do lado esquerdo do colete que Lazarus havia transformado num coldre improvisado. A menos que ele fosse revistado — o que era muito pouco provável para um cidadão tão obviamente respeitável —, não seria notado. Um saiote seria melhor, tanto para esconder a arma como para sacá-la rapidamente mas isso foi o melhor que ele pôde conseguir com as roupas que tinha de usar, e aquele revólver tinha tido seu cano serrado por algum dono anterior com idéias práticas.

Ele agora tinha liquidado tudo em Kansas City, exceto quanto a dizer adeus à sua primeira família — e depois pegaria a primeira maria-fumaça da Santa Fé para o oeste. Ficou aflito por vovô ter ido a St. Louis, mas isso não tinha remédio, e desta única vez forçaria sua entrada, com uma história convincente: o jogo de xadrez como presente para Woodie era motivo suficiente para aparecer em pessoa, a nota de venda fornecia-lhe ama desculpa para falar com seu pai. "Não, senhor, isto não é exatamente um presente... mas alguém bem que podia guiá-lo até esta guerra terminar... e se, por qualquer motivo, eu não voltar, bem, isto torna as coisas mais simples, o senhor me compreende? Por ser o seu sogro o meu melhor amigo e uma espécie de parente mais próximo, já que não tenho nenhum."

Sim, isso funcionaria e resultaria numa oportunidade de dizer adeus a toda a família, inclusive Maureen. (Especialmente Maureen!) Sem mentir realmente. A melhor maneira de mentir.

Apenas uma coisa: se o pai quisesse alistá-lo em sua própria unidade, então uma mentira teria que ser usada. Lazarus havia resolvido definitivamente entrar para a marinha. Nenhuma intenção de ofender, sr. Brian; sei que o senhor acabou de voltar de Platssburg, mas a marinha também precisa de homens.

Mas ele não contaria essa mentira a menos que fosse forçado a isso.

 

Deixou o carro nos fundos da loja de penhores, atravessou a rua até uma farmácia e telefonou:

— É da residência de Brian Smith?

— Sim, é.

— Sra. Smith, aqui é o sr. Bronson. Posso falar com o sr. Smith?

— Aqui não é mamãe, sr. Bronson; é Nancy. Ora, isso não é terrível?

— Sim, é, srta. Nancy.

— O senhor quer falar com papai? Mas ele não está aqui; foi para Fort Leavenworth. Para se apresentar... e não sabemos quando o veremos novamente!

— Vamos, vamos... por favor, não chore. Por favor!

— Eu não estava chorando. Estou apenas um pouquinho perturbada. O senhor quer falar com mamãe? Ela está aqui... mas está deitada.

Lazarus pensou depressa. Naturalmente que ele queria falar com Maureen. Mas... Com os diabos, isso era uma complicação!

— Por favor, não a incomode. Pode me dizer quando o seu avô estará de volta à cidade? — (Poderia arriscar-se a esperar? Ah, maldição!)

— Ora, vovô voltou ontem.

— Ah! Posso falar com ele, srta. Nancy?

— Mas ele também não está aqui. Foi à cidade há algumas horas. Deve estar no seu clube de xadrez. Quer deixar algum recado para ele?

— Não. Diga-lhe apenas que liguei... e ligarei outra vez mais tarde. E, srta. Nancy... não se preocupe.

— Como posso deixar de me preocupar?

— Tenho uma intuição. Não conte a ninguém, mas é verdade; uma velha cigana viu que eu tinha isso e me provou. Seu pai vai voltar para casa e não será ferido nesta guerra. Eu sei.

— Ah... não sei se acredito nisso ou não... mas faz-me sentir-me melhor.

— É verdade. — Despediu-se amavelmente e desligou.

 

Clube de xadrez... Certamente vovô não estaria vagabundeando numa sala de jogo hoje. Mas, já que ficava exatamente do outro lado da rua, era melhor ver... antes de ir para Benton e esperar em frente à casa que ele voltasse.

Vovô estava lá, à mesa de xadrez, mas nem mesmo fingindo resolver um problema de xadrez; estava simplesmente furioso.

— Boa tarde, sr. Johnson. Vovô ergueu os olhos.

— O que há de bom nela? Sente-se, Ted.

— Obrigado, Johnson. — Lazarus enfiou-se na outra cadeira. — Nada de muito bom, suponho.

— Hein? — O velho olhou para ele como se tivesse acabado de notar a sua presença. — Ted, você diria que sou um homem em boas condições físicas?

— Sim, certamente.

— Capaz de pôr um fuzil no ombro e marchar trinta quilômetros por dia?

— Acho que sim. — (Estou certo de que pode, vovô.)

— Foi isso o que eu disse àquele jovem convencido do posto de recrutamento. Ele me disse que eu era velho demais! — Ira Johnson parecia prestes a cair em prantos. — Perguntei-lhe desde quando quarenta e cinco anos era velho demais... e ele me disse para chegar para o lado, que eu estava atrasando a fila. Ofereci-me para sair e chicoteá-lo e a dois homens quaisquer que ele escolhesse. E eles me puseram para fora, Ted, eles me puseram para fora! — Vovô cobriu o rosto com as mãos, depois as baixou e gaguejou: — Eu estava usando a farda do exército antes que aquele galinho irritante aprendesse a fazer pipi em pé.

— Lamento, sr. Johnson.

— Minha própria culpa. Levei comigo minha baixa... e esqueci que ela trazia a data do meu nascimento. Olhe, Ted, se eu tingisse o meu cabelo e voltasse a St. Louis ou Joplin, isso poderia funcionar... não poderia?

— Provavelmente. — (Sei que não funcionou, vovô... mas acho que o senhor conseguiu entrar na Guarda Nacional na conversa. Mas não posso contar-lhe isso.)

— Vou fazer isso! Mas deixarei minha baixa em casa.

— Enquanto isso, posso levá-lo para casa? Minha carroça está aí atrás.

— Bem... suponho que terei de ir para casa... finalmente.

— Que tal uma pequena volta pelo Paseo para refrescar?

— É uma idéia. Se isso não o atrapalha. — Absolutamente.

Lazarus ficou dirigindo, mantendo-se em silêncio, até a raiva do velho desaparecer. Quando Lazarus notou isto, voltou e virou para leste na 31sl Street e estacionou.

— Sr. Johnson, posso dizer uma coisa?

— Hein? Fale.

— Se não o aceitarem, mesmo com o seu cabelo tingido, espero que não se sinta muito mal por causa disso. Porque esta guerra é um engano terrível.

— O que quer dizer?

— Exatamente o que eu disse. — (Até onde contar a ele? Até onde posso conseguir que ele acredite? Não posso esconder totalmente... este é vovô... que me ensinou a atirar e mil outras coisas. Mas em que ele acreditaria?) — Esta guerra não fará o menor bem; apenas tornará as coisas piores.

Vovô ficou olhando para mim com a teste franzida.

— O que você é, Ted? Pró-germânico?

— Não.

— Pacifista, talvez? Pensando nisso, você nunca disse uma palavra sobre a guerra.

— Não, não sou pacifista. E não sou pró-germânico. Mas se nós ganharmos esta guerra...

— Você quer dizer "quando nós ganharmos esta guerra!"

— Está bem, quando nós ganharmos esta guerra, vamos verificar que na realidade a perdemos. Perdemos tudo por que pensávamos estar lutando.

O sr. Johnson mudou de tática abruptamente.

— Quando é que você vai se alistar? Lazarus hesitou.

— Há duas coisas que tenho de fazer primeiro.

— Achei que essa podia ser a sua resposta, sr. Bronson. Adeus! — Vovô mexeu no trinco da porta, xingou, pisou no estribo e daí saltou para a calçada.

— Vovô! — gritou Lazarus. — Quero dizer, sr. Johnson. Deixe-me acabar de levar o senhor para casa. Por favor!

O avô parou apenas o tempo suficiente para olhar para trás e dizer:

— Não, decididamente não... sua formiga mijona e pusilânime! — Depois marchou firme pela rua até a parada do bonde.

Lazarus esperou e observou o sr. Johnson embarcar; depois seguiu o bonde, não querendo admitir que não havia nada que pudesse fazer para corrigir a confusão que havia feito de suas relações com o avô. Viu o velho descer no Benton Boulevard, pensou em ultrapassá-lo e tentar falar com ele.

Mas o que poderia dizer? Compreendia como o avô se sentia, o porquê — já tinha falado demais, e nada do que dissesse poderia anular ou corrigir aquilo. Ele guiem sem destino pela 31st Street.

Na Indiana Avenue, estacionou o carro, comprou o Star de um jornaleiro, entrou numa drugstore, sentou-se no balcão de refresco, pediu um de cereja para justificar sua presença e olhou para o jornal.

Mas não conseguiu lê-lo... Em vez disso ficou olhando para ele e meditando.

Quando o empregado limpou o balcão de mármore em frente a ele e ficou esperando, Lazarus pediu outro refresco. Quando isto aconteceu pela segunda vez, Lazarus pediu para usar o telefone.

— Home ou Bell? —. Home.

— Atrás da charutaria, e pague a mim.

— Brian? Aqui é o sr. Bronson. Posso falar com a sua mãe?

— Vou saber.

Mas foi a voz do seu avô que veio pela linha:

— Sr. Bronson, o seu puro atrevimento me espanta. O que deseja?

— Sr. Johnson, quero falar com a sra. Smith...

— Não pode.

— ... porque ela tem sido muito amável comigo. Quero agradecer-lhe e despedir-me.

— Um momento... — Ele ouviu o avô dizer: — George, dê o fora. Brian, leve Woodie com você, feche a porta e cuide para que ela fique fechada. — A voz do sr. Johnson voltou a soar, mais perto: — O senhor ainda está aí?

— Sim, senhor.

— Então escute cuidadosamente e não interrompa; vou dizer isto apenas uma vez.

— Sim, senhor.

— Minha filha não vai falar com o senhor, nem agora nem nunca...

— Ela sabe que pedi para falar com ela? — perguntou Lazarus rapidamente.

— Cale-se! Certamente que sabe. Ela me pediu que lhe desse este recado. Ou eu próprio não teria falado com o senhor. Agora eu também tenho um recado para o senhor... e não me interrompa. Minha filha é uma respeitável mulher casada cujo marido atendeu ao chamado da pátria. Portanto, não fique perto dela. Não venha aqui ou será recebido com uma espingarda. Não telefone. Não vá à igreja dela. Talvez o senhor pense que não posso forçá-lo a isso. Deixe-me lembrar-lhe que isto é Kansas City. Dois braços quebrados custam vinte e cinco dólares; pelo dobro disso eles o matarão. Mas para um serviço completo (quebrar os seus braços primeiro e depois matá-lo) há um desconto. Posso gastar sessenta e dois e cinqüenta se o senhor tornar isso necessário. Compreendeu?

— Sim.

— Então dê o fora!

— Espere! Sr. Johnson, não acredito que o senhor contrate um homem para matar outro homem...

— É melhor o senhor não arriscar.

— ... porque acho que o senhor mesmo o mataria. Houve uma pausa. Depois o velho deu uma risadinha.

— Pode ser que o senhor tenha razão. — E desligou o telefone.

Lazarus girou a manivela do carro e foi embora. Pouco depois descobriu que estava indo para oeste pelo Linwood Boulevard. Notou isso porque passou pela igreja de sua família. Onde havia visto Maureen pela primeira vez...

Onde ele nunca a veria outra vez.

Nunca! Nem mesmo se voltasse e tentasse evitar os enganos que havia cometido — não havia nenhum paradoxo. Aqueles enganos faziam parte inalterável da textura do espaço-tempo, e todas as sutilezas da matemática de Andy, todas as forças reunidas no Dora não poderiam apagá-los.

Na Linwood Plaza ele estacionou pouco antes da Brooklyn Avenue e considerou o que fazer em seguida.

Ir até a estação e pegar o próximo trem da Santa Fé para o oeste, Se qualquer daqueles pedidos de socorro resistisse através dos séculos, então ele seria recolhido na manhã de segunda-feira — e esta guerra e todos os seus problemas seriam outra vez uma coisa que havia acontecido muito tempo atrás —, e "Ted Bronson" seria alguém que vovô e Maureen haviam conhecido rapidamente e o esqueceriam.

Muito mau ele não ter tido tempo de gravar aquelas mensagens; apesar de tudo, uma delas podia resistir. Senão... então venha ao encontro para ser recolhido em 1926. Ou se nenhuma delas chegasse — era sempre uma possibilidade, já que estava tentando usar a correspondência atrasada antes que ela estivesse propriamente estabelecida — então espere por 1929 e realize o encontro como planejado originalmente. Nenhum problema quanto a isso; as gêmeas e Dora estavam prontas para mantê-lo, não importava o que houvesse.

Então por que ele se sentia tão mal?

Esta guerra não era sua.

Com o tempo vovô saberia que a predição que ele havia deixado escapar era a simples verdade. Com o tempo vovô aprenderia a que a "gratidão" francesa se limitava — quando "Lafayette, estamos aqui!" estivesse esquecido e o refrão fosse "Pas un sou à l’Amérique [37]." Ou, igualmente, a "gratidão" inglesa. Não havia nenhuma gratidão entre nações, nunca tinha havido, nunca haveria. "Pró-germânico"? Que diabo, não, vovô! Há algo de podre no próprio cerne da cultura alemã, e esta guerra vai levar a outra com as atrocidades alemãs mil vezes mais terríveis do que quaisquer de que eles tenham sido acusados até hoje. Câmaras de gás e um fedor de carne queimada, muita maldade planejada... Um fedor que resistiu aos séculos...

Mas não havia meios de contar a vovô e a Maureen nada disso. Ele nem devia tentar. A melhor coisa quanto ao futuro era este ser desconhecido. A única qualidade de Cassandra [38] foi nunca terem acreditado nela.

Por que, então, deveria importar-se com o fato de que duas pessoas que provavelmente não podiam saber o que ele sabia o interpretassem mal por ele achar que essa guerra era inútil?

Mas o fato era que importava — importava terrivelmente.

Ele sentiu a ligeira protuberância contra as costelas da esquerda. Uma defesa para o seu ouro — ouro ao qual ele não ligava a mínima. Mas um interruptor de opção final também.

Afaste-se dele, seu tolo idiota! Você não quer morrer; você quer simplesmente a aprovação de vovô e Maureen... de Maureen

 

O posto de recrutamento ficava embaixo da principal agência de correio, bem no centro da cidade. Embora fosse tarde, ela ainda estava aberta, e havia uma fila do lado de fora. Lazarus pagou um dólar a um preto velho para ficar sentado no seu carro, avisou-o de que havia uma valise atrás, prometeu-lhe outro dólar quando voltasse — e não mencionou o colete de dinheiro e a pistola, ambos agora na valise. Mas Lazarus não se preocupou com o carro ou o dinheiro — podia ser mais simples si' ambos fossem roubados. Ele entrou na fila.

— Nome?

— Bronson, Theodore.

— Experiência militar anterior?

— Nenhuma.

— Idade? Não, data de nascimento... e é melhor ser antes de 5 de abril de 1899.

— 11 de novembro de 1890.

— Você não parece tão velho, mas está bem. Leve este papel e entre naquela porta. Encontrará sacos ou fronhas. Tire suas roupas, meta-as num, guarde-o com você. Entregue isto a um dos médicos e faça o que ele lhe disser.

— Obrigado, sargento.

— Mexa-se. O seguinte,

 

Um médico de uniforme era assistido por outros seis em trajes civis. Lazarus leu o cartão Snellen corretamente, mas o médico não parecia estar ouvindo; aquilo pareceu-lhe um exame de "corpo quente". Lazarus viu apenas um homem rejeitado, um que estava (na opinião de Lazarus) nas fases finais da tuberculose.

Somente um médico parecia de algum modo ansioso por encontrar defeitos. Ele fez Lazarus inclinar-se e afastou suas nádegas, apalpou à procura de hérnia e fê-lo tossir, depois apalpou-lhe a barriga.

— O que é essa massa dura do lado direito?

— Não sei, doutor.

— Tiraram o seu apêndice? Sim, vejo a cicatriz. Ou melhor, sinto a crista; a cicatriz mal aparece. Você teve um bom cirurgião; gostaria de poder fazer uma assim tão bem. Provavelmente é apenas uma massa de matéria fecal; tome uma dose de laxante e estará livre dela pela manhã.

— Obrigado, doutor.

— De nada, filho. O seguinte.

 

— Ergam suas duas mãos direitas e repitam comigo...

— Conservem estas tiras de papel. Estejam na estação antes das sete, amanhã de manhã, mostrem seus formulários a um sargento no balcão de informações; ele lhes dirá onde embarcar. Se perderem a tira de papel, estejam lá de qualquer maneira... ou o Tio Sam virá procurar por vocês. Isso c tudo, homens, vocês estão no exército agora! Saiam por aquela porta.

 

Seu carro ainda estava lá; o preto velho saiu.

— Está tudo em ordem, capitão!

— Certamente — concordou Lazarus, animado, enquanto tirava uma nota de um dólar. — Mas é "soldado", não "capitão".

— Eles o aceitaram? Neste caso dificilmente posso aceitar o seu dólar,

— Claro que pode! Não preciso dele; Tio Sam cuidará de mim "enquanto a guerra durar" e vai me pagar vinte e um dólares por mês, além disso. Junte este com o outro compre gim e faça um brinde a mim... Soldado Ted Bronson.

— Não fica bem eu fazer isso, capitão... soldado Ted Bronson, senhor. Eu sou White Ribbon. Fiz o juramento antes de o senhor nascer. Fique com o seu dinheiro e enforque o cáiser por nós.

— Tentarei, titio. Vamos arredondar isso para cinco dólares e você pode dá-los para a sua igreja... e rezar uma prece por mim.

— Bem... se assim quer, capitão soldado.

Lazarus foi lentamente para o sul, por McGee, sentindo-se feliz. Nunca dê dentadas pequenas, goze. a vida!

— "K...K...K... Katy! Linda Katy.

Parou numa drugstore, olhou por cima do balcão da charutaria, localizou uma caixa quase vazia de White Owls, comprou os charutos restantes e pediu para ficar com .. caixa. Depois comprou um rolo de algodão e outro de esparadrapo cirúrgico — e, por impulso, a maior e mais sofisticada caixa de bombons da loja.

Seu carro estava estacionado embaixo de uma lâmpada de arco voltaico; deixou-o ficar ali, entrou no banco traseiro, rebuscou dentro da sua valise, tirou o paletó e a pistola, depois se pôs a desmanchá-lo, indiferente ao risco de ser visto. Com o seu canivete, em cinco minutos desfez horas de trabalho; as moedas pesadas tilintaram na caixa de charutos. Ele acolchoou-as com algodão, fechou a caixa e reforçou-a, envolvendo-a com esparadrapo. O paletó retalhado, a pistola e sua passagem para o oeste desceram por um bueiro, e a última das preocupações de Lazarus foi junto com elas. Sorriu ao levantar-se e limpou os joelhos. Filho, você está ficando velho — ora, você tem vivido cuidadosamente'

Foi guiando o carro alegremente pelo Linwood até Benton, ignorando o limite de velocidade da cidade de trinta quilômetros por hora. Ficou satisfeito ao ver as luzes acesas no andar inferior da residência de Brian Smith; não teria que acordar ninguém. Subiu na calçada sobrecarregado pela caixa de bombons, a caixa de xadrez e a caixa de charutos enrolada com esparadrapo. A luz da varanda acendeu-se quando ele chegou aos degraus; Brian Júnior abriu a porta e olhou para fora.

— Vovô! É o sr. Bronson!

— Correção — disse Lazarus firmemente. — Por favor, diga ao seu avô que o "soldado Bronson" está aqui.

Vovô apareceu imediatamente e olhou para Lazarus, desconfiado.

— O que é isto? O que foi que ouvi você dizer a este menino?

— Pedi a ele para anunciar o "soldado Bronson". Eu.

— Lazarus conseguiu colocar todos os três pacotes sob o braço esquerdo, enfiou a mão no bolso e tirou o papel que lhe haviam dado no posto de recrutamento.

— Olhe para isto. O sr. Johnson leu.

— Estou vendo. Mas por quê? Pensando da maneira como pensa...

— Sr. Johnson, eu nunca disse que não iria alistar-me; disse simplesmente que tinha coisas a fazer primeiro. Isso era verdade, tinha. É verdade também que tenho dúvidas quanto à finalidade desta guerra. Mas independentemente de qualquer opinião, que eu devia ter guardado para mim mesmo, chegou a hora de cerrar fileiras e avançarmos juntos. Assim, fui até lá, apresentei-me e eles me aceitaram.

O sr. Johnson devolveu o formulário de recrutamento e abriu bem a porta.

— Entre, Ted!

Lazarus viu cabeças desaparecendo quando entrou; aparentemente a maior parte da família ainda estava de pé. O avô introduziu-o na sala de visitas.

— Sente-se, por favor. Preciso ir dizer isso à minha filha

— Se a sra. Smith já tiver se recolhido, não gostaria que ela fosse perturbada — mentiu Lazarus. (Que diabo, não, vovô! Eu preferia deitar-me com ela. Mas esse é um segredo que guardarei para sempre.)

— Não se preocupe. Isto é uma coisa que ela vai querer saber. Ah, esse papel... pode me dar para eu mostrar a ela?

— Certamente, sr. Johnson.

Lazarus esperou. Ira Johnson voltou em alguns minutos e devolveu a prova do alistamento.

— Ela vai descer daqui a pouco. — O velho suspirou.

— Ted, estou orgulhoso de você. Naquela hora você me deixou transtornado... e eu disse o que não devia. Lamento... peço desculpas.

— Não posso aceitá-las porque não há o que desculpar, sr. Johnson. Falei apressadamente e não me fiz claro. Podemos esquecer isso? Quer apertar minha mão?

— Hein? Sim. Certamente! Ora! — Eles apertaram-se as mãos solenemente. (Talvez vovô ainda pudesse levantar uma bigorna com o braço estendido ... meus dedos foram esmagados.)

— Sr. Johnson, poderia cuidar de algumas coisas para mim? Coisas que não tive tempo de fazer?

— Hein? Certamente!

— Esta caixa, principalmente. — Lazarus entregou a ele a caixa de charutos enrolada com esparadrapo.

O sr. Johnson apanhou-a, suas sobrancelhas se ergueram.

— Pesada.

— Limpei o meu cofre. Moedas de ouro. Virei buscá-las quando a guerra terminar... ou, se não vier, quer dá-las a Woodie? Quando ele fizer vinte e um anos?

— O quê? Ora, ora, filho, tudo correrá bem para você.

— Planejo isso, e virei buscá-las então. Mas posso cair de uma escada, num navio de transporte de tropas, e partir o meu pobre pescoço. O senhor fará isso?

— Sim, farei.

— Obrigado, sr. Johnson. Isto é para dar a Woodie agora. Meu jogo de xadrez. Não posso andar com ele por aí. Eu o daria ao senhor, mas o senhor inventaria algum motivo para não aceitá-lo... e Woodie não.

— Ora! Muito bem, sr. Bronson.

— Aqui está uma coisa que é para o senhor... mas não é bem o que parece. — Lazarus entregou a nota de venda do automóvel.

O sr. Johnson leu-a.

— Ted, se você está tentando me dar o seu automóvel, é melhor pensar outra vez.

— Isso é apenas uma transferência nominal de propriedade, sr. Johnson. Eu gostaria de deixá-lo com o senhor. Brian sabe guiá-lo; ele é um bom motorista agora, tem jeito para isso. O senhor pode dirigi-lo; até a sra. Smith pode querer aprender. Quando o tenente Smith estiver em casa, pode ser que o ache conveniente. Contudo, se eles me mandarem para treinar em algum lugar perto daqui e eu tiver folga antes de ser mandado para ultramar, gostaria de ter liberdade para usá-lo eu mesmo.

— Mas por que me dar uma nota de venda? Claro, ele pode ficar no celeiro... e sem dúvida ambos os Brians o guiariam. Posso aprender a pastoreá-lo eu mesmo. Mas não há nenhuma necessidade disto.

— Ah! Não me fiz entender. Suponha que eu esteja fora, em algum lugar, digamos em Nova Jersey... mas queira vendê-lo. Posso mandar-lhe um cartão-postal de um penny, e será fácil, porque o senhor terá a nota. — Lazarus acrescentou, pensativo: — Ou posso cair daquela escada... caso em que se aplica o mesmo raciocínio. Se o senhor não a quiser, pode endossá-la para Brian Júnior. Ou fazer o que quiser. Sr. Johnson, sabe que não tenho nenhum parente... então por que não facilitar as coisas?

Antes de vovô poder responder, a sra. Smith entrou, com o seu melhor vestido e sorrindo (e estivera chorando, Lazarus tinha certeza). Ela estendeu a mão.

— Sr. Bronson! Estamos todos tão orgulhosos do senhor!

Sua voz, sua fragrância, o contato da sua mão, sua alegria orgulhosa, tudo atingiu Lazarus no ventre; seu condicionamento cuidadoso foi varrido para longe. (Amada Maureen, é uma sorte eu ser mandado embora imediatamente. Mais seguro para você, melhor para todos. Mas fiz isso para torná-la orgulhosa de mim, e agora minha taça transbordou

— e por favor convide-me para sentar antes que vovô perceba a saliência no meu saiote escocês!)

— Obrigado, sra. Smith. Passei apenas para dizer obrigado e adeus... e boa-noite também, porque estou embarcando amanhã de manhã cedo.

— Ah, sente-se, por favor! Tome um café, pelo menos, e as crianças também vão querer dizer-lhe adeus.

 

Uma hora mais tarde ele ainda estava lá e mais feliz ainda — completamente feliz. Os bombons tinham sido abertos para todos eles, após ele os haver presenteado a Carol. Lazarus havia bebido muito café forte com creme e açúcar e havia comido uma pesada fatia de bolo branco feito em casa, com cobertura de chocolate, depois aceitara uma segunda enquanto admitia que não havia comido desde o café da manhã

— protestara, em seguida, quando Maureen quis levantar-se de um salto e cozinhar. Eles chegaram a um acordo pelo qual Carol saiu a fim de fazer um sanduíche para ele.

— Foi um dia confuso — explicou ele —, e não tive tempo de comer. O senhor fez com que eu mudasse de planos, sr. Johnson.

— Fiz, Ted? Como?

— O senhor sabe... Acho que contei aos dois que planejava fazer uma viagem de negócios a San Francisco partindo a 1.° de julho. Depois acontece isso. O Congresso declara guerra e eu resolvo fazer a viagem imediatamente, resolver meus negócios lá... depois me alistar. Quando estive com o senhor, eu estava pronto para partir, com malas prontas e tudo... e o senhor me fez perceber que o cáiser não ia ficar esperando enquanto eu cuidava de negócios particulares. Alistei-me imediatamente, então. — Lazarus conseguiu parecer embaraçado. — Minha valise ainda está lá fora no carro, indo a parte alguma.

Ira Johnson ficou penalizado.

— Eu não tinha intenção de apressá-lo, Ted. Não faria diferença tirar alguns dias para resolver seus negócios; eles não podem organizar nenhum exército da noite para o dia. Eu sei, vi-os tentarem isso em 98. Puxa! Talvez eu possa fazer a viagem para você. Como seu agente, já que... Bem, acho que não vou estar muito ocupado.

— Não, não! Um milhão de agradecimentos, sr. Johnson... mas eu não estava pensando direito. Pensava em "tempo de paz" em vez de em "tempo de guerra" até o senhor me pôr nos trilhos outra vez. Fui até a Western Union e escrevi uma carta noturna ao meu corretor em Frisco [39] dizendo o que queria que ele fizesse; depois escrevi uma carta nomeando-o meu procurador de fato, autentiquei-a num cartório, fui até o correio central e mandei-a para ele registrada. Tudo resolvido, tudo providenciado. — Lazarus estava apreciando tanto o improviso que quase acreditou nele. — Depois desci e me alistei. Mas aquela valise... O senhor acha que pode pô-la no seu sótão? Não vou levar uma valise comigo. São apenas alguns artigos de toalete.

— Tomarei conta dela, sr. Bronson! — disse Brian Júnior. No meu quarto!

— No nosso quarto — corrigiu George. — Nós tomaremos conta dela.

— Esperem, meninos. Ted? Você ficaria de coração partido se perdesse essa valise?

— Absolutamente, sr. Johnson. Por quê?

— Então leve-a consigo. Mas, quando voltar para o seu apartamento esta noite, arrume-a de maneira diferente. Você pôs nela camisas brancas e colarinhos duros, sem dúvida. Não vai precisar disso. Se tiver quaisquer camisas de trabalho, leve-as. Certifique-se de levar um par de botinas bem amaciadas com as quais possa marchar. Meias... todas as que tiver. Roupas de baixo. Imagino, com base numa triste experiência, que eles não terão uniformes suficientes imediatamente. Confusão, aos montes. Pode ser que você fique treinando durante um mês ou mais com o que levar consigo.

— Acho — disse a sra. Smith seriamente — que papai tem razão, sr. Bronson, O sr. Smith... o tenente Smith, meu marido, estava dizendo algo parecido com isso antes de partir. Ele partiu sem esperar pelo seu telegrama (este chegou horas mais tarde) porque disse saber que haveria confusão a princípio. — Sua boca se contraiu. — Embora ele tenha dito isso de modo mais original.

— Filha, não importa como Brian disse, não foi suficientemente original. Ted terá sorte se as suas repreensões forem oportunas. Qualquer homem que saiba distinguir seu pé direito do esquerdo será agarrado e feito cabo interino; eles não se importarão como ele está vestido. Mas você se importa, Ted... portanto, leve roupas que possa usar numa fazenda. E sapatos... sapatos confortáveis que não façam bolhas em seus pés no primeiro quilômetro. Hum... Ted, você conhece o truque da pomada hidratante? Para usar nos pés quando sabe que pode ter de ficar calçado durante uma semana ou mais?

— Não, sr. Johnson — respondeu Lazarus. (Vovô, você já me ensinou isso uma vez antes, ou talvez "depois"; e funciona, nunca me esqueci disso.)

— Se possível mantenha os seus pés limpos e secos. Lambuze o pé todo e especialmente entre os dedos com a pomada. Ou vaselina fenicada, é melhor. Use bastante, uma camada grossa. Depois calce as meias (limpas, se possível, sujas, se for preciso, mas não deixe de usá-las) e calce as botas. Quando ficar de pé pela primeira vez, parecerá que está pisando num barril de sabão mole. Mas os seus pés lhe agradecerão por isso e você não terá frieiras entre os dedos. Ou não tanto. Cuide dos seus pés, Ted, e mantenha os intestinos em funcionamento.

— Papai!

— Filha, estou falando com um soldado... dizendo a ele coisas que podem salvar-lhe a vida. Se as crianças não podem ouvir essas coisas, mande-as subir para dormir.

— Acho que está na hora — respondeu Maureen — de fazer os mais novos se acalmarem, pelo menos.

— Não tenho que ir para a cama!

— Woodie, faça exatamente o que sua mãe lhe disser e nada de respostas... ou entortarei um atiçador da lareira no seu traseiro. Essas são as ordens em vigor, até seu pai voltar da guerra.

— Vou ficar acordado até o soldado Bronson ir embora! Papai disse que eu podia.

— Ora! Vou discutir a impossibilidade lógica disso com um cacete; é a única maneira de fazer você compreender. Maureen, sugiro que comecemos pelo mais moço; deixe-os dizer boa-noite um de cada vez e depois marcharem direto para a cama lá em cima. O que levará o tempo necessário para que eu acompanhe Ted até o ponto de bonde.

— Mas eu ia levar o tio Ted para casa de carro! Lazarus achou que era tempo de falar:

— Brian, obrigado. Mas não vamos dar à sua mãe algo extra com que se preocupar esta noite. O bonde me leva quase diretamente para casa... e de amanhã em diante não vou ter nem mesmo bondes; terei que caminhar.

— Está certo — concordou vovô. — Ele marchará. "Esquerda, direita! Peito saliente, cabeça erguida!" Ted, o pai fez dele sargento da guarda até sua volta, incumbido da segurança interna desta família.

— Então ele não pode deixar o posto para levar em casa um simples soldado, pode?

— Não na presença do oficial da guarda (eu) e do oficial de dia, minha filha, Lembrei-me de algo... enquanto os garotos estiverem lhe dando o beijo de despedida, quero desencavar duas das minhas velhas camisas do exército; acho que elas caberão em você. Se não se importa de usar roupas velhas.

— Sr. Johnson, ficarei orgulhoso e honrado em usá-las! A sra. Smith se levantou.

— Também tenho uma coisa que preciso apanhar para o senhor... o soldado Bronson. Nancy, quer trazer Ethel para baixo? E Carol, quer trazer Richard?

— Mas o soldado Bronson não comeu o seu sanduíche!

— Desculpe, srta. Carol. Estava excitado demais para comer. Hã, quer embrulhá-lo para mim? Vou comê-lo logo que chegar ao meu apartamento... e ele me fará dormir profundamente.

— Faça isso, Carol — decidiu a mãe. — Brian, quer trazer Richard para baixo?

Após mais um pouco de conversa, Lazarus deu boa-noite a todos eles, em ordem inversa de idade Segurou Ethel por um momento e sorriu ao seu sorriso de bebê, depois beijou o alto da sua cabeça e entregou-a de novo a Nancy, que a levou para cima e voltou correndo. Para beijar Richard, Lazarus teve que se apoiar num joelho. A criança parecia incerta do motivo por que aquilo estava acontecendo, mas sabia que a ocasião era solene; abraçou Lazarus com força e lambuzou-lhe o rosto com um beijo.

Woodie então o beijou — pela primeira e única vez, mas Lazarus não ficou mais perturbado por tocar "em si mesmo", porque esse menininho não era ele próprio, mas simplesmente um indivíduo do qual ele herdara algumas lembranças numa estranha concatenação. Não ficara mais tentado a estrangulá-lo — ou não muitas vezes.

Woodie aproveitou aquela inusitada intimidade para cochichar:

— Aquele jogo de xadrez é realmente de marfim?

— Marfim real, verdadeiro. Marfim e ébano, exatamente como as teclas do piano de sua mamãe.

— Puxa, isso é ótimo! Olhe, quando você voltar, tio soldado Bronson, vou deixá-lo jogar com ele. Sempre que quiser.

— E vou ganhar de você, rapaz.

— É o que você diz! Bem, adeus. Não aceite nenhum níquel de madeira.

A pequena Marie beijou-o com lágrimas nos olhos e gaguejou:

— Tenha cuidado, tio Ted — e saiu também.

— Vou cuidar realmente do seu automóvel — disse Brian Júnior. — Vou mantê-lo brilhante, exatamente como você faz — depois hesitou... de repente beijou-lhe o rosto e saiu, levando Richard.

Carol trouxe o sanduíche bem embrulhado num papel-manteiga e amarrado com uma fita. Ele lhe agradeceu e colocou-o num bolso de fora do paletó. Ela pôs as mãos nos ombros dele, ficou na ponta dos pés e cochichou:

— Há um bilhete nele para você! — beijou-lhe o rosto e saiu rapidamente.

Nancy tomou o lugar de Carol e disse, tranqüila:

— O bilhete é de nós duas. Vamos rezar por você todas as noites quando rezarmos por papai. — Ela olhou para a mãe, depois passou os braços em volta dos ombros de Lazarus e beijou-o na boca, um beijo firme. — Isso não é adeus, mas au revoir! — Ela saiu ainda mais depressa do que a irmã, de cabeça erguida e movendo-se como a mãe.

A sra. Smith levantou-se e disse calmamente:

— Papai? — e esperou.

— Não.

— Então vire de costas.

— Ora! Está bem. — O sr. Johnson ficou estudando os quadros na parede.

Com um ruge-ruge macio a sra. Smith aproximou-se de Lazarus e ergueu os olhos para ele, segurando um livrinho,

— Isto é para você.

Era um Novo Testamento de bolso; ela segurou-o aberto na capa. Lazarus apanhou-o e leu a dedicatória original, um tanto desbotada:

 

"A Maureen Johnson, Sexta-Feira da Paixão de 1892, por serviço perfeito. Mateus: VII, 7"

 

E abaixo, em escrita recente e firme:

 

"Ao soldado Theodore Bronson

Seja fiel a si mesmo e à pátria.

Maureen J. Smith

6 de abril de 1917"

 

Lazarus engoliu em seco.

— Vou guardá-lo como relíquia e conservá-lo sempre comigo, sra. Smith.

— "Sra. Smith" não, Theodore... "Maureen". — Ela ergueu os braços.

Lazarus enfiou o livrinho no bolso de cima, enlaçou-a e seus lábios se encontraram.

Por um longo momento, o beijo dela foi firme e quente, mas casto. Depois, ela deu um gemido quase inaudível, seu corpo amoleceu e comprimiu-se com força contra o dele, seus lábios se abriram, e ela beijou-o de uma maneira que Lazarus mal pôde acreditar, mesmo porque ele retribuiu no mesmo tom — um beijo que prometia tudo quanto ela podia dar.

Após uma eternidade incomensurável ela sussurrou contra os seus lábios:

— Theodore... cuide-se bem. Volte para nós.

 

Da capo

Vivace

VI

Campo Funston, Kansas

 

Queridas gêmeas e família:

Surpresa! Conheçam o cabo Bronson, sargento interino e o instrutor mais detestável de todo o exército nacional dos Estados Unidos. Não, não embaracei os meus circuitos. Perdi a pista, temporariamente, de um princípio básico de ação evasiva, isto é, o melhor lugar para esconder uma agulha é numa pilha de agulhas... c o melhor lugar para evitar os horrores da guerra é num exército. Já que nenhum de vocês jamais viu uma guerra, ou mesmo um exército, preciso explicar.

Eu havia (tolamente) planejado evitar esta guerra fugindo para a América do Sul. Mas a América do Sul é um lugar onde não posso provavelmente passar por nativo, não importa quão bem eu fale a língua — e está carregada de agentes alemães que poderiam desconfiar de que eu fosse um agente americano e provocar algum acidente horrível para o amigo velho, bendito seja seu coração inocente. E as garotas lá têm lindos olhos chamejantes, damas de companhia desconfiadas e pais que adoram alvejar gringos por nada. Pouco saudável.

Se eu ficasse nos Estados Unidos, porém, e tentasse ficar fora do exército — uma escorregadela e eu terminaria atrás de frios muros de pedra, comendo uma comida miserável e transformando pedras grandes cm pequenas. Pouco atraente.

Mas em tempo de guerra o exército é o melhor lugar — descontado um risco moderado de ser alvejado. Isto pode ser evitado.

Como? Esta ainda não é a era da guerra total, e um exército oferece inumeráveis buracos onde um covarde (eu) pode evitar perigos desagradáveis provocados por estranhos. Nesta era apenas uma pequena parte do exército é alvejada. (Uma parte menor ainda é ferida, mas não pretendo correr esse risco.) Aqui e agora a guerra terrestre é travada em certas posições, e no exército há um número infinito de tarefas fora desses lugares, nos quais (apesar do uniforme militar) um homem do exército é realmente apenas um civil privilegiado.

Estou num serviço desses e provavelmente não sairei até a guerra terminar. Alguém tem que pegar esses rapazes corajosos, jovens e inocentes, recém-chegados das fazendas, e transformá-los em alguma coisa parecida com soldados. Um homem que pode fazer isso é tão valioso que os oficiais relutam em deixá-lo ir embora.

Portanto, estou cheio daquele velho espírito de luta e não terei que lutar. Em vez disso, ensino — ordem-unida, treinamento avançado, tiro ao alvo e cuidados com o fuzil, baioneta, combate desarmado, higiene de campanha, tudo. Minha aptidão "espantosa" em assuntos militares causou surpresa, por ser eu um recruta "sem nenhuma experiência militar". (Como poderia admitir que vovô me ensinou a atirar depois do fim desta guerra, que manuseei pela primeira vez estas mesmas armas como cadete do ginásio dez anos a partir de agora, e que a minha experiência militar está espalhada pelos cem anos seguintes, e mais um pouco aqui e ali durante mais alguns séculos?)

Mas correu um boato de que eu tinha sido certa vez soldado da Legião Estrangeira francesa, uma grande unidade de um dos nossos aliados, constituída de degoladores, ladrões e condenados fugidos, e famosa por sua maneira de lutar tipo vá-para-o-inferno — provavelmente desertor dela e quase certamente com outro nome. Desencorajei esta mistificação tornando-me grosseiro quando alguém começava a fazer perguntas e só ocasionalmente cometia o engano de fazer continência à moda francesa (com a palma da mão para a frente) e corrigi isso imediatamente — mas todo mundo sabe que eu "polly-voo" [40] porque o meu conhecimento da língua francesa teve muito a ver com a minha mudança de "cabo interino" para cabo verdadeiro, responsável pela instrução, e agora na reta para sargento. Há oficiais e sargentos franceses e ingleses aqui para nos ensinar a guerra de trincheiras. Supõe-se que todos os franceses aqui falem inglês — mas o inglês que eles falam, estes puxadores de arado do Kansas e do Missouri não conseguem entender. Então aí se insinua o preguiçoso Lazarus como ligação. Eu e um sargento francês quase valemos por um bom instrutor.

Sem esse sargento francês eu sou um bom instrutor — quando me deixam ensinar o que sei. Mas só me permitem isso em combate desarmado, porque a luta desarmada braço a braço não muda com o tempo; só o nome muda, e só tem uma regra: bata primeiro, depressa, e da maneira mais suja.

Mas considere o combate à baioneta. A baioneta é uma faca na extremidade de um fuzil; as duas partes constituem o dardo dos romanos, usado dois mil anos antes, e não era nova mesmo então. Podia-se esperar que a arte do combate de baioneta em 1917 fosse perfeita.

Mas não é. O "Livro" ensina defesas mas não o contra-ataque — contudo um contra-ataque é tão rápido quanto uma defesa, muito mais enganador e fatalmente desconcertante para um homem que nunca ouviu falar dele. E há outras coisas: houve (haverá) uma guerra no século XXVI greg. em que o uso da baioneta se tornou uma arte refinada, e participei dela a contragosto até conseguir dar o fora. Assim, certa manhã, mediante uma aposta, demonstrei que podia enfrentar, sem nunca ser tocado, um sargento instrutor do exército americano regular, depois um inglês e depois um francês.

Permitiram-me ensinar o que eu havia demonstrado? Não. Quero dizer "Com os diabos, não!" Eu não estava fazendo isso "pelo Livro", e minha tentativa "presunçosa" quase me custou meu trabalho confortável. Voltei, então, a fazer aquilo pelo "Livro" sagrado.

Mas este livro (usado em Plattsburg, onde meu pai — e o de vocês — treinou) não é ruim. Na luta à baioneta sua ênfase está na agressividade, o que está bem dentro dos seus limites; a baioneta é uma arma horrível nas mãos de um homem ansioso para se aproximar e matar — e isso podia ser tudo o que aqueles garotos teriam tempo de aprender. Mas eu odiaria ver aqueles valentes rapazes de rostos corados enfrentarem alguns velhos, cansados e pessimistas mercenários do século XXVI e cujo único objetivo era ficarem vivos enquanto os adversários morriam.

Esses garotos podem ganhar uma guerra, eles ganharão esta guerra, eles a ganharam, do tempo em que vocês estão. Mas um número desnecessário vai morrer.

Amo esses garotos. Eles são jovens, ansiosos, valentes e terrivelmente sôfregos para chegarem "Over there" [41] e provarem que um americano pode derrotar seis alemães. (Não é verdade. A proporção não é sequer de um para um. Os alemães são veteranos e não sofrem de "espírito esportivo" ou quaisquer outras ilusões. Mas esses garotos verdes continuarão lutando e morrendo até os alemães desistirem.)

Mas eles são tão moços! Laz e Lor, a maioria deles é mais moça do que vocês duas, alguns muito mais moços. Não sei quantos mentiram sobre a idade — mas uma porção deles nem tem barba. Algumas vezes, à noite, ouço um chorar no seu catre, com saudades da mãe. Mas no dia seguinte estará tentando, dando duro como sempre. Não temos deserções bastantes que mereçam menção; estes rapazes querem lutar.

Tento não pensar em como esta guerra é inútil.

É uma questão de perspectiva. Minerva provou-me certa noite (quando ela ainda estava seguindo a profissão de computadora) que todos os aquis e agoras são iguais e que "o presente" é simplesmente qualquer aqui e agora que se esteja usando. Pelo meu "próprio" aqui e agora (onde estaria eu se não tivesse dado ouvidos aos gansos selvagens — em casa, em Tertius) — por esse aqui e agora esses rapazes ansiosos como cachorrinhos estão mortos há muito tempo e os vermes já os comeram; esta guerra c suas terríveis conseqüências constituem história antiga, nenhuma preocupação minha.

Mas eu estou aqui, e ela está acontecendo agora, e eu a sinto.

Estas cartas ficaram mais difíceis de escrever e de mandar. Justin, você deseja relatos detalhados, escritos no local, de tudo quanto faço, para acrescentar àquele monte de mentiras que você editou. A redução fotográfica e a gravação são agora impossíveis. Algumas vezes me permitem sair do campo por um dia, o que é apenas o tempo suficiente para chegar à cidade grande mais próxima, Topeka (a cerca de cento e sessenta quilômetros de viagem, ida e volta), mas sempre num domingo, quando o comércio está fechado; portanto, não tive uma oportunidade sequer de estabelecer uma ligação para usar um laboratório em Topeka — presumindo que haja um com o equipamento de que preciso, ponto muito duvidoso. Vou deixar as cartas se acumularem num cofre (já que não importa quando eu as poste) — mas os bancos nunca estão abertos aos domingos. Assim, uma carta escrita à mão, não muito comprida nem volumosa, é o máximo que posso fazer — sempre que consigo pôr as mãos em envelopes aninhados (também difíceis agora) — e espero que o papel e a tinta não se oxidem demais durante os séculos.

Comecei um diário, um que não faz menção de Tertius e coisas parecidas (esta carta me faria ser trancado como louco!), mas é simplesmente uma narração diária dos acontecimentos. Posso pô-lo no correio, quando estiver completo para vovô Ira Johnson guardar para mim; então, depois que a guerra terminar e eu tiver tempo e privacidade, poderia usá-lo para escrever o tipo de comentário que você deseja, e ter tempo de miniaturizar e estabilizar uma longa mensagem. Os problemas do historiógrafo que viaja pelo tempo são estranhos e esquisitos. Um cubo de memória Welton de grão fino registraria tudo o que eu pudesse dizer nos próximos dez anos — mas eu não poderia usá-lo, mesmo que o tivesse; falta a tecnologia para isso.

A propósito... Ishtar, você implantou um gravador na minha barriga? Você é um amor, querida, mas algumas vezes um amor estranho — e há alguma coisa aqui. Ele não me incomoda, e eu nunca o teria notado se um médico não o percebesse no dia em que entrei para o exército. Ele não deu importância ao fato — mais tarde, porém, fiz o meu próprio exame pelo tato. Há um implante ali — e não do que Ira diz que estou cheio. Pode ser algum daqueles órgãos artificiais que vocês, rejuvenescedores, relutam em discutir com os seus "filhos". Mas desconfio de que é um cubo Welton com um ouvido ligado a ele e um estoque de energia para dez anos; é mais ou menos do mesmo tamanho.

Mas por que você não me pediu, querida, em vez de introduzi-lo escondido em mim com um anestésico? Não é verdade que eu sempre diga "não" a um pedido feito adequadamente, essa é uma mistificação começada por Laz e Lor. Justin podia ter conseguido que Tamara me pedisse, e ninguém jamais soube dizer "não" a Tamara. Mas Justin pagará por isso: para ouvir o que eu digo e o que é dito em minha presença, ele vai ter que ouvir dez anos de roncos da barriga.

Não, com os diabos, Atena filtrará os ruídos incidentais e fornecerá a ele um impresso datado e sugestivo. Não há nenhuma justiça. E nenhuma privacidade também. Atena, não fui sempre bom para você, querida? Faça Justin pagar pela sua travessura.

Não vi minha primeira família desde que me alistei. Mas, quando receber um passe suficientemente longo, irei a Kansas City visitá-los. Meu status como "herói" inclui privilégios que um "jovem civil solteiro" não pode aproveitar; os costumes relaxam um pouco em tempo de guerra, e poderei passar algum tempo com eles. Eles têm sido muito bons para mim: uma carta quase todo dia, bolinhos ou um bolo semanalmente. O último eu divido com relutância; os primeiros considero relíquias.

Gostaria de que fosse da mesma maneira fácil receber cartas da minha família de Tertius.

Mensagem básica, repetida: o encontro é a 2 de agosto de 1926, dez anos T após a queda. O último número é "seis" — não "nove".

Todo o meu amor,

Cabo Ted ("Amigo Velho") Bronson.

 

Caro sr. Johnson:

E toda a sua família — Nancy, Carol, Brian, George, Marie, Woodie, menino Dickie, bebê Ethel e sra. Smith. Não posso dizer como estou emocionado por este órfão ter sido "adotado enquanto a guerra durar" pela família Smith e saber que isso é confirmado pelo capitão Smith. Em meu coração vocês todos têm sido "minha família" desde aquela noite triste e feliz em que me mandaram embora para a guerra carregado de presentes e bons votos, a minha cabeça cheia dos seus conselhos práticos — e meu coração mais próximo das lágrimas do que me atrevi a deixar alguém perceber. Ouvir da sra. Smith — com uma frase citada de uma carta do seu marido, o capitão — que estou realmente "adotado" — bem, estou próximo às lágrimas outra vez, e os não-comissionados não devem mostrar essa fraqueza.

Não procurei o capitão Smith. Percebi a insinuação na sua carta — mas, na verdade, não precisava dela; estou no exército há tempo suficiente para compreender que um soldado não tem tais presunções. Tenho quase a mesma certeza de que o capitão não me procurará — por motivos que não preciso explicar porque o senhor já esteve no exército muito mais tempo do que o capitão e eu juntos. Foi muita consideração e gentileza da sra. Smith sugerir isso — mas o senhor pode fazê-la compreender que não posso procurar um capitão socialmente? E por que ela não deve insistir com o marido para procurar um não-comissionado?

Se o senhor não puder fazê-la compreender isto (é possível, já que o exército é um mundo diferente), talvez isto baste: o Campo Funston é grande — e não há nenhum transporte para mim além das canelas da égua. Digamos uma hora para a viagem de ida e volta se eu sacudir os calcanhares. Some cinco minutos com o capitão quando encontrá-lo — se encontrá-lo. O senhor conhece a nossa rotina acelerada, enviei-lhe uma cópia. Mostra aqui que simplesmente não há tempo. durante o dia inteiro, para eu fazer isso.

Mas aprecio os pensamentos bondosos dela.

Por favor, transmita a Carol os meus agradecimentos mais calorosos pelos bolinhos de chocolate com nozes. São tão bons quanto os que sua mãe faz; elogio maior não posso fazer. "Eram", devo dizer, porque desapareceram dentro de pernas ocas, minhas e outras (meus amigos são um bocado gulosos). Se ela quiser casar-se com um rapaz de fazenda, alto e magricela, com um grande apetite, tenho um à mão que se casará com ela sem a ver, com base naqueles bolinhos.

Este lugar não é mais o treinamento de fogo mexicano que descrevi em minhas primeiras cartas. Em lugar das chaminés de fogão temos agora morteiros de trincheira verdadeiros, os fuzis de madeira desapareceram e até os convocados mais recentes recebem rifles Springfield logo que dominam o volver à direita e à esquerda e aprendem a fazer alto mais ou menos juntos.

Mas continua duro ensinar-lhes a usarem esses fuzis "pelo Livro". Temos dois tipos de recrutas: rapazes que nunca atiraram com um fuzil e outros que se vangloriam de que seus papais costumavam mandá-los sair para caçar sua refeição matinal, nunca permitindo-lhes mais do que um tiro. Prefiro o primeiro tipo, mesmo que o rapaz esteja inconscientemente com medo e tenha que aprender a não vacilar. Pelo menos ele não se habituou com os seus enganos, e posso ensinar-lhe o que os instrutores do exército regular me ensinaram, e aquelas três divisas na minha manga garantem que ele me ouvirá.

Mas o rapaz do campo que tem certeza de que sabe tudo (e algumas vezes é realmente um bom atirador) não quer ouvir.

É um trabalhão convencê-lo a não fazer isso à sua maneira; vai ter que fazer à maneira do exército, e é melhor aprender a gostar dela.

Algumas vezes esses sabe-tudo ficam com tanta raiva que querem brigar — comigo, não com os hunos. Geralmente são rapazes que não descobriram que eu também ensino combate desarmado. Tive que acomodar um par deles lá atrás da latrina após o toque de arriar a bandeira. Não os esmurrei; não tinha nenhum desejo de achatar o meu nariz grande contra algum punho de ordenhar vacas. Mas a idéia de lutar desordenadamente, sem regras, ou fez seus olhos brilharem... ou eles resolveram apertar as mãos e esquecer. Se eles continuassem com aquilo, não duraria mais de dois segundos, porque não quero machucar-me.

Prometi contar-lhe onde e como aprendi la savate [42] e jiu-jitsu. Mas isso é uma longa história, não muito agradável em certos pontos, que não devo pôr numa carta, mas esperar até ter uma licença que me dê tempo suficiente para visitar Kansas City.

Mas não tive ninguém que se oferecesse para lutar comigo durante pelo menos três meses. Um dos sargentos instrutores me contou que havia ouvido os recrutas me chamarem de "Morte" Bronson. Não me importo, desde que isso signifique paz e silêncio quando não estou de serviço.

O Campo Funston continua a ter apenas dois tipos de tempo: quente demais e poeirento, ou frio demais e lamacento. Ouvi dizer que o último é um bom treinamento para a França; os Tommies [43] aqui afirmam que o pior risco desta guerra é o perigo de se afogar na lama francesa. Os poilus [44] entre nós não discutem realmente isso, mas culpam o fogo de artilharia pela chuva.

Por pior que o tempo possa ser na França, todos querem ir para lá, e o segundo assunto favorito das conversas é "Quando? " (Não há necessidade de dizer a um velho soldado o primeiro.) Os boatos de embarque são incessantes e sempre falsos.

Mas estou começando a pensar. Será que vou ficar metido aqui, fazendo as mesmas coisas mês após mês, enquanto a guerra continua em outra parte? O que direi aos meus filhos algum dia? Onde você lutou na Grande Guerra, papai? Funston, Billy. Em que parte da França fica isso, papai? Perto de Topeka, Billy — cale a boca e coma a sua aveia!

Vou ter que trocar o meu nome.

Fica cansativo dizer a um grupo após outro para ensarilharem as armas e pegarem as pás. Já cavamos nesta pradaria trincheiras suficientes para ir daqui até a Lua, e agora conheço quatro maneiras de fazer isso: a maneira francesa, a maneira inglesa, a maneira americana — e a maneira pela qual cada novo grupo de recrutas faz, em que os revestimentos desabam — e depois eles querem saber que diferença faz, porque o general Pershing, quando chegarmos lá, vai acabar com essa pasmaceira de guerra de trincheiras e pôr aqueles hunos para correr.

Pode ser que eles tenham razão. Mas tenho que ensinar o que me mandam ensinar. Até ficar de cabelos brancos, talvez.

Estou realmente satisfeito de saber que o senhor está no 7." Regimento; sei o quanto isso significa para o senhor. Mas, por favor, não deprecie o 7." do Missouri chamando-o de "guarda nacional". A menos que alguém dê uma chave de braço em Hindenburg muito breve, o senhor verá um bocado de ação nesta guerra.

Mas, na verdade, sr. Johnson, espero que não veja — e acho que o capitão Smith concordaria com o meu raciocínio. Alguém tem que tomar conta do lar — e refiro-me a um lar específico no Benton Boulevard. Brian Junior não tem idade suficiente para ser o homem da família — acho que o capitão Smith ficaria preocupado se o senhor não estivesse aí.

Mas compreendo como o senhor se sente. Ouvi dizer que a única maneira de um sargento instrutor escapar desta rotina enfadonha é perdendo suas divisas. O senhor ficaria envergonhado de mim se eu prolongasse a licença apenas o suficiente para ser rebaixado outra vez a cabo... depois fazer mais alguma coisa para perder aquelas duas divisas também? Estou certo de que isso me poria no primeiro trem de tropas em direção ao leste.

É melhor o senhor não ler essa última parte para o resto da família. Um "Smith honorário" deveria encontrar algum outro meio.

Meus respeitos mais cordiais para o senhor e para a sra. Smith.

Meu amor para todos os jovens,

Ted Bronson "Smith"

( E muito feliz por ter sido "adotado")

 

— Entre!

— Capitão, o sargento Bronson se apresenta ao capitão Smith como ordenado! — (Papai, eu não teria reconhecido você. Mas macacos me mordam se o senhor não é exatamente como devia ser! Apenas mais moço.)

— À vontade, sargento. Feche essa porta. Depois sente-se.

— Sim, senhor. — Lazarus fez isso, ainda embaraçado. Ele não só nunca esperara que o capitão Smith entrasse em contato com ele, como se abstivera de pedir um passe suficientemente longo que lhe permitisse ir até Kansas City por dois motivos: um, seu pai podia estar lá naquele fim de semana — ou, dois, seu pai podia não estar lá naquele fim de semana. Lazarus não tinha certeza do que seria pior; havia evitado a ambos.

Agora, um tipo de ladrão de cachorro numa motocicleta com sidecar o havia apanhado de repente com ordens para "Apresentar-se ao capitão Smith" — e não foi senão após ter feito isso que soube que esse "capitão Smith" era o capitão Brian Smith.

— Sargento, o meu sogro me contou uma porção de coisas a seu respeito. Bem como minha mulher.

Não parecia haver nenhuma resposta a isso; portanto, Lazarus ficou embaraçado e não disse nada.

— Ora, vamos, sargento — o capitão Smith continuou —, não fique embaraçado; isto é de homem para homem. Minha família o "adotou", por assim dizer, e isso com a minha aprovação calorosa. Na verdade, isso está de acordo com algo que o Departamento de Guerra está começando, através da Cruz Vermelha, da acm e das igrejas, um programa para localizar cada homem em uniforme que não receba cartas regularmente e providenciar para que as receba. Arranjar uma família para "adotá-lo enquanto a guerra durar", em outras palavras. Escrever-lhe, lembrar-se do seu aniversário, mandar-lhe pequenos presentes. O que acha disso?

— Capitão, parece bom. O que a família do capitão tem feito por mim certamente tem sido bom para o meu moral.

— Estou satisfeito de ouvir isso. Como você organizaria um programa desses? Fale, não tenha medo de expressar suas próprias idéias. (Dê-me uma escrivaninha e farei disso uma carreira, papai! )

— Capitão, o problema divide-se em duas... não, em três partes. Duas de preparação, uma de execução. Primeiro, localizar os homens. Segundo, ao mesmo tempo, localizar famílias dispostas a ajudar. Terceiro, pô-los em contato. A primeira tem que ser feita pelos primeiros-sargentos. — (Os primeiros-sargentos vão adorar isto... uma ova!) — Eles terão que pedir aos escriturários de suas companhias para conferirem a correspondência com a lista de praças antes de distribuí-la. Hã, isto deve ser feito depressa; atrasar a entrega de correspondência por qualquer motivo não é uma boa idéia. Mas a conferência não pode ser deixada para os sargentos de pelotão; eles não estão organizados para isso e iriam misturá-la. Ela tem que ser feita na ocasião em que o empregado da correspondência a entregar a cada escriturário de companhia.

Lazarus pensou.

— Mas para fazer isso funcionar, se o capitão me perdoar, o general comandante deve dizer ao seu ajudante para exigir de cada comandante de companhia, esquadrão e bateria um relatório de quantas cartas cada homem sob o seu comando recebeu naquela semana. — (É uma invasão infernal da intimidade, e o tipo de multiplicação de trabalho burocrático que atola os exércitos! Os saudosos têm lares e recebem cartas. Os solitários não querem cartas; querem mulheres e uísque. O mijo de cão da pradaria que vendem como uísque neste Estado "seco" fez de mim um abstêmio.) — Mas isso não deve ser um trabalho burocrático separado, capitão; basta apenas uma coluna de marcação no relatório semanal regular. Tanto os comandantes de companhia como os primeiros-sargentos vão ter dores de barriga se isso tomar tempo demais... e o general comandante receberia relatórios que seriam em grande parte produto da imaginação dos escriturários das companhias. O capitão sabe disso, tenho certeza.

O pai de Lazarus deu o sorriso que o fazia parecer com Teddy Roosevelt.

— Sargento, você acaba de fazer com que eu reveja uma carta que estou preparando para o general. Enquanto eu estiver designado para Planos e Treinamento, nenhum programa novo vai aumentar a montanha de trabalho burocrático, se eu o puder evitar. Estive tentando reduzir este a um tamanho razoável, e você me mostrou um meio de fazê-lo. Diga-me, por que você recusou o treinamento de oficial quando lhe foi oferecido? Mas não me diga se não quiser; isso é da sua conta.

(Papai, vou ter que mentir para você — porque não posso acentuar que um líder de pelotão tem uma expectativa de vida de cerca de vinte minutos se levar o seu pelotão "por sobre a borda" e fizer isso pelo Livro. Que guerra!)

— Capitão, considere o assunto desta maneira. Suponha que eu me candidatasse ao treinamento. Um mês para isso ser aprovado. Depois três meses em Benning, ou Leavenworth, ou para onde quer que os estejam mandando. Depois de volta para cá, para Bliss, ou para algum lugar, e serei designado para os recrutas. Seis meses com eles e vamos para ultramar. Mais treinamento atrás das linhas, pelo que ouvi dizer. Isso soma cerca de um ano, e a guerra termina e eu não estive nela.

— Hum... pode ser que você tenha razão. Quer ir para a França?

— Quero, capitão — (Cristo, não!)

Exatamente no domingo passado, em KC, meu sogro me disse que essa seria a sua resposta. Mas pode ser que você não sabia, sargento, que a função em que você está será da mesma forma decepcionante... sem a compensação das barras nos seus ombros. Aqui em Planos e Treinamento ficamos de olho em cada instrutor alistado... e aqueles que não trabalham embarcamos para fora... mas aqueles que trabalham nós agarramos com unhas e dentes.

"Exceto por uma coisa — seu pai sorriu outra vez. — Pediram-nos (a palavra amável para ordenaram) que fornecêssemos alguns dos nossos melhores instrutores para aquele treinamento atrás das linhas na França que você mencionou. Sei que você é qualificado; fiz questão de notar os relatórios semanais sobre você desde que meu sogro me falou a seu respeito. Eficiência surpreendente para um homem sem nenhum tempo de combate... mas uma ligeira tendência a infringir os regulamentos em questões secundárias, o que, particularmente, não considero uma desvantagem, o soldado totalmente regulamentar é um soldado de quartel. Est-ce que vous parlez la langue française?'"

— Oui, mon capitaine.

— Eh, bien! Peut-être vous avez enrole aulrefois eu la Légion Etrangère, n'est-ce pas?

— Pardon, mon capitaine? Je ne comprends pas.

— Nem compreenderei você se falarmos mais três palavras disso. Mas estou estudando muito, porque espero que o francês seja o meu próprio passe de saída deste lugar poeirento. Bronson, esqueça que eu fiz essa pergunta. Mas preciso fazer mais uma coisa e quero uma resposta absolutamente direta. Há alguma possibilidade, qualquer que seja, de alguma autoridade francesa poder estar procurando você? Não ligo a mínima para o que você possa ter feito no passado, e nem o Departamento de Guerra. Mas temos que proteger os nossos.

Lazarus mal hesitou. ( Papai está me dizendo claro como água que se eu for um desertor da Legião Estrangeira — ou tiver fugido da ilha do Diabo ou qualquer coisa parecida — vai manter-me fora da jurisdição francesa.)

— Absolutamente nenhuma, capitão!

— Estou aliviado de saber isso. Tem havido boatos que papai Johnson não pôde nem confirmar nem negar. Por falar nele... Levante-se um momento. Agora esquerda, volver, por favor. E meia-volta, volver. Bronson, estou convencido. Não me lembro do tio de minha mulher, Ned, mas daria grande vantagem numa aposta como você é parente do meu sogro, e a teoria dele certamente concorda com a minha. O que nos torna "parentes", de certa forma. Após a guerra terminar, talvez possamos investigar isso. Mas soube que meus filhos o chamam de "tio Ted"... o que parece bastante íntimo e me agrada, se agrada a você.

— Capitão, agrada realmente! É bom ter uma família, em qualquer hipótese.

— Acho que sim. Apenas mais uma coisa... e isto você tem que esquecer assim que sair por aquela porta. Acho que uma lista curva para estas divisas vai aparecer um destes dias... e não muito tempo depois você terá uma curta licença que não pediu. Quando isso acontecer, não exija maiores explicações. Comprenez-vous?

— Mais oui, mon capitaine, certainement.

— Eu gostaria de poder dizer-lhe que seremos da mesma unidade; papai Johnson gostaria disso. Mas não posso. Enquanto isso, lembre-se, por favor, de que não lhe disse nada.

— Capitão, eu já esqueci. — (Papai pensa que está me fazendo um favor!) — Obrigado, capitão!

— De nada. Dispensado.

 

Da capo

Vivace

VII

O sargento ajudante Theodore Bronson achou Kansas City mudada — uniformes por toda parte, cartazes por toda parte. O Tio Sam olhava para ele: "Quero você para o exército dos Estados Unidos". Uma enfermeira da Cruz Vermelha era mostrada segurando um homem ferido numa padiola como se ele fosse um bebê, com a única palavra "dê". Um letreiro num restaurante dizia: "Observamos todos os dias sem carne, sem trigo e sem doces". Bandeiras do exército e da marinha estavam em muitas janelas — ele contou cinco estrelas numa, viu várias com estrelas de ouro.

Havia mais tráfego do que ele lembrava e os bondes andavam apinhados, muitos passageiros de uniforme — parecia que todo o Campo Funston e todos os campos ou fortes a uma distância razoável haviam sido despejados dentro da cidade de uma vez só. Não era verdade, ele sabia, mas o trem em que havia cochilado a maior parte da noite anterior estava tão cheio que parecia verdade.

Aquele "Caqui Especial" era quase tão sujo como um trem de gado e mais lento ainda; havia sido desviado vezes sem conta em favor de trens de carga, e uma vez para um trem de tropas. Lazarus chegou a Kansas City no fim da manhã, cansado e sujo — tendo deixado o campo limpo e descansado. Mas trazia consigo sua velha valise maltratada e planejava corrigir ambas as condições antes de ver sua família "adotiva".

Acenando uma nota de cinco dólares diante da estação da estrada de ferro conseguiu um táxi, mas o motorista insistiu em pegar mais três passageiros que iam para o sul após perguntar em que direção Lazarus ia. O táxi era um Ford landaulet como o seu, mas em muito piores condições. A divisão de vidro entre os bancos da frente e de trás (característica que fazia dele uma limusine) havia sido removida, e a meia capota conversível do compartimento de trás parecia ter sido arriada pela última vez. Mas, com cinco dentro dele, mais a bagagem sobre os joelhos, a ventilação era bem-vinda.

— Sargento — disse o motorista —, o senhor foi o primeiro. Para onde?

Lazarus explicou que queria encontrar um quarto de hotel ao sul, perto da 31st Street.

— O senhor é otimista... é bastante difícil encontrar um no centro. Mas tentarei. Deixarei estes outros cavalheiros primeiro.

Finalmente ele terminou perto da 31st com a Main — "Hóspedes permanentes c temporários — todos os quartos e apartamentos com banheiro".

— Esta espelunca custa caro demais — disse o motorista. — Não, guarde o seu dinheiro até verificarmos se eles o aceitarão. O senhor vai logo para ultramar?

— Parece que sim.

— Então a sua corrida é um dólar; não aceito gorjetas de um homem prestes a ir embora... tenho um filho "lá". Deixe-me falar com aquele empregado.

Dez minutos depois Lazarus estava se regalando no primeiro banho de banheira que tomava desde 6 de abril de 1917. Depois dormiu três horas. Quando o seu despertador interior o acordou, ele se vestiu com roupas limpas, seu melhor uniforme — o culote ele havia reformado, fazendo uma prega elegante até o joelho. Desceu ao saguão e telefonou para a casa da sua família.

Carol atendeu e gritou:

— Oh! Mamãe, é o tio Ted!

A voz de Maureen Smith estava serenamente cordial:

— Onde é que o senhor está, sargento Theodore? Brian Júnior quer trazê-lo para casa.

— Por favor, agradeça a ele, sra. Smith, mas estou num hotel na linha do bonde da 31st Street; estarei aí antes que ele possa chegar aqui... se for bem-vindo.

— "Bem-vindo"? Que maneira de o nosso soldado adotivo falar! O senhor não pode ficar num hotel: tem que ficar aqui. Brian... meu marido, quero dizer, o capitão, nos disse para esperá-lo e que o senhor ia ficar conosco. Ele não lhe disse isso?

— Minha senhora, só vi o capitão uma vez, três semanas atrás. Pelo que sei, ele não sabe que estou de licença. — Lazarus acrescentou: — Não desejo incomodá-la.

— Ora essa, sargento Theodore, vamos acabar com isso. No começo da guerra transformamos o quarto de empregada (minha sala de costura, onde o senhor jogou xadrez com Woodrow) num quarto de hóspedes, para que o capitão pudesse trazer um colega oficial para casa num fim de semana. Devo comunicar ao meu marido que o senhor se recusou a dormir aqui?

(Maureen, meu amor, isso é pôr o gato perto demais do canário! Não vou dormir; ficarei acordado pensando em você em cima — cercada pelas crianças e o vovô.)

— Sra. capita, é uma anfitriã generosa; ficarei totalmente encantado de dormir em sua sala de costura.

— Assim está melhor, sargento. Pensei por um momento que ia ter que zangar-me.

 

Brian Júnior estava esperando no ponto de bonde do Benton Boulevard, com George como lacaio e Carol e Marie no banco de trás. George agarrou a valise e cuidou dela; Marie disse em voz estridente;

— Nossa, o tio Ted não está lindo? li Carol corrigiu-a:

— Bonito, Marie. Os soldados são bonitos e elegantes, não "lindos". Não é isto, tio Ted?

Lazarus ergueu a menina menor pelos cotovelos, beijou-lhe o rosto e colocou-a no chão.

— Tecnicamente correto, Carol... mas "lindo" me serve otimamente se Marie acha que o sou. Uma comissão e tanto de boas-vindas... eu vou atrás?

— Sente-se atrás com as meninas — determinou Brian Júnior. — Mas olhe para isto primeiro! — Ele apontou. — Um acelerador de pé! Não é bacana?

Lazarus concordou, depois levou alguns momentos inspecionando o carro — em melhor estado do que o havia deixado, brilhando e limpo dos raios até a capota e com vários acessórios novos além do acelerador de pé: uma tampa de radiador elegante; antiderrapantes de borracha para os pedais; um porta-pneu na traseira, com uma capa de couro envernizado, para um pneu sobressalente; um cabide para manta no compartimento traseiro com uma manta bom dobrada; e como toque final — um vaso de cristal lapidado com uma única rosa.

— O motor está tão bem conservado como o resto? George abriu o capo. Lazarus olhou e inclinou a cabeça

em sinal de aprovação.

— Podia sofrer uma inspeção com luvas brancas.

— É exatamente isso que vovô faz — declarou Brian. — Ele diz que, se não cuidarmos dele, não poderemos usá-lo.

— Vocês cuidam dele.

Lazarus chegou em esplendor real, um braço em volta de uma garotinha grande, o outro em volta de uma garotinha pequena. Vovô estava esperando na varanda da frente; desceu até a calçada para recebê-lo, e Lazarus reviu de repente sua imagem mental: o velho soldado estava de uniforme, parecia trinta centímetros mais alto e espigado como uma vareta de fuzil — fitas no peito, divisas nas mangas, perneiras enroladas com o maior cuidado, chapéu de campanha pousado no alto e ligeiramente levantado atrás.

Quando Lazarus se virou após pôr Carol do lado de fora, após Marie sair dançando na frente, vovô parou e fez para Lazarus uma continência rigorosamente regulamentar.

— Bem-vindo ao lar, sargento! Lazarus correspondeu de modo ostentoso:

— Obrigado, sargento; estou satisfeito por estar aqui. — E acrescentou: — Sr. Johnson, o senhor não me contou que era sargento de suprimentos.

— Alguém tem que contar as meias. Concordei em... O resto perdeu-se com a chegada explosiva de Woodie.

— Ei, tio sargento! Você vai jogar xadrez comigo!

— Claro, camarada. — Lazarus concordou, sua atenção distraída por duas outras coisas: a sra. Smith diante da porta aberta e uma bandeira do exército na janela da sala de visitas. Três estrelas... Três?

Depois vovô estava insistindo para que ele entrasse, dizendo algo sobre esta ser uma noite de exercício, portanto o jantar seria cedo. Nancy beijou-o, abertamente e sem olhar primeiro para a mãe à espera de aprovação. Depois Dickie teve que ser levantado e beijado, e o bebê Ethel (andando!). Por fim Maureen deu-lhe sua mão esguia, puxou-o para ela e roçou o seu rosto com os lábios.

— Sargento Theodore... é tão bom tê-lo em casa!

 

O jantar foi um circo barulhento bem dirigido, com vovô presidindo em lugar do genro, enquanto sua filha dirigia as coisas com severa dignidade da outra extremidade da mesa: ela não se levantou desde que Lazarus ajudou-a a sentar-se e ficou no lugar de honra à sua direita. Suas três filhas mais velhas fizeram tudo o que era necessário. Ethel sentou-se numa cadeira alta à esquerda de sua mãe, com a ajuda de George — Lazarus ficou sabendo que esse serviço era feito em rodízio entre os cinco mais velhos.

Foi um jantar abundante para tempo de guerra, com pão de milho quente e dourado substituindo o pão branco, pois nesse dia não havia trigo — e a disciplina mais firme (administrada por Nancy e Brian Júnior) exigia que todo pedaço aceito fosse comido, com uma advertência sobre os belgas esfomeados. Lazarus não se importou com o que comeu, mas lembrou-se de cumprimentar as cozinheiras (três), e tentou responder a tudo o que perguntavam a ele — era quase impossível, porque Brian e George queriam falar sobre a campanha da sua tropa de escoteiros para recolher cascas de nozes e caroços de pêssego e quantos eram precisos para cada máscara de gás; eles tiveram de permitir que Marie se vangloriasse de saber fazer tricô tão bem como George, e nem deixava soltar os pontos! — e quantos quadrados eram necessários para fazer um cobertor, enquanto vovô queria falar sobre o exército com Lazarus, e teve que ser severo para conseguir dizer alguma coisa.

Maureen Smith pareceu achar desnecessário falar. Ela sorria e se mostrava feliz, mas Lazarus achou que havia tensão sob o seu autocontrole — a tensão de Penélope [45], velha como o tempo. (Por mim, querida? Não, é claro que não. Gostaria de dizer a você que papai voltará, incólume. Mas como posso fazê-la acreditar que eu sei? Você vai ter que suportar isso da mesma maneira que Penélope. Lamento, meu amor.)

— Desculpe-me, Carol... não ouvi.

— Eu disse que é totalmente horrível você ter que voltar tão cedo! Quando está prestes a ir para "lá".

— Mas isso é bastante, Carol, em tempo de guerra. Só que vir para cá e voltar consome muito tempo. Não tenho direito a privilégios especiais; não sei se estou prestes a embarcar.

Houve silêncio em volta da mesa, e os meninos mais velhos trocaram olhares.

Ira Johnson rompeu-o, dizendo amavelmente: — Sargento, as crianças sabem o que significa uma licença no meio da semana. Mas elas não falam; são disciplinadas. Meu genro resolveu (sabiamente, acho eu) não esconder coisas deles desnecessariamente.

— Mas, vovô, quando papai tem licença, ele não volta no dia seguinte. Isso não é justo.

— Isso é porque — disse Brian Júnior sabiamente — papai viaja geralmente com o capitão Bozell naquele velho Marmon Six grande e eles correm muito. Sargento ajudante tio Ted, eu posso levá-lo de carro para o campo. Aí você só teria que partir amanhã à noite bem tarde.

— Obrigado, Brian, mas acho melhor não. Se eu pegar o trem que chamamos de "Alvorada Especial" amanhã à tardinha, estarei garantido, mesmo que o trem se atrase um pouco, e esta é uma ocasião em que não vou me arriscar a chegar após o fim da licença.

— Concordo com o sargento Bronson — acrescentou vovô —, e isso resolve a questão, Brian. Ted não pode arriscar-se a chegar atrasado. Vejo que é melhor eu me mexer também. Filha, pode me dar licença?

— Certamente, papai.

— Sargento Johnson, posso levá-lo de carro até o seu campo de desfiles? Ou o que quer que seja?

— Para o arsenal. Não, não, Ted, meu capitão me apanha e me traz em casa; ele e eu vamos cedo e ficamos até tarde. Bem, por que você não leva Maureen para dar urna volta? Ela não sai de casa há uma semana; está ficando pálida.

— Sra. Smith? Ficaria honrado.

— Vamos todos!

— George — disse seu avô firmemente —, a idéia é dar à sua mãe uma hora livre da pressão e do barulho das crianças.

— O sargento Ted prometeu jogar xadrez comigo!

— Woodie, ouvi o que ele disse. Ele não determinou uma ocasião... e ele estará aqui amanhã.

— E ele prometeu levar-me ao parque de diversões muito, muito, muito tempo atrás, e nunca levou!

— Woodie, lamento quanto a isso — respondeu Lazarus —, mas a guerra chegou antes de o parque abrir. Pode ser que tenhamos de esperar até a guerra terminar.

— Mas você disse...

— Woodrow — disse sua mãe com firmeza —, pare com isso. Esta é a licença do sargento Theodore, não sua.

— E não fique com essa cara emburrada — acrescentou o avô —, antes que formemos um quadrado regimental e mandemos açoitar você no mastro da bandeira. Nancy? É a responsável pelos alojamentos, querida.

— Mas... — A menina mais velha calou a boca.

— Papai, o namorado de Nancy está prestes a fazer anos e não vai esperar para ser convocado, acho que eu lhe disse. Assim, alguns dos jovens vão oferecer a ele uma festa de surpresa esta noite.

— Ah, sim... esqueci-me. Ótimo rapaz, Ted; você o aprovaria. Correção, Nancy; você está de folga. Carol?

— Carol e eu podemos cuidar de tudo — respondeu Brian. — Não podemos, Carol? É minha noite de lavar, Marie enxuga; é a vez de George guardar. Horas de dormir pelo programa, números de telefones de emergência no quadro-negro... conhecemos as ordens em vigor.

— Podem me dar licença, também, então? — disse Nancy. — Sargento ajudante Ted... você estará aqui amanhã. Não estará?

 

Lazarus foi até a calçada para conhecer o capitão de vovô na milícia. Quando entrou, Maureen havia subido. Ele aproveitou a oportunidade para se refrescar no banheiro da antiga sala de costura. Quinze minutos mais tarde estava ajudando a sra. Smith a sentar no banco da frente do landaulet, estonteado por sua fragrância maravilhosa. Teria ela conseguido tomar banho outra vez em vinte minutos ou menos? Parecia que sim; certamente havia mudado de roupa. Estas modas de tempo de guerra eram espantosas; ao ajudá-la a entrar, Lazarus vislumbrou não só um tornozelo esguio como um bom pedaço de uma perna bem-feita. Ele ficou abalado pela emoção que isso lhe despertou.

Quanto tempo esta moda duraria? Enquanto girava a manivela do carro, tentou acalmar-se pensando nisso. Os coletes desapareceram logo depois dessa guerra, e as saias subiram continuamente durante toda a década tórrida dos anos 20, a "Era do Jazz". Depois as modas femininas variaram durante todo esse século, mas com uma tendência constante a deixar os homens verem mais e mais daquilo "por que estavam lutando". Mas a nudez social, mesmo na natação, não se tornou realmente comum até o fim do século, assim pareceu-lhe lembrar. Depois houve uma reação puritana no século seguinte — uma época horrível da qual havia fugido.

O que Maureen pensaria se ele tentasse contar-lhe alguma coisa disso?

O motor pegou; ele se sentou ao lado dela.

— Aonde gostaria de ir, sra. Smith?

— Ah, lá para o sul. Algum lugar tranqüilo.

— O sul, então. — Lazarus olhou para o sol que se punha e acendeu os faróis. Fez uma volta e dirigiu-se para o sul.

— Mas o meu nome não c "sra. Smith", Theodore... quando estamos a sós.

— Obrigado... Maureen. — Direto para a 39th: .. depois até o Paseo? Ou pela Prospect e para fora, até o Swope Park? Ela o deixaria levá-la tão longe assim? Ah, mil quilômetros de estradas abertas e Maureen ao meu lado!

— Gosto da maneira como você diz o meu nome, Theodore. Você se lembra aonde levou as crianças para um piquenique, não muito antes de a guerra começar?

— Perto do Blue River. Você quer ir lá, Maureen?

— Quero. Se você não se lembra do caminho, posso guiá-lo; eu o sugeri para aquele piquenique.

— Nós o encontraremos.

— Não precisa ser aquele lugar... mas algum lugar calmo... e isolado. Onde você não precise dedicar sua atenção a guiar.

(Ei! Maureen, minha querida, você não vai querer que fiquemos isolados demais — posso chocá-la horrivelmente. Isolado o bastante para um beijo de despedida — ótimo! Depois vamos entregá-la em casa sã e salva. Você é deste século, minha doçura! Prefiro ganhar um beijo — e o seu amor e respeito — a induzi-la a mais e fazê-la pensar em mim com remorso. Resolvi isso muitos meses atrás, querida. )

— Devo virar aqui?

— Sim. Theodore, Brian Júnior disse que o novo acelerador que ele instalou permite guiar com uma mão só.

— Sim, é verdade.

— Então guie com uma mão. Isso está bastante claro, ou preciso ser ainda mais audaciosa?

Ele colocou o braço cuidadosamente em volta dos seus ombros. Ela prontamente estendeu a mão, segurou a dele, abaixou-a e apertou-a contra o seio, dizendo calmamente:

— Não temos tempo de ser tímidos, caro Theodore. Não tenha receio de tocar em mim.

Seio firme e macio. Bico ereto ao seu contato. Ela estremeceu e aproximou-se mais dele, apertou novamente sua mão contra a dele e soltou um pequeno gemido. Lazarus disse roucamente:

— Eu a amo, Maureen.

Ela respondeu, na altura apenas suficiente para ser ouvida por ele acima do ruído do motor:

— Nós nos amamos desde a noite em que nos conhecemos. Simplesmente não podíamos dizê-lo.

— Sim. Não me atrevi a dizê-lo a você.

— Você nunca me teria dito, Theodore. Por isso tive que ser audaciosa e deixar você saber que sinto o mesmo. — É acrescentou: — A curva fica bem em frente, eu acho.

— Também acho. Vou precisar das duas mãos para guiar por aquele caminho.

— Sim — concordou ela soltando seu braço —, mas só até chegarmos lá. Depois quero os seus dois braços... e toda a sua atenção.

— Sim! — Ele guiou com cuidado, evitando os buracos, até o caminho se alargar na clareira gramada de que ele se lembrava. Lá fez o carro dar uma volta completa, em parte para deixá-lo de frente, mas principalmente para ver se não havia mais ninguém lá. Os faróis não revelaram nada senão capim e árvores... bom! (Isso era bom? Ah, minha querida, você sabe o que está fazendo?)

Ele apagou as luzes, parou o motor e puxou o freio de mão. Maureen foi direto para os seus braços; sua boca procurou a dele, abriu-se toda para ele. Durante longos momentos não precisaram de nenhuma palavra; a boca e as mãos de Maureen estavam tão ansiosas quanto as dele e até mais audaciosas, impelindo-o adiante.

Pouco depois ela riu feliz contra os lábios dele e cochichou :

— Surpreso? Mas não poderia dar um adeus apropriado ao meu guerreiro se estivesse com calcinha... portanto, tirei-a quando fui lá em cima, e o meu espartilho também. Não hesite, querido; você não pode me fazer mal... estou esperando.

— O que foi que disse?

— Theodore, devo ser sempre eu a dizer palavras audaciosas e a praticar gestos audaciosos? Estou grávida, sete semanas agora. Com certeza.

— Ah! — Ele acrescentou, pensativo: — Este banco é estreito.

— Ouvi dizer que os jovens algumas vezes tiram fora o banco de trás e o põem no chão. Ou as formigas o preocupam? Audácia, querido, um guerreiro tem que ser audacioso... assim diz o meu pai, e o meu marido concorda. Há uma manta ali atrás, também.

(Maureen, meu amor, não há nenhuma dúvida sobre onde consegui minha própria audácia — ou minha excitação. De você, querida.)

— Se você me soltar, eu os levo para fora. Não estou com medo das formigas... nem da mulher mais encantadora que já tive em meus braços. Simplesmente estou achando difícil acreditar nisso.

— Eu o ajudarei!

Ela saiu do carro sem esperar; ele deslizou pelo banco e seguiu-a. Ela abriu a porta de trás — e parou. Depois disse em voz alta e feliz:

— Woodrow, você é um patife! Sargento Theodore! Veja quem está dormindo no banco de trás! — Enquanto falava, ela mexia desajeitadamente atrás de si, tentando alcançar os botões dele que ela havia desabotoado. Lazarus rapidamente assumiu a tarefa.

— O sargento Ted prometeu levar-me ao parque de diversões!

— É para lá que vamos, querido; estamos quase lá. Agora conte à mamãe... Devemos levá-lo para casa e pô-lo na cama? Ou você é bastante grande para ficar acordado e ir ao parque de diversões?

— Sim, camarada — concordou Lazarus. — Para casa? Ou o parquinho? — (Maureen, vovô ensinou você a mentir? Ou isso ê gênio? Eu não só a amo, como também a admiro. Pershing devia ter você em seu estado-maior.) Ele abotoou apressadamente os botões nas costas do vestido dela.

— Hein? Parquinho!

— Então acomode-se aí atrás e o levaremos até lá num instante.

— Quero ir na frente!

— Camarada, você pode ir atrás até o parque de diversões. Ou ir atrás até levarmos você em casa e o pormos na cama. Não vou guiar com três no banco da frente.

— Brian guia!

— Vamos para casa, sra. Smith. Woodie não sabe quem está guiando este carro... deve estar com muito sono.

— Também não estou! Tirei uma soneca. Está bem, irei atrás... ao parquinho.

— Sra. Smith?

— Iremos ao parque de diversões, sargento Theodore. Sc Woodrow se deitar e tentar tirar outra soneca.

Woodie deitou-se prontamente; eles o fecharam dentro e Lazarus saiu dali. Quando o motor fez bastante barulho para abafar suas palavras, ela disse:

— Preciso telefonar. Lá atrás, onde fizemos a volta, você encontrará uma drugstore... fica em nosso caminho para o parque de diversões.

— Está bem. Quanto você acha que ele ouviu?

— Acho que ele estava dormindo até eu abrir a porta. Mas não tem importância; se não estivesse, não entenderia nada. Não se preocupe, Theodore... audácia, sempre audácia.

— Maureen, você devia ser soldado. Um general.

— Prefiro ser amada por soldados... e sou, e isso me torna maravilhosamente feliz. Agora você pode guiar com uma mão outra vez.

— Isso é apenas vidro, ele pode nos ver.

— Theodore, você pode tocar em mim sem pôr o braço em volta. Vou sentar-me ereta e fingir ignorar o que quer que você resolva fazer. Mas sou uma mulher muito frustrada... e quero ser bolinada. Por você. — Ela riu. — Não somos um par de bobalhões?

— Acho que sim. Mas eu não estou rindo. — Lazarus apalpou sua coxa. — Estou frustrado também.

— Ah, mas você tem que rir, Theodore. — Ela levantou a saia e levou a mão dele sobre a coxa nua acima das ligas redondas. — Quando você tiver tantos filhos como eu, você terá que rir. Ou ficar maluco. — Ela puxou a saia para baixo, por cima da mão dele.

Ele acariciou sua pele lisa e quente; ela afastou as coxas e pediu mais.

— Acho isso engraçado — admitiu ele. — Dois adultos completamente crescidos flanqueados por um menino de seis anos.

— Cinco apenas, Theodore. Seis cm novembro. — Ela apertou-lhe a mão entre as coxas roliças, depois relaxou. — Como me lembro bem! O maior bebê que já tive, quatro quilos... c deu mais problemas que todos os outros juntos. Sempre um patife, sempre meu favorito, e tento nunca demonstrar isso (e você não deve repetir isso), que Woodrow é o meu favorito, quero dizer; não tenho medo de você contar qualquer outra coisa. Sei que a minha reputação está segura com você.

— Está.

— Eu sabia disso, senão nunca teria conspirado para levá-lo até lá. Mas "reputação" é tudo o que isso é; você sabe agora a sirigaita que sou debaixo da minha máscara. Mas cultivo uma boa reputação com o maior cuidado... pelos meus filhos. Pelo meu marido.

— Você disse "conspirado".

— Você não tinha certeza disso? Eu vi imediatamente, quando soube que o seu tempo era curto, que eu tinha exatamente uma oportunidade de pegá-lo só e fazê-lo compreender que quero que volte com o seu escudo, não sobre ele. Há apenas um meio de uma mulher dizer isso a um guerreiro. Assim, pedi ajuda a papai para afastá-lo do meu enxame de filhos. — Ela riu outra vez. — Mas o maior patife que tenho arruinou meus planos cuidadosamente traçados. Porque ele arruinou, o querido... não me atrevo a arriscar isso em casa. Sempre lamentarei não termos conseguido... e espero que você também.

— Ah, eu lamentarei, eu lamento! Você fez o sr. Johnson sugerir este passeio? Ele não vai suspeitar?

— Estou certa de que sim. E desaprova. A mim, Theodore... não a você. Mas a minha reputação está tão segura nas mãos dele quanto nas suas. Quer ouvir uma piada de morrer de rir? Uma que nos fará rir tanto, que esqueceremos como estamos frustrados?

— Rirei se você rir.

— Você não imaginou como eu sabia o lugar perfeito? Porque já estive lá antes, Theodore, para o mesmo fim. Mas essa não é a piada; esta sim: aquele tratante no banco de trás foi concebido lá... no mesmo lugar em que eu ia fazê-lo colocar-me.

Lazarus pensou uma fração de segundo, depois deu uma gargalhada.

Tem certeza?

— Certeza absoluta. A três metros de onde você parou, Ao lado daquele castanheiro preto maior. Planejei fazer com que você me colocasse no mesmo ponto. Sou sentimental, Theodore; eu queria que você me possuísse exatamente onde concebi o meu filho favorito. E o diabinho me fez parar! Após eu ter ficado muito excitada pensando em fazer isso com você no mesmo lugar.

Lazarus pensou por um longo momento... e decidiu que queria saber.

— Quem era ele, Maureen?

— O quê? Ah! Suponho que provoquei isso, logo não devo ficar ressentida. Theodore, sou devassa mas não a esse ponto. Meu marido, querido... todos os meus filhos são dele, nenhuma possibilidade de erro. Você viu Brian apenas como oficial... mas em particular o meu marido é muito brincalhão. Tanto que nunca uso calças quando vou passear com ele.

"Foi no dia 18 de fevereiro, um domingo, um que nunca vou esquecer. Eu tinha uma empregada, então; Nancy era criança demais para sair com os menores. Brian estava na estrada, viajando, e queria que eu estivesse pronta para qualquer coisa quando ele estivesse na cidade, e ele havia acabado de comprar o seu primeiro automóvel.

"Aquele domingo foi um daqueles dias de falsa primavera, e Brian resolveu levar-me para passear. Só a mim. Ele havia estabelecido uma regra rígida de que algumas ocasiões eram para toda a nossa família, outras apenas para mamãe e papai... uma boa política numa família grande, achamos. Então fomos para aquele lugar de piquenique encantador, bonito mesmo no inverno, e o chão estava seco. Sentamo-nos e ficamos brincando, e a mão dele estava onde está a sua... e ele me disse para tirar a roupa."

— Em fevereiro?

— Não protestei. Fazia pelo menos quinze graus e não estava ventando... mas eu tiraria a roupa com muito mais frio se o meu marido me pedisse. Assim, tirei... tudo menos os sapatos e as meias, e parecia um daqueles cartões-postais franceses que vocês, homens, compram nas charutarias. Não senti frio, senti-me ótima... gosto de me sentir travessa, e Brian me encoraja a isso, em particular. Ele pôs no chão o assento do banco traseiro, naquele lugar, e um cobertor sobre ele. E me possuiu. E foi aí que eu tive Woodrow. Tinha que ser então porque Brian ficou em casa apenas um dia e essa foi a única ocasião. Bastante fora do comum, nós geralmente temos relações mais amorosamente, gostamos tanto disso! — Ela riu. — Quando tivemos certeza, Brian brincou comigo a respeito do geleiro, do leiteiro e do carteiro... ou foi o rapaz do armazém? Devolvi a brincadeira dizendo que podia ser qualquer um deles, mas o lenhador chegara lá primeiro... na floresta. Chegamos, querido; não demorarei senão um momento.

Eles todos entraram, porque Woodie acordou (se é que tinha dormido; Lazarus tinha suas dúvidas — depois reviu o caso mentalmente e decidiu que Maureen havia tido cuidado tanto com o tom de voz como com o fraseado). Lazarus comprou um sorvete para o garotinho, para mantê-lo quieto, e sentou-o no balcão. Depois foi até a outra extremidade e ouviu o telefonema dela; queria saber que mentiras deveria confirmar.

— Carol? Mamãe, querida. Você já contou quantos há no seu zoológico?... Pare de se preocupar; o patife se escondeu no banco de trás e não percebemos isso até estarmos quase no parque de diversão... Sim, querida, no parquinho, e estou me sentindo muito feliz. Vou deixar Woodrow ficar conosco e não permitir que o diabinho estrague o nosso divertimento... Mais cedo do que desejo; Woodrow ficará com sono cedo demais para agradar a mamãe; quero andar em tudo e ganhar pelo menos uma boneca gorducha com topete nas barracas do parque... Sim, desde que Marie vá para a cama na hora. Faça brigadeiros para os meninos... não, brigadeiros não; temos que prestar atenção na ração de açúcar. Faça pipoca, e diga-lhes que lamento terem se preocupado. Depois vocês, os mais velhos, podem ficar acordados e dar boa-noite ao tio Ted. Adeus, querida.

Ela agradeceu ao balconista com uma sorridente dignidade, pegou a mão de Woodie e saiu sem pressa. Mas, no momento em que Lazarus pôs o carro em movimento, ela pegou sua mão direita e devolveu-a à intimidade cálida das coxas nuas.

— Algum problema? — perguntou ele, acariciando sua pele sedosa.

— Nenhum. Eles estavam num jogo sangrento e só deram por falta dele na hora de pô-lo na cama, alguns minutos antes de eu telefonar. Depois ficaram preocupados, mas não ainda histéricos; meu diabinho já se escondeu de nós antes. Theodore, o parquinho é uma despesa que você não esperava. Quer pôr de lado seu orgulho e deixar-me ajudar?

— Deixaria se precisasse de ajuda; não tenho esse tipo de orgulho inútil. Mas tenho bastante dinheiro, realmente. Se faltar, direi a você. — (Amada querida, estive ensinando os otimistas a não recorrerem a verdades de natureza íntima, e gostaria de poder gastar cada centavo em esmeraldas para realçar sua linda pele. Mas o seu orgulho torna isso impossível.)

— Theodore, não só o amo, como você é uma pessoa com quem se pode ficar muito à vontade.

Levar Woodie e sua mãe ao parquinho foi mais divertido do que Lazarus podia esperar. Ele não tinha nada contra os parques de diversões e estava disposto a ficar em qualquer lugar com Maureen — exceto que desta vez esperava agüentar a frustração incessante, em público, onde tinha que tratá-la como "sra. Smith", após chegar à mais ardente intimidade — e depois ficar desapontado.

Mas ela deu-lhe uma lição de como apreciar o inevitável.

Aprendeu que Maureen podia ser desavergonhadamente íntima, apesar de todas as pessoas em volta deles, e ainda manter sua dignidade pública, sorridente e magnificamente. Ela fez isso mantendo sua persona sempre intacta — jovem matrona feliz com o filho agarrado em sua mão, apreciando ambos uma noite de divertimento inocente como convidados do "primo" Theodore, "tio" Ted — enquanto ela encontrava oportunidades intermináveis de continuar sua alegre conversa indecente. Maureen não fez isso em cochichos mas em tons comuns numa altura para chegar apenas aos ouvidos de Lazarus, ou algumas vezes de Lazarus e Woodie, mas falando de tal forma que a criança não poderia entender ou se interessar. Uma vez ela repreendeu Lazarus amavelmente:

— Sorria, meu amado. Deixe o seu rosto mostrar que você está onde quer e fazendo o que quer. Isso, assim é melhor. Agora mantenha essa expressão e diga-me por que estava de mau humor.

Ele sorriu para ela.

— Porque estou frustrado, Maureen. Porque não estou num certo lugar ao lado de um grande castanheiro.

Ela riu como se ele tivesse dito alguma coisa engraçada. — Sozinho?

— Céus, não! Com você.

— Não com tanta veemência, Theodore. Você não está me cortejando; você é um primo que está perdendo parte da sua preciosa licença proporcionando a mim e a meu filho uma noite divertida... quando esperava que eu lhe arranjasse uma jovem dama que não fosse absolutamente uma dama quando você a levasse para um lugar escuro perto de um castanheiro grande. Você é um bom sujeito quanto a isso, mas não tão entusiasta a ponto de fazer a sra. Grundy erguer as sobrancelhas... e lá vem a sra. Grundy agora. Sra. Simpson! E sr. Simpson. Que ótimo encontrá-los! Lauretta, posso apresentar-lhe o meu caro primo, sargento ajudante Bronson? E o sr. Simpson, Theodore. — Maureen acrescentou: — Ou talvez vocês se conheçam. Da igreja? Antes de a guerra ser declarada?

A sra. Simpson examinou-o, contou o dinheiro da sua carteira, conferiu suas roupas de baixo, inspecionou sua barba e o corte do cabelo — e deu-lhe uma nota que mal dava para passar.

— O senhor pertence à nossa igreja, sr. Johnson?

— "Bronson", Lauretta. Theodore Bronson, filho da irmã mais velha de papai.

— De qualquer maneira — disse o sr. Simpson calorosamente —, é um prazer apertar a mão de um dos "nossos rapazes". Onde está estacionado, sargento?

— Campo Funston, sr. Simpson. Sra. Simpson, eu era um visitante da sua igreja; sou membro da de Springfield.

Maureen interrompeu as perguntas deles pedindo a Lazarus para apanhar Woodie no trenzinho, que acabava de voltar à sua estação.

— Puxe-o como uma rolha, Theodore; três voltas bastam. Lauretta, não vi você na Cruz Vermelha na semana passada. Podemos contar com você esta semana?

Lazarus voltou com Woodie a tempo de a sra. Simpson acenar e exclamar:

— Boa sorte, sargento! — e os Simpsons prosseguiram. O trio foi em seguida ao passeio de pônei e Woodie foi

escarranchado num. A sra. Smith e Lazarus sentaram-se num banco, apreciaram mais uma conversa muito particular, embora completamente à vista do público.

— Maureen, você se livrou deles lindamente.

— Nenhum problema, querido. Eu sabia que alguém ia nos ver, portanto estava preparada. Estou satisfeita de ter sido a mexeriqueira mais nojenta da nossa igreja; certifiquei-me de que não deixasse de nos ver. Sustentáculos da igreja e promotores de guerra; desprezo-os. Assim, dei um puxão em suas presas e vamos esquecê-los. Você estava me falando sobre um certo lugar escuro. Como é que eu estava vestida?

— Como num cartão-postal francês.

— Ora, sargento Bronson!... e eu, uma mulher respeitável. Ou quase. Certamente você não acha que eu me atreveria a ser tão sem-vergonha, não é?

— Maureen, não estou certo do que você se atreveria a fazer. Você me espantou (e me encantou) várias vezes. Acho que você tem coragem para fazer qualquer coisa que quiser.

— Provavelmente, Theodore, mas o que faço tem limites, não importa quanto o queira. Quer saber quais são os meus limites?

— Se você quiser que eu saiba, você dirá. Se não quiser, não dirá.

— Quero que você saiba, amado Theodore. Eu gostaria de me despir completamente neste momento. Contenho-me apenas por motivos práticos... não morais e nem por timidez; quero entregar-lhe o meu corpo, deixar você possuí-lo da maneira que quiser... enquanto possuo o seu. Não há nenhum limite para o que quero fazer com você... mas só para o que farei.

"Em primeiro lugar", ela contou nos dedos, "não me arriscarei a ficar grávida de qualquer homem, exceto Brian. Em segundo, não arriscarei conscientemente o bem-estar do meu marido e dos meus filhos."

— Você não estava arriscando isso esta noite? — Estava, Theodore?

Lazarus pensou naquilo. Gravidez? Não era um fator. Doença? Ela aparentemente confiava nele quanto a isso — e sim, querida, você tem razão. Não sei por que você tem essa opinião a meu respeito, mas você tem razão. O que resta? Uma possibilidade de escândalo se tivéssemos sido apanhados. Que possibilidade? Muito pequena; é um lugar tão seguro quanto se poderia desejar. Tiras? Lazarus duvidava de que a polícia tivesse inspecionado aquele lugar alguma vez — e duvidava ainda mais fortemente de que um policial, na febre da guerra atual, dissesse a um soldado uniformizado mais do que "Parem com isso e vão embora".

— Não, minha querida, você não correu nenhum risco. Ah, se eu lhe tivesse pedido que se despisse completamente, você o teria feito?

O riso dela repicou como um carrilhão. Depois ela respondeu no seu diapasão controlado mais íntimo do que um cochicho:

— Pensei nisso enquanto tomava um banho rápido a fim de me refrescar para você, Theodore. Foi uma idéia deliciosamente tentadora; Brian me fez fazer isso ao ar livre mais vezes do que aquela. Isso me excita, e ele diz que me aprecia mais assim. Mas é um risco que ele prefere correr, portanto não me preocupa absolutamente... com ele. Mas não acho justo para ele assumir esse risco por minha conta. Então resolvi firmemente, com os bicos dos meus seios tão enrugados e duros como você os sentiu... duros como estão agora; estou terrivelmente excitada... resolvi não só não me despir como não deixar você fazer isso. Querido, quer ir pagar outra volta de pônei? Ou trazê-lo, se ele estiver cansado disso?

Lazarus descobriu que Woodie queria dar outra volta. Pagou e voltou para o banco; encontrou Maureen olhando fixamente para um soldado sozinho. Lazarus tocou na sua manga.

— Vá andando, soldado.

O soldado olhou para trás, pronto para discutir. Olhou outra vez e disse:

— Ah! Desculpe, sargento. Não tinha intenção de ofender.

— E não fiquei ofendido. Melhor tentar em outra parte. Odeio repelir um rapaz de uniforme, mesmo quando devo — disse Maureen. — Ele não foi impertinente comigo, Theodore... estava apenas explorando as possibilidades. Devo ter o dobro da idade dele e fiquei com vontade de lhe dizer isso. Mas teria ferido seus sentimentos.

— O problema é que você aparenta dezoito anos; portanto, é certo eles tentarem.

— Querido, não aparento dezoito anos. Eu, com uma filha com mais de dezessete? Se Nancy se casar com o namorado antes de ele ir para a guerra (ela quer; e Brian e eu não vamos impedi-lo), serei avó neste próximo ano.

— Alô, vovó.

— Pode caçoar. Eu vou gostar de ser avó.

— Estou certo de que sim, querida; acho que você tem uma grande capacidade para gozar a vida. (Como eu, mamãe! ... e agora tenho certeza de que herdei isso tanto de você como de papai.)

— Tenho, Theodore, — Ela sorriu. — Mesmo quando fico frustrada. Muito.

— Eu também... muito. Mas estávamos falando da idade que você aparenta. Isto é, dezoito anos.

— Ora! Você notou como os meus seios estão caídos e mordidos pelos bebês.

— Não notei nada disso.

— Então você não tem tato, sr. Bronson... porque você se fartou de apalpá-los.

— Excelente sentido de tato. Seios encantadores.

— Theodore, eu tento cuidar deles. Mas eles têm andado cheios de leite grande parte dos últimos dezoito anos. Aquele... — ela apontou com a cabeça em direção ao picadeiro dos pôneis — não tive leite suficiente para ele. Tive que lhe dar leite Eagle, e ele se ressentiu disso. Quando tive Richard dois anos mais tarde, Woodrow tentou excluir pela força o novo bebê e tomar meus seios renovados. Tive que ser firme... quando o que eu queria era ter um em cada seio. Mas devemos ser justos com as crianças, não mimar uma à custa da outra. — Ela sorriu com indulgência. — Não tenho nenhum juízo quanto a Woodrow, logo devo seguir minhas regras ao pé da letra. Volte dentro de um ano, Theodore, e eles não vão parecer tão caídos. Eles incham e me fazem parecer uma vaca.

— Você vai me compensar pela minha espera?

— Ao lado de um castanheiro? Provavelmente não terei oportunidade, querido. Receio que o meu patife tenha liquidado com a nossa única oportunidade.

— Ah, não vai ser preciso tudo isso para compensar. Eu estava pensando num sabor... diretamente do produtor ao consumidor. — (Mamãe Maureen, como diz Galahad e eu nunca contestei, sou o homem que mais aprecia seios da galáxia ... e estou contemplando o ponto onde adquiri o hábito. Gostaria de poder dizer isso a você, querida.) Ela ficou espantada, fungou e ficou encantada.

— Pode ser que isso seja quase tão difícil de conseguir como um castanheiro. Mas... Sim, se isso puder ser feito sem chocar os meus filhos. Você é um patife também... exatamente como Woodrow. Sei que vou gostar disso. Porque (isto é um segredo, querido) Brian provou a cada nova safra. Afirma solenemente que está verificando a qualidade e o teor de gordura.

(Papai, você é um homem de bom gosto!)

— Ele acha que um tem o gosto diferente do outro? Ela riu, feliz.

— Querido, você tem tantas sutilezas brincalhonas, exatamente como meu marido, que me faz sentir bígama. Ele afirma isso, mas é apenas mais uma de suas brincadeiras. Não noto nenhuma diferença... e já provei.

— Minha senhora, espero poder lhe dar a opinião de um especialista. Acho que o nosso vaqueiro esfalfou o seu pônei. E agora? Quer experimentar a Corrida de Ben Hur?

Ela sacudiu a cabeça.

— Gosto da montanha-russa, mas não quero andar nela agora. Nunca tive um aborto, Theodore, e nunca terei; serei cuidadosa em evitar isso. Leve Woodrow, se quiser.

— Não. Você teria que esperar... e esta floresta está cheia de lobos de caqui ansiosos para pegarem avós de dezoito anos. O Palácio das Gargalhadas?

— Está bem. — Depois sua boca se contorceu. — Não, esqueci-me de uma coisa. Aqueles jatos de ar que saem do chão... com a intenção de fazerem as meninas gritar e agarrar as saias. Isto não me importa, mas... estou sem calcinha, querido. A menos que você queira que todos vejam se sou ou não verdadeiramente ruiva.

— E é?

Ela sorriu, sem se ofender.

— Você não sabe?

— Estava muito escuro perto daquele castanheiro.

— Ruiva nas duas extremidades, Theodore. Como eu gostaria de lhe mostrar se não fossem as circunstâncias... decepcionantes. Brian me perguntou isso enquanto estávamos namorando. Foi provocação, ele não precisava perguntar; eu estava coberta de sardas então, exatamente como Marie. Deixei-o descobrir por si mesmo num lugar gramado na margem do rio Marais des Cygnes, enquanto uma velha égua mansa chamada Daisy pastava sem prestar atenção aos meus gritos de alegria. Suponho que os automóveis tenham vindo para ficar... mas a charrete tinha muitas vantagens. Não achava? Quando você começou a sair com moças?

Lazarus concordou com cara de pau, incapaz de admitir que suas lembranças não incluíam 1899 ou qualquer ano em que ela estivesse pensando. Maureen continuou:

— Eu costumava preparar um farnel e levar um cobertor e comer em cima. Esse era um meio de uma moça em idade de ser cortejada poder sair sozinha com o namorado, desde que estivesse em casa antes de escurecer. Um cavalo pode levar uma charrete a lugares ainda mais isolados do que o nosso castanheiro. Na verdade, apesar desta conversa moderna sobre "mulheres desenfreadas" e a moral caindo aos pedaços, eu tinha mais liberdade em moça do que minhas filhas. Embora eu tente não tornar a minha presença entre elas opressiva.

— Elas não parecem oprimidas. Estou certo de que são felizes.

— Theodore, eu preferia que os meus filhos fossem felizes a que obedecessem àquilo que o nosso pastor diz que é "moral". Quero simplesmente ter certeza de que não sejam magoados. Não sou "moral" pelas regras aceitas... como você sabe muito bem. Embora não tão bem como esperei que soubesse, e estou aliviando minha frustração falando sobre isso. Talvez você preferisse que eu não falasse?

— Maureen, uma vez que não podemos fazer isso, a melhor coisa é falar a respeito dela.

— Eu também acho, Theodore. Gostaria de estar coberta de picadas de formigas e minha alma cheia da paz que sei que você pode me dar. Já que não posso entregar-me a você da maneira como esperei, quero que você me conheça tão profundamente quanto as palavras nos possam unir... tão profundamente como eu queria que você estivesse em meu corpo neste instante. A minha franqueza o choca?

— Não. Mas pode fazer com que seja estuprada aqui mesmo neste banco!

— Por favor, não fique tão entusiasmado, querido; as pessoas podem nos ver... estamos falando sobre o tempo, Diga-me, sua coisa está dura?

— Dá para notar?

— Não. Mas, se estiver, pense em tempestades de neve e icebergs (Brian diz que isso ajuda), porque o nosso cavaleiro do pônei precisa ser apeado.

Eles dois concorreram a prêmios em jogos; depois a sra. Smith decidiu que podia arriscar ir ao Palácio das Gargalhadas se arrebanhasse suas saias como se estivesse atravessando uma rua enlameada. Woodie gostou, especialmente da Sala dos Espelhos e do Labirinto de Cristal. Maureen evitou os jatos de ar observando as moças na sua frente, depois se desviando para o lado ou segurando as saias firmemente.

Woodie cansou-se, e Lazarus pegou-o no colo. O menino pareceu cair no sono no momento em que sua cabeça tocou no ombro de Lazarus. Eles começaram a sair, o que os levou a passar sobre o jato de ar de despedida. A sra. Smith estava na frente e Lazarus supôs que ela o houvesse visto pela maneira como se desviou — depois se virou como se fosse falar com ele e parou sobre o jato. Suas saias voaram para o alto.

Ela não gritou, abaixou-as simplesmente uma fração de segundo atrasada. Uma vez do lado de fora, ela perguntou:

— Bem, sr. Bronson?

— Da mesma cor. Porém crespos, acho eu.

— Bastante. Tão crespos quanto o meu outro cabelo é liso. Como você já sabia.

— E você fez isso de propósito.

— Certamente. Woodrow está dormindo e você estava com a cabeça dele virada para o outro lado. Talvez algum estranho tenha enchido os olhos, mas acho que não. Se alguém encheu, o que pode fazer? Escrever uma carta ao meu marido? Ora! Não havia ninguém lá que nos conhecesse; fiquei de olhos abertos. E aproveitei a oportunidade.

— Maureen, você continua a me espantar e encantar.

— Obrigada, sr. Bronson.

— E tem membros lindos.

— "Pernas", Theodore. Brian diz isso também, mas não sou especialista em pernas de mulheres. Mas, quando ele me diz isso, diz sempre "pernas". "Membros" é para falar em público. Assim diz ele.

— Quanto mais sei sobre o capitão, mais gosto dele. Você tem pernas deslumbrantes. E ligas verdes.

— É claro que são verdes. Quando eu era garotinha, usava fitas verdes no cabelo. Estou velha para usar fitas no cabelo, mas, se houver a mínima possibilidade de os meus cachos serem vistos, uso ligas verdes. Tenho muitos pares; Brian me dá. Algumas com dizeres maliciosos.

— Há dizeres nestas?

— "Jarrinhos", Theodore. Vamos colocar Woodrow no banco de trás.

Lazarus achou que "jarrinhos" não podia estar ouvindo; a criança estava mole como uma boneca de trapo. Nem chegou a acordar quando foi posta no banco; encolheu-se na posição fetal e a mãe estendeu a manta sobre ela.

Lazarus ajudou-a a subir no carro, virou a manivela e sentou-se ao lado dela.

— Direto para casa?

— Há bastante gasolina — disse ela, pensativa. — Brian Júnior encheu o tanque esta tarde. Acho que Woodrow não vai acordar.

— Eu sei que há bastante gasolina; verifiquei quando saí para conhecer o capitão do sr. Johnson. Devo procurar aquele castanheiro?

— Ah, querido! Por favor, não me tente. Woodrow pode acordar, pular pela traseira e sair, com tanta facilidade como entrou e se escondeu. Ele não tem idade bastante para compreender o que estaríamos fazendo; apesar disso, acho que uma interpretação errada poderia perturbá-lo da mesma forma. Não, Theodore. O que eu quis dizer é isto: não é muito tarde, só é tarde para um menino pequeno. Enquanto ele dorme, podemos passear por aí e conversar durante, hã, uma hora. Se você quiser.

— Faremos isso. — Ele pôs o carro em movimento e acrescentou: — Maureen, embora eu queira levá-la de volta para aquele castanheiro, acho melhor não irmos. Melhor para você, quero dizer.

— Mas querido! Por quê? Você não acha que eu o queira?

— Acho que você me quer. E Deus sabe que eu a quero. Mas apesar da sua conversa corajosa, acho que você nunca fez isso. Você iria querer confessar ao seu marido... e, se confessasse, isso tornaria vocês dois infelizes. Não desejo tornar o capitão Smith infeliz também; ele é um bom sujeito. Ou talvez você guardasse segredo... mas isso iria lhe pesar na consciência. Porque, embora me ame (um pouco), você o ama muito mais, e tenho certeza disso. Assim é melhor. Não é verdade?

A sra. Smith ficou em silêncio por um longo tempo. Depois disse:

— Theodore, leve-me já para aquele castanheiro.

— Não.

— Por que não, querido? Preciso mostrar a você que o amo e que não tenho medo de deixá-lo possuir-me.

— Maureen, você faria isso; você tem coragem para fazer qualquer coisa. Mas ficaria tensa e preocupada, com medo de que Woodie acordasse. E você ama Brian. Todas as coisas docemente íntimas que você me contou confirmam isso.

— Mas você não acha que o meu coração é grande o bastante para vocês dois?

— Estou certo de que é. Você ama dez pessoas, pelo que sei; estou certo de que pode espremer mais um lá dentro. Mas eu a amo e não quero que você faça coisa alguma que crie uma barreira entre você e o seu marido. Ou que magoe aos dois por você tentar destruir essa barreira confessando. Amada, quero o seu amor mais ainda do que quero o seu corpo querido e doce.

Novamente ela ficou em silêncio antes de falar:

— Theodore, preciso contar-lhe coisas sobre mim e meu marido. Coisas íntimas.

— Você não deve.

— Devo e preciso... e contarei. Mas... Por favor, quer me bolinar enquanto falo? Não diga nada, apenas me boline com força, íntima e nuamente... enquanto me dispo com palavras. Por favor?

Lazarus pôs a mão livre sobre a coxa dela. Ela levantou a saia, abriu as coxas e empurrou a mão dele com mais força contra si. Depois cobriu a mão com a saia e falou numa voz monótona e constante:

— Theodore amado, eu amo Brian e Brian me ama. E ele sabe exatamente o que sou. Posso guardar um segredo para sempre a fim de evitar magoá-lo, e ele faria o mesmo por mim. Preciso contar a você o que ele me disse antes de ir embora para Plattsburg... e preciso usar "palavras de alcova", Theodore; as palavras polidas não têm a força que precisam ter.

"Na noite antes de Brian partir, estávamos na cama e tínhamos acabado de nos possuir; eu ainda estava enrolada em volta dele como um ferro de frisar e ele, ainda estava bem dentro de mim. 'Quadris Rebolantes', disse ele (um apelido carinhoso que ele usa comigo na cama), 'eu não vendi o Reo para prendê-la em casa. Se você quiser guiar, compre um Ford; é mais fácil de aprender.' Eu disse a ele que não queria guiar; esperaria até que ele voltasse para casa. Ele respondeu: 'Está bem, Rabo Quente' (e esse é outro apelido carinhoso também, e Brian quer dizer isso mesmo com muito amor) 'Está bem, Rabo Quente, mas compre um, se você quiser; você pode precisar de um carro enquanto eu estiver fora.'

"'Mas o carro é secundário. Seu pai estará aqui e isso é bom... mas não deixe que ele a domine, Ele tentará, não pode evitar isso, está na natureza dele. Mas você é tão voluntariosa quanto ele; enfrente-o, ele a respeitará por isso.

" 'Agora as questões mais importantes, Seios Lindos', e eu gosto desse nome também, Theodore, embora não sejam e me impeçam de dizer que são. 'Seios Lindos, pode ser que eu não a tenha engravidado; geralmente você não engravida tão cedo assim. Se não, quando eu voltar de Plattsburg continuaremos tentando"', e continuamos, Theodore, e engravidei, como lhe contei.

"Brian continuou: 'Nós dois sabemos que vamos entrar nesta guerra ou eu não teria ido para Plattsburg. Ela pode durar um longo tempo... esses "milhões de homens brotando em armas da noite para o dia" é conversa fiada. Quando entrarmos, irei embora outra vez e você ficará sozinha... c nós sabemos o busca-pé que você é. Não estou dizendo a você para pular a cerca outra vez' (eu disse outra vez, Theodore!), " 'mas, se pular, espero que o faça com um objetivo, de olhos abertos... e não se arrependa depois. Tenho um respeito enorme pelo seu gosto e julgamento; sei que você não provocará escândalo nem perturbará as crianças.'

Ela fez uma pausa, depois continuou:

— Brian me conhece, Theodore... sou realmente um busca-pé, e nunca compreendi por que algumas mulheres não gostam disso. Minha própria mãe... Nove filhos e ela me disse, no dia do meu casamento, que isso era uma coisa que as mulheres tinham que agüentar pelo privilégio de ter filhos.

A sra. Smith fungou.

— "Agüentar!" Theodore, eu não era virgem quando Brian me possuiu pela primeira vez. Nem deixei que ele pensasse que era; contei-lhe a verdade no dia em que o conheci... e dois minutos depois de ele tirar minha calcinha ficou sabendo, ao possuir-me. Theodore, perdi minha virgindade três anos antes de conhecer Brian... deliberadamente. Nunca fui namoradeira... e disse, não a minha mãe, mas ao meu pai, porque confiava nele; sempre fomos chegados. Papai não me repreendeu, não me disse sequer para não fazer isso outra vez. Disse que sabia que eu iria fazer isso outra vez, mas que esperava que eu seguisse o seu conselho e que o deixasse evitar problemas... eu segui, e ele evitou.

"Mas daquela primeira vez, quando fui a ele, amedrontada e pronta para chorar (tinha doído, Theodore, e não foi a sensação que eu esperava), daquela vez papai apenas suspirou, trancou a porta, me fez subir na sua mesa de operação, me examinou e garantiu que eu não tinha sido danificada. Eu me senti muito melhor! Ele me disse que eu era uma mulher tão saudável como jamais havia visto e que teria bebês sem nenhum problema (isso me fez sentir presunçosa) e papai estava certo; tenho bebês com facilidade e não grito... ou não muito. Não como mamãe costumava gritar.

"Depois disso, papai me examinava de vez em quando. Os médicos geralmente não tratam seus parentes femininos, não em coisas femininas. Mas papai foi o único médico a quem me atrevi a contar. Assim, papai ajudou-me com meus problemas e me fez superar qualquer timidez em ser observada lá ou em qualquer lugar. Não que eu tivesse sido alguma vez tímida demais; ele me disse que esse tipo de modéstia era bobagem... quando mamãe estava me dizendo exatamente o oposto. Acreditei nele, não nela.

"Mas eu estava contando a você o que Brian me disse na cama aquela noite. Brian acrescentou: 'Quero que você prometa uma coisa, Gatinha. Se descobrir que não ficou com as pernas cruzadas, quer guardar isso em segredo até esta guerra terminar? Farei o mesmo se tiver alguma coisa a confessar... e pode ser que tenha! Não vamos preocupar um ao outro mais do que já preocupamos até darem um jeito no cáiser. Depois, quando eu voltar para casa, vou levá-la para os Ozarks... e deixar as crianças em casa com alguém; só nós dois... e você não vai ver coisa alguma além do teto enquanto recuperarmos o tempo perdido e também vamos pôr em dia qualquer coisa sobre o que precisemos conversar. Está combinado, minha querida?'

"Prometi, Theodore. Não prometi não pular a cerca; ele não me deixaria prometer isso. Prometi ter cuidado... e guardar qualquer confissão até a guerra estar ganha. Eu quis prometer isso porque... ele... podia... não voltar!"

Sua voz tinha sido firme até o fim. Depois ficou entrecortada e Lazarus percebeu que ela estava chorando. Ele começou a tirar a mão e a encostar na beira da estrada. A sra. Smith agarrou-lhe a mão, empurrou-a de volta com mais firmeza entre as coxas e disse:

— Não, não, me boline e não pare o carro! Ou posso estuprá-lo. Não sei por que fico tão ardente quando me lembro de que Brian pode não voltar da guerra. Mas fico. Estou assim desde o dia em que declaramos guerra... e sempre tenho que parecer serena, calma e despreocupada.

Por causa das crianças. Por causa de Brian. Não deixei que Brian me visse chorar, Theodore. Você acabou de ver agora... de repente, não pude evitar isso. Mas eu preferiria que você dissesse a Brian que tentei seduzi-lo a que dissesse que chorei com medo de que ele pudesse não voltar! E agora vou parar com isso. — A sra. Smith tirou um lenço da bolsa, enxugou os olhos e assoou o nariz. — Não me leve para casa ainda; não quero que as crianças me vejam com os olhos vermelhos

Lazarus resolveu revelar o segredo.

— Eu a amo, Maureen.

— Eu o amo, Theodore. Apesar das minhas lágrimas, você me fez feliz. Deixando-me desabafar... e eu não devia; você também vai para a guerra. Sinto-me quase casada com você agora, contando-lhe coisas sobre as quais não pude falar com mais ninguém. Se você me tivesse posto sobre a grama e me tivesse possuído... teria sido doce e exatamente o que eu planejara. Mas isto é ainda mais íntimo. E mais doce. Uma mulher pode abrir o seu corpo para um homem sem abrir sua mente. Tive dois bebês com Brian antes de aprendei a abrir minha mente para ele da maneira como abri para você esta noite.

— Talvez as nossas mentes sejam muito parecidas, Maureen. Seu pai acha que somos primos.

— Não, não acha, querido; ele acha que você é meu meio irmão.

— Ele disse isso?

— E eu também acho. Devido às coisas que papai não disse, querido Theodore. Pelo modo como ficou arrasado quando o interpretou mal sobre sua intenção de se alistar. Pela maneira como insistiu em que devíamos pleitear uma estrela do exército para você. Estou certa de que ele tem razão... e quero acreditar nisso. Sim, isso torna o que tentei fazer com você horrivelmente pecaminoso aos olhos de algumas pessoas. Incesto. Não ligo a mínima. Já que estou grávida, provavelmente não poderia prejudicar o bebê... c isso é a única coisa que tornaria o incesto errado.

(Como contar a ela? Até onde contar a ela? Mas tenho que fazê-la acreditar em mim.)

— Sua Igreja chamaria isso de pecado.

— Pouco me importa o que a Igreja diz! Theodore, não sou devota; sou uma livre-pensadora, como papai. A igreja é um bom ambiente para as crianças... e me dá um aspecto apropriado de esposa e mãe respeitável, isso é tudo! O "pecado" não me deteria; não acredito no pecado da maneira como a Igreja o concebe. O sexo não é pecado, o sexo nunca é pecado. O que me deteria seria uma possibilidade de ficar grávida de alguém que não fosse Brian... mas estou grávida. O fato de você ser meu meio irmão não me trouxe a menor preocupação; fez-me apenas ficar mais ansiosa para dar-lhe um adeus de guerreiro.

— Maureen, não sou seu meio irmão.

— Tem certeza? Mesmo que não seja, você ainda é o meu guerreiro... fiquei tão orgulhosa quanto papai quando você se apresentou como voluntário.

— Eu sou seu guerreiro, pode estar certa disso. Mas preciso saber uma coisa. Este homem com que Nancy talvez se case... ele é um Howard?

— O que foi que você disse?

— Ele está na lista aprovada da Fundação Ira Howard? Ele a ouviu prender a respiração.

— Onde foi que você ouviu falar da Fundação?

— "A vida é curta..."

— "Mas os anos são longos" — respondeu ela.

— "Não enquanto os dias maus não chegarem."

— Santo Deus! Acho que vou chorar outra vez!

— Pare com isso. Qual é o nome do rapaz? — Jonathan Weatheral.

— ... da linha Weatheral-Sperling. Sim, eu me lembro. Maureen, não sou "Ted Bronson". Eu sou Lazarus Long, da Família Johnson. Sua família. Eu descendo de você.

Por alguns momentos ela pareceu ficar sem respirar. Depois disse baixinho:

— Acho que estou enlouquecendo.

— Não, meu valente amor, você tem uma mente tão forte e sã como jamais encontrei. Deixe-me explicar, porque preciso contar-lhe uma coisa e você tem que acreditar em mim. Você leu um romance do sr. Herbert George Wells [46] chamado A máquina do tempo?

— Ah, sim, papai tem um exemplar.

— Esse sou eu, Maureen. Capitão Lazarus Long. Viajante do tempo.

— Mas aquele livro... pensei que fosse apenas uma... uma...

— Apenas uma história. E é. Mas ela não continuará assim. Ah, não exatamente da maneira como o sr. Wells a visualizou. Mas é isso o que sou, o visitante de um tempo futuro. Eu não tinha intenção de deixar ninguém suspeitar disto; foi por essa razão que afirmei ser enjeitado. Isso não só é difícil de provar como qualquer tentativa interferiria com o meu objetivo... que é simplesmente visitar esta época e observá-la. Podem até me trancar como louco. Assim, tive o cuidado de manter meu disfarce, tive tanto cuidado como... bem, como você ao falar com aqueles Simpsons. Em não deixar os seus filhos vê-la chorar. Você e eu fazemos isso da mesma maneira. Audácia... além de nunca contar mentiras nas quais possamos ser apanhados.

— Theodore, acho que você acredita nisso.

— O que significa que pareço sincero mas devo estar louco.

— Não, não, querido, eu... Sim, é isso o que quero dizer. Lamento.

— Não há nenhum motivo para se lamentar; isso parece loucura. Mas não tenho medo de você me mandar para o St. Joe; estou tão seguro com você quanto você comigo. Mas preciso encontrar algum meio de convencê-la de que estou dizendo a verdade... porque vou contar-lhe uma coisa em que você tem que acreditar. Ou terei deixado cair meu disfarce inutilmente.

Ele parou para pensar. Como provar isso? Alguma profecia? Teria que ser a prazo muito curto para atingir o único objetivo que tinha em revelar seu segredo. Mas ele não se havia inteirado desse ano; ele não havia tencionado chegar senão em 1919, e sabia tão pouco sobre os anos anteriores a 1919, que havia até confundido a data em que os Estados Unidos entrariam nessa guerra. Lazarus, maldito sejam os seus hábitos relaxados, da próxima vez em que você fizer uma viagem pelo tempo vai ter que decorar tudo que Atena lhe puder fornecer sobre a era e com uma larga margem de ambos os lados!

As lembranças de Woodie não adiantavam nada; Lazarus nem se lembrava de ter sido levado ao parquinho por um sargento de uniforme. Pirralho egoísta! Do parquinho ele se lembrava; Woodie Smith havia ido lá muitas vezes. Mas nenhuma visita se destacava em sua mente.

— Maureen, talvez você possa pensar em algum meio de eu poder provar-lhe que sou do futuro... alguma coisa que possa convencê-la. Mas é por isso que eu tinha de contar-lhe: Brian (seu marido, meu ancestral) voltará ileso. Ele participará de combates. Granadas cairão em volta dele, balas assoviarão pelos seus ouvidos... mas nenhuma o tocará.

A sra. Smith respirou convulsivamente. Depois falou devagar:

— Theodore... como é que você sabe?

— Porque vocês dois são meus ancestrais. Não pude decorar os registros da Fundação sobre todos os Howards atuais, mas estudei os arquivos sobre os meus próprios ancestrais, os que eu podia ter uma possibilidade de encontrar. Você, Brian. Os pais de Brian em Cincinnati. E imaginei que Brian deve tê-la conhecido porque ele freqüentou Rola [47], depois a encontrou numa lista de candidatas aceitáveis do Missouri (não a lista do Ohio) que a Fundação deu a ele. Isso com certeza é uma coisa que eu não soube por você, por Brian ou Ira, e seus filhos provavelmente não sabem. Bem, talvez Nancy saiba; ela preencheu o seu próprio questionário. Não foi?

— Bem, sim, meses atrás. Então é verdade, Theodore. Ou devo chamá-lo de Lazarus?

— Chame-me como quiser, querida. Mas ainda não provei nada. Apenas que tive acesso aos arquivos da Fundação... que podiam ter sido do ano passado, não do futuro. Ainda estamos à procura de provas. Hum... conheço uma prova para alguns meses a partir de agora... mas preciso fazê-la acreditar em mim esta noite. Para que você não derrame mais lágrimas no seu travesseiro. E não sei como.

Ele acariciou-lhe as coxas, tocando em seus pêlos púbicos.

— Aqui dentro de você está a prova que não aparecerá a tempo. Este último bebê que Brian pôs dentro da sua doce barriguinha... é um menino, querida ancestral, e você e Brian vão dar-lhe o nome de Theodore Ira, o que me lisonjeia enormemente. Quando li o nome dele nos registros, não sabia que era meu xará, porque não havia escolhido meu nome suposto, então.

Ela apertou a mão dele com as coxas e suspirou.

— Eu quero acreditar em você. Mas suponha que Brian queira chamá-lo de Joseph? Ou Josephine?

— "Josephine" não é nome para um menino. Querida, Brian vai chamar o seu bebê da guerra pelo nome das outras duas estrelas na sua bandeira do exército; esta guerra significa um bocado para ele. Provavelmente ele próprio o sugerirá... não sei. Sei apenas que Theodore Ira é o nome que vocês registrarão na Fundação. Minha outra ancestral... Adele Johnson, naturalmente, sua mãe e a mulher de Ira. Mora em St. Louis. Deixou-o na ocasião em que você se casou, mas não se divorciou dele... o que provavelmente o aborreceu; não creio que Ira seja homem para ficar solteiro simplesmente porque sua mulher vai embora mas não o libera.

— Ele não ficou, querido. Tenho certeza de que papai tem uma... bem, uma amante, e vai vê-la algumas noites em que devia estar no "clube de xadrez"... e não c um clube de xadrez; c uma sala de jogos. Finjo acreditar porque ele a chama assim diante das crianças.

— Ele joga xadrez lá.

— Papai joga bilhar muito bem também. Adiante, querido... Lazarus. Estou disposta a acreditar. Talvez encontremos alguma coisa.

— Bem, acho que não vou falar de sua mãe; acho que não me daria com uma mulher que acha que o sexo é uma coisa que se tenha de "suportar".

— Eu me dou com mamãe apenas mentindo para ela. Fui muito mais criada por papai do que por ela. Eu era a favorita dele. Ele demonstrava isso, razão pela qual tenho cuidado em não demonstrar isso em relação a Woodie. Continue, Theodore. Lazarus.

— Esses são todos os meus ancestrais com os quais você tem parentesco. Exceto um. O nosso clandestino, Maureen; eu descendo de você c Brian através de Woodie.

Ela susteve a respiração.

— Realmente? Ah, espero que seja verdade!

— Verdadeiro como os impostos, amada. E isso pode ter salvo a vida dele. Nunca estive tão perto do infanticídio como quando o encontramos no banco de trás.

Ela riu.

— Querido, senti a mesma coisa. Mas não deixo a raiva transparecer na minha voz, mesmo quando estou prestes a chicotear uma criança.

— Espero não ter demonstrado raiva. Mas senti-a. Querida, eu estava tão duro que doía... até encontrarmos Woodrow. Amor querido, eu estava pronto para penetrar!

— E eu estava pronta da mesma forma! Ah, Theodore... Lazarus... é tão doce poder me abrir com você. Ah... sim, você está bastante duro agora.

— Calma aí! Não me faça subir no meio-fio. Estou assim desde que saímos de casa, exceto quando o forcei a descer. Mas a ereção que Woodie estragou era maior e melhor.

— O tamanho não é importante, Theodore-Lazarus; a mulher tem que se adaptar a qualquer tamanho. Papai me disse isso há muito tempo e ensinou-me exercícios para isso. e nunca contei a Brian; deixei-o pensar que eu simplesmente era assim... e aceitei seus cumprimentos presunçosamente. Ainda faço exercícios regularmente... porque o meu canal vaginal foi distendido vezes após vezes pelas cabeças dos bebês e, se eu não exercitasse aqueles músculos, ficaria, na linguagem original de papai, "frouxa como uma trouxa". E desejo permanecer desejável assim para Brian por tantos anos quanto seja possível.

— E para o geleiro, o leiteiro e o carteiro... e o rapaz que guia a carroça do armazém.

— Caçoe. Eu gostaria de continuar jovem ali até morrer.

— Você continuará, sua avó em perspectiva de dezoito anos. Vamos tirar o sexo de nossas mentes e voltar à viagem pelo tempo; ainda estou procurando uma prova. Para que você saiba por que tenho certeza de que Brian voltará incólume. Mas, para fazer cessar sua preocupação, tem que ser uma coisa que aconteça logo e certamente antes do aniversário de Woodie.

— Por que o aniversário de Woodie?

— Ainda não cheguei até lá? Esta guerra termina no próximo aniversário de Woodie, a 11 de novembro. — E acrescentou: — Estou certo disso, é uma data-chave da história. Mas estou vasculhando o meu cérebro à procura de algum acontecimento entre agora e então... o mais cedo possível, para acabar com as suas preocupações. Mas... ah, bolas, querida, cometi um engano tolo. Pretendi chegar após esta guerra terminar. Mas forneci à minha computadora uni número decisivo com um erro... um errinho apenas, mas isso me fez chegar três anos mais cedo. Não foi culpa dela; ela aceita qualquer dado que eu lhe dê, e é tão boa computadora quanto pilota de nave espacial. Não foi um erro fatal também; não estou perdido no tempo, minha nave me apanhará em 1926, exatamente dez anos terrestres após me ter lançado. Mas é por isso que não estudei a história dos próximos meses; esperava evitar esta guerra. Não estou estudando guerras; a história está cheia de guerras. Estou estudando como as pessoas vivem.

— Theodore... estou confusa.

— Desculpe, querida. A viagem pelo tempo é confusa.

— Você fala de uma computadora, e não estou certo do que você quer dizer... e você disse que "ela" dirige (o que quer que isso signifique) uma nave que o apanhará... em 1926? E eu não compreendo nada disso. Lazarus suspirou.

— Foi por isso que nunca quis contar a ninguém. Mas tinha que contar a você... para que você pudesse parar de se preocupar. Minha nave é uma nave espacial... como a de Júlio Verne, apenas mais elaborada. Uma nave estelar, eu moro num planeta muito distante. Mas ela é uma nave do tempo também; viaja tanto no espaço como no tempo,, e é muito complicada pata explicar. A computadora é o cérebro da nave... uma máquina, uma máquina muito complexa, Minha nave chama-se Dora e a máquina, a computadora, que a dirige, comanda, pilota, chama-se Dora também; esse é o nome pelo qual ela responde quando falo com ela. F uma máquina muito inteligente e sabe falar. Ah, há uma tripulação, duas das minhas irmãs... portanto, naturalmente, elas descendem de você também e parecem-se com você. É necessário uma tripulação. Não se pode deixar uma nave andando por aí sozinha (exceto cargueiros automáticos em rotas pré-calculadas), mas Dora faz o trabalho pesado, e Laz e Lor (Lápis-Lazúli e Lorelei Lee Long) dizem a Dora o que fazer e deixam-na fazer. — Ele apertou a coxa da sra. Smith e sorriu. — Se aquele jato de ar tivesse mantido suas saias no alto por mais dois segundos, eu saberia mais sobre até que ponto elas se parecem com você... porque elas geralmente andam nuas. Parecem-se com você fisionomicamente. De corpo também, por aquela visão rápida demais das suas pernas encantadoras. Exceto que Laz e Lor têm sardas pelo corpo inteiro, tantas quanto Marie no rosto.

— Eu seria sardenta assim se não me protegesse do sol Quando eu tinha a idade de Marie papai me chamava de "Ovo de Peru". Mas no corpo inteiro? Elas não usam roupa nenhuma?

— Ah, elas gostam de roupas sofisticadas para festas. Ou o tempo pode estar frio... mas raramente está; vivemos num clima como o do sul da Itália. Geralmente elas não usam nada. — Lazarus sorriu e acariciou-lhe a coxa. — Elas não precisam deixar a calcinha em casa para estarem preparadas para ter relações; elas não usam calcinha. Não são nem um pouco tímidas. Ficariam encantadas de lograr o seu pai; elas gostam de homens mais velhos... são muito mais moças do que eu.

— Lazarus... que idade você tem?

Lazarus hesitou.

— Maureen, não quero responder a isso. Sou mais velho do que pareço; a experiência de Ira Howard foi bem sucedida. Em vez disso deixe-me falar-lhe sobre a minha família. Sua família também; nós todos descendemos de você por uma linha ou outra. Duas das minhas esposas e um dos meus co-maridos descendem tanto de Nancy como de Woodie.

— Esposas? Co-maridos?

— Querida, o casamento tem muitas formas. Onde eu vivo não é preciso um divórcio ou uma morte para se obter alguém que se ama. Tenho quatro esposas e três-co-maridos... e minhas irmãs, Laz e Lor... e elas podem se casar fora da família ou podem ficar... e não fique espantada; você disseque não ligava quando pensava que eu era seu meio irmão... e não se preocupe com prejudicar os bebês; eles conhecem muito mais sobre essas coisas naquele quando e onde do que no aqui e agora. Nós não corremos o risco de prejudicar os bebês.

"E temos uma porção deles. E gatos, cachorros e tudo o que uma criança possa criar e cuidar. É uma verdadeira família, numa casa para acomodar uma família grande.

"Não posso lhe falar sobre cada um; temos que levar o nosso clandestino para casa. Mas quero lhe falar sobre uma... porque você tem insistido em que não aparenta dezoito anos, simplesmente porque vem usando os seus seios para alimentar bebês. Tamara. Descende de você através de Nancy e seu Jonathan. Quer ouvir falar sobre a enésima neta de Nancy? Tamara tem cerca de duzentos e cinqüenta anos de idade, acho eu..."

— Duzentos e cinqüenta!

— É, Um dos meus co-maridos, Ira Weatheral, descendente também de Nancy e Jonathan, mas de Woodie também... e assim chamado por causa de seu pai, não de Ira Howard, tem mais de quatrocentos anos de idade. Maureen, a experiência de Ira Howard funcionou; nossas vidas duram mais. Herdamos isso de você e de todos os nossos ancestrais Howards. Mas também naquele quando e onde eles sabem como rejuvenescer uma pessoa. Tamara já fez dois rejuvenescimentos... um recentemente, e parece tão moça quanto você. Rejuvenescimento verdadeiro. Tamara estava grávida quando parti.

"Mas o importante não é sua aparência; Tamara é uma curandeira... e desconfio de que ela deve isso a você."

— Theodore... Lazarus... novamente não compreendo. Uma curandeira? Como uma curandeira pela fé?

— Não. Se Tamara tem uma religião, nunca mencionou isso. Tamara é calma, feliz e serena, e qualquer pessoa perto dela sente isso com tanta força (exatamente como com você, querida!) que ele ou ela fica feliz também. Se a pessoa está doente, fica boa mais depressa se Tamara toca nela, fala com ela ou dorme com ela.

"Mas Tamara não era jovem quando a conheci. Era bastante velha e pretendia ficar assim, morrendo de velhice. Mas eu estava doente, muito doente, desgostoso, e Ishtar, minha mulher mais tarde e a mais notável rejuvenescedora de toda a via-láctea, saiu e trouxe Tamara. Tamara. Barriguinha redonda, seios realmente pendurados, bolsas debaixo dos olhos e do queixo, todos os sinais de velhice.

"Tamara curou o meu desgosto, simplesmente ficando comigo... e de alguma forma isso renovou seu próprio interesse na vida. Ela fez outro rejuvenescimento, está moça novamente e já acrescentou outro bebê à linhagem de Maureen-Nancy e está grávida outra vez. Você e Tamara são muito parecidas, Maureen; ela é apenas amor com um pouco de pele em volta, assim como você. Mas..." — Lazarus fez uma pausa e franziu a testa.

— Maureen, não sei como convencê-la de que estou dizendo a verdade. Você saberá quando chegar o sexto aniversário de Woodie e tocarem todos os apitos e sinos e os jornaleiros gritarem: "Extra! Extra! A Alemanha se rende!" Mas então será tarde demais para ajudá-la. Quero acabar com as suas preocupações agora!

— Já parei de me preocupar, querido. Isso parece maravilhoso... e impossível... e acredito em você.

— Acredita? Eu não provei; contei-lhe uma história impossível com base na prova.

— Apesar de tudo, acreditei nela. Quando Woodrow fizer seis anos no dia 7 de novembro...

— Não, no dia 11!

— Sim, Lazarus. Mas como é que você sabe que O aniversário dele é no dia 11 ?

— Porque você mesma me disse.

— Querido, eu disse que ele nasceu em novembro; não disse em que dia. Depois o mencionei errado deliberadamente... e você me corrigiu imediatamente.

— Bem, talvez Ira me tivesse dito. Ou um dos seus filhos. Muito provavelmente o próprio Woodie.

— Woodrow não sabe o dia do aniversário dele. Acorde-o e pergunte.

— Prefiro não acordá-lo até chegarmos a casa.

— Quando foi que nasci, querido?

— No dia 4 de julho de 1882.

— Quando foi que Marie nasceu?

— Acho que ela tem nove anos. Não sei a data.

— As outras crianças?

— Não tenho certeza.

— O dia de nascimento de meu pai?

— Maureen, isto adianta alguma coisa? Dois de agosto de 1852.

— Amado Lazarus, que se chama a si mesmo de "Theodore", eu adoto uma regra rígida com meus filhos. Evito que cada um saiba a data do seu nascimento pelo maior tempo possível para que não a anuncie e assim faça chantagem com as pessoas para ganhar presentes. Quando algum chega à idade de entrar no colégio e precisa conhecer a data, tem idade suficiente para saber por quê; e deixo bastante claro que, se ele fizer insinuações antes do tempo, nada de bolo de aniversário, nem festa. Ainda não tive que usar esse castigo; eles todos são inteligentes.

"No ano passado Woodrow era pequeno demais para que isso fosse um problema; seu aniversário chegou para ele de surpresa. Ele ainda não sabe a data exata... assim creio firmemente. Lazarus, você sabe as datas de nascimento dos seus ancestrais diretos... porque verificou nos registros da Fundação. Já que você não sabe me dizer as datas de nascimento dos meus outros filhos, acho que encontrei aquela prova."

— Você sabe que tive acesso aos registros. Eu poderia ter verificado qualquer data de nascimento no ano passado.

— Ora! Por que você iria se preocupar com a data de nascimento de uma criança e deixar passar as das outras sete? Como você iria saber o dia do nascimento do meu pai se ele não tivesse um interesse especial para você? Isso não vai pegar, amado. Você pretendeu procurar seus ancestrais e veio preparado para isso. Não acho mais que tenha aparecido na nossa igreja por acidente; você foi lá para me encontrar... e estou lisonjeada. Provavelmente fez o mesmo com papai... no seu "clube de xadrez" da sala de jogos. Como foi que você fez isso? Detetives particulares? Duvido de que a nossa igreja ou aquela sala de jogos possam ser verificadas nos registros da Fundação.

— Algo parecido com isso. Sim, gentil ancestral, procurei um meio aceitável de encontrá-la. Teria passado anos nisso se fosse necessário... porque eu não podia apertar a campainha da sua porta e dizer: "Olá, você aí! Eu descendo de você. Posso entrar?" Você teria chamado a polícia.

— Acho que não chamaria, querido... mas obrigada por encontrar um meio mais amável. Ah, Lazarus, eu o amo tanto! E acredito em cada palavra sua e não estou mais preocupada por causa de Brian; sei que ele voltará para mim! Ah... estou me sentindo muito sem-vergonha outra vez, mais apaixonada do que nunca, e quero saber uma coisa. Sobre a sua família.

— Estou encantado de falar sobre eles. Eu os amo.

— Fiquei muito lisonjeada em ser comparada com a sua mulher Tamara. Querido, você não tem que me contar isto: acontece alguma vez dois maridos dormirem com a mesma mulher?

— Ah, certamente. Mas é mais provável ser um marido, Galahad (outro dos seus descendentes, vovó...), Galahad e duas de nossas mulheres; Galahad é o gato incansável original.

— Isso parece divertido, mas é a outra combinação que me deixa curiosa. Amado, minha idéia do céu seria levar ambos, você e Brian, para a cama ao mesmo tempo... e fazer o máximo para tornar ambos felizes. Não que eu possa vir a fazer isso alguma vez. Mas posso sonhar com isso... e vou sonhar.

— Porque não ir lá no mato e se despir para nós dois, até ficar com a sua roupa do "cartão-postal francês"? Já que você só está sonhando...

— Aaah! Sim, vou pôr isso no meu sonho... e agora estou prestes a disparar como um busca-pé!

— É melhor eu levar você para casa.

— Acho melhor você fazer isso. Estou extremamente feliz, completamente despreocupada (e ficarei assim) e muito apaixonada. Por você. Por Brian. Por ser um cartão-postal francês no mato. À luz do dia.

— Maureen, se você puder vender a idéia a Brian... bem, ficarei por aqui até o dia 2 de agosto de 1926.

— Bem... veremos. Eu quero! — Ela acrescentou: — Tenho permissão para contar a ele? Quem é você, de onde é (do futuro) e sua profecia de que ele não será ferido?

— Maureen, conte a quem você quiser. Mas não acre ditarão em você.

Ela suspirou.

— Acho que não. Além disso, se Brian acreditar nisso e daí achar que teve uma vida de encantamento, isso pode torná-lo descuidado. Estou orgulhosa por ele ir lutar por nós... mas não quero que ele corra riscos desnecessários.

— Acho que você tem razão, Maureen.

— Theodore... minha mente esteve tão ocupada com todas estas coisas estranhas que esqueci uma coisa. Agora sei quem é você. Este não é o seu país, e esta guerra não é sua. Então por que se apresentou como voluntário? Lazarus hesitou, depois contou a verdade:

— Queria que você tivesse orgulho de mim,

— Ah!

— Não, não sou daqui e esta guerra não é minha. Mas ela é sua, Maureen. Outros estão lutando por outros motivos... eu estarei lutando por Maureen. Não "para tornar o mundo seguro para a democracia". Esta guerra não conseguirá isso, embora os Aliados a vençam. Por Maureen.

— Ah! Ah! Estou chorando outra vez... não posso evitar.

— Pare com isso imediatamente.

— Sim, meu guerreiro. Lazarus? Você voltará? Você deve ter algum meio de saber.

— Hein? Querida, não se preocupe comigo. Várias pessoas tentaram me matar de muitas maneiras diferentes... sobrevivi a elas todas. Sou o velho gato cauteloso que sempre tem uma árvore ao seu alcance.

— Você não me respondeu. Ele suspirou.

— Maureen, sei que Brian voltará para casa; isso está nos registros da Fundação. Ele vai viver até uma idade avançada e não pergunte por quanto tempo, porque não vou responder. Bem como você, e não responderei a isso também; não é bom saber demais sobre o futuro. Mas eu? Não posso saber o meu futuro. Ele não está nos registros. Como poderia estar? Ainda não terminei isso. Mas posso contar-lhe uma coisa: esta não é a minha primeira guerra, mas aproximadamente a décima quinta. Eles não me pegaram nas outras, e terão que andar depressa para me matar nesta. Amada, sou o seu guerreiro... mas para matar os hunos por você, não para eles me matarem. Cumprirei o meu dever, mas não vou tentar nenhuma proeza maluca para ganhar uma medalha... não o velho Lazarus.

— Então você não sabe.

— Não, não sei. Mas prometo-lhe isto: não vou esticar minha cabeça para cima quando não precisar. Não vou entrar numa trincheira alemã sem antes atirar lá uma granada. Não vou presumir que um alemão está morto só porque parece... vou me certificar de que ele esteja morto; não me importo de gastar uma bala num cadáver. Especialmente um que esteja fingindo. Sou um velho soldado, e é assim que um soldado fica velho... sendo pessimista. Conheço todos os truques. Querida, tendo acalmado suas preocupações quanto a Brian, seria bobagem fazê-la preocupar-se comigo. Não faça isso!

Ela suspirou.

— Tentarei. Se você virar nesta rua, podemos pegar o Prospect e depois atravessar o Linwood até Benton.

— Eu a levarei para casa. Vamos falar de amor, não de guerra. Nossa garota Nancy... A Fundação está usando agora uma tabela de gravidez? Para os primeiros casamentos?

— Santo Deus! Você sabe tudo mesmo, hein?

— Não é preciso dizer-me. Isso é da conta de Nancy. Se Jonathan for para a guerra (eu não sei), posso garantir-lhe que ele não será atingido nos testículos, mesmo que perca um braço ou uma perna. Examinei os registros de acasalamento de todos os seus filhos, embora não me preocupasse com suas datas de nascimento. Jonathan e Nancy vão ter muitos filhos. O que significa que ele voltará... ou talvez seja recusado e não vá.

— Isso é confortador. Quantos bebês?

— Garotinha curiosa! Você mesma ainda vai ter um grande número, vovó, e não vou responder a isso também. Retiro a pergunta sobre a tabela de gravidez.

— Segredo, Lazarus...

— É melhor começar a me chamar de Theodore. Chegaremos a casa daqui a pouco.

— Sim, senhor, sargento ajudante Theodore Bronson, sua tri-tri-trisavó devassa terá cuidado. Quantos "tris" deveria haver nisso?

— Querida, você quer que eu responda a isso? Se não tivesse sido necessário acalmar os seus receios sobre Brian, eu teria continuado como Ted Bronson. Gosto de ser o seu Theodore. Não tenho certeza de que ser um homem misterioso do futuro vá ser tão confortável. Especialmente se você pensar em mim como algum descendente remoto. Estou aqui ao seu lado, não em algum futuro longínquo.

— Ao meu lado. Bolinando-me. E, no entanto, você ainda nem nasceu... nasceu? E na sua época... estarei morta há muito tempo. Você sabe até quando eu vou morrer. Você disse. Só que não quer me dizer quando.

— Ah, com os diabos, Maureen! Isso está tudo errado! E nisso que dá admitir que viajei pelo tempo. Mas tive que dizer. Por você.

— Desculpe, Laz... Theodore, meu guerreiro. Não farei mais nenhuma pergunta.

— Querida, o fato de eu estar aqui significa que você não está morta. E certamente que eu nasci; belisque-me e descubra. Todos os "agoras" são iguais; esse é o teorema básico da viagem pelo tempo. Eles não desaparecem; tanto o "passado" como o "futuro" são abstrações matemáticas; o "agora" é sempre tudo o que existe. Quanto a saber o dia em que você morreu, ou vai morrer... é a mesma coisa... não sei. Sei simplesmente que você teve... tem... terá... muitos filhos, e viverá muito tempo... e o seu cabelo nunca ficará branco. Mas a Fundação perdeu a sua pista (perderá a sua pista) e a data da sua morte nunca entrou nos registros. Talvez você se tenha mudado e não tenha comunicado à Fundação. Bolas, talvez eu tenha voltado (voltarei), recolhido você em sua idade avançada e levado para Tertius.

— Onde?

— Para minha casa. Acho que você gostaria de lá. Você pode correr de um lado para o outro o dia inteiro, vestida... despida como um cartão-postal francês.

— Tenho certeza de que gostaria disso agora. Mas não acho que gostasse, como uma velha.

— Tudo quanto você teria a fazer seria pedir a Ishtar um rejuvenescimento. Contei a você o que ela fez por Tamara... quando seus seios pendiam até a cintura e eram sacos vazios. Mas olhe para Tamara agora (esse "agora") grávida outra vez, exatamente como uma garota. Mas esqueça isso... se isso aconteceu, acontecerá. Mamãe Maureen (macacos me mordam se a chamar de "vovó" outra vez!), tudo de que tenho certeza é que não estou certo da data da sua morte; estou satisfeito por isso, e você deve estar também. Nem da minha morte, e estou satisfeito por isso também. Carpe diem! [48] Estamos quase em casa, você começou a dizer alguma coisa, eu disse para me chamar de Theodore e nos desviamos do assunto. Era sobre Tamara?

— Ah, sim! Theodore? Quando você for para casa, onde quer que ela seja, pode levar alguma coisa com você? Ou tem que ser apenas você?

— Ah, não! Cheguei com roupas e dinheiro.

— Gostaria de mandar um presentinho para Tamara. Mas não posso imaginar o que ela possa querer... desta época para aquela era maravilhosa de vocês. Pode sugerir alguma coisa?

— Hum... Tamara guardaria como relíquia qualquer coisa de você. Ela sabe que descende de você, e é a mais calorosamente sentimental de toda a minha família. Deve ser alguma coisa bastante pequena para carregar comigo, mesmo nas trincheiras, porque estou sempre pronto a abandonar qualquer coisa que não puder levar... tenho que estar. Não jóias. Tamara não consideraria um bracelete de diamantes nem um pouco mais valioso do que um grampo de cabelo... mas guardaria como relíquia um grampo de cabelo que eu pudesse dizer a ela ter visto você usando. Algo pequeno, algo que você tenha usado. Olhe, mande-lhe uma liga! Perfeito! Uma destas que você está usando.

— Não posso lhe mandar um par novo? Ah, eu as enfiarei por um momento, para que você possa dizer a ela verdadeiramente que as usei. Mas estas... Não só estão bastante velhas e usadas como suei muito nelas esta noite. Não estão frescas e limpas. E têm dizeres inconvenientes.

— Não, não, uma destas. Querida, "inconveniente" hoje pode não ser inconveniente em Tertius; terei que explicar qualquer inconveniência a Tamara. Quanto ao suor, espero que qualquer vestígio da sua doce fragrância se conserve nelas até eu poder entregá-las; isto deixaria Tamara encantada. Você diz que este par é velho? Maureen, há alguma possibilidade de elas terem seis anos de idade?

— Eu disse a você que era sentimental, Theodore. Sim, este é o mesmo par. Velho, desbotado, usado; substituí o elástico... mas é o mesmo par; escolhi-o para usar por sua causa.

— Então quero uma delas para mim!

— Amado Theodore. Eu pretendia oferecer-lhe ambas. Foi por isso que sugeri um novo par para Tamara. Muito bem, querido, uma para você, uma para ela. Assim que chegarmos em casa, vou correr para cima e, quando descer, terei um presente para você e lhe direi para não abri-lo até ter voltado ao Campo Funston. Você dirá apenas obrigado, irá direto para o seu quarto e o porá dentro de sua valise. Vejo uma luz na varanda, portanto preciso agora baixar minhas saias e ser a sra. Brian Smith, formal e respeitável. Com um vulcão soltando fumaça dentro dela! Obrigada, sargento ajudante Bronson. Você proporcionou a mim e a meu filho uma noite muito agradável.

— Obrigado a você, gatinha linda de ligas verdes e sem calcinha. Quer segurar o ursinho e a boneca de- pano enquanto levo o nosso acompanhante?

 

Ira Johnson e Nancy ainda não estavam em casa. Brian Júnior pegou o menino dormindo que Lazarus carregava e levou-o para cima. Caro] foi junto para pôr Woodie na cama após extrair uma promessa do "tio Ted" de não ir dormir antes que ela voltasse. George quis saber aonde eles haviam ido e o que haviam feito, mas Lazarus livrou-se dele com uma promessa e usou a oportunidade para dirigir-se ao seu banheiro minúsculo e se recompor.

Cabelos um pouco em desordem. Graças a Deus as mulheres respeitáveis não usavam batom. O uniforme ligeiramente amarrotado, nada condenável quanto a isso. Cinco minutos mais tarde, recomposto e certo de que não havia nenhuma pena no seu queixo, Lazarus voltou para a frente da casa e fez para George e Brian Júnior um relato da noite verdadeiro em tudo o que disse.

Mal havia começado quando Carol desceu e ouviu também; depois a sra. Smith juntou-se novamente a eles, andando majestosamente como sempre e trazendo um pequeno embrulho envolvido em papel fino.

— Uma surpresa para o senhor, sargento Theodore... por favor, não o abra até estar de volta ao campo.

— Então é melhor pô-lo dentro da valise agora mesmo.

— Se desejar, sr. Bronson. Acho que é hora de dormir, queridos.

— Sim, mamãe — concordou Carol. — Mas tio Ted nos estava contando como você derrubou todas as garrafas de leite.

— Ele diz que você devia jogar pelos Blues, mamãe! — acrescentou George.

— Está bem, quinze minutos.

— Sra. Smith — disse Lazarus —, a senhora não deve começar a contar o tempo até eu voltar.

— O senhor é tão mau como o resto dos meus filhos, sargento. Muito bem.

Lazarus pôs o embrulho dentro da valise, trancou-a devido ao longo hábito e voltou. Nancy e o namorado chegaram; Lazarus foi apresentado enquanto examinava Jonathan Weatheral com verdadeiro interesse. Rapaz agradável, um pouco desajeitado — Tamara e Ira ficarão interessados, portanto vamos gravar seus traços, tentar desenhá-lo e repetir qualquer palavra que ele diga.

A sra. Smith insistiu com seu futuro genro para entrar na sala de visitas enquanto separava Nancy do rebanho; Lazarus retomou a descrição do que haviam feito no parque de diversões, enquanto Jonathan parecia educadamente aborrecido. A sra. Smith voltou, trazendo uma bandeja carregada, e disse:

— Aqueles quinze minutos terminaram, queridos. Jonathan, Nancy quer que você ajude em alguma coisa; quer ir ver o que é? Ela está na cozinha.

Brian Júnior perguntou se podia pôr o carro dentro do celeiro.

— Sargento tio Ted, não deixei o seu carro ficar na rua à noite, nem uma vez. Mas eu o tirarei para o senhor, será a primeira coisa que farei de manhã; é um pouco complicado, uma espécie de curva em Z, o senhor tem que recuar e completar.

Lazarus agradeceu-lhe e deu um beijo de boa-noite em Carol, que claramente o estava esperando. George parecia não ter decidido se já havia passado da idade de beijar ou não, portanto Lazarus resolveu o assunto apertando a mão dele e dizendo que ele tinha um bocado de força nela. Nesse ponto o sr. Johnson chegou a casa e as despedidas recomeçaram.

Cinco minutos mais tarde, a sra. Smith, seu pai c Lazarus estavam sentados na sala de visitas servindo-se de café com bolo, e Lazarus lembrou-se de repente da primeira noite em que havia sido convidado a entrar. A não ser pelo fato de os homens estarem agora de uniforme, o quadro era o mesmo; cada um estava sentado no mesmo lugar daquela noite, a sra. Smith presidia sobre o serviço de café da "Companhia" com a mesma serena dignidade; até a merenda era a mesma. Ele procurou mudanças e só pôde encontrar três: o seu elefante não estava atrás da cadeira da sra. Smith, os prêmios que eles haviam ganho no parque de diversões estavam sobre a mesa perto da porta e a partitura da música Alô, central, ligue-me com a terra de ninguém estava aberta sobre o piano.

— Você chegou tarde esta noite, papai.

— Sete recrutas, e eu tinha apenas os tamanhos comuns para eles, grandes demais e pequenos demais. Ted, nós recebemos o que o exército não quer. Adequado, naturalmente. Temos agora armas Lewis para as companhias de metralhadoras e Springfields bastantes para todos; estamos começando a parecer menos com os bandidos de Pancho Vila. Não estou reclamando. Filha, que são essas coisas em cima tia mesa? Parecem fora do lugar.

— A boneca de trapo eu mesma ganhei, por isso estou pensando em dar-lhe um lugar de honra em cima do piano. O ursinho Roosevelt foi ganho pelo sargento Theodore; talvez ele o leve consigo para a França. Fomos ao parque de diversões, papai, e acho que eles custaram ao sargento Theodore mais do que o dobro do seu valor; tivemos uma noite de sorte... e muito alegre.

Lazarus pôde ver o velho começando a se aborrecer — em público com um homem solteiro? Com seu marido fora? Ele disse, então:

— Não posso levá-lo para a França, sra. Smith; fiz um negócio com Woodie... não se lembra? Meu ursinho pelo elefante dele. Suponho que seja um negócio fechado; ele o carregou daí por diante.

— Se você não fez isso por escrito, Ted — disse o sr. Johnson —, ele vai tapeá-lo. Devo compreender que Woodie foi ao parque de diversões com vocês dois?

— Sim, senhor. Cá entre nós, espero deixar o elefante em custódia com Woodie por enquanto. Mas vou combinar com ele primeiro.

— Ainda assim ele vai tapeá-lo. Maureen, a idéia era dar-lhe uma folga das crianças. Especialmente de Woodie. O que deu em você para levá-lo junto?

— Não o levamos junto exatamente, papai; ele foi como clandestino. — Ela fez um relato preciso ao pai, salvo que deixou de fora certas coisas e não incluiu um horário.

O sr. Johnson sacudiu a cabeça e ficou satisfeito.

— Esse menino irá longe... se não o enforcarem primeiro. Maureen, você devia ter-lhe dado uma surra e o trazido para casa. Depois você e Ted deviam ter continuado o passeio de vocês.

— Ah, bobagem, papai, dei o meu passeio e foi bom; fiz Woodrow sentar-se no banco de trás e ficar quieto. Depois me diverti no parque, regalia que não teria se Woodrow não se tivesse convidado para ir junto.

— Woodie tinha alguma razão por seu lado — admitiu Lazarus. — Prometi-lhe uma ida ao parquinho, depois não cumpri a minha promessa.

— Devia ter batido nele.

— É tarde demais para isso, papai. E nós nos divertimos. Encontramos algumas pessoas da igreja também... Lauretta e Clyde Simpson.

— Aquela bruxa velha! Ela vai mexericar a seu respeito, Maureen.

— Acho que não. Conversamos enquanto Woodie andava no trenzinho. Mas você deve se lembrar de que o sargento Bronson é filho de sua irmã mais velha.

Ira Johnson ergueu as sobrancelhas, depois riu.

— Samantha ficaria surpresa... se ainda estivesse conosco. Ted, minha irmã mais velha caiu de um cavalo que estava tentando amansar... em 85. Ela sobreviveu por algum tempo, depois virou a cara para a parede e recusou-se a comer. Muito bem, vou me lembrar. Ted, isto é melhor do que culpar o gozador do meu irmão e ainda mais difícil de verificar; Samantha morava em Illinois, deu cabo de três maridos, e um deles podia se chamar Bronson para qualquer um aqui que quiser saber. Você se importa? Isso lhe dá uma espécie de família.

— Não me importo. Embora goste de pensar nesta família como minha família.

— E gostamos que você pense isso de nós, filho. Maureen, a nossa jovem já chegou em casa?

— Pouco antes de você chegar, papai. Eles estão na cozinha, sob o pretexto de Nancy querer fazer um sanduíche para Jonathan. Já que tenho certeza de que é uma desculpa para ficarem lá e namorar, sugiro que, se vocês quiserem alguma coisa da cozinha, me deixem ir buscar; farei bastante barulho para dar tempo a Nancy de pular fora do colo dele. Theodore, Nancy está noiva; apenas não fizemos uma participação formal. Acho que é melhor deixá-los se casarem agora, já que ele vai entrar para o exército quase imediatamente. O que acha?

— Dificilmente tenho direito a uma opinião, sra. Smith. Espero que sejam felizes.

— Eles serão — disse o sr. Johnson. — Ele é um ótimo rapaz. Tentei fazê-lo entrar para o 7.º, mas ele insistiu em esperar pelo seu aniversário para poder entrar direto no exército. Embora não pudesse ser convocado por mais três anos. Espírito. Gosto dele. Ted, se você precisar ir para o quarto, pode ir por este outro caminho e evitar a cozinha

 

Alguns minutos mais tarde os jovens saíram da cozinha e fizeram ruídos amáveis sem se sentar; depois Nancy saiu para a varanda a fim de dar boa-noite ao seu namorado, voltou e se sentou.

O sr. Johnson reprimiu um bocejo.

— É hora de eu ir para a cama. Você irá também, Ted. se for esperto. Há muito barulho por aqui para se poder dormir até tarde, especialmente onde está o seu quarto.

— Vou manter os pequenos em silêncio, vovô - - disse Nancy rapidamente —, para que o tio Ted possa dormir.

Lazarus levantou-se.

— Obrigado, Nancy, mas não descansei muito no trem a noite passada; acho que vou direto para a cama. Não se preocupe em fazer silêncio de manhã; de qualquer maneira, levanto-me na hora da alvorada. É o hábito.

A sra. Smith se levantou.

— Todos nós vamos para a cama.

O sr. Johnson apertou a mão de Lazarus ao dar boa-noite; a sra. Smith deu um beijo simbólico no rosto dele, igual ao que havia dado na chegada, agradeceu-lhe pela noite encantadora e insistiu com ele para se virar e dormir de novo se o hábito da alvorada o acordasse. Nancy esperou e deu-lhe um beijo de boa-noite quando os mais velhos subiram as escadas.

Lazarus foi para o seu quarto e entrou no banheiro. Maureen lhe havia dito que não hesitasse em usar a banheira; ela não acordaria as crianças. Ele abriu as torneiras, voltou e abriu sua valise, tirou o pequeno embrulho, levou-o para o banheiro e puxou o ferrolho por não haver nenhuma chave na porta do quarto. Era uma pequena caixa achatada daquelas em que vêm as ligas; abriu-a com cuidado, tencionando reembrulhá-la exatamente como estava.

Ah, as ligas! Desbotadas como ela havia dito, e evidentemente usadas... e — Sim! recendendo à sua própria fragrância evocativa. Duraria ela tempo suficiente para ele levá-la para casa, mandar analisar, reforçar e fixar o aroma encantador e delicado? Provavelmente — e com a ajuda de um computador, um perfumista hábil poderia isolar os odores do cetim e da borracha, acentuando o dela seletivamente. Ele teria que ir até Secundus para obter essa ajuda especializada. Valia a viagem e muito mais!

Agora vamos ver aqueles dizeres "horríveis"... Uma dizia: "Aberto a qualquer hora — toque a campainha para ser atendido!" A outra: "Seja bem-vindo! Entre c atice o fogo". Doce querida, esses não são "horríveis".

Havia um envelope em branco sob as ligas. Ele as pôs de lado e abriu-o.

Um cartão branco: "O melhor que pude fazer, amado. M."

Uma fotografia, trabalho de amador mas de excelente qualidade para este aqui e agora: a própria Maureen, ao ar livre sob um sol brilhante, contra um fundo de moitas cerradas. Ela estava de pé graciosamente, sorrindo e olhando para a câmara — vestida apenas em seu estilo de "cartão-postal francês". Lazarus sentiu um ímpeto de paixão. Ora, minha querida generosa e confiante! Não será seu único exemplar? Não, Brian devia ter feito mais de uma cópia — sem dúvida tinha uma consigo. Esta cópia devia estar trancada em algum lugar no seu quarto. Sim, sua cintura é fina sem espartilho... e os seios não estão caídos; são encantadores — e estou certo de terem sido os causadores do seu sorriso feliz. Obrigado, obrigado!

Com a fotografia veio um pequeno embrulho achatado de papel de seda. Ele abriu-o com cuidado. Um cacho grosso de cabelo ruivo, amarrado com uma fita verde. O cabelo estava enrolado num círculo apertado.

Lazarus ficou olhando para ele. Maureen, minha amada, este é o presente mais precioso de todos — mas espero que o tenha cortado com muito cuidado para que Brian não note sua falta.

Ele olhou para cada um dos presentes outra vez, arrumou-os exatamente como estavam, colocou a caixa no fundo da sua valise, trancou-a, fechou a torneira da banheira, despiu-se e entrou na água.

Mas o banho morno de imersão não o fez dormir. Por um longo tempo ficou deitado no escuro e reviveu as horas anteriores.

Agora sentiu haver compreendido Maureen. Ela estava à vontade com o que era; "gostava de si mesma", como Lazarus havia imaginado — e gostar de si mesmo era o primeiro passo necessário para gostar das outras pessoas. Ela não tinha nenhum sentimento de culpa porque nunca fizera coisa alguma que pudesse fazê-la se sentir culpada. Era severamente honesta consigo mesma, julgava-se a si mesma em vez de recorrer a outros, não mentia a si mesma — mas mentia para os outros, sem hesitação, quando necessário, por bondade ou para ficar de acordo com as regras que não fizera e não respeitava.

Lazarus compreendeu isso; ele agia da mesma forma — e agora sabia de onde herdara essa característica. De Maureen... e através dela de vovô. E de papai também — reforçada. Sentiu-se muito feliz, apesar de uma dor incômoda nos testículos. Ou em parte devido a ela, corrigiu ele; descobriu que gostava daquela dor.

 

Quando a maçaneta da porta girou, ele ficou alerta instantaneamente, saiu da cama e esperou a porta se abrir.

Maureen caiu em seus braços, cálida e fragrante.

Ela afastou-se para tirar dos ombros o penhoar, deixou-o cair, voltou aos seus braços, corpo contra corpo, e ofereceu a boca completamente.

Quando interromperam o beijo, ela continuou em seus braços, agarrada. Ele cochichou com voz rouca:

— Por que você se arriscou a isso?

— Achei que devia — respondeu ela baixinho. — Uma vez sabendo isso, percebi que era até menos arriscado do que o nosso castanheiro. As crianças nunca descem à noite quando temos hóspedes. Papai pode desconfiar de mim... mas isso me dá a certeza de que não irá vigiar-me. Não se preocupe, querido. Leve-me para a cama. Agora! Ele assim fez.

 

Quando ficaram quietos, ela suspirou feliz e disse, com os lábios colados ao seu ouvido, pernas e braços envolvidos nele:

— Theodore, mesmo nisto você é tão parecido com o meu marido que mal posso esperar até a guerra terminar para contar a ele sobre você.

— Você resolveu contar a ele?

— Amado Theodore, nunca houve dúvida de que eu iria contar. Abrandei um pouco o que lhe contei esta noite e deixei alguma coisa de fora. Brian não exige que eu confesse. Mas isso não o perturba; combinamos isso há quinze anos. Ele me convenceu de que confia realmente no meu julgamento e no meu gosto. — Muito baixinho mas alegremente ela riu junto ao seu ouvido. — É uma vergonha eu ter algo a confessar tão raramente; ele gosta de ouvir as minhas aventuras. Ele me faz contá-las uma porção de vezes... como se relesse um livro favorito. Gostaria de poder contar esta a ele amanhã à noite. Mas não contarei, vou guardá-la para mim.

— Ele vem para casa amanhã?

— Tarde. Bastante tarde. Porém, não faz mal, porque espero não dormir nada depois que ele chegar. — Ela riu baixinho. — Ele me disse no telefone para "f.n.c.d.d.p.a." e ele "m.a.d.m.m.d.". Isso significa: "Ficar na cama dormindo de pernas abertas" e que ele "me acordaria da maneira mais deliciosa". Mas eu apenas finjo que estou dormindo, porque acordo não importa quão silenciosamente ele entre, na ponta dos pés.

Ela deu uma risadinha.

— Depois fazemos uma encenaçãozinha alegre. Quando ele me penetra, finjo que acordo e chamo-o pelo nome... mas nunca pelo seu nome. Digo, gemendo: "Ah, Albert, querido, pensei que você nunca chegaria!" Ou coisa parecida. Depois é a vez dele. Ele diz algo parecido com: "Quem está aqui é Buffalo Bill, sra. O'Malley. Cale a boca e mexa-se!" Depois calo a boca e me concentro ao máximo até nós dois explodirmos.

— O seu máximo é soberbo, sra. O’Malley. Esse era mesmo o seu máximo?

— Tentei dar o máximo... Buffalo Bill. Mas'eu estava de tal modo excitada, que fiquei toda confusa. Assim, isso provavelmente não foi o máximo. Quero uma oportunidade para tentar outra vez. Você vai me dar?

— Só se você prometer não dar o máximo. Querida, se esse não era o seu máximo, então o seu máximo me mataria.

— Você não só fala como o meu marido e sente como ele (especialmente aqui), como até o seu cheiro é igual ao dele.

— E o seu igual ao de Tamara.

— Realmente? Eu faço amor como ela?

(Tamara conhece mil maneiras, querida, mas raramente usa alguma coisa fora do comum — fazer amor não é uma técnica, querida, é uma atitude. É querer fazer alguém feliz, o que você faz. Mas você me espantou com o seu domínio da técnica; você alcançaria um alto preço em Iskander.)

— Faz. Mas não é isso o que a torna tão parecida com ela. Bem, é a sua atitude. Tamara sabe o que está acontecendo na mente da outra pessoa e dá a ela exatamente aquilo de que ela precisa. Deseja dar.

— Ela lê pensamentos? Então não sou como ela, afinal.

— Não, ela não lê pensamentos. Mas ela sente as emoções de uma pessoa, sabe o que ela precisa e dá isso a ela. Pode não ser sexo. Não há ocasiões em que Brian precisa de alguma outra coisa?

— Ah, certamente! Se ele está cansado e tenso, eu guardo distância e faço-lhe uma massagem nas costas ou um cafuné. Talvez o encoraje a dormir, e depois talvez ele me acorde realmente "da maneira mais deliciosa". Não tento comê-lo vivo. A não ser que ele deseje isso.

— Exatamente como Tamara. Maureen, quando Tamara estava tratando de mim, a princípio ela nem se deitava na minha cama. Dormia simplesmente no mesmo quarto, comia junto comigo e ficava ouvindo se eu tivesse vontade de falar. Depois, durante dez dias mais ou menos, ela dormiu comigo, mas nós só dormimos... e eu dormi profundamente e não tive nenhum pesadelo. Depois, certa noite, acordei; sem dizer uma palavra, Tamara me fez penetrá-la, e fizemos amor o resto daquela noite. E na manhã seguinte eu soube que estava bom... a doença da alma desaparecera.

"Você é assim, Maureen. Você sabe e faz. Fiquei com muita saudade e muito perturbado por esta guerra. Agora não estou mais, você me curou. Diga-me, o que você sentiu a meu respeito na primeira noite em que estive nesta casa?"

— Amei-o à primeira vista, como uma colegial boba. Quis levá-lo para a cama. Eu lhe disse isso.

— Não o que você sentiu... mas como eu me senti? Ah! Você teve uma ereção por minha causa.

— Sim, tive. Mas pensei tê-la escondido. Você notou?

— Bem, não vi uma protuberância na sua calça ou qualquer coisa assim. Theodore, nunca olho tão baixo assim; os homens ficam embaraçados com tanta facilidade! Eu sabia simplesmente que você estava sentindo o mesmo que eu... e eu me sentia como uma cachorra no cio. Cadela no cio, quero dizer... não pretendo fazer cerimônia na cama. No instante em que os seus olhos encontraram os meus (de pé, lá na sala da frente), vi que precisávamos um do outro e fiquei terrivelmente excitada... e saí correndo para a cozinha para me controlar.

— Você não correu, você foi para lá com uma graça serena, como um navio levado pelo vento.

— Aquele navio estava navegando depressa; eu estava correndo. Consegui me controlar, mas não fiquei menos excitada. Fiquei mais. Meus seios doíam e os bicos ardiam, durante todo o tempo em que você ficou aqui. Mas isso não transparece. Não teria importado se papai notasse minha ex-citação, exceto que ele não o teria convidado a voltar... e eu queria que você voltasse. Papai sabe como sou; ele me disse isso quando estava me ajudando. Ele me disse para enfrentar o que sou e ser feliz por isso... mas que eu devia aprender a não deixar nunca minha excitação aparecer, sendo as coisas como são. Eu tentei... mas naquela noite foi muito difícil suprimi-la.

— Você conseguiu.

— Brian me diz que eu não demonstro. Mas naquela noite foi tão difícil! Eu... Theodore, há uma coisa que os meninos fazem (e algumas vezes os homens) quando estão terrivelmente frustrados. Com a mão.

— Certamente. Masturbação. Os meninos chamam isso de "punheta".

— É o que Brian diz. Mas talvez você não saiba que as moças (e as mulheres) podem fazer uma coisa parecida.

— Eu sei. Para uma pessoa solitária de qualquer sexo, é um substituto inofensivo, mas inadequado.

— "Inofensivo mas inadequado." Completamente inadequado. Mas alegro-me de você achar que é inofensivo. Porque fui para cima e tomei um banho. Eu precisava, embora tivesse tomado banho antes do jantar. E fiz isso, na banheira. Fui para a cama e fiquei olhando para o teto. Depois me levantei, tranquei a porta, tirei minha camisola... e fiz isso uma porção de vezes! Pensando em você, Theodore, o tempo todo. Na sua voz, qual era o seu cheiro, no contato de sua mão sobre a minha. Mas levei pelo menos uma hora antes de ficar suficientemente relaxada para poder dormir.

(Levei mais tempo ainda, querida, e devia ter usado a sua terapia direta. Mas eu estava me punindo por ser um tolo. Fui um idiota, querida, porque sei que nunca é bobagem amar. Mas não consegui descobrir como poderíamos demonstrar o nosso amor.)

— Gostaria de poder estar com você, querida... porque a um quilômetro ou dois de distância eu estava sofrendo com isso... pensando em você.

— Theodore, esperei que você se sentisse assim. Precisei tanto de você, que esperei que você precisasse de mim da mesma maneira. Mas o melhor que pude fazer foi trancar a minha porta, fazer isso e pensar em você, sem ninguém por perto exceto Ethel no seu berço; ela é pequena demais para perceber. Uups! Perdi você. Ah, querido!

— Você não me perdeu, apenas aquele pedacinho de carne orgulhosa. A qual se recuperará daqui a pouco; você me prometeu uma segunda oportunidade. Mudar de posição? Calçar o ombro? Esquerda ou direita? Eu não devia ter ficado em cima de você tanto tempo, mas eu não queria me mexer.

— Eu não queria que você saísse desde que pudesse conservar pelo menos um pouco de você dentro de mim. Você não é muito pesado; meus quadris são largos, e você deixa uma mulher respirar, sr. Bronson. Coloque-me de qualquer lado, o que preferir.

— Assim?

— Assim é confortável. Ah, Theodore, esta não parece a nossa primeira vez; sinto-me como se o tivesse amado sempre e finalmente você tivesse voltado para mim.

(Vamos esquecer esse assunto, mamãe Maureen.)

— Continuarei a amá-la para sempre, minha querida. (Omitido)

— ... disse rudemente que não se casaria com ela se ela criasse algum problema quanto à entrada dele para o exército, já que não era obrigado.

— O que foi que Nancy disse a ele?

— Ela disse que estava esperando ouvir isso, para que ele a engravidasse imediatamente a fim de poderem ter alguns dias de lua-de-mel antes que ele se incorporasse. Nancy tem um sentimento tão forte quanto sua mãe pelos guerreiros. Ela entrou no meu quarto naquela noite e me contou o que havia feito, ligeiramente chorosa, mas não preocupada por haver pulado a cerca.

"Assim, derramamos lágrimas de felicidade, e esclareci o assunto com Brian e os Weatherals. Nancy deixou de menstruar da vez seguinte (isto foi há um mês) e o casamento pode ser depois de amanhã ou talvez no dia seguinte."

(Omitido)

— Querida, gostaria de poder vê-la.

— Ah, querido! Eu preferia não acender a lâmpada Mazda, Theodore. Estas persianas não vedam muito bem, mas a luz que escapa para fora, bem como a luz sob a porta, pode chamar a atenção de papai se por qualquer motivo ele descer.

— Maureen, nunca pedirei a você que assuma qualquer risco de que não goste. Vejo-a bastante bem com a ponta dos meus dedos... e eles não estão esgotados.

— Eles correm sobre as minhas costelas como marshmellow derretido. Theodore, quando você abrir aquele embrulho, por favor tenha muito cuidado para não haver ninguém perto; há mais coisa nele do que um par de ligas.

— Já o abri.

— Então você sabe como eu sou.

— Aquela moça linda era você?

— Pode caçoar. Brian me fez olhar direto para a câmera.

— Mas, querida, embora você não olhe tão embaixo, os homens não tendem a olhar muito em cima. Especialmente eu. Não quando estou olhando a fotografia de um modelo nu perfeitamente deslumbrante.

— "Modelo nu", meu melhor chapéu de domingo!

— Maureen, essa é a fotografia mais encantadora que já possuí e a conservarei sempre com carinho.

— Assim é melhor, não acredito e adoro ouvir isso. Você abriu o papel dobrado que estava com ela?

— O cacho de bebê? Você o cortou de Marie?

— Theodore, não me importo que você me provoque; isso simplesmente o torna mais parecido com Brian. Mas, se ele provoca demais, eu o mordo. Em qualquer lugar. Aqui, por exemplo.

— Ei, não com tanta força!

— Então me diga de onde veio aquele cacho.

— Veio da sua coisinha, minha bela, e vou usá-lo sobre o meu coração para sempre. Mas o motivo pelo qual quis vê-la é que você cortou um pedaço tão generoso, que me preocupei com que Brian pudesse notar a falta de alguma coisa... e perguntar por quê.

— Posso dizer-lhe que o dei ao geleiro.

— Ele não vai acreditar nisso e terá certeza de que você tem uma nova aventura a confessar.

— Então ele não me forçará a contar-lhe agora; mudará de assunto. Apesar de eu querer contar a ele agora; fico pensando em vocês dois, ao ar livre, à luz do dia; essa foi a fantasia que me manteve acordada. Querido, há uma vela sobre a cômoda... não merecendo a eletricidade tanta confiança como a luz a gás, costumamos ter algumas. Ela não fará muita luz a ponto de me preocupar. Você pode olhar para mim à luz da vela quanto quiser e como quiser.

— Sim, querida! Onde estão os fósforos?

— Solte-me, que me levantarei e a acenderei; posso encontrar ambos no escuro. Poderei olhar para você também?

— Claro! Para o contraste. "A bela e a fera." Ela riu e beijou-lhe a orelha.

— Bode, talvez. Ou um garanhão. Theodore, eu precisava ser distendida pelos partos para poder recebê-lo.

— Pensei que você tivesse dito que eu era como Brian!

— Mas ele é um garanhão também. Solte-me.

— Pague o tributo.

— Ah, santo Deus, querido, não faça isso agora! Ou ficarei tremendo tanto que não poderei riscar o fósforo.

De pé e à luz da única vela, eles se examinaram mutuamente. Lazarus sentiu sua respiração ficar curta diante da glória deslumbrante dela. Por mais de dois anos ficara privado da doce alegria de ver uma mulher, e não percebera como estivera esfomeado por esse grande privilégio. Querida, você pode imaginar o quanto isso significa para mim? Mamãe Maureen, ninguém nunca lhe disse que uma mulher completamente adulta é muito mais docemente linda do que uma virgem? Certamente os seus seios encantadores contiveram leite; é para isso que eles servem. Por que iria eu querer que eles se parecessem com alabastro? Não quero!

Ela estudou-o da mesma forma minuciosa, com o rosto solene, os bicos dos seios fortemente enrugados. Theodore-Lazarus, meu estranho amor, poderá você imaginar que sugeri a luz da vela para que eu pudesse vê-lo? Uma mulher não deve ficar desejando essas coisas — mas sinto falta da visão, a visão nua, do meu marido... e como, em nome de Satã e todos os seus Tronos Caídos, posso eu resistir mesmo até novembro sem ver sequer um homem que não conheço? Alma Bixby me contou que nunca havia visto seu marido sem roupas. Como é que uma mulher pode viver assim? Cinco filhos com um homem que ela nunca viu inteiro... Ela ficou chocada quando eu disse que naturalmente havia visto meu marido nu!

Theodore-Lazarus, você não se parece com o meu menino Briney; sua coloração é mais parecida com a minha. Mas, ah, como você sente como ele, cheira como ele, fala como ele, ama como ele! Sua coisinha linda está subindo outra vez. Briney amado, vou possuí-lo mais uma vez, tão duro quanto for possível! E contarei a você a respeito disso amanhã à noite, se você- simplesmente me pedir uma nova história para a hora de dormir... ou, se for preciso, guardá-la-ei para você até você voltar. Você é um homem tão estranho quanto ele... e exatamente o marido sábio e tolerante de que sua mulher devassa precisa. Depois, dou minha palavra, querido, me esforçarei ao máximo para me privar disso até você voltar de "lá" — mas se não conseguir, mesmo com papai e oito filhos para tomarem conta de mim, prometo-lhe solenemente que nunca irei para a cama com ninguém senão um guerreiro, um homem de quem possa me orgulhar de todas as maneiras. Tal como este homem estranho.

Lazarus, meu amor, você é realmente meu descendente? Acredito que você saiba quando a guerra vai terminar e que Briney voltará ileso para mim. Por quê, não tenho certeza... mas, desde que você me disse, fiquei livre de preocupações pela primeira vez em muitos devaneios solitários. Espero que o resto seja verdade também; quero acreditar em Tamara, cm que ela descende de mim. Mas não quero que você vá embora dentro de apenas oito anos!

Aquela pequena fotografia inocente — se eu não receasse chocá-lo, teria dado a você alguns "cartões-postais franceses" verdadeiros que Briney tirou de mim. Você ficará perturbado se eu olhar mais de perto? Vou arriscar.

A sra. Smith caiu de repente sobre um joelho, olhou bem de perto, depois tocou nele. Ela ergueu os olhos.

— Agora?

— Sim! — Ele ergueu-a e colocou-a sobre a cama. Ela o ajudou quase solenemente, depois prendeu a respiração quando se uniram.

— Com força, Theodore! Desta vez não seja delicado!

— Sim, minha bela!

Quando a feliz violência deles terminou, ela ficou deitada em silêncio em seus braços, sem falar, comungando através do contato e da luz do uma vela.

Por fim, ela disse:

— Preciso ir, Theodore. Não. não se levante, deixe-me apenas sair. — Ela se levantou, apanhou seu penhoar, soprou a vela, voltou, inclinou-se e beijou-o. — Obrigada, Theodore... por tudo. Mas... volte para mim, volte para mim!

— Voltarei, voltarei!

Ela saiu depressa c silenciosamente.

 

Coda

Vivace

I

Em alguma parte na França

Querida família inteira,

Estou escrevendo em meu diário de bolso, onde isso ficará até esta guerra terminar — não que isso importe; vocês receberão logo da mesma maneira. Mas não posso enviar uma carta fechada agora, muito menos uma fechada dentro de cinco envelopes. Uma coisa chamada "censura" — que significa que todas as cartas são abertas e lidas, e qualquer coisa que possa interessar aos boches é cortada. Tais como datas, lugares, designações de unidades militares e provavelmente o que comi no café da manhã. (Feijão, carne de porco cozida e batatas fritas, com um café que dissolveria uma colher.)

Vocês compreendem, fiz esta encantadora viagem oceânica como convidado do Tio Sam e estou agora na terra dos bons vinhos e das mulheres bonitas. (O vinho tem sido um vin extremamente ordinaire, e parece que eles estão escondendo as mulheres bonitas. A mais bonita que vi tinha um ligeiro bigode e pernas muito cabeludas, o que eu poderia ter ignorado se não tivesse cometido o engano de ficar na direção do vento. Queridos, não tenho certeza se os franceses tomam banho, pelo menos em tempo de guerra. Mas não estou absolutamente em posição de criticar, um banho é um luxo. Hoje, podendo escolher entre uma bela mulher e um banho quente, eu escolheria o banho, do contrário ela não tocaria em mim.)

Não se preocupem por eu estar agora em "zona de guerra". O fato de terem recebido esta é prova de que a guerra terminou e estou bem. Mas é mais fácil escrever uma carta do que pôr coisas triviais num diário todos os dias. "Zona de guerra" é um exagero; esta é uma "guerra de posição", isto é, os lados estão numa posição crítica: imobilizados — e estou afastado demais, atrás das linhas, para me ferir.

Comando uma unidade chamada "esquadra" — oito homens: eu e cinco outros fuzileiros, mais um fuzileiro automático (o fuzil, não o homem; esta guerra não tem nenhum combatente robô) e um oitavo homem que transporta munição para o fuzileiro automático, isso é serviço de cabo, e é o que eu sou: a promoção a sargento que eu estava esperando (em minha última carta datada dos Estados Unidos) perdeu-se na confusão quando fui transferido para outra unidade.

Ser cabo me agrada. É a primeira vez que tenho homens designados para mim permanentemente, por tempo suficiente para conhecer cada um, observar seus pontos fortes e fracos e descobrir como lidar com eles. Eles constituem um ótimo grupo de homens. Só um causa problemas e não é por sua culpa; isso é conseqüência dos preconceitos da época. Seu nome é F. X. Dinkowski, e ele é simultaneamente o único católico e o único judeu da minha esquadra — e, gêmeas, se vocês nunca ouviram falar de qualquer dos dois, perguntem a Atena. Pelo sangue ele pertence a uma religião, depois foi criado em outra — e teve a má sorte de ser colocado junto com rapazes do campo que têm ainda uma terceira religião e não são muito tolerantes.

Mais os infortúnios adicionais de ser um rapaz da cidade, ter uma voz que irrita (mesmo a mim) c ser desajeitado; quando implicam com ele (eles implicam se eu não estiver junto dele), o fato torna-o mais desajeitado. Na verdade, ele não nasceu para soldado — mas não me perguntaram. Assim, ele é o municiador, o melhor que posso fazer para tornar minha esquadra homogênea.

Chamam-no de "Dinky" [49], o que é apenas um pouco depreciativo, mas ele odeia isso. (Eu uso o seu último nome inteiro — faço isso com todos eles. Por questões de ritual relacionadas à mística das organizações militares neste aqui e agora, é melhor chamar um homem pelo seu nome de família.)

Mas vamos deixar a melhor esquadra da FSA [50] e pô-los em dia com a minha primeira família e seus antepassados. Pouco antes de Tio Sam me mandar para aquele cruzeiro de recreio, me deram umas férias. Passei-as com a família de Brian Smith e morei na casa deles, porque me "adotaram" pelo resto desta guerra, por eu ser "órfão".

Essa licença foi a época mais feliz que tive desde que fui lançado do Dora, Levei Woodie a um parque de diversões, primitivo porém mais divertido do que alguns prazeres sofisticados de Secundus. Levei-o para andar em vários aparelhos e participar de jogos e coisas divertidas para ele; divertidas para mim, também, porque ele gostou muito de tudo — cansei-o e ele dormiu durante toda a volta para casa. Ele se comportou e agora somos amigos íntimos. Resolvi deixá-lo crescer; ainda há esperanças para ele.

Tive longas conversas com vovô, e travei relações mais íntimas com todos os outros — especialmente mamãe e papai. O último foi inesperado. Eu havia estado com papai por alguns minutos no Campo Funston, depois ele ia vir para casa de licença no dia cm que eu tinha de voltar, e não esperei vê-lo. Mas ele conseguiu sair algumas horas mais cedo, uma regalia que os oficiais conseguem algumas vezes, e tivemos algumas horas juntos — e ele telefonou para o campo e conseguiu para mim uma prorrogação de dois dias. Por quê? Tamara e Ira, escutem com cuidado:

Para assistir ao casamento da... sita. Nancy Irene Smith com o sr. Jonathan Sperling Weatheral.

Atena, explique às gêmeas a importância histórica dessa união. Arrole as pessoas famosas e importantes daquele tronco, querida, não as genealogias totais. E Ira e Tamara em nossa própria pequena família, naturalmente, e Ishtar, e pelo menos cinco dos nossos filhos — posso ter esquecido alguém por não saber de cor todos os troncos genealógicos.

Eu fui "padrinho" de Jonathan, papai "entregou a noiva", Brian foi "introdutor", Marie "carregou as alianças", Carol foi "dama de honra", e George foi incumbido de impedir que Woodie pusesse fogo na igreja enquanto mamãe tomava conta de Dickie e Ethel — Atena pode explicar os termos e o ritual; não vou tentar. Mas isso não só me deu mais dois dias de licença, grande parte dos quais passei ajudando mamãe (esses casamentos medievais são operações complexas), como também me proporcionou tempo com papai, e agora o conheço melhor do que jamais o conheci como filho, sob o seu teto — gosto muito dele e o aprovo calorosamente.

Ira, ele me faz lembrar de você — inteligente, franco, comedido, tolerante e cordialmente amável.

Boletim: A noiva estava grávida (um casamento Howard adequado! — numa época em que se supunha que todas as noivas fossem virgens) — grávida de (se não me falha a memória) "Jonathan Brian Weatheral". Está certo, Justin, e quem descende dele? Ajude-me, Atena. Conheci uma porção de pessoas durante os séculos; pode ser até que eu tenha me casado com alguma descendente de Jonathan Brian em alguma ocasião. Espero que assim seja; Nancy e Jonathan são um ótimo casal jovem.

Transferi o " meu" landaulet a eles para uma lua-de-mel de seis dias, depois Jonathan vai se incorporar (incorporou-se) ao exército — porém tarde demais para entrar em combate. O guerreiro de Nancy é herói da mesma maneira; ele tentou.

Um sargento convencido que não conseguiu encontrar o rabo com ambas as mãos quer que eu reúna a esquadra e faça alguma coisa quanto a um abrigo com o qual alguém foi descuidado. Assim...

Todo o meu amor,

Cabo Amigo Velho.

 

Em alguma parte na França

 

Caro sr. Johnson:

Por favor, faça uma segunda censura nesta; uma parte dela terá que ser explicada ao resto da minha família adotiva,

Espero que a sra. Smith tenha recebido o bilhete de agradecimento que mandei de Hoboken (e possa tê-lo lido — escrever sobre o joelho, sacudindo no leito da estrada da C & A não melhora a minha letra). De qualquer maneira, agradeço a ela novamente pelas férias mais felizes da minha vida. E obrigado a todos vocês. Diga a Woodie, por favor, que não vou dar mais a ele um cavalo de vantagem. De agora em diante, ou jogamos em condições iguais, ou ele pode procurar outro otário — quatro em cinco é demais.

Agora, quanto ao resto... note a assinatura e o endereço. Minha lista curva não durou até a França, depois três divisas reduziram-se a duas. O senhor pode explicar à sra. Smith e a Carol (estas duas em particular) que ser rebaixado de posto não desgraça um homem para sempre?... e diga que ainda sou o soldado especial de Carol, se ela me permitir... e, na verdade, sou muito mais do que um soldado verdadeiro; pelo menos estou livre de ser rotulado como "instrutor" e agora estou comandando um esquadrão numa unidade de combate. Gostaria de poder dizer a ela onde... mas, se eu erguer a cabeça acima do parapeito, posso ver alguns soldados alemães, se um deles não me vir primeiro. Não estou morcegando a cem quilômetros na retaguarda.

Espero que o senhor não esteja envergonhado de mim. Não, tenho certeza de que não está; o senhor é um soldado velho demais para se importar com postos. Estou metido nisto e isso é o que conta para o senhor. Eu sei. Posso dizer, sr. Johnson, que o senhor é e sempre foi, desde que o conheci, uma inspiração para mim?

Não vou entrar em detalhes sobre as duas promoções negativas; no exército as desculpas não contam. Mas quero que o senhor saiba que nenhuma das duas resultou de algo desonroso. A primeira foi no navio-transporte e envolveu um rigoroso oficial subalterno incumbido da disciplina, e um jogo de pôquer numa área sob minha responsabilidade. A segunda, enquanto eu estava dando instruções — trincheiras simuladas, terra de ninguém simulada —, e um capitão me disse para dourar a pílula naquela linha de escaramuças e eu disse: "Que diabo, capitão, o senhor está tentando economizar balas para o cáiser? Ou não ouviu falar das metralhadoras?"

(Suponho que eu não devia ter dito "que diabo". Na verdade, usei outra expressão mais comum entre os soldados.)

Assim, mais tarde naquele dia, eu era cabo e minha transferência teve lugar quando a requeri, naquele mesmo dia.

Dessa forma, aqui estou, sentindo-me otimamente. Na verdade, não há dúvida de que quanto mais perto um homem chega do front, melhor é o seu moral. Tornei-me amigo íntimo dos piolhos, a lama na França é mais profunda e mais pegajosa que no sul do Missouri, sonho com banhos quentes e o maravilhoso quarto de hóspedes para soldados da sra. Smith — mas gozo de boa saúde e estou animado; mando lembranças a todos vocês.

Respeitosamente, Cabo Ted Bronson.

— Ei, aí embaixo! Cabo Bronson. Mande-o para fora! Lázarus subiu devagar para fora do abrigo, deixando os olhos se acostumarem à escuridão.

— Sim, tenente?

— Serviço de cortar arame. Quero que se apresente como voluntário.

Lazarus não disse nada.

— Você não me ouviu?

— Eu o ouvi, tenente.

— Bem?

— O senhor pediu um voluntário, tenente.

— Não, eu disse que queria que você se apresentasse como voluntário.

— Tenente, eu me apresentei como voluntário em 6 de abril do ano passado. Isso esgotou a minha cota enquanto a guerra durar.

— Um advogado de latrina, hein? Lazarus novamente não disse nada.

— Algumas vezes acho que você quer viver para sempre. Lazarus continuou sem dizer nada. (Você está totalmente

certo, seu tenente de meia-tigela — e você também, você não subiu naquele parapeito uma só vez. Deus ajude este pelotão quando você fizer isso.)

— Muito bem, já que quer isso da maneira difícil. Ordeno-lhe que comande este grupo. Descubra mais três voluntários da sua esquadra. Se eles não quiserem ir voluntariamente, você sabe o que fazer. Uma vez tendo-os escolhido, diga-lhes para se aprontarem... depois puxe o rabo até o P.C. e mostrarei o mapa a você,

— Sim, senhor.

— E, Bronson, trate de fazer um bom serviço... porque um passarinho me disse que você vai guiar o pessoal pelos buracos. Dispensado.

Lazarus voltou para baixo sem pressa. Então vamos passar por cima da borda? Grande segredo. Ninguém sabe disso senão Pershing, cerca de cem mil ianques, o dobro disso de boches e o Alto Comando Imperial. Por que eles anunciam um "ataque de surpresa" com três dias de bombardeio de "amaciamento" que não produz nada que valha a pena mencionar, mas diz ao boche para onde trazer suas reservas e lhe dá tempo de pô-las em posição? Esqueça isso, Lazarus, você não é o responsável. Concentre-se em escolher três que possam sair, fazer o serviço e voltai.

Não, Russell, você vai precisar do seu fuzileiro automático antes da madrugada. Wyatt saiu ontem à noite. Dinkowski bem poderia ter uma sineta em torno do pescoço. Fielding está na lista de doentes, maldito seja! Assim, têm que ser Schultz, Talley e Cadwallader. Dois deles são velhos indestrutíveis e Talley é o único substituto com pouca experiência — é uma vergonha Fielding estar com gripe ou o que quer que seja; preciso dele. Está bem. Schultz leva Cadwallader; eu cuido de Talley na missão.

Era um abrigo para duas esquadras; a dele estava alojada à esquerda, a outra estava jogando cartas à luz de vela, ao lado. Lazarus reuniu sua esquadra num grupo, acordando Cadwallader e Schultz para isso. Russell e Wyatt ficaram em seus catres, porque a reunião se realizou junto a estes.

— O tenente quer que cortemos arame e me disse que pedisse três voluntários.

Schultz concordou imediatamente, como Lazarus sabia que ele faria.

— Eu vou.

Na opinião de Lazarus, seu assistente de comandante de esquadra devia ter uma seção. Schultz tinha quarenta anos, era um voluntário casado e fazendo força para compensar o seu nome, o vestígio do seu sotaque alemão (segunda geração)

— mas fazendo isso firmemente, metodicamente, sem ostentação. Não era nenhum caçador de glória. Lazarus esperava que não muitos dos alemães que eles enfrentavam fossem da qualidade de Schultz — mas sabia que eram, especialmente os veteranos trazidos de volta da frente russa em colapso. Sua única falha aos olhos de Lazarus era ele não gostar de Dinkowski.

— Temos um. Não falem todos ao mesmo tempo.

— O que é que há com eles? — disse Cadwallader em voz alta, apontando o polegar para a outra esquadra. - São os queridinhos da professora? Eles não fazem nada há uma semana.

O cabo 0'Brien respondeu pela sua esquadra:

— "Conte os seus problemas a Jesus; o capelão desertou!" De quem é a vez de dar as cartas?

— Quem é o seguinte? Dinkowski engoliu em seco.

— Eu vou, cabo.

Talley encolheu os ombros.

— Está bem.

(Que diabo, Dinky! Por que você não esperou e simplesmente tornou isso unânime? E maldito seja aquele segundo-tenente bobo por ordenar-me que pedisse voluntários. É melhor contar a eles.)

— Vamos ouvir mais algumas vozes. Isto não é o SOS — (Tenente Cabeça de Bagre, seu corrimento nasal, Cadwallader tem razão; não é a nossa vez. Por que você não deu a ordem através do sargento do pelotão e do comandante da seção? Eles são justos na distribuição dos trabalhos sujos.)

Russell e Wyatt falaram juntos. Lazarus esperou, depois disse:

— Cadwallader? Você é o único de fora.

— Cabo, o senhor pediu três voluntários. Como é que quer toda a esquadra?

(Porque quero você, seu macaco repelente. Você é o melhor soldado da esquadra.)

— Porque preciso de você. Vai se apresentar?

— Não sou nenhum voluntário, cabo; fui convocado.

— Muito bem. — (Malditos sejam todos os oficiais que interferem quando não devem!) — Wyatt, você saiu ontem à noite; volte para o seu catre. Russell, vá dormir um pouco também; pode ser que você fique ocupado em breve. Schultz, vou levar Dinkowski; você leva Talley. Pinte-me de preto primeiro e faça isso depressa; tenho que ver o tenente. Pegue a rolha.

 

Lazarus passou pelas suas próprias cercas de arame sem muita dificuldade, alargando os rombos que as granadas alemãs haviam feito. Fez todo o trabalho ele mesmo, pedindo simplesmente a Dinkowski para ficar deitado e acompanhá-lo. Ouvia-se o barulho regular da artilharia dos Aliados e dos obuses alemães. Lazarus ignorou-os, por não haver nada melhor que pudesse fazer. O matraquear ensurdecedor das metralhadoras ele também ignorou, já que o ruído vinha de muito longe ao longo dos seus flancos. Com os atiradores de tocaia ele não se preocupou, além de ficar abaixado.

Sua cautela principal dirigia-se às patrulhas alemãs — se houvesse alguma — e às granadas luminosas — que havia demais. As últimas eram o motivo por que ele mantinha Dinkowski de barriga no chão; ele não confiava em que o seu assistente ficasse imóvel e agüentasse, se fosse apanhado de joelhos quando explodia uma granada luminosa.

Em determinado momento, após a última de suas próprias redes de arame, ele levou Dinkowski, ambos rastejando de barriga, até uma cratera de granada, depois pôs sua boca no ouvido do soldado.

— Fique aqui até eu voltar.

— Mas, cabo, não quero ficar para trás!

— Não tão alto; você vai acordar o bebê. Cochiche no meu ouvido. Se eu não estiver aqui em uma hora, volte sozinho.

— Mas não conheço o caminho de volta!

— Lá está a Ursa Maior, lá está a estrela Polar. Volte para sudoeste. Se não encontrar as passagens, você tem o cortador de arame. Lembre-se apenas disto: quando uma granada luminosa explodir, fique imóvel! O momento de continuar é só quando ela se apagar, enquanto os olhos deles ainda estiverem ofuscados. E tente ficar em silêncio; você me lembra de dois esqueletos num telhado de zinco. Não vá ser alvejado pelo nosso próprio pessoal no último minuto. Qual é a senha?

— Hein?...

— Ah, diabo, é "Charlie Chaplin". Esqueça-a outra vez e você ficará mais do que incapacitado; alguns dos nossos rapazes são nervosos no gatilho. Agora repita.

— Cabo, vou cortar o arame com o senhor.

 

Lazarus suspirou fundo. O palhacinho desajeitado queria bancar o soldado. Se eu não deixá-lo vir junto, isso pode matar seu ânimo. Mas, se deixar, isso pode matar a nós dois. Cadwallader, admiro o seu bom senso — e odeio a sua coragem. E gostaria de ter você comigo.

— Está bem. Nem uma palavra de agora em diante. Bata no meu pé e aponte se for preciso... e fique perto para poder fazer isso. Lembre-se do que eu disse sobre as granadas luminosas. Se vir algum boche, não respire. Se eles nos surpreenderem... renda-se imediatamente.

— Render?

— Se quiser ser avô. Você não pode matar uma patrulha alemã inteira sozinho. Mesmo que pudesse, isso faria tanto barulho que as metralhadoras deles o cortariam em dois. Fique perto e fique abaixado.

Lazarus quase podia tocar a primeira cerca de arame alemã quando explodiu uma granada luminosa e o soldado entrou em pânico — tentou alcançar uma cratera de granada pela qual haviam acabado de passar e foi atingido ao cair dentro dela.

Lazarus ficou imóvel e ouviu os gritos, enquanto a luz ofuscante queimava acima dele. Uma das nossas, meditou ele; uma granada alemã explodiria iluminando por trás as trincheiras americanas. Se esse pobre sujeitinho não calar a boca, o ar por aqui vai ficar cheio de saudações alegres. Não posso cortar o arame com toda essa propaganda. E... ah, que diabo! Sou responsável por ele; tenho que cuidar dele. Provavelmente seria um favor para Dinky acabar com ele, mas Maureen não gostaria disso. Muito bem, vamos levá-lo de volta — depois voltar e terminar este trabalho sujo. Nenhum sono esta noite e por cima da borda cerca das zero-quatro-zero-zero. Da próxima vez entre para a marinha.

O clarão se apagou e Lazarus levantou-se. Moveu-se depressa... quando outra granada luminosa se acendeu. Balas de metralhadora costuraram o seu lado e o derrubaram dentro da cratera da granada. Uma atingiu um implante duro no lado direito da sua barriga, desviou-se e abriu caminho para fora logo acima do seu quadril esquerdo. Outras não causaram danos — nada difícil demais de consertar em 4.291 d.C, mas, sendo esta a Idade Média, qualquer uma delas era o bastante.

Lazarus sentiu-a apenas como um golpe poderoso que o derrubou para dentro da cratera de granada. Não ficou inconsciente imediatamente; teve tempo de perceber que estava mortalmente ferido. Ficou deitado onde havia caído e olhou para as suas estrelas no alto, compreendendo que havia chegado ao seu lugar para morrer.

Todo animal acha o seu lugar para morrer. Alguns o acham numa armadilha, outros numa luta que não podem vencer, alguns poucos, felizes, num lugar sossegado para esperar pelo fim. Qualquer que ele seja, é o lugar final, e a maioria de nós sabe quando chega lá. Este é o meu.

Será que Dinky sabia? Acho que sim, ele parou de gritar — acho que ele procurou isto. Estranho isso não doer. Obrigado por fazer valer a pena, Maureen... Llita... Dorável... Tamara... Minerva... Laz, Lor... Ira... Maureen...

Ele ouviu os gansos selvagens grasnando no alto, ergueu os olhos novamente para as suas estrelas, à medida em que elas se apagavam.

 

Coda

Moderato

II

— Você ainda não compreende — disse monotonamente a Voz Cinzenta. — Não há nenhum tempo, não há nenhum espaço. O que era, é, e sempre será. Você é você, jogando xadrez consigo mesmo, e novamente deu xeque-mate em si mesmo. Você é o juiz. A moral é o seu acordo consigo mesmo para submeter-se às suas próprias regras. Para seu próprio bem, seja verdadeiro ou estragará o jogo.

— Louco.

— Então mude as regras e jogue um jogo diferente. Você não pode exaurir sua variedade infinita.

— Se você ao menos me deixasse olhar para o seu rosto — gaguejou Lazarus impaciente.

— Tente um espelho.

 

Coda

Adagio

III

Do Post, de Kansas City, de 7 de novembro de 1918: lista suplementar de nossas perdas. Anunciamos com tristeza as do Kansas e do Missouri: Mortos: Abel Thos J. Sold. Jfsn City; Avery Jno M 2.° Ten. Sedalia; Baird Geo M Sold. 1." classe Tpka; Badger F M Sold. St Hosph; Casper Robt Sarg. Aj. Hatfield R S Cabo KCK; Kerr Jack M 1." Ten. Joplin; Pfaifer Hans Sold. l.a classe Dodge City. Desaparecidos em ação: Austin Geo W Sarg. Aj. Hnnbl Mo; Bell T R Cabo Wchtak, Berry L M Sold. Crthg Mo; Bronson Theo Cabo KCMo; Casper M M 1.° Ten. Lwrnck; Dillingham O G Sold. Rolla; Farley F X KC Mo; Hawes Wm Sold. t." classe, Sprngfld; Oliver R C Sold. St. Louis. Feridos: Arthur G M Sold. 1." classe...

 

Coda

Vivace

IV

— Ira! Galahad! Pegaram-no?

— Sim! Suspenda-nos para dentro! Ah, que sujeira! Ish, cerca de dois litros e um bocado de substância gelatinosa.

— Traga-o para dentro e deixe-me vê-lo. Lor, pode nos levar para fora daqui agora.

— Feche, Dora, c dê o fora!

— Fechado e zunindo! Anteparos abaixados! Que diabo

fizeram com o patrão?

— Estou tentando descobrir, Dora. Prepare o tanque; posso ter que congelá-lo.

— Pronto agora, Ish. Laz-Lor, eu disse a vocês que devíamos apanhá-lo mais cedo. Eu disse a vocês.

— Cale-se, Dora. Nós dissemos a ele que podia levar um tiro no rabo. Mas ele estava se divertindo mais do que gatinhos...

— ... e não nos teria agradecido...

— ... e não teria vindo...

— ... você sabe como ele é teimoso.

— Tamara — disse Ishtar —, afague sua cabeça e fale com ele. Mantenha-o vivo. Não quero congelá-lo, se puder, até ter feito reparos temporários. Hamadríade, pince ali! Hum... Galahad, uma bala atingiu o localizador. Foi por isso que seus intestinos ficaram tão retalhados.

— Clone-trans?

— Talvez. A maneira como ele se regenera, conserta e suporta pode ser suficiente. Justin, você tinha razão; as datas das cartas dele provam que ele não resistiu a isso; perder o sinal do localizador indicou quando e onde. Galahad, você está encontrando mais fragmentos? Quero fechá-lo. Tamara, desperte-o, faça-o falar! Não quero ter que congelá-lo. O resto de vocês cale a boca e dê o fora! Vão ajudar Minerva com as crianças.

— Com prazer — disse Justin, com a voz rouca. — Estou prestes a vomitar.

— Maureen? — murmurou Lazarus,

— Estou aqui, querido — respondeu Tamara, aninhando a cabeça dele contra os seios.

— Mau... sonho. Pensei... que estava... morto.

— Apenas um sonho, amado, Você não pode morrer.

 

 

                                                               Robert A. Heinlein

 

 

 

[1] As you like it, peça de Shakespeare. (N. da T.)

[2] Passo de dança com os braços dados. (N. da T )

[3] Frase repelida nas chamadas para dança de quadrilha. (N. da T.)

[4] ¹ Spouse e spice no original. (N. da T.)

[5] Anagrama de Gilbreth Frank Bunker (1868-1924), engenheiro americano especialista em eficiência. Parte componente de um ciclo dos Movimentos que compõem as operações de todas as formas de trabalho (N. da T.)

[6] Veni, vidi, vici... Palavras celebra com as quais César anunciou Senado a rapidez da vitória perto de Zela sobre Fárnaces II, rei Ponto, em 47 a.C. (N. da T.)

[7] Deusa grega da sabedoria, filha de Zeus, divindade equivalente a Minerva na mitologia romana. (N. da T.)

[8] William Shakespeare. N. do E.)

[9] Príncipe troiano, filho de Trós e da ninfa Caliróe. Zeus, tendo tomado a forma de uma águia, raptou-o e fez dele o copeiro dos deuses. (N. da T.)

[10] Relativo a entimema, silogismo no qual se subentende uma premissa. (N. da T.)

[11] Dedução em desacordo com as premissas. (N. da T.)

[12] Manto grego antigo preso ao pescoço ou ao ombro por um broche (N. da T.)

[13] Deusa da juventude, filha de Júpiter e Juno, encarregada pelo pai de servir aos deuses o néctar e a ambrosia até o dia em que Ganimedes a substituiu nessa junção. Casou-se com Hércules quando este foi admitido entre os deuses. (N da T.)

[14] Ilha ao sul do Pacífico, a cerca de cento e sessenta quilômetros da ilha de Tuamolu. e eqüidistante de Taiti e Páscoa; colonizada em 1790 pelos amotinados do navio inglês Bounty, celebrizado pelo livro e filme O grande motim. Fletcher Christian, o chefe dos amotinados, e seus seguidores transformaram-se em verdadeiros selvagens nessa ilha. (N. da T.)

[15] Matemático alemão (1845-1918). Criou uma teoria de números irracionais, uma aritmética do infinito e a teoria dos conjuntos de pontos; introduziu os números transfinitos. (N. da T.)

[16] Reprodução fantasmagórica de uma pessoa viva. (N. da T.)

[17] Tabela em intervalos de tempo regularmente espaçados que fornece as coordenadas que definem a posição de um astro. (N. da T.)

[18] Decorrente da ingestão de intoxicantes. (N. da T.)

[19] Dito usado nas forças armadas americanas. (N. da T.)

[20] "Do início", em italiano. (N. da T.)

[21] Nome de um condado no Estado do Missouri. (N. da T.)

[22] Industrial Workers of the "World, sindicato de trabalhadores da indústria fundado em Chicago em 1905 e dissolvido em 1920. (N. do E.)

[23] Membro do WW. (N. da T.)

[24] De maçonaria. (N. da T.)

[25] Grande loja americana de vendas pelo correio. (N. da T.)

[26] Qualquer automóvel antigo, especialmente Ford. (N. da T.)

[27] Charles Evans Hughes (1862-1948). Governador de Nova York (1910-1916). Candidato à presidência, derrotado por Wilson em 1916.

[28] ² Robert Marion La Follette (1855-1925). Líder político americano. Governador do Wisconsin em 1900, 1902 e 1904. Senador em 1906. Contra a entrada dos EUA na Primeira Guerra. Candidato à presidência em 1924. Derrotado. (N. da T.)

[29] Cidade do condado de Boston, a oeste de Dade. (N. da T.)

[30] Agência de detetives particulares fundada em Chicago por Alan Pinkerton em 1850. (N. da T.)

[31] Kansas City. (N. da T.)

[32] Cidade do condado de McGraken, no Kentucky, à margem do rio Ohio. (K. da T.)

[33] Wilhelm Steinitz (1836-1900): campeão mundial de xadrez (1866-1894) derrotado por Emanuel Lasker em 1894-1896 (N da T.)

[34] Em heráldica, o escudo inclinado e a viseira do elmo aberta também indicam bastardia. (N. da T.)

[35] Romance de Francês Eliza Burnell, née Hodgson (1849-1924), escritora inglesa que emigrou para os EUA. Escrito em 1886. (N. da T.)

[36] Zimmermann, Arthur (1864-1940), ministro do exterior da Alemanha (1916-17): enviou em 16-1-1917 um telegrama informando o embaixador alemão no México da guerra submarina iminente e sem restrições, ordenando-lhe oferecer a aliança da Alemanha com o México e apoio para a reconquista dos territórios perdidos do Texas, Novo México e Arizona; o telegrama foi interceptado e decifrado pelo serviço de inteligência naval inglês e publicado a 1-3-1917 nos EUA e tornou-se um dos motivos principais que levaram este pais à guerra. (N. da T.)

[37] "Nem um vintém para a América'" Em francês no original (N. da T )

[38] Filha de Príamo e de Hécuba Recebeu de Apolo o dom de profetizar o futuro, mas depois faltou com a palavra ao deus, e este, para se vingar, fê-la passar por louca, de modo que ninguém acreditava em suas predições (N. da T.)

[39] San Francisco (N do E )

[40] Corruptela de "parlez-vous", ou "falo francês". (N. da T.)

[41] "Lá." Nome de uma famosa marcha militar americana da Primeira Guerra Mundial, de George Michael Cohan (1878-1942), autor também de I'm yankee doodle dandy. (N. da T.)

[42] Luta a pontapés, de origem francesa, segundo certas regras (N da T.)

[43] Recrutas ingleses. (N. da T.)

[44] Recrutas franceses. (N. da T.)

[45] Mulher de Ulisses e mãe de Telêmaco, na mitologia grega. Opôs uma recusa constante aos pedidos daqueles que pretendiam a sua mão durante a ausência de Ulisses, a qual durou vinte anos. Apelando para um recurso, prometeu jazer uma escolha assim que terminasse de bordar uma tela. Mas ela desmanchava à noite todo o trabalho do dia, sem nunca terminar, e manteve-se fiel ao marido (N. da T.)

[46] H. G. Wells (1866-1946), escritor inglês de romances científicos fantásticos como o acima mencionado (1895); O homem invisível (1897) e outros. (N. da T.)

[47] Cidade e universidade no condado de Phelps, no centro-sul do Missouri, (N da T )

[48] Palavras de Horácio (Odes, 1, 11, 8). Significam "Aproveitar o dia de hoje", pois a vida é curta. (N da T )

[49] Pequeno, insignificante. (N. da T.)

[50] Força Expedicionária Americana. (N. da T.)

 

 

 

 

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