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ANA KARÊNINA / Parte II
CAPÍTULO XV
As ruas ainda estavam desertas Levine dirigiu-se a casa dos Tcherbatski. A porta principal encontrava-se fechada e todos em casa dormiam. Voltou ao hotel, subiu ao quarto e pediu o pequeno almoço. O criado de dia, que já não era Iegor, veio servir-lho. Levine quis cavaquear com ele, mas alguém o chamou e o criado saiu Levine quis engolir uma gota de café e levou à boca um pedaço de bolo, mas os dentes não sabiam o que fazer dele. Cuspiu, enfiou o capote e voltou a sair Passava das nove quando chegou pela segunda vez defronte da residência dos Tcherbatski.
Havia pouco que as pessoas se tinham levantado em casa, o cozinheiro saía para fazer compras. Era preciso deixar passar, pelo menos, mais duas horas.
Toda a noite e aquela manhã as levara Levine em perfeita inconsciência, à margem das necessidades da vida. Não comera em todo o dia, estivera duas noites sem dormir, passara algumas horas meio despido, exposto ao ar gelado, e não só se sentia fresco e bem disposto como inteiramente desligado do corpo. Movia-se sem esforço muscular e tinha a sensação de ser capaz de fazer o que lhe aprouvesse. Estava certo de que, sendo preciso, poderia voar ou remover as paredes de uma casa. O tempo que o separava da hora almejada passou o a caminhar pelas ruas, consultando o relógio a cada momento e virando a cabeça para todos os lados.
O que então viu nunca mais o esqueceria. Chamaram lhe sobretudo a atenção uns garotos a caminho da escola, umas pombas azuis escuras de farinha que mão invisível expunha em certo escaparate. Esses bolos, essas pombas e esses garotos pareciam-lhe qualquer coisa de prodigioso. Um dos pequenos aproximou se de uma pomba e, sorrindo, olhou para Levine. A pomba agitou as asas e esvoaçou, brilhando ao sol, no meio da fina poeira de neve que pairava no ar, enquanto do escaparate se derramava um cheiro a pão fresco e a mão continuava a colocar os bolos. Era tudo tão agradável que Levine se pôs a rir e a chorar ao mesmo tempo. Depois de ter dado pela segunda vez uma grande volta, entrou no hotel, sentou se, pousou o relógio diante de si e esperou que marcasse meio dia. Os vizinhos de quarto discutiam máquinas e tossiam uma tossinha matinal aqueles desgraçados não compreendiam que o ponteiro do relógio estava quase no meio dia? Quando, finalmente, atingiram o número fatal, Levine precipitou-se para a rua. Imediatamente cocheiros de praça o rodearam, joviais, pois, evidentemente, sabiam tudo, disputando entre si a honra de o conduzirem. Escolheu um deles e, para que os outros não ficassem agastados, prometeu-lhes que da próxima vez lhes dana serviço. O cocheiro pareceu lhe um tipo magnífico, com a blusa branca a sair-lhe do cafetã e a sobressair lhe no pescoço vermelho e vigoroso. O trenó era alto e ligeiro, nunca mais voltaria a tomar um trenó assim. Também o cavalo era soberbo e procurava galopar, embora quase sempre no mesmo lugar. O cocheiro conhecia a casa dos Tcherbatski e para mostrar uma consideração muito especial para com o cliente fez estacar o cavalo diante da porta principal, de acordo com todas as regras da arte da boleia. Gritou "Hoo!" e fez com os braços um movimento circular. O guarda-portão também devia estar a par de tudo, via-se-lhe no olhar sorridente, na maneira como dizia:
- Ha muito tempo que não o víamos, Constantino Dimitrievitch.
E não só sabia tudo, como transbordava de alegria, procurando esconder a satisfação. Ao encontrar os olhos amáveis do velho, Levine sentiu algo de novo na sua alegria.
- Já estão levantados?
- Com certeza. Tenha a bondade de entrar... Pode deixar isso aqui - acrescentou, sorrindo, quando viu Levine retroceder na intenção de levar o gorro de pele.
- A quem o devo anunciar? - perguntou o criado.
Este, embora jovem e presumido, criado de novo estilo, afigurou-se-lhe um homem bondoso e simpático, que também compreendia tudo.
- À princesa... ao príncipe... à princesinha... -disse Levine.
A primeira pessoa que lhe apareceu foi Mademoiselle Linon: atravessara o salão, de caracóis e rosto resplandecente. Mal trocara com ela duas palavras, ouviu-se um frufru de saias junto à porta. Mademoiselle Linon precipitou-se pela outra porta, enquanto Levine se sentia penetrado de um temor radioso. Assim que a velha preceptora desaparecera, ouviram-se no parquete uns passinhos ligeiros. Aproximava-se rapidamente a felicidade, a vida, ele próprio, algo de melhor, o que tanto tempo procurara. Não caminhava; uma força invisível trazia tudo ao seu encontro.
Levine apenas viu aqueles dois olhos límpidos e sinceros, que cintilavam com essa mesma alegria que inundava o seu coração. E esses olhos, brilhando cada vez mais perto, quase o cegavam com o seu brilho. Ela pousou-lhe as duas mãos nos ombros. Dava-se inteira, trêmula e feliz. Apertou-a nos braços e os lábios uniram-se-lhes.
Também ela, após uma noite em claro, o esperava desde a manhã. Os pais estavam contentes e completamente de acordo. Espreitara a chegada do noivo, para ser a primeira a anunciar-lhe aquela felicidade; entretanto, envergonhada e confusa, não sabia muito bem como pôr em prática o projecto. Daí que, ao ouvir os passos e a voz de Levine, se tivesse escondido atrás da porta à espera que Mademoiselle Linon saísse. Então, sem pensar um segundo, aproximara-se de Levine e lançara-se-lhe nos braços.
- Agora vamos ter com a mãe - disse ela, pegando-lhe na mão.
Por muito tempo, Levine não foi capaz de abrir a boca, não tanto por recear conturbar com palavras a elevação daquele sentimento como porque de cada vez que o ia fazer notava que em lugar de palavras só tinha lágrimas de felicidade. Pegou na mão de Kitty e beijou-a.
- Será possível que seja verdade? - disse, por fim, em voz surda.
- Não posso acreditar que tu me queiras.
Kitty sorriu ao ouvir aquele tu e ao ver a expressão tímida com que Levine a fitara.
- Acredita! - pronunciou Kitty, com lentidão significativa. - Sou tão feliz!
E sempre de mãos dadas penetraram no salão. A princesa, ao vê-lo, perturbou-se e principiou a chorar, mas daí a pouco estava a rir. Caminhou ao encontro dos dois num passo tão enérgico que surpreendeu Levine, e, tomando a cabeça dele entre as mãos, beijou-o, humedecendo- lhe de lágrimas as faces.
- Assim tudo acabou pelo melhor! Estou contente! Ame-a muito! Estou contente... Kitty!
- As coisas arranjaram-se depressa! - exclamou o velho príncipe, procurando mostrar-se sereno. Levine notou, porém, que ele tinha os olhos húmidos quando se lhe dirigiu. - Há muito que o desejava. Sempre o desejei - acrescentou, pegando na mão de Levine e atraindo-o a si. - Já então, quando se meteu na cabeça desta desmiolada...
- Paizinho! - exclamou Kitty, tapando-lhe a boca com a mão.
- Bom, bom, calar-me-ei.. Estou muito, muito... Meu Deus, que tolo eu sou!
O príncipe abraçou Kitty, beijou-a no rosto, nas mãos e beijando- lhe de novo as faces, abençoou-a. E um novo sentimento de afecto para com aquele homem invadiu Levine quando viu com que ternura Kitty lhe beijava longamente a grossa mão musculosa.
CAPÍTULO XVI
A princesa, numa poltrona, calava e sorria; o príncipe sentara-se junto dela. Kitty continuava ao lado do pai, sempre com a mão dele na sua. Todos se calavam.
A princesa foi a primeira a dar o seu verdadeiro nome às coisas e, pondo de lado os sentimentos, falou de problemas vitais. A todos, no primeiro momento, isso pareceu doloroso.
- Pois bem, agora temos de pensar em casar estas crianças em boa e devida forma e em anunciar o casamento. Para quando a boda? Que te parece, Alexandre?
- Neste assunto, ele é a personagem principal - disse o velho príncipe, apontando para Levine.
- Quando? - perguntou este, corando.- Amanhã! Visto que me perguntam, dir-lhes-ei que a bênção pode ser hoje e a boda amanhã.
- Ora, mon cher, não diga tolices.
- Bom, dentro de uma semana.
- Não há dúvida de que está doido.
- Mas porquê?
- E o enxoval? - exclamou a mãe, a quem a impaciência de Levine fizera sorrir.
"Será indispensável enxoval e tudo o mais?", pensou Levine, horrorizado, "Mas nem o enxoval, nem o noivado, nem o resto poderão empanar esta felicidade." Olhou para Kitty e verificou que a ideia do enxoval a não perturbara. "Então é preciso", pensou.
- Eu não sei nada. Apenas expus os meus desejos - replicou, desculpando-se.
- Depois falaremos. De momento, podemos proceder à bênção e anunciar o casamento.
A princesa aproximou-se do marido, beijou-o e fez menção de sair; mas este deteve-a, e abraçando-a com meiguice, como um jovem enamorado, beijou-a por sua vez uma e mais vezes, sorrindo. Ao que parecia, os velhos pensavam serem eles os noivos. Quando saíram, Levine aproximou-se da noiva e pegou-lhe na mão. Dominara-se finalmente e podia falar. Tinha muito que dizer. No entanto, disse coisas de todo em todo diferentes das que pensava dizer.
- Sabia que isto tinha de ser assim - afirmou. - Sem nunca ter ousado esperá-lo, no fundo da minha alma estava convencido de que assim seria. Estava escrito no livro do destino.
- E eu - murmurou Kitty -, melhor então... -Calou-se e depois continuou olhando-o, resoluta, com os seus olhos sinceros. - Mesmo então, quando me recusei a aceitar a felicidade, era a si que amava. Obedeci a um capricho. Tenho o dever de lho dizer. Poderá esquecê-lo?
- Talvez tenha sido melhor assim. Também tem de me perdoar certas coisas, pois devo confessar-lhe que...
Levine tinha decidido contar-lhe tudo desde o princípio: que não era tão puro como ela, nem era crente. Seria penoso dizer-lhe, mas considerava um dever confessar-lho.
- Não; agora não. Depois... - disse.
- Bom, então depois, mas há-de dizer-mo, sem falta. Não tenho medo de nada. Deve dizer tudo. Agora tudo está resolvido. Levine completou a frase.
- Está resolvido que me receberá tal como eu sou...? Que não me repelirá? É verdade?
- Sim, sim, é verdade.
A conversa foi interrompida por Mademoiselle Linon, que vinha felicitar a discípula predilecta, com um sorriso meigo, embora fingido. Ainda ela não saíra da sala, chegaram os criados também para felicitar Kitty. Depois vieram os parentes, o que deu princípio a uma confusão que submergiu Levine num estado de bem-aventurança de que não emergiu até ao dia seguinte ao da boda. Sentia-se enfadado e aborrecido, posto que fosse cada vez maior a sua felicidade. Vivia sob a permanente impressão de que lhe exigiam muitas coisas que ele não sabia fazer, embora as realizasse todas, e isso dava-lhe grande satisfação. Tendo pensado que o seu noivado seria diferente de todos, e que afinal se cumpria dentro das circunstâncias tradicionais, supunha ver empanada a felicidade que sentia. Contudo, passando exactamente por onde todos os demais noivos passavam, a sua felicidade atingia proporções extraordinárias.
- Agora - sugeria Mademoiselle Linon -, vamos comer muitos bombons. - E lá ia Levine comprar bombons.
- As minhas felicitações - exclamou Sviajski. - Aconselho-o a comprar as flores no Fomine.
O irmão disse-lhe que pedisse dinheiro emprestado, pois teria de fazer muitas despesas, dar muitos presentes.
- Tenho de dar presentes? - E Levine foi a correr à joalharia
Fouldé.
Tanto na confeitaria como na casa Fomine e na joalharia Fouldé, Levine teve a impressão de que o esperavam e que se sentiam contentes por compartilhar da felicidade dele, como, aliás, todos com quem privava naqueles dias. Era extraordinário não só como todos o estimavam, mas até mesmo como aqueles que lhe tinham parecido antipáticos, frios e indiferentes pareciam entusiasmados com ele. Obedeciam-lhe em tudo, mostravam-se delicados para com os seus sentimentos amorosos e participavam da convicção em que ele vivia, de que era o ser mais feliz do mundo, uma vez que tinha por noiva a perfeição personificada. Kitty sentia o mesmo. Quando a condessa Nordston se permitiu insinuar que teria desejado algo melhor para Kitty, esta exaltou-se, demonstrando-lhe, de maneira convincente, não haver no mundo homem melhor do que Levine. A condessa viu-se obrigada a concordar e na presença de Kitty sempre acolhia Levine cem um sorriso de admiração.
A circunstância mais penosa por que teve de passar naquela altura foi a explicação que prometera a Kitty. Depois de consultar o velho príncipe, com o seu consentimento, confiou a Kitty o diário onde anotara o que o atormentava. Escrevera-o com o pensamento na futura noiva. Duas coisas o torturavam: o facto de não estar puro e de não crer em Deus. Esta última confissão passou por assim dizer inadvertida. Kitty era religiosa, nunca duvidara das verdades da religião, mas a falta de fé do noivo deixava-a indiferente. Esse coração, que o amor lhe revelara, continha tudo o que ela precisava. Pouco se lhe dava que Levine considerasse de incrédulo o seu estado de consciência. Pelo contrário, a outra confidência fê-la chorar muitas lágrimas.
Levine confiara o diário a Kitty, após prolongada luta consigo mesmo. Era de opinião que entre eles não devia haver segredos. Por isso decidiu entregar-lho. Não pensou, contudo, no efeito que produziria, pois não podia identificar-se com Kitty. Uma noite, ao chegar a casa dos Tcherbatski preparado para ir ao teatro, entrou nos aposentos de Kitty e viu que ela tinha o lindo rosto lavado em lágrimas, mercê da pena irreparável que essa leitura lhe causara. Só então compreendeu o abismo que havia entre o seu vergonhoso passado e a pureza imaculada da noiva. E sentiu-se horrorizado com o que fizera.
- Leve-o, leve daí esse horrível diário! - exclamou Kitty, afastando os cadernos que tinha diante de si, em cima da mesa. - Para que me deu isto? Não, não, assim foi melhor - acrescentou, compadecida, ao ver o desespero que se pintara no rosto de Levine. - É horrível, horrível!
Levine baixou a cabeça e permaneceu calado. Nada podia fazer.
- Não me perdoará? - perguntou, num suspiro.
- Perdôo, já perdoei, mas é horrível!
No entanto, a felicidade de Levine era tão grande que aquele desgosto a não pôde afectar e até lhe deu um novo matiz. Kitty perdoara-lhe, mas desde então considerava-se menos digno dela, ainda a reverenciava mais e apreciava como nunca a ventura imerecida que lhe era dada.
CAPÍTULO XVII
Ao voltar para o seu quarto solitário, Alexei Alexandrovitch recordou, involuntariamente, as conversas daquela noite. As palavras de Dolly incitando-o a perdoar tinham-no apenas enfurecido. Aplicar ou não ao seu caso as normas religiosas era um problema árduo, de que se não podia falar de ânimo leve, e havia já algum tempo que Karenine o resolvera de modo negativo. De tudo o que se dissera em casa de Oblonski as palavras que maior impressão lhe tinham produzido foram as do bondoso e néscio Turovtsine: "Portou-se como um valente. Desafiou-o e matou-o." Naturalmente era a opinião de todos, embora a não manifestassem por cortesia.
"Por outro lado, o assunto está resolvido. Não há mais nada a acrescentar-lhe", disse Alexei Alexandrovitch. Meditando na sua futura viagem e no problema que ia estudar, subiu para os seus aposentos, perguntando pelo criado ao guarda-portão que o acompanhava. Dizendo- lhe este que acabava de sair, Karenine pediu que lhe servissem chá, sentou-se à mesa e principiou a estudar no guia dos caminhos de ferro o itinerário da viagem.
- Vieram dois telegramas - disse o criado, que entretanto penetrara no aposento. - Queira perdoar-me, Excelência, por eu ter saído.
Alexei Alexandrovitch pegou nos telegramas e abriu-os. O primeiro anunciava-lhe que Stremov fora nomeado para um cargo cobiçado por Karenine. Atirou fora o telegrama, corou, levantou-se e pôs-se a percorrer o quarto de um lado para o outro. "Quos vult perdere Júpiter dementai prius"(Nota 41), disse entre dentes, e os quos eram as pessoas que tinham concorrido para semelhante nomeação. Não lhe doía o facto de lhe não terem confiado esse cargo, de o terem deixado à margem; estranhava, porém, e afigurava-se-lhe incompreensível, que não dessem conta de que esse charlatão do Stremov era a criatura menos apta para o desempenhar. Pois não compreendiam que com aquela nomeação se prejudicavam, e prejudicavam, inclusive, o seu próprio prestígio?
"Deve ser qualquer coisa no mesmo estilo", disse de si para consigo, enquanto abria o segundo telegrama. Era da mulher. A primeira coisa que lhe saltou à vista foi o nome "Ana", escrito a lápis azul.
Estou à morte. Rogo-lhe, suplico-lhe que venha. Morrerei mais tranqüila com o seu perdão.
Leu Karenine. Sorriu desdenhosamente e atirou fora o telegrama.
No primeiro momento, persuadiu-se de que se tratava de uma astúcia, de um ludíbrio.
"Não se deterá de nenhuma mentira. Deve estar para dar à luz. Talvez seja isso. Qual o seu propósito? Que eu reconheça a criança, comprometendo-me e impedindo assim o divórcio. Mas está ali escrito: "Estou à morte..." Tornou a ler o telegrama. E desta vez impressionou-o o sentido concreto do seu conteúdo. "E se fosse verdade?", disse de si para consigo. "Se fosse verdade que num momento de sofrimento, ante a morte próxima, se arrependesse sinceramente, e eu, pensando ser uma fraude, me negasse a ir? Não só seria crueldade que todos me censurariam, mas resultaria mesmo em estupidez da minha parte."
- Pedro, uma carruagem. Vou a Sampetersburgo - disse para o criado. Decidira ir a Sampetersburgo ver a mulher. Se se tratasse de um ludíbrio, voltaria sem falar com ela. Se realmente estivesse doente, se estivesse à morte e desejasse vê-lo antes de morrer, perdoar-lhe-ia. Caso chegasse tarde de mais, pelo menos cumpriria os seus últimos deveres para com ela.
Durante todo o caminho não pensou noutra coisa senão no que ia fazer. Cansado e com a sensação de pouco asseio, depois de uma noite inteira no comboio, Karenine seguia de carro, no meio da névoa matinal de Sampetersburgo, ao longo da deserta Perspectiva Nevski, os olhos fitos na sua frente, sem pensar no que o esperava. Impossível pensar nisso. Ao imaginar o que iria acontecer, não podia arredar do espírito a ideia de que a morte decidiria da dificuldade em que se encontrava. Atentava nos padeiros, nas lojas fechadas, nos cocheiros estremunhados, nos porteiros que varriam os passeios, e olhava para tudo isso, procurando afogar no seu foro íntimo a imagem do que talvez fosse acontecer, do que não quereria desejar e apesar de tudo desejava. Chegou à porta de casa. Um trem de aluguer e outro particular, cujo cocheiro dormitava, estavam junto à escada do alpendre.
Ainda na rua, Alexei Alexandrovitch, num grande esforço sobre si mesmo, arrancou do escaninho mais recôndito do cérebro uma decisão que podia formular-se deste modo: "Se ela me enganou, manterei uma calma desdenhosa e voltar-lhe-ei as costas; se falou verdade, respeitarei as conversações."
A porta abriu-se antes de Karenine ter tocado. O porteiro, Petrov, a quem chamavam Kaptitonitch, oferecia um aspecto estranho, sem gravata, com um velho redingote pelas costas e de pantufas nos pés.
- A senhora como está?
- Deu ontem à luz, felizmente.
Alexei Alexandrovitch deteve-se e empalideceu. Naquele momento compreendeu até que ponto desejara a morte de Ana.
- E de saúde?
Kornei, com o seu avental das limpezas, descia as escadas a correr.
- Muito mal - respondeu Kornei. - Ontem houve conferências de médicos, e o senhor doutor está no quarto.
- Tirem as malas do carro - ordenou Alexei Alexandrovitch.
E experimentando certo alívio ao ouvir aquela notícia, visto que a esperança da morte subsistia, penetrou no vestíbulo.
No bengaleiro havia um capote militar. Ao vê-lo, Karenine perguntou:
- Quem está aqui em casa?
- O médico, a parteira e o conde Vronski.
Alexei Alexandrovitch penetrou no interior da casa.
No salão não havia ninguém. Ao ouvir os passos de Karenine, a parteira, com uma touca de fitas lilases, saiu do toucador.
Aproximou-se de Alexei Alexandrovitch e com a familiaridade que dá a eminência da morte, arrastou-o consigo, travando-o pelo braço.
- Graças a Deus que chegou. Não faz outra coisa senão pronunciar o seu nome - disse ela.
- Tragam já o gelo - ordenou o médico, de dentro do quarto, em voz autoritária.
Karenine penetrou no toucador de Ana. Ao pé da mesa, sentado de lado numa cadeira baixa, estava Vronski, que chorava com o rosto oculto nas mãos. Ao ouvir a voz do médico, afastou as mãos do rosto e levantou-se de chofre. Vendo, porém, o marido de Ana, tão perturbado ficou que voltou a sentar-se, enterrando a cabeça entre os ombros, como se quisesse desaparecer. Num esforço sobre si mesmo, contudo, pôs-se de novo em pé e disse:
- Está à morte. Os médicos dizem que não há esperança. Tem-me inteiramente à sua disposição, consinta, porém, que permaneça aqui... Pode fazer de mim o que quiser, eu...
Ao ver as lágrimas de Vronski, Karenine sentiu-se tolhido pela perturbação que sempre lhe produzia o sofrimento dos outros. Voltando o rosto, e sem acabar de ouvir o que ele dizia, dirigiu-se precipitadamente para a porta. Do quarto de dormir vinha a voz de Ana. Era alegre, animada, e com inflexões muito definidas. Alexei Alexandrovitch entrou e aproximou-se do leito. Ana, deitada, tinha o rosto voltado para ele; as faces ardiam, os olhos brilhavam e as suas pequenas mãos brancas, emergindo dos punhos da camisa de noite, brincavam com a franja da colcha, retorcendo-a. Não só parecia fresca e de perfeita saúde, mas na mais feliz disposição de espírito. Falava depressa, em voz sonora e em inflexões muito precisas e cheias de sentimento.
- Porque o Alexei (Alexei Alexandrovitch, claro; que estranho e terrível é o destino, não é verdade? Ambos Alexei!) não mo negaria. Eu esqueceria tudo e ele perdoava-me... Mas porque não vem? É bom, nem sequer sabe que é bom. Ai, meu Deus! Que pena! Dá-me água! Que pressa! Oh! Será ele mau para minha filha? Sim, então levem-na a casa de uma ama. Acho melhor. Há-de custar-lhe vê-la quando chegar. Levem-na!
- Ana Arkadievna, já chegou, está aqui - disse a parteira, procurando chamar a atenção de Ana para o marido.
- Oh! Que absurdo! - continuou Ana, sem ver Karenine. - Tragam-me aqui a menina. Sim, tragam-na. Ele ainda não veio. Dizem que ele não me perdoa porque o não conhecem. Ninguém o conhecia. Só eu, e era-me penoso. É preciso conhecer-lhe os olhos. Seriocha também os tem assim, e por isso o não pode ver. Deram de comer ao Seriocha? Estou convencida de que se esquecem dele. Ele não se teria esquecido. Têm de mudar o Seriocha para outro quarto. E dizer à Mariette que durma aqui.
De súbito, teve uma contracção, calou-se e, com uma visagem de espanto, como se aguardasse que lhe vibrassem um golpe e quisesse defender-se, cobriu o rosto com as mãos. Tinha visto o marido.
- Não, não! Não é dele que tenho medo, é da morte! Tenho pressa, o tempo é pouco, tenho pouco tempo de vida. Vai-me subir outra vez a febre e já não compreenderei nada. Neste momento entendo tudo e vejo tudo.
O rosto contraído de Alexei Alexandrovitch adoptou uma expressão de sofrimento; quis dizer qualquer coisa, mas foi incapaz. Tremia-lhe o lábio inferior, sempre lutando com a emoção que o tomava. Só de quando em quando olhava para a mulher. De cada vez que a fitava, via os olhos de Ana que o olhavam com uma doçura e um enternecimento como nunca em sua vida assim os vira.
- Espera, não sabes... Espera, espera - e Ana calou-se, como para concentrar as ideias. - Sim, sim, sim - principiou -, era isso que eu queria dizer. Não te surpreenda veres-me. Sou a mesma de antes... mas em mim há outra e tenho medo dela! Essa enamorou-se de um homem, e eu quis odiar-lhe, mas não pude esquecer a que era antes... Agora sou toda inteira, verdadeiramente eu, não a outra. Morro, sei que vou morrer. Perguntem-lhe a ele. Sinto um peso nos braços, nas pernas e nos dedos. Olha que dedos tão grandes! Mas tudo isto acabará, não tarda... Só preciso de uma coisa: que me perdoes, que me perdoes de todo. Sou terrível, mas a minha ama dizia-me que uma santa mártir, como se chamava ela?, foi pior. Irei a Roma, há ali um deserto, e então não incomodarei ninguém. Só levarei comigo o Seriocha e a menina... Não, não me podes perdoar, sei que isto não se pode perdoar. Não, não, vai-te, és bom de mais. - Ana agarrava com uma das suas mãos ardentes a mão do marido, enquanto com a outra o repelia.
A perturbação de Alexei Alexandrovitch ia crescendo sempre e a um tal grau chegou que cessou de lutar consigo mesmo. De súbito, percebeu que aquela sensação era um estado de espírito beatífico, que lhe proporcionava uma nova felicidade, felicidade que nunca experimentara antes. Não acreditava que a doutrina cristã, que toda a vida quisera seguir, lhe ordenava que perdoasse aos inimigos e os amasse; e eis que um estranho sentimento de amor e perdão lhe inundava a alma. Ajoelhado junto da cama, a testa apoiada contra esse braço que escaldava de febre e o queimava através da camisa de noite, soluçava como uma criança. Ana debruçou-se para ele, envolveu no seu braço a cabeça calva do marido e ergueu os olhos, num desafio.
- É ele, eu bem sabia! E agora adeus, adeus a todos... Lá vem outra vez. Por que não se vão embora? Tira-me essas peles de cima!
O médico voltou a deitá-la, suavemente, nos travesseiros, tendo o cuidado de lhe cobrir os braços e os ombros. Ana deixou que a deitassem sem resistência, o olhar fixo diante de si.
- Lembra-te de uma coisa: só precisava do teu perdão, não peço mais nada... Porque não vem ele? - continuou, voltada para a porta onde estava Vronski - Aproxima-te, aproxima-te! Dá-lhe a mão.
Vronski aproximou-se do leito e, ao ver Ana, voltou a tapar o rosto com as mãos.
- Destapa o rosto e olha para ele! É um santo - disse Ana.- Anda, destapa o rosto, destapa o rosto! - repetia, irritada. - Alexei Alexandrovitch, destapa-lhe o rosto. Quero vê-lo.
Karenine retirou as mãos de Vronski, afastando-lhas do rosto, terrível na sua expressão de dor e vergonha.
- Dá-lhe a mão. Perdoa-lhe.
Karenine estendeu a mão a Vronski, sem poder conter as lágrimas que lhe saltavam dos olhos.
- Graças a Deus! Graças a Deus! - exclamou Ana. - Agora tudo está arranjado. Só quero esticar um pouco as pernas. Assim, assim estou muito bem. Que feias são essas flores. Não parecem violetas - continuou, apontando para o papel que forrava as paredes do quarto. - Meu Deus!
Meu Deus! Quando acabará isto! Morfina, doutor, morfina. Oh, meu Deus, meu Deus!
O médico assistente e os demais que a viram disseram que se tratava de uma febre puerperal, em que noventa e nove por cento dos casos são mortais. Ana passou todo o dia com febre, delirando e em estado de inconsciência. À meia-noite perdeu os sentidos e o pulso quase não batia.
Esperava-se a todo o momento que acabasse.
Vronski foi a casa, mas pela manhã apareceu para saber do estado de Ana. Alexei Alexandrovitch, que veio ao seu encontro no vestíbulo, disse-lhe:
- Fique. Talvez pergunte pelo senhor.
E ele próprio o acompanhou ao quarto da mulher.
Ana principiou a agitar-se de novo, mostrou-se animada, falou depressa e finalmente voltou a ficar inconsciente. No terceiro dia sucedeu o mesmo, mas os médicos disseram que havia esperanças. Naquele mesmo dia Alexei Alexandrovitch entrou no toucador onde estava Vronski, e depois de fechar a porta sentou-se diante dele.
- Alexei Alexandrovitch - disse Vronski, dando-se conta de que se aproximava o momento da explicação -, não posso falar. De momento não sou capaz de falar nem de compreender. Tenha piedade de mim! Por maior que seja o seu sofrimento, pode crer que o meu ainda é muito mais terrível!
Fez menção de se levantar, mas Karenine, pegando-lhe pela mão, disse-lhe:
- Peco-lhe que me escute, é necessário. Tenho de expor-lhe os sentimentos que me têm guiado e hão-de guiar-me, para que se não equivoque a meu respeito. Sabe que resolvi pedir o divórcio e que, outrossim, já principiei a tratar do caso. Confesso-lhe que de princípio vacilei e sofri muito, que me perseguia o desejo de vingar-me do senhor e dela. Ao receber o telegrama, vim com os mesmos sentimentos, e mais: desejei a morte de Ana, mas... - Calou-se, hesitante, sem saber se devia desvendar-lhe o sentimento que o movia - vi-o, porém, e perdoei-lhe. E a felicidade que senti com o facto de o ter feito diz-me qual o meu dever. Perdoei-lhe sem reservas. Quero oferecer a outra face, quero dar a camisa a quem me tira o cafetã. Só peço a Deus que me não roube a dita de perdoar!
As lágrimas inundaram os olhos de Karenine e o seu olhar claro e sereno surpreendeu Vronski.
- É esta a minha opinião. Pode espezinhar-me na lama, fazer de mim objecto de irrisão diante do mundo, mas não abandonarei a Ana e nunca lhe dirigirei a si uma palavra de censura - continuou Karenine. - O meu dever está claramente traçado a meus olhos: devo permanecer ao lado dela e assim farei. Se ela quiser vê-lo, avisá-lo-ei; agora, porém, parece-me melhor que se retire.
Karenine levantou-se e os soluços interromperam-lhe as últimas palavras. Vronski também se levantou e sem erguer o busto, prostrado, olhou para Karenine, de cabeça baixa. Não compreendia os sentimentos de Alexei Alexandrovitch, pressentia, contudo, que eram elevados e mesmo inacessíveis para ele.
CAPÍTULO XVIII
Depois da sua conversa com Karenine, Vronski veio para o alpendre e deteve-se, procurando, com grande esforço, recordar-se onde estava e para onde devia ir. Sentia-se envergonhado, culpado, humilhado e sem possibilidade de fazer desaparecer aquela humilhação. Via-se projectado para fora do caminho que até então seguira tão facilmente e com tanto orgulho. Todas as regras que tinham servido de base à sua vida e que ele supunha inatacáveis revelaram se lhe agora falsas e mentirosas. O marido enganado, essa triste personagem que ele considerava um obstáculo acidental, e por vezes cômico, à sua felicidade, acabava de ser elevado por "ela" a uma altura que inspirava respeito. Em vez de ridículo mostrava-se simples, grande e generoso. Os papéis estavam trocados Vronski não podia iludir-se. De um lado, a grandeza e a rectidão de Karenine, do outro a sua própria baixeza Aquele marido enganado surgia magnânimo na sua dor, enquanto ele próprio se via pequeno e miserável. No entanto, este sentimento de inferioridade em relação a um homem que ele tão injustamente desprezara só em muito pequena parte entrava no acabrunhamento que experimentava. O que lhe causava tamanho desespero era a ideia de perder Ana para sempre. A paixão que supusera, por momentos, apaziguara se, reanimava se mais violenta do que nunca. A doença de Ana dera lhe ocasião de conhecê-la melhor e afigurava- se-lhe nunca lhe ter querido tanto. E agora que a conhecia e amava realmente, ia perdê-la, restando-lhe apenas a mais abjecta e humilhante das recordações. Lembrava, horrorizado, o momento ridículo e odioso em que Alexei Alexandrovitch lhe afastara as mãos do rosto, destapando-lhe a face que ele cobria Imóvel no alpendre, dir-se-ia ter perdido a consciência dos seus próprios actos.
- Quer que chame um trem? - perguntou-lhe o guarda-portão.
- Isso mesmo, um trem.
De regresso a casa, Vronski, esgotado por três noites de insônia, estendeu se sem se despir em cima de um divã. Descansava a cabeça fatigada nos braços cruzados. As reminiscências, os pensamentos, as impressões mais estranhas sucediam-se-lhe no espírito com uma rapidez e uma lucidez extraordinárias. Ora se via a dar uma poção à doente, com a colher derramando o líquido, ora diante de si descobria as brancas mãos da parteira ou ainda atentava em Alexei Alexandrovitch estranhamente ajoelhado no chão junto ao leito.
"Dormir! Esquecer!", dizia de si para consigo com a serena resolução de um homem são, certo de, em caso de fadiga, poder adormecer à vontade. E, com efeito, naquele mesmo instante tudo se lhe confundiu no cérebro e principiou a afundar-se no precipício da inconsciência. As ondas do mar da vida inconsciente envolviam-lhe a cabeça quando de súbito lhe pareceu que uma forte corrente eléctrica se lhe descarregava sobre o corpo. Estremeceu, e de tal sorte que deu um salto em cima das molas do divã e, apoiando-se nas mãos, ficou de joelhos, muito assustado Tinha os olhos desmesuradamente abertos, como se não tivesse pensado em dormir Repentinamente desapareceram lhe o peso da cabeça e a. flacidez dos músculos.
"Pode arrastar-me pela lama." Estas palavras de Alexei Alexandrovitch ressoaram lhe aos ouvidos e viu o diante de si. Via o rosto ardente de Ana, com os seus olhos brilhantes, que não o olhavam, a ele, com doçura e amor, mas a Alexei Alexandrovitch. Viu a sua própria figura, sem dúvida estúpida e ridícula, quando Karenine lhe destapou o rosto. Esticou de novo as pernas e atirou se para cima do divã, na posição anterior, fechando os olhos.
"Quero dormir, quero dormir!", repetiu para si mesmo. Mas, de olhos fechados, ainda via mais nitidamente o rosto de Ana, tal como era na memorável tarde das corridas.
- É impossível, isso não voltará mais. Ana quer banir me do seu pensamento E eu, em compensação, não posso viver sem ela. Como reconciliarmo-nos, como reconciliarmo-nos? - disse Vronski em voz alta, repetindo, conscientemente, e por várias vezes, as mesmas palavras. O facto de o fazer evitava que se lhe representassem de novo na imaginação imagens e recordações que lhe assaltavam o cérebro. Mas não por muito tempo. De novo lhe assaltaram o espírito, com extraordinária rapidez, uns atrás dos outros, os momentos felizes, e com eles a recente humilhação por que passara "Destapa o rosto", dizia a voz de Ana. Ao destapar o rosto dava se conta de que o seu aspecto era ridículo e humilhante.
Continuava deitado no divã, procurando dormir. Mas percebia baldada a esperança de o conseguir, e sem cessar repetia para si mesmo palavras ao acaso, para assim evitar que novas imagens lhe aparecessem. Prestou atenção e ouviu as seguintes palavras, pronunciadas num murmúrio estranho e enlouquecedor "Não a soubeste apreciar nem tirar partido dela. Não a soubeste apreciar nem tirar partido dela".
"Que é isto? Vou enlouquecer?", perguntou a si próprio "Talvez. Por que enlouquecem as pessoas? Por que se suicidam?", dizia e, abrindo os olhos, viu, com assombro, junto à cabeça, a almofada bordada por Vária, a mulher do irmão. Apalpou a borla da almofada, procurando lembrar se de Vária tal como a vira da última vez. Mas o facto de pensar em alguma coisa alheia ao que o torturava, tornava-se-lhe doloroso "Não, devo dormir." Puxou a almofada e encostou nela a cabeça, mas foi obrigado a fazer um grande esforço para manter os olhos fechados. Levantou-se de um salto e ficou sentado no divã "Isto acabou para mim", disse "É preciso pensar no que devo fazer. Que me resta?" E perpassou-lhe, rápida, por diante dos olhos, a sua vida com Ana.
"A ambição? Serpukovski? A sociedade? A Corte?" Não conseguiu fixar o pensamento em coisa alguma. Tudo aquilo tivera antes significado, mas agora, não. Levantou-se, tirou o dólman, desabotoou o cinturão para permitir ao vasto peito respirar mais livremente e pôs-se a andar de um lado para outro "É assim que as pessoas enlouquecem", repetiu "É assim que se suicidam para não se envergonharem", acrescentou lentamente.
Aproximou se da porta e fechou-a. Em seguida, de olhar fixo e dentes cerrados, dirigiu se à mesa e pegou no revólver. Depois de o examinar, armou o e ficou a cismar. Dois minutos esteve imóvel, a cabeça baixa, a expressão concentrada, o revólver na mão "Certamente", disse de si para consigo, como se o curso de um pensamento lógico e prolongado o tivesse conduzido a uma conclusão indiscutível. Na verdade, aquele convicto "certamente" era apenas conseqüência da repetição do mesmo círculo de recordações e imagens por que passara várias dezenas de vezes no espaço de uma hora as mesmas lembranças de uma felicidade perdida para sempre, a mesma ideia de que tudo carecia de finalidade na sua vida futura e a mesma consciência da humilhação por que passara. E também a mesma sucessão de imagens e de sentimentos.
"Certamente", repetiu ao vir lhe à mente pela terceira vez aquele círculo mágico de recordações e pensamentos. Apoiou o cano do revólver na parte esquerda do peito, contraiu nervosamente a mão, como se apertasse o punho, e premiu o gatilho. Não ouviu a detonação, mas uma violenta pancada no peito fê-lo vacilar. Procurou amparar-se à borda da mesa, largou o revólver e, cambaleando, sentou se no chão a olhar, surpreendido, à sua roda. Não reconhecia o quarto, ao ver dali debaixo os pés retorcidos da secretária, o cesto dos papéis e a pele de tigre. Os passos rápidos e rangentes do criado que atravessava a sala obrigaram no a vir a si. Fez um esforço mental e compreendeu que estava no chão. Ao ver sangue na pele de tigre e na mão, recordou se de que disparara contra si.
"Que estupidez! Falhei o tiro", murmurou, procurando apanhar o revólver com a mão. A arma estava junto de si, mas Vronski apalpava mais adiante. Prosseguiu na busca, esticou se para o outro lado e, sem forças para conservar se em equilíbrio, tombou para o chão, banhado em sangue.
O criado, personagem elegante, que usava suíças e costumava queixar-se aos amigos da delicadeza dos nervos, tão aterrado se sentiu ao ver o amo que o deixou por terra e saiu à procura de socorros. Uma hora depois, Vária, a cunhada de Vronski, chegava, e com o auxílio de três médicos, que conseguira juntar, apelando para três pontos distintos da cidade, conseguiu deitar o ferido, quedando-se a seu lado para o tratar.
CAPÍTULO XIX
Alexei Alexandrovitch não previra que a mulher dana provas de arrependimento sincero, que obteria o seu perdão e... se restabeleceria.
Dois meses após o seu regresso de Moscovo, este erro evidenciou-se-lhe em toda a sua gravidade. Era um erro que se fundamentava menos na falta de cálculo do que no descobrimento do seu próprio coração Junto ao leito da mulher agonizante, pela primeira vez na sua vida se abandonara a esse sentimento de comiseração pelas dores alheias contra que sempre lutara como se luta contra uma fraqueza perigosa. Os remorsos que sentia por ter desejado a morte de Ana, a piedade que ela lhe inspirava e acima de tudo o próprio sentimento de felicidade que lhe vinha do perdão concedido haviam convertido uma fonte de sofrimento num manancial de alegria tudo o que no seu ódio e na sua cólera julgava inextrincável, se tornava claro e simples, agora que amava e que perdoava.
Perdoara à mulher e apiedava se dela pelo muito que sofria e se arrependia. Perdoara a Vronski e igualmente se apiedava dele depois do seu acto de desespero. Tinha pena do filho e mais pena do que até então, pois se acusava a si mesmo de o ter menosprezado. Quanto à recém- nascida, essa inspirava-lhe mais do que piedade verdadeira ternura. Ao ver aquela criança débil abandonada durante a doença da mãe, consagrou-se a ela e salvou a da morte, dedicando se lhe sem dar por isso. A criada e a ama, que o viam entrar várias vezes ao dia no quarto das crianças, intimidadas de princípio, acabaram por habituar se a vê-lo. Ficava, às vezes, meia hora a contemplar o rostozinho vermelho, cor de açafrão, gorduchinho e enrugado, da pequenina criatura adormecida, e seguia lhe os movimentos da testa plissada, observando-lhe as mãozinhas cheias, que esfregavam o nariz e os olhos. Nesses momentos Alexei Alexandrovitch sentia-se tranqüilo, em paz consigo mesmo, e não dava pelo que havia de anormal na situação.
Mas, à medida que o tempo passava via, com maior nitidez, que, por mais natural que se lhe afigurasse aquele estado de coisas, continuar assim não era possível. Dava se conta de que para além da bondosa força moral que lhe estimulava a alma, outra força havia, vulgar, e tão forte ou mais forte que lhe guiava a vida e lhe permitiria desfrutar daquela tranqüilidade pacífica que tanto desejava. Notava que era olhado por todos com surpresa e interrogação, que o não compreendiam e que esperavam dele alguma atitude. E acima de tudo notava a inconsciência e a pouca naturalidade das suas relações com a mulher.
Quando se desvaneceu esse enternecimento que a vizinhança da morte facilita, Alexei Alexandrovitch principiou a dar se conta de que Ana tinha medo dele, que se não sentia à vontade na sua presença e que não ousava olhá-lo nos olhos. Era como se quisesse dizer lhe qualquer coisa, sem coragem para isso, e também como se pressentisse que as suas relações não podiam continuar assim e aguardasse da sua parte uma solução qualquer.
Em fins de Fevereiro, a recém nascida, Ana também, adoeceu Alexei Alexandrovitch, que fora pela manhã ao quarto das crianças, depois de ordenar que chamassem o médico, seguiu para o Ministério. Concluído que foi o seu trabalho, voltou para casa quando já passava das três horas. Ao penetrar no vestíbulo, viu um criado pernalta com uma libré guarnecida de pele de urso, que tinha debaixo do braço uma capa de pele branca.
- Quem é que esta aí? - perguntou Karenine.
- A princesa Isabel Fiodorovna Tverskaia - respondeu o criado, sorrindo, que assim se lhe afigurou.
Durante toda aquela penosa quadra, Karenine notara, da parte das suas relações mundanas, sobretudo femininas, um interesse muito particular, tanto por ele como pela mulher. Observara em toda essa gente aquela espécie de alegria mal dissimulada que encontrara nos olhos do advogado e que via agora nos do lacaio. Se lhe perguntavam pela saúde, dir se ia que os seus interlocutores pareciam encantados, era como se alguém fosse casar-se.
A presença da princesa não podia agradar a Alexei Alexandrovitch não só nunca lhe fora afeiçoado, como lhe vinha trazer desagradáveis recordações. Eis por que foi direito ao quarto das crianças. Na antecâmara, Seriocha, deitado em ama da mesa e com os pés sobre a cadeira, desenhava, tagarelando alegremente. Sentada junto dele, a preceptora inglesa, que substituía a francesa, então à cabeceira de Ana, fazia crochet. Assim que viu entrar Karenine, levantou se, fez uma vênia e pôs Seriocha na cadeira Alexei Alexandrovitch acariciou a cabeça do filho, respondeu às perguntas da preceptora acerca do estado da senhora e perguntou qual a opinião do médico a respeito do baby.
- Disse que não era nada de cuidado, Excelência. Mandou dar-lhe uns banhos.
- Mas continua a queixar se - observou Alexei Alexandrovitch, ouvindo os vagidos da criança no quarto contíguo.
- Acho que a ama não é das melhores - notou, resolutamente, a inglesa.
- Porquê? - inquiriu Karenine, detendo se.
- Está a suceder o que sucedeu em casa da condessa Pol, Excelência Tratavam a criança com remédios, mas o que ela sentia era fome a ama estava sem leite.
Alexei Alexandrovitch pensou um momento e daí a pouco entrava no segundo quarto. A pequenina chorava, deitada nos braços da ama, a cabeça atirada para trás e recusando o seio que ela lhe dava. Nem a criada nem a ama conseguiam sossegá-la.
- Não está melhor? - perguntou Alexei Alexandrovitch.
- Está muito agitada - respondeu a criada a meia voz.
- Miss Edward é de opinião que a ama não tem leite.
- Também acho, Alexei Alexandrovitch.
- Porque o não disse?
- A quem o havia de dizer? Ana Arkadievna está doente - respondeu a criada, velha na casa, em tom irritado. E esta frase muito simples, de novo se lhe afigurou uma referência à situação dele.
A criança cada vez chorava mais, sufocando, enrouquecendo. A criada teve um movimento de impaciência e, tirando a criança dos braços da ama, pôs se a passeá-la, baloiçando-a.
- É preciso dizer ao médico que examine a ama. Receosa de perder o seu lugar, esta, mulher de aparência robusta, e bem vestida, disse qualquer coisa a meia voz. A ideia de que lhe faltasse leite levou-a a ter um sorriso de desdém, que Karenine interpretou de novo à sua maneira.
- Pobre menina! - exclamou a criada, que procurava sossegar a criança.
Alexei Alexandrovitch sentou se e ficou por momentos a seguir com a vista os movimentos da criada. Quando finalmente essa se afastou, depois de deitar a criança no berço e de lhe ajeitar o travesseiro, levantou- se, aproximou se na ponta dos pés, ficou se a observá-la, por instantes, sem dizer nada e sempre com o mesmo ar prostrado. De súbito, um sorriso lhe perpassou pelo rosto, saindo do quarto muito suavemente. Uma vez na sala de jantar, tocou a campainha e mandou chamar o médico. Pouco contente por ver como a mulher abandonava aquela criança encantadora, não queria ir ao quarto dela, tanto mais que não teria prazer algum em encontrar se com a princesa. No entanto, como Ana poderia estranhar que ele alterasse o habito em que estava, recalcando os seus ressentimentos, dirigiu se para o quarto de dormir da mulher. Ao aproximar se, como o espesso tapete amortecesse o ruído dos passos, ouviu umas palavras que o impressionaram.
- Se ele não se fosse embora, compreenderia a tua negativa e a dele Mas o teu marido deve estar acima disso - dizia Betsy.
- Não se trata do meu marido, mas de mim, não me fales mais em semelhante coisa - murmurava Ana em voz comovida.
- Será possível que não queiras tornar a ver o homem que quis matar-se por tua causa?
- É precisamente por isso que eu o não quero tornar a ver.
Alexei Alexandrovitch parou perturbadíssimo, e pensou mesmo retroceder; reconhecendo, porém, que essa fuga era pouco digna, seguiu avante, tossicando. As vozes calaram-se e ele penetrou no quarto. Ana, com um penteador cinzento, os espessos cabelos pretos cortados rentes, que cresciam em forma de escova, estava sentada num canapé. Toda a sua animação desapareceu, como de costume, mal o marido entrou. Baixou a cabeça, relanceando um olhar inquieto a Betsy. Esta, vestida ao rigor da moda, tinha um chapéu minúsculo, que mais parecia um abat-jour, pousado no alto da cabeça, e um vestido cor de pombo com riscas diagonais, à frente, no CP pinho e atrás, na saia. Sentada junto de Ana mantinha erguido quanto possível o busto chato. Acolheu Alexei Alexandrovitch com uma inclinação de cabeça e um sorriso irônico.
- Oh! - exclamou ela, como que surpreendida. - Muito prazer em vê-lo. Não aparece em parte nenhuma. Desde que Ana adoeceu que o não tinha tornado a ver. Mas soube dos cuidados que teve com ela. Que marido extraordinário!
Disse isto num tom significativo, e afectuoso, como se lhe conferisse uma condecoração pela magnanimidade do seu procedimento para com Ana.
Alexei Alexandrovitch baixou-lhe friamente a cabeça e, depois de beijar a mão à mulher, perguntou-lhe como se sentia.
- Acho que estou melhor - disse Ana, evitando-lhe o olhar.
- Estás tão corada que parece que tens febre - disse Karenine, repisando a palavra "febre".
- Falámos de mais - observou Betsy. - Compreendo que foi egoísmo da minha parte. Vou-me embora já.
Levantou-se; mas Ana, corando de repente, reteve-a pela mão.
- Não, fica, peço-te. Tenho de te dizer... Não, a ti - acrescentou, dirigindo-se a Alexei Alexandrovitch, e um vivo rubor lhe cobriu a testa e o colo. - Não quero nem posso ocultar-te nada.
Alexei Alexandrovitch fez estalar os dedos e baixou a cabeça.
- A Betsy disse-me que o conde Vronski queria vir despedir-se antes de partir para Tachkent. - Falava depressa, sem olhar para o marido, desejosa de acabar. - Respondi que o não queria receber.
- Querida, disseste que isso dependeria de Alexei Alexandrovitch - corrigiu Betsy.
- Mas não, não posso recebê-lo, e, também, isso não serviria para nada... - Ana calou-se repentinamente e olhou para o marido com uma expressão interrogativa (ele não olhava para ela). - Numa palavra: não quero.
Alexei Alexandrovitch levantou-se e, aproximando-se dela, fez menção de lhe tomar uma das mãos.
Num primeiro impulso, Ana recusou a mão do marido, mão húmida e com grandes veias intumescidas. Porém, num esforço evidente sobre si mesma, apertou-a.
- Agradeço muito a tua confiança; mas... - replicou Karenine, perturbando-se, e compreendo, enfadado, que aquilo que facilmente podia ter dito a sós não lhe era possível dizê-lo diante da princesa Tverskaia. Esta representava para ele a personificação dessa força vulgar que teria de guiar-lhe a vida aos olhos do mundo, impedindo-o de se entregar ao sentimento de perdão e de amor. Deteve-se, fitando a princesa Tverskaia.
- Então adeus, querida amiga - disse Betsy, levantando-se. Beijou Ana e saiu. Karenine acompanhou-a.
- Alexei Alexandrovitch, considero-o um homem generoso e sincero - disse Betsy, detendo-se no quarto de toucador e apertando a mão de Karenine de maneira significativa. - Sou uma estranha, mas estimo tanto a Ana e aprecio-o tanto ao senhor que me atrevo a dar-lhe um conselho. Alexei Vronski é a personificação da honra. Vai para Tachkent. Receba-o.
- Agradeço o seu interesse e os seus conselhos, princesa, mas só a minha mulher pertence decidir se pode ou não receber seja quem for.
Karenine pronunciou estas palavras arqueando as sobrancelhas, numa expressão de dignidade, como era seu costume. Imediatamente, porém, pensou que, fossem quais fossem as suas palavras, não estava em situação compatível com atitudes de grande dignidade. O sorriso contido, irônico e malévolo com que Betsy acolheu a sua frase claramente lho demonstrou.
CAPÍTULO XX
Alexei Alexandrovitch acompanhou Betsy até ao salão, despediu-se dela e voltou para junto da mulher. Ana estava deitada, mas, ao ouvir os passos do marido, deu-se pressa em retomar a postura anterior e olhou para ele, assustada. Alexei Alexandrovitch notou que ela tinha chorado.
- Agradeço-te muito a confiança que depuseste em mim - disse ele, timidamente. E repetindo, em russo, a resposta que dera em francês a Betsy, sentou-se ao lado de Ana (aquela sua maneira de a tratar por tu quando falava russo tinha o condão de irritar Ana). Sim - continuou, sentando-se junto dela -, estou muito reconhecido pela decisão que tomaste. Penso, como tu, que desde que o conde Vronski se vai embora, não há necessidade de o receber. Aliás...
- Mas se eu já o disse, para que havemos de tornar a falar nisso?
- interrompeu Ana, com uma irritação que não soube evitar. "De facto não há necessidade", pensou ela, "de um homem que se quis matar querer dizer adeus à mulher a quem ama e que pelo seu lado não pode viver sem ele!"
Apertou os lábios e baixou os olhos para as grossas mãos que o marido esfregava, lentamente, uma na outra.
- Não falemos mais nisso - acrescentou ela, em tom mais sereno.
- Deixei que fosses tu a resolver esse problema com toda a liberdade, e sinto-me feliz por ver...
- Que os meus desejos estão de acordo com os seus - concluiu Ana, agastada de o ouvir falar tão pausadamente quando ela sabia de antemão tudo o que havia a dizer.
- Sim - confirmou ele -, e a princesa Tvetskaia faz mal em imiscuir-se, a despropósito, em penosos assuntos de família, ela sobretudo que...
- Não acredito em coisa alguma do que se diz, e ela estima-me sinceramente.
Alexei Alexandrovitch suspirou e calou-se. Ana agitava nervosamente o cordão do penteador e olhava-o de vez em quando com esse sentimento de repulsa física que não podia deixar de se censurar a si própria, embora fosse incapaz de o dominar. A presença daquele homem era-lhe odiosa e não pensava noutra coisa senão em ver-se livre dele o mais depressa possível.
- Acabo de mandar chamar o médico - disse, por fim, Alexei Alexandrovitch.
- Para quê? Sinto-me bem.
- Para a menina que está a chorar muito; parece que a ama tem pouco leite.
- Por que não consentiste que eu a amamentasse, quando eu pedi tanto que me deixassem experimentar? Apesar de tudo (Karenine percebeu o que ela queria dizer com esse "apesar de tudo") é uma criança e acabarão por matá-la. - Ana chamou a criada e mandou que lhe trouxessem a menina. - Pedi que ma deixassem criar, não mo consentiram, e agora censuram-me por isso...
- Não te censuro nada...
- Sim! Acho que sim, que me censura! Meu Deus, por que não morri eu? - E rompeu em soluços. - Perdoe-me, estou nervosa, sou injusta - continuou ela, procurando dominar-se. - Mas vai-te embora...
"Não, isto não pode continuar assim", disse, resolutamente, Karenine, ao sair do quarto da mulher.
Nunca se lhe apresentara tão claramente como naquele momento ser-lhe impossível manter semelhante situação perante & sociedade, e Ana nunca deixara transparecer com tamanha evidência a repulsa que ele lhe inspirava. E também nunca se lhe revelara tão flagrantemente o poder dessa misteriosa força brutal que, ao arrepio das aspirações da sua alma, lhe dirigia impetuosamente a vida, exigindo dele uma mudança de atitude em relação à mulher. Tanto a sociedade como a mulher exigiam dele algo que não compreendia bem, mas que lhe despertavam no coração uma revolta que acabaria por destruir o mérito da vitória que tivera sobre si próprio.
Embora de opinião que Ana devia romper com Vronski, estava disposto, se todos achassem impossível semelhante rompimento, a tolerar as suas relações, desde que as crianças continuassem junto dele, ao abrigo dos salpicos de lama, e mudança alguma viesse a operar-se na sua própria existência.
Esta solução, por mais abjecta que fosse, seria melhor do que um rompimento, o qual, jogando Ana para uma situação vergonhosa e sem saída, acabasse de privá-lo a ele de tudo o que amava. Porém, sentia-se sem forças na luta, sabendo de antemão todos contra ele e prontos a impedirem-no de fazer o que lhe parecia tão natural e tão sensato, para o obrigarem ao que consideravam um dever.
CAPÍTULO XXI
À porta do salão, Betsy encontrara-se com Stepane Arkadievitch, que acabava de chegar do Elisseiev, onde tinham recebido ostras frescas.
- Oh, princesa! Que agradável encontro! - exclamou ele. - Estive em sua casa.
- O encontro não será longo: vou-me embora - respondeu Betsy, sorrindo, enquanto abotoava uma das luvas,
- Um momento, princesa, antes de calçar a luva permita que lhe beije a encantadora mãozinha. Não há nada de que eu mais goste nas antigas modas do que este costume de beijar a mão às senhoras.
Beijou a mão de Betsy.
- Quando nos tornaremos a ver?
- Não o merece muito - respondeu Betsy, sempre a sorrir.
- Oh, mereço, sim! Estou feito o mais sério dos homens: não só trato das minhas coisas pessoais, mas até das dos outros - disse ele, com importância.
- Realmente? Estou maravilhada - respondeu Betsy, percebendo que se referia a Ana.
E, voltando para dentro do salão, arrastou Oblonski para um canto da casa
- Acabara por matá-la - murmurou ela, convencida -, isto e impossível, impossível!
- Ainda bem que pensa assim - respondeu Stepane Arkadievitch, abanando a cabeça numa comiseração cheia de simpatia - Foi por isso que vim a Moscovo
- Todos falam no caso. A situação é intolerável. A desgraçada esta a consumir se a olhos vistos. Ele não compreende que ela pertence ao numero das mulheres cujos sentimentos não podem servir de joguete. De duas uma ou a leva daqui para fora procedendo energicamente ou pede o divorcio. De contrario esta situação acaba com ela.
- Sim, sim é verdade - disse Oblonski suspirando - Foi para isso que eu vim ou antes, não, não inteiramente por isso Acabo de ser nomeado camarista e tenho que apresentar os agradecimentos a quem de direito Mas o mais importante é resolver este assunto.
- Pois bem, que Deus o ajude - disse Betsy.
Oblonski acompanhou a ate a porta, tornou a beijar lhe a mão um pouco acima do canhão da luva, ali onde bate o pulso e dizendo lhe uma inconveniência de tal quilate que Betsy ficou sem saber se deveria ofender se ou sorrir, deixou a e dirigiu se para o quarto da irmã.
Encontrou a lavada em lagrimas.
Apesar do seu estado de espírito jovial, que espalhava alegria por onde passava, Stepane Arkadievitch adoptou, com naturalidade, o tom poeticamente exaltado que convinha aos sentimentos de Ana. Perguntou lhe pela saúde e como passara essa manhã.
- Muito mal, muito mal. Passei mal a manhã, passei mal o dia, e todos os dias tenho passado mal e assim hão de ser também os dias que estão para vir - respondeu lhe ela.
- Parece me que te entregas demasiado à melancolia. É preciso reagires. Faz se mister olhar a vida cara a cara. Bem sei que custa muito mais.
- Ouvi dizer que as mulheres amam os homens até nos seus vícios - principiou Ana, de repente -, pois eu, pelo contrário, odeio até na virtude. Não posso viver com ele. Compreendê-lo é algo que actua sobre mim fisicamente e me faz perder o domínio de mim mesma. É me impossível, completamente impossível, viver com ele. Que hei de eu fazer? Era desgraçada e pensava não ser possível vir a sê-lo mais do que já era. Não podia sequer imaginar o que sofro agora. Queres crer? Apesar de saber que é um homem bom e virtuoso, odeio-o! Odeio o pela sua própria magnanimidade. Nada me resta senão - quis dizer a morte, mas Stepane Arkadievitch não a deixou concluir.
- Estás doente e excitada - disse-lhe -, exageras muitíssimo A situação não é tão horrível como tu dizes.
E Stepane Arkadievitch sortiu. Ninguém no seu lugar, ao tratar de assunto tão desesperado, se teria permitido sorrir (pareceria extemporâneo) , mas no seu sorriso, de uma ternura quase feminina, havia tamanha bondade que não podia considerar se ofensivo. Pelo contrário, amenizava, era quase sedativo. As suas apaziguadoras palavras e o seu sorriso agiam tão suavemente como óleo de amêndoas doces Ana imediatamente o sentiu.
- Não, Stiva- disse - Estou perdida, estou perdida, pior ainda. Ainda não morri nem posso dizer que tudo tenha terminado. Pelo contrario, sinto que ainda não terminou. Sou como uma corda tensa que tem de acabar por partir. Ainda não cheguei ao fim mas há-de ser terrível.
- Não, não, a corda pode ir se distendendo, pouco a pouco. Não há situação que não tenha uma saída.
- Pensei muito. Só há uma.
Stepane Arkadievitch compreendeu pelo olhar de Ana que a saída a que se referia era a morte, e não consentiu que terminasse a frase.
- Nada disso - replicou - Dá licença. Tu não podes considerar a tua situação como eu. Permite me que te diga sinceramente a minha opinião - voltou a sorrir, cauteloso, com o seu sorriso de óleo de amêndoas doces - Começarei pelo princípio casaste te com um homem vinte anos mais velho do que tu, sem amor e sem conheceres o amor. Suponhamos que tenha sido este o teu erro.
- Erro pavoroso! - exclamou Ana.
- Mas, repito, este é um facto consumado Depois tiveste a infelicidade de te enamorares de outro. Foi uma desgraça, mas é também um facto consumado. Teu marido veio a sabê-lo, e perdoou te - Stepane Arkadievitch fazia uma pausa depois de cada frase, à espera que Ana objectasse qualquer coisa, mas ela nada dizia - As coisas estão neste pé. A questão estriba se agora em saber se podes continuar a viver com teu marido, se é esse o teu desejo e se esse é o desejo dele.
- Não sei nada, não sei nada.
- Mas tu própria me disseste que o não podias suportar.
- Não, não o disse. Retiro as minhas palavras Não sei nem entendo nada.
- Sim, mas permite.
- Tu não podes compreender. Sinto que caí de cabeça para baixo até ao fundo de um precipício e que nada devo fazer para me salvar. Não posso.
- Pouco importa. Teremos o cuidado de pôr qualquer coisa lá no fundo e de te apanharmos no ar. Compreendo te, compreendo que não possas decidir-te a exprimir o teu desejo nem os teus sentimentos.
- Não desejo nada, não desejo nada. Apenas que tudo isto acabe.
- Mas ele vê e sabe o que há, julgas que sofre menos do que tu? Atormentas te a ti e a ele. Que pode resultar de tudo isto? Em compensação, o divórcio tudo soluciona - concluiu, não sem esforço, Stepane Arkadievitch.
Exprimira a sua ideia fundamental e agora olhava para Ana com uma expressão significativa.
Ana, sem responder, moveu negativamente a cabeça de cabelos aparados. Mas pela expressão do seu rosto, repentinamente iluminada de beleza antiga, Oblonski compreendeu que, se o não desejava, era apenas por considerar tal solução uma felicidade inacessível.
- Tenho muita pena de vocês! Que feliz seria se pudesse dar-lhes remédio - exclamou Stepane Arkadievitch, sorrindo com mais resolução
- Não me digas nada, não me digas nada! Se Deus me permitisse dizer as coisas como as sinto. Vou falar com o teu marido.
Ana fitou o irmão, com olhos brilhantes e pensativos, e não lhe disse nada.
CAPÍTULO XXII
Stepane Arkadievitch entrou no escritório de Karenine naquela atitude um tanto solene com que costumava ocupar a poltrona de presidente das sessões da sua auditoria. Alexei Alexandrovitch, de mãos atrás das costas, passeava de um lado para o outro, pensando nisso mesmo em que Oblonski falara com Ana.
- Incomodo-te? - perguntou Stepane Arkadievitch, ao ver que o cunhado ficara perturbado, coisa insólita nele.
Para disfarçar, Karenine puxou de uma cigarreira especial que acabara de comprar, cheirou a e tirou um cigarro.
- Não. Precisas de alguma coisa? - respondeu, sem pressa,
Alexei Alexandrovitch.
- Preciso. Queria. Necessitava de sim, queria falar-te - respondeu Stepane Arkadievitch, surpreendido por se sentir cada vez mais intimidado. Aquele sentimento era nele tão inesperado, tão estranho, que a Oblonski não ocorreu que podia ser a voz da consciência a dizer lhe que ia cometer qualquer acção má. Com um grande esforço, venceu a timidez que o inibia.
- Espero que acredites no carinho que tenho pela minha irmã e no respeito e afecto sinceros que te tributo - disse, corando.
Alexei Alexandrovitch parou sem responder, mas a sua expressão de vítima resignada impressionou Oblonski.
- Pois bem - continuou ele incapaz de recuperar a serenidade
- Eu tinha a intenção de te falar de minha irmã e da situação dos dois.
Alexei Alexandrovitch olhou para o cunhado com um sorriso triste e, sem lhe responder, pegou numa carta inacabada que estava em cima da mesa e apresentou lha.
- Não penso noutra coisa - disse ele, por fim. - Aqui tens o que eu procurei dizer lhe, pensando que me exprimiria melhor por escrito, pois a minha presença a irrita.
Stepane Arkadievitch considerou com espanto os olhos ternos do cunhado fitos nele, pegou no papel e leu-o.
Vejo que a minha presença lhe 2 desagradável; por mais penosa que me seja reconhecê-lo, é isto que verifico e que não pode ser de outra maneira. Não a censuro de nada. Só Deus sabe que durante a sua doença tomei a firme resolução de esquecer o fossado e de principiar vida nova. Não me arrependo, nunca me arrependerei do que então fiz. Mas era a sua salvação, a salvação da sua alma que eu desejava, e verifico que o não consegui. Peço lhe que me diga o que lhe poderia restituir a paz e a felicidade. Desde já me submeto ao sentimento de justiça que porventura guiar a sua decisão.
Stepane Arkadievitch voltou a entregar a carta ao cunhado e continuou a observá-lo cheio de perplexidade, sem saber que dizer. Aquele silêncio era penoso para os dois. Os lábios de Oblonski tremiam.
- Aqui tem o que eu queria fazer lhe saber - pronunciou, enfim, Karenine, voltando-se.
- Sim... sim... - balbuciou Stepane Arkadievitch, que sentia um soluço na garganta - Sim - pôde, finalmente, dizer -, compreendo.
- Que quer ela?, eis o que eu gostaria de saber.
- Receio que nem ela própria o saiba Ela não pode ser juiz na questão - disse Oblonski, procurando dominar se - Está arrasada, literalmente arrasada pela grandeza da tua alma Se ela ler a tua carta, será incapaz de responder e não fará senão vergar ainda mais a cabeça.
- Mas então que hei de eu fazer? Como explicar lhe? Como conhecer-lhe os desejos?
- Se me autorizas a emitir a minha opinião, a ti compete apontares claramente as medidas que achas susceptíveis de resolver de vez a situação.
- Por conseguinte, entendes que é preciso resolver de vez a situação? - interrompeu Karenine - Mas como? - acrescentou, passando a mão por diante dos olhos, num gesto seu habitual - Não vejo saída possível...
- Todas as situações têm uma saída - disse Oblonski, levantando-se e arrumando-se a pouco e pouco - Pensaste outrora no divórcio Se estás convencido de que a felicidade é impossível entre vocês.
- Pode conceber-se a felicidade de maneiras muito diferentes Admitamos que aceito tudo - como vamos nós sair desta situação?
- Queres a minha opinião - disse Stepane Arkadievitch com o mesmo sorriso untuoso que tivera para a irmã. E esse sorriso era tão persuasivo que Karenine, cedendo à fraqueza que o invadia, sentiu-se inteiramente predisposto a acreditar em tudo o que o cunhado lhe dissesse. - Ela nunca dirá o que quer. Mas não pode desejar senão uma coisa romper os laços que lhe lembram cruéis recordações. Na minha opinião, é indispensável tornar as suas relações mais claras, o que não pode conseguir-se senão retomando cada um de vocês a sua respectiva liberdade.
- O divórcio! - interrompeu com repugnância.
- Sim, acho que sim, o divórcio sim, é isso mesmo, o divórcio - repetiu Stepane Arkadievitch, corando - A todos os títulos é o partido mais sensato, quando dois cônjuges se encontram na situação em que vocês se encontram. Que se há-de fazer, quando a vida em comum se torna intolerável? E isso são coisas que acontecem muitas vezes Alexei Alexandrovitch soltou um profundo suspiro e tapou os olhos com as mãos.
- Só há uma coisa a ter em consideração quererá um dos dois cônjuges, sim ou não, contrair novo matrimônio? Se a resposta é não, o divórcio não oferece dificuldade alguma - continuou Stepane Arkadievitch cada vez mais à vontade.
Alexei Alexandrovitch, a fisionomia conturbada pela emoção, murmurou qualquer coisa entre dentes, mas não respondeu. Aquilo que a Stepane Arkadievitch se lhe afigurava tão simples já ele o pensara milhares de vezes. E não só o não considerava simples, mas completamente impossível. O divórcio, cujos pormenores conhecia já, parecia-lhe impossível agora, porque o sentimento da sua própria dignidade e o respeito pela religião não lhe permitiam assumir a responsabilidade de um adultério fictício e muito menos ainda tolerar que a sua própria mulher, a quem perdoara e a quem amava, viesse a ser considerada culpada e vilipendiada. O divórcio parecia-lhe impossível, além disso, por outros motivos ainda mais importantes.
Que seria de seu filho se se divorciasse? Era impossível deixá-lo com a mãe. A mãe, divorciada, constituiria uma família ilegítima, em que a situação do enteado não poderia deixar de ser má. Ficar ele com o filho? Seria vingança da sua parte e não desejava vingar-se. E sobretudo parecia-lhe o divórcio impossível, pois, consentindo nele, tornar se ia responsável da perdição de Ana. Tinham-lhe calado fundo na alma as palavras que lhe dissera Daria Alexandrovna em Moscovo, quando lhe fizera ver que, pedindo o divórcio, só em si próprio pensava, provocando desse modo a definitiva perdição da mulher. Relacionando essas palavras com o facto de ter perdoado e o carinho que sentia pelas crianças, interpretava as agora à sua maneira. Se consentisse no divórcio, deixava Ana completamente livre, isto é, rompia os últimos laços que o prendiam à vida - as crianças a quem tanto queria -, acabava com o último apoio com que contava no caminho do bem, empurrando-a para o abismo. Uma vez divorciada, Karenine tinha a certeza de que Ana se lançaria nos braços de Vronski, tornando se ilegítimas e culposas as suas relações, visto que, segundo a lei da Igreja, a mulher não pode ter outro marido enquanto viver o primeiro "Ana juntar-se á com ele, um ou dois anos depois Vronski abandona-la-á ou ela passará a ter relações com outro", pensava Alexei Alexandrovitch "E eu, consentindo nesse divórcio lícito, serei o responsável da sua perdição." Karenine pensara em tudo isto milhares de vezes e estava convencido de que o problema do divórcio não só não era simples, como afirmara o cunhado, mas mesmo impraticável. Embora não acreditasse nas palavras de Oblonski e tivesse muitas objecções a fazer-lhe, ouvia-o, certo de que nessas palavras se traduzia aquela força poderosa e trivial que lhe orientava a vida e a que teria de submeter-se.
- Só resta saber agora as condições em que consentes no divórcio. Ela nada quer. Nada se atreve a pedir-te e submeter-se-á à tua magnanimidade.
"Meu Deus! Meu Deus! Por que me castigas assim?", suspirou Alexei Alexandrovitch, recordando-se dos pormenores do divórcio em que o marido tomava a responsabilidade, e, num gesto idêntico ao de Vronski, tapou o rosto com as mãos, tamanha a vergonha que sentia.
- Estás perturbado, compreendo o perfeitamente. Mas, se pensares bem...
"Oferece a face esquerda a quem te esbofetear a direita e dá a camisa a quem te tiver tirado o cafetã", pensou Alexei Alexandrovitch.
- Sim, sim - exclamou em voz aguda - A vergonha será minha, ceder-lhe-ei mesmo o meu filho, mas não será melhor que deixemos isso? De resto, faz o que tu quiseres.
E, voltando as costas ao cunhado, de molde a não o ver, sentou se numa cadeira junto à janela. Sentia amargura e uma grande vergonha, se bem que ao mesmo tempo o tomassem a alegria e o enternecimento que vinham da consciência da sua própria humildade.
Stepane Arkadievitch estava comovido Permanecia calado.
- Alexei Alexandrovitch, acredita. Ana saberá apreciar a tua magnanimidade - disse, por fim - Esta é a vontade divina - acrescentou, e, ao pronunciar estas palavras, percebendo que dissera uma tolice só a muito custo conseguiu reprimir um sorriso.
Karenine quis responder-lhe qualquer coisa, as lágrimas, porém, embargaram-lhe a voz.
- É uma desgraça fatal e o remédio é aceitá-la. Aceito-a como um facto consumado e procurarei ajudá-los a ambos - disse Stepane Arkadievitch.
Quando saiu do escritório do cunhado, embora se sentisse comovido, também experimentava uma certa alegria, a alegria de ter conseguido resolver a situação com pleno êxito, persuadido como estava de que Alexei Alexandrovitch nunca voltaria com a palavra atrás. E a uma tal situação vinha associar-se a ideia de que, uma vez tudo aquilo acabado, poderia dizer à mulher e aos amigos íntimos: "Onde está a diferença entre mim e um marechal de campo? Pois bem: enquanto um marechal de campo comanda uma parada sem benefício para ninguém, eu consigo um divórcio com que se beneficiam três pessoas. Ou então, em que é que nos parecemos, um marechal de campo e eu?... Quando... Bom, há-de ocorrer qualquer coisa melhor", concluiu para si mesmo, sorrindo.
CAPÍTULO XXIII
A ferida de Vronski era perigosa, embora a bala não tivesse atingido o coração. Durante alguns dias esteve entre a vida e a morte.
Quando pôde falar pela primeira vez, só Vária, a mulher do irmão, se encontrava à sua cabeceira.
- Vária - disse Vronski, fitando-a com uma expressão grave -, a arma disparou-se por casualidade. Peço-te que digas isso mesmo a todos e que não faças comentários. De outra forma, seria demasiado estúpido.
Sem lhe responder, Vária debruçou-se para ele e fitou-o com um sorriso de contentamento. Os olhos de Vronski estavam claros, não febris, mas a expressão era grave.
- Louvado seja Deus! - exclamou Vária. - Dói-te alguma coisa?
- Aqui, um bocado - e Vronski apontou a arca do peito.
- Então, vou mudar-te o penso.
Vronski, em silêncio, comprimia as fortes mandíbulas, enquanto Vária lhe mudava o penso. Quando acabou, Vronski disse-lhe:
- Não estou a delirar. Peço-te que procures que se não diga que disparei deliberadamente.
- Ninguém diz semelhante coisa. Mas espero que não voltes a disparar sem querer - comentou Vária, interrogativa, com um sorriso.
- É provável que o não faça, embora tivesse sido melhor...
E Vronski sorriu tristemente.
Apesar destas palavras e do sorriso que as sublinhou, coisa que tanto assustou Vária, logo que a inflamação decresceu e principiou a melhorar, Vronski sentiu que se libertara por completo de uma parte das suas.
Jogo de palavras: em russo, divórcio e parada designam-se com o mesmo termo: aflições. Com o acto que praticara, afigurava-se-lhe ter sanado a vergonha e a humilhação por que passara. Agora podia pensar tranqüilamente em Alexei Alexandrovitch. Reconhecia-lhe a grandeza de alma e já não se sentia humilhado. Aliás, entrou de novo na engrenagem da sua vida anterior. Admitia a possibilidade de fitar as pessoas nos olhos sem pejo e de retomar a sua vida habitual de acordo com os princípios que a regiam. A única dor que não podia arrancar do coração, apesar da luta que constantemente travava contra esse desesperado sentimento, era a dor de ter perdido Ana para sempre. Resolvera, firmemente, que uma vez que expiara a sua falta perante Karenine, devia renunciar a Ana e não mais se interpor entre a mulher arrependida e o marido. Não conseguia, porém, arrancar do coração a mágoa que lhe causava a perda desse amor nem esquecer de todo os momentos felizes passados com Ana, momentos que tão pouco apreciara então e agora o perseguiam com todo o seu sortilégio. Serpukovski conseguiu que lhe oferecessem uma missão em Tachkent, e Vronski aceitou-a sem vacilar. Mas à medida que se aproximava a data da partida mais penoso se lhe revelava o sacrifício que fazia no altar do dever.
A ferida curou-se. Vronski já saía de casa para tratar dos preparativos da jornada.
"Vê-la ainda uma vez, e depois enterrar-me, morrer!", pensava. Quando foi despedir-se de Betsy disse-lhe isso mesmo.
Com essa embaixada deslocou-se Betsy a casa de Ana e de lá voltou com resposta negativa.
"Tanto melhor", murmurou Vronski com os seus botões, ao receber a resposta. "Era uma fraqueza que me teria consumido as últimas forças." No dia seguinte, pela manhã, Betsy foi a casa de Vronski. Comunicou-lhe que recebera, por intermédio de Stepane Arkadievitch, a certeza de que Karenine consentia no divórcio e que, portanto, ele podia encontrar-se com Ana.
Sem se preocupar sequer em conduzir Betsy até à porta, esquecido de todas as resoluções que tomara e sem inquirir quando podia visitar Ana e onde estaria o marido, dirigiu-se imediatamente a casa dos Karenine. Subiu a escada correndo, sem ver nada nem ninguém, e, em passo rápido, incapaz de o reprimir, penetrou nos aposentos de Ana. Não procurou saber se havia ou não alguém no quarto e estreitou Ana nos braços, cobrindo-lhe de beijos o rosto, as mãos e o colo. Ana tinha estudado a forma de o receber e pensara no que lhe diria; ele, contudo, não lhe deu tempo para nada. A paixão de Vronski apoderou-se dela também. Teria querido aquietá-lo e aquietar-se a si própria, mas já era tarde. O sentimento de Vronski comunicara-se-lhe. De tal modo lhe tremiam os lábios, que por muito tempo não pôde dizer nada. - Sim, conquistaste-me, sou tua - pronunciou, finalmente, apertando contra o seio as mãos de Vronski.
- Tinha de ser assim - replicou este. - Enquanto vivermos terá de ser assim. Agora tenho a certeza.
- É verdade - confirmou Ana, empalidecendo cada vez mais e enleando a cabeça de Vronski. - No entanto, há qualquer coisa de terrível em tudo isto, depois do que se passou.
- Tudo passará, tudo passará, e seremos felizes. O nosso amor, se pudesse crescer, cresceria, pois há nele qualquer coisa de terrível - replicou Vronski, levantando a cabeça e mostrando os fortes dentes na boca que sorria.
E Ana não pôde deixar de responder com um sorriso, não às palavras de Vronski, mas aos seus olhos enamorados. Pegou-lhe numa das mãos e com ela afagou a sua própria face muito fria e os seus cabelos curtos.
- Não te reconheço com esses cabelos cortados. Estás muito melhor. Pareces um garoto. Mas que pálida!
- Sim, estou muito fraca - respondeu Ana, sorrindo. E de novo lhe tremeram os lábios.
- Iremos a Itália. Restabelecer-te-ás.
- Será possível que possamos viver como marido e mulher, os dois sós, uma família? - perguntou Ana, fitando-o nos olhos, muito próximo dele.
- A única coisa que me surpreende é que alguma v"z tenha podido ser de outra maneira.
- Stiva disse que ele consente em tudo, mas não posso aceitar a sua. magnanimidade - tornou Ana, olhando-o, pensativa, mais para além de Vronski. - Não quero pedir o divórcio. Agora é o mesmo para mim. Só não sei o que ele irá decidir a respeito de Seriocha.
Vronski não compreendeu que Ana, durante aquela entrevista, pudesse pensar no filho e no divórcio. Porventura teria isso alguma importância?
- Não fales em semelhante coisa, não penses nisso - disse-lhe, pegando-lhe na mão e procurando distraí-la. Mas Ana continuou sem olhar para ele.
- Oh! Porque não morri eu? Teria sido melhor! - exclamou ela, e lágrimas silenciosas lhe deslizaram pelo rosto. No entanto, procurou sorrir para não entristecer Vronski.
Até então, Vronski teria julgado impossível subtrair-se à lisonjeira e perigosa missão de Tachkent. Agora, pelo contrário, recusou-a sem hesitar. E ao dar-se conta de que a recusa fora mal interpretada nas altas esferas, pediu a exoneração.
Um mês depois, Alexei Alexandrovitch ficava só com o filho, enquanto Ana partia para o estrangeiro na companhia de Vronski, depois de ter renunciado definitivamente ao divórcio.
QUINTA PARTE
CAPÍTULO I
A princesa Tcherbatski achava impossível celebrar o casamento antes da Quaresma, daí a cinco semanas, visto a parte do enxoval de Kitty que considerava imprescindível só poder estar pronta para essa data. Estava, contudo, de acordo com Levine de que não deviam adiar a boda para depois da Quaresma, pois a velha tia do príncipe Tcherbatski, muito doente, podia morrer de um momento para o outro, obrigando-os a adiar o casamento ainda para mais tarde. Zangava-se muito com Levine, que não lhe respondia com precisão se estava ou não de acordo com ela. De resto, a decisão parecia tanto mais cômoda quanto era certo os recém- casados partirem imediatamente, após a cerimônia, para a sua casa na aldeia, onde não era preciso todo o enxoval.
Levine continuava nesse estado de exaltação graças ao qual vivia na ilusão de que ele e a felicidade de que gozava constituíam o único e principal fim de tudo que existia e que nem sequer precisava de pensar no que quer que fosse, pois os outros tudo fariam por ele. Nem mesmo estabelecera planos para a vida que ia começar, deixando esta resolução aos demais, convencido de que tudo resultaria bem. Sérgio Ivanovitch, o irmão, Oblonski e a princesa guiavam-no no que tinha a fazer; ele limitava-se a estar de acordo com tudo. Foi Sérgio quem pediu dinheiro emprestado para ele, a princesa aconselhou-o a que saísse de Moscovo logo depois do casamento e Stepane Arkadievitch a que se dirigissem ao estrangeiro. Levine continuava de acordo com tudo. "Façam o que quiserem, se isso lhes agrada. Sou feliz e i minha felicidade não pode ser maior nem menor, façam vocês o que fizerem", pensava. Quando comunicou a Kitty que Oblonski os aconselhava a seguirem para o estrangeiro, grande foi a sua surpresa ao verificar que ela não estava de acordo e que formara já planos determinados para a vida de casada. Kitty sabia que os trabalhos agrícolas apaixonavam Levine, embora não compreendesse nem desejasse para ele essa actividade. Eis o que a não impedia, porém, de considerá-la muitíssimo interessante. E como não ignorava que fixariam residência na aldeia, não queria ir ao estrangeiro, mas para a aldeia, para o seu futuro lar. Esta decisão, muito concretamente exposta, surpreendeu Levine. Mas como lhe era indiferente ir aqui ou ali, pediu imediatamente a Oblonski, como se este tivesse obrigação de o fazer, que fosse à aldeia e que preparasse tudo como melhor lhe parecesse, com o seu bom gosto.
- Escuta, tens o certificado de confissão e comunhão? - perguntou-lhe Stepane Arkadievitch, ao voltar da aldeia, onde preparara tudo para a chegada dos noivos.
- Não, por quê?
- Sem isso não te podes casar.
- Ai, ai, ai! - exclamou Levine. - Acho que não comungo há nove anos. Não tinha pensado em tal.
- Bonito! - comentou Stepane Arkadievitch, rindo - E chamas-me niilista a mim. Mas isso não pode ser! Deves confessar-te e comungar.
- Quando? Só faltam quatro dias.
Stepane Arkadievitch também lhe resolveu esse problema. Levine principiou a assistir aos ofícios. Para Levine, que não era crente, embora respeitasse a crença de cada um, custava-lhe muito assistir aos diversos actos religiosos. Mas agora, no estado de sensibilidade em que vivia, enternecido e sentimental, a necessidade de simular parecia-lhe particularmente odiosa. Mentir, apoucar as coisas santas, com o coração cheio de fervor, sentindo-se em plena glória? Era incapaz de o fazer, mas, por mais que pedisse a Stepane Arkadievitch que lhe arranjasse um certificado que o dispensasse de cumprir aquele cerimonial, este respondia-lhe ser impossível.
- Que te custa isso? Dois dias passam depressa, e o sacerdote é um velhinho muito simpático e muito inteligente. Verás que te extrai o dente sem dares por isso.
Durante a primeira missa a que teve de assistir, Levine quis reviver as impressões religiosas da juventude, que entre os dezasseis e os dezassete anos tinham sido muito vivas. Não conseguiu. Tentou então acompanhar a cerimônia como quem assiste a uma velha prática tão desprovida de sentido como o costume de fazer visitas. Tão-pouco o conseguiu. A semelhança da maior parte dos seus contemporâneos, sentiu-se, com efeito, tão incapaz de acreditar como de negar. E semelhante confusão de sentimentos, durante todo o período que teve de consagrar à devoção, causou-lhe um embaraço e uma vergonha extraordinários: a voz da consciência dizia-lhe que agir sem compreender era praticar uma acção má.
Durante os ofícios procurava em primeiro lugar atribuir às orações um sentido que não ferisse em demasia as suas convicções, mas, ao dar-se conta, dentro de pouco, que, em vez de compreender, criticava, ei-lo que se abandonou ao turbilhão das suas reminiscências e dos seus pensamentos íntimos. Assim ouviu a missa, as vésperas e as práticas da noite para a comunhão. No dia seguinte levantou-se mais cedo do que o costume e em jejum, por volta das 8 horas, veio assistir às práticas da manhã e confessar-se. Não havia ninguém na igreja, além de um soldado que mendigava, duas velhas e os ministros do culto. Um diácono muito jovem, cujas costas se desenhavam sob a fina sotaina, veio ao seu encontro e, aproximando-se de uma mesinha, junto à parede, principiou a ler as regras. À medida que ia lendo, e sobretudo que ia repetindo as mesmas palavras: "Senhor, tem misericórdia!", que se confundiam num murmúrio: "Misericórdia, misericórdia", Levine dava-se conta de que a mente se lhe conservava fechada e selada e de que era melhor não fazer esforços para compreender, pois maior seria ainda a sua confusão. Visto o que permanecia de pé, atrás do diácono, sem ouvir nem prestar atenção ao que se passava, pensando nas suas coisas. "Que mãos extraordinariamente expressivas!", pensava, ao lembrar-se do serão da véspera, sentado com Kitty ao pé da mesa, num recanto da sala. Como acontecia agora quase sempre, nada tinha que lhe dizer. Kitty pousava a mão em cima da mesa, fechava-a, abria-a e ao observar esse movimento ela própria se punha a rir. E Levine lembrava-se de que lhe beijara a mão, examinando-lhe depois as linhas que se lhe uniam na palma cor-de-rosa. "Outra vez: tende misericórdia!", disse ele de si para consigo, persignando-se, e baixou a cabeça, olhando o movimento ágil das espáduas do diácono, que se inclinava. "Depois Kitty pegou-me na mão e examinou as linhas, dizendo: "'Tem uma mão bonita'." E Levine olhou para a sua própria mão e para a mão do diácono. "Sim, agora não falta muito para acabar", pensou. "Ah, não! Parece que recomeça outra vez", disse para si mesmo, apurando o ouvido às orações. "Sim, está a chegar ao fim. Já se inclina até o chão. Isto faz-se sempre no fim."
Apanhando uma nota de três rublos com a mão que aflorava no punho plissado, o diácono disse que escreveria a Levine. Aproximou-se do altar; os sapatos novos rangiam-lhe nas lajes, passado um momento, voltou a cabeça e chamou Levine com um aceno da mão. Os pensamentos deste, lá dentro do cérebro, agitaram-se-lhe, mas deu-se pressa em afastá- los. "Arranjar-se-á de qualquer maneira", pensou dirigindo-se aonde o chamavam. Ao subir os degraus, voltou-se para a direita e viu o sacerdote, um velho de barba rala, meio grisalha, de bondosos olhos fatigados, que, de pé diante do facistol, folheava o missal. Depois de saudar Levine com uma ligeira inclinação de cabeça, principiou a ler as orações em voz monocórdica. Uma vez terminadas, inclinou-se até ao chão e logo se voltou para Levine.
- Cristo assiste, invisível, à sua confissão... - disse, mostrando o crucifixo. - Crê em tudo o que ensina a Santa Igreja Apostólica? - prosseguiu, afastando o olhar do rosto de Levine e cruzando as mãos debaixo da estola.
- Duvidava e duvido de tudo - respondeu Levine, numa voz ressoante, desagradável ao seu próprio ouvido. Depois calou-se.
O sacerdote esperou, como se aguardasse que ele dissesse mais alguma coisa. Segundos depois, fechou os olhos, e num rápido sibilo, sotaque da gente de Vladimir, disse:
- A dúvida é própria da fraqueza humana, mas devemos rezar a Deus Todo-Poderoso, para que Ele venha em nosso auxílio. Quais são os seus principais pecados? - acrescentou, sem uma única pausa, como se procurasse não perder tempo.
- O meu pecado principal é a dúvida. Duvido de tudo, e a maior parte do tempo é a dúvida que me persegue.
- A dúvida é própria da fraqueza humana - repetiu o sacerdote.
- De que duvida principalmente?
- De tudo. Às vezes, até da existência de Deus - disse Levine, quase de má vontade.
A inconveniência das suas palavras assustou-o, mas no padre essas palavras não provocaram a impressão que ele receava.
- Que dúvida pode haver sobre a existência de Deus? - perguntou, com um sorriso quase imperceptível. Levine ficou calado.
- Que dúvida pode ter acerca da existência do Criador, quando está a contemplar as suas obras? - continuou o sacerdote, no seu sotaque monótono e rápido. - Quem cobriu a abóbada celeste de todas essas estrelas? Quem encheu a terra das suas belezas? Como podia existir tudo isto sem o Criador? - concluiu, olhando interrogativamente para Levine.
Este, porém, compreendendo a impossibilidade de uma discussão filosófica com um padre, respondeu simplesmente:
- Não sei.
- Não sabe? Então como pode duvidar de que tenha sido Deus quem tudo criou? - voltou o sacerdote com alegre expressão de surpresa.
- Não entendo nada - volveu-lhe Levine, corando. Sentia o absurdo das respostas que, no caso presente, não podiam deixar de ser absurdas.
- Reze a Deus, implore-O. Até os Santos Padres tiveram dúvidas, mas pediam a Deus que lhes fortalecesse a fé. O Diabo tem uma força enorme e não nos devemos submeter-lhe. Reze e peça a Deus - repetiu com precipitação.
Permaneceu calado um momento, como se estivesse a pensar em alguma coisa.
- Ouvi dizer que se propõe casar com a filha do príncipe Tcherbatski, meu paroquiano e filho espiritual - acrescentou, sorrindo.
- É uma excelente menina.
- É verdade - respondeu Levine, corando, como se sentisse vergonha pelo próprio padre. "Que necessidade tem ele de fazer semelhantes perguntas na confissão?"
E como que respondendo ao que ele pensava, o sacerdote acrescentou:
- Pensa em casar-se e talvez Deus lhe conceda descendência, não é verdade? Que educação poderá o senhor dar aos seus filhos, se não vencer a tentação do Diabo que o arrasta para a incredulidade? - disse em tom de suave censura. - Se amar os seus filhos, como um bom pai, não só lhes deixará riqueza, luxo e honras, mas a salvação também, a iluminação espiritual pela luz da verdade. Não é assim? Que responderá aos seus inocentes filhos quando eles lhe perguntarem: "Paizinho, quem criou tudo o que se vê neste Mundo: a terra, a água, o sol, as flores, as plantas?" Porventura lhes poderá responder: "Não sei?" Não pode o senhor ignorar o que Deus, com toda a sua infinita bondade, lhe revelou. E que lhes dirá quando lhe perguntarem: "Que me espera na outra vida?" Que lhes responderá, se tudo ignora? Que lhes responderá? Entregá-los-á à sedução do mundo e do Diabo? Isso não está certo! - concluiu, inclinando a cabeça para o lado. E fitou Levine com os seus olhos doces e bondosos.
Levine nada respondeu, não já porque receasse desta vez uma discussão despropositada, mas porque nunca ninguém lhe fizera semelhantes perguntas. Se os filhos um dia viessem a fazer-lhas, veria, então, que resposta lhes devia dar.
- Entra agora num momento da sua vida em que deve escolher um caminho e segui-lo - prosseguiu o sacerdote. - Reze a Deus para que Ele, com a Sua misericórdia, o ajude e perdoe. Que Nosso Senhor Jesus Cristo lhe perdoe, filho, com a Sua misericórdia infinita e o Seu imenso amor aos homens... - E proferindo as palavras de absolvição, o sacerdote abençoou Levine, mandando-o embora.
Ao regressar a casa, Levine estava alegre, pois conseguira ver-se livre de uma situação incômoda, sem necessidade de mentir. Além disso, ficara-lhe a vaga impressão de que as palavras daquele sacerdote velho e bondoso não eram tão tolas quanto lhe tinham parecido de princípio; havia nelas qualquer coisa que precisava um dia de ser esclarecida.
"Já, agora, não, mas depois, um dia", pensou Levine. Mais vivamente do que nunca, percebeu haver na sua alma regiões turvas e obscuras. No que dizia respeito à religião, encontrava-se exactamente na mesma atitude que Sviajski e alguns outros, a quem censurava a incoerência de opiniões.
Levine passou aquele serão em casa de Dolly, na companhia da noiva. Estava particularmente alegre e explicou a Oblonski, surpreendido, o estado de excitação em que se encontrava. Disse-lhe que sentia o alvoroço de um cão a quem ensinaram a saltar através de um arco e que, ao compreender o que querem dele, ladra, agita a cauda e salta entusiasmado para cima das mesas e do parapeito das janelas.
CAPÍTULO II
A princesa e Dolly observavam à risca os velhos usos, por isso não consentiram que Levine visse a noiva no dia do casamento. Jantou no hotel com três celibatários que por acaso lhe apareceram. Um deles era o irmão, outro Katavassov, camarada da Universidade, agora professor de Ciências Naturais, e a quem encontrara e arrastara consigo quase à força, e por último um companheiro de caçadas ao urso, Tchirikov, que exercia as funções de juiz de paz em Moscovo e lhe ia servir de testemunha. O jantar foi animadíssimo. Sérgio Ivanovitch, muito bem disposto, apreciou em extremo a originalidade de Katavassov. Este, ao ver-se apreciado, deixou-se desfrutar. Quanto ao excelente Tchirikov, esse estava sempre pronto a. manter fosse que conversa fosse.
- Que rapaz cheio de predicados era o nosso amigo Constantino Dimitrievitch - dizia Katavassov, na lenta dicção do homem habituado a falar do alto de uma cátedra. - Falo dele no passado, porque hoje deixou de existir. Amava a ciência, outrora, quando saiu da Universidade, tinha paixões dignas de um homem, enquanto presentemente empregava metade das suas faculdades a iludir-se e a outra metade a dar às suas quimeras aparência de razão.
- Nunca encontrei maior inimigo do casamento - disse Sérgio Ivanovitch voltado para ele.
- Não é verdade, sou apenas partidário da divisão do trabalho. Aos zés-ninguém é que cabe a função de propagar a espécie, aos outros, a de contribuir para o desenvolvimento intelectual, para a felicidade dos seus semelhantes. Esta é a minha opinião. Não ignoro, porém, que existe uma infinidade de gente disposta a confundir estes dois ramos de trabalho, mas eu não pertenço a esse número.
- Muito me vou rir no dia em que souber que está apaixonado! - exclamou Levine. - Peco-lhe, não deixe de me convidar para o casamento.
- Mas já estou enamorado.
- Sim, de um choco. Sabes - disse Levine, voltando-se para o irmão -, o Miguel Semionovicth está a escrever um livro sobre a nutrição e...
- Não misture as coisas, se faz favor! Pouca importância tem o que eu escrevo, mas a verdade é que amo os chocos.
- Por quê?
- Isso não o impedirá de amar uma mulher.
- Não, a minha mulher é que se oporia ao meu amor pelos chocos.
- Por quê?
- Depois o verá. Agora aprecia a caça, a agronomia. Pois bem, espere-lhe pela partida. Há-de contar-me depois...
- A propósito - disse Tchirikov -, o Archipe acaba de vir visitar-me. Disse-me que em Prudnoi apareceram dois ursos e muitas antas.
- Pois terão de os caçar sem mim.
- Aí tens. De agora em diante, despede-te da caça ao urso. A tua mulher não te deixará caçar! - disse Sérgio Ivanovitch.
Levine sorriu-se. A ideia de que a mulher não o deixaria caçar o urso era-lhe tão agradável que estava disposto a renunciar para sempre ao prazer de ver ursos.
- Seja como for, vai ser uma pena caçá-los sem a sua companhia. Lembra-se da última caçada em Kapilovo? Foi óptima! - disse Tchirikov.
Levine não queria desgostá-los dizendo-lhes que não podia haver nada bom sem Kitty, e preferiu calar-se.
- Não é debalde que existe o costume de um homem se despedir da vida de solteiro - observou Sérgio Ivanovitch. - Por mais feliz que uma pessoa vá ser, lamenta a perda da liberdade.
- Confesse que se sente "com desejos, como o noivo de Gogol, de saltar pela janela.
- Está claro, mas todos se calam - afirmou Katavassov, desatando a rir às gargalhadas.
- Mas a janela continua aberta... Vamos agora mesmo a Tver. A ursa está sozinha, podemos ir apanhá-la na toca. A sério, apanhamos o comboio das cinco, e aqui que se arranjem como quiserem - disse Tchirikov, rindo.
- Juro-lhes que não encontro dentro de mim essa pena de perder a liberdade - afirmou Levine, sorrindo.
- Dentro dele reina agora tão grande caos que não é possível encontrar lá seja o que for - objectou Katavassov. - Espere um pouco, e quando isso estiver mais em ordem lá dentro verá que a encontra.
- Não; se assim fosse, além do meu sentimento... - não quis dizer amor - e da minha felicidade, lamentaria ao menos um pouco perder a liberdade, mas, pelo contrário, dá-me alegria perdê-la.
- Muito mau! É um caso desesperado - disse Katavassov. - Bebamos à saúde do seu coração ou desejemos-lhe que se realize ao menos a centésima parte das suas ilusões. Com isso já teria mais felicidade que nenhum outro ser neste mundo.
Logo depois do jantar, os convidados retiraram-se, para terem tempo de mudar de fato para o casamento. Ao ficar só e ao lembrar-se da conversa daqueles solteirões, Levine voltou a perguntar a si mesmo se sentia alguma pena de perder a liberdade.
Sorriu ao pensar nesse problema. "Liberdade? Para que quero eu liberdade? A felicidade consiste em amar e desejar; em pensar com os pensamentos e os desejos dela, isto é, em não ter liberdade alguma. É isso a felicidade!"
"Mas porventura conheces os teus pensamentos, os teus desejos, o teu sentir?", murmurou lhe uma voz ao ouvido. O sorriso desapareceu lhe do rosto e Levine submergiu se em reflexões. De repente, invadiu o uma sensação estranha de temor e dúvida. Duvidava de tudo.
"E se ela não gosta de mim? E se ela casa comigo só por casar? E se ela própria não sabe o que faz?", perguntava a si mesmo "Pode ser que caia em si e uma vez casada compreenda que me não quer nem pode querer." E os piores e mais estranhos pensamentos a respeito de Kitty lhe vieram à mente. Sentia ciúmes de Vronski, tal qual um ano antes, como se a noite em que a vira com ele tivesse sido na véspera. Receava que ela não lhe tivesse dito tudo.
Levantou se precipitadamente "Não, isto não pode ficar assim. Vou ter com ela, interroga-la-ei pela última vez e dir lhe ei. Somos livres, não será melhor acabarmos? Tudo será melhor que a infelicidade eterna!" Numa grande amargura, irritado contra todos, contra si mesmo e contra ela, saiu do hotel e dirigiu se a casa de Kitty.
Encontrou a no interior da casa. Estava sentada num baú, dando ordens a uma criada e arrumando um monte de vestidos de todas as cores que se espalhavam pelas costas das cadeiras e pelo chão.
- Oh! - exclamou Kitty, ao vê-lo, radiante de alegria - És tu? Que lhe aconteceu? - Tratava o umas vezes por tu, outras não.. Não te esperava! Estou a fazer uma escolha nos meus vestidos de solteira, para oferecê-los.
- Ah, muito bem! - exclamou Levine, relanceando à criada um olhar um tanto lúgubre.
- Vai te embora, Duniacha, que eu depois te chamarei - disse Kitty - Que tens tu? - perguntou a Levine, tratando-o resolutamente por tu, assim que a criada saiu.
Percebera que o rosto de Levine estava triste e alterado e teve medo.
- Kitty, estou a sofrer. Não posso sofrer só - disse com desespero, detendo se diante dela e fitando a nos olhos com uma expressão suplicante. Vira, no rosto franco e cheio de amor de Kitty, que não serviria de nada o que estava disposto a dizer lhe - Vim para te dizer que ainda estamos a tempo. Podemos desfazer o que esta feito e remediar as coisas.
- Que dizes? Não compreendo nada. Que tens tu?
- O que te disse mil vezes e não posso deixar de pensar, que não te mereço. Não é possível que consintas em casar comigo. Pensa. Enganaste-te. Pensa bem. Não podes gostar de mim. Sim é melhor que o confesses - teimava Levine, sem olhar para Kitty - Serei desgraçado. Que as pessoas digam o que quiserem? Tudo é melhor do que não sermos felizes. Mais vale agora, enquanto estamos a tempo.
- Não te compreendo - replicou Kitty, assustada - Que queres tu? Desdizeres-te? Acabar?
- Sim, se não gostas de mim.
- Enlouqueceste! - exclamou Kitty, toda corada de indignação. Mas o rosto de Levine era tão desolado, que ela, reprimindo a indignação, tirou os vestidos de uma cadeira e sentou se mais perto dele - Em que estás tu a pensar? - perguntou ela - Vamos, fala. Conta me tudo.
- Penso que não podes gostar de mim. Porque havias tu de gostar de mim?
- Meu Deus! Que posso eu? - exclamou Kitty, e desatou a chorar.
- Oh, que fui eu fazer? - gritou Levine, que se lhe ajoelhou diante e principiou a beijar lhe as mãos.
Cinco minutos depois, quando a princesa apareceu, encontrou-os completamente reconciliados. Kitty garantiu a Levine que gostava dele, até lhe explicou porquê, respondendo à pergunta que ele lhe fizera. Disse-lhe que era por compreendê-lo plenamente, por saber do que ele gostava e porque tudo do que ele gostava era bom. E esta explicação pareceu muito clara a Levine. Quando a princesa entrou estavam sentados no baú examinando os vestidos e discutindo se devia Kitty oferecer a Duniacha o vestido escuro que ela vestia quando Levine a pedira em casamento. Levine insistia em que aquele vestido não devia ser oferecido a ninguém e que podia oferecer a Duniacha um outro, o azul.
- Mas tu não compreendes que a Duniacha é morena e esse vestido não lhe ficará bem? Já pensei em tudo.
Ao inteirar-se do motivo da visita de Levine, a princesa zangou se, meio a sério, meio a brincar. Disse lhe que se fosse vestir e que não estorvasse Kitty, que estava à espera do cabeleireiro Charles para a pentear.
- Bem basta andar agitada como anda, e sem comer todos estes dias. Por isso está abatida como se vê. E ainda por cima apareces tu com essas patetices para a fazeres sofrer mais. - exclamou a princesa - Vai te embora, vai te, querido.
Levine, envergonhado, mas sossegado já, voltou para o hotel. O irmão, Daria Alexandrovna e Stepane Arkadievitch, todos vestidos a rigor, esperavam no para o abençoar com o ícone. Não havia tempo a perder. Daria Alexandrovna ainda tinha de passar por casa, onde recolhera o pequeno, de cabeça encaracolada, penteado a brilhantina, que acompanharia a noiva com o ícone. Depois tinham de mandar um carro buscar a testemunha e dar ordens para vir a carruagem em que seguiria Sérgio Ivanovitch. Ainda havia muitas coisas complicadas a organizar Não podiam perder tempo, já eram seis e meia.
A bênção com o ícone não foi levada muito a sério. Stepane Arkadievitch pôs se ao lado da mulher, numa atitude ao mesmo tempo solene e cômica. Pegando na imagem, disse a Levine que se inclinasse, abençoou o com bondoso e irônico sorriso e beijou o três vezes. Dolly fez o mesmo e logo se dispôs a partir, precipitadamente, confundindo de novo a ordem em que os carros deviam seguir.
- Bom, pois aqui tens o que vamos fazer. Tu vais no nosso carro buscar a testemunha e o Sérgio Ivanovitch terá a maçada de vir connosco a casa de onde seguirá na nossa companhia.
- Com todo o prazer.
- Não nos demoramos nada. Mandaram as coisas? - perguntou
Stepane Arkadievitch.
- Mandaram - respondeu Levine. E disse a Kuzma que lhe desse a roupa para se vestir.
CAPÍTULO III
Grande multidão, principalmente de mulheres, rodeava a igreja, iluminada para a boda. Os que não puderam entrar apinhavam-se junto das janelas, empurrando-se, discutindo e olhando através das grades.
Mais de vinte carruagens alinhavam-se já ao longo da rua, sob a vigilância dos guardas. Um oficial da polícia, indiferente ao frio, permanecia à porta da igreja, resplandecente no seu uniforme. A todo o momento estavam a chegar mais carruagens, e ora entravam senhoras, com raminhos afivelados no peitilho, soerguendo a cauda dos vestidos, ora cavalheiros, que tiravam os gorros e os chapéus altos ao entrarem no templo. Os dois lustres e as velas acesas diante dos ícones inundavam tudo de luz: o dourado em fundo vermelho do iconóstase, o cinzelado das imagens, os incensários e os candelabros de prata, as lajes do templo, os tapetes, os pendões do coro, as grades dos púlpitos, os velhos livros do ritual, enegrecidos pelo tempo, e as vestes sacerdotais. À direita da igreja, apinhavam-se os fraques e as gravatas brancas, os uniformes e os tecidos preciosos, os veludos e os cetins, os cabelos frisados e as flores raras, os ombros nus e as luvas brancas. E um murmúrio contido e animado evolava-se dessa multidão, ressoando sob a cúpula. De cada vez que a porta se abria com lamentoso rangido, o murmúrio cessava e todos se voltavam à espera de ver entrar os noivos. Mas a porta já se abrira mais de dez vezes para deixar passar, quer o convidado retardatário que ia juntar-se ao grupo da direita, quer a espectadora que, tendo sabido iludir, ou comover o oficial da polícia, engrossava o grupo da esquerda, exclusivamente de curiosos. Parentes e amigos haviam passado já por todas as fases da espera: tendo principiado por não ligar a mínima importância ao atraso dos noivos, ei-los que se voltavam para trás cada vez com mais freqüência, perguntando-se a si próprios que teria acontecido; e, por fim, como para dissipar o mal-estar que os inundava, fingiam o ar indiferente de pessoas interessadas nas conversas entabuladas entre si.
O arquidiácono, como a lembrar quanto era precioso o seu tempo, tossia, impaciente, fazendo estremecer os vidros das janelas. No coro ouviam-se os cantores, aborrecidos, ensaiando a voz ou associando-se ruidosamente. O padre a todo o momento estava a enviar o diácono ou o sacristão a informar-se se o noivo já chegara, e ele próprio, de casula lilás e cíngulo bordado, cada vez com mais freqüência assomava às portas laterais. Por último, uma das senhoras olhou para o relógio e disse: "É estranho." Todos os convidados, inquietos, principiaram a exprimir em voz alta o seu descontentamento e a sua surpresa. Uma das testemunhas foi ver o que se passava lá fora. Entretanto, Kitty, com o seu vestido branco, o seu grande véu e a sua coroa, há algum tempo já que se encontrava na sala da sua casa, na companhia da madrinha e de sua irmã Natália Lvova. Espreitava pela janela. Há uma meia hora já que espiava que a sua testemunha a avisasse da chegada do noivo à igreja.
Pela sua parte, Levine, de calças, mas sem colete nem casaca, percorria de um lado para o outro os seus aposentos do hotel, indo à porta a cada momento. Porém, nada de lobrigar no corredor a pessoa que esperava; desesperado, voltara para trás, agitando os braços para Stepane Arkadievitch, que fumava tranqüilamente.
- Já terá havido alguma vez um homem em tão estúpida situação?
- Sim, estúpida - confirmou Stepane Arkadievitch, sorrindo com doçura. - Mas sossega, não tarda que te tragam isso.
- Mas que vou eu fazer? - exclamou Levine, mal reprimindo a ira. - Não há nada a fazer com estes absurdos coletes brancos abertos. Impossível! - acrescentava, mirando o peitilho da camisa todo amarrotado. - E se as minhas malas já estivessem no comboio? - gritou fora de si.
- Porás a minha.
- Era por aí que eu devia ter principiado.
- Não sejas ridículo... Paciência, tudo se "apanhará". Ao pedir a Kuzma, o velho criado, a roupa para se vestir, este dera a Levine a casaca, o colete, e tudo o mais, excepto a camisa.
- E a camisa? - exclamara Levine.
- Já a tem vestida - replicou o criado, com um sorriso tranqüilo.
Kuzma, ao receber ordem de arranjar as coisas do amo e de as mandar para casa dos Tcherbatski, de onde os noivos partiriam naquela noite, não se lembrara de deixar uma camisa de fora própria para a casaca. A camisa que Levine tinha no corpo desde a manhã, toda amarrotada, seria um enxovalho com o colete aberto à moda. Como a casa dos Tcherbatski ficava muito longe para mandarem buscar a camisa, tinham enviado o criado a comprar uma, mas este voltara de mãos a abanar. Era domingo e tudo estava fechado. Mandaram então a casa de Stepane Arkadievitch, buscar uma, mas era muito larga e muito curta. Finalmente, decidiram mandar a casa. dos Tcherbatski, para que abrissem os baús. E enquanto na igreja esperavam o noivo, este, como uma fera enjaulada, andava no seu quarto de um lado para o outro, assomando à porta do corredor a cada instante. Lembrava-se, horrorizado, do que dissera a Kitty e sentia-se desesperado ao pensar no que ela podia estar a supor.
Finalmente Kuzma, o culpado, já exausto, surgiu no quarto com a camisa na mão.
- Apanhei-a por muita sorte. Já estavam a pôr as coisas num carro - disse ele.
Três minutos depois, sem olhar para o relógio, para que a ferida não se abrisse ainda mais, precipitava-se Levine pelo corredor fora.
- Com isso não remedeias nada - dizia-lhe Stepane Arkadievitch, sorrindo e seguindo-o sem pressa. - Tudo se apanhará, tudo se apanhará.
CAPÍTULO IV
- Já chegou. Ali está ele. Qual? O mais novo, não é assim? E ela, a pobrezinha? Parece mais morta do que viva - dizia-se entre a multidão, quando Levine, juntando-se à noiva perto da porta, penetrou com ela no templo.
Stepane Arkadievitch contou à mulher o motivo do atraso, e os convidados sorriam, fazendo comentários a meia-voz. Levine não via nada nem ninguém: só tinha olhos para a noiva.
Todos diziam que Kitty estava muito abatida naqueles últimos dias e com o véu ainda parecia menos bonita do que de facto era. Mas Levine não era da mesma opinião. Mirava o alto penteado de Kitty, o seu amplo véu branco, com as suas flores brancas, a sua fina cintura, a alta gola que lhe enquadrava virginalmente o airoso colo, descobrindo-o um pouco na frente - e parecia-lhe mais bela do que nunca, não porque as flores, o véu, o vestido, este de Paris, acrescentassem qualquer coisa à sua beleza, mas porque, apesar do esplendor artificial de tais atavios, a expressão do seu bonito rosto, dos seus olhos e dos seus lábios respirava uma especial sinceridade ingênua.
- Já estava a pensar que te querias escapulir - disse-lhe Kitty, sorrindo.
- Aconteceu-me uma coisa tão estúpida que até tenho vergonha de ta contar - replicou Levine, corando. Mas teve de prestar atenção a
Sérgio Ivanovitch, que se aproximara.
- Que linda história essa da tua camisa! - exclamou este, abanando a cabeça e sorrindo.
- É verdade, é verdade! - replicou Levine, sem compreender o que ele dizia.
- Agora, Kóstia, temos de resolver um problema importante - interveio Stepane Arkadievitch, com fingida preocupação. - A questão é grave e tu pareces-me em estado de lhe apreciar toda a importância. Perguntam-me se devem acender as velas novas ou as já queimadas. A diferença é de dez rublos - acrescentou, insinuando um sorriso. - Por mim, já decidi, mas receio que não estejas de acordo.
Levine percebeu que se tratava de um gracejo, mas não foi capaz de rir.
- Então, que resolves tu? Acendem as novas ou as já queimadas? Eis a questão.
- As novas, as novas!
- A questão está resolvida - concluiu Stepane Arkadievitch, sempre a sorrir. - Temos de reconhecer que esta cerimônia torna as pessoas bastante estúpidas - murmurou para Tchirikov, enquanto Levine, depois de lhe relancear um olhar desconcertado, voltava para junto da noiva.
- Toma tento, Kitty, procura ser a primeira a pôr o pé no tapete
- disse, aproximando-se da noiva, a condessa Nordston. - Lindas coisas faz, não há dúvida! - acrescentou, dirigindo-se a Levine.
- Quê? Não tens medo? - perguntou Maria Dimitrievna, uma velha tia.
- Não terás frio? Estás pálida... Abaixa-te um momento - disse a Senhora Lvov, erguendo os lindos braços para ajeitar a coroa da irmã.
Dolly aproximou-se, por sua vez, e quis falar; mas a emoção estrangulou-lhe a voz na garganta e soltou um riso nervoso.
Kitty olhava para toda a gente com um olhar tão vago como o de
Levine.
Entretanto, os clérigos paramentavam-se e o sacerdote, acompanhado do diácono, aproximava-se do facistol, colocado na nave da igreja. O sacerdote dirigiu-se a Levine, dizendo-lhe qualquer coisa, mas ele não o entendeu.
- Pegue na noiva pela mão e conduza-a - disse a Levine a testemunha.
Levine não percebeu. Várias vezes os presentes o corrigiram. Incapaz de compreender o que queriam dele, fazia o contrário do que lhe diziam. Finalmente, no momento em que, desanimados, todos iam desistir de o encaminhar, deixando-o entregue à sua própria inspiração, compreendeu que com a mão direita devia pegar na mão direita da noiva sem alterar a postura em que estava. Então precedidos do sacerdote, os dois deram alguns passos em frente e pararam diante do facistol. Parentes e convidados acompanhavam os noivos, num murmúrio de vozes e num frufru de sedas. Alguém se abaixou para ajeitar a cauda da noiva, e depois caiu um silêncio tão profundo na nave da igreja que se ouviam as gotas de cera tombando das velas.
O velho sacerdote, com o solidéu na cabeça e as madeixas de cabelos brancos, de um branco argênteo, penteadas para trás das orelhas, extraiu as miúdas e rugosas mãos de debaixo da pesada casula bordada a prata e com uma grande cruz dourada nas costas e principiou a remexer em qualquer coisa junto ao facistol.
Stepane Arkadievitch aproximou-se, cauteloso, do velho sacerdote, disse-lhe alguma coisa em voz baixa, e, piscando o olho a Levine, voltou para o seu lugar.
O sacerdote acendeu duas velas engrinaldadas de flores, ficou com elas inclinadas na mão esquerda, e enquanto a cera ia gotejando lentamente voltou-se para os noivos. Era o mesmo clérigo que confessara Levine. Depois de mirar o noivo com os seus olhos tristes e cansados mirou a noiva e em seguida, soltando um suspiro, tirou a mão direita de sob a casula e abençoou Levine. Da mesma forma, mas com um matiz de doçura, pousou os dedos dobrados sobre a cabeça inclinada de Kitty. Depois, ofereceu-lhe as velas e, pegando no incensário, afastou-se lentamente.
"Será possível que tudo isto seja verdade?", pensava Levine, virando-se para a noiva. Via-lhe o perfil desde o alto e graças a um movimento imperceptível dos seus lábios e das suas pestanas percebeu que ela lhe sentira o olhar. Kitty permanecia imóvel; mas a gola do vestido agitou-se-lhe, roçando-lhe pela orelha rosada. Levine percebeu que um suspiro se afogara no peito de Kitty e que tremera na luva de cano alto a mãozinha que segurava a vela.
De repente, tudo se lhe desvaneceu na memória, o atraso, o descontentamento dos amigos, a estúpida história da camisa, e já nada mais sentia além de uma emoção onde havia terror e alegria.
O arquidiácono, belo homem de cabelos anelados, a dalmática bordada a prata, caminhou em passo firme para o padre e erguendo com dois dedos, num gesto familiar, a estola deste, entoou um solene
"Abençoa-nos, Pai", que ressoou longamente pela nave da igreja.
"Bendito seja Deus, agora e sempre e pelos séculos dos séculos", respondeu o velho sacerdote, na sua voz suave e melodiosa. E inundando toda a igreja, das janelas baixas ao topo da abóbada, um acorde de coro invisível elevou-se, harmonioso e amplo, cresceu e, cessando um instante, distinguiu-se suavemente.
Como sempre, orou-se pela outra vida e pela salvação da alma, pelo sínodo, pelo czar e pelos servos de Deus, Constantino e Catarina, que naquele dia contraíam matrimônio.
"Oremos para que Deus os ajude e lhes conceda um amor eterno e pacífico."
Em toda a igreja reboava a voz do arquidiácono.
Levine ouvia essas palavras, surpreendido: "Como adivinharam que é de ajuda que eu preciso?", pensou, lembrando-se das dúvidas e receios por que passara. "É de ajuda que necessito precisamente agora."
Quando o arquidiácono acabou, o sacerdote dirigiu-se aos noivos com um missal na mão.
- "Deus eterno que uniste os que estavam separados - leu com voz doce e cantada -, que lhes concedeste a união do amor indestrutível, que abençoaste Isaac e Rebeca, como rezam os livros santos, abençoa os teus servos Constantino e Catarina e ensina-lhes o caminho do bem. Louvado seja Deus misericordioso, que ama os homens. Padre, Filho, e Espírito Santo, hoje e sempre e pelos séculos dos séculos."
- Ámen - responderam de novo as vozes do coro invisível.
"Que uniste os que estavam separados e lhes concedestes a união do amor indestrutível."
"Que profundo sentido têm estas palavras e como estão de harmonia com o que sinto neste momento!", pensou Levine. "Sentirá ela o mesmo que eu?"
Ao voltar-se, encontrou-se com o olhar de Kitty.
Pela expressão desse olhar, Levine acreditou que sim. Mas não era certo. Kitty mal compreendia as palavras da oração e nem sequer as ouvia. Não podia ouvi-las nem entendê-las, tão grande a comoção que lhe invadia a alma e nela por momentos se expandia. Tomava-a uma grande alegria ao ver realizar-se o que durante mês e meio fora o sonho da sua alma, ao ver cumprido o que durante aquelas seis semanas representara toda a sua satisfação e tormento.
No dia em que, com o seu vestidinho escuro no salão da sua casa, se aproximara de Levine em silêncio e se lhe oferecera, na sua alma dera-se um rompimento com a vida passada, principiando vida nova, completamente desconhecida para ela, embora aparentemente desse a impressão de continuar a viver a mesma vida. Aquelas seis semanas haviam sido as semanas mais felizes e atormentadas de toda a sua existência. A sua vida, os seus anelos e as suas esperanças concentraram- se-lhe naquele homem a quem ainda não compreendia, a quem a unia um sentimento ainda mais incompreensível, que ora a atraía ora a repelia, continuando ao mesmo tempo a viver como sempre vivera. E aquilo, aquela maneira de viver, levava-a a horrorizar-se de si mesma, da sua completa e invencível indiferença para com todo o passado; para com as coisas, para com os costumes, para com as pessoas que a estimavam: a mãe, amargurada por tamanha indiferença, o querido e carinhoso pai, a quem antes amara mais do que a coisa alguma no mundo. Tão depressa se afligia com esta indiferença como com as causas que a haviam conduzido até aí. Não podia pensar nem desejar fosse o que fosse alheio à vida com Levine. Mas essa vida ainda não se realizara e Kitty nem sequer podia imaginar claramente o que essa vida fosse. Tudo era expectativa, temor e jubilosa ansiedade perante o novo e o desconhecido. E eis que isto ia acabar: a expectativa, o desconhecimento e o remorso de renunciar à vida passada. E eis que algo de novo principiava. E nem por isso era menos terrível, desconhecido que era. Terrível ou não, contudo, já estava consumado na sua alma havia seis semanas, agora tratava-se apenas de consagrar o consumado.
Voltando ao facistol, o sacerdote pegou com dificuldade no anelzinho de Kitty e pedindo a Levine que lhe desse a mão, colocou-lho na primeira falange do dedo.
- Uno-te, Constantino, servo de Deus, a Catarina, serva de Deus.
E enfiando o anel grande no dedinho vermelho de Kitty, tão frágil que fazia pena, pronunciou as mesmas palavras,
Os nubentes procuraram várias vezes fazer o que lhes era devido, mas enganavam-se sempre e o sacerdote corrigia-os em voz baixa. Finalmente, feito o necessário e depois de os benzer com os anéis, o sacerdote entregou de novo o anel grande a Kitty e o pequeno a Levine. Os noivos voltaram a enganar-se e por duas vezes passaram os anéis de mão em mão, sem conseguirem fazer o que deviam.
Dolly, Tchirikov e Stepane Arkadievitch adiantaram-se para os ajudar. Reinava a confusão, por todo o templo se cochichava e havia sorrisos; mas a expressão solene e humilde dos noivos não se modificara. Pelo contrário, ao trocarem as mãos ainda pareciam mais doces e solenes e o sorriso com que Oblonski lhes dissera, em voz baixa, que deviam pôr cada um o seu anel, mau grado seu expirou-lhes nos lábios.
Compreendera que um sorriso naquele momento era como que uma ofensa aos nubentes.
- Oh! Deus! - continuou o sacerdote, depois da troca dos anéis
- Tu que criaste o homem no princípio do mundo e lhe deste a mulher para servir-lhe de companheira e perpetuar o gênero humano, Tu, Deus, Senhor nosso, que enviaste a Tua verdade aos teus servos, a nossos pais eleitos por Ti, de geração em geração, digna-Te olhar para o teu servo Constantino e para tua serva Catarina e confirma esta união na fé e num mesmo pensamento de verdade e de amor...
Levine via agora, cada vez mais claramente, que todas as suas ideias sobre o casamento e que todas as suas ilusões sobre a maneira de organizar a sua vida eram pueris. O que se estava a realizar era algo que não entendera até então, e que compreendia menos do que nunca. Sentia oprimir-se-lhe o peito, sacudido por soluços cada vez mais fortes, e as lágrimas vinham-lhe aos olhos, sem que ele pudesse retê-las.
CAPÍTULO V
Na igreja estavam todos os parentes e amigos, todo o Moscovo ali estava. Durante a cerimônia, no meio da esplendorosa iluminação do templo, entre as senhoras e as meninas vestidas com toda a elegância e os cavalheiros de casaca ou uniforme de gala, ouvia-se sempre um sussurro discreto, principalmente entre os homens, pois as senhoras pareciam enlevadas nos pormenores da cerimônia religiosa, sempre tão comovedora para elas.
No grupo mais perto da noiva estavam as suas duas irmãs: Dolly, a primogênita, e a serena e bela Natália, que chegara do estrangeiro.
- Por que virá a Mary vestida de roxo, quase de preto, para um casamento? - perguntou a Korsunskaia.
- É a única cor que lhe diz bem com o tom da pele... - respondera a Drubetzkaia.
- Que estranho, celebrarem a boda de noite. É costume de comerciantes.
- É mais bonito. Eu também me casei de noite - replicou a Korsunskaia, suspirando, ao lembrar-se de como estava bonita nesse dia, de como o marido se mostrara ridiculamente enamorado dela e de como tudo havia mudado.
- Dizem que quem serve mais de dez vezes de testemunha de casamento não se casa. Ainda tentei ser testemunha pela décima vez para me garantir, mas o posto já estava ocupado - observava o conde Siniavine à bela princesa Tcharskaia, que pusera nele as suas ilusões.
Esta replicou-lhe com um sorriso. Olhando para Kitty, pensava no momento em que estaria junto do conde Siniavine, nas mesmas circunstâncias, e como então se lembraria do gracejo dele.
Tcherbatski disse à velha dama de honor Nikolaievna estar decidido a pôr-lhe o coroa de Kitty no cabelo para lhe dar felicidade.
- Não se devia ter penteado com postiços - replicou Nikolaievna, que havia tempo já resolvera que, se viesse a casar-se com o velho viúvo, a quem perseguia, teria um casamento muito simples. - Não gosto desta ostentação.
Sérgio Ivanovitch conversava com Daria Dimitrievna e garantia-lhe, irônico, que o velho costume da viagem de núpcias estava tão generalizado por os recém-casados gostarem de esconder a sua vergonha.
- Seu irmão pode estar orgulhoso. Ela é muito bonita. Você o que tem é inveja.
- Já por lá passei, Daria Dimitrievna - replicou Sérgio Ivanovitch, que, subitamente, ficou grave e melancólico.
Oblonski contava à cunhada uma anedota sobre o divórcio.
- Tenho de lhe arranjar a coroa - disse esta, sem o ouvir.
- É uma pena que Kitty se tenha estragado tanto - comentou a condessa Nordston, dirigindo-se a Natália. - Mesmo assim, ele vale menos do que o dedo mindinho dela, não é verdade?
- Não, eu gosto muito dele. E não é por ser meu futuro beau-frère - replicou esta.
- Que naturalidade a dele! E que difícil não parecermos ridículos numa situação destas. Não está nem ridículo nem afectado, está só comovido.
- Contava que eles se casassem?
- Quase. Ela sempre gostou dele.
- Vamos a ver qual dos dois pisa primeiro o tapete. Aconselhei a Kitty a ser ela.
- É o mesmo - replicou Natália. - Nós somos todas esposas obedientes. Está-nos no sangue.
- Pois eu pisei-o antes de Vacili. E você, Dolly?
Dolly, ao lado delas, ouviu o que diziam, mas não respondeu. Sentia-se comovida. As lágrimas vinham-lhe aos olhos; se tivesse falado, romperia em soluços. Sentia-se feliz por Kitty e por Levine. Lembrava-se do seu próprio casamento e ao ver o marido tão alegre esqueceu o presente para só evocar o seu primeiro amor. Lembrou-se não só da sua própria boda, mas de outras bodas, bodas de amigas suas e suas conhecidas. Revia-as a todas, naquele momento único e solene das suas vidas em que renunciavam ao passado para se abeirarem, com a esperança e o receio no coração, de um misterioso futuro. Entre essas mulheres casadas figurava a querida Ana, de cujo divórcio iminente acabava de ter conhecimento. Também a vira a ela, sob as pregas de um véu branco, tão puro como Kitty com a sua coroa de flores de laranjeira. E agora! "Que estranho!", murmurou ela.
Irmãs e amigas não eram as únicas a seguir pari passa os mínimos incidentes da cerimônia. Seguiam-nos as mulheres, entre o público anônimo, de respiração suspensa, em todos os seus lances, como se não quisessem perder um só movimento dos noivos ou o mínimo matiz da sua expressão. Aos gracejos e murmúrios dos homens alheios à cerimônia, não respondiam e nem sequer os ouviam.
- Por que está ela a chorar? Casá-la-ão à força?
- À força, com um rico rapaz como aquele? É príncipe?
- A que está vestida de cetim branco é irmã dela? Estás a ouvir o que o diácono diz: "Teme e respeita a teu marido."
- Os cantores, naturalmente, são de Chudov.
- Não, são do sínodo.
- Perguntei ao criado. Parece que a leva logo para a terra dele. Dizem que é riquíssimo. Por isso a casam.
- Fazem um belo par.
- E dizia a senhora, Maria Vacilievna, que já se não usavam os merinaques! Repare naquela senhora com um vestido cor de pulga. Parece que é mulher de um embaixador. Veja o que ela tem atrás...
- Que bonita está a noiva! Parece uma cordeirinha. Digam o que disserem, uma noiva faz sempre pena.
Assim falavam os curiosos que conseguiram entrar na igreja.
Uma vez concluída a cerimônia dos esponsais, o sacristão estendeu diante do facistol, no centro da nave, um grande pedaço de seda cor-de-rosa, enquanto o coro entoava um salmo, complicado e difícil, em que o baixo e o tenor davam a réplica. O sacerdote, voltando-se, acenou aos noivos e indicou-lhes o tapete. Embora tivessem ouvido dizer que aquele que primeiro pisasse o tapete seria o verdadeiro cabeça-de-casal, nem Levine nem Kitty disso se lembraram ao avançarem para este. Tão-pouco ouviram as discussões e comentários sobre qual deles o pisara primeiro. Uns diziam que fora Levine, outros, que os dois ao mesmo tempo.
Após as perguntas sacramentais a respeito do mútuo consentimento dos nubentes e acerca da existência de compromissos para com outra pessoa, perguntas a que ambos responderam por fórmulas não menos rituais, cujo sentido lhes pareceu estranho, principiou outra cerimônia religiosa. Kitty ouvia as orações, desejosa de compreender-lhes o sentido, mas debalde. Uma sensação crescente de solenidade e de alegria radiosa lhe invadia a alma à medida que a cerimônia avançava, e não podia concentrar-se.
Rezavam: "Deus faça que sejam puros os frutos do teu ventre, e que vejam com alegria os filhos que tiverem." As orações diziam que Deus criara a mulher de uma costela de Adão e que "por isso o homem deixará pai e mãe para se unir à mulher, formando com ela um único ser", e que isto "é um grande mistério". Rogaram a Deus que lhes concedesse descendência e que os abençoasse como a Isaac e Rebeca, a José, a Moisés e a Séfora, e que vissem aos filhos dos seus filhos. "Tudo isto é muito belo", pensava Kitty, ao ouvir semelhantes palavras. "Nem podia deixar de o ser." E um sorriso de alegria, que se comunicava involuntariamente a quantos olhavam para ela, lhe resplandecia no rosto iluminado.
- Ajuste-as bem - aconselhou alguém no momento em que o sacerdote colocava as coroas na cabeça dos nubentes e Tcherbatski, com a mão enluvada, que tremia, mantinha no ar a sua, por cima da cabeça de Kitty.
- É uma pena que Kitty se tenha estragado tanto - comentou a condessa Nordston, dirigindo-se a Natália. - Mesmo assim, ele vale menos do que o dedo mindinho dela, não é verdade?
- Não, eu gosto muito dele. E não é por ser meu futuro beau- frère - replicou esta.
- Que naturalidade a dele! E que difícil não parecermos ridículos numa situação destas. Não está nem ridículo nem afectado, está só comovido.
- Contava que eles se casassem?
- Quase. Ela sempre gostou dele.
- Vamos a ver qual dos dois pisa primeiro o tapete. Aconselhei a Kitty a ser ela.
- É o mesmo - replicou Natália. - Nós somos todas esposas obedientes. Está-nos no sangue.
- Pois eu pisei-o antes de Vacili. E você, Dolly?
Dolly, ao lado delas, ouviu o que diziam, mas não respondeu. Sentia-se comovida. As lágrimas vinham-lhe aos olhos; se tivesse falado, romperia em soluços. Sentia-se feliz por Kitty e por Levine. Lembrava-se do seu próprio casamento e ao ver o marido tão alegre esqueceu o presente para só evocar o seu primeiro amor. Lembrou-se não só da sua própria boda, mas de outras bodas, bodas de amigas suas e suas conhecidas. Revia-as a todas, naquele momento único e solene das suas vidas em que renunciavam ao passado para se abeirarem, com a esperança e o receio no coração, de um misterioso futuro. Entre essas mulheres casadas figurava a querida Ana, de cujo divórcio iminente acabava de ter conhecimento. Também a vira a ela, sob as pregas de um véu branco, tão puro como Kitty com a sua coroa de flores de laranjeira. E agora! "Que estranho!", murmurou ela.
Irmãs e amigas não eram as únicas a seguir pari passa os mínimos incidentes da cerimônia. Seguiam-nos as mulheres, entre o público anônimo, de respiração suspensa, em todos os seus lances, como se não quisessem perder um só movimento dos noivos ou o mínimo matiz da sua expressão. Aos gracejos e murmúrios dos homens alheios à cerimônia, não respondiam e nem sequer os ouviam.
- Por que está ela a chorar? Casá-la-ão à força?
- À força, com um rico rapaz como aquele? É príncipe?
- A que está vestida de cetim branco é irmã dela? Estás a ouvir o que o diácono diz: "Teme e respeita a teu marido."
- Os cantores, naturalmente, são de Chudov.
- Não, são do sínodo.
- Perguntei ao criado. Parece que a leva logo para a terra dele. Dizem que é riquíssimo. Por isso a casam.
- Fazem um belo par.
- E dizia a senhora, Maria Vacilievna, que já se não usavam os merinaques! Repare naquela senhora com um vestido cor de pulga. Parece que é mulher de um embaixador. Veja o que ela tem atrás...
- Que bonita está a noiva! Parece uma cordeirinha. Digam o que disserem, uma noiva faz sempre pena.
Assim falavam os curiosos que conseguiram entrar na igreja.
CAPÍTULO VI
Uma vez concluída a cerimônia dos esponsais, o sacristão estendeu diante do facistol, no centro da nave, um grande pedaço de seda cor-de-rosa, enquanto o coro entoava um salmo, complicado e difícil, em que o baixo e o tenor davam a réplica. O sacerdote, voltando-se, acenou aos noivos e indicou-lhes o tapete. Embora tivessem ouvido dizer que aquele que primeiro pisasse o tapete seria o verdadeiro cabeça-de-casal, nem Levine nem Kitty disso se lembraram ao avançarem para este. Tão-pouco ouviram as discussões e comentários sobre qual deles o pisara primeiro. Uns diziam que fora Levine, outros, que os dois ao mesmo tempo.
Após as perguntas sacramentais a respeito do mútuo consentimento dos nubentes e acerca da existência de compromissos para com outra pessoa, perguntas a que ambos responderam por fórmulas não menos rituais, cujo sentido lhes pareceu estranho, principiou outra cerimônia religiosa. Kitty ouvia as orações, desejosa de compreender-lhes o sentido, mas debalde. Uma sensação crescente de solenidade e de alegria radiosa lhe invadia a alma à medida que a cerimônia avançava, e não podia concentrar-se.
Rezavam: "Deus faça que sejam puros os frutos do teu ventre, e que vejam com alegria os filhos que tiverem." As orações diziam que Deus criara a mulher de uma costela de Adão e que "por isso o homem deixará pai e mãe para se unir à mulher, formando com ela um único ser", e que isto "é um grande mistério". Rogaram a Deus que lhes concedesse descendência e que os abençoasse como a Isaac e Rebeca, a José, a Moisés e a Séfora, e que vissem aos filhos dos seus filhos. "Tudo isto é muito belo", pensava Kitty, ao ouvir semelhantes palavras. "Nem podia deixar de o ser." E um sorriso de alegria, que se comunicava involuntariamente a quantos olhavam para ela, lhe resplandecia no rosto iluminado.
- Ajuste-as bem - aconselhou alguém no momento em que o sacerdote colocava as coroas na cabeça dos nubentes e Tcherbatski, com a mão enluvada, que tremia, mantinha no ar a sua, por cima da cabeça de Kitty.
- Pôe-ma - murmurou ela, sorrindo.
Levine voltou-se, surpreso com o alegre resplendor do rosto de Kitty, e esse sentimento comunicou-se-lhe a ele, mau grado seu. Tal qual como ela, sentiu-se alegre e sereno.
Ouviram, com o coração repleto de alegria, a leitura da epístola de São Paulo e o ecoar da voz do arquidiácono na última estrofe, tão esperada por todos. Também lhes foi agradável beber na taça o tépido vinho tinto com água e ainda mais alegres se sentiram quando o sacerdote, abrindo a casula e pegando-lhes nas mãos, os conduziu, aos dois, à roda do facistol, enquanto o baixo cantava: "Alegra-te Isaías." Tcherbatski e Tchirikov, que seguiam com as coroas, tropeçando na cauda do vestido da noiva, também sorriam, alegres, e ora ficavam para trás, ora embatiam nos noivos quando o sacerdote parava. A centelha de júbilo que chispava de Kitty parecia comunicar-se a todos na igreja. Levine estava convencido de que até o sacerdote e o arquidiácono desejariam sorrir como ele.
Quando as coroas foram retiradas das cabeças dos noivos o sacerdote leu a última oração e felicitou-os. Levine olhou para Kitty; nunca a tinha visto assim. Estava encantadora com aquele novo resplendor de felicidade que se lhe reflectia no semblante. Quis dizer-lhe qualquer coisa, mas hesitou, sem saber se a cerimônia já chegara ao fim. O sacerdote veio em seu auxílio. Sorrindo, cheio de bondade, disse-lhe em voz baixa:
- Beije a sua esposa, e que a esposa beije o seu marido.
E pegou nas velas que ambos tinham na mão.
Levine beijou, cautelosamente, os lábios sorridentes de Kitty, ofereceu-lhe o braço e experimentando uma estranha e nova identificação com ela, saiu da igreja. Não acreditava, não podia acreditar que aquilo fosse verdade. Só ao encontrar os seus olhares tímidos e surpreendidos acreditou, pois se deu conta, nessa altura, de que formavam já um só e único ser.
Naquela mesma noite, depois da ceia, os recém-casados partiram para a casa na aldeia.
CAPÍTULO VII
Havia três meses que Vronski e Ana viajavam pela Europa.
Tinham visitado Veneza, Roma e Nápoles e acabavam de chegar a uma pequena cidade italiana, onde pensavam demorar-se algum tempo.
Um imponente mordomo, de cabelos bem penteados e lustrosos, apartados por uma risca que lhe subia desde o pescoço, de fraque, grande plastron de cambraia e grossa corrente, cujos berloques lhe tombavam sobre o ventre pujante, respondia, solene, de mãos nos bolsos, às perguntas que lhe dirigia um cavalheiro. Porém, ao ouvir passos que se aproximavam do outro lado do terraço, voltou-se, e vendo o conde russo, que ocupava os melhores quartos do hotel, tirou respeitosamente as mãos dos bolsos e numa vênia explicou-lhe que o mensageiro voltara e que o aluguel do palácio era coisa feita. O administrador estava disposto a assinar contrato.
- Muito bem - disse Vronski. - A senhora está ou saiu?
- A senhora foi passear, mas já voltou - replicou o mordomo.
Vronski tirou o chapéu mole, de abas largas, enxugou o suor da testa e os cabelos, penteados para trás para esconder a calvície. Depois de percorrer com o olhar, distraidamente, o cavalheiro que falava com o mordomo, o qual, por sua vez, olhou para ele, dispôs-se a seguir o seu caminho.
- Este senhor é russo e deseja falar com Vossa Excelência.
Entre enfadado por não poder evitar as pessoas conhecidas e desejoso de qualquer distracção naquela vida monótona, Vronski atentou de novo no desconhecido, que se afastava, e os olhos de ambos cintilaram ao mesmo tempo.
- Golenistchev!
- Vronski!
Efectivamente era Golenistchev, camarada de Vronski no Corpo de Pajens. Então, Golenistchev pertencia ao Partido Liberal; saíra do Corpo de Pajens com categoria civil e não ocupava nenhum posto. Apenas se tinham visto uma vez de então para cá.
Quando desse único encontro, Vronski julgara perceber que Golenistchev escolhera uma actividade liberal e intelectual e que, por conseguinte, menosprezava a carreira e o título do seu camarada. Por isso mesmo Vronski, ao encontrar-se com Golenistchev tratara-o com aquela fria altivez que sabia manter perante os outros e em que se lia o seguinte: "Pode agradar-lhe ou não a minha maneira de viver, é-me de todo indiferente, mas, se quiser lidar comigo, tem de me respeitar." Golenistchev mantivera-se depreciativamente alheio ao tom de Vronski. E tudo parecia sugerir que aquela entrevista ainda servira para mais os apartar. Agora, no entanto, fora de alegria a exclamação que tiveram.
Vronski não podia supor que lhe desse tamanha satisfação tornar a ver Golenistchev, visto nem ele próprio se dar conta de quão profundo era o tédio da sua vida. Esquecendo a desagradável impressão que lhe deixara o último encontro, alegre e franco estendeu-lhe a mão. Igual expressão de alegria veio substituir a inquietação que outrora se pintara no rosto de Golenistchev.
- Que prazer tenho em ver-te! - disse Vronski, com um sorriso amistoso que lhe pôs à mostra os belos dentes.
- Ouvi pronunciar o nome de Vronski, mas não podia supor que eras tu. Tenho um grande prazer.
- Entra. Que fazes por aqui?
- Vivo aqui há mais de um ano Trabalho.
- Trabalhar? - disse Vronski interessado - Entra, se fazes favor. E desejoso de não ser compreendido pelo mordomo, velho hábito, disse em francês, embora ali o russo é que estivesse indicado.
- Conheces a Senhora de Karenine? Viajamos juntos. Ia agora vê-la. Enquanto falava estudava a expressão de Golenistchev. Este sabia do que se tratava.
- Ah, não sabia? - replicou ele, fingindo-se indiferente - Estás aqui há muito tempo?
- Há três dias - respondeu Vronski, olhando de novo, atentamente, o companheiro.
"Sim, é homem correcto, e considera as coisas como deve ser", disse Vronski com os seus botões, compreendendo o significado da expressão de Golenistchev e o facto de ele ter mudado de assunto "Posso apresentá-lo a Ana. Considera as coisas como deve ser."
Nos três meses que Vronski passara com Ana no estrangeiro, sempre que tinha ocasião de conhecer alguém não deixava de se perguntar a si próprio como iria esse alguém interpretar as suas relações com essa senhora e na maior parte dos casos encontrava nos homens a devida compreensão. Se lhe tivessem, contudo, perguntado a ele próprio ou àqueles que observavam essa compreensão em que consistia a referida compreensão, grande seria a dificuldade tanto de Vronski como dos demais em explicarem em que consistia ela de facto.
Na realidade, os que compreendiam "como era devido", segundo Vronski, nada explicavam a si próprios, procedendo como pessoas educadas perante um problema tão difícil e insolúvel. Evitavam as alusões e as perguntas desagradáveis. Fingindo compreender o significado e a importância da situação, não só a aceitavam mas até a aprovavam, considerando inoportunas e supérfluas todas as explicações.
Vronski adivinhou imediatamente que Golenistchev pertencia a esse número duplamente contente com o encontro. Com efeito, Golenistchev comportou-se perante a Karenine, quando Vronski o introduziu nos aposentos dela, como ele próprio o teria desejado. Ao que parecia, evitava, sem o menor esforço, todas as conversas que podiam motivar uma situação embaraçosa.
Não conhecia Ana e ficou surpreendido com a sua beleza e ainda mais com a simplicidade com que ela aceitava a situação. Corou quando Vronski lhe apresentou o amigo e esse rubor infantil que lhe cobriu o formoso rosto sincero agradou muito a Golenistchev. E o que mais lhe agradou ainda foi que Ana, para que não houvesse qualquer equívoco, na presença de estranhos, tratava Vronski pelo seu nome íntimo, contando mesmo que iam mudar-se para uma casa que acabavam de alugar e que ali era conhecida por palazzo. Este simples e recto modo de considerar a situação cativou Golenistchev. Observando as francas, alegres e resolutas maneiras de Ana e conhecendo como conhecia Alexei Alexandrovitch e Vronski, Golenistchev julgou compreendê-la plenamente. Até lhe pareceu compreender o que ela própria não compreendia de maneira alguma que pudesse sentir-se feliz e alegre depois de ter causado a desgraça do marido e do filho e de ter perdido a reputação.
- É um palácio que figura no Gaia - disse Golenistchev, referindo-se à casa que Vronski alugara - Há lá um excelente Tintoretto da última época.
- Está um lindo dia. Vamos ver de novo a casa? - propôs Vronski, dirigindo-se a Ana.
- Com muito gosto, vou pôr o chapéu. Está calor? - perguntou, detendo-se à porta e olhando para Vronski, interrogativa. De novo um intenso rubor se lhe espalhou nas faces.
Vronski compreendeu pelo olhar de Ana que ignorava em que termos ele queria manter se com Golenistchev e que receava não ter-se comportado consoante o seu desejo.
Vronski fitou-a longamente e com enternecimento.
- Não, não está muito - respondeu.
Ana julgou perceber que Vronski estava contente com ela e, sorrindo, saiu em passos rápidos.
Os dois amigos fitaram se e uma certa perturbação se lhe reflectiu no rosto Golenitschev, que sem dúvida admirava Ana, queria dizer qualquer coisa, mas não achava palavras Por sua vez, Vronski parecia desejá-lo e receá-lo ao mesmo tempo.
- Então estabeleceste te aqui? - perguntou Vronski para fazer conversa - Continuas a trabalhar nas mesmas coisas? - prosseguiu, lembrando-se de que Golenistchev lhe dissera que escrevia.
- Sim, estou à escrever a segunda parte de Os Dois Princípios - respondeu Golenistchev, muito contente com a pergunta -, isto é, para ser mais exacto, não a estou a escrever, estou a preparando, reúno material. Será muito extensa e tocará todos os problemas. Na Rússia não querem compreender que somos herdeiros de Bizâncio - e principiou a dar ao amigo uma extensa e calorosa explicação.
De começo, Vronski sentiu certa vergonha, pois não conhecia a primeira parte de Os Dois Princípios, obra de que o autor falava como se se tratasse de qualquer coisa muito conhecida. No entanto, depois de Golenistchev lhe expor as suas ideias, pôde acompanhá-las, mesmo desconhecendo a obra, e ouvia o amigo não sem interesse, porque falava muito bem. Surpreendia-o e desgostava-o, porém, a irritada emoção com que Golenistchev falava do tema tinha a peito. Quanto mais o aprofundava mais se lhe incendiavam os o mais rápido respondia aos supostos adversários e mais inquieta e ofendida era a sua expressão. Lembrava-se de Golenistchev rapazinho delgado e bondoso e nobre, sempre primeiro aluno no Corpo de Pajens, e não podia compreender o motivo daquela irritação e muito menos aprová-la. Desgostava-o principalmente que Golenistchev, homem da sociedade, descesse ao nível daqueles escribas e se enfadasse com eles. Valeria a pena? Mas dava-se conta de que o amigo era infeliz e tinha pena dele. A desgraça, a loucura, quase refletiam-se naquele rosto animado, assaz belo, quando, sem dar-se conta sequer de que Ana estava de volta, continuava a expor as suas ideias, apressada e calorosamente.
Quando Ana entrou, de chapéu e capa aos ombros, e se deteve junto a Vronski, brincando, num rápido movimento de mão, com o cabo da sombrinha, este, com uma sensação de alívio, desviou a vista do olhar sofredor de Golenistchev e contemplou com renovado amor a sua deliciosa amiga, plena de vida e contentamento. Golenistchev, pelo seu lado, voltando a si com dificuldade, mostrou-se triste e taciturno nos primeiros momentos. Contudo Ana, que a todos queria e estimava (assim era nessa época), não tardou a animá-lo com o seu trato simples e alegre. Depois de tentar vários temas de conversa, levou-o para a pintura, de que Golenistchev falava como entendido, e ouviu-o atentamente. Foram andando para a casa que haviam alugado.
- Estou muito contente com uma coisa - disse Ana a Golenistchev, quando voltavam. - Alexei terá assim um ateliê. Não deixes de ficar com aquela dependência - acrescentou, dirigindo-se a Vronski em russo e tratando-o por tu. Compreendera que Golenistchev, mercê da solidão em que vivia, lhe permitia tratá-lo como amigo e que não devia fingir diante dele.
- Dedicas-te à pintura? - perguntou Golenistchev, dirigindo-se bruscamente a Vronski.
- Sim, em tempos pintei, e agora voltei a interessar-me um pouco pela pintura - respondeu este, corando.
- Tem muito talento - disse Ana, com um sorriso alegre. - Aliás, não é a mim que compete dizê-lo, assim o dizem os entendidos.
CAPÍTULO VIII
Ana, naquele primeiro período de liberdade e de rápida convalescença, sentia-se muito feliz e era grande a sua alegria de viver. A lembrança da infelicidade do marido não lhe amortecia a ela a felicidade própria. Por um lado, era demasiado terrível essa lembrança para pensar nela e por outro proporcionara-lhe felicidade de mais para poder arrepender-se do que fizera. A lembrança do que lhe acontecera após a doença: a reconciliação com o marido, o rompimento, o desastre de Vronski, a visita deste, os trâmites do divórcio, o abandono do lar, a despedida do filho, tudo isso lhe parecia um pesadelo de que não acordara senão depois de se ver com Vronski no estrangeiro. A recordação do mal que causara ao marido despertava nela um sentimento em que havia como que repugnância. Sentia o que costuma sentir uma pessoa que, prestes a afogar-se, consegue libertar-se de outra que se lhe agarrou ao pescoço, deixando-a morrer. De facto, aquilo não estava certo, mas era a única maneira de se salvar. Mais valia não pensar nesses terríveis pormenores.
Um pensamento consolador acerca do procedimento que tivera lhe acudiu então ao espírito no primeiro lance do rompimento, e ao evocar mais tarde o passado de novo ele se lhe representara. "Causei a inevitável desgraça daquele homem", pensou, "mas não quero aproveitar-me dela. Também eu sofro e hei-de continuar a sofrer. Perco o que mais apreciava, o meu nome de mulher honrada, e perco o meu filho. Procedi mal e por isso mesmo não desejo ser feliz: não quero o divórcio, padecerei a desonra e a separação do meu filho." Mas apesar deste seu sincero desejo de sofrer, Ana não sofria. E não padecia desonra alguma. Com o tacto de ambos, evitavam, no estrangeiro, as senhoras russas e nunca se colocavam em falsas situações. Encontravam sempre quem fingisse compreender ainda melhor do que eles próprios a situação em que viviam. A perda do filho, a quem tanto queria, tão-pouco atormentara Ana de princípio. A menina era tão graciosa e cativara-a tanto desde que estava só com ela, que raras vezes se lembrava do menino.
A ânsia de viver, maior ainda desde que se salvara, era tão forte e as condições em que vivia tão novas e agradáveis que Ana se sentia muito feliz. Quanto mais conhecia Vronski, mais o amava. Queria-lhe por si mesma e pelo amor que ele lhe tinha. Tê-lo a ele por completo era para ela uma alegria constante; a sua presença não podia ser-lhe mais agradável. Às facetas do seu carácter, que cada vez conhecia melhor, queria-lhes indescritivelmente. O seu aspecto físico, muito mudado desde que se vestia à paisana, deslumbrava-a como a uma rapariguinha enamorada. Tudo o que ele dizia, fazia ou pensava era para Ana qualquer coisa de especial, de elevado e de nobre. A admiração que por ele sentia chegava, muitas vezes, a assustá-la: e então tentava ver nele alguma coisa de menos admirável. Não se atrevia a mostrar-lhe como se reconhecia insignificante. Afigurava-se-lhe que, se Vronski o viesse a saber, mais depressa deixaria de amá-la, embora, realmente, não tivesse motivos para recear semelhante coisa. O certo era, porém, que não podia deixar de lhe agradecer a maneira como a tratava nem podia deixar de lhe mostrar quanto o apreciava. Segundo ela, Vronski, com uma vocação tão definida para a carreira oficial, onde podia ter alcançado um alto posto, sacrificara por ela as suas ambições, sem jamais ter mostrado arrependimento, por menor que fosse. Tratava-a com mais carinho e respeito do que antes, sempre preocupado para que ela não sentisse a irregularidade da sua actual situação. Ele, tão varonil, não só a não contrariava nunca como parecia não ter vontade própria, procurando a cada passo adivinhar-lhe os desejos. E Ana não podia deixar de o apreciar, ainda que às vezes a fatigassem tantas atenções e o ambiente de cuidados em que se sentia envolvida.
Quanto a Vronski, embora visse realizado desejos que por tanto tempo acalentara, não era completamente feliz. Eterno equívoco de quantos julgam a felicidade a satisfação de todos os desejos, também ele apenas obtivera algumas poucas parcelas da ventura com que sonhara. Nos primeiros tempos, logo após a demissão que pedira do seu posto, muito bem lhe soube a liberdade conquistada. Mas o encantamento foi de curta duração: o tédio o veio substituir. Quase sem dar por isso, ei-lo a procurar novas aspirações, e até caprichos passageiros se lhe afiguravam sérias ambições. Ocupar dezasseis horas por dia no estrangeiro, isento do cumprimento de todos os deveres sociais a que estava habituado em Sampetersburgo, não era coisa fácil. Escusado pensar nas distracções a que se consagrara em viagens anteriores. Uma ceia com amigos levara
Ana a um acesso de desespero de algum modo intempestivo. Aliás, a situação não lhe permitia manter relações com a colônia russa ou a sociedade indígena. No que dizia respeito às curiosidades locais, além de as conhecer já, na sua qualidade de russo e de homem de espírito, não lhes atribuía a importância exagerada que os Ingleses costumam conferir a essa espécie de coisas. Como um animal esfaimado se precipita sobre o primeiro objecto ao alcance dos dentes, Vronski, inconscientemente, atirava-se a tudo que lhe podia servir de alimento: política, pintura, livros novos.
Em rapaz mostrara algumas aptidões para a pintura e, sem saber que fazer ao dinheiro, comprara uma colecção de gravuras. Eis, pois, que se decidira agora pela pintura para ter alguma coisa em que se entreter. Gosto não lhe faltava, e a isso associava uma capacidade de imitação que tomava por verdadeira faculdade artística. Julgava-se capaz de abordar todos os gêneros, pintura histórica, religiosa, realista, mas nem pela cabeça lhe passava que um pintor à inspiração obedecesse antes de mais nada, indiferente aos gêneros. Em vez de olhar para a vida real, só a via através das representações dos outros artistas. Eis por que não lograva pintar outra coisa que não fossem imitações, aliás agradáveis e facilmente conseguidas. Prezava acima de tudo as obras graciosas e de efeito da escola francesa, e nesse gosto principiara um retrato de Ana em trajes italianos. Todos os que viam esse retrato mostravam-se tão satisfeitos como o próprio Vronski.
CAPÍTULO IX
O velho e abandonado palazzo, de altos tectos apainelados, frescos nas paredes, o chão de mosaico, pesadas cortinas de seda amarela nas esguias janelas, jarrões nas consolas e chaminés, portas entalhadas e sombrias salas de paredes cobertas de quadros, dava a Vronski, desde que nele se instalara, quanto mais não fosse pelo seu aspecto exterior, a agradável ilusão de que não era proprietário russo e coronel reformado, mas pintor modesto (amador entendido e protector das artes) que renunciara ao mundo e às ambições por uma mulher amada.
O papel escolhido por Vronski ao mudar-se para o palazzo obteve um êxito completo, e como veio a conhecer, através de Golenistchev, algumas pessoas interessantes, nos primeiros tempos sentiu-se tranqüilo. Fazia esboços do natural sob a direcção de um professor italiano e estudava a vida medieval da Itália. Ultimamente, de tal sorte essa vida o havia cativado que principiara a usar chapéu e capa medievais, coisas que aliás lhe ficavam muito bem.
- Vivemos aqui sem nada sabermos do que se passa à nossa roda
- disse certa manhã Vronski a Golenistchev, que o fora visitar. - Viste o quadro de Mikailov? - acrescentou, apresentando-lhe um jornal russo que acabava de receber.
Era um artigo sobre um pintor russo que vivia naquela mesma cidade italiana e que terminara um quadro de que se falava muito e já estava vendido mesmo antes de concluído.
No referido artigo censurava-se o Governo e a Academia de Belas-Artes pelo facto de um pintor tão notável carecer de estímulo e de auxílio.
- Vi - respondeu Golenistchev. - Não lhe faltam qualidades, mas vai por um caminho completamente errado. Tem uma concepção de Cristo e dos temas religiosos inspirada em Ivanov, Strauss e Renan, sempre a mesma.
- Que representa o quadro? - perguntou Ana.
- Cristo diante de Pilatos. Cristo é figurado como um hebreu, com todo o realismo da nova escola.
Conduzido por aquela pergunta a um dos seus temas favoritos, Golenistchev principiou a expor as suas ideias.
- Não percebo como podem cair em erros tão vulgares. Cristo tem já uma encarnação definitiva na arte dos mestres antigos. Se querem representar um revolucionário ou um sábio, que vão à história e peguem em Sócrates, em Franklin ou em Carlota Corday, mas deixem Cristo em paz. É a única personagem em que a arte não devia tocar, e no entanto...
- É verdade que Mikailov é assim tão pobre? - perguntou Vronski, convencido de que ele, como mecenas russo, sem se preocupar com o valor do quadro, devia ajudar o pintor.
- Tenho as minhas dúvidas. É um retratista notável. Viram o retrato que ele fez da senhora Vaciltchikov? Acho, porém, que já não quer pintar mais retratos e por isso talvez precise de dinheiro. Creio que...
- Poderíamos pedir-lhe que pintasse o retrato de Ana Arkadievna? - perguntou Vronski.
- O meu retrato, por quê? - interveio esta. - Depois do retrato que tu me fizeste, não quero outro. É melhor que pinte o de Anny (assim chamava à filha). Ela aí vem - acrescentou, vendo, através da janela, a ama, a formosa italiana que fora passear a menina ao jardim. E relanceou um olhar furtivo a Vronski. A bela mulher, cuja cabeça Vronski pintava, era a única sombra negra na vida de Ana. Ao pintá-la, Vronski admirava-lhe a beleza e o aspecto medieval, e Ana, sem coragem de reconhecer que ela lhe inspirava ciúmes, tratava-a com particular afecto, a ela e ao filho.
Vronski também olhou para o jardim, depois fitou Ana, e, voltando-se em seguida, para Golenistchev, disse-lhe:
- Conheces Mikailov?
- Às vezes encontrava-o. É um homem excêntrico e sem educação. Um desses selvagens como agora se vêem muitas vezes, um desses livres-pensadores que se voltam d'emblée(Nota 42) para o ateísmo, para o materialismo, para a negação de tudo. Antigamente - continuou Golenistchev, sem deixar, que Ana ou Vronski abrissem a boca - o livre-pensador era um homem educado no respeito da religião, da lei, da moral, que não chegava a essa paixão senão depois de uma grande luta interior. Mas agora temos um novo tipo: esses livres-pensadores que se tornam livres-pensadores sem nunca terem ouvido falar de leis morais e religiosas e que apenas conhecem o sentimento da negação, numa palavra, uns autênticos selvagens. Mikailov pertence a esse número. Filho, segundo ouvi dizer, de um mordomo moscovita, não sabe o que seja educação. Depois de freqüentar a Escola de Belas-Artes e de ter adquirido certa reputação, quis instruir-se, pois não é nenhum tolo. Para isso recorreu àquilo que se lhe afigurou a fonte de toda a ciência, isto é, aos jornais e às revistas. Outrora, quando alguém queria instruir-se, por exemplo, um francês, que fazia ele? Estudava os clássicos, os teólogos, os dramaturgos, os historiadores, os filósofos. Estão a ver o trabalho que o esperava. No nosso país é tudo muito mais simples: basta uma pessoa atirar-se à literatura subversiva para muito rapidamente assimilar um extracto completo de tal ciência. Há uns vinte anos, ainda esta literatura mostrava vestígios da sua luta contra as tradições seculares, o quanto bastava para ensinar que tais coisas existiam, mas agora nem mesmo se dá ao trabalho de combater o passado, contenta-se em negar francamente: tudo é évolution, selecção, luta pela vida. No meu artigo...
Ana, que compreendera já nos olhares que trocara com Vronski que a este lhe não interessava a cultura do pintor e apenas desejava ajudá-lo, encomendando-lhe um retrato, disse, interrompendo, resolutamente, o palavreado de Golenistchev:
- Sabe o que devemos fazer? Vamos visitá-lo!
Golenistchev concordou, satisfeito, e como o atelier do artista ficava num bairro excêntrico decidiram tomar uma carruagem.
Uma hora depois, Ana Golenistchev e Vronski chegavam em frente de uma casa moderna, porém feia. A mulher do porteiro informou que Mikailov deixava visitar o atelier e que naquele momento estava em casa, a dois passos dali. Então os visitantes enviaram-lhe os seus cartões de visita, pedindo-lhe autorização para ver os seus quadros.
CAPÍTULO X
O pintor Mikailov estava a trabalhar, como sempre, quando lhe entregaram os cartões de visita do conde Vronski e de Golenistchev. Pela manhã trabalhara no atelier num quadro grande. Ao voltar para casa, zangara-se com a mulher, porque esta não respondera como devia à dona da casa, que lhe exigia o dinheiro da renda.
- Já te disse vinte vezes que não tens que dar-lhe explicações! És uma estúpida e quando te pões a explicar em italiano, então ficas estúpida de todo - dissera-lhe depois de uma grande discussão.
- Mas também por que te atrasas tu tanto no pagamento? Eu não tenho a culpa. Se tivesse dinheiro...
- Deixa-me em paz, por amor de Deus! - exclamou Mikailov, com a voz embargada de soluços.
E tapando os ouvidos enfiou para o gabinete de trabalho e fechou a porta. "Que estúpida!", exclamou para consigo mesmo. Abriu uma pasta e pôs-se a trabalhar com afinco num apontamento principiado. Nunca trabalhava com maior entusiasmo e acerto como quando as coisas lhe corriam mal e sobretudo quando discutia com a mulher.
"Oh, diabos me levem!", pensava enquanto prosseguia no seu trabalho. Desenhava a figura de um homem num acesso de cólera. Já tentara antes esse mesmo desenho, mas não ficara contente. "Não, o outro era melhor. Onde estará?" Foi ao quarto da mulher e, carrancudo, sem olhar para ela, perguntou à filha mais velha onde estava o papel que lhes dera. Acabaram por encontrar o papel com o desenho, mas sujo e cheio de pingos de estearina. Mesmo assim Mikailov pegou nele e pô-lo em cima da mesa. Depois, afastando-se e piscando os olhos, principiou a olhar para ele. De súbito, sorriu e bateu palmas alegremente.
- É assim! É assim! - exclamou. Pegando num lápis pôs-se a desenhar célere. Uma nódoa de estearina dava à figura nova atitude. Enquanto desenhava, Mikailov lembrou-se do rosto enérgico e proeminente do comerciante a quem comprava os cigarros e aproveitou-o para modelo do homem que desenhava. Desatou a rir, muito contente.
Subitamente, a figura, até aí morta e artificial ganhou vida e uma vida tão intensa que já nada a podia modificar. A figura vivia; clara e indiscutivelmente, podia dizer-se terminada. Era possível corrigir o apontamento segundo as exigências dessa figura, até podia, devia mesmo colocar-se-lhe as pernas de maneira diferente, mudar a posição da mão esquerda e repuxar os cabelos para trás. No entanto, ao proceder a tais correcções, Mikailov não modificaria a figura, desprezando tão-sòmente o que a ocultava. Era como se afastasse véus que a não deixavam ver. Cada novo traço lhe dava mais relevo, mostrando-a em todo o seu vigor, tal como se lhe aparecesse, a ele, Mikailov, a forma humana que a nódoa de estearina lhe fizera conceber. Ria de satisfação.
Acabava ele, cuidadosamente, este desenho quando lhe trouxeram os dois cartões de visita.
- Já vou! Já vou! - respondeu. Depois passou pelo quarto da mulher.
- Bom, basta, Sacha, não estejas zangada - disse-lhe, com um sorriso terno e tímido. - Ambos tivemos culpa. Eu arranjarei tudo.
Reconciliado com a mulher, enfiou um paletó cor de azeitona, de gola de veludo, pegou no chapéu e dirigiu-se ao atelier. Esquecera-se do desenho. Já não pensava noutra coisa senão na visita daquelas grandes personalidades russas, que de carruagem vinham admirar-lhe o quadro, esse quadro que ele, no seu foro íntimo, considerava único no gênero. Não que o julgasse superior aos de Rafael, mas a. impressão que ele produzia afigurava-se-lhe completamente nova. No entanto, apesar dessa convicção em que estava, convicção que datava do dia em que principiara o quadro, atribuía grande importância à opinião do público e a expectativa desses ruídos perturbava-o até ao fundo da alma. A mais insignificante observação em apoio do seu ponto de vista causava-lhe raptos de entusiasmo. Atribuía aos críticos uma profundeza de vistas que ele próprio não tinha e esperava vê-los descobrir no quadro aspectos que ele próprio ainda não reparara.
Avançava em passo largo e logo se sentiu surpreendido, apesar da emoção, com a presença de Ana, a qual, de pé à sombra do portal, conversava com Golenistchev e observava o artista. Este, sem mesmo ter disso consciência, imediatamente aferrolhava algures no cérebro a impressão que acabava de ter e de lá viria a exumá-la um dia como o mento do homem que lhe vendia charutos.
As descrições de Golenistchev predispuseram mal os visitantes para com o pintor, e o certo é que o aspecto exterior deste logo veio reforçar a prevenção em que estavam. Com o seu andar agitado e a sua gorda cara vulgar, onde a arrogância lutava com a timidez, esse rapagão atarracado, de chapéu castanho, paletó cor de azeitona e calça apertada, desagradou-lhes sobremaneira.
- Dêem-me a honra de entrar - disse ele, fingindo um ar indiferente, enquanto abria para os visitantes a porta do atelier.
CAPÍTULO XI
Quando entraram no atelier, Mikailov voltou a mirar os seus visitantes e fixou também na mente a expressão de Vronski e, sobretudo, as suas maçãs do rosto muito salientes. O senso artístico daquele homem trabalhava, a despeito da perturbação que o tomava, entesourando constantemente novos materiais. As suas observações finas e justas apoiavam-se em índices imperceptíveis. Aquele (Golenistchev) era um russo estabelecido na Itália. Mikailov lembrava-se, não do seu nome, nem do local onde o encontrara, nem das palavras que com ele trocara, mas muito simplesmente dos traços do seu rosto, como, de resto, acontecia com todas as pessoas que encontrava; e lembrava-se de o ter já classificado na imensa categoria das fisionomias destituídas de carácter, apesar do seu falso ar de originalidade. Cabelos compridos e a testa muito descoberta davam a esse rosto uma individualidade puramente exterior, enquanto que um vislumbre de expressão, uma agitação pueril se concentrava no estreito espaço que lhe separava os dois olhos. Quanto a Vronski e a Ana Mikailovna, imediatamente reconheceu neles dois russos distintos que, nada percebendo de coisas de arte, se davam ares, como acontecia a todos os russos abastados, de amadores e entendidos. "Naturalmente já percorreram todos os museus e depois de terem visitado o parlapatão de um alemão qualquer e depois de terem visto um desses pré-rafaelistas ingleses dignaram-se vir aqui para completarem a revista." Mikailov sabia muitíssimo bem que ao visitarem os ateliers dos artistas contemporâneos, os diletantes - a principiar pelos mais inteligentes - só pensam numa coisa: em proclamarem, com conhecimento de causa, a superioridade da arte antiga sobre a arte moderna. Esperava tudo isso e pela indiferença com que aqueles visitantes conversavam entre si, passeando pelo atelier, olhando a esmo bustos e manequins, dava-se conta de que assim era. No entanto, apesar de prevenido e da íntima convicção em que estava de que os russos abastados e de alta estirpe não passavam de imbecis e de brutos, exibia os seus estudos, com os estores e descobria o seu quadro com mão trêmula. Realmente não podia esconder que Vronski e Ana sobretudo lhe agradavam.
- Façam favor - exclamou ele, recuando alguns passos no seu andar desengonçado, para mostrar o quadro aos visitantes - É Cristo diante de Pilatos S. Mateus, CAPÍTULO 27. Sentiu que os lábios lhe tremiam de emoção e recuou para ficar atrás dos visitantes. Durante os segundos de silêncio que se seguiram, Mikailov olhou para o quadro, alheio, como se fosse um dos visitantes. Daquelas três pessoas, a quem ainda há momentos desprezava, aguardava agora uma sentença infalível. Banida a sua própria opinião e os méritos incontestáveis que havia três anos reconhecia ao seu quadro, via o agora com o olhar crítico e frio daqueles estranhos e nele não encontrou nada que se aproveitasse. Via, no primeiro plano, o rosto de Pilatos, de má catadura, e o de Cristo, sereno, e, no segundo, as figuras dos soldados de Pilatos e o semblante de S. João, que observava o acontecimento. Todas essas máscaras, com o seu carácter peculiar, conseguidas depois de tanta procura, de tantos erros e correcções e que tantos tormentos e tantas alegrias lhe tinham proporcionado, todas essas figuras, tantas vezes deslocadas em busca de harmonia do conjunto, dos matizes do colorido e dos tons que com tanto trabalho conseguira, tudo isso lhe parecia agora, visto através dos olhos dos visitantes, uma coisa trivial, milhares de vezes repetida. A máscara que mais apreciava, a de Cristo, ponto central do quadro, que tanto entusiasmo lhe despertara ao descobri-la, perdera todo o seu valor observada do ponto de vista dos visitantes. Via uma repetição bem realizada (e, até, não muito, pois estava vendo agora muitos defeitos), quer dos inúmeros Cristos de Ticiano, de Rafael e de Rubens, quer dos guerreiros e de Pilatos. Tudo aquilo era vulgar, pobre, velho, e, mesmo, mal pintado, em cores ordinárias e com pouco carácter Teriam toda a razão se apenas pronunciassem algumas frases de fingido elogio na presença do pintor e o lamentassem, troçando dele, quando se vissem a sós.
Aquele silêncio foi demasiado penoso para Mikailov (embora não tivesse durado mais de um minuto). Para o interromper e mostrar que não estava preocupado, fez um esforço sobre si mesmo, dirigindo-se a Golenistchev:
- Creio que já tive o gosto de o conhecer - disse, olhando, inquieto, ora para Ana ora para Vronski, para não perder um só pormenor da sua expressão.
- Efectivamente, encontrámo-nos em casa de Rossi. Não se lembra? Naquele serão em que declamou uma senhora italiana, a nova Raquel - replicou, com naturalidade, Golenistchev, afastando o olhar do quadro, sem que isso nada lhe custasse.
No entanto, ao perceber que Mikailov aguardava a sua opinião, disse:
- O seu quadro fez muitos progressos desde a última vez que o vi. E agora, como então, surpreende-me muito a figura de Pilatos. Está ali bem reflectido o homem bom e simpático que ele era, embora burocrata até ao fundo da alma, o homem que ignora por completo a seqüência dos seus actos. Mas parece-me.
O rosto vivo de Mikailov iluminou se subitamente, chisparam lhe os olhos. Quis dizer alguma coisa, mas, entupido pela emoção, fingiu tossir Embora apreciasse pouco a capacidade artística de Golenistchev, abstraído da insignificância daquela justa observação a respeito do rosto de Pilatos e da humilhação que resultava de um comentário tão insignificante, pois esquecia o principal, Mikailov sentiu-se entusiasmado com aquele parecer. Pensava da figura de Pilatos o mesmo que Golenistchev. Embora aquele comentário representasse apenas um entre dois milhões de comentários justos que podiam fazer-se ao seu quadro, nem por isso lhe pareceu menos importante a observação de Golenistchev. Despertava-lhe simpatia, e de súbito o abatimento em que estava transformou se em entusiasmo Imediatamente o quadro se animou, aos seus olhos, de uma complexidade inexplicável em tudo que tinha de vivo. Mikailov tentou repetir que também interpretava assim a figura de Pilatos, mas os lábios tremeram-lhe, a pesar seu, e não foi capaz de pronunciar palavra. Vronski e Ana falavam em voz baixa, como é hábito nas exposições, em parte para não incomodar o pintor e em parte também para não dizerem qualquer tolice em voz alta, coisa que tão facilmente pode suceder em assuntos artísticos Mikailov, persuadido de que o quadro também os impressionara, aproximou-se.
- Que expressão extraordinária a de Cristo? - disse Ana. De tudo quanto via o que mais lhe agradava era essa expressão. Percebera que representava o centro do quadro e que, elogiando-a, seria agradável ao pintor - Sente-se que tem pena de Pilatos.
Esta observação era também do número dos milhões de observações justas a fazer ao quadro e à figura de Cristo. Ana dissera que Cristo tinha pena de Pilatos. Era natural que o rosto de Cristo exprimisse a resignação perante a morte, renúncia a toda a palavra vã, paz sobrenatural, supremo amor, e, por conseqüência, piedade para com todos os inimigos Pilatos, ao contrário de Cristo, devia representar, necessariamente, a vida carnal, e, por conseguinte, ser figurado sob o aspecto de um vulgar burocrata. Entretanto o rosto de Mikailov iluminou-se.
- E que bem pintado! A atmosfera que se sente em volta desta figura! Podíamos andar à volta dela - disse Golenistchev, procurando mostrar, naturalmente, com esta observação que não aprovava o lado realista da figura de Cristo.
- Sim! Sim! Que mão extraordinária! - disse Vronski - E o relevo das figuras do segundo plano! É a isto que eu chamo técnica - acrescentou, dirigindo se a Golenistchev, a quem confessara, recentemente, a sua impotência para conseguir uma técnica assim.
- Não há dúvida, é extraordinário! - confirmaram Ana e Golenistchev.
Mas a observação de Vronski feriu Mikailov, que olhou para ele, franzindo o sobrolho.
Não compreendia lá muito bem o significado da palavra "técnica", mas várias vezes observara, até nos elogios que lhe faziam, que opunham habilidade técnica ao mérito intrínseco da obra, como se fosse possível pintar com talento uma má composição. Sabia, é certo, que era preciso muita destreza para fazer desaparecer, sem prejudicar a impressão geral, os véus, as aparências que escondem a verdadeira figura dos objectos; mas, na sua opinião, isso não fazia parte do domínio da técnica. Se uma criança ou uma cozinheira vissem o que ele via, eis quanto bastava para saberem dar corpo às suas visões. Em compensação, o mais hábil dos pintores técnicos não seria capaz de pintar mecanicamente sem ter primeiro a visão muito nítida da sua obra. Por outro lado, achava que a técnica, visto haver técnica, era precisamente o seu ponto fraco: nas suas obras, certos defeitos saltavam-lhe aos olhos, resultado, exactamente, da falta de prudência com que libertava os objectos dos véus que os escondiam.
- A única observação que me atrevo a fazer, se me dá licença... - disse Golenistchev.
- Pois claro, com muito gosto - respondeu Mikailov, com um sorriso forçado.
- É que o senhor pintou o homem-deus e não o Deus feito homem. Aliás, sei perfeitamente ser essa a sua intenção...
- Só podia pintar Cristo como eu próprio o compreendo - observou Mikailov, com expressão sombria.
- Nesse caso, desculpe um ponto de vista puramente meu. O seu quadro é tão notável que a minha observação em nada o poderá prejudicar... Aliás, o seu assunto é diferente. Mas vejamos, por exemplo, Ivanov(Nota 43). Por que quis ele reduzir o Cristo às proporções de figura histórica? Teria sido melhor escolher um tema novo, menos batido.
- Mas se este é o mais grandioso tema de toda a arte!
- Procurando, acabaria por encontrar outro. A arte, na minha opinião, não admite discussões. Ora, perante o quadro de Ivanov todas as pessoas, crentes ou incrédulas, formulam esta pergunta: é ou não um Deus? E a unidade da impressão é assim afectada por isso mesmo.
- Por quê? Acho que para as pessoas esclarecidas não pode haver mais dúvidas.
Golenistchev não era da mesma opinião e, convencido da sua ideia, acabou por derrotar o pintor numa discussão em que este não soube defender-se.
CAPÍTULO XII
Havia algum tempo já que Ana e Vronski se entreolhavam, deplorando a erudita verborréia do amigo. Por fim, Vronski aproximou-se de outro dos quadros pequenos, sem aguardar que o pintor o convidasse a vê-lo.
- Oh! Que maravilha! Que maravilha! É encantador! - exclamaram ao mesmo tempo Vronski e Ana.
"Que é que lhes terá agradado tanto!", pensou Mikailov. Já se não lembrava do quadro, pintado três anos antes. Esquecera o sofrimento e o entusiasmo que experimentara na composição dessa tela durante os meses em que viveu absorto nesse trabalho, dias e noites, coisa que, de resto, lhe acontecia sempre com as obras concluídas. Nem sequer gostava de olhar para elas; e se a expusera ali, era apenas porque aguardava um inglês que a queria adquirir.
- É um estudo muito antigo - disse.
- Mas é encantador! - exclamou Golenistchev, sem dúvida também fascinado pelo encanto do quadro.
Dois garotos pescavam com vara, à sombra de uns salgueiros. O mais velho, muito distraído, acabava de lançar a linha à água e desembaraçava a bóia presa num tronco: sentia-se todo entregue a esse grave cuidado. O outro, estendido na relva, com a cabeça loira, desgrenhada, apoiada no braço, olhava para a água com os seus olhos azuis muito cismadores. Em que estaria a pensar?
O entusiasmo que este quadro provocara despertou de novo em Mikailov a primitiva emoção; no entanto, ao mesmo tempo que a teima, desgostava-o aquela emoção inútil perante o passado. Eis por que, embora lhe agradassem os elogios, procurou desviar a atenção dos visitantes para um terceiro quadro.
Vronski, entretanto, perguntara-lhe se o queria vender. E Mikailov, perturbado pela presença daquela gente, não tinha ânimo para falar em assuntos de dinheiro.
- Está aí para vender - respondeu, franzindo o sobrolho, taciturno.
Assim que os visitantes saíram, Mikailov foi sentar-se diante do quadro do Cristo perante Pilatos, pensando no que lhe disseram e no que podia subentender-se dessas palavras. E coisa estranha, as observações que tão importantes lhe pareceram havia pouco na presença de estranhos e quando ele próprio se colocava no ponto de vista deles, agora não tinham significado algum. Observando o quadro como artista, voltava a adquirir a plena convicção do seu alto valor, recuperando, assim, a disposição de espírito de que carecia para continuar o trabalho.
O pé de Cristo estava desproporcionado. Pegou na paleta e mãos à obra. Enquanto corrigia o pé, olhava a todo o momento para a figura de São Jorge, no segundo plano, que considerava a última palavra da perfeição, e em que os visitantes nem sequer tinham reparado. Tentou mexer-lhe também, mas, para trabalhar como devia, precisava de sentir-se menos perturbado, no termo médio entre a frieza e a exaltação. Naquele momento a agitação é que levava a melhor. Quis cobrir a tela, deteve-se, soerguendo a funda numa das mãos, e pôs-se a sorrir extasiado para S. João. Por fim, conseguindo, a custo, pôr termo àquela extasiada contemplação, deixou descair a funda e voltou para casa, fatigado mas feliz. Ao regressarem ao palazzo, Vronski, Ana e Golenistchev iam muito animados e alegres. Falavam de Mikailov e dos seus quadros. A palavra "talento" com que designavam uma faculdade que entendiam inata, física, por assim dizer independente da inteligência e do coração, e com a qual queriam definir tudo que o pintor sentia, insinuava se muito amiúde na conversa, visto precisarem dela para designar qualquer coisa que não sabiam o que era. Entendiam que se podia negar talento a Mikailov, mas que esse talento não se desenvolvera nele por falta de cultura, enfermidade de que sofriam os pintores russos. O quadro dos dois garotos ficara-lhes gravado na memória e a cada passo se lhe referiam "Que maravilha! Que bem pintado e que simples! Não devemos perder a oportunidade. É preciso comprá-lo", dizia Vronski.
CAPÍTULO XIII
Mikailov vendeu o quadro a Vronski e acedeu a pintar o retraio de Ana. No dia aprazado, apresentou se no palazzo e principiou a trabalhar. Na quinta sessão já o retrato a todos assombrava, sobretudo a Vronski, não só pela flagrância dos traços, mas pela sua própria beleza. Era extraordinário como Mikailov pudera captar a particular beleza de Ana "Dir-se-ia ser necessário conhecê-la a amá-la como eu a amo para apreender essa expressão espiritual", pensava Vronski, embora na realidade só através do retrato tivesse surpreendido essa expressão. Tão flagrante era, porém, que tanto ele como os demais julgavam tê-la visto sempre assim.
- Luto há tanto sem nada conseguir - disse, referindo-se ao retrato que ele próprio estava a pintar. - E a ele bastou um olhar para logo a reproduzir. Ora aqui está a importância da técnica.
- Lá chegarás - consolou-o Golenistchev, convencido de que Vronski tinha talento e sobretudo cultura, o que devia permitir lhe uma elevada concepção da arte.
A convicção em que estava de que Vronski tinha talento assentava, principalmente, na necessidade em que vivia dos elogios dele aos seus próprios trabalhos e da sua simpatia para com este: eram louvores emprestados.
Numa casa estranha e especialmente no palácio de Vronski, Mikailov era um homem completamente diferente. Estava sempre a mostrar-se ostensivamente respeitoso, como se receasse amizades com pessoas a quem não considerava. A Vronski tratava-o por "Excelência", e, não obstante a insistência de Ana e dele, nunca ficava para jantar nem nunca os visitava fora das horas consagradas ao retrato. Ana mostrava-se mais amável para com ele do que para com qualquer outra pessoa e estava-lhe grata pelo retrato. Vronski ia um pouco mais além da cortesia, e não havia dúvida que lhe interessava muito o juízo de Mikailov sobre o que pintava. Golenistchev aproveitava todas as oportunidades para comunicar a Mikailov as suas ideias sobre arte. Este, porém, continuava a mostrar-se frio para com todos. Ana percebia, pelos olhares de Mikailov, quanto ele gostava de a contemplar, embora evitasse conversar com ela. Quando Vronski se punha a falar da sua própria pintura, Mikailov calava-se obstinadamente e o mesmo fez quando ele lhe mostrou o quadro que pintava. As conversas de Golenistchev, ao que parecia, incomodavam-no, e não costumava responder-lhe.
De modo geral, Mikailov, reservado e desagradável no trato, não agradou a ninguém quando vieram a conhecê-lo mais a fundo Foi com alívio que viram as sessões acabadas e Mikailov não voltar ao palazzo, deixando o quadro em recordação.
A Golenistchev coube ser o primeiro a exteriorizar a impressão por todos compartilhada, a saber, que Mikailov tinha inveja de Vronski
- Sim, não é inveja precisamente, visto que tem talento. Amesquinha-o a ideia de que um homem rico, cortesão e ainda por cima conde (toda essa gente odeia os títulos) consiga, sem esforço algum, tanto ou talvez mais do que ele, que à pintura consagrou a vida inteira. A cultura é que importa, e cultura é que ele não tem?
Vronski defendia Mikailov, mas, no fundo, era da mesma opinião, pois, segundo ele, um homem de uma esfera social inferior tinha, necessariamente, de se sentir invejoso.
O retrato de Ana, feito do natural, o de Mikailov e o dele, deviam apresentar as suas diferenças, mas Vronski não dava por elas. Só depois de Mikailov ter concluído o seu, Vronski desistiu de continuar o que ele próprio estava a pintar, dizendo que então já não valia a pena. Continuava, porém, a tela de assunto medieval. Tanto ele como Golenistchev, e Ana principalmente, eram de opinião de que esse quadro era excelente, pois se parecia muito mais com os quadros célebres do que o de Mikailov. Mikailov, por seu lado, apesar de muito lhe ter interessado o retrato de Ana, ainda se sentiu mais contente do que eles assim que o terminou: deixava de se ver obrigado a escutar as dissertações de Golenistchev sobre arte e podia esquecer-se até mesmo da pintura de Vronski Evidentemente que não podia proibi-lo de brincar com a pintura; tanto ele como os demais amadores estavam no seu direito de pintar o que lhes desse na gana. Mas isso indispunha-o. Claro que ninguém podia impedir que um homem fizesse uma grande boneca de cera e se pusesse a beijá-la. Mas se este homem viesse com a sua boneca sentar-se junto de um casal de namorados e principiasse a acariciá-la como um amante acaricia a mulher a quem ama, necessariamente que se sentiria mal. Eis o que Mikailov experimentava diante da pintura de Vronski. Além de lhe parecer ridícula, ofendia-o, provocava-lhe náuseas, sentia por ela compaixão. Durou pouco a paixão de Vronski pela pintura e pela Idade Média. Tinha suficiente instinto artístico para não concluir o quadro, reconhecendo que os seus defeitos, pouco evidentes de princípio, se tornavam clamorosos à medida que continuava a pintar. Coisa semelhante aconteceu a Golenistchev, o qual, percebendo que, no fundo, nada tinha para dizer, se iludia a si próprio, alegando que as suas ideias ainda não estavam maduras, que precisava de desenvolvê-las e que entretanto carrearia materiais. Todavia, enquanto este se irritava, Vronski mantinha perfeita calma: incapaz de se iludir a si próprio e muito menos de se azedar, limitou-se a abandonar a pintura, com a sua habitual decisão, sem procurar justificações para o evidente malogro.
O certo é, porém, que, sem aquela actividade, a vida breve se lhe tornou insuportável naquele local. Ana, surpreendida a princípio com esse desencanto, bem depressa estava a pensar como ele. O palazzo pareceu-lhes, de súbito, velho e sujo, foi-lhes desagradável ver as nódoas das cortinas, as gretas do soalho, o gesso esboroado das cornijas; e fartos de aturar Golenistchev, o professor italiano e o viajante alemão, sentiram necessidade de mudar de vida. Decidiram regressar à Rússia, fixando-se no campo. Vronski estava resolvido a proceder em Sampetersburgo à partilha das propriedades com o irmão e Ana queria tornar a ver o filho. Projectava passar o Verão nas terras da família Vronski.
CAPÍTULO XIV
Havia dois meses já que Levine se casara. Era feliz, mas não como o esperava. A cada passo surgiam decepções, embora compensadas por imprevistos encantos. Ao principiar a sua vida de família, via-se obrigado a reconhecer a cada instante que era muito diferente do que sempre imaginara. Exactamente como aquele que depois de admirar o barquinho que singra, sereno e ligeiro, pelas águas de um lago, verifica, ao pôr os pés a bordo, que não basta ir quieto lá dentro, mas que é preciso estar atento a todo o momento ao rumo a seguir e à água que lhe corre por baixo, e que tem de remar e que lhe doem as mãos não acostumadas aos remos, outro tanto ocorria com o seu casamento. Em suma: era bem mais fácil olhar, pois, o barco do que fazê-lo singrar.
Quando ainda celibatário, as pequenas misérias da vida conjugal
- disputas, ciúmes, mesquinhas preocupações - mais do que uma vez o tinham feito sorrir no seu foro íntimo. Supunha que, uma vez casado, não só nada disso sucederia com ele, como até o aspecto exterior dessa vida seria completamente distinto. No entanto, a sua vida de casado não se apresentava diferente. Parecia constituída precisamente dessas magnas ninharias que tanto depreciara e agora, a pesar seu, ganhavam uma importância indiscutível, extraordinária. E reconheceu não ser tão fácil como pensava evitar semelhantes pequenezas. Embora pensasse que conhecia muito bem a vida de família, como todos os homens, imaginava nela apenas as satisfações do amor, sem obstáculos nem contrariedades. Segundo ele, o amor devia ser a compensação do trabalho e a mulher contentar-se em ser adorada; esquecia que esta também tinha direito a uma certa actividade pessoal. Grande foi, pois, a sua surpresa ao ver, logo nos primeiros dias da vida em comum, a delicada e poética Kitty a pensar nos móveis, nos colchões, na roupa da cama, na mesa, na cozinha. Ainda em noivos o facto de ela se ter oposto à viagem de núpcias, preferindo desde logo instalar-se na aldeia, contrariara Levine: saberia ela melhor do que ele o que a ambos convinha? Como era possível que ela pensasse em qualquer outra coisa que não fosse o seu amor? E mesmo agora ainda não pudera habituar-se àquela sua preocupação com as coisas materiais, afinal inerente à natureza de Kitty. No entanto, embora, por isso mesmo, se mostrasse com ela quizilento, o certo é que gostava de a ver orientar a instalação dos móveis recém-chegados de Moscovo, arranjar os quartos a seu gosto, dependurar os cortinados, dispor este aposento para a Dolly, aquele para as visitas, acomodar a aia, destinar as refeições com o velho cozinheiro da casa, discutir com Agáfia Mikailovna e tirar-lhe as chaves da despensa. O cozinheiro sorria, admirado, quando ela lhe transmitia as suas instruções um tanto fantasistas, que não podiam executar-se, e Agáfia Mikailovna abanava a cabeça, pensativa, ao ouvir as novas ordens que lhe dava a nova ama. E esta, entre risonha e lamurienta, vinha queixar-se, ao marido, de Macha, a aia, que se não desabituava de a tratar por "menina", dizendo que ninguém a queria tomar a sério. Levine sorria, e conquanto a achasse encantadora, teria preferido que ela não metesse o bedelho em coisa alguma. Não podia compreender que, habituada a reprimir as suas fantasias em casa dos pais, agora, dona de casa, experimentasse como que uma vertigem o ver-se com autoridade para comprar montes de bombons, para encomendar os doces que lhe apetecessem, para gastar o dinheiro como lhe aprouvesse.
Se aguardava, impaciente, a chegada de Dolly era sobretudo para lhe mostrar a sua casa e mandar fazer para os sobrinhos a sobremesa de que eles mais gostassem. Sem saber porquê, as tarefas caseiras atraíam-na irresistivelmente. Embora pressentisse a Primavera, sabia que ainda haveria mais tempo e arranjava o ninho à sua maneira, dando-se pressa ao mesmo tempo em aprender a fazê-lo.
Esta preocupação de Kitty com as coisas miúdas, tão contrária ao elevado ideal de felicidade que Levine esperava dos primeiros tempos do seu casamento, constituía uma das suas desilusões. No entanto, essa simpática preocupação, que Levine não compreendia sem deixar de a apreciar, era também um dos seus novos encantos.
Desilusão e encanto ao mesmo tempo, e por outro lado eram as discussões. Levine nunca imaginara que entre ele e a mulher pudessem existir relações que não fossem ternas, amorosas e plenas de respeito. Mas a verdade é que nos primeiros dias de casados tanto discutiram que Kitty se pôs a chorar, dizendo que ele a não amava e que só se amava a si próprio.
A primeira discussão veio certo dia em que Levine fora de visita a uma granja nova e se atrasou meia hora, pois se perdera num atalho. Voltava para casa a pensar em Kitty, só em Kitty, no seu amor, na sua felicidade, e quanto mais se aproximava tanto maior era nele a ternura que sentia por ela. Entrou em casa a correr, tanto ou mais emocionado do que no dia em que entrara em casa dos Tcherbatski para pedir a mão de Kitty. Esta, porém, acolhera-o com uma expressão tão carrancuda como nunca lhe vira. Quis beijá-la e ela repeliu-o.
- Que tens tu?
- Diverte-te... - disse Kitty, procurando mostrar-se tranqüila e mordaz.
Quando, finalmente, falou, foi um nunca acabar de censuras por causa de uns absurdos ciúmes e pelo que sofrera aquela meia hora sentada, imóvel, junto à janela, à espera dele. Só então Levine compreendeu pela primeira vez o que não compreendera quando a levara da igreja depois da boda. Compreendeu que não só lhe queria muito, como ignorava, mesmo, onde terminava ela e onde principiava ele, tão dolorosa a sensação de desdobramento que sentira naquele momento. Ao princípio, pareceu magoado, mas não tardou a compreender que Kitty o não podia magoar, visto ser parte dele próprio. Era como quando sucede sentirmos de repente nas costas uma dor aguda e ao voltarmo-nos, com a impressão de que alguém nos feriu, verificarmos tratar-se apenas de uma pancada acidental e não termos outro remédio senão sofrer calados o mal do que no fim de contas só nós próprios somos responsáveis.
Nunca, depois, tornaria a sentir tão intensamente essa impressão.
Custou-lhe encontrar o equilíbrio. Queria demonstrar a Kitty a sua injustiça, mas, ao provar-lhe que era ela quem estava em erro, irrita-la-ia ainda mais. Um sentimento natural o compelia a arredar de si próprio a culpa, atribuindo-a a ela, e outro, mais forte ainda, a reparar o sucedido o mais breve possível para não se agravar o desacordo. Se ser vítima de uma injustiça era cruel, irritá-la com o pretexto de uma justificação, pior ainda. Muitas vezes acontece lutar um homem que dorme com um sofrimento de que desejaria libertar-se, verificando ao acordar que é no fundo dele próprio que o sofrimento reside. Eis como Levine teve de reconhecer que o melhor remédio era a paciência.
A reconciliação foi imediata. Kitty, embora o não dissesse, reconhecia-se culpada. E mostrando-se ainda mais terna, a felicidade dos dois maior se tornou. No entanto, estas coisas repetiram-se com freqüência, por motivos fúteis, imprevistos, que a ambos faziam sofrer e muitas vezes ficavam de mau humor, pois ignoravam ainda o que para um e outro realmente tinha importância. Aqueles primeiros meses foram penosos para os dois. O mais pueril pretexto provocava mal-entendidos, cuja origem não tardava a dissipar-se e a esquecer. Cada um deles repuxava para o seu lado a cadeia que a ambos unia e a lua-de-mel de que Levine esperava maravilhas findou, deixando-lhes recordações assaz penosas. Depois, ambos procuraram tirar da memória esses milhares de incidentes ridículos e vergonhosos de um período durante o qual muito raramente estiveram em estado de espírito normal. Só no decurso do terceiro mês, depois de alguns dias em Moscovo, a vida se lhes tornou mais regular.
CAPÍTULO XV
Acabavam de regressar de Moscovo e rejubilavam com a solidão. Levine, à secretária, escrevia; Kitty, com o seu vestido violeta, de que o marido muito gostava, pois ela trouxera-o nos primeiros dias do casamento, aninhada no grande divã de couro, desde tempos imemoriais ali no gabinete de Levine, consagrava-se à sua broderie anglaise(Nota 44). Levine pensava e escrevia, sem deixar de sentir, feliz sensação, a presença de Kitty. Não abandonara as suas ocupações de lavrador nem esquecera a obra entre mãos em que pensava expor as bases da nova economia doméstica. Tal como outrora essas ocupações e ideias pareciam-lhe insignificantes quando comparadas às trevas que envolviam a sua vida, considerava-as agora sem importância, ínfimas ao pé da sua vida futura, inundada de luz radiosa. Trabalhando sempre, notava agora que a atenção se lhe concentrava noutro objecto e que, por conseguinte, via as coisas de maneira diferente e mais claras. Antigamente, o trabalho era para ele a justificação da vida. Sem ele a existência ser-lhe-ia sombria de mais. Agora, porém, precisava de continuar esses trabalhos para que se lhe não tornasse demasiado monótona por excesso de luz. Ao pegar de novo nos seus papéis e ao reler o que já escrevera, chegou à conclusão agradável de que o assunto merecia que se ocupasse dele. Muitas das suas ideias anteriores afiguravam-se-lhe supérfluas e exageradas, embora algumas lacunas se lhe tornassem palpáveis ao rever, de memória, todo o assunto. Escrevia agora um novo capítulo sobre as causas da desvantajosa situação da agricultura na Rússia. Demonstrava que a pobreza russa provinha não só de uma má distribuição das terras e de uma orientação equívoca, mas também de uma civilização estrangeira anòmalamente enxertada no país durante os últimos tempos e muito principalmente dos meios de comunicação, pois os caminhos de ferro haviam determinado a centralização nas cidades e concorrido para o desenvolvimento do luxo, tudo em detrimento da agricultura. As novas indústrias fabris, o crédito, o jogo da bolsa, seu companheiro fiel, eram ainda conseqüências dessa mesma civilização estrangeira. Levine sustentava que, num desenvolvimento normal da riqueza do Estado, essas manifestações surgiam apenas quando a agricultura estava bem desenvolvida, em condições normais ou pelo menos definidas. Achava que a riqueza de um país devia aumentar de maneira uniforme e sobretudo de forma que outras fontes de riqueza não ultrapassassem a cultura agrária. Na sua opinião, os meios de comunicação deviam corresponder a um determinado estado dessa cultura agrária e que, dado o sistema russo de explorações agrícolas, os caminhos de ferro, conseqüência de uma necessidade política, não econômica, tinham chegado antes do tempo. Em vez de servirem de estímulo à economia agrária, como se esperava, superaram-na e paralisaram-na, provocando o desenvolvimento da indústria e do crédito. Sustentava que, tal como o desenvolvimento parcial e prematuro de uma parte do organismo animal impede o crescimento do todo, assim na Rússia o recurso ao crédito, as comunicações e a multiplicação das fábricas, talvez coisas necessárias na Europa, onde chegavam no momento oportuno, mas prejudiciais onde eliminavam o problema essencial - organização da agricultura -, tinham impedido o desenvolvimento da riqueza do país.
Enquanto Levine escrevia, Kitty pensava na amabilidade pouco natural do marido para com o jovem príncipe Tcharski, que se permitira cortejá-la, com pouco tacto, na véspera de saírem de Moscovo. "Tem ciúmes! Meus Deus! Que simpático e que tolo é! Tem ciúmes! Se ele soubesse que para mim valem tanto ou tão pouco como o Pedro, o cozinheiro", cismava, olhando para a nuca e para o pescoço vermelho de Levine, com uma estranha sensação de propriedade. "Ainda que me custe interrompê-lo no seu trabalho, não lhe faltará tempo para o fazer mais tarde; quero obrigá-lo a virar o rosto. Vamos a ver se percebe por que estou a olhar para ele. Quero que se volte para mim... Que se volte!" Kitty abriu mais os olhos, para reforçar o efeito daquele olhar.
- Sim, chamam a si todo o suco e adquirem um brilho falso - murmurou Levine, deixando de escrever, ao mesmo tempo em que notava que Kitty tinha os olhos nele. - Que é? - perguntou sorrindo e levantando-se.
"Voltou-se para mim", pensou ela.
- Nada, só queria que olhasses para mim - replicou Kitty, observando-o, desejosa de perceber se ele ficaria aborrecido com a interrupção.
- Que bom estarmos aqui os dois sozinhos! Quero dizer, para mim - exclamou Levine, aproximando-se da mulher, com um sorriso de felicidade em todo o rosto.
- E para mim também! Não me apetece ir a parte alguma, e muito menos a Moscovo.
- Em que estavas a pensar?
- Eu! Eu pensava... Não, não, continua a trabalhar, não te deixes distrair - volveu-lhe ela, franzindo os lábios. - Agora tenho de cortar todos estes olhinhos. Estás a ver?
Pegou na tesourinha de bordar.
- Não, diz-me lá em que estavas a pensar - repetiu ele, sentando-se ao lado dela com os olhos postos no movimento da tesoura.
- Em que estava eu a pensar? Em Moscovo e na tua nuca.
- Que fiz eu para merecer esta felicidade? Não é natural, é bonita demais - exclamou ele, beijando-lhe a mão.
- Não, quanto mais bonita é, tanto mais natural.
- Olha, tens aqui uma madeixa caída - disse ele, fazendo-a voltar a cabeça, cauteloso. - Vês?, aqui! Bom, vamos continuar o trabalho.
Mas não o fizeram, e quando Kuzma entrou, para lhes dizer que o chá estava na mesa, afastaram-se um do outro bruscamente, como se fossem apanhados em falta.
- Voltaram da cidade? - perguntou Levine ao criado.
- Agora mesmo. Estão a retirar a bagagem.
- Não te demores - disse Kitty, saindo do escritório. - De contrário leio as cartas sem ti. Depois vamos tocar a quatro mãos.
Quando ficou só, Levine pôs-se a arrumar os seus cadernos numa nova pasta, presente da mulher, lavou as mãos num lavabo novo, guarnecido de elegantes objectos de toucador, obra dela também, e, sorrindo para si mesmo, abanava a cabeça, como se se estivesse a reprovar. Atormentava-o qualquer coisa como um sentimento de remorso. A sua vida presente, de tão suave e tépida, quase lhe dava vergonha. "Não está certo viver assim", pensava. "Já se passaram quase três meses e ainda não fiz nada. Foi hoje a primeira vez que me pus a trabalhar a sério, e com que resultado? Ainda mal principiava, logo interrompia a tarefa. Até abandonei as minhas ocupações habituais. Nem sequer percorro a pé ou a cavalo a propriedade. Ora tenho pena de deixar a Kitty sozinha, ora penso que vai aborrecer-se. E eu que supunha a vida de solteiro uma inutilidade, a pensar que a vida verdadeira só principiava depois do casamento! Vai em três meses que casámos e nunca a minha vida foi tão ociosa e tão inútil. Não, isto não pode ser. Tenho de principiar a trabalhar. Claro que a culpa não é dela. Nada há que censurar-lhe. Eu é que devia ter sido mais firme, e defender a minha independência masculina. Se continuar assim, acabarei por adquirir maus hábitos e farei com que ela os adquira também..."
É muito difícil, porém, que um homem descontente não acabe por culpar seja quem for, e muito principalmente quem lhe está mais próximo. E Levine, confusamente, ia pensando que não era Kitty a culpada (ela não podia ser culpada de coisa alguma), mas a educação que tivera, demasiado superficial e frívola. "Este estúpido Tcharski! Nem sequer soube mantê-lo em respeito! A não ser com as coisinhas da casa, com o toucador, com a broderie anglaise, não se ocupa com mais nada. Tão-pouco mostra grande interesse pelas terras, pelos camponeses, pela música, que conhece bastante bem, ou pela leitura. Não faz nada e está plenamente satisfeita." Eis o que Levine pensava no seu íntimo sem compreender que se estava a preparar para um período de actividade que a obrigaria a ser ao mesmo tempo mulher, mãe, dona de casa, ama, educadora. Não percebia que, advertida por um instinto secreto acerca desta tarefa futura, se entregava àquelas horas de despreocupação e de amor, preparando alegremente o ninho futuro.
CAPÍTULOXVI
Quando Levine subiu ao primeiro andar, a mulher estava sentada diante de um samovar de prata e de um serviço de chá, novo também. Depois de haver instalado diante de uma mesinha Agáfia Mikailovna e de lhe ter servido uma chávena de chá, pusera-se a ler uma carta de Dolly, com quem mantinha correspondência assídua.
- Vê? A sua senhora mandou-me sentar junto dela - disse Agáfia Mikailovna, sorrindo com amizade para Kitty.
Graças a estas palavras, Levine depreendeu que se dera o desenlace da tragédia ultimamente desenrolada entre Agáfia Mikailovna e Kitty. Verificou que, apesar do desgosto que causara â velha criada, ao retirar-lhe as rédeas do governo, Kitty vencera, conseguindo fazer-se estimar.
- Abri uma carta para ti - disse Kitty, entregando a Levine uma missiva escrita por pessoa inculta. - É daquela mulher, da mulher do teu irmão, ao que parece... Não a li. E esta é da minha família e de Dolly. Imagina que Dolly levou o Gricha e a Tânia ao baile infantil dos
Sormatski! Tânia ia vestida de marquesa.
Levine já a não ouvia. Corando, pegou na carta de Maria Nikolaievna, ex-amante do seu irmão Nicolau, e pôs-se a lê-la. Era a segunda vez que lhe escrevia. Da primeira comunicava-lhe que o irmão a deixara, sem que ela tivesse culpa, e acrescentava, com uma ingenuidade comovedora, que, embora de novo na miséria, nada pedia nem desejava nada. A única coisa que a afligia era a ideia de que Nicolau Dimitrievitch estivesse a consumir-se sem ela, com tão pouca saúde como tinha, e pedia-lhe que cuidasse dele. Agora aludia a outra coisa. Depois do encontro com Nicolau Dimitrievitch, tinham voltado a juntar-se em Moscovo, indo depois para uma cidade da província, onde ele arranjara colocação. Ali brigara com o superior e de novo voltara para Moscovo, tendo piorado pelo caminho. Parecia tão doente que não era natural que se curasse. "Lembra-se sempre do senhor, e além disso não temos dinheiro."
- Lê o que Dolly diz de ti - exclamou Kitty com um sorriso; ao ver porém, a mudança que se operara no rosto do marido, calou-se, de repente. - Que tens? Que aconteceu?
- Diz-me que meu irmão Nicolau está à morte. Tenho de ir imediatamente.
A expressão de Kitty alterou-se-lhe, de súbito. Desapareceram-lhe da imaginação Tânia, vestida de marquesa, e Dolly.
- Quando partes? - perguntou-lhe.
- Amanhã.
- Irei contigo. Queres?
- Kitty! Que dizes? - exclamou Levine, num entono de censura.
- Que digo? - explicou ela, ofendida, ao notar o desgosto com que Levine acolhera o seu oferecimento. - Por que não hei-de eu ir? Não vou estorvar-te. Eu...
- Vou, porque meu irmão está à morte. Para que hás-de vir tu?...
- Para quê? Pela mesma razão que te diz para ires.
"Num momento tão grave para mim, a única coisa em que pensa é que vai aborrecer-se sozinha", pensou Levine. Eis o que o desgostou, tratando-se de assunto tão importante.
- É impossível - respondeu, secamente.
Agáfia Mikailovna, ao ver iminente uma discussão, pousou a chávena em silêncio e saiu da sala. Kitty nem deu pela sua saída. O tom das últimas palavras do marido ofendera-a muito particularmente. Via que ele não acreditava nela.
- Estou a dizer que, se partes, partirei contigo, irei, sem falta, contigo - disse, pressurosa e em tom irado. - Por que há-de ser impossível? Por que dizes tu que é impossível?
- Porque tenho de ir, só Deus sabe aonde e porque caminhos e estalagens... Tu apenas servirias para me embaraçar - replicou Levine, procurando não se alterar.
- Nada disso. Não preciso de nada. Onde tu puderes estar, eu...
- Quanto mais não seja, por causa dessa mulher, com quem tu não podes conviver.
- Não sei nada nem nada quero saber das pessoas que iremos encontrar. Só sei que o irmão do meu marido está à morte, que meu marido vai vê-lo e que eu vou com ele. Para...
- Kitty, não te zangues! Lembra-te de que num caso tão grave como este me é penoso ver-te misturar a uma dor verdadeira, como é a minha, uma verdadeira fraqueza: o receio que tens de ficar sozinha. Se sentes que te aborreces sem mim, vai para Moscovo.
- Como tu és! Sempre me atribuis sentimentos mesquinhos - exclamou ela, com a voz embargada por lágrimas coléricas. - Não se trata de fraqueza!... Entendo que o meu dever é não abandonar o meu marido num momento destes, mas tu confundes as coisas de propósito, queres magoar-me custe o que custar.
- Isto é horrível! Que escravidão! - gritou Levine, levantando-se, sem poder reprimir por mais tempo a sua indignação. Nesse mesmo instante, porém, compreendeu que se estava a ferir a si mesmo.
- Por que não ficaste solteiro? Serias livre. Para que te casaste, se já estás arrependido? - exclamou Kitty. E levantando-se de chofre correu para o salão.
Quando Levine veio ao seu encontro, Kitty soluçava.
Levine principiou a falar, procurando dizer qualquer coisa que se a não convencesse pelo menos a apaziguasse. Mas ela não o ouvia nem se apaziguava com coisa alguma. Então ele inclinou-se, pegou-lhe na mão, que se furtava, e beijou-a. Beijou os cabelos de Kitty e de novo lhe beijou a mão, mas ela continuava calada. No entanto, quando ele, agarrando-lhe o rosto entre as mãos, chamou: "Kitty!", aplacou-se repentinamente. Depois de chorar um momento, fizeram as pazes.
Resolveram partir juntos no dia seguinte. Levine declarou-se convencido de que Kitty apenas queria ser-lhe prestável e de que não havia inconveniente algum na presença de Maria Nikolaievna junto do irmão. Porém, no fundo da sua alma, ia descontente consigo mesmo e com a mulher. Com ela, porque o não deixara ir só quando assim lhe parecia necessário (que estranho!, havia tão pouco tempo ainda que não ousava acreditar na felicidade de ser amado por Kitty e agora estava-se a sentir infeliz por ela o amar de mais!), e consigo mesmo, por se não ter sabido impor. Além disso, no seu foro íntimo, não se conformava com a idéia de que Kitty viesse a privar com a companheira do irmão e pensava, horrorizado, nos atritos que daí podiam resultar. Só à ideia de que a sua mulher, a sua Kitty, partilharia do quarto de uma rameira o fazia estremecer de horror e repugnância.
CAPÍTULO XVII
A estalagem da capital de província onde se alojara Nicolau Levine era uma dessas estalagens rústicas que, embora construídas de acordo com as comodidades modernas e nas melhores intenções de higiene e conforto, quando não de elegância, graças aos hóspedes que habitualmente as freqüentam, rapidamente se convertem em tabernas imundas com pretensões, acabando por serem piores do que as antigas casas de pasto, que essas, ao menos, não escondem a imundície. A de Nicolau Levine já chegara a esse estado. Tanto o soldado, de sujo uniforme, fumando, sentado à porta, que, ao que parecia, desempenhava funções de porteiro, como a triste e desagradável escada de ferro fundido, o criado descarado, de casaco sebento, a sala, com um ramo de flores de cera, cobertas de pó, a enfeitar a mesa, a sujidade, a poeira, a desordem por todo o lado e ao mesmo tempo certa pretensão a estalagem de caminho de ferro de relativa categoria, tudo isto, após aquele tempo de recém-casados, produzia em Levine um efeito deprimente, antes de mais porque a falsidade de quanto o rodeava era o que havia de menos conforme com o que o aguardava.
Como sempre acontece, depois de lhes terem perguntado de que preço queriam o quarto, nenhum se aproveitava: num deles estava um inspector dos caminhos de ferro, no outro um advogado de Moscovo e num terceiro ainda a princesa Astafieva, que vinha da aldeia. Disponível apenas tinham um quarto sujo, prometendo-lhes o quarto ao lado para passarem a noite. Enfadado com a mulher, ao ver que se estava a dar exactamente o que imaginara, isto é, que, no momento da chegada, com o coração alanceado pela ideia de como encontraria o irmão, se veria obrigado a preocupar-se com ela em lugar de correr para junto dele, Levine acompanhou-a ao quarto que lhes fora destinado.
- Vai-te! Vai-te! - disse Kitty, olhando para ele com uma expressão entre tímida e culposa.
Levine saiu em silêncio, e junto à porta encontrou-se com Maria Nikolaievna, que soubera da sua chegada, mas não se atrevia a entrar. Era exactamente a mesma de Moscovo: vestia o mesmo vestido, com os braços e o colo desnudados e tinha a mesma expressão, pouco inteligente e bondosa, no rosto picado de bexigas, apenas um pouco mais cheio do que então.
- Como está? Como se sente ele?
- Muito mal. Está na cama. Espera pelo senhor. Está... está com a sua esposa?
Levine não percebeu, de princípio, o que a embaraçava tanto, mas ela logo se explicou:
- Irei para a cozinha. Ele vai ficar muito contente. Lembra-se dela do estrangeiro.
Ao perceber que ela se referia a Kitty, não soube que responder-lhe.
- Vamos, vamos! - disse.
Ainda não dera dois passos, porém, abria-se a porta do quarto e Kitty surgia no limiar. Levine corou, contrariado, ao ver a mulher colocá-los a ambos numa falsa posição. Maria Nikolaievna ainda corou mais do que ele: quase a chorar, colou-se à parede, colhendo com ambas as mãos a ponta do xale, que se pôs a enrodilhar nos dedos vermelhos, sem saber que fazer ou dizer.
Levine viu no olhar que Kitty relanceara à infeliz mulher, incompreensível para ela, uma expressão de ávida curiosidade; mas foi obra de um instante.
- Então como está ele? - perguntou Kitty, dirigindo-se, primeiro ao marido, depois à mulher.
- Não podemos falar aqui - exclamou Levine, olhando, furibundo, para um cavalheiro de pernas claudicantes que passava absorto na sua vida.
- Então entrem - disse Kitty, dirigindo-se a Maria Nikolaievna, que a pouco e pouco se refazia. Mas, ao ver o rosto aterrado do marido, acrescentou: - Ou então, o melhor é irem os dois primeiro e chamarem- me depois.
Voltou a recolher-se e Levine dirigiu-se ao quarto do irmão.
Não esperava ver nem sentir o que viu e sentiu. Supunha encontrar Nicolau naquele estado ilusório, tão característico dos tísicos, que tanto o impressionara quando da primeira visita que lhe fizera, e mais magro e mais debilitado também, com sintomas de um fim próximo, porém ainda com figura humana. Contava vir a sentir grande piedade por esse irmão querido e reencontrar, mais fortes ainda, os terrores que outrora lhe inspirava a ideia da morte. Preparava-se para tudo, mas viu algo muito diferente do que esperava.
Num quarto sórdido, em cujas paredes pintadas os hóspedes deviam escarrar, separado do quarto contíguo, onde se ouviam vozes, por uma divisória insuficiente, numa atmosfera impregnada de maus cheiros, jazia, numa cama ligeiramente afastada da parede, um corpo com uma manta por cima. Uma das mãos desse corpo, que mais parecia um ancinho, estranhamente ligada a uma espécie de comprido fuso, alongara-se pela coberta. A cabeça, reclinada no travesseiro, deixava ver os cabelos ralos, que o suor colava às fontes, e uma testa por assim dizer transparente.
"Será possível que este cadáver seja meu irmão Nicolau?", pensou Levine. Mas assim que se aproximou da cama, as dúvidas desvaneceram- se-lhe: bastou-lhe relancear a vista aos olhos que o outro levantou para ele e observar o ligeiro movimento dos lábios por baixo do bigode empastado, para compreender a terrível verdade: aquele corpo morto era o seu irmão vivo.
Os olhos brilhantes de Nicolau cravaram-se em Levine, graves e repreensivos. E imediatamente uma comunicação viva se estabeleceu entre eles. Levine notou a censura e sentiu remorsos, só com o lembrar-se de que era feliz.
Quando Constantino lhe pegou na mão, Nicolau sorriu. Era um sorriso débil, quase imperceptível, e não obstante não se alterar a expressão severa dos olhos do doente.
- Não esperavas encontrar-me assim - disse, a custo.
- Sim... Não - respondeu Levine, cuja língua se lhe entaramelara. - Por que me não avisaste antes? Isto é, antes de eu me casar. Andei à tua procura por toda a parte.
Tinha de falar, para não estar calado, mas não sabia que dizer, tanto mais que o irmão lhe não respondia, limitando-se a fitá-lo, fixamente, e a pesar, ao que parecia, o sentido de cada palavra. Levine disse ao irmão que Kitty viera com ele. Nicolau mostrou-se contente com isso, embora, ao mesmo tempo, receoso de a assustar com o estado em que estava. Houve um silêncio. De repente, o doente agitou-se e principiou a falar. Levine esperava que ele dissesse qualquer coisa importante, a avaliar pela expressão que lhe ia no rosto, mas Nicolau falou da sua saúde, acusou o médico, lamentando que não estivesse ali o célebre professor de Moscovo, percebendo Levine que ele ainda alimentava esperanças de cura.
Aproveitando o primeiro silêncio que se fez, Levine levantou-se na esperança de se libertar, por instantes, daquele sentimento penoso, alegando que ia chamar a mulher.
- Muito bem, e eu vou dizer que mandem limpar isto. Parece-me tudo sujo e cheirando mal. Macha, arranja o quarto - articulou o enfermo, dificultosamente. - E logo que acabes, vai-te embora - acrescentou, olhando interrogativo para o irmão.
Levine não respondeu. Ao sair do quarto, deteve-se no limiar da porta. Dissera que ia chamar a mulher, mas agora, ao dar-se conta do sentimento que experimentava, decidiu, pelo contrário, persuadi-la a que não fosse visitar o enfermo. "Para que há-de ela ir atormentar-se como eu?", disse de si para consigo.
- Então, como está ele? - perguntou Kitty, assustada.
- Oh! É terrível, terrível! Para que vieste tu?
Kitty calou-se por instantes, olhando para o marido entre tímida e apaixonada; depois aproximou-se dele e pegou-lhe no braço com ambas as mãos.
- Kóstia, leva-me, que o quero ver. Juntos suportaremos isto melhor. Leva-me, por favor. E depois vai-te. Quero que compreendas que me é muito mais penoso prescindir a tua dor sem lhe conhecer a causa. Ali talvez eu seja útil aos dois. Peço-te, deixa-me ir contigo - suplicou Kitty, como se a felicidade da sua vida dependesse disso.
Levine teve de ceder, e serenando, esquecido por completo de Maria Nikolaievna, dirigiu-se com Kitty para o quarto do irmão.
No seu andar ligeiro, de olhos no marido, a quem mostrava um rosto animado e cheio de compaixão, Kitty penetrou no quarto do enfermo. Depois, voltando-se devagar, fechou a porta sem ruído. Aproximou-se, calada, da cama de Nicolau e colocou-se de modo a que este não precisasse de voltar o rosto para a ver. Em seguida, com a mão jovem e fresca, pegou na,enorme mão do doente e apertando-a nas suas principiou a falar com aquela vivacidade, segredo das mulheres em que o tom de piedade não ofende.
- Estivemos juntos em Soden, mas ninguém nos apresentou - disse ela. - Nessa altura não lhe passaria pela cabeça que eu ainda viria a ser sua irmã.
- Não me teria reconhecido, não é verdade? - perguntou ele.
Assim que a vira entrar no quarto, o sorriso iluminara-lhe o rosto.
- Claro que sim! Fez muito bem em mandar avisar-nos; todos os dias Kóstia me falava de si e se mostrava preocupado consigo.
Mas a animação do doente foi breve.
Ainda Kitty não acabara de falar, já se reflectia de novo no rosto de Nicolau uma expressão severa e de censura, essa inveja dos vivos, tão própria dos moribundos.
- Receio que não esteja bem aqui - disse Kitty, evitando o olhar fixo do doente e examinando a quadra. - Temos de pedir outro quarto ao dono da estalagem, aliás para ficar mais perto de nós - continuou, dirigindo-se ao marido.
CAPÍTULO XVIII
Levine não podia olhar para o irmão com serenidade nem mostrar-se natural e tranqüilo na sua presença. Quando entrava no quarto dele, velavam-se-lhe os olhos e a atenção, incapaz de ver ou compreender pormenores da pavorosa situação do doente. Notava um terrível cheiro, via a imundície e a desordem à sua volta, dava-se conta de tudo isso sem saber como remediar o que via. Não lhe ocorria verificar a posição do doente, examinar-lhe o corpo debaixo da roupa, ver como teria ele dobradas as pernas enfraquecidas, se teria as costas apoiadas ou se seria possível aliviá-lo, ajeitando-o um pouco melhor. Se tentava pensar nesses pormenores, um calafrio lhe percorria a espinha. Estava firmemente convencido de que nada podia fazer-se para prolongar a vida de Nicolau nem para lhe minorar o sofrimento. E o doente, percebendo que o irmão considerava inútil tudo quanto se fizesse, exasperava-se, o que mais concorria para angustiar Levine. Estar no quarto do doente era-lhe penoso, mas ainda lhe parecia pior lá não estar. Não fazia senão entrar e sair, servindo-se de todos os pretextos, incapaz de ficar só com o irmão.
Kitty, porém, sentia e agia de maneira muito diferente. Quando viu o doente, teve pena dele. E a compaixão despertou na sua alma de mulher um sentimento muito diverso desse misto de horror e repugnância que o marido sentia. Experimentou a necessidade de agir, de se inteirar em todos os seus pormenores do estado de Nicolau e de o ajudar, portanto. E como nem um só instante teve dúvidas quanto a se deveria ou não fazê-lo nem tão-pouco duvidou da possibilidade de levar a cabo esse propósito, ei-la imediatamente de mãos à obra. As coisas em que o marido se sentia aterrado só de pensar nelas, chamaram logo a atenção de Kitty. Mandou Levine ao médico e à farmácia, ao mesmo tempo que ordenava à criada que trouxera consigo e a Maria Nikolaievna que varressem, limpassem o pó e esfregassem enquanto ela própria ajeitava a roupa da cama do doente. Por sua ordem foram trazidas coisas que faltavam no quarto e dele foram levadas outras. Várias vezes entrou no aposento, indiferente às pessoas que encontrava no corredor, carregando lençóis, toalhas, camisas, travesseiros.
O criado que servia o jantar aos engenheiros no refeitório comum acudiu várias vezes, pouco satisfeito, ao chamamento de Kitty, mas nem por isso deixou de cumprir as ordens que esta lhe deu. Com tão suave insistência ela o fazia, que não podia recusar-lhe nada. Levine não aprovava tudo o que via, certo de que nenhum resultado prático daí adviria para o estado do doente. Sobretudo, receava que ele se enfadasse. Mas a verdade é que não se enfadava; permaneceu calmo, embora um pouco confuso, seguindo com interesse tudo quanto Kitty fazia. Levine, ao voltar de casa do médico, aonde fora por indicação da mulher, quando abriu a porta do quarto viu-a que mudava a roupa do doente. Com o seu grande e alvo tronco, as suas enormes omoplatas, a sua saliente coluna vertebral e as suas proeminentes costelas, tudo descoberto, deixava que Maria Nikolaievna e o criado lhe introduzissem os compridos e delgados braços nas mangas da camisa. Mal Levine entrou, Kitty fechou a porta. Não olhava para o doente, mas assim que este se queixou, foi logo direita a ele.
- Depressa! - exclamou.
- Não se aproxime - murmurou, colérico, o enfermo. - Eu arranjo-me sozinho...
- Que diz? - perguntou Maria Nikolaievna. Mas Kitty ouvira e compreendera que Nicolau se envergonhava de que o vissem naquele estado.
- Eu não olho - disse ela, ajudando a enfiar o braço na manga da camisa. - Maria Nikolaievna, passe para o outro lado da cama e ajude-me. Por favor, Kóstia, vai ao nosso quarto e traz-me um frasco que está na bolsa direita da minha mala. Entretanto acabaremos a limpeza- acrescentou, dirigindo-se ao marido.
Ao voltar com o frasco, Levine encontrou o doente na cama e à sua volta tudo completamente mudado. O ar viciado exalava agora um cheiro a vinagre aromático que Kitty espalhara pelo quarto, soprando num pequenino tubo. O pó desaparecera, ao lado da cama havia um tapete, numa mesinha alinhavam-se os remédios, uma garrafa, a roupa necessária e a broderie anglaise de Kitty. Na outra mesa, junto à cama, estavam uma vela e medicamentos. O doente, lavado, penteado, deitado em lençóis asseados e reclinado em travesseiros, vestia uma camisa nova cujo colarinho branco lhe realçava a magreza do pescoço. Nos seus olhos, que se não apartavam de Kitty, havia um vislumbre de esperança.
O médico que Levine encontrara no clube não era o que tratava Nicolau. Auscultou minuciosamente o enfermo, abanou a cabeça, receitou e deu pormenorizadas indicações acerca dos remédios que ele devia tomar e a dieta prescrita. Aconselhou que tomasse ovos frescos quase crus e com o leite, aquecido a uma determinada temperatura, água de Seltz. Quando ele saiu, o doente disse ao irmão algumas palavras, mas Levine apenas conseguiu captar as últimas: "a tua Kátia." Percebeu, porém, pelo seu olhar, que estava a elogiar-lhe a jovem esposa. Depois chamou Kátia, que assim a designava.
- Já me sinto muito melhor - disse ele. - Se a tivesse junto de mim, há muito estaria curado. Ah, que bem que eu me sinto!
Procurou aproximar os lábios da mão da cunhada, mas, receoso de lhe desagradar, contentou-se em acariciá-la. Kitty apertou-lhe afectuosamente a mão entre as suas.
- Volte-me agora para o lado esquerdo e vão todos dormir - murmurou ele.
Apenas Kitty percebeu o que ele dizia, pois só ela pensava a todo o momento no que lhe poderia ser útil.
- Temos de o virar para o outro lado - disse ao marido. - Está habituado a dormir sempre assim. Vira-o tu mesmo, é uma violência chamar os criados. Eu não tenho forças. E a menina? - perguntou, dirigindo-se a Maria Nikolaievna.
- Tenho medo - respondeu esta.
Apesar do horror que Levine sentia em estreitar esse corpo pavoroso e em agarrar, por debaixo da roupa, esses membros que preferia ignorar, cedeu à vontade da mulher. Adoptando uma expressão decidida, que Kitty muito bem lhe conhecia, meteu as mãos por dentro da roupa e pegou no doente. Apesar da força que tinha, sentiu-se perplexo com o peso extraordinário daquele corpo extenuado. Ao virá-lo para o outro lado, sentiu em torno do pescoço o braço enorme e delgado do irmão. Kitty sacudiu o travesseiro e virou-o rapidamente, ajeitando os cabelos do doente, que de novo se lhe tinham colado às fontes.
Nicolau reteve a mão de Levine. Este notou que ele queria alguma coisa e que a puxava para si. Abandonou-lha, o coração apertado. O doente aproximou-a dos lábios e beijou-a. Abalado pelos soluços e sem forças para falar, Levine correu para a porta do quarto.
CAPÍTULO XIX
"Revelou às crianças o que ocultou dos sábios", pensava Levine, enquanto conversava nessa noite com a mulher.
Não é que se considerasse sábio por citar estas palavras do Evangelho, mas era obrigado o reconhecer, por um lado, ser mais inteligente do que a mulher e do que Agáfia Mikailovna e, por outro, quando pensava na morte, esse pensamento dominava-o por completo. O mistério terrível da morte grandes espíritos o haviam tentado sondar, tal qual como ele com todas as forças da sua alma. Lera os seus escritos, mas a verdade é que eles pouco mais sabiam sobre isso do que a sua velha criada e a sua Kátia, como agora chamava à mulher, seguindo, com manifesta satisfação, o exemplo de Nicolau. Estas duas criaturas, aliás tão diferentes uma da outra, neste particular eram de uma semelhança extrema. Ambas conheciam, sem a mínima dúvida, o sentido da vida e da morte e, conquanto incapazes, por certo, de responderem às interrogações que se levantavam no espírito de Levine - incapazes mesmo de as compreender -, deviam explicar da mesma maneira o problema do destino e partilhar a sua crença sobre isso com milhões de seres humanos. E a prova dessa sua familiaridade com a morte ali estava na maneira como se aproximavam dos moribundos sem o mínimo temor, enquanto Levine e aqueles que como ele se consagravam a discorrer sobre o tema da morte temiam esta sem saberem por quê e eram incapazes de prestar auxílio a um agonizante. Sozinho ao lado do irmão, Levine ter-se-ia contentado em aguardar o seu fim cheio de pavor. Nem sequer sabia onde deter os olhos, como caminhar ou que palavras proferir. Falar de coisas indiferentes, afigurava-se-lhe ofensivo, falar de coisas tristes, impossível, calar-se, não era melhor solução. "Se olho para ele, vai pensar que estou a observá-lo; se não olho para ele, supõe que estou a pensar noutra coisa. Se caminho em bicos de pés, zangar-se-á, e não sou capaz de caminhar normalmente."
Kitty, pelo contrário, não tinha tempo para pensar em si própria. Exclusivamente preocupada com o doente, parecia ter o sentido exacto do comportamento que lhe convinha e tudo quanto tentava fazer fazia-o com perfeição. Contava-lhe coisas do seu casamento, falava-lhe de si própria, sorria-lhe, lastimava-o, acariciava-o, referia-lhe casos de cura. A sua actividade não era, aliás, nem instintiva nem reflectida. Tal como Agáfia
Mikailovna, algo mais importante do que os cuidados físicos a preocupavam. Referindo-se ao velho criado que acabava de morrer, Agáfia Mikailovna dissera-lhe: "Louvado seja Deus, recebeu o Senhor, os santos óleos; Deus dá o mesmo fim a todas as pessoas!" Pelo seu lado, apesar das preocupações com a roupa, as poções, os tratamentos, Kitty conseguira, logo desde o primeiro dia, predispor o cunhado para receber os sacramentos.
Ao voltar para os seus aposentos no fim do dia, Levine sentou-se, cabisbaixo, sem saber que fazer, incapaz de cear, de instalar-se, de prever alguma coisa, nem sequer em estado de falar com a mulher, tão grande a confusão que sentia. Kitty, pelo contrário, mostrava-se mais activa e animada do que nunca. Mandou vir a ceia e foi ela quem desfez as malas e quem ajudou a fazer as camas, que teve o cuidado de pulverizar com pós insecticidas. Tinha a excitação, a rapidez de concepção que experimentam certos homens na véspera de uma batalha ou numa hora grave e decisiva da sua vida, quando se apresenta a oportunidade de mostrarem do que são capazes.
Ainda não soara meia-noite, já tudo estava convenientemente arrumado; aqueles dois quartos de hotel tinham agora o aspecto de aposentos íntimos. Junto à cama de Kitty, em cima de uma mesa com um napperon branco viam-se o seu espelho, as suas escovas e os seus pentes. A Levine parecia imperdoável comer, dormir, falar sequer, e não havia movimento que lhe não parecesse inconveniente. Kitty, pelo contrário, arrumava as suas coisas, sem que na sua actividade houvesse qualquer coisa de chocante. No entanto, não puderam comer e estiveram acordados até tarde, sem resolverem deitar-se.
- Estou muito contente por ter conseguido convencê-lo a receber amanhã a extrema-unção - disse Kitty, que, de camisa de noite, diante do espelho de viagem, penteava os cabelos perfumados. - Nunca vi administrar esse sacramento, mas a mãezinha contou-me que se dizem orações pedindo as melhores do doente.
- Achas que ele possa melhorar? - perguntou Levine, olhando por detrás a redonda cabeça de Kitty, cuja risca desaparecia quando o pente se aproximava da testa.
- Perguntei ao médico. Disse-me que não poderá viver mais de três dias. Mas que sabem eles? Estou contente por tê-lo convencido - disse ela, olhando o marido de soslaio, por debaixo do cabelo. - Tudo pode acontecer - acrescentou, com essa expressão especial de quase astúcia que se lhe reflectia no rosto quando falava da religião.
Depois da discussão sobre matéria religiosa ainda noivos, nem Levine nem Kitty tinham voltado a falar no assunto, embora ela continuasse a cumprir os mandamentos da Igreja, assistindo à missa e rezando, sempre com a tranqüila convicção de que assim deveria ser.
Apesar das afirmações de Levine em contrário, Kitty estava persuadida de que ele era tão bom cristão como ela, quiçá melhor, e que tudo o que lhe dizia a esse respeito era somente um desses ditos absurdos dos homens no gênero do que ele costumava dizer, arreliando-a por causa da broderie angiaise: "As pessoas de tino penteiam os buracos", dizia-lhe ele, "mas tu, tu fazes buracos de propósito."
- Sim, esta Maria Nikolaievna não teria sabido arranjar nada disto - disse Levine. - E, francamente, estou muito contente por teres vindo... És tão pura que...
Levine pegou na mão de Kitty, mas não a beijou; parecia-lhe indigno, com a morte ali tão próxima. Limitou-se a apertá-la entre as suas e a olhar com expressão culpada os olhos da mulher, que se iluminaram.
- Terias sofrido muito sozinho - disse ela, e, levantando os braços que lhe escondiam o rosto ruborizado de satisfação, amarrou as tranças na nuca, prendendo-as com uns grampos. - Não, essa mulher nada saberia fazer, mas eu felizmente aprendi muitas coisas em Soden - continuou.
- Pois havia lá doentes assim?
- E piores.
- Não podes calcular o que eu sofro por não poder vê-lo como ele foi quando ambos éramos rapazinhos... Que adolescente encantador! Mas então eu não o compreendia.
Acredito, acredito. Parece-me que "teríamos sido" bons amigos - disse Kitty.
E voltou-se para o marido, de lágrimas nos olhos, muito surpreendida por ter falado no passado.
- Sim, "terias sido" - anuiu Levine, tristemente. - É um desses homens de quem se pode dizer que não foram feitos para este mundo.
- Ainda temos muitos dias diante de nós. Vamos dormir-disse Kitty, depois de consultar o minúsculo relógio.
CAPÍTULO XX
A MORTE
No dia seguinte Nicolau comungou e recebeu a extrema-unção.
Durante a cerimônia rezou com fervor. Nos seus grandes olhos, fitos no ícone, colocado numa mesinha de jogo coberta com um pano de cor, havia uma súplica tão veemente e tão esperançada que Levine, ao olhar para ele, sentiu-se aterrado. Levine sabia que aquela súplica e aquela esperança apenas contribuiriam para tornar mais dolorosa a separação dessa vida que o irmão tanto amava. Conhecia a maneira de pensar de Nicolau, constava-lhe que a sua falta de fé não se dera pelo facto de lhe ser mais fácil viver sem ela, mas apenas porque, a pouco e pouco, as explicações científicas dos fenômenos do universo o tinham afastado dela. Tão-pouco ignorava, portanto, que aquele regresso à fé não era o resultado de qualquer meditação; não era sincero, mas momentâneo, egoísta, produto de uma desatinada esperança em curar-se. Sabia também que Kitty lhe alimentava essa esperança com casos extraordinários de cura de que lhe falara. Eis por que lhe era muito doloroso ver aquele olhar cheio de súplica e de esperança, aquela mão emaciada, que se erguia a custo para fazer o sinal-da-cruz na testa descarnada, os ombros salientes e o peito oco, onde não cabia já a vida por que rezava. Durante a cerimônia, Levine fez o que, apesar da sua incredulidade, mil vezes fizera: "Se existes, faz com que este homem se cure, e assim o salvarás a ele e a mim", murmurou, dirigindo-se a Deus. Depois dos santos óleos, o doente sentiu-se muito melhor. Durante uma hora não tossiu uma só vez e sorria, beijando a mão de Kitty e agradecendo-lhe, de lágrimas nos olhos. Dizia que se sentia bem, que não lhe doía nada e que tinha apetite e forças. Até se sentou na cama, quando lhe serviram a sopa, e pediu mais uma almôndega. Apesar do seu estado desesperado e de ser evidente que não podia curar-se, Kitty e Levine estiveram animados durante essa hora, sentindo-se felizes, embora temendo enganar-se.
- Está melhor?
- Estou, estou muito melhor.
- É extraordinário.
- Não há nada de extraordinário nisso.
- Seja como for, está melhor - diziam, num sussurro, sorrindo.
Essas melhoras duraram pouco. O doente adormeceu tranqüilamente, mas, meia hora depois, era acordado pela tosse. E, de repente, todas as esperanças se desvaneceram, tanto nele como nos que o rodeavam. Sem dar lugar a dúvida e sem deixar rasto algum, a realidade do sofrimento aniquilou todas as esperanças que tinham alimentado.
Sem se referir sequer às coisas em que acreditava meia hora antes, como se se envergonhasse de as lembrar, Nicolau pediu que lhe dessem o frasco de iodo, que tinha no gargalo um papel perfurado por onde respirava. Levine deu-lho. E o mesmo olhar de esperança fervorosa com que o doente recebera a extrema-unção se cravara agora em Levine, como exigindo a corroboração das palavras do médico, o qual dizia que respirar iodo fazia milagres.
- Kátia não está? - perguntou, de voz rouca, voltando-se, quando Levine confirmava de má vontade as palavras do médico. - Não está? Então posso dizer-te que... toda esta comédia foi por ela que eu a representei. É tão simpática!... Mas nem tu nem eu já nos podemos enganar. Nisto acredito, sim - acrescentou, apertando o frasco com a mão ossuda e aspirando o iodo.
Passava das sete, Levine e a mulher tomavam chá no seu quarto quando Maria Nikolaievna apareceu, correndo, sem alento. Pálida, tremiam-lhe os lábios.
- Está o morrer - disse, num sussurro. - Tenho medo. Vai morrer já.
Correram ao quarto de Nicolau. Este, sentado na cama, apoiava-se numa das mãos e tinha os ombros arqueados e a cabeça prostrada.
- Que sentes? - perguntou-lhe Levine, muito baixo, depois de um silêncio.
- Estou a acabar - replicou o doente a custo, mas com grande precisão, pronunciando lentamente as palavras; não levantou a cabeça e apenas soergueu os olhos, sem conseguir ver o rosto do irmão. - Kátia, vai-te embora - acrescentou.
Levine levantou-se repentinamente e obrigou Kitty a sair do quarto.
- Estou a acabar - repetiu Nicolau.
- Por que dizes isso? - perguntou Levine, para dizer alguma coisa.
- Porque estou a acabar - insistiu Nicolau, como se gostasse daquelas palavras. - É o fim.
Maria Nikolaievna aproximou-se.
- Era melhor que te deitasses para baixo. Aliviar-te-ia - disse.
- Não tardo a estar estendido... - pronunciou Nicolau em voz baixa - e morto - acrescentou, agastado e irônico. - Bom, deita-me para baixo, se assim o queres.
Levine estendeu o irmão de costas, sentou-se a seu lado e, reprimindo a respiração, olhou-o no rosto. O moribundo jazia com os olhos fechados e de quando em quando agitavam-se-lhe os músculos da testa, como os de um homem que medita profunda e insistentemente.
Levine procurava debalde compreender o que se estava a passar no espírito do irmão; aquele rosto severo e o remexer dos músculos por cima das sobrancelhas deixava perceber que o moribundo entrevia mistérios que ele, Levine, não podia compreender.
- Sim, sim, é isso - pronunciou Nicolau, lentamente, espaçando as palavras. - Espera - calou-se de novo. - £ isso! - disse, de súbito, como se tudo se lhe tivesse aclarado. - Oh, meu Deus! - exclamou, suspirando.
Maria Nikolaievna apalpou-lhe os pés.
- Estão a arrefecer - disse em voz baixa.
Durante um bom espaço de tempo, assim se afigurou a Levine, o doente permaneceu imóvel. Aias vivia e de quando em quando suspirava. Levine, esgotado pela tensão mental em que estava, já não se identificava com o moribundo e não havia maneira de compreender o que ele quisera dizer quando exclamara: "É isso!" Sem forças para pensar mais na morte, perguntava a si mesmo que iria fazer agora: fechar os olhos do irmão, vesti-lo, encomendar o caixão? Coisa estranha, sentia-se frio e indiferente; o único sentimento que experimentava era de inveja, visto Nicolau ter agora uma certeza a que ele, Levine, não podia aspirar. Ali ficou por muito tempo junto dele, aguardando o fim, mas o fim não chegava. A porta abriu-se e Kitty apareceu; ergueu-se para impedir-lhe a entrada; o moribundo, porém, agitou-se.
- Não te vás embora - murmurou Nicolau, estendendo-lhe a mão.
Levine tomou essa mão entre as suas, e num gesto de desagrado à mulher significou-lhe que se retirasse. E assim permaneceu meia hora, uma hora, depois outra hora. Já não pensava senão em coisas sem importância: que estaria Kitty a fazer? Quem habitaria o quarto ao lado? O médico teria casa sua? Depois sentiu fome e sono. Retirou suavemente a mão da de Nicolau e apalpou-lhe os pés: estavam frios, mas Nicolau continuava a respirar. Levine tentou levantar-se e sair em bicos de pés: o doente agitou-se e voltou a dizer: "Não te vás embora..."
Amanhecia. O doente continuava na mesma. Muito cautelosamente, Levine retirou a mão e sem olhar para o moribundo saiu, dirigindo-se ao seu quarto, deitou-se e adormeceu. Ao acordar, em vez de receber a notícia da morte do irmão, disseram-lhe que estava na mesma. Voltara a sentar-se, a endireitar-se, tossia, comia, falava e não aludia à morte, demonstrando alimentar esperanças de se curar. Tornara-se mais irascível e sombrio do que até aí. Ninguém, nem o irmão nem Kitty o podiam aquietar. Aborrecia-se com todos, dizia coisas desagradáveis, atirava-lhes à cara os seus sofrimentos e exigia que lhe trouxessem imediatamente um médico célebre de Moscovo. Sempre que perguntavam como estava, dizia, invariavelmente, numa expressão irada e de censura:
- Sofro muito, sofro insuportavelmente.
Sofria cada vez mais, sobretudo porque as feridas se lhe tinham avivado, e era difícil pensá-las. E a irritação em que estava cada vez era maior. A própria Kitty se sentiu incapaz de o sossegar e Levine percebeu que ela estava no extremo das suas forças, que já não podia mais, quer moral, quer fisicamente, embora não quisesse dar o braço a torcer. A comoção que lhe causara a despedida de Nicolau naquela noite cedera o lugar a outros sentimentos. Todos sabiam o fim inevitável, todos viam o doente em parte morto já, todos tinham acabado por desejar que a morte sobreviesse quanto mais depressa melhor; e nem por isso deixavam de lhe dar os remédios, de mandar chamar o médico e de aviar receitas. Mentiam a si próprios, e essa vil, essa sacrílega dissimulação era mais dolorosa para Levine do que para qualquer dos outros, pois amava o irmão muito carinhosamente e nada mais contrário à sua natureza do que a falta de sinceridade.
Levine, há muito desejoso de reconciliar os irmãos desavindos em articulo mortis que fosse, prevenira Sérgio Ivanovitch. Este respondeu-lhe e Levine leu ao irmão a carta que ele lhe escrevera: Sérgio não podia vir, mas perdoava ao irmão em termos comovedores.
Nicolau ficou calado.
- Que lhe devo dizer? - perguntou Levine. - Espero que não estejas zangado com ele.
- Não, não estou - replicou o doente em tom contrariado. - Escreve-lhe e pede-lhe que me mande o médico.
Três dias cruéis decorreram ainda; o moribundo continuava no mesmo estado. Todos na estalagem, desde o patrão e os criados até Levine e Kitty, sem esquecer o médico e Maria Nikolaievna, só tinham um desejo: o fim. Apenas o doente não compartilhava desse desejo e continuava a pedir o médico de Moscovo, a tomar remédios e a falar em restabelecimento. Nos raros minutos em que o ópio o mergulhava numa espécie de entressonho, confessava, então, o que ainda mais pesava na alma dele do que na dos outros: "Ah, se isto pudesse acabar!"
Os sofrimentos, cada vez mais intensos, obravam nele, preparando-o para a morte. Não fazia um movimento que não sentisse uma dor. Não havia um membro no seu corpo que não fosse para ele uma tortura. Toda a reminiscência, todo o pensamento, qualquer impressão lhe repugnavam. A vista dos que o cercavam, as suas palavras, tudo lhe fazia mal. Todos o sentiam e ninguém ousava mover-se ou falar sem constrangimento. A vida concentrava-se para todos no sentimento dos sofrimentos do moribundo e no desejo ardente de o verem para sempre livre deles.
Chegara a esse momento supremo em que a morte lhe deveria parecer a derradeira felicidade. Todas as sensações, a fome, a fadiga, a sede, que outrora, depois de terem sido sofrimento ou privação, uma vez satisfeitas as funções do corpo, lhe causavam uma certa satisfação, agora eram dor e dor apenas. Eis por que não podia aspirar a outra coisa que não fosse libertar-se do princípio dos seus males, do seu corpo torturado; como já não tinha, contudo, palavras para exprimir esse desejo, por hábito continuava a reclamar o que outrora o satisfazia.
- Volta-me para o outro lado - dizia, exigindo imediatamente que o pusessem na posição anterior. - Tragam-me caldo. Levem esse caldo. Contem-me alguma coisa. Porque estão calados?
Quando principiavam a falar, porém, cerrava os olhos numa expressão de cansaço, de indiferença e de repulsa.
No décimo dia depois de chegar àquela cidade, Kitty adoeceu. Doía-lhe a cabeça, tinha vômitos. Não pôde levantar-se toda a manhã.
O médico foi de opinião que era efeito do cansaço e da agitação em que estava. Recomendou-lhe tranqüilidade de espírito.
No entanto, depois do jantar, Kitty levantou-se e, como sempre, com um trabalhinho nas mãos, foi visitar o doente. Ao vê-la entrar, Nicolau olhou-a com severidade e sorriu, desdenhoso, quando Kitty lhe disse que estivera indisposta.
Todo aquele dia o enfermo se assoou e gemeu.
- Como se sente? - perguntou-lhe Kitty.
- Pior - pronunciou ele com dificuldade. - Dói-me...
- Que lhe dói?
- Tudo.
- Vão ver que não passa de hoje - disse Maria Nikolaievna em voz baixa.
Mas Levine percebeu que o doente, com o seu ouvido, agora mais apurado do que nunca, devia ter percebido, e mandou calar Maria Nikolaievna, voltando-se para Nicolau. Este ouvira, de facto, porém nenhuma impressão lhe tinham feito essas palavras. Continuava com a mesma visagem concentrada e de censura.
- Por que diz isso? - perguntou Levine a Maria Nikolaievna, quando esta o seguiu no corredor.
- Porque principiou a despojar-se.
- A despojar-se, como?
- Assim - replicou Maria Nikolaievna, puxando pelas pregas do vestido de lã.
Com efeito, Levine notara que durante todo o dia o doente procurara como que tirar algo de cima de si.
O vaticínio de Maria Nikolaievna cumpriu-se. Ao anoitecer, Nicolau já não tinha forças para erguer as mãos e não fazia outra coisa senão olhar na sua frente com uma atenção concentrada. Até mesmo quando
Kitty e Levine se debruçaram para ele, de modo a que pudesse vê-los, continuava de olhos fitos, com a mesma expressão. Kitty mandou chamar o sacerdote para que rezasse a oração dos moribundos.
Enquanto o sacerdote rezou, o doente não deu sinais de vida, conservando-se de olhos fechados. Levine, Kitty e Maria Nikolaievna estavam junto da cama. Não tinha o sacerdote acabado de rezar quando o doente suspirou e abriu os olhos. Finda a oração, aquele tocou com o crucifixo na testa fria de Nicolau; depois, envolveu-a lentamente na estola e após alguns minutos de silêncio tocou-lhe na grande mão fria e exangue.
- Está morto - disse, fazendo menção de se retirar.
De súbito, porém, os lábios pegados de Nicolau agitaram-se e no silêncio ouviram-se claramente, saindo-lhe das profundezas do peito, uns sons precisos e penetrantes:
- Ainda não... daqui a pouco.
Daí a momentos, iluminou-se-lhe o rosto e um sorriso lhe assomou aos lábios. As mulheres começaram a ocupar-se do cadáver.
O aspecto do irmão e a presença da morte renovaram na alma de Levine aquele sentimento de horror ante o enigma e a proximidade da morte inevitável experimentado na noite de Outono em que Nicolau estivera em sua casa. Agora esse sentimento era mais forte ainda. Ainda se sentia menos capaz de compreender o significado da morte e com mais clareza ainda se capacitava de que ela era inevitável. No entanto, graças à presença da mulher, esse sentimento não lhe causava desespero: em que pesasse a morte, sentia a necessidade de viver e de amar. Sentia que o amor o salvara do desespero e que perante aquela ameaça o amor se tornava mais forte e mais puro.
Ainda não se lhe tinha revelado o mistério da morte e já outro mistério se lhe deparava, igualmente inescrutável, que o estimulava a viver e a amar.
O médico confirmou as suspeitas de Levine a respeito de Kitty. Aquele seu mal-estar era a gravidez.
CAPÍTULO XXI
Desde o momento em que Alexei Alexandrovitch compreendera, graças a Betsy e a Stepane Arkadievitch, que todos, a principiar por Ana, esperavam que ele deixasse a mulher em paz e a não importunasse com a sua presença, sentiu-se completamente desorientado: incapaz de uma decisão pessoal, remeteu para terceiros, aqueles que tanta satisfação mostravam em tratar de coisas que lhe diziam respeito, estar pronto a consentir em tudo. Não voltou a tomar contacto com a realidade senão depois da partida de Ana, quando a inglesa lhe veio perguntar se devia tomar as suas refeições com ele ou à parte: só então a sua triste sorte se lhe representou em todo o seu horror.
O que mais o afligia era não poder relacionar o passado com o presente. Vencera-o já o sofrimento que lhe causara a passagem da época feliz em que vivera em perfeita harmonia com a mulher, para aquela em que se lhe revelara a sua infidelidade, e, conquanto penosa, esta situação acabara por ser compreensível. Se Ana o tivesse deixado depois da confissão da sua falta, a mágoa que sentiria não seria comparável à dor sem remédio em que se debatia agora. Como é que o perdão com que transigira, perdão tão generosamente concedido, e o afecto que testemunhara a uma mulher culpada e ao filho de outro homem podiam ser recompensados com o abandono, a solidão, os sarcasmos e o desprezo de todos? Eis a interrogação que a cada passo o assaltava, sem qualquer resposta.
Nos dois primeiros dias que se seguiram à partida de Ana, Alexei Alexandrovitch continuou a receber visitas, e avistou-se com o secretário, assistiu às sessões da sua comissão e jantou em sua casa como de costume. Todas as suas energias se achavam instintivamente concentradas num único objectivo: mostrar-se sereno e indiferente. As perguntas dos criados que vinham informar-se junto dele quanto às medidas que podiam tomar relativamente as aposentos de Ana e às coisas que lhe pertenciam, num esforço sobre-humano respondia com o ar de um homem preparado para tudo que nada acha extraordinário. Assim conseguiu por algum tempo esconder o sofrimento que o consumia.
No terceiro dia, Kornei trouxe-lhe uma factura de uma loja de modas que Ana se esquecera de pagar. Como o empregado aguardasse na antecâmara, Karenine mandou-o entrar.
- Perdoe, Excelência, se me permito incomodá-lo. Se é a sua esposa que me devo dirigir, peco-lhe que queira ter a bondade de me facilitar o seu endereço.
Alexei Alexandrovitch pensativo, pelo menos foi essa a impressão que deu ao empregado, sentou-se à mesa de trabalho, com a cabeça entre as mãos. Assim permaneceu por muito tempo, tentando falar sem conseguir articular palavra. Ao perceber a angústia do homem, Kornei pediu ao empregado que voltasse outro dia. Quando ficou só, Karenine sentiu que não dispunha de mais forças para lutar: mandou desatrelar a carruagem, fechou a porta e não foi jantar à mesa.
O desdém, a crueldade que ele julgara ler no rosto do empregado, de Kornei, de todas as pessoas com quem tivera de tratar naqueles dois dias, tornavam-se-lhe insuportáveis. Se provocara o desprezo do seu semelhante graças a uma conduta repreensível, era justo contar com a estima dos outros depois de ter procedido melhor. Mas como era apenas desgraçado - desgraçado de forma vergonhosa, execrável -, as pessoas mostravam-se tanto mais implacáveis para com ele quanto maior o seu sofrimento: despedaçavam-no como os cães despedaçam o cachorro que cai ferido e uiva de dor. Para resistir à hostilidade geral, devia esconder, custasse o que custasse, as suas próprias feridas. Ai dele, dois dias de luta já o tinham esgotado! E o mais atroz ainda é que não via a quem pudesse confiar o seu martírio. Em Sampetersburgo inteiro não via um só homem que se interessasse por ele, que fosse capaz de lhe dedicar a mínima atenção, não à alta personalidade que ele era, mas ao marido desesperado em que se tornara.
Alexei Alexandrovitch perdera a mãe quando tinha dez anos; já não se lembrava do pai; ele e o irmão tinham ficado órfãos e na posse de uma muito módica fortuna; seu tio Karenine, alto funcionário, da estima do falecido imperador, encarregara-se de os mandar educar. Depois de excelentes estudos no colégio e na Universidade, Alexei Alexandrovitch, graças à protecção desse mesmo tio, lançara-se com felicidade na carreira administrativa, à qual se consagrara de alma e coração. Nunca tivera um amigo; apenas ao irmão dedicava verdadeira amizade. Este, porém, que ingressara na carreira diplomática, residia no estrangeiro, onde morrera pouco tempo depois do casamento de Alexei Alexandrovitch. Entretanto, Karenine, nomeado governador de província, travara relações com a tia de Ana aí residente, senhora muito rica que preparara as coisas com toda a habilidade para aproximar a sobrinha desse dignitário ainda jovem. Um belo dia, Alexei Alexandrovitch viu-se perante a alternativa de escolher entre um pedido de casamento e uma mudança de residência. Por muito tempo hesitou, tão fortes as razões que o levavam a aceitar como a repudiar a ideia do casamento. E o certo é que provavelmente não teria abdicado da sua máxima favorita - "em caso de dúvida, abstém-te" - se um amigo da tia da pretendida lhe não tivesse dado a entender que a sua assiduidade comprometia a jovem e que como homem digno que era tinha obrigação de pedi-la em casamento. Eis o que fizera., e desde então consagrara à noiva primeiro e depois à esposa aquela medida afectiva de que a sua natureza era capaz.
Semelhante dedicação dispensara-o de qualquer outra espécie de amizade. Toda a sua vida se limitara apenas a ter conhecidos. Estava na sua mão convidar para sua casa inúmeras pessoas, pedir-lhes que lhe prestassem qualquer serviço, que lhe favorecessem um protegido, e até era livre de criticar diante deles os actos do governo, sem aspirar, contudo, a maior cordialidade. O último homem a quem poderia confiar a sua dor, um antigo camarada de Universidade com quem estreitara relações, estava na província, onde exercia o cargo de inspector do ensino. Em Sampetersburgo as suas únicas relações pessoais eram o seu chefe de gabinete e o seu médico.
O primeiro, Miguel Vacilievitch Sliudine, o secretário, era um homem simples, bom e honrado, que parecia sentir por ele, Karenine, viva simpatia. Cinco anos de subordinação, porém, tinham levantado entre ele, chefe, e Sliudine, secretário, uma autêntica barreira inacessível a qualquer espécie de confidências. Apesar de tudo, nesse dia, Alexei Alexandrovitch, depois de assinar os papéis que este lhe trouxera, ficara-se a olhar para ele, calado, pronto a abrir-lhe o coração. Preparara mesmo uma frase: "Sabe da minha infelicidade", e por várias vezes tentara pronunciá-la, sem conseguir articulá-la. Vira-se obrigado, à despedida, à fórmula habitual: "Terá a bondade de me preparar este trabalho."
A outra pessoa bem disposta para com ele era o médico. Karenine não o ignorava, mas havia-se estabelecido entre os dois um pacto tácito, graças ao qual ambos se consideravam sobrecarregados de trabalho e forçados a reduzir ao mínimo o que tinham a dizer um ao outro.
Quanto às amigas, e à principal das suas amigas, a condessa Lídia, Alexei Alexandrovitch nem sequer pensava nela. As mulheres metiam-lhe medo e não sentia por elas outra coisa que não fosse aversão.
CAPÍTULO XXII
Se Karenine esquecera a condessa Lídia Ivanovna, esta pensava muito nele. Ei-la que surgia precisamente nessa hora lúgubre em que ele, a cabeça entre as mãos, se abandonava ao desespero. Sem se fazer anunciar, rompeu-lhe pelo gabinete adentro.
- J'ai force la consigne(Nota 45) - disse ela, que avançava para ele em passos rápidos, a respiração opressa, tal a comoção. - Sei tudo, Alexei Alexandrovitch, meu amigo!
E apertou-lhe a mão entre as suas, fitando-o com os seus belos olhos cismadores. Karenine levantou-se, de semblante carregado, libertou a mão e ofereceu-lhe uma cadeira.
- Queira sentar-se, condessa, não recebo, porque estou doente - disse ele, de lábios trêmulos.
- Meu amigo! - repetiu ela, sem apartar dele os olhos; as sobrancelhas franzidas desenharam-lhe um triângulo na testa, o que ainda mais desfiou a máscara amarelenta, já de si naturalmente feia.
Alexei Alexandrovitch percebeu que a condessa estava pronta a chorar de compaixão e sentiu-se comovido também. Agarrou-lhe a mão rechonchuda e beijou-lha.
Desobedeci às ordens.
- Meu amigo - disse ela, numa voz entrecortada pela emoção -, não deve entregar-se assim ao sofrimento. Bem sei que é grande, mas precisa de o apaziguar.
- Estou exausto, morto, já não sou um homem - exclamou Alexei Alexandrovitch, abandonando a mão da condessa, sem deixar de fitar os seus olhos rasos de lágrimas -, a minha situação é tanto mais horrorosa que não encontro onde apoiar-me, nem em mim nem no mundo.
- Há-de encontrar esse apoio, não falo de mim, embora lhe peça que acredite na minha amizade - disse ela, suspirando -, mas n'Ele. O nosso apoio é o Seu amor. O Seu jugo é leve - prosseguiu, com esse olhar exaltado que Karenine tão bem conhecia. - Ele o ajudará e lhe servirá de apoio.
- Sinto-me fraco, esmagado. Não tinha previsto nada e agora não compreendo o que se passa.
- Meu amigo!
- Não é pelo que perdi - continuou Alexei Alexandrovitch -, não é isso que eu deploro. Oh, não!, contudo não posso deixar de me sentir envergonhado aos olhos do mundo. Bem sei que faço mal, mas nada posso contra isso.
- Não foi Alexei Alexandrovitch quem praticou o acto sublime de perdoar, que todos nós admiramos, foi Ele. Não tem nada de que se envergonhar - disse a condessa, erguendo os olhos ao céu de maneira extática.
Karenine franziu o sobrolho, e juntando as mãos fez estalar as articulações dos dedos.
- Se soubesse tudo! - disse ele, na sua voz sibilada. - As forças do homem têm limites e eu atingi os limites das minhas, condessa. Passei o dia inteiro a dar ordens em casa, conseqüência - repisou a palavra "conseqüência" - do meu novo estado de homem só. A preceptora, os criados, as contas, estas misérias consomem-me a fogo lento. Ontem, ao jantar... mal me pude conter. Não podia suportar o olhar do meu filho. Não ousava perguntar-me nada e eu não tinha coragem de olhar para ele. Tinha medo de mim... Mas ainda não é tudo.
Karenine quis falar da conta que lhe tinham trazido, mas a voz tremeu-lhe e calou-se. Não podia pensar nessa factura de papel azul, com um chapéu e umas fitas, sem sentir compaixão por si mesmo.
- Compreendo, meu amigo, compreendo tudo - disse a condessa. - Amparo e consolação não é em mim que os encontrará. Se estou aqui é para lhe oferecer os meus serviços, para tentar libertá-lo dessas miseráveis preocupações... Torna-se indispensável uma mão de mulher... Consentirá que eu trate de tudo?
Alexei Alexandrovitch apertou-lhe a mão, sem dizer palavra.
- Ocupar-nos-emos os dois de Sérgio. Nada percebo das coisas práticas, mas farei o melhor que puder. Serei a sua governanta. Não me agradeça. Não sou eu quem assim procede.
- Como lhe hei-de eu agradecer?
- Meu amigo, não se abandone ao sentimento em que me falava há pouco. Não se envergonhe do que deve ser tido pelo grau mais elevado da perfeição cristã: "Aquele que se abaixar será elevado." Não me agradeça, agradeça antes Aquele a quem devemos rezar. Só n'Ele encontraremos a paz, a consolação, a salvação e o amor!
Ergueu os olhos ao céu. Alexei Alexandrovitch percebeu que estava a rezar. Semelhante fraseologia, que ele outrora achava imprópria, parecia-lhe agora natural e sedativa. Não aprovava a exaltação então na moda. Crente sincero, a religião apenas lhe interessava do ponto de vista político; e como as novas doutrinas abriam as portas à discussão e à análise, essas doutrinas deviam-lhe ser antipáticas por princípio. Eis por que respondia habitualmente com um silêncio reprovador às efusões místicas da condessa. Desta vez, porém, deixara-a falar com satisfação, sem a contradizer, sequer, interiormente.
- Estou-lhe agradecidíssimo pelas suas palavras e pelas suas promessas - disse ele quando ela acabou de falar. A condessa voltou a apertar a mão do amigo.
- Agora mãos à obra - disse ela, depois de ter feito desaparecer do rosto os vestígios das lágrimas. - Vou ter com o Sérgio e apenas me dirigirei a si nos casos graves.
A condessa levantou-se e dirigiu-se aos aposentos da criança; ali, enquanto humedecia de lágrimas o rosto do garoto assustado, dizia-lhe que o pai era um santo e que a mãe tinha morrido.
A condessa Lídia Ivanovna cumpriu, de facto, o que prometera. Chamou a si todas as preocupações relativas ao governo da casa, conquanto não houvesse exagero algum ao confessar ser inteiramente desprovida de sentido prático. Tão pouco sensatas foram as ordens que dera que Kornei, o criado de quarto de Alexei Alexandrovitch, chamou a si o direito de as revogar, apoderando-se, pouco a pouco, das rédeas do governo da casa. De facto, teve a arte de obrigar o amo a escutar, enquanto o ajudava a arranjar-se todas as manhãs, os relatos que entendia fazer-lhe em tom calmo e circunspecto. Fosse como fosse, a colaboração da condessa Lídia Ivanovna nem por isso fora menos útil: o seu afecto e a sua estima constituíram para Karenine um grande apoio moral. Para grande satisfação dela quase conseguira convertê-lo, isto é, quase o levou a mudar, de morna para quente e firme, a sua simpatia pela doutrina cristã, tal como estavam a ensiná-la em Sampetersburgo. Esta conversão não foi difícil. Da mesma maneira que a condessa e todos quantos preconizavam as novas ideias, Alexei Alexandrovitch era desprovido de imaginação profunda, isto é, dessa faculdade da alma graças à qual as próprias miragens da imaginação exigem, para serem aceites, uma certa verossimilhança. Não lhe parecia impossível que a morte existisse para os incrédulos e não para ele; que o pecado fosse excluído da sua alma e a sua salvação garantida já neste mundo pelo simples facto de dispor de uma fé plena e completa, de que só ele era juiz.
A ligeireza, o erro destas doutrinas, no entanto, chegavam a impressioná-lo por momentos. O irresistível sentimento que sem o menor impulso superior o arrastara ao perdão causara-lhe alegria muito diferente daquela que sentia ao repetir, muitas vezes para si mesmo, que Cristo lhe habitava a alma e lhe inspirava a assinatura deste ou daquele papel. No entanto, por mais ilusória que fosse, esta grandeza moral era-lhe indispensável na humilhação por que passava: do alto dessa eminência imaginária, julgava poder desprezar aqueles que o desprezavam a ele, agarrando-se a estas novas convicções como a uma tábua de salvação.
CAPÍTULO XXIII
A condessa Lídia Ivanovna casara-se muito cedo; exaltada por natureza, deparara-se-lhe um marido muito rico, conhecido, bondoso e grande libertino. No segundo mês de casados, abandonou-a, replicando com ironia e mesmo com hostilidade, às suas demonstrações de carinho, coisa que não podia compreender quem conhecia o bom coração do conde e não via defeito algum na exaltação de Lídia.
Desde então, embora se não tivessem divorciado, viviam separados, e quando o conde se encontrava com a mulher tratava-a sempre com aquela invariável ironia venenosa, cujo motivo parecia incompreensível.
Havia muito que a condessa Lídia Ivanovna não amava o marido, mas de então para cá estava sempre enamorada de alguém. Costumava enamorar-se de várias pessoas ao mesmo tempo, quer de homens, quer de mulheres, geralmente daquele ou daquela que se tivesse salientado em qualquer coisa. Enamorava-se de todos os novos príncipes e de todas as princesas aparentadas com a família imperial. Amara, sucessivamente, um metropolita, um grande vigário e um simples padre; depois um jornalista, três eslavistas e Komisarov, bem como um ministro, um médico, um missionário e Karenine. Todos estes amores, com as suas diferentes fases de entusiasmo e arrefecimento, não a impediam de manter, quer na Corte, quer na sociedade, as mais complicadas relações.
Todavia, no dia em que Karenine passou a viver sob a sua protecção particular e principiou a cuidar do sem bem-estar, sentiu que nunca amara sinceramente outra pessoa. Todos os seus outros amores perderam o valor a seu olhos; comparando-os ao que sentia agora, via-se obrigada a confessar a si própria que nunca se teria enamorado de Komisarov, se este não tivesse salvo a vida do imperador, nem de Ristitch Kudjitski, se não existisse a questão eslava, enquanto a Karenine o amara por ele próprio, pela sua grande alma incompreendida, pelo seu carácter, pelo metal da sua voz, o seu falar lento, o seu olhar fatigado e as suas mãos, brancas e moles, de veias inchadas. Não só sentiu grande alegria em vê-lo, mas também procurava ler-lhe no rosto uma impressão análoga à que experimentava. Queria agradar-lhe tanto na pessoa como na conversação. Nunca despendera tanto dinheiro na modista. Muitas vezes se surpreendia a pensar no que poderia acontecer, se ambos fossem livres. Quando ele entrava, corava de emoção: se ele lhe dizia qualquer coisa amável, não podia ocultar um sorriso deslumbrado.
Havia dias que a condessa se achava num estado de intensa emoção: soubera que Ana e Vronski estavam em Sampetersburgo. Era preciso salvar Karenine, evitando que ele se encontrasse com Ana e, mesmo, que se inteirasse de que aquela terrível mulher se achava na mesma cidade que ele e que em qualquer altura se podiam deparar um com o outro. Através de amigas suas, Lídia Ivanovna informou-se do que pensava fazer essa "gente repulsiva", que assim chamava a Ana e a Vronski, tratando de orientar todos os movimentos do seu amigo durante aqueles dias de molde a que não se encontrasse com eles. O jovem ajudante de campo, amigo de Vronski, a quem encarregou dessa missão, precisava da condessa para, graças a uma recomendação sua, conseguir certo benefício. Veio, pois, comunicar-lhe que, após arranjarem as suas coisas, Ana e Vronski pensavam partir no dia seguinte. Lídia Ivanovna principiava a sentir-se tranqüila, quando lhe vieram entregar, no dia seguinte, pela manhã, uma carta, cujo cursivo conheceu imediatamente: era a caligrafia de Ana Karenina. O sobrescrito, de papel inglês, espesso como casca de árvore, continha uma folha oblonga e amarelada, com um imenso monograma; o bilhete derramava um perfume delicioso.
- Quem trouxe esta carta?
- Um mandarete de hotel.
Por muito tempo a condessa se deixou ficar de pé, sem coragem para se sentar a ler a carta. Oprimia-a um ataque de asma. Quando, finalmente, sossegou, leu o seguinte, escrito em francês:
Madame la comtesse(Nota 46): Os sentimentos cristãos que se albergam no seu coração animam-me a cometer o imperdoável atrevimento de lhe escrever. Sofro muito com o jacto de estar separada do meu filho. Suplico-lhe que me consinta vê-lo uma. só vez antes da minha partida. Perdoe-me que lhe recorde a minha existência. Se me não dirijo directamente a. Alexei Alexandrovitch, è apenas para não despertar nesse homem generoso penosas recordações. Conhecedora da amizade que a ele a liga, pensei que me poderia compreender. Mandar-me-á o Seriocha? Irei eu vê-lo à hora que me indicar? Prefere que eu vá à hora que me marcar oufar-me-á saber em que local o poderei ver? Uma recusa é coisa que me parece impossível, quando penso na magnanimidade da pessoa a quem cabe decidir. Não pode imaginar o desejo que tenho de ver o Seriocha e por isso mesmo não imagina quanto lhe ficarei reconhecida pelo apoio que me queira prestar.
Ana
Tudo naquela carta irritou a condessa Lídia Ivanovna: o conteúdo, a alusão à magnanimidade da sua alma e principalmente a desenvoltura com que se lhe afigurou estar escrita.
- Diga-lhe que não tem resposta - disse ela. E, abrindo a pasta, imediatamente escreveu a Karenine a dizer-lhe que contava vê-lo à l hora no palácio. Era dia de festa, a Corte apresentava os seus cumprimentos à família imperial.
Necessito falar-lhe de um assunto importante e doloroso. Combinaremos no palácio o local onde nos podemos encontrar. O melhor seria em minha casa, onde mandarei preparar o "seu" chá. É indispensável... Ele dá-nos a cruz, mas também as forças para carregarmos com ela, acrescentava, preparando-o um pouco.
Em geral a condessa Lídia Ivanovna escrevia dois ou três bilhetes diários a Karenine. Gostava de dar às suas relações, muito simples, a seu ver, um cunho de elegância e de mistério.
CAPÍTULO XXIV
A recepção imperial terminara. Ao sair, todos comentavam as últimas novidades: as condecorações outorgadas e a mudança de situação de altos funcionários.
- Estaria muito bem que nomeassem para o Ministério da Guerra Maria Borissovna e chefe do estado-maior a princesa Vatkovskaia - disse um ancião encanecido, de uniforme agaloado a ouro, dirigindo-se a uma dama de honor, alta e bela, que lhe perguntava o que havia sobre as recentes nomeações.
- E a mim, ajudante de campo - replicou a dama de honor, sorrindo.
- Para si já está escolhida outra pasta: o Ministério dos Cultos. Karenine poderia ser nomeado seu ajudante.
- Bom dia, príncipe - exclamou o ancião, apertando a mão da pessoa que se aproximava.
- Que estavam a dizer de Karenine? - perguntou o príncipe.
- Putiakov e ele receberam o grande cordão de Santo Alexandre
Nevski.
- Julgava que o tinham já.
- Não! Olhem para ele - disse o velho, apontando Karenine com o tricórnio bordado. De pé, no limiar de uma porta, este conversava com um dos membros influentes do Conselho de Estado. Alexei Alexandrovitch envergava o uniforme de Corte, com uma nova banda vermelha a tiracolo. - Está contente e feliz como um garoto de botas novas. - E o velho parou para apertar a mão a um soberbo e atlético camarista, que nesse momento passava.
- Não. Acho que envelheceu - replicou este.
- Conseqüência das preocupações. Passa a vida a redigir projectos. Olhe, neste momento não larga o infeliz que lhe caiu nas unhas antes de lhe ter exposto tudo ponto por ponto,
- Qual envelhecido! Il fait des petssions(Nota 47). Parece que a condessa Lídia Ivanovna tem agora ciúmes da mulher dele.
- Então, por amor de Deus, não diga mal da condessa Lídia!
- Que mal tem estar enamorada de Karenine?
- É verdade que a Karenine está aqui?
- No palácio, não, mas em Sampetersburgo. Encontrei-a ontem na Rua Morskaia, bras dessus, bras dessous(Nota 48) com Alexei Vronski
- Cest un homme que ria pai...(Nota 49) - principiou a dizer o camarista, mas calou-se, para deixar passar uma personagem da família imperial, a quem cumprimentou.
Enquanto ridicularizavam deste modo Alexei Alexandrovitch, este, cortando o passo ao conselheiro de Estado, a quem conseguira caçar, não interrompia, por um momento que fosse, a explicação que lhe dava, expondo-lhe, ponto por ponto, o seu projecto financeiro.
Quase ao mesmo tempo em que fora abandonado pela mulher, Alexei Alexandrovitch encontrara-se, sem que disso ainda se tivesse dado conta por completo, na situação mais penosa em que um funcionário pode vir a deparar-se: a marcha ascensional da sua carreira chegada ao fim. É verdade que ocupava ainda um posto importante, continuava a fazer parte de grande número de comissões, mas arrumavam-no entre as pessoas que haviam dado o que tinham a dar. Todos os seus projectos pareciam caducos e fora de moda. Muito longe de pensar que assim fosse, Karenine julgava discernir com maior precisão os erros do governo, desde que não fazia directamente parte dele, e cria de seu dever indicar certas reformas indispensáveis. Pouco depois da partida de Ana, escrevera algumas páginas sobre os novos tribunais, a primeira das inúmeras memórias perfeitamente inúteis, que iria compor sobre os ramos mais diversos da administração. Cego perante o seu próprio declínio, mostrava-se mais do que nunca satisfeito consigo mesmo e com a actividade que desenvolvia, e como as Sagradas Escrituras eram de então para o futuro o seu guia em todas as coisas, estava sempre a lembrar-se da frase de S. Paulo: "Aquele que tem mulher pensa nos bens terrenos; aquele que a não tem, apenas pensa no serviço do Senhor."
Alexei Alexandrovitch não prestava a mínima atenção à impaciência, aliás bem visível, do conselheiro de Estado: no entanto, como se viu obrigado a interromper o seu discurso na altura da passagem do membro da família imperial, o interlocutor aproveitou a oportunidade para desaparecer. Ao ver-se sozinho, Karenine vergou a cabeça, procurou concentrar-se e, com um olhar distraído à sua volta, dirigiu-se para a porta onde pensava encontrar Lídia Ivanovna.
"Que fortes e saudáveis são eles todos!", pensou, observando, de passagem, o pescoço vigoroso do príncipe entalado na gola do uniforme e o robusto camarista das suíças perfumadas. "Já não há nada verdadeiro. Tudo está errado neste mundo", disse ainda de si para consigo, depois de lançar um olhar às canelas do camarista. E enquanto procurava com a vista a condessa, dirigiu a essas belas criaturas que falavam dele um desses cumprimentos fatigados e dignos em que era especialista.
- Alexei Alexandrovitch - exclamou o velhinho, cujos olhos brilhavam maldosos -, ainda o não felicitei. As minhas felicitações - acrescentou, apontando para o grande cordão.
- Agradeço-lhe muitíssimo. Que tempo magnífico, não é verdade?- respondeu Karenine, insistindo, consoante hábito seu na palavra "magnífico".
Tinha a impressão de que aqueles cavalheiros troçavam dele; mas como lhes conhecia os sentimentos hostis, não ligava a menor importância ao que eles diziam.
Os ombros de cidra e os belos olhos cismadores da condessa Lídia apareceram-lhe e atraíram-no de longe: dirigiu-se para ela com um sorriso que lhe punha à mostra os dentes brancos.
A toilette da condessa, como todas as que ultimamente se dava ao cuidado de compor, provocara-lhe não poucas preocupações. Procurava um objectivo muito diferente daquele que para si mesma propunha trinta anos antes. Então não pensava noutra coisa senão em apaparicar-se e em sua opinião nunca chegava a estar suficientemente elegante; agora, porém, conseguiu tornar surportável o contraste entre a sua pessoa e a sua toilette. E aos olhos de Alexei Alexandrovitch o resultado era flagrante, pois este achava-a encantadora. A simpatia desta mulher era para ele o único refúgio contra a animosidade geral. Por isso, no meio daquela multidão hostil, ele se sentia atraído por ela como uma planta que procura a luz.
- Felicito-o - disse a condessa, guiando os olhos para a condecoração.
Com um sorriso de satisfação reprimido, Karenine encolheu os ombros e fechou os olhos, como que a dizer que aquilo o não podia alegrar. A condessa Lídia Ivanovna sabia perfeitamente que a condecoração era uma das suas maiores satisfações, conquanto o não quisesse mostrar.
- O nosso anjo como vai? - perguntou a condessa, referindo-se a Seriocha.
- Não posso dizer que esteja muito contente com ele - tornou-lhe Alexei Alexandrovitch, soerguendo as sobrancelhas e abrindo os olhos. - Aliás, Sitnikov (o professor encarregado da educação de Seriocha) também o não está. Como já lhe disse, dá provas de uma certa indiferença para com os problemas fundamentais que devem tocar a alma de qualquer pessoa, até mesmo de uma criança - continuou, expondo a sua opinião sobre a única coisa que lhe interessava, depois das suas actividades ministeriais.
Quando, auxiliado por Lídia Ivanovna, Karenine regressara à vida e à actividade profissional, sentiu que era seu dever preocupar-se com a educação do filho. Como nunca se interessara pelos problemas da educação, começou por estudar o assunto teoricamente. Depois de ler alguns livros sobre antropologia, pedagogia e didáctica, elaborou um plano e chamou para educar o pequeno o maior pedagogo de Sampetersburgo.
- Mas, o coração? Acho que tem o coração do pai, e uma pessoa com um coração assim não pode ser má - replicou a condessa com entusiasmo.
- Talvez... Mas, no que me diz respeito, cumpro o meu dever.
É tudo quanto cabe na minha mão.
- Venha a minha casa - disse a condessa, apôs uma pausa. - Temos de falar num assunto doloroso para si. Daria qualquer coisa para lhe poupar certas recordações, mas nem todos pensam da mesma maneira. Recebi uma carta dela. Está em Sampetersburgo.
Ao ouvir falar da mulher, Karenine estremeceu; acto contínuo, porém, transpareceu no seu rosto aquela impassibilidade de morto que traduzia a sua completa impotência em semelhante assunto.
- Já esperava - pronunciou.
A condessa Lídia Ivanovna olhou-o exaltada e lágrimas de admiração, ante a grandeza daquela alma, lhe assomaram aos olhos.
CAPÍTULO XXV
Quando Karenine entrou no acolhedor aposento da condessa Lídia Ivanovna, cheio de porcelanas antigas, as paredes forradas de retratos, a dona da casa ainda ali não se encontrava.
Estava a mudar de vestido.
Na mesa redonda, com a sua toalha, via-se um serviço de porcelana da China ao lado de uma chaleira que funcionava a álcool. Alexei Alexandrovich olhou distraidamente para os inúmeros e bem conhecidos retratos que guarneciam a saleta e, sentando-se diante da mesa, abriu o Evangelho em cima dela. O roçagar do vestido de seda da condessa chamou-lhe a atenção.
- Muito bem. Agora vamo-nos sentar aqui tranqüilamente - disse Lídia Ivanovna, com um sorriso comovido, deslizando, apressada, entre a mesa e o divã. - Conversemos enquanto tomamos chá.
Depois de umas palavras preparatórias, a condessa, respirando com dificuldade e corando, entregou a Alexei Alexandrovitch a carta que recebera.
Karenine leu-a e guardou silêncio durante um longo espaço de tempo.
- Acho que não tenho o direito de lhe negar o que me pede - disse, timidamente, levantando os olhos.
- Meu amigo, não vê mal em coisa alguma.
- Pelo contrário, vejo o mal em toda a parte. Mas seria justo?...
No seu rosto exprimia-se indecisão e a necessidade de um conselho, de um apoio e de uma orientação num assunto incompreensível para ele.
- Não. Tudo tem os seu limites - interrompeu a condessa. - Compreendo a imoralidade - acrescentou, não de todo sincera, posto nunca tivesse podido entender o que levava as mulheres à imoralidade -, mas a crueldade, não. E para com quem? Para com o senhor? Como teve ela a coragem de se apresentar na mesma cidade em que o senhor vive? Realmente, estamos sempre a tempo de aprender coisas novas. Compreendo a sua superioridade e a baixeza dela.
- Quem poderá atirar a primeira pedra? - replicou Alexei Alexandrovitch, sem dúvida satisfeito com o seu papel. - Perdoei-lhe completamente e por isso não posso privá-la do que é uma exigência do seu amor, do seu amor pelo filho...
- Será realmente amor, meu amigo? Será sincero? Suponhamos que o senhor que perdoou, lhe perdoa... Mas teremos o direito de influir na alma desse anjo? Ele está convencido de que a mãe morreu. Reza por ela e pede a Deus que lhe perdoe os seus pecados... Assim é melhor. E agora, que vai ele pensar?
- Não tinha reflectido nisso - replicou Alexei Alexandrovitch, que, naturalmente, compartilhava da opinião da condessa.
Lídia Ivanovna tapou o rosto com a mão e permaneceu calada.
Rezava.
- Se quer que lhe dê um conselho, dir-lhe-ei que não deve fazer isso- disse, depois de rezar e descobrir o rosto. - Não estou porventura a ver como sofre, como se lhe abriram as feridas? Mas suponho que, como sempre, o senhor se esquece de si mesmo. A que poderá isto conduzir? A novos sofrimentos para si e a torturas para a criança? Se nela houvesse ainda algo de humano, nunca desejaria semelhante coisa. Sem vacilar, não lho aconselho e, se me permite, eu lhe escreverei.
Alexei Alexandrovitch acedeu e a condessa endereçou a Ana a seguinte carta em francês:
Minha Senhora: Recordar a seu filho a sua existência pode provocar da parte dele perguntas a que não poderá responder-se sem lhe despertar na alma sentimentos de crítica ao que deve ser sagrado para ele. Portanto, peco-lhe que compreenda a negativa de seu marido, considerando-a ponto de vista do amor cristão. Rogo a Deus que tenha misericórdia de si.
Condessa Lídia
Esta carta atingiu a secreta finalidade que Lídia Ivanovna escondia, até de si própria. Ofendeu Ana até ao mais íntimo da sua alma.
Pelo seu lado, Alexei Alexandrovitch regressou a casa perturbado: foi-lhe impossível nesse dia retomar as suas ocupações e encontrar a paz de um homem na possa da graça de Deus e que se sente escolhido.
A lembrança da mulher, tão culpada perante ele, não obstante ter procedido santamente para com ela, no dizer da condessa, não o devia perturbar assim e, no entanto, estava perturbado. Nada compreendia do que estava a ler, e sem poder afastar do espírito as cruéis reminiscências do passado, a si próprio se acusava de numerosas faltas que contra ela julgava ter cometido: porque é que, depois da confissão de Ana, se limitara a exigir-lhe que guardasse as conveniências? Porque não provocara Vronski, desafiando-o para um duelo? E a carta que escrevera à mulher, o seu perdão inútil, os cuidados que dispensara à criança alheia, tudo lhe acudia à memória e lhe abrasava o coração em vergonha e arrependimento. Acabou mesmo por reconhecer desonestas todas as circunstâncias passadas das suas relações com Ana, a principiar no pedido de casamento, depois de tão longas hesitações.
"Mas em que sou eu culpado?", perguntava a si mesmo. Esta interrogação chamava invariavelmente uma outra: como é que amavam, então, como casavam os Vronski, os Oblonski, os camaristas de pernas grossas? E diante dos olhos representava-se-lhe toda uma galeria desses homens fortes, pletóricos, seguros de si, que sempre admirara onde quer que os encontrasse. Por mais esforços que fizesse para afastar semelhantes pensamentos, para se lembrar de que o objectivo da sua existência não era este mundo mortal, que a paz e a caridade deviam ser os únicos sentimentos vivos da sua alma, sofria, como se a salvação eterna mais não fosse do que uma simples quimera. No entanto, conseguiu, finalmente, esmagar a tentação, não tardando a reconquistar a serenidade e a elevação de espírito graças às quais podia esquecer tudo o que efectivamente queria esquecer.
CAPÍTULO XXVI
- Então, Kapitonitch - perguntou Seriocha, ao regressar do seu passeio, corado e alegre, na véspera do dia dos seus anos, enquanto o velho guarda-portão, sorrindo-lhe lá do alto da sua imponência, lhe despia o cafetã -, o funcionário da faixa sempre veio? O paizinho recebeu-o?
- Recebeu, sim senhor. Assim que o chefe de gabinete saiu, anunciei-o logo - replicou o guarda-portão, piscando alegremente o olho.
- Deixe que eu lhe tire isso.
- Sérgio - chamou o preceptor sérvio, parando diante da porta que conduzia aos aposentos -, dispa-se o menino.
Mas Seriocha, embora ouvisse a voz débil do preceptor, não fez caso; agarrava o guarda-portão pelo boldrié e fitava-o nos olhos.
- O pai fez-lhe o que ele precisava? O velho teve um movimento afirmativo de cabeça. Tanto Seriocha como o guarda-portão se tinham interessado por aquele funcionário que já viera sete vezes pedir alguma coisa a Karenine. O pequeno encontrou-o uma vez no vestíbulo c ouvira como ele suplicava, queixoso, ao porteiro que o anunciasse, dizendo que não tinha outro remédio senão morrer, ele e os filhos.
Seriocha voltou a encontrar-se mais uma vez com ele e desde então passou a interessar-se pelo burocrata.
- E esteve muito contente? - perguntou.
- Pois não havia de estar! Pouco lhe faltou para sair aos pulos.
- Trouxeram alguma coisa? - perguntou Seriocha, depois de um silêncio.
- Sim, menino; trouxeram uma coisa da parte da condessa Lídia Ivanovna para os seus anos.
- E onde está?
- Kornei levou-a para o paizinho. Deve ser uma coisa muito boa!
- Que tamanho tem? Assim?
- Um pouco menor.
- É um livro?
- Não, uma coisa. Entre, entre, que o Vacilli Lukitch está a chamá-lo - disse o guarda-portão, ao ouvir os passos do preceptor, que se aproximava, e abrindo cauteloso a mãozinha que o agarrava pelo cinturão, com a luva meio despida, acenou-lhe com a cabeça na direcção do mestre.
- Vou já, Vacili Lukitch-disse Seriocha, com aquele seu sorriso alegre e carinhoso que desarmava sempre o severo preceptor.
Seriocha estava demasiado alegre, demasiado feliz para não partilhar com o amigo guarda-portão o júbilo íntimo que lhe provocara o que lhe dissera no jardim de Verão a sobrinha da condessa Lídia Ivanovna. E essa alegria ainda era maior desde que viera juntar-se-lhe o que sabia do funcionário e dos brinquedos recebidos. Afigurava-se-lhe que naquele lindo dia toda a gente devia sentir-se contente.
- Sabes? - continuou ele. - O paizinho recebeu o grande cordão de Santo Alexandre Nevski.
- Claro que sei! Até já o vieram felicitar.
- E está contente?
- Pois não havia de estar contente com uma mercê do imperador? Isso quer dizer que a merece - replicou o guarda-portão, severo e grave.
Seriocha ficou pensativo, examinando atentamente o rosto do homem, que estudava nos seus mínimos pormenores, especialmente no queixo, aflorando por entre as suíças brancas, em quem ninguém mais reparava senão ele, que as olhava muito cá de baixo.
- Há muito tempo que a tua filha te não vem ver? A filha do guarda-portão era bailarina do corpo de ballet.
- Como há-de ela vir ver-me em dia de trabalho? Tem que estudar. E o menino também. Vá, ande!
Uma vez na saleta, Seriocha, em vez de por-se a estudar, disse ao preceptor que supunha terem-lhe trazido uma máquina.
- Acha que sim? - interrogou-o.
Mas Vacili Lukitch apenas achava que Seriocha devia estudar a lição de gramática, pois o professor vinha às 2 horas.
- Vacili Lukitch, diga-me só isto: há alguma ordem mais alta do que a de Santo Alexandre Nevski? - perguntou, de súbito, a criança, sentada já diante da mesa de estudo, com o livro na mão. - Foi a que deram ao paizinho?
Vacili Lukitch respondeu que acima da ordem de Santo Alexandre Nevski era a de São Vladimiro.
- E acima dessa?
- Acima de todas, a de Santo André.
- E acima ainda?
- Não sei.
- O quê, o senhor também não sabe?
E apoiando os cotovelos na mesa, Seriocha quedou-se absorto em reflexões, as mais complicadas e variadas. Figurava-se-lhe que o pai ia talvez receber ainda os cordões de São Vladimiro e de Santo André e que por isso mesmo devia mostrar-se indulgente com a lição do dia. Depois dizia de si para consigo que quando fosse crescido faria por merecer todas as condecorações, inclusive aquelas que teriam de arranjar para depois de Santo André. Logo que uma nova condecoração fosse instituída, imediatamente ele se sentiria digno dela. Essas reflexões fizeram passar as horas tão depressa que, interrogado, a lição, sobre os tempos e os modos dos verbos, não estava preparado e o professor mostrou-se descontente e desgostoso. Sérgio teve pena: fizesse o que fizesse, a lição não lhe entrava na cabeça! Enquanto ouvia falar o professor parecia-lhe compreender, mas logo que ficava sozinho não era capaz de entender como duas palavras tão breves e óbvias, "de repente" pudessem ser um modo adverbial. Em todo o caso penalizava-o ter desgostado o professor.
Escolheu o momento em que este, calado, fitava o livro para lhe perguntar de súbito:
- Miguel Ivanovitch, em que dia faz anos?
- Era bem melhor que pensasse nos seus estudos. O dia de aniversário não tem importância alguma para uma pessoa inteligente. É um dia como outro qualquer, um dia de trabalho, como sempre.
Seriocha olhou atentamente para o professor, para a sua barba rala e para os seus óculos, que lhe tinham deslizado do nariz, e tão pensativamente o fixou que nada ouviu da lição. Afigurava-se-lhe que o professor não acreditava no que estava a dizer, e o tom da sua voz é que lho fazia crer. "Porque terão eles combinado todos entre si falar de maneira sempre igual, aborrecida e inútil? Porque me repele este e não gosta de mim?", perguntava a si mesmo o pobre pequeno, sem obter resposta às suas interrogações.
CAPÍTULO XXVII
Depois da lição do professor, tinha uma que lhe dava o pai; Seriocha, enquanto o esperava, brincava com um canivete e continuava a pensar.
Uma das suas ocupações favoritas era procurar a mãe durante os seus passeios. Não acreditava na morte em geral, e muito em particular na morte dela, não obstante o que lhe dissera a condessa e o pai. Daí que nos primeiros tempos, depois da partida de Ana, julgasse vê-la em todas as senhoras grandes, morenas, graciosas e de cabelos escuros que encontrava na rua. O coração enchia-se-lhe de ternura, sufocava, as lágrimas subiam-lhe aos olhos. Esperava que uma delas se aproximasse dele e erguesse o véu do rosto; então tornaria a ver-lhe a cara, ela sorrir-lhe-ia, beijá-lo-ia e de novo lhe sentiria a suave carícia das mãos, reconhecendo-lhe o perfume, chorando de contentamento como uma noite em que se lhe rebolara aos pés, enquanto ela lhe fazia cócegas e ele lhe mordiscava a mão branca coberta de anéis. Mais tarde, tendo-lhe dito a velha criada, por acaso, que a mãe estava viva, o pai e a condessa viram-se obrigados a explicar-lhe que morrera para ele, pois se tornara má. Ele em nada acreditou; gostava muito dela e continuou a esperá-la e a procurá-la, cada vez mais ansiosamente. Naquele dia vira no jardim de Verão uma senhora com um véu cor de malva e o coração pusera-se-lhe a bater muito no peito quando ela meteu pela mesma avenida. Depois, subitamente, a senhora desaparecera. Seriocha sentiu que a ternura que a mãe lhe inspirava era agora mais viva do que nunca. De olhos brilhantes, perdido no seu sonho, fitava o espaço enquanto retalhava a canivete o tampo da mesa.
Vacili Lukitch arrancou-o à contemplação em que estava:
- Aí vem seu pai!
Seriocha saltou da cadeira, correu a beijar a mão do pai, procurando-lhe no rosto vestígios da satisfação que porventura lhe dera a mercê que recebera.
- Deste um bom passeio? - perguntou Alexei Alexandrovitch deixando-se cair numa poltrona e abrindo um volume do Velho Testamento. Embora repetisse muitas vezes a Seriocha que todo o cristão devia conhecer a fundo a história sagrada, via-se obrigado a consultar o livro para as lições e Seriocha reparava nisso.
- Sim, paizinho, diverti-me muito - respondeu ele que, escarranchado na cadeira, se pusera a baloiçar-se, coisa que lhe era proibida.
Encontrei a Nádia (sobrinha da condessa, educada por ela) e ela disse-me que o pai tivera uma condecoração nova. O paizinho deve estar muito contente, não está?
- Em primeiro lugar, deixa-te de baloiços - advertiu-o Alexei Alexandrovitch -, e depois precisas de aprender que o que se aprecia não é a recompensa, mas o trabalho. Gostaria que compreendesses isso. Se não procurares senão a recompensa, o trabalho vai parecer-te penoso; mas, se apreciares o trabalho por si mesmo, nele próprio terás a tua recompensa.
E Alexei Alexandrovitch lembrou-se que, ao assinar, nesse mesmo dia, cento e dezoito documentos diferentes, apenas tivera como estímulo dessa ingrata tarefa o sentimento do dever.
Os olhos de Seriocha, que brilhavam de ternura e alegria, velaram-se perante o olhar do pai. Sentia que este, quando falava com ele, assumia um tom especial, como se se dirigisse a uma dessas crianças imaginárias que se encontram nos livros mas com quem ele, Seriocha, em nada se parecia. Para agradar ao pai, via-se, pois, obrigado a desempenhar o papel de um desses meninos exemplares.
- Espero que me compreendas - concluiu o pai.
- Sim, paizinho - redargúi Seriocha, aceitando o papel que lhe impunham.
A lição consistia no recitativo de alguns versículos do Evangelho e numa repetição dos primeiros capítulos do Velho Testamento. A recitação não ia mal, mas agora, enquanto recitava, notara na testa do pai que o osso frontal formava uma saliência muito aguda no meio das fontes, e atrapalhara-se, dizendo o final de um dos versículos com o começo de outro principiado com a mesma palavra. Karenine julgou evidente que o filho não compreendia o que estava a dizer, e irritou-se.
Franziu o sobrolho e principiou a explicar o que Seriocha já ouvira muitas vezes, embora nunca o conseguisse lembrar, por tão bem o saber. Acontecia-lhe o mesmo que com a locução "de repente", modo adverbial. A criança, assustada, olhava para o pai e só pensava numa coisa: se ele o iria obrigar a repetir o que dissera, como acontecia às vezes. Essa ideia assustava-o de tal sorte que não conseguia perceber coisa alguma. Porém, o pai não o obrigou a repetir os versículos e passou para a lição do Velho Testamento. Seriocha contou bem os factos, mas quando teve de explicar o significado profético deles deixou transparecer a ignorância em que estava, embora já tivesse sido castigado por não saber essa mesma lição. E ao chegar aos patriarcas antediluvianos, não pôde responder a pergunta alguma. Atrapalhado, pôs-se a retalhar a mesa a canivete e a baloiçar-se na cadeira. Apenas se lembrava de um, de Henoch, arrebatado vivo para o céu. Antigamente sabia-lhes os nomes, mas agora esquecera-os por completo, sobretudo porque de todas as personagens do Velho Testamento Henoch era a que preferia e porque a ideia do rapto do profeta se lhe associava no espírito a uma cadeia de pensamentos a que nesse momento se entregava, de olhos fitos na corrente do relógio do pai e num botão meio desabotoado do seu colete.
Embora a cada passo lhe falassem na morte, Seriocha não queria acreditar em tal coisa. Não admitia que pudessem desaparecer as pessoas a quem amava, nem muito menos que ele próprio tivesse de morrer. No entanto, diziam-lhe que era esse o destino de todos, e até mesmo pessoas que lhe mereciam a maior confiança. A velha criada confessara-lhe, embora contra vontade, que de facto todos os homens tinham de morrer. Mas então porque não morrera Henoch? E porque não mereciam os outros subir vivos para o céu como esse profeta? Os maus, aqueles de quem Seriocha não gostava, podiam, realmente, morrer à vontade, mas os outros era bom que lhes acontecesse como a Henoch.
- Vamos, então, quem foram os patriarcas?
- Henoch, Henoch...
- Já disseste esse. Estamos mal, Seriocha, estamos muito mal! Se não procuras saber o que há de mais importante para um cristão, que é que te há-de interessar? - sentenciou o pai, levantando-se. - Não estou contente contigo e o teu professor também não. Terei, pois, de te castigar.
Com efeito, tanto o pai como o professor estavam descontentes com Seriocha: de facto estudava pouco. No entanto, não podia dizer-se que fosse criança de fracas aptidões. Pelo contrário, era mais inteligente que tantos outros rapazes que o mestre lhe apresentava como modelos. Na opinião do pai, Seriocha recusava-se a estudar o que lhe ensinavam. A verdade, porém, é que o podia fazer, pois na sua alma havia necessidades muito mais prementes do que aquelas que o pai e o professor lhe impunham. Com 9 anos, era uma criança, de facto, mas uma criança que conhecia a sua própria alma e a defendia, como a pálpebra defende o olho, daqueles que nela queriam penetrar sem a chave do amor. Acusavam-no de nada querer aprender, quando ele não desejava outra coisa. E aprendia realmente, aprendia com Kapitonich, com a criada, com a Nadienka e com Vacili Lukitch, com estes, sim, não com os mestres. A água com que o pai e o professor esperavam fazer girar a roda do moinho havia muito tempo já que se filtrava para outros lados e fazia girar outros moinhos.
Karenine castigou, pois, Seriocha, proibindo-o de ir a casa de Nadienka, a sobrinha de Lídia Ivanovna; mas o castigo acabou por ser-lhe benéfico.
Vacili Lukitch, que estava bem disposto, ensinou-lhe a fazer moinhos de vento. Seriocha levou toda a tarde a fazer um e a pensar na maneira de conseguir um desses engenhos que o levasse por ares fora. Que seria melhor: amarrar o corpo às velas ou sentar-se-lhe em cima? Esquecera a mãe, toda aquela tarde, mas, ao deitar-se, lembrando-se subitamente dela, pediu a Deus, à sua maneira, que ela deixasse de estar escondida e o viesse ver no dia seguinte, que era o dia dos seus anos.
- Vacili Lukitch, sabe o que eu pedi a Deus, além do que lhe costumo pedir?
- Que estudasse mais?
- Não.
- Que lhe dessem brinquedos?
- Não, não adivinha. É segredo. Se acontecer, então digo-lhe.
Não adivinha?
- Não, não adivinho. Diga lá - disse Vacili Lukitch, sorrindo, coisa que poucas vezes lhe acontecia. - Vá, deite-se, que quero apagar a vela.
- Sem vela vejo melhor o que penso e aquilo por que rezei. Quase ia a dizer o meu segredo! - exclamou Seriocha, soltando uma alegre gargalhada.
Quando levaram a vela, julgou ouvir e sentir a mãe. Estava de pé diante dele e acariciou-o com o seu olhar cheio de ternura. Não tardou, porém, que se pusesse a ver os seus moinhos e o seu canivete, e tudo se lhe confundiu na cabeça. Acabou por adormecer.
CAPÍTULO XVIII
Vronski e Ana, ao chegarem a Sampetersburgo, hospedaram-se num dos melhores hotéis. Vronski instalou-se separadamente, no andar de baixo, e Ana, a menina, a ama e uma criada, ocuparam um apartamento de quatro dependências.
No próprio dia da chegada, Vronski foi visitar o irmão. Ali encontrou a mãe, que viera de Moscovo para tratar das suas coisas. A mãe e a cunhada acolheram-no como sempre: falaram-lhe da viagem ao estrangeiro e perguntaram-lhe pelos conhecidos, sem mencionarem o nome de Ana nem aludirem às suas relações com ela. Em compensação, o irmão, ao agradecer-lhe, no dia seguinte, a visita que ele lhe fizera, perguntou-lhe por Ana; Alexei Vronski disse-lhe, com toda a franqueza, que considerava as suas relações com ela um verdadeiro casamento, que esperava conseguir o divórcio de Ana e casar-se com ela. Até lá, porém, considerava-a sua mulher e pediu-lhe que transmitisse isso mesmo à mãe e a Vária.
- Se a sociedade o não aprovar, é-me indiferente, mas se a minha família quiser manter relações de parentesco comigo, deve torná-las extensivas a minha mulher - disse Vronski.
Sempre muito respeitador das opiniões do irmão mais novo, preferiu deixar a outros o cuidado de resolverem esta delicada questão, e sem protestos decidiu acompanhar Alexei aos aposentos de Ana.
Na presença do irmão, Alexei não tratou Ana por tu, coisa que sempre fazia diante de estranhos, mas como se fosse uma amiga íntima, não obstante dar a entender que o irmão conhecia as relações que os uniam e sem rodeios ter dito, mesmo, que Ana o acompanharia à aldeia.
Apesar do seu tacto mundano, Vronski cometeu um estranho erro: ele que, melhor do que ninguém, devia compreender que a sociedade se lhe manteria fechada, imaginou, por um surpreendente efeito da imaginação, que a opinião pública, liberta de antigos preconceitos, estaria a sofrer influência do progresso geral (o certo é que, sem dar por isso, Vronski acabara por tornar-se partidário do progresso em todas as coisas). "Evidentemente", pensava ele, "não posso contar com a sociedade oficial, mas os nossos parentes, os nossos amigos, esses mostrar-se-ão mais compreensivos."
Qualquer pessoa é capaz de se conservar horas sentada de pernas encolhidas, sem mudar de posição, desde que esteja certa de que nada a impedirá de o fazer. Mas, sabendo que é uma imposição, terá cãibras e as pernas, trêmulas, acabarão instintivamente por estender-se. Eis o que acontecia com Vronski: convencido, no seu foro íntimo, de que as portas da sociedade se lhe conservariam fechadas, nem por isso deixava de acreditar numa transformação dos costumes. Bateu, pois, às portas da sociedade, que se abriram para ele, mas não para Ana. Como no jogo do gato e do rato, os braços que se levantavam para o acolher descaíam diante dela.
Uma das primeiras mulheres da sociedade que ele encontrou foi a prima Betsy.
- Até que enfim! - exclamou ela, alegremente, ao vê-lo. - E Ana? Que grande satisfação eu tenho. Onde estão vocês instalados? Calculo a péssima impressão que lhes deve dar Sampetersburgo depois de uma viagem como a vossa. Essa lua-de-mel em Roma! E a divórcio, já está concluído?
O entusiasmo de Betsy declinou ao saber que o divórcio ainda não estava proferido e Vronski deu logo por isso.
- Tenho a certeza de que me atirarão a primeira pedra, mas penso ir visitar a Ana. Irei sem falta - disse Betsy. - Vão demorar-se muito tempo?
Com efeito, nesse mesmo dia foi visitar Ana. Porém, mudara completamente de tom: parecia querer pôr em relevo a sua coragem e a prova de amizade que dava à amiga. Depois de tagarelar uns dez minutos sobre as novidades do dia a dia, levantou-se e observou, ao despedir-se:
- Não me disseste quando esperas estar divorciada. Tive a coragem de te visitar, mas outras te olharão por cima do ombro enquanto não estiveres casada. Agora é muito fácil. Ça se fait... Quer dizer que vocês partem sexta-feira? Tenho pena de que não nos possamos tornar a ver até lá.
O tom de Betsy deveria ter podido esclarecer Vronski sobre o acolhimento que lhe estava reservado. Mas queria ainda tentar qualquer coisa junto da família. Não contava, claro está, com a mãe, que, entusiasmada com Ana aquando do seu primeiro encontro, mostrava-se agora inflexível para com ela, pois a considerava responsável da ruína da carreira do filho. No entanto, confiava em Vária, a mulher do irmão. Pensava que ela seria incapaz de lhes atirar a primeira pedra e que acharia naturalíssimo visitar Ana e a receberia em sua casa.
No dia seguinte ao da chegada, foi visitá-la e expôs-lhe abertamente o que desejava.
- Bem sabes, Aliocha, que sou muito tua amiga, e estou disposta a fazer por ti tudo o que puder - disse ela, depois de o ouvir. - Se me conservo à margem é que não posso fazer nada por ti nem por Ana Arkadievna - continuou, pronunciando com especial cuidado Ana Arcádievna -; peço-te que não julgues que te censuro. Nunca o fiz, e é muito possível que tivesse feito o mesmo no lugar dela. Não posso nem quero entrar em pormenores - acrescentou, fitando, timidamente, o rosto sombrio de Vronski. - Mas temos de chamar as coisas pelo seu nome. Queres que a vá visitar e que a receba para reabilitá-la perante a sociedade. Não, peço-te que compreendas que isso não o posso fazer. Tenho de educar os meus filhos e preciso de freqüentar a sociedade com meu marido. Se visitasse Ana Arkadievna, seria obrigada a fazer-lhe saber que a não poderia convidar para minha casa, ou então que o teria de fazer de maneira a não se encontrar aqui com mais ninguém, e isso ofendê-la-ia. Não posso...
- Não acho que Ana tenha descido mais do que centenas de mulheres que vocês recebem - interrompeu-a Vronski, ainda mais sombrio, e, sem qualquer outro comentário, levantou-se, compreendendo que a decisão da cunhada era inabalável.
- Alexei! Não te zangues comigo. Por favor, compreende que a culpa não é minha - exclamou Vária, olhando-o com um sorriso tímido.
- Não me zango contigo - replicou Vronski, grave -; mas é-me doloroso o que vejo. Além de que me custa que isto acabe com a nossa amizade. Talvez a não acabe de vez, mas enfraquece-a muito. Compreendes que não posso proceder de outro modo.
Dito isto, Vronski retirou-se.
Percebeu que lhe era inútil fazer outras tentativas e que teria de permanecer aqueles dias em Sampetersburgo como numa cidade estranha, evitando todo o contacto com as suas antigas relações, única forma de evitar cenas desagradáveis e ofensas para ele muito dolorosas. Uma das coisas mais desagradáveis era que Alexei Alexandrovitch e o nome dele estavam em toda a parte. Não havia conversa em que o nome de Karenine não aparecesse imediatamente. Fosse onde fosse, logo se encontrava com ele. Assim, pelo menos, se lhe afigurava, pela mesma razão que uma pessoa com um dedo ferido supõe que as pancadas que nele recebe são propositadas.
A estada em Sampetersburgo ainda lhe foi mais penosa, porque notava em Ana um estado de espírito incompreensível. Tão depressa lhe parecia enamoradíssima dele, como fria, irritável e hermética. Sofria por qualquer coisa que lhe ocultava e parecia não reparar nas ofensas que envenenavam a vida de Vronski, sem dúvida para ela, com a sua aguda sensibilidade, ainda mais dolorosas do que para ele.
CAPÍTULO XXIX
Ao deixar a Itália, Ana propunha-se, antes de mais nada, tornar a ver o filho: à medida que se aproximava de Sampetersburgo maior era a alegria que sentia, visto que ele vivia nessa cidade, e nada mais natural, e mais simples do que encontrar-se com ele; mas assim que chegara, logo compreendeu que isso não ia acontecer.
Que fazer? Ir a casa do marido? Não só se não achava com esse direito como se arriscava a passar por uma afronta. Escrever a Alexei Alexandrovitch quando não conseguia sentir-se tranqüila se não esquecendo-se da existência desse homem? Espreitar as horas em que Seriocha saía a passear e contentar-se com um breve encontro quando tinha tanta coisa a dizer-lhe, tantos beijos e carícias para lhe dar? A criada velha podia ajudá-la muito, mas já não estava em casa de Karenine. Ana perdera dois dias a procurá-la sem resultado. No terceiro, ao saber das relações do marido com a condessa Lídia Ivanovna, decidira-se a escrever a esta uma carta, que muito lhe custou a levar a cabo, onde apelava para a generosidade dela, na certeza de que desde que um dia assumira esse papel, era de crer que quisesse representá-lo até ao fim.
O portador trouxera-lhe, porém, a mais cruel e a mais inesperada das respostas: que não havia resposta nenhuma. Não querendo acreditar no que ouvia, mandou chamar o emissário, ouvindo-o, para sua maior humilhação, confirmar pormenorizadamente a penosa notícia, embora confessando a si própria que, do ponto de vista dela, a condessa tinha razão. E a sua dor foi tanto maior quanto era certo não ter ninguém com quem desabafar. Vronski nem sequer a compreenderia; consideraria o caso de pouca importância, falar-lhe-ia em tom tão glacial que ela lhe teria ódio. E como não havia coisa que ela mais receasse do que sentir ódio por ele, decidiu esconder-lhe ciosamente todos os passos que desse por causa do filho.
Congeminou o dia inteiro outros meios de se aproximar da criança e resolveu, finalmente, escrever ao marido. Foi no momento em que principiava a carta, que lhe trouxeram a resposta da condessa. Não protestara contra o silêncio desta, mas a animosidade, a ironia, que leu entre linhas dessa missiva, encheram-na de revolta.
"Que frieza, que hipocrisia!", exclamou. "Querem-me magoar e atormentar o meu filho. Não consentirei. Ela é bem pior do que eu. Eu, pelo menos, não minto!"
E logo ali decidiu que iria no dia seguinte, aniversário de Seriocha, ver o filho a casa do marido, comprando, se tanto fosse preciso, os próprios criados, pondo termo às mentiras absurdas de que a cercavam. Saiu a comprar brinquedos e elaborou o seu plano: chegaria pela manhã, muito cedo, antes de Alexei Alexandrovitch se levantar. Levaria dinheiro à mão para o porteiro e para o criado de quarto, para que eles a deixassem subir sem levantar o véu da face, sob o pretexto de depor sobre a cama de Seriocha presentes que lhe mandava o padrinho. Quanto ao que diria ao filho, por mais que pensasse, não havia maneira de saber o que iria dizer-lhe.
No dia seguinte, pela manhã, por volta das 8 horas, Ana meteu-se num trem de praça e mandou seguir para a sua antiga casa. Bateu à porta.
- Vai ver quem é, parece uma senhora - disse Kapitanovitch, meio vestido, de casaco pelas costas e galochas nos pés, olhando pela janela a senhora junto à porta.
Mal o ajudante de porteiro, um rapaz desconhecido de Ana, abriu a porta, ela entrou, puxando da manga uma nota de três rublos, que lhe fez deslizar, precipitadamente na mão.
- Seriocha... Sérgio Alexeievitch - murmurou, e seguiu adiante. O rapaz, depois de examinar a nota, deteve Ana na porta seguinte.
- A quem deseja falar? - perguntou. Ana não ouviu o que ele disse nem lhe respondeu. Ao reparar na perturbação da desconhecida, o próprio Kapitanovitch veio-lhe ao encontro, deixou-a passar e perguntou-lhe o que desejava.
- Venho da parte do príncipe Skorodumov e quero falar a Sérgio Alexeievitch.
- Ainda não se levantou - replicou o guarda-portão, observando-a atentamente.
Ana não esperava que o vestíbulo da casa onde vivera nove anos lhe produzisse tão grande impressão. Precipitaram-se-lhe na alma, umas atrás das outras, recordações alegres e penosas e por momentos esqueceu-se mesmo do que ali ia fazer.
- Quer esperar? - disse o guarda-portão ao mesmo tempo que a ajudava a despir o casaco de peles.
Nesse instante, Kapitanovitch reconheceu-a e fez-lhe uma grande vênia.
- Faça favor de entrar, excelência - disse em seguida.
Ana quis falar, mas a voz recusou-se-lhe a articular palavra; olhando o velho com uma expressão de súplica culposa, subiu a escada em passos leves e rápidos. Kapitanovitch seguia-a todo dobrado, tropeçando com as galochas nos degraus, num esforço para alcançá-la.
- O preceptor está aí. Talvez ainda não esteja vestido. Eu irei anunciá-la.
Ana continuava a subir a escada, tão sua conhecida, sem entender o que lhe dizia o velho guarda-portão.
- Faça favor, por aqui, pela esquerda. Desculpe que a casa ainda não esteja arrumada. O menino agora dorme no antigo salãozinho - balbuciava o homem, sem fôlego. - Por favor, excelência, espere um pouco. Eu vou ver - continuou, adiantando-se a Ana; e, entreabrindo uma grande porta, desapareceu por ela. Ana deteve-se, aguardando. - Acabou agora mesmo de acordar - veio dizer o guarda-portão.
No momento em que estas palavras eram ditas, Ana ouviu um bocejo infantil, e bastou esse bocejo para ela reconhecer o filho e para o ver como se ele ali estivesse em carne e osso diante dela.
- Deixe-me, deixe-me entrar - balbuciou, precipitando-se no quarto.
À direita da porta havia uma cama e nela estava sentado um rapazinho, apenas com uma camisinha de noite desapertada, que, estiraçando-se, bocejava. Na altura em que os lábios voltaram a fechar-se, desenhou-se neles um sorriso feliz, e com esse sorriso, meio adormecido, de novo se deixou descair suavemente na cama.
- Seriocha! - sussurrou Ana, aproximando-se em passos silenciosos.
Durante aqueles meses de separação, quando, cheia de saudades, se punha a imaginar o filho, via-o sempre como uma criança de quatro anos, pois fora essa a idade em que mais gostara dele. E eis que ele nem sequer se parecia já com o que ela quando o deixara; tinha crescido e estava mais magro; de cabelos cortados, pareceu-lhe que tinha o rosto mais afilado. Que grandes braços os seus! Mudara muito, embora continuasse a ser bem o que sempre fora, com a mesma forma de cabeça, os mesmos lábios, o mesmo esbelto pescoço e os mesmos ombros largos.
- Seriocha, meu menino! - repetiu Ana, ao ouvido da criança.
Seriocha ergueu-se apoiado no cotovelo, moveu a cabeça para ambos os lados, como se procurasse alguma coisa, e abriu os olhos. Durante segundos olhou para a mãe, imóvel diante dele, silencioso e interrogativo. Depois, aflorou-lhe aos lábios um sorriso de felicidade e, tornando a fechar os olhos, lançou-se-lhe nos braços.
- Seriocha, meu querido filho! - exclamou Ana, sufocada, enlaçando com ambas as mãos o seu corpinho cheio.
- Mãezinha! - murmurou ele, agitando-se-lhe dentro dos braços, para que o corpinho lhe sentisse bem o contacto.
De olhos sempre fechados, deixou-se pender para cima da mãe. A carinha dele esfregava-se-lhe contra o pescoço e o colo, repassando-o desse agradável aroma que só as crianças têm quando dormem.
- Eu bem sabia - disse ele, abrindo os olhos. - Hoje é o dia dos meus anos. Bem sabia que virias. Agora vou levantar-me.
E dizendo o que, voltou a adormecer.
Ana olhava-o avidamente, vendo como crescera e mudara durante a sua ausência. Reconhecia aquelas perninhas nuas e ao mesmo tempo desconhecia-as, agora tão grandes, ali fora da roupa da cama; reconhecia- lhe as facezinhas emagrecidas, os caracolinhos da nuca, que tantas vezes beijava. E a tudo acariciava, sem poder falar, a voz embargada de soluços.
- Por que choras, mãezinha?- perguntou Seriocha, acordando, finalmente, por completo. - Porque choras? - gritou em voz queixosa.
- De alegria, meu filho; há tanto tempo que te não via!... Bom, acabou - disse ela, desviando o rosto para engolir as lágrimas. - São horas de te vestires - continuou, depois de ter-se aquietado um pouco mais. E sem desprender as mãos do filho, sentou-se junto à cama, numa cadeira onde estavam dobradas as roupinhas da criança. - Como te vestes tu sem mim? Como?... -disse, procurando falar em tom simples e alegre; mas não pôde e desviou o rosto de novo.
- Não me lavo mais com água fria, o paizinho proibiu-mo. Não viste o Vacili Lukitch? Está a chegar... Olha, sentaste-te em cima da minha roupa.
E Seriocha deu uma gargalhada. Ana olhou para ele e sorriu.
- Querida mãezinha! - exclamou ele, lançando-se-lhe de novo nos braços, como se tivesse agora compreendido melhor, ao vê-la sorrir, o que realmente estava a acontecer. - Tira isso - continuou ele, deitando- lhe a mão ao chapéu. E ao vê-la de cabeça descoberta, voltou a dar-lhe muitos beijos.
- Que pensavas tu de mim? Julgavas que eu tinha morrido?
- Nunca acreditei.
- Não acreditaste, filho querido?
- Eu bem sabia, eu bem sabia! - exclamou ele, repetindo a sua frase predilecta. E agarrando a mão que lhe acariciava os cabelos, apertou-a contra os lábios e cobriu-a de beijos.
CAPÍTULO XXX
Entretanto Vacili Lukitch, que de princípio não percebera quem era aquela senhora, através da conversa veio a saber de quem se tratava. Não conhecera a mãe de Seriocha, que já não estava em casa quando ele fora contratado. Hesitou: não sabia se devia entrar ou ficar fora do quarto ou se devia avisar Alexei Alexandrovitch. Por fim resolveu que, sendo o seu dever acordar todos os dias Seriocha a uma hora certa, para o fazer não devia preocupar-se com quem porventura estivesse junto dele, fosse a mãe ou outra qualquer pessoa. A sua obrigação era apenas acordá-lo e assim que se vestiu aproximou-se da porta do quarto e abriu-a. A verdade, porém, é que as carícias trocadas entre mãe e filho, o tom das suas vozes, o que diziam, tudo isso o levou a mudar de parecer. Abanando a cabeça, fechou a porta com um suspiro. "Esperarei mais dez minutos", disse, tossindo e enxugando as lágrimas.
Entretanto uma grande agitação reinava entre a criadagem. Todos sabiam que Kapitonich deixara entrar a antiga ama e que ela se encontrava no quarto do filho. Também sabiam que o professor ali se apresentava todas as manhãs pouco depois das 8 horas. Estavam convencidos de que, custasse o que custasse, era preciso evitar que marido e mulher viessem a encontrar-se. Kornei, o criado de quarto, desceu a escada até ao cubículo do guarda-portão para saber o que se passara, e ao ter conhecimento de que o próprio Kapitonitch acompanhara Ana Arkadievna, passou-lhe uma grande descompostura. O guarda-portão mantinha-se num silêncio estóico; quando, porém, o criado de quarto de Karenine lhe disse que merecia ser despedido, estremeceu e aproximando-se de Kornei disse-lhe com um gesto enérgico:
- Vais dizer que tu não a tinhas deixado entrar?! Depois de a teres servido durante dez anos e só teres ouvido dela boas palavras, ter-lhe-ias dito agora: "Faça o favor de se pôr na rua!" Sempre me saíste um traste! Era melhor que te lembrasses do que roubas ao patrão e das pelicas de castor que lhe chispas!
- Caserneiro! - rouquejou Kornei, com desprezo, e virou-se para a criada que aparecia naquele momento. - Imagina tu, Maria Efimovna, que a deixou entrar sem dizer nada a ninguém - explicou. - E não tarda que Alexei Alexandrovitch vá dar com ela no quarto do filho.
- Que coisa, que coisa! - suspirou a criada. - Entretenha o patrão, Kornei Vacilievitch, enquanto eu vou lá acima ver se consigo levá-la dali! Que coisa, que coisa!
Quando a criada entrou no quarto de Seriocha, contava este à mãe que a Nadienka e ele tinham rebolado juntos do alto de uma montanha de gelo, dando três voltas. Ana ouvia-lhe o timbre da voz, mirava-o no rosto, seguia-lhe o jogo fisionômico, palpava-lhe o bracinho, mas não percebia nada do que ele dizia. Precisava de o deixar! Sabia muito bem que tinha de ser e só nessa coisa horrorosa estava a pensar. Ouvira os passos de Vacili Lukitch e a sua tossezinha discreta, agora ouvia chegar a velha criada. Porém, incapaz de se mexer ou de falar, continuava imóvel como uma estátua.
- Senhora! Minha querida senhora! - exclamou Maria Efimovna, aproximando-se e beijando-lhe as mãos e os ombros. - Deus concedeu uma grande alegria ao menino no dia dos seus anos. Nada mudou, minha senhora.
- Oh, querida, não sabia que continuava aqui em casa - disse Ana, serenando por momentos.
- Não vivo aqui, vivo com minha filha. Vim para dar os parabéns ao menino, minha querida Ana Arkadievna.
A criada pôs-se a chorar e tornou a beijar as mãos de Ana.
Seriocha, com os olhos a cintilar de alegria, dando por um lado a mão à mãe, pelo outro à criada, passarinhava por cima do tapete com os seus pèzinhos descalços. Entusiasmava-o a ternura com que a criada tratava a mãe.
- Mãezinha! A Maria Efimovna vem ver-me muitas vezes e de cada vez... -principiou a criança, mas calou-se, ao perceber que a criada falava em voz baixa com a mãe, em cujo rosto se reflectia medo e qualquer coisa parecida com vergonha. Ana aproximou-se do filho.
- Meu queridinho! - exclamou.
Era-lhe impossível dizer-lhe adeus; mas a expressão do rosto disse-o por ela e Seriocha compreendeu-o.
- Meu querido, meu querido Kutik! - dizia, tratando-o pelo nome que lhe dava em pequenino. - Não me esquecerás? Tu... - Ana não pôde prosseguir.
Quantas coisas lamentou, mais tarde, não ter sabido dizer-lhe, quando naquele momento se sentia incapaz de nada dizer! Mas Seriocha compreendera tudo. Compreendeu que a mãe era infeliz e que lhe queria muito e compreendeu mesmo o que a criada lhe segredara ao ouvido, pois ouvira as palavras: "Sempre à volta das 8 horas."
Tratava-se, evidentemente, do pai, e ele percebeu que a mãe não devia encontrar-se com ele. Mas por que se pintava no rosto da mãe medo e vergonha? Sem ser culpada, parecia recear a presença do pai e corar de qualquer coisa que ele não sabia o que fosse. Teria desejado muito interrogá-la, mas faltou-lhe a coragem, pois via-a sofrer e tinha muita pena dela. Estreitou-se contra a mãe, murmurando:
- Não te vás ainda embora, ele não virá tão depressa.
A mãe afastou-o de si por instantes para olhar para ele e procurar compreender se ele estaria bem ciente do que dizia. Ao ver a expressão assustada do filho, compreendeu que se referia, realmente, ao pai e parecia mesmo inquirir que sentimentos deveria manifestar em relação a ele.
- Seriocha, meu filho, deves querer-lhe muito. Ele é melhor do que eu, e eu sou culpada a seus olhos. Quando fores homem, a ti competirá julgar.
- Não há ninguém melhor do que tu - exclamou a criança, chorando, no meio de um grande desespero. E agarrando-se aos ombros da mãe, apertou-a contra si com toda a força dos seus bracinhos trêmulos.
- Meu queridinho, meu queridinho! - balbuciava ela, as lágrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo, chorando como uma criança.
Neste momento Vacili Lukitch entrou no quarto; ouviam-se já passos junto da outra porta e a criada, assustada, estendeu o chapéu a Ana, dizendo-lhe muito baixo:
- Lá vem ele!
Seriocha deixou-se cair de novo sobre a cama e pôs-se a soluçar, cobrindo o rosto com as mãos; Ana afastou-lhas, para beijar mais uma vez as suas facezinhas banhadas de lágrimas, e saiu em passo precipitado.
Alexei Alexandrovitch vinha ao seu encontro. Ao vê-la, parou e baixou a cabeça.
Acabava de dizer que ele era melhor do que ela, e, no entanto, após o rápido olhar que lançou ao marido, mirando-o de alto a baixo, assaltou-a um sentimento de repulsa e de desprezo por ele, ao mesmo tempo que uma grande inveja por aquele homem que ia ficar junto do seu filho lhe abrasou o coração. Baixou rapidamente o véu e saiu quase a correr.
Na pressa com que entrara, esquecera-se na carruagem dos brinquedos escolhidos na véspera com tanto carinho e tristeza, e via-se obrigada a trazê-los de novo consigo para o hotel.
CAPÍTULO XXXI
Conquanto desejasse há muito aquele encontro com o filho e que para isso se tivesse preparado de antemão, Ana não esperava sentir as violentas emoções que lhe despertaram a vista dele. Depois de regressar aos seus aposentos do hotel, levou tempo a compreender porque se encontrava ali. "Bom, tudo acabou e aqui estou eu outra vez só!" Sem tirar o chapéu, deixou-se cair numa poltrona perto do fogão. E com os olhos fitos no relógio de bronze que estava sobre a consola, entre as duas janelas, abandonou-se à sua cisma.
A criada francesa que trouxera do estrangeiro veio perguntar-lhe se queria vestir-se. Ana olhou para ela surpresa e respondeu:
- Mais tarde.
E quando o criado apareceu para lhe servir o pequeno almoço, teve a mesma resposta.
A ama italiana entrou por sua vez com a menina, que acabava de vestir; ao ver a mãe, a criança sorriu-lhe, agitando no ar as mãozinhas rechonchudas, fazendo ruído ao roçar pelas pregas do vestido, como um peixe que agita as barbatanas. Era impossível não sorrir nem deixar de beijar a menina, não se lhe podia recusar o dedo, a que ela se agarrava gorjeando, e o corpo todo palpitante, e também era forçoso oferecer-lhe os lábios, que ela colhia, de boquinha pronta para um beijo; Ana tudo fez; pegou-lhe ao colo e fê-la saltar nos braços, beijou-lhe as bochechinhas louçãs e os cotovelos nus. Mas, ao vê-la, compreendeu que o amor que lhe tinha não se comparava com o que sentia por Seriocha. Tudo nesta criança, era agradável, mas não lhe enchia o coração. Todas as suas reservas de carinho haviam sido para o primeiro filho, embora filho de um homem a quem não amava, um carinho sem compensação. A menina, que nascera em circunstâncias bastante penosas, não tinha a centésima parte dos desvelos que dera a Seriocha. Além de que a menina era tão-só uma esperança, enquanto Seriocha era quase um homem, um homem muito querido. Já lutavam nele sentimentos e pensamentos. E ao lembrar-se das suas palavras e dos seus olhares, tinha a certeza de que Seriocha a compreendia, a amava e a julgava. No entanto, estava separada física e moralmente dele, e isso não tinha remédio.
Depois de confiar a menina à ama, abriu um medalhão onde guardava um retrato de Seriocha pouco mais ou menos da mesma idade da filha. Depois ergueu-se, tirou o chapéu, e pegando num álbum de retratos que estava em cima da mesa retirou dele, para compará-los entre si, vários retratos do filho em idades diferentes. Apenas faltava um, o melhor, em que Seriocha estava a cavalo numa cadeira, de bibe branco, a boca aberta num sorriso e as sobrancelhas franzidas: a semelhança era completa. Com os seus dedos ágeis, mais nervosos do que nunca, tentou debalde descolar a fotografia da cartolina. Como não tinha à mão faca de cortar papel, ia procurando descolá-la com o auxílio de outra fotografia, tirada ao acaso do mesmo álbum, e que calhou ser um retrato de Vronski feito em Roma, de cabelos compridos e chapéu mole. "Ei-lo!" exclamou, e ao ver Alexei, representou-se-lhe bem que era ele o autor dos seus sofrimentos. Não pensara nele toda a manhã, mas, ao deparar-se-lhe aquela face nobre e viril, tão querida e tão íntima, uma onda de amor lhe cresceu inopinadamente no coração. "Onde está ele? Porque me deixa sozinha com a minha dor?", perguntou a si mesma com amargura, esquecendo-se de que lhe ocultava cautelosamente tudo que dizia respeito ao filho. Acto contínuo, mandou-o chamar e ficou à espera, numa ansiedade, das palavras de ternura que ele lhe iria prodigalizar.
O criado voltou para lhe dizer que o conde, com uma visita, lhe perguntava se o poderia receber na companhia do príncipe Iachivne, que acabava de chegar a Sampetersburgo. "Não virá só e não me vê desde ontem à hora do jantar", pensou ela. "Nada lhe poderei dizer, visto estar com Iachivne." É uma ideia cruel lhe perpassou pelo espírito. "E se ele tivesse deixado de me amar?" Evocou na memória os incidentes dos últimos dias. Havia neles algo que poderia ser uma confirmação desse medonho pensamento: desde que chegaram a Sampetersburgo, exigira que ela se instalasse em aposentos separados; na véspera, não jantara com ela, e eis que vinha vê-la acompanhado, como se receasse encontrar-se a sós com ela.
"Se isso fosse verdade, tinha o dever de mo confessar, eu devo ser prevenida: então saberei muito bem o que tenho a fazer", disse de si para consigo, em verdade pouco em estado de imaginar o que seria capaz de fazer, se se confirmasse a indiferença de Vronski.
Este pânico, em que havia como que desespero, deixou-a sobressaltada. Tocou pela criada de quarto, recolheu-se ao toucador e procurou arranjar-se com particular meticulosidade, como se dependesse da sua toilette o poder chamar Vronski de novo a si. A campainha ressoou, ainda ela não estava pronta.
Quando deu entrada no salão, os seus olhos encontraram antes de mais nada o olhar de Iachivne; Vronski, absorto na contemplação dos retratos de Seriocha, que ela deixara em cima da mesa, não mostrou pressa alguma em erguer os olhos para ela.
- Somos velhos conhecidos, estivemos juntos o ano passado nas corridas - disse ela, pousando a sua miúda mão na mão enorme daquele gigante, cuja confusão fazia grande contraste com a sua face rude e o seu porte imenso. - Deixe ver - disse ela para Vronski, tirando-lhe das mãos, num movimento brusco, as fotografias do filho, enquanto lhe relanceava, de olhos brilhantes, um olhar significativo. - Que tal achou as corridas este ano? Tive de me contentar com as do Corso, em Roma, Mas eu sei que não gosta do estrangeiro - acrescentou com um sorriso acariciador. - Conheço-o muito bem, e embora nos tenhamos encontrado poucas vezes, estou a par de todos os seus gostos.
- Muita pena tenho; em geral são bastante maus - replicou Iachivne, mordiscando a guia esquerda do bigode.
Após alguns minutos de conversa, o príncipe, ao ver Vronski consultar o relógio, perguntou a Ana se pensava permanecer muito tempo em Sampetersburgo. Depois, erguendo a sua corpulenta figura, pegou no quépi.
- Acho que não - replicou ela, embaraçada, lançando a Vronski um olhar furtivo.
- Então não nos tornaremos a ver? - disse Iachivne; e, voltando-se para Vronski: - Onde jantas tu?
- Venha jantar connosco - atalhou Ana, em tom resoluto. Mas imediatamente corou, penalizada por não ser capaz de esconder a perturbação que a tomava, sempre que a sua falsa situação se evidenciava perante um estranho. - A cozinha do hotel não é grande coisa, mas ao menos terão ocasião de estar juntos. Entre todos os camaradas de regimento, é o príncipe que o Alexei prefere.
- Com todo o gosto - replicou Iachivne, num sorriso que fez compreender a Vronski que Ana o conquistara por completo.
Pediu licença para se retirar e saiu. Vronski ia fazer o mesmo.
- Vais-tejá embora? - inquiriu Ana.
- Estou atrasado. Vai andando, eu vou já ter contigo - disse para o amigo.
Ana pegou-lhe na mão, e sem afastar dele os olhos procurou lembrar-se de qualquer coisa que o pudesse reter.
- Espera, tenho uma coisa a pedir-te - murmurou ela. E levando a mão de Vronski à face: - Achas que fiz mal em convidá-lo?
- Fizeste muito bem - tornou-lhe ele, sorrindo com todos os dentes à mostra. E beijou-lhe a mão.
- Alexei, não terias mudado para comigo? - perguntou-lhe ela, apertando-lhe a mão entre as suas. - Alexei, eu não posso mais. Quando partimos?
- Não tarda muito, não tarda muito. Eu também não posso mais.
- E retirou a mão.
- Bom, vai, vai - disse ela, num tom magoado. E Ana afastou-se precipitadamente.
CAPÍTULO XXXII
Quando Vronski regressou ao hotel, Ana não estava. Disseram-lhe que tinha saído com uma senhora, pouco depois da partida dele, não sabiam para onde. Esta ausência inesperada, e a demora fora de casa, associadas ao ar agitado, ao tom áspero com que lhe tirara das mãos, diante de Iachvnie, as fotografias do filho, fizeram pensar Vronski.
Decidido a pedir-lhe explicações, aguardou-a no salão. Mas Ana não voltou sozinha; trazia consigo uma das suas tias, a solteirona princesa Oblonski, com quem fora às compras. Sem atentar no ar inquieto e interrogativo de Vronski, pôs-se a descrever-lhe o que fizera, mas ele lia-lhe uma atenção forçada nos olhos brilhantes que o fitavam dissimulada-mente e reconhecia-lhe nos gestos e nas frases essa graça febril que tanto o encantava outrora e que actualmente lhe metia medo.
Iam entrar na saleta, onde estava posta a mesa com quatro talheres, quando vieram anunciar a visita de Tuchkievitch, enviado por Betsy.
A princesa desculpava-se junto de Ana de não poder ir despedir-se dela: estava doente e pedia-lhe que a fosse visitar entre as sete e meia e as nove. Vronski, num simples relance de olhos, quis dar-lhe a entender que, marcando-lhe hora, tomara as medidas necessárias para que ela não viesse a encontrar-se com alguém. Ana, contudo, parecia não prestar-lhe a mínima atenção.
- Lamento muito não estar livre precisamente entre as sete e meia e as nova horas - replicou ela, com um sorriso imperceptível.
- A princesa vai ter muita pena!
- E eu também.
- Naturalmente vão ouvir a Patti?
- A Patti? Ora aí está uma ideia. Iria, com certeza, se pudesse arranjar um camarote.
- Eu me encarrego disso,
- Ficar-lhe-ei muito reconhecida... Mas não quererá jantar connosco?
Vronski encolheu ligeiramente os ombros. Não percebia nada da maneira de agir de Ana: porque trouxera consigo aquela velha solteirona? Porque queria ela que Tuchkievitch ficasse para jantar? E sobretudo para quê um camarote? Estaria ela em condições, na sua posição, de se apresentar na ópera em dia de assinatura? Arriscava-se a encontrar lá Sampetersburgo em peso. Ao relance de olhos severo que ele lhe lançou, ripostou Ana com um desses olhares meio alegre meio provocantes, para ele autênticos enigmas. Durante o jantar, muito animada, dir-se-ia provocar ora um ora outro dos seus convidados. Quando se levantou da mesa, Tuchkievitch foi arranjar a senha do camarote e Iachivne desceu ao andar de baixo para fumar na companhia de Vronski. Daí a pouco este voltou a subir e encontrou Ana com um vestido de seda claro muito decotado e debruado de veludo. Uma mantilha de rendas punha-lhe em realce a fulgurante beleza da cabeça.
- Vais realmente ao teatro? - perguntou ele, evitando-lhe o olhar.
- Por que mo perguntas com esse ar assustado? - tornou-lhe ela, zangada com o facto de ele a não olhar. - Não sei porque não ir! Dir-se-ia que não compreendera o que ele quisera dizer.
- Evidentemente que não há nenhuma razão para isso! - voltou ele, franzindo as sobrancelhas.
- É essa a minha opinião - volveu-lhe ela, fingindo não dar pela ironia da resposta.
E sempre serena, ia retorcendo tranqüilamente o punho alto da luva perfumada.
- Ana, por amor de Deus, que tens tu?... - articulou ele, procurando como que acordá-la, tal como outrora tentara fazê-lo o seu próprio marido.
- Não percebo o que queres de mim.
- Sabes muito bem que não podes ir à Ópera.
- Por quê? Não vou sozinha; a princesa Bárbara foi mudar de vestido e irá comigo.
Vronski encolheu os ombros, desanimado.
- Pois não sabes que... - quis ele dizer.
- Não quero saber coisa alguma - exclamou ela. - Não, não quero. Não me arrependo do que fiz; não, não e não. Se fosse preciso voltar ao princípio, voltaria. Só uma coisa conta para ti e para mim: sabermos que nos amamos. O resto não tem valor algum. Por que vivemos nós aqui separados? Por que não posso eu ir onde me apetece?... Amo-te e tudo me é indiferente, se não mudaste para comigo - acrescentou em russo, pousando nele um desses olhares exaltados que Vronski não podia compreender. - Por que não olhas tu para mim?
Vronski ergueu os olhos para ela: estava linda, o vestido ficava-lhe maravilhosamente. Naquele momento, porém, aquela beleza, aquela elegância é que o irritavam.
- Bem sabes que os meus sentimentos não mudam. Mas peço-te, suplico-te, que não vás! - exclamou ele, sempre em francês, os olhos frios, mas em voz implorativa.
Ana apenas notou o olhar e respondeu de maneira brusca.
- E eu peço-te que me expliques porque não posso eu ir.
- Porque isso pode trazer-te... Não teve coragem de concluir.
- Não compreendo. Iachivne n'est pas compromettant(Nota 50). E a princesa Bárbara não é pior do que tantas outras. Ela aí vem!
CAPÍTULO XXXIII
Pela primeira vez desde que viviam juntos, Vronsk sentiu diante de Ana um descontentamento muito parecido com a cólera. O que acima de tudo o contrariava era não poder explicar-se com toda a franqueza, não era capaz de lhe dizer que o facto de se apresentar na Ópera em semelhante toilette, na companhia de uma pessoa como a princesa, não só correspondia a dar-se a conhecer, reconhecidamente, como mulher perdida, mas ainda por cima era desafiar a opinião pública, renunciando para sempre ao seu lugar na sociedade.
"Como é que ela não compreende isto? Que terá ela?", dizia Vronski com os seus botões. Mas enquanto parecia diminuir a estima que sentia pelo carácter de Ana, a admiração pela sua beleza ia crescendo.
Ao regressar aos seus aposentos, sentou-se, preocupado, ao lado de Iachivne, o qual, com as longas pernas estendidas sobre uma cadeira, saboreava uma mistura de água de Seltz e de conhaque. Vronski seguiu- lhe o exemplo.
- Vigoroso o cavalo de Lankovski! Mas é um belo animal, que eu te aconselho a comprar - disse Iachivne, fitando o rosto taciturno do camarada. - Tem a garupa um pouco descaída, mas a cabeça e os pés são admiráveis. Não há igual!
- Então, vou comprá-lo - tornou-lhe Vronski.
Enquanto ia falando de cavalos, continuava a pensar em Ana: olhava para o relógio de pêndulo, apurando o ouvido para o que se passava no corredor.
- Ana Arkadievna manda dizer que foi para o teatro - veio anunciar o criado.
Iachivne encheu mais um copo de água gasosa, bebeu-a e abotoando o uniforme, levantou-se.
- Pois bem, vamo-nos embora? - disse ele, dando a entender, com o seu sorriso discreto, que compreendia a causa da contrariedade de Vronski, embora sem lhe atribuir a menor importância.
- Eu não irei - respondeu Vronski, em tom lúgubre.
- Prometi e tenho de ir. Adeus. Se mudares de ideias, leva a poltrona de Krusinski, que está vaga - acrescentou, retirando-se.
- Não, tenho um assunto a resolver.
"Realmente", disse Iachivne de si para consigo, ao sair do hotel. "Se uma pessoa tem aborrecimentos com a mulher, com a amante ainda é pior."
Quando ficou só, Vronski pôs-se a passear de um lado para o outro.
"Vejamos, que dia de assinaturas é hoje? O quarto. Meu irmão está lá decerto com a mulher, e naturalmente também lá estará minha mãe, isto é, Sampetersburgo em peso... A esta hora terá entrado Ana e despido o abafo, e ali estará diante de todos. Tuchkievitch, Iachivne, a princesa Bárbara... E eu, que faço eu? Terei medo ou terei confiado a
Tuchkievitch a obrigação de a proteger? Como tudo isto é estúpido. Por que me coloca ela nesta posição idiota?", disse com seus botões, fazendo um gesto com a mão.
Este gesto de mão atingiu a mesinha, que por pouco não caiu, sobre a qual estava uma bandeja com o conhaque e a água de Seltz. Ao querer apanhá-la, Vronski acabou por atirá-la ao chão; furioso, deu-lhe um pontapé e puxou a campainha.
- Se queres continuar ao meu serviço - disse ao criado, que acorrera -, trata de me arranjares as coisas convenientemente. Porque não vieste tirar isto daqui?
Inocente como estava, o criado tentou justificar-se, mas, assim que olhou para o amo, percebeu que o melhor seria nada dizer. Ajoelhou-se, pois, no chão, desculpando-'se, a apanhar os copos e as garrafas, quebrados e inteiros.
- Isso não é da tua incumbência. Manda vir outro criado e trata de me preparares a casaca.
Eram oito e meia quando Vronski deu entrada na Ópera. O espectáculo já tinha principiado. O velho arrumador que o ajudava a despir a pelica conheceu-o e tratou-o por excelência.
- Não é preciso número - disse ele; quando sair, Vossa Excelência pode chamar pelo Fiodor.
Além do arrumador não havia mais ninguém por ali, a não ser dois lacaios, com abafos de pele nas mãos, que escutavam por uma porta entreaberta. Lá dentro a orquestra tocava e em staccato ouvia-se uma voz de mulher: A porta abriu-se, outro arrumador apareceu e a frase que se cantava veio ferir o ouvido de Vronski. Foi-lhe impossível ouvi-la até ao fim, pois a porta fechara-se entretanto, mas, graças aos aplausos que imediatamente se seguiram, percebeu que o trecho findara. Ainda se davam palmas quando penetrou na platéia, onde os lustres e os bicos de gás se acendiam nesse instante. No proscênio, a cantora, toda decotada e coberta de diamantes, agradecia, sorrindo, debruçando-se para apanhar, auxiliada pelo tenor que lhe dava a mão, os ramos de flores que lhe atiravam, desajeitadamente, por cima da ribalta. Um cavalheiro, cuja risca impecável se lhe apartava nas madeixas de cabelo acamadas a brilhantina, estendendo o braço, oferecia-lhe um estojo, enquanto a assistência, camarotes e platéia, gritava, aplaudia, levantava-se para ver melhor. Depois de ter ajudado a passar os presentes para o palco, o chefe da orquestra ajeitava o laço branco. Ao chegar ao meio da platéia, Vronski parou e maquinalmente percorreu com os olhos a assistência em volta de si, mais indiferente do que nunca ao que se passava no palco e ao ruído do rebanho variegado dos espectadores. Lá estavam nos camarotes as mesmas senhoras de sempre e atrás delas os mesmos oficiais, na platéia as mesmas mulheres garridamente vestidas e os mesmos homens de uniformes de gala e nas galerias a mesma plebe suja. E em toda a sala à cunha apenas umas quarenta pessoas, quer nos camarotes, quer nas primeiras filas da platéia, constituía aquilo a que podia chamar-se verdadeiramente a sociedade. A atenção de Vronski imediatamente se sentiu atraída para esse oásis.
Como acabava de descer o pano sobre o Io acto, Vronski, antes de se dirigir ao camarote do irmão, aproximou-se da primeira fila de poltronas, onde Serpukovski, apoiado à ribalta, em que tamborilava com o tacão da bota, o atraía com um sorriso. Ainda não vira Ana nem sequer a procurara com os olhos, mas pela direcção que os olhares tomavam, percebeu facilmente onde ela estava. Receando o pior, tentou descobrir Alexei Alexandrovitch Karenine. Por um feliz acaso, este não viera nessa noite ao teatro.
- Pouco te ficou de militar! - disse-lhe Serpukovski. - Pareces um diplomata, um artista...
- Sim, desde que voltei para a Rússia, adoptei a casaca - replicou Vronski, sorrindo e puxando lentamente do binóculo.
- Invejo-te; quando volto do estrangeiro, confesso-te, é com pesar que visto isto - disse Serpukovski, batendo nas dragonas. - Acima de tudo a liberdade.
Serpukovski havia muito que desistira de entusiasmar Vronski na carreira militar; mas, como continuava seu amigo, queria mostrar-se especialmente amável com ele.
- Tenho pena que perdesses o 1_ acto.
Vronski mal o ouvia. Ia examinando os camarotes. De súbito, a cabeça de Ana apareceu no campo visual do binóculo que ele assestava para a sala, altiva, adorável e sorridente, no meio das suas rendas, junto a uma senhora de turbante e a um velho calvo, que pestanejava mal- humorado. Ana estava no quinto camarote, a vinte passos dele. Sentada na parte dianteira tagarelava com Iachivne, um pouco voltada de costas. A atitude da cabeça, no meio dos belos e opulentos ombros, a excitada irradiação contida dos olhos, lembravam-lhe o momento em que a vira outrora no baile de Moscovo. Os sentimentos que essa beleza lhe inspirava é que nada tinham já de misterioso; por isso, embora o seu encanto impressionasse, e mais vivamente ainda, quase se sentia magoado ao vê-la tão bela. Conquanto ela não estivesse a olhar para onde ele estava, Vronski tinha a certeza de que Ana já dera pela sua chegada.
Quando, pouco depois, Vronski tornou a assestar o binóculo para o camarote, viu a princesa Bárbara, muito corada, a rir com um riso contido e voltando-se a cada passo para o camarote vizinho. Ana, batendo com o leque fechado no parapeito de veludo vermelho, olhava para longe, no intuito evidente de não prestar atenção ao que se passava a seu lado. Quanto a Iachivne, dir-se-ia que se lhe pintava no rosto um sentimento equivalente ao que nele transparecia, se porventura tivesse perdido no jogo: mastigava, nervosamente, as guias do bigode, franzia as sobrancelhas, relanceava os olhos de revés para o camarote vizinho.
Ao fixar o binóculo nos espectadores que ocupavam esse camarote, Vronski reconheceu os Kartassov, cuja casa, tanto ele como Ana tinham freqüentado outrora. De pé, de costas para Ana, a senhora Kartassov, pequenina e delgada, punha um abafo de peles que o marido lhe oferecia: estava pálida, enojada, e parecia falar animadamente. O marido, um indivíduo possante e calvo, fazia o possível por sossegá-la, voltando-se a cada passo para o camarote de Ana. A mulher abandonara o camarote, mas o marido ficara para trás, procurando o olhar de Ana, na intenção de a cumprimentar. Esta, porém, voltava-lhes as costas ostensivamente, entretida a conversar com Iachivne, de cabeça rapada toda inclinada para ela. Kartassov viu-se obrigado a sair, sem poder cumprimentá-la, e o camarote ficou vazio.
Embora ignorasse o que se passara, Vronski convenceu-se de que Ana fora vítima de um desacato: lia-se-lhe no rosto que apelava para as suas derradeiras forças na esperança de manter o papel que resolvera representar até ao fim. Aliás, parecia de uma serenidade absoluta. Os que não a conheciam e não ouviam as frases de indignação ou de comiseração das suas ex-amigas, comentando a audácia que ela tivera em apresentar-se ali em todo o esplendor da sua formosura, não podiam imaginar que aquela mulher sentia a mesma vergonha que um malfeitor amarrado a um pelourinho.
Muito perturbado, Vronski apresentou-se no camarote do irmão. Procurava conseguir saber o que acontecera. Atravessou de propósito a platéia, do lado oposto ao do camarote de Ana, e quando ia a sair deparou-se-lhe o antigo coronel do regimento, que conversava com duas pessoas. Vronski julgou ouvir o nome de Karenine, notando a pressa com que o oficial o chamou em voz alta, relanceando aos companheiros um olhar significativo.
- Ah! Vronski! Quando apareces no regimento? Que diabo, não podemos deixar-te ir embora sem te oferecer um banquete! Eras dos nossos, dos fixes.
- Desta vez não vou ter tempo, e tenho pena - replicou Vronski. E dirigiu-se apressadamente para a escada que conduzia aos camarotes de Ia ordem. A velha condessa, sua mãe, com os seus caracòizinhos cor de aço, estava no camarote do filho. Vária e a jovem princesa Sorokina passeavam pelo corredor. Ao ver o cunhado, Vária conduziu a sua amiga ao camarote onde estava a sogra e dando a mão a Vronski imediatamente se pôs a expor-lhe, excitada como ele nunca a vira, o assunto que a interessava.
- Acho que foi uma atitude covarde e vil. A Kartassov não tinha o direito de fazer o que fez. A Karenina... -principiara ela.
- Que aconteceu, afinal? Não sei de nada.
- Quê? Não ouviste?
- Como poderás calcular, hei-de ser o último a saber.
- Haverá criatura mais malvada do que essa Kartassov?
- Que disse ela?
- Contou-me o meu marido... Ofendeu a Karenine. Kartassov principiou a conversar com ela do seu camarote e a mulher armou um escândalo. Dizem que proferiu palavras ofensivas em voz alta.
- Conde, sua maman está a chamá-lo- exclamou a princesa Sorokina, assomando à porta do camarote.
- Estava à tua espera - disse-lhe a mãe, sorrindo ironicamente.
- Ninguém te vê em parte alguma.
Vronski percebeu que a mãe reprimia a custo um sorriso de alegria.
- Boa noite, maman. Vinha cumprimentá-la - disse ele friamente.
- Então, não vais farre la court à Madame Karenine? (Nota 51) - acrescentou a idosa senhora, assim que a princesa Sorokina se afastou. - Ellefait sensation. On oublie la Patti pour elle(Nota 52).
- Maman, já lhe pedi que me não falasse desse assunto - replicou Vronski, franzindo o sobrecenho.
- Estou a repetir o que todos dizem.
Vronski não respondeu, e depois de trocar algumas palavras com a princesa Sorokina, saiu do camarote. A porta encontrou-se com o irmão.
- Ah, Alexei! - exclamou este. - Que vilania! É uma estúpida e nada mais do que isso... Pensava ir agora cumprimentar a Ana. Vamos juntos.
Vronski não o ouvia sequer. Desceu a escada em passos rápidos; chegara à conclusão de que devia fazer qualquer coisa, não sabia bem o quê. Apesar de furioso com Ana por causa da situação em que ela os colocara a ambos, sentia por ela, ao mesmo tempo, uma grande piedade. Ao dirigir-se da platéia para o camarote que ela ocupava viu que Stremov, de pé diante da balaustrada, conversava com Ana.
- Já não há tenores - dizia e!e. - Le moule en est brisé(Nota 53). Vronski cumprimentou Ana e deteve-se para sondar Stremov.
- Chegou tarde e perdeu a melhor ária - disse Ana a Vronski, olhando-o irônica, como lhe pareceu.
- Não sou grande entendedor - replicou Vronski, fitando-a severo.
- É o que acontece também ao príncipe Iachivne: segundo ele diz, a Patti canta alto de mais - articulou Ana, sorrindo. - Obrigado - acrescentou, pegando, com a mãozinha fechada numa grande luva, no programa que Vronski apanhara do chão. E de súbito o seu formoso rosto estremeceu. Ana pôs-se de pé, e retirou-se para o fundo do camarote.
Durante o 2_ acto, ao ver vazio o camarote de Ana, Vronski, apesar dos protestos dos espectadores, suspensos das notas da cavatina, levantou-se, atravessou a platéia e recolheu-se ao hotel.
Ana também já chegara. Quando Vronski penetrou nos seus aposentos, ainda ela estava tal como fora ao teatro, sentada na cadeira mais próxima da porta, olhando em frente. Depois de relancear um olhar a Vronski, retomou, imediatamente, a postura anterior.
- Ana - articulou ele.
- És o culpado de tudo! - gritou ela com lágrimas de desespero e raiva na voz, levantando-se.
- Pedi-te, supliquei-te que não fosses. Tinha a certeza de que teríamos um desgosto...
- Um desgosto! - exclamou Ana. - Foi horrível! Por mais anos que viva, nunca o esquecerei! Disse-me que era uma desonra sentar-se a meu lado.
- São palavras de mulher estúpida. Mas para que te arriscaste a uma cena tão desagradável?
- Odeio a tua calma. Não me devias ter arrastado a isto. Se me amasses...
- Ana, que tem que ver com isto o meu amor?
- Se me amasses como eu te amo, se sofresses como eu... - continuou Ana, fitando-o com uma expressão de terror.
Vronski teve pena dela, e disse-lhe que a amava, pois via perfeitamente ser a única maneira de a apaziguar; mas no fundo do seu coração queria-lhe mal por aquilo.
Ana, pelo contrário, absorvia, deliciada, esses protestos de amor, que a Vronski se lhe afiguravam banais e quase o envergonhavam. E pouco a pouco recuperou a tranqüilidade.
No dia seguinte, pela manhã, partiram para a aldeia completamente reconciliados.
SEXTA PARTE
CAPÍTULO I
Daria Alexandrovna passava o Verão com os filhos em Pokrovskoie, em casa de Kitty. A casa de campo dos Oblonski ruíra por completo e Levine e a mulher tinham convencido Dolly a passar o Verão com eles. Stepane Arkadievitch aprovara com entusiasmo a decisão. Dizia sentir muito que o seu trabalho o impedisse de passar com a família a estação calmosa, no campo, coisa que constituiria para ele a maior das felicidades. Ficara em Moscovo e de quando em quando vinha por alguns dias à aldeia. Além dos Oblonski, dos filhos e da preceptora, também lá estava a velha princesa, que entendia dever seu cuidar da filha em "estado interessante." Varienka, a amiga de Kitty, do estrangeiro, em cumprimento da promessa que fizera de a visitar quando ela se casasse, viera passar também uma temporada em casa de Levine. Todos eram parentes e amigos da mulher. E conquanto Levine a todos estimasse, nem por isso deixava de lamentar que se perturbasse a ordem do "elemento Levine", com a invasão do "elemento Tcherbatski", que assim costumava chamar lhes no seu foro íntimo. Naquele Verão, em sua casa apenas havia uma pessoa da sua família: Sérgio Ivanovitch. Este, porém, não se parecia em nada com os Levines na sua maneira de ser, era do lado Kosnichev, de modo que o espírito dos da sua raça desaparecera por completo.
Em casa de Levine, por tanto tempo deserta, havia agora tanta gente que quase todos os quartos estavam ocupados e quase todos os dias a velha princesa, ao sentar se, contando os comensais, punha a comer numa mesinha à parte alguns dos seus netos, pois não queria treze à mesa. Kitty, azafamada com a casa, tinha grandes dificuldades em conseguir galinhas, pavões e patos para satisfazer o apetite dos hóspedes, que o ar do campo tornava devorador, quer nas crianças, quer nos adultos. Toda a família se encontrava já à mesa. Os filhos de Dolly com a sua preceptora e Varienka faziam projectos acerca do local onde apanhar cogumelos. Sérgio Ivanovitch, que gozava entre os convidados de um respeito que era quase adoração, mercê da sua inteligência e sabedoria, a todos assombrava tomando parte na tagarelice.
- Levem me a mim também. Gosto muito de apanhar cogumelos
- disse, voltando se para Varienka. - Acho que é uma ocupação muito salutar.
- Dá nos muita satisfação que venha também - tornou lhe esta, corando.
Kitty e Dolly trocaram um olhar significativo. A proposta de Sérgio Ivanovitch, no sentido de ir apanhar cogumelos com Varienka, confirmava certas suspeitas de Kitty nos últimos tempos. E deu se pressa em entabular conversa com a mãe, para que não reparassem no seu olhar. Finda a refeição, Sérgio Ivanovitch sentou se com a sua xícara de café junto à janela da sala e continuou a conversa iniciada com o irmão, sem perder de vista a porta por onde as crianças tinham de sair para se dirigirem à mata. Levine sentara se no parapeito da janela, ao lado dele.
Kitty em pé, perto do marido, parecia aguardar o final da conversa, que não lhe interessava, para lhe dirigir a palavra.
- Mudaste muito desde que te casaste, e para melhor - dizia Sérgio Ivanovitch, com um sorriso, naturalmente pouco interessado na conversa. - Mas continuas fiel à tua mania de defenderes os temas mais paradoxais.
- Kátia, não é bom estares de pé - disse o marido para Kitty, aproximando dela uma cadeira e relanceando lhe um olhar significativo.
- É verdade! - afirmou Sérgio Ivanovitch. - Naturalmente são horas de os deixar - acrescentou, ao ver os pequenos que saíam a correr.
A frente de todos, Tânia, com as suas meias muito esticadas, agitando na mão uma cestinha e o chapéu de Sérgio Ivanovitch, corria ao encontro deste. Ao chegar perto dele, de olhos brilhantes, tal qual os belos olhos do pai, apresentou lhe o chapéu, fazendo um movimento para lho enfiar na cabeça, enquanto atenuava o atrevimento com um sorriso tímido e meigo.
- A Varienka está à espera - disse, enquanto com todo o cuidado lhe enfiava na cabeça o chapéu, deduzindo do sorriso dele estar disposto a consentir.
Varienka, com um vestido de percal amarelo e um lenço branco na cabeça, aguardava à porta.
- Já vou, Bárbara Andreievna - disse Sérgio Ivanovitch, acabando de beber o café e guardando no bolso â boquilha e o lenço.
- É encantadora a minha Varienka, não é verdade? - disse Kitty ao marido, assim que Sérgio Ivanovitch se levantou. Disse o de modo que aquele pudesse ouvir, que não era outra a sua intenção.
- É bonita! Que beleza tão nobre! Varienka! - chamou. - Vão à mata do moinho? Iremos lá ter com vocês.
- Esqueceste te do teu estado, Kitty - interveio a velha princesa, entrando precipitadamente. - Não deves gritar assim.
Ao ouvir a voz de Kitty e a censura da princesa, Varienka aproximou se, rápida, nos seus passinhos ligeiros. A ligeireza dos seus movimentos e as cores que se lhe pintavam no rosto animado denunciavam um estado de espírito excepcional. Kitty sabia o que aquilo queria dizer e observou a atenta. Chamara Varienka na intenção de lhe dar mentalmente a sua bênção, em vista do facto importante que, segundo ela, teria lugar essa mesma tarde na mata.
- Varienka, sentir-me-ei muito feliz se acontecer uma coisa que eu sei - murmurou lhe ao ouvido, quando a beijou.
- Vem connosco? - perguntou Varienka a Levine, perturbada e fingindo não ter ouvido Kitty.
- Acompanhá-los-ei até à granja e ficarei ali.
- Que vais tu fazer à granja? - perguntou Kitty.
- Tenho de passar revista às novas carroças - disse Levine. - E tu, que vais fazer?
- Fico na varanda.
CAPÍTULO II
Na varanda estava reunido o elemento feminino. Em geral, as senhoras gostavam de sentar se ali; mas naquele dia, aliás, tinham de desempenhar se de uma tarefa concreta. Além da costura das camisinhas e das faixas, em que todas se ocupavam, iam fazer doce de frutas por um sistema que Agáfia Mikailovna desconhecia, isto é, sem lhe acrescentarem água. Kitty queria introduzir o processo usado em sua casa. Agáfia Mikailovna, até então encarregada desse mister, que entendia nada poder fazer se mal em casa dos Levines, deitara água nos morangos, certa de que não podia ser de outra maneira. Surpreendida, a despeito das instruções precisas que recebera, a acrescentar água aos morangos, de acordo com a receita dos Levines, ei-las que decidem fazer o doce de morangos em público, para provar à velha casmurra ser perfeitamente dispensável a água no doce de frutas.
Agáfia Mikailovna, muito corada, de cabelos desgrenhados, as mangas arregaçadas até aos cotovelos, deixando à mostra uns braços descarnados, fazia girar o tacho sobre um fogareiro, enquanto olhava acabrunhada para as framboesas, augurando, no fundo da sua alma, que ficassem duras. A velha princesa compreendendo que nela, a principal conselheira da preparação do doce, se concentrava a ira da governanta, fingia se ocupada em outras coisas, indiferente ao que se passava no tacho, falando disto e daquilo. No entanto, pelo canto do olho, relanceava a vista para o fogareiro.
- Compro sempre nos saldos os vestidos para as minhas criadas
- dizia, continuando a conversa interrompida. - Não acha que é altura de espumar o doce, minha querida? - acrescentou, dirigindo se a Agáfia Mikailovna. - Não, não - acorreu, retendo Kitty, que ia levantar se. - Isto não é da tua conta, e perto do fogareiro faz muito calor.
- Deixe -disse Dolly. E, erguendo se, aproximou se do lume, pondo se a passar uma colher pela calda espumante. Depois, para esvaziar a colher da calda, que se lhe pegara, principiou a bater com ela num prato coberto já de espuma amarelo avermelhada, de onde corria um suco cor de sangue. "Que regalo para os meninos à hora do chá!", pensou ela, lembrando se de que quando era pequena se admirava de que as pessoas adultas não aproveitassem o melhor: a espuma das compotas.
- O Stiva acha que é melhor dar se lhes dinheiro - prosseguiu Dolly, retomando a conversa entabulada, tão interessante, acerca do que mais convinha oferecer às criadas. - Mas...
- Dinheiro! - exclamaram ao mesmo tempo a princesa e Kitty.
- Mas de maneira nenhuma, o que elas agradecem é a atenção.
- Eu, por exemplo - acrescentou a princesa -, dei o ano passado à Matriona um vestido no gênero da popelina...
- Sim, bem me lembro, ela trazia o no dia dos seus anos.
- Tinha um lindo desenho, simples, encantador. Se ela não tivesse um, gostaria bem de ter um igual. Era bonito e barato, no gênero daquele que traz a Varienka.
- Acho que o doce está pronto - disse Dolly, levantando a calda na colher.
- Não. A calda tem de formar ponto - decretou a princesa. - Deixe o ferver um pouco mais, Agáfia Mikailovna.
- Oh, estas malditas moscas! - resmungou a velha governanta.
- Vai ficar igual à outra - acrescentou.
- Oh, que lindo! Não o espantem! - exclamou Kitty, inesperadamente, ao ver um pardal pousado na balaustrada, que debicava um pèzinho de framboesa...
- Sim, sim - disse a mãe -, mas não te aproximes do fogareiro.
- À propos de Varienka - disse Kitty em francês, como, de resto, era em francês toda a conversa sempre que não queriam que Agáfia Mikailovna as entendesse. - Fica sabendo, maman, que espero hoje uma decisão. Já sabes a que me refiro. Que bom seria!
- Viraste casamenteira, hem? Ele (referia se a Sérgio Ivanovitch) podia aspirar aos melhores partidos da Rússia. E embora já não esteja no verdor dos anos, muita menina conheço eu que se não importaria nada de lhe aceitar o coração e a aliança... Varienka é muito boa pequena, mas ele podia...
- Não, não, é impossível arranjar para qualquer deles melhor partido. Em primeiro lugar, ela é encantadora! - disse Kitty, dobrando um dos dedos.
- Que ela lhe agrada muito, é um facto - aprovou Dolly.
- Depois, ele tem uma situação que lhe permite casar com quem lhe apeteça, à parte toda e qualquer consideração de categoria e de fortuna. Do que ele precisa é de uma mulher às direitas, meiga e tranqüila...
- Oh! Quanto a isso, não há dúvida, é a tranqüilidade em pessoa
- confirmou Dolly.
- E, afinal, ela gosta dele... Estou doida de contente! Assim que voltarem do passeio, saberei tudo pelos olhos deles. Que te parece, Dolly?
- Não te excites assim. Não te deves excitar - disse lhe a mãe.
- Não me excito, mãezinha. Parece me que ele se vai declarar hoje mesmo.
- O que nós sentimos quando um homem nos pede em casamento! É como se um dique se rompesse entre nós - observou Dolly, com um sorriso cismador. Recordava o seu noivado com Stepane Arkadievitch.
- Diga lá, mãezinha, como foi que o pai se lhe declarou?
- Da maneira mais simples - disse a princesa, rejubilando com a reminiscência.
- Mas como foi? Já gostava do pai antes de lhe consentirem que falasse com ele?
Kitty sentia uma grande satisfação em poder conversar com a mãe de igual para igual em coisas tão importantes na vida de uma mulher.
- Pois claro que gostava. Vinha nos visitar na aldeia.
- E como se resolveu tudo?
- Da mesma maneira de sempre: com olhares e sorrisos. Julgam que descobriram alguma coisa de novo?
- Com olhares e sorrisos - repetiu Dolly. - É isso mesmo. Que bem que a mãe disse!
- Mas em que termos falou ele?
- E que te disse o Kóstia de especial?
- Oh, fez me uma declaração com giz!... Não foi nada banal. Mas como me parece distante já!
Houve um silêncio, durante o qual o pensamento das três seguiu o mesmo caminho. Kitty lembrou se do seu último Inverno de menina solteira, do seu entusiasmo por Vronski e, graças a uma associação de ideias, da paixão contrariada de Varienka.
- Parece me - observou Kitty - que pode haver um obstáculo: o primeiro amor de Varienka. Fazia tenção de preparar o Sérgio Ivanovitch para isso mesmo. Os homens têm tantos ciúmes do nosso passado.
- Nem sempre - objectou Dolly. - Tu pensas isso por causa do teu marido. Estou convencida de que a história do Vronski ainda hoje o atormenta.
- É verdade - confirmou Kitty, pensativa.
- Que há no teu passado que o possa inquietar? - perguntou a princesa, pronta a susceptibilizar se, uma vez que via posta em causa a sua vigilância maternal. - Vronski fez te a corte, mas qual a rapariga que não tenha passado por lá?
- Não é disso que se trata - disse Kitty, corando.
- Perdão - voltou a mãe -, foste tu que me impediste que eu falasse com o Vronski. Lembras te?
- Oh, mãezinha! - exclamou Kitty, numa voz perturbada.
- Nos tempos que correm já não há maneira de as manter resguardadas... As vossas relações não podiam ir mais além do que deviam. Eu mesma o teria obrigado a declarar se... Mas, pelo menos agora, minha filha, faz me o favor de te não perturbares. Sossega, peço te.
- Estou muito sossegada, mãezinha.
- Que sorte para a Kitty, Ana aparecer naquela altura - observou Dolly -, e que desgraça para ela!... Sim - continuou impressionada com a lembrança -, como os papéis se inverteram! Ana era feliz então, enquanto Kitty se julgava desgraçada... Penso nela muitas vezes...
- Que ideia é essa de pensares nessa mulher sem coração, nessa abominável criatura! - exclamou a princesa, que se não resignava a ter Levine por genro, preferindo lhe Vronski.
- Falemos noutra coisa - disse Kitty, impacientada. - Nunca penso nem quero pensar nisso... Não, não quero pensar nisso - repetiu apurando o ouvido. Eram os passos do marido, tão seus conhecidos, pela escada acima.
- Em que não queres tu pensar? - perguntou Levine, que aparecera na varanda.
Ninguém lhe respondeu e ele não repetiu a pergunta.
- Lamento vir perturbar a vossa conversa - disse, percorrendo as três com um olhar pouco satisfeito, pois percebera que não queriam continuar a conversa diante dele. Por um momento, esteve de acordo com a velha governanta que se não resignava à ideia de fazer compota sem água e se recusava de maneira geral a submeter se ao domínio dos Tcherbatski.
No entanto, aproximou se, sorrindo, de Kitty.
- Então? - perguntou lhe ele, olhando a com aquela expressão com que todos se lhe dirigiam agora.
- Nada, estou muito bem - respondeu ela, sorrindo. - E as tuas carroças?
- Levam três vezes a carga de uma telega. Vamos ao encontro das crianças? Mandei atrelar.
- Não queres submeter Kitty aos solavancos de uma tartana, suponho eu - exclamou a princesa em tom de censura.
- Vamos à passo, princesa.
Levine nunca chamava à sogra maman, como costumam fazer todos os genros, coisa que desagradava à princesa. Embora a estimasse e a respeitasse, não podia tratá-la assim sem profanar a lembrança da sua falecida mãe.
- Venha connosco, maman - disse Kitty.
- Não quero presenciar essas imprudências.
- Então irei a pé. Até me fará bem - replicou Kitty, levantando se. E aproximou se do marido, travando lhe do braço.
- Sentes te bem, mas é preciso ter cuidado - tornou a princesa.
- Então essa compota, Agáfia Mikailovna? - inquiriu Levine, sorrindo à velha criada, procurando alegrá-la. - Está satisfeita com o novo método?
- Deve estar bem. Mas para nós está cozida de mais.
- Assim é melhor, Agáfia Mikailovna, porque não azeda. Como já não temos gelo, não a poderíamos conservar - disse Kitty, compreendendo a intenção do marido e procurando por sua vez apaziguar a velha. - Em compensação as suas conservas salgadas são magníficas; a mãe diz que nunca comeu melhores em parte alguma - acrescentou, sorrindo, enquanto lhe ajeitava o mantelete.
A governanta olhou para Kitty com expressão enfadada.
- Não me consolo, minha senhora. Basta vê-la com ele para me sentir contente - disse ela, e a maneira familiar de dizer "ele" emocionou Kitty.
- Venha connosco dizer nos onde há bons cogumelos.
Agáfia Mikailovna sorriu e abanou a cabeça, como que a dizer: "Gostaria de me zangar com a senhora, mas não é possível."
- Faça como lhe digo - disse a princesa -: cubra cada tigela com uma roda de papel embebida em rum, e não precisará de gelo para impedir o bolor.
CAPÍTULO III
A sombra de desagrado que perpassou pelo rosto tão expressivo do marido não passara despercebida a Kitty. Por isso foi lhe muito agradável ver se a sós com ele; e assim que se adiantaram aos outros pela estrada poeirenta, toda coberta de espigas e de grãos de centeio, apoiou se amorosamente no seu braço, apertando-o contra si. Levine já esquecera a má impressão de momento para só pensar na gravidez da mulher. Era esse, aliás, de há muito para cá, o seu pensamento dominante e a presença da mulher despertava nele um sentimento novo, muito puro e muito suave, de todo isento de sensualidade. Sem nada ter que dizer, desejava ouvir lhe a voz, que tinha mudado, adquirindo, tal como o olhar, esse matiz de doçura e gravidade tão característico das pessoas que se consagram de corpo e alma a uma só e única ocupação.
- Não te irás cansar? Apóia te mais no meu braço - disse lhe ele.
- Não, gosto tanto de estar assim um bocadinho sozinha contigo. Gosto dos meus, mas, para te falar francamente, já tenho saudades dos nossos serões de Inverno, só nós os dois.
- Eram muito agradáveis, mas isto ainda é melhor - tornou lhe Levine, apertando lhe o braço.
- Sabes do que falávamos quando chegaste?
- De compotas.
- Sim, mas também da maneira como se costumam fazer declarações de amor.
- Ah! - exclamou Levine, que prestava menos atenção ao que Kitty dizia do que ao som da sua voz. Aliás, como iam entrar na mata, ele escolhia atentamente o caminho para evitar que Kitty tropeçasse.
- E também do Sérgio Ivanovitch e da Varienka - continuou ela.
- Que te parece? Notaste alguma coisa? Que achas tu? - perguntou, olhando-o bem de frente.
- Não sei bem... - replicou Levine, sorrindo. - Neste particular, nunca compreendi o Sérgio lá muito bem. Não te disse já...
- Que ele gostou de uma rapariga que morreu...
- Sim, eu ainda era criança e não conheço a história se não de ouvi-la contar. No entanto, lembro me dele muito bem nessa altura. Que rapaz encantador! De então para cá tenho observado a maneira como se comporta com as mulheres: mostra se amável, algumas agradam lhe mesmo, mas dir se á que não existem para ele como mulheres.
- É possível. Mas com Varienka... parece que há qualquer coisa...
- Talvez... no entanto é preciso conhecer o Sérgio... É um homem estranho, surpreendente. Apenas vive pelo espírito. Tem uma alma muito pura, muito elevada...
- Achas então que o casamento o diminuiria?
- Não, mas vive demasiado enfronhado na vida espiritual para poder admitir a vida real. E Varienka, bem vês, é bem a vida real.
Levine habituara se a exprimir ousadamente o seu pensamento sem lhe dar uma forma concreta; sabia que nos momentos de perfeito entendimento a mulher o compreenderia por meias palavras. E era esse o caso.
- Oh, não! Varienka pertence muito mais à vida espiritual do que à vida real. Não é como eu, e compreendo perfeitamente que uma mulher do meu gênero lhe não desperte amor.
- Nada disso. Ele gosta muito de ti, e para mim é muito consolador que tenhas conquistado a simpatia dos meus.
- Sim, é verdade que ele se mostra muito simpático comigo, mas...
- Porém não é o mesmo que com o pobre do Nicolau - concluiu Levine. - Esse gostou logo de ti, e tu pagaste lhe na mesma moeda... Por que não confessá-lo?... Censuro me a mim próprio muitas vezes por não pensar mais nele; acabarei por esquecê-lo! Era uma natureza estranha... e terrível... Mas de que estávamos nós a falar? - continuou, depois de uma pausa.
- Então achas que não é pessoa para se enamorar? - perguntou Kitty, traduzindo em palavras suas o pensamento do marido.
- Não digo isso - respondeu Levine, sorrindo -, mas não é acessível a qualquer fraqueza... Sempre o invejei, e agora mesmo continuo a invejá-lo, apesar de me sentir tão feliz.
- Invejá-lo por ele não ser capaz de se enamorar?
- Invejo o porque ele vale mais do que eu - disse Levine, depois de um novo sorriso. - Ele não vive para si mesmo, é o dever que o guia. Por isso tem todo o direito de se sentir tranqüilo e satisfeito...
- E tu? - perguntou ela com um sorriso brincalhão e enternecido. Se a interrogassem sobre o sentido daquele sorriso, não teria sabido explicá-lo formalmente. De facto, não acreditava que, proclamando se inferior a Sérgio Ivanovitch, o marido estivesse a ser muito sincero; obedecia simplesmente à muita amizade de que tinha pelo irmão, ao embaraço que lhe causava a excessiva felicidade em que vivia e ao desejo de aperfeiçoamento que o trabalhava.
- E tu? De que estás tu descontente? - repetiu ela, sorrindo.
Satisfeito por verificar que ela não acreditava no seu descontentamento, Levine, inconscientemente, na sua satisfação, procurava como que forçá-la a pedir lhe que expusesse os motivos desse descontentamento.
- Sou feliz, mas não me sinto contente comigo - disse ele.
- Como assim, visto que és feliz?
- Como hei de eu fazer te compreender?... Nada mais tenho a desejar neste mundo se não que tu não dês algum passo em falso. Então, não saltes assim! - exclamou ele, interrompendo o fio ao discurso para exprobrá-la por ter saltado de maneira demasiado brusca um ramo seco atravessado no caminho. - Mas -, prosseguiu ele - quando me comparo com outros, com meu irmão, principalmente, sinto que não valho grande coisa.
- Por quê? - teimou ela, sempre com o mesmo sorriso. - Pois tu não pensas também no próximo? Esqueces as tuas terras, as tuas explorações agrícolas, o teu livro?
- Não, nada disso é sério, e de há tempos a esta parte só me dedico a isto como a uma tarefa de que estou morto por me ver livre. A culpa é tua, de resto - declarou ele, apertando lhe o braço. - Ah, se eu pudesse gostar das minhas obrigações como gosto de ti!
- Então, que me dizes tu do paizinho? - interveio Kitty. - Também o achas má pessoa por nada fazer em benefício do bem comum?
- Ele? Não. Ele é bom, mas eu não tenho nem a sua simplicidade, nem a sua bondade, nem a sua clareza de espírito. Eu não faço nada e o não fazer nada atormenta me. E tudo por tua causa. Quando não te tinha a ti nem a "isso" - disse ele, relanceando os olhos ao ventre de Kitty, gesto que ela logo compreendeu muito bem -, entregava me aos meus afazeres de alma e coração. Agora, repito te, tudo isso é uma tarefa como outra qualquer. Faço as coisas como se estivesse a dar uma lição, finjo...
- Quererias tu, porventura, trocar a tua vida pela do teu irmão? Gostares apenas do teu dever e do bem comum?
- Não, com certeza. Aliás, sinto me demasiado feliz para raciocinar bem... Achas então que ele se vai declarar hoje mesmo? - perguntou, depois de uma curta pausa.
- Sim e não, mas gostaria muito que ele o fizesse. Espera - Kitty baixou se para apanhar uma margarida à beira do caminho. - Anda, arranca lhe as pétalas, vamos ver se ele se declara ou não - disse, entregando lhe a flor.
- Sim, não, sim, não - dizia Levine, arrancando as delgadas pétalas brancas, uma a uma.
Kitty, porém, que seguia emocionada cada movimento dos dedos do marido, travou lhe do braço.
- Não, não tu arrancaste duas de uma só vez!
- Bom, então não conto esta pequena - concordou Levine, ponde de lado uma pètalazinha minúscula. - Aí vem a tartana, que já nos apanhou.
- Estás cansada, Kitty? - gritou a princesa.
- Nada, mãezinha.
- Se estás cansada, sobe, que os cavalos são mansos e vão a passo. Porém não valia a pena, já estavam perto; continuaram o caminho.
CAPÍTULO IV
Varienka, muito graciosa, o lenço branco a sobressair nos cabelos pretos, rodeada das crianças, participava, alegremente, das suas brincadeiras, e naturalmente sentia se emocionada pensando que o homem de quem gostava se lhe iria declarar. Sérgio Ivanovitch, a seu lado, não deixava de a olhar. Ia recordando as conversas agradáveis que tivera com ela e tudo o que de bom lhe tinham dito a seu respeito, compreendendo cada vez mais claramente experimentar aquele sentimento especial que outrora sentira, no tempo da sua juventude. A alegria que lhe dava a presença de Varienka foi aumentando até ao momento em que, ao depositar lhe na cesta um cogumelo, de pé delgado e grande chapéu de abas reviradas, que encontrara, a fitou nos olhos, verificando que um rubor de emoção lhe velava o rosto e havia nela como que temor e alegria. Sérgio Ivanovitch perturbou se também e sorriu lhe com um desses sorrisos que falam por si.
"Se as coisas chegaram já a este ponto", disse com os seus botões, "preciso de pensar antes de tomar uma resolução. Não quero deixar me levar como um garoto por um entusiasmo passageiro."
- Se me dá-licença - disse ele, em voz alta - vou apanhar cogumelos por minha conta; de outra maneira ninguém apreciará os meus achados.
Afastando se, pois, da orla da mata, onde todos pisavam a sedosa erva rasteira, entre os álamos velhos, encaminhou se para o interior do bosque. Ali os troncos brancos dos álamos misturavam se aos troncos cinzentos dos olmos e negrejavam as escuras aveleiras. Andou alguns passos e ao chegar ao pé de uns arbustos cobertos de flores deteve se, certo de que ali ninguém o via. Tudo à sua volta estava em sossego. Apenas junto aos álamos, a cuja sombra se acoitava, zumbiam as moscas tal um enxame de abelhas, e de quando em quando ressoavam as vozes das crianças. De súbito ouviu se, não longe dali, a voz de contralto de Varienka chamando Gricha. Um sorriso iluminou o rosto de Sérgio Ivanovitch e, ao tomar consciência desse sorriso, abanou a cabeça em sinal de desaprovação. Depois, puxou de um cigarro e pôs se a fumar. Durante um longo espaço de tempo não conseguiu acender o fósforo, que riscava no tronco de uma bétula. A penugem macia do branco tronco pegava se ao fósforo e apagava a chama. Por fim conseguiu acender um dos fósforos e o fumo aromático do cigarro elevou se como um véu ondulante por cima do arbusto e por debaixo dos ramos pendentes da bétula. Seguindo com os olhos o fumo do cigarro, Sérgio Ivanovitch principiou a andar lentamente, reflectindo sobre a situação.
"E por que não?", pensava ele. "Não se trata de uma paixoneta, mas de uma inclinação mútua, ao que me parece, e que em nada entravaria a minha vida. A única objecção que tenho a fazer ao casamento é a minha promessa, ao perder Maria, de continuar fiel à sua memória."
Esta objecção, Sérgio Ivanovitch bem o sentia, não tinha para ele qualquer importância; apenas comprometia, aos olhos dos outros, o papel romântico que representava. "Não, francamente, à parte isto, não vejo nenhum obstáculo e por mais que procure nada posso encontrar que comprometa o meu sentimento. Se tivesse escolhido guiado apenas pela razão, não tinha encontrado nada melhor."
Pensando em quantas raparigas e mulheres conhecia, não se lembrava de nenhuma que reunisse as qualidades que, ao reflectir friamente, desejava para a que fosse sua mulher. Varienka tinha o encanto e a louçania da juventude sem ser uma criança, e, se o amava, amava o conscientemente, como uma mulher deve amar. Eis um dos pontos. Além disso, estava longe de ser uma mulher mundana, mas, se lhe repugnava a sociedade, conhecia a e sabia mover se nela, qualidade sem a qual Sérgio Ivanovitch não podia conceber a companheira da sua vida. Finalmente era religiosa, não como uma menina, no gênero de Kitty, por exemplo - boa e religiosa por instinto -, mas porque baseava a sua vida em princípios religiosos. Inclusive, em pequeninas coisas, Sérgio Ivanovitch encontrava nela tudo quanto podia desejar para a mulher que viesse a ser sua esposa. Varienka era pobre e estava só no mundo, de sorte que não traria atrás de si uma caterva de parentes, com a sua respectiva influência na casa do marido, esse o caso de Kitty. Em tudo se sentiria obrigada para com ele, coisa que também sempre desejara para a sua futura vida conjugal. E a rapariga que reunia em si todas estas condições gostava dele, Sérgio Ivanovitch, conquanto modesto, não pudera deixar de o observar. Também ele a amava. Uma coisa se opunha: a sua idade. Na sua família, contudo, todos tinham chegado a velhos. Sérgio Ivanovitch estava sem um cabelo branco; ninguém lhe dava quarenta anos. Demais, lembrava se que na opinião de Varienka só na Rússia se consideravam velhos os cinqüentões. Em França dizia se que um homem dessa idade estava dans la force de l'âge(Nota 54) e a um homem de quarenta anos chamava se un jeune homme59. Que importava a idade, se se sentia tão jovem de espírito como há vinte anos? Acaso não era juvenil o sentimento que experimentava agora quando, ao surgir de novo na clareira da mata, via, sob os oblíquos raios de sol, a graciosa figura de Varienka com o seu vestido amarelo? Com a cesta debaixo do braço, ei-la que passava, com o seu passinho ligeiro, ao pé do tronco de uma velha bétula. A impressão que Varienka lhe causou associou se à paisagem, que o surpreendeu, de tão bela, ao campo de aveia, que rolava as suas ondas douradas banhado pelos raios do Sol e, mais além, ao velho bosque, todo salpicado de manchas amarelas, que se desvaneciam na distância azul. O coração estremeceu lhe de alegria dentro do peito. Deu se conta de que estava decidido. Varienka, que se abaixava para apanhar um cogumelo, ergueu se, num movimento ágil, voltando a cabeça. Tirando da boca o cigarro, Sérgio Ivanovitch dirigiu se para ela em passo resoluto.
CAPÍTULO V
"Bárbara Andreievna, quando eu era rapaz, forjei um ideal de mulher a quem amaria e com quem seria feliz fazendo dela minha mulher. Vivi muitos anos e em si vim a encontrar pela primeira vez o que procurava. Amo a e peco lhe que seja minha mulher."
Sérgio Ivanovitch dizia entre dentes estas palavras quando se encontrou a poucos passos de Varienka, de joelhos, defendendo um cogumelo que Gricha queria apanhar, e chamando por Macha.
- Aqui, aqui. Há muitos pequenos - dizia, com a sua agradável voz peitoral.
Ao ver Sérgio Ivanovitch, que se aproximava, não se levantou nem mudou de posição. Tudo dizia, porém, que notara a sua aproximação e que sentia nisso grande alegria.
- Quê? Encontrou algum? - inquiriu, voltando para ele o seu rosto que sorria, sereno, emoldurado no lenço branco.
- Nenhum - respondeu Sérgio Ivanovitch. - E você? Varienka não lhe respondeu, ocupada com as crianças que a rodeavam.
- Ali está outro, perto daquele ramo - disse, indicando, a Macha, um cogumelo minúsculo cujo chapéu rosado aparecia, cortado de lado a lado, por uma haste de erva seca, debaixo da qual crescera. Varienka pôs se de pé quando Macha colheu o cogumelo, partindo o em dois. - Isto lembra me a minha infância - disse, afastando se das crianças e acercando se de Sérgio Ivanovitch.
Caminharam uns tantos passos em silêncio. Varienka via que Sérgio Ivanovitch queria falar, adivinhava o que ele lhe ia dizer e uma grande emoção se lhe apoderava da alma, uma emoção em que havia ao mesmo tempo alegria e receio. Tanto se haviam afastado que ninguém podia ouvi-los; e, contudo, ele permanecia calado. Após um silêncio ser lhe ia mais fácil abordar o que desejava do que após algumas palavras sobre cogumelos. Mas, contra sua vontade, como de improviso, Varienka disse:
- Pelo que vejo, não encontrou nenhum? Na verdade, no meio do bosque há menos cogumelos que na orla da mata.
Sérgio Ivanovitch suspirou sem responder. Desagradava lhe que Varienka tivesse falado de cogumelos. Desejaria fazê-la voltar às suas primeiras palavras sobre a infância mas, com grande surpresa sua, depois de um silêncio, achou se a articular:
- Tenho ouvido dizer que os cogumelos brancos crescem principalmente na orla dos bosques, mas não sou capaz de distinguir uns dos outros.
Alguns minutos decorreram ainda. Estavam agora completamente sós. O coração de Varienka batia precipitadamente. Sentia se corar e empalidecer alternadamente. Deixar Madame Sthal para casar com um homem como Kosnitchev, de quem se julgava quase certamente enamorada, afigurava se lhe o cúmulo da felicidade. E tudo ia decidir se agora! Temia a declaração e ainda mais o silêncio.
"Agora ou nunca", disse de si para consigo Sérgio Ivanovitch, condoendo se do olhar perturbado, da vermelhidão e dos olhos baixos de Varienka. Reconheceu mesmo que seria ofendê-la continuar calado. E lembrou precipitadamente os argumentos que tivera a favor do casamento; todavia, em vez da frase que preparara deixou escapar inopinadamente:
- Que diferença há entre um cogumelo e um boleto branco? Os lábios de Varienka tremiam ao responder:
- A única diferença está no pé.
Ambos sentiram que o passo fora dado: as palavras que deviam uni-los não seriam pronunciadas e a emoção violenta que os agitava aquietou se pouco a pouco.
- O pé do boleto branco faz lembrar uma barba preta mal feita - disse, tranqüilamente, Sérgio Ivanovitch.
- É isto - replicou Varienka, com um sorriso.
Depois encaminharam se involuntariamente para o local onde estavam as crianças. Confusa e ferida, Varienka experimentava, no entanto, um sentimento de alívio. Sérgio Ivanovitch tornava a recapitular mentalmente os argumentos acerca do casamento e acabava por achá-los falsos: não podia ser infiel à memória de Maria...
- Devagar, devagarinho, meninos! - gritou, em tom mal humorado, Levine ao ver as crianças precipitarem se para Kitty, soltando gritos de alegria.
Atrás das crianças apareceu Sérgio Ivanovitch e Varienka. Kitty não precisou de interrogar a amiga: a expressão serena, um pouco envergonhada dos dois fez lhe compreender que as esperanças que alimentara não se realizavam.
- Então? - perguntou Levine, já de regresso.
- Não pegou - replicou ela, num tom e num sorriso que lhe eram assaz familiares e que muito lhe agradavam, pois lhe lembravam o tom e o sorriso do velho príncipe.
- Que queres tu dizer?
- Olha - disse, pegando na mão do marido. E levando a à boca, passou por ela os lábios fechados. - É assim que se beijam as mãos dos bispos.
- E em qual deles é que não pega? - perguntou ele, rindo.
- Nos dois. Agora vê como se deve fazer...
- Cuidado, olha os camponeses...
- Não deram por nada.
CAPÍTULO VI
Enquanto as crianças bebiam o chá, os adultos, sentados na varanda, falavam como se nada tivesse acontecido, embora todos, e muito especialmente Sérgio Ivanovitch e Varienka, soubessem perfeitamente que se dera um facto muito importante, embora negativo. Ambos experimentavam um sentimento idêntico ao de um aluno que, depois de suspenso, continua na mesma sala ou é expulso do colégio. Todos os presentes, cientes também de que algo acontecera, falavam animadamente de coisas sem importância. Levine e Kitty sentiam se particularmente felizes e enamorados naquela tarde. E o facto de serem felizes no seu amor parecia uma desagradável alusão aos que queriam sê- lo e não podiam, coisa que lhes dava, aos dois, como que um sentimento de vergonha.
- Lembrem se do que lhes digo, o Alexandre não vem - exclamou a velha princesa.
Esperavam naquela tarde Oblonski, e o pai de Kitty escrevera a dizer que talvez fosse também.
- Já sei porque não vem. Dizem que se devem deixar os recém- casados sozinhos nos primeiros tempos - prosseguiu a princesa.
- É por isso que o pai nos não vem ver há tanto tempo - observou Kitty -, e certo é que nós já não somos recém casados, somos veteranos do casamento.
- Pois se ele não vier, também eu me irei embora, meus filhos - disse a princesa, suspirando tristemente.
- Por quê, mãezinha? - perguntaram as duas filhas.
- Imaginem que só ele se há de sentir.
E, de súbito, a voz da princesa alterou se por completo. As filhas trocaram entre si um olhar que queria dizer "A maman arranja sempre motivos para estar triste" Ignoravam elas que a mãe, conquanto se considerasse indispensável em casa de Kitty, se sentia extraordinariamente triste, tanto por ela como pelo marido, desde que a filha mais nova, tão querida, se casara, deixando vazio o ninho familiar.
- Que quer, Agáfia Mikailovna? - perguntou Kitty à velha governanta que surgia de chofre com ares misteriosos.
- Vinha perguntar lhe que faremos para a ceia, minha senhora.
- Muito bem - disse Dolly - Enquanto vais dar as tuas ordens, eu irei dar lição ao Gricha Ainda hoje não estudou nada.
- Essa lição é comigo! Não, Dolly, eu é que irei - interveio Levine, erguendo se de repente.
Gricha, já no liceu, tinha deveres de férias, e Daria Alexandrovna achava dever ajudá-lo a fazer os mais difíceis, especialmente os de aritmética e latim, língua que ela se pusera a estudar para ser prestável ao filho. Levine oferecera se para substituí-la, mas Dolly, que assistira a uma aula dada por ele, observara que o cunhado não leccionava o pequeno como o professor de Moscovo. Disse lhe com muito tacto e não menor firmeza ser preciso manter à risca as instruções do manual. No seu foro íntimo, Levine insurgiu se contra o mau método dos professores de Moscovo e contra a negligência de Stepane Arkadievitch, deixando que a mulher se desempenhasse de uma tarefa de que, no fundo, nada percebia. Prometeu, contudo, à cunhada que seguiria de futuro o livro, e assim o fez, como essa maneira de ensinar já o não interessava, porém, acontecia lhe com freqüência esquecer a hora da lição.
- Não, não, Dolly, não te mexas daí, eu vou. - repetia ele - E fica descansada, nós seguiremos o compêndio. Quando o Stiva vier é que irei com ele à caça. Então, adeus lições!
E saiu para ir ter com Gricha.
Entretanto, Varienka, que sabia tornar se prestável, até numa casa tão feliz e bem organizada como a dos Levines, retinha, por seu lado, a sua querida Kitty.
- Deixa te estar aí quietinha. Eu tratarei de destinar a ceia - disse ela, levantando se e aproximando se de Agáfia Mikailovna.
- Naturalmente não arranjaram frangos. Teremos que matar dos nossos - observou Kitty.
- Nós trataremos disso, a Agáfia Mikailovna e eu - E Varienka saiu acompanhada da governanta.
- Que rapariga tão simpática - comentou a princesa.
- Não é apenas simpática, maman; é encantadora, uma rapariga como não há outra.
- Sempre esperam hoje o Stepane Arkadievitch? - perguntou Kosnichev, na intenção evidente de fala. de tudo menos de Varienka - Nunca vi dois cunhados tão diferentes - acrescentou com um sorriso subtil - enquanto um deles é a agitação por excelência, só sabe viver em sociedade, como o peixe na água, o outro, igualmente fino, sensível, penetrante, nunca se sente à vontade na sociedade, agitando se aí inutilmente como um peixe fora de água?
- Sim. - aprovou a princesa, voltando se para Sérgio Ivanovitch
- É uma cabeça no ar. E estava precisamente disposta a pedir lhe que lhe fizessem compreender que, no estado em que ela está, a Kitty não deve ficar aqui. O marido diz que manda vir um médico, mas eu entendo que o parto deve ser em Moscovo.
- Maman, Kóstia fará o que for necessário, está de acordo contigo
- disse Kitty, contrariada, ao ver que a mãe recorria aos bons ofícios de Sérgio Ivanovitch.
Mas ouviu se, de repente, o relinchar de cavalos e o rolar de um carro na areia da alameda. Ainda Dolly não se tinha levantado para ir ao encontro do marido que chegava, já Levine, no rés do chão, saltava pela janela da sala de estudo de Gricha, arrastando consigo o discípulo.
- Ele aí está! - gritou Levine debaixo da varanda. - Não te preocupes, Dolly, que já acabamos a lição.
E tal qual uma criança, correu ao encontro da carruagem.
- Is, ea, id, ejus, ejus! - gritava Gricha, aos saltos, alameda adiante.
- Vem mais alguém com ele, é o pai, com certeza! - gritou Levine de novo, detendo se à entrada da alameda. - Kitty, não desças por essa escada, que é tão íngreme! Vem de roda.
Mas Levine enganara se. O companheiro de Stepane Arkadievitch era um rapazola bonito e forte, de boina à escocesa e longas fitas caídas atrás, Vacienka Velosvski, primo, em terceiro grau, dos Tcherbatski, muito conhecido da alta roda de Sampetersburgo e de Moscovo. "Belo rapaz e apaixonado caçador", que assim o apresentou Stepane Arkadievitch.
Veslovski não pareceu perturbado com a desilusão que a sua presença causava: cumprimentou alegremente Levine, lembrou lhe que já o tinha encontrado antes e, apanhando Gricha pelo ar, ergueu o por cima do pointer que Stepane Arkadievitch trazia consigo.
Levine não subiu para o carro; acompanhou o a pé pela alameda acima. Sentia se desapontado com o facto de não ter vindo o velho príncipe, de quem gostava cada vez mais, à medida que o conhecia melhor, e com a visita de Vacienka Veslovski, cuja presença lhe era de todo importuna, homem estranho à família que era. E esta impressão ainda mais se radicou nele quando o viu beijar a mão de Kitty com toda a galanteria, na presença de toda a gente da casa, grande e pequena, que acorrera ao alpendre para os ver chegar.
- Nós somos cousins(Nota 55), a sua mulher e eu velhos conhecidos - disse o rapaz, apertando, por sua vez e com bastante energia, a mão de Levine.
- Então, temos caça? - inquiriu Stepane Arkadievitch, interrompendo os cumprimentos à família. - Tanto o Velovski como eu vimos animados de instintos mortíferos... Mas não, maman, fique sabendo que ele não vinha a Moscovo desde essa data... Eh, lá, Tânia, tenho uma coisa para ti!... Tira a daí, se fazes favor, está na traseira do carro - continuou ele, dirigindo se ao mesmo tempo a todos. Estás mais nova, Dolly! - disse ele, por fim, dirigindo se à mulher a quem beijou a mão, retendo a entre as suas e acariciando a afectuosamente.
A boa disposição de Levine desaparecera de todo: assumira um ar lúgubre e a todos achava repugnantes.
"A quem teriam beijado ontem aqueles lábios?", pensava ele. "E por que será que Dolly está tão contente, não acreditando, como não acredita, no amor do marido? Que abominação?"
O acolhimento gracioso que a princesa fizera a Veslovski vexara o; a delicadeza de Sérgio Ivanovitch para com Oblonski pareceu lhe hipócrita, pois sabia muito bem que o irmão não tinha estima alguma por ele; Varienka deu lhe a impressão de uma sainte nitouche(Nota 56) representando o papel de inocente quando no fundo só pensava no casamento. Mas o despeito que sentia atingiu as raias ao ver Kitty, compelida pelo entusiasmo geral, corresponder com um sorriso, sorriso que lhe pareceu cheio de subentendidos, ao sorriso hipócrita daquele indivíduo que considerava a sua presença ali uma festa para ele e para todos os demais.
Conversando animadamente, todos deram entrada em casa. Mas, mal se sentaram, Levine voltou costas e saiu.
Kitty percebeu que algo acontecera com o marido. Quis procurar oportunidade para lhe falar a sós, mas Levine afastou se, alegando que fazer no escritório. Havia muito que os trabalhos da propriedade lhe não pareciam tão importantes como naquele momento. "Para ele tudo são festas, mas aqui há coisas que nada têm de festivo, que não podem esperar e sem as quais é impossível viver", pensava.
CAPÍTULO VII
Levine não voltou a aparecer até à hora em que o chamaram para cear. Nas escadas, Kitty e Agáfia Mikailovna discutiam acerca dos vinhos a servir durante a refeição.
- Para quê todo este bruit?62 Sirvam os do costume.
- Não, Stiva não bebe... Mas que tens tu, Kóstia? Espera aí... - disse Kitty, tentando detê-lo.
Sem a querer ouvir, porém, Levine prosseguiu no seu caminho direito ao salão, onde se deu pressa em tomar parte na conversa geral.
- Bom, que dizes? Vamos amanhã à caça? - perguntou Oblonski.
- Sim, senhor, muito bem - replicou Veslovski, sentando se de lado numa cadeira e recolhendo debaixo de si uma das suas roliças pernas.
- Com todo o gosto. Já caçou este ano? - perguntou Levine a Veslovski, olhando atentamente para a perna dele, com essa fingida amabilidade, que Kitty muito bem lhe conhecia e lhe ficava tão mal. - Não sei se encontraremos galinholas; narcejas, essas, abundam. Temos de sair cedo. Não se cansará? E tu, Stiva, não estás cansado?
- Cansado, eu? Nunca senti cansaço. Por mim, podemos ficar levantados toda a noite. Vamos dar um passeio!
- Realmente, não nos deitemos esta noite! Bela ideia! - apoiou Veslovski.
- Oh! Ninguém põe em dúvida que sejas capaz disso, bem como de não deixares até dormir os outros - disse Dolly num tom de ironia quase imperceptível que adoptara para com o marido. - Por mim, que não quero cear, vou para a cama.
- Espera mais um pouco, Dolinka - insistiu Stepane Arkadievitch, sentando se ao lado dela na grande mesa onde estava servida a ceia. - Tenho tanta coisa para te contar.
- Nada importante, com certeza.
- Queres saber? O Veslovski esteve em casa de Ana. E está disposto a voltar para lá quando daqui sair. Vivem apenas a umas setenta verstas. Eu também posso visitá-la. Veslovski, anda para aqui!
Veslovski aproximou se das senhoras e sentou se junto de Kitty.
- Esteve realmente em casa dela? Como está a Ana Arkadievna?
- perguntou Daria Alexandrovna.
Levine, que ficara na outra cabeceira da mesa a conversar com a princesa e Varienka, notou que Stepane Arkadievitch, Dolly, Kitty e Veslovski pareciam entretidíssimos. Deviam estar, pensou ele, a falar de qualquer coisa misteriosa. Kitty não deixava de fitar o belo rosto de Veslovski, que detinha o uso da palavra, e na sua expressão havia uma curiosidade grave.
- Vivem muito bem - dizia Vacienka, referindo se a Vronski e a Ana. - Evidentemente que não me compete a mim julgá-los, mas devo dizer que na sua casa uma pessoa se sente realmente em família.
- Que pensam eles fazer?
- Naturalmente passar o Inverno em Moscovo.
- Seria engraçado se nos reuníssemos. Quando pensas voltai lá?
- perguntou Oblonski.
- Vou lá passar o mês de Julho.
- E tu, vens também? - disse Stepane Arkadievitch para a mulher.
- Há muito que tenho esse desejo, e hei de ir, sem falta - respondeu Dolly. - Conheço a Ana e tenho pena dela. É uma mulher encantadora! Irei só, quando tu te fores embora. Assim não incomodarei ninguém. E até me parece melhor não ir contigo.
- Magnífico! - exclamou Stepane Arkadievitch. - E tu, Kitty?
- Eu? Para que havia eu de ir? - exclamou, toda corada, e relanceou um olhar ao marido.
- Conhece a Ana Arkadievna? - perguntou Veslovski. - É uma mulher muito atraente.
- Conheço - respondeu Kitty, corando ainda mais. Depois levantou se e aproximou se do marido, perguntando lhe: - Então, vais amanhã à caça?
Os ciúmes que Levine estava a sentir naquele momento, sobretudo por causa do rubor de Kitty, ao falar com Veslovski, haviam atingido o apogeu. Agora, ao ouvir as palavras dela, interpretava as à sua maneira. Por mais estranho que isso lhe parecesse depois, ao recordá-las, naquele momento afigurou se lhe que Kitty lhe perguntava se ia à caça só para saber se proporcionaria esse prazer a Vacienka Veslovski, de quem, segundo pensava, se enamorara.
- Naturalmente - respondeu lhe ele, numa voz tão pouco natural que a si mesmo pareceu desagradável.
- É melhor não pensarem nisso amanhã; a Dolly mal teve tempo de estar com o marido. Podem ir depois de amanhã - propôs Kitty.
Agora Levine traduzia deste modo o sentido das palavras de Kitty: "Não me separes dele. Que tu vás, isso é me indiferente, mas deixa que eu desfrute da companhia deste rapaz encantador."
- Bom! Se é esse o teu desejo, ficaremos amanhã - respondeu com uma amabilidade especial.
Entretanto, Veslovski, sem que pudesse suspeitar quanto a sua presença estava a ser motivo de sofrimento, levantou se da mesa e seguiu Kitty, a quem olhava com um afectuoso sorriso.
Levine surpreendeu esse olhar. Empalideceu e por momentos ficou sufocado. "Quem o autorizou a olhar assim para a minha mulher", pensou.
- Então, amanhã? Vamos amanhã à caça, não é verdade? Vamos, por favor! - suplicou Veslovski, sentando se com a perna por debaixo de si, como era seu costume.
Os ciúmes de Levine cresceram. Já se estava a ver marido enganado, a quem a mulher e o amante exploram no interesse do seu próprio prazer. No entanto, mostrou se amável com Veslovski, fez com que ele lhe falasse das suas caçadas, perguntou lhe se trouxera a espingarda e as botas e acabou por concordar em que iriam à caça no dia seguinte.
Felizmente, para Levine, a princesa veio pôr fim ao seu sofrimento, quando aconselhou Kitty a que fosse para a cama. Mas até isso lhe provocou novo tormento. Ao despedir se de Kitty, Veslovski quis de novo beijar lhe a mão. Esta, porém, com ingênua brusquidão, logo censurada pela mãe, disse retirando a mão:
- Em nossa casa, isso não se usa.
Na opinião de Levine, Kitty tinha a culpa de haver consentido que Veslovski a tratasse daquele modo e também do pouco tacto com que lhe mostrou não gostar daquele gênero de intimidade.
- Quem haverá aí com vontade de dormir? - exclamou Stepane Arkadievitch, o qual, depois de beber certo número de copos de vinho, se sentia num estado de espírito agradável e poético. - Olha, Kitty - disse apontando para a Lua que se erguia por detrás das tílias. - Que maravilha! Veslovski, que óptima ocasião para uma serenata! Sabem que tem uma linda voz? Viemos a cantar pelo caminho. Trouxe umas ricas romanzas novas. A Bárbara Andrievna podia cantá-las.
Depois de todos se retirarem, Veslovski e Stepane Arkadievitch ficaram ainda a passear por muito tempo, pondo se a trautear uma das novas romanzas.
Levine, sentado numa poltrona, no quarto conjugal, de sobrecenho carregado, ouvindo essas vozes, mantinha se obstinadamente calado, sem responder às perguntas de Kitty. Porém, esta disse lhe, a certa altura, com um sorriso tímido:
- Houve qualquer coisa em Veslovski de que não gostaste, não é assim?
E Levine então explodiu. Como o que ele dizia principiava por ser ofensivo para si próprio, tanto maior a irritação que sentia. De pé diante de Kitty, os olhos fuzilando sob as sobrancelhas franzidas, as mãos apertadas contra o peito, como se quisesse comprimir a cólera, tinha as maçãs do rosto trêmulas e os braços duros repassados de um sofrimento que comoveu a mulher.
- É preciso que me compreendas inteiramente - dizia ele, em voz sacudida -, não tenho ciúmes, palavra vil. Não posso ter ciúmes e acreditar que... É impossível exprimir o que sinto, é terrível... Não tenho ciúmes, mas humilha me e ofende me que alguém ouse pensar, ouse olhar para ti com aqueles olhos...
- Com que olhos? - perguntou Kitty, procurando lembrar se, com a maior exactidão que lhe era possível, as palavras e atitudes que tivera naquela noite, bem como todos os seus cambiantes.
No fundo da sua alma, Kitty pensava que alguma coisa houvera quando Veslovski a seguira até ao outro extremo da mesa, mas não se atrevia a reconhecê-lo, e muito menos a dizê-lo a Levine para lhe não agravar o sofrimento.
- E que achas que possa haver em mim de atraente, que...?
- Oh! - exclamou Levine, apertando a cabeça entre as mãos. - Não me digas nada!... Então, se te sentisses atractiva, poderias...
- Não, não, Kóstia, espera. Escuta me! - disse Kitty, olhando o compassiva e sofredora. - Como podes tu pensar uma coisa dessas? Se para mim ninguém mais existe, ninguém...! Oh, queres que eu não veja ninguém?
De princípio, os ciúmes do marido tinham na ofendido. Custava lhe sentir se proibida da mais simples e inocente diversão, mas agora sacrificava lhe de bom grado não só essas ninharias, mas tudo o mais, desde que pudesse dar tranqüilidade e libertá-lo daqueles sofrimentos.
- Compreendo o que há de horrível e de cômico na minha situação. - prosseguiu Levine num murmúrio de desespero. - Esse rapaz é meu hóspede e além das suas maneiras muito à vontade, que ele supõe que são o cúmulo do mundanismo, nada tenho que lhe censurar. Não posso deixar de ser amável para com ele...
- Exageras, Kóstia - interrompeu o Kitty, orgulhosa, no fundo do seu coração, por se sentir amada daquela maneira.
- O mais horrível de tudo isto é que, agora, que és para mim mais sagrada do que nunca, nestes momentos em que nos sentimos tão felizes, tão infinitamente felizes, apareça, de súbito, esse canalha... Não sei porque estará a nossa felicidade nas suas mãos?...
- Ouve, Kóstia, parece me que já sei porque foi tudo isto.
- Por que foi? Por que foi?
- Notei que estavas a olhar para nós enquanto falávamos durante a ceia.
- Sim, e depois? E depois? - exclamou Levine, assustado. Kitty contou lhe de que tinham estado a falar. E ao fazê-lo, estava pálida e perturbada. Levine ficou por momentos calado.
- Kitty, perdoa me! - exclamou ele, pondo se de novo a passear, de cabeça entre as mãos. - Sou doido! Sou eu o culpado de tudo. Como é possível que tenha sofrido tanto por causa de uma tolice?
- Tenho pena de ti...
- Não, não, estou doido!... Torturo te... A pensar assim, o primeiro que aí apareça, mesmo sem querer, pode destruir a nossa felicidade.
- A conduta dele foi irrepreensível.
- Não, não, vou dizer lhe que passe o Verão connosco e farei tudo para ser amável com ele - disse Levine, beijando as mãos da mulher. - Vais ver. Amanhã... Amanhã... Ah, é verdade, amanhã vamos à caça!
CAPÍTULO VIII
No dia seguinte, ainda antes de os senhores se terem levantado, já um charabá e uma telega estavam parados em frente da porta de casa. Laska, que percebera que iam à caça, depois de ladrar e de saltar na sua casota, sentara se ao lado do cocheiro, olhando, inquieta, para a porta, como se estivesse a censurar os caçadores por se demorarem a aparecer. O primeiro a sair foi Vacienka Veslovski, de botas altas, novas, que lhe chegavam quase a meio da coxa grossa, e uma blusa verde, cingida por uma cartucheira de couro, a cheirar muito a novo. Trazia uma boina de fitas e empunhava uma espingarda inglesa, novinha em folha também, sem bandoleira nem braçadeira. Laska pulou logo ao encontro dele, cumprimentando o e, a seu modo, foi lhe perguntando se os outros viriam breve. Como não lhe respondessem, voltou para o seu posto, quedando se de novo imóvel, com a cabeça inclinada para um lado e o ouvido à escuta. Finalmente, a porta abriu se com grande estrépito e saiu correndo, aos pulos e cabriolas, Krak, o pointer de Stepane Arkadievitch, logo seguido do dono, com a espingarda na mão e um charuto na boca.
- Quieto, quieto! Krak! - gritava Oblonski, carinhoso, para o cão que lhe punha as patas no ventre e no peito e se enganchava na bolsa de caça.
Stepane Arkadievitch, de botas amarradas com tiras, vinha de calças rotas e samarra. Na cabeça trazia um chapéu todo amarrotado. Em compensação a arma, de modelo novo, era um verdadeiro primor, e a bolsa de caça e a cartucheira, embora usadas, de couro de primeira qualidade.
Vacienka Veslovski ainda não percebera que a máxima elegância do caçador estava em usar roupa velha e objectos venatórios da melhor qualidade. Compreendeu o quando olhou para Stepane Arkadievitch, resplandecente nos andrajos que vestia, com a sua figura de grande senhor nutrida e jovial, decidindo logo ali que para a próxima vez se vestiria da mesma maneira.
- E o nosso anfitrião? - perguntou.
- É casado de fresco, não é verdade...? - replicou Oblonski, sorrindo.
- Sim, e com uma mulher encantadora...
Naturalmente voltou ao quarto, pois já o vi pronto para sair. Stepane Arkadievitch acertara. Levine voltara ao quarto de Kitty a pedir lhe que repetisse que lhe perdoava a tolice da véspera e a recomendar lhe que fosse prudente e se conservasse o mais possível longe das crianças. E ela teve de lhe jurar uma vez mais que não estava zangada por vê-lo ausentar se durante dois dias, prometendo mandar lhe por um estafeta no dia seguinte um boletim sanitário.
Embora aquela caçada não fosse do agrado de Kitty, acabara por resignar se ao vê-lo animado e alegre, nas suas botas e na sua blusa branca. Vestido assim, ainda parecia mais vigoroso e corpulento. E, esquecendo a sua tristeza, despediu se dele com jovialidade, tão animado o via, nessa animação tão peculiar aos caçadores e que ela não podia perceber.
- Queiram perdoar, meus senhores - disse Levine, assim que apareceu no alpendre. - Puseram o almoço no carro? Por que atrelaram o alazão à direita? Bom, é a mesma coisa! Laska, esteja quieta, vá para o seu lugar. Junta os com os bezerros - ordenou, dirigindo se ao vaqueiro que aguardava ao pé do alpendre para lhe perguntar o que devia fazer dos vitelinhos. - Queiram perdoar. Aí vem mais um maçador!
Levine saltou do carro, para onde subira já, aproximando se do carpinteiro, que vinha para ele com uma vara de medir.
- Ontem não vieste ao escritório e agora obrigas me a perder tempo. Bom, que temos?
- Permita me que acrescente um lanço mais. Ficará melhor assim. E muito mais segura.
- Teria sido melhor que me obedecesses - replicou Levine, irritado. - Disse te que pusesses primeiro as couceiras e fizesses depois os degraus. Agora já não tem remédio. Faz uma escada nova, como eu te havia mandado.
O carpinteiro estragara a escada para o pavilhão, pois, como não calculara o declive, os degraus tinham ficado muito inclinados ao colocá- los no seu lugar. Agora pretendia aproveitar a mesma escada, juntando lhe mais três degraus.
- Assim ficará muito melhor - disse.
- Mas de onde vão sair os teus três degraus?
- Vai ver - teimou o carpinteiro, com um sorriso de desprezo.
- Partirão de baixo, como deve ser - explicou ele, num gesto persuasivo -, e irão subindo, subindo até lá acima.
- Mas esses três degraus fá-la-ão maior. Até onde vai chegar?
- Acrescentando os a partir de baixo, ficarão bem - insistiu o carpinteiro, persuasivo e tenaz.
- Chegará ao tecto.
- Nada disso, porque os acrescentaremos a partir de baixo. Chegará onde é preciso.
Com a vareta da arma, Levine desenhou a escada na poeira do caminho.
- Vês agora?
- Bom, farei o que o patrão quer - replicou o homem, e de súbito chisparam lhe os olhos. Ao que parecia, compreendera, por fim. - Está visto, terei de fazer outra.
- Bom, mas como te estou a dizer - gritou Levine, sentando se no carro. - Vamos, Filipe, segura bem os cães.
Feliz por se ver livre de todas as suas preocupações domésticas, tão grande foi a alegria de Levine que o seu desejo era ficar calado e não pensar noutra coisa senão nas emoções que o aguardavam. Encontrariam a caça no pântano de Kolpensk? A Laska agüentaria a competição do Krak? E estaria ele próprio em boa forma diante daquele estranho? Que fazer para que Oblonski não se portasse melhor do que ele?
Absorto em idênticas preocupações, Oblonski não parecia mais loquaz do que Levine. Só Vacienka Veslovski tagarelava sem parar. Agora, ao ouvi-lo, Levine sentia se envergonhado por ter sido tão injusto para com ele. Vacienka era, realmente, um rapaz simples, bondoso e alegre. Se o tivesse conhecido em solteiro, teriam sido amigos. No entanto, desagradava lhe um pouco a sua maneira despreocupada de considerar a vida e a sua elegância algo desenvolta. Era como se concedesse a si próprio uma importância especial pelo facto de usar unhas compridas, boina escocesa e o resto a condizer. Mas tudo isso se lhe podia perdoar graças à bondade e à honradez do seu carácter. Levine achava o agradável pela sua boa educação, a sua pronúncia perfeita das línguas francesa e inglesa e por ser um homem da sua classe.
Vacienka, encantado com o cavalo do Don engatado à esquerda, não fazia outra coisa senão elogiá-lo.
- Que bom deve ser galopar pela estepe fora num cavalo assim! Não é verdade? - disse ele.
Visionava como coisa selvagem e poética uma cavalgada pela estepe, quando era tão diferente da verdade. Mas essa ingenuidade, aliada à beleza, ao sorriso agradável e à graça dos movimentos tornava se atractiva. Ou porque o carácter do rapaz fosse simpático a Levine ou porque, procurando remir a falta da véspera, tudo nele lhe parecesse bem, o certo é que a companhia de Vacienka lhe era agradável.
Já haviam percorrido umas três verstas quando Veslovski deu por falta dos cigarros e da carteira; não sabia se os perdera ou se os deixara esquecidos em cima da mesa. A carteira tinha trezentos e setenta rublos; por conseguinte, precisava de saber do seu paradeiro.
- Ouça, Levine, vou voltar a casa montado neste cavalo do Don. Seria magnífico! Que lhe parece? - exclamou, pronto a fazê-lo.
- Para quê? - replicou Levine, calculando que Vacienka devia pesar pelos menos seis pudi, - Podemos mandar o cocheiro.
O cocheiro partiu montado no cavalo que ia ao varal e Levine tomou as rédeas nas suas mãos.
CAPÍTULO IX
- Que itinerário vamos nós seguir? Expõe me isso com todos os pormenores - disse Stepane Arkadievitch.
- O plano é o seguinte: agora vamos até Gvozdevo, a vinte verstas daqui. Deste lado da povoação vamos encontrar muitas narcejas nos pântanos. Do outro lado, mais longe, há marismas cheias de galinholas e também lá se encontram narcejas. Agora faz calor, chegaremos ao anoitecer e apoderar-nos-emos do campo a essa hora. Passaremos ali a noite e amanhã seguiremos para os grandes pântanos.
- E pelo caminho não há nada?
- Sim, há dois bons locais, mas isso ia atrasar nos. Aliás, está muito calor e não é certo que encontrássemos alguma coisa a esta hora.
Levine contava reservar para seu uso privativo os campos vizinhos de casa, onde, de resto, três caçadores apenas serviriam para se atrapalharem uns aos outros; mas nada escapava ao olhar experimentado de Oblonski e ao passar diante de um pequeno pântano, exclamou:
- E se nós parássemos aqui?
- Oh! Sim, Levine, por favor. É magnífico! - implorou Vacienka Veslovski. E Levine não teve outro remédio senão ceder.
Assim que o carro parou, os cães precipitaram se, qual deles mais veloz, direitos ao pântano.
- Krak! Laska! Os cães voltaram.
- Três seríamos de mais para o espaço que há. Eu ficarei aqui - disse Levine, certo de que eles mais nada encontrariam senão carambolas. Aliás, algumas tinham se levantado, assustadas pelos cães, e pairavam, balançando se e grasnando, por cima do pântano.
- Não, vamos juntos, vamos todos - insistiu Veslovski.
- Realmente, o espaço é pequeno. Laska, vem cá, Laska! Não querem mais um cão?
Levine ficou junto do carro, seguindo com a vista, invejoso, os caçadores que se afastavam. Estes percorreram todo o local. Nada mais conseguiram ver além de uma perdiz e de algumas pequenas carambolas. Vacienka matou uma delas.
- Como vêem, não era intenção minha ocultar lhes estes sítios - disse Levine. - Sabia que íamos perder tempo, nada mais.
- Não, não, foi muito agradável - replicou Veslovski, o qual, embaraçado com a espingarda e a carambola, subia a custo para o carro.
- Viu como eu a deitei abaixo? Belo tiro, não é verdade? Vamos chegar dentro de pouco ao bom sítio?
De súbito, os cavalos encabritaram se. Levine deu com a cabeça contra o cano de uma das escopetas e pareceu lhe ouvir um tiro. Mas, na realidade, o tiro tinha soado antes. Foi o caso que Vacienka, ao pôr a arma no descanso, apertou a gatilho sem querer. A bala foi cravar se na terra sem ferir ninguém. Stepane Arkadievitch abanou a cabeça e sorriu, olhando para Veslovski, reprovativo. Levine, porém, não teve coragem de lhe dizer nada. Em primeiro lugar, porque qualquer censura podia ser interpretada como o resultado do perigo que correra e do galo que a arma lhe fizera na testa. E depois Veslovski mostrara se desde logo tão ingenuamente penalizado, rindo com tanta vontade do susto que a todos causara, que Levine não pôde reprimir o riso.
Quando chegaram ao segundo pântano, bastante grande e onde se iriam demorar muito, Levine instou para que se não apeassem. Mas, Veslovski tanto lhe pediu, que ele acabou por aceder. Como o local era muito estreito, Levine, bom anfitrião, voltou a ficar no carro.
Krak lançou se no pântano seguido de perto por Vacienka Veslovski, e ainda Oblonski não chegara junto deles, já Veslovski levantava uma narceja. Errou o tiro e a narceja foi pousar num campo por ceifar. Dir se ia predestinada para ele. Krak voltou a dar com ela, fê-la levantar voo e Veslovski matou a, regressando depois ao carro.
- Agora vá o Levine, que eu ficarei a tomar conta dos cavalos - disse ele.
Levine sentiu apoderar se de si essa inveja tão própria dos caçadores. Entregou as rédeas a Veslovski e encaminhou se para o pântano.
Laska havia tempo já que ladrava, queixando se da injustiça. Ei-la que corre direita aos cerros, lugar que Levine conhecia muito bem e onde esperava encontrar caça. O Krak ainda lá não chegara.
- Por que não seguras a Laska? - perguntou Oblonski.
- Não espantará a caça - replicou Levine, contente com a cadela, enquanto a seguia.
À medida que Laska se aproximava do cerro, a busca ia sendo mais minuciosa. Um passarinho do pântano distraiu a, mas um instante apenas. Deu uma volta aos montículos e de novo principiou a contorná- los: de súbito, porém, estremeceu e ficou imóvel.
- Anda, Stiva, anda! - gritou Levine, sentindo que o coração lhe batia com mais força. E, de repente, como se o ouvido, tenso ao máximo, houvesse perdido o sentido da distância, todos os sons vieram impressioná-lo com uma intensidade desordenada. Os passos de Oblonski, ali, perto, pareciam lhe o piafé longínquo dos cavalos, o esfarelar de um montículo de terra sobre o qual pusera o pé afigurara se lhe o bater de asas de uma narceja. Dera ainda atrás dele, e não muito longe, por uma espécie de chapinhar na água, que não percebia muito bem o que fosse.
Aproximou se da Laska, caminhando cautelosamente.
- Aboca! - gritou.
Uma narceja levantara se debaixo das patas da cadela; metia já a arma ao rosto, quando o chapinhar aumentou de intensidade, ouvindo se mais perto, juntamente com a voz de Veslovski, que gritava de modo estranho. Levine percebeu que fazia má pontaria, mas, mesmo assim, puxou o gatilho.
Logo que se convenceu de que falhara o alvo, voltou a cabeça e viu que os cavalos já não estavam no caminho, tinham metido pelo terreno pantanoso.
Desejoso de seguir a caçada, Veslovski penetrara no pântano, enterrando os animais no lodo.
- Diabos o levem! - exclamou Levine, dirigindo se ao carro. - Para que se meteu aqui? - disse, secamente, a Veslovski e, gritando pelo cocheiro, pôs se a retirar os cavalos do pântano. Aqueles amigos não só o faziam perder um tiro, como lhe iam dando cabo dos cavalos e o deixavam sozinho com o cocheiro a desatrelar os pobres animais e a trazê-los para a terra enxuta. Também como haviam eles de o ajudar?
Todavia, o culpado fez o que pôde para desatolar o charabã e tanto fez que acabou por arrancar um dos guarda lamas. Esta boa vontade comoveu Levine que, convencido de que aquele seu mau humor ainda era reflexo do que se passara na véspera, logo procurou mostrar se o mais amável que pode para com Veslovski. Quando tudo ficou em ordem e os carros entraram na estrada, Levine mandou que tirassem o almoço.
- Bon appétit, bonne conscience! Ce poulet va tomber jusqu'au fond de mes bottes!(Nota 57) - disse Vacienka, citando o provérbio francês, de novo alegre, enquanto atacava o segundo frango. - Bom, agora, acabaram as nossas desventuras e tudo caminhará bem. Mas, para castigo, tenho obrigação de ir na boleia e de lhes servir de automedonte... Não, não, deixem me guiar o barco! Vão ver como eu o levo. Vou muito bem na boleia. Tenho de pagar o que fiz.
E Vacienka tocou os cavalos.
Levine receava que ele lhe estropiasse os animais, especialmente o alazão da esquerda, que não saberia guiar. Mas, a pesar seu, acabou por ceder, submetendo se à jovialidade de Vacienka. E ouviu as romanzas que ele, sentado na boleia, foi entoando durante todo o caminho, bem como as explicações que dava sobre a maneira de conduzir à inglesa um four-in-hand(Nota 58), que explicou com alguns gestos. Depois do almoço, alcançaram o pântano de Gvosdevo na melhor disposição deste mundo.
CAPÍTULO X
Vacienka tanto tocara os cavalos que chegaram cedo de mais; ainda fazia calor.
Levine desejava logo ver se livre do incômodo companheiro. Stepane Arkadievitch parecia compartilhar do mesmo desejo. Aquele viu lhe no rosto a preocupação própria de todo o verdadeiro caçador antes de principiar a caçar, bem como certa malícia bonacheirona muito sua.
- Por onde iremos? O lugar é magnífico, até há abutres! - exclamou Stepane Arkadievitch, apontando para duas grandes aves que pairavam em círculo por cima dos juncais. - Onde há abutres é mais que certo que tem de haver caça.
- Olhem - disse Levine, algo triste de expressão, enquanto ajustava as botas e verificava e espingarda -, estão a ver aqueles juncais lá adiante? - e apontou para uma ilhota que se salientava, verde escura, no enorme prado húmido, meio ceifado, à direita do rio. - O pântano começa precisamente diante de nós. - Estão a vê-lo? Ali onde o verde é mais intenso. Daqui alarga se para a direita, por onde vão os cavalos; ali, naqueles cerros, costumava haver narcejas e também nas imediações destes juncais, até à mata de álamos e ao moinho. Vêem onde se forma aquela enseada? É o melhor sítio. Ali matei eu, uma vez, dezassete galinholas. Vamos separar nos em duas direcções, levando cada um o seu cão e depois encontrar-nos-emos perto do moinho.
- Quem vai para a direita? - perguntou Oblonski. - Vão vocês dois pelo lado direito, que é mais largo; eu seguirei pelo esquerdo - acrescentou, num tom de aparente indiferença.
- Magnífico! Levar-lhe-emos vantagem. Bom, vamos, vamos! - exclamou Vacienka.
Levine não teve outro remédio senão ceder e separaram se.
Mal entraram no pântano, os dois cães puseram se a farejar. Levine conhecia muito bem a maneira de caçar de Laska, cautelosa e precisa, e também conhecia o local e esperava ver levantar se um bando de narcejas.
- Veslovski, ponha se a meu lado! - murmurou, dirigindo se ao companheiro, que chapinhava atrás dele, o que muito o preocupava, por causa da arma, a pesar seu, após o tiro em Kolpens.
- Não, não quero incomodá-lo. Não se preocupe comigo.
Levine pensava, sem querer, nas palavras que Kitty lhe dissera ao despedir se: "Tem cuidado, vê lá se andam aos tiros uns aos outros!" Os cães internavam se cada vez mais, evitando se mutuamente, cada um na sua direcção. Levine tão emocionado estava que o chapinhar dos tacões no lodo lhe parecia o grasnar das aves. Pegou logo na arma.
"Cuá, cuá!", ouviu junto ao seu ouvido. Vacienka disparou contra um bando de patos bravos que revoluteavam por cima do pântano, fora do alcance da espingarda. Levine mal teve tempo de se voltar. Levantou- se uma narceja, depois outra, uma terceira em seguida, e assim por diante, até oito, umas atrás das outras.
Stepane Arkadievitch alvejou uma delas no momento em que principiava a voar em ziguezague, e a narceja foi cair num barranco como uma coisa informe. Sem se precipitar, visou outra, que voava baixo em direcção aos juncais, e o tiro ouviu se ao mesmo tempo que a ave caía. Viram na agitar se no campo ceifado, batendo a asa sã, toda branca na parte inferior.
Levine não teve a mesma sorte; disparou sobre a primeira narceja tarde de mais e errou o tiro. Apontou de novo quando a ave se levantou, mas nesse mesmo momento surgiu outra voando debaixo dos seus pés e Levine distraiu se, errando o alvo de novo.
Enquanto carregavam as espingardas, levantou se nova galinhola, e Veslovski, que já carregara a arma, disparou por duas vezes. Os chumbos, porém, foram cair na água. Stepane Arkadievitch, depois de apanhar as peças de caça que matara, olhou para Levine, os olhos chamejantes.
- E agora vamo-nos separar - disse ele, dirigindo se para a direita, a coxear ligeiramente da perna esquerda, e de arma aperrada assobiou ao cão.
Sempre que lhe acontecia falhar o primeiro tiro, Levine perdia facilmente o sangue frio, comprometendo a caçada: eis o que lhe aconteceu naquele dia. A cada momento levantavam voo as narcejas, mesmo debaixo dos pés dos caçadores ou diante do focinho dos cães; tivera ocasião, portanto, de reparar a pouca sorte do primeiro tiro, mas a verdade é que, quanto mais disparava, mais envergonhado se sentia perante Veslovski, o qual atirava a esmo, sem nada matar e sem chegar a perder a boa disposição em que estava. Levine precipitava se, impacientando se, cada vez mais excitado, chegando, mesmo, a puxar o gatilho sem esperança de atingir o alvo. Dir se ia que Laska o compreendia. Estupefacta, olhava para os caçadores como que a censurá- los, e as suas buscas tornaram se mais irregulares. Por mais que as espingardas disparassem ininterruptamente e que a fumarada envolvesse os caçadores, a imensa bolsa de caça, por junto, continha três insignificantes narcejas. Veslovski matara uma delas e a outra fora atingida por ambos. Entretanto, do outro lado do pântano ouviam se detonações pouco freqüentes, mas, no parecer de Levine, mais eficazes, de Stepane Arkadievitch. E quase todas eram acompanhadas do grito: "Krak! Krak!, busca, busca!"
Eis o que ainda mais irritava Levine. As narcejas voavam agora em bandos por cima dos juncais. Ouvia se constantemente o chapinhar no lodo e pelos ares fora o grasnido das narcejas, que esvoaçavam para voltar a pousar mesmo à vista dos caçadores. Já não eram só dois abutres que apareciam, mas bandos de dez, que voavam, grasnando, por cima do pântano.
Depois de terem percorrido mais de metade do pântano, Levine e Veslovski chegaram ao local que confinava com os juncais e era o limite das terras dos aldeões, divididas ou por carreiros abertos pelos pés dos homens ou por franjas ceifadas. Metade dos campos já tinham recebido a foice. Embora as probabilidades de achar caça fossem tão escassas nas zonas por ceifar como nas já ceifadas, Levine, que prometera a Stepane Arkadievitch reunir se com ele, seguiu avante acompanhado do camarada.
- Eh, caçadores! - gritou lhes um mujique do meio de um grupo sentado à volta de um carro desatrelado. - Venham comer connosco! Temos vinho!
Levine voltou se.
- Venham! Venham! - insistiu outro, de grandes barbas, rosto corado e jovial, que mostrava os brancos dentes, enquanto agitava no ar uma garrafa esverdeada, que brilhava ao sol.
- Qu'est cê qu'ils dissent(Nota 59)?- perguntou Veslovski.
- Estão a convidar nos para bebermos vodka. Naturalmente procederam hoje à divisão do feno. Eu estava capaz de aceitar, e com muito gosto - replicou Levine, não sem malícia, esperando que Veslovski se deixasse seduzir e o apanhassem também.
- E por que nos convidam eles?
- Porque estão divertidos. Aceite! Vai gostar!
- Allons, ci est curieux(Nota 60).
- Vá! Vá! Lá adiante há um atalho que leva ao moinho - exclamou Levine.
Quando se voltou, viu com satisfação que Veslovski se afastava, todo dobrado, a espingarda no braço, trôpego, embatendo com os pés cansados nos torrões de terra.
- Vem tu também! - gritou o camponês, chamando Levine. - Terás empadas!
Levine não teria, por certo, recusado um pedaço de pão e um trago de vodka; sentia se cansado e era penosamente que arrastava os pés pela lama do pântano; dera porém com a Laska imóvel e esqueceu se da fadiga que sentia para ir ao seu encontro. Levantou se lhe debaixo dos pés uma narceja, e desta vez não errou o tiro.
A cadela continuava imóvel. "Busca!" Outra ave se levantou diante do focinho de Laska. Levine disparou pela segunda vez, mas não havia dúvida, o dia era de azar: não só falhou uma das aves, como não pôde encontrar a primeira. Sem acreditar que o dono a tivesse atingido, Laska fingia procurá-la.
A pouca sorte, que atribuía à presença de Vacienka, não largava
Levine. Embora também ali houvesse muita caça, falhava tiro após tiro.
Os raios oblíquos do sol poente ainda estavam muito quentes, as roupas, ensopadas em transpiração, colavam se ao corpo; a bota esquerda, cheia de água, tornava lhe o andar mais pesado; o suor escorria lhe em grossas camarinhas pelo rosto maculado do fumo da pólvora; sentia a boca amarga; sufocava com o cheiro a pólvora e a lodo; o grasnido das narcejas ensurdecia o; o coração batia lhe precipitadamente no peito; as mãos tremiam lhe, e os pés cansados, ora tropeçavam nos torrões de terra, ora se enfiavam pelas luras do solo. Todavia, continuava sempre a avançar e a disparar. Por fim, depois de um tiro vergonhoso, atirou ao chão a espingarda e o chapéu.
"Francamente, tenho de ter juízo!", disse de si para consigo. Pegando de novo no chapéu e na espingarda, chamou Laska e saiu do pântano. Assim que chegou à terra seca, sentou se num montículo, descalçou se e despejou a água que tinha na bota. Depois abeirou se do pântano, bebeu água a saber a mofo e, após humedecer os canos esquentados da arma, lavou o rosto e as mãos. Uma vez refrescado, voltou ao sítio onde vira pousar uma narceja, disposto a não se enervar. Queria estar calmo. No entanto, sucedeu lhe o mesmo. Premia o gatilho antes de visar a peça de caça. Tudo ia de mal a pior.
Ao sair do pântano, direito à mata dos álamos, levava apenas cinco peças de caça no bornal. Ah devia reunir se a Stepane Arkadievitch.
Quem primeiro apareceu foi Krak, todo coberto de lodo escuro e mal cheiroso, que saiu correndo de entre as raízes de um álamo, farejando a Laska com um ar triunfante. O dono emergiu em seguida da sombra do álamo, muito corado, coberto de suor, o colarinho desabotoado e sempre a coxear.
- Então, muitos tiros? - perguntou satisfeitíssimo.
- E tu? - replicou Levine; a pergunta era, contudo, supérflua, pois Oblonski trazia a bolsa de caça atulhada.
- Bastantes!
- Catorze peças, ao todo.
- Pântano magnífico! Naturalmente o Veslovski atrapalhou te. Não é bom dois a caçar com o mesmo cão - comentou Stepane Arkadievitch, para atenuar o efeito do seu triunfo.
CAPÍTULO XI
Quando penetraram na isbá do mujique onde Levine costumava sempre deter se, já lá estava Veslovski. Sentado no meio da casa, agarrado a um banco com ambas as mãos, ria, com o seu riso contagioso, enquanto o irmão da dona da isbá, um soldado, lhe puxava pelas botas cobertas de lama, para arrancar lhas dos pés.
- Acabo de chegar. lis ont et é charmants(Nota 61). Imaginem que me deram de comer e de beber. E que pão! Magnífico! Délicieux!(Nota 62) Nunca bebi melhor vodka. E não quiseram que eu pagasse, por nada deste mundo. "Não te ofendas, faz se o que se pode!"
- Mas por que queria pagar? - resmungou o soldado que finalmente arrancara uma das botas, com a sua meia enegrecida de lodo.
- Só queriam obsequiá-lo, não é verdade? Não vendem vodka.
Apesar da imundície da isbá, cheia de pegadas das botas dos caçadores e das patas dos cães, cobertos de lodo escuro, que se lambiam, do cheiro a lama e a pólvora e da falta de garfos e de facas, os três amigos tomaram chá e cearam com aquela satisfação que só há quando se vai à caça. Depois, uma vez lavados, dirigiram se para o palheiro, bem varrido, onde os cocheiros lhes tinham preparado as camas.
Embora já tivesse escurecido, nenhum dos três tinha sono.
Depois de divagarem, contando coisas passadas, histórias de cães e outras proezas de caça, a conversa versou sobre um tema que a todos interessava. Veslovski estava encantado com tudo; com o cheiro de feno que enchia a quadra, com os cães deitados aos pés dos donos, com o carro, a um canto, que ele julgava partido, pois lhe tinham tirado a parte da frente. E como não cessasse de elogiar a hospitalidade aldeã, Oblonski achou por bem contrapor a esses prazeres campestres os factos de uma grande caçada em que tomara parte no ano anterior na província de Tver, em casa de um tal Maltus. Tratava se de um conhecido indivíduo que enriquecera com os caminhos de ferro. E pôs se a descrever os pântanos imensos que ele possuía e como cuidava dos seus dog-carts(Nota 63) e a tenda armada à beira de água para o almoço dos caçadores.
- Não compreendo como essa gente te não repugna - disse Levine, soerguendo se no seu monte de palha. - Bem sei que é muito agradável um almoço regado a Château Lajite, mas será possível que te não desgoste todo esse luxo? Toda essa gente arranja dinheiro como antigamente os nossos arrendatários da vodka e estão se nas tintas para o desprezo público, graças ao dinheiro mal ganho.
- Isso mesmo! - apoiou Vacienka Veslovski. -Tem toda a razão!
É claro que o Oblonski toma parte nessas coisas por pura bonhomie(Nota 64), mas não falta quem diga: "O Oblonski vai..."
- Nada disso - replicou Stepane Arkadievitch, com um sorrisinho que não escapou a Levine. - Se vou a casa dele, sinceramente, é porque estou convencido de que essa maneira de ganhar dinheiro não é menos honrosa do que a de um lavrador ou a de um negociante. Todos fizeram fortuna graças ao seu trabalho e à sua inteligência.
- A que chamas tu trabalho? Chamas trabalho obter uma concessão e revendê-la?
- Naturalmente! A verdade é que se não existissem essas pessoas e outras semelhantes nem sequer teríamos caminhos de ferro.
- Mas esse trabalho não se pode comparar com o de um mujique que lavra a terra ou com o de um sábio que estuda.
- Está bem; mas nem por isso deixa de ser trabalho, pois essa actividade dá frutos: os caminhos de ferro. É claro que na tua opinião os caminhos de ferro são inúteis.
- Essa é outra questão. Estou disposto a reconhecer a sua utilidade. Mas todo o lucro que não esteja em proporção com o trabalho realizado é desonroso.
- Quem é que determina essa proporção?
- Todo o lucro conseguido por processos desonrosos, com astúcia - teimava Levine, notando que não sabia delimitar com rigor a linha que separava o justo do injusto. - Por exemplo, os grandes lucros dos bancos. Essas fortunas feitas rapidamente são sempre escandalosas. Le roi est mort, vive le roi(Nota 65). Já não temos mais terras de lavoura, mas os caminhos de ferro e os bancos aí estão para os substituir.
- Talvez tudo isso seja verdade e além do mais, engenhoso... Krak, quieto! - gritou Stepane Arkadievitch ao cão, que se coçava e revolvia a palha. E prosseguiu, serena e paulatinamente, convencido da verdade do ponto de vista que sustentava: - Mas não definiste os limites entre o trabalho honroso e o trabalho desonroso. É desonroso que eu ganhe mais do que o chefe da minha repartição, embora ele conheça mais a fundo os assuntos?
- Não sei.
- Pois vou dizer to: que tu obtenhas pelo teu trabalho na propriedade cinco mil rublos, por exemplo, e que um camponês proprietário não ganhe mais do que cinqüenta, seja qual for o esforço que faz, é tão pouco honroso como eu ganhar mais do que o chefe da minha repartição e Maltus obter maiores lucros que um ferroviário. Na minha opinião, há uma hostilidade sem fundamento contra essa gente, e tudo por inveja...
- Não; isso é injusto - contraveio Veslovski. - Nisso não pode haver inveja; trata se de qualquer coisa pouco limpa.
- Perdoa - interrompeu Levine. - Dizes que é injusto que eu ganhe cinco mil rublos e o camponês apenas cinqüenta. Está certo. É injusto, confesso, mas...
- É certo, nós comemos, bebemos, vamos à caça e não trabalhamos; em compensação, o camponês passa a vida a trabalhar - observou Veslovski. Naturalmente era a primeira vez na sua vida que pensava em coisas semelhantes, por isso estava sendo sincero.
- Sim, confessas, mas não cederias as mas terras - tornou Oblonski, não sem malícia.
Desde que eram cunhados, uma hostilidade surda se filtrava nas relações dos dois amigos: cada um deles parecia convencido, lá no fundo, de organizar melhor a sua vida que o outro.
- Não o faço porque ninguém me pede que o faça, e, se o quisesse fazer, não teria a quem cedê-las nem poderia cedê-las - replicou Levine.
- Dá as a este camponês; não se negará a aceitá-las.
- E como havia de o fazer? Assinando um contrato de venda ou de doação?
- Não sei, mas, se estás convencido de que cometes uma injustiça...
- Não estou nada convencido. Pelo contrário, desde que constituí família, tenho deveres para com ela e não me acho no direito de me despojar daquilo que é meu.
- Perdão, se estás convencido de que essa desigualdade é uma injustiça, deves proceder de acordo com isso.
- É o que faço, fazendo o possível para a não aumentar.
- Que paradoxo!
- Sim, isso aí... Cheira a sofisma! - observou Veslovski. - Eh, aí está o patrão! - exclamou, ao ver o dono da isbá, que abria a porta, fazendo chiar os gonzos. - Quê? Pois ainda não estás deitado?
- Dormindo, eu? Pensava que os senhores estavam a dormir, mas como os ouvi falar... Venho buscar um garavanço. Os cães não me irão morder? - acrescentou, avançando, prudentemente, de pés descalços.
- Onde vais tu dormir?
- Esta noite dormiremos no campo...
- Que noite! - exclamou Veslovski, ao descobrir, pela frincha da porta entreaberta, a luz esvaída do crepúsculo, um ângulo da casa e o charabã desatrelado... Mas de onde vêm estas vozes de mulher? Não cantam nada mal, não acham?
- São as raparigas aqui do lado.
- Vamos dar uma volta... De qualquer forma, não conseguimos dormir. Anda, Oblonski.
- Se pudéssemos ir e ao mesmo tempo ficar deitados - respondeu este, espreguiçando se. - Está se tão bem deitado!
- Então vou sozinho - exclamou Veslovski, levantando se, decidido, e calçando as botas. - Até logo, senhores! Se me divertir, venho chamá-los. Convidaram me para caçar e eu não vou esquecê-los por minha vez.
- Não é um rapaz simpático? - exclamou Oblonski, quando Vacienka saiu e o camponês fechou a. porta do palheiro.
- É, é muito simpático - confirmou Levine, que continuava z pensar na conversa de há instantes.
Afigurava se lhe ter exprimido as suas ideias e os seus sentimentos o mais claramente que sabia e, no entanto, embora os outros fossem homens inteligentes e sinceros, tinham lhe respondido em uníssono que se contentava com sofismas. Eis o que o desconcertara.
- Pois é assim, meu amigo: Uma de duas: ou concordamos em que a sociedade actual está bem organizada, e temos de defender os nossos direitos, ou então reconhecemos que estamos a gozar privilégios injustos, esse o meu caso, e vá de aproveitá-los com satisfação.
- Não; se sentisses a injustiça que isso pressupõe, não poderias aproveitar te dos seus benefícios. Eu, pelo menos, não o poderia fazer. Para mim, o principal é não me sentir culpado.
- E se fôssemos passear também? - propôs Stepane Arkadievitch, cansado, ao que parecia, daquele esforço mental. - Seja como for, não conseguimos dormir. Anda, vem cá!
Levine não respondeu: pensava. Pelo visto, achavam os seus actos em contradição com o sentimento que ele tinha da justiça. "Será possível", dizia de si para consigo, "que uma pessoa só possa ser justa de uma maneira puramente negativa?"
- Que forte este cheiro a palha fresca! - disse Stepane Arkadievitch, soerguendo se. - Não consigo dormir por nada deste mundo. Quer me parecer que o Vacienka está a fazer das suas. Não o ouves rir? Vem cá, vamos!
- Não! Eu não vou - tornou lhe Levine.
- Porventura, por princípio também? - inquiriu Stepane Arkadievitch, sorrindo, enquanto procurava o gorro na escuridão.
- Não é por princípio, mas que vou eu lá fazer?
- Sempre te digo - observou Oblonski - que estás a arranjar uma situação perigosa. - Entretanto levantara se e encontrara o gorro.
- Por quê?
- Julgas que não me dei conta da posição em que te colocaste perante a tua mulher? Ouvi dizer que entre vocês é um problema de alta importância saíres alguns dias de casa. Isso está certo quando se trata de um idílio, mas não pode durar toda a vida. Um homem deve ser independente; tem os seus interesses próprios. Temos de ser varonis - concluiu Oblonski, abrindo a porta.
- Queres dizer que devo namorar as criadas? - perguntou
Levine.
- Por que não, se nos dá prazer? Ça ne tire fai a consequence(Nota 66). À minha mulher, isso em nada a prejudica. E a mim diverte me. O importante é guardar respeito ao santuário familiar. Que ali nada aconteça! Mas não devemos ficar de mãos atadas.
- Talvez tenhas razão - respondeu Levine, secamente, voltando- se para o outro lado. - Temos de nos levantar cedo. Não acordarei ninguém e sairei logo que amanheça.
- Messieurs, venez vite!(Nota 67) - exclamou Vacienka, de volta ao palheiro. - Charmante! Fui eu quem a descobriu. Charmante(Nota 68), uma autêntica Gretchen(Nota 69). Já estamos amigos. Só lhes digo que é encantadora - perorava ele num tom que dava a entender que aquela encantadora jovem fora criada e posta neste mundo precisamente para ele.
Levine fingiu que dormia, enquanto Oblonski enfiava as botas e acendia um cigarro. Ouviu os dois amigos afastarem se, mas por muito tempo não pode dormir. Depois ouviu os cavalos que comiam a palha, o dono da casa que saía com o filho mais velho a passar a noite no campo, o soldado que se aninhava para dormir com o sobrinho, do outro lado do palheiro, o filho mais novo da irmã, e o pequeno que contava, na sua vozinha fina, a impressão que lhe tinham causado os cães, terríveis? enormes. E como o garoto lhe perguntasse a quem iriam fazer mal aqueles malditos cães, o tio contou lhe que no dia seguinte, pela manhã, os caçadores seguiriam para o pântano, onde disparariam as suas espingardas. Depois, farto das perguntas da criança, disse lhe, ameaçando a: "Dorme. Vaska, dorme; se não, vais ver o que te acontece." E ele próprio não tardou a ressonar também. Entretanto tudo ficou em silêncio, ouvindo se apenas o mastigar dos cavalos e o grasnar de uma galinhola.
"E esta", continuava a repetir Levine com os seus botões, "não poderá uma pessoa realmente ser justa senão de maneira negativa? No fim de contas, nada posso fazer, a culpa não é minha."
E pôs se a pensar no dia seguinte.
"Amanhã, assim que nasça o Sol, levantar-me-ei e procurarei não me excitar. O pântano está cheio de galinholas e de narcejas. E quando voltar, encontrarei uma palavrinha de Kitty... Talvez Stiva tenha razão. Não procedo para com ela como um homem, tornei me muito fraco... Mas que havemos de fazer? Isto também é "negativo"?"
Entressonhos ouviu o riso e o alegre colóquio dos companheiros, de regresso ao palheiro. Abriu os olhos por um momento: a Lua subira no horizonte e junto à porta aberta, vivamente iluminada, os dois conversavam. Oblonski falava da louçania da rapariga, comparando-a a uma avelã recém descascada, e Veslovski, repetindo qualquer coisa que, sem dúvida, lhe dissera o mujique, ria com o seu riso contagioso.
- Arranja te como puderes para ficares com uma para ti.
- Amanhã de madrugada, senhores! - resmungou Levine, e ficou-se a dormir.
CAPÍTULO XII
Levine despertou pela manhã alta e tratou logo de acordar os companheiros. Vacienka, de barriga para baixo, e meias calçadas, dormia tão pesadamente que não foi possível obter dele qualquer resposta. Oblonski resmungou, entressonhos, qualquer coisa como uma recusa. Até mesmo a Laska, que dormia, toda enroscada, na extremidade do monte de palha, se levantou preguiçosa, estendendo muito as patas, antes de se resolver a acompanhar o dono. Uma vez calçado e de espingarda ao ombro, abriu cautelosamente a porta do palheiro e saiu. Os cocheiros dormiam junto dos carros e os cavalos dormitavam também. Só um deles mastigava aveia, espalhando a com o focinho pela selha. O Sol ainda não tinha nascido.
- Para que te levantaste tão cedo? - perguntou lhe a dona da casa, mulher idosa, que saía da isbá e se lhe dirigiu familiarmente como a um velho conhecido.
- Vou à caça, avozinha. Por onde devo ir para alcançar o pântano?
- Por aqui, sempre à direita, por detrás da granja, e depois de atravessares o cânhamo, vês logo o caminho.
Pé ante pé, pois estava descalça, a velha acompanhou o e abriu lhe a porta que dava para a eira.
- Indo por aqui, sempre à direita, vais ter mesmo ao pântano. Os nossos rapazes passaram ali a noite.
Laska corria alegremente pelo caminho além; Levine ia atrás dela, em passo rápido e ligeiro, sempre de olhos postos no céu. Não queria que o Sol nascesse antes de alcançar o pântano. Mas o Sol não tardava. Â Lua, ainda no firmamento quando Levine saíra do palheiro, já não brilhava mais do que uma lâmina de mercúrio; no campo longínquo já se viam claramente as manchas, ainda há pouco indistintas: eram montes de centeio. O rocio, invisível na penumbra matinal que cobria o alto e perfumado cânhamo, encharcava os pés e a camisa de Levine até à cintura. No silêncio diáfano da manhã, ouviam se os ruídos mais tênues. Uma abelha passou voando, num zumbido que lembrava o de uma bala, junto ao ouvido de Levine, que a olhou atentamente, descobrindo mais duas. Todas saíam da estacada do colmeal, voavam por cima do cânhamo e desapareciam em direcção ao pântano. O atalho conduzia directamente ali. Aquele adivinhava se já, graças ao vapor que dele se desprendia, ora denso, ora mais ralo; e os juncais e as hastes de codesso dir-se-iam ilhas flutuantes, de um verde carregado. A beira do pântano e do caminho, homens e garotos, que tinham levado a noite em claro, aproveitavam o amanhecer para dormir um pouco, abafados sob os cafetãs. Perto deles viam se três cavalos peados. Um deles arrastava as peias pelo chão. Laska, ao lado do dono, voltava a cabeça para este, como a pedir lhe licença para se adiantar. Deixando para trás os camponeses que dormiam, Levine, assim que chegou ao primeiro cerro, verificou o descanso da arma e deixou avançar a Laska, Um dos cavalos, um potro castanho escuro, espantou se ao ver a cadela, e, empinando a cauda, pôs se a relinchar. Os outros assustaram se também, e, chapinhando na água com as patas travadas que, ao darem com as ferraduras na terra argilosa pareciam bater palmas, despediram do carriçal aos saltos. A Laska deteve se, olhou trocista para os cavalos, e depois interrogativa para Levine. Este afagou a e assobiando lhe deu lhe a entender que podia continuar.
A cadela corria muito contente, embora com certa preocupação, pelo barranco movediço.
Assim que chegou ao pântano, Laska percebeu logo, entre os cheiros que tão bem conhecia - o cheiro de raízes, de ervas pantanosas, de lodo e de estrume de cavalo -, o cheiro de ave espalhado por todas aquelas paragens, esse cheiro que tanto a excitava. Era muito intenso nalguns sítios, como, por exemplo, no musgo e nas bardanas, mas impossível de precisar em que direcção aumentava e em que sentido esmorecia. Para dar se conta disso tinha de se afastar para o lado de onde soprava o vento. Sem sentir o movimento das patas, Laska pôs se a galopar para a direita de tal sorte que pudesse deter se em qualquer altura, caso se visse obrigada a isso, fugindo da brisa que soprava do oriente. Assim que farejou o vento, aspirou o ar a plenas narinas, e imediatamente retardou o passo, percebendo ter encontrado já não só uma pista, mas a própria caça e em grande abundância. Porém, onde exactamente? Principiava já a rondar o terreno, quando a voz do dono ressoou, chamando a de outro lado. "Laska, aqui!", gritava Levine. A cadela parou, indecisa, como para lhe fazer compreender que era melhor deixá-la obrar a seu gosto; mas Levine voltou a chamá-la, em voz zangada, apontando lhe um cerro onde não podia haver nada. Só para lhe dar satisfação, trepou ao morro e fingiu procurar; não tardou, porém, a voltar ao local que a atraía.
Agora, que Levine a não importunava, a cadela sabia o que devia fazer. Sem olhar para o chão, tropeçava, irritada, nos montículos de terra e metia se à água, mas, dominando por completo as suas pernas elásticas, principiou o giro que lhe revelaria tudo. O cheiro de caça era cada vez mais intenso e mais definido e de súbito Laska compreendeu claramente que uma das aves estava ali, detrás de um montículo, a cinco passos do local onde ela se encontrava, e deteve se, imóvel. As curtas patas não lhe permitiam ver nada, mas sabia, pelo faro, que a ave estava ali apenas a cinco passos. Continuou imóvel, percebendo a cada vez mais nitidamente e tirando partido daquela espera. Tinha a cauda empinada e tensa e apenas a ponta lhe estremecia de quando em quando. De focinho entreaberto, apurava o ouvido. Durante a carreira, uma das orelhas dobrara se lhe. Laska respirava, ofegante, mas com cuidado, com mais cuidado ainda, voltou se, antes com os olhos do que com a cabeça, para olhar o dono. Levine, com a expressão que Laska lhe conhecia habitualmente, mas um olhar terrível, avançava, tropeçando nos montículos, muito devagar, que assim lhe pareceu a ela. Tinha a impressão de que ele ia devagar quando afinal corria.
Ao ver Laska farejar o chão, de boca entreaberta, e as patas traseiras de rojo, Levine compreendeu que estava na pista das narcejas e rogando a Deus sorte, especialmente com o primeiro tiro, aproximou se Já cadela, correndo. Ao chegar junto do animal, olhou em frente, ao nível dos olhos, e viu com a vista o que Laska percebera apenas pelo faro. Entre uns raminhos, a uma sajena de distância, estava uma narceja. De cabeça voltada, escutava. Depois abriu ligeiramente as asas e fechando as de novo agitou o rabo, com um movimento canhestro, escondendo se atrás do montículo.
- Busca! Busca! - gritou Levine, empurrando Laska por trás.
"Mas se eu não posso", pensava a cadela. "Aonde hei de eu ir? Neste sítio sei onde elas estão, mas se avanço mais não compreenderei nada nem saberei onde estão nem quem são." Porém, Levine tocou a para a frente com o joelho e repetiu, altaneiro:
- Busca, Laska, busca!
"Está bem: se é isso que tu queres, mas agora já não respondo por mim", pensou a cadela, e despediu numa carreira por entre os cerros. Agora já não farejava; via e ouvia, embora sem nada entender.
A uns dez passos do local onde se encontrava, levantou se uma narceja, com um grasnido rouco e o seu característico rufiar de asas.
Levine disparou; a ave caiu, dando com o peito branco na terra húmida. Entretanto outra se levantara por si mesma atrás de Levine; quando este se voltou, já ela ia longe, mas o tiro atingiu a; depois de voar uns vinte passos, elevou se no céu e veio cair, redondamente, como uma bola, num lugar seco.
"Parece que isto hoje vai", pensou Levine, metendo na bolsa de caça as duas aves gordas e ainda quentes. "Não é verdade, minha bicha?"
Quando Levine, depois de ter voltado a carregar a espingarda, retomou a sua marcha já o Sol tinha nascido e estava por detrás de umas nuvens; a Lua já não era mais do que um ponto branco no espaço; todas as estrelas tinham desaparecido. Os cerros, que antes refulgiam, cobertos de rocio prateado, agora eram dourados. O lodo que cobria as águas estava cor de âmbar. O azulado da erva convertera se num verde amarelado. As avezinhas do pântano agitavam se no matagal resplandecente de humidade, projectando grandes sombras junto a um riacho. Um abutre acabava de acordar e, pousado num arbusto, movia a cabeça de um lado para o outro, olhando o pântano. As gralhas pairavam por sobre o campo, um rapazinho descalço acossava os cavalos para junto de um velho que acabava de se levantar e se coçava depois de tirar o cafetã de cima de si. O fumo da espingarda alvejava por sobre a erva como um rasto de leite.
Um dos garotos veio a correr ao encontro de Levine.
- Senhor, ontem havia aqui muitos patos - gritou lhe, e seguiu o a distância.
Levine sentia um prazer especial em ter morto aquelas três narcejas, umas atrás das outras, diante do garoto que lhe mostrava o seu entusiasmo.
CAPÍTULO XIII
O provérbio dos caçadores, segundo o qual aquele que mata a primeira peça de caça tem uma caçada feliz, cumpriu se.
As 10 da manhã, depois de percorrer umas vinte verstas, Levine, cansado e cheio de fome, mas feliz, regressou a casa com dezanove pássaros e um pato, este atado ao cinturão, pois já não cabia na bolsa de caça. Os companheiros, de pé havia pouco, sentindo fome, tinham comido.
- Esperem, esperem, sei que são dezanove - disse Levine, contando pela segunda vez as galinholas e as narcejas, que haviam perdido o lindo aspecto de quando iam pelos ares. Agora estavam retorcidas, cobertas de sangue coalhado e seco e os bicos caídos.
A conta estava certa e a inveja que se leu no rosto de Stepane Arkadievitch soube bem a Levine. Também lhe agradou, ao voltar a casa, encontrar se com o emissário de Kitty, que lhe trazia uma carta.
Estou bem e contente; se estavas preocupado comigo, tranqüiliza te, pois fica sabendo que tenho outro anjo da guarda, Maria Vlacievna (era a parteira, nova e importante personagem na vida familiar de Levine). Achou me de perfeita saúde e ficará connosco até ao teu regresso. Todos estão contentes e encontram se bem. Peço te que não tenhas pressa em voltar; se a caça está a correr bem, fica mais um dia.
Tão grandes foram estas duas alegrias, a caça feliz e a carta de Kitty, que os dois pequenos contratempos que depois sobrevieram quase passaram despercebidos. Um deles foi o cavalo alazão, que, sem dúvida por puxar de mais na véspera não queria comer e estava muito triste.
O cocheiro dizia que tinha rebentado.
- Estafaram no de mais ontem, Constantino Dimitrievitch. Fizeram-no correr dez verstas sem parar - sentenciou ele.
O outro contratempo, que de princípio alterou a boa disposição de Levine, e depois o fez rir muito, foi o seguinte: De todas as provisões arranjadas à larga pela mulher, e que pareciam chegar para mais de uma semana, nada restava. Ao voltar para casa, cansado e cheio de fome, Levine tinha tão presentes as empadas que, ao aproximar se da porta, julgou sentir, mesmo, o cheiro e até o sabor delas, tal qual como acontecia a Laska com as aves. E imediatamente deu ordens a Filipe para lhe servir as empadas. Mas das empadas e dos frangos, nada. Acabara se tudo.
- Caramba, que apetite! - comentou Stepane Arkadievitch, rindo-se e apontando para Vacienka Veslovski. - A mim, o apetite não me falta, mas este amigo é colossal...
- Que havemos de fazer! - disse Levine, olhando carrancudo para Veslovski. - Filipe, traz me carne, então...
- Comeram na e deitaram os ossos aos cães - respondeu Filipe. Levine sentiu se tão desapontado, que disse com irritação:
- Podiam ter deixado qualquer coisa. - Parecia estar prestes a chorar. - Bom, então prepara uma dessas aves - continuou, em voz trêmula, procurando não olhar para Vacienka. - E deita lhe urtigas. Por enquanto, dá me leite.
Depois de beber o leite, Levine sentiu se envergonhado por se ter mostrado de má catadura com um estranho, e riu se da sua própria irritação, filha da muita fome que tinha.
Pela tarde, foram de novo caçar. Veslovski matou umas tantas peças e ao anoitecer regressaram a casa.
O regresso foi tão divertido como a ida. Veslovski ora cantava ora lembrava, regalado, a sua visita aos camponeses, que lhe haviam oferecido vodka e lhe tinham dito: "Não te ofendas." Lembrou também as suas andanças com as raparigas e o camponês, que lhe perguntara se era casado, e ao dizer lhe que não, lhe respondera: "Pois não olhes para as mulheres dos outros. O que tens a fazer é arranjar uma para ti." Velosvski apreciava muito estas palavras.
- De maneira geral, estou contentíssimo com o nosso passeio. E você, Levine?
- Eu também - respondeu este, sinceramente, satisfeito por já não sentir por ele a animosidade que experimentara em casa.
CAPÍTULO XIV
No dia seguinte, às 10 da manhã, depois de percorrer toda a propriedade, Levine batia à porta de Veslovski.
- Entrez!(Nota 70) - gritou Veslovski. - Desculpe, mas acabo de fazer as minhas ablutions(Nota 71) - disse ele, risonho, de pé, em trajos menores.
- Não se preocupe, faz favor - replicou Levine, sentando se junto à janela. - Dormiu bem?
- Como um prego. Está hoje um bom dia para a caça?
- Que é que costuma tomar, chá ou café?
- Nem uma coisa nem outra. Costumo almoçar à inglesa... Tenho vergonha do meu apetite... As senhoras, naturalmente, já estão levantadas? E se nós déssemos uma voltinha? Gostava de ver os seus cavalos.
Depois de um passeio pelo jardim, de um relance às cavalariças, e de alguns exercícios nas barras paralelas, os dois novos amigos deram entrada na sala de jantar.
- Tivemos uma caçada muito divertida e um nunca acabar de impressões - disse Veslovski, aproximando se de Kitty, que estava perto do samovar. - Que pena as senhoras não poderem partilhar destas coisas!
"É natural; alguma coisa tinha de dizer à dona da casa", pensou Levine com os seus botões, para se tranqüilizar a si mesmo, agastado já com o sorriso e os ares conquistadores do rapaz. Na outra cabeceira da mesa, a princesa demonstrava a Maria Vlacievna e a Stepane Arkadievitch a necessidade que havia de instalar a filha em Moscovo na altura do parto, chamando o. genro para lhe dar parte dessa grave questão. Nada desgostava mais Levine do que esta banal expectativa de um acontecimento tão sublime como era o nascimento de um filho - pois, evidentemente, que teria um "filho". Não podia admitir que aquela incrível ventura, para ele rodeada de tanto mistério, fosse discutida como uma banalidade por aquelas mulheres que contavam pelos dedos a grande data. As suas sempiternas conversas sobre a maneira de enfaixar os recém nascidos irritavam no: todas essas roupas, todas essas fraldas, particularmente caras a Dolly e confeccionadas com ares misteriosos, o horripilavam. E procurava não ver nem ouvir o que elas diziam, como outrora na altura dos preparativos da boda.
Incapaz de compreender os sentimentos que determinavam o genro, a princesa interpretava como leviandade a sua aparente indiferença; eis por que o não deixava em paz. Acabava de encarregar Stepane Arkadievitch de lhes arranjar casa e queria saber a opinião de Levine sobre isso.
- Faça o que quiser, princesa, não percebo nada disso - replicou ele.
- Mas é preciso assentar na data da vossa ida para Moscovo.
- Não sei. Só sei que milhões de crianças nascem longe de Moscovo e sem assistência de qualquer médico.
- Nesse caso...
- Kitty fará o que entender.
- Kitty não deve falar destas coisas. Quer porventura que ela se assuste? Ainda esta Primavera morreu a Natália Golitzina, por falta de assistência de um bom parteiro.
- Farei o que a senhora quiser - repetiu Levine, lúgubre, e deixou de a ouvir; estava atento a outra coisa.
"Isto não pode continuar assim", pensou ele, relanceando olhos furtivos a Vacienka, todo inclinado para Kitty, e para esta, muito perturbada e toda escarlate. A atitude e o sorriso do jovem pareceram lhe inconvenientes e, tal como dois dias antes, de novo se abismou, repentinamente, das culminâncias do êxtase no abismo do desespero. O mundo outra vez se lhe tornou insuportável.
- Faça o que quiser, princesa - repetiu ele uma vez mais, sempre de olhos postos nos dois.
- Nem tudo é cor de rosa na vida conjugal - disse lhe, trocista, Stepane Arkadievitch, a quem não escapava a verdadeira causa do mau humor de Levine. - Que tarde que te levantaste, Dolly.
- Macha dormiu mal e toda a manhã me apoquentou com os seus caprichos.
Todos se puseram de pé para cumprimentarem Daria Alexandrovna, que entrara. Vacienka levantou se apenas alguns instantes e, com essa falta de cortesia tão própria dos rapazes modernos, prosseguiu, entre risos, a conversa entabulada com Kitty, assim que cumprimentou Dolly. Falavam de Ana e do amor alheio às conveniências. Este assunto e o tom de Veslovski desagradavam tanto mais a Kitty quanto era certo ela saber perfeitamente o mau efeito que causaria ao marido. No entanto, era demasiado ingênua e assaz inexperiente para saber rematar a conversa e dissimular o embaraço, não de todo desagradável, que lhe vinha das atenções que lhe tributava o primo. Aliás, sabia muito bem que Kóstia interpretaria mal todos os seus gestos, todas as suas palavras. E, com efeito, quando perguntou à irmã pormenores sobre a maneira como se portara Macha, esta pergunta afigurou se lhe, a Levine, uma odiosa hipocrisia. Vacienka, por seu lado, ficou se a olhar para Dolly, alheio, como se esperasse com impaciência que a intempestiva conversa findasse.
- Vamos hoje apanhar cogumelos? - perguntou Dolly.
- Vamos, e eu vou com vocês - replicou Kitty. Por delicadeza, podia ter perguntado a Veslovski se as acompanharia, mas não teve coragem.
- Onde vais, Kóstia? - inquiriu ela, ao ver que o marido saía da sala, em passo decidido.
O tom culpado em que pronunciou estas palavras veio confirmar as suspeitas de Levine.
- Chegou um mecânico alemão na minha ausência; preciso de falar com ele - respondeu, sem olhar para a mulher.
Mal dera entrada no escritório, logo ouviu os passinhos familiares de Kitty, que descia as escadas com uma vivacidade imprudente.
- Que queres tu? Estamos ocupados -gritou lhe ele, secamente.
- Queira desculpar - disse ela, dirigindo se ao alemão. - Preciso de dizer uma palavrinha a meu marido.
O mecânico quis sair, mas Levine deteve o.
- Não se incomode.
- Não queria perder o comboio das 3 horas - observou ele. Sem lhe responder, Levine saiu para o corredor com a mulher.
- Que queres tu? - perguntou lhe em francês, sem querer atentar no rosto de Kitty, perturbado pela emoção.
- Eu, eu queria dizer te que esta vida é um suplício - murmurou ela.
- Está gente no escritório, não faças cenas - tornou lhe ele, colérico.
- Então, vem cá.
Kitty quis arrastá-lo para uma sala vizinha, mas, como Tânia ali dava lição de inglês, levou o para o jardim.
No jardim deram de cara com o jardineiro, que varria as áleas. E sem pensarem no efeito que teria naquele homem a expressão transtornada que se lhes lia no rosto, seguiram em frente, pressurosos, como alguém que precisa de se libertar, de uma vez para sempre, e graças a uma explicação franca, de um peso qualquer.
- Não se pode viver assim! Isto é um martírio! Sofro eu e sofres tu. E porquê - disse Kitty, quando, por fim, chegaram perto de um banco isolado, na alameda das tílias.
- Tens de concordar que há na atitude dele qualquer coisa de inconveniente, de impuro, de humilhante, de horrível! - exclamou Levine, de punhos crispados contra o peito, como na outra noite.
- Sim - respondeu ela, em voz trêmula -, mas acaso não vês que não tenho culpa? Teria gostado de pô lo imediatamente no seu lugar, mas com esta espécie de pessoas... Meus Deus, porque teria ele aparecido aqui? Éramos tão felizes?
Soluços vieram sufocar lhe as últimas palavras, sacudindo a dos pés à cabeça.
Quando, pouco depois, o jardineiro voltou a vê-los passar, de rosto sereno e alegre, ficou sem perceber porque tinham eles saído de casa e que de bom lhes acontecera naquele banco solitário.
CAPÍTULO XV
Depois de acompanhar Kitty ao andar superior, Levine dirigiu se aos aposentos de Dolly e foi encontrá-la muito excitada, cirandando pela casa, e ralhando com a pequenina Macha, que, de pé, a um canto, chorava a bom chorar.
- Vais ficar aí todo o resto do dia, comerás sozinha e não brincarás com as bonecas nem te farei nenhum vestido novo - ralhava ela, sem saber já que castigo dar lhe. - É uma menina muito má - explicou a Levine. - A quem sairás tu com essas más inclinações?
- Que fez ela? - perguntou Levine, num tom em que havia mais indiferença do que outra coisa. Como queria consultar Dolly, sentiu se contrariado por chegar em momento tão inoportuno.
- Foi com o Gricha apanhar framboesas e... Não, até me sinto corar só de o repetir... Que pena eu tenho de Miss Elliot. Não sabe vigiar as crianças, é uma máquina... Figurez vous que la petite...'(Nota 72)
E Daria Alexandrovna pôs se a contar lhe as maldades de Macha.
- Não acho isso coisa muito grave, é uma simples travessura - volveu lhe Levine, para a tranqüilizar.
- E tu, que tens tu? Estás com cara de caso... Que querias tu dizer-me? Que se passa lá em baixo?
Pelo tom das perguntas, Levine compreendeu que seria fácil abrir se com Dolly e dizer lhe o que decidira.
- Não venho de lá. Estive no jardim com a Kitty. É a segunda vez que nos zangamos desde que... apareceu o Stiva.
Dolly olhou para ele com os seus olhos inteligentes e compreensivos.
- Diz me, com a mão na consciência, se havia... não em Kitty, mas naquele cavalheiro, um tom desagradável, não precisamente desagradável, mas intolerável para um marido.
- Não sei que hei de responder te... Deixa te estar, deixa te estar aí a esse canto! - exclamou, dirigindo se a Macha, que se voltara, ao entrever no rosto da mãe um sorriso quase imperceptível. - De acordo com a opinião da sociedade, comporta se como qualquer outro jovem. Il fait court à une Jeune et jolie femme(Nota 73) e um marido mundano deve sentir se lisonjeado com isso.
- Sim, sim - articulou Levine em tom lúgubre -, mas tu deste por isso.
- Não só eu, mas o Stiva também. No fim do chá, disse me: Je crois que Veslovski fait un petit brín de court à Kitty(Nota 74).
- Então, posso estar tranqüilo: vou correr com ele - disse Levine.
- Endoideceste! - exclamou Dolly, assustada. - Podes ir ter com a Fanny - disse ela para Macha. - Kóstia, calma! Se queres, eu falo ao Stiva. Ele levá-lo-á. Pode dizer se lhe que estás à espero de outros hóspedes... Um convidado destes não nos serve.
- Não, não, deixa me tratar disso.
- Mas tu não vais zangar te com ele, pois não?
- Não, não, vou divertir me imenso - tornou lhe Levine, de súbito sereno e com os olhos cintilantes. - Bom, Dolly, perdoa lhe, ela não repetirá - acrescentou, referindo-se à pequena castigada, que não fora ao encontro de Fanny e continuava, diante da mãe, aguardando que ela olhasse para si.
Assim que Dolly a fitou, a garota rompeu a chorar, escondendo o rosto no regaço da mãe, enquanto esta lhe pousava na cabeça a mão fina e suave.
"Que haverá de comum entre ele e nós?", pensava Levine, enquanto se dirigia ao encontro de Veslovski.
Ao passar pelo vestíbulo, deu ordens para atrelarem o carro, que tinha de ir à estação.
- Partiu ontem uma mola - respondeu o criado.
- Então que atrelem a tartana, mas depressa. Onde está o convidado?
- No quarto.
Vadenka desfizera a mala, e arrumava as suas coisas; na sua frente tinha as novas romanzas e com o pé assente no tampo de uma cadeira, provava umas botas de montar quando Levine entrou. Ou porque no rosto de Levine houvesse, de facto, uma expressão especial ou talvez porque Veslovski já tivesse percebido que o seu petit brin de court(Nota 75) não quadrava muito bem naquela família, o certo é que, para um jovem mundano, mostrava se muito pouco à vontade diante do seu anfitrião.
- Monta a cavalo de botas altas?
- Monto, é muito mais limpo - replicou Veslovski com um sorriso bonacheirão, continuando a apertar a bota com o pé no tampo da cadeira.
No fundo, era um pobre diabo, e Levine sentiu se como que envergonhado ao ver lhe nos olhos um matiz de embaraço. Não sabendo muito bem por onde principiar, pegou no pedaço de uma bengala que partira nessa manhã à hora da ginástica, ao tentar levantar uns pesos, pondo se a arrancar lascas à ponta quebrada.
- Eu queria... - disse e calou se; ao lembrar se porém de Kitty e de tudo o que sucedera, olhou o resoluto nos olhos e acrescentou: - Mandei atrelar para si.
- Que quer dizer? - perguntou Vacienka, assombrado. - Para onde devo ir?
- Para a estação - respondeu Levine, em tom lúgubre, enquanto continuava a arrancar lascas da ponta da bengala partida.
- Vai partir? Aconteceu alguma coisa?
- Estou à espera de uns hóspedes - tornou lhe Levine, que, cada vez mais rápido, arrancava lascas de madeira à ponta da bengala, com os grossos dedos. - Não; não espero ninguém, nem aconteceu nada, mas peco lhe que se vá embora daqui. Pode explicar como quiser a minha falta de cortesia.
Vacienka ergueu se, digno: compreendera, finalmente.
- Peco lhe que se explique...
- Nada tenho que lhe explicar, e seria melhor que me não fizesse perguntas - retorquiu lhe Levine, paulatinamente, procurando dominar o tremor convulsivo das maçãs do rosto.
E como acabara de arrancar as lascas da ponta da bengala, pegou nesta pela parte mais grossa, partiu a em duas, e apanhou, no ar, o pedaço que ia cair.
Os olhos brilhantes de Levine, de voz cava, maçãs do rosto trêmulas e sobretudo de músculos tensos, músculos cujo vigor Veslovski tivera ocasião de apreciar nessa mesma manhã, quando fazia ginástica, convenceram no mais depressa do que qualquer argumento. Encolheu os ombros, sorriu desdenhosamente, inclinou se e disse:
- Poderia falar com o Oblonski?
Levine não se irritou nem com o encolher de ombros nem com o sorriso desdenhoso de Veslovski. "Que havia ele de fazer?", pensou. E em voz alta:
- Eu vou lho mandar.
- Mas isto não tem pés nem cabeça, c' est du dernier ridicule(Nota 76) - exclamou Stepane Arkadievitch, indo ao encontro de Levine, no jardim, depois de saber por Veslovski que ele punha o amigo na rua. - Que mosca te picou? Não me digas, tudo isto porque um rapaz...
A verdade, porém, é que o sítio em que a mosca picara ainda doía a Levine, que empalideceu de novo quando Stepane Arkadievitch tentou explicar lhe o comportamento do amigo, não o deixando prosseguir.
- Não te dês ao trabalho de lhe explicar a conduta. Eu não podia fazer outra coisa. Tenho muita pena, tanto por ti como por ele, mas ele consolar se á facilmente, enquanto que para mim e para minha mulher se tornou insuportável a sua presença.
- Mas isto é ofensivo para Vacienka. Et puis c'est ridicule(Nota 77).
- E para mim também, e o pior é que sofro, sofro sem ter concorrido em nada para isso.
- Nunca te julguei capaz de uma coisa destas. On peut êtrejaloux mais à ce point c'est du dernier ridicule(Nota 78)
Levine voltou lhe as costas e continuou a caminhar de um lado para o outro, um pouco mais além na álea do jardim, enquanto esperava a partida do hóspede. Momentos depois ouviu o rolar da tartana e através das árvores entreviu Veslovski, com a sua boina, que baloiçava a cada solavanco, sentado em cima da palha, pois o carro nem sequer tinha bancos.
"Que teremos nós mais?", disse Levine de si para consigo, quando viu um criado sair de casa correndo e mandar parar a tartana: queria um lugar para o mecânico, que ficara esquecido, e que foi empoleirar se ao lado de Veslovski, a quem cumprimentou e com quem trocou algumas palavras. Daí a pouco ambos tinham desaparecido.
Stepane Arkadievitch e a princesa indignaram se com o comportamento de Levine; ele próprio se sentia culpado e ridículo, mas, ao pensar no que Kitty e ele tinham sofrido, teve de reconhecer que, em caso de necessidade, voltaria a fazer o mesmo.
De qualquer modo, naquela tarde, todos, excepto a princesa, que não perdoava ao genro o seu comportamento, se mostraram extraordinariamente animados e alegres, como crianças, depois de levantado um castigo, ou como adultos, no fim de uma solene recepção oficial. Nessa noite, na ausência da princesa, falou se da expulsão de Vacienka como de uma coisa ocorrida havia muito tempo já. E Dolly, que herdara do pai o dom de contar com graça, fazia rir Varienka a bandeiras despregadas, contando, pela terceira ou quarta vez, sempre com novas notas humorísticas, como decidira encher se de fitas e laços para brilhar diante do hóspede e ia já a entrar no salão quando ouviu o rodar da tartana. E quem ia nela? O próprio Vacienka, com a sua boina escocesa, as suas polainas e as suas romanzas, empoleirado em cima de um monte de palha.
- Ao menos, podiam ter atrelado a caleche. Ao ouvir gritar: "Esperem, esperem!", pensei comigo: "Acabaram por ter pena dele!" Mas não. Era o alemão gordo que subia para a tartana, e lá foram os dois juntos... Adeus, meus lacinhos!
CAPÍTULO XVI
Daria Alexandrovna levou por diante o seu propósito e foi visitar Ana. Era lhe muito doloroso magoar Kitty e desgostar Levine: embora compreendesse que não quisessem relacionar se com Vronski, achara de seu dever visitar Ana e demonstrar lhe que os sentimentos que tinha por ela não variavam com a sua mudança de situação. Para não depender dos
Levines nessa viagem, Daria Alexandrovna alugou cavalos na aldeia; Levine, porém, ao saber disso, exprobou-a.
- Por que supões que me desagrada a tua ida a casa de Vronski? Mesmo que assim fosse, ainda me seria mais desagradável ver te utilizar outros cavalos, que não os meus. Aliás, comprometem se a levar te, mas não poderão cumprir a sua promessa. Tenho cavalos. Se não queres que eu me zangue, aceita os.
Daria Alexandrovna acabou por aceitar, e no dia aprazado Levine mandou lhe preparar quatro cavalos e outros tantos de muda, escolhidos de preferência entre os de trabalho, capazes de fazerem a longa viagem num só dia.
Não foi fácil, aliás, pois havia necessidade de cavalos para a viagem da princesa e da parteira. Tudo isto embaraçava Levine, mas, além de cumprir um dever de hospitalidade, evitava à cunhada, que ele sabia não viver em grande desafogo, a despesa de vinte rublos, excessiva para ela.
A conselho de Levine, Daria Alexandrovna partiu ao nascer do Sol. O caminho era bom, a carruagem cômoda, os cavalos corriam céleres. Na boleia, além do cocheiro, sentava se o administrador, que Levine entendera dever mandar, em substituição do trintanário, para maior segurança. Daria Alexandrovna dormitou, acordando apenas na altura em que chegavam à posta onde deviam proceder à muda dos cavalos.
Depois de tomar chá em casa do rico camponês onde se detivera Levine a quando da visita às propriedades de Sviajski, e de haver tagarelado com as mulheres a respeito das crianças e com o velho acerca do conde Vronski, que ele muito elogiou, Daria Alexandrovna prosseguiu viagem às 10 da manhã. Em casa, preocupada com os filhos, nunca tinha tempo para pensar. Agora, pelo contrário, ao longo desse trajecto de quatro horas, acudiam lhe ao espírito coisas até aí amarfanhadas e meditava sobre a sua própria vida, que encarava sob os mais diferentes aspectos, como nunca o fizera antes. Até para ela eram extraordinários esses pensamentos. De princípio, lembrou se das crianças, de quem a princesa e sobretudo Kitty (confiava mais nesta última) lhe tinham prometido cuidar. De qualquer modo, não deixava de estar preocupada com elas. "Oxalá a Macha não faça das suas, que o Gricha não vá apanhar algum coice dos cavalos e que a Lili não arranje uma indigestão!", pensava ela. Estas pequenas preocupações de momento breve cederam o passo a outras mais importantes: logo que voltasse para Moscovo, precisava de mudar de casa, de mandar reparar os móveis do salão, de encomendar um agasalho de peles para a filha mais velha. Em seguida surgiu um problema ainda mais grave, se bem que de resolução a mais largo prazo: poderia ela continuar a educar os filhos convenientemente num futuro distante? "As pequenas pouca preocupação me dão, mas os rapazes? Não posso contar com o Stiva. Se me pude ocupar do Gricha este Verão, foi a título extraordinário, tive saúde para isso. Mas, se fico novamente grávida?" E pensou na injusta maldição que pesa sobre a mulher: dar à luz na dor. "Dar à luz é o menos, o pior é a gravidez", pensou, lembrando se do que sofrera da última vez e da perda da criança.
E recordou a conversa com a mulher da estalagem. Ao perguntar lhe Dolly se ela tinha filhos, a bela rapariga respondera lhe alegremente:
- Tive uma filha, mas Deus levou ma: enterrei a pela Quaresma.
- Tiveste muita pena? - perguntou lhe Daria Alexandrovna.
- Ter pena, porquê? O velho tem muitos netos, não fazem falta, e é uma preocupação a menos. Que quer a senhora que uma pessoa faça quando tem um filho nos braços?
Esta resposta parecia lhe odiosa; no entanto, não havia maldade alguma no rosto daquela mulher e Dolly verificava agora certa razão naquelas palavras.
"Em resumo", pensava ela, ao relembrar os seus quinze anos de vida matrimonial, "passei a minha mocidade aos vômitos, sentindo me estúpida, desgostosa com tudo e com um aspecto horrível. Se até a nossa linda Kitty está feia, como não haveria eu de o ficar de cada vez que estou grávida?... E depois o parto, o medonho parto, a dilaceração do último instante, o que uma pessoa sofre enquanto amamenta, as noites sem dormir, que sofrimento, que sofrimento atroz!..."
E Dolly estremeceu ao lembrar se dos seios gretados, mal que a atormentava de cada vez que criava os filhos ao peito.
"E depois as doenças das crianças, o contínuo receio em que se vive, as preocupações com a sua educação, os seus maus instintos (lembrou se de Macha quando apanhara as framboesas), os estudos, o latim e as dificuldades... Tudo tão difícil, tão incompreensível!... E pior que tudo, a morte das crianças."
E de novo lhe veio à memória a lembrança que sempre lhe alanceava o coração de mãe: a morte do seu último filho, que a difteria levara, o enterro, a indiferença de toda a gente diante desse pequenino caixão cor de rosa e a sua dor solitária, o seu coração despedaçado, tendo sempre diante dos olhos aquele cabelinho encaracolado e aquela boquinha aberta e surpresa, na altura em que lhe colocavam em cima a tampa rósea do ataúde com uma cruz dourada! "E tudo isto para quê? Que resultará de tudo isto? Passarei toda a minha vida sem um momento de sossego: ora grávida, ora amamentando, sempre extenuada e mal disposta, atormentando me, atormentando os outros e causando repugnância ao meu marido. Para deixar uma família infeliz, pobre e mal educada! Que teria eu feito este Verão se o Kóstia e a Kitty me não tivessem convidado a passar a temporada em casa deles? No entanto, a verdade é esta, por mais afectuosos e delicados que eles sejam, não poderão fazer o mesmo muitas vezes. Chegará o momento em que também terão os seus filhos. Não se sentirão eles nessa altura já um pouco enfadados connosco? O pai quase ficou sem nada por nossa causa, também não me poderá ajudar. Como hei de eu chegar a fazer dos meus filhos homens? Terei de procurar protecções, terei de me humilhar... Se a morte mós não levar, a melhor coisa que poderei desejar para eles é que não venham a ser uns inúteis. E para chegar até aí, que sofrimentos! Toda a minha vida perdida!"
"Realmente, havia muita verdade no ingênuo cinismo das palavras da jovem camponesa", pensou.
- Ainda estamos longe, Mikail? - perguntou ela ao administrador, para afugentar aqueles penosos pensamentos.
- Parece que ainda temos umas sete verstas para andar depois da aldeia que se vê lá adiante.
O carro transpôs uma pontezinha, onde um grupo de ceifeiros, com trouxas às costas, se detiveram para o ver passar, tagarelando entre si numa buliçosa alegria. E Dolly pôde ver como todos aqueles rostos vendiam saúde e alegria. "Todos vivem, todos gozam a vida", continuou ela a pensar, baloiçada pelas molas macias, depois de o carro subir uma pequena rampa e os cavalos meterem de novo a trote. "Em compensação, no que me diz respeito, é como se saísse do cárcere, como se saísse de um mundo que me mata com as suas preocupações e só agora me desse conta, por momentos, do que se passa cá fora. Todos vivem; estas mulheres, a minha irmã Natalie, Varienka e Ana, aquela a quem vou visitar, todos, menos eu. E todos criticam Ana, porquê? Sou porventura melhor do que ela? Ao menos tenho um marido a quem amo, não como gostaria, mas, mesmo assim, amo o, enquanto Ana não gostava do dela. Que culpa se lhe pode assacar? Quer viver. Deus insuflou nos essa chama na alma. É muito possível que eu tivesse feito a mesma coisa. Ainda não sei se fiz bem em obedecer lhe naquele horrível momento em que me foi visitar em Moscovo. Devia ter abandonado então meu marido para principiar vida nova. Teria podido amar e ser amada deveras. Acaso isto é melhor? Eu não o respeito, apenas preciso dele", pensou, referindo se ao marido. "E tolero o. Acaso será melhor? Então ainda podia ter agradado, ainda me restava alguma beleza...", continuou a pensar, e veio lhe um grande desejo de se mirar ao espelho. Levava um na maleta de viagem e quis tirá-lo para fora, mas, ao levantar os olhos para as costas do cocheiro e do administrador, que baloiçavam na boleia, receou que algum deles se voltasse. Envergonhada, desistiu.
Embora se não tivesse mirado ao espelho, pensou que ainda não era tarde. Lembrou se de Sérgio Ivanovitch, particularmente atencioso para com ela, e do amigo de Stiva, o bom Turovsine, que a ajudara a tratar das filhas durante a escarlatina e estava enamorado dela. E também havia outro rapaz, muito novo ainda, que, segundo lhe dissera o próprio marido, gracejando, achava Dolly a mais bonita das três irmãs. E vieram- lhe à imaginação os amores mais estranhos e apaixonados. "Ana procedeu muito bem e não serei eu quem a censure. É feliz, faz a felicidade de um homem e não deve sentir se abatida como eu. Naturalmente está como sempre: louçã, inteligente e cheia de interesse por tudo." E aqui, um sorriso garoto lhe perpassou pelos lábios, sobretudo porque, ao visionar o idílio de Ana, se lhe representava, paralelo a ele, um idílio semelhante com vim homem enamorado dela, idílio que ia inventando, peça por peça. Tal como Ana, também confessaria tudo ao marido. E sorria ao pensar na surpresa e no embaraço de Stepane Arkadievitch ao receber a notícia.
No meio destas fantasias, chegaram ao cruzamento do caminho que conduzia a Vozdvijenskoe.
CAPÍTULO XVII
O cocheiro deteve os cavalos e relanceou a vista à direita, para um campo de centeio, no qual estavam sentados uns mujiques junto a uma carroça desatrelada. O administrador quis apear se; mas, mudando de resolução, chamou um dos camponeses com entorno autoritário e grandes acenos. A aragem que o trote dos cavalos provocava desapareceu, repentinamente, e os moscardos assaltaram os cavalos, cobertos de suor, que se defendiam raivosamente. O som metálico de uma foice que estavam martelando, cessou, de súbito. Um dos homens levantou se e dirigiu se para a carruagem, avançando lentamente, de pés descalços, pelo caminho áspero.
- Então, mexe-te! - gritou-lhe o administrador, irritado. - Vê se te despachas de uma vez!
O homem estugou o passo; era um velho; uma tira de casca de árvore cingia lhe os cabelos crespos e uma blusa, que o suor enegrecia, colava se lhe às costas abauladas. Quando chegou perto da carruagem, encostou se, apoiando se ao guarda lamas com a mão.
- Vozdvijenskoe? A casa dos senhores? Do senhor conde? Depois de teres subido a ladeira, meu rapaz, mete à esquerda, e terás logo na tua frente a avenida. Por quem perguntas? Pelo senhor conde?
- Estão em casa, avôzinho?... - perguntou Daria Alexandrovna, que, sem saber lá muito bem como perguntar por Ana a um camponês, preferiu falar assim de modo indefinido.
- Acho que sim - replicou o mujique, que assentava no chão ora um pé ora o outro, deixando claramente marcada na poeira a planta dos pés com os seus cinco dedos. - Acho que sim - repetiu, desejoso, sem dúvida, de iniciar conversa. - Ontem chegaram convidados. Muitos convidados... Que é? - gritou, voltando se para um rapaz, junto ao carro, que por sua vez lhe dizia qualquer coisa. - Ah, sim! Há bocadinho passaram por aqui montados, vinham do campo. Agora devem estar em casa. E os senhores de onde são?
- Vimos de muito longe - respondeu o cocheiro. - Então, achas que fica perto?
- Estou a dizer que é aqui mesmo. Quando subires a ladeira... - tornou o mujique, passando a mão pelo guarda lamas.
Um rapazola, desempenado e de boa constituição, aproximou se deles também.
- Haverá trabalho para a colheita? - perguntou.
- Não sei, amigo.
- Já sabes: segue pela esquerda e chegar ás directamente - explicou o camponês, afastando se, contrariado, dos viajantes, pois se via bem que estava morto por tagarelar.
O cocheiro tocou os cavalos, mas, mal tinham entrado na curva, ouviram gritar:
- Pára! Eh, amigo! Espera! O cocheiro refreou os cavalos.
- Ali vem o senhor! Ali vem ele! - tornou a gritar o mujique. - Olha como correm! - exclamou, indicando quatro cavaleiros e um charabã com duas pessoas.
Eram Vronski, Ana, Veslovski e um jockey a cavalo; a princesa Bárbara e Sviajski seguiam nos de carro. Voltavam do campo, onde andavam em experiência novas máquinas de ceifar. Ao verem que o carro parava, os cavaleiros puseram se a passo. Ana ia adiante, ao lado de Veslovski. Montava com elegância um cavalo inglês, pequeno, de cauda curta e de crina tosqueada. A bela cabeça de Ana, com os cabelos negros soltos debaixo do chapéu alto; os seus ombros cheios, a sua fina cintura, na amazona preta, e a sua atitude serena e graciosa assombraram Dolly.
A princípio sentiu se um pouco escandalizada por vê-la a cavalo. Associou a isso uma garridice que lhe não parecia bem na situação de Ana. Mas, ao observá-la de perto, imediatamente se rendeu. Apesar da sua elegância, tudo resultava tão simples, tão sereno e tão digno, quer na atitude, quer nos movimentos, que ninguém poderia ser mais natural.
Ao lado de Ana, montado num fogoso cavalo militar, ia Vacienka Veslovski, com a sua boina escocesa, de fitas ao vento, estendendo para a frente as grossas pernas e ao que parecia muito contente consigo mesmo. Daria Alexandrovna, ao vê-lo, não pode reprimir um sorriso de alegria. Atrás dele ia Vronski. Montava um cavalo baio, puro sangue, que parecia excitado pela galopada. Vronski puxava lhe as rédeas, para o obrigar a parar. Na retaguarda de Vronski, vinha um homenzinho vestido de jockey. Sviajski e a princesa, num charabã novo, tirado por um grande cavalo preto, procuravam apanhar os cavaleiros.
O rosto de Ana iluminou se de um sorriso jovial quando reconheceu a figura de Dolly encolhida a um canto do carro. Soltou um grito, estremeceu em cima do selim e, esporeando o cavalo, lançou se a galope.
Ao chegar perto da carruagem, apeou se sem o auxílio de ninguém, e, apanhando as saias de amazona, correu ao encontro de Dolly.
- Pensei que eras tu, mas não queria crer. Que alegria! Não podes calcular a grande alegria que me dás! - dizia, ora aproximando o rosto do de Dolly e beijando-o, ora afastando se para o examinar. - Que alegria, Alexei! - acrescentou, voltando se para Vronski, que se apeara do cavalo e se aproximava delas.
Vronski, tirando o chapéu alto cinzento, cumprimentou Dolly.
- Não pode imaginar o prazer que a sua visita nos dá - disse, imprimindo um significado especial às palavras e com um sorriso que lhe deixava à mostra os fortes dentes brancos,
Vacienka Veslovski, sem se apear do cavalo, descobriu se e cumprimentou a recém chegada, agitando jovialmente as fitas da boina por cima da cabeça.
- É a princesa Bárbara - explicou Ana, respondendo ao olhar interrogativo de Dolly, quando se aproximou do charabã.
- Ah! - exclamou Daria Alexandrovna, e no seu rosto passou uma expressão de contrariedade, a pesar seu.
A princesa Bárbara era tia do marido e havia muito tempo que Dolly a conhecia, posto que não tivesse consideração por ela. Sabia que a princesa passara toda a sua vida como parasita em casa de uns parentes ricos e o facto de se encontrar agora em casa de Vronski, um homem que lhe não era nada, ofendeu a nos brios da família do marido. Ao reparar na expressão de Dolly, Ana deteve se, corou e, desprendendo a saia de amazona, tropeçou nela.
Daria Alexandrovna aproximou se do charabã e cumprimentou friamente a princesa Bárbara. Também conhecia Sviajski. Este perguntou lhe pelo seu extravagante amigo e por sua mulher e depois de examinar, num rápido golpe de vista, os cavalos, que não formavam parelha, e o carro, de guarda lamas consertados, convidou as senhoras a subirem para o charabã.
- O cavalo é manso e a princesa guia muito bem - disse ele. - Eu irei neste veículo.
- Não - deixem se estar onde estão - tornou-lhe Ana. - Nós as duas vamos neste carro - acrescentou, travando do braço de Dolly.
Daria Alexandrovna mirava aquele elegante carro, os magníficos cavalos e os rostos resplandecentes que a rodeavam. O que mais a surpreendia era a mudança que se operara em Ana, a quem conhecia e apreciava. Uma mulher menos observadora, e que não conhecesse Ana, e sobretudo que não tivesse pensado o que Dolly pensara durante a viagem, não teria notado nela nada de especial. Dolly parecia assombrada com aquela beleza fugitiva, que apenas se vê nas mulheres que amam e são amadas. Tudo em Ana era atraente: o brilho dos olhos, a prega do lábio, as covinhas que se desenhavam perfeitamente nas faces e no queixo, o sorriso que lhe flutuava no rosto, a graça nervosa dos gestos, o som quente da voz e até o tom amistosamente brusco, quando consentiu que Veslovski montasse o cavalo inglês para lhe ensinar a galopar com a perna direita. Tudo em Ana respirava uma sedução de que ela própria se sentia consciente e encantada.
Quando se instalaram no carro e se viram sós, ambas se sentiram um pouco embaraçadas. Ana, perante o olhar atento e interrogador de Dolly, e esta, porque depois das palavras de Sviajski a respeito do carro, se sentia envergonhada da traquitana, velha e suja, em que se instalara com Ana. O cocheiro Filipe e o administrador sentiram o mesmo. Para esconder o seu embaraço, o administrador desviou se, ajeitando as senhoras; Filipe, macambúzio, propôs se de antemão não deixar que aquela superioridade o esmagasse. Sorriu, desdenhoso, ao ver o cavalo preto, e no seu foro íntimo decidiu que o animal para mais não servia se não para "dar um passeio". Seria incapaz de trotar quarenta verstas sob a canícula.
Os camponeses, de pé, olhavam alegres e cheios de curiosidade, enquanto comentavam entre si a maneira como os senhores recebiam a convidada.
- Estão contentes de se verem; com certeza que se não viam há muito tempo - comentava o velho de cabelos crespos cingidos pela tira de casca de árvore.
- Tio Guerasime, olhe me para aquela estampa preta. De um animal daqueles é que nós precisávamos para acarretar as sementes. Aquilo é que é correr!
- Olhe para aquele dos calções; é mulher? - perguntou um deles, apontando para Vacienka Veslovski, naquele momento montado no selim de amazona do cavalo de Ana.
- Não, é homem. Aquilo é que é ligeireza!
- Já hoje não dormimos a sesta, não é verdade, rapazes?
- Quem vai dormir a estas horas?! - respondeu o velho, olhando para o Sol com a cabeça de lado. - Já passa do meio dia. Toca a pegar nas foices e mãos à obra.
CAPÍTULO XVIII
Ana mirando o rosto de Dolly, enxuto, esgotado, com as rugas entranhadas de pó, quis dizer lhe o que pensava: que tinha emagrecido. Mas, ao lembrar se do que ela própria melhorara, coisa que lia nos olhos de Dolly, suspirou e pôs se a falar de si própria.
- Estás me a examinar? - disse ela. - Perguntas a ti própria como posso eu na minha situação parecer feliz? O que se passou comigo é qualquer coisa de maravilhoso, parece um sonho. Aconteceu comigo o que costuma acontecer quando nos sentimos angustiadas em sonhos, cheias de medo, e, ao acordarmos, nos damos conta de que todos esses pavores deixaram de existir. Estou acordada. Atravessei momentos dolorosos e terríveis, mas há muito já, sobretudo desde que aqui vivemos que sou feliz! - disse Ana, olhando Dolly com um tímido sorriso interrogativo.
- Ainda bem! - respondeu esta, sorrindo mais friamente do que teria desejado. - Ainda bem por ti. Porque me não escrevias?
- Oh! Não me atrevia... Esqueces te da minha situação...
- Não te atrevias a escrever me? Se tu soubesses como... Acho que... - Daria Alexandrovna quis contar a Ana os pensamentos que tivera aquela manhã, mas, sem que soubesse muito bem porquê, pareceu- lhe inoportuno.
- Bom, depois falaremos disso. Que construções são estas? - perguntou, no desejo de mudar de conversa, apontando para os telhados vermelhos e verdes que assomavam por detrás de uma sebe de lilases e acácias. - Parece uma cidade em ponto pequeno.
Mas Ana não lhe respondeu.
- Não! Não! Que entendes tu, como consideras tu a minha situação? - perguntou lhe.
- Supondo... - principiou Daria Alexandrovna, mas naquele momento Vacienka Veslovski, que conseguira que o cavalo erguesse a perna direita, passou junto delas, aos tropeções em cima do selim de amazona.
- Já vai, Ana Arkadievna! - gritou.
Ana nem sequer olhou para ele, mas Daria Alexandrovna pensou que não seria conveniente encetar no carro uma conversa tão longa, e resumiu o que pensava:
- Não considero nada; sempre gostei de ti, e quando se gosta de uma pessoa, gosta se dela tal como é e não como nós quereríamos que fosse.
Ana desviou a vista do rosto da amiga e piscando os olhos (um costume novo que Dolly lhe não conhecia) ficou se pensativa, desejando compreender o sentido dessas palavras. E, compreendendo as, sem dúvida como ela queria, olhou para Dolly.
- Se tivesses pecados, todos os teus pecados te seriam perdoados por teres vindo e por essas palavras - disse lhe.
E Dolly viu que as lágrimas lhe borbulhavam nos olhos. Em silêncio apertou as mãos de Ana.
- Que casas são aquelas? Quantas? - disse, momentos depois, repetindo a pergunta.
- São as instalações dos empregados e as cavalariças - explicou Ana. - Aqui começa o parque. Estava tudo ao abandono, mas Alexei está a arranjar tudo isto. Tem muito carinho por esta propriedade, e, coisa que eu não esperava, interessa se muito por economia rural. É uma natureza tão privilegiada! Seja o que for que empreenda, fá-lo maravilhosamente. Não só não se aborrece, mas até se entretém muito. Transformou se num patrão meticuloso, magnífico, avaro até em tudo que diz respeito à propriedade. Quando se trata de milhares de rublos, não se dá ao trabalho de os contar - dizia Ana com aquele sorriso alegre e malicioso com que as mulheres costumam falar dos segredos que só elas descobriram no homem amado. - Estás a ver essa casa grande? É o novo hospital. Parece que custará para cima de cem mil rublos. É o seu dada(Nota 79) actual. E sabes porque lhe veio essa ideia? Os camponeses pediram que baixasse a renda de uns prados, segundo creio; ele não acedeu e eu lancei lhe em rosto a sua avareza. Talvez que pareça une petítesse(Nota 80), mas ainda lhe quero mais por isso. Vais já ver a casa. Pertenceu aos seus avós, e Alexei em nada lhe alterou o exterior.
- Que bonita! - exclamou Dolly com assombro, involuntariamente, ao ver a esplêndida casa de colunas, avultando no meio da verdura, das árvores do jardim com seus variados matizes.
- Não é verdade? Lá de cima tem uma vista muito bonita.
O carro avançou pelo jardim coberto de relva, com os seus alegretes de flores. Dois canteiros rodeavam outro alegrete, marginado de pedras desiguais e porosas, que ia deter se diante do alpendre da casa.
- Ah! Já chegaram! - exclamou Ana, ao ver conduzir os cavalos de sela que estavam junto à escadaria. - Não é um lindo animal? É o meu preferido. Traga o aqui e deixe ver açúcar. Onde está o senhor conde?
- perguntou a dois lacaios de libré que tinham vindo receber os amos. - Ah! Lá está ele! - disse, ao ver Vronski, que lhes saía ao encontro, acompanhado de Vacienka.
- Onde vais instalar a princesa? - perguntou Vronski a Ana, em francês, e sem aguardar resposta, de novo cumprimentou Daria Alexandrovna, beijando lhe a mão desta vez. - No quarto grande da varanda, não achas?
- Oh, não! Fica muito retirado, é melhor no da esquina, estaremos mais perto uma da outra. Bom, vamos! - disse Ana, depois de regalar de açúcar o seu cavalo predilecto. - Et vous oubliez votre devoir(Nota 81)
- acrescentou, dirigindo se a Veslovski, que também aparecera no alpendre.
- Pardon, fen ai tout plein les poches(Nota 82) - replicou este muito risonho, enfiando os dedos no bolso do colete.
- Mais vous venez trop tard(Nota 83) - tornou Ana, limpando com o lenço a mão que o cavalo lhe humedecera, ao comer o açúcar. Depois dirigiu se a Dolly. - Vens por muito tempo? Um dia só? É impossível!
- Prometi... por causa das crianças... - respondeu Dolly, embaraçada com a aparente insignificância da maleta que trazia e sentindo se mal com todo aquele pó em cima de si.
- Não, não, Dolly querida, é impossível... Depois falaremos, sim? Vamos agora ao teu quarto.
Não era aquele o quarto luxuoso que Vronski lhe propusera, e Ana pediu a Dolly que a desculpasse. Não obstante, Daria Alexandrovna nunca em sua vida estivera num quarto tão sumptuoso e achou o parecido com os dos melhores hotéis do estrangeiro.
- Estou tão contente que tenhas vindo, querida! - disse Ana, sentando se, com o seu traje de amazona, ao pé de Dolly. - Fala me dos teus. Vi o Stiva de passagem. Mas ele nunca sabe dizer nada das crianças. Como vai a minha querida Tânia? Deve estar uma mulherzinha.
- Oh! Sim! Cresceu muito - comentou ela, rápida, surpreendida por falar tão friamente de seus filhos. - Estivemos muito bem em casa dos Levines - acrescentou.
- Se tivesse sabido que me não desprezavas, tinha os convidado a todos para passar aqui algum tempo. O Stiva é velho e grande amigo de Alexei - disse Ana, corando, de súbito.
- Sim, mas estamos tão bem... -principiou a dizer Dolly, porém calou se embaraçada.
- A alegria faz me dizer tolices. Como estou contente por te ver!
- exclamou Ana, beijando Dolly novamente. - Ainda me não disseste o que pensas de mim e quero que mo digas. Dá me satisfação que me vejas tal como eu sou. Sobretudo espero que reconheças que não pretendo fazer te crer seja o que for. Nada desejo demonstrar. Apenas pretendo viver, sem prejudicar ninguém, excepto a mim própria. Tenho direito a isso, não é verdade? Mas são contos largos e havemos de falar de tudo isso. Agora vou tratar de me vestir e já te mando uma criada de quarto.
CAPÍTULO XIX
Ao ficar só, Daria Alexandrovna pôs se a examinar a habitação com um olhar de quem sabe ver e apreciar as coisas. Nunca vira luxo que se comparasse àquele que se lhe oferecia aos olhos depois do seu encontro com Ana. O mais que sabia era que semelhante conforto começara agora a espalhar se pela Europa e sabia o dos romances ingleses que costumava ler; na Rússia, porém, especialmente no campo, era coisa que não existia. Tudo era novo, a principiar pelos papéis, todos franceses, e a acabar no tapete que forrava o quarto inteiro. A cama tinha colchão de molas e uma cabeceira especial com os seus pequenos travesseiros enfronhados em seda crua. Tudo era novo e luxuoso: o lavatório de mármore, o toucador, o sofá, as mesas, o relógio de bronze em cima do fogão, os reposteiros e as cortinas das janelas.
A criada que apareceu a oferecer lhe os seus serviços, uma rapariga vestida e penteada muito mais à moda que Dolly, era tão moderna e elegante como o próprio quarto. A Daria Alexandrovna agradava lhe a sua delicadeza, o seu asseio e a sua boa disposição, mas não se sentia à vontade na presença dela. A blusinha remendada, que por engano metera na maleta de viagem, envergonhava a. E envergonhava se agora, também, dos cerzidos e penteados, seu orgulho doméstico. Em casa, calculava que para seis bibes eram precisas vinte e quatro archines de nanquim a sessenta e cinco copeques, o que perfazia quinze rublos, sem falar nos preparos e no trabalho, e tratava de economizar essa importância. Mas agora, diante daquela criada, que vergonha!
Daria Alexandrovna sentiu um grande alívio ao ver entrar no quarto a sua antiga conhecida Anuchka. Vinha chamar, da parte de Ana, a elegante criada, e Daria Alexandrovna ficou com ela no lugar da primeira.
Esta parecia muito contente com a visita de Daria Alexandrovna e falava sem parar. Dolly notou que a rapariga queria emitir a sua opinião a respeito da situação da patroa e sobretudo acerca do amor e da fidelidade do conde em relação a ela. Mas Dolly interrompia a intencionalmente de cada vez que ela principiava a falar.
- Fui criada com Ana Arkadievna. Quero lhe mais que a ninguém neste mundo. Não somos nós quem deve julgar. E ela parece amar tanto...
- Agradecia lhe que me mandasses lavar isto - interrompeu a Daria Alexandrovna.
- Sim, senhora. Temos duas lavadeiras para lavar coisas miúdas. E toda a outra roupa é lavada à máquina. O próprio conde é quem se ocupa de tudo. É um marido...
Dolly gostou de ver entrar Ana no quarto, ponde fim à conversa de Anuchka.
Ana vestira um vestidinho de baptista, muito simples. Dolly examinou a com atenção. Sabia o que queria dizer e quanto custava aquela simplicidade.
- É tua antiga conhecida - disse Ana a Dolly, aludindo a Anuchka.
Agora já não estava perturbada. Mostrava se inteiramente à vontade e tranqüila. Dolly notou que se havia refeito da impressão que lhe produzira a chegada dela e tinha adoptado aquele tom superficial e indiferente com que parecia fechar a porta da dependência em que guardava os sentimentos e os seus pensamentos íntimos.
- E a tua filha, como está, Ana?
- A Any? - assim chamava à filha. - Está bem. Melhorou muito. Queres vê-la? Vamos. Vou ta mostrar. Tenho tido muitos aborrecimentos com as criadas dela - principiou Ana a contar. - Temos uma italiana, muito boa criada, mas tonta. Quis mandá-la embora; a menina, porém, está tão habituada com ela que acabámos por desistir.
- E como se arranjaram...? - ia Dolly a dizer, referindo-se ao sobrenome que usaria a criança, mas, ao ver que o rosto de Ana se toldava, mudou o sentido da pergunta. - Como se arranjaram para a desmamar?
No entanto, Ana compreendeu.
- Não era isso que ias perguntar. Querias saber que sobrenome lhe demos. É o que atormenta Alexei. A menina não tem ainda sobrenome. Isto é, chama se Karenina - disse, piscando tanto os olhos que apenas se lhe viam as pestanas unidas. - De qualquer maneira - acrescentou, já com o rosto desanuviado -, falaremos nisso depois. Anda, vamos ver a menina. Elle est tres gentille(Nota 84). Já engatinha.
O luxo da casa, que tanto surpreendera já Daria Alexandrovna, ainda a surpreendeu mais no quarto da menina. Havia ali carrinhos trazidos de Inglaterra, aparelhos para aprender a andar, um divã para engatinhar, que fazia lembrar uma mesa de bilhar, básculas e banheiras especiais e modernas. O quarto era grande, claro e com muito pé direito.
Quando entraram, a menina estava em camisinha, sentada numa cadeirinha baixa, junto da mesa, a tomar caldo, que se lhe havia derramado pelo colo. Dava lhe de comer uma rapariga russa, ao serviço da criança, que naturalmente comia ao mesmo tempo do que ela. Não estavam presentes nem a ama nem a aia; deviam estar no quarto contíguo, onde se ouvia falar um francês estranho, que só elas podiam entender.
Ao ouvir a voz de Ana, a inglesa, uma mulher bem vestida, alta, de rosto desagradável, cuja expressão nada atraente desagradou a Dolly, entrou precipitadamente, sacudindo os caracóis louros, e pôs se a desculpar se, embora Ana não tivesse feito qualquer observação. A cada palavra dela, a inglesa repetia pressurosa: Yes, milady(Nota 85).
A menina, uma criança robusta de sobrancelhas e cabelos pretos, o corpinho rosado, e pele esticada, agradou muito a Daria Alexandrovna - apesar da expressão severa com que olhou aquela desconhecida - e quase sentiu inveja daquele corpo são. Também gostou muito da maneira como a menina andava de gatas. Nenhum dos seus filhos andara assim. Quando a puseram em cima do tapete e a ampararam por detrás, pareceu lhe extraordinariamente bonita. Como um animalzinho, voltava a cabeça para os adultos, olhando, risonha, com os seus olhos negros e brilhantes, sem dúvida contente por se ver admirada e de pernas alargadas, apoiando se com firmeza nas mãos, puxava rapidamente o corpo para diante e caminhava em cima das mãozinhas.
No entanto, o ambiente do quarto da criança tinha qualquer coisa de desagradável. Como podia Ana conservar uma criada tão antipática, tão pouco respectable? Naturalmente porque nenhuma pessoa de respeito teria consentido em servir numa família como aquela. Além disso, Dolly não tardou a compreender, por algumas palavras que ouviu, que Ana, a ama, a aia e a criança não se entendiam e que as visitas da mãe à filha não deviam ser muito freqüentes. Ana quis dar um brinquedo à pequena, mas não conseguiu encontrá-lo.
E o que mais estranho lhe pareceu foi que, ao perguntar lhe quantos dentes já tinha a criança, Ana não lho soube dizer, pois ignorava que ultimamente lhe tinham nascido mais.
- Sinto que sou inútil aqui, e isso dá me muita pena - disse Ana, quando saíam, soerguendo a cauda do vestido para não tocar nos brinquedos. - Não foi assim com o meu filho mais velho!...
- Julgava que seria o contrário - observou Daria Alexandrovna, timidamente.
- Oh! Não! Sabes que vi o Seriocha? - exclamou Ana, piscando os olhos, como se olhasse para alguma coisa a distância. - Mas falaremos disso mais tarde. Sou como uma criatura morta de fome que pusessem diante da mesa de um banquete e não soubesse por onde principiar. Tu és para mim esse banquete: com quem, a não ser contigo, poderia eu falar de coração nas mãos? Por issoje ne tejerai grâce de rien(Nota 86). Preciso dizer te tudo. Tenho de te dar um apontamento sobre a sociedade que vais encontrar em nossa casa - principiou ela. - Começarei pela princesa Bárbara. Já a conheces e já sei qual é a tua opinião e a do Stiva a respeito dela. Stiva diz que o único objectivo da sua vida está em demonstrar a sua superioridade sobre a tia Catarina Pavlovna; tudo isto é certo, mas é boa e estou lhe muito agradecida. Houve uma altura em Sampetersburgo em que precisei de um chaperon(Nota 87). E foi então que ela apareceu. Podes crer, é boa pessoa. Ajudou me muito a suportar tudo. Vejo que te não dás conta do quanto foi penosa a minha situação... ali, em Sampetersburgo - acrescentou. - Aqui sinto me completamente feliz e estou sossegada. Bom, depois falaremos nisso. Tenho de enumerá-los a todos. Sviajski é marechal da nobreza e homem muito respeitável, mas precisa de qualquer coisa de Alexei. Como podes compreender, com a sua fortuna, e agora que passámos a viver na aldeia, Alexei pode vir a ter uma grande influência. Também está aqui Tuchkievitch, que tu conheces; é das relações de Betsy, ou antes, era, pois parece que foi despedido. Como Alexei diz, é uma dessas pessoas muito agradáveis, quando se tomam pelo que querem parecer et puis il est comme il faut(Nota 88), como diz a princesa Bárbara. Depois temos o Veslovski... a esse já tu conheces. É um rapaz muito agradável - e um sorriso irônico lhe franziu os lábios. - Que história inverossímil essa que ele teve com o Levine! Vacienka contou a Alexei, mas nós não acreditamos. Et est tres gentil et tres nair(Nota 89) - repetiu, com o mesmo sorriso. - Os homens precisam de se distrair; ao Alexei faz lhe falta gente a seu lado, e por isso os aprecia muito. É preciso que na nossa casa haja animação e alegria para quê Alexei não se ponha a desejar qualquer coisa nova. E verás o administrador. É um alemão, boa pessoa, que conhece muito bem as suas obrigações. Alexei aprecia o muito. Há ainda o médico, homem relativamente novo, não completamente niilista, sabes? Ainda que... Seja como for, é muito bom médico. E o arquitecto... Bref, une petite court(Nota 90).
CAPÍTULO XX
- Pois aqui tem a Dolly, princesa, a quem tanto desejava ver - disse Ana, que aparecia com Daria Alexandrovna no amplo terraço. A sombra estava sentada a princesa Bárbara, diante de um bastidor, bordando uma almofada para a poltrona do conde Alexei Kirilovitch. - Diz que não quer tomar nada antes do jantar; faça com que ela coma qualquer coisa, eu vou procurar o Alexei e os outros senhores.
A princesa Bárbara acolheu Dolly com grandes provas de carinho e num tom algo protector. E principiou depois a explicar lhe que se instalara em casa de Ana, pois sempre gostara mais dela do que de sua irmã Catarina Pavlovna, que a educara. Agora, que todos tinham abandonado Ana, entendia seu dever ajudá-la nesse período transitório, o mais penoso da sua vida.
- Logo que o marido lhe conceda o divórcio, voltarei para a minha solidão, mas agora, enquanto puder ser lhe útil, cumprirei o meu dever, por mais penoso que me seja, e não procederei como os outros. Fizeste muito bem em vir! Foste muito boa! Vivem como bons esposos. Deus os julgará: a nós não nos compete fazê-lo. Então Biriusovski e Avenievna? E Nikandrov, Vaciliev e Mamonovam, e Lisa Neptunova... Ninguém os criticou e por fim todos acabaram por recebê-los. E além disso, c'est un intérieur si joli, si comme il faut. Tout à fait l' anglaise. On se réunit le matin ali brekfast, et puis on se separe(Nota 91). Cada um faz o que quer até à hora do jantar. O jantar é às 7. Stiva fez muito bem em deixar te vir. O conde é pessoa muito influente, através da mãe e do irmão. E é tão generoso! Já te falou do hospital que ele projecta? Ce será admirable(Nota 92); vem tudo de Paris...
A conversa foi interrompida por Ana, que voltou ao terraço acompanhada dos cavalheiros que fora encontrar na sala de bilhar.
Ainda faltavam duas horas para o jantar; o tempo estava lindo, eram numerosas as distracções e muito diferentes das de Pokrovskoie.
- Une partie de lawn-tennis(Nota 93) - propôs Veslovski, sorrindo com o seu bonito sorriso. - Quer ser outra vez minha parceira, Ana Arkadievna?
- Está muito calor - objectou Vronski -; vamos dar uma volta pelo parque ou então um passeio de barco, para Daria Alexandrovna poder apreciar a paisagem.
- Eu estou por tudo - disse Sviajski.
- Creio que para Dolly o mais agradável é um passeio, não é assim? Depois iremos ao barco, não é verdade? - interveio Ana.
Decidiram se por este último. Veslovski e Touchkievitch foram à cabine dos banhos, prometendo que preparariam o barco e ficariam ali à espera dos outros.
Ana e Sviajski e Dolly e Vronski, dois a dois, foram dar um passeio pelas avenidas do parque. Dolly não se sentia à vontade, um pouco embaraçada com o ambiente em que se encontrava, novo para ela. Teoricamente, Dolly não só justificava, como até aprovava, a atitude de Ana. Como tantas vezes acontece com as mulheres honestas, que acabam por cansar se com a monotonia da sua vida moral, não só perdoava àquele amor culpado como chegava a invejá-lo. Depois estimava Ana de todo o seu coração. Mas, ao vê-la no ambiente daquelas pessoas estranhas, com os seus requintes de elegância que lhe eram desconhecidos, sentia se perturbada. Desagradava lhe principalmente a princesa Bárbara, pronta a tudo perdoar em troca das comodidades de que gozava.
Em geral, Dolly aprovava de maneira abstracta o procedimento de Ana, mas desgostava a vê-la ao lado do homem por causa de quem procedera daquela forma. Por outro lado, jamais gostara de Vronski. Considerava o muito orgulhoso e achava que ele não tinha razão alguma para se enaltecer, a não ser pela riqueza de que usufruía. Ali, em sua própria casa, ainda mais ele se lhe impunha, fazendo com que ela sentisse, a seu lado, uma confusão maior. Experimentava um sentimento parecido com o que sentira diante da criada de quarto por causa da blusa. Assim como perante aquela se não sentira envergonhada mas coibida pelos remendos, agora, diante de Vronski, era por si mesma que se sentia incomodada.
Confusa, Dolly procurava qualquer coisa que dizer. Repugnava lhe a ideia de dirigir um elogio banal à magnificência da sua casa e dos seus jardins, mas, não se lembrando de mais nada, acabou por lhe exaltar tudo isso.
- Sim, é uma bonita construção e num velho e bom estilo - disse Vronski.
- Gostei muito do jardim diante do alpendre. Também é antigo?
- Oh! Não! - replicou Vronski, e uma grande satisfação se lhe pintou no rosto. - Se o tivesse visto esta Primavera!
E Vronski pôs se a indicar lhe os pormenores da casa e do jardim que ele próprio modificara. Via se que se sentia muito feliz por poder expandir se sobre um assunto que tanto o envaidecia. Os elogios da interlocutora provocaram lhe um visível prazer.
- Quer ir visitar o hospital ou está cansada? Não fica longe. Vamos - acrescentou, olhando a bem no rosto, para ver se porventura ela não estaria aborrecida.
- Também vens, Ana?
- Vamos, não é verdade? - disse Ana, dirigindo se a Sviajski. - Mais il ne faui pas laisser Touchkievitch et le pauvre Veslovski se morfondre dans le baieau(Nota 94). Precisamos de os avisar... É um monumento que ele está a erguer à sua própria glória - continuou ela, dirigindo se a Dolly, com o mesmo sorriso que tivera já para lhe falar do hospital.
- Oh! É uma obra de alto coturno! - exclamou Sviajski. Mas, como para não parecer adulador, acrescentou logo uma observação de ligeira censura. - Sem embargo, conde, surpreende me que, fazendo tanto pelos camponeses do ponto de vista sanitário, se mostre tão indiferente para com as escolas.
- Ce est devenu tellement commun, les écoles!(Nota 95) - replicou Vronski.
- Mas não é só por isso, é que me deixei entusiasmar pela minha ideia. O hospital fica por aqui - indicou, apontando a Daria Alexandrovna uma saída lateral da alameda.
As senhoras abriram as sombrinhas. Ao saírem do parque, encontraram se diante de uma pequenina eminência, sobre a qual, como que coroando a, se erguia um grande edifício de tijolos vermelhos, de uma arquitectura algo complicada. O telhado de zinco, que ainda não houvera tempo de pintar, reverberava ao sol. Não longe dali, construíam outro edifício, ainda rodeado de andaimes. Pedreiros, com os seus aventais, estendiam sobre os tijolos camadas de argamassa, que alisavam com a pá.
- Que depressa vão as obras! - exclamou Sviajski. - Quando aqui estive da última vez ainda não tinham telhado.
- No Outono estará concluído. Lá dentro está quase tudo pronto
- replicou Ana.
- E aquele edifício novo, que vem a ser?
- Instalações para o médico e a farmácia - respondeu Vronski.
Ao ver um indivíduo de paletó curto que vinha ao encontro deles, Vionski caminhou para ele, desviando se do amassador da cal. Era o arquitecto, com quem se pôs a discutir.
- O frontão não está ainda na devida altura.
- Tinha sido necessário levantar mais as fundações, eu bem lhe disse.
- Realmente, Ana Arkadievna, tinha sido preferível - aprovou o arquitecta -, mas agora o melhor é não pensar mais nisso.
- Sim, interesso me muito por esta obra - respondeu Ana a Sviajski, que se mostrara surpreendido com os seus conhecimentos de arquitectura. - É necessário que o nosso edifício se harmonize com o do hospital. Mas principiaram a construí-lo sem projecto.
Quando acabou de falar com o arquitecto, Vronski juntou se de novo às senhoras e conduziu as ao interior do hospital.
Embora exteriormente ainda estivessem a concluir as cornijas e a pintar o andar inferior, o superior já estava quase concluído. Uma grande escada de ferro conduzia até ele: janelas imensas iluminavam grandes salas de paredes estucadas. Estavam a assentar as últimas tábuas do soalho. Os carpinteiros, que as aplainavam, retiraram os cordões passados pela cabeça para cumprimentar os senhores.
- Aqui fica o consultório - disse Vronski. - Terá apenas uma secretária, uma mesa e um armário, nada mais em matéria de móveis.
- Por aqui, se fazem favor. Não se aproximem da janela - disse Ana, tocando com a ponta do dedo na madeira. - Alexei, a pintura já está seca.
Passaram pelo corredor, onde Vronski explicou o funcionamento do novo sistema de ventilação. Percorreram todas as salas, o economato, apreciaram as camas de molas especiais, as banheiras de mármore, as estufas de novo modelo, as carretas aperfeiçoadas e silenciosas, que serviam para transportar objectos de um lado para o outro no interior do edifício, e muitas outras coisas. Dolly não escondia a sua surpresa e a sua admiração e fazia muitas perguntas, que pareciam deliciar Vronski.
- Creio que será o hospital mais bem instalado de toda a Rússia
- declarou Sviajski.
- Não terão uma sala de partos? - perguntou Dolly. - É uma coisa tão precisa nas nossas aldeias. Tenho observado muitas vezes...
- Não - replicou Vronski -, isto não é uma maternidade, mas um hospital, onde serão tratadas todas as doenças, salvo as contagiosas... Repare nisto... - e chamou a atenção de Dolly para uma cadeira de rodas, na qual se sentou e que ele próprio pôs em andamento. - Repare bem. O doente não pode andar, pois ainda se sente fraco e custa lhe a mexer as pernas, mas precisa de tomar ar. Então sentam no aqui e já poderá dar o seu passeio.
Dolly interessava se por tudo, de tudo gostava, e acima de tudo de Vronski, em quem apreciava o entusiasmo natural e ingênuo. "Sim, é um homem de bons sentimentos e muito simpático", pensava, de quando em quando, sem o ouvir, mas observando lhe a expressão e colocando se, mentalmente, no lugar de Ana. E compreendeu o amor que ele lhe inspirara.
CAPÍTULO XXI
Ao saírem do hospital, Ana propôs que se mostrassem as cavalariças a Dolly, pois Sviajski estava desejoso de ver o novo potro.
- A princesa deve estar fatigada e os cavalos não são coisa que lhe interesse - objectou Vronski. - Vão vocês. Quanto a mim, vou acompanhar a princesa a casa. E, se me permite, conversaremos um pouco pelo caminho - acrescentou, dirigindo se a Dolly.
- Com todo o prazer; realmente, não percebo nada de cavalos - respondeu esta um tanto surpreendida.
Por um olhar que relanceara, furtivamente, ao conde, concluiu que este queria pedir lhe qualquer coisa. De facto, quando penetraram no parque e Vronski teve a certeza de que Ana os não podia ver nem ouvir, disse, fitando Dolly com os seus olhos sorridentes:
- Adivinhou, não é verdade, que eu queria conversar consigo em particular. Não me engano ao pensar que é uma verdadeira amiga de Ana.
Tirou o chapéu, onde a calvície fazia já os seus estragos.
Dolly apenas teve como resposta um olhar inquieto. O contraste entre o sorriso do conde e a expressão severa do seu olhar assustavam-na.
Que lhe iria ele pedir? Que viesse instalar se em casa deles com as crianças? Que arranjasse um grupo com que Ana se desse quando voltassem para Moscovo?... Ou talvez ele quisesse queixar se da atitude de Ana para com Veslovski? Ou então pedir lhe desculpa da sua atitude para com Kitty? Esperava o pior, e de maneira alguma aquilo que lhe ia ser dado ouvir.
- Ana estima a muito - continuou o conde. - Peço-lhe que me empreste o apoio da sua influência sobre ela.
Dolly interrogou, com um olhar tímido, o rosto enérgico do conde, sobre o qual brincava, por momentos, um raio de sol filtrado pelos ramos das tílias. Caminhava agora em silêncio.
- Se de todas as amigas de Ana - continuou ele, momentos depois - foi a única que a veio visitar, não conto a princesa Bárbara, não é porque ache normal a nossa situação, mas porque estima Ana: para desejar tornar-lhe suportável a situação. Tenho ou não razão? - perguntou ele, perscrutando o rosto de Dolly.
- É verdade - respondeu esta, que fechava a sombrinha.
- Ninguém sente tão cruelmente como eu a dolorosa situação de Ana - interrompeu Vronski, que, detendo se, forçou Dolly a fazer o mesmo. - E compreendê-lo á facilmente, se me der a honra de acreditar que não sou destituído de sentimentos. Tendo sido o causador dessa situação, ninguém se sente tão responsável dela como eu.
- Com certeza - disse Dolly, a quem a sinceridade daquela confissão não podia deixar de comover -, mas não estará a ver as coisas demasiado negras? Naturalmente que a situação de Ana perante a sociedade é penosa.
- É um inferno ! - exclamou Vronski, precipitadamente, franzindo o sobrolho, com uma expressão sombria. - Nada lhe pode dar ideia das torturas morais que ela sentiu em Sampetersburgo durante os quinze dias que ali tivemos de passar.
- Mas aqui? Desde que nem ela nem o conde sintam a necessidade de fazer vida de sociedade...
- Sociedade ! - replicou Vronski. - Para que preciso eu da sociedade?
- Até esse momento, que pode não chegar nunca, ambos podem estar felizes e tranqüilos. Vejo que Ana é feliz, muito feliz. Já teve ocasião de mo fazer saber - disse Daria Alexandrovna, sorrindo. E, ao dizê-lo, involuntariamente lhe assaltou a dúvida; seria Ana, realmente feliz? Vronski parecia não duvidar.
- Sim, sim - disse ele. - Sei que se refez depois de todos os seus sofrimentos. É feliz. É feliz no presente. Mas, e eu?... Temo o que nos espera... Perdoe, quer que continuemos o nosso caminho?
- Não, é o mesmo.
- Então sentemo-nos aqui.
Daria Alexandrovna sentou se num banco, num dos recantos da alameda. Vronski ficou de pé diante dela.
- Sinto que ela é feliz - repetiu ele, e esta insistência confirmou a dúvida de Dolly. - No entanto, a vida que nós fazemos não pode prolongar se por muito tempo. Se agimos bem ou mal, não sei, mas os dados estão lançados, estamos unidos para toda a vida - continuou ele, deixando de falar russo para falar francês. - Já temos um penhor sagrado do nosso amor e ainda podemos vir a ter mais filhos. Mas a nossa situação actual arrasta consigo muitas complicações que Ana não pode nem quer prever, pois que, depois de tanto ter sofrido, precisa de respirar. É perfeitamente legítimo. Mas eu, ai de mira, vejo me forçado a vê-las. Legalmente a minha filha não é minha filha, mas filha de Karenine! Esta mentira revolta-me! - exclamou ele, com um gesto enérgico, escrutando Dolly com um olhar.
Esta não respondeu, limitando se a olhá-lo por sua vez. Vronski prosseguiu:
- Amanhã podemos vir a ter um filho - continuou ele. - Mas, por lei, será Karenine, e não herdará nem o meu sobrenome nem os meus bens. Por mais felizes que sejamos em família e por mais filhos que tenhamos, entre nós não haverá qualquer laço de união. As crianças chamar-se-ão Karenines. Compreende o que há de penoso e de terrível nesta situação? Tentei falar disto com Ana, mas ela irrita se. Não entende, e eu sinto me incapaz de lhe dizer tudo. Vejamos agora as coisas de outro ponto de vista. O amor de Ana faz me feliz, mas nem por isso deixo de sentir a necessidade de uma ocupação. Ora encontrei aqui uma actividade de que me orgulho e que acho bem superior às ocupações a que se dedicam os meus antigos camaradas na Corte ou no exército. Evidentemente que não os invejo. Trabalho, sinto me contente, e esta é a primeira condição da felicidade. Sim, gosto deste gênero de actividade; ce n'est fas un pis aller(Nota 96), muito pelo contrário...
Daria Alexandrovna deu se conta de que neste ponto da sua explicação Vronski se embrulhava, e, sem compreender onde ele queria chegar, adivinhou que aquela digressão fazia parte dos pensamentos íntimos que ele não ousava desvendar a Ana. Desde que resolvera abrir se com Dolly, queria esvaziar se por completo.
- Queria eu dizer - prosseguiu ele, reatando o fio do discurso - que para nos devotarmos inteiramente a uma obra precisamos de ter a certeza de que ela não irá morrer connosco, Ora a verdade é que eu não posso ter herdeiros! Calcule a situação de um homem que sabe de antemão que os seus filhos e os filhos da mulher que ama não serão legalmente seus, mas de outro, de alguém que os odeia e não quer saber deles. É horrível!
Calou se, ao que parecia perturbado.
- Sim, compreendo o. Mas que pode Ana fazer? - perguntou Daria Alexandrovna.
- Ora isto leva me ao ponto principal da nossa conversa - replicou Vronski, procurando recuperar a serenidade. - Tudo depende de Ana. Até para submeter ao imperador um pedido de adopção, é preciso, antes de mais nada, que o divórcio esteja concedido. Ana pode obtê-lo. O seu marido tinha levado o Sr. Karenine a consentir nesse divórcio, e estou certo de que este não se recusaria a isso, mesmo nas circunstâncias actuais, desde que Ana lho pedisse. Naturalmente - acrescentou Vronski, sombrio -, trata se de uma destas crueldades farisaicas de que só é capaz uma pessoa sem coração. Ele bem sabe a tortura que isso representaria para ela. Mas, perante motivos tão importantes, há que passer par dessus toutes sésfinesses de sentiment: il y a du bonheur et de Vexistence d'Arma et de sés enfants(Nota 97). Não falo de mim, embora eu sofra muito, muito... - exclamou, como se ameaçasse alguém pelo muito que sofria. - E eis por que, princesa, me agarro à senhora com a uma tábua de salvação. Ajude me a convencer Ana a escrever ao marido, exigindo-lhe o divórcio.
- Com certeza - disse Daria Alexandrovna, pensativa, lembrando-se, em todos os seus pormenores, do seu último encontro com Alexei Alexandrovitch. - Com certeza - repetiu decidida, pensando em Ana.
- Conto consigo: faça com que ela escreva essa carta. Eu não posso nem quero falar lhe nisso.
- Fique descansado. Mas porque não toma ela própria essa iniciativa? - perguntou Daria Alexandrovna, lembrando se, de repente, sem saber porquê, daquele estranho costume, novo em Ana, de piscar os olhos. E veio lhe à memória que Ana o fazia precisamente quando falava dos aspectos íntimos da vida. "É como se piscasse os olhos para não ver tudo o que se passa na sua existência", pensou Dolly. - Eu lhe falarei, sem falta, tanto por num como por ela - prometeu Daria Alexandrovna, respondendo ao olhar de reconhecimento de Vronski.
Levantaram se e dirigiram se a casa.
CAPÍTULO XXII
Quando Ana chegou a casa, por sua vez, procurou ler nos olhos de Dolly o que se teria passado entre ela e Vronski, mas não lhe perguntou coisa alguma.
- Parece que já são horas de jantar - disse ela. - E quase não tivemos tempo de falar. Espero que arranjemos ocasião lá para a noite. Agora temos de mudar de vestido. Creio que também o quererás fazer. Ficámos todas sujas com a nossa visita ao hospital.
Daria Alexandrovna dirigiu se ao seu quarto. Tinha vontade rir. Nada tinha que vestir, uma vez que trazia no corpo o seu melhor vestido. No entanto, para mostrar de algum modo que se arranjara para o jantar, pediu à criada que lhe limpasse o vestido, depois mudou os punhos e o lacinho e pôs na cabeça uma mantilha bordada.
- Foi tudo quanto pude fazer - disse, sorrindo, para Ana, que veio ao seu encontro com outro vestido muito simples, o terceiro daquele dia.
- Somos muito formalistas aqui - disse Ana, para desculpar se da sua elegância. - Alexei está encantado com a tua visita. Poucas vezes o tenho visto tão contente. Decididamente está enamorado de ti. Não estarás cansada?
Até à hora do jantar já não tiveram tempo de falar de coisa alguma. Quando entraram no salão, já lá estava a princesa Bárbara e os homens, todos de redingote; o arquitecto, esse, vestira casaca. Vronski apresentou a Daria Alexandrovna o médico e o administrador. Já lhe tinha apresentado o arquitecto, quando da visita ao hospital.
O mordomo, um homem robusto, muito barbeado, ostentoso e deslumbrante, de peitilho engomado, anunciou que o jantar estava na mesa e as senhoras puseram se de pé. Vronski pediu a Sviajski que oferecesse o braço a Ana Arkadkvna, aproximando-se ele de Dolly. Veslovski, adiantando se a Tuchkievitch, ofereceu o braço à princesa Bárbara, de sorte que tanto aquele como o arquitecto e o administrador deram entrada na sala sem o respectivo par.
O jantar, a sala, a baixela, os criados, o vinho e os manjares estavam de harmonia com o tom geral do luxo de toda a casa e até pareciam mais sumptuosos e novos que tudo o mais. Daria Alexandrovna observava esse luxo, tão novo para ela, e, conquanto não tivesse esperanças de poder vir a aplicar à sua própria casa qualquer coisa do que via, observava involuntariamente todos os pormenores, perguntando se a si mesma quem organizaria tudo aquilo. Vacienka Veslovski, Stepane Arkadievitch, até mesmo Sviajski e outros homens que Dolly conhecia nunca pensavam naquelas coisas. Entendiam que o desejo de qualquer anfitrião era que os seus convidados supusessem que tudo na casa bem arranjado não dera trabalho algum, tudo se fizera por si. Daria Alexandrovna sabia que nem sequer as papinhas para o pequeno almoço das crianças se faziam por si e estava certa, portanto, que alguém pusera grande interesse naquela organização tão complicada e magnífica. Tanto pelo olhar com que Alexei Kirilovitch examinou a mesa como pelo sinal que o mordomo lhe fez e a maneira como convidou Daria Alexandrovna a escolher entre a sopa quente e a sopa fria, compreendeu que tudo aquilo se fazia e era mantido graças aos cuidados do próprio dono da casa. Ao que parecia, Ana preocupava se tão pouco com tudo aquilo como Veslovski, por exemplo. Tanto ela como Veslovski, a princesa e Vacienka eram hóspedes que gozavam alegremente os regalos que lhes tinham preparado.
Ana só era dona da casa na maneira como procurava dirigir a conversa. E essa conversa, muito difícil de manter para a dona da casa numa mesa de poucos comensais e a que se sentavam pessoas, tal como o arquitecto, pertencentes a um meio muito diferente, as quais, por mais que fizessem para não se mostrar tímidas perante um luxo a que não estavam habituadas, não podiam tomar parte muito activa na conversa geral, conseguiu Ana conduzi-la com naturalidade, graças ao seu tacto habitual, e até mesmo com prazer, como pôde observar Daria Alexandrovna.
Falaram de como Tuchkievitch e Veslovski haviam passeado os dois sozinhos no barco e aquele contou o que se passara nas últimas corridas do Iate Clube de Sampetersburgo. Mas Ana, aproveitando a interrupção, dirigiu se ao arquitecto para arrancá-lo ao seu mutismo.
- Nikolai Ivanovitch ficou muito surpreendido com o adiantamento que leva a obra desde a última vez que aqui veio - disse, referindo se a Sviajski - e eu própria, que a visito todos os dias, estou assombrada com a sua rapidez.
- Trabalha se bem com Sua Excelência - replicou o arquitecto com um sorriso (era um homem respeitoso e tranqüilo, consciente do seu valor). - Não é a mesma coisa que tratar com as autoridades provinciais. Em lugar de perder tempo com papelada, exponho o projecto ao conde e discutimo-lo em poucas palavras.
- Estilo americano - disse Sviajski, sorrindo.
- Sim, nos Estados Unidos constrói se de maneira racional...
A conversa derivou para os abusos de autoridade nos Estados Unidos, mas Ana mudou imediatamente de assunto para arrancar o administrador ao seu silêncio.
- Já viste trabalhar as novas máquinas ceifeiras? - perguntou a Daria Alexandrovna. - Tínhamos ido observá-las quando nos encontramos contigo. Fui eu a primeira a vê-las.
- E como funcionam elas? - perguntou Dolly.
- Tal qual como se fossem tesouras. É uma prancha com muitas tesourinhas.
Ana pegou, com as suas belas mãos brancas, de dedos cheios de jóias, numa faca e num garfo e mostrou como funcionavam as máquinas. Evidentemente que estava certa de que nada se percebia através da sua explicação, mas, como sabia que falava de maneira agradável e que tinha mãos bonitas, continuou a explicar:
- Parecem se mais ainda com navalhas - disse Veslovski, gracejando e sem afastar os olhos de Ana.
Esta sorriu imperceptivelmente sem responder.
- Não é verdade, Karl Fiodorovitch, que se parecem com tesouras? - perguntou, dirigindo se ao administrador.
- O ja - replicou o alemão. - Es ist ein ganz einfaches Ding(Nota 98) - e pôs se a explicar a construção das máquinas.
- É pena que não atem. Na exposição de Viena vi máquinas que atavam os molhos com um arame - disse Sviajski. - Essas máquinas são mais práticas.
- Es kommt drauf an... Der Preis vom Draht muss ausgerechnet werden(Nota 99) - e o alemão, obrigado a sair do seu mutismo, dirigiu se a Vronski: - Das lasst sich ausrechnen, Erlaucht(Nota 100) - e quis extrair do bolso um livrinho com um lápis, no qual havia uns cálculos; mas, ao lembrar se de que estava à mesa e ao observar o olhar tímido de Vronski, absteve se.
- Zu compliziert/ macht zu viel Klopot(Nota 101) - concluiu.
- Wünscht man "Dochodsf", so hat man auch Klopot(Nota 102) - exclamou Vacienka, parodiando o alemão. - J'adore l' allemand109 - acrescentou, dirigindo se a Ana com o mesmo sorriso de há pouco.
- Cessez(Nota 103) - disse Ana, meio a sério meio por graça. - Esperávamos encontrá-lo no campo, Vacili Semionovitch - acrescentou, dirigindo se ao médico, um homem de aspecto doentio. - Esteve lá?
- Estive, mas desapareci - replicou o médico com amarga ironia.
- Então fez bom exercício.
- Magnífico.
- E a velha, como está? Espero que não seja o tifo.
- Não é o tifo, realmente, no entanto está mal.
- Que pena! - disse Ana, e, cumprido que foi o seu dever de cortesia para com as pessoas de fora, dirigiu se aos seus.
- Seja como for, Ana Arkadievna, não me parece fácil construir uma máquina só com a sua explicação - disse Sviajski, gracejando.
- Mas porquê? - acudiu Ana com um sorriso. Este sorriso dava a entender que ela sabia que Sviajski notara alguma coisa de agradável na sua explicação. Esse novo rasgo de coqueteria juvenil em Ana surpreendeu desagradàvelmente Dolly.
- Em compensação - declarou Tuchkievitch -, é extraordinário o que Ana Arkadievna sabe de arquitectura.
- Sim, senhor! - exclamou Veslovski. - Ainda ontem a ouvi estar a falar de plintos e de frontões. Digo bem?
- Não tem nada de excepcional, quando uma pessoa está acostumada a ouvir pronunciar esses nomes todos os dias! Mas estou certa de que não deve fazer a mínima ideia dos materiais com que se constrói uma casa!
Daria Alexandrovna notou que, posto que Ana se mostrasse descontente com aquele tom ligeiro em que se exprimiam, ela própria e Veslovski por ele se deixavam arrastar involuntariamente.
Ao contrário de Levine, Vronski não ligava a mínima importância à tagarelice de Veslovski; em vez de a reprimir, encorajava a com gracejos.
- Vejamos, Veslovski, diga lá como se unem as pedras dos edifícios?
- Com argamassa, naturalmente.
- Bravo! E que vem a ser a argamassa?
- Assim uma espécie de pasta... não, de massa - disse Veslovski, provocando o riso de todos.
À excepção do médico, do arquitecto e do administrador, que se conservavam calados, os convivas tagarelaram com grande animação durante todo o jantar, falando disto e daquilo, ora deslizando agradavelmente ora defrontando algum obstáculo, ora zurzindo esta ou aquela pessoa sem piedade. Uma das vezes, foi Daria Alexandrovna quem se sentiu ferida, corou e de tal modo se deixou exaltar que teve receio, por fim, de ter ido longe de mais. Falando de máquinas agrícolas, Sviajski julgou se no direito de dizer que Levine considerava nefasta a introdução desses engenhos na Rússia e insurgiu se contra uma opinião tão esquipática.
- Eu não tenho a honra de conhecer esse senhor Levine - disse Vronski, sorrindo -, mas quer me parecer que ele nunca viu as máquinas que critica, ou, pelo menos, apenas viu máquinas dessas fabricadas na Rússia. De outro modo, não posso perceber o seu ponto de vista.
- É um homem com pontos de vista turcos - disse Veslovski com um sorriso, dirigindo se a Ana.
- Não me cabe a mim defender as opiniões dele - declarou Daria Alexandrovna, excitando se um pouco -, mas o que lhe posso afirmar é que Levine é pessoa muito instruída. Se aqui estivesse, saberia fazer lhes compreender a sua maneira de encarar as coisas.
- Oh, gosto muito dele e somos excelentes amigos - proclamou Sviajski, em tom cordial. - Mas desculpe me, elle est un petit peu toque(Nota 104). É de opinião, por exemplo, que o zemstvo e os juizes de paz são inteiramente inúteis e recusa se a fazer parte desses organismos.
- Aí está a nossa indiferença russa - disse Vronski, deitando no copo água gelada de uma garrafa. - Recusando nos a compreender que os direitos de que gozamos implicam alguns deveres.
- Não conheço homem que cumpra mais escrupulosamente os seus deveres - disse Daria Alexandrovna, irritada com o tom de superioridade com que Vronski falara.
- Pois eu, pelo contrário - continuou Vronski, ao que parecia ferido ao vivo pela conversa -, estou muito reconhecido a Nicolau Ivanovitch por me ter concedido a honra de me nomear juiz de paz honorário. Julgar uma pequena questão local parece me tão importante como qualquer outra coisa. E, se me nomearem vogal, sentir me ei muito lisonjeado com isso. Só assim poderei pagar os benefícios que recebo como proprietário rural. Infelizmente, não se compreende a importância que devem ter no Estado os grandes proprietários.
Dolly comparou a obstinação de Vronski à de Levine, defendendo ideias diametralmente opostas. E não pôde deixar de pensar que aquela segurança se afirmava em ambos quando estavam à mesa. Mas como era muito amiga do cunhado, dava lhe razão intimamente.
- Pelo que vejo, conde, podemos contar consigo para as eleições!
- disse Sviajski. - É preciso sair daqui alguns dias antes para chegarmos no dia 8. Se me quer dar a honra de ficar em minha casa...
- Pela minha parte - disse Ana a Dolly -, sou da opinião do teu cunhado... ainda que por motivos diferentes - acrescentou, sorrindo. - Quer me parecer que nos últimos tempos vamos tendo demasiados deveres sociais. Nos seis meses que aqui estamos, Alexei já exerceu cinco ou seis funções distintas. Au train que cela vá(Nota 105), todo o seu tempo será tomado por isso. E quando as funções se acumulam dessa maneira, receio que acabem por não passar de mera questão formal. Diga me, Nicolau Ivanovitch, quantos cargos tem o senhor? Uns vinte, naturalmente. - Ana falava em ar de gracejo, mas no tom em que se exprimia notava se certa irritação. Daria Alexandrovna, que observava atentamente Vronski e Ana, não tardou a dar por isso. Igualmente notou que no rosto de Vronski, durante aquela discussão, havia severidade e obstinação. Ao notá-lo e ao observar que a princesa Bárbara também observava Ana Arkadievna, deu se pressa em mudar de assunto, pondo se a falar das suas amizades de Sampetersburgo. Lembrou se, então, que, na sua conversa, no parque, com Vronski, este aludira, bem pouco a propósito, à necessidade que tinha de desenvolver qualquer actividade. Desconfiou que Ana e Vronski estariam em desacordo neste ponto.
O jantar, os vinhos, o serviço, tudo estava muito bem, mas tinha o carácter impessoal e essa espécie de tensão que Dolly já observara nos banquetes e nos bailes e de que estava desabituada. Tudo isso, num dia vulgar e com pessoas íntimas, lhe produziu uma impressão desagradável. Depois do jantar, ficaram por algum tempo sentados no terraço. Depois foram jogar o lawn-tennis. Os jogadores, divididos, em dois grupos, colocaram se no croquet ground, cuidadosamente alisado e nivelado, de ambos os lados da rede estendida entre pilares dourados. Dolly quis experimentar o jogo, mas não havia maneira de compreender as regras respectivas e quando, finalmente, chegou a aprendê-las sentia se exausta, preferindo ficar a fazer companhia à princesa Bárbara. O seu parceiro, Tuchkievitch, desistiu também, mas os outros jogaram ainda por muito tempo. Sviajski e Vronski eram dois bons jogadores: muito senhores de si, seguiam, de olhar atento, a bola que lhes serviam, apanhavam-na na altura precisa e devolviam na com um golpe de raqueta seguro. Veslovski, pelo contrário, excitava se de mais, mas as suas risadas, os seus gritos, a sua alegria, animavam os outros jogadores. Depois de pedir licença às senhoras, despira o redingote e a sua bela figura, o seu busto bem modelado, o seu rosto corado, a camisa branca, os seus gestos nervosos tão nitidamente se gravavam na memória que Dolly por muito tempo continuaria a ver tudo isso antes de conciliar o sono.
Durante o jogo enfadara se. Desgostava a aquela familiaridade entre Veslovski e Ana, aliás todas aquelas cenas lhe pareciam de uma afectação infantil: os adultos que entre si se consagram a distracções de crianças prestam se ao ridículo. No entanto, para não desanimar os outros e por simples distracção, depois de descansar um pouco, juntou se de novo aos jogadores e fingiu divertir se. Durante todo aquele dia teve a impressão de estar a representar no teatro com actores melhores do que ela e que ô seu contracenar defeituoso malograva a peça.
Fora a casa de Ana na intenção de passar com ela dois dias, se se sentisse bem. Mas quando anoiteceu, ainda em pleno jogo, decidiu que partiria no dia seguinte. Os cuidados de mãe que tanto a atormentavam e que tão odiosos se lhe tinham entremostrado na viagem, agora, que passara um dia sem se dedicar a eles, surgiam lhe sob outra aspecto e atraíam na.
Pela noite, depois do chá e de um passeio de barco, Daria Alexandovna entrou sozinha no seu quarto, despiu o vestido e quando principiou a pentear os poucos cabelos sentiu se muito aliviada.
A ideia de que Ana a viesse visitar parecia lhe até pouco agradável. Desejaria ficar só com os seus pensamentos.
CAPÍTULO XXIII
Na altura em que ia deitar se, apareceu Ana, já de roupão.
Durante aquele dia, Ana por várias vezes encetara uma conversa sobre os seus problemas íntimos e de todas as vezes, ditas que eram as primeiras palavras, interrompia se: "Depois falaremos de tudo isso a sós. Tenho muitas coisas para te dizer."
Agora estavam sós e Ana não sabia de que falar. Sentara se ao lado da janela e olhava para Dolly enquanto recordava mentalmente o que tinha para lhe dizer, afigurando se que lhe dissera tudo. Por fim, depois de um fundo suspiro, disse:
- Que é feito da Kitty?- perguntou, com um ar contrito. - Diz- me a verdade: está zangada comigo?
- Zangada? Não! - respondeu Daria Alexandrovna, sorrindo,
- Odeia me, despreza me.
- Oh! Não! Mas tu bem sabes que estas coisas não se perdoam.
- É certo - volveu Ana, desviando os olhos para a janela aberta.
- Mas eu não tive culpa. Quem a teve? E que é isso de se ser culpado? Que te parece? Achas possível não seres a mulher de Stiva?
- Francamente, não sei. Diz me uma coisa...
- Primeiro falemos de Kitty. É feliz? Dizem que é um homem excelente.
- Parece me pouco. Não conheço homem melhor.
- Não conheces melhor - repetiu ela, pensativa. - Pois ainda bem! Dolly sorriu:
- Fala me de ti. Precisamos de ter uma longa conversa. Falei de ti com...
Dolly não sabia como referir se a ele. Parecia lhe tão despropositado chamar lhe conde como Alexei Kirilovitch.
- Com Alexei - concluiu Ana. - Sim, bem sei... Quero que me digas francamente o que pensas de mim, da minha vida.
- Como querias que o fizesse assim sem mais nem menos? Realmente, não sei.
- Mesmo assim, faz o favor de me dizeres... Já viste o que é a minha vida. No entanto, não te esqueças de que é Verão, de que estamos rodeados de pessoas amigas. Chegámos no princípio da Primavera, vivemos aqui completamente sós, e assim continuaremos. Não desejo nada melhor. Mas supõe que ele passa a ausentar se e então imagina o que será a minha solidão... Oh! Bem sei o que tu vais dizer - acrescentou, sentando se ao lado de Dolly. - Podes ter a certeza de que não o impedirei à força. Não penso nisso. Chegou a época das corridas, os cavalos dele vão correr; pois que vá, que se divirta!... Mas que será de mim durante esse tempo?... Bom, não falemos nisso - Ana sorriu. - Então de que falaram vocês?
- De um assunto em que eu te teria falado mesmo que ele não se lhe tivesse aludido, isto é, a possibilidade de tornar a tua situação mais... regular - concluiu ela, depois de uma curta hesitação. - Tu sabes a minha maneira de ver neste particular, mas, enfim, o melhor seria o casamento.
- Isto é, o divórcio?... Sabes que a única mulher que se dignou visitar me em Sampetersburgo foi Betsy Tverskaia? Conheces, não é verdade? Cest au jond la femme la plus depravée qui existe114. Enganou o marido da maneira mais indigna com Tuchkevitch... Pois bem, Betsy deu me a entender que me não podia continuar a visitar enquanto a minha situação não estivesse regularizada... Não penses que estou a fazer comparações entre vocês as duas. Foi uma simples reminiscência... Então que foi que ele te disse?
- Que sofre por ti e por ele próprio; se isso é egoísmo, nunca vi egoísmo mais legítimo e mais nobre. Gostaria de poder legitimar a sua filha, de ser teu marido, de ter direitos sobre ti...
- Que mulher há aí que possa pertencer mais a seu marido do que eu lhe pertenço a ele? - interrogou a ela, com ar taciturno. - Sou sua escrava, podes crer!
- E sobretudo não queria ver te sofrer.
- É impossível! E depois?
- E depois, deseja a coisa mais legítima: que os seus filhos usem o sobrenome dele.
- Que filhos? - perguntou Ana, piscando os olhos e sem olhar para Dolly.
- A Any e os que vierem...
- A respeito disso, podes estar tranqüila: não terei mas filhos.
- Como podes ter a certeza?
- Não os terei, porque não quero.
E apesar da agitação em que estava, Ana sorriu ao notar a ingênua expressão de curiosidade, de surpresa e espanto que se reflectiu no rosto de Dolly.
- Depois da minha doença - julgou ela de seu dever explicar -, o médico disse me...
- Não pode ser - exclamou Dolly, abrindo desmesuradamente os olhos.
O que ela acabava de saber confundia lhe no cérebro todas as ideias e as deduções que daí tirou vieram subitamente iluminar vários pontos que até então tinham permanecido misteriosos para ela. Compreendia agora porque certas famílias não tinham mais do que um ou dois filhos. Não sonhara ela com qualquer coisa no gênero durante a sua viagem?... Alarmada com esta resposta tão simples a uma pergunta tão complicada, olhava para Ana com verdadeira estupefacção.
- N'est ce pas immoral?115 - perguntou depois de um curto silêncio.
- Imoral porquê? Ou a gravidez, com todos os sofrimentos que traz consigo, ou a possibilidade de ser uma camarada para o meu... digamos, marido - respondeu Ana, num tom que procurava fosse ligeiro.
- Claro! Claro! - exclamou Daria Alexandrovna, ao ouvir os mesmos argumentos que apresentara a si própria, mas a que não achava já a força de convicção que lhe encontrara nessa manhã.
Ana como que lhe adivinhou os pensamentos.
- Se o assunto é discutível no teu caso, no meu, de maneira alguma o é. Não sou mulher dele senão enquanto me tiver amor. E não é com isso - as suas mãos brancas esboçaram um gesto em torno do seu próprio ventre - que eu poderei alimentar o amor por mim.
Como é de regra nos momentos de emoção, as ideias e as recordações acorreram em tumulto ao espírito de Dolly. "Eu não soube atrair o Stiva", pensava ela, "mas tê-lo ia conseguido aquela que mo roubou? Nem a sua juventude nem a sua beleza impediram Stiva de a deixar, a ela também. Abandonou a e arranjou outra. Será possível que Ana possa atrair e reter com isto o conde Vronski? Se assim fosse, podia arranjar vestidos e maneiras mais atractivas e alegres. Por mais brancos que sejam os seus braços nus, por mais formosos que sejam o seu colo e o seu rosto emoldurado em cabelos pretos, sempre ele poderá encontrar coisa melhor, tal qual como acontece ao meu lastimoso e simpático marido."
Dolly nada respondeu, contentando se em suspirar. Ana percebeu que aquele suspiro traduzia desacordo, e continuou. Tinha outros argumentos ainda mais contundentes, aos quais era impossível responder.
- É de opinião que é imoral? Raciocinemos friamente, se fazes favor. Como posso eu, na minha situação, desejar mais filhos? Não falo dos sofrimentos que daí poderiam advir. Esses não os temo. Mas lembra- te de que os meus filhos terão de usar um nome emprestado, que se envergonharão dos seus pais, do seu nascimento.
- É por isso mesmo que deves pedir o divórcio. Ana não a ouviu. Queria expor até ao fim uma argumentação que tantas vezes a convencera.
- Para que tenho eu o uso da razão se a não empregar de molde a não trazer a este mundo criaturas desgraçadas?
Os argumentos eram os mesmos a que Dolly pareci ter cedido nessa manhã. Que pouco convincentes lhe pareciam agora! "Como é que alguém pode ser culpado perante seres que ainda não existem?", pensou. E de repente acudiu lhe este pensamento: "Teria sido melhor para o seu querido Gricha não ter vindo a este mundo?" Isto pareceu lhe tão estranho, tão terrível, que abanou a cabeça para dissipar a confusão de pensamentos loucos que lhe davam voltas à cabeça.
- Não sei; não, não está certo-foi a única coisa que pode dizer com uma expressão de desgosto.
Embora Dolly, por assim dizer, nada tivesse objectado àquela sua argumentação, Ana sentiu abalada a convicção em que estava.
- Sim, mas lembra te da diferença que existe entre nós duas. Para ti, trata se de saber se desejas ainda ter mais filhos; para mim, apenas se me será permitido tê-los.
Dolly compreendeu, de súbito, o abismo que a separava de Ana; existiam entre elas algumas questões sobre as quais nunca poderiam estar de acordo e acerca das quais melhor seria não falarem.
CAPÍTULO XXIV
- É precisamente por isso que se torna necessário regularizares a tua situação, caso seja possível.
- Sim, si c'est possible(Nota 106) - replicou Ana, num tom de resignada tristeza, muito diferente do tom que adoptara até então.
- Acaso é impossível o divórcio? Disseram me que teu marido estava de acordo.
- Dolly, não quero falar nisso.
- Como queiras - respondeu Dolly, impressionada com a expressão de sofrimento que contraía o rosto de Ana. - Mas não estarás a ver as coisas demasiado negras?
- Eu? De maneira nenhuma. Estou muito alegre e satisfeita, jefait même des passions(Nota 107); reparaste em Veslovski?
- Para te falar com franqueza, o tom dele não me agrada nada - disse Dolly para mudar de conversa.
- Porquê? É uma maneira de espicaçar o amor próprio de Alexei; quanto a mim, faço dessa criança o que me dá na vontade, como tu do Gricha... Não, Dolly - exclamou ela, de súbito voltando ao primeiro assunto -, não vejo tudo negro, mas procuro rien(Nota 108) ver. Tu não me podes compreender. É demasiado terrível. Procuro não pensar de maneira alguma.
- Acho que fazes mal! De vias fazer tudo o que pudesses.
- Mas que poderei eu fazer? Nada... Quem te ouvisse, pensaria que eu não penso em casar com o Alexei... Não penso noutra coisa! - exclamou ela, levantando se, o rosto em fogo, o peito agitado. E pôs se a andar de um lado para o outro, parando de vez em quando por pouco tempo. - Sim, que não penso nisso? Não há um só dia, uma só hora em que não o faça e em que me não censure por fazê-lo... Porque esses pensamentos podem acabar por me enlouquecer. Enlouquecer - repetiu.
- Quando penso nisso, não posso dormir sem morfina. Mas, bom, falemos com serenidade. Dizem me que me divorcie... Em primeiro lugar, ele não cederá. Ele está agora sob a influência da condessa Lídia Ivanovna.
Dolly endireitou se na cadeira e seguia Ana com um olhar em que se lia uma simpatia dolorosa.
- Mesmo assim, podias tentá-lo - insistiu ela com suavidade.
- Tentar! Que significa isso? - exclamou Ana, repetindo um pensamento sobre o qual já pensara, sem dúvida, e que conhecia de memória. - Isso significa que eu, que, conquanto o odeie, reconheço que sou culpada perante ele e o considero homem magnânimo, me devo rebaixar a escrever lhe... Suponhamos que fazia um esforço e me decidia a isso. Ou receberei uma resposta ofensiva ou então o seu consentimento. Suponhamos que ele consentia... - Naquele momento, Ana no extremo da casa, detivera se para arranjar qualquer coisa na cortina da janela. - Suponhamos que consente, o meu... meu filho, entregar-mo-ão? Não - continuou ela -, não me darão o meu filho. Crescerá em casa deste pai que eu deixei, onde lhe ensinarão a desprezar me. Quero que compreendas que amo estes dois seres, creio que amo tanto a um como a. outro, a Seriocha e Alexei, mas a ambos mais do que a mim mesma.
Ana voltou ao centro da casa e deteve se diante de Dolly, apertando o peito entre as mãos. Com o seu roupão branco, parecia particularmente ampla e alta. Inclinou a cabeça e pôs se a olhar, com os seus olhos húmidos e brilhantes, para Dolly, pequena, delgada e lastimosa, que tremia de emoção, na sua camisinha passajada e na sua touca de noite. - Só quero a estes dois seres, e um deles exclui o outro. Não posso reuni-los e são a única coisa de que preciso. Se não os tiver, o resto é me indiferente. Esta situação precisa de ter um fim; por isso não posso nem gosto de falar nisto. Por isso te peço que me não censures de nada nem me julgues. Tu, sendo tão pura, não podes compreender estas coisas, que a mim me fazem sofrer.
Aproximou se de Dolly, fitou a com uma expressão culposa e sentou se a seu lado, pegando lhe na mão.
- Que pensas? Que pensas de mim? Não me desprezes. Não me peço que me desprezem. Sou muito desgraçada. Se há no mundo um ser desgraçado, esse ser sou eu - disse, voltando o rosto, e pôs se a chorar.
Quando ficou só, Dolly fez as suas orações e meteu se na cama. Enquanto estivera a falar com Ana apiedara se dela com toda a sua alma; mas agora sentia se incapaz de se obrigar a pensar no seu caso. As saudades de casa e dos filhos faziam na evocar os seus com um encanto novo e especial, com um novo resplendor. Aquele seu mundo parecia lhe agora tão querido e agradável que não queria estar longe dele nem mais um dia, e resolveu partir sem falta no dia seguinte.
Entretanto, Ana de regresso ao seu quarto de toucador, pegou num copo em que deitou umas quantas gotas de medicamento, cujo principal ingrediente era a morfina. Depois de beber esse líquido, permaneceu imóvel durante algum tempo e dirigiu se ao quarto com o espírito tranqüilo e alegre.
Quando Ana entrou no quarto, Vronski fitou a atentamente. Procurava os vestígios da conversa que supunha ela tivera com Dolly enquanto estivera ausente. Mas nada lhe viu no rosto, que escondia e reprimia a sua emoção, além da beleza que, conquanto fosse a beleza a que estava habituado, não deixava de o fazer vibrar. Não quis perguntar lhe de que tinham falado, na esperança de que ela própria lho dissesse. Mas ela limitou se a dizer:
- Gostei muito que Dolly te tivesse agradado. Agradou te, não é verdade?
- Mas há muito tempo que eu a conheço, é muito boa, acho eu, mas excessivement terre à terre. No entanto, estou muito contente que tenha vindo visitar te.
Vronski pegou na mão de Ana e fitou a nos olhos com uma expressão interrogativa.
Interpretando noutro sentido esse olhar, Ana sorriu.
Na manhã seguinte, apesar de muito instada pelos donos da casa, Daria Alexandrovna dispôs se a partir. Filipe, com o seu cafetã velho e o seu gorro, no gênero do dos cocheiros de praça, apareceu com ar taciturno no carro de guarda lamas consertados, tirado por cavalos desaparelhados, e deteve se diante da entrada, coberta de areia, da casa dos Vronski.
Daria Alexandrovna despediu se com secura da princesa Bárbara e dos cavalheiros. O dia que tinham passado juntos não os aproximara. Apenas Ana estava triste: ninguém mais, sabia o muito bem, viria agora despertar os sentimentos que Dolly soubera fazer remexer na sua alma. Por mais dolorosos que eles fossem, nem por isso representavam menos o que nela havia de melhor e não tardaria muito que os seus derradeiros vestígios se desvanecessem no meio da vida que levava.
Dolly só respirou fundo quando se viu em pleno campo: curiosa de saber quais as impressões dos seus companheiros de viagem, ia interrogá-los, quando Filipe tomou espontaneamente a palavra:
- Ricaços são eles, não há dúvida, mas ainda assim as minhas bestas só tiveram três medidas de aveia. O quanto basta para não morrerem de fome! Os pobres animais já tinham rapado tudo antes do cantar do galo. Hoje em dia nas mudas vendem a aveia a quarenta e cinco copeques. Em nossa casa damos a quem for de fora toda a aveia que os seus cavalos tiverem na vontade.
- Sim, não são gente lá muito larga, não - disse o administrador.
- Mas os cavalos são bons?
- Sim, lá isso, não há que dizer, são bonitas estampas. E a comida também é boa. Mas a mim pareceu me tudo muito triste, não sei se a si, Daria Alexandrovna, lhe produziu o mesmo efeito - explicou o administrador, voltando para ela o seu belo rosto bonacheirão.
- A mim também. Achas que chegaremos lá para a noite?
- Temos de chegar.
A regressar a casa, e tendo encontrado todos muito bem e particularmente agradáveis, Daria Alexandrovna contou toda a sua viagem com grande animação: como fora bem recebida, o luxo e o bom gosto da vida dos Vronski, bem como os divertimentos que tinham, sem que alguém fosse desagradável para eles.
- É preciso conhecer a Ana e Vronski, agora conheci os melhor, para compreender como são simpáticos e comovedores - disse Dolly, com toda a sua sinceridade, esquecendo aquele sentimento vago de desgosto e de mal estar que experimentara enquanto estivera com eles.
CAPÍTULO XXV
Vronski e Ana passaram o Verão e parte do Inverno na aldeia na mesma situação e sem tornarem quaisquer decisões sobre o divórcio. Tinham decidido que não iriam a qualquer outro lado; mas, quanto mais tempo passavam sozinhos, sobretudo no Outono, sem convidados, tanto mais se davam conta de que não podiam agüentar essa vida e tinham de mudar de hábitos.
Aparentemente a vida deles era tão boa que não havia outra melhor: tinham tudo em abundância, gozavam saúde, tinham uma filha e ambos se dedicavam às suas ocupações. Mesmo sem convidados, Ana continuava a preocupar se muito consigo mesma, e também lia muito, tanto romances como livros sérios. Mandava vir todos os livros de que falavam os jornais e revistas que recebia e lia os com a profunda atenção que é apanágio dos que vivem solitários. Além disso, estudou nos livros e revistas da especialidade todas as matérias que interessavam a Vronski. Amiúde acontecia dirigir se lhe com perguntas sobre agronomia, arquitectura e até sobre problemas desportivos ou de criação de cavalos. Vronski surpreendia se com os conhecimentos e a memória de Ana e a princípio, duvidando deles, procurava uma comprovação. E Ana costumava encontrar nos livros as respostas às perguntas dele, e era a primeira a esclarecê-lo.
A instalação do hospital também interessava a Ana. Não só o ajudava, como ela própria concebera e organizara muitas coisas. Mas, de toda a maneira, a sua principal preocupação era ela própria, pelo que representava para Vronski e pelo desejo que tinha de substituir tudo o que ele deixara por ela. Vronski apreciava esse desejo - chegou a ser o único objectivo da vida de Ana -, não só de lhe agradar, mas também de o servir, embora ao mesmo tempo lhe pesassem as redes amorosas em que Ana procurava envolvê-lo. Quanto mais tempo passava, quanto mais se dava conta de estar envolto nessas redes, tanto mais desejava, não precisamente desenvencilhar se delas, mas, peio menos, demonstrar a si próprio estar delas liberto. Se não fosse pelo desejo, cada vez maior, de ser livre, de não provocar cenas sempre que ia à cidade assistir aos julgados de paz ou às corridas, Vronski ter se ia sentido completa mente satisfeito com a vida que levava. O papel que escolhera de rico lavrador, bem próprio da aristocracia russa, não só lhe quadrava sobremaneira, como, ao cabo de meio ano de tal vida, cada vez lhe dava maior satisfação. E as suas actividades que de dia para dia o atraíam mais iam de vento em popa. Apesar das grandes somas de dinheiro que lhe haviam custado o hospital e as vacas que mandara vir da Suíça, bem como tantas outras coisas, Vronski estava certo de que não dilapidava os seus bens, antes os aumentava. Quando se tratava de receitas, como, por exemplo, da venda de madeira, de trigo, de lã ou do arrendamento de terras, Vronski sabia manter se firme como uma rocha e defender o preço fixado. Nos assuntos administrativos, tanto daquela propriedade como de outras, costumava empregar sempre os processos mais simples, menos perigosos; mas mostrava se em alto grau econômico e calculista nas coisas insignificantes da economia doméstica. Apesar da astúcia e da habilidade do alemão, nunca aceitava senão as inovações mais recentes e que julgava de molde a provocarem sensação à sua roda, mas, mesmo assim apenas se decidia a fazer essas despesas quando tinha saldo em caixa e só depois de discutir asperamente o preço de cada coisa. Era evidente que com semelhante processo de administrar as suas terras não só não dissipara a sua fortuna, mas muito pelo contrário, a ia aumentado. Em Outubro deviam celebrar se as eleições da nobreza na província de Kachine, onde estavam situadas as propriedades de Vronski, Sviajski, Kosnichec, Oblonski e uma pequena parte das de Levine.
Estas eleições despertavam as atenções de todos por muitas circunstâncias e ainda pelas pessoas que tomavam parte nelas. Falava se muito das eleições e faziam se grandes preparativos. Habitantes de Sampeters burgo, de Moscovo e do estrangeiro, também, que nunca tinham tomado parte nestas eleições, transportavam se para ali no intuito de assistir a elas. Pouco tempo antes de se realizarem, Sviajski, que visitava Vozdvijenskoe com freqüência, foi a casa de Vronski.
Na véspera, Vronski e Ana tinham estado a ponto de se zangar por causa da prevista viagem. Fazia um tempo outonal, a época mais triste e aborrecida na aldeia. Vronski, preparando se para a luta, anunciou a Ana a sua partida com uma expressão tão severa e fria como ela nunca lhe vira outra. Todavia, qual não foi o seu assombro, Ana acolheu tranqüilamente a notícia, limitando se a perguntar lhe quando estaria de volta. Vronski olhou para ela atentamente, sem compreender aquela tranqüilidade. Ana sorriu ao ver o seu olhar. Vronski sabia até que ponto Ana era capaz de se fechar em si mesma e sabia que isso apenas lhe sucedia quando estava disposta a realizar qualquer coisa com independência, isto é, quando lhe não comunicava os seus planos. Vronski receava isso, mas tão grande era o seu desejo de evitar uma cena que fingiu acreditar, e em parte acreditou sinceramente, nas suas boas intenções.
- Espero que te não aborreças - disse lhe.
- Também eu - replicou Ana. - Recebi ontem uma caixa de livros de Gautier. Não, não me aborrecerei.
"Se quer adoptar este tom, tanto melhor", pensou Vronski. "Já estava farto do antigo."
E sem provocar uma explicação franca, partiu para as eleições. Era a primeira vez que se separavam sem terem uma explicação completa. Por um lado, isso preocupou Vronski, mas, por outro, pareceu lhe que seria melhor assim. "Ao princípio haverá, como agora, qualquer coisa de confuso, de misterioso; mas depois há de acostumar se. De toda a maneira, tudo lhe posso dar, menos a minha independência de homem."
CAPÍTULO XXVI
Em Setembro, Levine mudou se para Moscovo, para lá estar na altura do parto de Kitty. Já ali se encontrava há um mês sem fazer nada quando Sérgio Ivanovitch, que tinha uma propriedade na província de Kachine e queria tomar parte nas futuras eleições, decidiu deslocar se àquela província. Convidou o irmão a acompanhá-lo, pois cabia lhe o direito de votar na comarca de Selenevski. Aliás, Levine tinha em Kachine um assunto pendente de uma sua irmã, que residia no estrangeiro, relativo a uma tutela e à cobrança de certa quantia em dinheiro.
Levine mostrava se indeciso em aceitar o convite do irmão, mas Kitty, que percebia quanto ele se enfadava em Moscovo, aconselhou o a que fosse às eleições. E sem sequer o consultar, encomendou lhe o uniforme da nobreza, que lhe custou oitenta rublos. Estes oitenta rublos foram o motivo capital que determinou Levine a partir.
Havia já seis dias que se encontrava em Kachine assistindo, diariamente, às sessões e fazendo, ao mesmo tempo, diligências para resolver o caso da irmã, que não havia maneira de se solucionar. Os marechais da nobreza, todos muito ocupados com as eleições, não davam andamento a um assunto tão simples como era esse da tutela. No que dizia respeito ao outro caso - o da cobrança de certa soma -, também surgiram dificuldades. Depois de morosas diligências para anular o embargo, embora o dinheiro estivesse em condições de ser entregue, o notário, homem muito serviçal, não pôde entregar lhe o talão. Era precisa a assinatura do presidente, que estava na sessão, e não outorgava poderes a ninguém. Todas essas diligências, essas idas e vindas, as conversas com pessoas amáveis, que compreendiam o que havia de desagradável na posição do solicitante, conquanto o não pudessem ajudar, e aquela tensão, sem qualquer resultado, produziam em Levine um sentimento penoso idêntico ao da incômoda impotência que uma pessoa sente em sonhos quando quer fazer uso da força física. Notava isso mesmo com freqüência quando falava com o seu advogado, o homem mais bondoso deste mundo, o qual fazia o impossível, num grande esforço mental, para tirar Levine de apuros. "Tente o senhor", dissera lhe mais do que uma vez, "ir a este ou àquele lado. Não sei se dará resultado; em todo o caso, peco lhe que tente." E Levine lá ia, aqui e ali, experimentando o que ele lhe aconselhava. Todos se mostravam bons e amáveis, mas o obstáculo lá surgia por fim, entravando tudo. O que o apoquentava, acima de tudo, o que não podia compreender de maneira alguma era com quem estava a lutar, quem tirava proveito do facto de os seus assuntos não se resolverem. Ao que parecia, ninguém estava em condições de o saber, inclusive o próprio advogado. Se Levine o tivesse podido compreender, como compreendia que para chegar ao guichet da estação precisava de aguardar a sua vez, não se sentiria aborrecido nem contrariado. O certo é, contudo, que ninguém era capaz de lhe explicar porque existiam os impedimentos com que o assunto tropeçava.
De qualquer forma, Levine mudara muito desde o casamento. Tinha mais paciência e, ainda que não compreendesse por que estavam as coisas feitas daquele jeito, era de opinião que, sem conhecer tudo nos seus pormenores, seria injusto emitir uma opinião. Acreditava que naturalmente assim tinha de ser e procurava não se indignar.
Agora presente às eleições, e tomando parte nelas, fazia por não censurar, por não discutir e por compreender, na maneira do possível, aquelas questões, de que se ocupavam, com tanta seriedade e interesse, homens sérios e honrados, a quem respeitava. Desde que casara que se lhe haviam revelado muitos aspectos novos sérios da vida, os quais, antes, graças à maneira superficial que tinha de os encarar, lhe pareciam insignificantes. Eis por que, agora, até lhe parecia que as eleições tinham grande significado.
Sérgio Ivanovitch explicou lhe o significado e a importância da mudança que esperava das eleições. O marechal da nobreza da província, Snetkov, em cujas mãos se encontravam, de acordo com a lei, muitos assuntos sociais importantes, como, por exemplo, o das tutorias (as mesmas que davam agora a Levine tantos desgostos), o dos enormes fundos dos nobres, o dos estabelecimentos femininos, masculinos e militares de ensino (ele, um obscurantista!), o da educação popular de acordo com uma nova orientação e finalmente o do zemstvo, era um homem moldado à antiga, que dilapidara uma grande fortuna, bondoso, honrado à sua maneira, mas que de modo algum podia compreender as exigências da nova época. Apoiava sempre e em tudo os nobres, e abertamente punha obstáculos à difusão da educação popular, dando ao zemstvo, que tanta importância havia de ter, carácter de casta. Era preciso pôr no seu lugar um homem moderno, jovem, activo, completamente novo, e conduzir as coisas de maneira que se pudessem extrair dos direitos outorgados à nobreza, não como nobreza, mas como elemento do zemstvo, todas as vantagens possíveis da autonomia. Na rica província de Kachine, sempre à cabeça das demais, tinham se reunido agora grandes forças e o facto de levar o assunto como era devido, podia servir de modelo às demais províncias e a toda a Rússia. Portanto, o assunto era transcendental. Propunha para o lugar de Snetkov, Sviajski ou, ainda melhor, Nevedovski, antigo catedrático, homem extraordinariamente inteligente e grande amigo de Sérgio Ivanovitch.
O governador inaugurou a sessão com um discurso dirigido aos nobres; disse lhes que não elegessem por simpatia os que iam desempenhar aqueles cargos, mas por seus méritos e desejos de bem servir a pátria. Acrescentou que esperava que a alta nobreza de Kachine cumprisse, como nas eleições anteriores, o seu sagrado dever, justificando a grande confiança que neles depunha o imperador.
Ao terminar o discurso, o governador abandonou a sala e os nobres seguiram no, ruidosa e animadamente, alguns deles até com entusiasmo, rodeando o, enquanto vestia o agasalho de peles e falava com o presidente da nobreza. Levine, que queria tudo compreender e não perder qualquer pormenor, permanecia entre a multidão. Ouviu o governador que dizia: "Faça o favor de comunicar a Maria Ivanovna que minha mulher sente muito, mas tem de ir ao asilo." E acto contínuo os nobres vestiram as suas pelicas e todos se dirigiram alegremente à catedral. Na catedral, levantando o braço, como todos os demais, e repetindo as palavras do arcipreste, Levine jurou, em terríveis termos, cumprir o que o governador esperava de todos. As cerimônias religiosas impressionavam sempre Levine e quando se voltou, depois de pronunciar as palavras "Beijo a cruz" e de ver o tropel de homens, novos e velhos, repetindo a mesma coisa, sentou se, comovido. No segundo e no terceiro dia, tratou se dos assuntos dos nobres e do liceu feminino que não tinha, segundo explicou Sérgio Ivanovitch, nenhuma importância, e Levine, ocupado com as suas coisas, não assistiu a essas sessões. No quarto dia verificaram se as contas da província na mesa da presidência. E pela primeira vez surgiu a luta entre o partido novo e o partido velho. A comissão encarregada de fiscalizar os fundos informou a assembléia, de que as contas estavam certas. O marechal da nobreza levantou se para agradecer aos nobres a confiança que nele outorgavam e até verteu algumas lágrimas. Os nobres felicitaram no e apertaram lhe a mão. Mas nesse momento um membro do partido de Sérgio Ivanovitch disse que lhe constava que a comissão não examinara as contas, considerando isso uma ofensa ao marechal. Um dos membros da comissão cometeu a imprudência de confirmar o facto. Em seguida um homem de pequena estatura, de aspecto muito jovem e muito mordaz, disse que, sem dúvida, lhe seria agradável ao marechal da nobreza prestar uma informação sobre as contas e que a excessiva delicadeza dos membros da comissão o privava dessa satisfação moral. Então os membros da comissão retiraram as suas palavras e Sérgio Ivanovitch tratou de demonstrar logicamente que ou bem era preciso declarar que as contas tinham sido verificadas ou então que se não procedera ao seu exame, desenvolvendo esse dilema em todos os seus pormenores. A Sérgio Ivanovitch respondeu um orador do partido contrário. Depois falou Sviajski e outra vez o jovem mordaz. A discussão durou muito, sem que se chegasse a um acordo. Levine estava surpreendido com o facto de se discutir tanto aquilo, sobretudo porque, ao perguntar a Sérgio Ivanovitch se receava que tivesse havido qualquer desvio de fundos, este lhe disse:
- Oh, não! É um homem honrado. Mas é preciso acabar com esse método antigo de administrar paternalmente, como em família, os assuntos da nobreza.
No quinto dia realizaram se as eleições dos marechais de distrito. Naquele dia houve bastantes tumultos em algumas das secções de voto. Na de Selenevski foi eleito Sviajski por unanimidade, que ofereceu um jantar em sua casa.
CAPÍTULO XXVII
No sexto dia deviam celebrar se as eleições provinciais. Tanto as salas grandes como as pequenas estavam a abarrotar de nobres, que envergavam variados uniformes. Muitos tinham chegado precisamente nesse mesmo dia. Alguns deles conheciam se entre si, posto que não se vissem há muito; uns vinham da Criméia, outros de Sampetersburgo e alguns do estrangeiro. Na mesa da presidência, sob o retrato do imperador, celebravam se os debates.
Os nobres dividiam se em dois partidos, tanto na sala grande como na pequena, e através da animosidade e a desconfiança dos olhares, através da interrupção dos seus discursos, quando se aproximava alguém do banco contrário e porque alguns se afastavam, segredando para o corredor, via se que cada um dos partidos tinha os seus segredos, que escondia do outro. Pelo seu aspecto exterior, os nobres dividiam se, pronuncialmente, em duas classes: os antigos e os modernos. Os antigos, na sua maioria, vestiam uniformes velhos, abotoados, espada e chapéu, ou então uniformes da marinha, de cavalaria ou de infantaria, de militares reformados. Os uniformes dos antigos nobres eram talhados à antiga, com os ombros tufados. Via se que lhes estavam pequenos, curtos de cintura e apertados, como se os seus donos tivessem crescido. Os modernos traziam uniformes desapertados, de corte baixo, ombros largos e coletes brancos ou então uniformes de gola negra com folhas de louro bordadas, o emblema do Ministério da Justiça. Algumas jo vens vestiam uniformes da Corte, salientando se aqui e ali entre a multidão. Mas a divisão entre novos e velhos não coincidia com o agrupamento em partidos. Segundo observou Levine, alguns dos jovens pertenciam ao partido antigo e, pelo contrário, alguns dos nobres mais velhos cochichavam com Sviajski e eram, sem dúvida, partidários acérrimos do grupo novo.
Levine permanecia entre os do seu grupo, na sala pequena, onde os homens fumavam e comiam qualquer coisa, escutando o que se dizia com muita atenção, a ver se compreendia. Sérgio Ivanovitch era o eixo em volta do qual se agrupavam os demais. Naquele momento ouvia o que diziam Sviajski e Kliustov, marechal de outro distrito, que pertencia ao mesmo partido. Kliustov não queria ir pedir, em nome do seu distrito, que Snetkov se apresentasse; Sviajski procurava convencê-lo e Sérgio Ivanovitch também aprovava esse plano. Levine não compreendia por que razão se pedia ao partido contrário que votasse no marechal que eles queriam derrotar.
Stepane Arkadievitch, que acabava de comer qualquer coisa, e de beber um copo de vinho, aproximou se deles no seu uniforme de camarista, limpando a boca com um lenço de baptista perfumado.
- Ocupemos o nosso posto - disse, alisando as suíças. - Sérgio Ivanovitch!
E depois de ouvir o que diziam, apoiou a opinião de Sviajski.
- Um distrito basta. E Sviajski representa, já, evidentemente, a oposição - disse, e estas palavras todos as compreenderam, menos Levine. - Que há, Kóstia, parece que estás a gostar disto? - acrescentou dirigindo se a Levine e travando o pelo braço.
Levine teria apreciado, realmente, tomar gosto por aquilo, mas sentia .se incapaz de compreender de que se tratava e, afastando se um pouco dos que falavam, perguntou a Stepane Arkadievitch porque havia de pedir que votasse naquele marechal da nobreza.
- O sancta simplicitas! - exclamou Stepane Arkadievitch, e explicou a Levine, de modo claro e conciso, do que se tratava.
Nas últimas eleições, tendo os dez distritos da província proposto a candidatura de Snetkov para marechal da nobreza, este fora eleito por unanimidade. Desta vez dois distritos queriam abster se, o que podia levar Snetkov a desistir. Nesta hipótese, o antigo partido escolheria, talvez, outro candidato mais perigoso. Se, pelo contrário, apenas o distrito de Sviajski se abstivesse de o propor, Snetkov apresentar se ia. Inclusive elegê-lo-iam, fazendo recair adrede sobre ele as bolas, de tal sorte que o partido contrário acabaria por ver desbaratados os seus planos, e quando se apresentasse um candidato do partido novo votariam por ele. Levine não compreendeu inteiramente o plano e quis fazer lhe umas tantas perguntas, mas nesse momento todos começaram a falar ao mesmo tempo, dirigindo se para a sala grande.
- Que se passa? - Quê? - Quem? - A autorização? - A quem?
- Negam na? - Não autorizam? - Não aceitam Flerov? - Que é que estão a discutir? - Assim não admitirão ninguém. Isto é uma pouca vergonha. - A lei!
Arrastado pela turba dos eleitores, que não queriam perder um tão curioso espectáculo, Levine penetrou na grande sala onde se travava tremenda discussão entre o marechal da nobreza, Sviajski e outras personalidades importantes, à roda da mesa de honra, sob o retrato de imperador.
CAPÍTULO XXVIII
Levine estava bastante longe da mesa. Os vizinhos impediam no de ouvir: um deles tinha uma respiração rouca e as botas de outro rangiam. Apenas conseguia ouvir a suave voz do velho marechal, a voz aguda do jovem mordaz e finalmente a de Sviajski. Segundo lhe pareceu depreender, debatia se a importância de um certo artigo da lei e ao significado das palavras "ser objecto de um inquérito".
A multidão afastou se para deixar passar Sérgio Ivanovitch, que se aproximava. Este aguardou que o jovem mordaz findasse o seu discurso e disse o que opinava: o melhor era consultarem o artigo da lei, e pediu ao secretário que o fosse buscar. O referido artigo dizia que, em caso de divergência de opiniões, devia recorrer se à votação.
Sérgio Ivanovitch leu o artigo e principiou a explicar o seu significado; mas então foi interrompido por um proprietário alto, gordo, corcovado, de bigode pintado, com um uniforme acanhado, cuja gola lhe amparava a nuca. Aproximou se da mesa e dando nela com o anel gritou:
- À votação! A votação! Não temos que discutir, temos que votar!
Ouviram se nesta altura várias vozes, enquanto o alto proprietário do anel continuava a gritar, cada vez mais irritado. Mas não se ouvia o que ele dizia.
Sustentava o mesmo ponto de vista que Sérgio Ivanovitch propunha, mas era evidente que odiava este, bem como o seu partido, e esse seu sentimento de ódio comunicou se aos adversários, despertando neles resistência, conquanto não tão violenta. Ouviram se gritos, durante um momento reinou a confusão e o marechal viu se obrigado a reclamar ordem.
- À votação! À votação! Todos os nobres me compreendem. - Damos o nosso sangue pela pátria... -O monarca honra nos com a sua confiança... - O marechal não nos pode dar ordens. - Mas não se trata disso... Com licença, com licença! - É uma infâmia... Às urnas!
Gritava se por todos os lados, em vozes irascíveis e furiosas. Os olhares e os rostos eram ainda mais irascíveis e furiosos do que os gritos. Havia neles um ódio irreconciliável. Levine não podia perceber do que se tratava e surpreendia o a paixão com que se discutia dever ou não votar se a opinião relativa a Flerov. Sérgio Ivanovitch explicou lhe.
O interesse público exigia que se destituísse o antigo marechal; para se conseguir essa destituição, precisava se da maioria dos votos; para que essa maioria se obtivesse, havia que conceder o direito de voto a Flerov; para se lhe reconhecer tal direito, era mister interpretar de determinada maneira tal disposição da lei.
- Um voto só por si pode decidir da eleição e é preciso que sejamos conseqüentes e sérios quando servimos uma causa comum - concluiu Sérgio Ivanovitch.
Mas Levine esqueceu se de que assim era, e o certo é que lhe custava ver aqueles homens dignos e respeitáveis num tão desagradável estado de excitação e de ira.
Sem aguardar o final dos debates, foi refugiar se na sala pequena, onde os criados do bufete punham a mesa. Com grande surpresa sua, a presença daquela pobre gente, de aspecto plácido, serenou o instantaneamente. Era como se respirasse ar puro, e pôs se a andar de um lado para o outro, distraído, a olhar para os criados. Gostou de ver um 4eles, de suíças encanecidas, o qual, desdenhando a troça que dele faziam uns rapazes, lhes ensinava como deviam dobrar os guardanapos. Dispunha se a entabular conversa com o velho criado quando o secretário da repartição da tutela da nobreza, um velhinho baixo que sabia de cor o nome e sobrenome de todos os nobres da província, veio até ele da parte de Sérgio Inavovitch.
- Constantino Dimitrievitch, seu irmão chama-o - disse lhe ele.
- Principiou a votação.
Levine voltou à sala grande, onde lhe entregaram uma bola branca, e seguiu o irmão até à mesa em que Sviajski, com ares importantes, irônico, apanhava a barba na mão e a cheirava. Sérgio Ivanovitch introduziu a mão na urna, meteu lhe dentro a sua bola, com cuidado, e, deixando passar Levine, ali ficou. Ao aproximar se, este esquecera se por completo do que se tratava e, embaraçado, inquiriu do irmão:
- Que devo eu fazer?
Perguntou em voz baixa, e como à sua volta todos falavam, pensou que o não ouviriam. Mas os que falavam calaram se e a pergunta inconveniente ressoou no silêncio. Sérgio Ivanovitch franziu o sobrolho.
- Isso depende das convicções de cada um - replicou ele, com severidade.
Alguns sorriam. Corando, Levine introduziu à pressa a mão debaixo do pano e pôs a bola à direita, visto que a levava na destra. Ao dar pelo seu equívoco, ainda mais o agravou, dissimulando, tardiamente, a outra mão. Completamente desorientado, retirou se em grande precipitação.
- Cento e vinte e seis votos a favor e noventa e oito contra! - proclamou o secretário, que carregava nos erres.
Depois ouviram se gargalhadas; tinham encontrado na urna um botão e duas nozes.
O partido antigo, porém, não se dava por vencido. Levine ouviu que pediam a Snetkov que apresentasse a candidatura e viu que uma multidão de nobres o rodeava enquanto ele lhes dizia algo. Levine aproximou se mais. Em resposta aos nobres, Snetkov falava lhes da confiança e do carinho que lhe testemunhavam e que ele considerava imerecidos, pois, se algum mérito tinha, era o da sua fidelidade à nobreza, à qual consagrara doze anos de trabalho. Repetiu várias vezes as seguintes palavras: "Trabalhei quanto mo permitiram as minhas forças em nome da fé e da verdade. Muito os aprecio e a todos agradeço." De súbito, interrompeu se, a voz embargada pelas lágrimas, e abandonou a sala. Aquelas lágrimas eram provocadas pela consciência da injustiça que se praticava para com ele ou então pela sua dedicação à nobreza e a situação em que se encontrava, rodeado de inimigos. A verdade, porém, é que a sua comoção se comunicou à maioria dos nobres presentes e o próprio Levine foi tomado de simpatia por Snetkov.
À porta, o marechal da nobreza tropeçou em Levine. - Queira perdoar - disse lhe, como se se tratasse de um desconhecido; mas, ao reconhecê-lo, sorriu timidamente.
Levine julgou que ele lhe queria dizer qualquer coisa, mas que a emoção não lho permitia. A expressão que tinha no rosto e toda a sua figura, com o seu uniforme de calças brancas galoadas, as medalhas ao peito, andando apressadamente, fizeram lembrar a Levine um animal perseguido que se dá conta de que é desesperada a sua situação. E aquela expressão do marechal foi para ele tanto mais impressionante quanto era certo que na véspera estivera em casa dele por causa da questão da irmã e o vira em toda a sua dignidade de homem honrado e de família. A espaçosa casa, com os seus móveis antigos, os seus criados, que, não sendo elegantes, e até um pouco desalinhados, eram muito dignos e naturalmente ainda provinham dos antigos servos que não haviam mudado de senhor; a esposa do marechal, uma senhora gorda e de aspecto bonacheirão, com a sua touca de rendas e o seu xale turco, que acariciava uma simpática netinha, a filha da sua filha: o filho de Snetkov, estudante do 6o ano, que acabava de regressar da escola e cumprimentava o pai, beijando lhe a mão; as palavras afectuosas e persuasivas e os modos do dono da casa; tudo isso despertava em Levine respeito e simpatia. Agora, que aquele velho se lhe representava comovedor e digno de compaixão, apetecia lhe dizer lhe qualquer coisa agradável.
- Espero que continue a ser nosso marechal - disse lhe ele.
- Duvido - replicou este, voltando se com ar assustado. -
Estou , cansado e já sou velho. Há homens mais dignos e mais novos do que eu. Eles que trabalhem.
E Snetkov desapareceu pela porta lateral.
Chegou o momento solene. Ia repetir se a votação. Os cabecilhas de um e outro partido controlavam as bolas brancas e pretas.
Os debates, por causa de Flerov, não só deram ao novo partido a vantagem do voto deste, como, além disso, lhe permitiram ganhar tempo e puderam entretanto trazer mais três nobres, os quais, graças aos manejos do partido antigo, não tinham assistido à votação anterior. Os agentes de Snetkov haviam embriagado dois deles, que sofriam de um certo fraco pelo vinho, e tiraram o uniforme ao terceiro.
Ao inteirarem se disto, os do novo partido tiveram tempo de enviar gente sua para vestir o nobre, que ficara sem uniforme, e trazer um dos bêbedos à sessão.
- Trouxe um deles, deite lhe água para o refrescar - disse o proprietário que saíra em busca do bêbedo, aproximando se de Sviajski.
- Mas não faz mal, pode servir nos.
- Não estará bêbedo de mais? Não cairá? - perguntou Sviajski, abanando a cabeça.
- Não, agüenta se perfeitamente. Desde que lhe não façam beber mais aqui... Dei ordem na cantina para que lhe não sirvam bebidas seja sob que pretexto for.
CAPÍTULO XXIX
A sala estreita em que se fumava e comia estava cheia. A agitação era cada vez maior e lia se nos rostos das pessoas uma certa inquietação. Os que se mostravam mais excitados eram os cabecilhas, que conheciam todos os pormenores e o número de bolas, dirigentes que eram do combate em perspectiva. Os demais, como soldados antes da batalha, conquanto se preparassem para ela, nem por isso deixavam de procurar distracções. Uns tomavam qualquer coisa de pé ou sentados junto à mesa; outros fumavam, passeando de um lado para o outro pela sala e conversavam com os amigos a quem não viam há tempo.
Levine não tinha vontade de comer nem tão pouco fumava. Não queria reunir se com os seus, isto é, com Sérgio Ivanovitch, Oblonski, Sviajski e os outros, pois Vronski, com o seu uniforme de estribeiro-mor do imperador, conversava animadamente com ele. Na véspera, já o vira nas eleições e evitara falar lhe. Agora, Levine sentara se junto à janela, observando os grupos e prestando atenção ao que se dizia em volta. Sentia-se triste, especialmente porque via todas as pessoas animadas, ocupadas e inquietas e só ele e o velhinho desdentado, fardado da Marinha, que balbuciava fosse o que fosse sobre algum assunto e se sentara a seu lado, permaneciam indiferentes e inactivos.
- É um grande canalha. Já lho disse, mas não fez caso. É impossível! Não pude reuni-los em três anos - dizia num tom enérgico um proprietário baixinho, um tanto corcovado, com os cabelos luzidios caindo-lhe na gola bordada do uniforme, enquanto batia no chão com os tacões das botas novas, que naturalmente calçara especialmente para as eleições. E depois de um olhar de descontentamento a Levine, o proprietário virou se bruscamente.
- Sim, o senhor tem razão, o assunto não é muito limpo, não tem sequer nada a dizer - comentou, em voz alta, o proprietário baixinho.
Nessa altura aproximou se, pressuroso, um grupo de proprietários quê rodeavam um general gordo. Dir se ia procurarem um lugar onde trocassem impressões sem serem ouvidos.
- Como se atreve a dizer que dei ordens para que lhe roubassem as calças? Tenho a impressão de que as vendeu para beber. Pouco me importa que seja príncipe.
- Não tem o direito de dizer uma coisa dessas.
- Permita me que lhe diga, eles baseiam se no artigo da lei. A sua mulher deve estar inscrita como nobre - diziam noutro grupo.
- A lei que vá para o diabo! Falo com o coração, para isso são nobres. É preciso ter confiança.
- Excelência, vamos tomar um champagne. Outro grupo seguia um nobre que gritava e gesticulava. Era um dos que se tinham embriagado.
- Sempre aconselhei Maria Semionovna a que o arrendasse, porque não podia tirar proveito de outra maneira - dizia, numa voz agradável, um proprietário de bigodes brancos, que envergava uniforme de oficial do estado maior.
Era o proprietário com quem Levine se encontrara em casa de Sviajski. Atentando em Levine, e reconhecendo o, cumprimentou o.
- Tenho muito prazer em vê-lo. Claro! Lembro me muitíssimo bem do senhor. Encontrámo-nos o ano passado em casa do marechal da nobreza Nicolau Ivanovitch.
- Como vão as coisas lá pela sua propriedade? - perguntou
Levine.
- Sempre na mesma, perdendo dinheiro - respondeu o proprietário, detendo se, com um sorriso suave e a expressão serene e resignada de quem está convencido de que as coisas não podem ser de outra maneira. - E como está o senhor aqui na nossa província? Veio tomar parte no nosso coup d'état?. - perguntou ele, pronunciando mal, mas com segurança, as palavras francesas.
- Reuniu se aqui toda a Rússia: camaristas e quase ministros - acrescentou, apontando para a figura representativa de Stepane Arkadievitch, que, com o seu uniforme de camarista, de calças brancas, passeava com um general.
- Devo confessar lhe que compreendo mal o significado das eleições da nobreza - disse Levine.
O proprietário olhou para ele.
- Que é que há que entender nisto? Não tem sentido nenhum. É uma instituição em decadência, que continua a mover se graças à força da inércia. Repare nos uniformes: já não há mais nobres, são todos funcionários.
- Então, porque está o senhor aqui? - perguntou Levine.
- Em primeiro lugar, por hábito. Depois é preciso manter as nossas relações. Também há certa obrigação moral. E, para falar verdade, no meu próprio interesse. O meu genro quer apresentar a sua candidatura. Não é homem rico e preciso ajudá-lo. Em compensação, por que virão aqui estes senhores? - disse, apontando para o jovem mordaz, que falara na mesa presidencial.
- É a nova geração da nobreza.
- Sim, a nova geração, mas não são nobres. São proprietários, porque adquiriram terras, mas nós, por nosso lado, nós herdámo-las. Eles, como nobres, atacam se a si mesmos.
- Não disse que era uma instituição caduca?
- Evidentemente; mas, seja como for, é preciso tratá-la com mais respeito. Por exemplo, Snetkov... Sejamos bons ou maus, há milhares de anos que existimos. Se o senhor quiser arranjar um jardim diante da sua casa, não vai deitar abaixo as árvores centenárias que aí haja... Ainda mesmo que fossem contorcidas e velhas não as cortaríamos para plantarmos um canteiro de flores, pelo contrário, trataríamos de dispor os canteiros de tal sorte que não tivéssemos de sacrificar as árvores. Uma árvore dessas não pode fazer se num ano - disse, circunspecto, e imediatamente mudou de assunto. - E como vão as coisas lá nas suas terras?
- Regularmente. Tenho conseguido uns cinco por cento.
- Sim; mas não conta nisso o seu trabalho, que também vale dinheiro. Posso dizer lhe que eu, antes de me dedicar à agricultura, ganhava três mil rublos como funcionário. Agora trabalho mais do que nessa altura, e tal como o senhor só consigo obter cinco por cento, e graças a Deus. O meu trabalho fica me de graça.
- Por que continua com um prejuízo tão evidente?
- O hábito, cavalheiro, o hábito! Que havemos de fazer? E por outro lado, sabemos que não pode ser de outro modo. E mais - acrescentou, apoiando se ao peitoril da janela, já animado pela conversa.
- Menão tem gosto nenhum pela terra. Sem dúvida vem a ser filho de um sábio. E aqui tem como eu não tenho quem continue o meu trabalho. E no entanto trabalho sempre. Este ano plantei um pomar.
- Sim, sim, é a pura verdade - replicou Levine. - Também eu verifico que não tenho razão para cultivar as minhas terras, e no entanto continuo a cultivá-las... Sente se uma espécie de obrigação para com a terra.
- Pois é verdade - continuou o proprietário. - Veio visitar me um comerciante, vizinho meu, e saímos a dar uma volta pelo quintal e pelo jardim. Pois quer saber o que ele me disse? "Os meus cumprimentos, Stepane Vacilievitch, vejo que conduz bem a sua barca: mas eu, no seu lugar, deitava abaixo aquelas tílias, em plena seiva, como é natural. Tem ali bem um milhar delas e cada uma delas lhe daria madeira suficiente para duas vigas de isbá. Hoje é coisa que está a ser muito precisa."
- E com esse dinheiro podia comprar gado ou terras a bom preço e arrendá-las aos camponeses, concluiu, sorrindo, Levine, que há muito conhecia aquele gênero de cálculos. - E assim poderia chegar a fazer fortuna, enquanto nós, o senhor e eu, nos contentamos com que Deus nos permita conservar o que temos para o deixarmos intacto aos nossos filhos.
- Ouvi dizer que o senhor é casado.
- Sou - replicou Levine, com orgulho e satisfação. - Não lhe parece estranho que passemos a vida assim amarrados à terra como as antigas vestais ao fogo sagrado que eram obrigadas a manter?
O velho proprietário esboçou um sorriso, por sob os seus bigodes brancos.
- Entre nós está o nosso amigo Nicolau Ivanovitch e agora o conde Vronski, que se fixou por estes sítios. Querem organizar uma indústria agrícola, mas até à data isso não lhes serviu se não para lhes consumir o capital.
- Mas porque não havemos nós de nos fazer comerciantes? Porque não derrubarmos nós as nossas árvores para fazer madeira? - perguntou Levine, voltando ao pensamento que o assaltara antes.
- Porque, como o senhor acaba de dizer, temos de manter o fogo sagrado. E depois, que quer, vender árvores não é mister de nobres. Há um espírito de casta que nos diz o que se deve e o que se não deve fazer. Com o camponês ocorre o mesmo; às vezes, já o tenho notado, quando o camponês é de boa cepa arrenda todas as terras que pode. Por pior que seja a terra, continua a lavrar. Também o faz sem cálculos, em puxa perda.
- Exactamente como nós - disse Levine. - Tive muito prazer em cumprimentá-lo - acrescentou, ao ver que se aproximava Sviajski.
- Não o tornei a ver depois do nosso encontro em sua casa ano passado - disse o velho, voltando se para o recém chegado. - Temos estado a falar de coração nas mãos.
- Quê? Estiveram a criticar os novos usos e costumes? - perguntou Sviajski, risonho.
- Qualquer coisa parecida.
- Estivemos a desabafar.
CAPÍTULO XXX
Sviajski travou do braço de Levine e conduziu o até junto do seu grupo.
Agora já lhe não era possível evitar Vronski, o qual, entre Sérgio Ivanovitch e Stepane Arkadievitch, aguardava que ele se aproximasse.
- Muito prazer - disse, estendendo a mão a Levine. - Acho que já nos encontrámos em casa de... da princesa Tcherbatski.
- É verdade. Lembro me muito bem do nosso encontro - replicou Levine, corando muito. E logo se voltou para o irmão e se pôs a conversar com ele.
Vronski teve um breve sorriso e continuou a tagarelar com Sviajski, ao que parecia sem qualquer desejo de entabular conversa com Levine. Mas este, enquanto falava com o irmão, voltava se a cada passo para Vronski, procurando dizer lhe alguma coisa com que pudesse atenuar a sua falta de polidez para com ele.
- De que se trata agora? - perguntou, voltando se para Sviajski e para Vronski.
- De Snetkov. É preciso que se demita ou que aceda - respondeu-lhe Sviajski.
- E ele está de acordo com isso?
- É precisamente do que se trata, ainda se não decidiu - explicou Vronski.
- E se ele se negar, quem se apresentará? - perguntou Levine, olhando para Vronski.
- Quem quiser - replicou Sviajski.
- O senhor, por exemplo?
- Nunca ! - exclamou Sviajski, corando e relanceando um olhar inquieto ao vizinho de Sérgio Ivanovitch, em que Levine reconheceu o jovem mordaz.
- Então quem? Nievedovski - inquiriu Levine, sentindo que se aventurava por um terreno perigoso.
Mas esta pergunta foi ainda mais inoportuna. Nievedovski e Sviajski disputavam entre si a candidatura.
- Não penso apresentar me de maneira alguma - respondeu o jovem mordaz.
Era Nievedovski. Sviajski apresentou se a Levine.
- Quê? Também principias a apaixonar te por isso? - perguntou Stepane Arkadievitch, guiando um olhar a Vronski. - É uma espécie de corrida de cavalos. Deviam instituir se apostas.
- Sim, é de apaixonar, como toda e qualquer luta - aprovou Vronski, de sobrancelhas franzidas e apertando os fortes maxilares.
- Este Sviajski é um espírito prático. Vê tudo com uma clareza...
- Realmente - confirmou Vronski, distraído.
Houve um silêncio, durante o qual para ver em qualquer sentido, Vronski dirigiu o seu olhar para Levine, mirando lhe os pés, o uniforme e depois a face. Ao ver lhe, porém, os olhos taciturnos fitos nele, disse por dizer;
- Como é que se compreende que vivendo o senhor sempre na aldeia não seja ainda juiz de paz? Não lhe vejo o uniforme.
- Porque acho absurda a instituição dos juizes de paz - replicou Levine, carrancudo, embora tivesse aguardado uma ocasião de dirigir a palavra a Vronski na esperança de reparar a atitude grosseira que tivera.
- Pois eu sou de opinião inteiramente oposta - replicou este, com tranqüilidade e surpresa.
- Para que hão de eles servir? - interrompeu Levine. - Em oito anos apenas tive um processo, e acabaram por julgá-lo ao invés. Tive de recorrer ao advogado, que me custou quinze niblos, para resolver um assunto que não valia dois.
E Levine contou que um mujique roubara farinha ao moleiro e quando este o censurara pela sua conduta, o mujique apresentara queixa contra ele, acusando o de difamação. Tudo isto era inoportuno e ridículo, e Levine dava se conta disso enquanto o ia referindo.
- Oh, que homem tão original! - exclamou Stepane Arkadievitch, com o seu sorriso de amêndoas doces. - Mas se nós fôssemos ver o que se está a passar? Parece me que já se vota.
E separaram se.
- Não percebo como se pode ser a tal ponto privado de tacto político - disse Sérgio Ivanovitch quando ficou só com o irmão. - Nós, os russos, carecemos de tacto. Snetkov é nosso adversário, e tu pões te a dizer lhe amabilidades. O conde Vronski é nosso aliado, e tu trata lo com sobranceria... Para falar verdade, não tenho nenhum desejo de privai com ele, acabo mesmo de não aceitar um convite que ele fez para jantar. Mas para que fazer dele um inimigo?... Depois fazes perguntas indiscretas a Nievedovski. Isso não está certo.
- Oh! Não percebo nada. Tudo isto são tolices - replicou Levine, cada vez mais taciturno.
- É possível, mas quando te metes nas coisas, embrulhas tudo.
Levine nada respondeu e entraram os dois na sala grande.
Embora o marechal da nobreza da província adivinhasse no ambiente a fraude que se preparava e embora nem todos lhe tivessem pedido que apresentasse a sua candidatura, decidiu fazê-lo. Após o silêncio que se fez na sala, o secretário declarou em voz alta que ia proceder se à votação, para a presidência da nobreza, do nome do comandante de cavalaria, Mikail Stepanovitch Snetkov,
Os marechais de distrito levantaram se das suas mesas respectivas e foram instalar se com as urnas que continham as bolas na mesa de honra. E as eleições principiaram.
- Põe a bola à direita - soprou Stepane Arkadievitch a Levine, quando este se aproximou da mesa na companhia do irmão. Mas Levine, que se tinha esquecido das explicações complicadíssimas de Sérgio Ivanovitch, julgou que se tratava de um erro de Oblonski: pois Snetkov não era adversário? Diante da própria urna passou a bola da sua mão direita para a sua mão esquerda e votou tão ostensivamente à esquerda que um eleitor que o estava a observar franziu o sobrolho: era um cavalheiro que se dedicava à arte de adivinhar os votos e a sua penetração encarava desdenhosamente manobra tão evidente.
Todos se calaram e daí a pouco ouvia se o ruído das bolas que estavam a contar. Depois uma voz proclamou o número de bolas a favor e contra.
Snetkov fora eleito por uma maioria considerável de votos. Todos se precipitaram para as portas com grande ruído. Snetkov apareceu e os nobres rodearam no para o felicitarem.
- Então acabou? - inquiriu Levine do irmão.
- Acaba de principiar, pelo contrário - respondeu lhe, sorrindo Sviajski, em vez de Kosnichev. - O candidato à presidência pode obter um número de votos superior.
Levine voltara esquecer esta subtileza. E isso precipitou o numa espécie de melancolia. Julgando se inútil, voltou para a sala pequena, onde a presença dos criados o restituiu à serenidade. O velho ofereceu lhe os seus préstimos, propondo lhe que comesse alguma coisa, e Levine acedeu. Depois de comer uma costeleta com feijão branco e de conversar com o criado velho acerca dos antigos amos deste, Levine, que não queria voltar para a sala onde se sentia tão mal, foi dar uma volta pelas tribunas.
As tribunas estavam cheias de senhoras elegantes, que se debruçavam sobre a balaustrada, procurando não perder uma só palavra do que se dizia em baixo. Ao lado das senhoras, sentados ou de pé, viam se advogados e janotas, professores do ensino secundário e oficiais. Só se falava das eleições. Alguns punham em evidência o interesse dos debates, outros referiam se à extrema fadiga do marechal, e Levine ouviu uma senhora dizer para um advogado.
- Estou muito contente por ter ouvido Kosnichev. Vale a pena ficar se sem jantar para se ouvir um discurso destes. É magnífico! Que bem se ouvia! Nenhum dos senhores fala assim no tribunal de justiça. Só Maidel, e está muito longe de ter a eloqüência de Kosnichev.
Levine encontrou um lugar livre ao pé da balaustrada e, debruçando se, pôs se a olhar e a ouvir.
Os nobres estavam sentados, divididos em distritos por teias. No centro da sala havia um homem de uniforme, que, em voz alta e aguda, proclamou:
- O comandante de cavalaria do estado maior, major Avgueni Ivanovitch Apuktine, apresentou a sua candidatura para a presidência provincial da nobreza.
Reinou silêncio, um silêncio sepulcral, e depois ouviu se uma voz débil, de pessoa idosa.
- Recusa.
- Candidatura do conselheiro áulico Piotre Petrovitch Boll - disse, novamente, a mesma voz anterior:
- Recusa! - respondeu uma voz jovem e rangente. Voltou a ouvir se outro nome e de novo a palavra "recusa". Assim decorreu cerca de uma hora. Levine, encostado à balaustrada, olhava e ouvia.
Ao princípio pareceu assombrado e fazia por compreender o que aquilo significava, mas depois, persuadido de que não seria capaz de compreender, principiou a aborrecer se. E ao lembrar se da inquietação e da irritação que vira em todos os rostos, sentiu se triste, resolveu ir se embora e abandonou a tribuna. Ao passar pelo vestíbulo, deparou se com um colegial que passeava de um lado para o outro, muito triste e com os olhos inchados de chorar. Na escada viu uma senhora que corria, veloz, com os seus sapatos de salto alto, seguida de um buliçoso substituto de fiscal.
- Eu bem lhe tinha dito que chegaríamos a tempo - dizia o substituto de fiscal, no momento em que Levine se afastava para deixar passar a senhora.
Levine encontrava se já na escada da saída principal e dispunha se a retirar do bolso do colete o número do guarda roupa para levantar o agasalho de pele, quando o secretário veio até ele.
- Constantino Dimitrievitch, faça favor, estão a votar.
A despeito da sua categórica recusa, Nievedovski acabara por aceitar a candidatura.
O secretário bateu à porta da sala grande, que estava fechada; a porta abriu se, deixando passar dois proprietários de rosto afogueado.
- Já não podia mais! -exclamou um deles. Atrás dos proprietários, apareceu o rosto do marechal da nobreza: a sua fisionomia transtornada fazia pena.
- Tinha te proibido que deixasses sair quem quer que fosse! - gritava ele para o contínuo.
- Mas não que deixasse entrar, Excelência!
- Meu Deus! - exclamou o marechal da nobreza, suspirando profundamente, e, inclinando a cabeça, dirigiu se, em passo fatigado, para o centro da sala, direito à mesa eleitoral.
Como se esperava, Nievedovskoi foi efeito presidente provincial da nobreza por maioria de votos. Muitos estavam contentes, satisfeitos e sentiam se felizes, não poucos chegavam, mesmo, ao entusiasmo; outros mostravam se descontentes. O antigo marechal da nobreza caíra num desespero que não era capaz de esconder. Quando Nievedovski se dispunha a abandonar a sala, a multidão rodeou o, acompanhou o com entusiasmo, da mesma maneira que seguira o governador que inaugurara as eleições e tal qual como tinha seguido Snetkov quando fora eleito.
CAPÍTULO XXXI
O novo presidente da nobreza e muitos dos adeptos do partido vitorioso jantaram naquela noite em casa de Vronski.
Vronski assistira às eleições porque se aborrecia no campo, porque queria mostrar a Ana os seus direitos à liberdade, porque desejava ser agradável a Sviajski, que lhe prestara grandes serviços aquando das eleições do zemtsvo e, acima de tudo, porque pretendia desempenhar as obrigações que a si próprio se impunha a título de grande proprietário. Nunca esperava que as eleições viessem a interessá-lo àquele ponto e que nelas desempenhasse um papel de tanto êxito. Conquistara a simpatia geral e via perfeitamente que todos contavam já com ele. Esta súbita influência era devida ao nome que usava e à fortuna de que dispunha; à bela casa em que vivia na cidade e que lhe era cedida pelo seu velho amigo Chirkov, um financeiro que fundara em Kachine um banco assaz próspero; ao excelente cozinheiro que trouxera consigo da aldeia; à sua intimidade com o governador, um dos seus antigos camaradas e seu protegido; mas sobretudo às suas maneiras simples e encantadoras, que lhe granjeavam simpatias gerais, a despeito da reputação de altivez de que gozava. Em suma, à excepção desse insensato que achara por bem casar se com Kitty Tcherbatski e que acabara por lhe debitar à propôs de botte122, uma série de tolices, todos aqueles que o tinham conhecido durante a sessão pareciam dispostos a testemunhar lhe as suas homenagens e a atribuir lhe o êxito da candidatura de Nievedovski. Sentia um certo orgulho em reconhecer, de si para consigo, que dentro de três anos, se entretanto estivesse casado e se lhe desse para aí, seria ele quem disputaria a próxima candidatura, exactamente como outrora, depois de aplaudir a vitória do seu jóquei, resolvera ele próprio disputar as corridas.
Por enquanto era a vitória do jóquei que estavam a celebrar. Vronski ocupava a presidência da mesa. A sua direita, sentava se o governador, jovem general do séqüito do czar, que cortejava os nobres, mas que para Vronski era apenas o velho camarada Maslov - Katka, que assim era conhecido no Corpo de Pajens - um protegido seu de outros tempos e a quem ele procurava mettre à l'aise123. A sua esquerda, sentava se Nievedovski, com o seu rosto jovem, impassível e mordaz, e a quem Vronski tratava com todas as atenções.
Sviajski fazia das tripas coração, tentando esquecer o seu fracasso. Outrossim, não reconhecia esse fracasso, como se depreendia do que dissera, levantando a sua taça e brindando por Nievedovski: teria sido impossível encontrar melhor representante para a nova direcção que devia congraçar a nobreza. Por isso mesmo todos os homens honrados apoiavam e festejavam a eleição.
Stepane Arkadievitch também estava contente por poder passar o tempo de maneira tão agradável e por ver todas as pessoas tão satisfeitas. Durante o opíparo jantar recordaram se os vários episódios das eleições. Sviajski parodiou còmicamente o discurso lamuriento do antigo marechal da nobreza e, dirigindo se a Nievedovski, aconselhou o a que escolhesse outra forma melhor, mais complicada do que a das lágrimas, para o exame à tesouraria. Outro nobre má-língua referiu que Snetkov, que contava celebrar com um baile a sua reeleição para marechal da nobreza, mandara vir lacaios de calção e meia, os quais iam ficar agora desempregados, a não ser que "Sua Excelência" estivesse disposto a fazer o mesmo. Tratando Nievedovski a cada passo por "Excelência", todos sentiam a mesma satisfação que se tem quando num casamento se trata a noiva por "Minha Senhora". O novo marechal da nobreza fingia não só que lhe era indiferente a nomeação de que fora alvo, mas que até a menosprezava; a verdade, porém, é que não havia dúvida que se sentia feliz e se reprimia para não dar largas ao seu entusiasmo, pouco conveniente naquele meio novo e liberal em que se encontrava.
Durante o jantar foram enviados alguns telegramas a pessoas interessadas na marcha das eleições. Stepane Arkadievitch, que estava muitíssimo alegre, enviou também um a Daria Alexandrovna concebido nestes termos: "Nievedovski eleito por vinte votos. Felicitações. Comunica o."
Oblonski ditou o telegrama em voz alta e disse: "É preciso dar lhes uma alegria " Em compensação, Daria Alexandrovna, ao recebê-lo, limitou se a suspirar, lamentando o rublo gasto e compreendeu que o marido lho enviara depois de um jantar. Conhecia a fraqueza de Stiva de
fairejouer le télégraphe(Nota 109) depois dos jantares.
Tudo, pratos e vinhos estrangeiros, resultou muito digno, simples e alegre. Aquele grupo de vinte pessoas fora escolhido por Sviajski, entre homens professando as mesmas ideias liberais, de iniciativas novas e ao mesmo tempo inteligentes e honrados. Brindou se alegremente pelo novo presidente provincial da nobreza, pelo director do banco, bem como pelo "nosso amável anfitrião".
Vronski estava contente. Não esperava encontrar na província um ambiente tão agradável.
No fim do jantar a alegria foi maior ainda. O governador pediu a Vronski que assistisse ao concerto em benefício dos irmãos eslavos, organizado peja mulher, que muito desejava conhecê-lo.
- Depois haverá baile e verás as nossas "belezas" locais. Digo te que vale a pena.
- No in my Une(Nota 110) -respondeu Vronski sorrindo, pois gostava muito daquela expressão; prometeu, no entanto, que iria.
Momentos antes de se levantar da mesa, quando todos estavam a fumar, o criado de quarto de Vronski trouxe lhe uma carta numa bandeja.
- Chegou de Vozdvikenskoi, por um próprio - disse ele num tom importante.
- É espantoso como se parece com o substituto do fiscal Sventitski - disse em francês um dos convivas, referindo se ao criado de quarto, enquanto Vronski lia a carta de sobrecenho carregado. A carta era de Ana. Ainda a não lera e já sabia o que dizia. Convencido de que as eleições demorariam apenas cinco dias, prometera lhe voltar sexta feira. Era sábado e Vronski tinha a certeza de que aquela carta transbordava de censuras por ele não ter voltado para casa no dia prometido. Naturalmente a carta que lhe escrevera na véspera ainda não lhe chegara às mãos. O conteúdo da carta, efectivamente, era esse mesmo que Vronski imaginara, mas a sua forma, inesperada e particularmente desagradável:
Any está muito doente, o médico diz que talvez se lhe declare uma pneumonia. Sozinha perco a cabeça, A princesa Bárbara, em vez de ajudar, apenas serve para estorvar. Esperei te antes de ontem e ontem, e agora mando te esta carta para saber onde estás e o que fazes. Pensei ir eu própria, mas desisti, certa de que isso te desagradaria. Responde-me qualquer coisa para eu saber o que hei de fazer.
A criança estava doente e Ana pensara em vir ela própria? Mesmo com a filha doente era capaz de se mostrar tão hostil. O contraste entre a inocente alegria das eleições e aquele amor sombrio e penoso a que tinha de regressar confrangeu Vronski. Mas era preciso fazê-lo, e naquela noite regressou a casa no primeiro comboio.
CAPÍTULO XXXII
As cenas que Ana lhe fazia de cada vez que ele se ausentava só podiam agastar Vronski. Percebera isso e a si próprio prometera, à hora da partida para as eleições, suportar estòicamente a separação. Porém, o olhar frio e o tom imperioso em que ele lhe anunciara a sua resolução magoara a, e ainda ele não saíra de casa já ela não sabia como dominar se. Na solidão pôs se a comentar esse olhar com que ele lhe significara a sua independência e interpretara o, como sempre, num sentido humilhante para ela. "Claro, ele tem o direito de se ausentar quando lhe apetecer... e até mesmo de me abandonar por completo. Não tem ele, de resto, todos os direitos enquanto eu não tenho nenhum?... É pouco generoso da sua parte dar mo a entender... Mas como me deu ele a entender isso? Por um olhar duro?... É uma razão assaz vaga. No entanto, ele não me olhava assim outrora, e isto só quer dizer que o seu amor por mim arrefeceu..."
Embora convencida desse arrefecimento no amor de Vronski, Ana não se julgava capaz de remediar esse mal senão oferecendo lhe a ele um amor cada vez mais ardente e encantos sempre renovados. Aliás, só as ocupações múltiplas durante o dia e as doses freqüentes de morfina durante a noite eram capazes de amortecer o medonho pensamento que a torturava: um dia, talvez, Vronski deixaria de a amar, e então que seria dela? Tanto pensara nestas coisas que acabara por compreender que lhe restava ainda uma salvação: o casamento, e decidiu ceder aos primeiros argumentos que Stiva ou ele lhe apresentassem a favor do divórcio.
Cinco dias decorreram nestes transes; ia iludindo a sua angústia com passeios, conversas com a princesa, visitas ao hospital, leituras intermináveis. Mas, no sexto dia, ao ver o cocheiro voltar sozinho da estação, sentiu que as forças a abandonavam. Entretanto, a filha adoecera, mas com tão pouca gravidade que nem isso conseguira distraí-la; de resto, embora ela lhe desse cuidados, o certo é que não podia fingir sentir por essa criança sentimentos que não experimentava realmente. Quando chegou a noite aumentaram os terrores que sentia; convencida de que Vronski fora vítima de qualquer acidente, quis ir ao seu encontro, mas, reprimindo se, mandara lhe por um portador uma carta incoerente, que não teve sequer coragem de reler. No dia seguinte, pela manhã, a chegada da carta de Vronski fê-la arrepender se da impaciência que mostrara: como iria ela suportar a severidade do olhar de Vronski quando ele a fitasse depois de saber que a doença de Any não fora de gravidade? Apesar de tudo, o regresso dele era para ela uma grande alegria: ainda que ele sentisse quanto era pesada a sua cadeia, a verdade é que lá estaria, e ela não o perderia de vista.
Sentada ao pé do candeeiro lia o último livro de Taine enquanto lá fora soprava o vento em rajadas e apurava o ouvido ao menor ruído. Depois de por várias vezes ter ouvido mal, ouviu distintamente a voz do cocheiro e o rodar da carruagem junto do peristilo. A princesa Bárbara, que se entretinha a fazer uma paciência, também ouviu. Ana levantou se; não ousava descer a escada, como o fizera já por duas vezes, e, corada, confusa, apreensiva quanto ao acolhimento que iria ter, deteve se. Todas as suas susceptibilidades se haviam desvanecido; agora só tinha a recear uma coisa: o descontentamento de Vronski e, recordando-se subitamente de que a pequenina estava muitíssimo melhor desde essa manhã, pareceu querer lhe mal por se haver restabelecido exactamente na altura em que ela enviara aquela carta. Porém, pensando que ia tornar a vê-lo, em carne e osso, todos os outros pensamentos desapareceram e quando o som da voz de Vronski veio até ela uma grande alegria se apoderou de si: correu ao encontro dele.
- A Any como está? - perguntou ele, inquieto, do fundo da escada, enquanto um criado lhe descalçava as botas forradas.
- Melhor.
- E tu? - perguntou ele, sacudindo os flocos de neve que se lhe haviam introduzido na pelica.
Ana tomou lhe uma das mãos entre as suas e puxou a para si, sem desfitar dele os olhos.
- Bem, ainda bem - disse Vronski, desatento ao vestido que ele sabia ter sido expressamente escolhido para o receber.
Estas atenções agradavam lhe, mas agradavam lhe há muito já; e no rosto transpareceu lhe essa expressão de uma imobilidade severa que Ana tanto receava ver lhe.
- Estou bem. E tu, como estás? - insistiu ele, beijando lhe a mão, depois de enxugar com o lenço a barba húmida.
"E o mesmo", disse Ana de si para consigo, "contanto que esteja aqui. "ando aqui, não pode, não se atreve a não me amar."
O serão passou se alegremente na presença da princesa, que se queixara de Ana, que tomara morfina.
- Que havia eu de fazer? Não conseguia dormir... Sempre, sempre a pensar. Quando ele está, quase nunca a tomo.
Vronski contou o que se passara nas eleições e Ana soube levá-lo, habilmente, a falar do que lhe agradava: dos seus próprios êxitos. Por sua vez, ela contou lhe tudo o que lhe podia interessar a respeito da casa. E tudo o que lhe disse eram coisas que sabia serem lhe agradáveis.
Pela noite adiante, quando ficaram sós, Ana, julgando ter de novo tomado inteira posse dele, procurou fazê-lo esquecer a impressão desagradável que lhe causara a carta que escrevera.
- Confessa - disse lhe ela - que não ficaste nada contente com o meu bilhete e que não acreditaste nele.
- É verdade - replicou Vronski, e não obstante a ternura que lhe testemunhava, Ana compreendeu que ele não lhe perdoaria. - A tua carta era tão estranha: estavas inquieta por causa da Any e, no entanto, falavas me em ires ter comigo.
- Uma e outra coisa eram verdadeiras.
- Não duvido.
- Duvidas, sim; bem vejo que estás zangado.
- De maneira alguma. Apenas me contraria que não queiras reconhecer que existem obrigações...
- Que obrigações? A obrigação de assistir a um concerto?
- Não falemos mais nisso.
- Por que não havemos nós de falar mais nisso?
- Apenas quero dizer que se podem apresentar deveres imperiosos. Agora, por exemplo, vou ter que ir a Moscovo tratar de assuntos da casa... Oh! Ana, por que és tão irascível? Acaso ignoras que não posso viver sem ti?
- Se é assim - volveu lhe Ana, mudando subitamente de tom -, se chegas hoje para partires amanhã, se estás cansado desta vida...
- Ana, não sejas cruel. Bem sabes que estou pronto a tudo te sacrificar...
Já o não ouvia.
- Quando fores a Moscovo, irei contigo... Não fico aqui sozinha. Vivamos juntos ou então separemo-nos.
- Não quero senão viver contigo, mas para isso é preciso...
- O divórcio? Seja. Vou escrever lhe. Não posso continuar a viver assim... Mas irei contigo a Moscovo.
- Dizes isso em ar de ameaça: mas é isso mesmo que eu desejo; não me separar de ti - comentou Vronski, sorrindo. No entanto, o seu olhar continuava glacial e mau, como o de um homem exasperado por uma perseguição. Ana compreendeu o que esse olhar queria dizer e a impressão que nesse momento sentiu nunca mais se lhe apagaria da memória.
Ana escreveu ao marido a pedir lhe o divórcio, e no fim de Novembro, depois de se separar da princesa Bárbara, que se via obrigada a regressar a Sampetersburgo, foi instalar se em Moscovo com Vronski.
SÉTIMA PARTE
CAPÍTULO I
Havia mais de dois meses que os Levines viviam em Moscovo. Tinha passado já o prazo em que, segundo os cálculos das pessoas entendidas no assunto, Kitty deveria dar à luz, sem que nada fizesse prever o parto para mais breve que dois meses antes. Tanto o médico como a parteira, Dolly, a mãe, e sobretudo Levine, não podiam pensar sem horror naquele acontecimento e começavam a sentir-se inquietos e impacientes. Apenas Kitty continuava serena e feliz.
Agora percebia claramente estar a nascer nela um novo sentimento de amor para com a criança que havia de chegar - e que em parte já existia nela - e nisto se compungia. Nessa altura, a criança já não era uma parte do seu corpo, mas às vezes chegava a viver por si mesma, independentemente da mãe. Amiúde lhe causava dores; mas à mistura com isso, apetecia-lhe rir com uma alegria nova e estranha.
Todos aqueles a quem amava estavam a seu lado e eram todos tão bons para ela, cuidavam tanto dela e faziam-lhe a vida tão agradável que, se não soubesse que aquele estado tinha de acabar dentro em pouco, não teria aspirado a existência melhor nem mais grata. A única coisa que fazia perder o encanto a essa vida era o facto de o marido não ser como ela gostava dele e como costumava mostrar-se na aldeia.
Kitty apreciava o tom tranqüilo, carinhoso e acolhedor que Levine tinha no campo. Na cidade andava constantemente inquieto e alerta, como se receasse que alguém o ofendesse e sobretudo que a ofendessem a ela, Kitty. Lá na aldeia, sentindo-se no seu ambiente próprio, nunca se precipitava nem nunca estava ocioso. Na cidade, pelo contrário, andava sempre apressado, como se não quisesse deixar que lhe escapasse alguma coisa, quando, na verdade, nada tinha que fazer. E Kitty condoía-se dele.
É certo que sabia que ele não inspirava pena aos outros. Nada disso. Quando Kitty o observava, em sociedade, como às vezes se olha para um ser querido, procurando vê-lo como se fosse um estranho, no intuito de avaliar a impressão que ele produzia nos demais, dava-se conta, e com alguns ciúmes, de que não só não inspirava pena, mas que até mesmo parecia muito atraente, graças à sua cortesia um tanto antiquada, à sua tímida amabilidade com as mulheres, à sua boa figura e, sobretudo, assim ela o imaginava, graças à sua expressiva fisionomia. Mas Kitty via-o por dentro, não por fora, e percebia que na cidade Levine não era o autêntico Levine. Pelo menos era essa impressão que lhe causava o estado de espírito do marido. As vezes, no seu foro íntimo, Kitty censurava-o por não saber viver na cidade. Mas a si própria confessava outras vezes que realmente lhe seria difícil organizar ali a sua vida de maneira satisfatória para ele.
Realmente, que podia ele fazer? Não gostava de jogar as cartas. Não ia ao clube. Agora Kitty já sabia o que significava freqüentar homens alegres como Oblonski... Era preciso viver e visitar certos lugares. E era com horror que pensava nos sítios onde os homens costumavam ir em casos assim. Freqüentar a alta sociedade? Kitty não ignorava que isso o levaria a lidar com mulheres novas, coisa que lhe não agradava a ela. Ficar em casa com ela, com a mãe e com as irmãs? Era de crer que o marido se aborrecesse, por mais agradáveis que fossem para ela as conversas de Aline e Nadine, como o velho príncipe costumava chamar às tagarelices entre as filhas. Que havia ele de fazer então? Continuar a escrever a sua obra? Tentara fazê-lo, e de princípio fora à biblioteca tomar notas e recolher dados. Mas, como Levine costumava dizer, quando menos trabalhava menos tempo livre tinha. Depois, costumava dizer que na cidade perdia o interesse pelo livro a falar dele. A única vantagem da vida da cidade era não se levantarem discussões entre eles, marido e mulher. Ou fosse pelas condições da vida ou porque ambos se tivessem feito mais prudentes e razoáveis a tal respeito, o caso é que em Moscovo não discutiam por ciúmes, coisa que tanto receara quando se tinham mudado para a cidade. A esse respeito produzira-se mesmo qualquer coisa de muito importante para os dois: o encontro entre Kitty e Vronski.
A velha princesa Maria Borisovna, madrinha de Kitty, que sempre gostara muito dela, desejou vê-la. Kitty, que em virtude do seu estado não ia a parte alguma, foi, sem embargo, visitar a respeitável senhora na companhia do pai e em sua casa encontrou-se com Vronski.
O coração acelerou-se-lhe no peito, depois corou muito, ao ver Vronski vestido à paisana e ao reconhecer aquelas suas maneiras que tão familiares lhe haviam sido. Mas foi tudo obra de segundos. Ainda o velho príncipe não acabara de falar com Vronski, que intencionalmente entabulara conversa com ele, já Kitty estava disposta a olhá-lo e a dirigir- lhe a palavra, caso fosse preciso, com a mesma naturalidade com que falava à princesa Borisovna. Aliás, fá-lo-ia de maneira que a mínima inflexão e o mais leve sorriso merecessem ser aprovados pelo marido, cuja presença invisível parecia sentir naquele momento a seu lado.
Trocou com ele algumas palavras e até sorriu serenamente quando Vronski fez ironia acerca das eleições, a que chamou o "nosso
Parlamento". (Era preciso sorrir para mostrar que compreendera o dito de espírito.) Mas logo se voltara para a princesa Maria Borisovna, não tornando a olhar para Vronski -até que ele se levantou e se despediu.
Então Kitty encarou-o, apenas porque seria falta de cortesia não olhar para uma pessoa que se despedia.
Ficou reconhecida ao pai por não ter feito referência ao encontro com Vronski, embora verificasse, pela especial ternura que teve para com ela depois da visita, durante o seu costumado passeio, que ficou contente com o seu comportamento. Também ela se sentia satisfeita consigo mesma. Nunca se julgara capaz de enterrar no fundo da alma a lembrança do antigo sentimento que Vronski lhe inspirara, e o que era certo é que não só mostrara indiferença e serenidade diante dele, como fora isso mesmo que experimentara.
Levine corou muito mais do que Kitty quando esta lhe descreveu o encontro com Vronski em casa da princesa Maria Borisovna. Foi-lhe muito difícil falar-lhe nisso e ainda mais contar-lhe os pormenores de tal encontro, uma vez que Levine nada lhe perguntava, limitando-se a olhar para ela de sobrecenho carregado.
- Tenho muita pena que não estivesses presente - disse Kitty -, ou pelo menos gostaria que me tivesses visto pelo buraco da fechadura, pois diante de ti talvez não tivesse mantido o meu sangue-frio. Vês como eu estou corada? Muito mais do que então, garanto-te.
Levine, primeiro mais corado do que ela, ouvindo taciturno o que ela lhe dizia, serenou diante do olhar sincero da mulher e fez-lhe mesmo várias perguntas que lhe permitiram justificar a sua atitude. Completamente sossegado, disse-lhe que de futuro se não comportaria da maneira tola como se comportara nas eleições e se mostraria para com Vronski de uma amabilidade perfeita.
- É tão penoso - confessou ele - recear a presença de um homem e considerá-lo quase como um inimigo!
CAPÍTULO II
- Não te esqueças de visitar os Boll - disse Kitty ao marido quando, às 11 da manhã, este lhe entrou no quarto para se despedir. - Já sei que vais jantar com o pai no clube. Mas até lá, que fazes?
- Vou muito simplesmente a casa do Katavassov.
- Por que vais então assim tão cedo?
- Katavassov prometeu apresentar-me a Metrov. Queria falar-lhe da minha obra. É um sábio muito célebre em Sampetersburgo.
- Ah! Já sei. É o autor daquele artigo que tu tanto gabaste, não é assim? - perguntou Kitty. - E depois?
- Talvez passe pelo tribunal por causa daquela questão da minha irmã.
- E o concerto? - perguntou Kitty.
- Como queres que eu vá sozinho ao concerto?
- Pois devias ir; vão tocar essas coisas novas... que tanto te interessam. No teu lugar, não deixaria de ir.
- Em todo o caso, voltarei a casa antes do jantar - replicou Levine, consultando o relógio.
- Veste o teu redingote para poderes ir directamente a casa da condessa Boll.
- Achas absolutamente indispensável?
- Com certeza. O conde foi o primeiro a visitar-nos. Que trabalho terá isso? Chegas, sentas-te, falas cinco minutos acerca do tempo, levantas-te e vais-te embora.
- Talvez me não acredites, mas estou tão desabituado destas coisas que me custa fazê-lo. Que costume patusco, realmente! Chega uma pessoa a casa de outra, sem mais nem menos, senta-se, não tem nada que dizer, incomoda essa gente, incomoda-se a si próprio e, depois, ala!
Kitty desatou a rir.
- Mas não fazias visitas quando eras solteiro? - perguntou-lhe.
- Fazia, mas sempre me custou muito, e desacostumei-me a tal ponto, dou-te a minha palavra, que prefiro ficar dois dias sem comer a ter de fazer esta visita. Envergonho-me. Receio que se ofendam e que me perguntem "que vem o senhor aqui fazer"?
- Não se ofenderão. Posso garantir-te - replicou Kitty mirando-o sorridente. Pegou-lhe na mão. - Bom, adeus... Não deixes de ir, peço-te.
Depois de beijar a mão à mulher, Levine dispunha-se a sair quando esta o deteve.
- Kóstia, sabes que me restam apenas cinqüenta rublos?
- Bom, irei ao banco levantar dinheiro. De quanto precisas? - perguntou com essa expressão de descontentamento que ela tão bem lhe conhecia.
- Espera - Kitty reteve-o, segurando-o pela mão. - Precisamos de falar; estou preocupada. Tenho a impressão de que apenas gasto o indispensável, e o dinheiro voa. Com certeza não administramos bem.
- Não, não - replicou Levine, tossindo e olhando para ela de sobrancelhas franzidas.
Kitty também lhe conhecia essa maneira de tossir. Era sintoma de grande descontentamento, não com ela, mas consigo mesmo. Com efeito não estava descontente por terem gasto muito dinheiro, mas por isso lhe devia recordar que as coisas não caminhavam bem, pormenor que ele desejaria esquecer.
Mandei dizer ao Sokolov que venda o trigo e que receba adiantado o do moinho. Seja como for, teremos dinheiro.
- Mas receio que estejamos a gastar de mais.
- Não, não. Adeus, querida.
- Às vezes chego a lamentar ter dado ouvidos à mãe. Sou uma maçada para todos e estamos a gastar rios de dinheiro... Porque não ficámos nós na aldeia?
- Não, não, não estou arrependido de coisa alguma desde que nos casámos...
- Falas a sério? - interrogou ela, olhando-o bem nos olhos.
Levine falara sem pensar, tão-só para tranqüilizar Kitty, mas, quando esta o fitou, e ele deu com os seus olhos sinceros cravados nele, interrogando-o, repetiu o que dissera, agora de todo o coração. "Esqueço tudo quando a vejo", pensou ele. E lembrando-se do que o esperava para breve:
- Como te sentes? - perguntou-lhe, pegando-lhe nas duas mãos.
- Falta pouco?
- Tenho-me enganado tantas vezes nos meus cálculos que não quero dizer mais nada.
- Não tens medo?
- Absolutamente nenhum - replicou ela com um sorriso altivo.
- Se houver alguma coisa de novo, já sabes que estou em casa de Katavassov.
- Não haverá nada, não penses nisso. Espero-te antes de jantar. Entretanto vou dar uma volta com o pai. Passaremos por casa da Dolly... A propósito, sabes que a situação dela está a tornar-se impossível? A desgraçada deve a todas as pessoas e não tem um centavo consigo. Falámos ontem disso com a mãe e com o Arseni (o marido da irmã
Natália) e resolvemos pedir-te que tenhas uma conversa séria com o Stiva. Com o pai não se pode falar disso. Mas se tu e o Arseni...
- Achas que ele nos dará ouvidos?
- Fala, no entanto, com o Arseni.
- Pois sim; passarei por casa deles e talvez vá ao concerto com a Natália. Bom, adeus.
No vestíbulo, Kuzma, o velho criado de Levine, que na cidade desempenhava funções de mordomo, deteve o amo.
- Voltaram ontem a ferrar o Krasavtchik, mas continua a coxear. (Referia-se ao cavalo de tiro, que atrelavam à esquerda, e que tinham trazido da aldeia.) Que acha que devemos fazer? - perguntou ele.
Levine trouxera cavalos da aldeia, mas não tardou a reconhecer que lhe ficavam mais caros do que os cavalos de aluguer e que, além disso, mesmo com cavalos próprios, muitas vezes precisava de recorrer aos outros.
- Manda chamar o veterinário, é capaz de ter alguma pisadura.
- E quem há-de levar Catarina Alexandrovna? - perguntou
Kuzma.
Nos primeiros tempos da sua estada em Moscovo, Levine não podia compreender que, para visitar alguém, a dez minutos de distância, fosse preciso mandar atrelar dois vigorosos cavalos a uma pesada caleche, percorrer um quarto de versta por ruas cobertas de neve e depois deixá-los quatro horas imóveis à porta, gastando cinco rublos ao todo. Agora, pelo contrário, achava isso perfeitamente natural.
- Aluga uma parelha de cavalos.
- Sim, senhor.
E depois de resolver com a maior facilidade um problema que na aldeia lhe teria exigido morosas reflexões, Levine saiu, deteve um trem de praÇa e mandou que seguisse para a Rua Nikitskaia, inteiramente entregue à ideia de discutir a sua obra com um sábio petersburguês, muito célebre, que se dedicava à sociologia.
Levine habituara-se depressa àquelas despesas indispensáveis, cuja insensatez deixa atônito o provinciano que se estabelece em Moscovo. Acontecia-lhe o que acontece aos bêbedos, a quem, segundo um velho ditado, só o primeiro copo é que custa. Quando trocou a primeira nota de cem rublos para pagar as librés do criado e do guarda-portão, servidores que ele considerava perfeitamente desnecessários, contra a opinião da sogra e da mulher, achou que aqueles luxos correspondiam ao salário de dois operários, trabalhando de sol a sol, da semana da Páscoa ao
Carnaval, isto é, perto de trezentos dias - e achou que a pílula custava a engolir. Já lhe pareceu menos amarga na altura de puxar da segunda nota, com a qual pagou uma conta de vinte rublos, preço de dois manjares que adquirira para uma festa de família, não sem pensar que com esse dinheiro podiam adquirir-se nove cheverts de aveia, que um punhado de homens ceifara, amarrara, crivara e ensacara com o suor do seu rosto. As notas seguintes haviam voado como passarinhos: Levine não mais perguntara a si próprio se o prazer comprado com o seu dinheiro correspondia à pena que dava a ganhar. Também esquecera o projecto que fizera de não vender o trigo a preço inferior ao corrente. O centeio, cujo preço defendera durante muito tempo, vendeu-o a cinqüenta copeques menos cada cheverts que no mês anterior. Já não via que tivesse importância o cálculo que fizera, segundo o qual com aqueles gastos se tornava impossível viver o ano inteiro sem contrair dívidas. Apenas precisava de uma coisa: de dinheiro no banco, sem querer saber de onde provinha, suficiente para o dia a dia. E até então, os seus cálculos sempre se haviam cumprido: tivera sempre dinheiro no banco. Agora, porém, esse fundo esgotara-se e já não sabia onde ir buscar mais dinheiro. Eis por que sentira, momentaneamente, um certo desgosto, ao ouvir Kitty falar-lhe em dinheiro. O certo é, contudo, que não tinha tempo para pensar nisso. Estava a lembrar-se de Katavassov e a pensar em que iria conhecer Metrov.
CAPÍTULO III
Durante a sua estância em Moscovo, Levine reatara amizade com o seu camarada do tempo de estudante, o professor Katavassov, a quem não tornara a ver desde que se casara. Katavassov agradava-lhe pela clareza e singeleza com que encarava a vida, coisa que Levine considerava conseqüência da pobreza do seu espírito. Por sua vez, Katavassov atribuía a incoerência das ideias de Levine à falta de disciplina da sua inteligência. E era sem dúvida em virtude destas opostas qualidades - clareza um tanto estéril num deles, riqueza indisciplinada no outro - que gostavam de se encontrar e de discutir longamente. Katavassov persuadiu Levine a ler-lhe alguns capítulos da sua obra e, tendo-os achado dignos de interesse, falou neles a Metrov, sábio eminente, de passagem em Moscovo, cujos trabalhos Levine muito apreciava. Na véspera, ao encontrar Levine numa conferência pública, Katavassov dissera-lhe que o célebre Metrov, de quem apreciara tanto um artigo, se encontrava em Moscovo. Estava muito interessado, depois do que ele lhe dissera, na obra de Levine e no dia seguinte, às 11 da manhã, iria a casa de Katavassov, onde esperava conhecê-lo.
- Decididamente, meu amigo, está-se a corrigir. Tenho muito prazer em vê-lo - exclamou Katavassov, recebendo Levine no seu salãozinho. - Ouvi a campainha, e pensei: "É impossível que chegue com tanta pontualidade..." Que me diz dos montenegrinos? São guerreiros de raça.
- Que aconteceu? - perguntou Levine.
Em breves palavras, Katavassov pôs Levine ao corrente das últimas notícias, e, penetrando no escritório, apresentou-lhe um senhor de estatura média, nutrido e de agradável presença. Era Metrov. A palestra versou algum tempo sobre política e os comentários das altas esferas de Sampetersburgo aos últimos acontecimentos. Metrov repetiu as palavras que haviam sido proferidas pelo imperador e por um dos ministros, a respeito disso mesmo, garantindo tê-las ouvido de fonte fidedigna. Katavassov, por sua vez, também ouvira, como coisa fidedigna, que o imperador dissera precisamente o contrário. Levine procurou uma explicação com a qual pudessem tornar-se certas tanto as primeiras como as segundas palavras e mudaram de assunto.
- O meu amigo - disse então Katavassov - está a dar a última demão a uma obra sobre economia rural. Não sou perito na matéria, mas, como naturalista, agrada-me muito que não tome a humanidade como algo estranho às leis zoológicas, antes pelo contrário, considero que depende do meio ambiente, procurando as leis do desenvolvimento da sua teoria precisamente nessa relação.
- É muito interessante - observou Metrov.
- Para dizer a verdade, principiei a escrever um livro sobre economia rural, mas, involuntariamente, ao ocupar-me do primeiro instrumente desta, o operário - disse Levine, corando -, cheguei a conclusões completamente inesperadas.
E Levine, com grande cuidado, como se tacteasse o terreno, principiou a expor os seus pontos de vista. Sabia que Metrov escrevera um artigo contra a teoria político-econômica generalizada, mas ignorava até que ponto poderia contar com o interesse dele para as suas novas opiniões, e nem sequer o podia deduzir da expressão db rosto inteligente e sereno do sábio.
- Mas em que é que, na sua opinião, o operário russo difere dos outros? - inquiriu Metrov. - Do ponto de vista que o senhor considera zoológico, ou antes no das condições materiais em que ele se encontra?
Esta maneira de formular o problema vinha demonstrar a Levine que Metrov não estava de acordo com Katavassov. No entanto, continuou a expor as suas ideias, segundo as quais o camponês russo tinha um ponto de vista peculiar completamente distinto dos demais povos da terra. E, para o demonstrar apressou-se a acrescentar que, em seu juízo, isso era devido ao facto de o povo russo estar consciente de ter sido chamado a povoar grandes extensões despovoadas no Oriente.
- É muito fácil uma pessoa enganar-se quando tira conclusões sobre a predestinação geral de um povo - objectou Metrov, interrompendo Levine. - A situação do jornaleiro dependerá sempre da sua relação com a terra e o capital.
E sem deixar que Levine acabasse de expor o seu ponto de vista, Metrov pôs-se a explicar a particularidade das suas próprias teorias. Levine não percebeu em que consistiam estas, porque nem sequer se deu ao trabalho de compreendê-las. Dava-se conta de que Metrov, à semelhança de tantos outros, apesar do artigo em que refutava a doutrina dos economistas, apenas considerava o jornaleiro russo do ponto de vista do capital, das jornas e da renda. No entanto, via-se obrigado a reconhecer que na parte oriental, o maior território da Rússia, a renda era nula e os salários tão-só serviam de mantença para nove décimas partes dos oitenta milhões que constituíam a população e que o capital ainda a! não existia, a não ser sob a forma de instrumentos primitivos. Estudava o operário apenas sob este aspecto, apesar de não estar de acordo em muitas coisas com os economistas e de possuir uma teoria própria nova sobre os salários, que expôs a Levine.
Este ouvia, de má catadura, e a princípio recalcitrava. Queria interromper Metrov, para expor a sua própria ideia, a qual, em seu entender, tornaria supérfluas explicações ulteriores. Mas não tardou a reconhecer que cada um deles encarava o problema de maneira tão diferente que nunca chegariam a entender-se, e não fez mais objecções, limitando-se a ouvir. Conquanto já lhe não interessasse de todo o que dizia Metrov, não deixava de sentir certo prazer em ouvi-lo. Lisonjeava- lhe o amor-próprio que um sábio como Metrov lhe expusesse as suas ideias com tanto calor, tantos pormenores e num à-vontade de quem fala a pessoas que conhecem a matéria. As vezes bastava-lhe uma única alusão para se referir a toda uma faceta do problema, coisa que Levine acreditava à conta dos seus próprios méritos. Não lhe passava pela cabeça que Metrov comentasse esse assunto com outras pessoas da sua roda e que trocasse com prazer impressões sobre a matéria, ainda confusa para ele, com o primeiro que se lhe apresentasse.
- Vai fazer-se tarde - disse Katassov, consultando o relógio, de uma das vezes que Metrov acabou de expor as suas ideias. - Celebra-se hoje o cinqüentenário de Svintitch e há uma sessão especial - acrescentou, dirigindo-se a Levine. - Piotre Ivanovitch e eu temos de assistir. Prometi ler uma comunicação sobre os trabalhos zoológicos de Svintitch. Venha connosco. Vai ser muito interessante.
- Sim, realmente, são horas - concordou Metrov. - Venha connosco e depois iremos a minha casa. Teria muito prazer em ouvir ler a sua obra.
- Ainda não está concluída,
- Sabe que assinei um memorando - disse Katavassov, que na dependência ao lado vestia a casaca.
E principiou a falar da questão universitária. A questão universitária constituía um acontecimento muito importante naquele Inverno em Moscovo. Três catedráticos velhos não tinham aceitado em Conselho a opinião dos jo vens, e estes haviam apresentado um memorando independente. Segundo uns, era abominável, segundo outros, acertado e justo, e os catedráticos haviam-se cindido em dois grupos.
Uns, a cujo partido pertencia Katavassov, viam no campo contrário um erro e uma vil delação; outros, puerilidade e pouco respeito às autoridades. Embora Levine não pertencesse à Universidade, várias vezes, desde que estava em Moscovo, discutira esta questão, formando, mesmo, um juízo próprio sobre o que se passava. E quando seguiam rua além, os três a caminho dos antigos edifícios da Universidade, tomou parte na conversa que prosseguia sobre o mesmo assunto.
A sessão já principiara. Seis pessoas, a que se juntaram Katavassov e Metrov, tinham-se sentado diante de uma mesa coberta com um pano. Um deles lia qualquer coisa, com o nariz enterrado num manuscrito. Levine sentou-se ao pé de um estudante e em voz baixa perguntou-Lhe o que estavam a ler.
- A biografia - respondeu com cara de poucos amigos.
Levine ouviu maquinalmente a biografia do sábio e ficou a saber algumas particularidades curiosas sobre a sua vida. Quando o orador concluiu, o presidente agradeceu-lhe e leu uns versos que o poeta Ment compusera para comemorar aquela data, dedicando, também, a esse literato, algumas palavras de gratidão. Em seguida, Katavassov, em voz forte e rangente, pôs-se a ler a sua memória sobre os trabalhos do sábio.
Quando Katavassov terminou, Levine consultou o relógio, e, ao ver o adiantado da hora, compreendeu que não teria tempo, antes do concerto, de ler a sua obra a Metrov. Aliás, cada vez se lhe afigurava mais evidente a inutilidade de uma aproximação com o economista. Durante a conferência pensara na conversa que tinham tido. Se tanto um como outro estavam destinados a trabalhar com bons resultados, só o poderiam fazer cada um do seu lado.
No fim da sessão dirigiu-se a Metrov, que o apresentou ao presidente. Como viesse a falar-se de política, Metrov e Levine repetiram as frases trocadas em casa de Katavassov, apenas com uma diferença: que Levine emitiu uma ou duas ideias novas que acabavam de lhe ocorrer. Depois, como a famosa dissidência entre os professores voltasse à discussão, Levine, a quem enfadava tal coisa, apresentou as suas desculpas a Metrov e saiu, dirigindo-se à casa de Lvov.
CAPÍTULO IV
Lvov, o marido de Natália, irmã de Kitty, vivera sempre, quer nas duas capitais, quer no estrangeiro, onde fora educado e onde desempenhara funções diplomáticas.
No ano anterior abandonara a carreira, não porque tivesse tido quaisquer dissabores, pois era o homem mais dúctil do mundo, mas, muito simplesmente, para acompanhar mais de perto a educação dos seus dois filhos. Fixara residência em Moscovo, onde desempenhava funções na Corte. Apesar de uma diferença de idades assaz pronunciada e de opiniões e hábitos muito dissemelhantes, os dois cunhados haviam-se tornado verdadeiros amigos no decurso desse Inverno.
Lvov estava em casa e Levine entrou sem se fazer anunciar.
Comodamente instalado numa poltrona, Lvov, de roupão e sapatos de camurça, lia com um pince-nez de vidros azuis, enquanto fumava um charuto, meio queimado já, mantido pela sua bela mão a respeitável distância do livro pousado diante dele em cima de uma estante baixa. O seu fino rosto, enxuto e jovem, a que uma cabeleira anelada e argêntea dava um ar distinto, iluminou-se com um sorriso assim que viu Levine.
- Magnífico! E eu queria mandar-te buscar a casa. Como está a Kitty? Senta-te aqui, estarás mais comodamente. - Lvov levantou se e ofereceu a Levine uma cadeira de balouço - Leste a última circular do Journal de Saint-Pétersbourg? Acho a muito boa - disse, com sotaque ligeiramente francês.
Levine contou-lhe o que ouvira de Katavassov acerca dos rumores que circulavam em Sampetersburgo e depois de falarem de política referiu-lhe que conhecera Metrov e que estivera numa conferência. A
Lvov tudo isso interessou muito.
- Invejo te essas relações com o mundo científico, tão interessante
- disse, e animando se continuou em francês, seu costume, visto exprimir-se com mais facilidade nessa língua - Realmente também não dispunha de tempo. Tanto o meu serviço como as minhas ocupações com os rapazes me privam de tudo o mais e além do que, não tenho vergonha em confessá-lo, a minha instrução é muito deficiente.
- Deixa que eu não esteja de acordo com esse último ponto - observou Levine, rindo, pois achava sempre muito comovedora a modéstia do cunhado, sabendo a sincera.
- Podes crer! Agora, que me ocupo da instrução de meus filhos, é que vejo até que ponto a minha é deficiente. Para lhes dar lições vejo me obrigado não só a refrescar a memória como até a estudar. Não bastam os professores, é preciso uma espécie de vigilante geral, como acontece nas tuas terras, onde, alem dos camponeses, precisas de um capataz. Agora estou a ler isto - Lvov mostrou lhe a gramática de Buslaiev, que estava na estante baixa - É o livro por onde estuda o Micha, e parece me tão difícil Escuta aqui, vê se me explicas isto Aqui diz.
Levine procurou explicar lhe que aquilo não podia aprender-se, era necessário apreendê-lo Mas Lvov não estava de acordo.
- Deves achar me ridículo - disse ele
- Muito pelo contrário, estás a servir me de exemplo para o futuro.
- Oh! O exemplo não é de seguir.
- Não vejo isso. Nunca conheci crianças com mais perfeita instrução do que as tuas, não desejava que as minhas a tivessem melhor Lvov não pôde esconder um sorriso de satisfação.
- Apenas desejo que os meus filhos valham mais do que eu. A sua instrução esteve muito abandonada durante a nossa permanência no estrangeiro, e não podes calcular as dificuldades que encontram agora.
- Não tarda que recuperem o perdido. São muito inteligentes. O mais importante é a educação moral. E é isso que me serve de lição quando vejo os teus filhos.
- Falas-me de educação moral. Não podes imaginar quanto isso é difícil? Ainda uma dificuldade está por vencer, surge logo outra, e de novo recomeça a luta. Se não fosse o apoio da religião Lembras que já falámos sobre este assunto? Nenhum pai poderá educar os seus filhos sem o auxílio dela.
Esta conversa, que sempre interessava a Levine, foi interrompida com a entrada da formosa Natália Alexandrovna, pronta para sair.
- Não sabia que estavas aqui - disse ela. Ao que parecia, o assunto da conversa interessava a muito menos a ela do que a Levine - E a Kitty como está? Hoje vou jantar com vocês. Ouve, Arseni - acrescentou, dirigindo se ao marido -, vais precisar do carro?
E marido e mulher discutiram acerca do que fariam naquele dia. Como Lvov tinha de receber alguém, por obrigação do seu cargo, a mulher queria assistir ao concerto e a uma reunião publica da Assembléia dos Estados do Sul, e precisavam de decidir tudo isso Levine, como pessoa da família, teve de tomar parte em todos esses planos. Decidiram, por fim, que Levine iria ao concerto e à reunião pública com Natália, depois mandaria o carro a Arseni, que ma mais tarde buscar a mulher para levá-la à casa de Kitty. E na hipótese de ainda não estar livre nessa altura, da mesma maneira mandaria a carruagem, e Levine acompanharia Natália.
- Levine estraga me. - disse Lvov à mulher - Garante me que os nossos filhos são encantadores, quando a verdade é que na minha opinião estão cheios de defeitos.
- O Arseni é muito exagerado, estou sempre a dizer-lho - atalhou Natália - Se buscamos a perfeição, nunca chegaremos a estar satisfeitos. O pai tem razão no que diz quando nos educavam a nós, exagerava se noutro sentido. Estávamos no sótão enquanto os pais viviam no 1o andar. Agora, peio contrario, são as crianças que ocupam o 1o andar e os pais que vivem no sótão. Na actualidade, os pais já não têm razão de existir, tudo deve sacrificar se aos filhos.
- E porque não, se isso nos é tão agradável? - disse Levine, sorrindo, com o seu formoso sorriso, e acariciando-lhe a mão - Quem não te conhecesse, tomar te ia por madrasta.
- Não, o exagero não está bem em caso algum - replicou Natália, serena, colocando no seu lugar a faca do marido de cortar papel.
- Pois bem, venham cá, crianças modelo - disse Lvov a dois rapazinhos muito bonitos que apareceram no limiar da porta.
Depois de cumprimentarem o tio, os pequenos aproximaram se do pai, na intenção evidente de lhe perguntar qualquer coisa Levine teria desejado tomar parte na explicação, mas Natália principiou a falar com ele e daí a pouco entrava Makotine, o colega de Lvov, com o seu trajo do paço, que também ia esperar a personagem que chegava Iniciou se uma animada discussão a respeito de Herzegovina, da princesa Korzinskaia, do conselho municipal e da morte súbita de Apraxina.
Levine esqueceu-se do recado de que Kitty o encarregara. Apenas se lembrou já no vestíbulo.
- Espera! Kitty encarregou me de falar contigo por causa do Oblonski - disse ele, quando Lvov se deteve na escada, na altura em que acompanhava à porta a mulher e Levine.
- Sim, sim, maman quer que nós, os beaux-frères, o repreendam - comentou, corando. - Mas porque hei-de ser eu?
- Então eu me encarregarei disso - disse Natália sorrindo, que de casaco de peles pelos ombros aguardava que eles acabassem de falar.
- Bom, vamos.
CAPÍTULO V
No concerto iam executar duas peças novas; uma Fantasia sobre o Rei Lear da Estepe e um quarteto dedicado à memória de Bach. Levine gostaria muito de ter opinião sobre essas peças compostas num espírito moderno, e para não ser influenciado por ninguém foi encostar-se a uma coluna, depois de instalar a cunhada, decidida a ouvir o mais conscienciosamente que pudesse. Procurou não se deixar distrair pelo chefe de orquestra, de gravata branca, coisa que sempre distrai as pessoas desagradàvelmente. Tão-pouco olhou para as senhoras, cujos chapéus cheios de laços lhes tapavam hermeticamente os ouvidos, nem para todas essas personagens que, ou não se interessavam por coisa alguma ou se interessavam pelos assuntos mais diversos, inteiramente alheios à música. Evitara encontrar-se com os entendidos, bem como com os grandes palradores, e ali estava a ouvir, de olhos no chão.
Mas quanto mais ouvia o Rei Lear, tanto mais longe se sentia de poder formar uma opinião definida sobre essa obra: sem cessar, a frase musical, no momento em que devia desenvolver-se, fundia-se noutra frase, ou desvanecia-se, segundo o capricho do compositor, deixando no ouvinte, como única impressão, a de uma penosa procura de efeitos instrumentais. Os melhores passos resultavam desagradáveis e a alegria, a tristeza, o desespero, a ternura, o triunfo sucediam-se com a incoerência das impressões de um louco, para desaparecerem depois, subitamente, da mesma maneira.
Quando a execução do trecho se interrompeu bruscamente, Levine ficou surpreendido com a fadiga que aquela tensão de espírito inutilmente lhe provocara; dir-se-ia um surdo que estivesse a ver dançar e, ao ouvir os aplausos entusiastas do auditório, quisesse comparar as suas impressões às dos entendidos. As pessoas levantavam-se por todos os lados, formavam-se grupos e Levine foi juntar-se a Pestsov, que conversava com um dos mais famosos amadores.
- É extraordinário! - clamava Pestsov, na sua profunda voz de baixo. - Olá, viva, Constantino Dimitrievitch. A passagem de uma maior riqueza de colorido, a mais escultural, digamos, é aquela em que se adivinha a aproximação de Cordélia, em que a mulher, das emi* Weibliche entra em luta com a fatalidade. Não acham?
- E que tem que ver com tudo isto Cordélia? - ousou perguntar Levine, esquecido de que se tratava do Rei Lear.
- Cordélia aparece... Aqui! - exclamou Pestsov, batendo com os dedos no sedoso programa que tinha na mão e mostrava a Levine.
Só então este se recordou do título da fantasia e se deu pressa em ler os versos de Shakespeare impressos, em tradução russa, no reverso do programa.
- Sem isto é impossível acompanhar a música - insistiu Pestsov, que, abandonado pelo amador, se voltava, por falta de melhor auditório, para o mesquinho interlocutor que era para ele Levine.
Uma discussão se travou em seguida entre eles acerca dos méritos e defeitos da música wagneriana. Levine sustentava que Wagner e os seus admiradores faziam mal em invadir o terreno de outras artes; a poesia não foi feita para nos dar os traços de uma fisionomia, competência que pertence à pintura. E em apoio do seu ponto de vista, Levine citou o caso recente de um escultor que agrupara em volta da estátua de um poeta as supostas sombras da sua inspiração.
- Estas figuras parecem-se tanto ou tão pouco com sombras que se vêem obrigadas a apoiar-se a uma escada - concluiu ele, satisfeito com a frase que fizera. Mas, mal a pronunciou, pareceu-lhe lembrar-se vagamente de que a dissera já uma vez, e talvez ao próprio Pestsov. E logo se sentiu pouco à-vontade.
Pestsov, pelo contrário, era de opinião de que a arte é só uma; para que possa atingir a grandeza suprema, precisa que as suas diversas manifestações sejam reunidas num feixe único.
Levine não pôde ouvir nada do quarteto: a seu lado, Pestsov, tagarelou todo o tempo. A simplicidade afectada daquele trecho fez-lhe lembrar a falsa ingenuidade dos pintores pré-rafaelistas.
Assim que terminou o concerto, foi ao encontro da cunhada. A saída, depois de deparar com várias pessoas conhecidas e de com elas trocar impressões sobre política, música e amigos comuns, lobrigou o conde Boll, e a visita que se sentia obrigado a fazer ocorreu-lhe ao espírito.
- Bom, então vai e quanto antes - disse-lhe Natália, a quem ele confessou os seus remorsos. - Talvez a condessa não receba hoje. Depois vem ter comigo à reunião da minha comissão.
CAPÍTULO VI
- A condessa recebe? - inquiriu Levine, ao penetrar no vestíbulo da residência dos Boll.
- Recebe, sim senhor, faça o favor de entrar - respondeu o guarda-portão, ajudando-o a despir a pelica sem mais considerações. "Que maçada!", pensou Levine. "Que hei-de eu dizer? E que vim eu aqui fazer?"
Suspirou, descalçou uma das luvas, alisou a copa do chapéu e entrou no primeiro salão. Ali encontrou a condessa que dava ordens severas a um criado. Ao ver a visita, sorriu e pediu-lhe que entrasse para a salinha contígua, onde as suas duas filhas conversavam com um coronel conhecido de Levine. Depois de uma troca de cumprimentos, este sentou-se no divã com o chapéu nos joelhos.
- Sua mulher como está? Foi ao concerto? Nós não pudemos ir: a mãe tinha de assistir a um funeral.
- Sim, já soube... Que morte tão repentina! - disse Levine.
A condessa entrou, sentou-se no divã, perguntou, por sua vez, pela saúde de Kitty e pelo concerto. Levine, por seu lado, lastimou uma vez mais a morte súbita de Apraxina.
- Mas, de resto, ela nunca gozou de grande saúde.
- Esteve ontem na Ópera?
- Estive.
- A Lucca foi muito bem.
- Realmente.
E como pouco lhe importava a opinião daquela gente, Levine repetiu o que ouvira dizer mil vezes a respeito do talento da cantora, dando a condessa a impressão de o estar a ouvir. Quando lhe pareceu que dissera o bastante, calou-se, e então o coronel, que se conservara calado até aí, teve a sua oportunidade para falar da Ópera, abordando o assunto da nova iluminação e falando da folie journée(Nota 111) que haveria dentro de dias em casa dos Tiurine. Em seguida levantou-se ruidosamente e apresentou as suas despedidas. Levine quis seguir-lhe o exemplo, mas um relance de olhos surpresos da condessa fez-lhe compreender que ainda não era altura de partir. Voltou a sentar-se, atormentado com a triste figura que estava a fazer e cada vez mais incapaz de encontrar assunto para conversa.
- Vai à reunião da Comissão do Sul? - perguntou a condessa. - Dizem que deve ser muito interessante.
- Vou; prometi à minha belle-soeur ir buscá-la.
Novo silêncio, durante o qual as três senhoras se entreolharam.
"Agora deve ser a altura de me despedir", pensou Levine, e tornou a erguer-se. As senhoras não o detiveram mais. Apertaram-lhe a mão e pediram-lhe que transmitisse muitas lembranças à mulher.
Ao ajudá-lo a vestir a pelica, o guarda-portão pediu-lhe o endereço e inscreveu-o, com toda a solenidade, num soberbo livro encadernado.
"No fundo, estou-me nas tintas, mas, Deus do Céu, como isto é estúpido e ridículo!", pensava Levine, consolando-se com a ideia de que todos faziam a mesma coisa, e dirigiu-se à reunião pública da Comissão do Sul, onde devia encontrar-se com a cunhada, para acompanhá-la a casa.
Na reunião havia muita gente e estava lá quase toda a alta sociedade. Quando Levine chegou ainda liam a exposição geral dos trabalhos, muito interessante, segundo se dizia. Quando a leitura acabou, as pessoas reuniram-se e Levine encontrou-se com Sviajski, que o convidou, insistentemente, para visitar com ele a Sociedade de Exploração Agrícola, onde ia ler nessa noite um relatório de grande interesse. Também lá estavam Stepane Arkadievitch, que acabava de chegar das corridas, e outros conhecidos seus, com quem teve de trocar algumas palavras sobre a própria reunião, sobre uma peça que acabava de se estrear, sobre um processo que a todos apaixonava e a propósito do qual cometeu um erro que muito lastimou depois. Ao comentar a pena imposta a um estrangeiro julgado na Rússia e ao dizer que achava injusto que o expulsassem do país, Levine repetiu a frase que ouvira, na véspera, em conversa com um amigo:
- Acho que expulsá-lo é a mesma coisa que castigar uma solha, atirando-a à água - disse Levine.
Depois, tarde de mais, recordou-se que aquele pensamento, que expusera como próprio, pertencia a uma fábula de Kirilov e que a pessoa de cuja boca o recolhera o apanhara, por sua vez, num artigo de jornal.
Depois de acompanhar Natália a casa e de encontrar Kitty de óptima saúde, fez-se conduzir ao clube, onde chegou na altura em que já estavam todos, sócios e convidados.
CAPÍTULO VII
Levine não voltara a pôr os pés no clube desde esses tempos em que, terminados os seus estudos, vivia em Moscovo e freqüentava a sociedade. Lembrava-se do clube e de todos os pormenores das suas instalações, mas esquecera por completo a impressão que outrora lhe causara. No entanto, sentiu-se invadido pela mesma sensação de repouso, de prazer e de bem-estar que experimentava antigamente ao freqüentá-lo, mal entrou no amplo pátio em semicírculo e se apeou do trem. E essa sensação foi crescendo à medida que subia as escadas, e depois, quando o porteiro, com a sua faixa, lhe abriu a porta, sem ruído, dobrando-se diante dele; quando viu no bengaleiro as pelicas e as galochas dos sócios, que estes, para terem menos trabalho, despiam e descalçavam mesmo ali, em vez de subirem com elas para o andar nobre; e quando ouviu a misteriosa campainha que lhe seguia os passos e, ao subir a atapetada escadaria de degraus muito baixos, contemplou a estátua que ornamentava o patamar, reconhecendo em cima o outro porteiro, mais velho agora, que lhe franqueou a porta sem precipitações, embora expedito, de olhos fitos nele. - O seu chapéu, faça favor - disse para Levine, que se esquecera de que a praxe do clube exigia deixar os chapéus na portaria. - Há muito tempo que aqui não vem. O príncipe Stepane Arkadievitch ainda não chegou.
O porteiro não só conhecia Levine mas, também, os seus amigos e parentes e declinou alguns nomes de pessoas muito chegadas a ele. Levine atravessou a primeira sala, com os seus biombos, e a sala da direita, onde se vendiam frutas e, adiantando-se a um sujeito velho que caminhava, vagaroso, entrou na sala de jantar, cheia de gente animada. Contornando as mesas, quase todos ocupadas já, ia examinando os comensais. Entre eles reconheceu alguns: uns, que conhecia apenas de vista, outros, íntimos seus. Não se via uma cara inquieta ou agitada. Dir-se-ia que todos haviam deixado na portaria, juntamente com os chapéus e as galochas, desgostos e preocupações, e achavam-se ali reunidos para gozar, paulatinamente, os bens materiais da vida. Lá estavam Sviajski, Tcherbatski e Nievedovski, o velho príncipe, Vronski e
Sérgio Ivanovitch.
- Até que enfim! - exclamou o velho príncipe, sorrindo, enquanto lhe estendia a mão por cima do ombro. - Como está a Kitty?
- acrescentou, ajeitando o guardanapo numa das casas do colete.
- Está bem, jantam as três lá em casa.
- Ah! As "Aline-Nadine"! Aqui já não há lugar. Trata de arranjar pouso naquela mesa - disse o velho príncipe e, voltando-se, pegou no prato de sopa de peixe, que lhe apresentava um criado.
- Levine, aqui! - gritou uma voz jovial, a dois passos. Era Turovtsine, que estava sentado perto de um jovem oficial, diante de duas cadeiras reservadas. Depois de um dia tão sobrecarregado, a presença daquele pândego bonacheirão, por quem tivera sempre um fraco e que lhe fazia lembrar o dia do seu pedido de casamento, era-lhe particularmente agradável.
- Estão reservadas para si e para o Oblonski, que não tarda.
O oficial de olhos alegres, sempre risonhos, que se mantinha muito direito, era Gaguine. Turovtsine apresentou-o a Levine.
- O Oblonski chega sempre tarde.
- Aí vem ele.
- Acabas de chegar? - perguntou Stepane Arkadievitch, aproximando-se deles apressado. - Bons dias! Já tomaste vodka, não. Então vem cá.
Levine levantou-se e acompanhou Stepane Arkadievitch à mesa grande, onde havia vários pratos frios e diferentes espécies de vodka. Dir-se-ia que entre vinte acepipes diferentes não era difícil escolher um, mas Stepane Arkadievitch pediu um acepipe especial e não tardou que viesse servir-lho um criado de libré. Os cunhados beberam um copinho de vodka e voltaram para a mesa.
Quando comiam a sopa de peixe, trouxeram a Gaguine uma garrafa de champanhe, que este mandou servir aos quatro. Levine não se opôs e, até, encomendou outra garrafa. Tinha fome, comia e bebia com satisfação, tomando parte, com maior satisfação ainda, nas conversas alegres e simples dos seus companheiros de mesa. Baixando a voz, Gaguine contou uma das últimas anedotas de Sampetersburgo e, conquanto indecente e estúpida, era tão divertida que Levine soltou uma sonora gargalhada, chamando a atenção dos comensais das mesas vizinhas.
- É no mesmo estilo dessa outra "Isso é precisamente o que eu não posso suportar" - declarou Stepane Arkadievitch. - Conheces essa?
Mais uma garrafa! - gritou para o criado.
- Da parte de Piotre Ilitch Vinovski - disse um criado velhinho, depondo diante de Levine e do cunhado duas taças de champanhe a espumar. Oblonski pegou numa das taças e, depois de trocar olhares com um velho calvo, de bigodes ruivos, sentado noutra mesa, sorriu-lhe, com um aceno de cabeça.
- Quem é? - perguntou Levine.
- Conheceste-o em minha casa, não te lembras? Um bom rapaz!
Levine imitou Stepane Arkadievitch e pegou na taça.
A anedota de Oblonski também foi muito divertida. Levine contou outra, que outrossim agradou muito. Depois falou-se de cavalos, das corridas que se realizavam naquele mesmo dia e da habilidade com que ganhara o prêmio o Atlasny, de Vronski. Levine não deu pelo tempo enquanto durou o jantar.
- Ah! Aqui estão eles! - exclamou Stepane Arkadievitch, no final da refeição, inclinando-se por cima do espaldar da cadeira e estendendo a mão a Vronski, que se aproximava acompanhado de um alto coronel da Guarda. O rosto de Vronski reflectia também a alegria geral do clube. Apoiando-se ao ombro de Stepane Arkadievitch, segredou-lhe qualquer coisa, enquanto apertava a mão de Levine, com o mesmo sorriso.
- Tenho muita satisfação em tornar a vê-lo - disse ele. - Pró-curei-o nas eleições, mas disseram-me que tinha partido.
- Sim, fui-me embora nesse mesmo dia. Agora mesmo estávamos a falar do seu cavalo, Felicito-o- disse Levine.
- O senhor também tem cavalos, não é verdade?
- Não, meu pai é que tinha, mas, por tradição, entendo alguma coisa do assunto.
- Onde jantaste? - perguntou Stepane Arkadievitch.
- Estamos na segunda mesa, atrás das colunas.
- Tem recebido muitas felicitações - disse o alto coronel. - É bonito, o segundo prêmio imperial! Quem me dera ter tanta sorte com as cartas como ele tem com os cavalos! Perco o meu tempo. Vou até à sala infernal - acrescentou, afastando-se.
- É o Iachivne - explicou Vronski a Turovtsine, e sentou-se no lugar que ficara livre junto deles.
Depois de beber a taça de champanhe que lhe ofereceram, por sua vez mandou vir uma garrafa. Ou fosse do ambiente do clube ou do muito que bebera, o certo é que Levine falou animadamente com Vronski acerca da melhor raça de cavalos, sentindo-se muito contente por não experimentar a mínima animosidade contra ele. Disse-lhe, mesmo, entre outras coisas, que sabia, pela mulher, que tinham estado juntos em casa da princesa Maria Borisovna.
- Oh! A Maria Borisovna é um encanto! - exclamou Stepane Arkadievitch.
E a propósito contou uma anedota, que despertou o riso de todos os presentes. Vronski, sobretudo, riu com tanta satisfação que Levine se sentiu completamente reconciliado com ele. - Quê? Já acabámos? - acrescentou, levantando-se e sorrindo. - Então vamos!
CAPÍTULO VIII
Ao levantar-se da mesa, Levine, vendo-se levado pelas pernas com extraordinária ligeireza, dirigiu-se à sala de bilhar, acompanhado de Gaguine.
- Que te parece este nosso templo da ociosidade? - perguntou- lhe o velho príncipe, segurando-lhe o braço. - Vem aqui dar uma volta.
- Era precisamente o que eu queria: dar uma volta e relancear a vista por tudo isto. É muito interessante.
- Sim, para ti, e para mim também, mas de outra maneira. Quando vês velhinhos como aquele, julgas talvez que nasceram chliupiki
- disse, apontando para um sócio do clube, um velho muito corcovado, de lábio inferior pendente, que vinha ao encontro deles, arrastando os pés metidos numas botas macias.
- Que é isso de chliupiki?
- Quê? Não sabes o que é? É um termo do nosso clube. Como sabes, quando se fazem girar os ovos(Nota 112), eles acabam por ficar chliupiki. É o que nos acontece a nós: tanto freqüentamos o clube que acabamos chliupiki. A ti faz-te rir, mas a mim, antes pelo contrário, pois não tardarei a estar assim também. Conheces o príncipe Tchetchenski? - perguntou ele, e Levine depreendeu que o sogro se dispunha a contar-lhe algo divertido.
- Não, não o conheço.
- Que dizes? Pois tu não conheces o nosso famoso jogador de bilhar? Bom, pouco importa... Há uns três anos, ainda não era chliupiki. Fazia de valentão. E troçava dos demais. Ora um belo dia o nosso porteiro... Lembras-te do Vacili? Não pode ser, um gordo, sempre com uma piada engatilhada... Um dia, o príncipe, ao chegar, perguntou-lhe: "Quem está por aí? Chegou algum dos chliupiki?" E o porteiro respondeu-lhe: "O senhor é o terceiro." Já vês, meu amigo.
Falando e cumprimentando os conhecidos com que se encontravam, Levine e o príncipe atravessaram todas as salas: a grande, onde estavam as mesas de jogo em que jogavam os mais assíduos; a sala dos divãs, para o xadrez, onde toparam com Sérgio Ivanovitch, que conversava com um desconhecido; a sala de bilhar, onde, num recanto, com um divã, um grupo muito alegre, no qual estava Gaguine, bebia champanhe; e até deitaram uma olhadela à sala infernal, em que viram Iachivne, diante de uma mesa rodeada de muitos "pontos". Procurando não fazer ruído, penetraram na obscura biblioteca. Ali, junto a candeeiros com quebra-luz, viam-se um jovem de cara enfadada, que folheava revistas, e um general calvo, de nariz enfiado num alfarrábio. Também entraram numa sala a que o príncipe chamou a "dos sábios". Ali três senhores discutiam animadamente as últimas notícias políticas.
- Príncipe, estamos à sua espera - veio dizer-lhe um dos jogadores que o procurava. E o príncipe lá foi jogar.
Ao ficar só, Levine sentou-se por momentos a ouvir o que esses cavalheiros diziam, mas, lembrando-se das conversas do mesmo gênero que ouvira desde a manhã, invadiu-o um tédio tão grande que se safou, n° encalço de Turovtsine e de Oblonski, com os quais, ao menos, não tinha ensejo de aborrecer-se.
Foi encontrá-los na sala de bilhar: Turovtsine, no grupo dos bons copos, Oblonski, parado junto à porta, na companhia de Vronski.
- Não é que ela se aborreça, mas esta indecisão enerva-a - ouviu Levine, que procurava seguir adiante, quando se sentiu agarrado por um braço.
- Não te vás embora, Levine - gritou-lhe Stepane Arkadievitch, de olhos húmidos, como ficava sempre depois de beber ou nas horas de enternecimento. Naquela noite havia as duas coisas. - É o meu melhor amigo - continuou, voltando-se para Vronski - e como tu também me és pelo menos tão caro e tão próximo, muito gostaria de vos aproximar: ambos são dignos disso.
- Agora nada mais nos resta do que cairmos nos braços um do outro - comentou Vronski, gracioso, oferecendo a mão que Levine apertou cordialmente.
- Com muito prazer, com muito prazer! - exclamou.
- Rapaz, uma garrafa de champanhe - ordenou Stepane Arkadievitch.
- E eu também - disse Vronsk.
A verdade, porém, é que, apesar desta mútua satisfação, nada encontraram para dizer um ao outro.
- Sabes que ele não conhece a Ana - observou Oblonski. - Estou disposto a levá-lo a tua casa. Vem cá, Levine.
- Será possível que a não conheça? - replicou Vronski. - Ana terá grande prazer em conhecê-lo. Podia ir com vocês, mas o Iachivne preocupa-me. Quero ficar aqui até ele acabar de jogar - acrescentou.
- Está a perder?
- Como sempre. E eu sou a única pessoa que tem mão nele nestas ocasiões.
- Que diriam vocês de uma partidinha de bilhar enquanto esperamos? Queres jogar connosco, Levine? - perguntou Stepane Arkadievitch. - As bolas - disse este para o marcador.
- Estavam já à espera há um bom bocado - respondeu ele, que dispusera as bolas em triângulo e se entretinha a fazer rolar a encarnada.
- Então vamos a isto!
Finda que foi a partida, Vronski e Levine sentaram-se à mesa de Gaguine. Levine, aceitando a proposta de Stepane Arkadievitch, apostou nos ases. Vronski, ora permanecia sentado junto à mesa, rodeado de conhecidos seus, que a todo o momento se aproximavam dele, ora ia a sala inferna! observar Iachivne. Levine sentia um agradável repouso após a fadiga cerebral daquela manhã. Alegrava-o o facto de não sentu hostilidade contra Vronski e de experimentar uma tal sensação de tranqüilidade, de bem-estar e de prazer.
Logo que a partida acabou, Stepane Arkadievitch travou-o pelo braço.
- Vamos visitar a Ana. Agora mesmo, queres? Está em casa. Há muito que lhe prometi levar-te lá. Onde vais esta noite?
- Para te falar com franqueza, a parte alguma. Prometi a Sviajski ir à Sociedade de Exploração Agrícola. Mas prefiro acompanhar-te.
- Pois seja; vamos então. Procura saber se o meu carro já chegou
- disse Stepane Arkadievitch para um criado.
Levine aproximou-se da mesa, pagou os quarenta rublos que perdera e também, de maneira misteriosa, a despesa que fizera no clube
(o criado velhinho, no limiar da porta, já sabia a quanto ascendia). Depois, agitando muito os braços, atravessou todas as salas em direcção à saída.
CAPÍTULO IX
- A carruagem de Oblonski! - gritou o porteiro na sua voz tonitruante.
A carruagem aproximou-se e ambos se instalaram lá dentro. A sensação de tranqüilidade, de prazer e de bem-estar provocada pelo ambiente do clube durou em Levine apenas até ao momento de atravessar o limiar da porta. Essa sensação desapareceu logo que o carro chegou à rua e ele lhe sentiu os solavancos no pavimento desigual, ouviu os gritos de um cocheiro de praça que se cruzou com eles e através da portinhola entreviu a tabuleta vermelha de uma taberna. Bruscamente restituído à realidade, a si mesmo perguntava se andaria bem apresentando-se em casa de Ana. Que diria Kitty? Stepane Arkadievitch, porém, não lhe deu tempo de se arrepender. Como se lhe tivesse adivinhado o pensamento, disse-lhe:
- Não calculas a satisfação que sinto em que a conheças! Dolly desejava-o há muito. Lvov também a visita de vez em quando. Não é por ser minha irmã, mas, realmente, é uma mulher superior. Infelizmente a sua situação é mais triste do que nunca.
- Porquê?
- Estamos a tratar-lhe do divórcio. O marido está de acordo, mas surgiram complicações por causa do pequeno e há três meses que estamos nisto, sem que as coisas se resolvam. Assim que o divórcio for declarado, casa com Vronski... Aqui entre nós, que estúpida coisa é este velho costume de se andar à roda a cantar "Regozija-te, Isaías", coisa em que já ninguém acredita e que impede as pessoas de serem felizes! - comentou Stepane Arkadievitch. - Quando tudo isto acabar, a situação dela será tão definida como a tua ou a minha.
- E em que consistem essas dificuldades?
- Ah! É uma história muito comprida! Tudo isso é tão indefinido aqui na Rússia!... O certo é que Ana vai para três meses que está em Moscovo à espera do divórcio, aqui, onde todos os conhecem aos dois, sem ir a parte alguma, e sem visitar as amigas, a não ser a Dolly, porque não está disposta a que lhe paguem as visitas por mera compaixão. Até a tonta da princesa Bárbara se foi embora, dando-lhe a entender que achava pouco conveniente viver com ela. Qualquer outra mulher na mesma situação não teria tido força para suportar tudo isto. Pois vais ver como ela organizou a sua vida. Que serena e digna! A esquerda, na azinhaga em frente da igreja - gritou Stepane Arkadievitch, deitando a cabeça fora da portinhola. - Que calor! - acrescentou, e apesar do frio que estava (dois graus abaixo de zero), atirou a pelica para trás, já desabotoada.
- Mas ela tem uma filha, que lhe deve ocupar muito tempo - observou Levine.
- Decididamente, parece que paia ti a mulher não passa de une couveuse129. Ana tem muito em que se ocupar, mas não precisamente com a filha. Sim, ocupa-se dela, educa-a muitíssimo bem, mas não se trata disso. As suas principais ocupações são de ordem intelectual: escreve. Vejo que sorris, mas fazes mal: escreve para a juventude, e não fala nisso a ninguém, a não ser a mim, que mostrei o seu manuscrito a Votkuiev... O editor, não sei se sabes? Parece que também escreve e é entendedor. Pois bem, ele achou que a coisa era notável... Não julgues que se trata de uma literata. Nada disso. Antes de mais nada é uma mulher de grandes sentimentos. Vais ver. Agora tomou conta de uma pequena inglesa e de toda a sua família.
- Dedica-se então à filantropia?
- Não, estás sempre pronto a ver ridículo em tudo. Simplesmente por bondade. Tinham, ou, para melhor dizer, Vronski tinha um treinador inglês muito entendido em assuntos de equitação, mas um bêbedo. O desgraçado, atascado no vício, caiu no delirium-tremens e abandonou a mulher e os filhos. Ana interessou-se tanto por eles que tem hoje a família inteira a seu cargo. Mas não julgues que assim ou assado, de qualquer maneira, dando-lhes dinheiro. É ela própria quem ensina russo aos pequenos para eles poderem matricular-se na escola, e a pequena tem-na em casa. Vais ver.
A carruagem entrou no pátio da residência e foi estacar ao lado de um trenó. Stepane Arkadievitch puxou a campainha e, sem perguntar ao criado que lhes abriu a porta se Ana estava em casa, penetrou no vestíbulo. Levine seguiu-o, cada vez mais apreensivo quanto à legitimidade do seu procedimento.
Ao mirar-se ao espelho, viu-se muito corado, mas, certo de que não estaria embriagado, pôs-se a subir a escadaria atapetada no encalço de Oblonski. Quando chegaram ao patamar superior, Stepane Arkadievitch perguntou ao criado, que o cumprimentara como pessoa da casa, quem estava com Ana Arkadievna. O criado respondeu-lhe que o senhor Votkuiev.
- Onde estão?
- No escritório.
Depois de atravessar a pequena sala de jantar, com as suas paredes de madeira escura, Stepane Arkadievitch e Levine entraram numa saleta tênuamente alumiada por um candeeiro de quebra-luz escuro. Outro candeeiro na parede iluminava um retrato de mulher, em corpo inteiro, de opulentos ombros, cabelos negros ondulados, sorriso pensativo e olhar perturbante, em que Levine pousou involuntariamente os olhos. Era o retrato de Ana pintado em Itália por Mikailov. Enquanto Oblonski se dirigia para o outro lado do biombo, onde a voz de homem que ali ressoava deixara de se ouvir, Levine examinou o retrato que avultava na sua moldura sob a chapa de luz. Não podia apartar dele a vista. Esqueceu até mesmo onde estava, e sem prestar a menor atenção ao que se dizia quedou-se de olhos fascinados. Não era um quadro. Era uma mulher viva e encantadora que o fitava com uns olhos de uma suave e fascinadora expressão. Só não estava viva, por ser mais bela do que a mais bela mulher real.
- Tenho muito prazer - disse, de súbito, uma voz junto aos ouvidos de Levine.
Essa voz dirigia-se a ele, naturalmente; e era a voz da mulher cujo retrato contemplava. Ana vinha ao seu encontro e Levine pôde ver, na meia-luz do escritório, a mulher do retrato, com um vestido escuro de tons azuis um pouco diferentes. Embora a sua atitude e a sua expressão fossem outras, a beleza era do mesmo gênero da representada pelo pintor. Com efeito, era menos deslumbrante, mas, em compensação, havia nela algo de novo e de atraente que o quadro não tinha.
CAPÍTULO X
Ana caminhou para ele sem esconder a alegria que aquela visita lhe dava. E na serenidade com que lhe estendeu a pequenina mão enérgica, na maneira como o apresentou a Votkuiev e lhe mostrou uma menina de aspecto agradável e um tanto ruiva que trabalhava ao pé da mesa, dizendo ser a sua protegida, Levine reconheceu esse à-vontade das mulheres de sociedade, sempre plácidas e naturais, que tanto lhe agradava. - Estou encantada, absolutamente encantada - repetia ela. E na sua boca estas palavras banais adquiriam um sentido especial. - Já o conheço há muito tempo e há muito que o estimo tanto pela sua amizade pelo Stiva como pela sua mulher. Apenas a vi uma vez ou duas, mas a impressão que ela me deixou foi encantadora: é uma flor, uma flor delicada. E ouvi dizer que vai ser mãe em breve.
Falava sem embaraço nem pressas, ora olhando para Levine ora para o irmão. Ao perceber que realmente agradava a Ana, Levine sentiu-se, não tardou muito, tão à-vontade como se a conhecesse desde criança. Oblonski perguntou se podia fumar.
- Foi por causa disso que Ivan Petrovitch e eu nos refugiámos no escritório do Alexei - respondeu Ana, oferecendo a Levine uma cigarreira de tartaruga, depois de tirar um cigarro.
- Como te sentes hoje - perguntou-lhe o irmão.
- Não me sinto mal. Um pouco nervosa, como sempre.
- Não é extraordinário? - disse Stepane Arkadievitch, ao notar que Levine não tirava os olhos do quadro.
- Nunca vi nada melhor.
- Nem nada mais parecido - acrescentou Votkuiev.
Levine desviou os olhos do quadro. Um resplendor especial iluminou o rosto de Ana ao sentir aquele olhar. Levine corou, e para esconder a sua perturbação quis perguntar a Ana se há muito não via Daria Alexandrovna, mas nesse momento ela dizia-lhe:
- Estávamos precisamente agora a falar, Ivan Petrovitch e eu, dos últimos quadros de Vatschenkov. Viu-os?
- Vi - respondeu Levine.
- Mas perdoe-me, interrompi-o. Ia dizer qualquer coisa, penso eu... Levine perguntou-lhe se não via há muito Daria Alexandrovna.
- Vi-a ontem, muito zangada com o professor de Latim do Gricha, que ela acha que foi injusto.
- Sim, vi os quadros de Vatschenkov, mas não me agradaram muito - disse Levine, voltando ao assunto inicial.
A conversa derivou para as novas escolas de pintura. Ana falava com inteligência, mas cheia de naturalidade, sem pretensão alguma, apagando-se, para que os outros brilhassem, e tão bem, que Levine, em vez de se sentir torturado, como lhe acontecera o dia inteiro, achou agradável não só falar, mas ouvir outrem. A propósito das ilustrações que um pintor francês acabava de fazer para a Bíblia, Votkuiev increpou o realismo exagerado desse artista. Levine, porém, objectou que esse realismo consistia numa reacção salutar, visto o convencionalismo em arte ter atingido em França proporções incomparáveis.
- Não mais mentir tornou-se para os Franceses como uma forma de poesia - disse ele, e sentiu-se feliz ao ver que Ana o aprovava, rindo. Nunca uma ideia inteligente dera tanta satisfação a Levine.
- Rio-me - explicou Ana - como nos rimos diante de um retrato muito fiel. O que acaba de dizer caracteriza maravilhosamente a arte francesa actual, não só pintura, mas até mesmo a literatura: Zola, Daudet, por exemplo... Naturalmente acontece sempre a mesma coisa: principia-se por se criarem tipos convencionais e, uma vez todas as combinaisons(Nota 113) feitas, regressa-se ao natural.
- Exactamente - disse Votkuiev.
- Quer dizer que vem do clube? - articulou Ana, debruçando-se para o irmão a quem segredou qualquer coisa.
"Sim, sim, ora aqui está uma mulher", pensou Levine, absorto na contemplação daquele rosto cheio de mobilidade, que ele percebia sucessivamente exprimir curiosidade, cólera e orgulho. A emoção de Ana foi, aliás, de breve duração; semicerrou os olhos, como que a concentrar as suas ideias, e voltando-se para a inglesinha, disse:
- Please, order the tea in the drawing room(Nota 114). A criança levantou-se e saiu.
- Que tal lhe correu o exame? - inquiriu Stepane Arkadievitch.
- O melhor possível. Tem muitas aptidões e muito bom feitio.
- Acabarás por lhe querer mais do que à tua própria filha.
- Ora aí está um pensamento de homem. Como se podem comparar esses dois afectos? Gosto da minha filha de uma maneira e desta pequena de outra.
- Ah! - declarou Votkuiev. - Se Ana Arkadievna quisesse empregar em benefício das crianças russas a centésima parte da actividade que consagra a esta inglesinha, que serviços a sua energia poderia prestar! Não me canso de lho dizer.
- Que quer? Estas coisas não se impõem. Quando nós vivíamos na aldeia, o conde Alexei Kirilovitch (ao pronunciar as palavras conde Alexei Kirilovitch, Ana olhou timidamente para Levine, que lhe replicou com um olhar de respeito e aprovação) entusiasmou-se para que eu visitasse a escola da povoação. Fui lá várias vezes. Gosto muito de crianças, mas não consegui interessar-me por essa obra. Fala o senhor de energia? A energia tem por base o amor e o amor não se consegue à força. Afeiçoei-me a esta criança sem eu própria saber porquê.
Ana voltou a olhar para Levine e a sorrir-lhe; tanto o seu olhar como o seu sorriso lhe disseram claramente que era para ele que falava, certa como estava de que se compreendiam mutuamente.
- Tem toda a razão - disse Levine. - Nunca ninguém pôs o coração em obras filantrópicas e é por isso mesmo que elas dão tão pouco resultado.
Ana ficou calada um momento.
- Sim, sim - disse, daí a pouco. - Je n'ai pás le coeur assez large(Nota 115) para amar um asilo inteiro de meninas repugnantes. Cela ne m'a jamais réussi(Nota 116). No entanto, há muitas mulheres que conseguiram com isso criar uma position sociale(Nota 117). Sobretudo agora - acrescentou, com uma expressão triste, dirigindo-se aparentemente ao irmão, embora, na realidade, se dirigisse a Levine - que eu preciso tanto de uma ocupação, é que o não posso fazer - subitamente franziu o sobrecenho (Levine percebeu que era por sentir-se descontente de estar a falar de si mesma) e mudou de conversa. - Ouvi dizer que o senhor tem fama de mau cidadão - disse ela a Levine. - Mas sempre tomei a sua defesa.
- E como?
- Isso dependia dos ataques. Querem tomar chá? - Ana levantou-se e pegou num caderno com capa de carneira que estava em cima da mesa.
- Deixe ver, Ana Arkadievna - pediu Votkuiev, apontando o caderno. - É muito bom.
- Não, ainda não está como deve ser.
- Falei-lhe nisso - disse Stepane Arkadievitch à irmã, apontando para Levine.
- Não o devias fazer. Os meus escritos são no gênero destes cestinhos e outros objectos talhados em madeira, obra dos presos, como os que me vendia Lisa Merkalova... uma amiga minha que se dedicava a obras de caridade - acrescentou, dirigindo-se a Levine. - E esses infelizes, também eles, coitados, faziam prodígios à força de paciência. E Levine descobriu outro traço do carácter daquela mulher, que tanto o impressionara já. Além de ser inteligente, graciosa e bela, era muito sincera. Não procurava esconder de Levine o que havia de doloroso na sua situação. Ao dizer isto, um suspiro se lhe soltou dos lábios e o rosto adquiriu-lhe, de súbito, uma expressão grave, como que petrificada, perfeita antítese da radiosa felicidade que Mikailov surpreendera tão bem e que apesar de tudo ainda a nimbava. Enquanto ela dava o braço ao irmão, Levine lançou um derradeiro olhar ao maravilhoso retraio e sentiu por Ana uma ternura e uma piedade que o surpreenderam.
Ana pediu a Levine e a Votkuiev que passassem para o salão e ficou só com Oblonski. "De que lhe estará ela a falar?", pensou Levine. "Do divórcio? De Vronski? Talvez de mim?" Tão emocionado estava que mal ouvia Votkuiev, que elogiava a história para crianças que Ana escrevera.
Durante o chá a conversa prosseguiu agradável e cheia de interesse. Não faltavam os assuntos e os quatro sentiam-se repletos de ideias. Parecia que a única coisa que faltava era tempo para dizer tudo e até havia necessidade de cada um se calar para deixar que o interlocutor falasse. Graças à atenção que Ana prestava a tudo o que se dizia, às inteligentes observações que fazia, tudo quanto se falava ganhava aos olhos de Levine um interesse especial. Não podia deixar de pensar naquela mulher, admirava-lhe a inteligência, a cultura e o tacto, a naturalidade e procurava adivinhar-lhe os sentimentos e penetrar até aos recessos da sua vida íntima. Tão pronto outrora a criticá-la com severidade, agora tudo lhe perdoava, e a ideia de que Vronski a não compreendesse confrangia-lhe o coração. Já passava das 11 horas quando Stepane Arkadievitch se levantou para sair; Votkuiev já os havia deixado.
Levine também se levantou, mas a custo. Parecia-lhe estar ali havia segundos apenas.
- Adeus - disse-lhe Ana, apertando-lhe a mão e fitando-o nos olhos com demorada atenção. - Estou muito contente que la glace soit rompue(Nota 118). - E soltando-lhe a mão, disse, num piscar de olhos: - Diga à sua mulher que lhe quero como antigamente e que se não pode perdoar- me a minha situação, lhe desejo que nunca chegue a compreendê-la. Para perdoar é preciso sofrer o que eu tenho sofrido e que Deus a livre disso!
- Pode ter a certeza de que lho direi - respondeu Levine, corando.
CAPÍTULO XI
"É uma mulher extraordinária! Que simpática e digna de compaixão!", pensava Levine ao pôr os pés na rua, acompanhado de Stepane Arkadievitch, sentindo no rosto o ar glacial da noite.
- Que te pareceu? Eu bem te disse - exclamou Stepane Arkadievitch, vendo Levine completamente conquistado.
- Não há dúvida - respondeu este, pensativo -, é uma mulher verdadeiramente excepcional! Não é só inteligente, mas extraordinariamente cordial. Inspira muita compaixão!
- Graças a Deus, tudo se vai arranjar, assim o espero. Mas ao menos, fica sabendo agora que de futuro não deves fazer juízos temerários - acrescentou Stepane Arkadievitch, abrindo a portinhola da carruagem. - Adeus. Vamos para lados diferentes.
Todo o caminho Levine recordou as mínimas frases de Ana, a agradável conversa que tivera com ela e os mais diminutos matizes da sua expressão, cada vez mais compadecido ante o drama que a afligia.
Ao entrar em casa, Kuzma entregou-lhe duas cartas e comunicou-lhe que Catarina Alexandrovna estava bem e que as suas duas irmãs havia pouco tinham saído. Para não se esquecer, Levine tratou logo de ler ali mesmo as cartas. Uma era do administrador, Sokolov: dizia-lhe que não pudera vender o trigo, pois apenas lhe ofereciam cinco rublos e meio, e que não tinha onde ir buscar mais dinheiro. A outra era da irmã, que o censurava por não ter resolvido ainda o caso dela.
"Bom, venderemos a cinco rublos e meio, já que não pagam mais", dizia Levine consigo mesmo, resolvendo assim, rapidamente, um problema que antes lhe teria parecido de muito difícil resolução. "É extraordinário como estou sempre tão ocupado aqui", pensou, ao ler a segunda carta. Sentiu-se culpado perante a irmã por não ter feito até então o que lhe pedira. "Também hoje não me foi possível ir ao tribunal." Decidiu fazê-lo no dia seguinte, enquanto se dirigia para o quarto da mulher. E rapidamente rememorou tudo o que fizera durante esse dia. Que fizera, afinal, senão conversar, conversar, nada mais? Nenhum dos assuntos abordados o teria preocupado na aldeia, só aqui assumiam importância. Nenhum deles lhe deixara tão-pouco má recordação, a não ser a infeliz história da solha... E não haveria também algo de repreensível no seu enternecimento por Ana? Encontrou Kitty triste e cismadora. O jantar das três irmãs decorrera muito alegre, mas, como Levine não aparecia, a noite acabara por lhe parecer longa de mais.
- Que fizeste tu? - perguntou-lhe ela, ao notar um brilho suspeito nos olhos do marido; mas nada lhe disse a esse respeito, para lhe não interromper as efusões. Muito pelo contrário, com um sorriso nos lábios ouviu-o contar o que fizera.
- Encontrei Vronski no clube, e em boa hora. De futuro não voltará a haver qualquer atrito entre nós, embora longe de num conviva com ele. O importante era acabar com esta tensão - dizendo o que, corou. Lembrara-se, de súbito, que para "não conviver com ele" fora a casa de Ana depois de sair do clube. - Dizem que a gente do povo bebe, mas não sei quem bebe mais, se o povo se a nossa classe. O povo bebe nos dias de festa, mas em compensação...
A Kitty pouco interessava saber quanto bebe o povo. Vira corai Levine e queria saber porquê. - Onde estiveste depois?
- Stiva insistiu muito comigo que o acompanhasse a casa de Ana Arkadievna.
Dito isto, Levine ainda mais corado ficou, e a dúvida que tinha sobre se procedera bem ou mal visitando Ana decidiu-se naquele momento. Agora dava-se conta de que o não devia ter feito.
Ao ouvir o nome de Ana, os olhos de Kitty abriram-se desmesuradamente e brilharam de modo especial, mas, num esforço sobre si mesma, dominou a emoção para iludir Levine.
- Ah! - limitou-se a exclamar.
- Não estás zangada, pois não? Stiva pediu-me com tanta insistência, e era esse, de resto, o desejo de Dolly - prosseguiu Levine.
- Oh, não! - exclamou Kitty, e Levine viu-lhe nos olhos o esforço que ela fazia para se dominar, o que não lhe augurava nada bom.
- É uma mulher simpática, boa e muito digna de compaixão - continuou Levine; e contou-lhe o que sabia da vida de Ana e o que ela lhe pedira que lhe dissesse da sua parte.
- Sim, é digna de compaixão - afirmou Kitty, quando Levine acabou de falar. - De quem recebeste carta?
Levine disse-lhe e, iludido pela serenidade de Kitty, entrou no quarto de toucador. Quando voltou ao quarto de dormir, Kitty não se mexera. Ao vê-lo aproximar-se, rompeu em soluços.
- Que foi? Que aconteceu? - perguntou Levine, sabendo perfeitamente o que acontecera.
- Enamoraste-te dessa repugnante mulher. Enfeitiçou-te. Vi-o logo nos teus olhos. Sim, sim! Que vai sair de tudo isto? Estiveste no clube, bebeste de mais, onde havias tu de ir depois do clube senão a casa de uma mulher como ela?... Não, isto não pode continuar. Amanhã vamo-nos embora.
Levine viu-se em apuros para apaziguar a mulher. Só o conseguiu depois de prometer que não voltaria a casa de Ana, cuja perniciosa influência, à mistura com um excesso de champanhe, lhe perturbara a razão. O que ele lhe confessou com mais sinceridade foi que aquela vida ociosa, sempre a beber, a comer e a tagarelar, o tornava simplesmente estúpido. Falaram até às três da madrugada. Só a essa hora acabaram por se reconciliar e puderam dormir.
CAPÍTULO XII
Depois de acompanhai os seus convidados, Ana, sem se sentar um momento, pôs se a passear de um lado para o outro da sala. Havia tempo já que nas suas relações com os homens se comportava com uma coqueteria por assim dizer involuntária, naquela noite fizera o possível para enamorar Levine e ficara certa de que o conseguira, pelo menos na medida compatível com a honestidade de um recém casado. O jovem agradara lhe e, não obstante certos contrastes exteriores, o seu tacto de mulher permitira lhe descobrir entre Levine e Vronski essa afinidade secreta, graças à qual Kitty se enamorara dos dois homens. No entanto, assim que ele partira, esquecera-o. Um único pensamento a absorvia.
"Pois se eu causo tanta impressão nos outros, como, por exemplo, neste homem casado, e enamorado da mulher, porque se mostra ele tão frio comigo?... E não é que se mostre precisamente frio. Sei que me quer. Mas agora qualquer coisa nova nos separa. Porque não terá ele aparecido toda a tarde? Pediu ao Stiva que me dissesse que não podia abandonar o Iachivne, que tinha de o vigiar enquanto ele jogava. Será porventura Iachivne uma criança? Suponhamos que era verdade. Alexei nunca me mente. No entanto, nessa verdade há outra coisa. Gosta de me poder demonstrar que tem obrigações. Sei que assim é e estou de acordo, mas, para que mo demonstra ele? Quer fazer me ver que o seu amor para comigo não deve cortar a sua liberdade. Não preciso de demonstrações, mas de amor. Devia compreender quanto me é dolorosa a vida que levo aqui, em Moscovo. Acaso é isto viver? Eu não vivo, apenas espero um desenlace que vai tardando cada vez mais. Outra vez sem resposta! Não posso fazer nada, não posso empreender nada nem mudar nada. Domino-me e espero, procurando formas de me distrair a família do inglês, o livro que escrevo, a leitura. Mas tudo isto é ilusão, pura morfina. Alexei devia ter compaixão de mim" dizia Ana no seu foro íntimo, dando se conta de que as lágrimas lhe saltavam dos olhos ao compadecer se de si mesma.
De súbito, ouviu se a forte campainhada de Vronski. Ana não só tratou de enxugar logo as lagrimas, como fingiu a maior calma, sentando se junto ao candeeiro, com um livro na mão queria mostra lhe o seu descontentamento, não o deixar ver a sua dor. Vronski não devia permitir se ter pena dela. Era ela quem assim provocava a luta, que dizia ser ele o primeiro a instigar.
- Não te aborreceste? - perguntou lhe Vronski, aproximando-se dela, animado e alegre - Que terrível paixão o jogo.
- Não de todo Há muito que aprendi a não me aborrecer Estiveram aqui o Stiva e o Levine.
- Sim, eu sabia que pensavam visitar-te. Que te pareceu o Levine?
- perguntou lhe Vronski, sentando se a seu lado.
- Gostei muito dele. Foram-se há pouco. Que fez o Iachivne?
- Ao princípio esteve a ganhar dezassete mil rublos. Disse-lhe que abandonasse o jogo. Ainda chegou a levantar-se da mesa, mas depois voltou a ela e agora está a perder tudo.
- Então para que ficaste lá - perguntou Ana, erguendo de súbito os olhos para Vronski. A expressão que tinha no rosto era fria e desagradável - Disseste ao Stiva que ficavas para levar o Iachvine. E afinal deixaste o lá.
- Em primeiro lugar, não lhe pedi que te dissesse coisa alguma, em segundo, nunca minto. E o principal é que queria ficar e fiquei - replicou, de sobrecenho franzido - Para que me dizes isso, Ana? Para quê? - acrescentou, depois de um momento de silêncio, e inclinando-se para ela, de mão aberta, esperando que Ana lhe confiasse a sua.
Ana gostou daquele gesto de ternura, mas uma estranha força maligna a deteve, era como se as condições da luta impedissem de se submeter.
- Naturalmente querias ficar e ficaste. Fazes tudo o que queres Mas para que me dizes isso? Para quê? - exclamou, cada vez mais exaltada - Acaso alguém discute os teus direitos? Queres ter razão, pois fica com ela.
Vronski fechou a mão, endireitando-se, e no rosto pintou se lhe uma expressão ainda mais firme.
- Para ti é uma questão de casmurrice, sim, de casmurrice - repetiu ela, olhando fixamente Vronski, quando encontrou um qualificativo para aquela expressão que tanto a irritava - Para ti o que importa é saber qual de nós acabará por sair vencedor. Mas, para mim - outra vez sentiu compaixão por si própria e pouco faltou para romper a chorar - Se soubesses o que isso é para mim! Se soubesses o que significa para mim a tua hostilidade, sim, é essa a palavra. Se soubesses o medo que eu tenho de uma desgraça em momentos assim, o medo que tenho de mim mesma! - e Ana voltou o rosto para esconder as lágrimas.
- Mas a que propósito tudo isso? - perguntou Vronski, horrorizado, ao ver o desespero de Ana E inclinando se de novo para ela, beijou lhe a mão - Porque me falas assim? Porventura busco distracções fora de casa? Não é verdade que evito o convívio de mulheres?
- Não faltava mais nada - exclamou Ana.
- Diz-me o que queres que eu faça para te tranqüilizar. Estou pronto a tudo para te fazer feliz - insistiu Vronski, comovido ao vê-la tão infeliz.
- Não é nada! Não é nada! - replicou Ana - Nem eu própria sei. Talvez a minha vida solitária, talvez os meus nervos Bom, não falemos mais nisso. Conta-me das corridas. Ainda não me disseste nada
- concluiu, procurando esconder a alegria da vitória que acabara por obter. Vronski pediu que lhe arranjassem de cear e enquanto comia contou-lhe os incidentes das corridas; mas Ana notou, no tom da sua voz e no seu olhar, cada vez mais frio, que lhe não perdoara aquela vitória e que reaparecia nele essa obstinação contra a qual lutara. Vronski mostrava-se mais frio para com ela do que anteriormente, como se se arrependesse de haver cedido. E Ana recordou as palavras que lhe tinham proporcionado a vitória: "Se soubesse o medo que eu tenho de uma desgraça em momentos assim, o medo que tenho de mim mesma!" Compreendeu, porém, que a arma era perigosa e que não podia tornar a empregá-la. Notava que, juntamente com o amor que os unia, surgia entre eles como que um espírito de luta, espírito de luta que não era capaz de apartar do coração e dominá-lo. Outro tanto acontecia a Vronski.
CAPÍTULO XIII
Não há situação a que um homem se não habitue, principalmente se todos os que o rodeiam vivem em iguais condições. Três meses antes, Levine não teria acreditado ser capaz de dormir descansado nas circunstâncias em que presentemente se encontrava, levando uma vida ociosa e sem objectivo, com despesas superiores às suas possibilidades, depois de se haver embebedado (era preciso dar às coisas o seu verdadeiro nome) no clube, de manter absurdas relações com um homem de quem a própria mulher estivera enamorada, de ter visitado e de se ter deixado cativar por uma criatura que afinal pouco mais era do que uma perdida e de haver feito sofrer Kitty. A verdade, porém, é que, graças ao cansaço, à noite passada em claro e ao vinho que bebera, dormiu um sono profundo e pacífico.
Pelas 5 horas, o rangido de uma porta que se abria acordou-o em sobressalto; Kitty não estava na cama a seu lado; no quarto do toucador, contíguo, viu uma luz que se movia e ouviu os passos da mulher.
- Que foi? Que foi? - exclamou, ainda ensonado. - Kitty, que é isso?
- Nada - replicou, entrando no quarto de dormir com uma vela na mão. - Senti-me indisposta - acrescentou com um sorriso particularmente agradável e significativo.
- Hem? Já principiou? - exclamou ele, assustado, procurando a roupa para se vestir o mais rapidamente possível. - É preciso chamar a parteira.
- Não, não - respondeu Kitty, risonha, detendo-o com um gesto de mão. - Podes ter a certeza que não é nada. Apenas me senti mal. já passou.
E aproximando-se da cama, apagou a vela, deitou-se e ficou em silêncio.
Por mais suspeitas que lhe parecessem, a Levine, a opressa respiração de Kitty e a suavidade com que lhe dissera: "Não é nada", tão cansado pitava que adormeceu de novo, acto contínuo.
Só mais tarde lembrou aquele silencioso respirar e compreendeu tudo o que se passara naquela querida e formosa alma nos momentos em que, imóvel, estendida a seu lado, aguardava o maior acontecimento da vida de uma mulher. As sete acordou com a mão de Kitty no ombro, e ouvindo um sussurro. Dir-se-ia que Kitty lutava entre a pena que lhe dava acordar o marido e o desejo de conversar com ele.
- Kóstia, não te assustes. Não é nada. Mas parece-me... Temos de avisar Elizabeth Petrovna.
A vela estava acesa de novo. Kitty, sentada na cama, tinha nas mãos o lavor em que andava empenhada havia dias.
- Peço-te que não te assustes, não é nada. Não tenho medo nenhum-prosseguiu ela, ao ver Levine tão perturbado. Pegou-lhe na mão, apertou-a contra o seio e depois levou-a aos lábios.
Levine ergueu-se de um salto, e sem deixar de olhar para ela enfiou o roupão e ficou parado diante da mulher. Tinha que ir, mas não podia apartar-se de Kitty. Aquele rosto fulgurante, sob a touca de dormir, de onde se derramavam madeixas de cabelo sedoso, rosto que ele tanto amava, e de que supunha conhecer toda a gama de expressões, surgia-lhe agora a uma luz completamente nova. Aquela alma cândida e transparente desvendava-se-lhe quase nos seus mais profundos recessos. E Levine sentiu-se corar de vergonha, lembrando-se do que se passara na véspera.
Kitty também tinha os olhos nele e sorria. Mas, de súbito, as pálpebras agitaram-se-lhe: levantou a cabeça e, puxando o marido contra o seio, apertou-o muito, como se uma grande dor a trespassasse. Ao perceber este sofrimento mudo, o primeiro movimento de Levine foi ainda considerar-se responsável dele; porém, o olhar pleno de ternura com que Kitty o fitou tranqüilizou-o: em vez de o acusar, parecia querer-lhe mais ainda. "Só eu sou culpado!", disse de si para consigo, como se procurasse debalde o autor daquele sofrimento, a quem quisesse castigar, embora Kitty sofresse com a altivez do triunfo. Percebia que e'a estava a atingir paramos de sentimento incompreensível para ele.
- Já mandei chamar a mãe - disse ela. - E tu vai depressa procurar Elizabeth Petrovna... Kóstia!... Não, passou.
Kitty desprendeu-se de Levine para chamar a criada de quarto.
- Então vai, depressa. Sinto-me melhor e já aí está a Pacha, que não tarda.
E com espanto seu viu que Kitty pegava de novo no trabalho que pusera de lado e recomeçava a sua tarefa.
Enquanto saía por uma porta, ouvia a camareira entrar pela outra. Deteve-se e ficou a escutar as ordens de Kitty, enquanto a criada diligenciava mudá-la de cama.
Levine vestiu-se precipitadamente e enquanto atrelavam o carro, pois àquela hora matinal arriscava-se a não encontrar trem de praça, aproximou-se, em bicos de pés, do quarto de dormir: duas criadas obedeciam às ordens de Kitty, que andava de um lado para o outro, sempre com o crochet entre os dedos, trabalhando nervosamente.
- Vou chamar o médico, já mandei chamar a Elizabeth Petrovna; mas, mesmo assim, também passarei por casa dela. Precisas de alguma coisa? Queres que avise a Dolly?
Kitty olhou para Levine, naturalmente sem ouvir o que ele dizia.
- Pois sim, sim, vai - disse, precipitadamente, franzindo as sobrancelhas enquanto fazia um gesto com a mão.
Levine entrava na sala de jantar quando de súbito ressoou um gemido doloroso, que não tardou a desvanecer-se. Deteve-se. Por momentos ficou sem compreender de que se tratava.
"Sim, é ela", acabou por dizer para si mesmo; e apertando as mãos na cabeça, meteu escada acima.
- Senhor, perdoa-me e ajuda-me! - pronunciou. Estas palavra? acudiram-lhe subitamente, a ele, um homem sem fé, e repetiu-as, não apenas com os lábios.
Naquele momento dava-se conta de que não só as dúvidas mas até mesmo a sua impossibilidade de crer, toda raciocinada, o não impediam de dirigir-se a Deus. A incredulidade desvanecera-se-lhe da alma como se fosse pó. A quem havia de dirigir-se senão Aquele em cujas mãos sentia encontrarem-se tanto a sua alma como o seu amor?
O cavalo ainda não estava atrelado; para não perder tempo, e distrair a atenção, foi seguindo a pé, depois de dizer a Kuzma que fosse ter com ele.
A esquina encontrou um trenó de praça, que um cavalicoque tirava, a trote. Dentro dele vinha Elizabeth Petrovna com uma capa de veludo e um xale pela cabeça.
- Louvado seja o Senhor! Louvado seja o Senhor! Louvado seja o Senhor! - exclamou Levine, alegremente, ao reconhecer a cara miúda e a tez clara da parteira, naquele momento com uma expressão particularmente séria e até mesmo severa. Sem mandar parar o trenó, retrocedeu, ponde-se a correr ao lado dele.
- Então, duas horas? Só duas? - perguntou a parteira.
- Vai encontrar, com certeza, Piotre Dimitrievitch em casa, mas não lhe dê pressa. Compre ópio numa farmácia.
- Acha que tudo correrá bem? Que Deus a ajude!-exclamou Levine, ao ver o seu cavalo que saía já do pátio da casa. E dando um pulo para dentro do trenó, sentou-se ao lado de Kuzma, e mandou-o seguir para a casa do médico.
CAPÍTULO XIV
O médico ainda não estava levantado; o criado disse a Levine que ele "se deitara tarde e que dera ordens para não o acordarem, mas que não tardaria a levantar-se". Limpava as chaminés dos candeeiros e parecia muito entretido com a tarefa. A atenção que ele prestava aos candeeiros e a indiferença com que acolhia o que Levine lhe dizia surpreenderam-no de princípio. Mas depois de reflectir, compreendeu que o criado não sabia, nem tinha sequer a obrigação de saber, o que se estava a passar dentro dele próprio e que devia, portanto, proceder com serenidade, ponderando e mostrando-se resoluto. Só assim poderia derrubar aquela muralha de indiferença e alcançar o seu objectivo. "Não devo precipitar-me nem omitir nada", murmurava com os seus botões, sentindo-se cada vez com mais força física e mais atenção para tudo o que precisava fazer.
Ao inteirar-se de que o médico ainda não se levantara, entre os vários planos que delineou, Levine resolveu seguir o seguinte: Kuzma iria a casa de outro médico com um recado seu, enquanto ele próprio se dirigia à farmácia a comprar ópio. Se no regresso da farmácia o médico ainda não estivesse levantado, subornaria o criado e, no caso de este não ceder, obrigá-lo-ia à força a acordar o amo.
Na farmácia, um cocheiro aguardava uns pós que o ajudante do farmacêutico ia metendo nas respectivas cápsulas com a mesma indiferença com que o criado do esculápio limpava as chaminés dos candeeiros. Claro está que o magricela do ajudante de farmácia se recusou a vender ópio a Levine, o qual, cheio de paciência, lhe explicou quem eram o médico e a parteira que o mandavam e lhe expôs o emprego a que destinava o medicamento. Depois de favorável acolhimento da parte do dono da farmácia, que estava atrás de um guarda-vento, e a quem o ajudante consultou em alemão, este deitou a mão a um frasco, despejou lentamente a parte do seu conteúdo noutro frasco menor, pegou numa etiqueta e lacrou-o, a despeito dos rogos de Levine para que o não fizesse. Dispunha-se ainda a embrulhá-lo quando o cliente, exasperado, lho arrancou das mãos e saiu porta fora.
O médico ainda não se levantara e o criado que naquele momento estendia um tapete recusou-se a chamá-lo. Sem pressas, Levine puxou de uma nota de dez rublos e entregou-a ao lacaio, enquanto lhe explicava lentamente, ainda que sem perda de tempo, que Piotte Dimitrievitch (que grande e importante lhe parecia agora aquele Piotre Dimitrievitch, até aí tão insignificante!) lhe prometera comparecer a qualquer hora, que não ficaria aborrecido pelo facto de o acordarem, pedindo-lhe que o fizesse imediatamente.
O criado acedeu, e depois de introduzir Levine na sala de espera, subiu ao andar superior.
Levine ouvia o médico, que andava de um lado para o outro, tossindo, lavando-se e dizendo qualquer coisa. Decorreram três minutos, que lhe pareceram mais do que uma hora. Já não podia esperar mais.
- Piotre Dimitrievitch! Piotre Dimitrievitch! - chamou, implorativo, através da porta aberta. - Perdoe-me, por amor de Deus! Receba-me tal como está. Já passaram mais de duas horas.
- Vou já! Vou já - respondeu uma voz, e Levine ficou perplexo ao dar-se conta de que o médico se ria ao responder-lhe.
- Só duas palavras, peco-lhe.
- Um momentinho.
Decorreram ainda dois minutos, o tempo para o médico se calçar, e mais outros dois minutos, o tempo para se vestir e se pentear.
- Piotre Dirmtrievitch - chamou de novo Levine em voz queixosa; mas nesse momento entrava o médico, vestido e penteado. "Estes homens não têm consciência", pensou Levine. "Enquanto os outros morrem, eles penteiam-se."
- Bom dia! - exclamou o médico, apertando-lhe a mão com a maior serenidade; dir-se-ia troçar dele. - Não tenha pressa. Então que há?
Procurando ser o mais exacto que pudesse, Levine principiou a contar pormenores desnecessários do estado da mulher, interrompendo-se a cada momento para implorar do médico que fosse imediatamente com ele.
- Não tenha pressa, o senhor não sabe nada disto. Provavelmente não faço falta nenhuma. Mas, visto que prometi, irei. Não tenha pressa. Faça favor de se sentar. Quer tomar café?
Levine olhou para o médico e o seu olhar parecia inquirir se não estaria a troçar dele. Mas este não pensava em semelhante coisa.
- Já sei, já sei - disse sorrindo. - Eu também sou homem casado. Nós, os maridos, somos as criaturas mais dignas de lástima em tais momentos. Tenho uma cliente cujo marido nestas alturas se vai refugiar na cavalariça.
- Piotre Dimitrievitch, acha que tudo vai correr bem?
- Tudo indica que sim.
- Então vem comigo, não é verdade? - insistiu Levine, fulminando, com o olhar, o criado que trazia o café.
- Dentro de uma horinha.
- Não, não, por amor de Deus!
- Bom, então espere que eu tome o café.
O médico pôs-se a tomar o café e ambos ficaram calados.
- Parece que os Turcos estão a apanhar pela grande. Leu o último comunicado? - perguntou, enquanto trincava um pãozinho.
- Não posso mais! - exclamou Levine, levantando-se de súbito.
- Jura-me que dentro de um quarto de hora estará lá?
- Dentro de meia hora?
- Palavra de honra?
Quando entrou em casa, Levine deparou-se com a sogra, que acabava de chegar, e juntos dirigiram-se à porta do quarto de Kitty. A princesa tinha as lágrimas nos olhos e as mãos tremiam-lhe. Ao ver Levine abraçou-se a ele e prorrompeu em soluços.
- Como vai isso, querida Elizabeth Petrovna? - perguntou à parteira, que vinha ao encontro deles, de rosto ao mesmo tempo radiante e preocupado, pegando-lhe numa das mãos.
- Tudo vai bem - replicou esta. - Convença-a a deitar-se. Será melhor para ela.
Desde o momento em que Levine acordara e se dera conta do que estava a acontecer, dispôs-se a não pensar em coisa alguma, a nada prever, a fechar à chave as suas ideias e os seus sentimentos, não desgostar a mulher, antes pelo contrário, apaziguá-la e incutir-lhe ânimo, para que ela pudesse enfrentar o que a aguardava. Nem sequer se permitia pensar no que ia acontecer e no que seria o desenlace, e, a avaliar pelas informações que tinha acerca de quanto podia vir a durar aquele transe, dispôs-se a sofrer e a dominar o coração umas cinco horas, coisa que lhe parecia possível. Porém, quando, ao voltar de casa do médico, pôde presenciar de novo os sofrimentos de Kitty, principiou a repetir cada vez mais amiúde: "Senhor, perdoa-me e ajuda-me", enquanto suspirava, de olhos erguidos para o céu.
Tamanho era o seu sofrimento que receava não poder resistir-lhe; temia romper a chorar ou desatar a correr. E só passara ainda uma hora.
Mais uma hora decorreu, depois outra, e ainda uma quarta hora, isto é, a última que Levine dispusera para prazo máximo do que teria de sofrer. E a situação, a mesma. Continuava a sofrer, pois não tinha outra coisa que fazer, e a todo o momento se julgava chegado ao extremo limite e que ia estalar o coração.
Passaram horas e horas: o tormento e o horror aumentavam e a tensão em que estava era cada vez maior.
Pouco a pouco as condições normais da vida tinham desaparecido, a noção de tempo deixara de existir. Tão pronto os minutos - aqueles em que Kitty o chamava para o seu lado e ele lhe pegava na mão suada, que ora apertava a dele com força extraordinária ora a soltava - lhe pareciam horas, como as horas lhe pareciam minutos. Pareceu assombrado quando, ao pedir-lhe Elizabeth Petrovna que acendesse uma vela do outro lado do biombo, consultou o relógio e viu serem cinco horas da tarde. Se lhe tivessem dito que eram dez da manhã, a surpresa seria a mesma.
Tampouco teria podido dizer o que fizera durante todo esse tempo. Via o túmido rosto de Kitty, ora compungido e cheio de sofrimento ora sorridente e desejoso de o tranqüilizar; via a princesa, afogueada, excitada, os caracóis soltos e os olhos cheios de lágrimas, que se esforçava por esconder, mordendo os lábios; via Dolly e o médico, que fumava grossos cigarros; via Elizabeth Petrovna, de rosto firme, resoluto e tranqüilizador, bem como o velho príncipe, passeando pela sala, de sobrecenho carregado; mas não se dava conta de como entravam e saíam, nem onde estavam. A princesa tão depressa estava no quarto de dormir, ao lado do médico, como no escritório, onde apareceu uma mesa posta, e às vezes era Dolly quem ocupava o seu lugar. Levine também se lembrou depois de que o haviam mandado fazer alguma coisa. Pediram-lhe que mudasse uma mesa e um divã. Fê-lo com toda a diligência, convencido de que Kitty precisava disso, e só mais tarde compreendeu que era para lhe arranjarem onde passar a noite. Mandaram-no ao escritório perguntar qualquer coisa ao médico. Este respondeu-lhe e em seguida falou-lhe na desorganização que lavrava no Conselho municipal. Também o mandaram trazer do quarto de dormir da princesa uma imagem com adornos de prata dourada. Auxiliado pela velha criada da princesa, trepou acima do armário para chegar à imagem e partiu a lamparina. A criada consolara-o deste acidente e encorajara-o quanto ao estado de Kitty. Levine colocou a imagem cuidadosamente à cabeceira de Kitty, por detrás dos travesseiros. Mas ignorava onde, quando e por que tudo isso acontecera. Tampouco percebia por que lhe pegava na mão a velha princesa e, fitando-o, com expressão compassiva, lhe pedia que se tranqüilizasse ou por que lhe suplicava Dolly que comesse alguma coisa, tentando afastá-lo do quarto, ou ainda por que até mesmo o médico o olhava tão sério e com tanta compaixão, enquanto lhe oferecia umas gotas.
Uma única coisa lhe parecia evidente: que estava na mesma situação que um ano antes na estalagem daquela capital de província junto ao leito de agonia do seu irmão Nicolau. Mas então tratava-se de uma desgraça e agora de uma alegria. Tanto aquela desgraça como esta alegria estavam, porém, fora das condições normais da vida, eram como que uma clareira em que vislumbravam perspectivas sobre o além. O que ia acontecer chegava difícil e dolorosamente, tal como quando a alma se elevava, perante esse fato sobrenatural, a alturas inacessíveis, em que nunca se encontrara antes e onde a razão não podia chegar.
"Senhor, perdoa-me e ajuda-me!", repetia Levine a todo o momento. Apesar do seu prolongado desapego das coisas divinas, invocava Deus com a mesma confiança e a mesma naturalidade como quando criança e adolescente.
Durante aquelas longas horas passou, alternativamente, por dois estados de espírito completamente opostos. Um, quando estava com o médico, que fumava, uns atrás dos outros, grossos cigarros, apagando-os na borda do cinzeiro, cheio de cinza, ou quando estava com Dolly e com o príncipe, ao pé de quem se falava de comida, de política, da doença de Maria Petrovna, e aí, de súbito, Levine chegava a esquecer momentaneamente o que acontecia. O outro estado de espírito invadia-o na presença de Kitty, junto à cabeceira da sua cama: então o coração quase lhe estalava no peito, pleno de compaixão, e rezava, rezava, constante-mente. E de cada vez que, por momentos, esquecido de tudo, um grito ouvia no quarto, Levine incorria no mesmo estranho erro em que incorrera no primeiro momento: erguia-se de um salto e o sentimento angustioso de uma culpabilidade imaginária apoderava-se dele. Impelido pela necessidade de se justificar, corria ao quarto da mulher, mas no caminho lembrava-se de que não era culpado. Então sentia desejos de socorrer e de ajudar Kitty. Mas, ao vê-la, dava-se conta de que não havia ajuda que se lhe pudesse prestar e, horrorizado, repetia: "Senhor, perdoa-me e ajuda-me!" Quanto mais tempo passava, tanto mais contrastavam aqueles estados de espírito. Cada vez se sentia mais tranqüilo não vendo Kitty, esquecendo-a por completo, e cada vez o atormentavam mais os seus sofrimentos e era mais intensa a sensação de impotência que o tomava. E levantava-se de chofre no desejo de fugir; mas de novo voltava para o lado dela.
Quando Kitty chamava insistentemente uma ou mais vezes, Levine censurava-a. No entanto, ao ver-lhe o rosto submisso e risonho e ao ouvi-la dizer-lhe: "Estou a atormentar-te", a Deus é que ele censurava. E imediatamente Lhe pedia perdão e misericórdia.
CAPÍTULO XV
Levine não sabia se era tarde, se era cedo. As velas estavam quase consumidas. Dolly acabava de entrar no escritório e pedira ao médico que fosse descansar um pouco. Levine, sentado, ouvia o médico contar façanhas de um charlatão magnetizador, enquanto fitava a cinza do cigarro. Houvera um período de acalmia, e chegara a distrair-se... Esquecera-se por completo do que estava a acontecer. Ouvia o médico e compreendia o que ele dizia. De repente, soou um grito. Foi tão terrível que Levine nem sequer fez menção de se levantar; apenas olhou, desfalecido, para o médico, numa expressão entre aterrada e interrogativa. Piotre Dimitrievitch apurou o ouvido, com a cabeça inclinada para o lado e depois sorriu, satisfeito. Tudo era tão extraordinário que já nada surpreendia Levine. "Naturalmente assim tem de ser", pensou, e permaneceu sentado. Quem gritara daquela maneira? Levine acabou por levantar-se e em bicos de pés penetrou, apressado, no quarto de Kitty; depois de passar junto de Elizabeth Petrovna e da princesa, foi colocar-se à cabeceira da cama, no seu lugar costumado. O grito desvanecera-se, mas alguma coisa mudara. Não via nem compreendia o que fosse, nem sequer desejava sabê-lo. Contudo, isso mesmo se lia no rosto de Elizabeth Petrovna, séria e pálida. Conquanto mantivesse a mesma expressão resoluta, tremiam-lhe ligeiramente os maxilares, de olhos cravados em Kitty. Esta, com o rosto congestionado, atormentado, coberto de suor, com uma madeixa de cabelos colada à testa, voltada para Levine, procurava-lhe o olhar. Erguendo as mãos, pedia-lhe as dele; e ao receber nas suas, suadas, as mãos frias de Levine, apertou-as de encontro à face.
- Não te vás embora! Não te vás embora! Não tenho medo, não tenho medo! - pronunciou, precipitadamente. - Mãe, tira-me os brincos. Incomodam-me. Tens medo? Pronto, Elizabeth Petrovna, pronto!
Kitty falava com precipitação: quis sorrir. Mas, subitamente, o rosto desfigurou-se-lhe e repeliu Levine.
- Oh! Isto é horrível! Vou morrer! Vou morrer! Vai-te! Vai-te! - exclamou, e de novo se ouviu o grito medonho.
Apertando as mãos na cabeça, Levine saiu do quarto.
- Não é nada, não é nada! Tudo vai bem! - disse-lhe Dolly, quando ele passou por ela.
Mas, dissessem o que dissessem, naquele momento tinha a certeza de que tudo estava perdido. Ficou no quarto contíguo, a cabeça apoiada no gonzo da porta. Continuava a ouvir o tal grito, que mais parecia um uivo, um grito como nunca ouvira outro igual, e quem gritava daquela maneira, sabia-o, era a sua Kitty. Havia instantes já que não desejava o filho. Agora odiava tal criatura. Nem sequer queria que salvassem a vida de Kitty; desejava muito simplesmente que aqueles terríveis sofrimentos acabassem de vez.
- Doutor! Que é isto? Que é isto? Meu Deus! - exclamou, pegando na mão do médico, que entrava naquele momento.
- Está tudo a acabar - replicou este. Tão severa era a sua expressão ao dizer isso que Levine entendeu que ao dizer "está tudo a acabar", o médico significava que era a morte que chegava.
Fora de si, entrou impetuoso no quarto de dormir. A primeira coisa que viu foi a fisionomia de Elizabeth Petrovna, mais sombria e grave do que nunca. No lugar onde estivera o rosto de Kitty surgia agora qualquer coisa de horrível, tanto pela desfiguração em que estava como pelo alarido que fazia. Levine apoiou a cabeça à cabeceira da cama, sentindo que o coração lhe estalava no peito. Aquele terrível grito cada vez se fazia mais lancinante. De súbito, porém, extinguiu-se, como se tivesse atingido o mais alto grau do horror. Levine parecia duvidar dos seus ouvidos; mas não havia dúvida: o grito cessara. Apenas se percebiam ruídos macios e roupas revolvidas, respirações cansadas e, por último, a voz de Kitty entrecortada, a sua voz viva e suave, cheia de felicidade, que dizia: "Acabou!"
Levine ergueu a cabeça. Com os braços caídos, desfalecidos, em cima da colcha, Kitty, extraordinariamente bela e serena, olhava-o em silêncio, desejando sorrir, mas ainda sem poder.
Subitamente, Levine sentiu-se transportado, daquele mundo misterioso e terrível em que vivera as últimas vinte e quatro horas, ao seu mundo habitual, ao mundo anterior, resplandecente agora de uma felicidade tão radiosa que a não pôde suportar. Os soluços e as lágrimas de alegria com que ele próprio não contava abalaram-lhe o corpo com tal ímpeto que durante longo espaço de tempo lhe foi impossível falar.
De joelhos ao lado da cama, tinha a mão de Kitty próxima dos lábios e beijava-a, embora ela apenas lhe correspondesse com um débil toque de dedos. Entretanto, aos pés da cama, nas mãos da hábil Elizabeth Petrovna, como a chamazinha de uma vela, vacilava a vida de um novo ser, que não existia antes, mas que passaria a viver com os mesmos direitos dos demais, tão importante como qualquer outro e como qualquer outro gerando seres semelhantes a ele.
- Está vivo! Está vivo! E é um rapaz! - ressoava aos ouvidos de Levine. E Elizabeth Petrovna, com mão trêmula, dava palmadas nas costas dessa criaturinha.
- É verdade, mãe? - perguntou Kitty.
Responderam-lhe apenas os soluços da princesa.
E no meio do silêncio que se fez, como que resposta indubitável à pergunta da mãe, ouviu-se uma voz diferente de todas as vozes que falavam baixo no quarto contíguo. Era o vagido, penetrante, atrevido, que não atendia a razões e não se sabia de onde vinha, do novo ser humano. Se momentos antes houvessem dito a Levine que Kitty morrera e que ele também morrera, que os seus filhos eram anjos e que todos estavam diante de Deus, não se teria surpreendida Mas agora, de regresso ao mundo da realidade, eram grandes os esforços mentais que fazia para compreender que Kitty estava sã e salva e que o ser que gritava tão desesperadamente era seu filho. Kitty estava viva e os seus sofrimentos tinham acabado. Uma ventura indescritível se apoderara de Levine. E, compreendendo-o, isso cumulava-o de felicidade. E a criança? Quem era?
Para quê e de onde vinha?... Parecia-lhe supérflua, que estar a mais. Por muito tempo não foi capaz de se acostumar a ela.
CAPÍTULO XVI
Pelas 10 horas o velho príncipe Sérgio Ivanovitch e Stepane Arkadievitch estavam reunidos em casa de Levine. Queriam saber novas da parturiente. Levine ouvia-os enquanto recordava involuntariamente o que se passara na véspera e as regiões onde pairara antes do acontecimento. Tinha a impressão de terem passado cem anos. Era como se estivesse numa altitude inacessível, de onde descia cautelosamente com receio de ofender os que falavam com ele. Enquanto conversava não deixava de pensar na mulher e no filho, tentando adaptar-se à ideia de que eles existiam. O papel da mulher na vida, cuja importância ele só compreendera depois do casamento, ultrapassava agora todas as suas previsões. Enquanto os seus amigos discorriam sobre um jantar havido na véspera no clube, ele dizia consigo mesmo: "Que estará ela a fazer? Em que estará a pensar? Dormirá? E meu filho Dimitri continuará a chorar?" E no meio de uma dessas frases levantou-se, de repente, e foi ver o que se passava no quarto de Kitty.
- Manda-me dizer se a posso visitar - disse o príncipe.
- Mando já - replicou Levine, sem se deter. Kitty estava acordada, falava em voz baixa com a mãe, fazendo projectos para o baptizado. Com as mãos estendidas sobre a colcha, arranjada e penteada, na cabeça uma airosa touca azul, deitada de costas, acolheu Levine, chamando-o com os olhos. O seu olhar, sempre tão límpido, ia clareando mais ainda à medida que ele se aproximava. No seu rosto notava-se aquela transição do terreno para o ultraterreno, que é costume observar na máscara dos mortos, só com uma diferença: que neles isso é sinal de despedida, não de boas vindas à vida. Levine tornou a sentir a emoção que experimentara durante o parto. Kitty pegou-lhe na mão e perguntou-lhe se dormira. Levine, sem palavras para responder, desviou o rosto para o lado, ao convencer-se da sua fraqueza.
- Pois eu, Kóstia, consegui dormitar um pouco. Agora estou muito bem.
Kitty fitou o marido, e de súbito a expressão transformou-se-lhe.
- Deixa-o ver, Elizabeth Petrovna, quero mostrá-lo ao pai - disse para a parteira, ao ouvir o vagido da criança.
- Ele aqui está para que o pai o veja - exclamou a parteira, erguendo nas mãos uma coisinha avermelhada, estranha e vacilante. - Mas espere que a gente o arranje primeiro - acrescentou, colocando em cima da cama esse vulto rubicundo, que se agitava. Tirou-lhe a fralda e depois de o voltar de um lado e do outro empoou-o e vestiu-o de novo.
Levine ficou a olhar para o filho, procurando debalde, na alma indícios de sentimento paternal. Apenas sentia repugnância. Todavia quando viu aqueles bracinhos delgados, aqueles pèzinhos cor de açafrão, cujos dedos gordos se afastavam dos outros, e notou que a parteira abria esses bracinhos que se mexiam como molas, para enfiar-lhe as mangas da camisola de linho, sentiu uma tal piedade por aquela criaturinha e teve tanto medo que a mulher o magoasse, que segurou a mão dela. Elizabeth Petrovna desatou a rir.
- Não tenha medo! Não tenha medo!
Pronta que foi a criança e convertida numa espécie de boneca rígida, a parteira virou-a de todos os lados, como se se revisse na sua obra, e afastou-se um pouco para que Levine pudesse contemplar essa mesma obra em toda a sua beleza.
- Deixa-o ver - disse Kitty, que estivera seguindo pelo canto dos olhos os movimentos da parteira e fazia menção de se soerguer.
- Ora, esteja sossegadinha, Catarina Alexandrovna! Não se deve mexer assim! Espere, eu já lho passarei. Primeiro, é preciso que o pai o veja!
E numa só mão (com a outra amparava-lhe a nuca vacilante) ergueu para Levine aquele ser estranho, colorido e movediço, que escondia a cabeça entre as pregas da roupa. Para falar verdade, apenas se lhe distinguiam o narizinho, os olhos piscos e os beicinhos, que pareciam chupar qualquer coisa.
- É uma linda criança! - disse a parteira.
Levine suspirou. Aquela "linda criança" apenas lhe inspirava piedade e desgosto. Esperava coisa muito diferente.
Enquanto Elizabeth Petrovna depunha o filho nos braços da mãe, Levine desviava a cabeça, mas o riso de Kitty obrigou-o a voltá-la de novo: a criança principiara a mamar.
- Basta - disse a parteira daí a pouco; Kitty, porém, não quis separar-se do filho, que adormeceu a seu lado.
- Olha agora para ele - disse ela, voltando o bebê para o pai, na altura em que o rostinho dele mais parecia uma cara de velho, pois ia espirrar.
Sorrindo e sem poder reprimir as lágrimas que a emoção lhe causava, Levine beijou a mulher e saiu do quarto escuro de Kitty.
O que sentia diante desse pequenino ser era qualquer coisa de muito diferente do que esperava sentir. Não lhe dava alegria nem satisfação; feio contrário, um medo novo, que o fazia sofrer. Era como se tivesse em si uma nova região dorida. Durante os primeiros tempos a sensação foi tão dolorosa, tão intenso o receio de que sofresse aquele ser indefeso, Sue não percebeu a alegria sem razão e o orgulho até que lhe produzira o espírito da criança.
CAPÍTULO XVII
Os negócios de Stepane Arkadievitch iam muito mal.
Gastara já dois terços do dinheiro que recebera da venda da mata e um comerciante adiantara-lhe quase todo o resto, ao juro de dez por cento. Já não queria dar-lhe mais dinheiro. Aliás, Daria Alexandrovna, fazendo valer pela primeira vez os seus direitos sobre a propriedade, negara-se a assinar ter recebido dinheiro por conta da terça parte daquela venda. O vencimento de Stepane Arkadievitch destinava-se todo a gastos de casa e a pagar pequenas dívidas inadiáveis. Nada sobrava dessa importância.
A situação era desagradável, inconveniente e não podia continuar assim, no dizer de Stepane Arkadievitch. E opinava que a culpa era dos exíguos vencimentos que recebia. Cinco anos atrás o seu lugar era muito bem pago, mas agora não. Petrov, como director de um banco, recebia doze mil rublos; Sventiski, membro de uma sociedade, dezassete mil; Mitine, fundador de uma casa bancária, cinqüenta mil. "Pelo visto, fiquei a dormir e esqueceram-se de mim", pensava Oblonski.
Pôs-se a observar e a estar atento, e no fim do Inverno concentrou as suas esperanças num lugar novo, muito bom. Empreendeu as diligências para o conseguir, primeiro em Moscovo, através de umas tias, de uns tios e de uns amigos, e, na Primavera, quando o assunto estava maduro, embarcou para Sampetersburgo. Era um desses lugares como então se encontravam freqüentemente e que rendiam, consoante os casos, entre mil e cinqüenta mil rublos, muito cômodos e susceptíveis de peculato. Tratava-se de um lugar na Comissão das Agências Reunidas de Crédito Mútuo dos Caminhos de Ferro do Sul e das Entidades Bancárias. O referido cargo, como todos os demais da mesma índole, exigia conhecimentos muito vastos e uma grande actividade, qualidades difíceis de reunir numa só pessoa. Eis por que era preferível que ao menos o ocupasse um homem honrado. Stepane Arkadievitch não só era homem honrado como a sua honradez possuía o especial significado que se lhe dava em Moscovo ao dizer-se: "É um homem de acção muito honrado." "É um escritor honrado." "É uma entidade honrada", o que significava não só que a pessoa e a entidade o eram como até se atreviam, quando a oportunidade se lhes oferecia, a meterem-se com o Governo. Stepane Arkadievitch freqüentava em Moscovo os círculos onde se empregavam aquelas palavras e aí gozava da fama de homem honrado, por isso tinha mais direitos do que ninguém a ocupar um cargo desse gênero.
Rendia este entre sete e dez mil rublos por ano e Oblonski podia desempenhá-lo sem deixar o seu cargo oficial. Dependia de dois ministérios, de uma senhora e dois judeus, e embora todas essas pessoas lhe fossem favoráveis, precisava de encontrar-se com elas em Sampetersburgo. Demais, Stepane Arkadievitch prometera à irmã conseguir uma resposta definitiva de Karenine quanto ao divórcio. Depois de conseguir que Dolly lhe arranjasse cinqüenta rublos, Stepane Arkadievitch partiu para Sampetersburgo.
Sentado no escritório de Karenine, Oblonski ouvia a memória que este escrevera sobre os motivos do estado das finanças da Rússia, aguardando o momento em que a leitura acabasse para lhe falar do caso de Ana.
- Está muito certo - disse Oblonski quando Karenine, tirando o pince-nez, sem o qual não podia ler, o olhou interrogativo. - É exacto quanto aos pormenores; mas, de qualquer maneira, o princípio da nossa época é a liberdade.
- O princípio novo que eu exponho engloba também esse da liberdade - replicou Alexei Alexandrovitch, sublinhando a palavra "engloba" e voltando a pôr o pince-nez, para indicar, no seu elegante manuscrito de grandes margens, um passo concludente.
Depois de folhear as páginas bem escritas e de grandes margens, Alexei Alexandrovitch voltou a ler o parágrafo convincente.
- Sou contrário ao sistema de protecção a um pequeno número, quero que seja para todos, quer das classes baixas, quer das classes elevadas... É precisamente isso que eles não querem compreender - acrescentou, fitando Oblonski por cima do pince-nez -, tão absorvidos estão nos seus interesses pessoais e tão facilmente satisfeitos com frases vazias.
Stepane Arkadievitch sabia que Alexei Alexandrovitch estava a chegar ao fim das suas demonstrações quando principiava a falar do que faziam e pensavam eles, os que não queriam aceitar-lhe os protestos e eram a causa de todo o mal da Rússia. Por isso não se opôs naquele momento ao princípio de liberdade, mostrando-se completamente de acordo com Karenine. Este calara-se enquanto folheava pensativamente o manuscrito.
- A propósito! - disse Stepane Arkadievitch. - Queria pedir-te que dissesses ao Pomorski, quando o visses, que tenho muito interesse em ocupar o lugar que vai ser criado na Comissão das Agências Reunidas de Crédito Mútuo dos Caminhos de Ferro do Sul.
O nome desse cargo era tão familiar a Stepane Arkadieviech, que tanto sonhara com ele, que o pronunciou rapidamente, sem se enganar. Karenine perguntou-lhe em que consistia a actividade dessa nova Comissão e ficou absorto em reflexões. Procurava saber se nas actividades da referida Comissão haveria algo contrário aos seus projectos. Mas, como as actividades dessa nova instituição eram muito complicadas e os projectos de Karenine abarcavam um campo muito vasto, não pôde elucidá-lo imediatamente.
- Evidentemente - disse, por fim, deixando cair o pince-nez -, poderei dizer-lhe qualquer coisa, mas não vejo lá muito bem porque pretendes tu esse lugar.
- O vencimento é de nove mil rublos e as minhas posses... - Nove mil rublos! - repetiu Karenine, carregando de súbito o sobrecenho. A futuro actividade do cunhado vinha embater contra a ideia dominante dos seus projectos, os quais preconizavam e economia acima de todas as coisas. - Esses vencimentos exagerados provam, como o fiz ver numa das minhas memórias, viciação da nossa assiette136 econômica.
- Um director de banco recebe com toda a facilidade dez mil rublos e um engenheiro quase vinte mil; não são sinecuras!
- Na minha opinião, entendo que os vencimentos, sendo uma mercadoria como outra qualquer, devem estar sujeitos à lei da oferta e da procura. Ora se vejo dois engenheiros, igualmente válidos, saídos da mesma escola, ganharem um quarenta mil rublos enquanto o outro se contenta apenas com dois mil e se, por outro lado, vejo um hussardo ou um jurista, sem nenhuma espécie de conhecimentos especializados, tornarem-se directores de bancos com vencimentos fenomenais, não posso deixar de concluir existir aqui um vício econômico como uma influência desastrosa nos serviços do Estado. Acho que...
Stepane Arkadievitch deu-se pressa em interromper o cunhado.
- Está bem, mas não podes deixar de reconhecer que se trata de uma nova instituição, de incontestável utilidade, e que há toda a vantagem em ser dirigida por pessoas "honestas" - disse Stepane Arkadievitch, sublinhando a última palavra.
- A honradez é muito simplesmente uma qualidade negativa - objectou Alexei Alexandrovitch, insensível ao significado moscovita do termo "honradez".
- Seja como for, fico-te muito grato se falares ao Pomorski. Fala-lhe assim como quem não quer a coisa, quando abordar es outros assuntos.
- Fica descansado, mas, em todo o caso, Bolgarinov tem muita influência neste caso - volveu-lhe Karenine.
- Bolgarinov, pelo seu lado, está inteiramente de acordo - replicou Oblonski, corando.
Corou ao falar no nome de Bolgarinov, porque visitara essa mesma manhã semelhante judeu e a visita deixara-lhe má impressão. Oblonski estava firmemente convencido de que a causa que queria servir era algo de novo, de dinâmico, de honesto, mas quando, nessa mesma manhã, Bolgarinov, evidentemente de propósito, o fizera esperar duas horas, no meio de outros pretendentes, sentira-se ofendido.
Por qualquer motivo, o príncipe Oblonski, descendente de Rurik, considerava-se diminuído por ter sido obrigado a permanecer duas horas na antecâmara de um judeu, e isso por ser a primeira vez na sua vida que se afastava do exemplo dos seus antepassados - todos tinham servido o Estado -, tentando penetrar numa nova esfera de actividade. Contudo, durante essas duas horas de espera, passeara animadamente pela sala, cofiando as suíças e entabulando conversa com outros pretendentes, enquanto pensava num trocadilho inspirado no facto de haver sido obrigado a esperar em casa de um judeu, embora escondesse dos outros, inclusive de si próprio, o sentimento que experimentava.
Não obstante, nem ele próprio teria sabido dizer porque se sentia incomodado e desconcertado ou se isso era apenas devido ao facto de não ter sido capaz de fazer um bom jogo de palavras: "Tive de tratar de um assunto com um judeu e estive à espera"(Nota 119), ou por outra qualquer razão. Quando, finalmente, Bolgarinov o recebeu, com grande cortesia, visivelmente satisfeito da humilhação que lhe inflingira, quase lhe negando o lugar, Oblonski deu-se pressa em esquecer o que acontecera. Porém, agora, ao recordar-se disso, sentira-se corar.
CAPÍTULO XVIII
- Também tenho de te falar de outro assunto- continuou Oblonski, procurando esquecer aquele desagradável pormenor. - Como podes calcular... trata-se de... Ana.
Ao ouvir este nome, Alexei Alexandrovitch mudou por completo de expressão: no seu rosto pintou-se um cansaço e uma imobilidade mortais, que vieram substituir a animação anterior.
- Que querem mais de mim? - perguntou Karenine, voltando-se na poltrona e ajeitando o pince-nez.
- Uma decisão, uma decisão qualquer, Alexei Alexandrovitch. Dirijo-me à ti, não ao homem de Estado (ia a dizer ao "marido ofendido", mas, receoso de estragar tudo, substituíra as palavras por essas outras bem pouco a propósito), mas muito simplesmente ao homem de coração e de sentimentos cristãos. Deves ter piedade dela.
- De que maneira? - perguntou Karenine em voz baixa.
- Terias pena dela se a visses. Acredita, se a tivesses visto como eu (passei com ela todo o Inverno), condoer-te-ias. A sua situação é simplesmente terrível.
- Julgava que Ana Arkadievna tinha tudo quanto desejava - replicou Karenine, numa voz mais aguda que de costume, quase sibilante.
- Oh, Alexei Alexandrovkch! Por amor de Deus! Deixa-te de recriminações! O que está feito, está feito, e bem sabes que o que ela espera e deseja é o divórcio.
- Supunha que Ana Arkadievna renunciava ao divórcio no caso de eu exigir que o pequeno ficasse comigo. Assim lho disse e supunha que o assunto estava resolvido. E acho que está - exclamou Karenine quase num grito.
- Por amor de Deus, não te exaltes! - replicou Stepane Arkadievitch, dando-lhe palmadinhas nos joelhos. - O assunto não está resolvido. Aconteceu o seguinte: quando vocês se separaram, portaste-te com grande magnanimidade, concedeste-lhe tudo, a liberdade e até o divórcio. Ela soube apreciar tudo isso. Não penses que não. Soube-o apreciar a tal ponto que nos primeiros momentos, vendo-se culpada perante ti, não foi capaz de pensar por miúdo. Renunciou a tudo. Mas a realidade e o tempo vieram demonstrar que a situação dela é atormentadora e insuportável.
- A vida de Ana Arkadievna não me pode interessar - interrompeu-o Karenine, arqueando as sobrancelhas.
- Permite que não acredite - replicou suavemente Oblonski. - A situação é atormentadora para ela e não oferece vantagens para ninguém. Dirás que a merece. Ana sabe-o muito bem e não te pede nada, não se atreve a pedir-te nada. Mas eu, bem como todos os parentes, todos quantos a estimam, suplicamos-te. Para que há-de ela sofrer tanto? Quem ganha com isso?
- Perdoa-me, mas parece-me que me estás a pôr no papel de acusado - observou Alexei Alexandrovitch.
- Nada disso, nada disso - exclamou Oblonski, dando-lhe agora palmadinhas nas costas da mão, como se estivesse persuadido de que aquele contacto abrandaria o cunhado. - Procura compreender-me. Só digo uma coisa: a situação de Ana é dolorosa e tu podes aliviá-la, sem nada perderes pelo teu lado. Eu arranjarei as coisas de tal modo que nem sequer darás por nada. Se o tinhas prometido!
- Prometi-o antes. Supunha que o problema do meu filho solucionaria a questão. Além disso, esperava que Ana Arkadievna tivesse a suficiente grandeza de alma... - e estas palavras pronunciou-as Karenine com dificuldade, os lábios trêmulos e muito pálidos.
- Ela espera tudo da tua grandeza de alma. Apenas pede e suplica uma coisa: que a livrem da situação intolerável em que se encontra. Já não pede o filho. Alexei Alexandrovitch, tu és um homem de bom coração. Põe-te por momentos no lugar dela. O divórcio é para ela uma questão de vida ou de morte. Se lho não tivesses prometido antes, ter-se-ia conformado com a sua situação e viveria na aldeia; mas tu prometeste-lhe. Ana escreveu-te e mudou-se para Moscovo, onde está vai para seis meses, esperando a tua decisão e onde cada encontro que tem representa para ela como que um punha cravado no peito. É o mesmo que manter um condenado à morte com a corda em volta do pescoço, prometendo-lhe ora a morte ora o indulto. Tem compaixão dela e eu me encarrego de arranjar tudo de maneira... Vos scrupules...(Nota 120)
- Não se trata disso, não se trata disso - interrompeu Karenine, com uma expressão de repugnância. - Talvez lhe tenha prometido qualquer coisa que não devia prometer-lhe.
- Então recusaste-te a cumprir a tua palavra?
- Nunca recusei cumprir as coisas possíveis, mas necessito dispor de tempo para reflectir se o prometido está dentro do possível.
- Não, Alexei Alexandrovitch - exclamou Oblonski, erguendo-se de súbito. -Não quero acreditar! Ana é a mais desgraçada das mulheres! Tu não és capaz de recusar.
- Tenho de ver até que ponto é possível o que prometi. Vous professez d'être un libre penseur(Nota 121); mas eu, crente que sou, não posso proceder contra a lei cristã numa questão tão importante.
- Mas todas as sociedades cristãs e a nossa própria Igreja admitem o divórcio... - objectou Stepane Arkadievitch.
- Em certos casos, mas não neste.
- Alexei Alexandrovitch, desconheço-te - disse Oblonski, após um silêncio. - Não foste tu que outrora, inspirado precisamente na pura doutrina cristã, causando a admiração de todos nós, não foste tu quem perdoou? Não eras tu que dizias: "É preciso dar o cafetã quando nos pedem a camisa!"? E agora...
- Ficar-te-ia muito grato se acabássemos... com esta conversa - exclamou Alexei Alexandrovitch em voz sibilada, pondo-se de pé. Estava muito pálido e tremia-lhe o maxilar inferior.
- Bem, perdoa-me, perdoa-me, se te magoei - disse Stepane Arkadievitch, sorrindo, confuso, e estendendo-lhe a mão. - Por minha parte não fiz mais do que cumprir a missão de que fui encarregado.
Alexei Alexandrovitch estendeu-lhe a mão e disse após um momento de reflexão:
- Preciso de encontrar o meu caminho. Depois de amanhã lhes darei uma resposta definitiva.
CAPÍTULO XIX
Stepane Arkadievitch ia a sair quando Komei veio anunciar:
- Sérgio Alexeievitch.
- Quem é Sérgio Alexeievitch? - perguntou Oblonski; mas não tardou em lembrar-se. - Ah! Sim, o Seriocha! E eu a julgar que era algum director de ministério!
"A mãe pediu-me que o fosse ver", pensou ele. E lembrou-se do ar tímido e lastimoso com que Ana dissera: "Naturalmente terás oportunidade de o ver. Procura saber que é feito dele, quem toma conta dele. E, se for possível, Stiva..." Adivinhara o seu ardente desejo de conseguir ficar com o filho, se lhe dessem o divórcio. Depois da conversa que acabava de ter, compreendia que semelhante problema nem sequer era de levantar. Nem por isso sentiu menos satisfação em ver o sobrinho, embora Karenine o houvesse prevenido imediatamente de que não falavam da mãe à criança e lhe tivesse pedido, por isso mesmo, que não fizesse diante dele qualquer alusão a tal pessoa.
- Esteve muito doente depois de ver a mãe pela última vez. Chegámos a recear pela sua vida. Graças a um tratamento adequado e a banhos de mar, recuperou a saúde e agora, a conselho do médico, internei-o num colégio. Efectivamente, a influência dos companheiros tem dado bom resultado; está de boa saúde e estuda muito bem.
- Que belo rapaz! Já não é realmente o Seriocha, mas bem Sérgio Alexeievitch - exclamou Oblonski, risonho, mirando o formoso garoto, largo de ombros, de casaco azul e calças largas, que entrara no gabinete em atitude decidida e com ademanes desenvoltos. Parecia alegre e sadio. Cumprimentou o tio como se se tratasse de um desconhecido, mas, ao reconhecê-lo, corou e desviou o rosto precipitadamente, como se alguma coisa o ofendesse ou aborrecesse. Aproximou-se do pai, entregou-lhe as notas do colégio.
- Não vai nada mal, sim, senhor. Podes ir brincar - disse-lhe Karenine.
- Cresceu, emagreceu e já não tem ar de criança. Gosto dele - comentou Stepane Arkadievitch. - Ainda te lembras de mim? A criança olhou primeiro para o pai e depois para o tio.
- Lembro-me, mon oncle140 - replicou, baixando de novo os olhos. Stepane Arkadievitch puxou-o a si e pegou-lhe na mão. - E que fazes tu?
- perguntou, desejoso de conversar, mas sem saber que dizer-lhe.
Corando e sem responder, a criança procurava retirar suavemente a mão que o tio segurava. Quando este a soltou, Seriocha olhou para o pai e, tal como um pássaro a quem abrem a gaiola, saiu da sala.
Passara um ano sobre a última vez que Seriocha vira a mãe. Desde então nunca mais ouvira falar dela. Tinham-no internado num colégio onde conhecera outros rapazes e ganhara afecto aos companheiros. Já não o preocupavam os pensamentos e as saudades da mãe, causa da sua doença na altura do encontro com ela. Quando essa recordação lhe voltava afastava-a de si, considerando esses sentimentos vergonhosos e próprios de meninas. Constava-lhe que entre os pais houvera uma discórdia que os separara, sabia que tinha de ficar com o pai e procurava adaptar-se a essa ideia.
Foi-lhe desagradável ver o tio, que muito se parecia com a mãe, pois despertava nele recordações que considerava humilhantes. E isso fora para ele tanto mais desagradável quanto é certo que por algumas palavras ouvidas, enquanto esperava à porta do escritório e sobretudo graças à expressão do rosto de ambos, adivinhara que falavam da mãe. E para não ter de julgar o homem de quem dependia e para não recair em saudades que considerava desonrosas, Seriocha procurou não olhar para o tio, que viera, afinal, lembrar-lhe o que ele se empenhava em esquecer.
Mas quando Stepane Arkadievitch, tendo saído atrás dele, o viu ao pé da escada e o chamou, perguntando-lhe como passava o seu tempo no colégio durante os recreios, Seriocha, como o pai não estava presente, pôs-se a conversar com ele.
- Agora brincamos aos comboios - disse, em resposta à pergunta de Stepane Arkadievitch. - Quer saber? Dois rapazes sentam-se num banco. São os passageiros. Outros ficam de pé diante do banco. Todos os outros se lhes juntam. Agarram-se uns aos outros. Ou com as mãos ou com os cintos. Depois põem-se a correr pelas salas. As portas abrem-se primeiro. É muito difícil ser o condutor.
- O condutor é o que fica de pé? - perguntou Stepane Arkadievitch, sorrindo.
- É. O condutor tem de ser muito atrevido e muito hábil. Sobretudo quando o comboio pára de repente ou alguém cai.
- Sim, sim, é complicado - voltou Stepane Arkadievitch, mirando tristemente aqueles olhos animados, tão parecidos com os de Ana, que -nem eram já infantis nem exprimiam já uma completa inocência. E embora tivesse prometido a Alexei Alexandrovitch que lhe não falaria de Ana, não pôde conter-se, e repentinamente perguntou-lhe:
- Lembrasse de tua mãe?
- Não, não me lembro - respondeu a criança, precipitadamente; e, muito corada, baixou os olhos. Stepane Arkadievitch não pôde obter dele mais nada.
Meia hora depois o preceptor eslavo, ao encontrá-lo, teve dificuldade em saber se ele estava aborrecido ou se chorava.
- Naturalmente deste alguma queda e magoaste-te - disse-lhe.
- Bem dizia eu que esta brincadeira é perigosa. Temos de dizer ao director.
- Se me tivesse magoado, ninguém teria dado por isso. Pode estar certo!
- Então que te aconteceu?
- Deixe-me!... Que lhe importa que eu me lembre ou não me lembre? E porque me havia eu de lembrar?... Deixe-me em paz - repetiu, gritando, não para o preceptor, mas para o mundo inteiro.
CAPÍTULO XX
Como de costume, Stepane Arkadievitch não perdia o seu tempo em Sampetersburgo. Além das suas coisas, do divórcio da irmã e do caso da sua pretensão, desejava refrescar-se, como costumava dizer, depois do mofo moscovita.
Apesar dos seus cafés chantants e dos seus ônibus, não deixava de ser um pântano. Stepane Arkadievitch acabava sempre por notá-lo. Depois de uns meses de permanência ali, sobretudo se tinha consigo a família, sentia-se murchar. Ali por muito tempo, sem ausentar-se da velha cidade, chegava a preocupar-se com a má disposição em que caía, com as censuras da mulher, com a saúde, com a educação dos filhos, com os pequenos pormenores do seu emprego e com as suas dívidas. Mas, mal chegava a Sampetersburgo e entrava na roda dos seus amigos habituais, em que se vivia, em vez de se vegetar, como em Moscovo, todas essas ideias desapareciam, fundindo-se como a cera perto do fogo.
Era tão diferente a maneira como se entendiam na capital os dever" de um homem para com a família! Precisamente nesse mesmo dia, o príncipe Tcherchenski, casado e com filhos, com quem se encontrara, dissera-lhe que, além da mulher legítima, tinha outra, que também te dera rebentos, e que, como os filhos da primeira já eram crescidos t serviam no Corpo de Pajens, entendia por bem introduzir o primogênito junto da segunda família para o desemburrar. Quem teria compreendido em Moscovo uma coisa assim!
Em Sampetersburgo os filhos não estorvavam a vida dos pais. Eram educados em colégios e não havia aquela ideia absurda, tão espalhada em Moscovo - assim pensava Lvov, por exemplo -, de que se deve dar aos pais trabalho e preocupações. Em Sampetersburgo entendia-se que um homem precisa de viver para si mesmo, como deve fazê-lo uma pessoa adulta.
E quanto ao emprego, ao contrário do que acontecia em Moscovo, onde servir o Estado era uma coisa sem interesse nem futuro, ali, em Sampetersburgo, ser funcionário tinha grandes seduções. Um encontro, um serviço que se prestava, uma alusão, o saber uma pessoa representar diferentes personagens, qualquer destas coisas, eis o bastante para se fazer carreira, que assim acontecera a Branstsev, por exemplo, com quem Stepane Arkadievitch se encontrara na véspera, actualmente um dos principais funcionários da capital. Trabalhar assim valia a pena. O ponto de vista petersburguês relativamente às questões pecuniárias então exercia sobre Stepane Arkadievitch uma influência tranqüilizadora. Bartianski, que gastava pelo menos cinqüenta mil rublos por ano com o train de vie que levava, dissera-lhe no dia anterior qualquer coisa de extraordinário a esse propósito.
Antes de jantar, Stepane Arkadievitch, que entabulara com ele uma longa conversa, observara-lhe:
- Creio que és íntimo amigo de Mordvinski. Podias fazer-me um grande favor. Peço-te que lhe fales dê mim. Sou candidato ao lugar da Agência...
- Escusas de me dizer o nome da Agência, porque acabarei por esquecê-lo... Mas que ideia é essa de te meteres em assuntos de caminhos de ferro com judeus?... Seja como for, é uma porcaria.
Stepane Arkadievitch não lhe disse que se tratava de um assunto sério; Bartnianski não o teria compreendido.
- Preciso de dinheiro. Não tenho para viver.
- Mas não vives?
- Sim, mas cheio de dívidas.
- Que me dizes? Tens muitas? - perguntou Bartnianski, afivelando uma máscara de compaixão.
- Sim; uns vinte mil rublos. Bartnianski desatou num riso alegre.
- Oh, és um homem feliz! - exclamou. - Eu devo milhão e meio e não tenha nada. E como vês continuo a viver.
Stepane Arkadievitch pôde comprovar, de facto, a veracidade daquelas palavras. Jivakov tinha trezentos mil rublos de dívidas e nem um copeque. No entanto vivia e de que maneira! Havia muito tempo que o conde Krivtsov era considerado arruinado, mas mantinha duas mulheres. Petrovski gastara cinco milhões, todavia vivia tão bem como anteriormente e até continuava a administrar bens apenas com um vencimento de vinte mil rublos anuais. E além disto, Sampetersburgo produzia uma sensação física agradável em Stepane Arkadievitch. Rejuvenescia-o. Em Moscovo, às vezes, descobria um cabelo branco, dormitava depois das refeições, subia as escadas vagarosamente, a passo, respirava com dificuldade, aborrecia-se na presença de mulheres novas e não dançava nos bailes. Ao contrário, em Sampetersburgo sentia-se sempre com menos dez anos em cima. Experimentava a mesma coisa que o sexagenário, o príncipe Piotre Oblonski, que acabava de chegar do estrangeiro.
- Aqui não sabemos viver. Talvez não acredites, mas durante o Verão que passei em Baden sentia-me completamente remoçado. Bastava ver uma mulher para as minhas ideias... Comia, bebia o meu bocado e estava forte e animado. Quinze dias depois de regressar à Rússia, e de ter de estar junto da minha pobre mulher, enterrada no fundo da aldeia, estava um velho! Passei a andar de roupão e nem sequer me vestia para comer. Nada de pensar em raparigas! Já não pensava senão em salvar a alma. Mas fui a Paris e aqui me tens de novo completamente refeito. Stepane Arkadievitch sentia em Sampetersburgo o mesmo que Piotre Oblonski no estrangeiro. Em Moscovo abandonara-se de tal sorte que, se ali vivesse muito tempo, teria chegado a pensar na salvação da alma. Mas em Sampetersburgo era outra coisa.
Entre a princesa Tverskaia e Stepane Arkadievitch existiam relações antigas, muito estranhas. Oblonski tinha por costume fazer-lhe a corte um pouco a brincar e também a brincar dizer-lhe as coisas mais indecentes que imaginar se pode, certo de que isso lhe agradava. No dia seguinte ao da sua visita a Karenine, foi visitar Betsy, e sentiu-se tão jovem que, sem querer, levou demasiado longe a corte que lhe fazia e as frases atrevidas que lhe dirigia. Já não sabia como voltar atrás. Desgraçadamente não só não gostava da princesa como sentia por ela repulsa. Chegara àquele extremo, porque a Tverskaia se agradava muito dele. A chegada da princesa Miagakaia interrompeu o seu colóquio íntimo com Betsy, coisa que muito agradou a Stepane Arkadievitch.
- Ah! Está aqui! - exclamou ela, ao vê-lo. - Como vai a sua pobre irmã?... Estás admirada que eu pergunte por ela? - acrescentou, voltando-se para Betsy. - Desde que todos, todas vocês, lhe principiaram a atirar pedras, vocês, mil vezes piores do que ela, acho que a Ana fez muito bem. Não, não posso perdoar a Vronski que me não tenha avisado quando esteve em Sampetersburgo. Tê-la-ia ido visitar e tê-la-ia acompanhado a toda a parte. Peco-lhe que lhe transmita as minhas lembranças. Vá, conte-me alguma coisa da vida dela.
- Está numa situação difícil... ela... - principiou Stepane Arkadievitch, tomando à letra, ingênuo que era, as palavras da princesa Miagkaia. "Conte-me alguma coisa da vida dela."
A princesa, segundo o seu costume, interrompeu-o, não tardou muito, e pôs-se ela própria a falar de Ana.
- Fez o que fazem todas as mulheres, todas menos eu, às escondidas. Mas ela não quis enganar, coisa que está muito certa. E procedeu melhor ainda abandonando o tonto do seu cunhado. Perdoe-me. Dizia-se em geral que era uma homem inteligente e eu era a única a sustentar o contrário. Agora, que ele se ligou com Landau e com a Lídia Ivanovna, todos são do meu parecer, e eu gostaria muito de não estar de acordo com todos. Mas desta vez é impossível.
- Peço-lhe que me explique o que isto significa - disse Stepane
Arkadievitch. - Ontem fui visitar o meu cunhado para lhe falar na questão da minha irmã e pedi-lhe uma resposta definitiva. Não ma quis dar, dizendo-me que ia reflectir. E esta manhã, em vez da resposta prometida, manda-me um convite para a reunião de hoje em casa da condessa Lídia Ivanovna.
- É isso, é isso! - exclamou a princesa, alegremente. - Vão consultar o Landau.
- Landau? Quem é?
- Será possível que você não conheça Jules Landau? Le fameux Jules Landau, le clairoyant(Nota 121). Também é meio tonto; mas o destino da sua irmã depende dele. Tudo isto é o resultado de viverem na província. Não sabem de nada. Landau era comis(Nota 122) numa loja de Paris. Um belo dia foi consultar o médico, adormeceu na sala de espera e pôs-se a dar conselhos a todos os doentes. Conselhos extraordinários. Depois a mulher de Iuri Maledinski - sabe quem é? -, um doente, ouviu falar dele e pediu-lhe que curasse o marido. Agora está a tratá-lo. Na minha opinião, não lhe serviu de nada, pois está tão fraco como antes; mas eles acreditam nele e trouxeram-no para a Rússia. Aqui o povo caiu-lhe em cima, e está a tratar meio mundo. Curou a princesa Bezzubov, que em reconhecimento o adoptou como filho.
- Será possível?
- É o que lhe digo: adoptou-o como filho. Já não se chama Landau, mas com Bezzubov. Porém, não se trata disso, trata-se de Lídia
- sou muito amiga dela, mas acho que não tem a cabeça no seu lugar -, que se apoderou de Landau e nada se resolve sem o ouvir, nem na casa dela nem na de Alexei Alexandrovitch. E aqui tem como o destino da sua irmã está nas mãos desse tal Landau, ou conde Bezzubov.
CAPÍTULO XXI
Depois do óptimo jantar e dos muitos copos de conhaque que bebeu em casa de Bartianski, Stepane Arkadievitch chegou a casa da condessa Lídia Ivanovna com um ligeiro atraso sobre a hora marcada.
- Quem está mais aí? O francês? - perguntou examinando o agasalho de Karenine, que muito bem conhecia, e um estranho capote, muito simples, com botões.
- Alexei Alexandrovitch Karenine e o conde Bezzubov - respondeu o porteiro com gravidade.
"A princesa Miagkaia adivinhou", pensou Stepane Arkadievitch enquanto subia as escadas. "Isto é estranho; mas não seria tolice estreitar relações de amizade com Lídia Ivanovna. Tem muita influência. Se ela dissesse qualquer coisa ao Pomorski, solucionar-se-ia o meu caso."
Embora fosse ainda perfeitamente de dia, no salãozinho da condessa já estavam acesos os candeeiros e corridas as cortinas. Ao pé da mesa redonda, sob um dos candeeiros, a condessa e Alexei Alexandrovitch falavam em voz baixa. No fundo da sala, examinando os retratos que forravam a parede, via-se um homem de estatura média, seco, de ancas femininas, canelas finas, rosto pálido, embora formoso, magníficos olhos brilhantes e cabelos compridos que lhe caíam na gola do redingote, Depois de cumprimentar a dona da casa e Alexei Alexandrovitch, Oblonski voltou a olhar involuntariamente o desconhecido.
- Monsieur Landau! - exclamou a condessa, dirigindo-se àquele homem com uma suavidade e uma precaução que surpreenderam Oblonski. Landau deu-se pressa em voltar-se, aproximou-se e, sorrindo, pousou a mão inerte e suada na mão que Oblonski lhe estendia. Lídia Ivanovna apresentou-os mutuamente. Landau voltou a afastar-se para continuar a examinar os retratos. A condessa e Alexei Alexandrovitch trocaram entre si um olhar significativo.
- Tenho muito prazer em vê-lo e sobretudo hoje - disse Lídia Ivanovna, oferecendo-lhe uma poltrona ao lado de Karenine. - Apresentei-lho com o nome de Landau - acrescentou, em voz baixa, após mirar primeiro o francês e depois Alexei Alexandrovitch -, mas, na realidade, é o conde Bezzubov, como naturalmente deve saber. É que ele não gosta do título.
- Sim, ouvi falar nisso - replicou Oblonski. - Dizem que curou por completo a condessa Bezzubov.
- Sim, e está hoje aqui. Faz pena vê-la - continuou a condessa, dirigindo-se a Karenine. - Esta separação é para ela dolorosíssima.
- É certo que se vai embora? - perguntou este.
- Vai, vai para Paris, ouviu uma voz - replicou Lídia Ivanovna, olhando para Oblonski.
- Ah! Uma voz! Realmente! - repetiu Oblonski, percebendo que devia ter o maior cuidado naquele ambiente em que se passavam ou deviam passar coisas extraordinárias, cujo segredo ele não possuía.
Após alguns instantes de silêncio, a condessa julgou chegado o momentos de abordar assuntos sérios e disse para Oblonski, com um sorriso subtil:
- Conheço-o há muito tempo. Les amis de nos amis sont nos amis(Nota 123). Mas para sermos verdadeiramente amigos precisamos de saber o que se passa na alma daqueles a quem amamos, e receio que não seja essa a sua situação em relação a Alexei Alexandrovitch. Compreende o que eu quero dizer? - perguntou ela, erguendo para Stepane Arkadievitch os seus belos olhos cismadores.
- Em parte compreendo, condessa, a posição de Alexei Alexandrovitch... - replicou Oblonski, que, sem perceber onde ela queria chegar, julgou preferível manter-se em generalidades.
- Oh! Não falo de mudanças exteriores - disse, gravemente, a condessa, seguindo, com um olhar amoroso, Karenine, que se erguera para se aproximar de Landau. - O que mudou foi o coração, e tenho muito receio que o senhor não haja reflectido suficientemente sobre a transformação que nele se operou.
- Posso imaginar o que essa mudança representa de maneira geral; sempre estivemos nas melhores relações, e mesmo agora... - principiou Oblonski, que achou por bem imprimir ao seu olhar um matiz de enternecimento. Sabia que Lídia Ivanovna contava com dois ministros entre os seus amigos e a si mesmo perguntava junto de qual deles ela o poderia servir com mais eficácia.
- A mudança que nele se deu não pode debilitar o sentimento de amor pelo próximo; pelo contrário, eleva-o, apura-o. Mas receio que o senhor me não compreenda... Uma chávena de chá? - propôs ela, indicando com os olhos o criado que trazia o chá numa bandeja.
- Não completamente, condessa. É evidente que a infelicidade dele...
- A sua infelicidade converteu-se em felicidade, visto que o coração se lhe abriu - disse o condessa, cujo olhar se ia tornando cada vez mais langoroso.
"Acho que o melhor é pedir-lhe que fale aos dois", pensava Oblonski. E em voz alta:
- Com certeza, condessa - aprovou ele -; mas isso faz parte de um desses problemas íntimos que nem sequer ousamos abordar.
- Pelo contrário, devemo-nos ajudar mutuamente.
- Sem dúvida, mas existem às vezes tais divergências de opiniões... - disse Oblonski com o seu sorriso untuoso.
- Não pode haver divergências quando se trata da santa verdade.
- Sem dúvida, sem dúvida - repetiu Oblonski, que, ao ver a religião entrar em jogo, preferiu iludir o problema. Entretanto Karenine aproximou-se de novo.
- Parece-me que ele vai adormecer - anunciou em voz baixa.
Stepane Arkadievitch voltou-se; Landau sentara-se ao pé da janela, com um braço apoiado numa poltrona e a cabeça baixa; ao ver convergirem para ele os olhares dos presentes, soergueu a cabeça e sorriu com um sorriso infantil.
- Não faça caso - aconselhou Lídia Ivanovna, oferecendo uma cadeira a Karenine. - Notei...
Nesta altura um criado veio trazer-lhe uma carta, que ela leu à pressa, e a que respondeu com extraordinária rapidez, depois de ter pedido desculpa aos seus convidados.
- Notei - continuou ela - que os Moscovitas, sobretudo os homens, são as pessoas mais indiferentes do mundo em matéria religiosa.
- Oh, não, condessa. Pelo contrário, acho que têm até fama de muito religiosos - argüiu Stepane Arkadievitch.
- Pelo que vejo, o senhor, por desgraça, pertence ao número dos indiferentes - interveio Karenine, dirigindo-se a ele com o seu sorriso cansado.
- Será possível ser-se indiferente? - exclamou Lídia Ivanovna.
- Estou antes na situação dos que aguardam... - respondeu Oblonski com o mais conciliador dos sorrisos. - A minha hora ainda não chegou. Karenine e a condessa entreolharam-se.
- Nunca podemos saber se chegou o momento para tais questões
- objectou Alexei Alexandrovitch com severidade. - Não devemos pensar se estamos ou não preparados: a graça divina não se rege pelas reflexões humanas. As vezes não desce até aqueles que trabalham por consegui-la, e em compensação visita os que não se encontram preparados, come, por exemplo, Saul.
- Não, parece que ainda não - disse a condessa, que seguia, com a vista, os movimentos do francês.
Landau levantou-se e aproximou-se deles.
- Dão licença que eu ouça? - perguntou.
- Com certeza. Não o queríamos incomodar - replicou Lídia Ivanovna, olhando-o com meiguice. - Sente-se junto de nós.
- A única coisa a fazer é não fecharmos os olhos para não deixarmos de ver a luz - prosseguiu Alexei Alexandrovitch.
- Oh! Se o senhor soubesse a felicidade que experimentamos sentindo a sua contínua presença na nossa alma! - exclamou a condessa com um sorriso beato.
- Mas, às vezes, o homem pode sentir-se incapaz de se elevar a essa altura - disse Stepane Arkadievitch, compreendendo que procedia como um hipócrita ao admirar essa elevação religiosa. Não obstante, não ousava manifestar a sua maneira livre de pensar perante uma pessoa que com uma única palavra podia proporcionar-lhe o lugar ambicionado.
- Então, quer o senhor dizer que o pecado o impede disso? - observou a condessa. - Pois é uma opinião falsa. O pecado não existe. Para os crentes o pecado está redimido. Pardon - acrescentou, olhando para o criado que entrava de novo com uma carta. Leu-a e respondeu verbalmente, dizendo -: "Amanhã, em casa da grã-duquesa, diga-lhe...", para o crente o pecado não existe - continuou.
- Sim, mas a fé sem obras é uma fé morta - objectou Stepane Arkadievitch ao lembrar-se dessas palavras do catecismo, defendendo a sua independência já apenas com um sorriso.
- As palavras da epístola de São Tiago - interveio Alexei Alexandrovitch, dirigindo-se à condessa com certa censura, como se se tratasse de algo que já haviam discutido mais de uma vez. - Que mal tem feito a falsa interpretação deste versículo! Nada aparta tanto da fé como esta interpretação. "Não faço boas obras, todavia posso ter fé", isto não está escrito em parte alguma, o texto diz precisamente o contrário.
- Trabalhar para Deus, salvar a alma por meio de trabalhos, de jejuns e mortificações - comentou a condessa, com desprezo e repugnância - são ideias absurdas dos nossos frades... Isso não está dito em parte alguma. É muito mais fácil e mais simples - acrescentou, olhando para Oblonski com o sorriso de aprovação com que costumava animar na Corte as jovens damas de honor, atrapalhadas com o ambiente novo para elas.
- Estamos salvos, por Cristo que sofreu por nós. Estamos salvos pela fé - afirmou Karenine, aprovando com o olhar as palavras da condessa.
- Vous comprenez l'anglais?(Nota 124) - perguntou Lídia Ivanovna, e ao ser-lhe respondido afirmativamente, levantou-se e foi procurar qualquer coisa numa estantezinha de livros.
- Quero ler-lhe Safe and happy ou Under the wing(Nota 125) - disse, olhando Karenine com um olhar interrogador. E assim que encontrou o livro, voltou a sentar-se no seu lugar, abrindo-o. - É muito curto. Descreve o caminho por meio do qual se chega à f é e a essa felicidade que está por cima de tudo que é terreno e embarga a alma. O homem crente não pode ser infeliz porque não está só, como vai ver. A Borosdina? Diga-lhe que amanhã às duas. Sim - murmurou, colocando um dedo entre as páginas do livro. Ficou-se a olhar em frente com os seus magníficos olhos pensativos e suspirou. - Aqui tem como obra a verdadeira fé. Conhece a Maria Sanine? Ouviu falar na sua desgraça? Perdeu o seu único filho. Estava desesperada. E que aconteceu? Pois desde que encontrou o seu caminho, o desespero que sentia transformou- se em consolação: agradece a Deus a morte do filho. Aqui tem a felicidade que a fé proporciona.
- Evidentemente, é muito... - murmurou Stepane Arkadievitch, contente por nada ter de dizer enquanto durasse a leitura. "Não, o melhor é não pedir hoje coisa alguma e pôr-me a andar logo que possa; de outra maneira sou capaz de sair daqui pior do que entrei."
- Isto vai aborrecê-lo - disse a condessa para Landau -, visto que não sabe inglês, mas é curto.
- Oh, compreenderei! - exclamou o francês com um sorriso, e fechou os olhos.
Alexei Alexandrovitch e a condessa trocaram um olhar significativo e a leitura principiou.
CAPÍTULO XXII
As estranhas considerações que acabava de ouvir haviam lançado Stepane Arkadievitch em grande estupefacção. Evidentemente que a complexidade da vida petersburguesa fazia com a monotonia moscovita contraste que ele muito apreciava, mas, em todo o caso, aquele insólito meio desorientava-o por completo. Principiou a notar um peso especial na cabeça enquanto ouvia a condessa e sentia pousados nele os formosos olhos ingênuos ou cheios de malícia - não podia sabê-lo ao certo - de Landau.
Os pensamentos mais contraditórios percorriam-lhe o cérebro.
"Maria Sanine estava contente por lhe ter morrido o filho... Ah, se pudesse fumar! Para uma pessoa se salvar bastava crer; mas os frades não sabem como se deve crer; só a condessa Lídia Ivanovna é que o sabe... Por que sinto eu este peso na cabeça? Será por causa do conhaque que bebi ou porque tudo isto é demasiado estranho? Seja como for, até agora acho que ainda não fiz nada de inconveniente. No entanto, hoje não lhe posso pedir coisa alguma. Dizem que esta gente nos obtigi a rezar. Desde que me não obriguem a mim. Seria demasiado estúpido. E que tolice é esta que ela está a ler? Mas pronuncia bem, Landau... Bezzubov. Por que se chama ele Bezzubov?" De súbito, Stepane Arkadievitch sentiu que lhe tremia a maxila inferior de maneira a não deter o movimento que ia transformar-se num bocejo. Cofiou as suíças para disfarçar o bocejo e dominou-se. Mas logo em seguida notou que ia adormecer e que estava a ponto de ressonar. Volveu a si ao ouvir a voz da condessa, que dizia: "Adormeceu." Stepane Arkadievitch acordou assustado, sentindo-se culpado e apanhado em falta. Mas logo se tranqüilizou ao dar-se conta de que a palavra "adormeceu" não se referia a ele, mas a Landau. O francês adormecera, bem como Stepane Arkadievitch. Pensava este que o facto de ter adormecido seria uma ofensa para os outros (a bem dizer nem sequer pensara nisso, visto tudo lhe parecer muito extraordinário), mas, pelo contrário, o ter Landau caído a dormir alegrou-os extraordinariamente, sobretudo à condessa.
- Mon ami(Nota 126) - disse, dirigindo-se deste modo a Karenine no entusiasmo do momento e ajeitando com prudência as pregas do vestido de seda -, donnez-lui la main; vous voyez?...(Nota 127) Psiu! - sussurrou para o criado que entrava de novo e acrescentou: - Não recebo ninguém.
O francês dormia ou fingia dormir, com a cabeça apoiada no espaldar da poltrona, enquanto fazia ligeiros movimentos, como se procurasse apanhar alguma coisa, com a mão suada que lhe pendia nos joelhos. Alexei Alexandrovitch pôs-se de pé, quis fazê-lo com muito cuidado, mas, apesar disso, tropeçou na mesa. Aproximando-se do francês, pousou uma das suas mãos na mão dele. Oblonski levantou-se também e abriu os olhos, desejoso de acordar, no caso de estar realmente a dormir. Ora olhava para um ora olhava para o outro. Tudo aquilo era real. Notou que as ideias cada vez se lhe misturavam mais no cérebro.
- Que la personne qui est arrivée la dernière, celle qui demande, qu' elle sorte. Qu 'elle sorte!(Nota 128) - disse o francês sem abrir os olhos.
- Vous m' excuserez, mais vous voyez... Revenez ver s 10 heures, encore mieux demain(Nota 129).
- Qu' elle sorte!(Nota 130) - repetiu o francês, impaciente.
- C'est moi/ riest-ce pás?(Nota 131) - perguntou Stepane Arkadievitch, e depois de receber uma resposta afirmativa, esquecendo o que queria pedir a Lídia Ivanovna, bem como o assunto da irmã, só teve um desejo: sair dali quanto antes.
Saiu da saleta em bicos dos pés, e, como se saísse de uma casa empestada, correu para a rua. Durante muito tempo chalaceou com o cocheiro do trem que o conduzia ao Teatro Francês. Chegou na altura do último acto, e, pouco depois, no restaurante, diante de uma garrafa de champanhe, não tardou a recompor-se, embora sem se libertar por completo de um certo mal-estar.
Ao voltar para casa do seu tio Piotre Oblonski, onde se hospedara, encontrou uma cartinha de Betsy, que o convidava a continuar no dia seguinte a conversa interrompida. Mal acabara de ler este bilhetinho e de manifestar o desgosto que ele lhe causava, no andar de baixo ouviram-se uns passos muito pesados, como de alguém que levasse um fardo às costas. Stepane Arkadievitch assomou à escada para ver de quem se tratava. Era o rejuvenescido Piotre Oblonski, tão embriagado que não parecia capaz de subir a escada. Ao ver, porém, Stepane Arkadievitch, ordenou que o pusessem de pé e apoiado a ele encaminhou-se para o seu quarto, onde lhe contou como passara a noite, não tardando a adormecer. Stepane Arkadievitch sentia-se abatido, coisa que poucas vezes lhe sucedia, e por muito tempo não pôde conciliar o sono. Tudo o que lhe vinha à memória lhe repugnava e acima de tudo, como se se tratasse de uma coisa vergonhosa, o serão em casa de Lídia Ivanovna.
No dia seguinte recebeu resposta negativa de Alexei Alexandrovitch a respeito do divórcio. Compreendeu que a resposta era baseada no que havia dito o francês durante o seu estado de sonolência, verdadeiro ou fingido.
CAPÍTULO XXIII
As decisões nas famílias ou se tomam no caso de um perfeito acordo entre os cônjuges ou então quando existe uma separação completa entre eles. Se as relações entre eles flutuam entre os dois extremos nada é possível decidir.
Muitos casais levam anos e anos numa espécie do ponto morto, incômodo para ambos, só porque não existe entre eles nem acordo nem separação absoluta.
Vronski e Ana estavam a passar por isso mesmo: conquanto lhes fosse insuportável, tanto para um como para outro, a vida de Moscovo, naquela época de pó e calor, quando o sol já não brilhava como na Primavera, antes era um verdadeiro sol de Verão, e as árvores das avenidas apareciam cobertas de folhas poeirentas, não se decidiam a ir para Vozdvijenskoe, como haviam resolvido tempos antes. Continuavam a viver em Moscovo, coisa enfadonha para ambos, precisamente porque não havia acordo entre os dois nos últimos tempos.
O desentendimento entre eles latente não tinha nenhuma causa externa e todas as tentativas que faziam para se reconciliar não só o não desvanecia mas ainda o agravava mais. Era uma desinteligência interior, provocada nela por um arrefecimento do amor de Vronski e nele pelo arrependimento que lhe causava o ter-se colocado numa situação difícil, que Ana, em vez de aliviar, ia tornando mais e mais penosa. Nenhum dos dois exprimia os motivos da irritação que os tomava; mas consideravam-se mutuamente injustos e, ao menor pretexto, logo procuravam demonstrá-lo.
Para Ana, Vronski, todo ele, com os seus costumes, os seus pensamentos, os seus desejos, a sua constituição física e a sua maneira de ser, era amor pelas mulheres. E esse amor, uma vez que esmorecera por ela, tinha de estar concentrado algures. No seu ciúme cego via em todas as mulheres a rival. Tão pronto tinha ciúmes dessas mulheres desprezíveis com as quais, graças às suas relações do tempo de solteiro, ele facilmente entraria em contacto, como das senhoras da alta sociedade com quem poderia encontrar-se ou então de qualquer jovem imaginária com quem iria casar, rompendo com ela. Este último caso, eis o que mais a atormentava, sobretudo porque o próprio Vronski cometera a imprudência de lhe dar a entender, num momento de sinceridade, que a mãe o não compreendia e se permitira aconselhá-lo a que se casasse com a princesa Sorokina.
Os ciúmes enchiam Ana de indignação, e ela, aliás, não fazia outra coisa senão procurar motivos para se indignar. Culpava Vronski de tudo o que havia de penoso na sua situação. Responsabilizava-o da atormentadora expectativa em que vivia em Moscovo, entre o céu e a terra, do atraso e da indecisão de Alexei Alexandrovitch e da sua própria solidão. Se Vronski a amasse, compreenderia a sua angustiosa vicissitude e faria todo o possível por ajudá-la a libertar-se. Era ele o culpado de que ela vivesse ali, pois não estava disposto a enterrar-se na aldeia como Ana desejava. Precisava de viver na sociedade, colocando-a numa posição horrível, fazendo-a passar por humilhações que não queria compreender. E igualmente o culpava de estar separada do filho. Nem os raros momentos de ternura entre eles chegavam para apaziguar; notava agora nos carinhos de Vronski um misto de sossego e segurança que antigamente não tinham, e isso irritava-a.
Anoitecia já. Enquanto esperava por Vronski, que fora a um jantar de celibatários, Ana andava de um lado para o outro no escritório (a dependência da casa onde se ouvia menos o ruído da rua), recapitulando todos os pormenores da discussão da véspera. Ao evocar as causas da altercação daquela manhã, veio a lembrar-se, por fim, do princípio da conversa que haviam tido. Durante muito tempo não quis acreditar Sue a discussão houvesse sido suscitada por umas palavras tão inofensivas e que tão pouco afectavam os seus corações. E no entanto assim acontecera, com efeito. Tudo principiou porque Vronski havia troçado dos liceus femininos, considerando-os desnecessários, e Ana, pelo contrário, defendera a sua utilidade. Vronski mostrara-se pouco respeitoso para com a instrução feminina, dizendo que Hanna, a inglesinha protegida de Ana, não precisava de saber física.
Aquilo irritou-a, que via nessas palavras uma alusão depreciativa às suas próprias ocupações. Concebeu e disse a Vronski uma frase impertinente para se vingar do dano que lhe causara.
- Não esperava que te lembrasses nem de mim nem dos meus sentimentos, como o faria um homem enamorado, mas que mostrasses um pouco de delicadeza.
Efectivamente Vronski corou, irritado, replicando qualquer coisa de desagradável. Ana não se lembrava o que respondera, mas nesse momento ele, desejando, ao que lhe parecera, feri-la por sua vez, exclamara:
- Confesso-te que não posso compreender o teu interesse exagerado por essa pequena, não o acho natural.
Esta crueldade, que fazia ruir o mundo que Ana construíra com tanto trabalho, na esperança de assim suportar melhor a sua penosa falta de naturalidade, fizeram-na explodir,
- Sinto muito que apenas sejas capaz de compreender sentimentos grosseiros e materiais - replicou, saindo da sala.
Quando Vronski entrou à noite no quarto de dormir, não falou na discussão havida, embora ambos sentissem que o desgosto apenas estava dissimulado e as pazes não estavam feitas.
Vronski passara o dia inteiro fora de casa, e a Ana, na sua solidão, pesava-lhe muito ter discutido; desejava tudo esquecer, perdoar e reconciliar-se, culpando-se a si mesma e justificando-se junto dele. "Eu tenho a culpa. Estou irascível, os meus ciúmes são infundados... Vou reconciliar-me com ele e iremos para a aldeia, ali estaremos tranqüilos." "Não o acho natural", lembrou, de súbito, as palavras de Vronski. Mas o que mais a magoou fora a intenção de a ferir que notara nelas. "Sei o que ele quis dizer: que não é natural querer a uma criatura estranha, não querendo a minha própria filha. Que entende ele do meu amor pelos meus filhos, do meu amor por Seriocha, que eu lhe sacrifiquei? Mas esse seu desejo de me magoar? Não; ele gosta de outra mulher, não pode deixar de ser."
Ao ver que, procurando apaziguar-se, percorrera de novo o círculo que tantas vezes havia percorrido já e que voltava a cair na irritação anterior, Ana horrorizou-se de si mesma. "Será possível? Porventura não me poderei reconhecer culpada?", perguntou a si própria, e voltou de novo ao princípio. "Ele é justo e honrado. Gosta de mim e eu gosto dele. Dentro de dias conseguiremos o divórcio. Que mais necessitamos. Paz e confiança. Assumirei todas as culpas, quando ele vier, dir-lhe-o que sou culpada, ainda que não seja verdade."
No intuito de não pensar mais e de impedir entregar-se à sua irritação, Ana chamou a criada e mandou que trouxessem as malas. Queria preparar as coisas que levaria para o campo.
Às dez chegava Vronski.
CAPÍTULO XXIV
- Divertiste-te? - perguntou Ana, que vinha ao encontro de Vronski com uma expressão ao mesmo tempo tímida e culpada.
- Como de costume - replicou ele, compreendendo, num relance de olhos, que Ana estava bem disposta.
Vronski acostumara-se às mudanças de humor de Ana e naquela noite ficou particularmente satisfeito por encontrá-la assim mudada: também ele estava muito bem disposto.
- Que vejo? Muito bem! Acho muito bem! - exclamou, atentando nas malas que estavam no vestíbulo.
- É preciso sairmos da cidade. Fui dar um passeio que me agradou tanto que senti desejos de partir para a aldeia. Nada te retém aqui, não é certo?
- Não peço outra coisa. Volto já e falaremos. Vou mudar de fato.
Manda servir o chá.
Vronski dirigiu-se ao seu quarto de toilette.
Havia o que quer que fosse de ofensivo no tom com que dissera: "Muito bem. Acho muito bem." Era como se se dirigisse a uma criança, que desistira dos seus caprichos. E tanto mais ofensivo quanto era certo haver um grande contraste entre o tom culpado de Ana e o dele, bem seguro de si. Ana, por momentos, sentiu desejos de continuar a luta; mas, graças a um grande esforço sobre si mesma, dominou-se e acolheu Vronski com a alegria anterior.
Contou-lhe como passara o dia e falou-lhe nos seus projectos de viagem, repetindo em parte o que de antemão pensara dizer.
- Ouve. Tive uma inspiração - disse ela. - Por que havemos nós de aguardar aqui o divórcio? Não será a mesma coisa se estivermos na aldeia? Não posso esperar mais. Não quero ter esperança nem quero ouvir falar mais nisso. Decidi que isto não tenha mais influência sobre a minha vida. Estás de acordo?
- Oh! Sim! - exclamou Vronski, observando não sem inquietação o rosto de Ana.
- Que fizeste tu? Quem estava no jantar? - perguntou ela, depois de um silêncio.
Vronski enumerou os convidados e contou que o jantar fora esplêndido. Houvera regatas e tudo correra muito bem. Mas em Moscovo as pessoas não podem passar sem le ridicule(Nota 132). Uma senhora, professora de natação da rainha da Suécia, apresentara-se para uma demonstração da sua arte.
- Como? Nadando? - perguntou Ana, de sobrecenho carregado.
- Era uma velha disforme, vestida com um costume de natation(Nota 133) encarnado. Então quando partimos?
- Que fantasia tão parva! E nadou de alguma maneira especial?
- quis saber Ana, sem responder à pergunta de Vronski.
- Não. Como te disse, era uma coisa completamente idiota. Então quando queres que partamos?
Ana abanou a cabeça, como se quisesse afastar um pensamento desagradável.
- Quando? Quanto mais cedo melhor. Já não temos tempo de partir amanhã. Iremos depois de amanhã.
- Sim... Mas espera. Depois dê amanhã é domingo tenho de ir visitar a maman - disse Vronski, perturbando-se, pois, enquanto falava na mãe, sentia fitos nele os olhos de Ana cheios de desconfiança.
Ana corou e apartou-se de Vronski. Agora já não era a professora de natação da rainha da Suécia quem ela tinha na mente, mas a princesa Sorokina, que vivia com a condessa Vronskaia numa povoação perto de Moscovo.
- Podes ir amanhã!
- Não. Nem a procuração nem o dinheiro que ela me tem de entregar estarão prontos para amanhã - replicou Vronski.
- Pois eu depois de amanhã não vou. Ou vamos amanhã ou nunca.
- Porquê? - inquiriu Vronski, surpreendido. - Isso não tem pés nem cabeça.
- Para ti, não, porque no teu egoísmo não queres compreender que eu sofra. A única coisa que me entretinha aqui era Hanna. Dizes-me que isso é hipocrisia. Ontem disseste-me que não gosto da minha filha, que finjo gostar da pequena inglesa, que isso não é natural. Gostava de saber qual a forma de vida que poderia ser natural para mim. - Por momentos, compreendeu, aterrorizada, ter esquecido as suas boas intenções. Mas, embora compreendendo ir por caminho errado, não resistiu à tentação de lhe provar que estava enganado.
- Nunca falei em semelhante coisa. Apenas disse que não gostava desse carinho improvisado.
- Por que estás a mentir, tu que tanto te orgulhas de ser recto?
- Nem minto nem me envaideça da minha rectidão - replicou Vronski, refreando a ira que se apoderava dele. - É pena que não respeites...
- O respeito foi inventado para esconder o lugar vazio onde deveria estar o amor... Se já me não queres, é melhor e mais leal que mo digas.
- Isto começa a ficar insuportável! - exclamou Vronski, levantando-se. E de pé, diante de Ana, num tom que queria significar que lhe podia dizer muito mais coisas, mas que se continha, disse-lhe pausadamente: - Para que pões à prova a minha paciência? Advirto-te que tem limites.
- Que queres dizer com isso? - gritou Ana, olhando com horror a clara expressão de ódio que se reflectia no rosto de Vronski e principalmente nos seus olhos cruéis e ameaçadores.
- Quero dizer... - principiou ele, mas deteve-se. - Gostava de saber que desejas tu de mim.
- Que posso eu desejar? Unicamente que me não abandones como pensas fazer - disse Ana, compreendendo tudo quanto Vronski deixara de dizer. - Mas não, o desejo é secundário. Por conseguinte, tudo acabou.
E dirigiu-se para a porta.
- Espera! Es... pé... rã! - exclamou Vronski, sem que a prega severa que se lhe cavara na testa desaparecesse, agarrando-a por uma mão. - Que foi? Disse que devíamos adiar por três dias a nossa partida e a isso respondeste-me que eu sou falso e desonesto.
- Sim, e repito que um homem que não faz outra coisa senão atirar-me à cara tudo ter sacrificado por mim - replicou Ana, recordando as derradeiras palavras da última zanga - é pior do que um homem falso: é um homem sem coração.
- Decididamente a paciência tem limites! - exclamou Vronski, dando-se pressa em soltar a mão de Ana.
"Odeia-me, é um facto", pensou ela, e, em passos titubeantes abandonou o quarto em silêncio. "Gosta de outra mulher, é certo, certo agora", dizia, ao entrar no seu quarto. "Quero amor, mas não o tenho. Por conseguinte, tudo acabou", repetiu as palavras que dissera antes: "É preciso acabar."
"Mas como?", perguntou a si mesma, sentando-se numa poltrona diante do espelho.
Os pensamentos mais díspares a assaltaram. Onde refugiar-se? Em casa da tia que a criara? Em casa de Dolly? Ou no estrangeiro? Que estaria ele a fazer no quarto de toilette? Seria definitiva aquela ruptura? Que diriam Alexei Alexandrovitch e as suas amigas de Sampetersburgo? Uma ideia vaga se lhe ia formando no espírito sem que ela chegasse a formulá-la. E lembrou-se de uma frase que dissera ao marido depois do parto: "Porque não morri eu?" De súbito, estas palavras acordaram o sentimento que se apoderara dela outrora. "Morrer, sim, é a única maneira de sair disto. A minha vergonha, a desonra de Alexei Alexandrovitch, a desonra de Sérgio, tudo acabará com a minha morte. E quando eu estiver morta, ele há-de arrepender-se da sua conduta, há-de chorar por mim, amar-me-á." Um sorriso de enternecimento por si própria lhe aflorou aos lábios enquanto punha e tirava os anéis, maquinalmente.
Aproximaram-se passos - os dele! - que a afastaram da meditação em que caíra. Fingindo que arrumava os anéis, nem sequer olhou para ele.
Vronski aproximou-se e pegando-lhe na mão pronunciou em voz baixa:
- Ana, estou pronto a tudo; se queres, vamo-nos depois de amanhã.
Ana continuou calada.
- Que achas? - insistiu ele.
- Faz como quiseres - disse Ana, e incapaz de se reprimir por mais tempo, irrompeu em soluços. - Abandona-me! Abandona-me! - dizia, entre lágrimas. - Partirei amanhã... E farei mais... Que sou eu? Uma mulher perdida, uma pedra ao teu pescoço. Não quero atormentar-te mais. Tu já não me amas, tu gostas de outra, eu libertar-te-ei de mim.
Vronski suplicou-lhe que se calasse, garantindo-lhe que não tinham sentido algum aqueles ciúmes, que nunca deixara nem deixaria de amá-la e que ainda a amava mais hoje do que antes.
- Para que te atormentas e me fazes sofrer a mim? - disse, beijando-lhe as mãos.
Naquele momento havia ternura na expressão dele e Ana julgou notar-lhe lágrimas na voz e sentiu, mesmo, que as lágrimas dele lhe humedeciam as mãos. De súbito, os ciúmes desesperados que sentia transformaram-se em apaixonada ternura cheia de exaltação: abraçou Vronski, cobrindo-lhe de beijos a cabeça, o pescoço e as mãos.
CAPÍTULO XXV
A reconciliação era completa. Na manhã seguinte Ana principiou a preparar com grande animação as coisas para a viagem. Conquanto ainda não tivessem decidido se partiriam segunda ou terça-feira, visto estarem prontos a ceder aos desejos um do outro, Ana preparava activamente a partida, indiferente à ideia de que fosse um dia antes ou um dia depois. Estava no quarto, diante de uma mala aberta, arrumando as suas coisas, quando Vronski entrou, pronto já para sair.
- Vou a casa da maman. Ela pode mandar-me o dinheiro por intermédio de Iegorov, de modo que estou disposto a partir amanhã.
Apesar da boa disposição de Ana, a ideia daquela visita de Vronski à residência estival da mãe impressionou-a.
- Não sei se terei tempo para preparar tudo - disse, e imediatamente pensou: "Por conseguinte era possível arranjar as coisas para fazer o que eu queria." - Não. É melhor que façamos como tu desejavas a princípio. Vai para a sala de jantar, depois eu irei. Tenho apenas de guardar estes objectos que não são necessários - acrescentou, empilhando mil coisas nos braços de Anuchka, carregada já com um montão de roupas.
Quando Ana entrou na sala de jantar, Vronski comia um bife.
- Não calculas como me são odiosas estas casas - disse, sentando-se perto dele, diante de uma chávena de café. - Não há nada pior do que estas chambres garnies(Nota 133.5). Não têm expressão, não têm alma. Estes relógios, estas cortinas e sobretudo os papéis das paredes são para mim um pesadelo. Quando me lembro de Vozdvijenskoe é como se pensasse na Terra Prometida. Não vais mandar já os cavalos?
- Não, irão depois. Pensas sair hoje?
- Queria ir à Casa Wilson. Tenho de levar uns vestidos. Então sempre vamos amanhã? - perguntou Ana, em tom alegre; mas, de súbito, mudou de expressão.
O criado de quarto de Vronski entrava nesse momento para pedir o recibo de um telegrama. Vronski respondeu-lhe secamente que estava no escritório. E para desviar a atenção de Ana, deu-se pressa em responder-lhe:
- Amanhã estará tudo pronto sem falta.
- De quem é o telegrama? - perguntou Ana, sem o ouvir.
- Do Stiva! - respondeu Vronski de má catadura.
- Porque não mo mostraste? Que segredos pode haver entre mim e Stiva?
Vronski chamou o criado de quarto e ordenou-lhe que trouxesse o telegrama.
- Não to quis mostrar, porque não faz sentido mandar um telegrama quando ainda nada está decidido. Stiva tem a mania dos telegramas.
- Trata-se do divórcio?
- Trata, diz que ainda não pôde conseguir nada. Prometeu-lhe uma resposta definitiva dentro de dias. Toma, lê.
Ana pegou no telegrama de mãos trêmulas, e leu o que Vronski acabava de dizer. Por fim o telegrama acrescentava: "Há poucas esperanças; mas hei-de fazer o impossível."
- Não te disse ontem que isto me era indiferente? - observou ela, corando. - Não valia a pena, por isso, estares a esconder-me uma coisa destas. "Naturalmente é o que ele faz à correspondência com as mulheres", pensou ela.
- A propósito, Iachivne virá, talvez, esta manhã com Voitov. Imagina: ganhou perto de sessenta mil rublos ao Pievtsov, que vai ver-se em apuros para lhe pagar.
- Mas - exclamou Ana, fora de si, pois aquela maneira indirecta, mudando de assunto, de ele lhe fazer compreender que ia de novo meter-se por caminho perigoso, ainda mais a irritou. - Para que queres tu o divórcio?
"Meu Deus, outra vez o amor", pensou Vronski, numa careta.
- Já sabes que o desejo por ti e pelos filhos que tivermos.
- Não haverá mais filhos.
- É pena!
- Só pensas nos filhos e não em mim - exclamou Ana, esquecendo-se de que ele acabava de dizer "por ti e pelos filhos".
Este desejo de ter filhos era de há muito entre eles motivo de discórdia: considerava isso uma prova de indiferença de Vronski pela sua beleza.
- Pelo contrário, é sobretudo em ti que eu penso - respondeu ele, de sobrancelhas franzidas, como se uma nevralgia o fizesse sofrer. - Estou convencido de que a tua irritabilidade é em grande parte o resultado da posição falsa em que vives.
"Deixou de fingir, e o ódio frio que me tem lá está agora completo", pensou ela, sem prestar atenção ao que ele dizia. Afigurava-se-lhe que um juiz feroz a condenava através dos olhos de Vronski.
- Não, a minha posição nada tem que ver com aquilo a que tu queres chamar a minha ir-ri-ta-bi-li-da-de - disse ela. - Pareceu-me perfeitamente clara: não estou eu inteiramente nas tuas mãos?
- Tenho pena de que me não queiras compreender - interrompeu-a ele, bruscamente, empenhado em obrigá-la a apreender de uma vez para sempre o fundo do seu pensamento. - A tua falsa posição é que te compele a desconfiares de mim.
- Oh, quanto a isso podes estar sossegado! - replicou ela, voltando a cara.
Bebeu algumas gotas de café: o ruído que fazia com os lábios e o gesto da mão que segurava, de dedo mínimo levantado, evidentemente que irritavam Vronski; e percebeu isso mesmo, ao relancear-lhe um olhar furtivo.
- Pouco me importa a opinião da tua mãe e os projectos de casamento que tem para ti - disse ela, repelindo a chávena, a mão trêmula.
- Não é disso que se trata.
- É, é disso, precisamente. E acredita que para mim uma mulher sem coração, seja velha, seja nova, seja tua mãe ou uma estranha, não me interessa nem quero nada com ela.
- Ana, peço-te que não fales da minha mãe com essa falta de respeito.
- Uma mulher que não soube adivinhar onde estavam a felicidade e a honra do filho, não tem coração.
- Repito-te o pedido que te fiz: não fales assim de minha mãe, a quem eu respeito - repetiu Vronski, erguendo a voz e olhando Ana com severidade.
Ana não respondeu. Examinou atentamente o rosto e as mãos de Vronski e recordou, em todos os seus pormenores, a cena de reconciliação da véspera e as carícias apaixonadas que se lhe tinham seguido: "Prodigalizou carícias precisamente iguais a outras mulheres, e é isso que ele quer continuar a fazer", pensou.
- Tu não gostas de tua mãe. Tudo isso são palavras, palavras, palavras! - exclamou, fitando-o com ódio.
- Se assim é, mais vale...
- Mais vale tomar uma decisão, e eu já a tomei. - Ana ia retirar-se, mas nesse momento Iachivne entrava na sala. Cumprimentou-o e deteve-se.
Não sabia para que havia de fingir diante de uma pessoa estranha que, mais tarde ou mais cedo, tudo viria a saber, quando a tempestade lhe reinava na alma. Pressentia ter chegado a esse momento decisivo da vida, momento de terríveis conseqüências. Mas, apaziguando, imediatamente, a tempestade interior, sentou-se e principiou a falar com Iachivne.
- Então como vão as suas coisas? Já cobrou a dívida? - perguntou-lhe.
- Apenas parte, e tenho de me ir embora terça-feira, sem falta - volveu-lhe ele, arriscando um relance de olhos para Vronski: adivinhava que viera interromper uma cena entre ambos. - E quando partem?
- Depois de amanhã, suponho eu - tornou-lhe Vronski.
- Já está finalmente resolvido?
- Está, definitivamente - replicou Ana, que, fitando Vronski nos olhos, dizia-lhe ser inútil pensar numa reconciliação. - Será possível que não tenho pena do desgraçado do Pestsov? - perguntou, continuando a conversa com Iachivne.
- Pena? Aí está uma coisa em que eu ainda não pensei, Ana Arkadievna. Tudo quanto tenho anda comigo - disse, apontando para o bolso do colete. - Agora sou um homem rico. Mas hoje hei-de ir ao clube e quando de lá sair naturalmente já não terei com que mandar cantar um cego. Ora, aquele que joga comigo está animado do mesmo desejo que eu: deixar-me sem camisa. Lutamos, e nisso consiste o nosso prazer.
- E se fosse casado? Que diria a sua mulher? - perguntou Ana.
Iachivne desatou a rir.
- Por isso mesmo não me casei, nem nunca tal coisa me passou pela cabeça.
- Esqueceste-te de Helsingfors - insinuou Vtonski, arriscando um olhar a Ana, que sorria.
Ao encontrar-se com o olhar de Vronski, o rosto de Ana adoptou, repentinamente, uma expressão fria e severa, como se dissesse: "Ainda não esqueci. Tudo continua no mesmo pé."
- Será possível que tenha estado enamorado? - interrogou Ana a Iachivne.
- Oh, meu Deus! Quantas vezes! Mas enquanto os outros fazem tudo para que as suas partidas de cartas os não impeçam de ir aos rendez- vous, eu fiz sempre o que pude para não perder as partidas de cartas.
- Não é isso que eu lhe pergunto. Falo-lhe do presente - Ana ia referir-se a Helsingfors, mas não quis repetir a palavra que Vronski pronunciara.
Entretanto apareceu Voitov, que queria comprar um potro, e Ana abandonou a sala.
Antes de sair de casa, Vronski foi aos aposentos de Ana. Esta quis fingir que procurava qualquer coisa na mesa, mas, envergonhada do fingimento, olhou-o resolutamente, com olhos frios.
- Que queres? - perguntou em francês.
- Venho buscar os documentos do Gambetta, vendi-o - replicou Vronski, num tom que dizia mais do que as palavras. "Não tenho tempo para explicações, que, aliás, não conduziriam a coisa alguma." "Não tenho nada que me censurar a mim próprio", pensou. "Se quer mortificar-se, tant pis pour elle156." No entanto, quando ia a sair, pareceu-lhe que Ana dissera qualquer coisa, e uma grande piedade por ela o invadiu.
- Que dizes, Ana? - perguntou.
- Nada - respondeu ela, fria e tranqüila. "Nada? Tant pis", pensou Vronski, indiferente de novo, e, voltando-se, deixou a sala. Ao sair, viu no espelho o rosto de Ana, pálido e de lábios trêmulos. Pensou em deter-se para lhe dizer duas palavras consoladoras, mas os pés arrastaram-no para fora da sala antes de pensar no que diria. Passou todo o dia fora de casa e quando voltou, noite alta, a criada disse-lhe que Ana Arkadievna estava com dores de cabeça e pedia que a não fosse incomodar.
CAPÍTULO XXVI
Ana e Vronski ainda não tinham passado um dia inteiro zangados. Era a primeira vez. E não se tratava de uma simples querela, mas de uma prova evidente de que o amor de Vronski esmorecia. Como pudera ele olhá-la daquela forma quando entrou na sala para recolher os documentos? Embora visse que o seu coração se despedaçava, saíra em silêncio, indiferente e tranqüilo. O seu amor por ela arrefecera, odiava-a, visto gostar de outra mulher. Era evidente.
Lembrando as palavras cruéis de Vronski, Ana pensava nas que sem dúvida teria querido e teria podido dizer-lhe, e cada vez se sentia mais excitada.
"Não a retenho", podia ele ter dito, "pode ir-se embora quando quiser e para onde lhe agrade. Visto que já se não importa com o divórcio, é porque pensa voltar para seu marido. Pois que volte. Se precisa de dinheiro, eu lho darei. Quantos rublos quer?"
Ana imaginava ter-lhe ele dito as mais cruéis palavras que um homem grosseiro é capaz de dizer, e não lhas perdoava, como se ele as tivesse realmente pronunciado.
"Mas ainda ontem ele jurava amar-me só a mim!", dizia para si mesma, momentos depois. "É um homem honesto e sincero. Não me tenho eu sentido tantas vezes revoltada contra ele, inutilmente?"
Todo aquele dia, à excepção de duas horas que passou na Casa Wilson, esteve Ana cheia de dúvida a respeito da situação. Não sabia se tudo estava terminado ou se ainda havia esperanças de reconciliação. Deveria ir-se embora imediatamente, ou convinha tornar a vê-lo mais uma vez? Esperou Vronski o dia inteiro e pela noite, ao retirar-se para o quarto, deu ordens para que lhe dissessem doer-lhe a cabeça, e pensou: "Se vier ter comigo, apesar do que lhe disser a criada, é porque ainda me quer. Caso contrário, acabou-se e eu sei o que me resta fazer."
Ouviu o rolar das rodas do carro quando Vronski chegou, ouviu-o tocar a campainha e depois falar com a criada. Os passos afastaram-se. Penetrara no escritório. Ana compreendeu que o destino estava jogado. A morte representou-se-lhe então como a única maneira de castigar Vronski, de lhe reconquistar a amor, de triunfar na luta que o espírito maligno que se lhe havia alojado no coração travava com aquele homem. A partida, o divórcio, tudo era agora para ela indiferente. O essencial era o castigo.
Pegou no frasco do ópio e lançou num copo a dose habitual. "Se eu tomasse todo o frasco", pensou, "seria tudo quanto há de mais fácil acabar." Deitada, de olhos abertos, observava, à luz vacilante da vela, os contornos do estuque e a sombra que o biombo aí projectava, abandonando-se a esse lúgubre cismar. Que pensaria ele quando ela tivesse desaparecido? Que remorsos sentiria? "Como pude eu f alar-lhe tão duramente, como pude deixá-la sem uma palavra afectuosa? E agora desapareceu para sempre, abandonou-nos para nunca mais!..." De súbito, a sombra do biombo pareceu agitar-se, assenhorear-se de todo o tecto, outras sombras vieram ao seu encontro, recuaram, para se precipitarem com novo ímpeto, e tudo se fundiu em completa obscuridade. "A morte", disse para si mesma. E um terror tão profundo se apoderou dela que por algum tempo tentou concentrar as ideias sem saber onde estava. Depois de inúteis esforços, conseguiu, finalmente, de mão trêmula, acender outra vela para substituir a que acabava de apagar-se. Lágrimas de alegria lhe inundaram o rosto, quando percebeu ainda estar viva. "Não, não, tudo menos a morte! Eu amo-o, e ele também me ama, já passámos por cenas semelhantes e as coisas arranjaram-se." E para fugir aos terrores que a assaltavam, levantou-se e correu a refugiar-se no quarto de toilette de Vronski.
Vronski dormia tranqüilamente. Aproximou-se dele, ergueu a vela por cima da cama e ficou-se a contemplá-lo enternecida, os olhos rasos de lágrimas. Porém, evitou acordá-lo: tê-la-ia olhado com o seu olhar glacial, seguro do seu procedimento, e ela, pelo seu lado, num primeiro impulso, ter-se-ia empenhado em demonstrar-lhe a gravidade das suas faltas. Voltou, pois, para o quarto, tomou uma segunda dose de ópio e adormeceu pesadamente, embora nem mesmo a dormir esquecesse o fardo das suas dores.
De madrugada, o pesadelo medonho que mais de uma vez a oprimira antes da sua ligação com Vronski veio de novo enchê-la de angústia: um velhinho de barbas desgrenhadas fazia alguma coisa, debruçado sobre uns ferros, enquanto dizia em francês palavras sem sentido. E Ana, como sempre que a visitava este pesadelo (e nisso consistia o horror do pesadelo), notava que o velhinho lhe não prestava a mínima atenção, mas fazia qualquer coisa de horroroso com esses ferros. E acordou coberta de suores frios.
Quando se levantou, os acontecimentos da véspera representaram-se-lhe confusamente no espírito. "Que se passou de tão desesperado?", pensava ela. "Houve uma discórdia? Não é a primeira. Disse-lhe que me doía a cabeça e ele não quis saber. Amanhã vamo-nos embora: preciso de o ver, de lhe falar, de apressar a partida."
Dirigiu-se ao escritório de Vronski, mas, ao atravessar o salão, o rolar de uma carruagem que parava à porta levou-a a olhar pela janela. Era um coupé: uma jovem, de chapéu lilás, debruçada da portinhola, dizia qualquer coisa a um trintanário; este tocou a campainha, no vestíbulo ressoaram vozes, alguém subiu a escada e Ana ouviu Vronski descer precipitadamente. Viu-o na rua, de cabeça descoberta, que se aproximava da carruagem e pegava num embrulho que a jovem lhe estendia, falando e sorrindo. O coupé afastou-se e Vronski voltou a subir as escadas em passo rápido.
Esta breve cena dissipou repentinamente o torpor de Ana, e as impressões da véspera dilaceraram-lhe o coração mais dolorosamente do que nunca: como pudera ela rebaixar-se a tal ponto, ficando ainda um dia inteiro em casa de Vronski, depois do que se passara? Penetrou no escritório para lhe comunicar a sua decisão.
- A princesa Sorokina e a filha trouxeram-me o dinheiro e os papéis de minha mãe, que eu não pudera recolher ontem - disse Vronski, tranqüilamente, sem querer reparar na trágica fisionomia de Ana. - Como te sentes esta manhã?
De pé, no meio do escritório, Ana olhava-o fixamente, enquanto ele continuava a ler uma carta, de testa enrugada, depois de a haver percorrido com os olhos. Sem dizer palavra, Ana rodou sobre os calcanhares e dirigiu-se para a porta; ele nada fez para a deter; no silêncio ouvia-se apenas o ruído do papel amarrotado nas suas mãos.
- A propósito - disse ele quando Ana atingia já o limiar da porta. - É amanhã, realmente, que nós partimos?
- O senhor, eu não - replicou Ana, voltando-se para ele.
- Ana, assim não podemos viver.
- O senhor não eu - repetiu ela.
- Isto começa a ser intolerável.
- O senhor... arrepender-se-á - disse ela, saindo.
Assustado com o tom de desespero com que ela pronunciara as últimas palavras, Vronski ergueu-se subitamente da cadeira onde estava sentado, quis correr atrás dela, mas, retendo-se, tornou a sentar-se, franziu as sobrancelhas e apertou os lábios.
Aquela ameaça que ele considerava inconveniente, exasperava-o. "Tentei tudo, só me resta não lhe prestar atenção", pensou. E preparou-se para sair: precisava ainda de fazer algumas compras e de submeter uma procuração à assinatura da mãe.
Ana ouviu-o sair do escritório, atravessar a sala de jantar, parar na antecâmara, não para vir ao encontro dela, mas para dizer que mandassem o potro a casa de Voitov. Ana ouviu aproximar-se o carro dele, abrir-se a porta e Vronski sair. De repente, porém, ele entrou de novo no pátio e alguém subiu as escadas correndo. Era o criado de quarto de Vronski, que ia buscar as luvas de que o amo se esquecera. Depois, batendo nas costas do cocheiro, disse-lhe qualquer coisa, e, sem se virar para as janelas da casa, cruzando as pernas, como de costume, sentado na almofada, pôs-se a calçar as luvas. Entretanto, o carro desaparecia.
CAPÍTULO XXVII
"Foi-se embora! Tudo acabou!", disse Ana de si para consigo, de pé, junto à janela. De chofre a angústia em que a mergulhara, durante a noite, a vela apagada e as ânsias do pesadelo, invadiram-na de novo inteiramente. "Não! Não é possível!", exclamou ela. Atravessou o quarto e puxou violentamente a campainha; mas, dominada pelo terror, não pôde esperar pelo criado, correu ao seu encontro.
- Vá saber onde foi o senhor conde - disse-lhe ela.
- Às cavalariças - respondeu o criado -; o carro volta já e ficará inteiramente às suas ordens.
- Está bem. Eu vou escrever duas linhas. Peça ao Mikail que as leve imediatamente à cavalariça. Sentou-se e escreveu. "Eu tenho a culpa. Volta para casa, por amor de Deus. Precisamos de ter uma explicação. Tenho medo."
Fechou o sobrescrito, entregou a carta ao criado e com medo de ficar só dirigiu-se à dependência da filha.
"Já o não reconheço. Onde estão os seus olhos azuis e o seu lindo sorriso tímido?", pensou ela, ao ver, em vez de Seriocha, que, na confusão de espírito em que estava, julgou ir encontrar, a pequenina, gorduchinha, de faces rosadas e de cabelo preto todo encaracolado. Sentada ao pé de uma mesa, a criança batia com uma rolha de garrafa em cima do tampo da mesma; os seus olhos pretos, cor de azeviche, pousaram-se inexpressivos na mãe que entrava. Ana disse à inglesa que já estava perfeitamente bem e que no dia seguinte seguiriam para o campo. Sentou-se junto da menina e pôs-se a fazer girar a rolha da garrafa diante dela. Mas o riso sonoro da pequenina, bem como o seu mover de sobrancelhas, lembraram-lhe tanto Vronski que se ergueu apressadamente, reprimindo os soluços, e saiu da sala. "Será possível que tudo tenha acabado? Não, não pode ser", pensou. "Ele voltará. Mas como há-de ele explicar-me aquele sorriso, aquela animação, depois de ter falado com ela? Mesmo que mo não explique, acreditarei nele. Se não acreditar, só me resta uma coisa, e isso não."
Ana consultou o relógio. Tinham passado doze minutos. "A esta hora já deve ter recebido o meu bilhete. Já falta pouco. Uns dez minutos. Mas, e se não viesse? Não, isso não pode ser. É preciso que me não veja com os olhos chorosos. Vou lavá-los. Sim, sim. Penteei-me ou não?", perguntou a si própria. Mas não foi capaz de se lembrar. Apalpou a cabeça com a mão. "Sim, estou penteada; mas não consigo saber quando me penteei." Não confiando no tacto da mão, aproximou-se de um espelho para ver se na verdade estaria penteada. Estava, realmente, embora não fosse capaz de lembrar-se quando o fizera. "Que é isto?" pensou, ao ver no espelho o rosto tumefacto e os olhos em que havia um brilho estranho, que a fitavam, surpresos. "Sou eu", compreendeu, subitamente, e voltou a contemplar-se toda no espelho. De súbito, sentiu que Vronski a beijava e, estremecendo, moveu os ombros. Depois, erguendo a mão, beijou-a.
"Que é isto? Estou a ficar doida", exclamou, enquanto se dirigia para o quarto de dormir que Anuchka arrumava.
- Anuchka! - disse Ana, olhando para a criada e detendo-a a seu lado sem saber ainda que lhe diria.
- Quer ir visitar Daria Alexandrovna? - sugeriu ela, como se a compreendesse.
- Daria Alexandrovna? Sim, irei visitá-la.
"Quinze minutos para lá e quinze minutos para cá", disse consigo mesma, puxando o relógio e vendo as horas. "Mas como pôde ir-se embora, deixando-me neste estado? Como pode ele viver sem se reconciliar comigo? Aproximou-se da janela e olhou para a rua. Pelo tempo que decorrera, já podia estar de volta. Mas talvez o cálculo não estivesse certo. Ana procurou lembrar-se outra vez de quando Vronski partira e contou os minutos.
Na altura em que ia a consultar o relógio da parede para compará-lo com o seu, ouviu o rolar de um carro. Olhou pela janela: era a carruagem de Vronski. Ninguém subiu a escada e, contudo, em baixo ressoaram vezes. Era Mikail que voltara no carro. Ana desceu as escadas ao seu encontro.
- Não encontrei o senhor conde... Já tinha partido para a estação de Nijni-Novgorod.
- Que dizes tu?... - exclamou Ana, dirigindo-se ao elegante Mikail, que lhe devolvia a carta.
"Não a recebeu", disse consigo mesma.
- Leva esta carta à quinta da condessa Vronskaia. E traz-me imediatamente a resposta - ordenou.
"E eu? Que vou eu fazer? Ah, sim, é verdade. Vou a casa de Daria Alexandrovna. Pois, de outra maneira, acabarei por endoidecer. Também posso telegrafar-lhe." E Ana redigiu um telegrama.
"Preciso falar-te. Volta imediatamente."
Depois de entregar o texto ao criado, foi vestir-se. Quando já estava pronta e de chapéu na cabeça, fitou a serena Anuchka, que tinha engordado. Nos seus olhos cinzentos, pequeninos e bondosos, lia-se claramente uma viva compaixão.
- Anuchka querida, que devo eu fazer? - exclamou Ana, soluçando e deixando-se cair, abatida, numa poltrona.
- Porque se inquieta tanto, Ana Arkadievna? São coisas que costumam acontecer. Saia, distraia-se - aconselhou a criada.
- Sim, vou sair - assentiu Ana, recompondo-se enquanto se levantava. - Se na minha ausência chegar um telegrama, que mo mandem a casa de Daria Alexandrovna... Ou não, voltarei, não tarda muito.
"É isso, é preciso não pensar, mas fazer qualquer coisa, sair, o principal é sair desta casa", disse para si mesma, ouvindo, surpresa, as pancadas precipitadas do coração. Saiu apressadamente e subiu para a carruagem.
- Onde devo levá-la, minha senhora? - perguntou Piotre, antes de subir para a boleia.
- Rua da Aparição, a casa dos Oblonski.
CAPÍTULO XXVIII
O tempo estava límpido. Durante toda a manhã caíra uma chuva miudinha, mas agora o dia clareara. Os telhados de zinco, as lajes dos passeios, os pavimentos das ruas, as rodas dos carros e os arreios dos cavalos, tudo rebrilhava ao sol de Maio. Eram três da tarde, a hora de maior animação nas ruas.
Sentada no fundo da carruagem, que mal baloiçava nas suas fortes molas, tirada por céleres cavalos, Ana recordou novamente os acontecimentos dos últimos dias. Ouvindo o incessante rumor das rodas, sob as impressões que se iam sucedendo rapidamente e aspirando o ar puro, considerava agora a situação de maneira muito diferente. Já nem sequer a ideia da morte lhe aparecia tão terrível e clara, nem mesmo a julgava inevitável. Agora censurava a si própria a humilhação a que descera. "Suplico-lhe que me perdoe. Submeti-me. Reconheci-me culpada. Porquê? Não poderei eu, porventura, viver sem ele?" E sem responder a esta pergunta, pôs-se a ler as tabuletas dos estabelecimentos. "Escritório e Armazém", "Dentista"... "Sim, direi tudo a Dolly. Ela não gosta do Vronski. Sentir-me-ei envergonhada e louca, mas dir-lhe-ei tudo. Dolly gosta de mim. Seguirei o conselho que ela me der. Não me submeterei a ele, não consentirei que me eduque." Filipov: kalatches. "Ouvi dizer que Filipov manda a massa para Sampetersburgo. A água de Moscovo é tão boa! E os poços de Mitistchenski e as tortas!" E Ana lembrou-se de que, quando tinha 17 anos, fora com a tia ao mosteiro de Troitsa. "Fomos num carro de cavalos, era assim nesse tempo. Seria eu essa rapariga de mãos coradas? Quantas coisas que outrora me pareciam magníficas e inacessíveis se me tornaram depois indiferentes, e em compensação o que tive nessa altura nunca mais o tornarei a ter. Como poderia eu pensar que ainda um dia chegaria a um tal estado de humilhação? Que alegria vai sentir com a minha carta, e que orgulho! Mas eu lhe ensinarei... Cheira tão mal aquela pintura. Para que hão-de estar sempre a edificar e a pintar? "Modas e adornos", leu. Um homem cumprimentou-a. Era o marido de Anuchka. Lembrou-se de que Vronski dizia: "Os nossos parasitas." Nossos? Nossos porquê? É horrível que se não possa arrancar o passado pela raiz. Não se pode arrancar, mas podem secar-se-lhe as raízes. É o que eu hei-de fazer." Nesse momento lembrou-se do seu passado com Alexei
Alexandrovitch e como o riscara da memória. "Dolly vai pensar que abandono o meu segundo marido e por isso, naturalmente, dar-me-á razão. Não a quero ter. Porventura quero eu ter razão? Não posso mais!", exclamou, e sentiu vontade de chorar. Não tardou, porém, em perguntar a si própria porque sorriam duas jovens que passavam. "Por amor, talvez? Não sabem que o amor não é alegre, não lhe conhecem nem a tristeza nem a ignomínia..." Três meninos correm na avenida a brincar aos cavalos. Seriocha! Perderei tudo e não o terei a ele. Outra vez me queres humilhar!", disse para si mesma. "Não, irei a casa de Dolly e dir-lhe-ei muito simplesmente: Sou desgraçada, mereço-o, sou culpada; mas nem por isso deixo de ser desgraçada, ajuda-me. Estes cavalos e este carro... Tenho nojo de mim própria por ir dentro dele. Tudo lhe pertence, mas nunca tornarei a ver nada disto!" Pensando nas palavras com que contaria tudo a Dolly e atormentando com isso o coração, subiu as escadas da amiga.
- Está alguém em casa? - perguntou no vestíbulo.
- Catarina Alexandrovna Levine - respondeu-lhe o criado.
"Kitty! A mulher de quem Vronski esteve enamorado!", pensou Ana. "A mulher que ele recordava com carinho. Lamenta não ter casado com ela e amaldiçoa o dia em que me conheceu."
No momento em que Ana chegava, as duas irmãs falavam da amamentação das crianças. Apenas Dolly recebeu Ana, que viera interromper a conversa das duas.
- Ainda não te foste embora? Eu tinha intenção de passar por tua casa; recebi esta manhã uma carta do Stiva - disse-lhe ela.
- Nós também tivemos um telegrama - replicou Ana, olhando à sua roda, à procura de Kitty.
- Diz-me que não compreende o que quer Alexei Alexandrovitch, mas que não sairá de Sampetersburgo sem obter uma resposta.
- Julguei que tinhas visitas. Posso ler a carta?
- Sim, está aí a Kitty - disse Dolly, embaraçada. - Ficou no quarto das crianças. Tem estado muito doente.
- Ouvi dizer. Posso ler a carta?
- Com certeza, vou procurá-la... Alexei Alexandrovitch não se opõe; Stiva tem esperanças - continuou Dolly, detendo-se no limiar da porta.
- Nada espero e nada desejo.
"Considerará Kitty uma humilhação encontrar-se comigo?", pensou Ana, ao ficar só. "Talvez tenha razão. Mas não é a ela que compete, a ela, que esteve enamorada de Vronski, dar-me lições. Bem sei que uma mulher honesta não me pode receber. Sacrifiquei tudo àquele homem e esta é a recompensa! Ah, como eu o odeio!... Por que vim eu aqui? Ainda aqui me sinto pior do que em minha casa." Ouviu a voz das duas irmãs no quarto contíguo. "E como poderei eu agora falar a Dolly? Vou dar uma grande satisfação a Kitty com o espectáculo da minha desgraça; seria como se lhe quisesse pedir protecção. Não! Aliás, nem a própria Dolly me compreenderia. Mais vale calar-me. Muito gostaria, porém, de a ver para lhe provar que desprezo todos e que tudo me é agora indiferente."
Dolly voltou a aparecer com a carta; Ana percorreu-a com os olhos e voltou a entregar-lha.
- Eu sabia - disse. - Não me interessa já.
- Porquê? Pelo contrário, eu tenho esperanças - replicou Dolly, olhando para Ana atentamente. Nunca a vira tão irritada e num tão estranho estado de espírito. - Onde vais?
Ana olhava diante de si com os olhos piscos e não respondeu.
- Porque se esconde Kitty de mim? - perguntou, olhando para a porta e corando.
- Que tolice! Está amamentando e não se sente muito bem. Dava- lhe conselhos... Ela já vem aí - respondeu Dolly, um tanto embaraçada, visto não saber mentir. - Aí está ela.
Quando Kitty soube da chegada de Ana, decidira não a encontrar; mas Dolly persuadira-a a que o não fizesse. Num grande esforço sobre si mesma, Kitty entrou na sala e, corando, aproximou-se de Ana, a quem estendeu a mão.
- Muito gosto - articulou, em voz trêmula.
A hostilidade e a indulgência ainda se digladiavam no seu foto íntimo. Ao ver, contudo, o belo rosto sismático de Ana, a prevenção em que estava contra aquela "má mulher" desvaneceu-se.
- Não teria estranhado que me não quisesse ver. Estou habituada a tudo. Esteve doente? Sim, parece-me mudada - disse Ana.
Kitty notou que Ana a olhava com uma expressão hostil. E pensando que essa hostilidade provinha da delicada situação em que se encontrava diante dela a mulher que outrora se mostrara sua protectora, teve pena.
Falaram da doença, da criança e de Stiva; mas, ao que parecia, nada interessava a Ana.
- Vim para me despedir de ti - disse ela, levantando-se.
- Quando partes?
Ana, sem responder, voltou-se para Kitty.
- Tive muito prazer em vê-la - disse com um sorriso. - Tenho ouvido falar muito de si por todos, até por seu marido. Esteve em minha casa e gostei muito dele - acrescentou, sem dúvida com maliciosa intenção. - Onde está ele?
- Foi para a aldeia - respondeu Kitty, corando.
- Dê-lhe cumprimentos meus, peco-lhe que se não esqueça.
- Não esqueço! - repetiu Kitty, ingenuamente, fitando-a nos olhos, compassiva.
- Adeus, Dolly! - e depois de beijar esta e de apertar a mão a Kitty, saiu precipitadamente.
- É sempre a mesma e sempre igualmente atrevida. Muito bonita é!. - comentou Kitty ao ficar só com a irmã. - Mas há nela qualquer coisa que desperta compaixão. Qualquer coisa de muito doloroso.
- Não me pareceu no seu estado normal. Julguei que desatava a chorar no vestíbulo.
CAPÍTULO XXIX
Ao subir para a carruagem, Ana ainda se sentiu mais infeliz do que quando saíra de casa. Aos seus sentimentos anteriores vinham juntar-se agora a humilhação e a reprovação que sentira de maneira evidente durante o encontro com Kitty.
- A senhora volta para casa? - perguntou Piotre.
- Sim, para casa - respondeu Ana, sem pensar para onde ia.
"Olhava para mim como se eu fosse uma coisa horrível e curiosa! Que poderão dizer estas pessoas com tanto calor"?, pensou ela, ao ver dois transeuntes conversando animadamente. "Porventura poderão dizer um ao outro o que sentem? Quis contar tudo a Dolly, mas fiz muito bem em calar-me. Que alegria ela sentiria com a minha desgraça! Não o teria deixado perceber, claro está, mas não há dúvida de que era alegria que acima de tudo havia de sentir ao ver-me a pagar caro os prazeres que me invejava. E Kitty ainda se teria regozijado mais. É como se lhe lesse na alma: odeia-me por eu ter sido mais amável com o marido do que seria de esperar. Tem ciúmes de mim, detesta-me, despreza-me: a seus olhos não passo de uma perdida. Ah, se eu fosse o que ela pensa, que fácil me teria sido dar volta à cabeça do marido! Confesso: cheguei a pensar nisso. Ali vai um homem encantado consigo mesmo", disse de si para consigo, ao ver um senhor gordo, de tez vermelhusca, cuja carruagem se cruzara com a dela e que, confundindo-a com outra, se descobrira, mostrando um crânio tão luzidio como a própria cartola. "Julga que me conhece. Ninguém me conhece, nem tu própria. Só conheço os meus appetits como dizem os Franceses. Aqueles garotos querem tomar sorvetes, ao menos têm a certeza disso", concluiu ao ver dois garotos parados diante de um vendedor que pousara no chão a caixa de sorvetes e limpava a testa com a ponta de um trapo. "Todos nós gostamos de coisas doces e saborosas. Se não há bombons, contentamo-nos com um gelado. Foi o que fez a Kitty. Como não pôde ter o Vronski, contentou-se com o Levine. E inveja-me, odeia-me. Todos nos odiamos uns aos outros. Eu odeio a Kitty, ela odeia-me a mim.
Esta é a verdade. Tiutkine: coiffeur... Je mefais coifferpar Tiutkine...(Nota 134) É o que eu lhe vou dizer quando voltar", pensou, sorrindo. Mas nesse mesmo momento lembrou-se de que não tinha a quem dizer essas coisas graciosas... "Por outro lado, não há nada gracioso nem alegre. Tudo é feio. Tocam a vésperas e aquele comerciante faz o sinal-da-cruz com tantos cuidados que parece recear deixar cair alguma coisa. Para que servem todas estas igrejas, todos estes sinos, todas estas mentiras? Apenas para esconder que nos odiamos uns aos outros, como esses cocheiros que se injuriam mutuamente, Iachivne tinha razão quando disse: "Ele quer deixar-me sem camisa e eu a ele. Esta é a verdade."
Levada pelos seus pensamentos, esqueceu por instantes a sua dor e ficou surpreendida quando o carro parou. Ao ver o guarda-portão, que vinha ao seu encontro, lembrou-se de que mandara uma carta e um telegrama a Vronski.
- Chegou alguma resposta? - perguntou.
- Vou saber - respondeu o guarda-portão, e, relanceando um olhar à mesa, apanhou, entregando-o a Ana, um sobrescrito quadrado que continha um telegrama.
"Não posso chegar antes das dez. Vronski", leu ela.
- O mensageiro não voltou ainda?
- Não, minha senhora - volveu-lhe o guarda-portão.
"Ah! Se é assim, já sei o que tenho a fazer", disse Ana consigo mesma. E sentindo que uma ira indefinida se desencadeava dentro de si, juntamente com um desejo de vingança, subiu as escadas correndo. "Eu mesma o irei buscar. Antes de me ir embora para sempre, dir-lhe-ei o que tenho a dizer-lhe. Nunca odiei ninguém como odeio este homem." Ao ver o chapéu de Vronski no bengaleiro, sentiu-se estremecer de raiva. Não reparara que aquele telegrama era resposta ao dela e que ele ainda não recebera a carta. Figurava-se Vronski a conversar tranqüilamente com a mãe e com a princesa Sorokina, regozijando-se com os sofrimentos por que ela estava a passar. "Preciso de ir quanto antes", disse para si mesma, sem saber ainda aonde. Desejava fugir o mais depressa possível dos sentimentos que a invadiam naquela horrível casa. Os criados, as paredes, tudo ali lhe despertava aversão e ira, oprimindo-a como um pesadelo.
"Sim, devo ir à estação, ou então surpreendê-lo ali mesmo." Consultou o horário dos comboios num jornal. Havia um às 8 horas e 2 minutos da noite. "Sim, terei tempo." Mandou atrelar outro cavalo e entreteve-se a meter numa maleta de viagem os objectos indispensáveis para alguns dias de ausência. Sabia que não voltaria mais àquela casa. Decidira, confusamente, entre os inúmeros planos que lhe acudiam, que, depois do que ia acontecer na estação, ou na quinta da condessa, seguiria, pela linha de Nijni-Novgorod, até à primeira cidade, onde se apearia.
O jantar estava na mesa. Ana aproximou-se, mas o cheiro da comida repugnou-lhe. Mandou que lhe preparassem a carruagem e saiu. A casa projectava já uma sombra que atravessava a rua de lado a lado; o entardecer era claro e ainda fazia calor o sol. Tanto Anuchka, que lhe levou a maleta ao carro, como Piotre, que a instalara lá dentro, ou o próprio cocheiro, descontente, ao que parecia, lhe eram desagradáveis, irritando-a com as suas palavras e os seus gestos.
- Não preciso de ti, Piotre.
- Quem lhe tirará o bilhete?
- Bom, faz o que quiseres - replicou Ana, irritada. Piotre deu um salto para a boleia, e, perfilando-se, ordenou ao cocheiro que conduzisse e senhora à estação de Nijni.
CAPÍTULO XXX
"Começo a ver claro, começo a ver claro!", disse Ana de si para consigo quando a carruagem se pôs em andamento, rolando pela calçada; e de novo o espírito começou a agitar-se-lhe.
"Em que pensava eu há pouco?", tentou recordar-se. "Em Tiutkine, coiffeur? Não. Não era nisso Ah! Sim!, no que dizia Iachivne: a luta pela vida e o ódio são as únicas coisas que unem os homens. Fazem mal em sair a passear", dizia mentalmente a um grupo de pessoas num carro puxado por quatro cavalos, naturalmente a caminho dos arrabaldes, em busca de diversões. "E o cão que vocês levam também não lhes servirá de nada." Dirigindo o olhar para onde Piotre dirigia o seu, Ana viu um operário, completamente bêbedo, a cabeça pendente, conduzido por um guarda. "Este, ao menos, encontrou o que queria. O conde Vronski e eu não encontramos o prazer; embora muito esperássemos dele, não conseguimos encontrá-lo."
E pela primeira vez dirigiu essa luz implacável, que lhe permitia ver o fundo de todas as coisas, para as suas relações com Vronski, a respeito das quais sempre evitara pensar. "Que procurou ele em mim? Menos a paixão que a satisfação do seu amor-próprio." Lembrou as palavras de Vronski e a sua expressão nos primeiros tempos das suas relações. Parecia um cachorro submisso. Tudo lho confirmava. Sim, nele tudo traía o orgulho do triunfo. "Claro que me amava, mas acima de tudo tinha o orgulho de me ter conquistado. Agora tudo isso acabou. Já não tem de que vangloriar-se. Agora não se vangloria, envergonha-se. Tirou de mim quanto pôde; já lhe não faço falta. Incomodo-o, embora procure não ser incorrecto para comigo. Ontem disse-o, sem querer: queria o divórcio e casar-se comigo para queimar os seus navios. Ama-me, ainda, talvez, mas de que maneira? The zest is gone...(Nota 135) Aquele quer assombrar toda a gente e parece muito contente consigo mesmo", pensou ao olhar para um caixeiro rubicundo montado num cavalo de sela. "Não, já lhe não agrado como antigamente. No fundo da sua alma terá grande satisfação em ver-se livre de mim."
Não se tratava de uma suposição sem fundamento, mas de uma verdade, a cujo vivo clarão descobria agora os segredos da vida e das relações entre os homens... E via tudo com uma cruel evidência. "Enquanto o meu amor se torna cada vez mais egoistamente apaixonado, o dele extingue-se pouco a pouco. Esta a razão por que não nos entendemos mais. E não há remédio para a situação. Ele é tudo para mim, quero que ele se me dê todo inteiro, mas ele, pelo seu lado, tudo faz para me fugir. Antes da nossa ligação íamos um ao encontro do outro, e agora dirigimo-nos inevitavelmente em direcções opostas. E nada modificará isto. Diz-me que os meus ciúmes não têm razão de ser, e eu também o disse a mim mesma, mas não é verdade. Não é ciumenta que eu estou, estou descontente. Mas..." Ana abriu a boca e mudou de posição na carruagem, tamanha a agitação que sentira com a presença de uma ideia que entretanto lhe acudira. "Se eu pudesse, procuraria ser para ele uma amiga sensata, e não uma amante apaixonada, cujos ardores lhe repugnam e que sofre por seu lado com a frieza dele. Mas eu não posso nem quero transformar-me. Não me engana, tenho a certeza, não pensa na Sorokina como não pensava outrora em Kitty. Mas isso que me importa? Se me não ama, se se mostra bom e terno para comigo apenas por dever, c horrível. Prefiro-lhe o ódio. Eis onde nós estamos: há muito que ele já me não ama e onde o amor acaba principia a saciedade... Que bairro desconhecido é este? Ruas que sobem a perder de vista e casas, casas e mais casas, onde mora uma multidão que se odeia mutuamente... Bom, que me poderia acontecer capaz ainda de me proporcionar felicidade? Suponhamos que Alexei Alexandrovitch consentia no divórcio, que me entregava o Seriocha, que eu casava com Vronski..."
E ao pensar em Karenine, Ana viu-o diante de si, com o seu olhar mortiço, as suas mãos brancas, cheias de veias azuis, as articulações dos seus dedos estalando, as inflexões particulares da sua voz, e a lembrança das suas relações, outrora consideradas ternas, fê-la estremecer horrorizada.
"Admitamos que eu me casava: olhar-me-ia Kitty com menos condescendência? Não se perguntará Seriocha a si próprio porque tenho eu dois maridos? Poder-se-ão estabelecer entre mim e Vronski relações que não sejam uma tortura para mim? Não", respondeu ela a si própria sem hesitar. "A cisão entre nós é muito profunda: eu faço-o infeliz, ele faz-me infeliz a mim. Nada se modificaria! Porque é que esta mendiga com o filho ao colo supõe que inspira piedade? Não nos encontramos todos à superfície da terra para nos odiarmos e nos atormentarmos uns aos outros?... Olha, colegiais que se divertem... O meu pequenino Seriocha! Também a ele, também a ele julguei amá-lo. O afecto que lhe tinha enternecia-me a mim mesma. E, no entanto, vivi sem ele, troquei o amor que lhe tinha por uma outra paixão, e não me queixei enquanto obtive satisfações nessa paixão..."
Aquilo a que ela chamava "outra paixão" surgia-lhe sob cores hediondas. No entanto, encontrava uma amarga satisfação em remexer assim nos seus e nos sentimentos alheios. "Assim somos todos: eu, o Piotre, o cocheiro Fiodor, aquele comerciante que ali vai e toda a gente que vive nas margens afortunadas do Volga que esses cartazes nos convidam a visitar", dizia consigo mesma na altura em que a carruagem parava diante da fachada baixa da estação Nijni-Novgorod. Uma chusma de carregadores correu ao seu encontro.
- O bilhete é para Obiralovka, não é verdade, minha senhora? - perguntou Piotre.
Ana esquecera por completo onde ia e por que razão. Só conseguiu perceber a pergunta após um grande esforço.
- É - respondeu, por fim, entregando-lhe o porta-moedas. E apeou-se com a maleta vermelha na mão.
Enquanto rompia a turba para se dirigir à sala de espera da 1a classe, perpassaram-lhe pelo espírito os pormenores da sua situação bem como as diferentes soluções que se lhe ofereciam. De novo flutuava entre a esperança e o desânimo, de novo se lhe abriam as feridas, e o coração pôs-se-lhe a bater desordenadamente no peito. Sentada num grande banco à espera do comboio, olhava com aversão para as pessoas que se agitavam. Todas lhe eram odiosas. Ora se representava o momento em que chegaria a Obiralovka e em que escreveria a Vronski, ora no que lhe diria quando penetrasse no salão da velha condessa, onde talvez naquele momento ele se estivesse a lamentar das amarguras da sua vida, sem pensar nos sofrimentos dela, ora em que ainda poderia vir a conhecer dias felizes. Que duro amar e odiar ao mesmo tempo! Como batia o seu pobre coração!
CAPÍTULO XXXI
Uma sineta tocou; passaram diante de Ana uns rapazolas de mau aspecto, insolentes e pressurosos, mas ao mesmo tempo atentos à impressão que provocavam. Piotre, com a sua libré e as suas botas altas, atravessou a sala no seu ar estúpido, e julgou-se na obrigação de acompanhar Ana até à carruagem. Os rapazolas calaram-se ao vê-la passar. Um deles murmurou ao ouvido do companheiro alguma coisa, brejeira com certeza. Ana pôs o pé no estribo e instalou-se no compartimento vazio; a maleta que depôs a seu lado no assento trepidou em cima da almofada elástica, cujo forro enxovalhado fora branco outrora. Com um sorriso idiota, Piotre, como quem se despede, tirou o gorro agaloado em sinal de despedida. O insolente revisor fechou a porta e correu o fecho. Uma dama disforme, metida num merinaque, que Ana despiu com os olhos, medindo-lhe a fealdade assustadora, corria, plataforma além, seguida de umas meninas que riam afectadamente.
- Catarina Andreievna têm-no todo, ma tante - gritou uma das meninas.
"É menina e no entanto já estragada, finge", pensou Ana. Para não ver ninguém levantou-se rapidamente, sentando-se perto da janela do lado oposto. Um homem sujo e feio, com um gorro na cabeça, de onde rompiam madeixas de cabelos revoltos, passou junto à portinhola, todo debruçado para as rodas da carruagem. "Lembra-me seja o que for, este homem horroroso", pensou Ana. E ao lembrar-se do sonho que tivera, dirigiu-se para a porta, trêmula de terror. Nessa altura o revisor abria a portinhola para deixar passar um casal. - Quer sair?
Ana não respondeu. Nem o revisor nem os passageiros que entravam deram pela expressão de horror que se lhe pintava no rosto, graças ao véu que o cobria. Ana voltou para o seu lugar e sentou-se. O casal tomou lugar diante dela, e marido e mulher puseram-se a examinar atentamente, ainda que de modo dissimulado, o vestido que ela trazia. Essas duas criaturas inspiraram-lhe, de súbito, uma profunda repulsa. No intuito de iniciar conversa, o marido perguntou-lhe se lhe dava licença que acendesse o cigarro. Ana anuiu e ele pôs-se a contar tolices à mulher. Com efeito, apetecia-lhe tão-pouco conversar como fumar, o que ele queria era despertar a atenção da vizinha, fosse como fosse. Ana viu claramente que aqueles dois já não podiam um com o outro: que se detestavam cordialmente. Como não sentir ódio por criaturas tão grotescas?
O arrastar das bagagens, os gritos, as risadas que acompanharam o segundo toque de sineta fizeram com que Ana tivesse depois de tapar os ouvidos: porquê aquelas risadas? Finalmente soou o terceiro toque de sineta, e ouviu-se o apito do chefe da estação, a que respondeu o silvo da locomotiva: o comboio estremeceu e o marido da senhora persignou-se. "Muito gostaria de saber que significado atribui ele a semelhante gesto", perguntou Ana a si mesma, relanceando-lhe um olhar de ira. E logo, para não ver a mulher, pôs-se a observar pela janela da carruagem a multidão que na gare se despedia dos passageiros, dando-lhe a impressão de deslizar em sentido contrário. A carruagem de Ana, estremecendo uniformemente, saiu da estação, passou diante de um muro de pedra, de um semáforo e de outros vagões. As rodas, bem oleadas, deslizaram pelos carris; a janela iluminou-se ao sol claro da tarde e a brisa agitou as cortinas. Ana, esquecida dos seus companheiros de viagem, aspirou o ar puro e entregou-se de novo aos seus pensamentos, embalada pelo rodar do comboio.
"Em que pensava eu quando interrompi os meus pensamentos? Em que não posso descobrir uma situação onde a minha vida não seja um tormento, em que todos fomos criados para sofrer e que o sabemos, embora tudo façamos para o esquecer, iludindo-nos de todas as maneiras. Mas quando a verdade nos entra pelos olhos dentro, que havemos de fazer?"
- A razão foi dada ao homem para evitar preocupações - disse a senhora em francês, muito orgulhosa de haver encontrado esta frase.
Dir-se-ia que a frase era uma resposta ao que Ana estava a pensar.
"Evitar preocupações", repetiu ela mentalmente. Mirando o marido de tez vermelhusca e a seca esquálida esposa, Ana percebeu que esta devia considerar-se uma mulher incompreendida e que o marido a enganava sem lhe esconder as suas infidelidades. Adivinhava todos os pormenores da história das suas vidas, mergulhava nos recessos mais secretos dos seus corações. Como isto não tinha, porém, grande interesse para ela, prosseguiu o curso dos seus pensamentos.
"Sim, também eu tenho muitas preocupações, e visto que a razão assim mo exige, o meu dever é evitá-las. Por que não havemos de apagar a luz quando não há mais nada para ver, quando o espectáculo se nos torna odioso?... Mas como? Por que corre o revisor? Por que gritam os rapazes no compartimento ao lado? Por que falam? Por que riem? Tudo e mentira, tudo é falso, só há engano e maldade..."
Quando o comboio chegou à estação, Ana apeou-se no meio da turba e viajantes e, afastando-se deles, como se fossem leprosos, deteve-se na plataforma, procurando lembrar-se o que fora ali fazer e o que pretendia. Tudo o que antes lhe parecera possível, agora afigurava-se-lhe muito difícil de compreender, sobretudo ali entre aquela ruidosa multidão de gente absurda que a não deixava em paz. Tão pronto a assediavam os carregadores, oferecendo-lhe os seus serviços, como a olhavam rapazolas que falavam em voz alta e batiam com os tacões nas tábuas da plataforma. Lembrando-se repentinamente da decisão que tomara de prosseguir o seu caminho se não encontrasse resposta na estação, perguntou a um empregado se não vira um cocheiro com uma carta do conde Vronski. - Vronski? Ainda há pouco estiveram aí na quinta. Vieram buscar a princesa Sorokina e a filha. Como é ele, esse cocheiro de quem a senhora fala?
Acto contínuo, Ana viu dirigir-se-lhe o seu mensageiro, o cocheiro Mikail: muito corado, muito contente, parecia extremamente orgulhoso da sua missão. Entregou a Ana uma carta que ela abriu de coração alanceado.
"Sinto muito que a carta não tenha chegado a tempo. Voltarei às dez", escrevera Vronski, numa caligrafia descuidada.
"É isso! Era o que eu esperava!", murmurou Ana consigo mesmo, num sorriso sardônico.
- Obrigada, podes voltar para casa - disse numa voz quase imperceptível.
Falava baixo, porque as palpitações do coração a impediam de respirar. "Não, não te permitirei que me atormentes", pensou. Esta ameaça nem era dirigida a ele nem a ela própria, mas apenas à causa dos seus sofrimentos. Atravessou a gare, caminhando ao longo da estação.
Duas criadas que passavam, voltaram-se para lhe admirar o porte e disseram qualquer coisa uma para a outra em voz alta a respeito do seu vestido: "São verdadeiras", disse uma delas, referindo-se às rendas. Os rapazolas não a deixavam em paz. Passaram por ela e voltaram a olhá-la com descaro, gritando e rindo em voz de falsete. O chefe da estação perguntou-lhe, ao cruzá-la, se não continuava a viagem. Um rapaz, vendedor de kvas, seguia-a com o olhar. "Meu Deus! Para onde ir?", pensava Ana, afastando-se cada vez mais da gare, plataforma além. Ao chegar ao extremo, deteve-se. Umas senhoras com umas crianças, que tinham ido esperar um cavalheiro de lunetas e que falavam e riam animadamente, calaram-se ao vê-la aproximar-se e puseram-se a examiná-la. Ana estugou o passo e abeirou-se da escada que descia do depósito de água para a linha. Um comboio de mercadorias ia entrar na gare. A plataforma estremecia e Ana teve a sensação de que ia de novo embarcada.
De repente, lembrou-se do homem atropelado no dia do seu primeiro encontro com Vronski e compreendeu o que tinha a fazer. Em passo ligeiro e rápido, desceu as escadas do depósito de água para a via e deteve-se junto ao comboio que passava. Tinha os olhos fitos na parte inferior dos vagões, nos pernes, nas correntes e nas altas rodas de ferro fundido do primeiro vagão, que rodava lentamente, como se procurasse deter-minar o centro entre as rodas dianteiras e as traseiras e calculasse o momento em que esse ponto devesse estar na sua frente.
"Ali!", disse para si mesma, olhando a sombra do vagão e a areia misturada ao pó de carvão que se espalhava nas travessas. "Ali, mesmo no meio! Castigá-lo-ei e livrar-me-ei de tudo e de mim mesma."
Quis atirar-se para debaixo do vagão que nesse momento chegava junto dela, mas a maleta vermelha, de que procurava desprender-se, distraiu-a e não lhe deu tempo: o centro do vagão já tinha passado. Era preciso esperar o imediato. Uma sensação parecida com a que costumava experimentar ao entrar na água à hora do banho se apoderou dela, e persignou-se. Esse gesto familiar despertou-lhe na alma recordações da infância e da juventude. E, subitamente, desvaneceu-se a névoa que tudo cobria, e a vida exibiu-se-lhe por momentos em todas as suas radiosas alegrias passadas. Não apartava, porém, os olhos do vagão que se aproximava. No momento preciso em que o centro desse vagão lhe passava diante atirou fora a maleta vermelha e afundando a cabeça entre os ombros atirou-se-lhe para debaixo, caindo com o corpo em cima das mãos. Depois, com um ligeiro movimento, como se quisesse ainda levantar-se, quedou ajoelhada. Nesse instante sentiu horror do que fazia. "Onde estou eu? Que faço eu? Para quê?", quis retroceder, atirar-se para trás, mas entretanto qualquer coisa enorme, inflexível, a apanhou pela cabeça arrastando-a de costas. "Senhor, meu Deus, perdoa-me tudo!", pronunciou, sentindo que lhe era impossível lutar. Um homenzinho resmoneava, martelando uns ferros por cima dela. E a vela à luz da qual Ana lera o livro da Vida, com todos os seus tormentos, todas as suas traições e todas as suas dores, resplandeceu, de súbito, com uma claridade maior do que nunca, alumiando as páginas que até então haviam estado na sombra. Depois crepitou, estremeceu e apagou-se para sempre.
OITAVA PARTE
CAPÍTULO I
Perto de dois meses haviam decorrido. Apesar dos cálidos dias de Verão, Sérgio Ivanovitch ainda não saíra de Moscovo, onde o retinha um acontecimento importante: a publicação do seu Ensaio sobre as Bases e as Formas de Governo na Europa e na Rússia, produto de seis anos de trabalho. Lera a um grupo de pessoas escolhidas alguns fragmentos dessa obra, inserira em revistas a introdução e alguns capítulos, e, conquanto o seu trabalho já não fosse propriamente uma novidade, contava que fizesse sensação.
Afectando indiferença e sem querer mesmo informar-se a respeito da sua venda junto dos livreiros, Kosnichev aguardava com impaciência febril os primeiros sinais da enorme impressão que o livro não deixaria de produzir, quer na alta sociedade, quer entre os sábios. A verdade, porém, é que semanas e semanas decorreram sem que a menor emoção agitasse o mundo literário. Alguns amigos, homens de ciência, dirigiram- lhe cumprimentos polidos, mas a sociedade propriamente dita, essa estava demasiado preocupada com questões muito diferentes para conceder a mínima atenção a uma obra desse gênero. Quanto à imprensa, durante dois meses manteve-se em silêncio. Apenas o Escaravelho do Norte, num folhetim consagrado ao cantor Drabanti, que perdera a voz, citava, de passo, o livro de Kosnichev, motivo de risota geral.
Finalmente, no decurso do terceiro mês, certa revista séria publicou uma crítica, aliás sem assinatura, de um jovem, doente e pouco instruído, que uma grande timidez atormentava, embora dispusesse de uma pena assaz viva. Sérgio Ivanovitch, porém, que o conhecera em casa do editor Golubtzov e o tinha em pouca conta, leu-lhe a prosa com grande respeito, embora experimentando uma viva mortificação. O crítico fazia uma interpretação do livro bastante inexacta. Todavia, graças a citações habilmente escolhidas e a numerosos pontos de interrogação, deixava perceber ao leitor - isto é, à maioria do público - que essa obra não passava de uma trama de frases pomposas e incoerentes. Tais frechas eram, aliás, despedidas com tal ímpeto que Sérgio Ivanovitch não pôde deixar de admirá-las: ele próprio não teria feito melhor. Por mero escrúpulo de consciência, reconheceu a justeza das observações do crítico, preferindo atribuir-lhes o fel que destilavam a uma vingança pessoal: imediatamente lembrou os mínimos pormenores do seu mútuo encontro e acabou por recordar que chamara a atenção desse seu jovem confrade para um erro muito grosseiro que cometera.
Após o que, o silêncio foi absoluto. A decepção que tivera ao verificar que uma obra que lhe era tão cara e lhe custara seis anos de trabalho passara despercebida vinha juntar-se agora uma espécie de desânimo provocado pela ociosidade. Aquele homem cultivado, inteligente, saudável, ávido de actividade, nada mais restava que o exortório dos salões, das palestras, das assembleias. Porém, há muitos anos residente na cidade, não se entregava por completo a essas conversas, como acontecia a seu irmão quando chegava a Moscovo. Ainda lhe restavam muitas horas de ócio e grande vigor mental. Felizmente naquela época tão dolorosa para ele, em virtude do pouco êxito do seu livro, as questões do dia - a dos dissidentes, a dos amigos americanos, a da fome da Sarmácia e do espiritismo, bem como as exposições e discussões provocadas pelo problema eslavo - eram bruscamente substituídas pelo problema dos Bálcãs, que por muito tempo permanecera latente, embora ele de há muito pertencesse ao número dos seus animadores russos. No círculo a que pertencia Sérgio Ivanovitch não se discutia outra coisa nem se escrevia sobre mais nada que não fosse a guerra servia. Tudo o que a sociedade ociosa costumava fazer habitualmente para matar o tempo era consagrado nessa altura aos "irmãos eslavos". Os bailes, os concertos, os jantares, os discursos, as modas, as cervejarias e os cafés; tudo servia para proclamar adesão a eles.
Sérgio Ivanovitch não estava de acordo em muitos pormenores com o que se escrevia e comentava a respeito desta questão. Verificava que o problema eslavo se convertera num desses temas da moda, que, mudando de vez em quando, servem de distracção à sociedade; e via, igualmente, que muitos se ocupavam do caso com fins interessados e por vaidade. Reconhecia que os jornais publicavam muita coisa desnecessária, apenas para chamarem a atenção e poderem gritar mais alto uns do que outros. Notava mesmo que perante aquele momento geral de entusiasmo, os que mais gritavam eram os falhados e os ressentidos: os generais sem exército, os ministros sem ministério, os jornalistas sem jornal e os chefes de partido sem adeptos. Observava que em tudo aquilo havia muita frivolidade e ridículo, conquanto não deixasse de reconhecer o crescente entusiasmo em que comungavam todas as classes sociais e com que era forçoso simpatizar. Sofrimentos e heroísmo de sérvios e montenegrinos, seus irmãos de raça e religião, haviam despertado o desejo unânime de lhes prestar socorro, não apenas de proferir discursos. Semelhantes manifestações da opinião pública satisfaziam por completo Sérgio Ivanovitch. Finalmente, dizia, acabou por se mostrar em plena luz o sentimento nacional. E quanto mais observava esse movimento tanto mas lhe descobria proporções grandiosas, um verdadeiro marco na história da Rússia. Assim esquecera o livro e as decepções que tivera com ele para consagrar-se de corpo e alma a essa grande obra. A tal ponto se deixara absorver por ela que só em Julho pôde permitir-se quinze dias de férias. Precisava de descansar e ao mesmo tempo queria assistir, em plena aldeia, aos primeiros sinais desse despertar nacional em que todas as grandes cidades do império acreditavam firmemente. Katavassov aproveitara a ocasião para cumprir a promessa que fizera a Levine, de o visitar um dia.
CAPÍTULO II
No momento em que os dois amigos, que se haviam apeado à porta da estação de Kursk, se ocupavam das bagagens confiadas a um criado, que os seguia, quatro fiacres chegavam com voluntários. Senhoras recebiam com flores os heróis do dia e, seguidos de grande multidão, acompanhavam-nos até ao interior da gare. Uma destas senhoras, conhecida de Sérgio Ivanovitch, perguntou-lhe em francês se também viera despedir-se.
- Não, princesa, parto para o campo, para casa de meu irmão. Preciso de descanso. Mas a princesa vem despedir-se dos voluntários? - perguntou Kosnichev com um sorriso imperceptível.
- Evidentemente! - replicou ela. - Não é verdade que já partiram oitocentos? Malvinski não queria acreditar.
- Mais de oitocentos. Se se contarem os que têm seguido directamente, e não apenas os que saem de Moscovo, ascendem já a mais de mil.
- Era o que eu dizia - corroborou a princesa com satisfação. - Realmente, já se teria recolhido perto de um milhão de rublos?
- Mais, princesa!
- Leu o telegrama de hoje? Venceram de novo os Turcos.
- Li, sim - respondeu Sérgio Ivanovitch.
Referia-se ao último telegrama, que confirmava terem os Turcos sido batidos dois dias antes em toda a parte e que haviam fugido, aguardando-se um combate decisivo para o dia seguinte.
- A propósito - voltou a princesa -, queria pedir-lhe uma coisa. Não poderia apoiar o pedido de um excelente mancebo que tem encontrado não sei que dificuldades? Conheço-o pessoalmente: foi-me recomendado pela condessa Lídia.
Depois de recolher alguns pormenores, Sérgio Ivanovitch entrou na sala de espera de 1a classe para escrever uma carta a quem de direito.
- Sabe quem parte hoje? - observara a princesa, ao voltar a encontrá-lo para receber a carta no meio da multidão. - O conde Vronski, o famoso...
- disse ela, em tom triunfal, com um sorriso significativo.
- Ouvi dizer que ele se alistara, mas não sabia que partia hoje mesmo.
- Acabo de o ver. Vai apenas acompanhado da mãe. Aqui para nós, era o melhor que tinha a fazer.
- Evidentemente.
Entretanto a multidão arrastava-o para o bufete, onde um cavalheiro, de copo em punho, fazia uma saúde aos voluntários. "Vocês partem para defender a nossa fé, os nossos irmãos, a humanidade", dizia ele, erguendo cada vez mais a voz. "Que a nossa mãe Moscovo vos abençoe. Viva!" - concluiu em voz alta e comovida. Todos responderam: "Viva!" E outro grupo penetrou na sala, por pouco derrubando a princesa.
- Ah, princesa! - exclamou Stepane Arkadievitch radiante de alegria, aparecendo, de súbito, no meio da multidão - Falou bem, com muito calor e entusiasmo, não é verdade? Bravo! Também aqui está o Sérgio Ivanovitch! Devia dizer qualquer coisa para os animar. Fala tão bem! - acrescentou com um sorriso manso, cauteloso e cheio de respeito, empurrando ligeiramente Sérgio Ivanovitch pelo braço.
- Não, vou partir.
- Para onde?
- Para a aldeia. Para casa de meu irmão - respondeu Sérgio Ivanovitch.
- Então vai encontrar lá a minha mulher. Escrevi-lhe; mas como o senhor chega primeiro, faça o favor de lhe dizer que me viu e que all right(Nota 136). Ela vai entender. Mesmo assim, tenha a bondade de lhe dizer que me nomearam membro da Comissão... Bom, ela perceberá. Sabe? São les elites misères de la vie humaine(Nota 137) - disse, para a princesa, como que a desculpar-se. - A Miagkaia, não a Lisa, a bibiche, oferece mil espingardas e doze enfermeiras. Não lhe tinham dito?
- Sim, ouvi dizer - replicou Kosnichev, mal-humorado.
- É pena que se vá embora - continuou Stepane Arkadievitch.
- Amanhã oferecemos um jantar a dois voluntários que partem: Dimer
Bartnianski, de Sampetersburgo, e o nosso Gricha Veslovski. Partem os dois. Veslovski casou há pouco. Que valente, não é verdade, princesa? - acrescentou, voltado para ela.
Sem responder, a princesa olhou para Kosnichev. Embora tudo denunciasse que Sérgio Ivanovitch e a princesa se queriam ver livres dele, Stepane Arkadievitch mantinha-se imperturbável. Olhava, sorrindo, ora para a pluma do chapéu da princesa, ora para um lado, ora para outro, como se procurasse lembrar-se de algo. Ao ver uma senhora que passava e fazia peditório, chamou-a e entregou-lhe uma nota de cinco rublos.
- Apesar de todos os seus defeitos, não há dúvida que é bem um temperamento russo, tipicamente eslavo - declarou a princesa para Kosnichev quando Oblonski se afastou - Receio, porém, que não seja muito agradável dar de cara com o irmão de Ana. Digam o que disserem, comove-me o destino deste homem. Procure falar com ele durante a viagem.
- Assim farei, se tiver oportunidade.
- Jamais gostei dele, mas este acto redime muitas coisas. Não se alistou apenas como voluntário, leva consigo todo um esquadrão a expensas suas.
- Sim, disseram-me isso.
Ouviu-se a sineta. Todos correram para as portas.
- Lá está ele - exclamou a princesa, apontando Vronski, que de grande capote e chapéu preto de abas largas se aproximava pelo braço da mãe. Oblonski, a seu lado, falava animadamente, enquanto o conde, de sobrecenho carregado, olhava em frente, como se o não ouvisse.
Naturalmente, por indicação de Oblonski, Vronski voltou-se para onde estavam a princesa e Sérgio Ivanovitch, descobrindo-se em silêncio. A sua face envelhecida, onde havia sofrimento, parecia petrificada.
Sem dizer palavra, subiu para a plataforma, deixou passar a mãe e desapareceu no interior da carruagem.
Na estação ouvia-se Deus Guarde o Czar(Nota 138) e em seguida hurras! e vivas! Um voluntário alto, muito jovem, de peito enfezado, respondia às saudações do público com ostentação, agitando o chapéu de feltro e um ramo de flores. Por detrás dele assomavam, também em grandes acenos, dois oficiais e um homem maduro, de farta barba, com um gorro sebento na cabeça.
- É mais forte do que eu - declarou. - Desde que tenha dinheiro no bolso não posso ver uma senhora de peditório sem lhe dar qualquer coisa... Mas falemos das notícias de hoje. Que valentes aqueles montenegrinos!... Não pode ser! - exclamou, quando a princesa lhe disse que Vronski ia no comboio.
Uma sombra de tristeza se lhe pintou no rosto. No entanto quando, daí a pouco, penetrou, confiando as suíças, na sala onde Vronski se encontrava, Stepan Arkadievitch esquecera por completo os desesperados soluços dele diante do cadáver da irmã, vendo no conde apenas o herói e o velho amigo.
CAPÍTULO III
Depois de se despedir da princesa, Sérgio Ivanovitch, com Katavassov, que se lhe reunira, meteu-se num compartimento a transbordar de passageiros, e o comboio pôs-se em andamento.
Na estação de Tzaritsine, um grupo de rapazes acolheu os voluntários entoando, em harmonioso coro, o hino Glória ao Nosso Czar! E de novo houve agradecimentos e ovações. O tipo do voluntário era por de mais conhecido de Sérgio Ivanovitch para que este lhe testemunhasse curiosidade; Katavassov, pelo contrário, que, enfronhado nos seus estudos, não tivera oportunidade de observar aquela gente, estava sempre a fazer perguntas ao seu companheiro de viagem acerca desse gênero de pessoas. Sérgio Ivanovitch aconselhou-o a que as fosse observar de perto, nas suas próprias carruagens, e de facto, na estação imediata, Katavassov pôs em prática o conselho do amigo.
Foi encontrar os quatro heróis instalados num compartimento de 2a classe, tagarelando ruidosamente, sem dúvida alguma cientes de estarem sendo objecto da atenção dos circunstantes. Graças às numerosas libações a que se votara, o mancebo alto, de peito metido para dentro, falava mais estentòreamente do que os outros, contando uma história. Sentado diante dele, um oficial, entrado em anos, que envergava o dólman austríaco da Guarda, ouvia-o, sorrindo, e interrompia-o de quando em quando. O terceiro voluntário, fardado de artilheiro, sentava-se ao lado deles em cima de uma mobília, e o quarto dormitava.
Katavassov entabulou conversa com o mais palrador. Tinha apenas vinte e dois anos. Era comerciante moscovita, dissipara já uma boa fortuna e supunha realizar agora uma empresa sem precedentes. Efeminado, de aspecto doentio e fanfarrão, desagradou desde logo a Katavassov, que também não gostou do seu companheiro, o oficial da reserva. Este fora tudo na vida: ferroviário, administrador de propriedades agrícolas, industrial, tendo montado até uma fábrica. Falava de tudo com suficiência, empregando termos científicos a propósito e a despropósito.
Em compensação, o artilheiro agradou muito a Katavassov: era um jovem tímido e sossegado. Naturalmente deslumbrado pela sabedoria do oficial da Guarda e o heroísmo do comerciante, conservava-se calado. Quando Katavassov lhe perguntou que é que o levava à Sérvia, respondeu com toda a simplicidade:
- Que quer? Faço como os outros. Os pobres sérvios precisam de quem os auxilie.
- Sim, e sobretudo têm poucos artilheiros como o senhor - observou.
- Oh! Servi pouco tempo na artilharia. Talvez me mandem para a infantaria ou para a cavalaria.
- Mas porquê, se lhes faltam principalmente artilheiros? - objectou Katavassov, calculando, pela idade do artilheiro, que devia ser já de patente elevada.
- Servi pouco tempo na artilharia - repetiu ele. - Sou apenas junker na reserva - disse, e pôs-se a explicar os motivos por que não fora aprovado nos exames.
Na estação seguinte, os voluntários apearam-se para tomar refrescos, e Katavassov, muito pouco entusiasmado com o que vira e ouvira, voltou-se para um velho, fardado de militar, que escutara calado toda a conversa.
- Tenho a impressão de que mandam para ali gente de toda a espécie - disse ele, para o obrigar a exprimir a sua opinião, limitando-se a deixar adivinhar a sua própria.
Tendo feito duas campanhas, o velho soldado não podia tomar a sério heróis cujo mérito militar dependia sobretudo do gosto que tinham pela bebida. E esteve para contar a Katavassov que na aldeola onde vivia, um soldado, de licença ilimitada, bêbedo, ladrão e vadio permanente, se alistara como voluntário. Mas sabendo por experiência que diante da exaltação geral dos espíritos seria perigoso expor opiniões independentes, contentou-se em responder, sorrindo com os olhos e interrogando, por sua vez, Katavassov apenas com a vista: - Que havemos nós de fazer? Há falta de homens! E os dois puseram-se, então, a falar do último comunicado de guerra, sem que nem um nem outro se atrevessem, no entanto, a formular a pergunta que os trabalhava intimamente: Se os Turcos, derrotados em toda a linha, tinham debandado, contra quem é que viria a desferir-se amanhã a batalha decisiva?
Quando Katavassov voltou para junto de Sérgio Ivanovitch, não ousou pô-lo ao corrente da sua opinião, declarando-se muito satisfeito com o que vira e ouvira.
Na primeira estação importante em que o comboio parou, repetiram-se os tantos, os vivas, as flores, o peditório, e as saúdes no bufete, embora com menos entusiasmo do que em Moscovo.
CAPÍTULO IV
Durante esta paragem do comboio, Sérgio Ivanovitch apeou-se e pôs-se a passear pela plataforma, passando diante do compartimento Vronski, cujos estores estavam corridos. De uma das vezes viu a velha condessa junto à portinhola. E a condessa chamou-o.
- Vou acompanhá-lo até Kursk.
- Tinham-me dito - respondeu Kosnichev relanceando a vista para o interior do compartimento. E, ao notar que Vronski não estava presente, acrescentou: - O seu filho pratica um belo acto!
- Que havia ele de fazer depois da infelicidade por que passou?
- Que coisa horrível!
- Oh, o que eu sofri! Mas entre!... Se soubesse o que eu passei! Durante seis semanas ninguém lhe ouviu palavra e só comia quando eu implorava que o fizesse. Não o podíamos deixar só um único momento. Receávamos que ele cometesse um acto de desespero. Vivíamos num rés-do-chão e tirámos-lhe todos os objectos perigosos. Ninguém sabe o que pode vir a acontecer numa ocasião dessas... Já uma vez, por causa dela, tentara suicidar-se com um tiro de pistola - acrescentou a velha condessa, por cuja face perpassou uma sombra nesse momento. - Aquela mulher morreu como sempre tinha vivido: de maneira baixa, miserável.
- Não nos compete a nós julgá-la, condessa - replicou Sérgio Ivanovitch, suspirando -, mas compreendo que tenha sofrido muito.
- Nem me fale nisso! Estava a passar o Verão na minha quinta e meu filho fora visitar-me, quando lhe trouxeram uma carta a que ele respondeu imediatamente. Ninguém sabia que ela estava na estação. Nessa noite, acabava de me recolher ao meu quarto, quando a Mary, a minha criada, me veio dizer que uma senhora se atirara para debaixo do comboio. Tive um pressentimento! Passou-me pela cabeça que seria ela. E a primeira coisa que recomendei foi que nada dissessem ao conde. Porém, já lho tinham dito. O cocheiro do meu filho estava na estação e presenciara a cena. Quando corri ao quarto do Alexei, encontrei-o como doido. Metia medo vê-lo. Sem dizer palavra, desatou a correr direito à estação. Não sei o que ali se passou. A verdade é que mo trouxeram para casa meio morto. O médico achou-o numa prostration complete(Nota 139). Depois disso é que surgiram as crises de loucura... Que época terrível esta em que vivemos! Diga o que disser, a verdade é que era uma mulher má. Pode compreender uma paixão assim? Que quis ela demonstrar com aquela morte? Perdeu-se a si mesma e estragou a vida de dois homens, qualquer deles de grande mérito: o marido e o meu infeliz filho.
- O marido, que fez?
- Recolheu a pequenina. No primeiro momento, Alexei consentiu em tudo. Agora está arrependido de ter confiado a filha a um estranho, mas não quer voltar com a sua palavra atrás. Karenine veio ao enterro. Fizemos o possível para que ele se não encontrasse com o Aliocha. Para Karenine, as coisas eram mais suportáveis. Ao menos assim ficava livre. Em compensação, o meu pobre filho tinha se lhe confiado por completo. Sacrificara lhe tudo tanto a sua carreira como até a mim mesma, e ela não só não teve piedade dele como acabou por perdê-lo desta maneira. Diga o que quiser, na minha opinião teve morte de má mulher, de mulher sem religião. Que Deus me perdoe, mas não posso deixar de ter ódio à sua memória, diante da perdição do meu filho.
- E ele como está agora?
- Deus quis ajudar nos com a guerra dos Sérvios. Sou uma velha e não entendo nada destas coisas, mas acho que Deus lhe enviou isto a ele. É certo que eu, como mãe, estou assustada, e, além disso, dizem que cê riest pás tres bien vu à Petersburg? Mas que fazer? Só isto lhe podia dar ânimo Iachvine, seu camarada, como perdeu toda a fortuna, resolveu partir para a Sérvia e foi ele quem levou o Alexei a fazer o mesmo. Os preparativos da partida distraíram no muito. Fale com ele, peço lhe, vai tão triste. Para cúmulo, esta com uma grande dor de dentes! Mas tenho a certeza de que gostara muito de o ver. Anda a passear do outro lado da gare.
Sérgio Ivanovitch declarou que também ele teria muita satisfação em vê-lo, e passou para o outro lado da plataforma à procura do conde.
CAPÍTULO V
Vronski, com o seu grande sobretudo de chapéu puxado para os olhos e de mãos enterradas nos bolsos, passeava de um lado para o outro, como uma fera enjaulada, por entre as sombras oblíquas dos fardos empilhados na gare, fazendo bruscamente meu volta de vinte em vinte passos. Ao aproximar se, Sérgio Ivanovitch julgou que Vronski fingia não o ver. Pouco lhe importou. Estava acima de qualquer susceptibilidade Vronski, opinava, ia desempenhar uma grande missão e devia ser amparado e encorajado.
Kosnichev aproximou se, pois, o conde parou, encarou com ele e tendo o por fim reconhecido apertou lhe cordialmente a mão.
- Talvez não estivesse com disposição para me falar' - disse Sérgio Ivanovitch - Desculpe a minha insistência, mas queria oferecer lhe os meus préstimos.
Que não e muito bem visto em Sampetersburgo.
- A ninguém me seria menos desagradável encontrar neste momento do que a si. - replicou Vronski - Perdoe me. Mas deve compreender que a vida me pesa.
- Compreendo-o. No entanto, uma carta para Ristich ou para Milano, talvez lhe pudessem ser úteis - prosseguiu Sérgio Ivanovitch, impressionado com a expressão de fundo sofrimento que se pintava no rosto de Vronski.
- Oh! Não! - replicou este, num esforço para compreender - Acha que podemos caminhar um pouco? Sufoca se na carruagem! Uma carta? Não, muito obrigado. Serão precisas cartas para nos fazermos matar? A não ser uma carta endereçada aos Turcos? - acrescentou, sorrindo com a ponta dos lábios, enquanto conservava nos olhos a mesma expressão de dolorosa tristeza.
- No entanto, uma carta poder lhe ia facilitar relações que não poderá dispensar. Aliás, faça como quiser, mas queria dizer-lhe a satisfação que tive ao saber que tomara esta decisão. Criticam se tanto os voluntários, que a sua atitude só vem reabilitá-los.
- O meu único mérito - tornou Vronski - está em que a vida para mim nada mais significa. Apenas sei que ainda me resta energia suficiente para entrar na liça e matar ou morrer. Compraz me saber que existe alguma coisa porque possa dar a minha vida, e não porque precise dela, mas apenas porque se me tornou odiosa. Assim servirá a alguém - acrescentou, com um movimento de impaciência do maxilar, resultado da dor de dentes que o atormentava e, outrossim, lhe não permitia falar com a expressão desejada.
- Vai renascer para uma nova vida, consinta que lho prognostique - disse Sérgio Ivanovitch, que se sentia comovido - Salvar irmãos oprimidos é uma causa tão digna de vida como de morte. Que Deus conceda pleno êxito ao seu empreendimento e lhe restitua a paz de consciência de que tanto precisa.
- Enquanto instrumento, ainda posso servir para alguma coisa, mas como homem, não passo de uma ruína - disse Vronski, pausada mente, apertando a mão que lhe estendia Kosnichev.
A terrível dor de dentes enchia lhe a boca de saliva e impedia o de falar Vronski calou se, de olhos maquinalmente fitos nas rodas de um tender que se aproximava, deslizando suavemente pelos carris. E, de súbito, um mal estar geral fê-lo esquecer a dor de dentes que sentia. O tênder e a via férrea, bem como a conversa com aquele seu conhecido a quem não tornará a ver depois da desgraça, fizeram no recordar a ela, isto é, o que restava dela quando ele entrou, correndo como louco, no posto de polícia da estação. Em cima da mesa, impudicamente estendido, entre pessoas desconhecidas, via se o corpo ensanguentado, ainda cheio de vida. A cabeça intacta estava atirada para trás, com as suas grossas franças e os seus caracóis nas fontes. Naquele rosto encantador - a boca rubra entreaberta - havia uma expressão estranha e dolorosa nos lábios e horrível nos olhos imóveis e abertos, como se pronunciasse ainda as terríveis palavras que lhe dissera quando da última discussão: "Que ele se arrependeria."
Vronski procurou lembrar-se dela tal como era quando a encontrara pela primeira vez na estação, misteriosa, encantadora, afectuosa, procurando e distribuindo felicidade, e não cruel e vingativa, como durante a última época da sua vida. Tentou evocar os melhores momentos que passara com ela, mas sentiu que sempre estavam envenenados. Só a podia recordar triunfante, cumprindo a ameaça de o fazer sentir aquele arrependimento inevitável, que já não era preciso a ninguém. A dor de dentes desapareceu e os soluços contraíram-lhe o rosto. Deu alguns passos ao longo da pilha de fardos, e assim que se dominou dirigiu-se tranqüilamente a Sérgio Ivanovitch:
- Não leu o último comunicado? Dizem ter voltado a derrotar os Turcos, mas que a batalha decisiva será amanhã.
E depois de discutirem a proclamação de Milano como rei e das enormes conseqüências que daí podiam resultar, separaram-se, logo que ressoou o segundo toque de sineta, dirigindo-se cada um para a sua carruagem.
CAPÍTULO VI
Como não sabia quando podia sair de Moscovo, Sérgio Ivanovitch não telegrafara ao irmão a pedir-lhe que lhe mandasse um carro à chegada do comboio. Levine não estava em casa, quando, por volta do meio-dia, apareceram Kosnichev e Katavassov, completamente cobertos de pó, num trem alugado na estação.
Kitty, sentada na varanda com a irmã e o pai, logo que reconheceu o cunhado, veio recebê-lo.
- Não tens vergonha de não nos teres avisado da tua chegada? - disse-lhe, estendendo-lhe a mão e apresentando-lhe a testa para que ele a beijasse.
- Chegamos muitíssimo bem e não os incomodamos - replicou Sérgio Ivanovitch. - Estou de tal modo coberto de pó que até tenho receio de te tocar. Também não sabia quando poderia sair de Moscovo, tão ocupado andava. E vocês, como sempre - acrescentou, risonho - desfrutando de uma felicidade tranqüila, fora de todos os embates, neste remanso de paz. O nosso amigo Katavassov acabou por se decidir a vir comigo.
- Mas não me tome por um negro. Quando me lavar, prometo-lhe parecer pessoa humana - disse Katavassov, no seu tom de ironia habitual, enquanto estendia a mão a Kitty e sorria, deixando a descoberto os dentes, particularmente brilhantes, no rosto enegrecido.
- O Kóstia vai ficar muito contente. Foi à granja. Já devia estar de volta.
- Anda sempre ocupado com a administração das terras neste recanto apetecível - disse Katavassov. - Em compensação, na cidade não pensamos noutra coisa se não na guerra dos Sérvios! Estou curioso por saber qual a opinião deste meu amigo a tal respeito: tenho a certeza de que não é da opinião geral.
- Acho que sim - replicou Kitty, confusa, procurando ler no rosto do cunhado. -Vou mandá-lo procurar... Está aqui o meu pai, que passa uma temporada connosco, no regresso do estrangeiro.
E Kitty, aproveitando a liberdade de movimentos de que por tanto tempo estivera privada, tratou de conduzir os seus hóspedes, um ao escritório, o outro ao antigo quarto de Dolly, para que se preparassem, mandando arranjar almoço para ambos enquanto enviava recado ao marido e se dirigia à varanda onde estava o pai.
- É o Sérgio Ivanovitch que nos traz o professor Katavassov.
- Oh! Que maçada! E com este calor! - comentou o príncipe.
- Não, paizinho, é muito simpático, e Kóstia gosta muito dele - disse Kitty, sorrindo, como se implorasse qualquer coisa ao ver a expressão irônica do rosto do pai.
- Mas está bem, está bem, eu não disse nada.
- Vai ter com eles, querida, e faz-lhes companhia - pediu Kitty à irmã. - Estiveram com o Stiva. Eu vou ver o Mitia.(Nota 140) Fiz de propósito. Desde manhã que lhe não dou o peito, deve estar impaciente. - Sentindo que lhe afluía o leite aos seios, Kitty dirigiu-se, em passo rápido, ao quarto do filho.
Não é que o adivinhasse (ainda permanecia em união com ele), mas sabia, graças à afluência do leite, que a criança estava com fome. Antes de chegar ao quarto do filho, já Kitty sabia que Mitia chorava. Com efeito estava a chorar. Ouvindo-lhe a voz, estugou o passo. Todavia quanto mais se apressava, mais a criança chorava. Tinha uma voz sã e agradável, mas impaciente e faminta.
- Já está a chorar há muito? Já há muito? - perguntou Kitty rapidamente à criada enquanto se sentava e se preparava para amamentar o filho, desabotoando o vestido. - Deixe-o ver. Que lenta que é! Deixe-o ver e depois lhe atará a touca.
A criança sufocava de tanto chorar.
- Não se pode, mãezinha, é preciso vesti-lo convenientemente - disse Agáfia Mikailovna, quase sempre no quarto do pequeno. - Trá-la-rá, trá-la-rá! - cantarolava ela, sem prestar atenção ao nervosismo da mãe.
Por fim, a aia entregou o pequenino a Kitty. Agáfia Mikailovna seguiu-o com os olhos, enternecida.
- Conhece-me! Conhece-me! Pode crer, Catarina Alexandrovna, que ele me conhece! - gritava, elevando a voz ainda mais do que a criança. Mas Kitty não a ouvia. A sua impaciência corria paralela com a do filho. Por causa disso, tudo levou tempo a ficar em ordem. O bebê não se agarrava bem ao peito e irritava-se.
Finalmente, depois de um grito desesperado, pois mamara em falso e engasgara-se, encontrou o seio, e tanto a mãe como o filho se sentiram calmos ao mesmo tempo e ambos ficaram calados.
- Coitadinho, como está suado! - disse Kitty, num sussurro, tocando na criança. - Por que diz que ele a conhece? - perguntou, olhando de viés para os olhos do pequeno, cheios de malícia, segundo lhe pareceu, fitando-a por debaixo da touca, enquanto observava as bochechinhas dele, que inchavam a compasso, e a sua mãozinha rósea, que fazia círculos no ar. - Não é possível. Se conhecesse alguém, era a mim que devia conhecer - acrescentou, respondendo à afirmação de Agáfia Mikailovna, e sorriu.
Sorria, pois, apesar do que dissera, no fundo do seu coração estava certa de que a criança não só conhecia Agáfia Mikailovna, mas que sabia tudo e compreendia muitas coisas de todos ignoradas e que ela, a sua própria mãe, apenas viera a saber graças a ele. Para Agáfia Mikailovna, para a aia, para o avô, e, principalmente, para o pai, Mitia era simplesmente um ser vivo que apenas exigia cuidados materiais, mas para a mãe era já um ente de razão, a que se unia toda uma história de relações espirituais.
- Quando ele acordar, se Deus quiser, vai ver. Basta que eu lhe faça assim, põe-se logo radiante. Ficará radiante como a luz do dia - disse Agáfia Mikailovna,
- Pois sim, pois sim, então havemos de ver isso - murmurou Kitty. - Agora vá-se embora, que ele está a dormir.
CAPÍTULO VII
Enquanto Agáfia Mikailovna se afastava em bicos dos pés, a aia corria as cortinas; depois, com um ramo seco de bétulas, enxotou um moscardo que zumbia contra os vidros da janela e as moscas pousadas no véu de musselina que servia de dossel ao berço, sentando-se em seguida ao lado de Kitty, de quem continuou a enxotar as moscas com o ramo seco.
- Que calor! Que calor! Se ao menos Deus nos mandasse uma chuvinha! - disse ela.
- Sim; psiu, psiu!... -murmurou Kitty, embalando suavemente o corpo e apertando contra o peito o bracinho rechonchudo que Mitia, de olhos semicerrados, agitava ainda muito ao de leve e que ela teria beijado de bom grado se não fosse o receio de acordar o pequenino. Por fim o braço quedou imóvel e a criança, sempre a mamar, cada vez mais raramente soerguia as longas pestanas recurvas para pousar na mãe os olhinhos húmidos, que na obscuridade pareciam pretos. A aia dormitava. Por cima da sua cabeça, Kitty ouviu ressoar a voz do velho príncipe e o riso vibrante de Katavassov.
"Ainda bem", pensou ela, "animaram-se mesmo sem a minha presença. Que pena não estar aqui o Kóstia. Naturalmente voltou a deixar-se ficar junto das abelhas. Não gosto nada que ele ande sempre metido nos .cortiços, embora tenha de reconhecer que é uma distracção para ele. Vejo-o muito mais alegre do que na Primavera. Andava tão triste e atormentado, que cheguei a apoquentar-me com isso. Que gracioso corpo!", murmurou e sorriu.
Kitty sabia muito bem o que é que atormentava Levine: a incredulidade. Se lhe perguntassem se acreditava que Levine não teria salvação no outro mundo, seria obrigada a responder que sim, e no entanto a incredulidade do marido não a fazia sofrer. Embora reconhecesse que o incréu não tinha salvação e amasse o marido mais do que qualquer outra pessoa neste mundo, sorria sempre que pensava na sua falta de fé e para si mesma achava-lhe graça.
"Para que passará ele o ano inteiro a ler livros filosóficos?", perguntava a si mesma Kitty. "Se esses livros lhe explicam a fé, porque não há-de ele ter fé? E se não dizem a verdade, para que há-de lê-los? Ele próprio costuma dizer que gostaria de ter fé. Então por que a não tem? Provavelmente porque pensa muito. E pensa muito por causa da solidão em que vive. Está sempre só, sempre. Não pode falar de tudo isto connosco. Por isso os hóspedes serão agradáveis para ele, sobretudo Katavassov. Gosta de discutir com ele", murmurou de si para consigo, e acto contínuo pôs-se a pensar onde lhe seria mais cômodo fazer a cama para Katavassov: no quarto de Sérgio Ivanovitch ou noutro qualquer. E de súbito veio-lhe uma ideia que a fez estremecer de inquietação e até incomodou Mitia, que a olhou de semblante carregado. Lembrou-se que a lavadeira ainda não trouxera a roupa lavada e que toda a roupa dos hóspedes andava em serviço. "Se eu não der providências, Agáfia Mikailovna é capaz de pôr na cama de Sérgio Ivanovitch roupa já usada." Ao pensar nisto, o sangue subiu-lhe todo ao rosto.
"Preciso de verificar isso", disse de si para consigo, e, voltando aos seus pensamentos anteriores, lembrou-se de que não chegara a discorrer até ao fim sobre qualquer coisa que dizia respeito à alma, qualquer coisa de muito importante, e procurou lembrar-se. "Ah, já sei! Que Kóstia não tem fé!", exclamou para consigo mesma, sorrindo.
"Pois bem, é preferível que viva sempre sem fé a que seja como Madame Stahl, ou como eu desejei ser nesse tempo no estrangeiro. Não, ele não é capaz de fingir!"
E um recente acto de bondade do marido lhe ocorreu, de súbito. Quinze dias antes, Stepane Arkadievitch escrevera uma carta à mulher em que lhe pedia perdão e suplicava que lhe salvasse a honra vendendo a quinta para pagar as dívidas que contraíra. Depois de amaldiçoar o marido e de pensar no divórcio, Dolly acabou por ter pena dele, disposta a consentir no que ele lhe pedia. Foi então que Levine veio ter com ela, Kitty, e lhe propôs, muito embaraçado e com muitos circunlóquios - e lembrando-se disso aos lábios de Kitty aflorava um sorriso de enternecimento - lhe propôs a maneira, solução em que ela não pensara, de socorrer Dolly sem a magoar: ceder-lhe a parte que lhes pertencia nessa propriedade.
"Como é possível ser incrédulo com um coração assim, com esse receio que tem de ofender uma criança? Está sempre a pensar nos outros.
Sérgio Ivanovitch entende que Kóstia tem obrigação de ser o administrador das suas coisas. E a irmã pensa da mesma maneira. E Dolly e os filhos já não têm outro apoio. E todos esses camponeses que diariamente vêm ter com ele, como se Kóstia tivesse obrigação de lhes sacrificar os seus ócios..."
"Oxalá sejas como o teu pai, só como ele", murmurou, entregando Mitia à aia e aflorando-lhe a carinha com os lábios.
CAPÍTULO VIII
Desde que vira morrer o seu querido irmão, Levine dera-se a examinar pela primeira vez os problemas da vida e da morte através de ideias a que ele chamava novas. Estas tinham substituído, entre os vinte e os trinta e quatro anos, as suas convicções da infância e da adolescência. Levine sentira horror, menos da morte do que da vida, por não podei compreender de onde vinha, que era, para que existia ou que representava. O organismo, a sua destruição, a indestrutibilidade da matéria, a lei da conservação da energia e a evolução, eis os termos que tinham substituído a sua antiga fé. Esses termos e os conceitos que lhe andavam ligados serviam para fins de ordem intelectual, mas não explicavam a vida. Levine encontrou-se, de súbito, na situação de um homem que houvesse trocado uma pelica que muito bem o agasalhasse por um traje de musselina e que pela primeira vez se sentisse gelar, não graças a raciocínios, mas com todo o seu ser, convencendo-se de que estar assim vestido era o mesmo que estar nu, e que seria inevitável morrer no meio de grandes tormentos.
Desde então, quase sem tomar consciência disso e sem que nada mudasse na sua vida exterior, não mais deixou de experimentar o horror que lhe causava essa ignorância. Demais, tinha o sentimento confuso de que as suas pretensas convicções, em vez de dissiparem as trevas em que vivia, ainda as tornavam mais espessas. O casamento, com as alegrias e os deveres que traz consigo, abalaram-lhe por algum tempo os pensamentos; mas assim que, após o parto da mulher, se viu em Moscovo a viver na ociosidade, logo estes lhe voltaram com redobrada persistência.
"Se não aceito as explicações que me dá o cristianismo acerca do problema da minha existência", dizia de si para consigo, "onde encontrarei outras?" Por mais que perscrutasse as suas convicções científicas, não descobria nelas resposta a esta pergunta. Era como se fosse a uma loja de brinquedos ou a um armeiro comprar víveres.
Involuntariamente, inconscientemente, nas leituras, nas conversas e até junto das pessoas que o rodeavam, procurava uma relação qualquer com o problema que o preocupava. Um ponto o preocupava acima de tudo: porque é que os homens da sua idade e do seu meio, os quais exactamente como ele, pela sua maior parte, haviam substituído a fé pela ciência, não sofriam por isso mesmo moralmente? Não seriam sinceros? Ou compreenderiam melhor do que ele as respostas que a ciência proporciona a essas questões perturbantes? E punha-se então a estudar, quer os homens, quer os livros, que lhe poderiam proporcionar as soluções tão desejadas.
Entretanto descobrira que erradamente admitira com os seus camaradas da Universidade ter a religião passado de moda: afinal, as pessoas de quem mais gostava, o velho príncipe, Lvov, Sérgio Ivanovitch, Kitty, conservavam a fé da sua infância, essa fé em que ele outrora comungava. As mulheres, de maneira geral, eram crentes e também noventa e nove por cento da gente do povo, que ele acima de tudo estimava. Depois de muito ler, chegou à convicção de que as pessoas cujas opiniões partilhava não atribuíam a essas opiniões nenhum significado particular: em vez de explicarem as questões que ele considerava primordiais, afastavam-nas de si para se consagrarem à resolução de outras que a ele o deixavam completamente indiferente, como, por exemplo, a evolução das espécies, a explicação mecânica da alma, etc.
Depois, durante o parto da mulher, um facto estranho ocorrera: ele, incrédulo, rezara e rezara com uma fé sincera. Mas não havia maneira de poder conciliar esse estado de alma com as suas habituais disposições de espírito. Ter-lhe-ia aparecido então a verdade? Não o podia acreditar, pois o certo é que, desde que o analisava friamente, esse ímpeto para Deus desfazia-se em pó. Ter-se-ia enganado então? Se o admitisse, seria como que profanar uma recordação bem cara... Essa luta interior pesava- lhe dolorosamente e com todas as foraças do seu ser procurava acabar com ela.
CAPÍTULO IX
Atormentado constantemente por estes pensamentos, lia e meditava, mas o objectivo perseguido cada vez se afastava mais dele.
Convencido de que os materialistas nenhuma resposta lhe dariam, relera, nos últimos tempos da sua estada em Moscovo, e depois do seu regresso à aldeia, Platão e Espinosa, Kant e Schelling, Hegel e Schopenhauer. Estes filósofos satisfaziam-no enquanto se contentavam em refutar as doutrinas materialistas e ele próprio encontrava então argumentos novos contra elas; mas, assim que abordava - quer através das leituras das suas obras, quer através dos raciocínios que estas lhe inspiravam - a solução do famoso problema, sucedia-lhe sempre a mesma coisa. Termos imprecisos, tais como "espírito", "vontade", "liberdade", "substância" ofereciam num certo significado à sua inteligência enquanto se deixava envolver na subtil armadilha verbal que lhe armavam; logo que regressava, porém, depois de uma incursão na vida real, a este edifício que supusera sólido, ei-lo que o via desmoronar-se como um castelo de cartas, vendo-se obrigado a reconhecer que o edificara graças a uma perpétua transposição dos mesmos vocábulos, sem recorrer a essa "qualquer coisa" que, na prática da vida, importa mais do que a razão.
Schopenhauer proporcionou-lhe dois ou três dias de serenidade, mercê da substituição a que procedeu em si próprio da palavra "amon" por aquilo a que o filósofo chamava "vontade". Quando o examinou, porém, do ponto de vista prático, esse novo sistema estiolou-se como todos os outros, mero trajo de musselina que era no fundo.
Como Sérgio Ivanovitch lhe tivesse recomendado os escritos teológicos de Komiakov, foi ler o segundo volume das suas obras. Embora desanimado logo de princípio pelo estilo polêmico e afectado do autor, nem por isso deixou de se sentir menos impressionado com a sua teoria da Igreja. A crer em Komiakov, o conhecimento das verdades divinas, recusado a um homem só, é concedido a um conjunto de pessoas que comungam no mesmo amor, isto é, a Igreja. Esta teoria reanimou Levine; uma vez que aceitasse a Igreja, instituição viva de carácter universal, com Deus à frente, e santa infalível por conseguinte, era-lhe mais fácil aceitar os seus ensinamentos sobre Deus, a criação, a queda, a redenção, que principiar do princípio, pelo próprio Deus, esse ser longínquo e misterioso. Infelizmente, tendo lido em seguida duas histórias eclesiásticas, uma de um escritor católico, outra de um escritor ortodoxo, chegou à conclusão de que as duas Igrejas, ambas infalíveis na sua essência, se repudiavam mutuamente. E a doutrina teológica de
Komiakov não resistiu mais ao seu exame que os sistemas filosóficos.
Durante toda aquela Primavera, Levine parecia outra pessoa. Viveu momentos terríveis.
"Não posso viver sem saber o que sou e com que fim fui lançado a este mundo", dizia ele de si para consigo. "E visto que não poderei chegar a sabê-lo, torna-se-me impossível viver. No tempo infinito, na infinitude da matéria, no espaço infinito forma-se um organismo como uma borbulha, mantém-se por algum tempo, depois rebenta. Essa borbulha sou eu!"
Este sofisma doloroso era o único, era o supremo resultado do raciocínio humano levado a cabo durante séculos; era a crença final na base de quase todos os ramos da actividade científica; era a convicção reinante. E porque lhe parecia a mais clara, Levine, involuntariamente, deixara-se penetrar por ela. Mas esta conclusão parecia-lhe mais que sofística; via nela como a obra cruelmente irrisória de uma força inimiga a que era preciso subtrair-se. A maneira de se emancipar disso estava ao alcance de cada um... E a tentação do suicídio perseguiu tão freqüentemente aquele homem sadio, aquele feliz pai de família, que tratou de afastar de si todas as cordas e nem sequer se atrevia a sair com a espingarda.
Contudo, em vez de se enforcar ou de queimar os miolos, continuaria muito simplesmente a viver.
CAPÍTULO X
Eis como Levine perdia a esperança de resolver, no domínio da especulação, o problema da sua existência; em compensação, nunca agira na vida prática com tanta decisão e firmeza.
De regresso à aldeia nos primeiros dias de Junho, a sua lavoura, a administração dos bens do irmão e da irmã, os seus deveres familiares, as relações com os seus vizinhos e os seus mujiques, e a colméia nova, que principiara a organizar naquela Primavera, não lhe deram tréguas. O caminho tomado pelos seus pensamentos, a multiplicidade das suas ocupações e a falta de êxito das suas precedentes experiências não lhe consentiam que justificasse a sua actividade com o interesse no bem comum; muito simplesmente cumpria o seu dever.
Outrora - quase desde a infância - a ideia de concorrer com qualquer coisa de útil para a gente da sua aldeia, para a Rússia, para a humanidade, dava-lhe uma grande alegria; no entanto, a acção em si mesma nunca o satisfazia e não tardava que tivesse dúvidas quanto ao valor dos seus empreendimentos. Agora, pelo contrário, se punha mão a uma obra, sem qualquer espécie de alegria prévia, adquiria, pouco depois, a convicção de que essa obra era necessária e que dava resultados cada vez mais satisfatórios. Inconscientemente, enterrava-se cada vez mais fundo na terra, como a charrua que só pode levantar-se quando chega ao fim da sua tarefa. Em vez de discutir certas condições da existência, aceitava-as, considerando-as tão indispensáveis como a nutrição diária. Levar a mesma vida que os seus antepassados, dar a seus filhos uma educação igual à sua, transmitir-lhes um patrimônio intacto e merecer deles o mesmo reconhecimento que ele próprio testemunhava à memória dos seus avós, eis para ele dever tão indiscutível como o de pagar aos seus credores. Era, pois, necessário que as terras prosperassem e para isso, em vez de enfraquecer, tratou de valorizá-las ele próprio, adubando os campos, criando gado, plantando árvores. Julgava-se obrigado a prestar ajuda e protecção - como a menores que lhe houvessem sido confiados
- ao irmão, à irmã e aos numerosos camponeses que tinham por costume consultá-lo. A mulher e o filho, Dolly e os seus também tinham direito aos seus cuidados e ao tempo que despendia com eles. E tudo isto enchia largamente essa existência, cujo sentido não compreendia sempre que pensava nela.
E não só o seu dever lhe aparecia perfeitamente definido como não tinha a menor dúvida quanto à maneira de o cumprir em cada caso particular. Assim, não hesitava em contratar mão-de-obra o mais barata possível, sem no entanto escravizar os seus trabalhadores com adiantamentos feitos abaixo do preço normal. Se os seus mujiques precisavam de forragem, parecia-lhe lícito vender-lhes palha, por maior que fosse a pena que eles lhe inspirassem. Em compensação, os lucros das tabernas achava-os imorais, e em sua opinião esses estabelecimentos deviam set suprimidos. Castigava com rigor os roubos de lenha, mas recusava-se - apesar dos protestos dos guardas contra essa falta de firmeza - confiscar o gado do mujique, quando apanhado em flagrante delito a pastar nas suas terras. Era capaz de emprestar dinheiro a um pobre diabo para o salvar das garras de um usurário, mas não concedia nem adiantamentos nem pagamentos por conta sobre os adiantamentos feitos. Não teria perdoado ao seu administrador, caso ele se descuidasse e não mandasse ceifar todos os seus prados; porém, não tocava em oitenta hectares da terra em que aquele fizera plantações. Não consentia que se deixasse de descontar na jorna do camponês, que no tempo da faina do campo ia a casa por causa do falecimento do pai - fosse qual fosse a compaixão que ele lhe inspirasse -, mas, por outro lado, não deixava de pagar a mensalidade aos velhos, que já não serviam para nada.
Levine sabia que, ao regressar a casa, a primeira coisa a fazer era visitar a mulher, que estava doente, ainda que os camponeses tivessem de o esperar durante três horas, e também que, conquanto lhe produzisse grande prazer ocupar-se das abelhas, devia deixar essa ocupação a um velho, tratando de acudir aos mujiques que precisavam dele.
Ignorava se procedia bem ou mal: mas não só não desejava agora averiguá-lo, como evitava as conversas e os pensamentos sobre o assunto.
As reflexões conduziam-no à dúvida e impediam-no de ver o que se devia ou não fazer. Quando se contentava em viver sem pensar, sentindo constantemente na alma a presença do juiz infalível que decidia qual das duas maneiras de proceder era melhor, e se não procedesse dessa maneira, dava logo por isso.
Eis, pois, como vivia, sem saber e sem prever a possibilidade de se inteirar quem era e para que estava neste mundo, coisa que tanto o atormentava, que chegara a pensar no suicídio; mas, ao mesmo tempo, não deixava de traçar com firmeza a trajectória da sua vida.
CAPÍTULO XI
O dia em que Sérgio Ivanovitch chegara a Pokrovskoie fora um dos dias mais penosos para Levine.
Era a temporada mais activa das lides do campo, quando acorda nos camponeses um extraordinário espírito de sacrifício, desconhecido em outros aspectos da vida e que muito seria apreciado se os próprios que o realizam o soubessem estimar, se não se repetisse todos os anos e se os seus resultados não fossem tão simples.
Ceifar e recolher o centeio e a aveia, pôr o terreno em alqueire, proceder à debulha e às sementeiras de Outono, tudo isso parece simples e corrente.
Mas para o conseguir é preciso que todos os camponeses, do mais novo ao mais velho, trabalhem, durante três ou quatro semanas, sem parar, três vezes mais do que habitualmente, comer kvas, cebolas e pão negro, aproveitando as noites para o transporte das gabelas e dormindo duas ou três horas, se tanto. E é assim todos os anos na Rússia.
Como passava a maior parte da sua vida na aldeia e como vivia intimamente com o povo, Levine sentia sempre que, durante a quadra das tarefas agrícolas, a animação geral se lhe comunicava a ele também. Pela manhã fora assistir à primeira semeadura do centeio e à recolha da aveia nas respectivas gabelas. Voltara a casa, à hora em que se estavam a levantar a mulher e a cunhada. Depois de tomar o pequeno almoço com elas, dirigiu-se a pé à granja onde iam pôr a funcionar a debulhadora para preparar as sementes.
Durante todo aquele dia, enquanto falava com o encarregado e com os camponeses, com a mulher, com Dolly, com os filhos desta, ou com o sogro, Levine não fazia outra coisa se não pensar no problema que o preocupava à margem das tarefas agrícolas, procurando em tudo uma relação com as suas perguntas: "Que sou eu? Onde estou? Para que estou eu aqui?"
Manteve-se algum tempo na granja, que acabava de ser telhada de novo. A cobertura de aveleira, fixada às vigas de álamo, exalava um agradável aroma. Naquela casa fresca, onde turbilhonava uma poeira acre, os operários cirandavam em volta da debulhadora, enquanto as andorinhas, chilreando, deslizavam pelo rebaixo do telhado e vinham, agitando as asas, pousar no dintel do portão todo aberto. Através deste divisavam-se a erva da eira, que brilhava ao sol, e montes de palha fresca, que acabava de sair do celeiro. Levine contemplava todo este espectáculo entregue a pensamentos lúgubres.
"Para quê tudo isto? Para que estou eu aqui a vigiá-los, e eles, por que se mostram eles tão zelosos diante de mim? Que tem ela de se despachar, a minha velha amiga Matriona", pensava, seguindo com os olhos uma grande mulher descarnada que, para melhor apanhar o grão, apoiava pesadamente no solo áspero os pés descalços e tostados pelo sol. "Curei-a uma vez, que ficou toda queimada quando de um incêndio, em que lhe caiu uma trave em cima. Sim, fui eu quem a curou, mas apesar disso amanhã, ou daqui a dez anos, há que carregar com ela para debaixo da terra. E outro tanto há-de acontecer àquela janota de vestido encarnado que joeira a palha e o folhelho com tanto cuidado, bem como àquele pobre cavalo cor de pega, de grande barriga e respiração cansada, que lá vai arrastando a roda, penosamente. E também levarão a enterrar o Fiodor, com a sua barba encaracolada, cheia de palha e a sua camisa rota no ombro. E no entanto lá vai desfazendo as gabelas, dando ordens, gritando às mulheres e colocando a correia no volante. E o mais importante é que não só eles irão a enterrar; eu também, e nada ficará. Para quê, pois, tudo isto?"
Enquanto assim pensava, nem por isso Levine deixava de consultar o relógio, calculando quanto debulhariam por hora. Precisava de o sabei para destinar a tarefa do dia.
"Está quase a fazer uma hora que se puseram a debulhar e ainda não passaram do primeiro monte." Aproximou-se de Fiodor e ordenou-lhe, elevando a voz, para dominar o ruído da máquina, que deitasse menos trigo.
- Deitas de mais, Fiodor. Vês? A máquina engasga-se e trabalha mais devagar. Quantidades iguais,
Fiodor, negro com o pó que se lhe colava à cara coberta de suor, respondeu qualquer coisa, mas não fez o que Levine lhe ordenara.
Levine aproximou-se da máquina, afastou Fiodor e tomou o seu lugar.
Depois de trabalhar até à hora da merenda dos camponeses, Levine saiu do celeiro com Fiodor e entabulou conversa com ele. Detiveram-se junto a um monte de centeio amarelento preparado na eira para debulhar.
Fiodor era natural da aldeia, onde tempos atrás Levine cedera as terras de acordo com o princípio cooperativo. Agora arrendara-as a um tal Kirilov. Levine desejava arrendá-las no ano seguinte a outro camponês, bom homem e rico, que se chamava Platão. E interrogou Fiodor a esse respeito.
- É muito rico, Constantino Dimitrievitch. O Platão não pode pagar essa importância - replicou o mujique, retirando as espigas que se lhe haviam metido na camisa suada.
- Mas como pode Kirilov pagar?
- Kirilov? - repetiu Fiodor com desprezo. - Esse não está com meias medidas. Não tem pena do camponês, enquanto o tio Platão a uns dará as terras fiado e a outros perdoar-lhes-á as dívidas. Nem assim mesmo arranjará dinheiro para pagar ao patrão. É um bom homem.
- E porque há-de ele perdoar as dívidas?
- Os homens são todos diferentes uns dos outros, Constantino Dimitrievitch. Uns só vivem para as necessidades, como, por exemplo, o Kirilov, que só pensa na barriga. O tio Platão é um homem justo. Vive para a sua alma. Não se esquece de Deus.
- Que faz ele para se não esquecer de Deus? Como é que ele vive para a sua alma? - exclamou Levine quase num grito.
- É claro, vive como Deus manda, é justo. As pessoas não são todas iguais. Por exemplo, o patrão não é capaz de fazer mal a ninguém...
- Bom, bom, adeus - disse Levine, anelante de emoção. Voltou-se, pegou na bengala e saiu em passos largos, direito a casa.
Ao ouvir dizer que Platão vivia para a sua alma, segundo a verdade, como Deus manda, pensamentos vagos, mas significativos, acudiram-lhe à mente, em tropel, como se proviessem de algum ponto onde tivessem estado encerrados, e, tendendo todos para um mesmo fim, deram-lhe volta a cabeça, cegaram-no com a sua luz.
CAPÍTULO XII
Levine seguia em passos largos pela estrada real, atento não tanto aos seus pensamentos - ainda não era capaz de pô-los a claro - como ao seu estado de espírito, completamente novo para ele.
As palavras do mujique tinham-lhe produzido na alma o efeito de uma faísca eléctrica, que subitamente transformasse e fundisse num todo o enxame de ideias incompletas, desordenadas e impotentes que andava sempre com ele. Era nessas ideias que pensava sem dar por isso na altura em que falava no arrendamento das terras.
Agora sentia na alma o que quer que fosse que enchia de satisfação, embora ainda não soubesse o que era.
"Não devemos viver para nós, mas para Deus. Para quê Deus? Haverá coisa que faça menos sentido? Fiodor disse que o homem não devia viver para as necessidades, isto é, para o que compreende, para o que o atrai, para aquilo de que gosta, mas para qualquer coisa de incompreensível, para Deus, a quem ninguém pode entender nem definir. Sim, e que aconteceu? Não entendi as palavras sem sentido de Fiodor? Uma vez entendidas, duvido que sejam justas? Pareceram-me tontas, vagas e imprecisas? Não compreendi-as tal qual como ele: compreendia-as inteiramente e como ainda não compreendera nada com tanta clareza. E não só eu, mas todo o mundo compreende isso perfeitamente, ninguém duvida de tal coisa e todos estão de acordo.
"E eu que procurava milagres, pesaroso de não ter visto nenhum que me convencesse! Um milagre material ter-me-ia conquistado. E sem ver o único milagre possível, o milagre permanente e que nos rodeia por todos os lados!
"Fiodor disse que Kirilov vive para a barriga. É compreensível e racional. Todos nós, racionais, não podemos viver de outra maneira: vivemos para a barriga. Mas Fiodor é de opinião que não deve ser, que devemos viver para a verdade, para Deus, e basta uma só palavra para eu o entender. Não só eu: milhões de seres que viveram há séculos e estão a viver agora, camponeses pobres de espírito, sábios que meditaram e escreveram sobre esse problema num idioma incompreensível, todos, todos dizem o mesmo, todos estamos de acordo quanto ao objecto da vida e quanto ao que devemos ter por bem. A única coisa que tenho de comum com todos é esta convicção firme, indubitável e clara, que isso não pode explicar-se pela razão e que não tem causas nem pode ter conseqüências.
"Se o bem tiver uma causa, já não é bem; se tiver conseqüências, quer dizer, recompensa, também não. Portanto, o bem está fora do encadeamento de causas e efeitos. Conheço-o como toda a gente. Querem maior milagre? Será possível que tenha encontrado a solução de tudo?
Que tenha acabado com os meus sofrimentos?", ia pensando Levine enquanto caminhava pela estrada coberta de pó. Não sentia calor nem cansaço; era como se se lhe apaziguassem todos os seus grandes tormentos. E esta impressão despertava nele tamanha alegria que não ousava acreditar nela.
Sufocado pela emoção, faltavam-lhe as forças para seguir avante.
Saiu da estrada, internou-se na mata e sentou-se, à sombra dos olmos, em cima da erva por ceifar. Depois de tirar o chapéu da cabeça a escorrer suor, estendeu-se na erva espessa e macia, apoiado num dos braços.
"É preciso compreender isto, tornar isto claro", pensava, olhando fixamente a erva por pisar, que alteava diante de si enquanto seguia os movimentos de um insecto verde que trepava por um talo de centinódia e se detinha na ascensão, impedido de seguir caminho por causa de uma folha. "Que descobri eu?", perguntava-se a si mesmo, afastando a folha que impedia o insecto de passar e aproximando dele outro talo. "De onde vem esta alegria? Que descobri eu?"
"Nada. Apenas me inteirei do que já sabia. Compreendi qual a força que não me deu a vida no passado, mas ma dá agora também. Libertei-me do meu erro e conheci o meu Senhor.
"Antes dizia que o meu corpo, tal como o dessa planta e o desse insecto (não quisera trepar pelo novo talo e, abrindo as asas, voou), realizava as transformações da matéria de acordo com leis físicas, químicas e fisiológicas. E que em todos nós, em nós e nos álamos, nas nuvens e nas névoas se produz uma evolução. Evolução de quê? Evolucionamos para quê? Uma evolução infinita e uma luta... Como se pudesse existir qualquer tendência e qualquer luta no infinito! E surpreende-me que, apesar da grande tensão mental nesse sentido, não se me aclarasse o significado da vida e o dos meus desejos e aspirações. Agora digo que conheço o sentido da minha vida: é preciso viver para Deus para a alma. E apesar do que há nisto de evidência, é misterioso e magnífico! Eis o sentido de tudo quanto existe. Sim, e o orgulho...", para si mesmo, estendendo-se de bruços, enquanto atava raminhos erva, procurando não parti-los.
"Não só o orgulho da inteligência, mas a estupidez da inteligência. o pior é a malícia, sim, a malícia da inteligência. A fraude da inteligência", repetiu.
E, resumidamente, Levine evocou o caminho seguido pelos seus pensamentos naqueles últimos anos, desde que tivera a ideia clara e vidente da morte na presença do seu querido irmão enfermo, sem esperanças de cura.
Compreendera então pela primeira vez que mais nada existe para is, inclusive para ele próprio, além do sofrimento, da morte e do falecimento eterno. E decidira ser impossível viver assim, ser preciso encontrar uma explicação qualquer para a vida, de sorte que esta se lhe não apresentasse colho uma ironia maligna e diabólica e não o levasse a estourar os miolos.
Porém, não fizera nem uma coisa nem outra. Continuara a sua vida, continuara a pensar e a sentir. Casara-se, também, nessa altura e tivera muitas alegrias, sentindo-se feliz sempre que não pensava na vida.
Que queria isso dizer? Que vivia bem, mas pensava mal.
Vivia (sem ter consciência disso) segundo as verdades espirituais que assimilara com o leite materno; mas pensava, não já apenas sem reconhecer tais verdades, senão apartando-se delas cuidadosamente.
Agora afigurava-se-lhe evidente que só pudera viver graças às crenças em que fora educado.
"Que teria sido de mim, que teria sido da minha vida se não fossem essas crenças, se não soubesse que é preciso viver para Deus e não para as minhas necessidades? Teria roubado, teria matado, teria mentido. Nenhuma das principais alegrias da minha vida teria podido existir para mim." E por mais esforços mentais que fizesse, não conseguia ver-se a si próprio o ser bestial que teria sido, caso não soubesse para que vivia. "Buscava resposta à minha pergunta. Mas o pensamento não me podia responder, pois o pensamento não pode medir-se com a pergunta. A própria vida se encarregou de me responder graças ao conhecimento do bem e do mal. E esse conhecimento não o adquiri através de coisa alguma, foi-me outorgado, como a todos os demais, visto que o não pude encontrar em parte alguma.
"De onde o soube? Porventura foi através do raciocínio que eu cheguei à conclusão de que é preciso amar o próximo e não lhe fazer mal? Disseram-mo na infância e acreditei-o com alegria, pois trazia-o na alma. E quem o descobriu? A razão, não. A razão descobriu a luta pela existência e a lei, que exige que se eliminem todos quantos nos impedem de satisfazer os nossos desejos. Esta a dedução do raciocínio, que não pode descobrir que se deve amar o próximo, pois amar o próximo não é razoável."
CAPÍTULO XIII
Levine recordou uma cena recente entre Dolly e os filhos. Estes, tendo ficado sozinhos certo dia, principiaram a cozinhar framboesas dentro de uma chávena, que chegavam ao pavio de uma vela enquanto ingeriam golos de leite. Ao surpreender as crianças nesta brincadeira. Dolly pusera-se a explicar-lhes, na presença de Levine, quanto trabalho custava aos adultos prepararem o que eles destruíam. Dissera-lhes que tudo aquilo era feito para elas, que, se partissem as chávenas, não teriam onde tomar o chá e, se entornassem o leite, ficariam sem comer, morrendo de fome.
Levine ficou surpreendido com a serena incredulidade com que as crianças ouviram a mãe. Apenas pareciam lamentar que ela tivesse interrompido a sua brincadeira, não acreditando numa só palavra do que ela estava a dizer. E não acreditavam nela porque não podiam imaginar a magnitude de tudo o que desfrutavam nem eram capazes de compreender estarem a destruir o que a vida lhes proporcionava.
"Todas essas coisas vêm de per si", pensava, "não têm nada de interessante nem são importantes, porque sempre existem e existiram. É sempre o mesmo. Não temos de pensar nisso, tudo está em ordem. Queremos inventar por nós qualquer coisa nova e ao nosso estilo, Inventamos deitar framboesas numa chávena e cozê-las ao pavio de uma vela, inventamos deitar leite na boca uns dos outros, como se se tratasse de uma fonte. É uma coisa divertida, nova, e não é pior do que beber leite pelas chávenas.
"Porventura não fazemos nós o mesmo? Porventura não era o que eu fazia ao procurar, pela razão, o significado das forças da Natureza e o sentido da vida do homem?
"Não fazem o mesmo todas as teorias filosóficas, levando o homem, através do pensamento, que lhe é estranho, que lhe não é próprio, ao conhecimento do que sabe há muito e sem o que não poderia viver? Não se vê claramente, através do desenvolvimento da teoria de cada filósofo, que todos eles conhecem de antemão, tal qual o camponês Fiodor, o verdadeiro sentido da vida e que só procuram regressar, por caminhos equívocos, ao que todos sabem?
"Se se deixasse que as crianças adquirissem por si aquilo de que necessitam, se tivessem de ser elas a preparar a louça em que comem e a ordenhar as vacas que lhes dão o leite continuariam a fazer travessuras? Morreriam de fome. Se nos deixarem com as nossas paixões e pensamentos privados da ideia de um Deus único e criador, ou sem a ideia do bem, e sem nos explicarem o mal moral, nada podemos edificar de sólido. Se estamos ávidos de destruir é porque, à semelhança das crianças, nos encontramos espiritualmente saciados. Somos verdadeiras crianças! De onde procede este meu alegre conhecimento, comum ao camponês, que me proporcionou esta paz de espírito? Onde fui eu buscá-lo?
"Eu, educado como cristão na ideia de Deus, tendo enchido a minha vida dos bens espirituais que me deu o cristianismo, vivendo desses bens sem disso ter consciência, procuro, como aquelas crianças, destruir o que me alimenta. Assim que chegar, porém, uma hora grave da vida, tal qual como essas criaturas quando sentem fome e frio, recorro a Ele e não menos que as crianças, a quem a mãe ralha por causa das suas travessuras infantis, sinto que não se têm em conta os seus intentos de fazer tolices.
"O que sei não me foi revelado pelo pensamento, mas pelo coração, pela fé no que ensina a Igreja.
"A Igreja? A Igreja!", repetiu Levine, mudando de posição e apoiando-se num braço. Em seguida pôs-se a olhar para longe, para um rebanho que descia a encosta pela outra margem do rio.
"Mas poderei eu crer em tudo o que a Igreja ensina?", pensou, como que a experimentar-se, procurando algo que pudesse destruir a sua serenidade actual. "A propósito", principiou, recordando, precisamente, aquelas doutrinas da Igreja que sempre lhe haviam parecido estranhas e o atraiam. "A criação? Como explicava eu a minha própria existência? Pela própria existência? E o Diabo e o pecado? E como explicava eu o mal?... A redenção?
"Mas nada sei e nada posso saber se não o que a todos foi revelado!" Agora afigurava-se-lhe que não existia doutrina da Igreja que destruísse o essencial: a fé em Deus e no bem como destino único do homem. Cada doutrina da Igreja podia ser substituída pela crença no serviço da verdade em lugar do serviço das necessidades. E não só nenhum dogma destruía isto como era necessário, para que se levasse a cabo o milagre fundamental que constantemente se apresenta na terra e que consiste em tornar possível a todos os homens, a milhões de pessoas diferentes, sábios e bem-aventurados, crianças e velhos, ao camponês, a Lvov, a Kitty, a reis e mendigos, compreenderam sem vacilar e ordenarem a vida da alma, a única que vale a pena viver, a única que apreciamos.
Deitado de costas, olhava para o céu alto, sem nuvens. "Porventura não sei que isto é o espaço infinito e não uma abóbada? Mas, por mais que pisque os olhos e que aguce a vista, não posso deixar de ver este espaço como uma abóbada e algo de limitado, e apesar dos meus conhecimentos sobre o espaço infinito, tenho razão quando vejo essa abóbada azul sólida e ainda mais quando me esforço para ver mais para além." Levine deixou de pensar e parecia apenas atento a umas vozes misteriosas que falavam entre si com alegria e inquietação.
"Será isto a fé?", perguntou a si mesmo, sem querer acreditar na felicidade que sentia. "Obrigado, meu Deus!", murmurou, sufocando os soluços que lhe subiam à garganta e enxugando com ambas as mãos as lágrimas que lhe inundavam os olhos.
CAPÍTULO XIV
Levine olhava em frente, observando o rebanho. Entretanto reconhecera no carro que surgia ao longe a telega de casa, puxada pelo Voronoi, e o cocheiro da quinta, que, ao chegar junto ao rebanho, se dirigiu ao pastor. Daí a pouco ouvia perto de si o ruído das rodas e os relinchos do belo cavalo. Tão absorto estava, porém, nos seus pensamentos, que nem sequer lhe acudiu perguntar que vinha ali fazer o cocheiro. Isso apenas lhe ocorreu quando ele, já a seu lado, lhe dizia:
- A senhora mando-o buscar. Chegou o irmão do senhor com um amigo.
Levine subiu para a telega e pegou nas rédeas.
Como se acabasse de acordar, levou tempo a compreender o que estava a passar-se à sua roda. Olhava para o belo cavalo, que tinha os flancos e o pescoço, entre as rédeas, cobertos de espuma, e para o cocheiro Ivan, sentado a seu lado, lembrando-se de que esperava efectivamente a chegada do irmão, de que naturalmente a mulher estaria inquieta com aquela sua longa ausência, e procurava adivinhar quem seria o desconhecido que chegara. Tanto o irmão como Kitty e o hóspede se lhe apresentavam agora sob um aspecto distinto. Afigurava-se-lhe que as suas relações com os outros teriam de ser diferentes de ora avante.
"Já não haverá entre mim e meu irmão a separação que sempre tem existido entre nós; nunca mais discutiremos; não mais me zangarei com a Kitty; mostrar-me-ei amável e bom para com o convidado, seja quem for; e igualmente para com os criados e para com Ivan: tudo será diferente." De rédeas tensas, refreando o cavalo que bufava, impaciente, como se pedisse que o deixassem correr à vontade, Levine relanceara a vista para Ivan, que, nada tendo que fazer com as mãos, agarrava a camisa, tufada pelo vento. Procurou um pretexto para lhe dirigir a palavra; quis dizer-lhe que apertara demasiado a barrigueira, mas isso teria parecido uma censura, e o que ele desejava era uma conversa amável. No entanto, não lhe ocorria qualquer outra coisa.
- Faça o favor de guiar pela direita, está ali um tronco - disse- lhe, entretanto, o cocheiro, puxando-lhe a rédea.
- Peço-te que não me toques nem me dês lições! - exclamou Levine, irritado com a intervenção de Ivan.
Como de costume, a intervenção do cocheiro indignara-o, e logo se deu conta, penalizado, de que seria errôneo supor que o seu estado de espírito o teria feito mudar perante a realidade da vida.
Quando ainda faltava um quarto de versta para chegar a casa, Levine viu Gricha e Tânia, que corriam ao seu encontro.
- Tio Kóstia! Vem ali a mãezinha, o avozinho, Sérgio Ivanovitch e outro senhor - disseram, trepando para a telega.
- Quem é?
- Um senhor muito feio. Está sempre a fazer assim com as mãos
- replicou Tânia, pondo-se de pé para imitar Katavassov.
- É velho ou novo? - perguntou Levine, rindo, pois os gestos de Tânia lhe lembravam alguém conhecido.
"Desde que não seja alguém antipático", pensou. Quando chegaram à curva da estrada e viram o grupo que caminhava ao encontro da telega, Levine reconheceu Katavassov, com o seu chapéu de palha, que vinha agitando os braços, tal qual como na imitação de Tânia.
Katavassov gostava muito de falar de filosofia, embora tivesse dessa matéria aquelas vagas noções dos "cientistas", que, em geral, se não dedicam a tais assuntos. Em Moscovo, nos últimos tempos, Levine discutira muito com ele problemas desses.
A primeira coisa de que se lembrou ao reconhecê-lo de longe foi uma dessas discussões em que Katavassov julgara levar a melhor.
"Não discutirei nem exporei os meus pensamentos à ligeira, por nada desta vida", pensou.
Apeou-se da telega e depois de cumprimentar o irmão e Katavassov, perguntou por Kitty.
- Ficou na mata com o Mitia - respondeu Dolly. - Estava muito quente em casa.
Levine aconselhava sempre Kitty a que não levasse a criança para a mata, coisa que lhe parecia imprudente. E a noticia contrariou-o.
- Anda sempre com ele de um lado para o outro - disse o príncipe, sorrindo. - Aconselhei-a a que não experimentasse a geleira.
- Pensava ir ter com vocês ao colmeal. Supunha-te lá - disse
Dolly.
- Então, e tu que fazes? - perguntou Sérgio Ivanovitch ao irmão, separando-se dos outros e aproximando-se dele.
- Nada de especial. Como sempre, aqui ando nos trabalhos da quinta - tornou-lhe Levine. - Vens com demora? Há muito que te esperávamos.
- Umas duas semanas. Tenho muito que fazer em Moscovo. Ao dizer estas palavras, os olhos dos dois irmãos encontraram-se. Apesar do constante desejo, naquele momento particularmente intenso, de manter relações amistosas com o irmão, e sobretudo simples, Levine sentiu que lhe desagradava olhá-lo. Baixou os olhos sem saber que dizer. Procurando temas de conversa agradáveis ao irmão e que os afastassem dos assuntos bélicos da Sérvia e da questão eslava, coisas a que ele aludira ao referir-se às suas ocupações de Moscovo, Levine principiou a falar do livro de Sérgio Ivanovitch.
- Que tal? Têm aparecido críticas ao teu livro? - perguntou-lhe. Sérgio Ivanovitch sorriu perante a premeditada pergunta.
- Ninguém falou dele, e eu menos do que ninguém - disse. - Olhe, Daria Alexandrovna, vai chover - acrescentou, apontando, com o guarda-chuva, umas nuvens brancas que se acastelavam por cima da copa dos álamos.
Aquelas palavras foram o suficiente para que se restabelecesse de novo entre os dois irmãos aquele trato não precisamente hostil, mas frio, que Levine tanto desejaria evitar.
- Ainda bem que teve a boa ideia de aparecer por aqui! - disse Levine a Katavassov.
- Há muito que me dispunha a fazê-lo. Agora poderemos discutir. Leu o Spencer?
- Não, não acabei - replicou Levine. - E, por outro lado, já não preciso de o ler.
- Por quê? É muito interessante!
- Persuadi-me de que não encontraria a solução das questões que me interessam nem nele nem em outros como ele. Agora...
Mas a expressão jovial e serena de Katavassov surpreendeu-o. Teve pena de perturbar o estado de espírito em que ele se encontrava, e, lembrando-se dos seus bons propósitos, deteve-se.
- Bom, falaremos disso depois. Se querem ir ao colmeal, vamos por aqui, por este atalho - acrescentou, dirigindo-se aos outros.
Entrando pelo atalho estreito, alcançaram um campo por ceifar, coberto de margaridas de cores muito vivas e onde cresciam arbustos de heléboro verde-escuros. Levine instalou os companheiros nos bancos e troncos ali colocados, à sombra dos álamos novos, para os visitantes que tinham medo das abelhas, dirigindo-se ao colmeal na intenção de trazer pão, pepinos e mel fresco.
Procurando não fazer movimentos bruscos e atento às abelhas que cruzavam os ares cada vez mais amiúde, seguiu pelo atalho direito à isbá. Junto à porta uma abelha zumbiu, enredou-se-lhe nas barbas. Mas Levine logo a ajudou cautelosamente a desprender-se. Ao penetrar no vestíbulo, pegou na máscara dependurada na parede, pô-la na cara e metendo as mãos nos bolsos penetrou no colmeal. Em filas regulares, firmes em estacas, lá estavam, num campo ceifado, as colméias velhas. Cada uma delas tinha a sua história, que Levine conhecia ponto por ponto. Ao largo da cerca que rodeava o colmeal, alinhavam-se as novas colméias instaladas nesse Outono. A entrada de cada uma delas revoluteavam nuvens de insectos, sempre no mesmo sítio. As obreiras passavam voando, umas em direcção à mata, a caminho das tílias em flor, outras de regresso às colméias carregadas de pólen. Ouviam-se constantemente os diversos sons do enxame das obreiras, que voavam diligentes, dos ociosos zangãos e das abelhas guardiãs, que defendiam do inimigo que era seu. Num extremo da cerca, o velho guarda, entretido a aplainar uma tábua, não dera por Levine. Este não o chamou e deteve-se no meio do colmeal.
Gostava daquela oportunidade para estar só. Queria recordar-se do que em tão pouco tempo alterara por completo o seu estado de espírito.
É certo que já tivera tempo de se irritar com o Ivan, de mostrar frieza ao irmão e de falar com ligeireza a Katavassov...
"Será possível que se trate apenas de um estado de espírito momentâneo, que irá passar sem deixar rasto?"
Naquele momento, porém, voltando ao estado de espírito anterior, sentiu com júbilo que algo de novo e importante se operara nele. A realidade apenas alterara momentaneamente a paz que alcançara. Esta continuava íntegra.
Assim como o distraíam e o privavam de uma completa paz as abelhas à sua roda, ameaçando-o e obrigando-o a encolher-se para as evitar, também as preocupações que o tinham assaltado no momento em que subira para a telega lhe haviam privado a alma de tranqüilidade. Mas fora apenas enquanto estivera no meio daquela gente. Apesar de o incomodarem as abelhas, mantinha as suas forças físicas. Era o mesmo com a consciência da sua força espiritual.
CAPÍTULO XV
- Kóstia, sabes com quem vinha no comboio Sérgio Ivanovitch?
- perguntou Dolly, depois de distribuir pelas crianças pepinos e mel. - Com Vronski! Vai para a Sérvia!
- E não vai só, leva um esquadrão pago do seu bolso - acrescentou Katavassov.
- Fica-lhe muito bem. Mas ainda continuam a seguir voluntários? - perguntou Levine, fitando Sérgio Ivanovitch.
Este não lhe respondeu, ocupado que estava a retirar, de uma chávena, cuidadosamente, com a ponta de uma faca, uma abelha ainda viva, que ficara pegada a um pedaço de mel.
- Essa agora! Se tivessem visto como a estação estava ontem! - disse Katavassov, mastigando, ruidosamente, um pedaço de pepino.
- Como é que isso se entende? Por Deus, Sérgio Ivanovitch, explique-me para onde vão esses voluntários e contra quem é que lutam
- perguntou o velho príncipe, continuando, ao que parecia, um" conversa encetada na ausência de Levine.
- Contra os Turcos - ripostou Sérgio Ivanovitch, sorrindo tranqüilamente.
Conseguira retirar a abelha, negra de mel, que agitava as patinhas, e entretinha-se a colocá-la numa folha de álamo com a ponta da faca.
- Quem declarou a guerra aos Turcos? Ivan Ivanovitch Ragozov, a condessa Lídia Ivanovna e Madame Stahl?
- Ninguém lhes declarou guerra, mas as pessoas têm pena dos sofrimentos dos seus irmãos e procuram ajudá-los - tornou-lhe Sérgio Ivanovitch.
- Não respondes à pergunta do príncipe - disse Levine, tomando o partido do sogro. - Está simplesmente admirado que, sem terem sido autorizados pelo governo, ousem particulares intervir numa guerra.
- Olha, Kóstia, outra abelha. Vão-nos picar, pela certa - exclamou Dolly, enxotando uma vespa.
- Não é uma abelha, é uma vespa - tornou-lhe Levine.
- Por que não hão-de os particulares ter esse direito? Explique-nos a sua teoria - interveio Katavassov, desejoso de fazer falar Levine.
- A minha teoria, aqui a tem: a guerra é uma coisa tão bestial, tão monstruosa, que nenhum cristão, que nenhum homem tem o direito de tomar sobre si a responsabilidade de a declarar. Esse papel cabe aos governos; que, aliás, acabam sempre por conduzir os povos à guerra. Trata-se de uma questão de Estado, de uma dessas questões em que os cidadãos abdicam de toda a vontade pessoal. À falta de ciência, o bom senso, eis quanto bastava para o demonstrar.
Sérgio Ivanovitch e Katavassov tinham respostas prontas.
- Nisso está enganado, meu caro - disse, em primeiro lugar este último. - Quando um governo não atende à vontade dos cidadãos, cabe a estes impô-la.
Sérgio Ivanovitch parecia não apreciar muito a objecção.
- Tu não formulas a questão como deve ser - disse ele, franzindo o sobrolho. - Não se trata, neste caso, de uma declaração de guerra, mas de uma demonstração de simpatia humana, cristã. Estão a assassinar os nossos irmãos, irmãos de raça e religião, estão a chacinar mulheres, velhos e crianças. Isso provoca a indignação do sentimento de humanidade do povo russo, que corre em auxílio desses desgraçados. Supõe que vês na rua um bêbedo a espancar uma mulher e uma criança. Começarás tu, porventura, antes de correres em auxílio deles, por te informares se declararam guerra àquele indivíduo?
- Não, mas também não o mataria a ele.
- Claro que o matarias.
- Não sei. Talvez o matasse arrastado pelas circunstâncias de momento, mas o que eu nunca faria era entusiasmar-me com a defesa dos Eslavos.
- Não somos todos da mesma opinião - replicou Sérgio Ivanovich, pouco satisfeito. - O povo não esquece facilmente os irmãos ortodoxos que sofrem sob o jugo dos infiéis. E foi o povo quem fez ouvir a sua voz.
- Talvez - disse Levine, evasivamente. - Mas eu não vejo as coisas assim. Também eu pertenço ao povo e não sinto da mesma maneira.
- É o que acontece comigo - interveio o príncipe. - Durante a minha estada no estrangeiro, li os jornais que me revelaram, antes dos horrores da Bulgária, o amor súbito que se apoderou, ao que parece, da Rússia inteira pelos seus irmãos eslavos, e a verdade é que eu não sentia nem sinto nada por eles. Apoquentava-me muito essa ideia e supunha-me um monstro, ou que Karlsbad exercia má influência sobre mim. Mas a verdade é esta, que quando aqui cheguei fiquei tranqüilo, pois pude verificar que não estava só. Havia muito mais gente que apenas se interessava pela Rússia, não pelos seus irmãos eslavos. Por exemplo, o Constantino.
- As opiniões pessoais não significam nada - replicou Sérgio Ivanovitch. - As opiniões pessoais não interessam nada quando a Rússia inteira, todo o povo, manifestou a sua vontade.
- Perdoe-me, mas não é isso que eu vejo. O povo nem sequer sabe de que se trata - objectou o príncipe.
- Não, pai... Que está a dizer? Lembre-se de domingo, na igreja
- interveio Dolly, que seguia a conversa. - Faça favor, deixe ver esse guardanapo - disse para o velho guarda que contemplava as crianças, sorrindo. - Não é possível que toda essa gente...
- Que sucedeu no domingo na igreja? Mandaram o padre ler aquilo e foi o que ele fez. Os fiéis não entenderam nada e limitaram-se a suspirar, como quando ouvem um sermão - continuou o príncipe. - Depois disseram-lhe que iam fazer uma colecta para uma boa obra. E todos puxaram do seu copeque e entregaram-no, sem saberem muito bem para quê.
- O povo não pode ignorar o seu destino. Tem a intuição disso e em momentos como este comprova-o - disse Sérgio Ivanovitch, fitando o velho guarda com intenção.
O arrogante velho, de barbas pretas encanecidas e espessos cabelos prateados, permanecia imóvel, tendo na mão o jarro de mel. Olhava para os amos do alto da sua estatura com expressão tranqüila e doce, naturalmente sem compreender nem querer compreender nada.
- Assim é - assentiu, movendo a cabeça, significativamente, ao ouvir as palavras de Sérgio Ivanovitch.
- Pergunta-lhe. E verás como nada sabe nem tem opinião - disse Levine, e acrescentou, dirigindo-se ao velho: - Ouviste falar da guerra, Mikailitch? Falaram nisso na igreja. Que achas tu? Devemos lutar para defender os cristãos?
- Que havemos nós de dizer? O imperador Alexandre Nikolaievitch, que pensa por nós em todos os outros assuntos, também resolvera este. Para ele é mais fácil... Querem que lhes traga pão? O menino quer mais? - perguntou, dirigindo-se a Daria Alexandrovna e apontando para Gricha, que acabava de comer uma côdea.
- Que necessidade temos nós de o interrogar - disse Sérgio Ivanovitch -, quando estamos a ver centenas de homens tudo abandonarem para irem servir uma causa justa? Vêm de todos os cantos da Rússia. Uns sacrificam os seus últimos copeques, os outros alistam-se, e todos sabem claramente a que motivos obedecem. São capazes de me dizer que isto não significa nada?
- Na minha opinião - replicou Levine, que principiava a animar-se - isso apenas significa que num povo de oitenta milhões de habitantes se encontram sempre, não já apenas centenas, mas dezenas de milhares de homens que perderam a sua posição social, gente de vida desordenada, pronta a alistar-se na primeira aventura, quer se trate de seguir Pugatchov ou para a Sérvia ou para Kiva, ou seja lá para onde for.
- Já te disse que não se trata de centenas, nem de gente sem rei nem roque, mas dos melhores representantes do povo - disse Sérgio Inanovitch, muito irritado, como se defendesse os seus derradeiros haveres. - E os donativos? Nisso todo o povo exprime a sua vontade.
- A palavra "povo" é tão indefinida... - arguiu Levine. - Os escriturários das câmaras, os mestres-escola e talvez um camponês em mil saibam do que se trata. Mas os restantes oitenta milhões, como, por exemplo, Mikailitch, não só não exprimem a sua vontade, como não têm sequer a menor ideia de que o devam fazer. Com que direito dizemos nós que é a vontade do povo?
CAPÍTULO XVI
Hábil dialecta, Sérgio Ivanovitch, sem responder, conduziu a conversa para outro terreno.
- É evidente que não dispondo do sufrágio universal, o qual, aliás, nada prova, não nos será possível conhecer, aritmèticamente, a opinião do país; mas existem outros meios de apreciação. Não me refiro a essas correntes subterrâneas que agitam as águas até aí estagnadas do oceano popular, claras para qualquer homem sem prevenção. Considero a sociedade no sentido estrito da palavra. Os partidos mais diversos do mundo intelectual, tão hostil uns aos outros anteriormente, fundiram-se num só. As discórdias acabaram, todos os jornais são da mesma opinião. Todos compreenderam a força titânica que os envolve e os arrasta na mesma direcção.
- É o que os jornais dizem sempre - objectou o príncipe. - Realmente! Parecem rãs antes de uma tempestade! Os gritos deles é que não deixam ouvir nada.
- Não sei se são rãs ou não são; não publico nem me proponho defendê-los. Falo apenas da unanimidade de opinião nos meios esclarecidos - disse Sérgio Ivanovitch, dirigindo-se ao irmão.
Levine ia responder, mas o velho príncipe adiantou-se-lhe.
- Essa unanimidade tem sem dúvida a sua razão de ser. Aí têm, por exemplo, o meu caro genro Stepane Arkadievitch, que acaba de ser nomeado membro de não sei que comissão... Uma pura sinecura, não é segredo para ninguém, Dolly, com oito mil rublos de vencimento! Perguntem, pois, a esse homem de boa fé o que pensa ele do referido lugar: demonstrar-lhes-á que não há outro mais necessário. E trata-se de um homem que fala verdade: a verdade é esta, não pode deixar de estar convencido da utilidade de oito mil rublos!
- Ah! Sim, Stepane Arkadievitch pediu-me que comunicasse a Daria Alexandrovna que conseguira o lugar - disse Sérgio Ivanovitch, nada satisfeito, pois lhe pareceram pouco oportunas as palavras do príncipe.
- É o que acontece com a unanimidade de opiniões nos jornais. Ouvi dizer que em tempo de guerra vendem o dobro dos exemplares. É muito natural que ponham acima de tudo o instinto nacional, os irmãos eslavos e o que mais lhes vier à cabeça!
- Não sou muito afeiçoado aos jornais, mas parece-me injusto, meu príncipe - disse Sérgio Ivanovitch.
- Afonso Karr dava no alvo quando, antes da guerra franco-prussiana, propunha aos partidários da guerra que formassem a primeira linha e que fossem eles que suportassem os primeiros tiros.
- Que linda figura haviam de fazer os nossos jornalistas! - exclamou Katavassov, soltando uma grande gargalhada, ao visionar alguns redactores seus conhecidos nessa legião selecta.
- Deitariam a fugir - disse Dolly. - Só serviriam de estorvo.
- Se fugirem, que disparem contra eles ou que os ponham sob a vigilância de cossacos armados de chicotes - argüiu o príncipe.
- Perdoe-me, príncipe, mas isso não passa de um gracejo e um gracejo de mau gosto - observou Sérgio Ivanovitch.
- Não acho que seja mau gracejo... - quis dizer Levine, mas o irmão interrompeu-o.
- Cada membro da sociedade tem os seus deveres a cumprir - declarou ele - e os homens que pensam têm o seu papel: darem expressão à opinião pública. A unanimidade desta opinião é um sintoma feliz que é preciso inscrever no activo da imprensa. Há vinte anos o povo ter-se-ia calado; hoje em dia, pronto a sacrificar-se, a levantar-se como um só homem para salvar os seus irmãos, deixa ouvir a sua voz unânime. É um grande passo em frente, uma prova de força.
- Perdão - insinuou timidamente Levine -, não se trata apenas de um sacrifício, mas de matar turcos. O povo está sempre pronto a muitos sacrifícios quando se trata da sua alma, mas não de matar - acrescentou, relacionando involuntariamente aquela conversa com as ideias que o preocupavam.
- A que chama alma? Para um naturalista, alma é um termo assaz impreciso. Que vem a ser a alma? - perguntou Katavassov, sorrindo.
- Bem sabe o que eu quero dizer.
- Garanto-lhe que não faço a mínima ideia - replicou Katavassov, com uma gargalhada sonora.
- "Vim trazer não a paz, mas o gládio", disse Cristo - observou, por sua vez, Sérgio Ivanovitch, citando, como se se tratasse da coisa mais clara desta vida, um dos passos do Evangelho, que mais perturbara Levine.
- É verdade - repetiu o velho guarda, que estava junto deles, respondendo ao olhar que casualmente lhe dirigiu Kosnichev.
- Aqui o temos derrotado, derrotado por completo - exclamou Katavassov, alegremente, para Levine.
Este corou, incomodado, não por se sentir derrotado, mas por não ter sabido dominar-se, evitando a discussão.
"Não, não devo discutir com eles", pensou. "Eles usam uma couraça impenetrável e eu estou nu."
Não lhe parecia possível convencer o irmão e Katavassov e ainda lhe parecia mais difícil vir a estar de acordo com eles. O que fazia era apregoar esse orgulho de espírito que estivera a ponto de o perder. Como podia ele admitir que um grupo de homens, entre os quais o irmão, se arrogasse o direito de representar, com os jornais, a vontade da nação, quando era certo que essa vontade exprimia, por assim dizer, um sentimento de vingança e de assassínio e quando tudo que tinha por certo assentava em narrativas suspeitas de algumas centenas de fala-barato à procura de aventuras? O povo, no seio do qual vivia, de que tinha a consciência de fazer parte, não confirmava de maneira alguma qualquer destas afirmações. Aliás, também em si próprio não as via confirmadas: tal como o povo, ignorava em que consistia o bem comum, embora soubesse perfeitamente que o não podemos alcançar pela estrita observação dessa lei moral inscrita no coração de todos os homens.
Eis por que não podia preconizar a guerra, por mais generoso que fosse o seu objectivo. Era da opinião de Mikailitch, o que expressava o sentir de todo o povo, e representava muitíssimo bem a tradição relativa ao apelo aos Varengos: "Reinai e governai; prometemo-vos alegremente uma obediência completa. Tomamos para nós os penosos trabalhos e os pesados sacrifícios, mas a vós compete julgar e decidir." Seria possível acreditar, de acordo com o que dizia Sérgio Ivanovitch, que o povo tivesse renunciado a um direito comprado por tão elevado preço?
Teria gostado de dizer, demais, que, se a opinião pública é juiz infalível, porque não seriam a revolução e a comuna tão legítimas como o movimento em prol dos Eslavos? A verdade, porém, é que eram pensamentos que não duram nada. Só uma coisa era evidente: que naquele momento a discussão irritava Sérgio Ivanovitch e que por isso mesmo não seria bom discutir. Levine não falou mais; limitou-se a chamar a atenção dos seus hóspedes para as nuvens, dizendo-lhes que lhe parecia mais prudente voltarem para casa.
CAPÍTULO XVII
O príncipe e Sérgio Ivanovitch subiram para a telega e foram-se embora, enquanto os demais, acelerando o passo, empreenderam o regresso a pé. Mas as nuvens cada vez obscureciam mais o céu, acastelando-se com tal rapidez que lhes foi preciso apressarem ainda mais o andar para chegarem antes que principiasse a chover. As nuvens dianteiras, baixas e negras, como fuligem, corriam pelo céu com extraordinária velocidade. Ainda faltavam uns duzentos passos para chegarem a casa, já se levantara o vento e um aguaceiro ia cair de um momento para o outro. As crianças corriam adiante, gritando, entre assustadas e alegres. Daria Alexandrovna, embaraçada com as saias, que se lhe enrodilhavam nas pernas, já não andava, corria também, sem perder os filhos de vista. Os homens avançavam em grandes passos, segurando os chapéus. Já estavam perto do alpendre quando principiaram a cair grandes gotas, que vieram esparrinhar-se contra a goteira. Crianças e adultos abrigaram-se sob o telhado tagarelando alegremente.
- Onde está Catarina Alexandrovna? - perguntou Levine à governanta, que vinha ao seu encontro, no vestíbulo, com xales e mantas de viagem.
- Julgávamos que estava com os senhores.
- E Mitia?
- No Kolok, a criada deve estar com eles.
Levine pegou numa das mantas e correu para a mata.
Nesse breve intervalo de tempo, as nuvens haviam encoberto o Sol, escurecera como quando de um eclipse. O vento arremetia contra Levine, tenaz, como se lhe quisesse arrebatar a manta que ele levava, arrancava as folhas e as flores das tílias, despojando, sem piedade, os ramos brancos das bétulas, vergando tudo para o mesmo lado: acácias, flores, sebes, ervas e copas das árvores. As raparigas que trabalhavam no jardim passaram, correndo e gritando, a refugiar-se na dependência dos criados. A branca cortina de chuva torrencial cobria já toda a longínqua mata e metade do campo mais próximo e avançava rapidamente sobre Kolok. Sentia-se no ar a humidade da chuva que se fragmentava em gotas minúsculas.
Todo inclinado para diante, em luta com o vento que lhe arrebatava a manta das mãos, Levine aproximou-se da mata. Já distinguia qualquer coisa alvejando junto a um roble, quando, de repente, tudo se inflamou, a terra inteira se incendiou e foi como se a abóbada celeste se lhe rachasse por cima da cabeça. Ao abrir os olhos, momentaneamente cegos, Levine viu, horrorizado, através do espesso véu de chuva que o separava agora de Kolok, que a copa do roble que ele conhecia tão bem, e que ficava no centro da mata, mudara estranhamente de posição. "Será possível que lhe tenha caído em cima?", pensou. E logo em seguida, num movimento cada vez mais acelerado, a copa do roble desapareceu por detrás de outras árvores e ressoou-lhe aos ouvidos o estrondo da árvore que caía.
A cintilação do relâmpago, o estrondo e o arrepio que lhe percorreu todo o corpo foram simultâneos. Um medo horroroso o tomou.
- Meu Deus! Meu Deus! Que não-tenha caído em cima deles! - exclamou.
E conquanto tivesse, sentido, acto contínuo, quanto era absurda aquela súplica tardia, voltou a repeti-la, percebendo instintivamente que não podia fazer outra coisa. Dirigiu-se para o local da mata onde Kitty costumava ficar. Não a encontrou. Entretanto ouviu-a chamar do outro lado do bosque. Correu para aí tão depressa quanto lho permitiam as botas cheias de água, que chapinhavam na lama. E foi então, tendo começado a clarear, que a descobriu, debaixo de uma tília, debruçada, ela e a criada, sobre um carrinho tapado com um guarda-sol verde. Embora a chuva tivesse deixado de cair, ambas permaneciam imóveis, na posição que haviam tomado no princípio da tormenta, procurando proteger a criança o melhor que podiam. O aguaceiro caíra-lhes em cima; a saia da criada ainda estava enxuta, mas o vestido da ama, encharcado, colava-se-lhe ao corpo. Na cabeça, o chapéu perdera a forma. Kitty voltou para Levine o rosto afogueado, a escorrer água, onde pairava um sorriso tímido.
- Sãos e salvos, louvado seja Deus! - exclamou Levine, patinhando na terra encharcada com as botas cheias de água. - Que imprudência, parece impossível! - gritou fora de si.
- Juro-te que não tive a culpa, íamos voltar para casa, quando nos vimos obrigados a mudar-lhe as fraldas. Era preciso... e foi então... - desculpou-se Kitty.
- Graças a Deus! Nem sei o que digo - confessou ele.
Pegaram na roupa encharcada. A criada retirou a criança do carrinho e com ela ao colo foram andando.
Ao lado de Kitty, Levine, arrependido de se ter irritado, apertava-lhe o braço às escondidas da criada.
CAPÍTULO XVIII
Apesar da decepção que experimentara ao verificar que aquela sua regeneração moral em nada lhe modificara o carácter, nem por isso Levine deixou de sentir, durante todo o dia, no meio das conversas mais variadas, conversas em que apenas parecia participar a parte exterior da sua inteligência, uma plenitude de coração que o enchia de contentamento.
Depois do jantar, conquanto a chuva houvesse parado, a humidade e o risco de novo aguaceiro impediram-nos de sair. Todavia, passaram o resto da jornada em casa bastante alegres e sem qualquer outra discussão. Ao princípio Katavassov fez rir as senhoras com os seus gracejos originais, que tanto agradavam sempre àqueles que o conheciam pela primeira vez; logo em seguida, contudo, provocado por Sérgio Ivanovitch, falou sobre as suas interessantíssimas observações acerca da vida, das diferenças de caracteres e da fisionomia de machos e fêmeas das moscas caseiras.
Sérgio Ivanovitch também estava alegre. Durante o chá, instado pelo irmão, expôs as suas ideias acerca do futuro do problema oriental, e tão bem as expôs e de maneira tão simples que todos o ouviram com satisfação. Kitty foi a única que não o pôde escutar até ao fim: chamaram-na para dar banho ao Mitia. Daí a pouco tempo, também Levine era chamado ao quarto do filho. E inquieto, pois só o costumavam chamar em casos importantes, foi até lá.
Apesar do plano de Sérgio Ivanovitch - que Levine não acabara de ouvir - a respeito da importância que teria para a Rússia a emancipação de quarenta milhões de eslavos, início de uma nova era na história, coisa que muito interessava Levine, e se lhe afigurava algo de completa-mente novo, não obstante a curiosidade e a preocupação que lhe causara o facto de o terem chamado, logo que se viu só, assim que saiu do salão, lembrou-se das ideias que tivera essa manhã. E acto contínuo todas essas considerações acerca da importância do elemento eslavo na história universal lhe pareceram tão insignificantes em comparação com o que se lhe passava na alma que tudo esqueceu, abandonando-se ao estado de espírito anterior.
Agora já não recordava como até aí o processo das suas ideias. Não era preciso. Imediatamente se afundou no sentimento que o dominava e se relacionava com essas ideias, verificando ser esse o sentimento mais intenso e definido do que nunca. Agora não lhe sucedia o que costumava acontecer-lhe quando procurava maneira de se inquietar e lhe era necessário restabelecer todo o processo dos seus pensamentos em busca disse sentimento. Pelo contrário, a sensação de alegria e serenidade era mais viva que anteriormente e os pensamentos não lhe podiam acompanhar o sentimento.
Seguia pela varanda além, com os olhos em duas estrelas que já cintilavam no céu crepuscular quando, subitamente, lembrou o seguinte: "Ao olhar para o céu, pensando que a abóbada celeste não era a realidade, algo deixei por esclarecer, escondi qualquer coisa de mim próprio. Mas de qualquer forma, não pode haver objecção. Tudo se esclarecerá quando voltar a pensar nisso."
Ao penetrar no quarto do filho, lembrou-se do que de si mesmo escondera: se a principal prova da divindade se traduz na revelação do bem, porque se limita apenas à Igreja cristã essa revelação? Que relações têm com semelhante revelação a crença dos budistas e a dos maometanos, que, outrossim, pregam e praticam o bem?
Levine julgava possuir a resposta para isso, mas antes de ter tempo de a expor entrou no quarto. Kitty, de mangas arregaçadas, permanecia ao lado da banheira do filho, mas, ao ouvir os passos do marido, virou para ele o rosto, chamando-o. Com uma das mãos amparara a cabeça de Mitia, que, de barriguinha para o ar, agitava os pèzinhos na água; com a outra espremia a esponja ritmicamente.
- Chega aqui! Olha para ele! - disse, quando Levine se aproximou. - Agáfia Mikailovna tem razão: já conhece as pessoas.
Evidentemente, nesse dia Mitia principiara a reconhecer os que o rodeavam.
Voltaram a fazer uma experiência diante de Levine, experiência que obteve êxito completo. A cozinheira, a quem haviam chamado especialmente para esse efeito, inclinou-se para a criança, franziu as sobrancelhas e abanou a cabeça. Porém, quando Kitty fez a mesma coisa um sorriso radiante iluminou a carinha de Mitia, que pousou as mãozinhas na esponja, produzindo com os lábios um ruído de estranho contentamento. Não só se entusiasmaram com isso Kitty e a criada, mas o próprio Levine.
Retiraram a criança da água, que gritava desesperadamente, espremeram-lhe a esponja em cima, envolveram-na num lençol e quando acabaram de a limpar entregaram-na à mãe.
- Ainda bem que começas a gostar dele - disse Kitty para o marido, logo que se sentou tranqüilamente no lugar do costume e deu o peito a Mitia. - Estou muito contente, principiava a afligir-me. Dizias que não sentias nada por ele.
- Exprimia-me mal. Apenas queria dizer que me causou uma decepção.
- Quê? A criança decepcionou-te?
- Estava à espera que ele me revelasse um sentimento novo e pelo contrário, só me inspirou, de princípio, piedade e desgosto...
Enquanto enfiava de novo nos dedos os anéis que tirara para dar banho a Mitia, Kitty ouvia o marido com uma atenção concentrada.
- Sim, piedade e temor, também... Foi só hoje, durante a. tempestade, que eu compreendi quanto gostava dele. Kitty sorriu, radiante.
- Assustaste-te muito? - inquiriu ela. - Eu também, e agora, que tudo passou, ainda sinto mais medo. Hei-de ver o roble. Que simpático o Katavassov! Apesar de tudo, passámos muito bem o dia. E tu, quando queres, sabes ser tão bom para o Sérgio Ivanovitch! Vai, vai ter com eles. Depois do banho fica sempre aqui muito calor.
CAPÍTULO XIX
Assim que saiu do quarto da criança e ficou só, Levine lembrou-se imediatamente desse pensamento em que havia algo não esclarecido. Em vez de voltar para o salão, onde se ouviam vozes, deteve-se na varanda e, apoiando-se na balaustrada, fitou o céu.
Já escurecera de todo. Ao sul, onde pousava os olhos, o céu estava claro, as nuvens acastelavam-se no lado oposto. Um relâmpago riscou a abóbada celeste e ao longe ouviu-se um trovão. Levine escutava atentamente as gotas que caíam rítmicas nas tílias do jardim, enquanto contemplava o triângulo de estrelas que lhe era familiar e a Via Láctea que o atravessava pelo meio. De cada vez que cintilava um relâmpago, não só desaparecia a Via Láctea, mas também as estrelas rutilantes. Porém, quando os relâmpagos se desvaneciam, as estrelas tornavam a aparecer no mesmo sítio, como que atiradas por mão certeira.
"Vejamos, que vem a ser isto que me perturba?", perguntou Levine a si próprio, sentindo, no fundo da sua alma, a solução para as suas dúvidas, embora ainda não soubesse qual fosse.
"Sim, a única manifestação evidente e indiscutível da divindade está nas leis do bem, expostas ao mundo pela revelação que sinto dentro de mim e me identifica, quer queira, quer não, com todos aqueles que como eu as reconhecem. É esta congregação de criaturas humanas comungando na mesma crença que se chama Igreja. Mas os judeus, os muçulmanos, os budistas, os confucionistas?", disse para si mesmo, repisando o ponto delicado. "Estarão eles entre milhões de homens privados do maior de todos os benefícios, do único que dá sentido à vida?... Ora vejamos", continuou, após alguns instantes de reflexão, "qual é o problema que eu a mim mesmo estou a pôr? O das relações das diversas crenças da humanidade com a Divindade? É a revelação de Deus no Universo, com os seus astros e as suas nebulosas, que eu pretendo sondar. E é no momento em que me é revelado um saber certo inacessível à razão que eu me obstino em recorrer à lógica!
"Eu bem sei que as estrelas não caminham", prosseguiu, notando a mudança que se operara na posição de um planeta que subia por detrás de uma bétula. No entanto, incapaz de imaginar a rotação da Terra, ao ver as estrelas mudarem de lugar, tenho razão quando digo que elas caminham. Teriam os astrônomos chegado a compreender tudo isto, teriam chegado a calcular alguma coisa se porventura houvessem tomado em consideração movimentos da terra tão variados e complicados? As surpreendentes conclusões a que eles chegaram sobre a distância, o peso, o movimento e as revoluções dos corpos celestes não terão por ponto de partida os movimentos aparentes dos astros em torno da Terra imóvel, estes mesmos movimentos de que eu sou testemunha, como milhões de homens o foram e o serão durante séculos e que sempre podem vir a ser verificados? Pela mesma razão que as conclusões dos astrônomos seriam vãs e inexactas se não fossem deduzidas das observações do céu aparente, em relação a um única meridiano e a um único horizonte, também as minhas deduções metafísicas se veriam privadas de sentido se eu as não fundamentasse neste conhecimento do bem inerente ao coração de todos os homens e de que eu tive, pessoalmente, a revelação, graças ao cristianismo, e que sempre me será dado verificar na minha alma. As relações das outras crenças com Deus continuarão para mim insondáveis, e eu não tenho o direito de as perscrutar.
- Quê, pois tu ainda estás aí? - disse, de súbito, a voz de Kitty, que voltava para o salão. - Não tens nada que te preocupe? - insistiu ela, procurando ler no rosto do marido, à claridade das estrelas. Um relâmpago que atravessou o espaço entremostrou-lho sereno e feliz.
"Ela compreende-me", pensou Levine, vendo-a sorrir. "E bem sabe no que estou a pensar. Devo dizer-lho? Devo."
No momento em que ia falar, Kitty interrompeu-o.
- Faz-me favor, Kóstia - disse ela -, vai dar uma olhadela ao quarto do Sérgio Ivanovitch. Estará tudo em ordem? Ter-lhe-iam posto um lavatório novo? A mim custa-me ir lá.
- Está bem, vou - respondeu Levine, beijando-a.
"Não, é melhor calar-me", decidiu ele, enquanto a mulher entrava no salão. "Este segredo só tem importância para mim, e palavra alguma o poderia explicar. Este novo sentimento não me modificou, não me deslumbrou, nem me tornou feliz, como eu supunha. Sucedeu a mesma coisa com o amor paternal, que não foi acompanhado de surpresa ou de deslumbramento. Devo chamar-lhe fé? Não sei. Sei apenas que me penetrou na alma através do sofrimento e nela se implantou com toda a firmeza.
"Continuarei, sem dúvida, a impancientar-me com o meu cocheiro Ivan, a discutir inutilmente, a exprimir mal as minhas próprias ideias. Sentirei sempre uma barreira entre o santuário da minha alma e a alma dos outros, mesmo a da minha própria mulher. Sempre tornarei Kitty responsável dos meus terrores, arrependendo-me logo em seguida. Continuarei a rezar sem saber porque rezo. Que importa! a minha vida não estará mais à mercê dos acontecimentos, cada minuto da minha existência terá um sentido incontestável. Agora possuirá o sentido indubitável do bem que eu lhe sou capaz de infundir!"
Leâo Tolstoi
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