Infância de Angélique no castelo provinciano
Ama, porque matava Gil de Retz tantas criancinhas? perguntou Angélique.
Para o Demónio, minha filha. Gil de Retz, o monstro de Machecoul, queria ser o senhor mais poderoso do seu tempo. No seu castelo só se viam retortas, frascos e caldeiros cheios de beberagens vermelhas, donde saíam vapores repugnantes. O Diabo exigia que lhe oferecessem em sacrifício corações de criancinhas. Assim começaram os crimes. E as mães, aterradas, apontavam umas às outras, com o dedo, a torre sinistra de Machecoul, rodeada de corvos, tantos eram os cadáveres de inocentes que havia nas masmorras.
Comia-os todos? perguntou Madelon, a irmãzinha de Angélique, com voz trémula.
Nem todos. Não poderia respondeu a ama.
Inclinada sobre o panelão onde o toucinho e as couves coziam lentamente, a mulher mexeu a sopa durante alguns instantes, em silêncio!
Hortense, Angélique e Madelon, as três filhas do barão de Sancé de Monteloup, esperavam, angustiadas, de colher levantada junto das escudelas, a continuação da narrativa.
Fazia pior prosseguiu por fim a narradora, com a voz cheia de rancor. Primeiro levavam à sua presença o pobrezinho ou a pobrezinha assustada, que chamava pela mãe em altos gritos. O senhor, deitado numa cama, saboreava o seu terror. Em seguida mandava pendurar a criança na parede, numa espécie de aparelho de tortura que lhe apertava o peito e o pescoço e a sufocava, mas não de modo a causar-lhe a morte. A criança debatia-se como um frango suspenso, os gritos estrangulavam-se-lhe na garganta, os olhos quase lhe saltavam das órbitas e ficava arroxeada. E na grande sala só se ouviam os risos de homens cruéis e os gemidos da pequena vítima. Então, Gil de Retz mandava tirá-la do aparelho, sentava-a nos joelhos, encostava a cabeça do anjinho ao peito e falava-lhe suavemente, para o acalmar. Dizia ele que aquilo não tinha importância. Tinham-se querido divertir, mas pronto, acabara-se. A criança teria rebuçados, uma boa cama de penas e um fato de seda, como um pajenzinho. O pequenito sossegava e um clarão de alegria brilhava-lhe nos olhos cheios de lágrimas. Então, de repente, o senhor cravava-lhe a adaga no pescoço. Mas o mais horrível acontecia quando apanhava rapariguinhas.
Que lhes fazia? perguntou Hortense.
Nesta altura, o velho Guilherme, sentado ao canto da lareira a desfazer um rolo de tabaco, interveio e resmungou através da barba amarelada:
Calai-vos com isso,.velha louca! Apesar de ser homem de guerra, ainda acabais por me dar volta ao estômago com as vossas patacoadas.
A gorda Fantine Lozier virou-se para ele com vivacidade.
Patacoadas?... Vê-se bem que não sois poitevino, Guilherme Líitzen, já que tão pouco sabeis destas coisas. Mas não precisais de andar muito na direcção de Nantes para encontrar o castelo maldito de Machecoul. Passaram dois séculos desde que os crimes foram cometidos e as pessoas ainda se benzem quando passam por lá. Mas vós não sois da região, não conheceis nada dos antepassados desta terra.
Bonitos antepassados, se são todos como o vosso Gil de Retz!
Gil de Retz era tão grande no mal que nenhuma região além do Poitou se pode gabar de ter tido um criminoso assim. E, quando morreu, depois de julgado e condenado em Nantes, mas reconhecendo a sua culpa e pedindo perdão a Deus, todas as mães a quem comera e torturara os filhos puseram luto.
Essa é forte! exclamou o velho Guilherme.
Pois é, mas nós, gente do Poitou, somos assim. Grandes no mal, grandes no perdão!
A ama colocou com maus modos diversos boiões em cima da mesa e beijou impulsivamente o pequeno Dinis.
É verdade que andei pouco tempo na escola prosseguiu, mas sei distinguir o que são histórias da carochinha e factos dos tempos passados. Gil de Retz foi um homem que existiu realmente. É possível que a sua alma ainda vagueie para os lados de Machecoul, mas o seu corpo apodreceu nesta terra. Por isso, não se pode falar dele levianamente, como se fala das fadas e dos duendes que passeiam à volta das grandes pedras que se erguem nos campos. Embora se não deva troçar muito desses espíritos malignos...
E dos fantasmas, ama, pode-se troçar? perguntou Angélique.
É melhor não troçar, minha queridinha. Os fantasmas não são maus, mas, como, na sua maior parte, são tristes e susceptíveis, para que havemos de aumentar com as nossas troças os tormentos dessas pobres almas?
Porque chora a velha senhora que aparece no castelo?
Sabê-lo-emos algum dia? Da última vez que a encontrei, há seis anos, entre a antiga sala dos guardas e o corredor grande, pareceu-me que já não chorava, talvez devido às preces que o senhor vosso avô mandou fazer em sua intenção na capela.
Ouvi-lhe os passos na escada da torre afirmou Babette, a criada.
Era um rato, com certeza. A velha de Monteloup é discreta e não gosta de incomodar. Seria cega? Há quem pense que sim, por causa da mão que estende para a frente. Ou então procura alguma coisa. Às vezes aproxima-se das crianças, quando estão a dormir, e passa-lhes a mão pela cara.
A voz de Fantine baixava, tornava-se lúgubre.
Talvez procure uma criança morta...
Boa mulher, o vosso espírito é mais macabro do que a presença de um ossário voltou a protestar o Tio Guilherme. É possível que o vosso Sr. de Retz fosse um grande homem de quem vos honreis de ser conterrânea... a dois séculos de distância e que a dama de Monteloup fosse muito respeitável, mas sempre vos digo que não é bom dar volta ao miolo destas crianças e assustá-las a ponto de se esquecerem de encher a barriguinha.
Isso, armai-vos agora em impressionável, soldado grosseiro, atrevido do Diabo! Quantas barríguinhas de criança como estas não trespassastes com o vosso pique quando servíeis o imperador da Áustria nos campos de batalha da Alemanha, da Alsácia e da Picardia? Quantas choupanas não incendiastes depois de fechardes lá dentro toda a família? Nunca enforcastes camponeses? Tantos, tantos, que nem os ramos das árvores podiam com eles e se partiam! E as mulheres e as raparigas, não as violastes até as fazerdes morrer de vergonha?
Como toda a gente, como toda a gente, minha cara. É a vida do soldado. É a guerra. Mas estas pequenitas que vemos aqui nasceram para brincar e ouvir histórias risonhas.
Até ao dia em que os soldados e os bandidos passarem como nuvens de gafanhotos pela região. Nessa altura, a vida das meninas será a vida dos soldados, da guerra, da miséria e do medo...
Ressumando azedume, a ama abria um grande boião de barro cheio de patê de lebre e barrava torradas, que distribuía à sua volta, sem esquecer o velho Guilherme.
Ouvi, meus filhos, ouvi que sou eu, Fantine Lozier, que vos falo... Hortense, Angélique e Madelon, que tinham aproveitado a discussão para rapar as escudelas, voltaram a levantar o nariz e Gontrano, o seu irmãozinho de dez anos, deixou o canto escuro onde se isolara amuado e aproximou-se. Chegara o momento da guerra e das pilhagens, dos soldados e dos bandidos, uns e outros confundidos no mesmo torvelinho rubro dos incêndios, dos tinidos de espadas e dos gritos de mulheres...
Guilherme Lútzen, conheceis o meu filho que é carroceiro do nosso patrão, o barão de Sancé de Monteloup, neste mesmo castelo?
Conheço, é um excelente rapaz.
Muito bem. Pois tudo o que vos posso dizer acerca do seu pai é que pertencia aos exércitos do Sr. Cardeal de Richelieu, quando este foi a La Rochelle para exterminar os protestantes. Eu não era huguenote e sempre rezara à Virgem para me conservar pura até ao casamento. Mas, depois que as tropas do nosso rei cristianíssimo Luís XIII passaram pela região, o menos que se poderá dizer é que já não era virgem. Dei ao meu filho o nome de João Couraça em memória de todos esses diabos, não só porque um deles foi seu pai, mas também porque me rasgaram com as suas couraças cheias de pregos a única camisa que possuía nesse tempo. Quanto aos bandidos e aos vagabundos que a fome tantas vezes atirou para as estradas, poderia manter-vos acordado uma noite inteira a contar-vos o que me fizeram na palha das granjas, enquanto assavam os pés do meu homem na lareira para o obrigarem a confessar onde tinha o seu pé-de-meia. E eu, ao sentir aquele cheiro, a julgar que estavam a assar o porco!
Depois disto, a gorda Fantine desatou a rir e bebeu uma golada de água-pé de maçã para refrescar a língua, seca de tanto falar.
Foi assim que a vida de Angélíque de Sancé de Monteloup começou sob o signo do Monstro, dos fantasmas e dos bandidos.
A ama tinha nas veias um pouco do sangue mouro que os Árabes haviam introduzido até aos limites do Poitou por volta do século XI. Angélique sugara esse leite de paixão e sonhos, em que se concentrava o espírito antigo da sua província, terra de pântanos e de florestas aberta como um golfo aos ventos tépidos do oceano.
Assimilara confusamente um mundo de dramas e de magia, a que tomara o gosto e que lhe incutira uma espécie de imunidade contra o medo. Olhava com compaixão a pequena Madelon, que tremia, ou Hortense, a irmã mais velha, muito presumida, mas que, no entanto, ardia de desejo de perguntar à ama o que lhe tinham feito os bandidos na palha das granjas.
Angélique adivinhava muito bem, apesar dos seus oito anos, o que se passara nas granjas. Quantas vezes não levara já a vaca ao touro ou a cabra ao bode? E o seu amigo, o jovem pastor Nicolau, explicara-lhe que, para terem filhos, os homens e as mulheres faziam o mesmo. Fora assim que a ama tivera João Couraça. Mas o que perturbava Angélique era que, ao falar dessas coisas, a ama tomasse umas vezes um tom de languidez e de êxtase e outras do mais sincero horror.
Não se devia, porém, procurar compreender a ama, os seus silêncios e as suas cóleras. Bastava tê-la ali, avantajada e activa, com os seus braços possantes e a ”cesta” dos joelhos aberta debaixo do vestido de fustão, e que os acolhesse como um passarinho para lhes cantar uma canção de embalar ou lhes falar de Gil de Retz.
O velho Guilherme Liitzen era mais simples e falava pausadamente, com voz áspera. Dizia-se que era suíço ou alemão. Dentro de pouco tempo fariam quinze anos que o tinham visto chegar, a coxear e descalço, pela estrada romana que liga Angers a Saint-Jean-dAngely. Entrara no castelo de Monteloup e pedira uma malga de leite. Depois ficara como criado para todo o serviço, encarregado de pequenas reparações e biscates, e o barão de Sancé mandava-o levar cartas aos amigos das vizinhanças e encarregava-o de receber o meirinho quando este vinha cobrar os impostos. O velho Guilherme escutava pacientemente o meirinho, respondia-lhe no seu dialecto de montanhês suíço ou tirolês e o outro ia-se embora desanimado.
Viera dos campos de batalha do Norte ou do Leste? E por que carga de água este mercenário estrangeiro parecia vir da Bretanha quando o encontraram? Tudo o que se sabia a seu respeito era que estivera em Liitzen sob as ordens do condottiere Wallenstein e que tivera a honra de furar a pança do gordo e magnífico rei da Suécia, Gustavo Adolfo, quando este, perdido no nevoeiro durante a batalha, caíra nas mãos dos piqueiros austríacos.
No sótão onde dormia via-se brilhar ao sol, no meio das teias de aranha, a sua velha armadura e o-seu capacete, no qual ainda bebia o vinho quente e comia às vezes a sopa. O seu pique enorme, três vezes mais alto do que ele, servia para varejar as nozes na estação própria.
Mas o que Angélique mais lhe invejava era o raladorzinho de tabaco, de tartaruga com embutidos, a que ele chamava a sua grivoise, de acordo com o costume dos militares alemães ao serviço da França, que se designavam a si próprios por grivots.
Durante toda a noite, na ampla cozinha do castelo, se abriam e fechavam portas. Portas que deitavam para a noite, donde vinham, no meio de um forte cheiro a estrume, criados, criadas e o carroceiro João Couraça, tão moreno como a mãe.
Os cães também entravam sorrateiramente, quer os dois grandes galgos, Marte e Manjerona, quer os perdigueiros enlameados até aos olhos.
Do interior do castelo, as portas davam passagem à insinuante Nanette, que exercia as funções de camareira enquanto aprendia suficientes boas maneiras para deixar os seus amos pobres e ir servir em casa do Sr. Marquês do Plessis de Bellière, a poucos quilómetros de Monteloup. Iam e vinham igualmente os dois criaditos, com a trunfa caída para os olhos, que transportavam lenha para a sala grande e água para os quartos. Depois aparecia a Sr.a Baronesa, com o seu suave rosto envelhecido pelo ar dos campos e pelas numerosas maternidades. Trazia um vestido de sarja cinzenta e uma capucha de lã preta, porque a atmosfera da sala grande, onde se instalava entre o avô e as tias velhas, era mais húmida do que a da cozinha.
Perguntava se a tisana do Sr. Barão ainda demorava muito e se o bebé mamara sem se fazer rogado. De passagem afagava a cara de Angélique, semiadormecida e cujos compridos cabelos, cor de ouro polido, se espalhavam pela mesa e brilhavam ao clarão do lume.
São horas de ir para a cama, meninas. A Pulquéria vai deitar-vos.
E Pulquéria, uma das tias velhas, aprestava-se, sempre dócil. Quisera assumir o papel de preceptora junto das sobrinhas, visto não ter encontrado marido nem convento que a quisesse receber, por falta de dote. E, como se tornava útil, em vez de se queixar e passar os dias a bordar, tratavam-na com um bocadinho de desprezo e menos atenções do que a outra tia, a gorda Joana.
Pulquéria reunia as sobrinhas. As amas deitariam os mais novos e Gontrano, que não tinha preceptor, iria para a cama, no sótão, quando lhe apetecesse.
Acompanhados da magra preceptora, Hortense, Angélique e Madelon entravam na sala do castelo, onde a chama da lareira e três velas mal dissipavam as sombras acumuladas pelos séculos debaixo das altas abóbadas medievais. Estendidas nas paredes, algumas tapeçarias procuravam protegê-las da humidade, mas estavam tão velhas e comidas pela traça que já ninguém distinguia nada das cenas que representavam, exceptuando os olhos esgazeados das lívidas personagens que observavam as pessoas com ar de censura.
Descarado, atrevido. (N. da T.)
As garotas faziam a reverência ao senhor seu avô, sentado diante do lume no seu casacão de peles coçado. Mas as suas mãos, tão brancas, pousadas no castão da bengala, eram reais. Usava um amplo chapéu de feltro preto e a sua barba, aparada como a do nosso defunto rei Henrique IV, repousava num pequeno cabeção pregueado, que Hortense considerava, no seu íntimo, absolutamente fora de moda.
Segunda reverência à tia Joana, cujos lábios apertados se não dignavam sorrir, e toca a subir a grande escada de pedra, húmida como uma gruta. Os quartos eram gelados no Inverno, mas frescos no Verão. Só lá entravam para se meterem na cama. Aquele onde dormiam as três garotas impunha-se como um monumento num recanto devastado do castelo, pois todos os móveis tinham sido vendidos no decurso das últimas gerações. O lajedo, coberto de palha no Inverno estava partido em muitos sítios. Subia-se para a cama por meio de uma banqueta de três degraus. Depois de vestirem as suas camisas de noite, de porem os seus barretes de dormir e de ajoelharem para agradecer a Deus as suas mercês, as três meninas de Sancé de Monteloup trepavam para o seu colchão de penas e introduziam-se debaixo dos cobertores esburacados. Angélique procurava imediatamente o buraco do lençol correspondente ao do cobertor, por onde passaria o pé rosado e mexeria o dedo grande a fim de fazer rir Madelon.
A pequenita estava mais trémula do que um coelho devido às histórias contadas pela ama. Hortense também, mas não dizia nada porque era a mais velha. Apenas Angélique saboreava o medo com uma alegria exaltada. A vida era feita de mistérios e descobertas. Ouviam-se os ratos roer o forro de madeira e as corujas e os morcegos esvoaçar debaixo do telhado das duas torres, soltando gritos penetrantes. Ouviam-se as lebres chiar nos pátios e um ou outro macho à solta na pradaria vir coçar a sarna nas muralhas. E, às vezes, nas noites em que nevava, ouviam-se os uivos dos lobos que desciam da floresta de Monteloup e se aproximavam dos lugares habitados, ou então, a partir dos primeiros crepúsculos da Primavera, os cantos dos camponeses da aldeia que dançavam o rigodão ao luar...
Uma das muralhas do castelo de Monteloup deitava para os pântanos. Era a parte mais antiga, construída por um longínquo Senhor de Ridoué de Sancé, companheiro de Du Guesclin no século XIII. Essa parte era flanqueada por duas grandes torres, com caminhos de ronda de telhados de madeira, e, quando Angélique as escalava com Gontrano ou Dinis, divertiam-se a cuspir nas ameias por onde os soldados na Idade Média tinham lançado baldes de azeite a ferver sobre os assaltantes. As muralhas estavam implantadas num promontoriozinho de calcário, para lá do qual começavam os pântanos. Outrora, no tempo dos primeiros homens, o mar chegara até ali e, quando se retirara, deixara uma rede de ribeiros, canais e lagoas, agora cobertas de verdura e salgueiros, reino das enguias e das rãs, onde os camponeses só transitavam de barco. Os lugarejos e as cabanas tinham sido edificadas nas ilhas do antigo golfo. Depois de percorrer esta província aquática, o Sr. Duque da Trémoille, que fora hóspede, um Verão, do marquês do Plessis e tinha prosápias de exotismo, chamara-lhe ”Veneza Verde”.
A vasta pradaria líquida, o pântano de água doce, estendia-se de Niort e Fontenay-le-Comte até ao oceano e alcançava, um pouco antes de Marans, Chaillé e mesmo Luçon, os pântanos de águas salgadas, isto é, as terras ainda banhadas pela água do mar. Finalmente, atingia-se a costa, com a sua orla branca de sal precioso, muito disputado pelos guardas-físcais e pelos contrabandistas.
A ama não contava muitas histórias acerca de uns e de outros histórias que arrebatavam todo o pântano porque era do lado da terra e desprezava profundamente pessoas que, além de viverem com os pés na água, ainda por cima eram todas protestantes.
Para o lado da terra, o castelo de Monteloup tinha uma fachada mais recente, com numerosas janelas. Uma velha ponte levadiça, de correntes ferrugentas, em que se empoleiravam galinhas e perus, quase não separava a entrada principal das pradarias onde pastavam os machos. À direita ficava o pombal senhorial, com o seu telhado de telhas redondas, e uma granja. As outras ficavam para lá do fosso. Mais ao longe via-se o campanário da aldeia de Monteloup. Seguia-se a floresta, mata cerrada de carvalhos e castanheiros, que se podia percorrer sem encontrar uma clareira até ao Norte da Gâtine e do Bocage vendeano, e quase até ao Loire e ao Anju, embora poucas pessoas ousassem atravessá-la de ponta a ponta sem medo dos lobos ou dos bandidos.
A floresta de Nieul, a mais próxima, pertencia ao marquês do Plessis. Os habitantes de Monteloup punham lá a pastar os porcos, o que originava questões intermináveis com o administrador do marquês, o Sr. Molines, um homem ganancioso. Nela se encontravam também alguns tamanqueiros e carvoeiros, e uma bruxa, a velha Melusina, que no Inverno saía às vezes do seu buraco para ir beber de porta em porta uma malga de leite em troca de algumas plantas medicinais.
Seguindo o seu exemplo, Angélique colhia flores e raízes, que secava, fervia, esmagava e metia em saquinhos no segredo de um retiro só conhecido do velho Guilherme. Pulquéria podia chamá-la durante horas sem que ela aparecesse.
Às vezes, quando pensava em Angélique, Pulquéria chorava. Via na garota não só o malogro do que pensava ser uma educação tradicional, mas também o fim da sua linhagem e da sua nobreza, que perdia toda a dignidade por causa da pobreza e da miséria.
Assim que rompia o dia, a pequena desaparecia, de cabelos ao vento, vestida quase como uma camponesa camisa, corpete e saia desbotada, e, como, apesar de ter os pezinhos tão delicados como uma princesa, atirava sem cerimónia os sapatos para a primeira moita que encontrava, a fim de correr mais à vontade, tinha-os duros como cascos de animais. Se a chamavam, mal virava a cara, redonda e dourada pelo sol, onde brilhavam dois olhos de um azul-esverdeado, da cor da planta do seu nome que cresce nos pântanos.
”Deviam metê-la num convento”, gemia Pulquéria.
Mas o barão de Sancé, taciturno e cheio de preocupações, encolhia os ombros. Como poderia meter a sua segunda filha no convento se já lhe era impossível mandar para lá a mais velha, se dispunha apenas de quatro mil libras de rendimento anual e tinha de pagar quinhentas libras pela educação dos dois filhos mais velhos, nos agostinhos de Poitiers?
Do lado dos pântanos, Angélique tinha como amigo Valentim, o filho do moleiro, e, do lado das florestas, Nicolau, um dos sete filhos de um agricultor, que já era pastor em casa do Senhor de Sancé.
Com Valentim percorria de barco, de mole, os canais orlados de miosótis, de hortelã e de angélicas. Valentim apanhava grandes ramos desta planta alta e vigorosa e de cheiro delicado, que em seguida ia vender aos frades da abadia de Nieul, que com as raízes e as flores faziam uma poção medicinal e utilizavam os caules em confeitaria. Em troca recebia bentinhos e rosários, que atirava à cabeça das crianças das aldeias protestantes, que fugiam a gritar como se o Diabo em pessoa lhes tivesse cuspido na cara. O pai, o moleiro, deplorava tão estranho comportamento, pois, embora fosse católico, gostava de se mostrar tolerante. Que necessidade tinha o filho de andar a vender ramos de angélicas se herdaria o cargo de moleiro e só teria de se instalar no moinho confortável, erguido sobre estacas à beira da água?
Mas Valentim era um rapaz difícil de compreender. Muito corado e com um corpo de hércules, apesar dos seus doze anos, mais calado do que uma carpa, possuía um olhar vago e as pessoas que cobiçavam o lugar do moleiro consideravam-no quase idiota.
Nicolau, o pastor, tagarela e fanfarrão, desafiava Angélique para irem apanhar cogumelos, amoras e mirtilos, ou então castanhas, e fazia-lhe flautas de troncos de aveleira.
Os dois rapazes tinham tais ciúmes um do outro que não hesitariam em se matar mutuamente por causa da amizade de Angélique. De facto, era já tão bonita que os camponeses a olhavam como a encarnação viva das fadas que habitavam o grande dolmen do Campo das Bruxas. E tinha manias de grandeza.
Sou marquesa declarava a quem a queria ouvir.
Ah, sim?... E porquê?
Porque casei com um marquês respondia.
O ”marquês” era umas vezes Valentim e outras Nicolau, ou qualquer outro tunante no fundo tão isento de maldade como os pássaros que arrastava atrás de si através dos prados e dos bosques. E acrescentava, com muita graça:
Chamo-me Angélique e conduzo na guerra os meus anjinhos. Donde lhe veio o epíteto de ”marquesinha dos anjos”.
Em princípios do Verão de 1648, quando Angélique completava 11 anos, a ama Fantine começou a esperar os bandidos e os exércitos. A região parecia calma, mas a ama, que adivinhava tantas coisas, ”farejava” os bandidos no calor daquele Verão asfixiante. Viam-na olhar para o norte, do lado da estrada, como se o vento que arrastava nuvens de poeira lhe trouxesse o cheiro de uns e outros.
Bastavam-lhe pouquíssimos indícios para pressentir o que se passava lá longe, não só na região, mas também na província e até em Paris.
Depois de comprar ao bufarinheiro auvergnês um pouco de cera e algumas fitas, estava habilitada a informar o Sr. Barão das notícias mais importantes acerca do que se passava no reino de França.
Ia ser lançado novo imposto, estava em curso uma batalha na Flandres e a rainha-mãe já não sabia que mais inventar para arranjar dinheiro e contentar a avidez dos príncipes. A própria soberana não vivia com desafogo e o rei de caracóis louros usava calções demasiado curtos, assim como o irmão mais novo, a quem chamavam o Petit Monsieur, porque o tio, o Monsieur, irmão do rei Luís XIII, ainda era vivo.
Apesar disso, o Sr. Cardeal Mazarino acumula bibelôs e quadros italianos. A rainha aprecia-o, mas o Parlamento de Paris não está satisfeito. Ouve o clamor do pobre povo dos campos, arruinado pelas guerras e pelos impostos. De coche e trajando ricos fatos forrados de arminho, os senhores do Parlamento transportam-se ao Palácio do Louvre, onde vive o reizinho, agarrado com uma das mãos ao vestido preto da mãe, a Espanhola, e com a outra à sotaina vermelha do cardeal Mazarino, o Italiano.
A estes grandes, que só sonham com poder e riquezas, demonstram eles que o povo já não pode pagar, que os burgueses já não podem comerciar e que estão fartos de ser colectados por tudo e por nada. Por este andar, não terão em breve de pagar imposto sobre a escudela em que comem? A rainha-mãe não está contente e o Sr. Mazarino também não. Então, os grandes senhores transportam o reizinho para a tribuna real do Parlamento, onde o monarca responde com voz bem timbrada, embora um pouco hesitante na lição aprendida, a todas estas graves personagens que precisa de dinheiro para os exércitos e para a paz, que não tardará a ser assinada. O rei falou. O Parlamento inclina-se. Vai surgir novo imposto. Os intendentes das províncias vão pôr em campo os seus meirinhos. Os meirinhos vão ameaçar. As boas almas vão suplicar, chorar e pegar nas foices para matar os cobradores e os colectores, meter-se às estradas para se juntarem aos soldados em debandada, e os bandidos vão chegar...
Quem ouvisse a ama não acreditaria que o bruto do bufarinheiro lhe pudesse ter contado tantas coisas. Acusá-la-ia de excesso de imaginação quando, na realidade, se tratava de dom divinatório. Uma palavra, um leve indício, a passagem de um mendigo demasiado insolente ou de um mercador inquieto, punham-na no caminho da verdade. Farejava os bandidos no calor prenunciador de tempestade daquele belo Verão de
1648 e, como ela, Angélique também os esperava...
Os saqueadores
Naquela tarde, Angélique decidira ir pescar lagostins com o pastor Nicolau.
Sem prevenir ninguém, correra para a cabana dos Merlots, os pais de Nicolau. O lugarejo de três ou quatro pardieiros onde viviam estava situado na orla da grande floresta de Nieul, mas as terras que cultivavam pertenciam ao barão de Sancé.
Ao reconhecer a filha do amo, a camponesa levantou a tampa da panela de ferro que estava ao lume e deitou na sopa um naco de toucinho para a adubar melhor.
Angélique pôs em cima da mesa uma galinha que pouco antes estrangulara na capoeira do castelo. Não era a primeira vez que se fazia assim convidada para casa dos camponeses e nunca se esquecia de trazer uma lembrança, tendo em conta que os castelões eram quase os únicos que possuíam, na região, pombal e galinheiro, por direito senhorial.
O homem, sentado ao pé da lareira, comia pão escuro. Francine, a filha mais velha, beijou Angélique. Contava mais dois anos do que esta, mas, como havia muito tempo que tinha de cuidar dos irmãos mais novos e de trabalhar nos campos, já não ia pescar lagostins nem apanhar cogumelos como o vagabundo do seu irmão Nicolau. Era meiga, educada e tinha umas belas faces rosadas e frescas, pelo que a Sr.a de Sancé desejava tomá-la ao seu serviço como camareira, em substituição de Nanette, que a irritava com a sua insolência.
Assim que acabaram de comer, Nicolau desafiou Angélique.
Vamos pelo estábulo, buscar a lanterna.
Saíram. A noite estava muito escura, pois a tempestade pairava no ar. Angélique lembrou-se mais tarde de que olhara na direcção da estrada romana, que passava a cerca de meia légua dali e de que lhe parecera ouvir um vago rumor.
No bosque estava ainda mais escuro.
Não tenhas medo dos lobos disse Nicolau. No Verão não vêm até aqui.
Não tenho medo.
Não tardaram a chegar ao regato e a colocar as nassas, iscadas com um naco de toucinho, no fundo da água. De vez em quando retiravam-nas a escorrer e carregadas com cachos de lagostins azulados, que a luz atraíra, e metiam-nos numa alcofa trazida para esse fim. Angélique não pensava de modo algum que os guardas do castelo de Plessis os poderiam surpreender e que seria um escândalo descobrir uma das filhas do barão de Sancé a pescar ao candeio, sem licença, com um jovem aldeão.
De súbito, ela endireitou-se e Nicolau fez o mesmo.
Não ouviste nada?
Ouvi, gritaram.
Os dois garotos ficaram um instante imóveis e depois voltaram às nassas. Mas estavam preocupados e não tardaram a parar novamente.
Desta vez ouvi bem. Gritaram lá em baixo.
É do lado da aldeia.. Nicolau juntou rapidamente os apetrechos de pesca e pôs a alcofa às costas. Angélique pegou na lanterna. Voltaram para trás, caminhando sem fazerem barulho, por um carreirinho musgoso. Ao aproximarem-se da orla do bosque, pararam bruscamente. Um clarão cor-de-rosa penetrava sob as árvores e iluminava os troncos.
Não... não é já o nascer do dia? murmurou Angélique.
Não, é fogo!
Meu Deus, talvez seja em tua casa! Vamos depressa! Mas ele deteve-a.
Espera! São demasiados gritos para um incêndio. Há outra coisa qualquer.
Avançaram devagarinho até às primeiras árvores. Do outro lado, um extenso prado descia em declive até à primeira casa, que era a dos Merlots, e quinhentos metros mais adiante agrupavam-se as restantes três cabanas, na beira do caminho. Era uma destas últimas que ardia. As labaredas que irrompiam do telhado iluminavam um magote agitado de homens que gritavam, CORRAM e entravam nas cabanas, para delas tornarem a sair sobraçando presuntos ou puxando vacas e burros.
O bando, vindo da estrada romana, corria para o caminho esburacado como um rio grosso e negro. A enxurrada, eriçada de cacetes e piques, passou pela quinta Merlot, submergiu-a e continuou na direcção de Monteloup. Nicolau ouviu a mãe gritar. Soou um tiro. Fora o Tio Merlot que tivera tempo de pegar no velho mosquete e carregá-lo. Mas pouco depois arrastaram-no para o pátio como um saco e desancaram-no à cacetada.
Angélique viu uma mulher em camisa atravessar o pátio de uma das casas e fugir, a gritar e a soluçar. Foram-lhe homens no encalço, enquanto a mulher tentava alcançar a floresta. Os dois garotos recuaram e, de mãos dadas, fugiram aos saltos pelo meio das silvas.
Quando voltaram a olhar, fascinados, mau grado seu, pelo incêndio e por aquele grito uniforme, feito de gritos misturados, que rasgava a noite, viram que a mulher fora alcançada pelos perseguidores, os quais a arrastavam pelo prado.
É a Paulette cochichou Nicolau.
Apertados um contra o outro atrás do tronco de um enorme carvalho, observaram, ofegantes e de olhos arregalados, o horrível espectáculo.
Tiraram-nos o burro e o porco disse ainda Nicolau.
Rompeu a alva, empalidecendo os clarões do incêndio que começava já a aplacar-se. Os bandidos não tinham deitado fogo às outras cabanas; a maioria nem sequer se detivera naquele lugarejo sem importância. Os homens tinham continuado na direcção de Monteloup. Os que se haviam encarregado da pilhagem das quatro casas também já abandonavam o cenário das suas façanhas. Distinguiam-se-lhes as roupas esfarrapadas e as faces macilentas e escurecidas pela barba. Alguns usavam grandes chapéus emplumados e um deles ostentava até uma espécie de capacete, que poderia fazê-lo passar por militar. Mas a maioria envergava trajos que tinham perdido a forma e a cor. Na névoa matinal que subia dos pântanos ouviam-se chamar uns aos outros. Já não eram mais do que uma quinzena. Pararam um pouco adiante da casa dos Merlots, para mostrarem o saque. Pelos gestos e pelo tom da sua discussão, percebia-se que o achavam reduzido: uns quantos lençóis e uns quantos lenços tirados dos baús, caçarolas, grandes pães e queijos. Um deles, porém, ferrava os dentes num presunto que segurava pelo osso do pernil. Os animais roubados tinham partido à frente. Os últimos ladrões reuniram em duas ou três trouxas os pobres objectos roubados e afastaram-se sem olhar sequer para trás.
Angélique e Nicolau não tiveram pressa de deixar o abrigo das árvores. Já o Sol brilhava e fazia luzir o orvalho do prado quando se atreveram a descer até ao lugarejo, agora estranhamente silencioso.
É o meu irmão mais pequeno disse Nicolau, baixinho. Pelo menos a ele não o mataram.
Receando que algum bandido se tivesse deixado ficar para trás, entraram no pátio sem fazer barulho. Iam de mãos dadas e paravam quase a cada passo. Primeiro deparou-se-lhes o corpo do Tio Merlot, caído de bruços na estrumeira. Nicolau inclinou-se e tentou levantar a cabeça dopai.
Diz lá, paizinho, tás morto? Endireitou-se.
Creio que está morto. Repara como está branco, ele que andava sempre tão corado.
Na cabana, o mais novinho chorava desalmadamente. Sentado na cama voltada, agitava as mãozinhas, desesperado. Nicolau correu para ele e pegou-lhe ao colo.
Graças, Santa Virgem, não aconteceu nada ao caganito. Angélique observava Francine, de olhos dilatados de horror. A rapariguinha estava estendida no chão, branca e de olhos fechados. Tinha o vestido levantado até à barriga e escorria-lhe sangue entre as pernas.
Nicolau... murmurou Angélique, sufocada...que... que lhe fizeram?
O rapaz olhou e uma expressão terrível envelheceu-lhe o rosto. Virou a cabeça para a porta e gritou:
Malditos, malditos!...
Com um gesto brusco, estendeu o bebé a Angélique:
Pega-lhe.
Ajoelhou-se ao lado da irmã e baixou-lhe pudicamente a saia rasgada. Francine, sou eu, o Nicolau. Responde, não tás morta, pois não?
Soaram gemidos no estábulo contíguo e a mãe apareceu, a gemer e dobrada em duas.
És tu, filho? Ah, meus pobres filhos, meus pobres filhos! Que desgraça! Levaram o burro e o porco e o nosso pequeno pé de-meia de escudos. Eu bem tinha dito ao meu homem que os enterrasse!
Está mal, mãe?
Isto não é nada. Sou mulher, tenho passado por outras. Mas à Francine, que é tão delicada, a pobrezinha, são muito capazes de a terem matado.
Embalava a filha nos fortes braços de camponesa e chorava.
Onde estão os outros? perguntou-lhe Nicolau.
Depois de demoradas buscas,acabaram por encontrar os três outros garotos, um rapaz e duas raparigas, na arca onde se tinham metido quando os bandidos, depois de roubarem o pão, tinham começado a violentar-lhes a mãe e a irmã.
Entretanto chegou um vizinho para saber notícias. A pobre gente do lugarejo reuniu-se para fazer o balanço das suas desgraças. Só havia dois mortos a deplorar: o Tio Merlot e um velho que também tentara servir-se do mosquete. Os outros camponeses tinham sido amarrados nas cadeiras e desancados à cacetada, mas sem exagero. Nenhuma das crianças fora degolada e um dos meeiros conseguira abrir a porta do estábulo às suas vacas, que tinham fugido e que com certeza se tornariam a encontrar. Mas quanta roupa de cama e de vestir roubada, quanta louça de estanho desaparecida da lareira, quantos queijos e presuntos perdidos e até quanto daquele dinheiro tão raro, sempre tão bem contado!
A Paulette continuava a chorar e a lamentar-se.
Seis, foram seis a passar me pelo corpo!
Cala-te! ordenou-lhe brutalmente o pai. Conhecendo-te como te conhecemos, sempre atrás dos rapazes nas moitas, isso até é capaz de te ter causado prazer. Ao passo que a nossa vaca, que estava prenha... Terei mais dificuldade em encontrá-la do que tu em arranjares namorado.
Temos de sair daqui disse a Tia Merlot, que continuava com Francine desmaiada nos braços. Talvez venham outros atrás daqueles.
Vamos para a floresta com os animais que restam. Já o fizemos antigamente, quando passaram por cá os exércitos de Richelieu.
Vamos para Monteloup.
Para Monteloup! Eles vão para lá com certeza.
Vamos para o castelo sugeriu alguém. Aprovaram logo todos.
Sim, vamos para o castelo.
O instinto ancestral impelia-os para a residência senhorial, para a protecção do senhor que, ao longo dos séculos, projectara sobre os seus trabalhos a sombra das suas muralhas e das suas torres.
Angélique, que segurava o bebé, sentiu obscuro remorso apertar lhe o coração.
”O nosso pobre castelo desfaz-se em ruínas”, pensou. ”Como podemos proteger agora estes infelizes? E quem sabe se os bandidos não estarão já lá? Não seria o velho Guilherme que poderia impedi-los de entrar com o seu pique... Sim, vamos para o castelo disse, em voz alta.Mas não devemos ir pela estrada nem mesmo pelos atalhos dos campos. Se os bandidos andassem por lá, nunca conseguiríamos chegar à entrada. A única coisa a fazer é descer aos pântanos secos e chegar ao castelo pelo fosso grande. Há uma portinha de que nunca nos servimos, mas eu sei abri-la.
Não acrescentou que a tal portinha, meio oculta pelo entulho de um subterrâneo, lhe servira para mais de uma evasão e que numa das masmorras, de que os actuais barões de Sancé quase nem conheciam a existência, se encontrava o esconderijo onde preparava plantas e filtros, como abruxaMelusiana.
Os camponeses tinham-na escutado com confiança. Alguns só então haviam dado pela sua presença, mas estavam tão habituados a considerar Angélique uma encarnação das fadas que o seu aparecimento no meio dos seus infortúnios quase não os surpreendeu.
Uma das mulheres desembaraçou-a do bebé e, a seguir, Angélique conduziu o pequeno grupo por um longo desvio através dos pântanos, debaixo do sol escaldante, contornando o promontório abrupto que outrora dominara aquele golfo do Poitou, invadido pela água do mar. Com o rosto sujo de poeira e lama, a garota encorajava os camponeses.
Fê-los entrar pela abertura da poterna abandonada. A frescura dos subterrâneos apanhou-os de surpresa e aliviou-os, mas a obscuridade fez chorar as crianças.
Caladinhos, caladinhos recomendou a voz tranquilizadora de Angélique. Daqui a nada estamos na cozinha e a ama Fantine dá-nos sopa.
A evocação da ama Fantine encorajou toda a gente.
Gemendo e tropeçando atrás da filha do barão de Sancé, os camponeses subiram a escada meio desmoronada e atravessaram salas cheias de lixo e caliça, pelas quais corriam ratos. Angélique orientava-se sem hesitação. Eram os seus domínios.
Quando chegaram ao grande átrio, ruídos de vozes inquietaram-nos momentaneamente. Mas Angélique, assim como os camponeses, não ousava admitir que o castelo pudesse ter sido atacado. Ao aproximarem-se do lado das cozinhas, o cheiro da sopa e do vinho quente acentuou-se. Devia lá estar muita gente, com certeza, mas não eram bandidos, visto o tom das conversas ser baixo, comedido e até triste. Outros camponeses das aldeias e das quintas vizinhas já se tinham ido colocar sob a protecção das velhas muralhas em ruínas.
Quando os recém-chegados apareceram, ergueu-se um grito de susto geral, pois tomaram-nos por bandidos. Mas, ao ver Angélique, a ama correu para ela e apertou-a nos braços.
A minha alveolazinha! Viva! Graças, Senhor! Santa Radegonda, Santo Hilário, graças!
Angélique retesou-se, pela primeira vez na vida, contra os fogosos abraços da ama. Acabava de conduzir a ”sua” gente através dos pântanos, durante horas sentira atrás de si aquele rebanho confrangedor.
Já não era uma criança! Libertou-se dos abraços de Fantine Lozier quase com violência e ordenou-lhe:
Dá-lhes de comer.
Mais tarde, como num sonho, viu a mãe acariciar-lhe a face, com os olhos cheios de lágrimas.
Minha filha, que inquietações nos causaste!
Pulquéria, consumida como um círio e com a acne inflamada pelo choro, aproximou-se também, assim como o pai e o avô.
Angélique achava muito divertido aquele desfile de marionetas. Emborcara uma grande malga de vinho quente e estava completamente embriagada, mergulhada num agradável torpor. À sua volta, as pessoas trocavam comentários acerca das peripécias da noite trágica: a invasão da aldeia, as primeiras casas incendiadas e como o síndico fora atirado pela janela do seu primeiro andar, que se sentia tão orgulhoso de ter mandado construir recentemente...
Aqueles pagãos daqueles ”pilhantes” tinham, ainda por cima, invadido a pequena igreja, roubado os vasos sagrados e amarrado o cura e a sua criada em cima do próprio altar. Gente possessa do Diabo! Sim, pois que, se tal não fora, não inventariam coisas semelhantes!
Diante de Angélique, uma velha embalava nos braços a neta, uma menina crescidinha de rosto inchado pelas lágrimas. A avó abanava a cabeça e repetia sem cessar, num misto de admiração e horror:
O que foram capazes de lhe fazer! O que foram capazes de lhe fazer! É inacreditável!...
Só se falava de mulheres derrubadas, de homens agredidos à cacetada, de vacas e cabras roubadas. O sacristão agarrara-se ao burro pela cauda, enquanto dois bandidos o puxavam pelas orelhas. E o que berrava com mais força no meio de tal balbúrdia era o pobre animal, claro!
Mas muita gente conseguira fugir. Uns para os bosques, outros para os pântanos e a maioria para o castelo. Não faltava espaço nos pátios e nas salas para resguardar os animais salvos a grande custo. Infelizmente, a sua fuga atraíra para aquelas bandas alguns bandidos e, apesar do mosquete do Senhor de Sancé, a coisa poderia ter acabado mal se o velho Guilherme não tivesse tido, de súbito, uma ideia genial: agarrando-se com todas as forças às correntes enferrujadas da ponte levadiça, conseguira levantá-la.
Como lobos cruéis, mas medrosos, os bandidos tinham recuado perante o insignificante fosso de água apodrecida.
Assistira-se então a um estranho espectáculo. De pé, junto da poterna, o velho Guilherme gritara injúrias na sua língua e estendera o punho fechado na direcção das trevas para onde fugiam vultos esfarrapados. De repente, um dos homens parara e respondera-lhe. Travara-se então um estranho diálogo entre eles, através da noite avermelhada pelos incêndios, naquela língua tudesca que arrepiava a espinha e fazia tremer.
Ninguém sabia ao certo o que Guilherme e o seu compatriota teriam dito, mas a verdade é que os bandidos não tinham voltado e ao nascer do dia haviam-se afastado da aldeia. Por isso, todos
consideravam Guilherme um herói, repousavam à sua sombra militar.
No entanto, o incidente provara que o bando, que parecera composto de indigentes dos campos ou miseráveis das cidades, também continha soldados vindos do Norte, postos em debandada em consequência do Tratado de Paz da Vestefália. Havia de tudo nos exércitos que os príncipes reuniam para o serviço do rei: valões, italianos, flamengos, lorenos, liejenses, espanhóis, alemães, enfim, todo um mundo que os pacíficos poitevinos nem podiam imaginar. Alguns não tardaram a afirmar que entre os bandidos até havia um polaco, um desses selvagens que o condottiere João de Werth comandara recentemente na Picardia e a quem mandara degolar criancinhas de peito.
Tinham-no visto. Tinha um rosto muito amarelo, um gorro de pele e, sem dúvida, uma enorme capacidade amorosa, pois ao findar o dia todas as mulheres da aldeia garantiam tê-lo suportado.
Reconstruíram-se as casas incendiadas da aldeia. Foi rápido: lama misturada com palha e caniços formava uma taipa muito sólida. Fizeram-se as colheitas, que não tinham sido pilhadas e foram boas, o que consolou muita gente. Só duas rapariguinhas não se conseguiram refazer das violências dos bandidos. Tiveram uma grande febre e morreram. Uma delas foiFrancine.
Constava que a cavalaria de Niort mandara alguns soldados em perseguição do bando, que parecia isolado e mal comandado.
Deste modo, a incursão dos bandidos nas terras dos barões de Sancé não modificou por aí além a vida habitual do castelo. Quando muito, ouviu-se o velho avô resmungar com mais frequência acerca dos infortúnios acarretados pela morte do bom rei Henrique IV e pela insubordinação dos protestantes.
Essa gente personifica o espírito de destruição de um reino. Em tempos censurei o Sr. cardeal de Richelieu por se mostrar tão duro, mas afinal não o foi o suficiente.
Angélique e Gontrano, que nesse dia eram os únicos ouvintes da profissão de fé do seu avô, entreolharam-se com ar cúmplice. O presente escapava por completo ao bom do avô!
Todos os netos adoravam o velho barão, mas raramente aceitavam as suas opiniões caducas.
O rapazinho, que já ia quase nos doze anos, atreveu-se a observar:
Mas, avô, os bandidos não eram huguenotes. Eram católicos desertores de exércitos esfomeados, estrangeiros a quem, dizem, não se pagara ou, até, camponeses das zonas dos campos de batalha.
Nesse caso não tinham nada que vir até aqui. E, além disso, não me convencerás de que não foram ajudados pelos protestantes. No meu tempo, o Exército pagava mal às suas tropas, lá isso pagava, mas pagava-lhes regularmente. Acredita, toda esta desordem é de inspiração estrangeira, talvez inglesa e holandesa. Manifestam-se e agrupam-se, tanto mais que o Edicto de Nantes foi demasiado indulgente para com eles, deixando-lhes não só o direito à sua fé, mas também a igualdade dos direitos cívicos...
Avô, que direitos são esses que deixaram aos protestantes? perguntou de súbito Angélique.
Ainda és muito nova para compreender, pequenita respondeu o velho barão, e depois acrescentou: Os direitos cívicos representam algo que não se pode tirar às pessoas sem perder a honra.
Portanto, não é dinheiroconcluiu a garota.
Tens toda a razão, Angélique felicitou a o idoso fidalgo. Não há dúvida, compreendes coisas que estão acima da tua idade.
Mas Angélique achava que o assunto exigia mais explicações:
Então, mesmo que os bandidos nos saqueiem completamente e nos deixem nus, deixam-nos pelo menos os direitos cívicos?
Exactamente, minha filha respondeu o irmão, mas havia ironia na sua voz e Angélique desconfiou de que estava a troçar dela.
Gontrano era um rapaz acerca do qual não se sabia que pensar. Falava pouco e vivia muito só. Como não podia ter perceptor nem ir para o colégio, tinha de se contentar, quanto a estudos, com os rudimentos intelectuais que lhe dispensavam o professor primário e o cura da aldeia. As mais das vezes metia-se no sótão a esmagar cochinilhas e a amassar argila de cor, a fim de fazer estranhas composições a que chamava ”quadros” ou ”pinturas”.
Apesar de muito descuidado com a sua pessoa, como todas as crianças de Sancé, censurava muitas vezes Angélique por viver como uma selvagem e não se saber colocar no seu lugar.
Não és tão parva como pareces acrescentou nesse dia, à guisa de cumprimento.
Os cobradores de impostos.
Regresso do colégio dos irmãos mais velhos
Havia instantes, porém, que o velho marquês apurava o ouvido para os lados do pátio, onde soavam interpelações e gritos misturados com cacarejos de galinhas assustadas. Depois ouviu-se uma correria e, por fim, soaram gritos mais violentos, nos quais se reconhecia o sotaque de Guilherme. Estava uma maravilhosa tarde de Outono e todos os outros habitantes da casa deviam ter saído.
Não tenhais medo, meus filhos tranquilizou o avô. Estão a expulsar algum mendigo...
Mas Angélique já correra para a escadaria e gritava:
Atacam o Tio Guilherme, querem fazer-lhe mal! Manquejando, o barão foi buscar um sabre ferrugento e Gontrano muniu-se de um chicote de bater nos cães. Dirigiram-se, por sua vez, para o limiar e viram o velho criado armado com o seu pique e tendo Angélique ao lado.
O adversário também não se encontrava muito longe. Mantinha-se fora do alcance do pique, do outro lado da ponte levadiça, mas continuava a fazer frente ao velho. Tratava-se de um homem muito alto e de aspecto famélico, que parecia furioso e, ao mesmo tempo, se esforçava por reassumir um ar sereno e oficial.
Gontrano baixou imediatamente o chicote, puxou o avô para trás e segredou-lhe:
É o meirinho, que vem por causa do imposto. Já corremos com ele diversas vezes...
O funcionário, mal recebido, enquanto continuava a recuar devagarinho, mas sem virar as costas, recuperava a confiança perante a hesitação dos novos reforços. Parou a distância respeitosa e, tirando da algibeira um rolo de papel muito amarrotado em consequência da batalha, pôs-se a desenrolá-lo cuidadosamente, entre suspiros. Depois, a contorcer-se todo, começou a ler uma intimação segundo a qual o barão de Sancé devia pagar sem demora a importância de 875 libras, 19 soldos e 11 dinheiros de derramas de meeiros atrasadas, dízima das rendas do senhor e da derrama real, impostos de cobrição de éguas, ”direitos de poeira” dos rebanhos que passavam pela estrada real e multa por atraso no pagamento.
O velho senhor ficou rubro de cólera.
Julgas talvez, insolente, que um fidalgo vai a correr pagar só por ouvir esse aranzel do fisco, como se fosse um vulgar vilão! gritou, irado.
Sabeis muito bem que o senhor vosso filho até agora tem liquidado com muita regularidade os impostos anuais redarguiu o homem, dobrando a espinha. Voltarei pois quando ele estiver. Mas previno-vos: se amanhã à mesma hora ele não estiver, pela quarta vez, e não pagar, cito-o e vender-se-á o vosso castelo e todos os vossos móveis, por dívidas ao tesouro real.
Fora daqui, lacaio dos usurários do Estado!
Sr. Barão, advirto-o de que sou um servidor ajuramentado da lei e também posso ser designado como agente executor.
Para haver execução terá de haver julgamento! fulminou-o o velho fidalgo.
Tereis sem dificuldade o vosso julgamento, acreditai, se não pagardes...
Como quereis que vos paguemos se não temos com quê?! gritou Gontrano, vendo que o velho se perturbava. Já que sois meirinho, vinde ver que, para cúmulo, os bandidos nos levaram um garanhão, duas jumentas e quatro vacas e que, no que reclamais como devido, a maior importância provém das derramas dos meeiros do meu pai. Até agora, ele tem pago por eles, porque esses pobres camponeses não podiam pagar, mas ele próprio não deve nada a esse título, pessoalmente. De resto, devido ao último ataque dos bandidos, os nossos camponeses sofreram ainda mais do que nós e certamente não será hoje, depois da pilhagem, que o meu pai poderá liquidar a vossa conta...
O agente do fisco pareceu mais apaziguado com aquelas palavras razoáveis do que com as injúrias do velho senhor. Lançando olhares prudentes para o lado de Guilherme, aproximou-se um pouco e, em tom mais brando, quase compassivo, mas firme, explicou que não podia fazer mais do que receber e transmitir as ordens da intendência fiscal. Na sua opinião, a única coisa que poderia adiar o arresto seria uma súplica dirigida pelo barão ao intendente-geral do fisco, por intermédio do intendente provincial de Poitiers.
Aqui entre nós acrescentou o funcionário fiscal, num tom que levou o velho fidalgo a fazer uma careta de desagrado, aqui entre nós, dir-vos-ei que nem mesmo os meus superiores directos, como o procurador e o controlador das colectas, estão habilitados a conceder-vos derrogação ou dispensa. No entanto, como sois da nobreza, deveis conhecer pessoas altamente colocadas. Portanto, um conselho de amigo: agi por intermédio delas!
Não serei eu que me lisonjearei por vos citar como amigo! observou, em tom acerbo, o barão de Ridoué.
O que disse foi para que o repetísseis ao senhor vosso filho. A miséria não poupa ninguém, enfim! Julgais que me agrada, a mim, inspirar a todos o efeito de uma alma do outro mundo e levar mais tosa do que um cão sarnento? E por aqui me vou. Boas-tardes a todos, sem ressentimentos!
Pôs o chapéu e partiu a coxear e a observar, penalizado, a manga da sua casaca de uniforme, que ficara rasgada na refrega.
Em sentido inverso afastou-se igualmente, e também a coxear, o velho barão, seguido por Gontrano e Angélique, ambos silenciosos.
O velho Guilherme, a resmonear contra inimigos imaginários, levou a velha lança para o seu covil de restos históricos.
De novo no salão, o avô começou a andar de um lado para o outro e os garotos não se atreveram a falar durante muito tempo. Por fim, a voz da rapariguinha elevou-se na penumbra do anoitecer:
Diga-me uma coisa, avô, se os gatunos nos deixaram os direitos cívicos, este homenzinho todo de preto não os levou agora consigo?
Vai para o pé da tua mãe respondeu o velho, cuja voz se tornou repentinamente trémula.
Voltou a sentar-se no seu cadeirão alto, forrado de tapeçaria puída, e não disse mais nada.
Depois de lhe fazerem a reverência, os garotos deixaram-no.
Quando soube da recepção feita ao cobrador de impostos, Armando de Sancé suspirou e coçou demoradamente o tufozinho de pêlos grisalhos que deixava crescer sob o lábio, à moda de Luís XIII.
Angélique sentia um afecto um pouco protector pelo pai, bom e tranquilo e a quem as dificuldades quotidianas tinham sulcado a fronte bronzeada de rugas profundas.
A fim de poder criar a numerosa prole, aquele filho de nobre sem dinheiro fora obrigado a renunciar a todos os prazeres inerentes à sua categoria. Raramente viajava e quase já nem caçava, ao contrário dos fidalgos provincianos seus vizinhos, que não eram mais ricos do que ele, mas que se consolavam passando a vida a acuar lebres e javalis.
Armando de Sancé dedicava todo o seu tempo aos cuidados das suas pequenas culturas. Pouco melhor vestido andava do que os seus camponeses e emanava, como eles, um forte cheiro a esterco e a cavalos. Amava os filhos. Causavam-lhe prazer e orgulhava-se deles, representando a sua melhor razão de viver. Para ele, primeiro estavam os filhos; depois as suas muares. Durante algum tempo, o fidalgo sonhara instalar uma pequena coudelaria desses animais de carga, menos delicados do que os cavalos e mais fortes do que os burros.
Mas eis que os bandidos lhe tinham levado o seu melhor garanhão e duas jumentas. Fora um desastre e ele começava a encarar a ideia de vender os seus últimos mulos e as parcelas que até aqui reservava à sua criação.
No dia seguinte à visita do meirinho, o barão Armando aparou com cuidado uma pena de ganso e instalou-se à secretária, a fim de redigir uma súplica ao rei, para que o isentasse dos seus impostos anuais.
Nessa carta expôs a sua penúria de fidalgo sem meios.
Primeiro desculpou-se de só poder evocar nove filhos vivos, mas acrescentou que outros mais nasceriam, sem dúvida, porque a ”mulher e ele ainda eram novos e faziam-nos de boa vontade”. Acrescentou também que tinha a seu cargo um pai inválido e sem qualquer pensão, que ascendera ao posto de coronel no tempo de Luís XIII. Ele próprio fora capitão e tinha sido proposto para uma patente mais alta, mas vira-se obrigado a abandonar o serviço do rei porque o seu soldo de oficial da artilharia real, 1700 libras anuais, ”lhe não proporcionava os meios de se manter no serviço”. Mencionou ainda que tinha a seu cargo duas tias velhas, ”as quais nem maridos nem conventos quiseram por falta de dote e que se vão consumindo em tarefas humildes”, e quatro criados, dos quais um era um velho militar sem pensão, necessário ao seu serviço. Dois dos seus rapazes mais velhos estavam no colégio e custavam-lhe assim 500 libras, só pela educação. Uma das raparigas já devia estar no convento, mas isso custaria mais de 300 libras. Concluía dizendo que havia anos pagava os impostos dos seus meeiros, para os prender à terra, e mesmo assim estava endividado para com o fisco, que exigia 875 libras, 19 soldos e 11 dinheiros só do ano em curso. O seu rendimento total mal chegava a 4000 libras por ano e tinha de alimentar dezanove pessoas e manter a sua condição de fidalgo, num momento em que, para cúmulo da infelicidade, os bandidos tinham pilhado, matado e destruído nas suas terras, mergulhando os seus meeiros sobreviventes numa miséria ainda maior. Para terminar, solicitava da bondade real a graciosa isenção dos impostos exigidos e um auxílio ou um adiantamento de, pelo menos, mil libras, rogando ”como graça do rei”, que, se armassem para a América ou para as índias, recebessem como guarda-marinha o seu filho mais velho, que estudava Lógica com os padres, aos quais devia, aliás, um ano de pensão.
Acrescentava também que, pelo seu lado, estava sempre disposto a aceitar fosse que cargo fosse compatível com a sua condição de fidalgo, desde que pudesse sustentar os seus, dado que a sua terra, mesmo vendida, já não lho permitia...
Depois de polvilhar de areia, para a secar, a longa missiva, que lhe exigira diversas horas de trabalho, Armando de Sancé escreveu ainda umas linhas ao seu protector e primo, o marquês do Plessis de Bellière, a quem rogava entregasse a súplica ao próprio rei ou à rainha-mãe, acompanhando-a de recomendações capazes de conseguir a sua satisfação.
E terminava, cortesmente:
”Desejo, senhor, rever-vos em breve e ter nesta província ensejo de vos poder ser útil, quer em muares de transporte, que as tenho muito boas, quer, para a vossa mesa, em frutos, castanhas, queijos e boiões de coalhada.”
Algumas semanas mais tarde, o pobre barão Armando de Sancé poderia ter acrescentado um novo dissabor à lista.
Com efeito, num anoitecer em que se anunciavam as primeiras geadas, ouviu-se o galope de um cavalo no caminho e a seguir na velha ponte levadiça, que reencontrara a sua guarnição de perus.
Os cães ladraram no pátio. Angélique, a quem a tia Pulquéria conseguira meter no quarto e obrigar a fazer alguns trabalhos de costura, correu para a janela.
Viu descerem de um cavalo dois cavaleiros altos, magros e vestidos de preto, ao mesmo tempo que na vereda aparecia um macho carregado de malas e conduzido por um pequeno camponês.
Tia! Hortense! chamou. Venham ver. Creio que são os nossos dois irmãos, Juscelino e Raimundo.
As duas pequenas e a velha tia desceram precipitadamente e chegaram ao salão quando os estudantes cumprimentavam o avô e a tia Joana. Acorriam criados de todos os lados e já tinham ido chamar o Sr. Barão aos campos e a Sr.a Baronesa à horta.
Os adolescentes correspondiam com muito mau modo a todo aquele alvoroço de boas-vindas.
Contavam 15 e 16 anos, mas tomavam-nos muitas vezes por gémeos, porque eram da mesma altura e se pareciam um com o outro. Tinham ambos a mesma tez baça, olhos cinzentos e cabelos negros e escorridos, que lhes caíam para a gola branca, amarrotada e suja do uniforme. Só na expressão diferiam. As feições de Juscelino tinham mais brutalidade e as de Raimundo mais reserva.
Enquanto respondiam monossilabicamente às perguntas do avô, a ama, toda feliz, punha uma bonita toalha na mesa e dispunha boiões de patê, pão, manteiga e um prato com as primeiras castanhas. Os olhos dos rapazes brilharam. Sem esperarem por mais nada, abancaram e comeram com uma voracidade e uma falta de maneiras que encheram Angélique de admiração.
A garota notou, contudo, que os irmãos estavam magros e pálidos e que os seus fatos de sarja preta se encontravam puídos nos cotovelos e nos joelhos.
Baixavam os olhos quando falavam e nenhum mostrara reconhecê-la, embora ela se lembrasse muito bem de, outrora, ter ajudado Juscelino a procurar ninhos, como Dinis a ajudava agora a ela.
Raimundo trazia um chifre oco no cinto e ela perguntou-lhe para que servia.
É para trazer tinta respondeu-lhe o irmão, em tom arrogante.
Eu deitei o meu fora informou Juscelino.
O pai e a mãe chegaram com velas. Apesar da sua alegria, o barão parecia um pouco triste.
Como se explica que estejais aqui, meus rapazes? Não viestes no Verão... Não achais o princípio do Inverno uma estranha altura para férias?
Não viemos no Verão porque não tínhamos dinheiro para alugar um cavalo e nem sequer para a diligência pública, que faz o trajecto de Poitiers a a Niort explicou Raimundo.
E, se estamos aqui agora, não é porque estejamos mais ricos... continuou Juscelino.
... mas sim porque os padres nos puseram na rua concluiu Raimundo.
Seguiu-se um silêncio pesado de constrangimento.
Por São Dinis, que tolice fizestes para serdes alvo de tão grande injúria? perguntou, indignado, o avô.
Nenhuma. Mas, como há mais de dois anos que os Agostinhos não recebem a nossa pensão... Explicaram-nos que outros alunos cujos pais eram mais generosos tinham necessidade dos nossos lugares. O barão Armando começou a andar de um lado para o outro, o que nele era sinal de grande agitação.
Enfim, não é possível! Se não desmerecestes, os padres não vos podiam pôr na rua assim sem mais nem menos. Sois fidalgos e eles sabem-no!
Juscelino, o mais velho, assumiu uma expressão irritada ao redarguir:
Sim, sabem-no até muito bem, e eu posso repetir-vos as palavras que o ecónomo nos disse como viático: disse que os nobres eram os piores pagadores e que, se não tinham dinheiro, só lhes restava prescindirem do Latim e das Ciências.
O velho barão endireitou o busto corcovado.
Custa-me a acreditar que digais a verdade! Pensai que a Igreja e a nobreza são uma e a mesma coisa e que os estudantes representam a futura flor do Estado. Os bons padres sabem-no melhor do que ninguém!
Foi o segundo rapaz, Raimundo, destinado ao sacerdócio, que respondeu, de olhos obstinadamente fixos no chão:
Entre os padres ensinaram-nos que Deus saberia escolher os Seus... Talvez não nos tenha julgado dignos.
Fecha a caixa das asneiras, Raimundo ordenou-lhe o irmão. Garanto-te que não é altura de a abrir. Se queres tornar-te fradinho mendicante, é lá contigo! Mas eu sou o primogénito e compartilho a opinião do avô: a Igreja deve-nos consideração, a nós, nobres! Se a nós prefere os plebeus, filhos de burgueses e lojistas, está no seu direito, mas assim escolhe a sua perda e ruirá!
Juscelino, não tens o direito de blasfemar desse modo! exclamaram os dois barões ao mesmo tempo.
Não estou a blasfemar: limito-me a apontar factos. Na minha turma de Lógica, de que sou o mais jovem e o segundo melhor aluno entre trinta rapazes, há exactamente vinte e cinco filhos de burgueses e de funcionários que pagam pontualmente e cinco fidalgos, dos quais apenas dois pagam com regularidade...
Armando de Sancé pretendeu agarrar-se a esse débil sinal de prestígio:
Quer dizer que mandaram embora outros dois filhos de nobres, ao mesmo tempo que a vós?
De modo nenhum. Os pais dos que não pagam são pessoas altamente colocadas, de que os padres têm medo.
Proíbo-te de falares assim dos teus educadores disse o barão Armando, enquanto o seu velho pai resmoneava, como se falasse sozinho:
Felizmente o rei morreu e não tem de ver semelhantes coisas!
Sim, avô, felizmente, como dizeis! comentou, irónico, Juscelino. Ainda que tenha sido um valente monge quem assassinou Henrique IV.
Cala-te, Juscelino ordenou, de súbito, Angélique. As palavras não são o teu forte e, quando falas, pareces um sapo. Além disso, foi Henrique III e não Henrique IV quem foi assassinado por um monge.
O adolescente estremeceu e olhou, surpreendido, a rapariguinha de cabelos encaracolados que o apostrofava com tanta segurança.
Oh, D. Rã, princesa dos pântanos! ”Marquesa dos Anjos”... E eu que até me esqueci de te cumprimentar, irmãzinha!
Porque me chamas rã?
Porque me chamaste sapo. Além disso, não desapareces constantemente na erva e nos caniços dos pântanos? Ou tornaste-te tão sensata e prognóstica como a Hortense?
Espero que nãorespondeu Angélique, modestamente. A sua intervenção desanuviara um pouco a atmosfera tensa. Entretanto, os rapazes tinham acabado de comer e a ama já levantava a mesa.
Mas o ambiente continuava pesado. Confusamente, cada um procurava uma solução para aquele novo revés da sorte.
No silêncio ouviu-se chorar o bebé mais novinho. A mãe, as tias e até Gontrano aproveitaram o pretexto ”para ir ver”. Mas Angélique ficou com os dois barões e os dois irmãos mais velhos, regressados da cidade em estado tão lamentoso.
Perguntava a si mesma se seria daquela vez que perderiam a honra. Apetecia-lhe muito perguntá-lo, mas não se atrevia. Os irmãos ins piravam lhe algo vagamente parecido com desdenhosa compaixão.
O velho Lútzen, ausente no momento da chegada dos rapazes, trouxe mais velas, em honra dos viajantes. Entornou um pouco de cera ao abraçar desajeitadamente o mais velho. O outro esquivou-se com certo desdém à rude carícia de boas-vindas.
Mas, sem se perturbar, o velho soldado não hesitou em proclamar o seu ponto de vista:
Já era tempo de regressardes! Primeiro, para que vos serve engrolar o latim se quase não sabeis escrever a vossa própria língua? Quando a Fantine me disse que os patrõezinhos tinham regressado de vez, disse logo para comigo que o Sr. Juscelino ia finalmente poder partir para o mar...
Sargento Lútzen, será preciso recordar-te a velha disciplina? perguntou, em voz subitamente muito seca, o idoso barão.
O velho não insistiu e calou-se. Angélique estava surpreendida com o tom altivo e agastado do avô, que se virou para o primogénito e lhe disse:
Espero que tenhas esquecido os teus projectos de criança, de seres navegador!
Porque havia de esquecê-los, avô? Parece-me até não haver agora outra solução para mim.
Enquanto eu viver, não serás marinheiro. Tudo menos isso! afirmou o velho, batendo com a bengala nas lajes estaladas.
Juscelino pareceu aterrado com a súbita obstinação do avô quanto a um projecto que levava a peito e que lhe permitira suportar sem muito rancor a expulsão de que fora vítima.
”Acabaram-se os padre-nossos e as recitações de latim”, pensara. ”Agora sou um homem e vou embarcar num navio do rei.”
Armando de Sancé tentou intervir:
Vejamos, meu pai, porquê essa intransigência? Talvez fosse uma solução tão boa como outra qualquer. Digo-vos, de resto, que, na súplica que recentemente fiz ao rei, pedi, entre outras coisas, que facilitasse o embarque eventual do meu primogénito num corsário ou num barco de guerra.
Mas a cólera do velho barão aumentava. Angélique nunca o vira tão zangado, nem mesmo no dia da altercação com o cobrador dos impostos.
Não gosto das pessoas cujos pés ardem na terra dos seus avós. Para lá dos mares nunca encontram montes e maravilhas, mas sim selvagens nus, de braços tatuados. O filho primogénito de um nobre deve servir nos exércitos do rei, mais nada.
Não desejo mais do que servir o rei, mas no mar replicou o rapaz.
Juscelino tem 16 anos. No fim de contas, já é tempo de escolher o seu destino observou o pai, mas hesitante.
Uma expressão dolorosa vincou o rosto enrugado, enquadrado pela curta barba branca. Levantou a mão e redarguiu, em tom muito triste:
É verdade que outros antes dele, na família, escolheram o seu destino. Tereis também de me decepcionar, meu filho?
Longe de mim a ideia de vos despertar recordações dolorosas meu pai afirmou o barão Armando. Pessoalmente nunca pensei em exilar-me e nem sei quanto estou preso às nossas terras do Poitou. Mas lembro-me como foi dura e precária a minha situação no Exército. Mesmo sendo nobre, sem dinheiro não se pode ascender às patentes superiores. Estava crivado de dívidas e algumas vezes fui obrigado a vender, para subsistir, toda a minha equipagem: cavalo, tenda, armas... e até a alugar o meu próprio criado. Lembrai-vos de todas as boas terras que tivestes de vender para me manter em serviço?
Angélique escutava a conversa com muito interesse. Nunca vira marinheiros, mas era de uma região onde, pelos vales da Sèvre e da Vandeia, penetram os grandes apelos do oceano. Sabia que na costa de La Rochelle a Nantes, pelas Sables-d’Olonne, barcos de pescadores partiam para terras longínquas, onde havia homens vermelhos como fogo ou às riscas como javalizinhos. Contava-se até que um marinheiro bretão dos lados de Saint-M alo trouxera para França selvagens aos quais cresciam penas na cabeça, como aos pássaros.
Ah, se ela fosse homem, não pediria a opinião do avô!... Já teria partido, conduzindo para o Novo Mundo todos os seus anjinhos.
Na manhã seguinte, quando cirandava pelo pátio, Angélique viu um pequeno camponês levar um bocado de papel amarrotado ao barão.
É o intendente Molines a pedir-me que passe por sua casa. Com certeza não voltarei a horas do jantar disse o barão, enquanto fazia sinal a um palafreneiro para lhe selar o cavalo.
A Sr.a de Sancé, que se preparava para ir para a horta com um chapéu de palha por cima do lenço, franziu os lábios.
É inaudito este tempo em que vivemos! suspirou. Tolerar que um vizinho plebeu, um intendente huguenote, se permita convocar-vos tranquilamente, a vós, que sois um descendente autêntico de Filipe Augusto! Pergunto a mim mesma que assuntos honestos pode um nobre gentil-homem ter a tratar com o administrador de um castelo vizinho... É capaz de ser, mais uma vez, por causa dos machos...
O barão não respondeu e a mulher afastou-se, a abanar a cabeça. Durante a conversa, Angélique esgueirara-se para a cozinha, onde sabia que encontraria os sapatos e a capa. Depois foi ter com o pai à cavalariça.
Posso acompanhar-vos pai? perguntou, com a sua expressão mais graciosa.
O barão não lhe pôde resistir e sentou-a na sela. Angélique era a sua filha preferida. Achava-a muito bonita e às vezes sonhava que ela casaria com um duque.
Estranha oferta do intendente ao pai de Angélique
O dia outonal estava claro e a floresta muito próxima, ainda não despojada das suas folhas, projectava no céu azul as suas frondes cor de ferrugem.
Ao passar diante do gradeamento do castelo de Plessis-Belière, Angélique inclinou-se para tentar ver, ao fundo da alameda de castanheiros, a imagem branca do encantador edifício reflectida no lago como uma nuvem de sonho. Estava tudo silencioso e o castelo de estilo Renascença, que os donos abandonavam para viverem na corte, parecia dormir no mistério do seu parque e dos seus jardins. As corças da floresta de Nieul, à qual o castelo se encostava, passavam nas suas áleas desertas...
A residência do administrador Molines ficava dois quilómetros mais longe, numa das entradas do parque. Belo pavilhão de tijolos vermelhos e cumeeiras de ardósia azul, parecia, na sua solidez burguesa, guarda judicioso de uma construção frágil, cuja graça italiana ainda surpreendia as pessoas da região, habituadas aos castelos da Idade Média.
O administrador harmonizava-se com a imagem da sua casa. Austero e opulento, solidamente instalado nos seus direitos e no seu papel, era ele, na realidade, quem parecia o senhor daquele imenso domínio dos Plessis, cujo proprietário estava perpetuamente ausente. Talvez de dois em dois anos, no Outono, para a caça, ou na Primavera para colher o junquilho, uma vaga de fidalgos e fidalgas abatia-se sobre o Plessis com as suas carruagens, os seus cavalos, os seus lebréus e os seus músicos. Então, durante dias a fio, sucediam-se as festas e as distracções, que davam um pouco a volta ao miolo dos fidalgotes provincianos da vizinhança, convidados para serem zombados. Depois regressava toda a gente a Paris e a residência caía de novo no silêncio, sob a égide do severo intendente.
Ao ouvir o ruído das ferraduras do cavalo, Molines veio ao pátio e inclinou-se diversas vezes com uma flexibilidade de espinha que não lhe devia custar, pois fazia parte das suas funções. Angélique, que sabia quanto o indivíduo era capaz de ser duro e arrogante, não apreciava aquele género de cortesia excessiva, mas o barão Armando ficou visivelmente muito contente.
Esta manhã dispunha de tempo e achei que não devia fazer-vos esperar, Sr. Molines.
Agradeço-vos, Sr. Barão. Receava que achásseis inconveniente a minha maneira de vos convidar por um criado.
Não me escandalizei. Sei que evitais ir a minha casa em virtude de o meu pai persistir em ver em vós um perigoso huguenote.
O Sr. Barão tem o espírito muito penetrante. Efectivamente, não desejaria desagradar ao Sr. de Ridoué nem à Sr.a Baronesa, que é muito devota. Por isso prefiro falar-vos em minha casa e espero que vós e a vossa pequenina me dêem a honra de compartilhar da nossa refeição.
Já não sou pequenina declarou vivamente Angélique. Tenho dez anos e meio e lá em casa ainda há a Madelon, o Dinis, a Maria Inês, o Alberto e um bebé que acaba de nascer.
Que a menina Angélique me perdoe. Ser a mais velha exige de facto siso e maturidade de espírito. Sentir-me-ia feliz se a”minha filha Bertille convivesse convosco, porque ai de mim! as religiosas do seu convento confirmam a minha opinião de que ela tem uma cabeça de passarinho, da qual não se poderá tirar grande coisa.
Exagera, Sr. Molines protestou o barão Armando, cortesmente. ”Desta vez estou de acordo com Molines”, pensou Angélique, que detestava a filha do intendente, uma moreninha sonsa.
A respeito do intendente, os seus sentimentos eram mais vagos. Embora o considerasse desagradável, tinha por ele uma certa consideração, devida, sem dúvida, ao aspecto confortável da sua pessoa e da sua casa. O vestuário de Molines, sempre escuro, era de bela fazenda e com certeza o davam, ou, melhor, o vendiam, antes de apresentar o mínimo vestígio de uso. Calçava sapatos de fivelas e de salto bastante alto, à nova moda.
Em sua casa comia-se maravilhosamente. O narizinho de Angélique fremiu quando entraram na primeira sala, ladrilhada e reluzente de limpeza, contígua à cozinha. A Sr.a Molines pareceu mergulhar nas saias com uma vénia profunda e depois voltou aos seus bolos.
O intendente conduziu os convidados a um pequeno escritório, para o qual mandou levar água fresca e uma garrafa de vinho.
Sou muito apreciador deste vinho disse, depois de levantar o copo. É de uma vertente que esteve muito tempo maninha e que, com cuidados, consegui vindimar no último Outono. Os vinhos de Poitou não se comparam aos do Loire, mas são de uma grande leveza.
Acrescentou, após alguns momentos de silêncio:
Não será de mais repetir, Sr. Barão, quanto me sinto feliz por ter acorrido pessoalmente ao meu chamamento. Para mim é sinal de que o negócio em que penso tem probabilidades de se fazer.
Em suma, submeteis-me a uma espécie de prova?
Que o Sr. Barão não mo leve a mal. Não sou homem de grande educação, recebi apenas uma modesta instrução de aldeia. Confesso, no entanto, que a sobrançaria de certos nobres nunca me pareceu prova de inteligência. Ora é precisa inteligência para falar de negócios, ainda que de negócios muito modestos.
O fidalgo provinciano reclinou-se na cadeira forrada de tapeçaria e observou o intendente com curiosidade. Sentia uma certa ansiedade quanto ao que poderia ir propor-lhe aquele vizinho cuja reputação não era excelente.
Passava por ser muito rico. Ao princípio mostrara-se duro com os camponeses e outros rendeiros, mas nos últimos anos esforçara-se por ser mais amável, mesmo para com os campónios mais pobres.
Pouco se sabia quanto às causas dessa reviravolta e dessa bondade insólita. Os camponeses desconfiavam da fartura, mas, como ele passara a mostrar-se conciliador quanto às derramas e a outros pagamentos de que o castelo era devedor para com o rei e o marquês, tratavam-no com respeito.
Os mal-intencionados insinuavam que procedi a assim para endividar o seu amo, sempre ausente. Quanto à marquesa e ao seu filho Filipe, já não se interessavam mais pelo domínio do que o próprio marquês.
Se o que consta é verdade, estareis pura e simplesmente em vias de tomar à vossa conta todo o domínio do Plessis observou com certa brutalidade Armando de Sancé.
Pura calúnia, Sr. Barão. Não só me empenho em continuar servidor leal do Sr. Marquês, como ainda não vejo interesse algum em semelhante género de aquisição. Para tranquilizar os vossos escrúpulos, confesso-vos, ainda que não revele nenhum segredo, que essa propriedade já está muito hipotecada.
Não me proponha que a compre, pois não tenho meios para isso...
Longe de mim tal pensamento, Sr. Barão... Um pouco de vinho?
Angélique, a quem a conversa não entusiasmava nada, saiu sorrateiramente do escritório e voltou à grande sala onde a Sr.a Molines se afadigava a estender a massa de uma grande tarte. Sorriu à garota e estendeu-lhe uma caixa que exalava um odor delicioso.
Comei, minha linda. É angélica cristalizada. Tem o vosso nome. Sou eu própria que a faço, com bom açúcar branco. É melhor do que a dos padres da abadia, que só empregam açúcar mascavado. Como quereis que os pasteleiros de Paris apreciem este doce, se ele perdeu todo o sabor depois de grosseiramente fervido nas enormes cubas mal limpas onde fazem a sopa e os enchidos?
Enquanto a escutava, Angélique mastigava deliciada os delgados caules pegajosos e verdes. Era naquilo que se transformavam, depois da colheita, as grandes e fortes plantas do pântano, cujo perfume, em estado natural, era mais acre.
Olhou com admiração em seu redor. Os móveis reluziam. A um canto havia um relógio, aquela invenção que o avô declarava diabólica. A fim de o ver melhor e captar o seu murmúrio, Angélique aproximou-se do escritório onde os dois homens conversavam, e ouviu o pai dizer:
Por São Dinis, Molines, desconcertais-me! Contam-se muitas coisas a vosso respeito, mas, enfim, no conjunto todos concordam em reconhecer-vos uma forte personalidade e perspicácia. Na realidade, porém, acabo de ouvir da vossa própria boca que cultivais as piores utopias.
Em que vos parece desrazoável, Sr. Barão, o que acabo de vos expor?
Vejamos, reflecti. Sabeis que me interesso por muares, que consegui, por cruzamento, uma raça muito boa, e encorajais-me a intensificar a criação, cujos produtos vos encarregaríeis de colocar. Tudo isso está muito bem. Deixo de vos compreender, porém, quando encarais um contrato de longa duração com... a Espanha. Nós estamos em guerra com a Espanha, meu amigo...
A guerra não durará sempre, Sr. Barão.
Assim o esperamos também. Mas não se pode basear um negócio sério numa esperança desse género.
O intendente esboçou um meio sorriso condescendente, que passou despercebido ao fidalgo arruinado. Este prosseguiu, veemente:
Como quereis comerciar com uma nação que está em guerra connosco? Primeiro do que tudo, é proibido e é justo que o seja, visto a Espanha ser o inimigo; depois, as fronteiras estão encerradas e as comunicações e as passagens vigiadas. Admito de bom grado que fornecer muares a um inimigo não é tão grave como fornecer-lhe armas, tanto mais que as hostilidades já não se desenrolam aqui, mas sim em território estrangeiro, finalmente, tenho muito poucos animais para que valha a pena qualquer tráfico. Isso custaria muito caro e exigiria anos de preparação. Os meus recursos financeiros não me permitem essa experiência.
Não acrescentou, porque o amor-próprio lho não consentiu, que estava mesmo prestes a liquidar a sua coudelaria.
O Sr. Barão far-me-á o favor de tomar em consideração que já possui quatro cobridores excepcionais e que lhe será muito mais fácil do que a mim arranjar muitos outros junto dos fidalgos das redondezas. Quanto às jumentas, podem-se arranjar centenas a dez ou vinte libras por cabeça. Um pequeno trabalho complementar de secagem dos pântanos melhorará os pastos. Aliás, os seus animais de tiro são muito rústicos. Creio que vinte mil libras chegariam para lançar o negócio a sério e tê-lo a render daqui a três ou quatro anos.
O pobre barão pareceu atacado de vertigens.
Com a breca, não sois nada modesto! Vinte mil libras! Achais assim tão valiosos os meus pobres mulos, que servem de chacota a toda a gente destas bandas? Vinte mil libras! Não sereis certamente vós que me adiantareis essa quantia.
E porque não? perguntou placidamente Molines. O fidalgo fitou-o com certo receio.
Seria loucura da vossa parte, Molines! Faço questão de vos dizer que não tenho fiador, nada que possa servir de garantia.
Contentar-me-ia com um simples contrato de sociedade com participação pela metade e com uma hipoteca sobre a criação, mas fá-lo-íamos em Paris, a título particular e secreto.
Se quereis que vos diga, receio não ter meios para ir à capital, durante muito tempo. De momento, a vossa proposta parece-me demasiado confusa e arriscada, e eu gostaria de consultar, de antemão, alguns amigos...
Nesse caso, Sr. Barão, não adiantemos mais, pois a chave do nosso êxito reside no segredo absoluto. Caso contrário, não haverá nada a fazer.
Mas eu não me posso lançar, sem me aconselhar, num negócio que, ainda por cima, me parece ser contra os interesses do meu país!
Que é também o meu, Sr. Barão.
Ninguém o diria, Molines!
Então não falemos mais do assunto, Sr. Barão. Digamos que me enganei. Perante os vossos resultados excepcionais, pensei que só o Sr. Barão seria capaz de instalar uma criação em grande escala neste país e sob o vosso nome.
O barão sentiu-se justamente apreciado e tartamudeou:
Não é essa a questão...
Nesse caso, Sr. Barão, permiti que vos observe quanto este assunto toca de perto o que vos preocupa, isto é, os cuidados de instalar honrosamente a vossa numerosa família...
Merecíeis que vos chicoteasse, Molines, pois esses assuntos não são da vossa conta!
Será como quiserdes, Sr. Barão. No entanto, embora os meus meios sejam mais modestos do que alguns supõem, tinha pensado acrescentar imediatamente a título de adiantamento sobre o nosso futuro negócio, naturalmente um empréstimo de importância análoga: vinte mil libras, que vos permitiriam consagrar-vos ao vosso domínio sem grandes preocupações a respeito dos vossos filhos. Sei, por experiência, que o trabalho não anda depressa quando o espírito está dominado pela inquietação.
E quando o fisco nos importuna acrescentou o barão, que corara levemente sob o bronzeado da pele.
Para que estes empréstimos entre nós não parecessem suspeitos, creio que não teríamos interesse algum em divulgar o nosso acordo. Insisto em que, seja qual for a vossa decisão, a nossa conversa não seja repetida a ninguém.
Compreendo-vos bem. Deve, no entanto, concordar em que a minha mulher tem de ser posta ao corrente da proposta que acabais de me fazer. Trata-se do futuro dos nossos dez filhos.
Desculpai, Sr. Barão, que vos faça uma pergunta inconveniente: mas a Sr.a Baronesa saberá calar-se? Nunca ouvi falar de uma mulher que soubesse guardar um segredo.
A minha mulher tem fama de pouco faladora. Além disso, não recebemos nem visitamos ninguém. Ela não falará, se eu lhe pedir que não fale.
Nesse momento, o intendente viu a ponta do nariz de Angélique, que, encostada à ombreira, os escutava sem procurar, aliás, esconder-se. O barão virou-se, viu-a também e franziu as sobrancelhas.
Vinde cá, Angélique ordenou, secamente. Parece-me que começais a ter o mau hábito de escutar às portas. Apareceis sempre nos momentos inoportunos e nunca vos ouvimos chegar. Isso são maneiras deploráveis.
Molines fitava-a com um olhar penetrante, mas não parecia tão contrariado como o barão.
Os camponeses dizem que é uma fada observou, com um leve sorriso.
A garota aproximou-se, sem emoção.
Ouvistes a nossa conversa?perguntou-lhe o barão.
Ouvi, sim, pai! Molines disse que o Juscelino poderia partir para os exércitos e a Hortense para o convento se fizésseis muitos machos.
Tens uma curiosa maneira de resumir as coisas. Agora escuta-me: vais prometer-me que não falarás a ninguém desta história.
Angélique ergueu para ele os olhos verdes e redarguiu:
Da melhor vontade... mas que me darão a mim? O administrador abafou uma gargalhadinha.
Angélique! exclamou o pai, entre surpreendido e decepcionado. Mas Molines interveio:
Provai-nos primeiro a vossa descrição, menina Angélique. Se, como espero, a nossa associação com o Sr. Barão, vosso pai, se fizer, teremos de esperar que o negócio prospere sem obstáculos, o que significará que nada foi divulgado acerca dos nossos projectos. Então, como recompensa, dar-vos-emos um marido...
A garota fez uma careta amuada, pareceu reflectir, e por fim respondeu:
Está bem, prometo.
Depois deixou-os. Na cozinha, afastando as criadas, a Sr.a Molines metia pessoalmente no forno a sua tarte coberta de creme e de cerejas.
Sr.a Molines, falta muito para comermos? perguntou-lhe Angélique.
Ainda falta um bocadinho, minha linda. Mas se tendes muita fome, arranjo-vos uma fatia de pão com doce.
Não é por isso. Gostaria de saber se tenho tempo de ir numa corrida aoPlessis.
Com certeza. Mandaremos um garoto chamar-vos quando a mesa estiver posta.
Angélique saiu a correr e, assim que dobrou a primeira esquina, descalçou os sapatos e escondeu-os debaixo de uma pedra, de onde os retiraria no regresso. Depois recomeçou a correr, mais leve do que uma corça. A folhada cheirava a cogumelos e a musgo e um aguaceiro recente deixara aqui e ali pequenas poças, que Angélique transpunha de um salto. Sentia-se feliz. O Sr. Molines prometera-lhe um marido. Não sabia ao certo se se tratava de um presente extraordinário. Que faria ela de um marido?... Enfim, se fosse tão simpático como Nicolau, pelo menos seria um companheiro sempre presente, para irem pescar lagostins.
Viu surgir, ao fundo da alameda, a silhueta do castelo, recortada em branco puro no esmalte azul do céu. O castelo do Plessis-Bellière era, sem dúvida, uma casa de conto de fadas, pois na região nenhuma se lhe assemelhava. Todos os solares das redondezas eram, como Monteloup, cinzentos, musgosos, sombrios. Ali, no século anterior, um artista italiano multiplicara janelas, lucarnas e pórticos. Uma ponte levadiça em miniatura atravessava pequenos fossos cheios de nenúfares. Aos cantos erguiam-se as torrezinhas, mas apenas como ornamentação. No entanto, as linhas do edifício eram simples. Não havia nenhuma sobrecarga nos arcos leves nem nas abóbadas flexíveis, mas antes uma graça natural de plantas ou festões.
Somente a encimar o pórtico principal um escudo com uma quimera de língua de fogo exposta recordava a decoração mais atormentada da Idade Média.
Com uma agilidade surpreendente, Angélique subiu ao terraço e depois, agarrando se às decorações das janelas e das varandas, conseguiu chegar ao primeiro andar, onde uma goteira lhe proporcionou um apoio seguro. Colou então o rosto à vidraça. Ia ali muitas vezes e não se cansava de se debruçar sobre o mistério daquele quarto fechado, onde, na penumbra, se via brilhar a prata e o marfim dos biblôs em cima dos móveis de marchetaria, as cores frescas, vermelhas e azuis, das tapeçarias novas e o fulgor dos quadros ao longo das paredes.
Ao fundo havia uma alcova com um leito adamascado e cortinados brilhantes, que os fios de ouro entremeados na trama tornavam pesados. Por cima da chaminé, um grande quadro atraía o olhar e enchia sempre Angélica de confusa admiração. Um mundo de que possuía somente uma vaga presciência concentrava-se naquele quadro, o mundo frívolo dos habitantes do Olimpo, com a sua graça pagã e livre. Via-se um deus e uma deusa abraçarem-se sob o olhar de um fauno barbudo, simbolizando os seus corpos magníficos como o próprio castelo a graça elísia na vizinhança da floresta selvagem.
A emoção que invadia Angélique era tão grande que a oprimia um pouco.
”Desejaria tocar em todas estas coisas, acariciá-las com as minhas mãos”, pensava. ”Desejaria que um dia fossem minhas...
Núpcias aldeãs. Nova coudelaria de muares
Na região, em Maio, os rapazes, de espiga verde no chapéu, e as raparigas, enfeitadas com flores de linho, vão dançar em redor dos dólmenes, essas grandes mesas de pedra que a pré-história ergueu nos campos.
No regresso, divertem-se um pouco, aos pares, nos prados e debaixo do arvoredo, na folhada rescendente a junquilhos.
Em Junho, o Tio Saulier casou a filha e houve uma grande festa. Era o único rendeiro do barão de Sancé, que, tirando ele, só empregava meeiros.
Como, além disso, ainda desempenhava as funções de taberneiro da aldeia, vivia com desafogo.
A igrejinha romana foi enfeitada com flores e círios grossos como punhos. O Sr. Barão conduziu pessoalmente a noiva ao altar.
A refeição, que durou diversas horas, foi farta em morcelas brancas e pretas, enchidos de vitela, chouriços e queijos. Não faltou vinho.
Depois da refeição, e obedecendo ao costume tradicional, todas as senhoras da aldeia foram levar os seus presentes à recém-casada.
Esta encontrava-se na sua nova casa, sentada num banco diante de uma grande mesa onde já se empilhavam louças, lençóis e panelas de cobre e estanho. O seu rosto redondo, um pouco bovino, resplandecia de contentamento sob a enorme coroa de margaridas.
A Sr.a de Sancé sentia-se levemente envergonhada com a modéstia da sua prenda: alguns pratos de bela faiança, que reservava para ocasiões semelhantes. Angélique pensou, de súbito, que em Sancé comiam em escudelas de camponês e sentiu-se simultaneamente indignada e magoada com semelhante ilogismo. Como as pessoas eram estranhas! Não compreenderiam que a aldeã também não se serviria dos pratos, que os guardaria preciosamente numa caixa e continuaria a comer na sua escudela? E no Plessis havia tantos objectos maravilhosos que eram abandonados como num túmulo!...
O rosto de Angélique carregou-se e a garota beijou a noiva com a ponta dos lábios.
Entretanto, à volta do grande leito conjugal iam-se reunindo jovens, que trocavam gracejos.
Ah, minha linda exclamou um deles, olhando para vós, para ti e para o teu esposo, duvidamos que o chaudaut seja bem-vindo, quando vo-lo trouxermos ao romper da alva!
Mãezinha, que chaudaut é esse de que se fala sempre nos casamentos? perguntou Angélique quando saíram.
É um costume de camponeses, como o de oferecer presentes ou dançar respondeu-lhe a mãe, evasivamente.
A explicação não satisfez a garota, que prometeu a si mesma assistir ao chaudaut.
Entretanto, no largo da aldeia ainda não se dançava debaixo do grande olmeiro. Os homens continuavam à volta das mesas montadas sobre cavaletes, ao ar livre.
Angélique ouviu a irmã mais velha soluçar e dizer que queria voltar para o castelo, pois tinha vergonha do seu vestido demasiado simples e passajado.
Ora, complicas demasiado a vida, pobre pequena! exclamou Angélique. Ouves-me queixar do meu vestido? E olha que me está bem apertado e curto! A única coisa que me incomoda a valer são os sapatos, mas trouxe os tamancos embrulhados e calçá-los-ei para dançar melhor. Estou resolvida a divertir-me!
Hortense insistiu, queixando-se de que tinha calor, não se sentia bem e queria voltar para casa. A Sr.a de Sancé foi ter com o marido, que estava sentado com os notáveis da aldeia, e avisou-o de que se retirava, mas deixava Angélique com ele. A garota ficou um bocado com o pai. Comera muito e sentia-se ensonada.
Em volta deles encontravam-se o cura, o síndico, o professor primário que, de vez em quando, também era chantre, cirurgião, barbeiro e tocador de sinos e diversos cultivadores, a quem chamavam ”lavradores” porque eram donos de charruas puxadas por bois e empregavam vários ”trabalhadores braçais” e que formavam uma espécie de pequena aristocracia aldeã. Do grupo fazia igualmente parte Artémio Carlot, agrimensor da vila vizinha para ali destacado provisoriamente a fim de ajudar na secagem do pântano e que armava um pouco em sábio e em estrangeiro, embora fosse apenas do Limousin. Finalmente, pavoneava-se entre eles o pai da noiva, Paul Saulier em pessoa, criador de cornúpetos, cavalos e burros.
Na realidade, o corpulento camponês do Poitou era o mais importante dos pequenos rendeiros camponeses e, embora o barão Armando de Sancé fosse o ”senhor”, o seu rendeiro era com certeza mais rico do que ele.
Ao olhar para o pai, cuja fronte não se desenrugava, Angélique adivinhava sem dificuldade os seus pensamentos.
”É mais um sinal do decaimento dos nobres”, devia ele pensar, melancolicamente.
1 chaudaut: Caldo que antigamente se dava aos noivos no dia imediato ao do casamento. N. do T.)
Entretanto, ia enorme azáfama à volta do grande olmeiro e dois homens, cada um com uma espécie de saco branco muito cheio debaixo do braço, subiram para duas pipas. Eram os tocadores de gaita-de-foles, aos quais se juntou um tocador de avena.
Vamos dançar! exclamou Angélique e correu a casa do síndico, onde escondera os tamancos, à chegada.
O pai viu-a regressar, saltando ora com um pé ora com o outro e batendo com as mãos ao ritmo das baladas e das rodas que dali a pouco se dançariam. Os cabelos de ouro polido saltavam-lhe nos ombros. Talvez por causa do vestido, demasiado curto e demasiado justo, Armando de Sancé apercebeu-se, de súbito, do muito que a filha se desenvolvera nos últimos meses. Ela, que sempre fora frágil, parecia agora ter doze anos. Os seus ombros estavam mais largos e o busto inflava-lhe ligeiramente a sarja usada do vestido. O sangue rico, sob o tisnado dourado das faces, dava-lhes uma tonalidade acobreada e brilhante e os lábios entreabertos e húmidos sorriam revelando os dentes pequeninos e perfeitos.
Como a maioria das jovens da terra, enfiara no decote do vestido um ramo de primaveras amarelas e cor de malva.
Os homens presentes sentiram-se igualmente impressionados com a sua imagem cheia de vigor e frescura.
A sua menina está a tornar-se muito bonita disse o Tio Saulier com um sorriso obsequioso e lançando um olhar entendido aos outros.
A inquietação toldou o orgulho de Armando de Sancé.
”Já é demasiado crescida para se misturar com estes rústicos”, pensou de repente. ”É ela, mais do que a Hortense, que está a precisar de ir para o convento... Angélique, inconsciente dos olhares e dos pensamentos que suscitava, juntava-se alegremente aos rapazes e às raparigas que vinham de todos os lados, em grupos ou aos pares.
Quase chocou com um adolescente que não reconheceu logo, tão bem vestido estava.
Valentim, meu patifório, como estás bonito, meu querido! exclamou, empregando o patoá da região, que falava com desembaraço.
O filho do moleiro vestia um fato por certo cortado na cidade, de um tecido cinzento de tão boa qualidade que as abas da sobrecasaca pareciam engomadas. Esta e o colete tinham uma guarnição de botõezinhos dourados e cintilantes. Ostentava fivelas de metal nos sapatos e no chapéu e rosetas de cetim azul nas ligas. O rapaz, que, aos catorze anos, tinha um arcaboiço de Hércules, parecia muito canhestro e constrangido na fatiota, mas o seu rosto avermelhado brilhava de satisfação. Angélique, que havia meses já que não o via, por causa da viagem que ele fizera com o pai à cidade, notou que mal lhe chegava aos ombros e sentiu-se quase intimidada. Para afastar o constrangimento, pegou-lhe na mão e desafiou:
Vamos dançar!
Não! Não!protestou Valentim. Não quero estragar o fato novo. Vou beber com os homens acrescentou todo impante, dirigindo-se para o grupo dos notáveis, junto dos quais o pai acabava de abancar.
Anda dançar! gritou um rapaz, que agarrou Angélique pela cintura.
Era Nicolau, cujos olhos, escuros como castanhas maduras, transbordavam alegria.
Viraram-se um para o outro e começaram a bater com os pés no chão ao ritmo dos sons agudos e dos estribilhos das gaitas-de-foles e da avena. Um sentido instintivo do ritmo dava àquelas danças, que se poderiam supor pesadas e monótonas, uma harmonia extraordinária. Acompanhando as gaitas-de-foles e a avena, o efeito principal era precisamente o bater surdo dos tamancos no chão, em completa harmonia. As figuras complicadas que cada um executava com uma sincronização absoluta acrescentavam graça à perfeição do bailado campestre.
Entardeceu. A frescura aliviou as frontes suadas. Toda entregue ao fascínio da dança, Angélique sentia-se feliz, liberta dos seus pensamentos. Os seus pares sucediam-se e nos olhos brilhantes e risonhos dos rapazes ela lia um não sei quê que a exaltava um pouco.
A poeira a subir lembrava uma leve pintura a pastel, avermelhada pelo Sol poente. O tocador de avena tinha as bochechas como duas bolas e, de tanto soprar, os olhos pareciam querer saltar-lhe das órbitas.
Chegou o momento de parar, de ir às mesas carregadas de picheis e beber um golo para refrescar.
Em que pensa, pai? perguntou Angélique, sentando-se ao lado do barão, cujo rosto não se desfranzia.
Ao vê-la vermelha e esbaforida, Armando de Sancé quase lhe levou a mal que se sentisse feliz e despreocupada, quando ele se atormentava ao ponto de já nem ser capaz de apreciar como antigamente uma festa de aldeia.
Nos impostos respondeu, olhando, carrancudo, o homem que estava à sua frente e que era, nem mais nem menos, o meirinho Corne, funcionário das Contribuições e Impostos, que tantas vezes lhe aparecera já à porta do castelo.
Não está certo pensar nisso quando toda a gente se diverte protestou a filha. Acha que eles pensam, todos os nossos camponeses? E no entanto são quem paga mais pesadamente. Não é verdade, Sr. Corne? perguntou, gaiata, através da mesa. Não é verdade que num dia destes ninguém devia pensar nos impostos, nem mesmo o senhor?
As suas palavras provocaram grandes gargalhadas. Começaram a cantar e o Tio Saulier lançou o estribilho do Colector-roubador, que o meirinho se dignou escutar com um sorriso bonacheirão. Mas não tardariam os estribilhos menos inocentes, que todas as bodas consentem, e Armando de Sancé, cada vez mais inquieto com as maneiras da filha, que bebia copázio atrás de copázio, resolveu retirar-se.
Disse a Angélique que o seguisse, para se despedirem, e que regressariam os dois ao castelo. Raimundo e os filhos mais novos, acompanhados pela ama, já tinham regressado havia muito. Só o primogénito, Juscelino, se deixava ficar, a enlaçar pela cintura uma das raparigas mais bonitas da terra. O barão coibiu-se de o chamar à ordem. Agradava-lhe ver que o magro e pálido estudante recuperava nos braços da natureza cores e ideias mais saudáveis. Com a idade do filho, havia muito que ele próprio derrubara no feno uma robusta pastora do lugarejo vizinho. Quem sabe? Talvez isso o prendesse à terra...
Convencido de que Angélique o seguia, o castelão começou a distribuir cumprimentos de despedida aqui e ali.
Mas a filha tinha outros projectos. Havia horas que magicava numa maneira de assistir à cerimónia do chaudaut, quando o Sol nascesse. Por isso, aproveitando um empurrão, esgueirou-se para fora do grupo de pessoas entre as quais se encontravam. Depois, descalçando-se e pegando nos tamancos, desatou a correr para o extremo da aldeia, onde as casas estavam todas desertas, pois até as avós tinham saído para a festa. Viu a escada de uma granja, subiu-a lestamente e achou o feno macio e perfumado.
Bocejou. O vinho e a fadiga da dança causavam-lhe sono.
”Vou dormir”, pensou. ”Quando acordar, serão horas e assistirei ao chaudaut.”,
As pálpebras fecharam-se-lhe e mergulhou num sono profundo.
Acordou com uma sensação agradável de bem-estar e de prazer. A atmosfera da granja continuava escura e quente. Ainda era noite e ouviam-se ao longe os gritos dos camponeses, na festa.
Angélique não compreendeu muito bem o que lhe acontecia. Invadia-lhe o corpo uma grande doçura e apetecia-lhe espreguiçar-se e gemer. De súbito, sentiu mão alheia deslizar-lhe no peito, descer-lhe pelo corpo e aflorar-lhe as pernas. Uma respiração acelerada e quente queimava-lhe a face. Estendeu os dedos e encontrou um tecido rígido.
És tu, Valentim? perguntou, baixinho. Ele não respondeu, mas aproximou-se mais.
Os vapores do vinho e a vertigem suave da escuridão toldavam o pensamento de Angélique. Não tinha medo. Reconhecia Valentim pela respiração ofegante, pelo cheiro e até pelas mãos, quase sempre arranhadas pelos caniços e pelas ervas dos pântanos e cuja aspereza, em contacto com a sua pele, a fazia estremecer.
Não receias estragar o fato novo? perguntou, num murmúrio, com uma ingenuidade não de todo isenta de inconsciente troça.
O rapaz resmungou qualquer coisa e a sua testa encostou-se ao pescoço grácil da rapariguinha.
Cheiras bem! suspirou. Cheiras bem como a flor da angélica. Tentou beijá-la, mas ela não gostou da sua boca húmida, que a procurava, e repeliu-o. Valentim agarrou-a mais violentamente, comprimiu-se contra ela, e essa brutalidade súbita despertou por completo Angélique e devolveu-lhe a lucidez. Debateu-se e tentou libertar-se, mas o rapaz agarrava-a pela cintura, ofegante. Então, furiosa, bateu-lhe na cara com os punhos fechados e gritou:
Larga-me, labrego, larga-me!
Ele largou-a, finalmente, e Angélique deixou-se escorregar da meda de feno e depois desceu a escada da granja. Sentia-se colérica e magoada, sem bem saber porquê... No exterior, gritos e luzes enchiam a noite e aproximavam-se.
A farândola!
Passaram por ela rapazes e raparigas de mãos dadas e Angélique deixou-se arrastar pela onda. A farândola metia pelas ruelas, saltava as valas, galgava os campos na semipenumbra do nascer do dia. Todos eles, ébrios de vinho e de sidra, pulavam sem cessar, caíam e riam à gargalhada. Voltaram ao largo. As mesas e os bancos estavam voltados: a farândola saltou-lhes por cima. Os archotes apagaram-se.
O chaudaut! O chaudaut!reclamavam agora as vozes. Foram bater à porta do síndico, que se deitara. ”Acorda, burguês! Vamos reconfortar os noivos!... Angélique, que conseguira, de braços derreados de fadiga, libertar-se da cadeia humana, viu aproximar-se um curioso cortejo.
À frente vinham duas personagens cómicas, vestidas de ouropéis e adornadas de guizos à maneira dos antigos bobos do rei. Seguiam-nas dois jovens que transportavam aos ombros um pau do qual pendia, pela asa, um enorme panelão. Rodeavam-nos outros rapazes e raparigas com picheis de vinho e copos. Seguiam o cortejo todos aqueles que ainda tinham coragem para se aguentar de pé e que formavam assim uma multidão muito numerosa.
Entraram sem cerimónias na cabana dos recém-casados.
Angélique achou-os graciosos, deitados lado a lado no grande leito. A jovem estava toda corada. Beberam sem recalcitrar o vinho quente com especiarias que lhes serviram. Um dos assistentes, porém, mais ébrio do que os outros, quis levantar a roupa que os cobria pudicamente, o que lhe valeu um soco do noivo. Seguiu-se uma briga, no decorrer da qual se ouviram os gritos da pobre noiva, agarrada com todas as forças às roupas da cama. Empurrada por aqueles corpos suados, sufocada por aqueles odores rústicos de vinho e carnes mal lavadas, Angélique esteve prestes a ser atirada ao chão e espezinhada. Foi Nicolau quem a libertou da multidão e a ajudou a sair.
Ufa! exclamou a rapariguinha, quando se encontrou finalmente ao ar livre. Não tem piada nenhuma, a vossa história do chaudaut. Escuta, Nicolau, porque levam vinho quente aos noivos?
Jesus! Porque é preciso reconfortá-los depois da noite de núpcias.
É assim tão fatigante?
Segundo dizem...
O rapaz desatou subitamente a rir. Os olhos brilhavam-lhe e os anéis do cabelo negro caíam-lhe para a testa morena. Angélique percebeu que estava tão bêbedo como os outros. De repente, Nicolau estendeu-lhe os braços e aproximou-se dela, cambaleante.
Angélique, és muito gira, quando falas assim, sabes?... És tão bonita, Angélique!
Enlaçou-a pelo pescoço, mas ela libertou-se sem uma palavra e deixou-o.
O Sol erguia-se sobre o devastado largo da aldeia. Decididamente, a festa acabara. Angélique seguia, com passo pouco seguro, pelo caminho que levava ao castelo, a meditar tristemente.
Depois de Valentim, até o próprio Nicolau se permitira tratá-la com estranhas maneiras. Acabava de os perder a ambos ao mesmo tempo. Teve a sensação de que a sua infância morrera, e só de pensar que não voltaria aos pântanos ou ao bosque com os seus companheiros habituais apeteceu-lhe chorar.
Foi assim que o barão de Sancé e o velho Guilherme, que andavam a procurá-la, a encontraram caminhando com passo incerto na sua direcção, de vestido rasgado e cabelos cheios de feno.
Mein Gott! exclamou Guilherme, que parou, consternado.
Donde vens, Angélique? perguntou o barão, severamente. Mas, compreendendo que ela não estava em condições de responder,
o velho soldado pegou-lhe ao colo e levou-a para casa.
Preocupado, Armando de Sancé disse para consigo que, fosse como fosse, teria de arranjar maneira de dentro de pouco tempo mandar a segunda filha para o convento.
1 Alemão: ”Meu Deus (N. da T.)
Chegada do primo de grande nobreza
Quando, num dia de Inverno, Angélique olhava pela janela para a chuva que caía, viu, estupefacta, numerosos cavaleiros e caleches sacudidas por solavancos embrenharem-se pelo caminho lamacento que levava à ponte levadiça. Lacaios de libré de ornamentos amarelos precediam os veículos e uma carruagem que parecia cheia de bagagem, aias e criados.
Os postilhões saltaram do alto dos seus lugares para conduzirem as parelhas através da entrada estreita. Lacaios que viajavam nas traseiras da primeira carruagem apearam-se e abriram as portas, cujas almofadas envernizadas ostentavam escudos vermelhos e dourados.
Angélique desceu a correr a escada da torre e chegou à entrada a tempo de ver escorregar no lamaçal do pátio um magnífico senhor cujo chapéu emplumado caiu ao chão. Uma bengalada violenta no lombo de um lacaio e uma enfiada de injúrias acompanharam o incidente.
Saltando de laje em laje, na ponta dos sapatos elegantes, o senhor conseguiu, finalmente, chegar ao abrigo da sala de entrada, onde Angélique e alguns dos irmãos e das irmãs mais novos o observavam.
Seguia-o um adolescente dos seus quinze anos, vestido com o mesmo requinte.
Por São Dinis, onde está o meu primo? perguntou o recém-chegado, olhando à sua roda.
Depois, ao ver Angélique, exclamou:
Por Santo Hilário, eis o retrato da minha prima de Sancé quando a via em Poitiers, no tempo do seu casamento! Consenti que vos beije, pequenina, como um velho tio que sou.
Ergueu-a nos braços e beijou-a cordialmente. Ao ser reposta no chão, Angélique espirrou duas vezes, tão forte era o perfume que impregnava o vestuário do senhor.
Limpou a ponta do nariz à manga e pensou maquinalmente que a tia Pulquéria lhe ralharia se a visse fazer tal coisa, mas nem sequer corou, pois não sabia o que eram a vergonha nem a atrapalhação.
Gentilmente, fez uma reverência ao visitante, no qual acabava de reconhecer o marquês do Plessis de Bellière. Depois deu alguns passos, para beijar o jovem primo Filipe.
Mas este recuou um passo e lançou um olhar horrorizado ao marquês.
Meu pai, sou obrigado a beijar esta... esta jovem pessoa?.
Pois com certeza, fedelho. Aconselho-te até a que aproveites enquanto é tempo! replicou o nobre senhor, a rir à gargalhada.
O adolescente pousou muito ao de leve os lábios nas faces redondas de Angélique e depois, tirando do gibão um lenço bordado e perfumado, sacudiu-o em redor do rosto, como se enxotasse moscas.
O barão Armando sujo de lama até aos joelhos, apareceu, por fim.
Sr. Marquês do Plessis, que surpresa! Porque não me mandou um mensageiro a prevenir da sua chegada?
Para ser franco, meu primo, tencionava seguir directamente para a minha residência do Plessis, mas a nossa viagem teve alguns contratempos. Partiu-se-nos um eixo, do lado de Neuchaut. Tempo perdido. A noite aproxima-se e estamos gelados. Ao passar nas imediações da vossa casa, pensei pedir-vos hospitalidade sem mais cerimónias. Temos os nossos leitos e os nossos guarda-roupas, que os criados armarão nos quartos que lhes indicardes. Assim teremos o prazer de conversar sem mais detença. Filipe, cumprimentai o vosso primo De Sancé e toda a encantadora ninhada dos seus herdeiros.
Assim instado, o belo adolescente avançou com ar resignado e inclinou profundamente a cabeça loura numa vénia um tanto ou quanto exagerada, dado o aspecto rústico daquele a quem se dirigia. Depois beijou docilmente as faces gorduchas e sujas dos seus jovens parentes e, para rematar, tirou de novo o lenço de renda e aspirou-lhe o perfume com expressão altiva.
O meu filho é um cabotino da corte e não está habituado ao campo explicou o marquês.Só serve para dedilhar a guitarra. Coloquei-o como pajem ao serviço do Sr. de Mazarino, mas receio que aprenda por lá a maneira de amar à italiana. Não lhe achais já um ar de menina bonita?... Sabeis em que consiste a maneira de amar à italiana?
Não respondeu ingenuamente o barão.
Explicar-vos-ei um dia, longe destes ouvidos inocentes. Morre-se de frio nesta vossa entrada, meu caro. Posso cumprimentar a minha encantadora prima?
O barão disse que as senhoras, ao verem as equipagens, tinham corrido para os seus aposentos, a fim de se vestirem, mas que o pai, o velho barão, ficaria encantado ao vê-lo.
Angélique reparou no olhar desdenhoso que o seu jovem primo lançou ao salão arruinado e escuro. Filipe do Plessis tinha olhos de um azul muito claro, mas tão frio como o aço. O mesmo olhar que deslizara pelas tapeçarias usadas, pelo pobre lume da lareira e até pelo velho avô, com a sua gorjeira fora de moda, voltou-se para a porta. As sobrancelhas louras do adolescente arquearam-se e um meio sorriso trocista desenhou-se-lhe nos lábios.
A Sr.a de Sancé entrava acompanhada porHortense e pelas duas tias. Tinham, sem dúvida, vestido os seus melhores atavios, mas o jovem deve tê-los achado ridículos, pois tapou a boca com o lenço, para disfarçar o riso.
Angélique, cujos olhos não o abandonavam, sentiu um desejo louco de se lhe atirar à cara, com todas as garras de fora. Não seria antes ele o ridículo, com todas as suas rendas e as suas fitas a cair em catadupas para os ombros e com aquelas mangas abertas da axila aos punhos, para mostrar o linho fino da camisa?
O pai, mais simples, inclinou-se diante das senhoras, varrendo o lajedo com a bela pluma frisada do chapéu.
Minha prima, desculpai a minha modesta apresentação. Venho de improviso rogar-vos hospitalidade por uma noite. Este é o meu primogénito, Filipe. Cresceu desde que o vistes, mas nem por isso se tornou mais agradável viver com ele. Tenciono comprar-lhe o posto de coronel, dentro em pouco; o exército far-lhe-á bem. Os pajens da corte de agora não têm disciplina nenhuma.
A tia Pulquéria, sempre cordial, ofereceu:
Desejais tomar alguma coisa, por certo. Água-pé ou leite coalhado? Vejo que vindes de longe.
Obrigado. Aceitaremos de bom grado um dedo de vinho cortado com água fresca.
Já não temos vinho, mas vamos mandar um moço pedi-lo ao cura respondeu o barão Armando.
Entretanto o marquês sentava-se e, brincando com a bengala de ébano enfeitada com uma roseta de cetim, contava que vinha directamente de Saint-Germain e que as estradas estavam todas transformadas em lamaçais, desculpando-se mais uma vez da sua modesta apresentação.
”Como seria se viessem sumptuosamente vestidos?”, perguntou Angélique a si mesma.
O avô, a quem tantas desculpas por causa do vestuário irritavam, tocou com a ponta da bengala no canhão das botas do visitante e observou:
A julgar pelas rendas das vossas meias e da vossa gola, o edicto que o Sr. Cardeal publicou em 1663, proibindo todos esses atavios, está esquecido.
Ora! exclamou o marquês, a suspirar. Ainda o não está o suficiente. A regente é pobre e austera. Poucos somos os que nos arruinamos para conservar um pouco de originalidade naquela corte devota. O Sr. de Mazarino ama o fausto, mas usa batina. Traz os dedos cheios de diamantes, mas rompe em impropérios, como o seu predecessor, Sr. de Richelieu, por causa de umas fitas que os príncipes prendam ao gibão. O canhão das botas... sim...
Cruzou os pés estendidos e examinou-os com tanta atenção quanta o barão Armando dedicava aos seus machos.
Creio que esta moda das rendas nos canhões vai acabar bruscamente declarou. Alguns jovens senhores começaram a usá-los tão largos como o resguardo de uma tocha e com uma circunferência tão difícil de fixar que se torna mister andar de pernas afastadas. Quando uma moda se torna terrível, desaparece por si mesma. Não sois da minha opinião, cara prima? perguntou, virando-se para Hortense, que corou de prazer e respondeu com uma ousadia e uma espontaneidade inesperadas em tão tímida donzelinha:
Oh, meu primo, creio que a moda, enquanto não desaparece, tem sempre razão! No entanto, acerca deste pormenor, não vos posso dar opinião, pois nunca vi canhões como os vossos. Sois com certeza o mais moderno dos nossos parentes!
Felicito-vos, menina, por verificar que o isolamento da vossa província vos não impede de a superardes quanto a espírito e a etiqueta, pois, se me considerais moderno, ficai sabendo que no meu tempo uma donzela não ousaria ser a primeira a elogiar. No entanto, é assim que as coisas se passam na nova geração... o que não é nada desagradável, pelo contrário. Como vos chamais?
Hortense.
Hortense, deveríeis ir a Paris e frequentar as câmaras onde se reúnem os nossos sábios e as nossas preciosas. Filipe, meu filho, precatai-vos, pois temo que tenhais fortes adversários durante a vossa estada nas nossas boas terras doPoitou.
Pela espada do Bearnês! exclamou o velho barão.Conheço um pouco de inglês, engrolo o alemão e estudei a minha própria língua, o francês, mas sou obrigado a reconhecer, marquês, que não compreendo nada do que acabais de dizer a estas damas.
Mas as damas compreenderam e isso é o principal quando se fala de modas redarguiu alegremente o fidalgo. E os meus sapatos, que pensais deles?
Porque são tão compridos e com a biqueira quadrada?perguntou Madelon.
Porquê? Ninguém o sabe, priminha, mas são a última moda. E olhai que é uma moda útil! Outro dia, o Sr. de Rochefort, aproveitando um momento em que o Sr. de Conde falava com entusiasmo, pregou-lhe um prego em cada extremidade dos sapatos. Quando o príncipe se quis afastar, descobriu que estava pregado ao chão. Pensai que, se os seus sapatos fossem menos compridos, os pregos lhe teriam traspassado os pés.
Os sapatos não foram inventados para agradar às pessoas que pregam pregos nos pés dos outros! resmungou o avô. Tudo isso é ridículo.
Sabeis que o rei está em Saint-Germain? perguntou o marquês.
Não respondeu Armando de Sancé. Mas que tem essa notícia de extraordinário?
Mas, meu caro, é por causa da Fronda!
Aquela palrice divertia as senhoras e as crianças, mas os dois fidalgos provincianos, habituados aos vagares camponeses, perguntavam a si mesmos se o seu prolixo parente não estaria a zombar deles, como era seu costume.
A Fronda? Mas isso é uma brincadeira de garotos.
Uma brincadeira de garotos! Tendes cada uma, meu primo! Aquilo a que chamamos a Fronda, na corte, é simplesmente a revolta do Parlamento de Paris contra o rei. Já alguma vez ouviu algo de semelhante? Há vários meses que aqueles cavalheiros de chapéu quadrado se tomaram de razões com a regente e o seu cardeal italiano... Questões de impostos em que os privilégios deles não eram sequer lesados. Mas decidiram armar-se em protectores do povo e toca de fazer discursos atrás de discursos, apontando inconvenientes e mais inconvenientes. E a regente começa a sentir a mostarda subir-lhe ao nariz... Ouviram com certeza falar das agitações de Abril último?
Vagamente.
As coisas passaram-se aquando da prisão do parlamentar Broussel. A rainha mandou-o prender numa manhã em que ele se purgara. Como a populaça se amotinara, instigada pelos gritos de uma criada, Commingues, o coronel da Guarda, não pôde esperar que ele se vestisse e arrastou-o de roupão de carruagem em carruagem. Por fim lá conseguiu efectuar, não sem dificuldade, o rapto de que o tinham encarregado. Mais tarde contou-me que a cavalgada pelo meio dosamotinados o teria divertido muito se se tratasse de uma donzela simpática em vez de um velho choramingas, que não percebia nada do que se passava... E a ralé, decepcionada, vá de erguer barricadas através das ruas. É uma brincadeira que o povo adora, para distrair a cólera.
E a rainha e o reizinho?perguntou cheia de ansiedade a tia Pulquéria, que era sentimental.
Que vos hei-de dizer? Recebeu com muita altivez os senhores do Parlamento e depois cedeu. Em seguida zangaram-se e reconciliaram-se diversas vezes. No entanto, acreditai-me, nestes últimos meses Paris lembrou-me um caldeirão de bruxas fervilhante de paixões. É uma cidade simpática, mas que esconde no seu âmago um número incalculável de miseráveis e bandidos, dos quais só nos poderíamos desembaraçar queimando-os aos montes, como bicharia asquerosa.
” Para não falar dos panfletários e dos poetas abjectos, cuja pena pica mais ferozmente do que o ferrão da abelha. Paris está inundada de panfletos que repetem em verso e em prosa: Fora Mazarino! Fora Mazarino! A tal ponto que lhes chamam mazarinadas. a rainha até os encontra no leito, e não há nada melhor para fazer passar mal uma noite e tornar a tez amarela do que esses papelinhos de aspecto inocente.
”Em resumo, o drama rebentou. Os senhores do Parlamento havia muito que tinham esse pressentimento, temiam incessantemente que a rainha levasse o pequeno rei para fora de Paris, e por isso apresentaram-se três vezes à noite, em grande grupo, e pediram para contemplar a bela criança enquanto dormia. Na realidade, o que pretendiam era certificar-se de que o pequeno ainda lá estava. Mas a Espanhola e o Italiano são manhosos. No dia de Reis bebemos e festejámos na corte com muita alegria e comemos, sem pensamentos reservados, o bolo tradicional. Cerca do meio da noite, quando me preparava com alguns amigos para visitar as tabernas, recebi ordem para reunir a minha gente e as minhas equipagens e me dirigir para uma das portas de Paris. E daí para Saint-Germain. Lá encontrei, já chegados, a rainha e os seus dois filhos, as suas donzelas de honor e os seus pajens, toda essa bela gente, em suma, deitada na palha, no velho castelo cheio de correntes de ar. O Sr. de Mazarino também chegou. Depois Paris foi cercada pelo príncipe de Conde, que se colocou à frente dos exércitos do rei. Na capital, o Parlamento continua a brandir a bandeira da insurreição, mas está muito aborrecido. O coadjutor de Paris, o príncipe de Gondi e cardeal de Retz, que desejaria substituir Mazarino, também está com os revoltosos. Quanto a mim, segui o Sr. de Conde.
Com o que muito me alegro declarou, entre suspiros, o velho barão. No tempo de Henrique IV jamais se viu semelhante desordem. Parlamentares, príncipes em rebelião contra o rei de França! Temos aí mais uma vez a influência das ideias de além-Mancha. Não se diz que o Parlamento inglês também brandiu a bandeira da sedição contra o seu rei, ao ponto de ousar aprisioná-lo?
Acabam até de lhe colocar a cabeça no cepo. Sua Majestade, Carlos I, foi executado em Londres o mês passado.
Que horror! exclamou, aterrada, toda a assistência.
Como calculais, a notícia não tranquilizou ninguém na corte de França, onde aliás se encontra a desconsolada viúva do rei de Inglaterra com os seus dois filhos. Por isso decidiu-se ser-se feroz e intransigente com Paris. Acabo precisamente de ser enviado para aqui como adjunto do Sr. de Saint-Maur, a fim de recrutar exércitos no Poitou e de os mandar ao Sr. de Turenne, que é, sem dúvida, o mais corajoso comandante militar ao serviço do rei. Seria o diabo se, nas minhas terras e nas vossas, meu caro primo, não recrutasse, pelo menos, um regimento para oferecer ao meu filho. Mandai pois os vossos preguiçosos e os vossos indesejáveis aos meus sargentos, barão. Faremos deles dragões.
Será preciso continuar a falar de guerras? perguntou, vagaroso, o barão. Dir-se-ia que as coisas se iam compor... Não foi assinado, no Outono, um tratado na Vestefália que consagra a derrota da Áustria e da Alemanha?... Julgávamos que poderíamos respirar um pouco. Além disso, suponho que a nossa região não merece censuras, se pensarmos nas campanhas da Picardia e da Flandres, onde ainda estão os Espanhóis e que há trinta anos...
Essa gente está habituada interveio, em tom despreocupado, o marquês. Meu caro, a guerra é um mal necessário e é quase herético reclamar uma paz que Deus não quis para nós, pobres pecadores. O essencial é estar entre os que fazem a guerra, e não entre os que a sofrem... Pela minha parte, escolherei sempre a primeira fórmula, a que a minha condição me dá direito. O aborrecido desta história é que a minha mulher ficou em Paris... do outro lado. Sim, com o Parlamento. Mas não penso que tenha um amante entre esses graves e doutos magistrados, aos quais falta brilho. Imaginai, as damas adoram conluios e a Fronda encanta-as. Reuniram-se à volta da filha de Castão de Orleães, irmão do rei Luís XIII. Usam lenços azuis a tiracolo e até pequenas espadas com boldriés de rendas. Tudo muito bonito, sem dúvida, mas não posso deixar de me sentir inquieto por causa da marquesa.
Pode ter uma infelicidade...gemeu Pulquéria.
Não. Considero-a exaltada, mas prudente. Os meus tormentos são de outra natureza e, se infelicidade houver, creio que será antes para
mim. Compreendeis-me? As separações deste género são funestas para um esposo que não gosta de separações. Pela minha parte...
Interrompeu-o um violento ataque de tosse, pois o moço de cavalariça, promovido a criado, acabava de lançar na lareira, para avivar o lume, um enorme molho de palha húmida. Na nuvem de fumo que encheu o aposento só se ouviram, durante momentos, ataques de tosse.
Com a breca, meu primo!exclamou o marquês, quando recuperou o fôlego. Compreendo o vosso cuidado em querer respirar um pouco. O vosso idiota merecia uma tosa com uma verdasca verde.
Aceitara o acidente despreocupadamente e Angélica achou-o simpático, apesar de condescendente. A sua tagarelice apaixonava-a, era como se o velho castelo adormentado acabasse de acordar e abrir as pesadas portas a outro mundo, cheio de vida.
Em contrapartida, porém, o filho do marquês tornava-se cada vez mais carrancudo. Sentado, muito hirto, na cadeira, com os caracóis louros bem dispostos na larga gola de renda, lançava olhares absolutamente horrorizados a Juscelino e a Gontrano, que, conscientes do efeito que produziam, exageravam a grosseria das suas atitudes, indo ao ponto de escarafunchar o nariz e coçar a cabeça. O comportamento dos irmãos transtornava positivamente Angélique e causava-lhe um mal-estar muito próximo da náusea. Aliás, havia algum tempo que se sentia dolente. Doía-lhe o ventre e Pulquéria proibira-a de comer cenouras cruas, como era seu hábito. Mas. naquela noite, depois das numerosas emoções e distracções provocadas pelos inesperados visitantes, tinha a impressão de que ia adoecer. Por isso não dizia nada e mantinha-se muito calada, na sua cadeira. Todas as vezes que olhava para o primo Filipe do Plessis algo lhe apertava a garganta e ela não sabia se era um sentimento de aversão, se de admiração. Nunca vira um rapaz tão belo.
Os seus cabelos, cuja franja sedosa lhe caía, arqueada, para a testa, eram de um tom dourado brilhante, comparado com o qual os caracóis dela pareciam escuros. O rapaz tinha feições perfeitas e o seu fato, de excelente tecido cinzento, guarnecido de rendas e fitas azuis, harmonizava-se com os tons branco e rosa da sua tez. Tomá-lo-iam sem dúvida por uma rapariga, não fora a dureza do seu olhar, que não tinha nada de feminino.
Por causa dele, o serão e o jantar foram um suplício para Angélique. Cada erro dos criados, cada falta de comodidade, eram sublinhados por um olhar ou por um sorriso trocista do adolescente.
João Couraça, que desempenhava as funções de mordomo, trazia os pratos, com o guardanapo no ombro. O marquês desmanchou-se a rir e disse que semelhante modo de usar o guardanapo só se usava na mesa do rei e dos príncipes de sangue, que se sentia lisonjeado com a honra que lhe faziam, mas que se contentaria se o servissem com mais simplicidade, isto é, com o guardanapo enrolado ao antebraço. Cheio de boa vontade, o carroceiro esforçou-se por enrolar o pano seboso ao braço cabeludo, mas a sua falta de jeito e os seus suspiros aumentaram a hilaridade do marquês, à qual o filho não tardou a fazer coro.
Aqui está um homem que veria melhor como dragão do que como criado observou o marquês, olhando para João Couraça. Que te parece, meu rapaz?
Intimidado, o carroceiro respondeu com um grunhido de urso, que não fazia honra, longe disso, à língua desembaraçada da mãe. A toalha, que tinham tirado dum armário húmido, fumegava, em contacto com os pratos quentes da sopa. Um dos criados, querendo mostrar-se zeloso, espevitava constantemente as poucas velas, do que resultava apagá-las algumas vezes.
Por fim, para cúmulo da desgraça, o moço que tinham mandado pedir vinho ao cura voltou e, coçando a cabeça, contou que o cura partira, para exorcismar ratos num povoado vizinho, e a sua criada, a Maria Joana, recusara-se a dar o mais pequeno barrilinho
Não vos preocupeis com esse pormenor, minha prima interveio galantemente o marquês doPlessis. Beberemos água-pé de maçã e, se o senhor meu filho se não acostumar a ela, passará sem beber. Em contrapartida, porém, peço-vos alguns esclarecimentos acerca do que acabo de ouvir. Compreendo o suficiente do patoá da região, que engrolei no meu tempo de garoto, para ter percebido o que disse o tunante do moço. O cura foi exorcismar ratos! Que história vem a ser essa?
Nada de muito surpreendente, meu primo. Os habitantes de um povoado vizinho queixavam-se efectivamente, há algum tempo, de uma invasão de ratos que lhes devoravam as reservas de cereais. O cura deve lá ter ido levar a água benta e fazer as preces do costume, para que os espíritos maus que habitam os animais se retirem e eles deixem de ser nocivos.
O marquês olhou para Armando de Sancé com algum espanto e depois, inclinando-se na cadeira, desatou a rir suavemente.
Nunca ouvi nada tão engraçado! Tenho de escrever à Sr.a de Beaufort a contar-lhe. Portanto, para destruírem os ratos aspergem-nos de água benta?
Porque considera isso divertido? perguntou o barão, que começava a impacientar-se. Todo o mal é obra de espíritos maus que se introduzem no invólucro dos animais para incomodar os humanos. O ano passado, as lagartas invadiram-me um dos campos e mandei exorcismá-las.
E elas foram-se embora?
Foram. Logo ao fim de dois ou três dias.
Quando já não tinham nada que comer no campo.
A Sr.a de Sancé, que obedecia ao princípio de que uma mulher se deve calar humildemente, não se conteve e assumiu a palavra para defender a sua fé, que supunha atacada:
Não vejo, meu primo, porque não hão-de os exercícios sagrados exercer influência sobre animais nocivos. O próprio Nosso Senhor não fez entrar demónios numa vara de porcos, segundo reza o Evangelho? O nosso cura insiste muito neste género de preces.
E quanto lhe pagais por exorcismo?
Pede pouco e está sempre pronto a incomodar-se e a vir quando o chamam.
Desta vez, Angélique surpreendeu o olhar de cumplicidade que o marquês do Plessis trocava com o filho: ”esta pobre gente” parecia dizer, ”é realmente de uma ingenuidade deveras grosseira”.
Tenho de falar ao Sr. Vicente destes costumes provincianos prosseguiu o marquês. O bom homem, que fundou uma ordem especialmente destinada a evangelizar o clero rural, ficará doente. Os seus missionários encontram-se sob a protecção de São Lázaro e chamam-lhes lazaristas. Vão para a província aos três e três, pregar e ensinar aos curas das nossas aldeias que não devem começar a missa pelo Pater nem dormir com a criada. Trata-se de uma obra muito inesperada, mas o Sr. Vicente é partidário da reforma da Igreja pela Igreja.
Aí está uma palavra de que não gosto! exclamou o velho barão. Reforma, sempre reforma! As vossas palavras têm uma ressonância huguenote, meu primo. Receio que daí a trairdes o rei vá apenas um passo. Quanto ao vosso Sr. Vicente, por muito eclesiástico que seja, pelo que entendi e ouvi dizer dele, as suas atitudes têm algo de herético, de que Roma andaria bem em desconfiar.
O que não impediu que Sua Majestade o rei Luís XIII, no momento da morte, tenha querido dar-lhe a chefia do Conselho da Consciência.
Que vem a ser mais isso?
Com um gesto leve dos dedos, o Sr. do Plessis tufou as mangas de pano fino, antes de responder:
Como explicar-vo-lo? É uma coisa enorme: a consciência do reino! O Sr. Vicente de Paulo é a consciência do reino, mais nada. Vê a rainha quase todos os dias e é recebido por todos os príncipes, o que não o impede de ser o homem mais simples e mais risonho que se possa imaginar. Na sua opinião, a miséria é curável e os grandes deste mundo devem ajudar a reduzi-la.
Utopia! sentenciou a tia Joana, com impertinência. A miséria é, como dissestes há pouco acerca da guerra, um mal que Deus quis, para castigo do pecado original. Insurgirmo-nos contra a sua obrigação equivale a uma revolta contra a disciplina divina!
O Sr. Vicente responder-vos-ia, minha cara, que ”vós” sois responsável pelos males que nos cercam e mandar-vos-ia, sem mais discursos, levar remédios e alimentos aos mais pobres dos vossos trabalhadores, frisando-vos que, se os achásseis, segundo a sua expressão, ”excessivamente grosseiros e terrestres”, teríeis apenas de virar a medalha para verdes no seu reverso a imagem do Cristo sofredor. Foi assim que o demónio do homem arranjou maneira de alistar quase todas as altas personalidades do reino nas suas falanges caritativas. Aqui onde me vedes acrescentou o marquês, com ar compungido, quando estava em Paris, ia duas vezes por semana ao hospital deitar e servir a sopa aos doentes.
Nunca deixais de me espantar! exclamou, agitado, o velho barão. Decididamente, os nobres da vossa espécie não sabem que mais inventar para desonrar o seu brasão. Verifico que o mundo já só gira às avessas: criam-se padres para evangelizar os padres, e é um desavergonhado como vós, quase um libertino, que vem pregar moral a uma família honrada e sã como a nossa. Não suporto mais!
Fora de si, o velho levantou-se e, como a refeição terminara, todos o imitaram. Angélique, que não conseguira comer nada, saiu sorrateiramente da sala. Inexplicavelmente, tinha frio e percorriam-na estremecimentos. Tudo quanto acabava de ouvir lhe turbilhonava na cabeça: o rei na palha, o Parlamento revoltado, os grandes senhores a servirem a sopa e Paris, um mundo cheio de vida e de atractivos. Em contraste com toda essa agitação, com toda essa impetuosidade, parecia-lhe que ela, Angélique, estava como morta, vivia encerrada numa cripta.
De súbito ocultou-se num recesso do corredor. O primo Filipe passou perto, sem a ver, e ela ouviu-o subir ao andar de cima e interpelar os criados, que, à luz de alguns castiçais, preparavam os quartos dos seus amos. A voz de falsete do adolescente elevou-se, colérica: Parece impossível que nenhum de vós se tenha lembrado de arranjar velas na última paragem! Devíeis saber que nestes cantos perdidos os chamados nobres não valem mais do que os seus vilões. Mandaram ao menos aquecer água para o meu banho?
O homem respondeu qualquer coisa que Angélique não ouviu e Filipe redarguiu, em tom resignado:
Paciência, lavar-me-ei numa selha! Felizmente o meu pai disse-me que o castelo do Plessis tem duas salas de banho florentinas. Já me tarda lá chegar! Tenho a impressão de que jamais me sairá do nariz o odor desta tribo de Sancés.
”Desta vez paga-mas!”, pensou Angélique.
Viu-o descer, à luz da lanterna colocada na consola da antecâmara e, quando ele se aproximou, saiu da sombra da escada de caracol.
Como ousais falar de nós aos lacaios com tamanha insolência? perguntou em voz límpida, que ressoou nas abóbadas. Não tendes nenhuma noção da dignidade da nobreza? Isso deve-se por certo ao facto de descenderdes de um bastardo do rei, ao passo que o nosso sangue é puro.
Tão puro quanto a vossa pele é suja retorquiu o jovem, em tom glacial.
Angélique deu um salto inesperado e atirou-se-lhe à cara com todas as garras de fora, mas o rapaz, senhor de uma força já viril, agarrou-lhe os pulsos e empurrou-a violentamente-contra a parede. Depois afastou -se, sem apressar o passo.
Atordoada, Angélique sentiu o coração bater desordenadamente. Sufocava-a um sentimento desconhecido, feito de vergonha e desespero.
”Odeio-o”, pensou, ”e um dia vingar-me-ei. Terá de se inclinar, de me pedir perdão.
Mas, por enquanto, não passava de uma pobre rapariguinha, encolhida na sombra de um velho castelo húmido.
Uma porta gemeu, a abrir-se, e ela distinguiu o vulto maciço do velho Guilherme, que transportava dois baldes de água fumegante para o banho do jovem senhor. Ao vê-la, parou e perguntou:
Quem está aí?
Sou eu respondeu Angélique, em alemão.
Quando estava sozinha com o velho soldado, falava sempre nessa língua, que ele lhe ensinara.
Que fazeis aí?indagou Guilherme, na mesma língua. Está frio. Ide para as salas, escutar as histórias do vosso tio, o marquês. Ficareis com que vos alegrar um ano inteiro.
Detesto essa gente! confessou tristemente Angélique. São impertinentes e muito diferentes de nós, destroem tudo aquilo em que tocam e depois deixam-nos sós e de mãos vazias, enquanto regressam aos seus bonitos castelos cheios de magníficos objectos.
Que se passa, minha filha? perguntou, devagar, o velho Lutzen. O vosso espírito não sabe elevar-se acima de algumas zombarias?
O mal-estar de Angélique aumentou. Um suor frio molhou-lhe as têmporas.
Dize-me uma coisa, Guilherme, tu, que nunca estiveste numa corte de príncipes: que devemos fazer quando conhecemos ao mesmo tempo um mau e um cobarde?
Estranha pergunta para uma criança! Mas já que ma fazeis, dirvos-ei que se deve matar o mau e deixar o cobarde fugir.
E acrescentou, após um momento de reflexão, enquanto voltava a pegar nos baldes:
Mas o vosso primo Filipe não é mau nem cobarde. Um pouco jovem, mais nada...
Também tu o defendes! gritou Angélique, em voz aguda. Também tu! Porque ele é bonito... porque ele é rico...
Veio-lhe um gosto amargo à boca, cambaleou e, escorregando pela parede abaixo, caiu desmaiada.
A doença de Angélique era, afinal, uma coisa muito natural. Quanto às suas manifestações, que inquietavam um pouco a criança tornada mulherzinha, a Sr.a de Sancé tranquilizou-a e avisou-a de que de futuro lhe aconteceria o mesmo todos os meses, até uma idade avançada.
Desmaiarei assim todos os meses? indagou Angélique, surpreendida por não ter reparado nos desmaios mensais, pelos vistos obrigatórios, das mulheres que a cercavam.
Não, isso foi apenas um acidente. Ficareis boa e habituar-vos-eis muito bem ao vosso novo estado.
Mesmo assim, até uma idade avançada é muito tempo! protestou a rapariguinha. E quando for velha já não será altura de recomeçar a subir às árvores.
Podereis muito bem continuar a subir às árvoresafirmou a Sra de Sancé, que demonstrava muita delicadeza na educação dos filhos e parecia compreender o pesar de Angélique. Mas, como vós própria o discernistes, parece de facto chegada a ocasião de abandonar maneiras que não convêm à vossa idade nem à vossa condição de menina nobre.
Acrescentou um pequeno discurso acerca da alegria de trazer filhos ao mundo e do castigo original que pesava sobre as mulheres, por culpa da nossa mãe Eva.
”Juntemos isso à miséria e à guerra”, pensou Angélique.
Estendida entre os lençóis e ouvindo a chuva cair no exterior, experimentava um certo bem-estar. Sentia-se fraca e, ao mesmo tempo, mais crescida. Tinha a impressão de estar deitada a bordo de um navio que se afastava de uma margem conhecida a fim de navegar para outro destino. De vez em quando pensava em Filipe e cerrava os dentes.
Depois do desmaio e de a terem metido na cama e confiado aos cuidados de Pulquéria, não dera pela partida do marquês e do filho.
Contaram-lhe que eles não se tinham demorado em Monteloup. Filipe queixara-se dos percevejos, que não o tinham deixado dormir.
E a minha súplica ao rei? perguntara o barão de Sancé no momento em que o seu ilustre parente subia para a carruagem. Pudestes apresentar-lha?
Apresentei, meu pobre amigo, mas não creio que possais esperar grande coisa: a real criança está presentemente mais pobre do que vós e não tem por assim dizer um tecto sob o qual repousar a cabeça.
E depois acrescentara, desdenhosamente:
Contaram-me que vos entreteis a criar belos machos. Vendei alguns.
Reflectirei na vossa sugestão retorquira Armando de Sancé, num tom irónico que não lhe era habitual. Presentemente, é sem dúvida preferível um fidalgo ser laborioso do que contar com a generosidade dos seus pares.
Laborioso! Pff! Que palavra tão feia! exclamara o marquês, acompanhando as palavras com um gesto garrido da mão. Então adeus, meu primo. Mandai os vossos filhos para os exércitos e para o regimento do meu os vossos aldeãos mais robustos. Adeus. Beijo-vos mil vezes.
A carruagem afastara-se, aos solavancos, enquanto a mão elegante do marquês acenava à janela.
Não houve outras visitas dos senhores do Plessis. Soube-se que davam algumas festas e depois que iam partir de novo para a ilha de França, com o seu exército novinho. Tinham passado por Monteloup sargentos recrutadores.
No castelo, João Couraça e um criado da quinta deixaram-se tentar pelo futuro glorioso reservado aos dragões do rei. A ama Fantine chorou muito com a partida do filho.
Não era mau, mas agora vai-se tornar um retre da vossa espécie disse ela a Guilherme Lútzen.
É uma questão de hereditariedade, minha boa mulher. Não teve como pai presumível um soldado?
Para contar os dias, adquiriu-se o hábito de dizer ”foi antes” ou ”foi depois” da visita do marquês do Plessis.
Visita do homem de negro. Fuga para a América do irmão mais velho de Angélique
”Depois houve o incidente do ”visitante negro”.
Deste, Angélique guardou recordação mais profunda e demorada. Em vez de destruir e mortificar como os hóspedes anteriores, levou com as suas palavras uma esperança que acompanharia a jovem ao longo da sua vida, uma esperança tão profundamente enraizada que, nos momentos de amargura que mais tarde conheceu, lhe bastava fechar os olhos para rever aquele entardecer de Primavera, todo murmurante de chuva, em que ele aparecera.
Angélique estava na cozinha, como de costume. À sua volta brincavam Dinis, Maria Inês e o pequeno Alberto. O lume brilhava lá permanentemente e quase sem fumo, porque o cano da imensa chaminé era muito alto. A claridade desse lume eterno dançava e revia-se nos fundos vermelhos das caçarolas e dos tachos de cobre pesado que guarneciam as paredes. O selvagem e sonhador Gontrano passava por vezes horas a observar a cintilação desses reflexos, onde descobria estranhas visões, e Angélique reconhecia neles os espíritos tutelares de Monteloup.
Nesse anoitecer, Angélique preparava um patê de lebre. Já amoldara a massa no feitio de torta e estava a picar a carne. Ouviu-se, no exterior, o galope de um cavalo.
É o vosso pai que regressa disse a tia Pulquéria. Acho que seria decente irmos ter com ele ao salão, Angélique.
Mas, passado um breve silêncio, durante o qual o cavaleiro devia ter desmontado, a sineta da porta de entrada tilintou.
Vou ver quem é! gritou Angélique, que correu para a porta sem se preocupar com as mangas arregaçadas e os braços polvilhados de farinha.
Distinguiu através da chuva e da bruma do anoitecer um homem alto e magro, cuja capa reluzia, de molhada.
Abrigou o cavalo? Aqui os animais apanham frio facilmente. Há muito nevoeiro, por causa dos pântanos.
Agradeço-vos, menina respondeu o desconhecido, tirando o grande chapéu e inclinando-se. Segundo o hábito dos viajantes, tomei a liberdade de recolher imediatamente o meu cavalo e a minha bagagem na vossa cavalariça. Achando-me demasiado longe da minha meta para esta noite e passando perto do castelo de Monteloup, pensei solicitar ao Sr. Barão hospitalidade por uma noite.
Pelo fato de grossa fazenda preta, guarnecido apenas por uma gola branca, Angélíque pensou que se tratava de algum pequeno comerciante ou camponês endomingado. No entanto, o seu sotaque, que não era o da região e parecia um pouco estrangeiro, assim como o cuidado na escolha das palavras, desconcertavam-na um pouco.
O meu pai ainda não voltou, mas vinde aquecer-vos na cozinha. Mandaremos um criado enxugar o vosso animal.
Quando voltou à cozinha, à frente do visitante, o irmão, Juscelino, acabava de entrar pela porta de serviço. Coberto de lama e de rosto vermelho e sujo, arrastara para o lajeado um javali morto por ele com um chuço.
Boa caçada, senhor? perguntou-lhe o desconhecido, com muita cortesia.
Juscelino lançou-lhe um olhar despido de amenidade e respondeu-lhe com um grunhido. Depois sentou-se num tamborete e estendeu os pés para o lume. Mais recatadamente, o desconhecido instalou-se também ao canto da lareira e aceitou um prato de sopa das mãos de Fantine.
Explicou que era originário da região, pois nascera perto de Secondigny, mas, em virtude de ter passado longos anos a viajar, acabara por ser incapaz de falar a própria lingua, a não ser com forte sotaque.
Mas estava convencido que isso passaria depressa. Havia apenas uma semana que desembarcara em La Rochelle.
Ao ouvir as últimas palavras, Juscelino endireitou a cabeça e olhou-o com atenção. Os garotos rodearam o recém-chegado e crivaram-no de perguntas:
A que país foi?
É longe?
Que profissão é a vossa?
Não tenho profissão respondeu o desconhecido. De momento, creio que me agradaria muito percorrer a França e contar a quem as quisesse ouvir as minhas aventuras e as minhas viagens.
Como os poetas, como os trovadores da idade Média? inquiriu Angélique, que, apesar de tudo, conseguira fixar alguns dos ensinamentos da tia Pulquéria.
Mais ou menos isso, embora eu não saiba cantar nem fazer versos. Mas poderia contar coisas muito belas acerca das terras onde a vinha não precisa de ser plantada. As uvas pendem das árvores das florestas, mas os habitantes não sabem fazer vinho. É melhor assim, pois Noé embriagou-se e o Senhor não quis que todos os homens se transformassem em porcos. Ainda há povos inocentes na Terra. Também poderia falar-vos das grandes planícies onde, para ter um cavalo, basta esperar atrás de um rochedo a passagem dos rebanhos selvagens que por lá galopam, de crinas ao vento. Lança-se uma corda comprida, com um nó corredio, e pronto, fica-se com um animal.
E domestica-se facilmente?
Nem sempre respondeu sorrindo o visitante.
Angélique compreendeu, de súbito, que aquele homem raramente devia sorrir. Aparentava uns quarenta anos, mas tinha no olhar um não sei quê de inflexível e apaixonado.
Para ir a esses países vai-se ao menos por mar?perguntou, desconfiado, o taciturno Juscelino.
Atravessa-se todo o oceano. Lá, no interior das terras, encontram-se rios e lagos. A pele dos habitantes é de um vermelho-acobreado. Enfeitam a cabeça com penas de aves e deslocam-se em embarcações feitas de peles de animais. Também estive em ilhas onde os homens são todos pretos. Alimentam-se de canas grossas como um braço, a que se chama cana-de-açúcar, e é de facto delas que vem o açúcar. Também fazem desse xarope uma bebida mais forte do que a aguardente de cereais, mas que embriaga menos e dá alegria e força: o rum.
Trouxeste alguma quantidade dessa bebida maravilhosa?perguntou Juscelino.
Tenho uma garrafa nos alforges da sela, mas deixei diversos barris em casa do meu primo, que mora em La Rochelle e está decidido a ter com eles bom lucro. É a sua profissão. Mas eu não sou comerciante, sou apenas um viajante curioso de terras novas, ávido de conhecer esses lugares onde ninguém tem fome nem sede e onde o homem se sente livre. Foi lá que compreendi que todo o mal provinha do homem de raça branca, porque não escutou a palavra do Senhor e a atraiçoou. O Senhor não mandou matar nem destruir, mandou que nos amássemos.
Seguiu-se um momento de silêncio. As crianças não estavam habituadas a uma linguagem tão insólita.
A vida nas Américas é então mais perfeita do que nas nossas terras, onde Deus reina há tanto tempo? perguntou de súbito a voz calma de Raimundo.
O rapaz aproximara-se também sem darem por ele e Angélique viu-lhe no olhar uma expressão análoga à do desconhecido. Este observou-o com atenção.
É difícil pesar numa balança as perfeições diferentes de um mundo antigo e de um mundo novo, meu filho. Que vos posso dizer? Nas Américas vive-se de uma maneira muito diferente. A hospitalidade entre homens brancos é grande e generosa. Não é nunca questão de pagamento e, de resto, em certos lugares o dinheiro nem sequer existe e vive-se unicamente da caça, da pesca e de trocas de peles e missanga. unicamente da caça, da pesca e de trocas de peles e missanga.
E a agricultura?
Desta vez era Fantine Lozier quem perguntava, coisa que jamais se atreveria a fazer na presença dos seus amos adultos. Mas sentia uma curiosidade tão devoradora como a das crianças.
A agricultura? Nas Antilhas, os negros cultivam um pouco. Na América, porém, os Peles-Vermelhas não a praticam e vivem da recolecção de frutos e rebentos. Há outros lugares onde se cultiva a batata, a que na Europa se chama trufa, mas que ainda não se sabe trabalhar. Há sobretudo frutos: espécies de pêras, que na realidade estão cheias de manteiga, e árvores de pão.
Árvores de pão? Então não há necessidade de moleiro! exclamou Fantine.
Claro que não, tanto mais que há muito milho. Noutras regiões, as pessoas mascam algumas cascas ou nozes de cola. Com isso não se tem fome nem sede todo o dia. Também se podem alimentar de uma espécie de pasta de amêndoa, o cacau, que se mistura com açúcar mascavado. E bebe-se um extracto de umas favas chamadas café. Nas regiões mais desérticas encontra-se suco de palma ou de piteira. Há animais...
Pode-se fazer sabotagem mercantil nesses países? interrompeu Juscelino.
Já a fazem alguns diepeses, assim como gente daqui. O meu próprio primo trabalha para um armador que parte por vezes para a Costa Franciscana, como se dizia no tempo de Francisco I.
Bem sei, bem sei interrompeu de novo Juscelino, impaciente Também sei que oloneses vão por vezes à Terra Nova e pessoas do Norte à Nova França, mas parece que esses países são frios e isso, não me interessaria. Com efeito, Champlain foi enviado para a Nova França já em 1608, e encontram-se lá muitos colonos franceses. Mas é realmente uma terra fria, onde a vida é muito dura.
Mas porquê?
É difícil explicar-vos. Talvez por já lá se encontrarem jesuítas franceses.
Sois protestante, não é verdade? arriscou vivamente Raimundo.
Sim, sou. Sou até pastor, embora sem paróquia. Mas o que sobretudo sou é viajante.
Haveis batido a má porta, senhor observou, irónico, Juscelino. Desconfio que o meu irmão se sente fortemente atraído pela disciplina e pelos exercícios espirituais da Companhia de Jesus, que incriminais.
Longe de mim o pensamento de lho censurar afirmou o huguenote, com um movimento de protesto. Encontrei muitas vezes, por essas terras, padres jesuítas que penetraram no interior desses países com uma coragem e uma abnegação evangélicas. Para algumas tribos da Nova França não há maior herói do que o célebre padre Jogues, mártir dos Iroqueses. Mas cada um é livre quanto à sua consciência e às suas convicções.
Confesso que não sei discorrer convosco acerca desses assuntos, pois começo a esquecer o meu latimdisse Juscelino. Mas o meu irmão fala-o mais elegantemente do que o francês e...
Ora aí está uma das maiores desgraças que atingem a nossa França! exclamou o pastor. Que já não se possa orar ao seu Deus, que digo eu, ao Deus dos mundos, na língua materna e com o próprio coração, mas que seja indispensável recorrer a esses encantamentos mágicos em latim...
Angélique lamentou que já não se falasse de tempestades marítimas e navios negreiros, de animais extraordinários como as serpentes ou os lagartos gigantes de dentes de lúcio, capazes de matar um boi, ou de baleias enormes, do tamanho de barcos.
Nem sequer se apercebera de que a ama saíra da cozinha e deixara a porta entreaberta. Por isso, ela e os outros foram surpreendidos por murmúrios e pela voz da Sr.a de Sancé, que não imaginava estar a ser ouvida.
Canadá
Protestante ou não, minha filha, esse homem é nosso hóspede e ficará aqui enquanto o desejar.
Pouco depois, a baronesa entrou na cozinha, seguida por Hortense. O visitante inclinou-se delicadamente, sem beija-mão nem reverência de corte. Angélique pensou que, embora plebeu, era simpático,- apesar de huguenote e um tanto ou quanto exaltado.
Pastor Rochefort apresentou-se o indivíduo.Dirijo-me para Secondigny, onde nasci, mas, como a estrada era longa, pensei repousar sob o vosso tecto hospitaleiro, minha senhora.
A dona da casa garantiu-lhe que era bem-vindo, que, embora fossem todos católicos praticantes, isso não os impedia de serem tolerantes, como recomendara o bom rei Henrique IV.
Foi o que ousei esperar ao entrar aqui, minha senhora declarou o pastor, inclinando-se mais profundamente, pois devo confessar que amigos meus me contaram que tendes há longos anos um velho servidor huguenote. Por isso procurei-o primeiro e foi o próprio Guilherme Lútzen quem me deu esperança de que poderia ser por vós acolhido esta noite.
Disso podeis estar certo, senhor, esta noite e até nos dias seguintes, se tal for do vosso gosto.
O meu único gosto é estar às ordens do senhor da maneira que possa servi-lo. E foi ele que me inspirou, confesso-o, ainda que seja sobretudo ao vosso marido que deseje ver...
Tendes uma comissão para o meu marido?perguntou, admirada, a Sr.a de Sancé.
Uma comissão, não, mas talvez uma missão. Permiti que só a ele a comunique.
Com certeza, senhor. Aliás, ouço já o seu cavalo.
O barão Armando não tardou a entrar também na cozinha. Deviam tê-lo advertido da visita inesperada. Não demonstrou ao hóspede a cordialidade habitual e pareceu até constrangido e como que ansioso.
É verdade, senhor, que vindes das Américas? indagou após os cumprimentos da praxe.
É, sim, Sr. Barão. E gostaria de falar alguns instantes a sós convosco, a fim de vos dar notícias de quem sabeis.
Caluda! ordenou imperiosamente Armando de Sancé, lançando um olhar inquieto para a porta.
Acrescentou, com certa precipitação, que a sua casa estava ao dispor do Sr. Rochefort, a quem bastaria pedir aos criados tudo quanto fosse necessário para o seu conforto. Jantariam dentro de uma hora. O pastor agradeceu e pediu autorização para se retirar, a fim de se ”lavar um pouco”.
”A chuvada não lhe bastou?”, pensou Angélique. ”Estranhas criaturas estes huguenotes! É certo o que dizem, que não são como toda a gente. Hei-de perguntar ao Guilherme se também se lava por tudo e por nada. Deve fazer parte dos seus ritos. É por isso que têm tantas vezes um ar tão sofredor, ou tão susceptível, como o Lútzen. Têm a pele muito esfregada, quase em carne viva, e isso deve doer-lhes... São como o jovem Filipe, que sente necessidade de se lavar a todo o instante. Essa preocupação consigo próprio acabará com certeza por conduzi-lo também à heresia. Talvez ainda o queimem na fogueira, e será bem feito!
Entretanto, quando o visitante se dirigia para a porta, a fim de se dirigir ao quarto onde a Sr.a de Sancé ia conduzi-lo, Juscelino agarrou-lhe no braço, com a brusquidão habitual.
Só mais uma palavra, pastor. Para se poder trabalhar nesses países da América é certamente necessário ser muito rico, ou comprar um posto de guarda-marinha, ou, pelo menos, de artesão em qualquer profissão?
Meu filho, as Américas são terras livres. Lá não exigem nada, embora seja necessário trabalhar duramente e defendermo-nos também.
Quem sois vós, desconhecido, para vos permitirdes tratar esse jovem por filho, para mais na presença do seu próprio pai e na minha, seu avô? perguntou a voz escarnecedora do velho barão.
Sou o pastor Rochefort, Sr. Barão, para vos servir” Mas sem designação de diocese e apenas de passagem.
Um huguenote!rosnou o velho. E, ainda por cima, vindo dessas terras malditas!...
Estava parado no limiar, apoiado à bengala, mas o mais erecto possível. Tivera o cuidado de despir a enorme capa preta, com a qual se agasalhava no Inverno. Angélique achou-lhe o rosto tão branco como a barba e, sem saber porquê, teve medo e apressou-se a intervir:
Avô, este senhor estava todo encharcado e nós convidámo-lo a secar-se. Contou-nos histórias apaixonantes...
Seja! Não oculto que gosto da coragem e, quando o inimigo se apresenta de rosto descoberto, sei que tem direito a considerações.
Não vim como inimigo, senhor.
Poupai-nos as vossas pregações heréticas. Nunca tomei parte em controvérsias que não são da competência de um velho soldado, mas faço questão de vos informar de que, nesta casa, não encontrareis almas para converter.
O pastor suspirou imperceptivelmente.
Na verdade, não regressei da América como pregador em busca de novas conversões. Na nossa Igreja, os fiéis e os curiosos acorrem livremente. Sei muito bem que os membros da vossa família são católicos fervorosos e que é muito difícil converter pessoas cuja religião é codificada pelas mais antigas superstições e que se julgam as únicas infalíveis.
Com isso reconheceis, portanto, que recrutais os vossos adeptos, não entre a gente de bem, mas sim entre os indecisos, os ambiciosos decepcionados e os monges desfradados que se sentem felizes por verem santificados os seus desvarios?
Sr. Barão, sois demasiado lesto nos vossos julgamentos redarguiu o pastor, cuja voz endurecera. Converteram-se já às nossas doutrinas altos vultos e prelados do mundo católico.
Não me revelais nada que já não soubesse. O orgulho pode fazer desfalecer os melhores. Mas a nossa vantagem, a vantagem dos católicos, é a de nos apoiarmos nas preces de toda a Igreja, dos santos e dos nossos mortos, ao passo que vós, no vosso orgulho, negais essa intercessão e pretendeis tratar com o próprio Deus.
Os papistas acusam-nos de orgulho, mas são eles que se declaram infalíveis e se arrogam o direito da violência. Parti de França em 1629 prosseguiu o pastor em voz surda, acabava de escapar, muito jovem, ao atroz cerco de La Rochelle, empreendido pelas hordas do Sr. de Richelieu. Assinava-se a paz d’Ales, tirando aos protestantes o direito de possuir praças fortes.
Não era sem tempo! Estáveis a tornar-vos um estado dentro do Estado. Confessai que o vosso objectivo era arrancar à influência do rei todas as regiões e centrais da França.
Ignoro-o. Era ainda muito jovem para abraçar tão vastos desígnios. Compreendi apenas que essas novas decisões estavam em desacordo com o Edicto de Nantes, do rei Henrique IV. Ao regressar agora, verifico amargamente que não se deixou ainda de lhe contestar e desnaturar as cláusulas com um rigor que só tem igual na má-fé dos casuístas e dos juizes. Chama-se a isso a ”observância mínima” do Edicto. Assim, vejo os protestantes obrigados a enterrar os seus mortos de noite. Porquê? Porque o Edicto não diz explicitamente que o enterramento de um reformado se pode fazer de dia. Portanto, tem de se fazer de noite.
Mas isso é uma coisa que deve agradar à vossa humildade observou, trocista, o velho fidalgo.
Quanto ao artigo 28, que permite aos protestantes abrirem escolas em todos os lugares onde o exercício do culto seja autorizado, como o interpretaram? Como o Edicto não fala das matérias ensinadas, nem do número de professores, nem da importância das aulas para as comunidades, decidiu-se que só haveria um professor protestante por escola e por burgo. Por isso vi, em Marennes, seiscentas crianças protestantes com direito a um único professor! Aí está bem à vista o espírito sonso, dissimulado, a que conduziu a falsa dialéctica da Igreja antiga! exclamou, veemente, o pastor.
Seguiu-se um silêncio pesado. Angélique compreendeu que o avô, espírito recto e justo, no fundo, ficara levemente desconcertado com a enumeração de factos que, na realidade, não ignorava. Mas a voz calma de Raimundo elevou-se, de súbito:
Sr. Rochefort, não estou à altura de apreciar a justiça da investigação a que haveis procedido neste país quanto a certos abusos de zeladores intransigentes. Agradeço-vos até a não citação de casos de conversões compradas de adultos e crianças. Mas deveis saber que, se tais excessos existem, Sua Santidade o papa interveio pessoalmente, em numerosas ocasiões, junto do alto clero de França e do rei. Comissões oficiais secretas percorrem o país a fim de corrigir certos erros que porventura tenham sido cometidos. Estou até convencido de que, se fôsseis a Roma e entregásseis um caderno de averiguações precisas ao soberano pontífice, a maioria das faltas reais observadas seriam corrigidas...
Meu jovem, não é a mim que compete procurar reformar a vossa Igreja redarguiu o pastor, em tom ácido.
Muito bem, Sr. Pastor, nós próprios o faremos!afirmou o adolescente, com súbito ardor. E, estai certo, Deus nos iluminará.
Angélique olhou, espantada, para o irmão. Nunca imaginara que pudesse existir tanta paixão sob o seu aspecto apagado e um tanto ou quanto hipócrita.
Foi a vez de o pastor se sentir desconcertado. Para tentar dissipar o constrangimento, o barão Armando observou, a rir sem malícia:
As vossas discussões recordam-me que, há algum tempo a esta parte, algumas vezes tenho lamentado não ser huguenote, pois consta que chegam a dar três mil libras a um nobre que se converta ao catolicismo.
O velho barão deu um salto:
Meu filho, poupai-me as vossas facécias pesadas! São indecorosas diante de um adversário.
O pastor tirara da cadeira a capa húmida.
Não vim de modo algum como adversário. Tenho uma missão a desempenhar no castelo de Sancé, trago uma mensagem de terras longínquas. Desejaria falar a sós com o barão Armando, mas vejo que tendes o costume de discutir os vossos assuntos publicamente, em família. Gosto desse procedimento, era o dos patriarcas e também o dos apóstolos.
Angélique reparou que o avô se tornara tão branco como o cabo de marfim da sua bengala e que se apoiava à ombreira da porta. Sentiu compaixão. Desejaria conter as palavras que se seguiriam, mas o pastor não lhe deu tempo e prosseguiu:
O Sr. António de Ridoué de Sancé, vosso filho, que tive o prazer de conhecer na Florida, pediu-me que viesse ao castelo onde nasceu saber notícias da sua família, a fim de lhas transmitir quando regressar. A minha tarefa está cumprida...
O velho fidalgo, que se aproximara em passos curtos, gritou-lhe, ofegante:
Fora daqui! Jamais em vida minha o nome do meu filho perjuro ao seu Deus, ao seu rei e à sua pátria será pronunciado sob este tecto! Fora daqui, ordeno-vos! Não quero huguenotes em minha casa!
Eu parto respondeu o pastor, muito calmo.
Não! era a voz de Raimundo, que de novo se erguia. Ficai,
não podeis andar lá por fora nesta noite chuvosa. Nenhum habitante de Monteloup vos dará asilo e a primeira aldeia protestante fica muito longe. Aceitai, peço-vos, a hospitalidade do meu quarto.
Ficai insistiu também Juscelino, na sua voz rouca. Quero que me faleis mais das Américas e do mar.
A barba do velho barão tremia.
Armando, eis onde se refugiou o espírito de revolta do vosso irmão António! gritou, com uma angústia que dilacerou o coração de Angélique. Nestes dois rapazes que eu amava. Deus não me poupará nada. Na verdade, já vivi demasiado.
Cambaleou. Foi Guilherme quem o amparou. O barão saiu apoiado ao velho soldado, repetindo em voz trémula:
António... António...
Passados alguns dias, o velho avô morreu. Não se conseguiu saber de que doença. Na verdade, extinguiu-se quando já o julgavam refeito da emoção causada pela visita do pastor.
Foi-lhe poupada a dor de saber da partida de Juscelino.
Uma manhã, pouco depois do funeral, Angélique, que ainda dormia, ouviu cHamar em voz baixa:
Angélique! Angélique!
Abriu os olhos e viu, com espanto, Juscelino à sua cabeceira. Fez-lhe sinal para não acordar Madelon e seguiu-o ao corredor.
Parto segredou-lhe o irmão. Tenta fazer-lhes compreender.
Para onde vais?
Primeiro para La Rochelle, donde embarcarei para as Américas. O pastor Rochefort falou-me de todos esses países: Antilhas, Nova Inglaterra... E também das colónias: Virgínia, Marilândia, Carolina, Novo Ducado de Iorque, Pensilvânia... Acabarei com certeza por abordar a qualquer lado onde me queiram.
Aqui também te queremos observou Angélique tristemente, a tremer de frio na sua fina camisa de dormir usada.
Não, neste mundo daqui não há lugar para mim. Estou cansado de pertencer a uma classe que tem privilégios, mas já não tem utilidade. Ricos ou pobres, os nobres já não sabem absolutamente para que servem. Repara no paizinho, por exemplo. Tacteia. Desce a criar muares, mas não se atreve a explorar a fundo essa situação humilhante a fim de fortalecer pelo dinheiro o seu título de fidalgo. No fim, acaba por perder nos dois sentidos. Apontam-no a dedo por trabalhar como alquilador, e a nós também porque continuamos a ser nobres pobretanas. Felizmente o tio António de Sancé indicou-me o caminho. Era o irmão mais velho do paizinho. Tornou-se huguenote e abandonou o continente.
Não tencionas abjurar, pois não? perguntou Angélique, assustada e suplicante.
Não. As beatices não me interessam. O que quero é viver. Beijou-a rapidamente, desceu alguns degraus e virou-se para trás, pousando na jovem irmã seminua um olhar de homem atinado.
Estás a tornar-te bonita e forte, Angélique. Acautela-te. Terás também de partir, senão um destes dias darás contigo no feno, com um moço de cavalariça. Ou então tornar-te-ás o objecto de algum desses gordos fidalgotes que temos por vizinhos.
E acrescentou, com uma ternura súbita:
Acredita na minha experiência de rapaz mau, querida: seria uma vida horrorosa para ti. Foge também destas velhas paredes. Quanto a mim, parto para o mar.
E, acabando de descer a escada a dois e dois, o jovem desapareceu.
O convento dos monges libertinos.
Singular conclusão do negócio de muares.
A marquesa do Plessis desejava Angélique como donzela de honra
A morte do avô, a partida de Juscelino e as palavras que ele lhe dissera ”Foge também...”, transtornaram profundamente Angélique, numa idade em que a natureza hipersensível é capaz de todas as extravagâncias.
Por isso, nos primeiros dias de Verão, Angélique de Sancé de Monteloup partiu para as Américas com um grupo de vilõezinhos que recrutara e convertera às suas ideias vagabundas. Na região falou-se do caso durante muito tempo e muita gente encontrou nele uma prova da sua ascendência feérica.
Na verdade, a expedição não passou da floresta de Nieul. Angélique recuperou quando a tarde findava e o sol projectava grandes lanças de luz vermelha através dos enormes troncos da floresta centenária. Havia alguns dias que a jovem vivia numa espécie de febre. Imaginava-se a chegar a La Rochelle, a oferecer-se como grumete aos navios que iam partir, a desembarcar em terras desconhecidas onde seres amáveis os acolheriam com as mãos cheias de uvas. Nicolau deixara-se seduzir rapidamente. ”Marinheiro, isso agrada-me mais do que guardar animais. Sempre tive desejo de ver mundo.” Alguns outros tunantes, mais interessados em correr pelos bosques do que em ficar nos campos, suplicaram que os levassem. E Dinis também, naturalmente. Eram oito ao todo, e Angélique, a única rapariga, o seu chefe. Cheios de confiança nela, os garotos pouco ou nada se impressionaram quando a noite começou a invadir a floresta. Com flores nas mãos e o nariz sujo de amoras, achavam aquela primeira parte da expedição muito agradável. Caminhavam desde manhã, mas a meio do dia tinham parado junto de um ribeiro, para devorar as provisões de castanhas e pão escuro.
Angélique, porém, sentiu uma espécie de calafrio e, de repente, a consciência da sua tolice invadiu-a com tal lucidez que a boca se lhe secou.
”Não podemos passar a noite na floresta”, pensou. ”Há lobos.”
Nicolau! chamou em voz alta, não achas estranho que ainda não tenhamos chegado à aldeia de Naillé?
- O rapaz começava a sentir-se preocupado.
- Está-me a parecer que talvez nos tenhamos perdido. Quando lá fui com o meu pai, ainda ele era vivo, creio que não andámos durante tanto tempo... Angélique sentiu uma mãozinha suja insinuar-se na sua. Era a do garoto mais novinho, que tinha apenas seis anos.
Está a escurecer - lamuriou o miúdo. - Se calhar perdemo-nos.
É possível que estejamos muito perto- tranquilizou-o Angélique. - Continuemos a caminhar.
Recomeçaram a andar em silêncio. O céu empalidecia entre as ramagens.
- Mesmo que não cheguemos à aldeia até à noite, não precisamos de nos assustar afirmou Angélique. - Subiremos para as copas dos carvalhos e dormiremos lá. Assim os lobos não nos verão.
Mas, não obstante o seu tom sereno, sentia-se ansiosa. De súbito chegou-lhe aos ouvidos o som argentino de um sino e ela suspirou, aliviada.
- É na aldeia, estão a tocar o Angelus! - exclamou.
Desataram a correr. O carreiro começava a descer e as árvores espaçavam-se. De repente encontraram-se na orla da floresta e pararam, encantados.
Ao fundo de um pequeno vale verde erguia-se, maravilha silenciosa no seio da floresta, a abadia de Nieul.
O Sol poente dourava os seus numerosos telhados de telhas rosadas, as torrezinhas dos campanários, as paredes onde se abriam lucarnas e claustros e os imensos pátios desertos. O sino tocava. Um monge carregado de baldes dirigia-se para o poço.
Emudecidos não se sabia por que estranho sentimento religioso, os garotos desceram até ao grande pórtico principal, cuja porta de madeira estava entreaberta. Entraram. Um monge velho, vestido de burel castanho-escuro, dormia sentado num banco, com os cabelos brancos a formarem uma coroazinha de neve cuidadosamente depositada no crânio calvo.
Enervados pelas diversas emoções por que acabavam de passar, os pequenos vagabundos olharam-no e desataram a rir, o que atraiu ao limiar de uma porta um frade gordo e jovial.
- Eh, canalha miúda, bonitas maneiras de mal-educados! - gritou-lhes.
- Creio que é o Irmão Anselmo - segredou Nicolau.
O Irmão Anselmo percorria algumas vezes a região com o seu burro, distribuindo rosários e frascos de licor medicinal extraído de flores de angélica, em troca de trigo e de bocados de toucinho. Tal procedimento causava estranheza, pois a abadia não abrigava nenhuma ordem mendicante e tinha fama de muito rica, em virtude dos rendimentos dos seus domínios.
Angélique avançou para o frade, seguida pelo seu grupo fiel, mas não ousou confessar-lhe o seu projecto inicial de partir para as Américas. Aliás, o Irmão Anselmo com certeza nunca ouvira falar das Américas. Contou-lhe apenas que eram de Monteloup, que tinham ido para o bosque colher morangos e framboesas e se haviam perdido.
- Meus pobres franganotes- comentou o frade, que era muito bom homem -, aí tendes o resultado de serdes gulosos. As vossas mães vão procurar-vos a chorar e prevejo que, quando regressardes, o rabiosque vos vai arder. Mas, por agora, nada mais podeis fazer do que sentar-vos ali. Dar-vos-ei uma escudela de leite e pão trigueiro, dormireis na granja e amanhã atrelarei a carroça para vos levar a casa. Por sinal, tinha de passar por lá.
O programa era razoável. Angélique e os companheiros tinham andado todo o dia e ela sabia que mesmo de carroça só conseguiriam chegar aMonteloup altas horas da noite. A floresta não era atravessada por nenhuma estrada de ponta a ponta, havia apenas os carreiros por onde tinham vindo. Seria portanto necessário seguir por um caminho muito mais longo, que passaria pelas comunas de Naillé e Varrout, das quais estavam muito longe.
«A floresta é como o mar», pensou Angélique. «Temos de nos guiar por uma espécie de relógio, como o Juscelino explicou, senão avançamos às cegas.»
Amarfanhava-a um certo desânimo. Não se conseguia imaginar a reatar a viagem levando debaixo do braço um relógio tão pesado como o do Sr. Molines. De resto, não estavam os seus «homens» a ponto de a abandonar? A rapariguinha conservou-se silenciosa enquanto os outros comiam, sentados junto do muro, na tepidez com que o crepúsculo invadia os imensos pátios.
O sino continuava a tocar. Andorinhas soltavam gritos agudos no céu róseo e galinhas cacarejavam em cima de montes de palha e de estrume. O Irmão Anselmo passou, a cobrir-se com o capuz, e disse-lhes:
- Vou às completas. Portai-vos bem, se não quereis que vos coza no meu panelão.
Viram vultos escuros passar entre os arcos de um claustro. Junto do alpendre, o frade velho continuava a dormir. Estava com certeza dispensado dos ofícios religiosos...
Desejosa de pensar, Angélique afastou-se, sozinha.
Num dos pátios viu uma bela carruagem brasonada, apoiada nos varais. Cavalos de raça comiam feno na cavalariça. O pormenor intrigou-a, sem que soubesse porquê. Continuou a andar devagarinho, no meio do silêncio, envolta pelo encanto da grande casa no coração das árvores. Enquanto a noite enchesse a floresta e os lobos rondassem, a abadia, abrigada pelos seus grossos muros, prosseguiria a sua vida fechada, secreta, de que a rapariguinha não fazia a mínima ideia. Ao longe erguiam-se cânticos religiosos, lentos e suaves. Guiada pela música, Angélique começou a subir uma escada de pedra. Nunca ouvira uma harmonia tão suave, pois na Igreja de Monteloup os cânticos atamancados pelo cura e pelo professor primário nada tinham que lembrasse as falanges celestes.
De súbito ouviu um roçagar de saias e, virando-se, viu na penumbra do claustro uma mulher muito bela e sumptuosamente vestida. Foi, pelo menos, o que lhe pareceu. Angélique nunca vira a mãe nem as tias com um vestido de veludo negro, incrustado de flores cinzentas. Como poderia imaginar que se tratava de um vestuário de extrema simplicidade, destinado aos retiros piedosos, na calma de uma abadia? A senhora cobria os cabelos castanhos com uma mantilha de renda preta e levava na mão um grande missal. Ao passar por Angélique lançou-lhe um olhar surpreendido.
- Que fazes aqui, rapariguinha? Não são horas da esmola.
Angélique recuou, tratando de assumir o ar idiota de uma camponesinha intimidada.
Na sombra das abóbadas, o busto da dama pareceu-lhe muitíssimo branco e farto. Uma ténue renda mal cobria as magníficas curvas que o plastrão bordado oferecia como uma cornucópia oferece os seus frutos.
”Quando for crescida, quero ter um peito assim”, pensou Angélique enquanto descia a escada.
Acariciou o busto, ainda demasiado pequeno na sua opinião, e sentiu-se invadida por um turbamento. O bater de sandálias que subiam a escada fê-la ocultar-se nervosamente atrás de uma coluna. O hábito de burel de um monge roçou-lhe pelo corpo e ela só conseguiu entrever um rosto muito belo, cuidadosamente barbeado, e uns olhos azuis brilhantes de inteligência na sombra do capuz. O monge desapareceu, mas pouco depois ouviu-se a sua voz máscula e suave:
Só agora me preveniram da vossa visita, minha senhora. Encontrava-me na biblioteca do mosteiro, a consultar uns velhos alfarrábios que versam filosofias gregas. Mas a sala fica longe e os meus irmãos são vagarosos, sobretudo quando está calor. Apesar da minha condição de abade, só tive conhecimento da vossa presença à hora das completas.
Não precisais de vos desculpar, padre. Conheço as pessoas e instalei-me. Ah, como é bom o ar que se respira aqui! Cheguei ontem às minhas terras de Richeville e não descansei enquanto não vim para Nieul. A atmosfera da corte é odiosa desde que se transferiu para SaintGermain. Tudo lá é escuro, triste e pobre. Para ser franca, só me sinto bem em Paris... ou em Nieul. De resto, o Sr. de Mazarino não gosta de mim. Dir-vos-ei até que esse cardeal...
O resto da conversa não se ouviu. Os dois interlocutores afastavam-se.
Angélique reencontrou os seus pequenos companheiros na grande cozinha da abadia, onde o Irmão Anselmo, de avental branco, andava numa roda-viva, ajudado por dois ou três rapazes de hábitos demasiado compridos para eles. Eram os noviços da abadia.
Refeição delicada esta noite dizia o irmão cozinheiro. A condessa de Richeville encontra-se entre as nossas paredes. Recebi ordem para ir à adega escolher os vinhos mais finos, para assar seis capões e para me arranjar seja como for para apresentar um prato de peixe. Tudo devidamente temperado de especiarias acrescentou, lançando uma piscadela de olho entendida a outro frade que, sentado na ponta da mesa de madeira, bebia um cálice de licor.
As criadas da senhora são corteses observou o outro, homem gordo e rubicundo, cujo ventre enorme era contido por uma corda cheia de nós, da qual pendia um rosário. Ajudei as três encantadoras meninas a levar o leito para a cela reservada à sua ama, assim como as malas e o guarda-vestidos.
Ah! Ah! Ah! exclamou, a rir, o Irmão Anselmo. Estou a ver-vos muito bem, Irmão Tomás, transportando mala e guarda-vestidos! Vós que nem tendes sequer coragem para levantar a pança!
Ajudei-as com os meus conselhos afirmou dignamente o Irmão Tomás.
Os seus olhos, injectados de sangue, percorreram o aposento, onde brilhavam e crepitavam os lumes sob os espetos e as enormes panelas.
Que magote é este de vilõezinhos que abrigais nos vossos domínios, Irmão Anselmo?
Crianças de Monteloup que se perderam na floresta.
Devíeis metê-los no vosso caldo disse o Irmão Tomás, revirando os olhos de expressão terrível.
Dois dos garotos desatam a chorar, assustados.
Então, então! ralhou o Irmão Anselmo, enquanto abria uma porta. Ide por esse corredor e encontrareis uma granja. Entrai nela e dormi. Não tenho tempo para me ocupar de vós esta noite. Felizmente, um pescador trouxe-me um belo lúcio, pois, de contrário, o nosso abade, levado pela contrariedade, seria muito capaz de me castigar com três horas de penitência, com os braços em cruz. Estou a ficar velho para esse género de exercício...
Quando verificou que os seus pequenos companheiros tinham adormecido, Angélique, deitada no feno perfumado, sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos.
Nicolaumurmurou, creio que nunca conseguiremos chegar às Américas. Estive a pensar... Seria necessário um relógio.
Não te preocupes respondeu-lhe o adolescente, bocejando. Desta vez falhou, mas divertimo-nos bem.
Naturalmente, és como um esquilo!exclamou Angélique, furiosa. Incapaz de levar até ao fim grandes projectos. E depois queres lá saber que regressemos como mendigos a Monteloup! O teu pai não te baterá, porque morreu, mas os outros, nem quero pensar no que apanharão!
Não te preocupes por causa deles redarguiu Nicolau, meio adormecido. Têm a pele dura.
Três segundos depois ressonava ruidosamente.
Angélique pensou que tantas preocupações a impediriam de adormecer, mas pouco a pouco a voz distante do Irmão Anselmo, a ralhar com os seus mongezinhos, foi-se dissipando e ela adormeceu.
Acordou porque estava muito calor no feno. Os garotos, porém, continuavam a dormir e a sua respiração regular enchia a granja.
”Vou respirar um pouco lá fora”, pensou Angélique.
Procurou às apalpadelas a porta do corredorzinho que levava à cozinha. Mal a abriu, chegou-lhe aos ouvidos um ruído de vozes alegres e de risos boçais. A claridade do lume continuava a brilhar ao longe. A companhia parecia ser numerosa no domínio do Irmão Anselmo.
A rapariguinha avançou até ao limiar da porta.
Viu uma dezena de monges sentados à roda da grande mesa, sobre a qual se encontravam pratos e picheis de estanho. Nos pratos estavam carcaças de aves. Um cheiro a vinho e a fritos misturava-se ao odor mais delicado de uma garrafa de licor, do qual cada conviva tinha um copo à frente. Três mulheres, frescas camponesas disfarçadas de criadas finas, participavam na festa. Duas delas riam muito alto e pareciam já completamente ébrias; a terceira, mais modesta, resistia às mãos gulosas do Irmão Tomás, que tentava atraí-la a si.
Então, então, minha linda dizia o gordo frade, não sejas mais presumida do que a tua augusta ama. Podes ter a certeza de que, a esta hora, ela já não discorre sobre filosofia grega com o nosso abade. Se continuas assim, serás a única a não se divertir esta noite na abadia.
A criada lançava olhares incomodados e desiludidos em seu redor. Por certo era menos esquiva do que queria parecer, mas o rosto rubicundo do Irmão Tomás não a inspirava.
Um dos outros monges pareceu compreendê-lo, pois levantou-se bruscamente e enlaçou a rapariga com um gesto galante.
Por São Bernardo, patrono do nosso claustro, esta pequena é demasiado fina para ti, porco gordo! exclamou. Que tal te pareço?
perguntou, erguendo com o dedo o rosto da recalcitrante. Não tenho belos olhos, à falta de belos cabelos? E depois, sabes, fui soldado, sei divertir as raparigas.
Tinha, de facto, olhos negros e alegres e ar astuto. A criadinha dignou-se sorrir. Seguiu-se uma breve discussão, provocada pelo Irmão Tomás, humilhado por ter sido recusado. Uma vasilha de estanho virou-se e as mulheres protestaram. De repente, alguém gritou:
Olhai, ali! Um anjo!...
Toda a gente se virou para a porta onde Angélica se encontrava. A garota não recuou, pois não era medrosa. Assistira muitas vezes a festas de camponeses e já não se assustava com os gritos nem com a agitação provocados necessariamente pelas grandes libações. No entanto, algo nela se revoltava. Parecia-lhe que aquele espectáculo se não coadunava com a visão que tivera debaixo dos olhos do alto da floresta, quando a abadia lhes aparecera na luz dourada do entardecer como asilo e refúgio de paz.
É uma garota que se perdeu na floresta explicou o irmão Anselmo.
A única rapariga num grupo de rapazes sublinhou o Irmão Tomás. Promete! Talvez ela também goste de rir, hem? Toma, vem beber isto acrescentou, estendendo um copo de licor à rapariguinha.
É bom, é doce. Somos nós que o fabricamos nas nossas grandes retortas, com a angélica dos pântanos: Angélica sylvestris.
Ela obedeceu, menos por gulodice do que por curiosidade, e provou o remédio de que diziam tanto bem e tinha o seu nome. A bebida, de um verde dourado, pareceu-lhe deliciosa, simultaneamente forte e aveludada, e provocou-lhe um calor agradável, que se lhe espalhou pelo corpo.
Bravo! exclamou o Irmão Tomás. Tu, pelo menos, sabes erguer o cotovelo!
Puxou-a para cima dos joelhos. O seu hálito avinhado e o cheiro a bedum do seu hábito de burel repugnaram a Angélique, mas, aturdida pelo álcool que acabava de ingerir, não protestou. A mão do frade bateu-lhe devagarinho nos joelhos, num gesto que pretendia ser paternal.
É muito bonitinha, a garota. Uma voz vinda da porta ordenou-lhe:
Meu irmão, deixai essa criança em paz.
Um monge de capuz na cabeça e mãos enfiadas nas largas mangas parara no limiar, como uma aparição.
Ah, chegou o nosso desmancha-prazeres! resmungou o Irmão Tomás. Não vos pedimos que nos façais companhia se a boa carne não vos tenta, Irmão João. Mas ao menos deixai os outros gozar tranquilamente. Ainda não sois nosso prior.
Não se trata disso redarguiu o outro, em voz transtornada. Recomendo-vos apenas que deixeis essa criança. É filha do barão de Sancé e não seria nada bom que ela tivesse de se queixar ao pai dos vossos costumes, em vez de louvar a vossa hospitalidade.
Seguiu-se um silêncio feito de espanto e de constrangimento.
Vinde, minha menina chamou o monge, em tom firme. Angélique seguiu-o maquinalmente e atravessaram o pátio. Erguendo os olhos, a garota viu o céu estrelado, de uma pureza indizível, por cima do mosteiro.
Entrai disse o frade, empurrando uma porta de madeira na qual se abria um postigo. É a minha cela. Podeis descansar aqui em paz, enquanto não nasce o dia.
Era um aposento muito pequeno e de paredes nuas, que tinham como únicos adornos um crucifixo de madeira e uma imagem da Virgem. A um canto havia um catre baixo, pouco mais do que uma tábua com lençóis grosseiros e um cobertor. Sob o crucifixo encontrava-se um genuflexório de madeira carregado de livros de orações. Reinava na cela uma frescura agradável, mas que no Inverno devia transformar-se em frio agreste. A janela ogival fechava-se com uma única porta de madeira. Aberta naquela noite, deixava entrar os eflúvios da floresta nocturna, compostos pelos odores do musgo e dos cogumelos. À esquerda, um degrau dava acesso a um canto onde brilhava uma lamparina e que uma escrivaninha cheia de pergaminhos e godés atravancava por completo.
O monge apontou o catre a Angélique.
Deitai-vos e dormi sem receio, minha filha. Eu vou continuar a trabalhar.
Entrou no recanto, sentou-se num tamborete e inclinou-se para os pergaminhos.
Sentada na borda do colchão duro, a rapariguinha não tinha vontade nenhuma de dormir. Nunca imaginara lugares tão estranhos. Levantou-se e foi espreitar pela janela. Adivinhou, em baixo, séries de pequenos talhões muito estreitos, separados uns dos outros por muros altos. Cada monge tinha o seu, onde ia diariamente cultivar alguns legumes e abrir a sepultura.
Pé ante pé, Angélique aproximou-se do recanto onde trabalhava o Irmão João. A lamparina iluminava o perfil de um homem novo meio oculto pelo capuz. Com mão cuidadosa, o monge copiava uma iluminura antiga. Os seus pincéis, mergulhados nos godés e cobertos de vermelho, de pó de ouro ou de azul, reproduziam habilmente os entrelaçados de flores e de monstros com os quais a arte da Idade Média se entretivera a enriquecer os missais.
Adivinhando a presença da garota, o monge endireitou a cabeça e sorriu.
Não dormis?
Não.
Como vos chamais?
Angélique.
Uma emoção súbita transtornou o rosto vincado pelas provações e pelo ascetismo.
Angélique! Filha dos Anjos! É isso mesmo murmurou.
Estou muito contente por terdes aparecido. Aquele monge gordo não me agradava.
De repente explicou o Irmão João, cujos olhos brilharam de modo estranho, uma voz ordenou dentro de mim: ”Levanta-te, abandona o teu trabalho aprazível e vela pelas minhas ovelhas perdidas...” Saí da cela, levado não sei por que impulso. Minha filha, porque não vos encontrais sensatamente sob o tecto dos vossos pais, como convém a uma menina da vossa idade e da vossa condição?
Não sei murmurou Angélique, que baixou a cabeça, confusa. O monge abandonara os pincéis. Levantou-se, e de mãos enfiadas nas largas mangas, aproximou-se da janela e olhou demoradamente para o céu estrelado.
Vede, a noite reina ainda na Terra. Os camponeses dormem nas suas cabanas e os senhores nos seus castelos. Esquecem os seus desgostos de homens no sono. Mas a abadia nunca dorme... Há lugares onde o espírito respira. Aqui mesmo, num combate que nunca termina, respiram o Espírito de Deus e o Espírito do Mal... Abandonei o mundo muito jovem e vim sepultar-me entre estas paredes para aqui servir Deus na oração e no jejum. Encontrei, misturados com a mais alta cultura e o maior misticismo, costumes infames, corruptos. Soldados desertores ou inválidos e camponeses preguiçosos procuram na clausura, sob o burel monacal, uma vida negligente e abrigada, trazendo, em contrapartida, para cá os seus hábitos depravados.
”A abadia é como um grande navio sacudido pelas tempestades e cujo madeirame estala todo. Mas não se afundará enquanto existirem adentro dos seus muros almas que se entreguem à oração. Somos alguns a querer levar aqui, custe o que custar, a vida de penitência e de santidade para que fomos destinados. Ah, não é fácil! O que o Demo não inventa para nos desviar do nosso caminho!... Quem não viveu num convento nunca viu de frente o rosto de Satanás. É tão grande o seu desejo de reinar como senhor na casa de Deus! E, como se julgasse insuficientes as tentações do desespero ou as que nos envia pelas mulheres, que têm no nosso recinto direito de cidadania, vem ele próprio bater-nos à porta de noite, acorda-nos, zurze-nos de pancadas...
Levantou a manga e mostrou o braço cheio de equimoses.
Olhai pediu, lamentosamente, olhai o que Satanás me fez. Angélique escutava-o com um terror crescente.
”É louco”, pensava.
Mas receava ainda mais que não fosse louco. Pressentia a verdade das suas palavras e o medo arrepiava-lhe os cabelos. Quando acabaria aquela noite tormentosa e desolada?
O monge caíra de joelhos no chão duro e frio.
Senhor, socorrei-me! suplicava.Compadecei-vos da minha fraqueza! Que o Maldito se afaste!
Sentada na beira do catre, Angélique sentia secar-lhe a boca um pavor que não sabia definir. As palavras ”noite maléfica”, com as quais a ama entretecia as suas histórias, acudiram-lhe ao espírito. Havia à sua volta algo de insuportável, que não sabia definir e que a asfixiava de angústia.
1 Antes da criação dos Inválidos por Luís XIV, os velhos soldados não tinham outro refúgio além dos conventos, onde se instalavam de certo modo como num hos pício. Daí a corrupção dos costumes.
Por fim, o som fraco de um sino elevou-se na noite, quebrando o silêncio profundo do mosteiro.
O Irmão João endireitou-se. Angélique reparou que lhe brilhavam na testa fios de suor, como se ele acabasse de travar um combate físico esgotante.
Eis as matinasmurmurou.Ainda não é a alvorada, mas tenho de ir à capela com os meus irmãos. Ficai aqui, se o desejais. Virei buscar-vos quando for dia.
Não, tenho medo! protestou Angélique, que teve vontade de se agarrar ao hábito de burel do seu protector. Não posso acompanhar-vos à igreja? Rezarei também.
Se o desejais, minha filha...E acrescentou, com um sorriso triste: Antigamente ninguém pensaria em levar uma rapariguinha às matinas, mas agora cruzamo-nos nos claustros com tantos rostos estranhos que já nada surpreende. Foi por isso que vos trouxe para a minha cela, onde estaríeis mais protegida do que numa granja.
E, em tom mais grave:
Angélique, posso pedir-vos que, quando deixardes este recinto, não conteis o que vistes aqui?
Prometo-vo-lo respondeu a garota, erguendo para ele os olhos puros.
Saíram para o corredor, onde, com a aproximação da alva, uma névoa fria parecia coar-se das velhas pedras.
Porque tem a vossa porta um postigozinho?perguntou Angélique.
Antigamente éramos uma ordem de solitários. Os padres nunca saíam da cela, a não ser para irem para os ofícios religiosos, e mesmo isso era proibido na Quaresma. Os frades conversos colocavam-lhes as refeições naquele postigo. Agora calai-vos, minha filha, e sede o mais discreta possível. Será um favor que me prestareis.
Passaram por eles vultos encapuçados, num murmúrio de rosários e orações sussurradas.
Angélique ocultou-se a um canto da capela e esforçou-se por rezar. Mas os cânticos monótonos e o cheiro das velas acesas adormeceram-na.
Quando acordou, a capela estava de novo deserta, mas as velas, acabadas de apagar, ainda fumegavam sob as abóbadas sombrias.
Saiu. O Sol nascia e, sob a sua claridade purpúrea, os telhados pareciam da cor de goiveiro. Arrulhavam pombos no jardim, junto de um velho santo de pedra. Angélique espreguiçou-se demoradamente e bocejou, perguntando a si mesma se não teria sonhado...
O Irmão Anselmo, cordial mas vagaroso, só atrelou a mula à carroça depois do meio-dia.
Não vos preocupeis, marotos disse, alegremente. Atraso assim os açoites que vos esperam. Só chegaremos à aldeia à noite e os camponeses quererão dormir...
”A não ser que andem pelos campos à procura dos filhos”, pensou Angélique, que não se sentia orgulhosa da sua proeza. Tinha a sensação de haver envelhecido subitamente em poucas horas. ”Não voltarei a fazer tolices”, prometeu a si mesma, com uma resolução a que não faltava melancolia.
O Irmão Anselmo, por consideração para com a sua categoria, fê-la sentar-se a seu lado, no banco, enquanto os camponesinhos se amontoavam na carroça.
Ô! Ô! Minha doce mula, minha boa mula! entoava o monge, numa cantilena, enquanto sacudia as rédeas.
Mas o animal não se apressava. A noite caía e ainda se encontravam na estrada romana.
Vou meter por um atalho decidiu o monge. O pior é que teremos de passar perto de Vaunou e Chaillé, que são aldeias protestantes. Queira Deus que a noite caia, entretanto, e esses heréticos não dêem por nós. Não gostam nada do meu burel por lá...
Apeou-se, a fim de puxar a mula por uma vereda a subir. Angélique, que desejava desentorpecer as pernas, apeou-se também e caminhou a seu lado. Olhou com espanto em seu redor, pois nunca ali estivera, embora Monteloup ficasse apenas a alguns quilómetros de distância. A vereda atravessava o flanco de uma espécie de monte de entulho, que lembrava um pouco uma pedreira abandonada.
Ao examinar o lugar com mais atenção, Angélique viu, de facto, surgir algumas ruínas.
Os seus pés descalços escorregaram nas escórias negras.
Estranha pedra-pomes... murmurou, baixando-se para apanhar uma pedra maior e pesada, que a magoara.
É uma mina de chumbo muito antiga, dos Romanos explicou o monge. Consta dos nossos escritos antigos sob o nome de Argentum, porque parece que também de cá extraíam prata. Tentaram reaproveitá-la no século XIII e os fornos abandonados datam sobretudo dessa época mais recente.
A garota escutava a explicação com interesse.
O minério de onde extraíam o chumbo era com certeza esta lava coagulada, negra e pesada?
O Irmão Anselmo assumiu um ar doutrinal ao responder:
Isso é o que julgais! O minério é o terreno amarelo, em grandes blocos. Dizem que também se extraem dele venenos de arsénico. Não apanheis isso! Mas podeis tocar nos cubos brilhantes e cor de prata, embora frágeis, que vou procurar aqui para vós.
O monge procurou durante alguns instantes e depois chamou Angélique para lhe mostrar, num rochedo, uma espécie de baixos-relevos de rocha negra e de forma geométrica. Raspou alguns e pôs a descoberto uma superfície brilhante, cor de prata.
Mas se é prata maciça observou Angélique, prática, por que motivo ninguém a recolhe? Deve valer muito e chegar, pelo menos, para pagar os impostos, não?
Não é tão simples como isso, nobre donzela. Primeiro, nem tudo o que luz é prata e o que estais a ver é, na realidade, um outro minério de chumbo. No entanto, contém prata, mas a sua extracção seria muito complicada. Só os Espanhóis e os Saxões é que sabem como se faz. Parece que fazem uma mistura com carvão e resina e depois fundem tudo na forja, com um lume muito forte. Obtém-se então um lingote de chumbo. Outrora usavam-no derretido, para o deitarem para cima dos inimigos pelos mata-cães do vosso castelo. Mas, quanto a extrair dele prata, é trabalho de alquimistas sábios, e eu só o sou um bocadinho.
Disse do nosso castelo, Irmão Anselmo. Porquê do nosso castelo?
Ora, porquê! Pela simples razão de que este lugar abandonado faz parte das vossas terras, ainda que delas esteja separado pelas dos Plessis.
O meu pai nunca me falou disto...
O terreno é pequeno, estreito e nenhuma cultura cá vinga. Que quereis que vosso pai faça?
Mas este chumbo e esta prata...
Ora! O mais certo é estarem esgotados. Além disso, o que vos contei soube-o por um velho monge saxão, que tinha a mania das pedras e também dos velhos formulários mágicos. Desconfio que era um bocadinho doido...
A mula, arrastando a carroça, continuara o caminho sozinha e desembocara num terreno plano, ao cimo da ladeira. Angélique e o frade alcançaram-na e voltaram a subir para o banco. Entretanto, escurecera muito.
Não acendo a lanterna segredou o monge para não denunciar a nossa presença. Acreditai que, quando passo por estas aldeias, mais me valia atravessá-las todo nu do que com o hábito no corpo e o rosário à cintura Não... não são archotes o que se vê lá em baixo? perguntou, de súbito, puxando as rédeas.
Com efeito, a uns cem metros de distância viam-se numerosos pontos luminosos, que se multiplicavam pouco a pouco. O vento da noite trazia até à carroça um canto estranho e triste.
Que a Virgem nos proteja! exclamou o Irmão Anselmo, saltando para terra. São os huguenotes de Vauloup que vão enterrar os seus mortos. O cortejo vem por aqui, temos de virar.
Agarrou a brida da mula e tentou fazê-la virar no carreiro estreito Mas o animal recusou. O monge perdeu a cabeça, praguejou, e o animal deixou de ser ”doce mula” e passou a ser ”maldita besta”. Angélique e Nicolau juntaram-se ao frade, para tentarem, por sua vez, convencer a mula a dar a volta. Entretanto, o cortejo aproximava-se e o cântico ouvia-se melhor: ”O Senhor é o nosso socorro nas nossas atribulações...
Ai! Ai! gemeu o monge.
Os primeiros portadores de archotes desembocaram na curva do caminho e a luz súbita iluminou a carroça, meio atravessada no pavimento.
Que é aquilo?
Um endemoniado, um monge...
Barra-nos a passagem.
Não chegará sermos obrigados a enterrar os nossos mortos de noite, como cães?
Ainda por cima quer profaná-los com a sua presença.
Bandido! Libertino! Cão papista! Porco!
As primeiras pedras bateram na madeira da carroça e as crianças começaram a chorar.
Angélique precipitou-se para a frente, de braços estendidos:
Parai! Parai! São crianças!
O seu aparecimento, de cabelos em desalinho, desencadeou as paixões da turba:
Claro, uma rapariga! Uma das suas concubinas!
E na carroça estão os seus bastardos, encharcados em água benta!
Aqueles também foram concebidos sem pecado!
E pela graça do Espírito Santo!
Mas os nossos filhos roubaram-no-los para os imolarem aos seus ídolos!
Morte aos bastardos do Diabo!
Vinguemos os nossos filhos!
Os rostos grosseiros dos camponeses vestidos de preto comprimiam-se em redor da carroça. Os componentes do cortejo, que não sabiam o que se passava, continuavam a cantar: ”O Eterno é a nossa fortaleza!...”Mas a multidão engrossava cada vez mais.
Maltratado com palavras e pancadas, o Irmão Anselmo, com uma agilidade surpreendente em corpo tão gordo, conseguiu escapar-se e fugir através dos campos. Nicolau, atacado à cacetada, tentava, apesar de tudo, obrigar a mula apavorada a dar a volta. Mãos de unhas como garras tinham-se abatido sobre Angélique. Torcendo-se como uma cobra, ela conseguiu escapar-lhes, deslizar pela encosta e desatar a correr. Mas um dos huguenotes perseguiu-a e alcançou-a. Era um rapaz muito novo, quase da sua idade, a quem a adolescência devia decuplicar a paixão sectária.
Rolaram na erva, engalfinhados. Angélique sentiu-se de súbito, possessa de um delírio de raiva. Esgatanhava, mordia, agarrava-se com toda a força dos dentes a bocados de carne cujo sangue salgado lhe corria para a língua. Por fim notou que o adversário enfraquecia e logrou mais uma vez fugir.
Um homem muito alto estacou diante da carroça.
Parai! Parai, infelizes! gritou, repetindo o apelo que a rapariguinha fizera pouco antes. São crianças!
Filhos do Diabo! Sim, são filhos do Diabo! E que fizeram aos nossos? Atiraram-nos para os piques, pelas janelas, no São Bartolomeu!
Isso são coisas do passado, meus filhos. Detei o vosso braço vingador. Precisamos de paz. Parai, meus filhos, escutai o vosso pastor.
Angélique ouviu o gemer da carroça que abalava, conduzida por Nicolau, que conseguira finalmente voltá-la. Esgueirando-se por trás das sebes, a rapariga reuniu-se-lhe na outra curva do caminho.
Se não fosse o pastor deles, creio que a esta hora estaríamos todos mortos murmurou o jovem camponês, cujos dentes batiam.
Cheia de arranhões, Angélique tentava cobrir-se o melhor possível com o vestido rasgado e sujo de lama. Haviam-lhe puxado de tal maneira os cabelos que tinha a sensação de a haverem escalpado e sentia dores horríveis.
Um pouco adiante, uma voz abafada soltou um chamamento e o Irmão Anselmo saiu do meio das moitas.
Tiveram de voltar à estrada romana. Felizmente, porém, a Lua brilhava. Os fugitivos só chegaram de manhãzinha a Monteloup, onde souberam que os camponeses batiam a floresta de Nieul desde a véspera. Como encontrassem apenas a feiticeira, que colhia flores simples numa clareira, acusaram-na de ter raptado as crianças e enforcaram-na, sem mais detenças, no ramo de um carvalho.
Tens consciência perguntou o barão Armando à sua filha Angélique dos cuidados e dos aborrecimentos que padeço por causa de todos vós e de ti em particular?
Tinham passado alguns dias desde a sua escapada. Angélique, que passeava num caminho isolado, acabava de encontrar o pai sentado num cepo, enquanto o cavalo comia ali perto.
A criação de muares não está a correr bem, pai?
Está, corre tudo bem. Mas venho de casa do intendente Molines. Sabes, Angélique, por causa da tua insensata vagueação pela floresta, a tia Pulquéria demonstrou-nos, à tua mãe e a mim, que era impossível conservar-te mais tempo no castelo. É preciso meter-te no convento. Por isso me decidi a dar um passo muito humilhante e que desejaria ter evitado a todo o custo. Fui falar com o intendente Molines e pedir-lhe que me concedesse o adiantamento de auxílio à minha família que me propusera.
Falava em voz baixa e triste, como se qualquer coisa se tivesse partido dentro dele, como se lhe tivesse acontecido algo ainda mais doloroso do que a morte do pai e a partida do filho primogénito.
Pobre paizinho! murmurou Angélique.
As coisas, porém, não são assim tão simples prosseguiu o barão. Se bastasse estender a mão a um plebeu, seria duro, mas enfim... No entanto, o que me inquieta é que não compreendo o pensamento reservado de Molines, escapa-me o que existe por trás dos seus instintos. Impôs condições estranhas para o novo empréstimo.
Que condições, pai?
O barão olhou pensativamente e, estendendo a mão calejada, acariciou-lhe os magníficos cabelos cor de ouro escuro.
É estranho... Confio-me mais facilmente a ti do que à tua mãe. És uma grande louca selvagem, mas é como se já fosses capaz de compreender tudo. É verdade que, neste negócio das muares, eu desconfiava que o Molines pretendia um lucro comercial importante, mas não compreendia muito bem por que motivo recorria a mim para alcançar o negócio, em vez de a um simples alquilador da região. Na realidade, o que lhe interessa é a minha condição de nobre. Disse-me hoje que contava comigo para obter, por intermédio dos meus parentes ou conhecidos, a dispensa total, pelo intendente-geral das Finanças, Fouquet, dos direitos de visita de alfândega, de barreira e de poeira para um quarto da nossa produção de muares, assim como o direito garantido da exportação desse quarto para Inglaterra ou para a Espanha, quando a guerra com esta última tiver terminado.
Mas isso é perfeito!exclamou Angélique, entusiasmada. Trata-se de um negócio habilmente concebido. Por um lado, Molines é plebeu e manhoso; por outro lado, vós sois nobre...
E não sou manhoso concluiu o pai, a sorrir.
Não, o que não estais é ao corrente dessas coisas. Mas tendes relações e títulos. Sereis com certeza bem sucedido. Ainda outro dia dissestes que o encaminhamento das muares para o estrangeiro vos parecia impossível com todos esses direitos de barreira e de portagem, que multiplicam as despesas. E, tratando-se do quarto da produção, o superintendente não pode deixar de achar o pedido razoável! Que fareis do resto?
A Intendência Militar terá o direito de opção para a sua compra, aos preços do ano, no mercado de Poitiers.
Foi tudo previsto. Esse Molines é homem entendido! Será necessário falar com o Sr. do Plessis e talvez escrever ao duque da Trémoille. No entanto, creio que todas essas altas personagens chegarão em breve à região, para continuarem a ocupar-se da sua Fronda.
Fala-se disso, efectivamente admitiu o barão, sorrindo. Mas não me felicites demasiado depressa. Quer os príncipes venham, quer não, não é certo que eu possa obter o seu acordo. Além disso, ainda não te disse o mais surpreendente.
O quê?
O Molines quer que eu reponha em funcionamento a velha mina de chumbo que possuímos do lado de Vaulouprespondeu o barão, a suspirar e com o ar sonhador. Por vezes pergunto a mim mesmo se o indivíduo estará de posse de todo o seu juízo e confesso que tenho dificuldade em compreender negócios tão tortuosos... se de negócios se trata. Em resumo, pediu-me que solicitasse ao rei a renovação do privilégio concedido aos meus antepassados para produzirem lingotes de chumbo e de prata saídos da mina. Conheces bem a mina abandonada de Vauloup? perguntou Armando de Sancé, reparando no ar ausente da filha.
Angélique acenou afirmativamente.
Vá-se lá saber o que o maldito administrador espera tirar daqueles velhos pedregulhos!... Sim, porque o reequipamento da mina far-se-á em meu nome, mas será ele quem o pagará, evidentemente. Um acordo secreto assinado entre nós estipulará que ele terá direito de arrendamento dessa mina de chumbo durante dez anos, encarregando-se das minhas obrigações de proprietário do solo e da exploração do minério. Mas eu terei também de obter do superintendente a mesma isenção de postos sobre um quarto da futura produção, assim como as mesmas garantias de exportação. Tudo isto me parece um pouco complicado... concluiu o barão, levantando-se.
O gesto fez-lhe tilintar no bolso os escudos que Molines acabava de lhe entregar, e esse som agradável serenou-o um pouco.
Chamou o cavalo e lançou a Angélique, pensativa, um olhar que pretendeu fosse severo.
Trata de esquecer o que acabo de te contar e ocupa-te do teu enxoval. Sim, porque desta vez está decidido, minha filha: vais para o convento.
Angélique preparou, pois, o enxoval. Hortense e Madelon também partiam. Raimundo e Gontrano acompanhá-las-iam e, depois de as deixarem com as irmãs ursulinas, seguiriam para os padres jesuítas de Poitiers, educadores acerca dos quais se diziam maravilhas.
Pensou-se até em juntar a tal emigração o pequeno Dinis, de nove anos, mas a ama protestou. Depois de a terem sobrecarregado com a criação de dez crianças queriam tirar-lhas ”todas”. Tinha horror aos gestos extremos, afirmava. E Dinis ficou. Juntamente com Maria Inês, Alberto e um rapazinho de dois anos a quem chamavam Bebé, bastaria para ocupar os ”lazeres” de Fantine Lozier.
Poucos dias antes da partida, porém, um acontecimento esteve prestes a mudar o curso do destino de Angélique.
Certa manhã de Setembro, o Sr. de Sancé regressou, muito azafamado, do castelo do Plessis.
Angélique! chamou, ao entrar na sala de jantar, onde a família reunida o esperava para se sentar à mesa. Estás aí, Angélique?
Estou, sim, pai.
O barão lançou um olhar crítico à filha, que crescera ainda mais nos últimos meses e que se apresentava de mãos limpas e cabelo bem penteado. Estavam todos de acordo em admitir que Angélique se tornava razoável.
Correrá bem... murmurou o pai, que, dirigindo-se à mulher, acrescentou: Imaginai que toda a tribo do Plessis acaba de chegar à propriedade: marquês, marquesa, filho, pajens, criados e cães. E têm um hóspede ilustre: o príncipe de Conde e toda a sua corte. Caí no meio deles e senti-me muito deslocado. Mas o meu primo mostrou-se amável. Conversou comigo, perguntou-me por vós e sabeis o que me pediu? Que lhe levasse a Angélique para substituir uma das donzelas de honor da marquesa, que teve de deixar em Paris quase todas as rapariguinhas que a penteiam, a distraem e lhe tocam alaúde. A vinda do príncipe de Conde transtornou-a; afirma que tem necessidade de pequenas camareiras graciosas para a ajudarem.
E porque não vou eu? perguntou Hortense, escandalizada.
Porque o marquês disse ”graciosas” respondeu o pai, sem rodeios.
Mas o marquês achara-me com muito espírito...
Mas a marquesa quer carinhas bonitas à sua volta.
Oh, essa é forte! gritou Hortense, que se atirou à irmã, pronta a esgatanhá-la.
Angélique, porém, previra o gesto e esquivou-se lesta. Com o coração aos pulos, subiu ao grande quarto que compartilhava agora apenas com Madelon. Pela janela chamou um dos criaditos e ordenou-lhe que lhe levasse um balde de água e uma selha.
Lavou-se com muito cuidado e escovou demoradamente os belos cabelos, que usava caídos para os ombros, numa espécie de capelina sedosa. Pulquéria reuniu-se-lhe com o mais bonito vestido que lhe tinham feito para a entrada no convento. Angélique gostava do vestido, apesar do seu tom cinzento sem brilho. O tecido era novo, tinha sido comprado expressamente para a circunstância numa importante loja de Niort, e uma gola branca alegrava o conjunto. Era o seu primeiro vestido comprido. Vestiu-o com uma sensação de prazer e a tia juntou as mãos, enternecida.
Minha pequenina, vão tomar-te por uma jovem donzela! Talvez seja melhor levantar-te os cabelos?...
Mas Angélique recusou. O seu instinto feminino aconselhava-a a não diminuir o brilho da sua única jóia.
Montou uma bonita mula baia que o pai mandara selar em sua intenção e, acompanhada por ele, pôs-se a caminho do castelo do Plessis!
O castelo despertara do seu sono encantado. Depois de o barão e a filha deixarem as montadas nas instalações do administrador Molines, e quando retrocediam pela alameda principal, ouviram lufadas de música. Lebréus esguios e graciosos griffons retouçavam na relva. Senhores de cabelos anelados e damas de vestidos furta-cores percorriam as alamedas. Alguns olharam com espanto o fidalgo provinciano vestido de burel escuro e a adolescente com trajo de pensionista.
Ridícula, mas bonita disse uma das damas, a dar ao leque. Angélique perguntou-se se seria a ela que se referia. Ridícula porquê?
Observou melhor os vestidos sumptuosos, de cores vivas e guarnecidos de rendas, e começou a achar o seu vestido cinzento deslocado.
O barão Armando não compartilhava do constrangimento da filha, todo absorto na ansiedade que lhe causava a ideia da entrevista que tencionava pedir ao marquês do Plessis. Obter isenção total para um quarto de uma produção de muares e de uma mina de chiynbo poderia ser facílimo para um nobre de alta linhagem como era, na realidade, o actual barão de Ridoué de Sancé de Monteloup. Mas o pobre fidalgo apercebia-se de que, ao viver longe da corte, se tornara tão canhestro como um camponês entre aquelas personagens cujas cabeleiras empoadas, cujo hálito perfumado e cujas exclamações de papagaio o transiam. Recordava-se vagamente de que, no tempo do rei Luís XIII, se aparentava mais simplicidade e mais rudeza. Não fora o próprio Luís XIII que, escandalizado com o seio demasiado exposto de uma jovem beldade de Poitiers, cuspira sem vergonha naquela abertura indiscreta... e tentadora?
Testemunha, no seu tempo, desse gosto real, Armando de Sancé evocava-o com mágoa enquanto, seguido por Angélique, abria caminho através da multidão alambicada.
Músicos empoleirados num pequeno estrado manejavam instrumentos de sons agudos e encantadores: sanfonas, alaúdes, oboés e flautas. Angélique viu, numa grande sala forrada de espelhos, jovens a dançar e perguntou a si mesma se o seu primo Filipe também lá se encontraria.
Entretanto, chegado ao fundo dos salões, o barão de Sancé inclinou-se, tirando o velho chapéu guarnecido de modesta pluma. Angélique sentiu-se magoada. ”Na nossa pobreza”, pensou, ”só a arrogância seria indicada.” Por isso, em vez de fazer a reverência que Pulquéria a obrigara a repetir três vezes, manteve-se rígida como um boneco de madeira, a olhar a direito, em frente. Os rostos que a rodeavam tornaram-se um pouco indistintos, mas ela sabia que toda a gente, ao vê-la, sentia uma vontade louca de rir. Fizera-se bruscamente um silêncio entrecortado de risinhos abafados no momento em que o criado anunciara:
O Sr. Barão de Ridoué de Sancé de Monteloup.
O rosto da marquesa do Plessis ficou todo corado atrás do leque e os seus olhos brilharam de riso contido. O marquês do Plessis salvou a situação, intervindo afavelmente:
Meu caro primo, muito nos honrastes vindo tão depressa e trazendo a vossa encantadora filha. Angélique, estais ainda mais bonita do que quando vos vi da última vez. Não é verdade? Não tem o ar de um anjo? indagou, virando-se para a mulher.
Sem dúvida nenhuma confirmou a marquesa, que recuperara o sangue-frio. Com outro vestido seria divina. Sentai-vos neste tamborete, minha linda, para que possamos observar-vos à vontade.
Meu primo disse Armando de Sancé, cuja voz áspera soou estranhamente no elegante salão, desejaria falar-vos sem demora de assuntos importantes.
O marquês arqueou as sobrancelhas, estupefacto.
Deveras? Escuto-vos.
Lamento, mas são coisas que só podem ser discutidas em particular.
O Sr. do Plessis lançou à assistência um olhar simultaneamente resignado e trocista.
Muito bem! Muito bem, meu primo barão. Vamos para o meu gabi nete. Minhas senhoras, desculpai-nos. Até já...
Sentada no tamborete, Angélique era o ponto de mira de um círculo de curiosidade. A horrível emoção que a sufocara dissipara-se um pouco e ela começava a distinguir claramente todos os rostos que a cercavam. Na sua maioria, eram-lhe estranhos. Mas junto da marquesa encontrava-se uma mulher muito bela, que reconheceu pelo pescoço branco e nacarado.
”Sr.a de Richeville”, pensou.
O vestido bordado a ouro e o peitilho florido de diamantes da condessa demonstravam-lhe com excessiva crueza até que ponto o seu vestido cinzento era feio. Todas aquelas damas cintilavam da cabeça aos pés. Traziam à cintura estranhas bugigangas: espelhinhos, pentes de tartaruga, caixinhas de confeitos e relógios. Jamais Angélique poderia vestir-se assim. Jamais seria capaz de olhar os outros com tanta altivez, jamais conseguiria falar com aquela voz alta e presumida, de quem parecia estar perpetuamente a chupar confeitos.
Minha querida dizia uma das damas, ela tem cabelos sedutores, mas que nunca conheceram qualquer tratamento.
O seu peito é pequeno, para quinze anos.
Mas, queridíssima, ela só tem treze anos!
Quereis saber a minha opinião, Henriqueta? É tarde de mais para a polir.
”Serei uma mula posta à venda?”, pensou Angélique, tão estupefacta que nem se sentia verdadeiramente magoada.
Que quereis observou a Sr.a de Richeville, ela tem olhos verdes, e os olhos verdes dão azar, como a esmeralda.
São de uma tonalidade rara protestou outra.
Mas sem encanto. Reparai na expressão dura desta rapariguinha. Não, sinceramente, não gosto dos olhos verdes.
”Tirar-me-ão até os meus únicos bens, os meus olhos e os meus cabelos?”, interrogou-se a adolescente.
Sem dúvida, minha senhora disse bruscamente, em voz alta, acredito que os olhos azuis do abade de Nieul sejam mais doces... e vos dêem sorte rematou, mais baixo.
Fez-se um silêncio de morte. Primeiro soaram alguns risos, mas logo se extinguiram. Algumas das senhoras olharam em seu redor, com espanto, como se lhes custasse a crer que tinham ouvido tais palavras pronunciadas por aquela impassível garota.
Uma mancha purpúrea cobriu o rosto da condessa de Richeville e alastrou-lhe para o pescoço.
Oh, mas eu reconheço-a! exclamou, e logo a seguir mordeu os lábios.
Olhavam Angélique com espanto. A marquesa do Plessis, que era muito má-língua, disfarçava de novo o riso com o leque. Mas agora era da vizinha que tentava ocultar a hilaridade.
Filipe! Filipe! chamou, para disfarçar. Onde está o meu filho? Sr. de Barre, quer ter a bondade de chamar o coronel?
E quando o jovem coronel de dezasseis anos acorreu:
Filipe, esta é a tua prima de Sancé. Leva-a para dançar. A companhia de gente jovem distraí-la-á mais do que a nossa.
Angélique levantara-se logo, irritada consigo própria por sentir o coração bater mais depressa. O jovem fidalgo olhava para a mãe com uma indignação não dissimulada, parecendo perguntar-lhe: ”Como ousais atirar-me para os braços uma rapariga tão mal arranjada?”
Mas deve ter compreendido, pela expressão das pessoas presentes, que se passara algo de anormal e, por isso, estendeu a mão a Angélique e murmurou, com a ponta dos lábios:
Vinde, pois, minha prima.
Angélique depositou na palma aberta os dedos pequeninos, cuja beleza ignorava. Em silêncio, Filipe conduziu-a ao limiar da galeria onde os pajens e os jovens da sua idade tinham o direito de se divertir como lhes aprouvesse.
Abram alas! Abram alas! exclamou, de súbito. Meus amigos, apresento-vos a minha prima, a baronesa do Vestido Triste.
Os jovens precipitaram-se todos para eles, no meio de grandes gargalhadas. Os pajens, com os seus curiosos calçõezinhos tufados cingidos na base da coxa, as suas compridas e magras pernas de adolescentes e empoleirados nos saltos altos pareciam aves pernaltas.
”No fim de contas, não sou mais ridícula com o meu triste vestido do que eles com aquela espécie de abóbora menina à volta dos quadris”, pensou Angélique.
Teria sacrificado de boa vontade um pouco do seu amor-próprio para continuar alguns momentos mais junto de Filipe, mas um dos rapazes perguntou-lhe:
Sabeis dançar?
Um pouco.
Deveras? E que danças?
A bourráe, o rigodão, a roda...
Ah! Ah! Ah! estrugiram as gargalhadas. Estranha ave nos trouxeste, Filipe! Vamos, meus senhores, tiremos à sorte! Quem vai fazer dançar a camponesa? Onde estão os amadores da bourrée? Puf! Puf, Puf!
Bruscamente, Angélique soltou a mão da de Filipe e fugiu.
Atravessou os grandes salões cheios de criados e senhores e o átrio de mosaicos, onde dormiam cães em cima de quadrados de veludo. Procurava o pai e, sobretudo, não queria chorar. Nada daquilo valia a pena. Seria uma recordação a apagar da memória, como um sonho um pouco louco e grotesco. Não é bom para a codorniz sair da sua brenha. Por ter escutado com alguma boa vontade os ensinamentos da tia Pulquéria, Angélique achava que fora justamente castigada pelos
Dança rústica da Auvergne. (N. da T.)
sentimentos de vaidade que o pedido lisonjeiro da marquesa do Plessis lhe tinha inspirado.
Ouviu, por fim, vinda de um pequeno salão afastado, a voz um pouco aguda do marquês:
Mas de modo algum, de modo algum! Não compreendeis nada, meu pobre amigo! afirmava ele, num crescendo irritado. Imaginais que nos é fácil a nós, nobres sobrecarregados de despesas, obter isenções. Enganai-vos. De resto, nem eu próprio nem o príncipe de Conde estamos habilitados a conceder-vo-las.
Peço-vos apenas que sejais meu advogado junto do superintendente das Finanças, Sr. de Trémant, que conheceis pessoalmente. O negócio não deixa de ter interesse para ele. Isenta-me de impostos e de todos os direitos de passagem unicamente doPoitou ao oceano, e mesmo assim essa isenção só se aplicará a um quarto da minha produção de muares e de chumbo. Em contrapartida, a Intendência Militar do rei poderá reservar-se o direito de comprar o resto ao preço corrente, e até mesmo o Tesouro real poderá fazer compras semelhantes de chumbo e prata à tabela oficial. Não é mau para o Estado ter alguns produtores certos de materiais diversos no país, em vez de comprar ao estrangeiro. Assim, para puxar os canhões, tenho excelentes animais, robustos e de lombo sólido...
As vossas palavras cheiram a estrume e a suor protestou o marquês, levando ao nariz a mão repugnada. Pergunto-me até que ponto deslustrais a vossa condição de gentil-homem lançando-vos num empreendimento que se assemelha muito permiti que diga a palavra adequada a um comércio.
Comércio ou não, preciso de viver replicou Armando de Sancé com uma tenacidade reconfortante para Angélique.
E eu? perguntou o marquês, erguendo os braços. Julgais que não tenho dificuldades? Pois sabei que, apesar disso, proibirei a mim mesmo, até ao meu último dia de vida, toda e qualquer tarefa plebeia que possa ser nociva à minha qualidade de fidalgo.
Meu primo, os vossos rendimentos não são comparáveis aos nossos. Na realidade, vivo apenas num estado de mendicidade no tocante ao rei, que me recusa auxílio, e no tocante aos usurários de Niort, que me devoram.
Eu sei, meu corajoso Armando, eu sei. Mas alguma vez pensastes como eu, homem da corte e com dois cargos reais importantes, consigo equilibrar a minha bolsa? Estou certo de que não pensastes! Pois bem, sabei que as minhas despesas ultrapassam forçosamente as minhas receitas. Com as rendas do meu domínio do Plessis, as da minha mulher da Touraine, o meu cargo de oficial da câmara do rei cerca de 40 000 libras e o de mestre-de-campo de brigada do Poitou, tenho um rendimento bruto médio de 160 000 libras...
Contentar-me-ia com um décimo declarou o barão.
Um momento, primo provinciano. Tenho 60 000 libras de rendimento, é certo. Mas ficai sabendo que com as despesas da minha mulher, o regimento do meu filho, o meu palácio de Paris, a minha pousada de Fontainebleau, as viagens a acompanhar a corte nas suas deslocações, os juros a pagar sobre diversos empréstimos, as recepções, o vestuário, as equipagens, a criadagem, etc. Tenho 300 000 libras de despesas.
Tendes então um défice de mais de 150 000 libras por ano?
Escusais de mo dizer, meu primo. Se me permiti fazer-vos este enumerado aborrecido, foi para que compreendêsseis o meu ponto de vista quando vos digo que me é verdadeiramente impossível abordar o Sr. de Trémant, superintendente das Finanças.
No entanto, conhecei-lo.
Conheço-o, mas já não o visito. Estou cansado de vos repetir que o Sr. de Trémant está ao serviço do rei e da regente e parece ser até dedicado aMazarino...
Pois bem, precisamente por isso...
Precisamente por isso, já não o visitamos. Ignorais acaso que o Sr. Príncipe de Conde, ao qual sou fiel, está malquistado com a corte?
Como poderia sabê-lo?perguntou Armando de Sancé, espantado. Quando vos falei, há poucos meses ainda, nessa época a regente não tinha melhor servidor do que o Sr. Príncipe.
Ah!, o tempo andou depressa depois disso! exclamou, a suspirar, o marquês do Plessis.Não posso contar-vos a história em pormenor. Sabei apenas que, se a rainha, os seus dois filhos e esse diabo vermelho do cardeal puderam reinstalar-se no Louvre, em Paris, foi somente graças ao Sr. de Conde. Mas, como agradecimento, tratou-se esse grande homem de modo indigno. Há algumas semanas deu-se a ruptura. Certas propostas de Espanha pareceram muito interessantes ao príncipe, que veio a minha casa a fim de lhes estudar o fundamento.
Propostas espanholas? repetiu o barão Armando.
Sim. Aqui entre nós e pela nossa honra de fidalgos, imaginai que o rei Filipe IV vai ao ponto de oferecer ao nosso grande general, assim como ao Sr. de Turenne, um exército de dez mil homens para cada um.
Para fazer o quê?
Ora, para dominar a regente e, sobretudo, esse ladrão do cardeal! Graças aos exércitos espanhóis comandados pelo Sr. de Conde, este entraria em Paris e Castão de Orleães, isto é, Monsieur, o irmão do falecido rei Luís XIII, seria proclamado rei. A monarquia ficaria salva e finalmente desembaraçada de mulheres, de crianças e de um estrangeiro que a desonra. Que hei-de eu fazer em todos estes projectos, pergunto-vos? Para manter o nível de vida que acabo de vos expor, não posso dedicar-me a uma causa perdida. Ora a verdade é que o povo, o Parlamento, a corte, toda a gente, em suma, odeia Mazarino. A rainha continua a agarrar-se a ele e jamais cederá. Seria impossível descrever-vos a existência que levam, há dois anos, a corte e o pequeno rei. Só se pode compará-la à dos ciganos do Oriente: fugas, regressos, disputas, guerras, etc.
”É demasiado. A causa do pequeno rei Luís XIV está perdida. Acrescento que a filha de Castão de Orleães, deMontpensier sabeis quem é, aquela raparigaça de voz potente, é uma furiosa partidária da Fronda. Já batalhou ao lado dos revoltosos, há um ano, e está desejosa de recomeçar. A minha mulher adora-a e ela retribui-lhe o afecto. Desta vez, porém, não deixarei a Alice comprometer-se com outro partido que não seja o meu. Atar um lenço azul à cintura e pôr uma espiga de trigo no chapéu não seria grave se a separação entre esposos não acarretasse outras complicações. A verdade é que Alice é, por natureza, ”contra”. Contra as ligas e a favor dos pendentes de seda, contra a franja e a favor da fronte descoberta, etc.
Presentemente, é contra Ana de Áustria, a regente, porque esta lhe observou que as pastilhas por ela usadas para os cuidados da boca lhe recordavam um remédio purgativo. Nada fará Alice regressar à corte, onde alega que as pessoas se aborrecem entre as devoções da rainha e as proezas dos seus principezinhos. Seguirei, pois, a minha mulher, já que a minha mulher, não quer seguir-me. Tenho a fraqueza de a achar espirituosa e de lhe reconhecer certos talentos amorosos que me comprazem... No fim de contas, a Fronda é uma brincadeira agradável...
Mas... mas não pretendeis dizer que o Sr. de Turenne... que também ele...?tartamudeou Armando de Sancé, que perdia o pé naquele mar agitado.
Oh, o Sr. de Turenne, o Sr. de Turenne! Ele é como toda a gente, não gosta que apreciem mal os seus serviços. Pediu Sedan para a sua família. Recusaram-lho. Zangou-se, naturalmente. Parece até que já terá aceitado as propostas do rei de Espanha. O Sr. de Conde é menos apressado. Espera, para se decidir, notícias da irmã de Longueville, que partiu com a princesa de Conde para sublevar a Normandia. Devo dizer-vos que se encontra aqui a duquesa de Beaufort, cujos encantos não lhe são indiferentes... Ao contrário do que é costume, o nosso grande herói mostra-se menos impaciente em partir para a guerra. Desculpá-lo-eis quando conhecerdes a deusa em questão... Tem uma pele, meu caro!...
Angélique, que estava encostada a uma tapeçaria, viu, de longe, o pai tirar o grande lenço e enxugar a testa.
”Não conseguirá nada”, pensou, de coração angustiado. ”Que lhes podem interessar, a eles, as nossas histórias de mulas e chumbo argentífero?”
Subiu-lhe à garganta uma mágoa insuportável. Afastou-se e dirigiu-se para o parque, onde a noite azul alastrava. Continuavam a ouvir-se os violinos e as guitarras em despique no fundo dos salões, enquanto filas de lacaios transportavam castiçais. Outros, empoleirados em escabelos, acendiam as velas dos apliques das paredes, cuja chama os espelhos multiplicavam.
”Quando penso que o meu pobre paizinho teve escrúpulos por causa de algumas muares que o Molines pretendia vender à Espanha em tempo de guerra...”, pensava Angélique, enquanto caminhava pelas alamedas, em passos miudinhos. ”A traição? É coisa bem indiferente a todos estes príncipes, embora só vivam graças à monarquia. Será possível que sej am realmente capazes de pensar em combater o rei?...
Contornara o castelo e encontrava-se junto da muralha que outrora tantas vezes escalara para contemplar os tesouros do quarto encantado. O lugar estava deserto, porque os pares que não fugiam da bruma crepuscular, muito fresca naquele anoitecer outonal, permaneciam de preferência nos relvados da frente.
Um instinto familiar levou-a a descalçar os sapatos e a içar-se com agilidade, apesar do vestido comprido, até à cornija do primeiro andar. Já escurecera por completo. Ninguém que por ali passasse a veria, para mais encolhida na sombra de uma torrezinha que ornamentava a ala direita.
A janela estava aberta e Angélique debruçou-se dela. Pressentiu que, pela primeira vez, o aposento devia estar habitado, pois a claridade
dourada de uma lamparina acentuava o mistério dos belos móveis e das tapeçarias. Os embutidos de madrepérola de uma comodazinha de ébano brilhavam como cristais.
De súbito, ao olhar na direcção do alto leito adamascado, teve a impressão de que o quadro do deus e da deusa adquirira vida.
Dois corpos brancos e nus abraçavam-se na desordem dos lençóis empurrados para trás, cujas rendas tocavam no chão. Os dois corpos confundiam-se tão estreitamente que, ao princípio, Angélique julgou tratar-se de um combate de adolescentes, de uma luta entre pajens aguerridos e impudicos, antes de perceber que se tratava de um homem e uma mulher.
A cabeleira escura e anelada do parceiro masculino cobria quase por completo o rosto da mulher, que o seu corpo comprido parecia querer esmagar inteiramente. No entanto, o homem movia-se com suavidade e ritmo, animado por uma espécie de tenacidade voluptuosa, e os reflexos da luz da lamparina revelavam o movimento dos seus magníficos músculos.
Da mulher, Angélique só distinguia pormenores meio amalgamados na penumbra: uma perna esbelta, erguida contra o corpo viril, um seio que se escapava dos braços que a envolviam e uma mão delicada e branca. Esta, qual borboleta, ia e vinha, acariciava como que maquinalmente o flanco do homem e caía de súbito, de palma aberta, pendendo da beira do leito, enquanto um gemido profundo irrompia dos cortinados de seda.
Durante os instantes de silêncio, Angélique ouvia duas respirações que se confundiam, cada vez mais agitadas, semelhantes ao vento de uma tempestade escaldante. Depois, uma calma brusca apaziguava-os e a seguir o queixume da mulher soava de novo na penumbra, enquanto a sua mão se abatia, vencida, no lençol branco, como uma flor cortada.
Angélique sentia uma perturbação muito grande, quase um tormento, mas, ao mesmo tempo, estava vagamente maravilhada. Em virtude de ter contemplado tantas vezes o quadro do Olimpo, de ter saboreado a sua frescura e o seu vigor impregnados de majestade, era uma impressão de beleza que se desprendia, para ela, daquela cena cujo significado compreendia, como camponesa entendida.
”É então aquilo o amor!”, pensou, percorrida por um calafrio de assombro e prazer.
Por fim, os dois amantes desenlaçaram-se. Repousaram ao lado um do outro, como pálidas estátuas jacentes na obscuridade de uma cripta. A respiração de ambos enlanguescia numa beatitude próxima do sono. Nem um nem outro falavam. Foi a mulher quem primeiro se mexeu. Estendendo o braço muito branco, chegou à consola que ficava perto do leito e pegou numa garrafa onde um vinho escuro brilhava como rubis. Deu uma gargalhadinha contrita e murmurou:
Estou toda partida, meu querido! É absolutamente indispensável que bebamos juntos este vinho do Rossilhão que o vosso previdente criado aqui deixou. Quereis uma taça?
Do fundo da alcova, o homem respondeu com um grunhido que devia ser um assentimento.
A mulher, que parecia ter recuperado por completo as forças, encheu duas taças, estendeu uma ao amante e bebeu a outra com uma alegria gulosa. De súbito, Angélique pensou que gostaria de estar ali, naquele leito, completamente nua e apaziguada, a saborear o vinho capitoso do Sul.
”É o chaudaut aos príncipes”, pensou.
Estava numa posição incómoda, mas nem dava por isso. Agora podia ver completamente a mulher, admirava-lhe os seios de uma redondez perfeita, sublinhados pelo bico escuro, o ventre flexível e as pernas compridas e cruzadas.
Na bandeja também havia frutos. A mulher escolheu um pêssego e mordeu-o com apetite.
A peste leve os maçadores! exclamou de súbito o homem, saltando por cima da amante até à beira do leito.
Angélique, que não ouvira bater à porta, julg”ou-se descoberta e encolheu-se toda na torrezinha, mais morta do que viva.
Quando voltou a olhar, viu que o deus se envolvera num amplo roupão castanho, cingido na cintura por um cordão prateado. O seu rosto de homem jovem, dos seus trinta anos, era menos belo do que o seu corpo, pois tinha nariz com prido e olhos duros e cheios de fogo, que lhe davam um certo ar de ave de rapina.
Estou na companhia da duquesa de Beaufort! gritou através da porta.
A grande conjura e o cofrezinho do veneno
Apesar do aviso, apareceu um criado no limiar.
Que Sua Alteza me perdoe, mas acaba de chegar um monge que insiste em ser recebido pelo Sr. de Conde. O Sr. Marquês do Plessis achou conveniente mandá-lo imediatamente a Sua Alteza.
Que entre resmungou o príncipe, após um instante de silêncio. Dirigiu-se à secretária de ébano que se encontrava junto da janela e
abriu algumas gavetas.
Ao fundo do aposento, um lacaio introduziu no quarto um monge de capuz de burel, que se aproximou e se inclinou diversas vezes, com uma notável flexibilidade de espinha.
Ao endireitar-se, revelou o rosto moreno, onde brilhavam uns olhos pretos grandes e langorosos.
A vinda do eclesiástico não pareceu incomodar nada a mulher estendida no leito, que continuou a comer despreocupadamente os belos frutos. Cobrira-se apenas com uma charpa fina, ao nascer das pernas.
O homem de cabelos negros continuava inclinado para a secretária, da qual tirava grandes sobrescritos com selo vermelho.
Padre perguntou, sem se voltar, foi o Sr. Fouquet quem vos mandou?
Exactamente, monsenhor.
O monge acrescentou uma frase numa língua cantante, que Angélique supôs ser italiano. Quando se exprimia em francês, tinha um sotaque ligeiramente ceoso e com um não sei quê de infantil, possuidor de certo encanto.
Era inútil repetir a senha, signor Exili declarou o príncipe de Conde. Ter-vos-ia reconhecido pela descrição que de vós me fizeram e por esse sinal azul ao canto do olho. Sois então vós o mais hábil artista da Europa na ciência difícil e subtil dos venenos?
Vossa Alteza honra-me. Limito-me a aperfeiçoar algumas receitas legadas pelos meus antepassados florentinos.
Os Italianos são artistas em todos os géneros! exclamou Conde, que deu uma gargalhada que parecia um relincho.
Logo a seguir, porém, o seu rosto reassumiu a expressão dura e ele perguntou:
Trouxe a coisa?
Está aqui.
O religioso tirou do interior da larga manga um cofrezinho cinzelado, que ele próprio abriu, premindo uma das molduras de madeira preciosa.
Reparai, monsenhor, basta introduzir a unha na base do pescoço desta personagenzinha que segura uma pomba.
A tampa levantara-se e num fundo de cetim brilhava uma ampola de vidro cheia de um líquido cor de esmeralda. O príncipe de Conde pegou na ampola com cuidado e ergueu-a para a luz.
Vitríolo romano informou docemente o padre Exili. É um composto de efeito lento, mas seguro. Preferi-o ao sublimado corrosivo, capaz de provocar a morte em poucas horas. Pelas instruções que o Sr. Fouquet me deu julguei compreender que vós, monsenhor, assim como os vossos amigos, não desejais que nasçam suspeitas demasiado precisas entre o círculo da pessoa em questão. Esta enfraquecerá, resistirá talvez uma semana, mas morrerá e a sua morte terá o aspecto natural de uma inflamação intestinal provocada por caça estragada ou por qualquer alimento pouco fresco. Seria até conveniente servir à mesa dessa pessoa mexilhões, ostras ou qualquer mariscos cujos efeitos são por vezes perigosos. Atribuir-lhes depois as culpas de uma morte tão inesperada seria brincadeira de crianças.
Agradeço-vos os vossos excelentes conselhos, padre.
Conde continuava a observar a ampola verde-pálido com um brilho odiento no olhar. Angélique sentiu uma grande decepção: o deus do amor, descido à terra, não tinha beleza nenhuma e causava-lhe medo.
Acautelai-vos, monsenhor recomendou o padre Exili. Esse veneno tem de ser manipulado com infinita precaução. Para o concentrar, eu próprio sou obrigado a usar uma máscara de vidro. Uma gota caída na pele poderia dar origem a um mal destruidor, capaz de devorar um membro inteiro. Se não vos for possível deitar pessoalmente o remédio na comida da pessoa, recomendai ao criado a quem tal empresa confiardes que proceda com todo o cuidado e firmeza.
O meu criado que vos apresentou é um homem de toda a confiança. Graças a um estratagema de que me felicito, a pessoa em questão não o conhece. Creio que será fácil colocá-lo ao seu serviço.
O príncipe lançou um olhar irónico ao monge, que dominava com a sua alta estatura, e acrescentou:
Suponho que uma vida consagrada a tal arte não vos tornou excessivamente escrupuloso, signor Exili. Todavia, que pensaríeis se vos confessasse que este veneno se destina a um dos vossos compatriotas, um italiano dos Abruzos?
Um sorriso entreabriu os lábios de Exili, que se inclinou e redarguiu:
Só tenho por compatriotas os que apreciam os meus serviços pelo seu justo valor, Alteza. E, de momento, o Sr. Fouquet, do Parlamento de Paris, mostra-se mais generoso a meu respeito do que certo italiano dos Abruzos que eu também conheço.
O riso cavalar de Conde soou de novo.
Bravo, bravíssimo, signor! Gosto de ter comigo pessoas da vossa espécie.
Delicadamente, repôs a ampola na almofada de cetim. Seguiu-se um momento de silêncio. Os olhos do signor Exili contemplavam a sua obra com uma satisfação não isenta de vaidade.
Acrescento, monsenhor, que esse líquido tem o mérito de ser inodoro e quase sem sabor. Não altera os alimentos com os quais é misturado e, quando muito, se prestar muita atenção ao que come, o destinatário poderá acusar o seu cozinheiro de ter abusado um bocadinho das especiarias.
Sois um homem valioso elogiou o príncipe, que parecia ter-se tornado sonhador.
Com certo nervosismo, tirou de cima da comodazinha os sobrescritos lacrados.
Aqui tendes o que, em troca, devo entregar-vos para o Sr. Fouquet. Este sobrescrito contém a declaração do marquês d’Hocquincourt. Estes, as do Sr. de Charost, do Sr. do Plessis, da Sr.a do Plessis, da Sr.a de Richeville, da duquesa de Beaufort e da Sr.a de Longueville. Como verificais, as damas são menos preguiçosas... ou menos escrupulosas do que os cavalheiros. Faltam-me ainda as cartas do Sr. de Maupéou, do marquês de Créqui e de alguns outros...
E a nossa, monsenhor.
Exactamente. Está aqui, de resto. Terminei-a há pouco e ainda não a assinei.
Vossa Alteza quer ter a extrema bondade de me ler o texto, para que eu possa verificar ponto por ponto se está tudo em conformidade com o estipulado? O Sr. Fouquet insiste especialmente em que nenhum termo seja esquecido.
Como desejardes redarguiu o príncipe, que encolheu imperceptível mente os ombros.
Depois pegou na folha e leu, em voz alta:
Eu, Luís H, príncipe de Conde, dou a Monsenhor Fouquet a garantia de ser sempre apenas por ele e por mais ninguém, de não obedecer a nenhuma outra pessoa sem excepção, de lhe entregar as minhas praças, fortificações e outras todas as vezes que ele o ordenar.
Como penhor de que assim será, entrego o presente bilhete escrito e assinado pela minha mão e de minha própria vontade sem que ele o tenha sequer desejado, pois teve a bondade de confiar na minha palavra, que lhe é garantida.
Escrito no Plessis-Bellière em 20 de Setembro de 1649.
Assinai, monsenhor pediu o padre Exili, cujos olhos brilhavam sob o capuz.
Rapidamente, como se tivesse pressa de acabar com aquilo. Conde tirou de cima da secretária uma pena de pato e aparou-a. Enquanto ele assinava a carta, o monge acendeu um fornilho de prata dourada onde Conde derreteu um pouco de cera vermelha, com a qual selou a missiva.
Todas as outras declarações foram feitas segundo este modelo e assinadas informou. Espero que o vosso amo fique satisfeito connosco e no-lo prove.
Podeis estar certo disso, monsenhor. No entanto, não posso partir deste castelo sem levar comigo as outras declarações de que me falastes.
Comprometo-me a entregar-vo-las amanhã antes do meio-dia.
Nesse caso, ficarei sob este tecto até esse momento.
A nossa amiga, a marquesa do Plessis, encarregar-se-á da vossa instalação, signor. Mandei-a prevenir da vossa chegada.
Entretanto, creio que seria prudente fechar estas cartas no cofrezinho secreto que vos entreguei. O fecho é invisível e em nenhum lado ficariam mais ao abrigo de indiscretos.
Tendes razão, signor Exili. Ao ouvir-vos, compreendo que a conspiração também é uma arte que exige experiência e prática. Eu sou apenas um guerreiro e não o oculto.
Um guerreiro glorioso! exclamou o italiano, inclinando-se.
Lisonjeais-me, padre. Mas confesso que gostaria que o Sr. de Mazarino e sua majestade a rainha compartilhassem a vossa opinião. De qualquer modo, creio que a táctica militar, ainda que mais grosseira e mais vasta, se assemelha um pouco às vossas manobras subtis. É sempre necessário prever as intenções do inimigo.
Monsenhor, falais como se o próprio Maquiavel tivesse sido vosso mestre!
Lisonjeais-me repetiu o príncipe. Mas sentia-se mais tranquilo.
Exili ensinou-lhe como se levantava a almofadinha de cetim, para guardarem debaixo dela os sobrescritos comprometedores. Feito isso, o cofre foi novamente posto em cima da secretária.
Assim que o italiano se retirou. Conde pegou no cofre, como um garoto, e voltou a abri-lo.
Mostra pediu a mulher em voz baixa, estendendo-lhe o braço. Durante a conversa não interviera e limitara-se a recolocar nos dedos, um após outro, todos os anéis. Aparentemente, porém, não perdera uma palavra do que fora dito.
Conde aproximou-se do leito e inclinaram-se os dois para a ampola com o líquido cor de esmeralda.
Achas que é realmente tão terrível como ele disse? perguntou a duquesa de Beaufort, baixinho.
Fouquet garante que não há boticário mais hábil do que este florentino. De qualquer maneira, temos de contar com o Fouquet. Foi ele que teve a ideia da intervenção espanhola, no Parlamento de Paris, em Abril passado, intervenção que desagradou a todos, mas que o pôs em contacto com Sua Majestade católica. Não terei o meu exército, a não ser pelos seus ofícios.
A mulher, que se recostara de novo nas almofadas, exclamou, em voz compassada:
Assim, o Sr. de Mazarino morreu!
É como se tivesse morrido, pois tenho aqui a sua morte, entre as minhas mãos.
Não dizem que, às vezes, a rainha-mãe toma as refeições com aquele a quem ama apaixonadamente?
Dizem admitiu Conde, após um momento de silêncio. Mas não concordo com o vosso projecto, minha amiga. E penso noutra maneira mais hábil e mais eficaz. Que seria a rainha-mãe sem os filhos?... A Espanhola não teria outro remédio senão retirar-se para um convento, a fim de os chorar...
Envenenar o rei? perguntou a duquesa, num sobressalto.
O príncipe soltou um dos seus relinchos alegres e foi guardar o cofre na secretária.
O que são as mulheres! exclamou. O rei! Enterneceis-vos porque se trata de uma bela criança, toda agitada pelos problemas da adolescência, e que há algum tempo, na corte, vos faz olhos de carneiro mal morto. O rei, para vós, é isso. Para nós é um obstáculo perigoso a todos os nossos projectos. Quanto ao irmão, o Petit Monsieur, um miúdo desencaminhado que já tem prazer em vestir-se de menina e ser acariciado por homens, parece-me que ficaria ainda pior no trono do que o vosso real donzel. Não, acreditai-me, com o Sr. de Orleães, tão pouco austero quanto o irmão, Luís XIII, o era em demasia, teremos um rei de acordo com as nossas conveniências. É rico e fraco de carácter. Que mais queremos?
Depois de fechar a secretária e de meter a chave na algibeira do roupão. Conde acrescentou:
Minha querida, creio que devemos pensar em comparecer perante os nossos anfitriões. O jantar não tardará. Quereis que mande chamar Manon, a vossa criada de quarto?
Ficar-vos-ei grata, meu caro senhor.
Angélique, que começava a sentir-se fatigada, recuara um pouco na cornija. Pensava que o pai devia andar à sua procura, mas não se resolvia a abandonar o poleiro. No quarto, nas mãos dos respectivos criados, o príncipe e a amante vestiam os seus atavios num grande roçagar de sedas e de mistura com algumas pragas da parte de monsenhor, que não era paciente.
Quando desviava os olhos do quadrado de luz formado pela janela aberta, Angélique só via em seu redor a noite densa e só ouvia o murmúrio da floresta próxima, agitada pelo vento outonal.
Por fim apercebeu-se de que o quarto estava deserto. A lamparina continuava acesa, mas o aposento recuperara o seu mistério.
Muito de mansinho, a adolescente aproximou-se da janela e entrou no quarto. O odor das pinturas e dos perfumes misturava-se estranhamente ao que se emanava da noite, carregada dos odores de bosques húmidos, musgo e castanhas maduras.
Angélique ainda não sabia muito bem o que ia fazer. Podiam-na surpreender, mas não o receava. Aquilo não passava tudo de um sonho. Era como a partida para as Américas, a dama louca de Monteloup, os crimes de Gil deRetz...
Célere, tirou da algibeira do roupão abandonado numa cadeira a chavezinha da secretária, abriu-a e retirou o cofre. Era de sândalo e emanava um cheiro penetrante. Depois de fechar a secretária e repor a chave na algibeira do roupão, Angélique deu novamente consigo na cornija, com o cofrezinho debaixo do braço. De repente, tudo aquilo a divertia prodigiosamente. Imaginava a cara do Sr. de Conde quando descobrisse o desaparecimento do veneno e das cartas comprometedoras.
”Não é roubo, pois trata-se de evitar um crime”, pensou.
Já sabia até em que esconderijo meteria o furto. As torrezinhas angulares, com as quais o arquitecto italiano flanqueara os quatro cantos do gracioso castelo do Plessis, só serviam de ornamento, o que não impedira que as guarnecessem com seteiras e mata-cães em miniatura, imitando a decoração guerreira dos edifícios da Idade Média. Além disso, eram ocas e tinham uma lucarna muito pequenina.
Angélique deitou o cofrezinho para dentro da mais próxima. Muito esperto teria de ser quem ali o fosse procurar!
Depois, ágil, escorregou ao longo da fachada até ao chão. Só então reparou que os seus pés descalços estavam gelados.
Calçou os velhos sapatos e regressou ao castelo.
Já estava toda a gente reunida nos salões. A noite, demasiado escura e brumosa, não convidava ninguém a permanecer no exterior.
Ao entrar no vestíbulo, o olfacto de Angélique foi agradavelmente estimulado por eflúvios culinários muito apetecíveis. Viu passar uma série de criadinhos de libré que transportavam gravemente grandes bandejas de prata. Desfilaram diante dela faisões e galinholas adornados com a própria plumagem, um leitão coroado de flores como uma noiva e diversos bocados de um belo cabrito montês dispostos sobre fundos de alcachofras e ramos de funcho...
Vinha um ruído de porcelanas e cristais entrechocados das salas e das galerias, onde as pessoas se tinham reunido à volta de mesinhas com toalhas de renda, dispostas com gosto aqui e ali. Cada uma dava para dez pessoas.
Angélique parou à entrada do salão maior e viu o príncipe de Conde rodeado pela Sr.a do Plessis, pela duquesa de Beaufort e pela condessa de Richeville. O marquês do Plessis e o seu filho, Filipe, compartilhavam igualmente a mesa do príncipe, assim como algumas outras damas e jovens fidalgos. O burel castanho do italiano Exili punha uma nota insólita entre tantas rendas, fitas e tecidos luxuosos, bordados a ouro e a prata. Se o barão de Sancé estivesse presente, não destoaria da austeridade monástica de Exili. Mas, por muito que Angélique procurasse, não via o pai em parte alguma.
De súbito, um dos pajens que passavam, portador de um frasco de prata dourada, reconheceu-a. Era o que troçara grosseiramente dela a propósito da beurrée.
Oh, cá está a baronesa do Vestido Triste!brincou. Que quereis beber, Anica? Água-pé de maçãs ou bela coalhada?
Angélique deitou-lhe vivamente a língua de fora e, deixando-o um pouco aparvalhado, continuou a avançar para o lado da mesa do príncipe.
Senhor, que é isto que nos chega? perguntou, surpreendida, a duquesa de Beaufort.
A Sr.a do Plessis seguiu a direcção do olhar da duquesa, viu Angélique e chamou uma vez mais o filho em seu socorro:
Filipe! Filipe! Tende a bondade de conduzir a vossa prima de Sancé à mesa das donzelas de honor, meu amigo.
O rapaz ergueu para Angélique o olhar zombeteiro e disse, indicando um lugar vago junto dele:
Está aqui um tamborete.
Aqui não, Filipe, aqui não. Reservastes esse lugar para a Menina de Senlis.
A Menina de Senlis que se apressasse. Quando vier, verá que foi substituída... vantajosamente replicou o rapaz, a sorrir com ironia.
Os outros desataram a rir.
Entretanto, Angélique sentou-se. Fora já tão longe que não podia recuar. Não se atrevia a perguntar onde estava o pai e os reflexos luminosos dos copos, das garrafas, da baixela e dos diamantes das senhoras deslumbravam-na até à vertigem. Como que por reacção, endireitou-se, lançou o peito para a frente e atirou para trás a pesada cabeleira dourada. Pareceu-lhe que alguns dos fidalgos a envolviam em olhares que não eram desprovidos de interesse. Quase à sua frente, os olhos de ave de rapina do príncipe de Conde observaram-na um momento com uma atenção arrogante.
Com os diabos, tendes estranhos parentes, Sr. do Plessis! Quem é aquela cerceta cinzenta?
Uma jovem prima da província, monsenhor. Ah, sou digno de lástima, acreditai-me! Esta mesma noite, durante duas horas, em lugar de escutar os nossos músicos e as encantadoras palavras destas senhoras, suportei o requisitório do barão seu pai, cujo hálito ainda me indispõe como clamaria o nosso cínico poeta Argenteuil:
Digo-vos sem mentir que o hálito de um morto Ou o fedor de uma retrete não cheiram tão mal.
Uma trovoada de gargalhadas servis sacudiu os presentes.
E sabeis o que me pediu? continuou o marquês, enquanto enxugava as pálpebras com um gesto delicado. Jamais o adivinharíeis. Quer que lhe obtenha a isenção de impostos sobre algumas muares da sua coudelaria, assim como sobre uma produção saboreai a palavra de chumbo que pretende encontrar, já fundido e tudo em lingotes, debaixo dos canteiros da sua horta. Nunca tinha ouvido tamanhas tolices.
A peste leve os labregos! resmungou o príncipe. Ridicularizam os nossos brasões com as suas maneiras rústicas.
As senhoras quase rebentavam de riso.
Reparastes na pluma do seu chapéu?
E nos seus sapatos, ainda com palha agarrada aos saltos!...
O coração de Angélique batia tão violentamente que ela receava Filipe o ouvisse. Lançou-lhe um olhar e surpreendeu os olhos azuis e frios do belo rapaz pousados nela com uma expressão indefinível.
”Não posso consentir que insultem assim o meu pai”, pensou a rapariga.
Angélique supôs que devia estar muito pálida. Recordou o rubor intenso da Sr.a de Richeville algumas horas atrás, quando a voz dela se erguera num silêncio subitamente gelado. Havia então alguma coisa que aquela gente impertinente receava...
A ”pequena de Sane é” respirou fundo e...
É possível que sejamos muito pobres disse em voz muito alta e muito clara, mas nós, pelo menos, não pretendemos envenenar o rei!
Como da outra vez, os risos morreram nas gargantas e fez-se um silêncio tão pesado que surpreendeu as outras mesas. Pouco a pouco, as conversas interromperam-se e o entusiasmo dos comensais diminuiu. Olhavam todos na direcção do príncipe de Conde.
Quem... quem... quem?... tartamudeou o marquês do Plessis, e depois calou-se bruscamente.
Curiosas palavras! comentou por fim o príncipe, que se dominava a custo. Esta jovem não está habituada à vida em sociedade, ainda se entre têm com as histórias da ama...
”Não tarda a ridicularizar-me e depois mandam-me embora com a ameaça de açoites”, pensou Angélique, consciente de que estava em maus lençóis.
Inclinou-se um pouco e olhou para a extremidade da mesa, enquanto murmurava:
Disseram-me que o signor Exili era um dos maiores peritos do reino na arte dos venenos.
A nova pedrada no charco provocou a propagação de ondas violentas e um murmúrio assustado.
Oh, esta rapariga está possessa do Diabo! exclamou a Sr.a do Plessis, mordendo com raiva o lencinho de renda. É a segunda vez que me cobre de vergonha. Parece uma boneca de olhos de vidro, mas de repente abre a boca e diz coisas terríveis.
Terríveis? Porquê terríveis?protestou suavemente o príncipe, cujo olhar não abandonava Angélique. Sê-lo-iam se fossem verdadeiras, mas não passam de divagações de rapariguinha que não sabe calar-se.
Calar-me-ei quando me agradar declarou Angélique, firmemente.
E quando vos agradará, menina?
Quando deixardes de insultar o meu pai e lhe concederdes os pobres favores que ele pede.
O rosto do Sr. de Conde ensombreceu-se bruscamente. O escândalo atingia o auge, gente do fundo da galeria subia para cima de cadeiras.
A peste leve... a peste leve... praguejou o príncipe, sufocado. Levantou-se de repente, de braço estendido, como se lançasse as suas tropas no ataque às trincheiras espanholas, e ordenou:
Segui-me!
”Vai-me matar”, pensou Angélique. E o espectáculo daquele grande senhor que a dominava fê-la tremer de medo e prazer.
No entanto seguiu-o, pequena cerceta cinzenta atrás daquela grande ave de rapina toda enfeitada de fitas.
Reparou que ele usava abaixo dos joelhos grandes folhos de renda engomada e por cima dos calções uma espécie de saia curta, guarnecida com uma infinidade de galões. Nunca vira um homem vestido de modo tão extravagante. No entanto, não pôde deixar de admirar o seu andar, a maneira como assentava no chão os saltos altos arqueados.
Eis-nos sós disse, de súbito, Conde, voltando-se. Não quero zangar-me convosco, mas tendes de responder às minhas perguntas.
Aquela voz dulcerosa assustou mais Angélique do que as explosões de cólera. Viu-se numa ala deserta, sozinha com aquele homem poderoso, cujas intrigas transtornara, e compreendeu que ela própria acabava de se enredar nessas intrigas e de nelas se perder como uma teia de aranha. Recuou, balbuciou, fingiu um pouco de patetice campónia...
Não quis dizer nada de mal...
Porque inventastes semelhante insulto à mesa de um tio que respeitais?
Angélique compreendeu o que ele queria levá-la a confessar, hesitou e pesou os prós e os contras. Sabendo o que sabia, um protesto de ignorância total da sua parte não seria acreditado.
Não inventei... repeti coisas que me disseram murmurou. Que o signor Exili era um homem muito hábil a fazer venenos... Mas quanto ao rei, enfim, inventei. Não devia tê-lo feito, mas estava encolerizada.
Torcia nervosa e desajeitadamente uma ponta do cinto.
Quem vos disse isso?
A imaginação de Angélique trabalhava activamente.
Um... um pajem. Não sei como se chama.
Seríeis capaz de mo indicar?
Seria.
O príncipe conduziu-a à entrada dos salões e ela apontou-lhe o pajem que a ridicularizara.
A peste leve estes fedelhos que escutam às portas!rosnou o príncipe. Como vos chamais?
Angélique de Sancé.
Escutai, Menina de Sancé. Não é conveniente repetir à toa palavras que uma rapariguinha da vossa idade não pode compreender. Isso poderá prejudicar-vos e à vossa família. Quanto a este incidente, estou disposto a passar-lhe uma esponja e a esquecê-lo, e irei até ao ponto de estudar o caso do vosso pai e ver se posso fazer alguma coisa por ele. Mas que garantia terei do vosso silêncio?
Angélique ergueu para ele os olhos verdes e redarguiu:
Sei tão bem calar-me depois de obter satisfação como falar quando me insultam.
Com os diabos, prevejo que, quando fordes mulher, haverá homens que se enforcarão por vos haverem conhecido!
Mas um vago sorriso animava o rosto do príncipe, que não parecia desconfiar de que ela soubesse mais do que lhe dissera. Impulsivo e, ainda por cima, aturdido, faltava a Conde psicologia e atenção. Passada a primeira reacção, convencia-se que não passava tudo de mexericos de corredor.
Como homem habituado à lisonja e sensível a todos os encantos femininos, a emoção daquela adolescente de uma beleza já notável ajudava a apaziguar a sua cólera. Angélique esforçou-se por erguer para ele um olhar cheio de cândida admiração.
Desejaria perguntar-vos uma coisa... murmurou, num tom que aumentava a sua aparente ingenuidade.
O quê?
Porque usais uma saiazinha?
Uma saiazinha?... Mas, minha filha, trata-se de uma rhingrave! Não é elegantíssima? Dissimula os calções desgraciosos e que só ficam bem aos cavaleiros. Podemos guarnecê-la de galões e fitas e sentimo-nos muito à vontade com ela. Ainda não a tínheis visto nos vossos campos?
Não. E esses grandes folhos que usais sob os joelhos?
São ”canhões”. Realçam a barriga da perna, que deles sai esbelta e arqueada.
É verdade aprovou Angélique. Tudo isso é maravilhoso. Nunca tinha visto um fato tão belo!
Ah, falai de trapos às mulheres e apaziguareis a mais perigosa fúria! exclamou o príncipe, encantado com o seu êxito. Tenho de regressar para junto dos meus anfitriões. Prometeis-me que sereis ajuizada?
Prometo, monsenhor respondeu com um sorriso maroto, que lhe descobria os dentes pequeninos e nacarados.
O príncipe de Conde regressou aos salões, tranquilizando com gestos complacentes a inquietação dos presentes.
Comei, comei, meus amigos. Não há motivo nenhum para alarme. A pequenina insolente vai pedir desculpa.
Sem precisar que lho ordenassem, Angélique inclinou-se diante da Sr.a do Plessis e disse-lhe:
Apresento-vos as minhas desculpas e peço-vos autorização para me retirar.
Riram-se um pouco do gesto da Sr.a do Plessis, que, incapaz de falar, apontou a porta.
Mas diante da referida porta acabava de se formar outro ajuntamento.
Onde está a minha filha? reclamava o barão Armando.
O Sr. Barão procura afilha gritou um lacaio, chocarreiro. Entre os convidados elegantes e os criados de libré, o pobre fidalgo provinciano parecia um grande zangão negro aprisionado. Angélique correu para ele.
Angélique, dás comigo em doido! Há mais de três horas que te procuro, às escuras, entre Sancé, o pavilhão do Molines e o Plessis. Que dia, minha filha, que dia!
Partamos, pai, partamos depressa, peço-vos!
Já estavam no alpendre quando a voz do marquês do Plessis os deteve:
Um instante, meu primo. O Sr. de Conde desejaria conversar um momento convosco. É a respeito dos direitos alfandegários de que me falastes...
O resto das palavras perdeu-se, enquanto os dois homens se afastavam.
Angélique sentou-se no último degrau do alpendre e esperou o pai. De repente teve a sensação de estar completamente vazia de pensamentos e de vontade. Um cãozinho branco farejou-a e ela acariciou-o maquinalmente.
Quando voltou, o Sr. de Sancé agarrou a filha pelo pulso.
Receava que tivesses desaparecido outra vez. Tens realmente o Diabo no corpo! O Sr. de Conde fez-me a teu respeito cumprimentos tão estranhos que fiquei sem saber se lhe deveria pedir desculpa de te ter posto no mundo.
Pouco depois, quando as suas montadas avançavam devagar pelo meio das trevas, o Sr. de Sancé prosseguiu, a abanar a cabeça:
Não compreendo nada daquela gente. Escutam-me com ar trocista. O marquês, com um grande estendal de números, explica-me como a sua situação pecuniária é mais precária do que a nossa. Dei xam-me partir sem me oferecerem sequer um copo de vinho para refrescar a goela e depois, de repente, chamam-me e prometem-me tudo quanto quero. Segundo monsenhor me disse, a isenção dos meus direitos alfandegários ser-me-á concedida no próximo mês.
Tanto melhor, pai murmurou Angélique.
Escutava, vindo da noite, o coaxar nocturno dos sapos, que anunciava a proximidade dos pântanos e do velho castelo fortificado. De súbito apeteceu-lhe chorar.
Achas que a Sr.a do Plessis te aceitará como donzela de honra? perguntou o barão.
Oh, não, não acho! respondeu docemente Angélique.
Poitiers e o convento. Encontro com o Sr. Vicente de Paulo
Da viagem que fez até Poitiers, Angélique só conservou uma recordação desagradável de trancos e solavancos. Tinham consertado para o efeito uma carruagem muito velha, na qual tomara lugar com Hortense e Madelon. Um criado conduzia as mulas e Raimundo e Gontrano montavam cada qual o seu cavalo de bela raça com que o pai os presenteara. Dizia-se que os Jesuítas tinham, nos seus novos colégios, cavalariças destinadas às montadas dos jovens nobres.
Dois pesados cavalos de carga completavam a caravana. Um transportava o velho Guilherme, encarregado de escoltar os seus jovens amos. Circulavam na região muitas notícias perturbadoras de agitações e guerras. Dizia-se que o Sr. de la Rochefoucauld sublevava o Poitou por conta do Sr. de Conde. Recrutava exércitos e requisitava uma parte das colheitas para os alimentar. Quem diz exércitos, diz fome e pobreza, bandidos e vagabundos nas encruzilhadas das estradas.
Por isso o velho Guilherme os acompanhava, com o pique apoiado no estribo e a velha espada à cinta.
No entanto, a viagem decorreu sem incidentes. Ao atravessarem uma floresta, viram alguns vultos suspeitos, dispersos entre as árvores. Mas o pique do velho mercenário a não ser que tenha sido a pobreza da equipagem desencorajou os malfeitores.
Passaram a noite numa estalagem, numa encruzilhada sinistra onde só se ouvia o assobiar do vento da floresta despojada de folhas.
O estalajadeiro dignou-se servir aos viajantes uma água chilra, a que chamou caldo, e alguns queijos, que eles comeram à luz de uma vela de sebo ordinária.
Todos os estalajadeiros são cúmplices dos bandidos disse Raimundo às jovens irmãs aterrorizadas. É nas estalagens das estradas que se cometem mais assassínios. Na nossa última viagem dormimos numa onde menos de um mês atrás tinham degolado um rico financeiro cujo único erro era viajar sozinho.
Mas, lamentando ter-se abandonado a reflexões demasiado proíanas, acrescentou:
Estes crimes cometidos por homens do povo são consequência da desordem que reina entre as pessoas de alta condição. Toda a gente Perdeu o temor de Deus.
Faltava ainda um estirão pela estrada. Sacudidas como sacas de nozes pelas estradas geladas e esburacadas, as três irmãs sentiam-se derreadas e todas partidas. Só muito raramente encontravam troços da estrada romana, com as suas grandes lajes antigas e regulares. O mais frequente eram os caminhos de barro, sulcados pela passagem incessante de cavaleiros e carruagens. À entrada das pontes tinham por vezes de esperar horas a fio, enregelados, pois o encarregado da portagem era quase sempre um funcionário vagaroso e tagarela, que arranjava sempre maneira de meter conversa com todos os viajantes. Os únicos que passavam sem se deter eram os grandes senhores, que, Com mão desdenhosa, atiravam pelas janelas das carruagens uma bolsa aos pés do funcionário.
Madelon chorava, transida de frio e agarrada a Angélique, e Hortense exclamava, de lábios franzidos: É inadmissível!
Estavam as três exaustas e não contiveram um suspiro de alívio quando, no fim do segundo dia, Poitiers lhes surgiu, com os seus telhados, de um rosa fanado, dispostos em escada no flanco de uma colina cercada por risonho rio: o Clain. Estava um dia de Inverno tão bonito que dir-se-ia encontrarem-se numa paisagem do Sul, de que o Poitou é, de resto, o limiar, de tal modo o céu era suave sobre os telhados. Os sinos conversavam uns com os outros, a tocar o ângelus. Dali em diante, aqueles sinos marcariam as horas de Angélique durante quase cinco anos. Poitiers era uma cidade de igrejas, de conventos e de colegiais. Os sinos regulavam a vida de toda aquela gente de sotaina e daquele exército de estudantes tão ruidosos quanto os seus mestres eram silenciosos. Padres e bacharéis encontravam-se às esquinas das ruas a subir, na sombra dos pátios e nas praças que, de socalco em socalco, se ofereciam aos peregrinos da cidade. Os jovens Sancés despediram-se diante da catedral. O convento das Ursulinas ficava um pouco à esquerda e dominava o Clain. O colégio dos Jesuítas ficava empoleirado lá muito no alto. Com o constrangimento da adolescência, separaram-se quase sem uma palavra. Madelon, a chorar foi a única que beijou os dois irmãos.
E assim as portas do convento se fecharam sobre Angélique, que levou tempo a compreender dever-se a sensação de sufocamento que oprimia a essa brusca ruptura com o espaço. Aos muros e mais muros às grades das janelas. As suas companheiras não lhe pareceram simpáticas. Brincara sempre com rapazes, pequenos camponeses que a admiravam e a seguiam, mas ali, entre certas meninas de alta linhagem e sólida fortuna, o lugar de Angélique de Sancé só podia situar-se nas últimas fileiras.
Teve também de se submeter ao espartilho com barbas de baleia bem apertado com fitas, que, ao obrigar todas as rapariguinhas a manterem-se direitas, lhes dava para toda a vida, fosse em que circunstâncias fosse, uma postura de rainhas desdenhosas. Angélique vigorosa e possuidora de músculos flexíveis, graciosa por instinto poderia ter dispensado semelhante tormento. Tratava-se porém de uma instituição que ultrapassava muito o quadro do convento. Ao ouvir falar as mais crescidas, não lhe restavam dúvidas de que o espartilho
com barbas de baleia ocupava um grande lugar em tudo quanto se relacionava com a moda. E havia ainda uma espécie de plastrão em bico de pato, tornado rígido por meio de cartão forte ou hastes de ferro e que se bordava e rebordava e se guarnecia de laços e jóias. O plastrão destinava-se a suster os seios, fazendo-os subir de tal modo sob a renda que davam a impressão de estar constantemente prestes a libertar-se dessa prisão ténue. Claro que as mais crescidas transmitiam umas às outras tais pormenores em segredo, apesar de o convento se destinar especialmente a preparar as jovens para o casamento e para a vida mundana.
Era preciso aprender a dançar, a cumprimentar, a tocar alaúde e cravo, a manter com duas ou três companheiras conversas sobre determinado assunto e até a manejar o leque e a maquilhar-se. Seguiam-se, por ordem de importância, os cuidados com a casa. Na previsão de reveses que poderia aprazer ao Céu enviar, as alunas tinham de desempenhar as tarefas mais humildes. Sucessivamente, trabalhavam nas cozinhas ou nas lavandarias, acendiam e cuidavam dos candeeiros, varriam e lavavam o chão de ladrilhos. Além disso, também lhes eram ministrados alguns rudimentos intelectuais: História e Geografia, secamente descritas, Mitologia, Aritmética, Teologia e Latim. Dispensavam-se mais cuidados aos exercícios de estilo, pois a arte epistolar era essencialmente feminina e a troca de cartas com as amigas e os amantes constituía uma das ocupações mais absorventes de uma mulher de sociedade.
Não sendo uma aluna rebelde, Angélique também não dava grande satisfação às professoras. Fazia o que lhe mandavam, mas parecia não compreender porque a obrigavam a fazer tantas coisas estúpidas. Às vezes, nas horas de aulas, procuravam-na tempos infinitos, acabando por encontrá-la na horta, que não passava de um grande jardim suspenso por cima de ruelas tristonhas e pouco movimentadas. Aos ralhos mais ríspidos respondia sempre que não tinha consciência de fazer mal ao ver crescer as couves.
No Verão seguinte abateu-se sobre a cidade uma epidemia muito grave, a que chamaram peste porque muitos ratos saíram das suas tocas para morrerem nas ruas e nas casas.
A Fronda dos Príncipes, dirigida pelos Srs. de Conde e de Turenne, levava a miséria e a fome às regiões ocidentais, até então poupadas pelas guerras estrangeiras. Já não se sabia quem era pelo rei nem quem era contra e afluíam às cidades camponeses cujas aldeias tinham sido incendiadas. Formava-se assim uma autêntica horda de pedintes que batiam a todas as portas das traseiras de mão estendida. Em breve eram em maior número do que os abades e os estudantes.
A certas horas de certos dias, as pequenas pensionistas das Ursulinas davam esmola aos pobres aglomerados diante do convento. Ensinaram-lhes que isso fazia igualmente parte das suas atribuições de futuras grandes damas prendadas.
Pela primeira vez, Angélique viu à sua frente a miséria sem esperança, a miséria andrajosa, a verdadeira miséria de olhar lúbrico e rancoroso. Não se sentiu nem comovida nem transtornada, ao contrário das condiscípulas, algumas das quais choravam ou franziam os lábios com repugnância. Parecia-lhe reconhecer uma imagem desde sempre gravada nela, como um pressentimento do que um estranho destino lhe deveria reservar.
A peste nasceu sem dificuldade das imundícies que enchiam as ruelas íngremes, onde o julho escaldante secava as fontes.
Houve vários casos entre as alunas. Uma manhã, no pátio de recreio, Angélique não viu Madelon. Perguntou o que se passava e informaram-ne de que a garota adoecera e fora levada para a enfermaria. Madelon morreu poucos dias depois. Angélique não chorou perante o pequeno corpo lívido e como que ressequido. Irritaram-na até as lágrimas teatrais de Hortense. Porque chorava aquela esgrouviada de
17 anos? Nunca gostara de Madelon; só gostava de si própria.
Ai, minhas filhas, é a lei de Deus! disse-lhes docemente uma velha religiosa. São muitas as crianças que morrem. Disseram-me que a vossa mãe teve dez filhos e só perdeu um. Com esta, faz dois. Não é muito. Conheço uma senhora que teve quinze e perdeu sete. É assim, minhas filhas. Deus dá os filhos e Deus os leva. São muitas as crianças que morrem. É a lei de Deus...
Depois da morte de Madelon, Angélique tornou-se ainda mais es quiva e até indisciplinada. Só fazia o que lhe apetecia e desaparecia horas inteiras pelos cantos ignorados do grande casarão. Tinham-lhe proibido o acesso ao jardim e à horta, mas ela arranjava maneira de para lá se esgueirar. Pensaram mandá-la embora, mas o barão de Sancé, apesar das dificuldades que a guerra civil lhe causava, pagava com muita regularidade a pensão das duas filhas, o que não acontecia com todas as pensionistas. Além disso, Hortense prometia tornar-se uma das jovens mais prendadas do seu curso. Por consideração para com a mais velha, ficaram com a mais nova. Mas desistiram de se ocupar dela.
Foi graças a isso que, num dia de Janeiro de 1652, Angélique, que completara havia pouco 15 anos, estava mais uma vez debruçada no muro da horta, entretida a ver as idas e vindas das pessoas que andavam na rua a aquecer-se ao fraco sol do Inverno.
Reinava grande animação em Poitiers naqueles primeiros dias do ano, porque a rainha, o rei e os seus partidários acabavam de se instalar na cidade. Pobre rainha e pobre jovem rei, empurrados de um lado para o outro, ao sabor das revoltas! Tinham ido a Guiena, a fim de lá darem combate ao Sr. de Conde, e no regresso tinham parado no Poitou para tentarem negociar com o Sr. de Turenne, que ainda conservava em seu poder essa província, de Fontenay-le-Comte ao oceano. Châtellerault e Luçon, antigas praças-fortes protestantes tinham-se aliado ao general huguenote, mas Poitiers, lembrada de que, cem anos antes, as suas igrejas haviam sido pilhadas e o seu prefeito enforcado pelos heréticos, abrira as portas ao monarca.
,Ao lado do príncipe adolescente já só se encontrava o vestido preto da Espanhola. O povo, a França inteira, tinham gritado com tanta veemência: ”Fora Mazarino! Fora Mazarino!”, que o homem vestido de vermelho acabara por se resignar. Abandonara a rainha, a quem amava, e refugiara-se na Alemanha. Mas a sua partida não chegara para serenar as paixões...
Debruçada do muro do seu convento, Angélique escutava o murmurar da cidade agitada, cuja excitação se repercutia e chegava até àquele bairro distante.
As pragas dos cocheiros, cujas carruagens tinham dificuldade em passar nas ruas tortuosas, misturavam-se com os risos e os dichotes dos pajens e dos criados e com os relinchos dos cavalos.
E sobre todo esse barulho ecoava o repique dos sinos. Angélique já sabia identificar cada um dos carrilhões: o de Santo Hilário, o de Santa Radegonha, o sino grande de Notre-Dame-la-Grande, os sinos graves da Torre de Saint-Porchaire...
De súbito, junto do muro, passou um grupo de pajens, alegres como uma revoada de aves exóticas nas suas vestes de cetim e seda. Um deles parou para atar a fita do sapato. Ao endireitar-se, levantou a cabeça e encontrou o olhar de Angélique, que o observava do alto do muro.
Galante, o pajem varreu a poeira com o chapéu.
Viva, donzela! Não tendes ar de quem se diverte aí em cima. Parecia-se com os pajens que vira no Plessis e usava, como eles, os mesmos calçõezinhos tufados, apanágio do século XVI, que lhes tornavam as pernas muito altas, como as das garças. Tirando isso era simpático, tinha um rosto risonho e bronzeado e belos cabelos castanhos e anelados.
Angélique perguntou-lhe a idade e ele respondeu-lhe que tinha 16 anos.
Mas não vos inquieteis, sei fazer a corte às damas apressou-se a acrescentar.
Lançou-lhe olhares ternos e, de súbito, estendeu-lhe os braços:
Vinde ter comigo!
Invadiu Angélique uma agradável sensação. A prisão cinzenta e triste onde o seu coração se estiolava pareceu abrir-se. Aquele riso alegre que subia para ela prometia-lhe algo de doce e saboroso de que tinha fome, como depois do jejum da Quaresma.
Vinde insistiu ele baixinho. Se quiserdes, levar-vos-ei ao palácio dos duques de Aquitânia, onde a corte se instalou, e mostrar-vos-ei o rei.
Quase sem hesitar, Angélique ajustou a capa de lã escura, de capuz, e gritou:
Cuidado, vou saltar!
Por um pouco o pajem não a recebia nos braços, o que fez ambos rir. Lesto, ele enlaçou-a pela cintura e conduziu-a.
Que dirão as freiras do vosso convento?
Estão habituadas às minhas fantasias..
E como vos arranjareis para entrar?
Baterei à porta e pedirei esmola. O pajem deu uma gargalhada.
O turbilhão que subitamente a envolvia inebriava Angélique. Passavam vendedores entre os fidalgos e as fidalgas, cujos belos atavios embasbacavam os provincianos. O pajem comprou duas varinhas nas quais estavam espetadas coxas de rã fritas. Como vivera sempre em Paris, achava muita graça àqueles petiscos. Os dois jovens comeram com grande apetite e o pajem contou que se chamava Henrique de Roguier e estava ao serviço do rei. Este, companheiro alegre, deixava Por vezes as pessoas graves do seu conselho e a tocar um pouco de guitarra com os amigos. As encantadoras bonequinhas italianas, sobrinhas do cardeal Mazarino, estavam sempre na corte, apesar da partida forçada do tio.
Sempre a conversar, o rapaz foi conduzindo insidiosamente Angélique para ruas menos animadas. Ela deu por isso, mas calou-se. O seu corpo, subitamente desperto, esperava qualquer coisa, qualquer coisa que a mão do pajem na sua cintura prometia.
O jovem parou e empurrou-a docemente para o vão de uma porta, onde começou a beijá-la com entusiasmo. Dizia coisas banais e divertidas:
És bonita... Tens faces como margaridas e olhos verdes como rãs... As rãs da tua terra... Não te mexas. É o teu corpete que quero desabotoar... Deixa tudo comigo, sei como é... Oh, nunca vi seios tão brancos e tão lindos!... E rijos como maçãs... Agradas-me, minha amiga...
Angélique deixava-o divagar e acariciá-la. Inclinava um pouco a cabeça para trás, contra a pedra musgosa, e os seus olhos fitavam maquinalmente o céu azul, sobre a beira de um telhado engrinaldado.
O pajem calara-se e a sua respiração acelerara-se. Agitado, olhou diversas vezes em seu redor com certa irritação. A rua estava muito calma, mas havia sempre gente que passava. Passou até um grupo ruidoso de estudantes que, ao descobrir o jovem par na sombra da porta, gritaram: ”Uh! Uh!”
O rapaz recuou e bateu o pé.
Oh, estou furioso! As casas estão cheias até deitar por fora nesta maldita cidade provinciana. Os próprios fidalgos têm de receber as amantes nas antecâmaras! Onde poderíamos estar um bocadinho em paz, hem?
Estamos bem aquimurmurou ela.
Mas isso não o satisfazia. Abriu a bolsinha que trazia suspensa da cintura e o seu rosto iluminou-se.
Anda, tenho uma ideia! Vamos arranjar um salão à altura da nossa categoria.
Agarrou-a pela mão e levou-a, a correr, pelas ruas, até ao Largo de Notre-Dame-la-Grande. Embora estivesse em Poitiers havia mais de dois anos, Angélique não conhecia a cidade. Olhou com admiração para a fachada da igreja, trabalhada como um cofre hindu e flanqueada por torres de campanário em forma de pinha. Até parecia que a própria pedra florira sob o cinzel dos escultores.
O jovem Henrique pediu-lhe então que ficasse sob o pórtico e o esperasse. Voltou pouco depois, todo contente, com uma chave na mão.
O sacristão da igreja alugou-me o púlpito por alguns momentos.
O púlpito? repetiu Angélique, estupefacta. Ora, não é a primeira vez que presta tal serviço aos pobres apaixonados! Voltara a enlaçá-la pela cintura e descia os degraus que conduziam ao santuário, cujo adro ficava em plano um pouco inferior. Angélique sentiu-se impressionada com as trevas e a frescura das naves. As igrejas do Poitou são as mais sombrias de França. Edifícios sólidos, apoiados em enormes colunas, ocultam na sua sombra antiga decorações murais, cujas cores vivas se revelam pouco a pouco aos olhos surpreendidos. Os dois adolescentes avançaram em silêncio.
Tenho frio murmurou Angélique, aconchegando mais a capa. O rapaz passou-lhe o braço protector pelos ombros, mas a sua exaltação diminuíra e parecia intimidado.
Abriu a primeira porta do púlpito monumental e, subindo os degraus, entrou na rotunda reservada ao pregador. Angélique seguiu-o, um pouco maquinalmente.
Sentaram-se os dois no chão coberto por um tapete de veludo. A igreja e a noite profunda e saturada de incenso que lá reinava pareciam ter acalmado o arrebatamento atrevido do rapaz. Mesmo assim, voltou a passar o braço pelos ombros de Angélique e beijou-a docemente na têmpora.
Como és bonita, minha amiguinha! suspirou. E como te prefiro a todas aquelas grandes damas que me importunam e desfrutam! É coisa que nem sempre me agrada, mas tenho de as comprazer. Se soubesses...
Voltou a suspirar. O seu rosto recuperara toda a puerilidade.
Vou-te mostrar uma coisa muito bela, excepcionaldisse, enquanto remexia na bolsa.
Tirou um quadrado de tecido branco com uma rendinha e ligeiramente sujo.
Um lenço? perguntou Angélique.
Sim. O lenço do rei. Deixou-o cair esta manhã e eu apanhei-o e guardei-o, como talismã.
Fitou-a demoradamente, sonhador.
Queres que to dê, como prova de amor?
Sim, sim! exclamou Angélique, que estendeu vivamente a mão. O seu braço bateu na balaustrada de madeira maciça, o que produziu um eco enorme, sob a abóbada alta.
Os dois jovens imobilizaram-se, interditos e um pouco receosos.
Parece-me que vem aí alguémmurmurou Angélique. O rapaz confessou, encabulado:
Esqueci-me de fechar a porta do púlpito, no fundo da escada. Calaram-se, atentos aos passos que se aproximavam. Alguém subia
os degraus de acesso ao seu refúgio... Por fim, a cabeça de um velho abade de solidéu preto surgia à entrada.
Que fazeis aqui meus filhos? indagou.
Mas o pajem, de língua desembaraçada, já tinha a resposta pronta:
Queria ver a minha irmã, que é pensionista em Poitiers, mas não sabia onde encontrar-me com ela. Os nossos pais...
Não fales tão alto na casa de Deus recomendou o padre. Levanta-te, e a tua irmã também, e sigam-me.
Levou-os à sacristia e sentou-os num tamborete. Depois, com as mãos apoiadas nos joelhos, olhou-os sucessivamente, a um e a outro. Os cabelos brancos que saíam de solidéu emolduravam um rosto que, apesar da velhice, conservava belas cores de camponês. Tinha nariz grande, olhos pequeninos e vivos e barba branca, curta. Subitamente, Henrique de Roguier parecia assustado e calava-se, tomado de uma confusão que não era fingida.
Ele é teu amante? perguntou inesperadamente o padre a Angélique, indicando o pajem com um movimento do queixo.
O rubor invadiu o rosto da adolescente e o pajem exclamou, viva e francamente:
Eu bem o desejaria, senhor, mas ela não é dessa espécie!
Tanto melhor, minha filha. Se tivesses um bonito colar de pérolas, gostarias de o atirar para o pátio cheio de esterco, onde os porcos as lambuzariam com os focinhos imundos? Hem? Responde-me, pequena, farias isso?
Não, não faria.
Não se devem dar pérolas a porcos. Não deves esbanjar o tesouro da tua virgindade, mas sim reservá-lo para o casamento. E tu, meu atrevido continuou suavemente, voltando-se para o rapaz, onde foste desencantar a ideia sacrílega de trazer a tua amiga para o púlpito da igreja, para lhe dizeres galanteios? Para onde havia de a levar? protestou o pajem, desabrido. Não se pode conversar tranquilamente nas ruas desta cidade, que são mais estreitas do que armários! Sabia que o sacristão desta igreja alugava de vez em quando o púlpito e os confessionários, para que se possam dizer alguns segredos longe de ouvidos indiscretos. Como sabeis, Sr. Vicente, nestas cidades da província há muitas donzelas severamente guardadas por um pai rabugento ou uma mãe azeda, que nunca ouviriam uma palavra terna se...
Estás a elucidar-me muito bem, meu rapaz!
O púlpito são trinta libras e os confissionários vinte libras. É muito para a minha bolsa, Sr. Vicente, acreditai!
Não me custa nada acreditar-te, não. Mas é ainda mais caro na balança onde o Diabo e o Anjo pesam os pecados cometidos nesta igreja.
O seu rosto, que até ali se mostrara sereno, tornou-se duro.
Dá-me a chave que te confiaram ordenou, de mão estendida, e quando o rapaz lha entregou acrescentou: Virás confessar-te, não é verdade? Espero-te amanhã à tarde, nesta mesma igreja. Absolver-te-ei, pois sei muito bem em que meio vives, pobre pajenzinho! E é mais agradável para ti tentar brincar aos homens com uma criança da tua idade do que servir de brinquedo às damas maduras que te arrastam para as suas alcovas, para te desencaminharem... Vejo que coras. Envergonhas-te diante dela, tão nova e tão fresca, dos teus amores adulterados.
O rapaz baixou a cabeça, perdido todo o desembaraço. Por fim balbuciou:
Sr. Vicente de Paulo, não conteis esta história a Sua Majestade, a rainha, peço-vos. Se ela me recambia para o meu pai, ele não saberá que fazer de mim. Tenho sete irmãos que precisam de dote e sou o terceiro filho varão da família. Só consegui este grande favor de entrar para o serviço do rei graças ao Sr. de Lorraine, que me... a quem eu agradava concluiu, embaraçado. Foi ele que me comprou o lugar. Se me expulsarem, exigirá que o meu pai o reembolse, e isso é impossível.
O velho eclesiástico fitava-o gravemente.
Não te nomearei. Mas tenho de recordar à rainha, de uma vez por todas, as torpezas de que está rodeada. Ela é uma mulher piedosa e devotada às obras de caridade, mas que pode contra tanta podridão? Não se modificam as almas com decretos...
A porta da sacristia entreabriu-se e o ancião calou-se. A seguir entrou um jovem de compridos cabelos anelados e casaca negra muito arrebicada. O Sr. Vicente levantou-se e olhou-o de modo severo.
Sr. Vigário, quero crer que ignorais o comércio a que se dedica o vosso sacristão, o qual acaba de receber trinta libras deste jovem senhor para que ele pudesse encontrar-se com a amiga no púlpito da vossa igreja. É altura de vigiardes os vossos auxiliares com um pouco mais de cuidado.
O vigário levou muito tempo a fechar a porta, para disfarçar a atrapalhação. Quando se virou, a penumbra do aposento não chegou para lhe dissimular o embaraço. Como ele continuasse calado, o Sr. Vicente prosseguiu:
Verifico, além disso, que trazeis peruca e trajo civil, o que está interdito aos padres. Ver-me-ei constrangido a informar o beneficiado da vossa paróquia de tais faltas e comércios.
O vigário não conseguiu disfarçar um encolher de ombros, ao redarguir:
Isso importar-lhe-á muito pouco, Sr. Vicente. O meu beneficiado é um cónego parisiense que comprou o cargo, há três anos, ao cura anterior, que se retirou para as suas terras. Nunca aqui veio e, como tem residência canonial por cima da abside de Notre-Dame de Paris, aposto que a Notre-Dame-la-Grande de Poitiers lhe deve parecer muito pequena.
Ah, temo que esse maldito tráfico de curas e paróquias, vendidas como jumentos ou cavalos no mercado, arraste a Igreja para a sua perda! exclamou com inesperada veemência o Sr. Vicente. E a quem se nomeia hoje bispo neste reino? Grandes senhores guerreiros e libertinos, que por vezes nem sequer receberam as ordens, mas que, como possuem fortuna suficiente para comprar um bispado, ousam envergar as vestes e os ornamentos dos ministros de Deus! Ah!, que o Senhor nos ajude a derrubar tais instituições!
Grato por ver que a tormenta se desviava dele, o vigário arriscou:
A minha paróquia não é descurada, ocupo-me dela e dedico-lhe todos os meus cuidados. Dai-nos a grande honra, Sr. Vicente, de assistir esta noite ao nosso serviço do Santíssimo Sacramento. Vereis a nave coalhada de fiéis. Poitiers foi poupada à heresia pelo zelo dos seus padres. Não é como Niort, Châtellerault e...
O ancião lançou-lhe um olhar carregado e interrompeu-o, rudemente:
A causa principal das heresias foram os vícios dos padres!
Levantou-se e, agarrando os dois adolescentes pelos ombros, conduziu-os para o exterior. Apesar da avançada idade e das costas arqueadas, parecia cheio de vigor e agilidade.
A tarde morria no largo fronteiro à igreja poitevina, cujas flores de pedra a pálida luz invernal iluminava.
Meus cordeirinhos, meus filhinhos do bom Deus, tentastes provar o fruto verde do amor. Por isso os vossos dentes estão embotados e o vosso coração trasborda de tristeza. Deixai amadurecer ao sol da vida.
Palavras históricas de São Vicente de Paula
O que desde sempre está destinado a desabrochar. É mau desviar-se alguém do caminho quando procura o amor, pois pode suceder nunca mais o encontrar. E poderá haver maior castigo para a impaciência e para a fraqueza do que ser condenado a só morder, durante a vida inteira, frutos amargos e sem sabor? Ireis seguir cada um para seu lado. Tu, rapaz, para o teu trabalho, que deves desempenhar com consciência. Tu menina, para as tuas religiosas e para os teus estudos. E, quando o dia nascer, não vos esqueçais de orar a Deus, que é pai de nós todos. Deixou-os partir, mas seguiu com o olhar as silhuetas graciosas, até se separarem na esquina do largo.
Angélique só virou a cabeça quando chegou à porta do convento. Invadira-a uma grande paz e o seu ombro conservava a recordação de uma velha mão calorosa.
”Sr. Vicente”, pensou. ”Será ele o grande Sr. Vicente? Aquele a quem o marquês do Plessis chama a Consciência do Reino? Aquele que obriga os nobres a servir os pobres? Aquele que vê todos os dias, em particular, o rei e a rainha? Como é simples e suave o seu aspecto!”
Antes de levantar a aldraba da porta lançou um último olhar à cidade, que se embrulhava na noite.
”A vossa bênção, Sr. Vicente”, murmurou.
Angélique aceitou sem revolta os castigos que lhe foram infligidos por mais aquela evasão. A partir desse dia, porém, a sua atitude arisca modificou-se. Aplicou-se aos estudos e mostrou-se cordial com as companheiras. Parecia ter-se habituado finalmente à severidade do claustro.
Em Setembro, Hortense abandonou o convento. Uma tia afastada reclamava a sua presença em Niort, a título de dama de companhia. Na realidade, a senhora em questão, que pertencia à pequena nobreza e desposara um magistrado rico, mas de origem obscura, desejava que o filho se aliasse a um nome grande e devolvesse um pouco de brilho ao seu brasão. O filho acabava de receber, oferecido pelo pai, o cargo de procurador do rei em Paris e convinha que parecesse à vontade entre a nobreza. Tratava-se de uma oportunidade inesperada para ambas as partes e o casamento não tardou.
Simultaneamente, o jovem rei Luís XIV regressava, vencedor, à sua boa capital.
A França saía exangue de uma guerra civil durante a qual seis exércitos tinham percorrido o seu solo, procurando-se e nem sempre se encontrando: o exército do príncipe de Conde; o do rei, comandado por Turenne, que inesperadamente decidira não trair; o de Castão de Orleães, aliado dos ingleses e desavindo com os príncipes franceses; o do duque de Beaufort, desavindo com toda a gente, mas ajudado pelos Espanhóis; o do duque de Lorena, que agia por sua própria conta, e, finalmente, o de Mazarino, que, da Alemanha, quisera mandar reforços à rainha. Por pouco não tinham nomeado M Montpensier general, pela iniciativa que tivera de mandar disparar, certo dia, o canhão da Bastilha contra as tropas do seu próprio primo, o rei. Gesto, aliás, que a Grande Mademoiselle pagou muito caro, pois assustou muitos dos príncipes europeus pretendentes à sua mão.
”Mademoiselle acaba de matár o marido”, murmurara, com o seu suave sotaque dos Abruzos, o cardeal Mazarino, quando ouvira contar o episódio.
O cardeal foi, no fim de contas, o grande vencedor de uma crise atroz e louca. Decorrido menos de um ano voltou-se a ver a sua batina vermelha nos corredores do Louvre, sem que surgissem mais ”mazarinadas”. Estava toda a gente exausta e sem forças.
Angélique estava prestes a fazer 17 anos quando soube da morte da mãe. Orou muito na capela, mas não chorou. Não tinha bem consciência de que não voltaria a ver aquele vulto de vestido cinzento e lenço preto, sobre o qual punha, no Verão, um chapéu de palha fora de moda. Oficiante do jardim e do pomar, a Sr.a de Sancé tinha, talvez, prodigalizado mais cuidados e carícias às suas pereiras e às suas couves do que aos seus numerosos filhos.
Foi por ocasião da morte da mãe que Angélique voltou a ver os irmãos Raimundo e Dinis, pois foram eles que lha anunciaram. A jovem recebeu-os no parlatório, atrás das grades frias impostas pela Ordem dasUrsulinas.
Dinis também já estava no colégio. Ao crescer, começara a parecer-se tanto com Juscelino que, por momentos, Angélique julgou rever o irmão mais velho, tal como o conservava na memória, com o seu uniforme preto de estudante e o seu tinteiro de chifre à cinta. Ficou de tal maneira impressionada com a semelhança que, depois de saudar o eclesiástico que acompanhava o irmão, não lhe prestou mais atenção e ele teve de se identificar:
Sou o Raimundo, Angélique, não me reconheces?
Sentiu-se quase intimidada. No seu convento, extremamente rigoroso a respeito de tantas coisas, as religiosas consideravam os padres com um servilismo devoto não isento da instintiva submissão feminina em relação ao homem. Ouvir-se tratar por tu por um sacerdote perturbava-a. E foi então ela que baixou os olhos, enquanto Raimundo lhe sorria. Com muito tacto, pô-la ao corrente da infelicidade que se abatera sobre todos eles e falou-lhe com grande simplicidade da obediência devida a Deus. Algo mudara no seu rosto comprido de tez baça e olhos claros e ardentes.
Contou-lhe também que o pai ficara muito decepcionado com o facto de a sua vocação religiosa se ter mantido durante os últimos anos que passara com os Jesuítas. Partido Juscelino, esperavam naturalmente que Raimundo assumisse o papel de herdeiro do nome, mas o jovem renunciara à sua herança em favor dos outros irmãos e ordenara-se. Gontrano também decepcionava o pobre barão Armando. Em vez de querer ir para o Exército, partira para Paris a fim de estudar não se sabia bem o quê. Havia pois que esperar que Dinis, de 13 anos, crescesse, para ver o nome de Sancé recuperar o brilho militar que era de tradição nas famílias de elevada linhagem.
Enquanto falava, o padre jesuíta observava a irmã, aquela jovem que, para o ouvir, encostava ao frio gradeamento o rosto rosado e cujos olhos estranhos adquiriram na penumbra do parlatório uma limpidez de água-marinha. Vibrava-lhe na voz uma espécie de piedade quando perguntou:
E tu, Angélique, que vais fazer?
Ela sacudiu os pesados cabelos com reflexos de ouro e respondeu, indiferente, que não sabia.
Um ano depois, Angélique de Sancé foi novamente chamada ao parlatório.
Desta vez foi o velho Guilherme que encontrou, pouco mais encanecido do que outrora. Apoiara cuidadosamente o seu inseparável pique à parede e informou-a de que viera buscá-la, a fim de a levar para Monteloup. A sua educação estava terminada. Era uma jovem prendada e tinham-lhe arranjado marido.
CASAMENTO TOLOSANO
(1656-1660)
Angélique é pedida em casamento por um conde tolosano
O marquês de Sancé olhava a filha com satisfação não dissimulada.
As freiras fizeram de ti uma jovem perfeita, minha selvagem!
Oh, perfeita! Isso só se verá na prática redarguiu Angélique, sacudindo a cabeleira frisada com um gesto de outros tempos, que julgara esquecido.
O ar de Monteloup, com o seu cheiro adocicado vindo dos pântanos, dava-lhe uma sensação de independência recuperada. Endireitava-se como uma flor estiolada sob uma chuvada agradável.
Mas a vaidade paterna do barão Armando era profunda e persistente:
Seja como for, és ainda mais bonita do que esperava. Na minha opinião, a tua tez é mais escura do que seria necessário para se harmonizar com a cor dos teus olhos e dos teus cabelos, mas o contraste não deixa de ter encanto. Já reparei, aliás, que a maior parte dos meus filhos têm a mesma cor de pele. Receio que se trate da última sobrevivência de uma gota de sangue árabe conservada de modo geral pela gente do Poitou. Viste o teu irmãozinho, João Maria? Parece um verdadeiro mouro!
E acrescentou, inesperadamente:
O conde de Peyrac de Morens pediu-te em casamento.
A mim? Mas não o conheço!
Isso não tem importância. O Molines conhece-o e é o principal. Garantiu-me que não poderia sonhar, para uma das minhas filhas, aliança mais lisonjeira.
O barão Armando rejubilava. Com a ponta da bengala arrancou algumas primaveras do aterro da margem do caminho onde passeava com a filha naquela tépida manhã de Abril.
Angélique chegara a Monteloup na véspera à noite, acompanhada por Guilherme e pelo irmão Dinis. Como se admirasse por ele estar de férias naquela altura, o rapaz respondeu-lhe que o tinham dispensado para assistir ao seu casamento.
”Mas que virá a ser esta história do casamento?”, pensara a jovem, que ainda não tomava o assunto a sério.
Mas agora o tom convicto do barão começava a inquietá-la.
O pai não mudara muito nos últimos anos. Apenas alguns fios grisalhos lhe apareciam no bigode e no tufo de pêlos que usava sob o lábio, à moda do reino de Luís XIII. Angélique, que esperara encontrá-lo abatido e hesitante por causa da morte da mulher, admirou-se por o ver tão desembaraçado e sorridente.
Ao desembocarem num prado em declive que dominava os pântanos secos, tentou desviar a conversa daquele assunto que ameaçava gerar um conflito entre eles tão pouco tempo depois de se reencontrarem.
O pai mandou-me dizer nas suas cartas que teve grandes perdas de gado em consequência das requisições e das pilhagens do Exército, durante os anos da terrível Fronda...
É verdade. O Molines e eu perdemos cerca de metade dos animais e, se não fosse ele, encontrar-me-ia preso por dívidas, depois de ter vendido todas as nossas terras.
Ainda lhe deveis muito?
Oh, sim! Das quarenta mil libras que me emprestou, em cinco anos de trabalho duro só lhe consegui pagar cinco mil, e ele nem isso queria receber, alegando que me dera o dinheiro, o qual era a minha parte no negócio. Tive de me zangar para que o aceitasse.
Angélique observou, com simplicidade, que, se o próprio administrador achava que não tinha necessidade de ser reembolsado, o pai fizera mal em obstinar-se na sua generosidade.
Se o Molines vos propôs este negócio, foi porque ganhava com isso. Não é homem para dar presentes. Tem, no entanto, uma certa rectidão e, se quis dar-vos essas quarenta mil libras, foi com certeza por achar que as canseiras que tivestes e os serviços que lhe prestastes as merecem.
É verdade que o nosso pequeno comércio de muares e de chumbo com a Espanha, isento de impostos até ao oceano, corre menos mal. E nos anos sem pilhagem, quando se pode vender o resto da produção ao Estado, cobrem-se as despesas... Sim, isso é verdade.
Lançou um olhar perplexo à Angélique e acrescentou:
Mas como falais com clareza, minha filha! Pergunto a mim mesmo se tal linguagem prática, e até mesmo crua, convirá a uma jovem acabada de sair do convento.
Angélique desatou a rir.
Parece que em Paris são as mulheres que dirigem tudo: a política, a religião, as letras e até as ciências. Chamam-lhes as preciosas. Reúnem-se todos os dias em casa de uma delas com belos espíritos, com sábios. A dona da casa está estendida no leito e os convidados comprimem-se no espaço circundante e discutem assim variados assuntos. Pergunto a mim mesma se, quando for a Paris, não será interessante organizar um salão desses, onde se discuta comércio e negócios...
Que horror! exclamou o barão, vivamente indignado. Não foram com certeza as ursulinas de Poitiers que vos incutiram semelhantes ideias, pois não?
Elas diziam que eu era excelente em Aritmética e em raciocínio. Boa de mais até... Em contrapartida, lamentavam muito não ter conseguido fazer de mim uma devota exemplar... e hipócrita como a minha irmã Hortense. Essa encheu-as de esperanças de que entraria na sua Ordem. Mas, decididamente, a atracção do procurador foi mais forte.
Não deveis ter inveja, minha filha, porque o Molines, que julgais tão severamente, vos arranjou um marido por certo muito superior ao daHortense.
A jovem bateu com o pé, impaciente.
O Molines exagera, francamente! Até parece, ao ouvir-vos, que sou filha dele, e não vossa, visto ele se preocupar tanto com o meu futuro!
E não teríeis razão nenhuma de vos lamentar se assim fosse, minha teimosinha redarguiu o pai, sorrindo. Escutai-me. O conde Joffrey de Peyrac é descendente dos antigos condes de Tolosa, cujos costados de nobreza seriam mais altos do que os do nosso rei Luís XIV. Além disso, é o homem mais rico e mais influente doLanguedoc.
É possível, pai, mas, francamente, não posso casar assim com um homem que não conheço, que vós próprio nunca vistes.
Porquê? perguntou, admirado, o barão. Todas as jovens nobres casam assim. Não é a elas nem ao acaso que compete decidir as alianças que são favoráveis à sua família e um casamento em que comprometem não só o seu futuro, mas também o seu nome.
Ele é... é jovem? perguntou Angélique, hesitante.
Jovem? Jovem? resmungou o barão, agastado. Eis uma pergunta muito ociosa para uma pessoa prática. Na realidade, o vosso futuro esposo é doze anos mais velho do que vós. Mas os 30 anos, num homem, são a idade da força e da sedução. O Céu poderá conceder-vos muitos filhos. Tereis um palácio em Tolosa, castelos em Albi e Béarn, equipagens, vestidos...
O Sr. de Sancé interrompeu-se, pois a imaginação esgotara-se-lhe.
Pela minha parte concluiu, acho que o pedido de casamento feito por um homem que também nunca vos viu é uma oportunidade inesperada, extraordinária...
Deram alguns passos em silêncio.
É precisamente isso, meu pai, acho essa oportunidade demasiado extraordinária murmurou Angélique. Porque será que esse conde, que tem tudo quanto é necessário para escolher como esposa uma herdeira rica, vem buscar ao Poitou uma rapariga sem dote?
Sem dote? repetiu Armando de Sancé, cujo rosto se iluminou. Regressa comigo ao castelo, Angélique, a fim de te vestires para sairmos. Vamos buscar os nossos cavalos, pois quero mostrar-te uma coisa.
No pátio do castelo, um criado obedeceu às ordens do barão e foi buscar à cavalariça dois cavalos, que selou rapidamente. Angélique estava intrigada, mas não fazia perguntas. Enquanto subia para a sela, pensava para consigo que, no fim de contas, estava destinada a casar-se e a maioria das suas companheiras também casavam assim, com pretendentes escolhidos pelos pais. Porque seria, então, que o projecto a revoltava tanto? O homem que lhe destinavam não era velho... Seria rica.
Angélique experimentou, de súbito, uma agradável sensação física e levou alguns momentos a compreender-lhe a razão. A mão do criado que a ajudara a sentar-se na sela, à amazona, deslizara-lhe pelo tornozelo e acariciara-lho docemente, num gesto que nem a maior boa vontade do mundo poderia atribuir a acaso ou descuido.
O barão entrara no castelo, para mudar de botas e pôr uma gola limpa.
Angélique teve um gesto nervoso e o cavalo empinou-se e deu alguns passos.
Que mosca te mordeu, lapuz?
Sentia-se corada e estava furiosa consigo própria, pois tinha de admitir que a breve carícia lhe provocara um estremecimento delicioso.
O criado, um hércules de ombros largos, endireitou a cabeça. Madeixas de cabelo negro caíam-lhe para os olhos escuros, onde brilhava uma malícia familiar.
Nicolau! exclamou Angélique, enquanto o prazer de rever o antigo companheiro de brincadeiras e a confusão causada pelo gesto que ele ousara se digladiavam nela. ”Ah, reconheceste o Nicolau! exclamou o barão de Sancé, que regressava, apressado. É o pior diabo da região e ninguém faz nada dele. Nem o trabalho nem os machos lhe interessam. Preguiçoso e femeeiro, aí tens o teu belo companheiro de outros tempos, Angélique!
O jovem não parecia nada envergonhado com a apreciação do amo. Continuava a olhar para Angélique, com um riso que lhe descobria os dentes brancos e uma ousadia quase insolente. A camisa desabotoada revelava o peito maciço e negro.
Olha, rapaz, vai buscar um macho e segue-nos disse o barão, sem reparar em nada.
Sim, nosso amo.
As três montadas transpuseram a ponte levadiça e embrenharam-se no caminho que ficava à esquerda de Monteloup.
Aonde vamos, pai?
À velha mina de chumbo.
Àqueles fornos em ruínas, perto das terras da abadia de Nieul?
A esses mesmos.
Angélique lembrou-se do convento dos monges corruptos, da louca escapada da sua infância, quando quisera partir para as Américas, e das explicações do Irmão Anselmo acerca do chumbo e de prata e do que se fizera na mina na Idade Média.
Não compreendo em que pode esse pedaço de terra inculta...
Esse pedaço de terra, que já não está inculta e se chama agora Argentière, representa pura e simplesmente o teu dote. Como deves lembrar-te, Molines pedira-me que renovasse o direito de exploração pela minha família e obtivesse a isenção de impostos sobre um quarto da produção. Conseguido isso, mandou vir operários saxões. Ao ver a importância que ele atribuía a essa terra até então abandonada, disse-lhe um dia que ta daria em dote. Creio que foi a partir desse momento que a ideia de um casamento com o conde de Peyrac germinou na sua cabeça fértil, pois, na realidade, esse fidalgo tolosano queria adquiri-la. Não compreendo muito bem o género de transacções existentes entre o conde e o Molines; creio que é ele, mais ou menos, quem recebe os machos e os metais que mandamos por mar com destino à Espanha. Isso prova que existem muitos mais fidalgos do que se julga interessados pelo comércio. No entanto, pensava que o conde de Peyrac tinha propriedades e terras suficientes para não recorrer a ocupações plebeias. Mas talvez isso o distraia. Dizem que é muito original - Se bem compreendi observou Angélique, em voz lenta, sabíeis que cobiçavam a mina e destes a entender que para a levarem teriam também de me levar.
Apresentas as coisas vistas de um ângulo tão estranho, Angélique! Acho excelente a ideia de te dar a mina como dote. O desejo de ver as minhas filhas bem casadas foi a minha principal preocupação, assim como a da tua pobre mãe. Nós não vendemos as terras; apesar das piores dificuldades, conseguimos conservar o património intacto, embora os do Plessis tenham mais de uma vez cobiçado os meus famosos terrenos dos pântanos secos. Mas conseguir para a minha filha um casamento não só honroso, mas também rico, isso, sim, alegra-me. A terra não sai da família, não passa para um estranho, mas sim para um novo ramo, para uma nova aliança.
Angélique seguia um pouco atrás do pai, que não pôde, assim, ver a expressão do seu rosto. Os pequenos dentes brancos da jovem mordiam os lábios com uma raiva impotente. Tinha dificuldade em explicar ao pai quanto era humilhante para ela o modo como fora feito o pedido de casamento, tanto mais que ele estava muito convencido de ter preparado habilmente a felicidade da filha. No entanto, Angélique ainda tentou lutar:
Se a memória não me falha, havíeis alugado a mina ao Molines por dez anos. Portanto, ainda faltam quatro. Como se pode dar em dote um terreno que está alugado?
Além de estar de acordo com o dote, o Molines continuará a exploração por conta do Sr. de Peyrac. Aliás, o trabalho já começou há três anos, como vais ver. Estamos a chegar.
Após uma hora de trote chegaram à mina. Outrora, Angélique julgara que aquela espécie de pedreira negra e as suas aldeias protestantes ficavam no fim ”do mundo, mas agora a distância parecera-lhe pequena. Uma estrada bem tratada confirmava essa nova impressão. Tinham construído um pequeno povoado para os trabalhadores.
Pai e filha apearam-se e Nicolau acercou-se para segurar as rédeas dos cavalos.
O lugar de aspecto desolado, de que Angélique se recordava tão bem, mudara por completo.
Um trabalho de canalização transportava água corrente e accionava mós de pedra verticais. Pilões de fundição esmagavam pedras, com um ruído surdo, enquanto grandes blocos de pedra eram seccionados por maços, à mão.
Dois fornos brilhavam, aquecidos ao rubro, e enormes foles de pele activavam-lhes as chamas. Ao lado dos fornos estavam montanhas negras de carvão vegetal e o resto do recinto de depósito da mina estava ocupado por montes de pedras.
Trabalhadores lançavam, em calhas de madeira onde corria água, pazadas de areia das pedras esmagadas pelas mós. Outros, com enxadas, raspavam em contra corrente o interior das calhas.
Um grande edifício, construído a certa distância, tinha portas com gradeamentos e barras de ferro, fechadas com grandes cadeados. Dois homens armados de mosquetes guardavam as proximidades.
- O depósito dos lingotes de prata e de chumbo informou o barão, acrescentando, muito orgulhoso, que num daqueles dias pediria ao Molines que mostrasse o conteúdo a Angélique.
Depois foi-lhe mostrar a pedreira contígua. Enormes degraus de quatro metros de altura cada formavam uma espécie de anfiteatro romano.
Aqui e ali abriam-se na rocha cavernas negras, das quais saíam carrocinhas puxadas por burros.
Estão aqui seis famílias saxónicas de mineiros profissionais, fundidores e cabouqueiros. Foram eles e o Molines que montaram a exploração.
Quanto rende o negócio por ano? indagou Angélique.
Aí está uma pergunta que nunca fiz... respondeu Armando de Sancé com uma pontinha de embaraço. Compreendes, o Molines paga-me regularmente a renda e arcou com todas as despesas de instalação. Os tijolos dos fornos vieram de Inglaterra e certamente até de Espanha, trazidos por caravanas de contrabandistas do Linguadoque.
Provavelmente por intermédio daquele que me destinais para esposa, não é verdade?
Talvez. Parece que ele se dedica a mil coisas diversas. Trata-se, além do mais, de um sábio e foi ele que desenhou os planos desta máquina de vapor.
Mostrou-lhe uma espécie de enorme caldeirão de ferro sob o qual acendiam lume e donde saíam dois grossos tubos cercados de frisos, que mergulhavam no poço. Um jacto de água jorrava periodicamente à superfície do solo.
É uma das primeiras máquinas de vapor construídas no mundo. Serve para bombear a água subterrânea das minas e trata-se de um invento que o conde de Peyrac aperfeiçoou durante uma das suas estadas em Inglaterra. Para uma mulher que quer tornar-se preciosa, terás, como vês, um marido tão sábio e ilustrado que, comparado com ele, me sinto ignorante e lerdo declarou, tristonho. Olá, Fritz Hauér, bons dias.
Um dos trabalhadores, que se encontrava junto da máquina, tirou o boné e inclinou-se profundamente. Tinha o rosto azulado pelas poeiras de rocha que se lhe haviam incrustado na pele durante uma longa existência a trabalhar como mineiro e faltavam-lhe dois dedos numa das mãos. Atarracado e corcunda, os seus braços pareciam compridíssimos. Mechas de cabelo caíam-lhe para os olhos, pequenos e vivos.
Acho-o um pouco parecido com Vulcano, o deus dos Infernos comentou o Sr. de Sancé. Dizem que não há homem que melhor conheça as entranhas da terra do que este operário saxão. Talvez seja por isso que tem aquele aspecto curioso. Estas coisas de minas nunca me pareceram muito claras e confesso não saber até que ponto não intervém em tudo isto um pouco de bruxaria. Consta que Fritz Hauêr conhece um processo secreto de transformar chumbo em ouro. Seria muito extraordinário, se fosse verdade. Há vários anos que trabalha com o conde de Peyrac, que o mandou para o Poitou a fim de instalar a Argentière.
”O conde de Peyrac, sempre o conde de Peyrac!”, pensou Angélique, irritada.
E observou, em voz alta:
Talvez seja por isso que o tal conde de Peyrac é tão rico: transforma em ouro o chumbo que Fritz Hauêr lhe manda. Daí a transformar-me em rã...
Francamente, minha filha, penalizais-me. Porquê esse tom de mofa? Dir-se-ia que pretendo a vossa infelicidade. Não há nada neste projecto que justifique a vossa desconfiança. Esperava exclamações de alegria e só ouço sarcasmos.
Tendes razão, pai, perdoai-me murmurou Angélique, confusa e desolada com a decepção que lia no rosto honrado do fidalgo. As religiosas diziam muitas vezes que eu não era como as outras e tinha reacções desconcertantes. Não vos oculto que, em vez de me alegrar, este pedido de casamento me é muitíssimo desagradável. Dai-me tempo para reflectir, para me habituar...
Enquanto falavam, tinham voltado para junto dos cavalos. Angélique subiu, lesta, para a sela, a fim de evitar a ajuda excessivamente solícita de Nicolau, mas não pôde impedir que a mão morena do criado roçasse pela sua ao entregar-lhe as rédeas.
”É irritante”, pensou, contrariada. ”Tenho de o pôr no seu lugar, severamente.”
Os caminhos estavam floridos de pilriteiros, cujo perfume delicado lhe recordou os tempos da infância e apaziguou um pouco a irritação.
Paidisse de súbito, julgo compreender que, a respeito do conde de Peyrac, desejaríeis que tomasse uma decisão rápida. Acabo de ter uma ideia: permitis-me que vá a casa do Molines? Gostaria de conversar a sério com ele.
O barão olhou para o Sol, a fim de calcular as horas.
Não tarda a ser meio-dia... mas creio que o Molines terá prazer em te receber à sua mesa. Vai, minha filha. O Nicolau acompanha-te.
Angélique esteve prestes a recusar a escolta, mas não quis dar a impressão de que atribuía a mínima importância ao camponês. Por isso, depois de fazer um alegre gesto de despedida ao pai, lançou-se a galope. O criado, montado num macho, depressa ficou para trás.
Meia hora depois, ao passar diante do gradeamento do castelo do Plessis, Angélique inclinou-se para tentar descobrir, ao fundo da alameda de castanheiros, a branca aparição.
”Filipe”, pensou, e surpreendeu-se por lhe ter acudido à memória esse nome, como que para aumentar a sua melancolia.
Mas os marqueses do Plessis continuavam em Paris. Apesar de antigo partidário do Sr. de Conde, o marquês soubera reconquistar a graça da rainha e do cardeal Mazarino, ao passo que o Sr. Príncipe, o vencedor de Rocroi e um dos mais heróicos generais de França, fora servir vergonhosamente o rei de Espanha na Flandres. Angélique perguntou a si mesma se o desaparecimento do cofrezinho com o veneno desempenhara algum papel no destino do Sr. de Conde. Pelo menos, nem o cardeal Mazarino nem o rei e o seu jovem irmão tinham sido envenenados. E dizia-se que o Sr. Fouquet, a alma do antigo conluio contra sua majestade, acabava de ser nomeado superintendente das Finanças.
Era emocionante pensar que uma provincianazinha obscura tinha talvez modificado o curso da história. Um dia teria de verificar se o cofre continuava no seu esconderijo. Que teriam feito ao pajem que acusara? Ora, isso não tinha importância!
Angélique ouviu o galope do macho de Nicolau, que se aproximava. Pôs-se de novo a caminho e não tardou a chegar a casa do administrador.
Finda a refeição, o intendente Molines conduziu Angélique ao pequeno escritório, onde, alguns anos antes, recebera o pai dela. Fora ali que nascera o negócio das muares e a jovem lembrou-se, de repente, da resposta ambígua que o intendente dera à sua pergunta de garota prática:
”... mas que me darão, a mim?” ”dar-vos-emos um marido.”
Já pensaria então numa aliança com aquele estranho conde de Tolosa? Não era impossível, visto Molines ser um homem cujo espírito via muito longe e congeminava mil projectos. Na realidade, o intendente do castelo vizinho não era antipático. A sua atitude um tanto ou quanto cautelosa era inerente à sua condição de subalterno um subalterno que se sabia mais inteligente do que os seus amos.
Para a família do pequeno castelão vizinho, a sua intervenção tinha sido uma verdadeira providência, mas Angélique sabia que somente o interesse pessoal do intendente estava na origem da sua generosidade e do seu auxílio. Isso agradava-lhe, pois libertava-a do escrúpulo de se sentir em favor para com ele e devedora de um reconhecimento humilhante. Surpreendia-a, no entanto, a verdadeira simpatia que lhe inspirava aquele huguenote plebeu e calculista.
”É porque ele está em vias de criar algo de novo e porventura de sólido”, pensou, de súbito.
Mas, com a breca, não lhe agradava nada participar nos projectos do intendente ao mesmo título que uma jumenta ou um lingote de chumbo.
Sr. Molines disse, em tom firme e claro, o meu pai falou-me com insistência de um casamento que vós teríeis preparado para mim com um tal conde de Peyrac. Dada a grande influência que nestes últimos anos tendes exercido sobre o meu pai, não me restam dúvidas de que, pessoalmente, também atribuís grande importância a esse casamento, isto é, que sou chamada a representar um papel nas vossas manobras comerciais. Gostaria de saber qual é esse papel.
Um sorriso frio distendeu os lábios finos do seu interlocutor.
Agradeço ao Céu reencontrar-vos tal como prometíeis vir a ser quando na região vos chamavam a fadazinha dos pântanos. Com efeito, prometi ao Sr. Conde de Peyrac uma mulher bela e inteligente.
Arriscai-vos demasiado. Eu podia-me ter tornado feia e idiota, e isso seria nocivo ao vosso trabalho de casamenteiro!
Nunca me arrisco baseado numa presunção. Por diversas vezes, pessoas minhas conhecidas, de Poitiers, me falaram de vós, e eu próprio vos vi o. ano passado, durante uma procissão.
Mandastes-me então vigiar, como um melão que amadurece sob uma redoma! gritou, furiosa.
Mas a imagem pareceu-lhe tão cómica que desatou a rir e a cólera abandonou-a. -No fundo, preferia saber com o que contava do que deixar-se apanhar na armadilha como uma patega.
Se eu tentasse falar a linguagem da vossa sociedade disse gravemente Molines, poderia entricheirar-me atrás de considerações tradicionais: uma jovem, ainda muito jovem mesmo, não tem necessidade de saber por que motivo os seus pais lhe escolhem este ou aquele marido. Os negócios de chumbo e de prata, de comércio e alfândega, não são da competência das mulheres, sobretudo das damas nobres... E os negócios de criação de animais ainda menos. Mas eu julgo conhecer-vos, Angélique, e não vos falarei assim.
A jovem não se sentiu escandalizada com aquele tom mais familiar.
Porque julgais poder falar-me de modo diferente do que usais com o meu pai?
É difícil explicar... Não sou filósofo e os meus estudos consistiram principalmente em experiências de trabalho. Perdoai que seja muito franco. Mas dir-vos-ei uma coisa: as pessoas do seu mundo jamais poderão compreender o que me anima, e que é o trabalho.
Os camponeses ainda trabalham muito mais, parece-me.
Labutam, o que é diferente. São estúpidos, ignaros e não têm consciência do seu interesse, assim como as pessoas da nobreza, as quais não produzem nada. Estas últimas são seres inúteis, a não ser na conduta de guerras destruidoras. O vosso pai começa a fazer alguma coisa, é verdade, mas, desculpai-me, jamais compreenderá o trabalho!
Achais que não será bem sucedido? perguntou, de súbito, preocupada. Julgava que os seus negócios progrediam, e a prova era que vos interessáveis por eles.
A prova seria sobretudo se exportássemos milhares de muares por ano, e a segunda e mais importante prova seria isso dar um lucro razoável e crescente: é este o sinal verdadeiro de que um negócio progride.
Pois bem, não chegaremos a só um dia?
Não, porque uma criação de animais, mesmo importante e com reservas para os momentos difíceis doenças ou guerras, não passa de uma criação de animais. É como a cultura da terra, coisa muito demorada e de muito pequeno rendimento. De resto, nunca as terras nem os animais enriqueceram verdadeiramente os homens. Lembraivos do exemplo dos imensos rebanhos dos pastores bíblicos, cuja vida era, apesar disso, muito frugal.
Se é essa a vossa convicção, não compreendo que o senhor, que é tão prudente, se tenha lançado em semelhante negócio, lento e de muito pequeno rendimento.
Mas é por isso que o senhor vosso pai e eu vamos precisar de vós.
No entanto, não posso ajudar-vos a conseguir que as vossas jumentas tenham crias duas vezes mais depressa!
Podeis ajudar-nos a duplicar o rendimento.
Não vejo de que maneira.
Apreendereis facilmente a minha ideia. O que conta num negócio rendoso é andar depressa, mas, como não podemos modificar as leis de Deus, forçoso nos é explorar a fraqueza do espírito dos homens. Assim, as muares representam a fachada do negócio. Cobrem as despesas correntes e põem-nos em boas relações com a Intendência Militar, à qual vendemos couro e animais. Permitem sobretudo circular livremente, com isenções alfandegárias e de portagem, e mandar para as estradas caravanas pesadamente carregadas. Por exemplo, com um contingente de muares expedimos chumbo e prata com destino à Inglaterra. No regresso, os animais trazem sacos de escórias negras a que chamamos fu ridente, produtos necessários aos trabalhos da mina, e que na realidade são ouro e prata vindos da Espanha em guerra e passando por Londres.
Não estou a acompanhar-vos, Sr. Molines. Porque mandais prata para Londres, para a voltardes a trazer?
Trago o dobro ou o triplo da quantidade. Quanto ao ouro, o conde Joffrey de Peyrac tem no Linguadoque uma jazida aurífera. Quando ele tiver a mina de Argentières, as operações de troca destes dois metais preciosos que para ele farei já não poderão parecer em nada suspeitos, ouro e prata virão oficialmente das duas minas que lhe pertencerão. É nisso que reside o nosso verdadeiro negócio. Porque, compreendei, o ouro e a prata que se podem explorar em França representam, mais uma vez, pouca coisa; em contrapartida, sem intrigar o fisco nem a alfândega, podemos fazer entrar uma grande quantidade de ouro e prata espanhóis. Os lingotes que apresento aos cambistas não falam, não podem dizer que em lugar de provirem de Argentières ou do Linguadoque chegam de Espanha, via Londres. Assim, dando ao Tesouro real um lucro legal, podemos passar, a coberto de material para trabalhos mineiros, uma quantidade importante de metais preciosos sem pagar mão-de-obra e direitos alfandegários e sem sermos arruinados por instalações demasiado importantes, pois ninguém pode calcular quanto produzimos aqui, têm de se fiar nos números que declaramos.
Mas, se esse tráfico for descoberto, não vos arriscais a ir parar às galés?
Não fabricamos moeda falsa nenhuma. Nem temos, aliás, a intenção de alguma vez a fabricar. Pelo contrário, somos nós que alimentamos regularmente o Tesouro real com ouro bom e franco e com lingotes de prata que o Tesouro verifica e contrasta e de que depois pode cunhar moeda. Ao abrigo destas extracções nacionais mínimas, poderemos, quando a mina de Argentière e a do Linguadoque estiverem reunidas sob o mesmo nome, colher lucros rápidos dos metais preciosos de Espanha. Este país regurgita de ouro e prata vindos das Américas, perdeu o gosto pelo trabalho e vive exclusivamente da troca das suas matérias-primas com outras nações. Os bancos de Londres servem-lhe de intermediários. A Espanha é, simultaneamente, o país mais rico e mais pobre do mundo. Quanto à França, estas relações económicas que uma má gestão económica a impede de efectuar às claras enriquecê-la -ao quase, mal-grado seu. E nós próprios antes dela, porque as somas investidas serão recuperadas mais depressa e de modo mais importante, pois uma burra leva dez meses a parir e não pode render mais de 10 por cento do capital investido.
Angélique não podia deixar de se sentir muito interessada por aquelas combinações engenhosas.
E o chumbo, que contais fazer dele? Serve apenas de disfarce ou pode ser utilizado comercialmente?
O chumbo dá muito bom rendimento. É necessário para a guerra e para a caça e nos últimos anos o seu valor aumentou, desde que a rainha-mãe mandou vir engenheiros florentinos para instalarem salas de banho em todas as suas residências, como já o fizera a sua sogra. Catarina de Médicis. Vistes por certo o modelo de uma dessas salas de banho no castelo do Plessis, com a sua banheira romana e todos os seus canos de chumbo.
E o marquês vosso amo está ao corrente de todos esses projectos?
Não respondeu Molines, com um sorriso indulgente. Não perceberia nada e o menos que poderia fazer seria retirar-me o meu cargo de intendente dos seus domínios, embora eu o desempenhe a seu contento.
E o meu pai, que sabe ele dos vossos tráficos de ouro e prata?
Achei que o simples facto de saber que metais espanhóis passariam pelas suas terras lhe seria desagradável. Não será preferível deixá-lo acreditar que os pequenos lucros que lhe permitem viver são fruto de um labor honrado e tradicional?
Angélique irritou-se com a ironia um pouco desdenhosa da voz do intendente e perguntou-lhe, secamente:
E porque tenho eu o direito a que me desvendeis as vossas maquinações, que cheiram a galés a dez léguas de distância?
Não é caso para galés e, se houvesse dificuldades com alguns funcionários administrativos, uns tantos escudos comporiam as coisas. Vede se Mazarino e Fouquet não são personagens com mais crédito do que os príncipes de sangue e do que o próprio rei... Isso acontece porque possuem uma imensa fortuna. Quanto a vós, sei que vos debatereis nos varais enquanto não tiverdes compreendido porque lá vos puseram. O problema, no fundo, é simples. O conde de Peyrac precisa de Argentière e o vosso pai só lhe cederá a terra arrumando uma das suas filhas. Sabeis como ele é obstinado. Jamais venderá uma parcela do seu património. Por outro lado, o conde de Peyrac achou a combinação vantajosa, dado o seu desejo de se aliar pelo casamento a uma família de boa nobreza.
E se eu me recusasse a compartilhar essa opinião?
Não desejais que o vosso pai conheça a prisão por dívidas respondeu lentamente o administrador. Basta muito pouco para que regresseis todos a uma miséria ainda maior do que a que conhecestes outrora. E, a vós, que futuro vos esperaria? Envelheceríeis na pobreza como as vossas tias... Para os vossos irmãos e para as vossas irmãs mais novas seria a impossibilidade de educação, a partida para o estrangeiro, mais tarde...
Vendo que os olhos da jovem coruscavam de cólera, acrescentou, em tom adulador:
Mas porque me constrangeis a pintar tão negro quadro? Imaginava-vos de têmpera diferente da desses nobres que se contentam com o seu brasão e vivem das esmolas do rei... Não se vencem as dificuldades sem as agarrar com ambas as mãos e sem pagar um pouco, com a própria pessoa. Isto significa que é preciso agir. Eis porque não vos ocultei nada, para saberdes em que sentido deveis fazer incidir os vossos esforços.
Nenhumas outras palavras poderiam ter influenciado Angélique tão directamente. Jamais lhe tinham falado numa linguagem tão próxima do seu carácter. Levantou-se, como se tivesse levado uma chicotada. Reviu Monteloup em ruínas, os irmãos e as irmãs espojados no estrume, a mãe de dedos vermelhos de frio e o pai sentado à pequena escri vaninha, a escrever com aplicação uma súplica ao rei, que nunca respondera...
O intendente tirara-os da miséria. Agora havia que pagar.
Está entendido, Sr. Molines declarou em tom inexpressivo. Casarei com o conde de Peyrac.
Casamento por procuração. Angélique oferece-se a Nicolau
Regressava pelos caminhos perfumados, mas, toda entregue aos seus pensamentos, não via nada.
Nicolau seguia-a no seu macho. Angélique já não prestava a mínima atenção ao jovem criado e tentava não aprofundar o vago terror que continuava a possuí-la. A sua resolução estava tomada. Acontecesse o que acontecesse, não voltaria atrás. O melhor, portanto, era olhar em frente e repelir implacavelmente tudo quanto pudesse fazê-la hesitar na execução daquele programa tão bem traçado.
De repente, uma voz masculina interpelou-a:
Menina! Menina Angélique!
Maquinalmente, Angélique puxou as rédeas e o cavalo, que havia alguns minutos, caminhava lentamente, parou.
Ao voltar-se, viu que Nicolau se apeara e lhe fazia sinal para que se lhe juntasse.
Que se passa?
O rapaz segredou misteriosamente:
Descei, quero mostrar-vos uma coisa.
Angélique obedeceu e Nicolau passou as rédeas das duas montadas pelo tronco de uma jovem bétula e embrenhou-se num bosquezinho. Ela seguiu-o. Através das folhas novinhas, a luz primaveril era da cor da angélica. Um tentilhão assobiava sem descanso nas moitas.
Nicolau caminhava de cabeça inclinada, a olhar com atenção em seu redor. Por fim ajoelhou-se e depois, ao levantar-se, estendeu nas duas palmas abertas frutos vermelhos e perfumados.
Os primeiros morangos murmurou, enquanto a malícia do seu sorriso lhe acendia uma chama nos olhos castanhos.
Oh, Nicolau, não está certo! protestou Angélique.
Mas a emoção inundou-lhe os olhos de lágrimas, pois, com aquele gesto, ele devolvia-lhe todo o encanto da sua infância, o encanto de Monteloup, das corridas pelos bosques, dos sonhos inspirados pelo inebriamento dos pilriteiros, da frescura dos canais para onde Valentim a levava, dos regatos onde pescavam lagostins o encanto de Monteloup, que não se parecia com nenhum outro lugar da Terra, pois nele se misturavam o mistério adocicado dos pântanos e o mistério acre das florestas...
Lembras-te como te chamávamos? Marquesa dos Anjos...
És pateta murmurou em voz frágil. Não devias, Nicolau... Mas, ressuscitando um gesto familiar, os seus dedos já colhiam das mãos estendidas os frutos pequeninos e deliciosos. Nicolau estava muito perto dela, como antigamente, mas agora o rapazote magro e expedito, de rosto de esquilo, era mais alto do que ela uma cabeça e pela abertura da camisa desabotoada Angélique aspirava o odor rústico daquela carne de homem, morena e coberta de pêlos negros. Via o peito possante altear-se ao ritmo lento da respiração e isso perturbava-a ao ponto de não se atrever a levantar a cabeça, consciente do olhar audacioso e escaldante que encontraria.
Continuou a saborear os morangos, a absorver-se no seu deleite, a que, na verdade, atribuía um preço infinito...
”Uma última vez Monteloup!”, pensou. ”Que a saboreie uma última vez! Tudo quanto de melhor houve para mim está contido nestas mãos, nas mãos morenas do Nicolau.”
Quando acabou, fechou bruscamente os olhos e encostou a cabeça ao tronco de um carvalho.
Escuta, Nicolau...
Dizrespondeu-lhe ele, em patoá.
Angélique sentiu na face o hálito quente e a cheirar a sidra do rapaz. Ele estava tão próximo, quase colado a ela, que a envolvia toda na emanação da sua presença maciça. No entanto, não lhe tocava e, de súbito, ao olhá-lo, Angélica viu que ele pusera as mãos atrás das costas para resistir à tentação de a agarrar, de a abraçar. Recebeu o choque do olhar temível, desprovido de qualquer sorriso e entristecido por uma súplica que não deixava lugar para nenhum equívoco. Jamais Angélique captara assim a atracção do sexo oposto, jamais ouvira confissão mais clara dos desejos que a sua beleza inspirava. O capricho do pajem de Poitiers fora apenas uma brincadeira, uma experiência ácida de jovens animais que punham à prova as garras.
Mas aquilo agora era outra coisa, era algo forte e sólido, velho como o mundo, como a terra, como a tempestade.
A jovem assustou-se. Se fosse mais experiente, não teria podido resistir a tal apelo. A sua carne estremecia, as suas pernas tremiam, mas ela recuou, como a corça diante do caçador. O desconhecimento do que a esperava e a violência contida do camponês assustaram-na.
Não olhes assim para mim, Nicolau pediu, tentando devolver a firmeza à voz. Quero dizer-te...
Sei o que me queres dizer interrompeu-a, em tom surdo. Leio-o nos teus olhos e no modo como endireitas a cabeça. És a Menina de Sancé e eu sou um criado... E agora acabou-se, já nem sequer nos podemos olhar de frente. Eu devo manter-me de cabeça baixa! Muito bem, menina; sim, menina... E os teus olhos passarão por cima de mim sem me verem... Não mais do que um labrego e menos do que um cão. Há marquesas que, nos seus castelos, mandam os lacaios lavá-las, pois não tem importância nenhuma mostrarem-se nuas diante de um lacaio... Um lacaio não é um homem, é um móvel... um móvel para servir. Será assim que me passarás a tratar?
Cala-te, Nicolau.
Pois sim, calo-me.
Respirava violentamente, mas de boca fechada, como um animal doente.
Mas antes de me calar quero dizer-te uma última coisa, que é a seguinte: na minha vida existíamos apenas nós: tu e eu. Só o compreendi quando partiste e durante vários dias andei como louco. É verdade que sou preguiçoso, ando atrás das raparigas e não gosto da terra nem dos animais. Sou como uma coisa que não está no seu lugar e que andará sempre por aqui e por ali sem saber. O meu único lugar eras tu. Quando voltaste, não pude esperar mais, tive de saber se continuavas a ser minha ou se te perdera. Sim, sou atrevido e ousado. Sim, se tivesses querido, ter-te-ia tomado, ali, sobre o musgo, naquele bosquezinho que é nosso, naquela terra de Monteloup que é nossa, que é só de nós dois, como antigamente! gritou.
Assustadas, as aves tinham emudecido nos ramos das árvores.
Divagas, meu pobre Nicolau murmurou docemente Angélique.
Isso não redarguiu o homem, empalidecendo sob o bronzeado da pele.
Angélique sacudiu os compridos cabelos, que ainda usava caídos para os ombros, e sentiu uma pontinha de cólera.
Como queres que te fale? perguntou, recorrendo por sua vez ao patoá. Quer queira, quer não, já não sou livre, já não posso escutaras palavras galantes de um pastor. Brevemente terei de casar com o conde dePeyrac.
Com o conde de Peyrac! repetiu, estupefacto, Nicolau, que recuou alguns passos e a fitou em silêncio. É então verdade o que diziam na terra? murmurou baixinho. O conde de Peyrac! Vós!... Vós! Vós ides casar com esse homem?
Sim.
Não queria fazer perguntas; dissera que sim e isso bastava. Diria sim cegamente, até ao fim.
Meteu pela veredazinha que conduzia à estrada, batendo nervosamente com o chicote nos rebentos tenros das margens do caminho.
O cavalo e o macho comiam juntos a erva da orla do bosque. Nicolau soltou-os e, de olhos baixos, ajudou Angélique a sentar-se na sela, à amazona. Foi ela que reteve, inesperadamente, a mão do criado.
Nicolau... Diz-me, conhece-lo?
O rapaz ergueu os olhos e ela viu neles uma ironia cruel.
Sim... vi-o... Tem vindo muitas vezes à região. É um homem tão feio que as raparigas fogem quando ele passa no seu cavalo negro. É coxo como o Diabo, mau como ele... Diz-se que, no seu castelo de Tolosa, atrai as mulheres por meio de filtros e cânticos estranhos... As que o seguem, ou nunca mais voltam a ser vistas ou enlouquecem... Ah! Ah! Ah! Que rico marido, Menina de Sancé!
Disseste que era coxo? repetiu Angélique, cujas mãos gelaram.
É coxo, sim, coxo! Perguntai a quem quiserdes e responder-vos-ão: ”É o grande Coxo do Linguadoque.”
Desatou a rir e avançou para o macho, imitando uma claudicação acentuada.
Angélique chicoteou o cavalo e lançou-o a galope. Fugia, através das moitas de pilriteiro, à voz trocista que repetia: ”Coxo! Coxo!”
Quando chegou ao pátio de Monteloup, um cavaleiro atravessou atrás dela a velha ponte levadiça. Pelo seu rosto suado e sujo de poeira e pelos seus calções reforçados de couro via-se imediatamente que se tratava de um mensageiro.
Primeiro ninguém compreendeu nada do que perguntava, pois o seu sotaque era tão estranho que só passados momentos perceberam que falava francês.
Quando o Sr. de Sancé acorreu, o homem entregou-lhe um sobrescrito, que tirou da sua caixinha de ferro.
Meu Deus, é o Sr. de Andijos, que chega amanhã! exclamou o barão, muito agitado...
Quem é?perguntou Angélique.
É um amigo do conde. O Sr. de Andijos desposar-te-á...
O quê, esse também?
Por procuração, Angélique. Deixa-me acabar as frases, minha filha. Com mil demónios, como dizia o teu avô, pergunto a mim mesmo que te terão as freiras ensinado, se nem sequer te inculcaram no espírito o respeito que me deves! O conde de Peyrac envia o seu melhor amigo para o representar na primeira cerimónia nupcial, que se efectuará aqui, na capela de Monteloup. A segunda bênção ser-vos-á dada em Tolosa. A essa, infelizmente, a tua família não poderá assistir. O marquês de Andijos acompanhar-te-á durante a viagem para o Linguadoque. Esta gente do Sul é rápida. Sabia-os a caminho, mas não os esperava tão depressa.
Compreendo que era tempo de eu aceitar murmurou Angélique, com azedume.
No dia seguinte, pouco antes do meio-dia, encheu o pátio o ruído de rodas de carruagens, relinchos de cavalos, gritos sonoros e conversas à toa.
O Sul chegava a Monteloup. O marquês de Andijos, muito moreno, de bigode à ”ponta de punhal” e olhar de fogo, usava uma rhingrave de seda amarela e cor de laranja, que dissimulava com graça o bojo de um bon vivant. Apresentou os seus companheiros, que seriam testemunhas do casamento: o conde de Carbon-Dorgerac e o pequeno barão Cerbalaud.
Conduziram-nos à sala de jantar, onde, em mesas montadas sobre cavaletes, a família de Sancé expusera as suas melhores riquezas: mel de colmeias, fruta, leite coalhado, patos assados e vinhos da vertente de Chaillé.
Os recém-chegados morriam de sede. Mas, depois de beber, o marquês de Andijos virou-se e cuspiu no lajedo, com um gesto certeiro.
Por São Paulino, barão, os vossos vinhos do Poitou revoltam-me a língua! O que acabais de me servir é uma zurrapa azeda de embotar os dentes. Eh, gascões, trazei os barris!
1 Em francês, ventre saint-gris, que era uma praga muito usada por Henrique IV. (N. da T.)
A sua simplicidade sem rodeios, o seu sotaque cantante e o cheiro a alho do seu hálito, em vez de desagradarem ao barão de Sancé, encantaram-no.
Quanto a Angélique, nem sequer tinha força para sorrir. Desde a véspera que, com a tia Pulquéria e a ama, se esfalfara de tal modo, para darem ao velho castelo um ar apresentável, que se sentia toda partida e ancosada. Era melhor assim: nem sequer podia pensar. Envergara o seu vestido mais elegante, feito em Poitiers, mas que também era cinzento, embora tivesse alguns lacinhos azuis no corpete: a cerceta cinzenta entre os senhores todos enfeitados de fitas coloridas. Ignorava que o seu rosto quente, de uma firmeza e de uma delicadeza de fruto mal acabado de amadurecer, era, ao emergir de uma grande gola de renda branca bem engomada, uma jóia ofuscante. Os olhares dos três fidalgos voltavam constantemente a fixar-se nela com uma admiração que o seu temperamento não lhes permitia dissimular. Começaram a cumulá-la de cumprimentos, mas ela nem sempre os compreendia por causa da maneira rápida como falavam e daquele sotaque inverosímil que fazia ressaltar a palavra mais banal numa girândola luminosa.
”Estarei condenada a ouvir falar assim toda a minha vida?”, perguntava-se aborrecida.
Entretanto, os lacaios rebolavam para a sala grandes barris, que içavam para cima de cavaletes e tratavam logo de abrir. Mal o buraco ficava feito, enfiavam-lhe imediatamente uma torneira de madeira, o que não impedia que o primeiro jacto deixasse no chão grandes manchas de transparências róseas e castanho-avermelhadas.
Santo Emilião, Sauternes, Médoc... dizia o conde de CarbonDorgerac, que era bordelês.
Habituados à água-pé de maçãs ou ao sumo de abrunhos bravos, os habitantes do castelo de Monteloup provavam com circunspecção os vinhos das diferentes regiões anunciadas. Mas Dinis e os três irmãos mais novos não tardaram a ficar muito alegres. O perfume capitoso do vinho subia à cabeça. Angélique sentiu-se invadida por agradável bem-estar. Via o pai rir-se e desabotoar o gibão justo, à moda antiga, sem se preocupar com a roupa interior usada. E os senhores do Sul começavam já também a desabotoar as jaquetas curtas, sem mangas. Um deles tirou a peruca, para enxugar a testa, e pô-la um pouco à banda.
Maria Inês, agarrada ao braço da irmã mais velha, gritava-lhe ao ouvido, em voz aguda:
Anda, Angélique! Anda ver maravilhas lá em cima, no teu quarto! Deixou-se arrastar. Tinham levado para o grande quarto onde dormira tanto tempo com Hortense e Madelon grandes arcas de ferro e couro curtido, a que chamavam então o ”guarda-roupa”. Criados e criadas haviam-nos aberto e dispunham o seu conteúdo no chão e em cima de algumas cadeiras mancas. Em cima do leito monumental estava um vestido de tafetá verde, do tom dos seus olhos. Uma renda de extraordinária delicadeza guarnecia-lhe o busto, armado com barbas de baleia, e o plastrão era inteiramente bordado a diamantes e esmeraldas reunidos em forma de flores. O mesmo desenho de flores reproduzia-se no veludo lavrado da capa, que era um preto sóbrio. Colchetes de diamantes soerguiam-na aos lados da saia.
O vosso vestido de noiva informou o marquês de Andijos, que seguira as duas irmãs. O conde de Peyrac procurou durante muito tempo, entre os tecidos que mandara vir de Lião, uma cor que condissesse com os vossos olhos.
Ele nunca os viu protestou Angélique.
O Sr. Molines descreveu-lhos com cuidado: o mar, disse, como o vemos da margem, quando o sol mergulha nas suas profundezas até à areia.
O safado do Molines! exclamou o barão. Não me convencereis de que é poeta a esse ponto. Desconfio, marquês, que adornais a verdade, para verdes sorrir os olhos de uma jovem noiva, lisonjeada com tal atenção da parte do marido.
E isto! E mais isto! Olha, Angélique! repetia Maria Inês, cuja cara de ratinha sensata brilhava de excitação.
Juntamente com os dois irmãos mais novos, Alberto e João Maria, levantava roupas brancas finas e abria caixas onde repousavam fitas e conjuntos de rendas ou leques de pergaminho e plumas. Havia uma encantadora mala de viagem de veludo verde forrada de damasco branco, brochada de prata dourada e contendo duas escovas, um estojo de ouro com três pentes, dois espelhinhos italianos, uma almofadinha para ganchos, duas toucas e uma camisa de dormir de cambraia finíssima, uma palmatória de marfim e um saco de cetim com seis velas de cera virgem.
Havia também vestidos mais simples, mas muito elegantes, luvas, cintos, um relogiozinho de ouro e uma infinidade de coisas de cuja utilidade Angélique nem sequer fazia ideia, como uma caixinha de madrepérola na qual se encontrava uma colecção de ”sinais” de veludo negro, assentes em tafetá gomado.
É de muito bom tom explicou o conde de Carbon fixar esse sinalzinho em qualquer ponto do vosso rosto.
Não tenho uma tez tão branca que seja necessário realçá-la redarguiu a jovem, fechando a caixa.
Hesitava à beira de uma alegria infantil, de um deslumbramento de mulher que, possuidora do gosto instintivo dos atavios e da beleza, deles tomava consciência pela primeira vez.
E isto? perguntou o marquês de Andijos. A vossa tez também se recusará a compartilhar-lhe o fulgor?
Abriu um estojo chato e, no quarto cheio de criadas, lacaios e criados da quinta, soou um grito a que se seguiram murmúrios de admiração.
Em cima de cetim branco refulgia uma fieira tripla de pérolas de um brilho muito puro, um pouco dourado. Nada conviria melhor a uma jovem noiva. Um par de brincos completava o conjunto, assim como duas fieiras de pérolas mais pequeninas, que Angélique tomou primeiro por pulseiras.
São guarnições para o cabelo explicou o marquês de Andijos, que, apesar da sua pança e dos seus modos de guerreiro, parecia muito em dia no que respeitava aos matizes da elegância. Levantareis assim a cabeleira... Para ser franco, não sei explicar-vos como...
Eu penteio-vos, minha senhora interveio uma criada alta e forte, aproximando-se.
Embora mais nova, parecia-se extraordinariamente com a ama Fantine Lozier. Tisnara-lhes a pele a mesma chama sarracena, oriunda de longínquas invasões. Uma e outra trocavam já olhares inimigos, com olhos igualmente escuros.
É Margarida, a irmã de leite do conde de Peyrac. Esta mulher serviu as grandes damas de Tolosa e esteve muito tempo com os seus amos em Paris. Doravante, será a vossa criada de quarto.
Com habilidade, a criada levantou a pesada cabeleira dourada e aprisionou-a nos entrelaçados de pérolas. Depois, com mão lesta e sem cerimónias, tirou das orelhas de Angélique as modestas pedrinhas que o barão de Sancé oferecera à filha, na sua primeira comunhão, e substituiu-as pelas sumptuosas jóias. Por fim, foi a vez do colar.
Ah, seria necessário um peito mais descoberto! exclamou o barãozinho Cerbalaud, cujos olhos, negros como amoras silvestres depois de uma chuvada, procuravam adivinhar as formas graciosas da jovem.
O marquês de Andijos deu-lhe, sem cerimónias, uma bengalada na cabeça.
Um pajem correu com um espelho.
Angélique admirou-se, no seu novo fulgor. Tudo nela parecia brilhar, até mesmo a sua pele lisa, levemente rosada nas faces. Encheu-a um prazer súbito, que lhe subiu aos lábios e se exprimiu num sorriso encantador.
”Sou bela”, pensou.
Mas de repente toldou-se tudo e das profundezas do espelho pareceram-lhe subir horríveis palavras de troça:
”Coxo! Coxo! É mais feio do que o Diabo! Ah, que belo esposo tereis, Menina de Sancé!
O casamento por procuração efectuou-se oito dias depois e os festejos duraram três dias. Dançou-se em todas as aldeias circundantes e na noite do casamento estalaram foguetes em Monteloup.
Do pátio do castelo aos prados vizinhos havia grandes mesas com picheis de vinho e sidra e toda a espécie de carnes e frutos, que os camponeses iam comer uns atrás dos outros, empanturrando-se e divertindo-se à custa daqueles gascões e daqueles tolosanos barulhentos, cujos adufes, alaúdes, violinos e vozes do rouxinol pareciam troçar do menestrel da aldeia e do tocador de avena.
Na última noite antes da partida da desposada para a distante terra do Linguadoque houve um grande jantar no pátio do castelo, para o qual foram convidados os notáveis e os castelões das redondezas. O Sr. Molines não faltou, com a mulher e a filha.
No grande quarto onde tantas vezes, de noite, Angélique ouvira ranger os enormes cata-ventos do velho castelo, a ama ajudou-a a vestir-se. Depois de lhe ter escovado com amor a soberba cabeleira, apresentou-lhe o corpete turquesa e prendeu-lhe a faixa enfeitada de jóias.
Como és bonita, ah, como és bonita, minha pequenina! suspirou, comovida. O teu peito é tão firme que não precisaria de ser amparado por todos estes espartilhos. Tem cuidado, para que os plastrões não te esmaguem os seios. Deixa-os bem livres.
Não estou muito decotada, ama?
Uma grande dama deve mostrar os seios. Como és bonita! E para quem, meu Deus! lamentou-se a ama, em voz sufocada.
Angélique viu o rosto da velha poitevina todo sulcado de lágrimas.
Não chores, ama, assim tiras-me a coragem.
E bem precisarás dela, minha filha!... Inclina a cabeça, para que te feche o colar. As pérolas nos cabelos, deixaremos que a Margot as ponha, pois eu não percebo nada dessas niquices... Ah, minha pequenina, que grande desgosto! Quando penso que será aquela grande pileca, que tresanda a alho e ao Diabo a cem metros de distância, que te lavará e rapará na noite de núpcias! Ai, que desgosto!,
Ajoelhou-se, para compor, no chão, a cauda da capa, e Angélique ouviu-a soluçar.
Nunca imaginara que a ama pudesse sentir tamanho desespero, que lhe decuplicou a ansiedade que lhe apunhalava o coração.
Sempre de joelhos, Fantine Lozier murmurou:
Perdoa, minha filha, não te ter sabido defender, eu que te amamentei com o meu leite. Mas há muitos dias que não consigo pregar olho por ouvir falar desse homem.
Que dizem dele?
A ama levantou-se e recuperou o seu olhar negro e fixo de profetisa.
Falam de ouro! Que tem o castelo cheio de ouro!
Não é pecado ter ouro, ama. Repara em todos os presentes que me mandou. Estou encantada.
Não te iludas, minha filha. Esse ouro é maldito, criou-o com as suas retortas e os seus filtros. Um dos pajens, o Henrico, aquele que toca tão bem o tamboril, disse-me que no seu palácio de Tolosa, um palácio vermelho como o sangue, há uma construção onde ninguém pode entrar. A entrada é guardada por um homem completa mente negro, tão negro como o fundo dos meus tachos. Um dia em que o guarda se ausentara, Henrico viu, através da porta entreaberta, uma grande sala cheia de balões de vidro, de retortas e de tubos. E tudo aquilo assobiava e fervia! De repente, houve uma chama e uma espécie de trovão e Henrico fugiu.
Esse garoto é imaginativo, como todas as pessoas do Sul.
Havia na sua voz um tom de verdade e de medo que não engana. Ah, esse conde de Peyrac é um homem que adquiriu poder e riqueza por aliança com o Mafarrico! Um Gil de Retz, é o que ele é, um Gil de Retz que nem sequer é poitevino!
Não digas tolices admoestou Angélique, duramente. Nunca ninguém disse que ele comia criancinhas...
Atrai as mulheres com encantamentos estranhos segredou a ama. Há orgias no seu palácio. Parece que o arcebispo de Tolosa o denunciou publicamente, no púlpito, que denunciou o escândalo e o pacto com o Demónio. E o pagão do criado que me contou estas coisas, ontem, na minha cozinha, a rir como um doido, disse que, depois do sermão, o conde de Peyrac ordenou aos seus que sovassem os pajens e os carregadores do arcebispo, e até na catedral houve batalhas! Achas que se veriam semelhantes abominações aqui, na nossa terra? E todo esse ouro que ele tem, aonde o vai buscar? Os pais só lhe deixaram dívidas e terras hipotecadas. É um senhor que não faz corte ao rei nem aos grandes. Diz-se que, quando o Sr. de Orleães, que é governador do Linguadoque, foi a Tolosa, o conde se recusou a dobrar o joelho diante dele, a pretexto de que isso o fatigava, e, como o príncipe lhe observasse, sem se zangar, que poderia obter-lhe grandes benefícios em altos lugares, o conde de Peyrac respondeu que...
A velha Fantine interrompeu-se para colocar alguns alfinetes aqui e ali, na saia, já de si muito justa.
Respondeu-lhe o quê?
Que... o facto de ter o braço comprido não lhe tornaria a perna menos curta. É de uma insolência!...
Angélique admirava-se ao espelhinho redondo da malinha de viagem e alisava com o dedo as sobrancelhas cuidadosamente depiladas por Margarida.
É então verdade o que dizem, que é coxo? perguntou, esforçando-se por dar à voz um tom de indiferença.
É verdade, é, minha pequenina. Ai, Jesus, e tu tão linda!
Cala-te, ama. Cansas-me com os teus suspiros. Vai chamar a Margarida, para me pentear, e não voltes a falar dessa maneira do conde de Peyrac. Não te esqueças de que, doravante, é o meu marido.
Caída a noite, tinham acendido tochas no pátio. Os músicos, agrupados no pórtico numa pequena orquestra composta por duas sanfonas, um alaúde, uma flauta e um oboé, acompanhavam em surdina as conversas ruidosas. Angélique pediu, de repente, que fossem buscar o menestrel, que tocava para os aldeões no grande prado vizinho do castelo. O seu ouvido não estava habituado àquela música um pouco afectada, feita para a corte e para as reuniões de fidalgos todos enfeitados de rendas. Queria ouvir ainda uma vez as doces gaitas-de-foles do Poitou e o som atrevido da avena, acompanhando o bater surdo dos tamancos dos camponeses.
O céu estava estrelado, mas cobria-o uma leve neblina que envolvia a Lua numa auréola dourada. Os pratos e os bons vinhos desfilavam sem cessar. Colocaram diante de Angélique um cesto de pãezinhos redondos, ainda quentes e ela levantou a cabeça para ver quem lho apresentava. Viu um homem forte, com um daqueles fatos de bom tecido cinzentoclaro usados pelos moleiros. Como a farinha lhe saía barata, tinha os cabelos quase tão abundantemente polvilhados como os dos senhores dos castelos, e a sua gola e os seus canhões eram de linho fino.
É Valentim, o filho do moleiro, que vem prestar a sua homenagem à noiva! exclamou o barão Armando.
Valentim! Ainda não te tinha visto desde o meu regresso do convento observou Angélique, sorrindo. Continuas a ir aos canais, com a tua barca, colher angélicas para os monges de Nieul?
O jovem inclinou-se profundamente, sem responder. Esperou que ela se servisse e depois, pegando no cesto, foi-o passando de pessoa em pessoa, acabando por se perder na multidão e na noite.
”Se toda esta gente se calasse, a esta hora ouviria os sapos dos pântanos”, pensou Angélique. ”Se voltar daqui a anos, talvez já não os ouça, porque as águas terão recuado, em virtude das obras.
Não podeis deixar de provar isto disse ao seu ouvido a voz do marquês de Andijos.
Apresentava-lhe um prato de aspecto pouco atraente, mas de odor muito delicado.
É um guisado de trufas verdes, chegadas muito frescas de Périgord. Sabei que a trufa é divinal e mágica. Não há prato mais solicitado para preparar o corpo de uma jovem desposada para receber as homenagens do marido. A trufa torna as entranhas quentes, o sangue vivo e a pele facilmente sensível às carícias.
Não vejo necessidade de as comer hoje respondeu friamente Angélique, afastando a bandeja de prata, dado que só me encontrarei com o meu marido daqui a algumas semanas...
Mas deveis preparar-vos para isso, minha senhora. Acreditai, a trufa é a melhor amiga do himeneu. Se adoptardes o seu regime delicioso, sereis toda ternura na vossa noite de núpcias.
Na minha terra redarguiu Angélique, olhando-o de frente e sorrindo um pouco, antes do Natal empanturram-se os gansos de funcho, para que a sua carne seja mais saborosa na noite em que os comemos assados!
O marquês, já meio alegrote, desatou a rir.
Ah, quem me dera ser aquele que comerá a gansinha que sois! exclamou, inclinando-se tanto para ela que o bigode lhe tocou na face. Maldito seja acrescentou, endireitando-se e levando a mão ao coração se consentir que o arrebatamento me leve a pronunciar outras palavras inconvenientes! Ai de mim, porém, pois não sou inteiramente culpado: fui enganado! Quando o meu amigo Joffrey de Peyrac me pediu que desempenhasse junto de vós o papel e as formalidades de marido, sem ter os direitos deliciosos desse estado, fi-lo jurar que éreis corcunda e vesga, mas verifico que, mais uma vez, ele não me poupou tormentos. Não quereis realmente estas trufas?
Não, obrigada.
Comê-las-ei eu então resignou-se o marquês, com uma careta cómica, que, noutras circunstâncias, teria feito rir a jovem, ainda que seja um falso marido e, para mais, celibatário. Mas espero que a natureza me seja propícia e conduza ao meu encontro, nesta noite de festa, algumas damas ou meninas menos cruéis do que vós.
Angélique fez um esforço para sorrir de tais tolices. As tochas e os archotes produziam um calor insuportável. Não soprava uma aragem. Cantava-se e bebia-se, no meio do odor pesado dos vinhos e dos molhos.
Angélique passou um dedo pelas têmporas e encontrou-as húmidas.
”Que tenho eu? Parece-me que vou rebentar de repente, gritar-lhes palavras de ódio... Porquê? O meu pai sente-se feliz. Casa-me quase principescamente. As tias rejubilam. O conde de Peyrac enviou-lhes grandes colares de pedras dos Pirenéus e toda a espécie de bugigangas. Os meus irmãos e as minhas irmãs receberão uma boa educação. E eu, de que me queixo? No convento precaveram-nos sempre contra os devaneios romanescos. O primeiro objectivo de uma mulher nobre não deve ser um marido rico e com bom título?”Acometeu-a uma tremura semelhante à dos cavalos aguados, embora não estivesse nada cansada. Era uma reacção nervosa, uma revolta física de todo o seu ser, que, no momento mais inesperado, cedia.
Será medo? Consequência mais uma vez dessas histórias da ama, que gosta de ver o Diabo em tudo... Porque hei-de acreditar nela? Foi sempre uma exagerada. Nem o Molines nem o meu pai me ocultaram que o conde de Peyrac era um sábio... mas daí a imaginar não sei que orgias demoníacas vai a sua distância. Se a ama acreditasse verdadeiramente que eu ia cair nas mãos de tal ser, não me deixaria partir. Não, não tenho medo disso. Não acredito em tais coisas.”
Junto dela, o marquês de Andijos, de guardanapo ao peito, erguia com uma das mãos uma trufa sumarenta e com a outra o copo de bordéus. Ao mesmo tempo declamava em voz levemente embotada, em que o seu sotaque desaparecia, de quando em quando, num soluço de repleção:
Ó trufa divina, benfeitora dos amantes, insufla nas minhas veias o alegre ímpeto do amor! Acariciarei a minha amiga até ao nascer do dia!...
”É isso”, pensou de súbito Angélique, ”é isso que recuso, que jamais poderei suportar.”
Visionou o fidalgo horrendo e disforme, do qual ia ser a presa abandonada. No silêncio das noites do longínquo Linguadoque, o homem desconhecido teria todos os direitos sobre ela. Poderia gritar, clamar por socorro, suplicar... Ninguém apareceria. Ele comprara-a; tinham-na vendido. E seria assim até ao fim da sua vida!
”Eis o que todos eles pensam e não dizem, o que talvez só se murmure nas cozinhas, entre os criados. Eis porque leio uma espécie de piedade por mim nos olhos dos músicos do Sul, do bonito Henrico de cabelos frisados que toca tão bem o tamboril... Mas a hipocrisia é maior do que a piedade. Uma só pessoa sacrificada e tantas pessoas contentes! O ouro e o vinho correm a jorros. Terá alguma importância o que se passar entre o meu senhor e mim? Ah, juro, nunca me porá as mãos em cima!...”Levantou-se, pois estava possuída por uma cólera terrível e o esforço que fazia para se dominar quase a deixava doente. No meio da confusão não deram pela sua partida.
Ao ver o mordomo que o pai contratara em Niort, um tal Clemente Tonnel, perguntou-lhe onde estava o criado Nicolau.
Está nas granjas a encher garrafas, minha senhora.
A jovem afastou-se como uma autómata. Não sabia porque procurava Nicolau, mas queria vê-lo. Desde a cena no bosquezinho, Nicolau nunca mais levantara os olhos para ela; limitava-se a desempenhar o seu trabalho de lacaio com uma certa consciência mesclada de desinteresse. Encontrou-o na adega, a despejar o vinho dos barris nas infusas e nos garrafões que lhe levavam incessantemente os criaditos e os pajens. Envergava uma libré amarelo-ranúnculo de bandas agaloadas, que o Sr. de Sancé alugara para a circunstância. Longe de parecer desajeitado naquela vestimenta, o jovem camponês tinha até uma certa compostura. Endireitou-se, ao ver Angélique, e fez uma vénia profunda, no estilo que o mordomo Clemente ensinara durante quarenta e oito horas a todo o pessoal da casa.
Procurava-te, Nicolau.
Sr.a Condessa...
Ela olhou para os moços que esperavam, de picheis na mão, e ordenou:
Manda um rapaz substituir-te durante alguns instantes e segue-me.
Ao sair, passou de novo a mão pelas têmporas. Não, não sabia o que ia fazer, mas a exaltação apoderava-se dela, invadia-a, de mistura com o odor capitoso das garrafas de vinho espalhadas pelo chão. Empurrou a porta de uma granja vizinha, onde o cheiro forte do vinho continuava a imperar, pois tinham lá enchido garrafas durante uma parte da noite. Agora os barris estavam vazios e a granja deserta, escura e quente.
Angélica apoiou as mãos no peito forte de Nicolau e, de súbito, encostou-se a ele, sacudida por soluços secos.
Nicolau, meu companheiro pediu, a gemer, diz-me que não é verdade! Que não me vão levar, que não me vão entregar a ele. Tenho medo, Nicolau. Aperta-me, aperta-me com força!
Sr.a Condessa...
Cala-te! gritou-lhe. Não sejas mau, tu também.
E acrescentou em voz rouca e ofegante, que mal reconheceu:
Aperta-me, aperta-me com força! É tudo quanto te peço. Nicolau pareceu hesitar, mas depois os seus braços nodosos de trabalhador enlaçaram-lhe a cintura delgada.
A granja estava às escuras. O calor da palha amontoada emanava uma espécie de tensão fremente, semelhante à da tempestade. Louca, ébria, Angélique rolava a cabeça contra o ombro de Nicolau. Sentia-se de novo envolvida pelo desejo selvagem do homem, mas desta vez abandonava-se-lhe.
Ah, tu és bom! murmurou. Tu és meu amigo. Desejaria ser amada por ti... uma só vez. Quero ser amada por um homem jovem e belo, ao menos uma vez. Compreendes?
Passou os braços pela nuca maciça do rapaz e obrigou-o a inclinar a cara para ela. Nicolau bebera e o seu hálito tinha o aroma do vinho escaldante.
Marquesa dos Anjos... suspirou Nicolau.
Ama-me segredou Angélique, de lábios nos lábios dele. Uma só vez. Depois partirei... Não queres? Já me não amas?
Ele respondeu-lhe com um rugido surdo e, erguendo-a nos braços, cambaleou na escuridão e foi cair com ela no monte de palha.
Angélique sentia-se, ao mesmo tempo, estranhamente lúcida e como que desprendida de todas as contingências humanas. Acabava de penetrar noutro mundo, flutuava acima do que fora a sua vida até então. Aturdida pela escuridão total da granja, pelo calor e pelo cheiro ali aprisionados e pela novidade daquelas carícias simultaneamente brutais e hábeis, esforçava-se sobretudo por dominar o pudor, que a contraía, mal-grado seu. Desejava com toda a sua força que tudo acabasse depressa, pois podiam surpreendê-los. Com os dentes cerrados, repetia a si mesma que não seria o outro o primeiro a tê-la. Vingar-se-ia. Vingar-se-ia assim, seria essa a resposta que daria ao ouro, que julgava tudo poder comprar.
Atenta às ordens do homem, cuja respiração se acelerava, submetia-se-lhe, aceitava tudo dele, abria-se docilmente sob aquele corpo que se tornava mais pesado...
Brilhou uma luz brusca na granja e à porta soou um grito horrorizado de mulher. Nicolau afastara-se para o lado, de um salto.
Angélique viu uma forma maciça avançar para o criado, reconheceu o velho Guilherme e agarrou-se a ele com toda a sua força. Lesto, Nicolau alcançara já as vigas do tecto e abrira uma lucarna. Ouviram-no saltar para o exterior e fugir.
À porta, a mulher continuava a soltar urros. Era a tia Joana, com um frasco numa das mãos e a outra pousada no amplo seio palpitante.
Angélique deixou Guilherme, correu para ela e cravou-lhe as unhas no braço, como garras.
Calai-vos ou não, velha louca? Quereis que rebente um escândalo, que o marquês de Andijos bata em retirada com presentes e promessas? Lá se iam as vossas pedras dos Pirenéus e as vossas bugigangas. Calai-vos ou enfio-vos o punho pela velha boca desdentada!
Das granjas vizinhas acorreram camponeses e criados curiosos.
Angélique viu aproximar-se a ama e depois o pai, que, apesar das copiosas libações e de um passo pouco seguro, continuava a velar, como bom anfitrião, pelo bom andamento do festim.
Sois vós, Joana, que soltais esses gritos de dama a quem o Diabo faz cócegas?
Cócegas!repetiu a solteirona, perdendo o fôlego. Ah, Armando, morro...
E porquê, minha querida?
Vim aqui buscar um pouco de vinho e, nesta granja, vi... vi...
A tia Joana viu um bicho interrompeu Angélique. Não sabe se era uma cobra se uma fuinha, mas, francamente, minha tia, não há motivo para vos assustardes assim. O melhor será voltar para a mesa, o vinho irá lá ter.
Pois claro, pois claro apoiou o barão em voz pastosa. Tentastes prestar serviço, coisa rara em vós, Joana, e incomodastes meio mundo.
”Ela não tentou prestar serviço”, pensou Angélique. ”Ela espiou-me e seguiu-me. Desde que vive no castelo, sentada diante da sua tapeçaria como uma aranha no meio da teia, aprendeu a conhecer-nos a todos melhor do que nós próprios. Pressente-nos, adivinha-nos. Seguiu-me e pediu ao velho Guilherme que lhe segurasse na lanterna.”
Os seus dedos continuavam a enterrar-se no antebraço gelatinoso da velha gorda.
Haveis-me compreendido bem? perguntou, baixinho. Nem uma palavra seja a quem for antes da minha partida... caso contrário, juro-vo-lo, enveneno-vos com umas ervas especiais que conheço!
A tia Joana soltou um derradeiro cacarejo e os seus olhos reviraram-se. Mas a alusão ao colar, mais ainda do que a ameaça de morte, dominara-a. De lábios franzidos, seguiu silenciosamente o irmão.
Mão rude deteve Angélique, que também ia a sair. Sem suavidade, o velho Guilherme tirou-lhe dos cabelos e do vestido os pedaços de palha que lá se tinham agarrado. Angélique ergueu os olhos para ele e tentou adivinhar a expressão do seu rosto barbudo.
Guilherme, desejaria que compreendesses... murmurou - Não tenho necessidade de compreender, minha senhora respondeu o velho, em alemão, com uma altivez que foi como uma bofetada. O que vi basta-me.
Estendeu o punho, na escuridão, rosnando uma injúria. Angélique endireitou a cabeça e voltou para o local do festim. Ao sentar-se, procurou com o olhar o marquês de Andijos e encontrou-o caído debaixo do banco, a dormir a sono solto. A mesa assemelhava-se a uma prateleira de círios de igreja, quando a última cera acabava de se derreter. Uma parte dos convidados tinham partido ou adormecido. Mas nos prados ainda se dançava.
Hirta, Angélique continuou a presidir, sem um sorriso, ao seu jantar de núpcias. A irritação daquele acto inacabado, daquela vingança que prometera a si mesma e não pudera cumprir, fazia-a sofrer até à ponta das unhas. A cólera e a vergonha disputavam-lhe o coração. Perdera o velho Guilherme. Monteloup repelia-a. Nada mais lhe restava do que reunir-se ao esposo coxo.
Chegada a Tolosa. O marido é o Grande Coxo do Linguadoque
No dia seguinte, quatro carruagens e duas pesadas viaturas meteram pela estrada de Niort. Angélique quase não podia acreditar que todos aqueles cavalos e postilhões, aqueles gritos e aquele gemer de eixos, que tudo aquilo tinha lugar em sua honra. Tanta poeira levantada por causa de Menina de Sancé, que nunca conhecera outra escolta que não fosse o velho mercenário, armado com o seu pique. Era incrível!
A criadagem e os músicos comprimiam-se nos carros grandes, com a bagagem. Ao sol, entre os pomares floridos, viam passar aquele cortejo de rostos morenos. Risos, canções e dedilhar de guitarras deixavam atrás deles, no cheiro dos excrementos dos cavalos, um sabor a despreocupação. Os filhos do Sul regressavam à sua terra escaldante, olorosa a alho e a vinho.
O mordomo Clemente Tonnel era o único que, no meio da alegre companhia, afectava um ar grave. Contratado como extra para a semana da boda, pedira que tivessem a bondade de o conduzir a Niort, o que evitava a necessidade de lhe pagar uma escolta. No entanto, logo na primeira noite de viagem, o mordomo procurou Angélique e ofereceu-se para ficar ao seu serviço, quer como mordomo, quer como criado de quarto. Explicou que servira em Paris em casa de alguns nobres, cujos nomes indicou. Contudo, ao regressar de uma viagem que tivera de fazer a Niort, de onde era natural, a fim de regularizar a herança do pai, que era magarefe, encontrara o seu último lugar ocupado por um criado intrigante. Desde então procurava uma casa honesta e de alguma categoria para voltar a exercer as suas funções.
De aspecto discreto e competente, Clemente conquistara as boas graças de Margarida, a qual afirmou que um novo criado de tanta categoria seria recebido de muito bom grado no palácio de Tolosa. O Sr. Conde estava rodeado de gente muito diversa e de todas as cores, que não faziam um serviço conveniente. Cada qual preguiçava ao sol, e o mais indolente de todos era, sem dúvida, Afonso, o intendente encarregado de os dirigir.
Angélique contratou, pois, o mordomo Clemente. Intimidava-a, sem que soubesse porquê, mas estava-lhe grata por falar como toda a gente, isto é, sem aquele insuportável sotaque que começava a exasperá-la. Enfim, seria aquele homem frio, acomodatício, quase excessivamente servil no seu respeito e nas suas atenções, seria aquele criado ainda ontem desconhecido que representaria para Angélique a sua província.
Depois de Niort, a capital dos pântanos, ter ficado para trás, com o seu pesado torreão negro como as trevas, a equipagem da Sr.a de Peyrac avançou, veloz, para a luz. Sem quase dar por isso, Angélique encontrou-se perante uma paisagem inusitada, sem sombras, sulcada em todos os sentidos por vinhedos. Passaram perto de Bordéus. Depois o milho verde alternou com a vinha. Nas imediações do Béarn, os viajantes foram recebidos no castelo do Sr. Antonino de Caumont, marquês de Péguilin, duque de Lauzun. Angélique observou com um espanto mesclado de divertimento aquele homenzinho cuja graça e cujo espírito faziam dele, segundo afirmava Andijos, ”o rapaz mais adulado da corte”. O próprio rei, que pretendia ser grave, apesar de adolescente, não resistia às saídas de Péguilin, que o obrigavam a conter dificilmente o riso em pleno conselho. Naquela altura, Péguilin encontrava-se nas suas terras, para onde o tinham mandado como castigo de qualquer insolência que tivera como alvo o Sr. Mazarino e ultrapassara as marcas. Mas isso não parecia entristecê-lo e a divertida personagem contava mil anedotas, como se não fosse nada com ele.
Angélique, pouco habituada ao calão da galanteria então em voga nas cortes, não compreendeu metade do que ele disse. Mas a paragem foi alegre e viva e serenou-a. Extasiado com a sua beleza, o duque de Lausun cumprimentou-a em versos improvisados.
Ah, meus amigos, pergunto a mim mesmo se a Voz de Ouro do reino não vai perder a sua nota mais alta! exclamou.
Foi nessa altura que Angélique ouviu falar pela primeira vez da Voz de Ouro do reino.
É o maior cantor de Tolosa explicaram-lhe. Desde os grandes trovadores da Idade Média que o Linguadoque não conhecia uma voz semelhante! Ouvi-la-eis, minha senhora, e não podereis deixar de sucumbir ao seu encanto.
Angélique esforçava-se obstinadamente por não decepcionar os seus anfitriões com um rosto fechado. Toda aquela gente era simpática, por vezes com banalidades mas também com gentileza. O ar sobreaquecido, os telhados de telhas e as folhas dos plátanos tinham a cor do vinho branco, que emprestava a sua leveza ao espírito das pessoas.
Mas à medida que se aproximavam do fim da viagem, Angélique tinha a impressão de que o seu coração se tornava mais pesado.
Na véspera da entrada em Tolosa ficaram numa das residências do conde de Peyrac, um castelo de pedra clara e estilo Renascença. Angélique saboreou o conforto de uma das salas, onde havia uma piscina de mosaicos. A robusta Margarida afadigou-se junto dela, receosa de que a poeira e o calor da estrada tivessem escurecido ainda mais a tez da ama, cujo quente tom mate secretamente desaprovava.
Cobria-a de unguentos diversos e depois ordenou-lhe que se es tendesse num leito de repouso, enquanto a massajava com muita energia e depois a depilava por completo. Angélique não se sentiu chocada com aquele costume, que outrora, quando havia estabelecimentos de banhos romanos em todas as cidades, era praticado pelo próprio povo. Agora só as jovens da sociedade tinham de se lhe submeter. Era considerado muito impróprio uma grande dama conservar no corpo a mínima penugem supérflua. No entanto, enquanto se afadigavam assim a tornar-lhe o corpo perfeito, Angélique não podia deixar de sentir uma espécie de horror.
”Ele não me tocará”, repetia a si mesma. ”Preferirei atirar-me pela janela.”
Mas nada modificava a corrida louca, o turbilhão no qual era arrastada.
Na manhã seguinte, angustiada de apreensão, subiu pela última vez para a carruagem, que em poucas horas a levaria a Tolosa. O marquês de Andijos instalou-se a seu lado. Alegre, não parava de cantarolar e tagarelar.
Mas ela não o ouvia. Havia alguns minutos que via o postilhão conter as parelhas. Um pouco à frente da carruagem, uma multidão de pessoas e de cavaleiros barravam a estrada. Quando a carruagem se imobilizou, ouviram-se melhor os cantos e os gritos que acompanhavam o bater ritmado dos tambores.
Por São Severino! exclamou o marquês, levantando-se de um pulo. Creio que é o vosso esposo que vem ao nosso encontro.
Já!
Angélique sentiu-se empalidecer. Os pajens abriam as portas e ela teve de descer para a areia do caminho, sob o sol implacável. O céu estava de um azul-carregado e dos campos de milho amarelecido, de ambos os lados do caminho, subia uma espécie de bafo escaldante. Uma farândola colorida avançava. Envergando estranhos fatos aos losangos vermelhos e verdes, um magote de crianças saltava, dava cambalhotas espantosas e ia chocar com os cavalos dos cavaleiros, os quais também ostentavam librés extravagantes, de cetim cor-de-rosa e com plumas brancas.
Os príncipes dos amores! Os comediantes de Itália! exclamou o marquês, exultante, abrindo os braços num gesto entusiástico, perigoso para os seus vizinhos. Ah, Tolosa, Tolosa!...
A multidão abriu alas e apareceu um grande vulto desengonçado e cambaleante, vestido de veludo purpúreo e apoiado a uma bengala de ébano.
À medida que essa personagem avançava, coxeando, distinguia-se no enquadramento de uma vasta peruca negra um rosto tão desagradável à vista como o conjunto da sua pessoa a andar. Duas cicatrizes profundas marcavam-lhe a têmpora e a face esquerda e semicerravam-lhe a pálpebra. Os lábios eram fortes e a cara inteiramente rapada, o que, por não ser moda, aumentava o aspecto insólido do curioso espantalho.
”Não é ele!”, suplicou Angélique. ”Meu Deus, fazei que não seja ele!”
O vosso esposo, o conde de Peyrac, minha senhora anunciou junto dela, o marquês de Andijos.
Angélique mergulhou na reverência que lhe tinham ensinado. O seu espírito perturbado registava pormenores ridículos: o laço de diamantes dos sapatos do conde e também o facto de um deles ter o salto um pouco mais alto do que o outro, para atenuar a claudicação; as meias plissadas com fitas de seda trabalhadas; o fato sumptuoso; a espada, e a enorme gola de renda branca.
Falaram-lhe e ela respondeu não soube bem o quê. O rufar dos tamborins, de mistura com o som forte das trombetas, aturdiam-na.
Quando retomava o seu lugar na carruagem, caiu-lhe nos joelhos um grande feixe de ramos de rosas e violetas.
As flores, ou ”alegrias principais”, reinam em Tolosa disse uma voz.
Angélique apercebeu-se de que já não era o marquês de Andijos que ia ao seu lado, mas sim o outro. Inclinou-se para as flores, a fim de não ver o rosto hediondo.
Pouco depois a cidade apareceu, eriçada de torres e-”campanários vermelhos. O cortejo embrenhou-se por ruelas estreitas, por profundos corredores de sombra onde estagnava uma luz purpúrea.
No palácio do conde de Peyrac vestiram rapidamente a Angélique um magnífico vestido de veludo branco, com enfeites de cetim da mesma cor. As presilhas e os laços eram adornados de diamantes. Enquanto a vestiam, as aias serviam-lhe bebidas geladas, porque ela morria de sede. Ao meio-dia, sob um grande repicar de sinos, o cortejo partiu para a catedral, onde o arcebispo esperava os noivos no adro.
Dada a bênção, Angélique, segundo o costume dos príncipes, desceu sozinha a nave. O claudicante nobre precedia-a, e a alta figura vermelha e desengonçada pareceu-lhe de súbito, sob aquelas abóbadas ensombrecidas pelo incenso, tão extraordinária como a do próprio Diabo. No exterior, dir-se-ia que toda a cidade estava em festa. Angélique não conseguia conciliar tanto alvoroço com o acontecimento pessoal que representava o seu casamento com o conde de Peyrac. Inconscientemente, procurava noutros lados o espectáculo que inspirava à turba todos aqueles sorrisos abertos e todas aquelas cabriolas alegres. Mas os olhares viravam-se para ela. Era diante dela que se inclinavam senhores de olhar de fogo e damas sumptuosamente vestidas.
A fim de regressarem da catedral ao palácio, os recém-casados subiram para dois cavalos magnificamente caparazonados. O caminho ao longo das margens do Carona estava juncado de flores e os cavaleiros vestidos de cor-de-rosa, a que o marquês de Andijos chamara ”príncipes dos amores”, continuavam a enchê-lo de pétalas de rosa, às cestadas.
O rio dourado cintilava, à esquerda, e marinheiros soltavam grandes vivas nas suas barcas.
Angélique apercebeu-se de que começara a sorrir, um pouco maquinalmente. O profundo azul do céu e o perfume das flores esmagadas inebriavam-na. De súbito teve de fazer um esforço para conter um grito: escoltavam-na pajenzinhos que supusera mascarados, mas que acabava de compreender terem realmente a pele negra. Era a primeira vez que via negros.
Decididamente, tudo quanto ali vivia tinha algo de irreal. Sentia-se estranhamente só no seio de um sonho ambíguo, do qual talvez tentasse lembrar-se ao despertar.
E a seu lado continuava a ver, ao sol, o perfil desfigurado do homem a que chamavam seu marido e que aclamavam.
Moedas de ouro tilintavam nas pedras do caminho. Os pajens atiravam-nas à multidão e as pessoas batiam-se na poeira para as apanhar.
Nos jardins do palácio estavam dispostas, à sombra, compridas mesas brancas. Corria vinho de fontes, diante das portas, e as pessoas da rua podiam beber aí. Os nobres e os burgueses importantes tinham acesso ao interior.
Sentada entre o arcebispo e o homem de vermelho, Angélique, incapaz de comer, viu desfilar um número incalculável de pratos: terrinas de perdizes, filetes de pato, romãs vermelhas como sangue, codornizes na frigideira, trutas, láparos, saladas, tripas de carneiro, foie gras... As sobremesas, massa frita guarnecida com filhós de pêssego, doces de todas as espécies e pastéis de mel, eram inúmeras as pirâmides de frutos tão altas como os negrinhos que as transportavam. Sucediam-se os vinhos de todos os matizes, do vermelho mais escuro ao dourado mais claro.
Angélique viu junto do seu prato uma espécie de forquilhazinha de ouro. Olhando à volta, reparou que a maioria das pessoas a utilizavam para espetar a carne e levá-la à boca. Tentou imitá-las, mas, após diversas tentativas infrutíferas, preferiu voltar à sua colher, que lhe tinham deixado ao ver que não se sabia servir do curioso instrumentozinho a que todos chamavam ”garfo”. O ridículo incidente aumentou a sua confusão.
Não há nada mais difícil de suportar do que os festejos em que o coração não participa. Insensível na sua apreensão e no seu rancor, Angélique sentia-se irritada com tanto barulho e tanta abundância. Naturalmente orgulhosa, porém, não deixava transparecer os seus sentimentos, sorria a todos e para todos encontrava uma palavra amável. A disciplina de ferro do convento das Ursulinas permitia-lhe manter-se direita e com uma postura soberba, apesar da fadiga. Sentia-se apenas incapaz de se voltar para o conde de Peyrac e, consciente do que tal atitude tinha de estranho, dedicava toda a sua atenção ao seu outro vizinho, o arcebispo. Este era um homem muito belo, em toda a pujança dos quarenta anos. Tinha muita unção e graça mundana e olhos azuis muito frios.
Era o único que não parecia compartilhar da alegria geral.
Que profusão! Que profusão! suspirava, olhando em seu redor. Quando penso em todos os pobres que se amontoam diariamente diante das portas do arcebispado, nos doentes sem cuidados e nas crianças das aldeias heréticas que não podemos arrancar às suas crenças por falta de dinheiro, o meu coração dilacera-se. Sois dedicada às boas obras, minha filha?
Saí há pouco do convento, monsenhor. Mas terei gosto em me consagrar à minha paróquia, sob a vossa égide.
O arcebispo fitou nela o olhar lúcido e sorriu levemente, antes de endireitar de novo o queixo um pouco gordo.
Agradeço-vos a vossa docilidade, minha filha, mas sei quanto a vida de uma jovem dona de casa está cheia de novidades que exigem toda a sua atenção. Não vos furtarei a elas enquanto não manifestardes esse desejo. A maior obra de uma mulher, aquela à qual deve dedicar todos os seus cuidados, não será, antes de mais nada, a influência que tem a obrigação de exercer sobre o espírito do marido.
Inclinou-se para ela e os cabuchões da sua cruz episcopal emitiram uma luz malva.
Uma mulher pode tudo insistiu, mas, aqui entre nós, minha senhora, escolhestes um marido muito curioso...
”Escolhi...”, pensou Angélique, com ironia. ”O meu pai terá visto uma única vez este hediondo palhaço? Duvido. O meu pai devotava-me amor sincero. Por nada do mundo desejaria tornar-me infeliz. Mas os seus olhos desejavam-me rica e eu desejava-me amada... A Irmã Santa Ann repetir-me-ia, se soubesse, que não devemos ser romanescas... Este arcebispo parece de bom trato. Terá sido com a gente da sua escolta que os pajens do conde de Peyrac se bateram na catedral?...”Entretanto, o calor sufocante diminuía com a aproximação da noite. O baile ia começar. Angélique suspirou.
”Dançarei toda a noite”, pensou, ”mas por nada deste mundo aceitarei ficar um instante a sós com ele...”Nervosamente, lançou um olhar ao marido. Cada vez que o olhava, a visão daquele rosto retalhado, onde brilhavam pupilas negras como o carvão, causava-lhe um grande mal-estar. A pálpebra esquerda, semifechada pelo refego de uma cicatriz, dava ao conde de Peyrac uma expressão de ironia maldosa.
Recostado no seu cadeirão de tapeçaria, acabava de levar à boca uma espécie de pauzinho castanho. Um criado acorreu, solícito, trazendo presa numa tenaz uma brasa, que chegou à extremidade do pauzinho.
Ah, conde, o vosso exemplo é deplorável! exclamou o arcebispo, franzindo as sobrancelhas. Quanto a mim, o tabaco é a sobremesa do Inferno. Que se consuma em pó, com o fim exclusivo de cuidar dos humores do cérebro e a conselho médico, admito, embora com muita dificuldade, pois os consumidores parecem encontrar nisso um prazer malsão e aproveitam-se excessivamente do pretexto da saúde para aspirar tabaco por tudo e por nada. Mas os fumadores de cachimbo são a escória das nossas tabernas, onde se embrutecem horas a fio com essa planta maldita. Até agora, nunca ouvira dizer que um fidalgo consumisse tabaco desse modo grosseiro.
Não tenho cachimbo e não aspiro tabaco. Fumo a folha enrolada como vi fazer a alguns selvagens da América. Ninguém me pode acusar de ser vulgar como um mosqueteiro ou amaneirado como um senhorito da corte...
Quando há duas maneiras de fazer uma coisa, vós tendes sempre de descobrir uma terceira comentou o arcebispo, com espírito. Por exemplo, acabo de reparar numa outra singularidade vossa: não meteis no vosso copo nem pedra de sapo nem bocado de licorne. No entanto, toda a gente sabe que essas são as duas melhores precauções para evitar o veneno que mão inimiga é sempre capaz de deitar no vinho. Até a vossa jovem esposa sacrificou a esse uso prudente. Com efeito, a pedra de sapo e o chifre de licorne mudam de cor em contacto com bebidas perigosas. Mas vós nunca utilizais essas coisas. Acaso vos julgais invulnerável ou... sem inimigos? concluiu o clérigo, com um olhar cujo fulgor impressionou Angélique.
Não, monsenhor respondeu o conde de Peyrac. Acho apenas que a melhor maneira de nos precavermos contra o veneno consiste em não pôr nada no copo e tudo no corpo.
Que quereis dizer?
Isto: ingeri, todos os dias da vossa vida, uma dose ínfima de qualquer veneno perigoso.
Fazeis isso? perguntou o arcebispo, horrorizado.
Desde muito novo, monsenhor. Não ignorais que o meu pai foi vítima de qualquer bebida florentina, embora metesse no copo uma pedra de sapo do tamanho de um ovo de pomba. A minha mãe, que era uma mulher sem preconceitos, procurou o verdadeiro processo de me poupar, por minha vez. Através de um mouro escravo trazido de Narbona tomou conhecimento do método de nos defendermos do veneno pelo veneno.
Os vossos raciocínios têm sempre algo de paradoxal que me inquieta confessou o arcebispo, preocupado. Dir-se-ia que desejais reformar todas as coisas, e todavia ninguém ignora quantas desordens essa palavra ”reforma” engendrou na Igreja e no reino. Ora dizei-me: para quê praticar um método quanto ao qual não tendes nenhuma garantia, ao passo que os outros já deram as suas provas? Claro que é necessário que a pedra de sapo e o chifre de licorne sejam autênticos. Não faltam charlatães que se transformaram em negociantes desses objectos e vendem não sei que falsificação em seu lugar. Mas, por exemplo, o meu monge Bécher, um recolecto possuidor de grande ciência e que se entrega, por mim, a trabalhos de alquimia, arranjar-vos-ia excelentes.
O conde de Peyrac inclinou-se um pouco, para melhor ver o arcebispo, e, devido a esse movimento, os seus abundantes caracóis negros tocaram na mão de Angélique, que recuou. Notou então que o marido não usava peruca: aquela abundante cabeleira era natural.
O que me intriga é saber como ele próprio arranja essas coisas observou o conde. Quando era pequeno, matei muitos sapos e nunca encontrei no seu cérebro a famosa pedra protectora a que chamam crapudina, ou pedra de sapo, e que, segundo parece, lá se deveria encontrar. Quanto ao chifre de licorne, dir-vos-ei que percorri o mundo e cheguei a uma conclusão definitiva: o licorne é um animal mitológico, imaginário, em resumo, um animal que não existe.
Essas coisas não se afirmam, senhor. Devemos respeitar os mistérios e não pretender que sabemos tudo.
O que constitui um mistério, para mim redarguiu o conde devagar, é que um homem com a vossa inteligência possa acreditar seriamente em tais... fantasias...
”Senhor”, pensou Angélique, ”nunca ouvi tratar um eclesiástico de elevada categoria com tal insolência!”Olhava sucessivamente as duas personagens, cujas pupilas se defrontavam. O marido foi o primeiro a parecer aperceber-se da perturbação que ela sentia. Dirigiu-lhe um sorriso que lhe franziu estranhamente o rosto, mas que lhe descobriu os dentes muito brancos.
Perdoai-nos por discutirmos assim diante de vós, senhora. Monsenhor e eu somos inimigos íntimos!
Nenhum homem é meu inimigo! protestou o arcebispo, indignado. Que fazeis da caridade que deve habitar no coração de um servo de Deus? Mesmo que me odieis, eu não vos odeio, embora sinta por vós a inquietação do pastor pela ovelha que se tresmalha. E se não escutais as minhas palavras, saberei separar o trigo do joio.
Ah! exclamou o conde, com uma espécie de riso arrepiante, eis o herdeiro de Foulques de Neuilly, bispo e braço direito do terrível Simão de Montfort, que acendeu as fogueiras dos Albigenses e reduziu a cinzas a delicada civilização da Aquitãnia! Passados quatro séculos, o Linguadoque ainda chora os seus esplendores destruídos e treme ao ouvir descrever os horrores perpetrados. Eu, que sou da mais antiga cepa tolosana, que tenho nas veias sangue lígure e visigodo, estremeço quando o meu olhar encontra os vossos olhos azuis de homem do Norte. Herdeiro de Foulques, herdeiro de bárbaros grosseiros que implantaram na nossa terra o sectarismo e a intolerância, eis o que leio nos vossos olhos!
A minha família é uma das mais antigas do Linguadoque protestou o arcebispo, soerguendo-se, e nesse instante o seu sotaque meridional tornou-o quase ininteligível aos ouvidos de Angélique. Sabeis muito bem, monstro insolente, que metade de Tolosa me pertence. Há séculos que os nossos feudos são tolosanos.
Há quatro séculos, há quatro séculos apenas, monsenhor! gritou Joffrey de Peyrac, levantando-se também. Viestes nos carros de Simão de Montfort com os infames cruzados. Vós sois o invasor! Homem do Norte! Homem do Norte, que fazeis à minha mesa?
Angélique, horrorizada, começava a recear que a batalha se desencadeasse quando uma grande gargalhada dos convivas sublinhou as últimas palavras do conde tolosano. O sorriso do arcebispo foi menos sincero. No entanto, quando o corpanzil de Joffrey de Peyrac se ergueu para se ir inclinar diante do prelado, em sinal de desculpa, ele estendeu-lhe com bons modos o anel pastoral, para que o beijasse.
Mas Angélique estava tão desconcertada que não podia participar francamente naquela exuberância. As palavras que os dois homens acabavam de lançar um ao outro estavam longe de ser frívolas e para a gente do Sul o riso era muitas vezes o prelúdio ruidoso das mais negras tragédias. De súbito, Angélique reencontrava a exaltação ardente com a qual a ama Fantine lhe envolvera a infância. Graças a isso, não se sentiria estranha naquela sociedade impulsiva.
O fumo do tabaco incomoda-vos, minha senhora?perguntou inesperadamente o conde, inclinando-se para ela e tentando surpreender o seu olhar.
Angélique abanou negativamente a cabeça. O odor subtil do tabaco acentuava a sua melancolia, evocava-lhe a presença do velho Guilherme ao canto da lareira e a grande cozinha de Monteloup. O velho Guilherme, a ama e as coisas familiares tinham-se tornado, de súbito, distantes.
Nos bosquezinhos começaram a tocar violinos. Embora estivesse morta de cansaço, aceitou sem hesitar o convite para dançar do marquês de Andijos. Os dançarinos tinham-se reunido num grande pátio lajeado, que um jacto de água refrescava. Angélique aprendera no convento suficientes danças modernas para não parecer embaraçada entre os senhores e as damas de uma província muito mundana, a maioria dos quais passavam por vezes muito tempo em Paris. Era a primeira vez que dançava assim numa verdadeira recepção e começava a tomar-lhe o gosto quando houve uma espécie de contracorrente: os pares foram afastados pelo ímpeto de uma multidão que corria para o local do banquete. Os dançarinos protestaram, mas alguém gritou:
Ele vai cantar!
E outros repetiram:
A Voz de Ouro! A Voz de Ouro do reino!...
Horror de Angélique pelo marido. Descobre que ele se dedica à alquimia
Nesse momento, Angélique sentiu pousar-lhe no braço mão discreta:
Minha senhora murmurou a aia Margotsão horas de vos escapardes. O Sr. Conde encarregou-me de vos conduzir ao pavilhão do Carona, onde passareis a noite.
Mas eu não quero partir! protestou Angélique. Quero ouvir esse cantor que tanto gabam. Ainda não o vi.
Ele cantará para vós, minha senhora, cantará em particular para vós. O Sr. Conde encarregou-se disso prometeu a mulheraça. Mas agora a cadeirinha espera-vos.
Enquanto falava, cobriu os ombros da ama com uma capa de capuz e estendeu-lhe uma máscara de veludo negro.
Colocai isto no rosto recomendou baixinho. Assim não vos reconhecerão. Caso contrário, os jovens desordeiros são capazes de correr até ao pavilhão e perturbar-vos a noite de núpcias com o chinfrim das suas caçarolas.
A aia tomou fôlego e prosseguiu:
É sempre assim, em Tolosa. Os recém-casados que não conseguem fugir como ladrões têm de comprar o silêncio a troco de grandes quantias ou de suportar a algazarra desses demónios. É em vão que monsenhor e a Polícia tentam suprimir o costume... Portanto, o melhor que há a fazer é sair da cidade.
Empurrou Angélique para dentro de uma cadeira que dois sólidos criados puseram rapidamente aos ombros. Escoltaram-nos alguns cavaleiros que saíram da sombra e, depois de seguir pelo dédalo de ruelas, o pequeno grupo chegou ao campo.
O pavilhão era uma residência modesta, cercada de jardins que desciam até ao rio. Ao apear-se, Angélique sentiu-se surpreendida com o silêncio, perturbado apenas pelo canto dos grilos.
Margarida, que subira para a montada de um dos cavaleiros, escorregou para o chão e levou a recém-casada para o interior da casa deserta.
De olho brilhante e sorriso nos lábios, a aia parecia apreciar todos aqueles mistérios amorosos.
Angélique encontrou-se num quarto com pavimento de mosaicos. Ardia uma lamparina junto da alcova, mas a sua luz era inútil, pois o luar iluminava de tal maneira o aposento que dava um brilho de neve aos lençóis de rendas do grande leito.
Margarida lançou um último olhar crítico à jovem e depois procurou na mala um frasco de água perfumada para lhe purificar a pele.
Deixai-me ordenou Angélique, impaciente.
Minha senhora, o vosso esposo não tarda, é necessário...
Não é necessário nada. Deixai-me.
Sim, minha senhora.
A aia fez uma reverência e acrescentou:
Desejo-vos uma doce noite.
Deixai-me! gritou Angélique pela terceira vez, já encolerizada. Ficou sozinha, furiosa por não ter sabido conter o despeito diante de uma criada. Mas Margarida era-lhe antipática. Intimidavam-na as suas maneiras confiantes e hábeis, temia a zombaria dos seus olhos negros.
Permaneceu imóvel durante muito tempo, até o excessivo silêncio do quarto se lhe tornar insuportável.
O medo, que a agitação e as conversas tinham adormecido, voltou a despertar. Cerrou os dentes e disse, quase em voz alta:
Não tenho medo, sei o que devo fazer. Morrerei, mas ele não me tocará!
Dirigiu-se à porta-janela, que dava para o terraço. Só no Plessis vira aquelas varandas elegantes, que a arquitectura da Renascença tornara moda.
Um sofá coberto de veludo verde convidava-a a sentar-se e a contemplar a paisagem cheia de majestade. Dali já não se via Tolosa, oculta por uma curva do rio. Viam-se apenas os jardins e a água brilhante e, mais ao longe, campos de milho e vinhedos.
Angélique sentou-se na beira do sofá e encostou a fronte à balaustrada. O penteado complicado e cheio de ganchos com diamantes e pérolas incomodava-a. Tratou de o desmanchar, não sem dificuldade.
”Porque não me despenteou e despiu aquela grande idiota?”, pensou. ”Imaginará que o meu marido se encarregará disso?”
Soltou uma gargalhadinha irónica e triste, a expensas de si mesma.
”A madre Santa Ana não deixaria de me pregar um pequeno sermão acerca da docilidade que devemos mostrar para com todos os desejos do nosso marido. E, quando dizia o todos, os seus olhos rolavam como berlindes e nós quase rebentávamos a rir, pois sabíamos muito bem a que se referia. Mas eu não sou dada à docilidade. O Molines tem razão ao dizer que não me inclino perante uma coisa que não compreendo. Obedeci para salvar Monteloup. Que mais me podem exigir? A mina de Argentières é do conde de Peyrac; ele e o Molines podem continuar o seu tráfico. E o meu pai poderá continuar a criar machos para transportarem o ouro espanhol... Se eu morresse, lançando-me do alto desta varanda, nada mudaria. Cada um obteve o que quis...”Conseguira finalmente soltar os cabelos, que lhe caíram para os ombros nus, e sacudiu-os com o movimento de cabeça um pouco selvagem da sua infância.
Pareceu-lhe então ouvir um ligeiro ruído. Virou-se e sufocou um grito de terror: o coxo olhava-a, encostado à ombreira da porta-janela.
Substituíra o fato vermelho por uns calções e um gibão de veludo negro, muito curto, que lhe deixavam livres a cintura e as mangas de uma fina camisa de cambraia.
Aproximou-se, com o seu passo desigual, e saudou-a profundamente.
Permitis que me sente a vosso lado?
Angélique inclinou a cabeça, em silêncio, e ele sentou-se, apoiou o cotovelo no braço do sofá e olhou em frente, despreocupado.
Há vários séculos, sob estas mesmas estrelas, damas e trovadores subiam aos caminhos de ronda dos castelos e aí realizavam as cortes de amor. Já ouvistes falar dos trovadores doLinguadoque, senhora?
Angélique não esperara aquele género de conversa. Estava toda tensa, numa atitude defensiva, e balbuciou, a custo:
Sim, creio que sim... Chamavam assim aos poetas da Idade Média.
Aos poetas do amor. Linguadoque! Língua doce! Tão diferente do rude falar do Norte, a língua de oil! Na Aquitânia aprendia-se a arte de amar porque, como Ovídio o disse muito antes dos próprios trovadores, ”o amor é uma arte que se pode ensinar e na qual nos podemos aperfeiçoar estudante as suas leis”. Já vos interessastes por essa arte, senhora?
Angélique não sabia que responder. Claro que não lhe escapara a ligeira ironia da voz. Do modo como a pergunta fora feita, um ”sim” ou um ”não” seriam igualmente ridículos. Não estava habituada a conversas espirituosas. Aturdida por demasiados acontecimentos, o dom da réplica abandonara-a. Por isso se limitou a virar a cabeça e a olhar maquinalmente para o lado da planície adormecida.
Teve consciência de que o homem se chegara mais para ela, mas não se mexeu.
Vede prosseguiu ele, no jardim, aquele lagozinho de água verde onde a lua mergulha como uma pedra de sapo num copo de anis... Pois aquela água é da cor dos vossos olhos, minha amiga. Jamais encontrei, nas minhas andanças pelo mundo, pupilas tão estranhas e tão sedutoras. E reparai nestas rosas que se agarram, em festões, à nossa varanda. São do mesmo tom dos vossos lábios. Não, sinceramente, jamais encontrei lábios tão rosados... nem tão fechados. Quanto à sua doçura... vou avaliá-la.
De súbito, duas mãos agarraram-na pela cintura. Angélique sentiu -se empurrada para trás por uma força que não supusera existir naquele homem alto e magro e a sua nuca encontrou a barreira da curva de um braço que a paralisava. O rosto horrendo debruçava-se para ela, ao ponto de quase lhe tocar. Gritou, cheia de horror, e torceu-se, repugnada. Quase acto contínuo sentiu-se liberta. O conde largara-a e olhava-a, rindo.
Era o que eu pensava. Causo-vos um medo horrível. Preferíeis lançar-vos desta varanda a pertencer-me. Não é verdade?
Angélique fitava-o, com o coração a bater descompassadamente. O conde levantou-se e o seu vulto esguio alastrou pelo céu banhado de luar.
Não vos forçarei, pobre virgenzinha, não faz parte dos meus gostos. Entregaram-vos então, novinha em folha, a este grande coxo do Linguadoque? Que coisa horrível!
Inclinou-se e ela detestou o seu sorriso trocista.
Sabei que tenho possuído muitas mulheres na minha vida: brancas, negras, amarelas e vermelhas. Mas jamais possuí alguma pela força ou a atraí pelo dinheiro. Elas vieram e vós vireis também um dia, uma noite...
Nunca!
A réplica irrompera-lhe, violenta, dos lábios; mas o sorriso não se apagou do estranho rosto.
Sois uma jovem selvagem, mas isso não me desagrada. Uma conquista fácil torna o amor sem mérito, uma conquista difícil valoriza-o. Assim fala André lê Chapelain, mestre da arte de amar. Adeus, minha linda, dormi bem no vosso grande leito, sozinha com os vossos membros gráceis e com os vossos seiozinhos maravilhosos, tristes por não serem acariciados. Adeus!
No dia seguinte, ao acordar, Angélica viu que o Sol já ia alto no céu. Os pássaros calavam-se nas ramarias do jardim, entorpecidos pelo calor.
Não se lembrava muito bem de como se despira e deitara naquele leito, cujos lençóis brasonados cheiravam a violeta. Chorara de fadiga e despeito, e talvez também de solidão. Mas agora sentia-se mais lúcida. A garantia que o estranho marido lhe dera de que só lhe tocaria se ela o desejasse tranquilizava-a por enquanto.
”Julgará que vou achar magníficas a sua perna curta e o seu rosto queimado?...”Acariciou a esperança de uma existência agradável, junto de um marido com o qual viveria em boa amizade. Apesar de tudo, a vida poderia ter encantos. Tolosa oferecia tantas distracções!
Discreta e impassível, Margarida vestiu-a. Ao meio-dia, Angélique voltou à cidade. Clemente recebeu-a e disse-lhe que o Sr. Conde o encarregara de informar a Sr.a Condessa de que estava a trabalhar no seu laboratório e não deveria esperá-lo para almoçar, o que constituiu um alívio para ela. O homem acrescentou que o Sr. Conde o contratara como mordomo. Isso agradava-lhe muito. As pessoas dali eram barulhentas e preguiçosas, mas cordiais. A casa parecia-lhe rica e ele faria todos os possíveis por agradar aos novos amos.
Angélique agradeceu-lhe o pequeno discurso, em que uma certa condescendência se misturava ao servilismo. Não lhe desagradava ter a seu lado aquele rapaz cujos modos contrastavam com a exuberância das restantes pessoas.
Nos dias seguintes teve ocasião de verificar que o palácio do Conde de Peyrac era, sem dúvida, o lugar mais frequentado da cidade. O dono da casa participava activamente em todos os divertimentos. O seu vulto alto e desengonçado passava de grupo em grupo e Angélique surpreendia-se com a animação que a sua simples presença provocava.
Ia-se habituando ao seu aspecto e a repulsa atenuava-se. A ideia da submissão carnal que lhe devia influenciara muito a violência do seu ressentimento e o medo que ele lhe inspirara.
Agora, porém, que estava tranquilizada a esse respeito, forçoso lhe era reconhecer que aquele homem de fala ardente e carácter jovial e curioso inspirava simpatia.
O conde demonstrava por ela uma grande indiferença. Embora lhe prodigalizasse as atenções devidas à sua situação, parecia mal a ver. Saudava-a todas as manhãs e ela presidia, defronte dele, às refeições, às quais assistiam sempre pelo menos doze pessoas, o que evitava ao casal um encontro a sós, por ela temido.
Entretanto, não se passava um dia em que não encontrasse nos seus aposentos um presente, bugiganga ou jóia, um vestido novo ou um móvel, e até confeitos ou flores. Era tudo de um gosto perfeito, de um luxo que a deixava aturdida, encantada... e também embaraçada. Não sabia como testemunhar ao conde o prazer que os seus presentes lhe causavam. Todas as vezes que tinha de lhe dirigir directamente a palavra, não conseguia erguer os olhos para o seu rosto marcado e tornava-se desajeitada e titubeante.
Um dia encontrou junto da janela defronte da qual costumava sentar-se um estojo de marroquim vermelho, ornamentado a ferro quente; ao abri-lo, viu o mais magnífico adereço de diamantes que jamais poderia imaginar.
Contemplava as jóias, toda trémula, dizendo a si mesma que certamente nem a rainha tinha nada semelhante, quando ouviu os passos característicos do marido.
Impulsiva, correu para ele, de olhos brilhantes.
Que esplendor! Como hei-de agradecer-vos?
O entusiasmo levou-a tão depressa ao seu encontro que quase chocou com ele. A sua face aflorou o veludo do gibão do marido, enquanto um braço de ferro a amparava subitamente. O rosto que a aterrorizava pareceu-lhe tão próximo que o sorriso lhe morreu nos lábios e Angélique se inclinou para trás, com um incontível estremecimento de pavor. O braço de Jeffrey de Peyrac largou-a imediatamente e ele respondeu, com uma despreocupação um pouco desdenhosa:
Agradecer-me? Porquê? Não esqueçais, minha querida, que sois a mulher do conde de Peyrac, último descendente dos ilustres condes de Tolosa. Isso dá-vos o direito de serdes a mais bela e a melhor adornada. Doravante, não vos julgueis obrigada a agradecer-me.
Assim, as suas obrigações eram muito poucas e ela poderia julgar-se uma das convidadas do palácio, ainda com maior liberdade do que as outras para dispor do tempo como lhe aprouvesse.
Joffrey de Peyrac só lhe recordava a sua qualidade de marido em raríssimas ocasiões. Por exemplo, quando um baile em casa do governador ou de um dos altos funcionários da cidade exigia que a Sr.a de Peyrac fosse, precisamente, a mulher mais bela e melhor adornada da cidade.
Chegava então sem se mandar anunciar, sentava-se junto do toucador e observava atentamente enquanto arranjavam a sua jovem esposa, guiando com uma palavra as mãos hábeis de Margot e das ajudantes. Não lhe escapava o mínimo pormenor, a toilette feminina não tinha segredos para ele. Angélique maravilhava-se com a justeza das suas observações e com o requinte dos seus conselhos. E, como desejava tornar-se uma grande dama nobre, não perdia uma palavra da lição. Nesses momentos esquecia os seus rancores e as suas apreensões.
Mas uma noite, quando se contemplava ao espelho, deslumbrante num vestido de cetim cor de marfim de alto cabeção de renda adornada de pérolas, descobriu a seu lado o vulto tenebroso do conde de Peyrac. Abateu-se sobre ela um desespero brusco, pesado como capa de chumbo.
”Que importam a riqueza e o luxo perante a sorte terrível de estar ligada para toda a vida a um marido manco e hediondo?”, pensou.
O conde percebeu que era a ele que a mulher observava, no espelho, afastou-se bruscamente.
Que tendes? Não vos achais bela?
Angélique lançou à sua própria imagem um olhar triste e respondeu, dócil:
Sim, senhor.
Então? Podíeis ao menos sorrir...
E Angélique julgou ouvi-lo suspirar muito baixinho.
Nos meses que se seguiram não pôde deixar de verificar que Joffrey de Peyrac dedicava muito mais atenções e cumprimentos às outras mulheres do que à própria esposa.
A sua galantaria era espontânea, risonha, requintada, e as damas procuravam-na com evidente prazer. Desempenhavam o papel de preiosas, como era moda em Paris.
Este é o palácio do Gai Savoir disse-lhe um dia o conde. Tudo quanto constitui a graça e a cortesia da Aquitânia, e portanto da França, tem de se encontrar entre estas paredes. Assim, Tolosa acaba de conhecer os célebres jogos florais. A violeta de ouro foi atribuída a um jovem poeta do Rossilhão. De todos os cantos de França e até do mundo, é a Tolosa que os autores de rondós vêm para serem avaliados, sob a égide de Clemência Isaura, a luminosa inspiradora dos trovadores do tempo passado. Por isso, não vos assusteis, Angélique, com todos estes rostos desconhecidos que constantemente acorrem ao meu palácio. Se vos importunam, podeis retirar-vos para o pavilhão do Carona.
Mas Angélique não sentia desejo de se isolar. Pouco a pouco deixava-se conquistar pelo encanto daquela vida risonha. Depois de a terem desdenhado, algumas damas acharam-lhe espírito e acolheram-na nos seus círculos. Perante o êxito das recepções que o conde dava naquela residência, que era, apesar de tudo, a dela, a jovem adquiria o gosto de tudo dirigir, para que as coisas corressem bem. Viam-na correr das cozinhas aos jardins e dos sótãos às caves, seguida por três dos seus negrinhos.
Habituara-se aos seus engraçados rostos redondos e negros. Havia muitos escravos mouros em Tolosa, porque os portos de Aigues-Mortes e Narbona davam para esse Mediterrâneo que não era mais do que um grande lago de pirataria. Ir por mar de Narbona a Marselha constituía uma verdadeira expedição! Em Tolosa riam-se muito da pouca sorte de um senhor gascão que, durante uma viagem, fora feito prisioneiro por galeras árabes. O rei de França resgatara-o imediatamente ao sultão dos bárbaros, mas, quando o prisioneiro regressara, tinham-no achado muito emagrecido e ele não ocultara que sofrera muito calor entre os Mouros.
Só Kuassi-Ba impressionava um pouco Angélique. Quando via erguer-se à sua frente aquele colosso escuro de olhos de esmalte branco, tinha de dominar um pequeno recuo de medo. No entanto, o homem parecia muito submisso. Nunca deixava o conde de Peyrac e era ele que guardava, ao fundo do palácio, a porta de um aposento misterioso, para onde o conde se retirava todas as noites e por vezes até de dia. Angélique não duvidava de que o bem guardado domínio ocultava as retortas e os frascos que Henrico falara à ama. Sentia um grande desejo curioso de lá entrar, mas não se atrevia. Foi um dos visitantes do palácio do Gai Savoir que lhe permitiu descobrir esse novo aspecto da estranha personalidade do marido.
Discussões físico matemáticas
O visitante estava coberto de poeira. Viajara a cavalo e vinha de Lião, por Ni mês.
Era um homem muito alto, dos seus trinta e cinco anos. Começou por falar em italiano, passou em seguida para latim, que Angélique mal compreendia, e acabou por se exprimir em alemão.
Foi nessa língua, que Angélique conhecia, que o conde apresentou o viajante:
O professor Bernalli, de Genebra, dá-me a grande honra de vir falar comigo de problemas científicos acerca dos quais trocamos há longos anos abundante correspondência.
O estrangeiro inclinou-se com uma galantaria toda italiana e desfez-se em desculpas e protestos. Ia com certeza importunar, com os seus discursos abstractos e as suas fórmulas, uma dama encantadora cujos cuidados deveriam ser mais frívolos.
Meio por bravata, meio por genuína curiosidade, Angélique pediu que a deixasse assistir à discussão. No entanto, para não ser indiscreta, sentou-se no recesso de uma janela alta, aberta para o pátio.
Estavam no Inverno, mas o frio era seco e o Sol continuava a brilhar. Dos pátios subia o cheiro das braseiras de cobre, à volta das quais os criados se aqueciam.
Angélique, de bordado na mão, prestava atenção às palavras dos dois homens, que se tinham sentado defronte um do outro junto da lareira, onde ardia um pequeno fogo de lenha.
Falaram primeiro de personagens que lhe eram totalmente desconhecidas: do filósofo inglês Bacon, do francês Descartes e do engenheiro francês Blondel, contra o qual se indignaram muito porque, diziam, classificava as teorias de Galileu como paradoxos estéreis.
De toda a conversa, Angélique acabou por deduzir que o recém-chegado era partidário fervoroso do dito Descartes e que o marido, pelo contrário, combatia o filósofo francês.
Sentado no conchego da sua poltrona de tapeçaria, numa das poses despreocupadas que lhe agradavam, Jeffrey de Peyrac pouco mais sério parecia do que quando discutia com as damas as rimas de um soneto. A sua atitude desenvolta contrastava com a do seu interlocutor, hirto na beira do tamborete, todo entregue à paixão que o diálogo lhe inspirava.
O vosso Descartes é certamente um génio dizia o conde, mas isso não significa que tenha razão em tudo.
O italiano agastava-se:
Muito curioso me sinto por saber como conseguiríeis achá-lo em falta. Vejamos! Estamos perante um homem que foi o primeiro a opor à escolástica e às ideias abstractas e religiosas o seu método experimental. Doravante, em vez de se avaliarem as coisas como outrora se fazia, segundo princípios absolutos, passarão a ser avaliados mediante medidas e experiências, para delas se deduzirem em seguida as leis matemáticas. Isso devê-lo-emos a Descartes. Como podeis vós, que pretendeis possuir o espírito realista caro aos homens da Renascença, não aderir a tal sistema?
Mas adiro, meu amigo, acreditai. Estou convencido de que, sem Descartes, jamais a ciência conseguiria emergir do sedimento de tolices em que a enterraram nos últimos séculos. O que lhe censuro é ter carecido de franqueza para com o seu próprio génio. As suas teorias estão maculadas de erros flagrantes. Não quero porém contrariar-vos, se estais convencido.
Vim de Genebra e atravessei neves e rios para aceitar o vosso desafio acerca de Descartes. Escuto-vos, pois.
Tomemos, se concordais, o princípio de gravitação, isto é, da atracção recíproca dos corpos e, portanto, da sua queda para o solo. Descartes afirma que, quando um corpo choca com outro só lhe pode imprimir movimento se tiver uma massa superior à dele. Assim, uma bola de cortiça ao chocar com uma bola de metal não poderia deslocá-la.
Mas isso salta aos olhos! E permiti que cite a fórmula de Descartes: ”A soma aritmética das quantidades em movimento das diversas partes do universo permanece constante.”
Não! exclamou Jeffrey de Peyrac, levantando-se com uma brusquidão que fez estremecer Angélique. Não, trata-se de uma falsa evidência, e Descartes não fez a experiência. Ter-lhe-ia bastado, para se aperceber do seu erro, disparar com uma pistola uma bala de chumbo de uma onça contra uma bola de trapos bem apertados e com peso superior a duas libras. A bola de trapos seria deslocada.
Bernalli olhou para o conde com uma expressão estupefacta.
Confesso que me confundis. Mas o nosso exemplo será bem escolhido? Não entrará nessa experiência de tiro à pistola um elemento novo?... Como chamar-lhe? A violência, a forca...
E pura e simplesmente o elemento da velocidade. Mas esse elemento não é específico do tiro. Todas as vezes que o elemento se desloca, esse elemento actua. Aquilo a que Descartes chama a quantidade de movimento é a lei da velocidade, e não uma adição aritmética das coisas.
Mas se a lei de Descartes não serve, que outra vedes?
A de Copérnico, quando ele fala da atracção recíproca dos corpos entre si, dessa propriedade invisível, semelhante à do magneto, que não se pode medir, mas que também não se pode negar.
Bernalli reflectiu, com um punho fechado contra os lábios.
Já tinha pensado um pouco em tudo isso e até discuti o assunto com o próprio Descartes quando o encontrei em Haia, antes de ele partir para a Suécia, onde, infelizmente, morreria. Sabeis o que me respondeu? Disse-me que essa lei da atracção devia ser afastada porque havia nela ”algo de oculto” e parecia, a priori, herética e suspeita.
O conde de Peyrac desatou a rir.
Descartes era um poltrão e, sobretudo, não queria perder os mil escudos de pensão que o Sr. de Mazarino lhe concedia. Lembrava-se do pobre Galileu, que teve de se retractar, sob as torturas da Inquisição, da sua ”heresia do movimento da Terra” e que, mais tarde, morreu a suspirar: ”E, no entanto, ela gira!...” Por isso, quando, no seu Traité du Monde, Descartes retomou a teoria do polaco Copérnico, De Revolutionibus orbium coelestium, teve o cuidado de não aludir ao movimento da Terra e limitou-se a dizer: ”A Terra não se move, mas é arrastada por um turbilhão.” Encantadora hipérbole, não achais?
Vejo que não sois generoso para com o pobre Descartes, embora o considereis um génio comentou o genebrino.
Não posso perdoar de modo algum que os grandes espíritos se mostrem mesquinhos. Infelizmente, Descartes teve a preocupação de poupar a vida e garantir o pão quotidiano, que só poderia dever à generosidade dos grandes. Acrescentarei que, na minha opinião, se mostrou um génio quanto às matemáticas puras, mas não foi forte no capítulo da dinâmica e da física em geral. As suas experiências sobre a queda dos corpos, se é que se dedicou a verdadeiras experiências materiais, são embrionárias. Para as completar teria sido preciso apontar um facto extraordinário, mas que na minha opinião não é impossível: o facto de que o ar não é vazio.
Que quereis dizer? Os vossos paradoxos desesperam-me!
Avento que o ar no qual nos movemos não será na realidade senão um elemento denso, um pouco como a água que os peixes respiram: elemento de uma certa elasticidade, de uma certa resistência, em suma, elemento invisível aos nossos olhos, mas real.
Assustais-me!
O italiano levantou-se e deu alguns passos na sala, muito agitado. Parou, abriu diversas vezes a boca como um peixe, abanou a cabeça e voltou a sentar-se ao canto da chaminé.
Quase me sinto tentado a chamar-vos louco e, contudo, há em mim próprio um não sei quê que vos aprova. A vossa teoria seria o coroamento do estudo a que me tenho entregado sobre os líquidos em movimento. Ah, não lamento esta perigosa viagem, que me proporciona a alegria insigne de falar com um grande sábio! Mas acautelai-vos, meu amigo! Se eu próprio, cujas palavras jamais tiveram a audácia das vossas, fui considerado herético e obrigado a exilar-me na Suíça, que vos acontecerá a vós?
Ora! exclamou, despreocupado, o conde. Não pretendo convencer ninguém, a não ser espíritos iniciados nas ciências e que me podem compreender. Não tenho sequer a ambição de registar e mandar editar o resultado dos meus trabalhos. Entrego-me a eles por prazer, do mesmo modo que sinto prazer em versificar algumas canções com damas amáveis. Estou tranquilo no meu palácio tolosano. Quem viria aqui causar-me aborrecimentos?
O olho do poder está em toda a parte declarou Bernalli, lançando um olhar desencantado em seu redor.
Nesse preciso instante, Angélique teve a percepção de um ruído muito leve, não longe dela, e pareceu-lhe que a tapeçaria de uma porta mexera. Isso causou-lhe uma impressão desagradável. A partir desse momento acompanhou a conversa dos dois homens com muito menos atenção. O seu olhar fixava-se inconscientemente no rosto de Jeffrey de Peyrac. A penumbra que invadia a sala naquele apressado crepúsculo de Inverno atenuava as feições desfiguradas do fidalgo, fazendo sobressair apenas, com vigor, os olhos negros cheios de uma luz apaixonada e o brilho dos dentes revelados pelo sorriso com o qual sublinhava, desenvolto, as palavras mais graves. A perturbação invadia o coração de Angélique...
Quando Bernalli se retirou, a fim de se vestir para o jantar, Angélique fechou a janela. Criados dispuseram castiçais nas mesas, enquanto uma criada atiçava o fogo. Joffrey de Peyrac levantou-se e aproximou-se do recesso da janela onde a mulher se encontrava.
Estais muito calada, minha amiga. Esse é, aliás, o vosso costume. Adormecestes ao ouvir a nossa conversa?
Não. Pelo contrário, senti-me vivamente interessada respondeu lentamente Angélique, que, pela primeira vez, não afastou o seu olhar do do marido. Não pretendo ter compreendido tudo, mas confesso que me agrada mais este género de discussões do que as poesias dessas damas ou dos seus pajens.
Joffrey de Peyrac apoiou um pé no degrau do recesso e inclinou-se, para observar Angélique com atenção.
Sois uma curiosa mulherzinha. Creio que começais a domesticarvos, mas não cessais de me surpreender. Tenho usado seduções diversas para conquistar as mulheres que desejo, mas nunca pensara em pôr as matemáticas no meu jogo.
Angélique não pôde deixar de rir, ao mesmo tempo que as faces se lhe esbraseavam. Baixou os olhos, um pouco constrangida, para o bordado e perguntou, para mudar de conversa:
É então a experiências de física que vos entregais naquele misterioso laboratório que o Kuassi-Ba guarda tão ciosamente?
Sim e não. Tenho de facto alguns aparelhos de medição, mas o laboratório serve-me sobretudo para trabalhos de química acerca de metais como o ouro e a prata.
A alquimia murmurou Angélique, emocionada, perpassando-lhe pelos olhos a visão do castelo de Gil de Retz. Porque quereis sempre ouro e prata? indagou, com súbito arrebatamento. Dir-se-ia que os procurais em toda a parte, não somente no vosso laboratório, mas também em Espanha, na Inglaterra e até na pequena mina de chumbo que a minha família possuía no Poitou... É o Molines disse-me que também tendes uma mina de ouro nas montanhas dos Pirenéus. Porque quereis tanto ouro?
É preciso muito ouro e muita prata para ser livre, senhora. Recordai o que mestre André lê Chapelain disse no início do seu manuscrito A Arte de Amar:”Para as pessoas se ocuparem do amor não devem ter preocupações quanto à sua vida material.
Não julgueis que me conquistareis com presentes e riquezas disse Angélique, recuando violentamente.
Não julgo nada, minha querida. Espero-vos. Suspiro. ”Todo o amante deve empalidecer na presença da amante.” Empalideço. Achais que não empalideço o suficiente? Sei que é recomendado aos trovadores que se ajoelhem diante da sua dama, mas trata-se de um movimento com o qual a minha perna se acomoda mal. Peço desculpa. Ah!, estai certa de que posso repetir, como Bernardo de Ventadur, o divino poeta: ”Os tormentos do amor que me inspira aquela beldade de que sou escravo submisso causarão a minha morte!”Morro, senhora.
Angélique abanou a cabeça, a rir.
Não vos acredito. Não tendes o ar de morrer... Fechais-vos no vosso laboratório ou então percorreis os palácios dessas preciosas damas tolosanas, a fim de as guiardes nas suas composições poéticas.
Acaso sentis a minha falta, senhora?
Angélique hesitou, com um sorriso nos lábios, desejando manter o tom de tagarelice frívola.
Sinto a falta de distracções respondeu, e vós sois a distracção e a variedade personificadas.
Recomeçou a bordar. Já não sabia se amava ou temia a expressão com a qual Joffrey de Peyrac a olhava por vezes, aquando daquelas justas agradáveis que a vida mundana multiplicava entre eles. De repente, ele deixava de ironizar e, no silêncio que se seguia, ela tinha a impressão de se submeter a uma influência estranha, que a envolvia e a queimava. Sentia-se nua, os seus seios pequeninos endureciam sob as rendas do espartilho e tinhe vontade de fechar os olhos.
”Ele aproveita-se do facto de a minha desconfiança adormecer para me lançar um encantamento”, pensou naquela noite, com um estremecimentozinho de medo e de prazer.
Joffrey de Peyrac atraía as mulheres. Angélique não o podia negar, e o que, nos primeiros dias, fora para ela causa de estupefacção, tornava-se compreensível. Não lhe tinham escapado certas expressões perturbadas, certos estremecimentos das suas belas amigas quando se aproximavam, nos corredores, os passos hesitantes do fidalgo coxo. Ele aparecia e uma corrente de febrilidade percorria a assembleia feminina. Sabia falar às mulheres, usava palavras mordazes e doces e conhecia as frases que davam à que as recebia a impressão de ser escolhida entre todas. Angélique rebelava-se como um cavalo indócil ao ouvir a voz lisonjeadora. Com uma sensação de vertigem, recordava as confidências da ama: ”Atrai as jovens com cantos estranhos... Quando Bernalli voltou, Angélique levantou-se, para ir ao seu encontro. Roçou pelo conde de Peyrac e lamentou, de súbito, que a mão dele não se tivesse estendido para a enlaçar pela cintura.
A vulcânica Carmencita
Através da galeria deserta ecoou um riso histérico.
Angélique estacou e olhou em seu redor. O riso prolongava-se, subiu até às notas mais agudas e decrescia numa espécie de soluço, para logo a seguir aumentar de novo. Era uma mulher que ria. Angélique não a via. Aquela ala do palácio, na qual se aventurara na hora do calor, estava muito calma. Abril, com as primeiras temperaturas altas, levava o entorpecimento ao Gai Savoir. Os pajens dormiam nas escadas e ela, que não gostava de dormir a sesta, decidira percorrer a sua residência, da qual ainda não conhecia todos os recantos. Eram inúmeras as escadas, as salas e os corredores interrompidos por loggias. Através das janelas e das lucarnas avistava-se a cidade, os seus altos campanários de vãos invadidos pelo azul do céu e os grandes cais vermelhos da margem do Carona.
Tudo dormia. A saia comprida de Angélique produzia no lajedo um ruído semelhante ao do roçagar de folhas.
De súbito soou aquele riso penetrante. A jovem viu, ao fundo da galeria, uma porta entreaberta. Ouviu-se um ruído de água a ser lançada contra qualquer coisa e o riso morreu, brusco. Uma voz de homem disse então:
Agora, que vos acalmastes, escuto-vos. Era a voz de Jeffrey de Peyrac.
Angélique aproximou-se de mansinho e olhou pela abertura da porta. O marido estava sentado e ela só via as costas da sua cadeira e, pousada no encosto dos braços, uma das suas mãos, que segurava um daqueles paus de tabaco a que chamava charutos.
Diante dele, ajoelhada nas lajes e num charco de água, estava uma mulher muito bela, que Angélique não conhecia. Vestia ricamente de negro, mas parecia encharcada até à camisa. Perto, uma espécie de balde de bronze indicava claramente para que servira a água que contivera, geralmente destinada a refrescar as garrafas de vinhos finos.
A mulher, com os compridos cabelos pretos colados às têmporas, olhava espantada para as rendas sem viço dos punhos.
A mim, foi a mim que tratastes assim? perguntou, em voz sufocada.
Era necessário, minha bela respondeu Jeffrey, em tom de indulgente admoestação. Não podia consentir durante mais tempo que perdêsseis a vossa dignidade na minha presença. Jamais mo perdoaríeis. Vamos, Carmencita, levantai-vos. A vossa roupa secará depressa, com este calor tórrido. Sentai-vos nessa poltrona, diante de mim.
Ela levantou-se com dificuldade. Era uma mulher alta, cuja beleza opulenta lembrava a das mulheres celebradas por Rembrandt e Rubens.
Sentou-se na poltrona indicada e os seus olhos negros, muito abertos, olharam em frente, com uma expressão desvairada.
Que se passa? perguntou o conde, e Angélique estremeceu, pois aquela voz desprendida, de uma pessoa invisível, tinha um encanto de que jamais se apercebera. Vejamos, Carmencita, há mais de um ano que deixastes Tolosa. Fostes para Paris com o vosso marido, cujo cargo elevado constituía para vós um penhor de vida brilhante. Levastes a injustiça para com a nossa pobre sociedade provinciana ao extremo de nunca mais nos dardes notícias. E eis que apareceis de súbito no palácio do Gai Savoir, gritando, reclamando... Reclamando o quê, ao certo?
O amor! respondeu a mulher, em voz rouca e ofegante. Não posso continuar a viver sem ti. Ah, não me interrompas! Não sabes o que foi o meu suplício durante este longo ano. Sim, julgava que Paris saciaria a minha sede de prazeres e diversões... Mas no meio das mais belas festas da corte invadia-me uma lassidão, evocava Tolosa e este palácio rosado do Gai Savoir, surpreendia-me a falar dele de olhos brilhantes e as pessoas troçavam de mim. Tive amantes. A sua grosseria revoltava-me. Então compreendi: eras tu que me faltavas. À noite permanecia acordada, de olhos abertos, e via-te. Via os teus olhos, todos iluminados pelo fogo das tuas forjas, os teus olhos tão ardentes que me faziam desfalecer, as tuas mãos brancas e hábeis...
O meu andar gracioso... interrompeu o conde, com uma gargalhadinha, ao mesmo tempo que se levantava e aproximava da interlocutora, aumentando propositadamente a claudicação.
Não tentes desprender-me de ti pelo desdém redarguiu ela, olhando-o. Contarão o teu manquejar e os teus ferimentos aos olhos das mulheres que amastes, comparados com o dom que lhes fizestes?
Estendeu as mãos para ele e acrescentou num sussurro:
Dás-lhes a voluptuosidade. Antes de te conhecer era fria, mas acendeste em mim um fogo que me devora.
O coração de Angélique batia descompassadamente, como se fosse rebentar. Receava não sabia o quê, talvez que a mão do marido se pousasse naqueles belos ombros dourados, oferecidos com impudor.
Mas o conde, encostado a uma mesa, fumava com ar impassível. Apresentava-se de perfil, e o lado destroçado do seu rosto não se via. De súbito, Angélique descobria outro homem, um homem cujas feições tinham uma beleza de medalhão no enquadramento dos bastos cabelos negros.
Não sabe amar verdadeiramente aquele que possui uma luxúria excessiva sentenciou negligentemente, enquanto expelia uma nuvem de fumo azul. Recorda os preceitos do amor cortês que o palácio do Gai Savoir te ensinou. Regressa a Paris, Carmencita, regressa a Paris que é o refúgio das pessoas da tua espécie.
Se me repeles, retiro-me para um convento. Aliás, é essa a intenção do meu marido.
Excelente ideia, minha cara. Consta-me que estão a fundar em Paris numerosos retiros piedosos, onde a devoção está na moda. Não acaba a rainha Ana da Áustria de comprar o belíssimo convento do Valde-Grâce para receber beneditinas? E o da Visitação de Chaillot também é muito disputado.
Os olhos de Carmencita chispavam.
Os meus recursos de compaixão são insignificantes. Se há alguém a lamentar em toda essa história, parece-me que é apenas o duque de Mérecourt, teu esposo, que cometeu a imprudência de te trazer de Madrid nas carruagens da sua embaixada. Não voltes atentar arrastar-me para a tua existência vulcânica, Carmencita. Cito-te mais uma vez outros preceitos do amor galante: ”Um amante só deve ter uma amante de cada vez.” E ainda: ”Amor novo expulsa o antigo.”
Falas por mim ou por ti? O rosto da mulher tornara-se de uma brancura de mármore, em contraste com os cabelos e o vestido negros. É por causa dessa mulher com quem casaste que falas assim? Julgava que a desposaras para satisfazer a tua cupidez. Uma questão de terras, disseste-me. Mas escolheste-a para amante?... Ah, não duvido de que, nas tuas mãos, se transforme numa aluna notável! Como é possível que tenhas permitido a ti mesmo amar uma filha do Norte?
Ela não é do Norte; é poitevina. Conheço o Poitou, viajei por lá. É uma agradável região que pertenceu outrora ao reino da Aquitânia. A língua de oc encontra-se no patoá dos camponeses e a própria Angélique possui a tez das jovens da nossa terra.
Vejo bem que já me não amas! exclamou, de súbito, a mulher. Ah, adivinho-te mais do que imaginas!
Deixou-se cair de novo de joelhos e agarrou-se ao gibão de Jeffrey.
Ainda é tempo! Ama-me! Possui-me! Possui-me!
Angélique fugiu, sem coragem para ouvir mais. Percorreu a galeria a correr e desceu apressadamente a escada de caracol da torre. Ao fundo dos degraus chocou com Kuassi-Ba, que dedilhava uma guitarra e cantarolava, com a sua voz grossa e aveludada, um estribilho do seu país. Sorriu-lhe, mostrando todos os dentes, e saudou, sussurrante:
Boas tardes, siôa.
Ela não respondeu e continuou a correr. O palácio despertava. Na sala grande já estavam reunidas algumas damas, de livrinho de apontamentos na mão e a beberricar refrescos. Uma delas chamou:
Angélique, meu coração, encontrai-nos o vosso marido. Com este calor, a nossa ”imaginativa padece de languidez e, para discorrer...
Angélique não parou, mas teve a coragem necessária para sorrir às tagarelas e responder:
Discorrei, discorrei! Eu volto já.
Chegou ao quarto e atirou-se para cima da cama.
”É de mais!”, repetiu diversas vezes. Mas, pouco a pouco, teve de admitir que não sabia porque estava tão transtornada. De qualquer modo, era intolerável. Aquilo não podia continuar assim.
A morder, furiosa, o lencinho de renda, olhou sombriamente à sua volta. Demasiado amor, eis o que a exasperava. Toda a gente falava de
Linguagem das ”preciosas” do século XVII.
amor, discorria acerca do amor naquele palácio, naquela cidade, onde a ira do arcebispo descia por vezes do alto do púlpito, condenando à fogueira do Inferno, à falta da Inquisição, os desbochados, os libertinos e as suas amantes cobertas de jóias e de ricos atavios, ira que visava especialmente o palácio do Gai Savoir.
Gai Savoir! Que queria aquilo dizer? Gai Savoir! Doce Saber! Esse segredo fazia brilhar belos olhos, arrulhar belas gargantas, inspirava os poetas e arrebatava os músicos. E quem dirigia esse bailado terno e louco era o estropiado que se mostrava ora trocista, ora lírico, era esse mágico que subjugara Tolosa pela riqueza e pelo prazer! Jamais, desde o tempo dos trovadores, Tolosa conhecera semelhante progresso, semelhante triunfo. Sacudia o jugo dos homens do Norte, reencontrava o seu verdadeiro destino...
Oh, detesto-o, odeio-o! exclamou Angélique, a bater com o pé. Tocou violentamente uma campainha de prata dourada e, quando Margarida apareceu, ordenou-lhe que mandasse preparar imediatamente uma cadeirinha, pois queria ir sem demora para o pavilhão do Garona.
Chegada a noite, Angélique ficou muito tempo na varanda do seu quarto. Pouco a pouco, a calma da paisagem ribeirinha apaziguava-lhe os nervos.
Nessa noite teria sido incapaz de ficar em Tolosa, de ir passear de carruagem na Féria para ouvir os cantores nocturnos e de presidir em seguida ao grande jantar que o conde de Peyrac oferecia nos seus jardins, iluminados por lanternas venezianas. Esperara que o marido a obrigasse a regressar, para receber os convidados, mas não viera nenhum mensageiro da cidade reclamar a fugitiva. Isso provava-lhe que não precisavam dela. Ali ninguém precisava dela. Era estrangeira.
Ao ver Margot decepcionada por não assistir à festa, mandara-a regressar ao palácio e só ficara com uma criadinha e alguns guardas, pois os arredores de Tolosa, onde os fidalgos mandavam construir as suas residências de recreio, não estavam ao abrigo dos ladrões nem dos desertores espanhóis.
Solitária, Angélique tentava reflectir e ver claro dentro de si.
Apoiou a testa à balaustrada e murmurou, melancólica:
Jamais conhecerei o amor.
A Voz de Ouro do reino. Primeiro beijo
Quando, por fim, fatigada e ociosa, se ia a retirar para o quarto, uma guitarra preludiou sob a sua janela. Angélica debruçou-se, mas não distinguiu ninguém entre as sombras escuras dos bosquezinhos.
”Terá o Henrico vindo fazer-me companhia? É um rapazinho gentil Pensou em distrair-me...
Mas o músico invisível começou a cantar, e a sua voz grave e máscula não era a do pajem.
Desde as primeiras notas que a jovem sentiu o coração preso. Aquele timbre de inflexões ora aveludadas, ora sonoras, de dicção perfeita, possuía uma qualidade que nem sempre caracterizava os amadores galantes que invadiam Tolosa mal anoitecia, embora as boas vozes não fossem raras no Linguadoque. A melodia brotava espontaneamente dos lábios habituados ao riso e à declamação. Mas daquela vez o artista impunha-se. O seu fôlego tinha uma pujança excepcional, que parecia invadir o jardim e fazer vibrar a Lua. Cantava um lamento antigo, naquela velha língua de oc cuja delicadeza o conde de Peyrac tantas vezes gabava e cujos matizes o cantor sabia aproveitar na perfeição. Angélique não compreendia todas as palavras, mas havia uma que se repetia sem cessar: Amore! Amore!
Amor!
Impôs-se-lhe uma certeza: ”É ele, é o último dos trovadores, é a Voz de Ouro do reino!”
Jamais ouvira cantar assim. Diziam-lhe às vezes: ”Ah, se ouvísseis cantar a Voz de Ouro do reino! Já não canta. Quando voltará a cantar?” E lançavam-lhe um olhar malicioso, como se a lamentassem por não conhecer essa celebridade da província.
”Ouvi-lo uma vez e depois morrer!”, dizia a Sr.a Aubertré, mulher do Grande Capitoul da cidade, uma cinquentona muito exaltada
”É ele! É ele!”, pensou Angélique. ”Mas como pode estar aqui? E será por mim?
Viu a sua imagem reflectida no grande espelho do quarto, com uma das mãos apoiada no peito e os olhos dilatados. ”Como sou ridícula!”,
Expressão provensal que designava os antigos magistrados municipais de Tolosa. N. da T)
pensou, zombando de si mesma. ”Talvez tenha sido apenas o Andijos ou outro enamorado que contratou um músico, a dinheiro, para me fazer uma serenata!...
No entanto abriu a porta. Com ambas as mãos comprimidas contra o seio, a fim de conter as pancadas do coração, atravessou as antecâmaras, desceu a escada de mármore branco e saiu para o jardim. Iria a vida começar para Angélique de Sancé de Monteloup, condessa de Peyrac? Sim, pois o amor é a vida!
A voz vinha de um caramanchão à beira de água, que abrigava uma estátua da deusa Pomona. Quando a jovem se aproximou, o cantor calou-se, mas continuou a dedilhar a guitarra, em surdina.
Nessa noite a Lua ainda não estava cheia, tinha a forma de uma amêndoa. Mas a sua luz chegava para iluminar o jardim. ” Angélique distinguiu, no interior do caramanchão, uma silhueta negra, sentada no soco da estátua.
Ao vê-la, o desconhecido não se mexeu.
”É um negro”, pensou, decepcionada.
Não tardou, porém, a aperceber-se do seu engano. O homem usava uma máscara de veludo, mas as suas mãos muito brancas, pousadas na guitarra, não permitiam dúvidas quanto à sua raça. Um lenço de cetim negro, atado na nuca, à italiana, ocultava-lhe os cabelos. Tanto quanto era possível observar na obscuridade do caramanchão, o seu trajo, um pouco coçado, era uma curiosa mistura entre o de um criado e o de um comediante. Usava sapatos grossos, de castor, como os das pessoas que caminham muito carreteiros e bufarinheiros, por exemplo, mas sobressaíam-lhe das mangas da casaca folhos de renda.
Cantais maravilhosamente elogiou Angélique, vendo que ele se não mexia. Sinto curiosidade em saber o nome daquele que vos mandou.
Ninguém me mandou, senhora. Vim ao saber que este pavilhão abrigava uma das mais belas mulheres de Tolosa.
O homem falava em voz baixa e muito lenta, como se receasse que o ouvissem.
Cheguei a Tolosa esta noite e dirigi-me ao palácio de Gai Savoir, onde havia alegre e numerosa reunião, a fim de cantar as minhas canções. Mas, ao saber que não estáveis presente, parti ao vosso encontro, pois a fama da vossa beleza é tão grande na nossa província que desejava havia muito conhecer-vos.
A vossa fama é igualmente grande. Não sois aquele a quem chamam a Voz de Ouro do reino?
Sou, senhora minha, e vosso humilde servidor também. Angélique sentou-se no banco de mármore que contornava o
caramanchão. O perfume da madressilva trepadeira inebriava.
Continuai a cantar.
A voz quente ergueu-se de novo, mais doce e como que aveludada. Já não era um canto de lamento, mas sim um canto de ternura, uma confidência, uma confissão.
Senhora disse o músico, interrompendo a canção, perdoai a minha audácia, mas gostaria de vos traduzir em língua francesa um estribilho que o encanto dos vossos olhos me inspira.
Angélique inclinou a cabeça, num consentimento.
Não sabia há quanto tempo ali estava. Nada tinha já importância. A noite pertencia-lhes.
O músico preludiou demoradamente, como se procurasse o fio da melodia, e depois soltou um longo suspiro e começou:
Os olhos verdes são da cor do oceano. Cujas ondas alterosas me engoliram. Náufrago do amor. Erro no mar profundo
Do seu coração.
Angélique fechara os olhos. Mais ainda do que as palavras ardentes, a voz entorpecia-a, causava-lhe um prazer jamais experimentado.
Quando ela abre os olhos verdes
As estrelas reflectem-se neles
Como no fundo de um lago primaveril.
”É agora que ele tem de aparecer...”, pensava Angélique. ”É agora, porque este instante não poderá repetir-se. Não se pode viver isto duas vezes, isto que é tão parecido como as histórias de amor que con távamos umas às outras no convento, antigamente!”
A voz calara-se. O desconhecido deslizou para o banco. No braço firme que a enlaçou, na mão que lhe ergueu o queixo com uma suavidade imperiosa, reconheceu o instinto de Angélique um senhor que devia contar a seu crédito mais de uma terna vitória. Teve um leve assomo de remorso, mas, quando os lábios do cantor afloraram os seus, a vertigem apoderou-se dela. Nunca imaginara que uns lábios de homem pudessem ter aquela frescura de pétala, aquela ternura dissolvente. O braço musculoso esmagava-a, mas a boca fremia ainda das encantadoras palavras proferidas, e esse encanto e essa força arrastavam Angélique para um turbilhão no qual ela procurava inutilmente encontrar qualquer pensamento.
”Não devo fazer isto... É mal feito... Se Jeffrey nos surpreendesse...
Depois tudo ruiu. Os lábios do homem entreabriram os seus, o seu hálito escaldante enchia-lhe a boca, espalhava-lhe nas veias um delicioso bem-estar... De olhos fechados, Angélique abandonou-se ao beijo interminável, posse voluptuosa que já prefigurava e reclamava outra. As vagas de prazer refluíam nela, vagas de um prazer demasiado novo para o seu corpo de donzela, de tal modo que experimentou de súbito uma espécie de irritação e de dor e recuou, num frémito violento.
Parecia-lhe que ia desmaiar ou chorar. Viu os dedos do homem acariciar-lhe o peito nu, que sorrateiramente libertara do corpete enquanto a abraçava.
Angélique afastou-se um pouco e compôs o vestuário.
Perdoai-me balbuciou. Deveis achar-me muito nervosa, mas eu não sabia... não sabia...
Não sabíeis o quê, meu coração?
Como ela não respondesse, o homem murmurou:
Que um beijo podia ser tão doce?
Angélique levantou-se e foi encostar-se à entrada do caramanchão. A Lua tingia-se de ouro ao descer para o rio. Certamente tinham passado horas desde que ali chegara, àquele jardim. Sentia-se feliz, maravilhosamente feliz. Já nada tinha importância, a única coisa que contava era poder reviver tais horas.
Sois feita para o amor murmurou o trovador. Basta tocar-vos na pele para o adivinhar. O que souber despertar o vosso corpo encantador conduzir-vos-há às mais elevadas voluptuosidades.
Calai-vos! Não deveis falar assim. Sou casada, sabeis, e o adultério é um pecado.
Pecado maior ainda é que tão bela dama aceite por marido um senhor coxo.
Não o aceitei; ele comprou-me. ” Arrependeu-se logo de ter proferido tais palavras, que perturbavam aquela hora serena.
Cantai mais suplicou. Só mais uma vez, e depois separar-nos-emos.
Ele levantou-se para ir buscar a guitarra e, ao fazê-lo, houve nos seus movimentos algo de insólito, que perturbou Angélique. Observou-o melhor. Sem saber porquê, de repente teve medo.
Enquanto ele cantava muito baixo um estribilho de estranha nostalgia, ela estudava-o com atenção crescente. Pouco antes, quando a beijara, tivera por breves instantes a impressão de uma presença familiar, de que se recordava agora: no hálito do cantor misturava-se ao perfume das violetas o singular aroma do tabaco... O conde de Peyrac às vezes também mascava pastilhas de violeta... E fumava. Invadiu-a uma suspeita terrível. Quando ele se levantara para ir buscar a guitarra, parecera cambalear estranhamente...
Angélique soltou um grito de terror, a que se seguiu outro de cólera, e começou a arrancar a madressilva do caramanchão e a bater o pé.
Oh, é de mais, é de mais!... É monstruoso! Tirai a máscara, Jeffrey de Peyrac, acabai com a vossa farsa ou arranco-vos os olhos, esgano-vos, mato-vos...
A canção cessou bruscamente e a guitarra emitiu um diminuendo lúgubre. Sob a máscara de veludo, os dentes brancos do conde de Peyrac brilhavam entre os lábios abertos num grande sorriso.
Aproximou-se, claudicante. Angélique estava aterrada, mas, mais do que isso, estava fora de si.
Arrancar-vos-ei os olhos! repetiu, de dentes cerrados. Ele agarrou-lhe os pulsos, sempre a sorrir.
Que restará então ao horrendo senhor coxo, se lhe arrancardes os olhos?
Mentistes com um descaramento inqualificável, fizestes-me crer que éreis... a Voz de Ouro do reino.
Mas sou a Voz de Ouro do reino
E, ao vê-la fitá-lo desconcertada, prosseguiu:
Que há de extraordinário nisso? Tinha alguns dotes e estudei com os maiores maestros da Itália. Cantar é uma arte de sociedade, muito praticada hoje em dia. Francamente, queridíssima, a minha voz não vos agrada?
Angélique virou-se e enxugou, furiosa, as lágrimas de despeito que lhe corriam pelas faces.
Como é possível que eu não tenha adivinhado o vosso dom, que não tenha suspeitado de nada até agora?
Eu pedira que não vos falassem a tal respeito. E talvez não tivésseis muito empenho em descobrir os meus talentos...
Oh, é forte, é demasiado forte! protestou Angélique.
Mas, passado o primeiro momento de furor, sentiu, de súbito, desejo de rir.
Pensar que ele levara o cinismo ao ponto de a encorajar a enganá-lo” consigo mesmo! Tinha realmente o Diabo no corpo! Era o Diabo em pessoa!
Jamais vos perdoarei esta odiosa comédia afirmou, franzindo os lábios e chamando a si toda a dignidade que lhe restava.
Adoro representar comédia. Sabeis, minha querida, a existência nem sempre foi indulgente comigo... Têm-se rido tantas vezes à minha passagem que sinto um prazer infinito em troçar por minha vez dos outros.
Angélique não resistiu a erguer para o rosto mascarado um olhar grave.
Troçastes verdadeiramente de mim?
De modo algum, e bem o sabeisrespondeu o conde. Angélique virou-se e afastou-se, sem uma palavra de despedida.
Angélique! Angélique!ouviu-o chamá-la, em voz baixa.
De pé, à entrada do caramanchão, na atitude misteriosa de um arlequim italiano, o conde levou um dedo aos lábios.
Por caridade, senhora, não conteis esta história a ninguém, nem mesmo à vossa criada preferida. Se sabem que abandono os meus convidados, que me disfarço e me mascaro para vir roubar um beijo à minha própria mulher, serei ridicularizado.
Sois insuportável!
Angélique agarrou as saias e subiu a correr o caminho de saibro. Na escada deu consigo a rir. Despiu-se, mas tão enervada que arrancou os colchetes e se picou nos alfinetes. Escaldante, não conseguia dormir, às voltas e reviravoltas entre os lençóis. O rosto mascarado, o rosto rasgado de cicatrizes e o perfil de traços puros desfilavam e tornavam a desfilar diante dos seus olhos. Qual era o enigma daquele homem enganador? Sentiu-se revoltada, mas logo a seguir a recordação do prazer experimentado nos braços dele enlanguesceu-a.
” Sois feita para o amor, senhora...”
Acabou por adormecer e, no sono, os olhos de Joffrey de Peyrac apareceram-lhe ”todos iluminados pelo fogo das suas forjas”, e ela viu que neles dançavam chamas.
Visita do arcebispo de Tolosa
Angélique estava sentada na galeria de espelhos venezianos do palácio. Ainda não sabia o que faria nem qual seria a sua atitude. Regressara do pavilhão do Carona naquela mesma manhã e ainda não vira Jeffrey de Peyrac. Clemente prevenira-a de que o Sr. Conde se fechara com o mouro Kuassi-Ba nos aposentos da ala direita, onde tinha o costume de se entregar a trabalhos de alquimia. Angélique mordera os lábios, despeitada. Era possível que Jeffrey só reaparecesse dali a muitas horas... Aliás, ela não desejava que ele aparecesse, era-lhe indiferente. Ainda se sentia demasiado revoltada com a mistificação de que fora objecto na véspera à noite.
A jovem decidiu ir aos aposentos onde engarrafavam os primeiros licores da estação. A mesa do Gai Savoir tinha fama de ser a mais requintada da província. Jeffrey de Peyrac dedicava pessoalmente muita atenção às ementas que oferecia aos seus visitantes, e Clemente, que nesse domínio possuía faculdades inegáveis, conquistara um lugar muito importante no governo da casa.
No entanto, assim que Angélique entrou nas cozinhas rescendentes a laranjas, anis e especiarias aromáticas, um negrinho esbaforido foi preveni-la de que o barão Benoite de Fontenac, arcebispo de Tolosa, a desejava cumprimentar, assim como ao marido.
A manhã não era o momento habitual das visitas, geralmente reservadas para as horas frescas do entardecer. Além disso, havia diversos meses que o arcebispo, depois de qualquer outra disputa de precedência, não punha os pés no palácio do conde de Peyrac, que acusava de combater a sua influência sobre o espírito dosTolosanos.
Intrigada e levemente inquieta, Angélique retirou o avental que acabava de prender com alfinetes ao vestido e saiu precipitadamente da cozinha, a ajeitar o cabelo com as mãos. Usava-os agora, de acordo com a moda, muito compridos e caindo em caracóis para a gola de rendas.
Quando chegou à galeria de entrada viu assomar ao pórtico o vulto alto do barão-arcebispo, de batina vermelha e cabeção branco.
Em baixo, nos jardins, a escolta de monsenhor os seus lacaios de espada à cinta, os seus pajens e os grandes senhores a cavalo fazia muito barulho em redor da carruagem puxada por seis cavalos baios.
Angélique caiu de joelhos para beijar o anel pastoral, mas, levantando-a, foi o bispo quem lhe beijou a mão, significando com tal gesto que a sua visita não tinha nada de solene.
Por caridade, senhora, não me façais medir pelas vossas reverências como sou idoso perante a vossa juventude.
Monsenhor só pretendia testemunhar-vos o respeito que sinto por um homem ilustre e revestido de uma dignidade sacerdotal que recebeu de Sua Santidade o Papa e do próprio Deus...
Todas as vezes que proferia palavras deste género, Angélique não podia impedir-se de recordar a madre Santa Ana, professora de educação mundana do convento de Poitiers. A madre sentir-se-ia satisfeita com a aluna, apesar de ela ter sido muito indócil.
Entretanto, o prelado tirava o chapéu e as luvas e entregava-os a um jovem abade da sua comitiva, que depois despediu com um gesto.
Os meus acompanhantes esperar-me-ão lá fora. Gostaria de falar convosco longe de ouvidos frívolos.
Angélique lançou um olhar irónico ao abadezinho assim acusado de ter ouvidos frívolos e que corou.
No salão, depois de ter mandado servir refrescos, a jovem pediu desculpa da ausência do marido e disse que ia preveni-lo.
Eu própria lamento ter-vos feito esperar, mas estava na cozinha, a vigiar a confecção dos nossos licores. Desculpai, monsenhor, abuso do vosso tempo falando-vos destes pormenores insignificantes.
Nada é insignificante para Nosso Senhor. Recordai-vos do caso de Marta, a serva. É tão raro, hoje em dia, ver uma dama nobre ocupar-se dos trabalhos do seu lar, embora deva ser a dona da casa quem dá aos criados o tom da dignidade e da actividade! E quando, ainda por cima, como no vosso caso, condessa, se alia a graça de Maria Madalena à sensatez de Marta...
Mas a voz do arcebispo denunciava preocupação e a tagarelice mundana não parecia ser arte em que ele se comprazesse. Apesar da sua boa presença e do olhar voluntariamente directo dos seus olhos azuis, havia nele um não sei quê de desconfiado que impressionava sempre os seus interlocutores. Jeffrey observara, um dia, que o arcebispo era um homem exímio em levar as pessoas a fazer mal.
Depois de ter esfregado pensativamente as mãos, afirmou que sentia enorme prazer em rever uma jovem senhora cujas idas ao arcebispado eram muito raras, desde o dia já longínquo em que a casara na Catedral de São Severino.
Vejo-vos na missa e só tenho a louvar a vossa assiduidade aos serviços da Quaresma, mas confesso, minha filha, que sinto uma certa decepção por não vos ouvir no meu confessionário.
Tenho como director espiritual o capelão da Ordem da Visitação, monsenhor.
É um digno sacerdote, mas para vós, senhora, cuja situação é tão elevada, parece-me...
Perdoai, monsenhor interrompeu Angélica, a rir, mas vou explicar-vos o meu ponto de vista: cometo pecados tão pequeninos que me sentiria constrangida se os fosse confessar a um homem da vossa importância.
Parece-me, minha filha, que vos enganais quanto à própria natureza do sacramento da penitência. Não é ao pecador que compete avaliar a extensão dos seus pecados... e quando os ecos da cidade me dão a conhecer as desordens de que este palácio é cenário, duvido muito que uma jovem tão bonita e graciosa cá possa permanecer intacta como no dia do seu baptismo.
Não tenho essa pretensão, monsenhor murmurou Angélique, de olhos baixos, mas creio que os ecos exageram. É verdade que as festas aqui são alegres. Verseja-se, canta-se, bebe-se, fala-se de amor e ri-se muito. Mas nunca fui testemunha de desordens que pudessem escandalizar a minha consciência...
Deixai-me imaginar que sois mais ingénua do que hipócrita, minha filha. Abandonaram-vos muito jovem nas mãos de um esposo cujas palavras raiaram mais de uma vez pela heresia e cuja habilidade e experiência adquirida junto das mulheres lhe permitiram afeiçoar sem dificuldade o vosso espírito ainda maleável. Basta-me evocar as demasiado célebres cortes de amor por ele realizadas todos os anos no seu palácio e nas quais comparecem, não somente os nobres da cidade, mas também mulheres burguesas e ainda todos os jovens fidalgos da província, basta-me evocar isso para tremer quando verifico que, graças à sua fortuna, adquire dia a dia uma influência maior sobre a cidade. Os principais capitouls, que são, como sabeis, os cônsules das nossas províncias, magistrados austeros e íntegros, já se inquietam por verem as esposas recebidas no palácio do Gai Savoir.
Que gente tão complicada! exclamou Angélique, fingindo-se irritada. Sempre ouvi dizer que a ambição dos grandes burgueses era precisamente serem acolhidos pela alta nobreza até ao dia em que um favor do rei lhes permitisse tornarem-se por sua vez nobres. O meu marido não é exigente, tanto no que se refere ao brasão como no tocante à antiguidade da família. Recebe aqueles e aquelas que são pessoas de espírito. Surpreende-me que esses senhores capitouls estejam assim preocupados.
A alma primeiro! exclamou o arcebispo, como se estivesse no púlpito. A alma primeiro, minha senhora, e as honras depois.
Acreditais verdadeiramente que a minha alma e a de meu marido corram grave perigo, monsenhor? perguntou Angélique, abrindo muito os olhos límpidos.
Embora se mostrasse dócil às fórmulas habituais da devoção praticadas por todas as donzelas e damas da sua categoria missas, jejuns, confissões e comunhão, o seu espírito crítico impunha-se quando o exagero contrariava o seu natural bom senso.
Ora, sem saber porquê, pressentia que o arcebispo não estava a ser sincero.
O prelado, de pálpebras baixas e mão na cruz de diamantes e ametistas, pareceu recolher-se e procurar no mais fundo do coração o eco da resposta divina.
Como sabê-lo? disse, por fim, a suspirar. Não sei nada. O que se passa neste palácio há muito que constitui para mim um mistério e torna-se dia a dia uma inquietação maior.
Nome dos antigos magistrados municipais da cidade de Tolosa. (N. do T.)
E, de súbito, perguntou:
Estais ao corrente, senhora, dos trabalhos de alquimista do vosso marido?
Francamente, não respondeu Angélica, sem se perturbar. O conde de Peyrac tem o gosto das ciências...
Diz-se até que é um grande sábio.
Assim o creio. Passa longas horas no seu laboratório, onde nunca me levou. Imagina sem dúvida que tais coisas não interessam às mulheres.
Abriu o leque e serviu-se dele para disfarçar um sorriso e talvez até uma certa contrariedade que o olhar penetrante do arcebispo começava a causar-lhe.
É meu mister sondar o coração dos humanos disse o prelado, como se adivinhasse o seu embaraço. Mas não vos perturbeis, minha filha. Leio no vosso olhar que sois sincera e, apesar da vossa pouca idade, possuidora de uma personalidade excepcional. Quanto ao vosso marido, talvez ainda esteja a tempo de se arrepender dos seus pecados e abjurar da sua heresia.
Angélique não conteve um pequeno grito.
Juro-vos que estais enganado, monsenhor! O meu marido não terá, talvez, a conduta de um católico exemplar, mas não se dedica de modo nenhum à Reforma nem a outras crenças huguenotes. Já o ouvi até troçar desses ”tristes barbes de Genebra”, que, diz, tinham recebido do Céu a missão de roubar o gosto do riso à humanidade inteira.
Palavras enganosas comentou o prelado, com ar sombrio. Não vemos passar constantemente por casa dele, por vossa casa, senhora, protestantes notórios?
São sábios com os quais discute ciência, e não religião.
A ciência e a religião estão intimamente ligadas. Há pouco tempo fui informado de que o célebre italiano Bernalli veio visitá-lo. Sabeis que esse homem, depois de ter estado em conflito com Roma por via de escritos ímpios, se refugiou na Suíça, onde se converteu ao protestantismo? Mas não percamos tempo com estes indícios reveladores de um estado de espírito que deploro. Eis o que me intriga há longos anos: o conde de Peyrac é muito rico, cada vez mais rico. De onde lhe vem uma tão grande profusão de ouro?
Mas, monsenhor, não pertence ele a uma das mais velhas famílias do Linguadoque, aparentadas até com os antigos condes de Tolosa, que tinham tanto poder na Aquitânia como os reis de então na ilha de França?
O prelado deu uma gargalhadinha desdenhosa.
É exacto. Mas costados de nobreza não significam riqueza. Os pais do vosso esposo eram tão nobres que o magnífico palácio onde hoje reinais caía em ruínas há quinze anos, apenas. O Sr. de Peyrac nunca vos falou da sua juventude?
N...nãomurmurou Angélique, surpreendida com a própria ignorância.
Nome que os naturais de Vaud davam aos seus doutores. (N. da T.)
Era filho segundo e tão nobre, repito-vos, que aos 16 anos embarcou para países distantes. Esteve muitos anos ausente e, quando reapareceu, já o julgavam morto. Os pais e o irmão mais velho tinham falecido e os credores haviam compartilhado as suas terras. Ele comprou tudo e desde então a sua fortuna não deixou de aumentar. Trata-se de um fidalgo que nunca se vê na corte, que demonstra até querer manter-se afastado dela e que não recebe nenhuma pensão real.
Mas tem terras declarou Angélique, que se sentia oprimida, talvez por causa do calor cada vez maior, criações de carneiros nas montanhas, dos quais tira lã, uma grande oficina para tecer essa lã, olivais, criação de bichos-da-seda, minas de ouro e de prata...
Dissestes, realmente, ouro e prata?
Sim, monsenhor, o conde de Peyrac possui numerosas minas em França, das quais alega que retira grande quantidade de ouro e de prata.
Como o termo que empregastes está certo, senhora! exclamou o prelado, em voz dulcerosa. Das quais alega que retira ouro e prata!... Eis o que queria ouvir. A horrível suposição precisa-se.
Que quereis dizer, monsenhor? Alarmais-me.
O arcebispo de Tolosa voltou a fitar nela o olhar demasiado claro, que por vezes tinha a dureza do aço, e redarguiu, muito devagar:
Não duvido que o vosso marido seja um dos maiores sábios da nossa época e é por isso que creio, senhora, ter ele descoberto verdadeiramente a pedra filosofal, isto é, o segredo que Salomão possuía para o fabrico mágico do ouro. Mas que via seguiu para aí chegar? Receio que tenha adquirido tal poder através de comércio com o Diabo!
Angélique imobilizou mais uma vez o leque diante dos lábios, para não desatar a rir. Esperara uma alusão ao comércio de facto a que o conde se entregava e de que ficara a fazer uma vaga ideia graças às confidências de Molines e do seu próprio pai. Isso causava-lhe certo receio, pois sabia que semelhantes actividades da parte de um nobre constituíam um procedimento que podia lançar o descrédito sobre a sua casa. Por isso a estranha acusação do arcebispo, que diziam homem de grande inteligência, começou por lhe parecer muitíssimo cómica. Falaria a sério?
De súbito, porém, numa fulgurante reviravolta de pensamentos, lembrou-se de que Tolosa era a cidade de França onde a Inquisição ainda conservava a sua sede. A terrível instituição medieval do tribunal contra os heréticos mantinha em Tolosa prerrogativas que o próprio rei não ousava contestar.
Tolosa, a cidade risonha, era também a cidade vermelha que, desde há um século, chacinara maior número de huguenotes. Tivera o seu sangrento São Bartolomeu muito antes de Paris. Realizavam-se lá mais cerimónias religiosas do que em qualquer outro lado, era uma verdadeira ”ilha sonora”, com os seus sinos a chamar perpetuamente os fiéis às igrejas, uma cidade tão submersa em crucifixos, imagens santas e relíquias como em flores. A chama espanhola abafava a pura limpidez da latinidade que lá fora deposta por antigos vencedores vindos de Roma. Ao lado das suas confrarias do prazer, como os Príncipes dos Amores e os Abades da Juventude, célebres pelas suas facécias, encontravam-se nas ruas procissões de flagelantes que, de olhar incendiado por mística paixão, rasgavam as carnes com varas e espinhos, até deixarem no pavimento rastos sangrentos.
Angélique, arrastada na voragem de uma vida despreocupada, não atentara muito nesse aspecto de Tolosa. Mas não ignorava que o próprio arcebispo, aquele homem sentado à sua frente na cadeira alta e levando aos lábios um copo de limonada gelada, continuava a ser o grão-mestre da Inquisição.
Foi, por isso, em voz francamente perturbada, que murmurou:
Não é possível, monsenhor, que façais contra o meu esposo uma acusação de bruxaria!... Fazer ouro não é coisa corrente neste país onde Deus distribuiu os Seus dons profusamente, espalhando o precioso metal em estado puro pela terra?
E acrescentou, com finura:
Disseram me que vós mesmo tendes equipas de trabalhadores que lavam em cestos o saibro do Carona e recolhem muitas veZes quantidades de areia de ouro e pepitas com as quais aliviais muitas misérias.
A vossa objecção não é desprovida de bom senso, minha filha. Mas é precisamente por saber o que o trabalho do ouro da terra rende que posso afirmar o seguinte: mesmo que se lavasse o saibro de todos os rios e ribeiros do Linguadoque, não se recolheria metade do que o conde de Peyrac parece possuir. Acreditai-me, estou bem informado.
”Não duvido”, pensou Angélique. ”E é verdade que existe de longa data o tráfico de ouro espanhol com as muares...
Os olhos azuis estavam atentos à sua hesitação. Angélique fechou o leque, com certo nervosismo e declarou:
Um sábio não é forçosamente um cúmplice do Diabo. Não dizem que na corte há sábios que instalaram um óculo para ver os astros e as montanhas da Lua e que Gastão de Orleães, tio do rei, se entrega a tais observações guiado pelo abade Picard?
Sim, com efeito. Aliás, conheço o abade Picard, que além de astrónomo é grande geonietra do rei.
Bem vedes...
A Igreja, senhora, tem espírito aberto. Autoriza todas as espécies de investigações, até mesmo as muito ousadas, como as do abade Picard, que citastes. Vou ainda mais longe: tenho sob as minhas ordens, no arcebispado, um religioso muito sábio, da Ordem dos Recolectos, o monge Bécher. Há anos que procede a investigações acerca da transmutação do ouro, mas com a minha autorização e a de Roma. Confesso que até agora me tem saído muito caro, sobretudo em produtos especiais que mando vir de Espanha e Itália. Esse homem, que conhece as tradições mais antigas da sua arte, afirma que para ter êxito é necessário receber uma revelação superior, que só pode vir de Deus ou de Satanás.
E ele teve êxito?
Ainda não.
Pobre homem! Isso significa que é mal visto tanto por Deus como por Satanás, apesar da vossa alta protecção.
Angélique mordeu os lábios, arrependida das maliciosas palavras. Tinha a sensação de que ia sufocar e de que precisava de dizer tolices para escapar a tal sorte. A conversa parecia-lhe tão estúpida quanto perigosa.
Virou-se para a porta, na esperança de ouvir o passo irregular do marido na galeria e teve um ligeiro sobressalto.
Oh, estáveis aí?!
Acabo de chegar respondeu o conde e sou imperdoável, senhor, por vos ter feito esperar. Reconheço que fui avisado da vossa visita há cerca de uma hora, mas foi-me impossível abandonar a operação muito delicada de determinada retorta.
Envergava ainda a bata de alquimista, que lhe chegava aos pés. Era uma espécie de enorme camisa onde os signos bordados do Zodíaco se misturavam com as manchas coloridas dos ácidos. Angélique teve a certeza de que se conservara assim vestido por uma espécie de provocação, assim como de que chamara ”senhor” ao arcebispo de Tolosa, a fim de tratar de igual para igual com o barão Benoit de Fontenac.
O conde fez sinal a um criado, na antecâmara, para o ajudar a despir a bata.
Depois aproximou-se e inclinou-se. Um raio de sol arrancou cintilações à sua escura cabeleira de grandes caracóis lustrosos, com a qual tinha muitos cuidados e que podia ombrear, em grandeza, com as perucas parisienses, cuja moda começava a propagar-se.
”Tem os mais belos cabelos do mundo”, pensou Angélique, cujo coração batia mais depressa do que desejaria admitir. Os seus olhos reviviam a cena da véspera. ”Não é verdade”, afirmou mais uma vez a si mesma. ”Foi outro que cantou. Oh, nunca lho perdoarei!”
Entretanto, o conde de Peyrac mandara aproximar um tamborete alto e sentava-se junto de Angélique, mas um pouco recuado.
Assim não o via, mas sentia um hálito cujo perfume lhe recordava vivamente um instante embriagador. Além disso, tinha consciência de que, enquanto trocava palavras banais com o arcebispo, Jeffrey de Peyrac não se privava de acariciar com o olhar a nuca e os ombros da sua jovem esposa, mergulhando até o olhar, audaciosamente, nas doces sombras do corpete, onde repousavam os seios, cuja perfeição pudera apreciar na véspera.
Aliás, acentuava maliciosamente tal procedimento diante do prelado, cuja virtude passava por ser intransigente.
Na verdade, embora tivesse herdado o cargo de um dos tios, o arcebispo de Tolosa fizera questão de receber ordens e assumir não somente as suas responsabilidades de administrador de uma das dioceses mais importantes de França, mas também as de pastor de almas. A sua existência exemplar, que não podia dar motivo a qualquer crítica, tornava-o ainda mais temível.
Angélique tinha vontade de se virar para o marido e suplicar-lhe: ”Rogo-vos, sede prudente!”
Ao mesmo tempo, saboreava a muda homenagem. A sua pele virginal, privada de carícias, reclamava um contacto mais concreto, o de uns lábios sabedores que a despertassem para a voluptuosidade. Muito direita, um pouco hirta até, sentia uma onda de fogo subir-lhe às faces. Dizia para consigo que estava a ser ridícula, que não havia em tudo aquilo nada que pudesse irritar o arcebispo, pois, no fim de contas, ela era a mulher daquele homem, pertencia-lhe. Invadiu-a o desejo de ser dele, de se abandonar, grave e de olhos fechados, ao seu abraço. A sua perturbação não escapava, com certeza, a Joffrey de Peyrac, que se devia sentir muito divertido. ”Brinca comigo como o gato com o rato. Vinga-se dos meus desdéns”, pensou, desorientada.
A fim de disfarçar o embaraço, chamou um dos negrinhos, que dormitava numa almofada, a um canto, e mandou-o buscar a caixa dos confeitos.
Quando o garoto apresentou a caixa de ébano com incrustações de madrepérola e contendo nozes e frutos cristalizados, pastilhas de especiarias e açúcar rosado, Angélique já recuperara o sangue-frio e acompanhava com mais atenção a conversa dos dois homens.
Não, senhor dizia o conde de Peyrac, mastigando despreocupadamente algumas pastilhas de violeta, não imagineis que me dediquei às ciências com o objectivo de conhecer os segredos do poder e da força. Tive sempre um gosto natural por essas coisas. Por exemplo, se tivesse continuado pobre, teria tentado habilitar-me ao cargo de engenheiro das” águas do rei. Não podeis fazer ideia de como estamos atrasados em França no tocante a irrigação, bombagem de água, que sei eu? Os Romanos sabiam dez vezes mais do que nós a esse respeito, e quando visitei o Egipto e a China...
Sei, com efeito, que viajastes muitíssimo, conde. Não fostes também a esses países do Oriente onde ainda conhecem os segredos dos Reis Magos?
Joffrey desatou a rir.
Fui lá, mas não encontrei os Reis Magos. A magia não me interessa. Deixo isso ao vosso honrado e ingénuo Bécher.
O qual continua a pergunta, quando terá o prazer de assistir a uma das vossas experiências e tornar-se vosso aluno de química.
Não sou professor e, mesmo que o fosse, sei que afugentaria as pessoas tacanhas.
Mas este religioso tem fama de possuir um espírito saga?
Em escolástica, sem dúvida, mas em ciências de observação é uma nulidade: não vê as coisas como elas são, mas como crê que são. Chamo a isso um homem pouco inteligente e tacanho.
Seja, é o vosso ponto de vista e eu sou muito ignorante das ciências profanas para julgar o fundamento das vossas antipatias. Não es queçais, porém, que o abade Bécher, a quem tratais por ignorante, editou em 1639 um livro extraordinário sobre alquimia, para o qual tive, aliás, certa dificuldade em obter o imprimatur de Roma.
Um escrito científico não tem nada a ver com as aprovações ou desaprovações da Igreja declarou o conde, com certa secura.
Permiti que seja de opinião diferente. Não engloba o espírito da Igreja o conjunto da natureza e dos fenómenos?
Não vejo porque terá de ser assim. Recordai, monsenhor, o ”Dai a César o que é de César”, de Nosso Senhor. César é o poder exterior dos homens e também o poder exterior das coisas. Ao falar assim, o Filho de Deus quis afirmar a independência do domínio das almas, do domínio religioso do material, e eu não duvido que a ciência abstracta aí esteja incluída.
O prelado abanou diversas vezes a cabeça, enquanto um sorriso melífluo lhe desfranzia os lábios delgados.
Admiro a vossa dialéctica. É digna da grande tradição e demonstra que assimilastes bem o ensino teórico que recebestes na universidade da nossa cidade. No entanto, é aí que intervém o critério do alto clero para pôr fim aos debates, pois nada se parece mais com a razão do que a sem-razão.
Monsenhor, eis uma frase.que, dita por vós, me encanta. Com efeito, a menos que se trate estritamente de coisas da Igreja, isto é, do dogma e da moral, acho que, quanto à ciência, devo ir buscar o meu único argumento aos factos observados, e não à argúcia lógica. Por outras palavras, devo fiar-me nos métodos de observação expostos por Bacon no seu Novum organum, editado em 1620, assim como nas indicações dadas pelo matemático Descartes, cujo Discurso do Método continuará a ser um dos monumentos da filosofia e das matemáticas...
Angélique percebeu bem que os nomes daqueles dois sábios eram quase desconhecidos do prelado, apesar da sua fama de erudito. Desejou ansiosamente que a discussão não assumisse tom mais acrimonioso e que Joffrey não procurasse contrariar o arcebispo.
”Que necessidade têm os homens de discutir por causa dos méritos respectivos de cabeças de alfinete?”, perguntava a si mesma. Mas o que mais temia era que as digressões do arcebispo tivessem por objectivo atrair Joffrey de Peyrac para uma armadilha.
Daquela vez, a susceptibilidade do homem da Igreja parecia ter sido ferida. As suas faces pálidas e cuidadosamente escanhoadas ruborizaram-se e ele cerrou as pálpebras com uma expressão de astúcia altiva que a assustou.
Sr. de Peyrac, falais de poder: poder sobre os homens, poder sobre as coisas. Já alguma vez pensastes que o extraordinário êxito da vossa existência podia parecer suspeito a muitos, e sobretudo à atenção vigilante da Igreja? A vossa riqueza, que aumenta dia a dia, os vossos trabalhos científicos, que trazem a vossa casa sábios encanecidos pelo labor... O ano passado conversei com um deles, o matemático alemão Leibniz. Espantava-o que tivésseis conseguido resolver como quem brinca problemas sobre os quais os maiores espíritos desta época se debruçaram em vão. Falais doze línguas...
Pie de laMirandole, do século passado, falava dezoito.
Possuís uma voz que faz empalidecer de inveja o grande cantor italiano Maroni, mais maravilhosamente, ergueis ao mais alto ponto perdoai-me, senhora a arte de seduzir as mulheres...
É isto?
Angélique adivinhou, com um aperto no coração, que Joffrey de Peyrac levara a mão à face desfigurada.
A confusão do arcebispo deu lugar a uma careta de irritação.
Ora, arranjais-vos não sei como para o fazer esquecer! Possuís dons excessivos, acreditai.
- O vosso requisitório surpreende-me e transtorna-me confessou lentamente o conde. Ainda não me apercebera de que despertava a tal ponto a inveja. Parecia-me, pelo contrário, que carregava comigo uma cruel desvantagem.
Inclinou-se e os seus olhos brilharam, como se acabasse de descobrir o momento oportuno para um bom gracejo.
Sabeis, monsenhor, que sou de certo modo um mártir huguenote?
Vós, huguenote?! exclamou o prelado, cheio de pavor.
Eu disse: de certo modo. Eis a história. Depois do meu nascimento, a minha mãe confiou-me a uma ama, que escolheu, não em função da sua crença religiosa, mas sim em função do tamanho dos seus seios. Ora a ama era huguenote. Levou-me para a sua aldeia das Cevenas, onde imperava o castelo de um pequeno fidalgo protestante. Não longe havia, como é costume, outro pequeno fidalgo e aldeias católicas. Não sei como as coisas se desencadearam, mas, quando eu tinha 3 anos, católicos e huguenotes bateram-se. A minha ama e as mulheres da sua aldeia tinham-se refugiado no castelo do fidalgo protestante, mas a meio da noite os católicos tomaram-no de assalto, degolaram toda a gente e deitaram fogo ao castelo. Quanto a mim, depois de me terem rasgado o rosto com três saibradas, atiraram-me por uma janela e fui cair dois andares abaixo, num pátio coberto de neve. Foi a neve que me salvou dos pedaços de madeira a arder que choviam por toda a parte. De manhã, um dos católicos que voltara para pilhar e me conhecia como sendo filho de fidalgos tolosanos, encontrou-me e meteu-me na alcofa juntamente com a minha irmã de leite, Margot, a única a escapar à matança. O homem teve de lutar com diversas tempestades de neve antes de chegar às planícies. Eu ainda estava vivo quando chegámos a Tolosa e a minha mãe levou-me para uma varanda cheia de sol, despiu-me e proibiu os médicos de se aproximarem de mim, pois estava convencida de que acabariam comigo. Passei anos assim, estendido ao sol, e só consegui andar cerca dos doze anos e aos dezasseis embarquei. Foi deste modo que tive muito tempo para estudar. Graças, primeiro, à doença e à imobilidade e, depois, às minhas viagens. Não há nada de suspeito no caso.
Após um momento de silêncio, o arcebispo observou, com ar sonhador:
O que acabais de contar esclarece muitas coisas. Já não me espanta a vossa simpatia pelos protestantes.
Não tenho simpatia pelos protestantes.
Digamos então a vossa antipatia pelos católicos.
Não tenho antipatia pelos católicos. Sou, senhor, um homem do passado e não sei viver bem na nossa época de intolerância. Devia ter nascido um ou dois séculos mais cedo, no tempo da Renascença, nome mais suave do que o da Reforma, quando os barões franceses descobriam a Itália e, atrás dela, a herança luminosa da antiguidade: Roma, a Grécia, o Egipto, as terras bíblicas...
Monsenhor de Fontenac fez um gesto imperceptível, que não escapou a Angélique.
”Levou-o aonde queria levá-lo”, pensou a jovem.
Falemos das terras bíblicas sugeriu suavemente o arcebispo. Não dizem as Escrituras que o rei Salomão foi um dos primeiros magos e enviou barcos a Ofír, onde, a recato de olhares indiscretos, transformou, pela transmutação, metais vis em metais preciosos? A história diz que partiu com os seus barcos carregados de ouro.
A história também diz que, depois de regressar, Salomão duplicou os impostos, o que prova que não levara muito ouro e, sobretudo, que não sabia quando poderia renovar a provisão. Se tivesse realmente descoberto a maneira de fabricar ouro, não teria aumentado os impostos nem tido o trabalho de mandar os seus barcos a Ofir.
É possível que, na sua sabedoria, não tenha querido dar aos súbditos o conhecimento de segredos de que eles abusariam.
No entanto, eu direi mais: Salomão não pode ter descoberto a transmutação dos metais em ouro porque a transmutação é um fenómeno impossível. A alquimia é uma arte que não existe, uma farsa sinistra que provém da Idade Média e acabará por cair no ridículo, porque ninguém conseguirá jamais efectuar a transmutação.
E eu digo-vos gritou o arcebispo, empalidecendo que vi com os meus próprios olhos Bécher mergulhar uma colher de estanho num produto da sua composição e retirá-la transformada em ouro!
Não estava transformada em ouro, mas sim revestida de ouro. Se esse bom homem se tivesse dado ao trabalho de raspar a primeira película com um punção, encontraria imediatamente o estanho, por baixo.
Exacto. Mas Bécher afirma que se tratou de um princípio de transmutação, do início do próprio fenómeno.
Seguiu-se novo momento de silêncio. A mão de Joffrey de Peyrac deslizou pelo braço da cadeira de Angélique e tocou no pulso da jovem.
Se estais convencido de que o vosso monge encontrou a fórmula mágica, que viestes pedir-me esta manhã? perguntou o conde, em tom indiferente.
Bécher está convencido de que vós conheceis o segredo supremo que permite realizar a transmutação respondeu o arcebispo, sem pestanejar.
O conde de Peyrac deu uma sonora gargalhada.
Jamais ouvi afirmação mais cómica! Eu, entregar-me a pesquisas pueris? Pobre Bécher, abandono-lhe da melhor vontade todas as emoções e todas as esperanças da falsa ciência que ele pratica e...
Interrompeu-o um ruído terrível, semelhante a um trovão ou a um tiro de canhão.
Joffrey levantou-se e empalideceu.
Foi... foi no laboratório! Meu Deus, oxalá Kuassi-Ba não tenha morrido!
Encaminhou-se para a porta, apressado.
O arcebispo erguera-se também, grave como um justiceiro. Fitou Angélique, silenciosamente, e por fim disse-lhe:
Parto, senhora. Dir-se-ia que Satanás já parece querer manifestar o seu furor pela minha presença nesta casa. Permiti que me retire.
E afastou-se em grandes passadas. Ouviu-se o estalar dos chicotes e os gritos do cocheiro, enquanto a carruagem episcopal transpunha o portão.
Ao ficar sozinha, Angélique passou, aterrada, o lencinho pela testa perlada de suor. Aquela conversa que escutara com muito interesse deixara-a desconcertada. Estava até à ponta dos cabelos com aquelas histórias de Deus, de Salomão, de heresia e de magia! Logo porém se arrependeu de pensamentos tão irreverentes e rezou um acto de contrição. Por fim disse para consigo que os homens eram insuportáveis com as suas argúcias e que, no fundo, o próprio Deus devia estar farto delas.
Conversa científica entre Angélique e o marido
Indecisa, não sabia que fazer, embora sentisse uma vontade louca de se dirigir à ala do castelo de onde viera o estranho ruído. Jeffrey parecera seriamente perturbado. Haveria feridos?... Apesar da curiosidade e da angústia, continuava imóvel. O mistério de que o conde rodeava os seus trabalhos fizera-a compreender, mais de uma vez, ser aquele o único domínio onde não admitia a curiosidade dos profanos. As explicações que acedera a dar ao arcebispo tinham sido dadas a contragosto e tendo em consideração a personalidade do visitante. E não tinham chegado para dissipar as suspeitas do prelado.
”Bruxaria!”, pensou, sacudida por um calafrio, e olhou à sua volta. A palavra parecia um gracejo sinistro naquele ambiente encantador. Mas havia ainda muitas coisas que ela ignorava.
”Vou lá ver”, decidiu, por fim. ”Se ele se zangar, paciência.”
No mesmo instante, porém, ouviu os passos do marido, que não tardou a entrar no aposento. Tinha as mãos sujas de fuligem, mas sorria.
Nada de grave, graças a Deus. O Kuassi-Ba ficou apenas com algumas escoriações ligeiras, mas tinha-se escondido tão bem debaixo de uma mesa que por momentos julguei que a explosão o volatizara. Em contrapartida, porém, os estragos materiais são grandes. As minhas retortas mais preciosas, de vidro especial da Boémia, ficaram em fanicos. Não resta nem uma!
A um sinal seu, dois pagens aproximaram-se com uma bacia e um jarro de ouro. O conde lavou as mãos e endireitou com um piparote os punhos de renda.
É necessário, Jeffrey, que consagreis tantas horas a esses trabalhos perigosos?perguntou Angélique, chamando a si toda a coragem.
É necessário ter ouro para viver respondeu o conde, designando com um gesto circular o magnífico salão, cujo tecto de madeira dourada mandara pintar de novo, recentemente.Mas a questão não é essa. Encontro em tais trabalhos um prazer que mais nada pode proporcionar-me. É o objectivo da minha vida.
Angélique sentiu um aperto no coração, como se tais palavras a privassem de um bem precioso. Mas, notando que o marido a observava com atenção, tentou assumir um ar indiferente.
O conde sorriu e acrescentou, com uma grande vénia:
É o objectivo da minha vida, tirando o de vos conquistar.
Não me considero rival dos vossos frascos e das vossas retortas! redarguiu Angélique, com excessiva vivacidade. No entanto, as palavras de monsenhor causaram-me inquietação, confesso-vos.
Deveras?
Não pressentistes nelas uma ameaça oculta?
O conde não respondeu logo. Apoiado na janela, olhava pensativamente para os telhados da cidade, tão comprimidos uns contra os outros que, com as suas telhas redondas, formavam como que um imenso tapete em que se misturavam os tons da papoula e do trevo.
À direita, a alta torre de Assézat, com a sua lanterna, lembrava a glória dos traficantes do pastel, cujos campos eram ainda extensos nos arredores. O pastel, planta cultivada abundantemente, fora durante séculos a única matéria corante natural e enriquecera os burgueses e os comerciantes de Tolosa.
Vendo que o marido não dizia nada, Angélique voltou a sentar-se e um negrinho colocou junto dela a caixa de verga onde se misturavam os fios de seda brilhante da sua tapeçaria.
O palácio estava silencioso, naquele dia seguinte à festa. Angélique pensou que almoçaria sozinha com o conde de Peyrac, a não ser que o inevitável Bernardo de Andijos se convidasse.
Reparastes na arte do inquisidor-mor? perguntou-lhe, de súbito, o marido. Começa por falar da moral, sublinha de passagem as ”orgias” do Gai Savoir, alude às minhas viagens e daí leva-nos a Salomão. Em resumo, descobre-se de repente o seguinte: o Sr. Barão Benoit de Fontenac, arcebispo de Tolosa, exige-me que compartilhe com ele o meu segredo da fabricação do ouro, pois de contrário far-me-á morrer na fogueira, como bruxo, na Praça dos Salinos.
Foi essa também a ameaça que julguei adivinhar murmurou Angélique, apavorada.Achais que ele pensa verdadeiramente que tendes comércio com o Diabo?
Ele? Não. Deixa isso ao cuidado do seu ingénuo Bécher. O arcebispo possui uma inteligência muito positiva e conhece-me muito bem. Está apenas persuadido de que conheço o segredo de multiplicar cientificamente o ouro e a prata e qer conhecê-lo também, a fim de poder utilizá-lo.
É um ser abjecto! exclamou a jovem. Parece tão digno, tão cheio de boa-fé, tão generoso...
E é. A sua fortuna vai-se em boas obras. Tem todos os dias a mesa franca para os funcionários pobres, encarrega-se do serviço de in cêndios, do asilo das crianças abandonadas, que sei eu? Está impregnado do bem das almas e da grandeza de Deus. Simplesmente, o seu demónio pessoal é o do domínio. Lamenta que tenha passado o tempo em que o único senhor de uma cidade, e até de uma província, era o bispo, que, de cruz na mão, aplicava justiça, castigava e recompensava. Por isso, quando vê crescer, defronte da sua catedral, a influência do Gai Savoir, revolta-se. Se as coisas continuarem como até agora, dentro de alguns anos será o conde de Peyrac, vosso esposo, minha querida Angélique, que dominará em Tolosa. O ouro e a prata dão poder, e eis que o ouro e a prata caíram nas mãos de um servo de Satanás! Por isso, monsenhor não hesita: ou repartimos o poder, ou então...
Que acontecerá?
Não vos assusteis, minha amiga. Embora as intrigas de um arcebispo de Tolosa nos possam ser nefastas, não me parece que tenhamos necessidade de chegar a esse ponto. Ele mostrou-me o seu jogo: quer possuir o segredo da fabricação do ouro. Eu desvendar-lho-ei de boa vontade.
Quer dizer que, afinal, o possuís? perguntou Angélique, de olhos arregalados.
Nada de confusões! Não possuo nenhuma fórmula mágica para criar ouro. O meu objectivo não é fabricar riquezas e, sim, fazer actuar as forças da natureza.
Mas isso não é já uma ideia um pouco herética, como diria monsenhor?
Vejo que fostes bem catequizada! exclamou o conde, a rir. Começais a debater-vos nas teias de aranha de todos esses argumentos especiosos. Reconheço, porém, que é difícil ver claro em tal matéria. Todavia, a Igreja da Idade Média não excomungava os moleiros a que o vento ou a água faziam girar as velas dos moinhos. Mas a Igreja de hoje ficaria em pé de guerra se eu tentasse construir, num ponto alto dos arredores de Tolosa, o mesmo modelo de bomba a vapor de água condensada que instalei na vossa mina de Argentières! Não é, contudo, pelo facto de eu colocar um recipiente de vidro ou de barro especial em cima de um lume de forja que Lúcifer entra subitamente lá dentro...
Temos de reconhecer que a explosão de há pouco foi muito impressionante... Monsenhor pareceu vivamente perturbado e creio que nisso foi sincero. Causaste-la propositadamente, para o deixar fora de si?
Não! Tratou-se de uma negligência minha. Deixei ressequir demasiado uma preparação de ouro fulminante, obtido através de ouro laminado e água-régia e precipitado em seguida pelo amoníaco. Não houve no processo nada que fosse de geração espontânea.
Que produto é esse a que chamais amoníaco?
É um produto que os Árabes já fabricavam há séculos e a que chamavam alcali volátil. Um sábio monge espanhol, que é meu amigo, enviou me recentemente um garrafão. Para ser franco, eu próprio o poderia fabricar aqui, mas é demorado e, para acelerar as minhas pesquisas, prefiro comprar os produtos de que necessito sempre que é possível encontrá-los já preparados. O fabrico de ingredientes puros atrasa muito o andamento de uma ciência que imbecis como o monge Bécher designam por química, em oposição a alquimia, que é para eles a ciência das ciências, ou seja, uma estranha mistura de fluido vital, fórmulas religiosas e não sei que mais. Mas aborreço-vos...
Não, garanto-vos! afirmou Angélique, de olhos brilhantes. Escutar-vos-ia durante horas.
O conde esboçou aquele sorriso a que as cicatrizes da face esquerda acentuavam a ironia.
Que engraçado ceiebrozinho! Jamais pensara conversar com uma mulher acerca destas coisas. Mas também eu gosto de vos falar. Tenho a impressão de que sois capaz de compreender tudo. No entanto... não estáveis a ponto de me atribuir tenebrosos poderes, quando chegastes ao Linguadoque? Ainda vos meto muito medo?
Angélique sentiu-se corar, mas sustentou-lhe corajosamente o olhar e respondeu:
Não! Sois ainda um desconhecido para mim, o que se deve, creio, ao facto de não vos parecerdes com ninguém, mas já não me meteis medo.
O conde voltou a ocupar, atrás dela, o tamborete em que se sentara durante a visita do arcebispo. Se em certas ocasiões, com uma provocação insolente, expunha à crueza da luz o rosto desfigurado, noutras procurava a sombra e a noite. A sua voz adquiria então intonações novas, como se a alma de Joffrey de Peyrac, liberta do seu invólucro de carne, pudesse enfim exprimir-se livremente
Angélique sentia junto dela a presença invisível do ”homem vermelho” que tanto a assustara. Era o mesmo homem, sem dúvida, mas o olhar dela mudara. Esteve quase a fazer-lhe a ansiosa pergunta feminina: ”Amais-me?”
De súbito, porém, o seu orgulho revoltou-se, ao recordar a voz que lhe dissera: ”Vireis... Elas vêm todas.”
A fim de disfarçar a perturbação, desviou de novo a conversa para o campo científico, onde, curiosamente, o espírito de ambos se encontrara e onde se firmara a sua amizade.
Se não achais nenhum inconveniente em ceder o vosso segredo, porque vos recusais a receber esse tal monge Bécher, pelo qual monsenhor parece interessar-se tanto?
Ora! É verdade que já posso tentar satisfazê-lo nesse ponto, mas o que me preocupa não é desvendar o meu segredo, mas sim fazê-lo compreender. Esfalfar-me-ei em vão a demonstrar que se pode transformar a matéria, mas não transmutá-la. Os espíritos que nos cercam ainda não estão amadurecidos para tais revelações... e o orgulho desses falsos sábios é tão grande que considerarão um escândalo se lhes confessar que os meus dois auxiliares mais preciosos nas minhas pesquisas foram um mouro de pele negra e um rústico mineiro saxão.
Kuassi-Ba e o velho corcunda de Argentières, Fritz Hauer?
Sim. Kuassi-Ba contou-me que, quando era pequenino e livre algures no interior da sua África selvagem, a que se chega pela Costa das Especiarias, viu trabalhar o ouro segundo antigos processos aprendidos com os Egípcios. As minas de ouro dos faraós e do rei Salomão chegavam até lá. Mas pergunto-vos, minha querida, que diria monsenhor se eu lhe revelasse que quem detém o segredo do rei Salomão é o meu negro Kuassi-Ba? A verdade, porém, é que foi ele que me orientou nos meus trabalhos de laboratório e me deu a ideia de tratar certas rochas que contêm ouro invisível. Quanto a Fritz Hauer, é o mineiro por excelência, o homem das galerias, a toupeira que só respira nas entranhas da terra. Estes mineiros saxões transmitem os seus segredos de pais para filhos e, graças a eles, pude entender as estranhas mistificações da natureza e aprender a lidar com todos os meus diversos ingredientes: chumbo, ouro, prata ou vitríolo, sublimado corrosivo e outros.
Conseguistes fabricar sublimado corrosivo e vitriolo? perguntou Angélique, a quem tais palavras recordavam vagamente qualquer coisa.
Precisamente, e isso permitiu-me demonstrar a vacuidade de toda a alquimia, pois do sublimado corrosivo posso tirar à vontade quer azougue, quer mercúrio amarelo e vermelho. O peso de mercúrio empregado no início não só não aumentará, como, pelo contrário, diminuirá, pois há perdas pelos vapores. Do mesmo modo, mediante certos processos, posso extrair prata do chumbo e ouro de certas rochas de aparência estéril. Mas se, à entrada do meu laboratório, escrevesse as palavras ”nada se perde, nada se cria”, a minha filosofia pareceria deveras ousada e até em oposição com o espírito da génese.
Não é por um processo desse género que conseguis fazer chegar a Argentières lingotes de ouro mexicano que comprais em Londres?
Saístes-me uma grande sabida e o Molines um grande tagarela! Mas não importa. Se ele falou, foi porque soube avaliar-vos. Sim, os lingotes espanhóis podem ser refundidos numa forja com pirite ou galena. Tomam então o aspecto de uma escória pedregosa e cinzenta-escura, da qual nem o mais meticuloso funcionário alfandegário se lembrará de desconfiar. E é essa substância metálica que os bons machinhos do senhor vosso pai transportam da Inglaterra para o Poitou ou de Espanha para Tolosa, onde, graças aos meus cuidados ou aos do meu saxão Hauer, é de novo transformada em belo ouro cintilante.
Trata-se de ”fraude fiscal” declarou Angélique severamente.
Sois adorável quando falais assim. Essa fraude não lesa absolutamente nada o reino nem sua majestade e enriquece-me. Por outro lado, dentro em breve mandarei chamar de novo o Fritz, a fim de equipar a mina de ouro que descobri numa terra chamada Salsigne, nas imediações de Narbona. Com o ouro dessa montanha e a prata do Poitou, deixaremos de ter necessidade dos metais preciosos da América e, consequentemente, dessa fraude, como lhe chamais.
Porque não tentastes interessar o rei nas vossas descobertas? É possível que existam em Franca outros terrenos que se possam explorar de acordo com os vossos processos, e o rei ficar-vos-ia grato.
O rei está longe, minha linda, e eu não tenho jeito nenhum para cortesão. Só as pessoas dessa espécie podem exercer alguma influência nos destinos do reino. O Sr. de Mazarino é devotado à Coroa, não o nego, mas é principalmente um intriguista internacional. Quanto ao Sr. Fouquet, encarregado de arranjar dinheiro para o cardeal Mazarino, é um génio financeiro, mas estou convencido de que o enriquecimento do país por meio de uma exploração bem planeada das suas riquezas lhe é indiferente.
Sr. Fouquet! exclamou Angélique. Agora me lembro onde ouvi falar de vitriolo romano e sublimado corrosivo! Foi no castelo do Plessis.
A cena perpassou-lhe toda pelos olhos. O italiano vestido de burel, a mulher nua entre as rendas, o príncipe de Conde e o cofrezinho onde cintilava uma ampola cor de esmeralda.
”Padre, foi o Sr. Fouquet quem vos mandou?”, perguntara o príncipe de Conde.
Angélique pensou se, ao esconder o cofrezinho, não teria detido o braço do Destino.
Em que pensais? perguntou-lhe o conde de Peyrac.
Numa estranha aventura que me aconteceu em tempos.
E, de súbito, ela, que se calara durante tantos anos, contou a história do cofrezinho, cujos pormenores tinham ficado gravados na sua memória.
A intenção do Sr. de Conde acrescentou era certamente envenenar o cardeal e talvez até o próprio rei e o seu jovem irmão. Mas o que não compreendi muito bem foram as cartas, uma espécie de compromisso assinado, que o príncipe e os outros fidalgos deveriam entregar ao Sr. Fouquet. Esperai!... o texto escapa-me... Era algo deste género: ”Comprometo-me a só pertencer ao Sr. Fouquet, a colocar os meus bens ao seu serviço...”No fim, Jeffrey de Peyrac, que a escutara em silêncio, riu-se sarcástico.
Que lindo mundo! E quando pensamos que, nessa altura, o Sr. Fouquet não passava de um obscuro parlamentar!... Mas, graças à sua habilidade financeira, já conseguia colocar os príncipes ao seu serviço. Ei-lo agora transformado na personagem mais rica do reino... com o Sr. de Mazarino, entenda-se. O que prova que existia lugar para ambos ao bom sol de sua majestade. Levastes então a audácia ao ponto de vos apoderardes do cofrezinho? Escondeste-lo?
Sim, me...
Uma prudência instintiva cerrou-lhe bruscamente os lábios.
Não, atirei-o ao lago de nenúfares do parque.
E achais que alguém suspeitou de que fôsseis a autora do desaparecimento?
Não sei. Não creio que tenham ligado muita importância à minha insignificante pessoa. No entanto, não deixei de aludir ao cofre na presença do príncipe de Conde.
Deveras? Mas foi uma loucura!
Era necessário obter para o meu pai a isenção dos direitos de portagem dos machos. Oh, é uma história muito complicada! exclamou, a rir. E agora sei que estáveis indirectamente envolvido nela. Voltaria a fazer imprudências do mesmo género, quanto mais não fosse para rever as caras assustadas daquela gente cheia de soberba.
Quando acabou de contar a sua escaramuça com o príncipe de Conde, o marido abanou a cabeça.
Espanta-me ver-vos ainda viva a meu lado. Devíeis, de facto, parecer muito inofensiva! É perigoso, no entanto, ser comparsa dessas intrigas de gente da corte. Na altura, não os teria atrapalhado nada se fosse necessário suprimir uma rapariguinha.
Enquanto falava, o conde levantou-se e Angélique viu-o aproximar-se de um reposteiro e afastá-lo bruscamente. Voltou para o seu lugar com uma expressão de contrariedade.
Não sou suficientemente lesto para surpreender os curiosos.
Estava alguém a escutar-nos?
Estou certo de que sim.
Não é a primeira vez que tenho a impressão de que as nossas con versas são escutadas.
O calor aumentava. De súbito, toda a cidade vibrou com o toque de mil sinos: eram as ave-marias. A jovem benzeu-se devotamente e murmurou uma oração à Virgem. A maré sonora espraiava se e, durante um longo momento, Angélique e o marido, que estavam sentados perto da janela aberta, não puderam falar. Nessa intimidade silenciosa, que se tornava cada vez mais frequente entre eles, Angélique sentiu-se profundamente comovida.
”Além de a sua presença não me desagradar, sinto-me feliz”, pensou, surpreendida. ”Ser-me-ia desagradável, se ele me voltasse a beijar?”
Como durante a visita do arcebispo, tinha consciência do olhar de Joffrey pousado na sua nuca branca.
Não, minha querida, não sou mágico murmurou ele. Talvez tenha recebido qualquer poder da natureza, mas tenho desejado sobretudo aprender. Compreendes? prosseguiu, num tom terno, que a encantou. Tinha sede de aprender todas as coisas difíceis: as ciências, as letras e também o que se passa no coração das mulheres. Debrucei-me deleitado sobre esse mistério encantador. Julgamos que não há nada atrás dos olhos das mulheres, mas descobrimos lá um mundo. Ou então imaginamos que existe um mundo e descobrimos que não há nada... a não ser um guizinho. Que existe atrás dos teus olhos verdes, que evocam as pradarias singelas e o oceano tumultuoso?
Angélique ouviu o mexer se e a sua magnífica cabeleira negra cobriu-lhe o ombro nu como uma pele morna e sedosa. Estremeceu sob o contacto dos lábios que a sua nuca inclinada esperava inconscientemente. De olhos fechados, saboreando o beijo longo e ardente, sentiu chegar a hora da sua derrota a hora em que, ainda indócil, mas já subjugada, se ofereceria como as outras ao abraço daquele homem misterioso.
Conan Bécher, sobrevivente da Idade Média
Pouco tempo depois, Angélique regressava de um passeio matinal na margem do Carona. Gostava de andar a cavalo e todos os dias consagrava algumas horas a esse exercício, de manhã muito cedo, quando ainda estava fresco. Joffrey de Peyrac raramente a acompanhava. Ao contrário da maioria dos fidalgos, a equitação e a caça não lhe interessava nada. Poder-se-ia dizer que receava os exercícios violentos se a sua fama de esgrimista não fosse quase tão grande como a de cantor. Afirmavam que os seus movimentos, apesar da perna aleijada, tinham algo de milagroso. Treinava-se todos os dias na sala de armas do palácio, mas Angélique nunca o vira. Havia muitas coisas que ainda ignorava a seu respeito e, às vezes, recordava com súbita melancolia as palavras que o arcebispo lhe dissera no dia do seu casamento: ”Aqui entre nós, escolhestes um marido muito curioso.”
Assim, após uma aparente aproximação, o conde parecia ter voltado a adoptar, em relação a ela, a atitude respeitosa, mas distante, dos primeiros tempos. Via-o muito pouco e sempre na presença de convidados, e perguntava a si mesma se a tumultuosa Carmencita de Mérecourt não teria alguma culpa no novo afastamento. Na realidade, depois de uma viagem a Paris, a dama regressara a Tolosa, onde a sua exaltação punha todos sobre brasas. Desta vez garantia-se muito seriamente que o Sr. de Mérecourt a fecharia num convento. E, efectivamente, se não cumpria a ameaça, isso se devia a razões diplomáticas. A guerra com a Espanha continuava, mas o Sr. de Mazarino, que tentava negociar a paz havia muito tempo, recomendava que não se fizesse nada susceptível de ferir as susceptibilidades espanholas. A bela Carmencita pertencia a uma grande família madrilena e, por isso, as flutuações da sua vida conjugal tinham mais importância do que as batalhas campais da Flandres e em Madrid sabia-se tudo, pois, apesar de as relações oficiais estarem cortadas, não cessavam de passar os Pirenéus mensageiros secretos, com os mais variados disfarces: monges, bufarinheiros ou mercadores, etc.
Carmencita de Mérecourt estava, pois, em Tolosa, onde fazia gala da sua vida excêntrica, e Angélique sentia-se inquieta e escandalizada com isso. Apesar do à-vontade mundano que adquirira graças ao contacto com aquela sociedade brilhante, no fundo continuava a ser simples como uma flor do campo, provinciana e com uma certa tendência para a desconfiança. Não se sentia à altura de lutar contra Carmencita e pensava muitas vezes, com o coração roído de ciúmes, que a espanhola estava mais de acordo com o carácter original do conde de Peyrac do que ela própria.
Só no domínio das ciências sabia que era a primeira mulher aos olhos do marido.
Precisamente nessa manhã, ao aproximar-se do palácio com a sua escolta de pajens, fidalgos galantes e algumas jovens amigas cuja companhia apreciava, viu de novo, parada diante do pórtico, uma carruagem com o brasão do arcebispo. Da carruagem desceu um vulto alto e austero, vestido de burel, e depois um senhor todo enfeitado de fitas e de espada à cinta, o qual parecia ter voz grossa, pois ouvia-se de muito longe o eco das suas ordens e das injúrias que gritava.”.
Meu Deus! exclamou Bernardo de Andijos, que era sempre um dos fiéis acompanhantes de Angélique. Parece me que é o cavaleiro de Germontaz, sobrinho de monsenhor. O Céu nos valha! É um grosseiro dos piores que conheço. Se acreditais nas minhas palavras, senhora, passemos pelos jardins, para evitarmos encontrá-lo.
O pequeno grupo virou para a esquerda e, depois de deixar as montadas na cavalariça, seguiu para o laranjal, que era um lugar muito agradável, cercado de jactos de água.
Mal, porém, os convivas se tinham sentado para tomar uma leve refeição de frutos e bebidas geladas, Angélique foi informada por um pajem de que o conde de Peyrac solicitava a sua presença.
Encontrou o marido na galeria de entrada, na companhia do fidalgo e do monge avistados de longe.
Este é o abade Bécher, o ilustre sábio de que monsenhor já nos falou apresentou Joffrey. Apresento-vos igualmente o cavaleiro de Germontaz, sobrinho de Sua Excelência.
O monge era alto e seco e as suas sobrancelhas proeminentes ocultavam os olhos muito chegados e um pouco vesgos, iluminados por um brilho febril e místico. Do hábito de burel saía um pescoço comprido e magro, de tendões grossos e salientes. O seu companheiro parecia em tudo o seu oposto. Tão bon vivant quanto o outro se mostrava consumido pela maceração, o cavaleiro de Germontaz tinha rosto corado e, para os seus 25 anos, um bojo já muito respeitável. Uma opulenta peruca loura caía-lhe numa cascata de caracóis para o fato de retini azul enfeitado com vagas de fitas cor-de-rosa. A sua rhingrave era tão ampla e as suas rendas tão abundantes que a espada de fidalgo parecia uma incongruência em tal profusão de frufrus. Varreu o chão diante de Angélique com a pluma de avestruz do chapéu e beijou-lhe a mão, mas, ao endireitar-se, lançou-lhe um olhar tão atrevido que ela se escandalizou.
Agora, que a minha mulher chegou, podemos ir ao laboratório disse o conde de Peyrac.
O monge estremeceu e pousou em Angélique um olhar surpreendido.
- Devo entender que a senhora penetrará no santuário e assistirá às conversas e às experiências a que vos dignais associar-me?
O conde fez uma careta irónica e olhou o convidado com insolência. Sabia quanto as suas expresssões impressionavam os que o viam pela primeira vez e tirava maliciosamente proveito disso.
Padre, na carta que dirigi a monsenhor consentindo em receber-vos, segundo o desejo que ele tantas vezes me exprimira, disse-lhe que apenas se trataria, de certo modo, de uma visita e que a ela poderiam assistir pessoas da minha escolha. Monsenhor mandou convosco o Sr. Cavaleiro, para o caso de os vossos olhos não verem tudo quanto é desejável ver...
Mas, Sr. Conde, vós, um sábio, não ignorais que a presença de uma mulher está em contradição absoluta com a tradição hermética segundo a qual nenhum resultado se pode obter através de fluidos opostos...
Imaginai, padre, que na minha ciência os resultados são sempre fiéis e não dependem nem do humor nem da qualidade das pessoas presentes.
Eu acho isso muito bem! declarou o cavaleiro, encantado. Não escondo que me agrada mais uma dama bonita do que frascos e recipientes velhos. Mas o meu tio insistiu em que acompanhasse o Bécher, a fim de tomar conhecimento dos deveres do meu novo cargo... Sim, o meu tio vai-me comprar um cargo de grande vigário de três bispados. No entanto, como é um homem terrível, só mo comprará na condição de eu receber ordens. Confesso que me teria contentado com os benefícios...
Enquanto conversava, o pequeno grupo dirigia-se para a biblioteca, que o conde desejava mostrar primeiro. O monge Bécher, para quem aquela visita era uma bênção havia muito esperada, fazia uma infinidade de perguntas, às quais Jeffrey de Peyrac respondia com resignada paciência.
Angélique ia atrás, acompanhada pelo cavaleiro de Germontaz, que não perdia a mínima ocasião de lhe tocar e de lhe dirigir olhares provocantes.
”É de facto um grosseirão”, pensou. ”Parece um leitão gordo enfeitado de flores e rendas para a ceia da meia-noite.”
Não compreendo bem confessou em voz altaque relação pode ter uma visita ao laboratório do meu marido com o vosso novo cargo eclesiástico.
Eu também não, apesar de o meu tio mo ter explicado demoradamente. Parece que a Igreja é menos rica e menos poderosa do que aparenta e, sobretudo, do que deveria ser. O meu tio lamenta-se igualmente da centralização do poder real em detrimento dos direitos de estados como o Linguadoque. Coarctam-se cada vez mais as atribuições das assembleias da Igreja e até do parlamento local, de que ele é, como sabeis, presidente. Substitui-se a autoridade dessas instituições pela do intendente provincial e dos seus esbirros da Polícia, da finança e do Exército. A essa invasão dos irresponsáveis do rei desejaria meu tio opor a aliança das altas personagens da província. Mas vê que o vosso marido vai acumulando uma fortuna colossal sem que nem a cidade nem a Igreja de tal colham benefício.
Mas, Sr. Cavaleiro, nós damos para as obras de caridade.
Não é suficiente. O que ele deseja é a aliança.
”Falta-lhe subtileza, para um aluno do inquisidor mor”, pensou Angélique. ”A não ser que se trate de uma lição bem aprendida!
Em suma, monsenhor acha que todas as fortunas da província devem ser colocadas nas mãos da Igreja?
A Igreja deve ocupar o primeiro lugar.
Com monsenhor a dirigi-la! Pregais muito bem, acreditai. Já não me surpreende que vos destinem à eloquência sagrada. Apresentai os meus cumprimentos ao vosso tio.
Não me esquecerei, amabilíssima senhora. O vosso sorriso é delicioso, mas creio que falta aos vossos olhos ternura por mim. Não esqueçais que a Igreja continua a ser a primeira força, sobretudo no nosso Linguadoque.
Noto principalmente que sois um aprendiz de vigário convicto, apesar das vossas fitas e das vossas rendas.
A riqueza é um meio convincente. Meu tio soube empregá-la a meu respeito e eu servi-lo-ei o melhor possível.
Angélique fechou secamente o leque. Já não se admirava de que o arcebispo depositasse confiança no gordo do sobrinho. Mal-grado os seus caracteres opostos, a sua ambição era a mesma.
Na biblioteca, mantida na penumbra pelas portas de madeira exteriores das janelas, alguém se mexeu e se dobrou em dois quando entraram.
Que fazeis aqui, Clemente? perguntou o conde, em tom de surpresa. Ninguém entra aqui sem minha permissão e eu não creio ter-vos dado a chave.
Que o Sr. Conde me desculpe, mas desejei encarregar-me pessoalmente da arrumação desta sala; não quis confiar o cuidado destes livros preciosos a um criado boçal.
E, apressadamente, reuniu pano, escova e escabelo e retirou-se, fazendo mais algumas reverências.
Decididamente, começo a crer que verei aqui coisas bem estranhas comentou, a suspirar, o monge. Uma mulher no laboratório e um criado na biblioteca, a tocar com as mãos impuras nos volumes que contêm todas as ciências! Enfim, verifico que a vossa reputação nem por isso é menor... Vejamos, que tendes ali?
Acabava de ver, ricamente encadernados, clássicos da alquimia, como: Princípios de Conservação dos Corpos ou Múmia, de Paracelso; Alquimia, do grande Alberto; Hermética, de Hermann Couringus; Explicação 1572, de Tomás Erasto, e, finalmente, o que o cumulou de ventura, o seu próprio livro: Da Transmutação, de ConanBécher.
Foi completamente tranquilizado e com a confiança recuperada que o monge seguiu o seu anfitrião.
O conde saiu com os convidados do palácio e conduziu-os à ala onde tinha o laboratório.
Ao aproximarem-se, os visitantes viram fumegar, no telhado, uma enorme chaminé encimada por uma espécie de cotovelo de cobre que lembrava um bico de uma ave apocalíptica. Quando chegaram mais perto, o aparelho, com um rangido na sua direcção, mostrou a bocarra negra, pela qual saía fumo fuliginoso.
O monge deu um salto para trás.
É um cata-vento de chaminé, para activar a tiragem dos fornos pelo vento explicou o conde.
No meu laboratório, quando está vento, a tiragem faz-se muito mal.
Aqui acontece o contrário, porque utilizo a depressão provocada pelo vento.
E o vento põe-se ao vosso serviço?
Exactamente. Como quando acciona um moinho de vento.
Num moinho, Sr. Conde, o vento faz girar as mós.
Aqui, os fornos não giram, mas o ar é aspirado.
Não podeis aspirar o ar.que é feito de vácuo.
Não obstante, vereis que tenho uma tiragem dos infernos.
O monge benzeu-se três vezes antes de transpor o limiar, atrás de Angélique e do conde, enquanto o negro Kuassi-Ba saudava solenemente com o seu sabre curvo e depois o metia de novo na bainha.
Ao fundo da imensa sala viam-se dois fornos avermelhados. Um terceiro, idêntico, parecia apagado. Diante dos fornos encontravam-se uns estranhos aparelhos de cobre e ferro, assim como tubos de barro e cobre.
São os meus foles de forja, para quando preciso de um fogo muito forte; por exemplo, quando tenho necessidade de fundir cobre, ouro ou prata explicou Joffrey de Peyrac.
Ao longo da sala principal havia umas pranchas corridas a formar prateleiras e que estavam cheias de boiões e frascos com etiquetas marcadas por sinais cabalísticos e algarismos.
Tenho ali uma reserva de diversos produtos: enxofre, cobre, ferro, estanho, chumbo, bórax, ouro-pigmento, rosalgar, cinábrio, mercúrio, pedra-infernal e vitriolo azul e verde. Defronte, naqueles garrafões de vidro, tenho óleum, água-forte e espírito-de-sal. Na prateleira mais alta vedes os meus tubos e as minhas vasilhas de vidro, ferro e barro vidrado e, mais adiante, retortas e alambiques. Na salinha do fundo estão rochas de ouro invisível, como este minério arsenical, e diversas pedras que, pela fusão, dão prata. Isto é prata córnea do México, que me trouxe um nobre espanhol vindo de lá.
O Sr. Conde pretende zombar do pouco saber de um monge ao afirmar que esta matéria cerosa é prata, pois não vejo vestígios dela.
Ides vê-los num instante prometeu o conde.
Pegou num grande bocado de carvão vegetal, de um monte existente ao lado dos fornos, e tirou de um frasco uma vela de sebo, que acendeu no brasido. Com um punção de ferro abriu um buraquinho no carvão, no qual depositou um pedacinho da ”prata córnea”, que era de um cinzento-amarelado sujo e semitranslúcido, e acrescentou um pouco de bórax, que identificou. Depois aproximou da chama da vela um tubo de cobre recurvo e soprou a chama contra o buraquinho que continha as duas substâncias salinas. Estas derreteram-se, aumentaram de volume e mudaram de cor, aparecendo depois uma série de glóbulos metálicos, que, soprando com um pouco mais de força, o conde amalgamou numa única placa brilhante.
Afastou a chama e retirou com a ponta de uma faca o lingotezinho cintilante.
Eis prata fundida que extraí, diante dos vossos olhos, daquela pedra de estranho aspecto.
Fazeis com igual simplicidade a transmutação do ouro?
Não faço nenhuma transmutação; limito-me a extrair metais preciosos dos minérios que já os contêm, embora num estado não metálico.
Com ar pouco convencido, o monge tossicou e olhou em seu redor.
Que são aqueles tubos e aquelas caixas bicudas?
É uma canalização de adução de água à maneira chinesa, para efectuar experiências de lavagem e captar o ouro pelo mercúrio, nas areias
Abanando circunspectamente a cabeça, o monge acercou-se de um forno que rugia e no qual fervilhavam diversos cadinhos, em parte aquecidos ao rubro.
Vejo, sem dúvida, uma excelente instalaçãoobservou, mas nada que se assemelhe, nem de perto nem de longe, ao atanor ou à célebre ”casa do frango do sábio”.
Peyrac quase sufocou a rir. Depois, mais calmo, desculpou-se:
Perdoai, padre, mas a última colecção dessas veneráveis idiotices foi destruída pela explosão de ouro fulminante de que monsenhor foi testemunha, outro dia.
Monsenhor falou-me efectivamente disso confirmou Bécher, em tom deferente. Conseguis então fazer um ouro instável e que explode?
Para nada vos ocultar, digo-vos que consigo até fabricar um mercúrio fulminante.
E o ovo filosófico?
Tenho-o na cabeça!
Blasfemais!protestou o monge, inquieto.
Que história é essa de frango e de ovo? perguntou Angélique, admirada. Nunca ninguém me falou disso.
Bécher lançou-lhe um olhar desdenhoso. Mas, vendo que o conde de Peyrac dissimulava um sorriso e que o cavaleiro de Germontaz bocejava sem cerimónia, contentou-se, à falta de melhor, com a modesta audiência.
É no ovo filosófico que se executa a Grande Obra explicou, como se quisesse perfurar com o olhar de fogo os olhos ingénuos da jovem. A conduta da Grande Obra faz-se sobre ouro purificado. Sol e prata fina Lua, a que se deve juntar azou gue Mercúrio. O hermetista submete-os, no ovo filosófico ou matraz fechado, aos ardores crescentes e decrescentes de um fogo bem regulado Vulcano. Isso tem como efeito desenvolver no composto os poderes seminais de Vénus, dos quais a pedra filosofal, substância regeneradora, é a espécie visível. A partir daí, as reacções desenvolvem-se no ovo seguindo uma ordem certa: permitem vigiar a cozedura da matéria. Importa sobretudo prestar atenção às três cores: negro, branco e vermelho, que indicam respectivamente a putrefacção, a ablação e a rubefacção da pedra filosofal. Em resumo, a alternância de morte e ressurreição, pela qual, segundo a antiga filosofia, deve passar, para se reproduzir, toda a substância que vegeta.
”O espírito do mundo, mediador obrigatório da alma e do corpo universal, é a causa eficiente das gerações de toda a espécie, a que vitaliza os quatro elementos. Esse espírito é detido no ouro, mas infelizmente fica lá inactivo e prisioneiro. É ao sábio que compete libertá-lo.
E como procederíeis, padre, para libertar esse espírito que se encontra na base de tudo e é prisioneiro do ouro? perguntou suavemente Peyrac.
Mas o alquimista ficou insensível à ironia. De cabeça inclinada para trás, abandonou-se ao seu velho sonho:
Para o libertar é necessária a pedra filosofal. Mas esta não basta. É preciso dar o impulso com o auxílio da pólvora, início do fenómeno que transformará tudo em ouro puro.
Ficou um momento silencioso, mergulhado nos seus pensamentos.
Após anos e anos de investigação, creio poder dizer que obtive alguns resultados. Assim, juntando o mercúrio dos filósofos, princípio feminino, com o ouro, que é masculino, mas um ouro escolhido puro e em folhas, meto essa mistura no atanor, ou casa do frango do sábio, santuário, tabernáculo que todo o laboratório de alquimista deve possuir. O ovo, que é uma retorta de forma oval perfeita e hermeticamente estanque, a fim de que nenhuma parte da matéria possa exalar-se, é colocado por mim numa escudela cheia de cinzas e metido no forno. Então, esse mercúrio, pelo seu calor e pelo seu enxofre interior excitado pelo fogo, que mantenho continuamente no grau e na proporção necessários, esse mercúrio logra dissolver o ouro sem violência e reduzi-lo ao estado de átomos. Ao fim de seis meses obtenho um pó negro, a que chamo trevas quiméricas. Com esse pó é-me possível transformar certas partes de objectos de metal vivo em ouro puro, mas, infelizmente, o germe vital do meu purum aurum ainda não é suficientemente forte, pois nunca consegui transformá-los em profundidade e completamente!
Mas tentastes certamente, padre, fortificar esse germe mori bundo? perguntou Jeffrey de Peyrac, com um brilho divertido no olhar.
Sim, e por duas vezes julgo ter estado muito perto do objectivo. Eis como procedi da primeira vez. Durante doze dias fiz macerar em estrume sucos de mercurial, de beldroega e de celidónia. Em seguida destilei o produto e obtive um licor vermelho. Voltei a pô-lo em estrume. Nasceram vermes que se devoraram uns aos outros, excepto um que permaneceu só. Alimentei esse verme único com as três plantas precedentes até ele ficar grande. Em seguida queimei-o, reduzi-o a cinzas e misturei o pó a óleo de vitríolo, assim como a pó de trevas quiméricas. Mas este ficou apenas um nadinha fortificado.
Puf! exclamou o cavaleiro de Germontaz, repugnado. Angélique lançou um olhar assustado ao marido, que continuava impassível.
E da segunda vez? indagou o conde.
Da segunda vez tive uma grande esperança. Foi quando um viajante que naufragara e fora parar a margens desconhecidas me entregou terra virgem, que, segundo me garantiu, nenhum homem pisara antes dele. Com efeito, a terra absolutamente virgem encerra a semente ou o germe dos metais, isto é, a verdadeira pedra filosofal. Mas por certo aquela parcela de terra não era inteiramente virgem concluiu tristemente o sábio religioso, pois não obtive os resultados esperados.
Angélique também sentia vontade de rir. Um pouco precipitadamente, a fim de disfarçar o riso, perguntou:
Vós mesmo, Jeffrey, não me dissestes que naufragastes numa ilha deserta, coberta de brumas e gelos?
O monge Bécher estremeceu e, de olhos brilhantes, agarrou o conde de Peyrac pelos ombros.
Naufragastes numa terra desconhecida? Eu sabia-o, eu desconfiava disso! Sois então aquele de que falam os nossos escritos herméticos, aquele que regressa da ”parte posterior do mundo, onde se ouve rugir o trovão, soprar o vento, cair o granizo e a chuva. Será nesse lugar que se encontrará a coisa, se for procurada”. ”
Havia um pouco do que descrevestes admitiu, em tom indiferente, o fidalgo. Acrescentarei até uma montanha de fogo no meio de gelos que me pareceram eternos. Nem um habitante. Tratava-se da chamada Terra do Fogo. Fui salvo por um veleiro português.
Daria a vida, e até a alma, por um punhado dessa terra virgem! exclamou Bécher
Infelizmente, padre, confesso que não pensei em trazer nenhuma! O monge lançou lhe um olhar sombrio e desconfiado e Angélique teve a certeza de que ele não acreditara nas palavras do marido.
Os olhos claros da jovem iam de um ao outro dos três homens que se encontravam diante dela naquele estranho cenário de provetas e frascos. Encostado à parede de tijolos de um dos seus fornos, Joffrey de Peyrac, o Grande Coxo do Linguadoque, pousava nos seus interlocutores um olhar arrogante e irónico. Não se importaria nada de dizer em que fraca conta tinha o velho D. Quixote da alquimia e o Sancho Pança ataviado de fitas. Em contraste com aquelas duas grotescas criaturas, Angélique viu-o tão grande, tão livre e tão extraordinário que um sentimento excessivo lhe dilatou o coração, ao ponto de lho fazer doer.
”Amo-o”, pensou de súbito. ”Amo-o e tenho medo. Ah, que não lhe façam mal! Não antes... não antes...
Temerosa, não ousava terminar o desejo: ”Não antes de me ter apertado nos braços...
Corte de amor no Gai Savoir
O amor Disse Jeffrey de Peyrac, a arte do amor, é a preciosíssima característica da nossa raça. Viajei por muitos países e em todos vi que tal era admitido. Regozijemo-nos, senhores, e vós, senhoras, orgulhai-vos, mas acautelemo-nos todos, pois nada é mais frágil do que essa reputação se não for amparada por um coração subtil e um corpo sábio.
Inclinou o rosto, coberto por uma máscara de veludo muito preto e emoldurado pela abundante cabeleira, e viram-no sorrir.
É por isso que estamos reunidos neste palácio do Gai Savoir. No entanto, não vos convido a um regresso ao passado. Evocarei, sem dúvida, o nosso mestre da arte de amar, que outrora despertou o coração dos homens para o sentimento amoroso, mas não abandonaremos o que os séculos seguintes proporcionaram ao nosso aperfeiçoamento, como a arte de conversar, de divertir, de fazer brilhar o espírito, ou ainda, gozo mais simples, mas que tem a sua importância, o gosto da boa mesa e do bem beber, para ficar com disposição amorosa.
Ah, isso agrada-me mais! rosnou o cavaleiro de Germontaz. Quero lá saber do sentimento! Eu como meio javali, três perdizes e seis frangos, despejo uma garrafa de champanhe e toca, minha bela, para a cama!
E, quando essa bela se chama Sr.a de Montmaure, conta que vós ressonais muito bem e ruidosamente, mas que, na cama, isso é tudo quanto sabeis fazer.
Ela conta isso? Oh, a traidora! É verdade que uma noite, achando-me pesado...
Uma gargalhada geral interrompeu o gordo cavaleiro, que, fazendo das tripas coração, engoliu a troça, levantou a tampa de prata de uma das bandejas e tirou com dois dedos uma asa de frango.
Eu, quando como, como. Não sou como vós, que misturais tudo e procurais dar requinte ao que não precisa dele para nada.
Porco grosseiro murmurou suavemente o conde de Peyrac, com que prazer vos contemplo! Personificais tão bem o que banimos dos nossos costumes, tudo quanto detestamos! Vede, senhores, e vós também, senhoras, eis o descendente dos bárbaros, desses cruzados que, à sombra dos seus bispos, acenderam milhares de fogueiras entre Albi, Tolosa e Pau. Tinham uma inveja tão feroz desta terra encantadora, onde se cantava o amor das damas, que a reduziram a cinzas e transformaram Tolosa numa cidade intolerante, desconfiada, de olhos duros de nanática. Não esqueçamos...
”Ele não deveria falar assim”, pensou Angélique, pois, embora se rissem, ela via brilhar em certos olhos negros uma chama cruel. O rancor daquela gente do Sul por um passado de quatro séculos era uma coisa que não deixava de a surpreender. Mas o horror da cruzada dos Albigenses devia ter sido tal que nos campos ainda se ouviam mães ameaçarem os filhos de que chamariam o terrível Montfort.
Jeffrey de Peyrac gostava de atiçar esse rancor, menos por fanatismo provincial do que por horror a toda a tacanhez de espírito, a toda a grosseria e estupidez.
Sentada no outro extremo da imensa mesa, Angélique observava-o, no seu fato de veludo carmesim constelado de diamantes. O rosto mascarado e os cabelos escuros realçavam a brancura da gola alta de rendas da Flandres, dos punhos e também das mãos compridas e vivas, que ostentavam um anel em cada dedo.
Ela estava de branco, o que lhe recordava singularmente o dia do seu casamento. Como nesse dia, os mais nobres senhores do Linguadoque e da Gasconha estavam presentes e guarneciam as duas grandes mesas de banquetes que tinham montado na galeria do palácio. Agora, porém, não se viam nem velhos nem eclesiásticos entre os brilhantes convivas. Angélique, que entretanto aprendera a dar um nome a cada rosto, verificava que a maioria dos pares que a cercavam naquela noite eram ilegítimos. Andijos levara a amante, uma flamejante parisiense. A Sr.a de Saujac, cujo marido era magistrado em Montpellier, reclinava ternamente a cabeça morena no ombro de um capitão de bigode dourado. Alguns cavaleiros que tinham aparecido sozinhos aproximavam-se de damas tão audaciosas e independentes que se haviam apresentado sem companhia na célebre corte de amor.
Desprendia-se daqueles homens e daquelas mulheres luxuosamente vestidos uma impressão de juventude e beleza. Os candelabros e os tocheiros arrancavam reflexos ao ouro e às pedras preciosas. As janelas do aposento estavam escancaradas para a tépida noite primaveril. Para afastar os mosquitos, queimavam-se em defumadores folhas de erva-cidreira e incenso, cujo odor se misturava, capitoso, ao dos vinhos.
Angélique sentia-se provinciana e deslocada como uma flor silvestre num canteiro de rosas.
No entanto, estava muito bela e o seu porte não tinha nada a invejar aos das mais nobres damas.
A mão do duquezinho de Forba dês Ganges aflorou-lhe o braço nu.
Que dor, senhora, que tal amo vos possua! Esta noite só tenho olhares para vós.
Ela deu-lhe, com a ponta do leque, uma pancadinha irritada nos dedos e recomendou-lhe:
Não vos apresseis a pôr em prática o que vos ensinam aqui. Escutai antes sabiamente as palavras da experiência: ai daquele que se apressa e gira consoante todos os ventos! Não reparastes como a vossa vizinha da direita tem o nariz atrevido e as faces rosadas? Disseram-me que se trata de uma viuvinha que só deseja ser consolada da morte de um marido muito velho e rabugento.
Obrigado pelos vossos conselhos, senhora.
”Amor novo expulsa o antigo”, disse o mestre Lê Chapelain. acrescentou Angélique.
Qualquer ensinamento da vossa encantadora boca não pode deixar de ser respeitado. Permiti que vos beije os dedos e prometo ocupar-me da viuvinha.
Do outro lado da mesa iniciara-se uma discussão entre Cerbalaud e o Sr. de Castel-Jalon.
Sou pobre como um mendigo dizia o último e não escondo que tive de vender uma jeira de vinha a fim de me enfarpelar decentemente para aqui vir. Mas afirmo que não preciso de ser rico para ser amado por mim próprio.
Jamais sereis amado com delicadeza. Quando muito, o vosso idílio equivalerá ao de um crente que acaricia a garrafa com uma das mãos e a amiga com a outra, enquanto pensa tristemente nas boas moedas penosamente ganhas que terá de desembolsar para pagar uma e outra.
Considero que o sentimento...
O sentimento não se cultiva na penúria...
Jeffrey de Peyrac estendeu as mãos a rir.
Paz, senhores! Escutai o mestre antigo, cuja filosofia humana põe cobro a todos os nossos debates. Eis as palavras com as quais começa a sua Arte de Amar: ”O amor é aristocrático. Para se ocupar do amor não se devem ter preocupações no tocante à vida material nem ser por esta pressionado ao ponto de contar o tempo de cada dia.” Portanto, sede ricos, senhores, e cumulai as vossas belas de jóias. O clarão de um olhar de mulher perante um adereço não precisa de muito para se transformar num clarão de amor. Pessoalmente, adoro o olhar que uma mulher bem adornada lança ao seu espelho. Não protesteis, senhoras, não sejais hipócritas. Apreciais aquele que vos desdenha ao ponto de não tentar tornar a vossa beleza mais ofuscante?
As senhoras riram-se e trocaram segredinhos.
Mas eu sou pobre! exclamou Castel-Jalon, tristemente. Peyrac, não sejais tão duro, devolvei-me a esperança!
Tornai-vos rico!
Isso é fácil de dizer.
É sempre fácil de conseguir por quem o quer. Ao menos não sejais avaro. ”A avareza é o pior inimigo do amor.” Já que és pobre, não contes o teu tempo nem as tuas proezas, faz mil loucuras, faz sobretudo rir. ”O tédio é o verme que corrói o amor.” Não é verdade, minhas senhoras, que preferis um bobo a um sábio solene? Por fim, digo-te, como derradeira consolação: ”Só o érito torna digno o amor.”
”Como a sua voz é bela e que bem fala!”, pensou Angélique.
O beijo do duquezinho deixara-lhe nos dedos uma queimadura. Dócil, o jovem desviara dela as atenções e inclinara-se para a viuvinha de tez rosada. Angélique estava sozinha e, através da comprida mesa e do fumo azulado que saía dos defumadores, o seu olhar não se despregava do vulto vermelho do dono da casa. Vê-la-ia? Lançar-lhe-ia um apelo por trás daquela máscara com a qual ocultara o rosto desfigurado? Ou, desenvolto, indiferente, limitar-se-ia a saborear, como epicuro saciado, a delicada justa das palavras?
Sabei que me sinto muito desconcertado declarou, de súbito, o jovem duque de Forba dês Ganges, soerguendo-se. É a primeira vez que assisto a uma corte de amor e esperava, confesso, uma agradável libertinagem, e não ouvir dizer uma frase tão severa: ”Só o mérito torna digno o amor.” Teremos de nos transformar em santinhos para conquistarmos as nossas damas?
Deus vos livre de tal, Sr. Duque! exclamou, rindo, a viuvinha.
O desafio é grave declarou Andijos. Amar-me-íeis se uma auréola me adornasse a cabeça, queridíssima?
Claro que não.
Porque atribuís o mérito aos altares? perguntouJoffrey de Peyrac. O mérito consiste em ser louco, alegre, audaz, cavalheiresco, versejador e sobretudo, prestai atenção, senhores! amante hábil e sempre disposto. Os nossos pais opunham o amor cortês ao amor atrevido. Eu dir-vos-ei: façamos nossa norma um e outro. É preciso amar verdadeira e completamente, isto é, carnalmente.
Calou-se um instante e depois prosseguiu, em voz mais surda:
Mas não desprezemos a exaltação sentimental, que, sem ser estranha ao desejo, o transcende e purifica. É por isso que, quanto a mim, aquele que quer conhecer o amor deve sacrificar à disciplina do coração e dos sentidos que Lê Chapelain recomenda: ”Um amante só deve ter uma amante. Uma amante só deve ter um amante.” Escolhei-vos, amai-vos, separai-vos quando o cansaço chegar, mas não sejais desses amantes volúveis que praticam a bebedeira das paixões, bebem de todas as taças ao mesmo tempo e transformam as cortes dos reinos em capoeiras.
Por São Severino! exclamou Germontaz, levantando a cabeça do prato. Se o meu tio arcebispo vos ouvisse, perderia o tino. O que dizeis não se assemelha a nada que tenha ouvido, jamais alguém me ensinou tais coisas.
Ensinaram-vos tão poucas coisas, Sr Cavaleiro!... Que há nas minhas palavras que tanto vos choca?
Tudo. Pregais a fidelidade e a libertinagem, a decência e o amor carnal, e depois, de repente, como se estivésseis num púlpito, estigmatizais ”a bebedeira das paixões”. Repetirei essa expressão ao meu tio arcebispo. Tenho a certeza de que a aproveitará no próximo domingo, em plena catedral.
As minhas palavras são palavras de sabedoria humana. O amor é inimigo dos excessos. Nisso, como quando se trata de comer bem, prefiramos a qualidade à quantidade. O limite do prazer termina onde começam o esforço e o nojo da desvergonha. Mas será capaz de saborear um beijo sabedor aquele que se empanturra como um porco e bebe como uma esponja?
Deverei reconhecer-me nessa descrição? rosnou o cavaleiro de Germontaz, com a boca cheia.
Angélique pensou que, pelo menos, o homem não tinha mau feitio. Mas porque parecia que Jeffrey o queria provocar? Ele próprio não dissimulava o perigo daquela presença desagradável.
O arcebispo mandou-nos o sobrinho como espião, anunciara à mulher na véspera do festim. E acrescentara, despreocupado: Sabeis que a guerra está declarada entre nós?
Que se passa, Jeffrey?
Nada. Mas o arcebispo quer o segredo da minha fortuna, se não a minha própria fortuna. Nunca mais me largará.
Defender-vos-eis, Joffrey?
O melhor que puder. Infelizmente, ainda está para nascer aquele que será capaz de aniquilar a estupidez humana.
Os criados tinham levantado a mesa. Oito pajens trouxeram, uns, ramos de rosas e, outros, pirâmides de frutos. Diante de cada conviva foram colocados pratos com pastilhas de especiarias e doces diversos.
Muito estimo ouvir-vos falar tão simplesmente do amor carnal declarou o jovem Cerbalaud. Imaginai que estou loucamente apaixonado e, no entanto, eis-me sozinho nesta assembleia. Não creio ter carecido de ardor nas minhas declarações e, sem pretender vangloriar-me, por instantes tive a impressão de que a minha chama era compartilhada. Mas, ai de mim!, a minha amiga é de um recato severo. Se ouso um gesto atrevido, arrisco-me a diversos dias de olhares cruéis e frieza significativa. Há meses que me debato neste dilema diabólico: conquistá-la provando-lhe a minha paixão e perdê-la todas as vezes que tentar provar-lha!
A desventura de Cerbalaud divertiu todos. Uma dama abraçou-o francamente e beijou-o na boca. Quando o burburinho se acalmou um pouco, Joffrey de Peyrac aconselhou com gentileza:
Tem paciência, Cerbalaud, e lembra-te de que as raparigas ariscas são capazes de ascender às maiores voluptuosidades. Para isso precisam de um amante hábil, capaz de as libertar não sei de que escrúpulo, que as leva a confundir o amor com o pecado. Desconfia também das donzelas que confundem frequentemente amor e casamento. Vou citar alguns preceitos: ”Quando te entregares aos prazeres do amor, não ultrapasses o desejo da amante; quer dês, quer recebas os prazeres do amor, observa sempre um certo pudor.” E, finalmente, ”sê sempre atento ao mando das damas”.
Acho que facilitais muito a parte das damas protestou um fidalgo, o que lhe valeu uma chuva de pancadas de leques. Ao ouvir-vos, dir-se-ia que deveríamos morrer constantemente a seus pés.
Mas está muito bem assim! aprovou a amante de Bernardo de Andijos. Sabeis como, em Paris, nós, preciosas, chamamos aos jovens que nos fazem a corte? ”Moribundos”.
Não quero morrer disse Andijos, taciturno. Que morram os meus rivais.
Devemos consentir às damas todos caprichos?
Evidentemente que sim.
Desprezar-nos-ão por isso.
E enganar-nos-ão.
Devemos admitir que nos enganem?
Claro que nãorespondeu Joffrey de Peyrac. Batei-vos em duelo, senhores, e matai os vossos rivais. ”Quem não é ciumento não pode amar.” ”Uma suspeita acerca do meu amante, e o ardor de amar aumenta!”
Esse Chapelain do Diabo pensou em tudo!
Angélique levou um opo aos lábios. O sangue corria-lhe mais depressa nas veias e desatou a rir. Gostava do fim daquelas refeições da gente do Sul, quando, de súbito, o sotaque assumia a vibração de uma fanfarra, se trocavam desafios e mofas e um fidalgo tirava a espada enquanto o outro despertava a sua guitarra. Canta! Canta! reclamaram inesperadamente. Canta, Voz do reino!
Na loggia que ficava por cima da galeria, os músicos começaram a tocar em surdina. Angélique reparou que a viuvinha apoiara a cabeça no ombro do duquezinho, que, com dedo lesto, apanhava pastilhas e lhas metia entre os lábios. Sorriam ambos. A Lua apareceu redonda e límpida, no céu aveludado. Joffrey de Peyrac fez um sinal e um criado foi de castiçal em castiçal, apagando as velas. Primeiro ficou muito escuro, mas, pouco a pouco, os olhos habituaram-se ao suave luar. As vozes tinham baixado e no súbito recolhimento ouviram-se os suspiros dos pares enlaçados. Alguns já se tinham levantado e passeavam pelos jardins ou pelas galerias abertas à brisa perfumada da noite.
Senhoras minhas disse a voz grave e harmoniosa de Joffrey de Peyrac e vós, senhores, bem-vindos ao palácio do Gai Savoir. Durante alguns dias conversaremos juntos e comeremos à mesma mesa. Foram preparados aposentos para vós nesta casa. Lá encontrareis vinhos finos, doces e sorvetes. E leitos confortáveis. Dormi sozinhos, se estiverdes de humor melancólico, ou acolhei o amigo de uma hora... ou da vossa vida, se vos aprouver. Comei, bebei, amai... mas sede discretos, pois, ”para conservar todo o seu sabor, o amor não deve ser divulgado”. Mais um conselho... e este para vós, senhoras. Sabei que a preguiça também é um dos grandes inimigos do amor. Nos países onde a mulher ainda é escrava do homem, no Oriente e na África, é a ela que compete, as mais das vezes, esforçar-se para conduzir o seu amo ao prazer. A vós tudo foi, com efeito, muito facilitado, sob os nossos céus civilizados. Por vezes abusais disso, respondendo ao nosso ardor com languidez... com uma languidez que não está longe do torpor. Aprendei pois a prodigalizar-vos com um denodo de que a voluptuosidade vos recompensará. ”Homem activo, mulher passiva, igual a amantes sem prazer.” Terminarei com uma confidência de natureza gastronómica. Senhores, lembrai-vos de que o champanhe, de que encontrareis algumas garrafas a refrescar à vossa cabeceira, tem mais imaginação do que constância. Por outras palavras, é preferível não beberdes demasiado a fim de vos preparardes para o combate. Mas não há vinho mais glorioso para celebrar a vitória, fortificar depois de uma noite feliz e conservar ardor e força. Senhoras, saúdo-vos.
Empurrou a cadeira para trás, cruzou bruscamente os dois pés em cima da mesa, pegou na guitarra e começou a cantar. O seu rosto mascarado voltou-se para o lado da Lua.
Angélique sentia-se horrivelmente solitária. Naquela noite, um mundo antigo renascia das cinzas à sombra da Torre de Arsézat. Tolosa, a quente, reencontrava a sua alma. A voluptuosidade tinha direito de cidadania e aquela jovem pletórica de seiva e juventude não podia ficar insensível a isso. Não se fala impunemente do amor e das suas delícias sem ceder a a tanguidez já propícia. Entretanto, quase todos os convidados tinham deixado a sala. Alguns pares que ainda se encontravam nos vãos das janelas, de copo de rosólio na mão, entregavam-se a conversas ternas. A Sr.a de Saujac beijava o seu capitão. O longo serão, suavizado pelos vinhos finos e pelas carnes delicadas temperadas com especiarias escolhidas, pela música e pelas flores, terminava a sua obra abandonando o palácio do Gai Savoir à magia do amor.
O homem vermelho continuava a cantar, mas ele também estava solitário.
”Que espera?”, perguntou-se Angélique. ”Que vá lançar-me a seus pés e lhe diga: Possui-me!?”
Tal ideia provocou-lhe um estremecimento demorado e Angélique fechou os olhos.
Toda ela era confusão e contradições. Ainda na véspera estivera prestes a ceder, mas agora revoltava-se contra a sedução: ”Atrai as mulheres com cantos.” De longe isso parecera-lhe terrível, mas de perto parecia-lhe maravilhoso. Levantou-se e saiu, por sua vez, dizendo para consigo que ”fugia à tentação”. Mas logo a seguir, ao lembrar-se de que aquele homem era seu marido perante Deus, abanou a cabeça, desesperada. Sentia-se desnorteada e receosa. Educada com rigor, continuava tímida perante uma vida demasiado livre. Era de um tempo em que todas as fraquezas se pagavam com remorsos e escrúpulos.
Uma mulher assim, que nessa noite se entregasse, gemente, ao abraço do amante, no dia seguinte correria, desfeita em lágrimas, para o confessionário, reclamaria as grades de um convento e o véu de freira para expiar os seus pecados. Angélique adivinhava que não era ao casamento, mas sim ao amor, que Jeffrey de Peyrac queria subjugá-la.
Se fosse casada com outro, Jeffrey procederia do mesmo modo. Não tivera a ama razão quando dissera que aquele homem estava ao serviço do Diabo?...
Ao descer a grande escadaria, passou por um par que se abraçava. A mulher falava baixinho e muito depressa, como se rezasse uma oração dolorida. Naquele palácio cheio de suspiros, Angélique, vestida de branco, foi errar pelos jardins. Avistou Cerbalaud, também sozinho, passeando pelas alamedas e meditando, sem dúvida, nas frases que diria à sua amiga demasiado recatada.
”Pobre Cerbalaud!”, pensou a sorrir. ”Manter-se-á fiel ao seu amor ou trocá-lo-á por uma rapariga menos cruel?”
O cavaleiro Germontaz descia a escada em passo incerto. Parou junto de Angélique, a respirar ruidosamente.
A peste leve as hipocrisias e as afectações da gente do Sul! A minha amiguinha, que até agora se mostrara aprazível, acaba de me pregar uma bofetada na cara! Parece que não sou suficientemente delicado para ela.
É certo que tendes de escolher entre um porte libidinoso e um porte eclesiástico. O que vos acontece talvez se deva ao facto de ainda não terdes decidido bem qual é a vossa vocação.
Ele aproximou-se mais, muito vermelho, e Angélique sentiu o seu bafo avinhado em pleno rosto.
O que me acontece é que não gosto de ser bandarilhado como um touro por presumidazinhas da vossa espécie. Às mulheres trato-as assim...
E, sem que ela tivesse tempo de esboçar um gesto de defesa, agarrou-a rudemente e colou-lhe aos lábios a boca húmida e gorda. Angélique debateu-se, agoniada de repugnância.
Duelo do conde de Feyrac com o sobrinho do arcebispo. Angélique conhece finalmente o amor
Sr. de Germontaz! chamou, de súbito, uma voz. Assustada, Angélique viu, no cimo da escada, o vulto vermelho do conde de Peyrac, que levou a mão à máscara e a puxou para trás, mostrando o rosto que era capaz de tornar terrível, ao ponto de fazer tremer os mais empedernidos quando as feições deformadas se convulsionavam. O conde desceu a escada muito devagar, acentuando a claudicação, e, quando chegou ao último degrau, tirou a espada, que brilhou com o fulgor de um relâmpago.
Germontaz recuara, um pouco cambaleante. Atrás de Jeffrey de Peyrac desceram Bernardo de Andijos e o Sr. de Castel-Jalon. O sobrinho do arcebispo lançou um olhar para o lado dos jardins e viu Cerbalaud, que também se aproximara. Respirou ruidosamente.
É... é uma armadilha! gaguejou. Quereis assassinar-me!
A armadilha está em ti mesmo, porco! replicou Andijos. Quem te mandou desonrar a mulher do teu anfitrião?
Trémula, Angélique tentava cobrir o peito com o corpete rasgado. Não era possível! Não se iam bater! Tinha de intervir... Jeffrey expunha-se à morte, com um homenzarrão daqueles, cheio de força...
Joffrey de Peyrac continuava a avançar. Dir-se-ia que, de súbito, uma agilidade de malabarista se apoderara daquele alto corpo disforme. Quando chegou junto do cavaleiro, encostou-lhe a ponta da espada ao ventre e disse, simplesmente:
Bate-te.
O outro, obedecendo aos reflexos de uma educação militar, tirou a espada e as lâminas cruzaram-se. Durante alguns instantes a batalha foi cerrada, tão tensa que por duas vezes as guardas se entrechocaram e escassos centímetros separaram os rostos dos dualistas.
Mas de ambas as vezes o conde de Peyrac recuara com vivacidade, compensando com a rapidez a desvantagem da perna aleijada. Quando Germontaz conseguira impeli-lo para a escada, ao ponto de o obrigar a subir diversos degraus, saltou subitamente por cima da balaustrada e o valeiro só teve tempo de se virar, para lhe fazer de novo frente. Germontaz começava a fatigar-se. Conhecia a fundo todas as subtilezas da esgrima, mas aquele jogo demasiado rápido desconcertava-o. A espada do conde fendeu-lhe a manga direita e arranhou-lhe o braço.
Tratava-se apenas de um ferimento superficial, mas sangrava abundantemente. O braço atingido, que empunhava a espada, não tardou a ficar entorpecido. O cavaleiro batia-se com dificuldade crescente. Nos seus grandes olhos globulosos brilhava o pânico; nos de Jeffrey de Peyrac, iluminados por um fogo baço, não havia qualquer piedade por ele. Angélique leu neles a condenação à morte.
A jovem mordia os lábios até gritar de dor, mas não ousava esboçar nenhum movimento. De súbito fechou os olhos. Ouviu uma espécie de grito surdo e profundo, como o ha! de esforço de um lenhador.
Quando voltou a abri-los, viu o cavaleiro de Germontaz estendido ao comprido nas lajes e a guarda de uma espada a sair-lhe do flanco. O Grande Coxo de Linguadoque inclinava-se para ele a sorrir.
Hipocrisias e afectações! murmurou suavemente. Agarrou o punho da espada e puxou, com força. Algo jorrou, com um ruído abafado, e Angélique olhou para o vestido e viu-o pingado de sangue. Sentiu-se desfalecer e teve de se encostar à parede. O rosto de Jeffrey de Peyrac inclinava-se para o seu, sulcado de suor. Sob o fato de veludo vermelho, o peito magro subia e descia, como um fole de forja. Mas os olhos, atentos, conservavam o brilho firme e alegre. Um lento sorriso entreabriu os lábios do conde quando viu o olhar verde da mulher húmido de emoção. Disse-lhe imperiosamente:
Vem!
O cavalo seguia lentamente ao longo do rio, levantando a areia da vereda sinuosa. À distância, três lacaios armados guardavam o seu senhor, mas Angélique não tinha consciência da sua presença. Parecia-lhe que estava absolutamente só sob o céu estrelado, absolutamente só nos braços de Jeffrey de Peyrac, que a sentara na sela à sua frente e a conduzia ao pavilhão do Garona, para lá viverem a sua primeira noite de amor.
No pavilhão, ensinados por um amo exigente, os criados permaneciam invisíveis. O quarto estava preparado. Na varanda havia frutos, ao lado do sofá, e numa vasilha de bronze refrescavam garrafas. Mas parecia tudo deserto.
Angélique e o marido não falavam. A hora era de silêncio. No entanto, quando ele a puxou a si com uma impaciência surda, ela perguntou, baixinho:
Porque não sorrides? Continuais zangado? Garanto-vos que não desejei o incidente.
Eu sei, querida. Respirou profundamente e acrescentou: Não posso sorrir porque esperei demasiado tempo por este momento, que me oprime até à dor. Nunca amei mulher alguma como a ti, Angélique, e chega me a parecer que te amava antes mesmo de te conhecer. Quando te vi pela primeira vez... Era a ti que esperava. Mas tu passavas, altiva, ao alcance da minha mão, como um gnomo dos pântanos, inalcançável. E eu dizia-te palavras agradáveis, brincava, receoso de um gesto de horror ou de troça. Nunca esperei mulher nenhuma tanto tempo, nunca tive tanta paciência. E, no entanto, eras minha. Vinte vezes estive prestes a usar da violência, mas não queria somente o teu corpo, também queria o teu amor. Por isso, ao ver-te agora assim, de repente, enfim minha, quero-te mal por todos os tormentos que me infligiste. Quero-te mal repetiu com uma paixão ardente.
Angélique sustentou corajosamente a expressão do rosto que já não a assustava e sorriu.
Vinga-te murmurou.
Ele estremeceu e depois sorriu também.
És mais mulher do que eu julgava. Ah, não me provoques! Pedireis misericórdia, bela inimiga!
A partir desse instante, Angélique deixou de se pertencer. Ao reencontrar os lábios que já uma vez a tinham inebriado, reencontrava o turbilhão de sensações desconhecidas cuja recordação deixara no âmago da sua carne uma nostalgia vaga. Tudo despertava nela e, com a promessa de um desafogo que nada entravaria, o seu prazer adquiriu pouco a pouco uma tal acuidade que a assustou.
Ofegante, inclinava-se para trás, tentando fugir àquelas mãos das quais cada gesto lhe revelava uma nova fonte de gozo. Então, como se emergisse de um poço de opressiva doçura, via girar à sua volta o céu estrelado, a planície envolta em bruma, através da qual o Carona estendia a sua fita de prata.
Possuidora de uma saúde perfeita, Angélique era feita para o amor. Mas a revelação súbita do seu próprio corpo perturbava-a, fazia-a sentir-se comprimida, empurrada num combate violento, mais interior ainda do que exterior. Só mais tarde, com a experiência, pôde avaliar quanto Jeffrey de Peyrac fora paciente, contrariando a violência do seu desejo, a fim de subjugar inteiramente a sua conquista.
Despiu-a, quase sem que ela tivesse consciência disso e estendeu-a no sofá. Com uma paciência incansável, atraía-a a si, cada vez mais submissa, ardente e a gemer, com os olhos brilhantes de febre. Ela debatia-se e submetia-se sucessivamente, mas quando a emoção que não podia controlar atingiu o paroxismo, invadiu-a uma calma súbita. Pareceu-lhe que se apoderava dela um bem-estar a que se misturava uma excitação deliciosa e lancinante. Repelido todo o pudor, oferecia-se ela própria às carícias mais ousadas; de olhos fechados, deixava-se vogar sem revolta na corrente da voluptuosidade. Não se rebelou contra a dor, porque cada parcela do seu corpo apelava já furiosamente para o domínio do senhor. Não gritou quando ele a penetrou, mas as suas pálpebras abriram-se desmesuradamente e as estrelas do céu prima veril reflectiram-se nos seus olhos verdes.
Já! murmurou.
Estendida no sofá, recuperava as forças. Um macio xale das índias protegia-lhe o corpo suado do bafo leve da noite. Olhava Jeffrey de Peyrac, que, de pé, muito negro, em contraste com o luar, enchia taças de vinho fresco.
Devagarinho, minha jóiamurmurou ele, a rir. Sois muito nova para me permitir levar mais longe a lição. O tempo das longas delícias virá. Entretanto, bebamos! Bebamos porque, esta noite, fizemos ambos uma obra que merece recompensa.
Com o rosto delicioso voltado para ele, envolveu-o num sorriso cuja sedução ainda desconhecia, pois em poucos instantes nascera uma nova Angélique, desabrochada, liberta.
Jeffrey fechou os olhos, como que ofuscado, e, quando voltou a abri-los, viu uma expressão de angústia no rosto encantador da mulher.
O cavaleiro de Germontaz... murmurou Angélique. Oh, Jeffrey, esquecera-me! Matastes o sobrinho do arcebispo!
Ele tranquilizou-a com uma carícia.
Não penseis mais nisso. A provocação teve testemunhas. Se a tivesse ignorado é que mereceria censuras. O próprio arcebispo, que é de sangue nobre, não terá outro remédio senão inclinar-se perante essa realidade. Meu Deus, querida segredou, as vossas formas são ainda mais perfeitas do que imaginava!
Seguiu com um dedo a curva branca e firme do jovem ventre. Angélique sorriu e soltou um grande suspiro de bem-estar. Sempre lhe tinham dito que, depois do amor, os homens eram brutais ou indiferentes.
Mas, decididamente, Joffrey jamais se pareceria com os outros homens.
Estendeu-se ao lado dela, no sofá, a rir baixinho.
Quando penso que o arcebispo deve estar a olhar, do alto da sua torre do episcopado, o palácio do Gai Savoir e a consagrar ao Inferno a minha vida libertina!... Se ele soubesse que, a esta mesma hora, saboreio as ”culposas delícias” com a minha própria mulher, cuja união comigo ele mesmo abençoou...
Sois incorrigível! Não o censuro por vos considerar com desconfiança, pois, quando há duas maneiras de fazer uma coisa qualquer, vós imaginais sempre uma terceira. Tanto poderíeis cometer adultério como cumprir sensatamente os vossos deveres conjugais. Mas não! Tivestes de rodear a vossa noite de núpcias de tais circunstâncias que sinto nos vossos braços uma impressão de culpabilidade.
Impressão muito agradável, não é?
Calai-vos! Sois o Diabo! Confessai, Joffrey, que se vos tirais de apuros com uma pirueta, não acontece o mesmo, esta noite, com a maior parte dos vossos convidados! Com quanta habilidade os lançastes para aquilo a que monsenhor chama a confusão! Não estou muito certa deque não sejais um ser... perigoso!
E vós, Angélique, sois uma adorável cónega toda nua! E não duvido de que a minha alma obtenha perdão nas vossas mãos! Mas não recusemos as doçuras da vida. Há muitos outros povos com costumes diferentes dos nossos e que não são menos generosos nem menos felizes. Perante a grosseria do coração e dos sentidos que escondemos sob os nossos belos trajes, sonhei, para meu prazer, ver homens e mulheres refinarem-se e darem mais graça ao nome da França. Rejubilo com isso, pois amo as mulheres, como amo todos os objectos belos. Não, Angélique, meu tesouro, não tenho remorsos e não irei à confissão!
Só tornada mulher Angélique podia ser ela própria. Antes era apenas uma rosa em botão, apertada na sua carne, a que uma gota de sangue mouro dava inclinação para o ardor carnal.
Nos dias que se seguiram, e durante os quais se desenrolaram os festejos da corte de amor, pareceu-lhe que fora transplantada para um mundo novo, onde tudo era plenitude e descobertas maravilhosas. Dir-se-ia que o resto da existência se apagara, que a vida estava suspensa.
Sentia-se cada vez mais apaixonada. A sua tez tornava-se mais rosada e o seu riso tinha uma ousadia nova. Joffrey de Peyrac encontrava-a cada noite mais ávida, mais ansiosa, e as suas bruscas recusas de jovem Diana, quando ele queria submetê-la a novas fantasias, cediam depressa a um abandono cheio de ímpeto.
Os seus convidados pareciam viver no mesmo clima de plenitude e despreocupação.
Deviam-no em parte a um milagre de organização, pois o génio do conde de Peyrac não esquecia nenhum pormenor susceptível de contribuir para o conforto e o recreio dos seus convidados.
Estava sempre presente e aparentemente desenvolto, mas Angélique tinha a impressão de que só pensava nela, de que só para ela cantava. Apunhalava-a por vezes uma suspeita de ciúme, quando o via mergulhar o olhar negro nos olhos atrevidos de uma coquete que lhe pedia conselho acerca de uma subtileza das normas do amor. Apurava então o ouvido, mas tinha de reconhecer que o marido se saía lealmente da dificuldade com uma daquelas frases hábeis e veladas de lisonja de que tinha o segredo.
Foi com um misto de alívio e decepção que, passados oito dias, viu as pesadas carruagens brasonadas darem a volta no pátio do palácio e porem-se a caminho de distantes mansões fidalgas, enquanto belas mãos adornadas de rendas acenavam pelas janelas. Os cavaleiros saudavam com os seus chapéus de plumas. À varanda, Angélica fazia também gestos risonhos de adeus.
Não lhe desagradava reencontrar um pouco de calma e passar a ter o marido só para ela. Secretamente, porém, não era sem uma certa tristeza que via terminar aqueles dias deliciosos. Numa vida não se podem viver duas vezes tais momentos de felicidade. Assaltara-a de súbito o pressentimento de que aquelas semanas deslumbrantes não se repetiriam nunca mais.
Logo na primeira noite, Joffrey de Peyrac fechou-se no seu laboratório, onde não entrava desde o início da corte de amor.
Tal pressa enfureceu Angélique, que se virou e revirou, cheia de raiva, no grande leito, onde o esperou em vão.
”O que são os homens!”, pensou com azedume. ”Dignam-se conceder-nos um pouco de tempo, de passagem, mas nada os detém quando as suas maniazinhas pessoais estão em causa. Para uns é o duelo, para outros é a guerra. Para Joffrey são as retortas. Antigamente interessava-me que me falasse dessas coisas, porque nessas alturas parecia ter-me amizade, mas agora detesto aquele laboratório!”Apesar de amuada, acabou por adormecer.
Acordou-a repentinamente a claridade de uma vela e viu Joffrey junto da cama a acabar de se despir. Sentou-se, brusca, e enlaçou os joelhos com os braços.
Achais que vale a pena? perguntou, ríspida. Já ouço os pássaros do jardim despertar. Não vos parece que seria melhor acabardes esta noite tão bem começada nos vossos aposentos, apertando ao coração uma retorta muito pançuda?
Ele riu-se sem qualquer contrição.
Estou desolado, minha amiga, mas estive mergulhado numa experiência que não podia abandonar. E a culpa ainda é um pouco do arcebispo, sabeis? No entanto, aceitara muito dignamente a morte do sobrinho. Mas, atenção, o duelo é proibido! Ficou assim com mais um trunfo no seu jogo. Recebi um ultimato para revelar ao idiota do seu monge Bécher o meu segredo da fabricação de ouro. E, como não posso explicar-lhe decentemente o tráfico espanhol, resolvi levá-lo a Salsigne, onde o deixarei assistir à própria extracção e à transformação da rocha aurífera. Mas antes vou chamar o saxão Fritz Hauer e enviar um correio a Genebra. Bernalli desejava assistir a tais experiências e não deixará de vir.
Não estou interessada nessas coisasredarguiu Angélique, amuada. Tenho sono.
Tinha no entanto consciência de que, com os cabelos a velarem-lhe parcialmente o rosto e a alça de renda da camisinha a cair-lhe para o braço nu, o aspecto era menos severo do que as suas palavras.
Ele acariciou-lhe o ombro macio e branco, mas, com um movimento lesto, ela cravou-lhe os dentes aguçados na mão. Jeffrey deu-lhe uma palmada e, com falsa cólera, deitou-a atravessada na cama. Lutaram um momento, mas Angélique depressa sucumbiu à força do conde, uma força que lhe causava sempre a mesma surpresa. No entanto, continuou mal-humorada e debateu-se no abraço do marido. Mas depois o sangue começou-lhe a circular mais depressa e no mais fundo de si mesma acendeu-se uma chispa voluptuosa, que alastrou por todo o seu ser. Continuou a agitar-se, mas, ao mesmo tempo, procurava com uma curiosidade ofegante a surpreendente sensação que acabava de experimentar. O seu corpo esbraseava-se, as ondas de prazer erguiam-na a píncaros cada vez mais altos, num delírio ainda nunca sentido. De cabeça descaída na borda do leito e lábios entreabertos, Angélique evocava de súbito as sombras de uma alcova dourada pela claridade de uma lamparina. Tinha no ouvido um queixume doce e dilacerante, que julgava ouvir com uma acuidade impressionante. Reconheceu, de repente, a sua própria voz. Por cima dela, na claridade cinzenta da alvorada, via aquele rosto de fauno sorridente que, de olhos brilhantes, semicerrados, escutava o canto que soubera inspirar.
Oh, Jeffrey, tenho a impressão de que vou morrer! suspirou Angélique. Porque é cada vez mais maravilhoso?
Porque o amor é uma arte em que nos aperfeiçoamos, bela amiga, e vós sois uma maravilhosa aluna...
Saciada, procurou o sono, comprimindo-se contra ele. Como o tronco de Jeffrey parecia moreno entre as rendas da camisa!... E como era inebriante aquele cheiro a tabaco!
A mina de ouro de Salsigne. Encontro com o presidente Massenau
Cerca de dois meses depois, um pequeno grupo de cavaleiros que seguia uma carruagem com os brasões do conde de Peyrac subia uma estrada de montanha, a caminho da pequena aldeia de Salsigne, no Aude.
Angélique, que ao princípio se sentira encantada com a viagem, começava a sentir-se fatigada. Estava muito calor e havia muita poeira. Além disso, o embalar do passo do seu cavalo incitara a à meditação e ela observara, primeiro, sem complacência o monge ConanBécher, que, montado numa mula, deixava pender as compridas pernas magras e os pés enfiados em sandálias, e depois reflectira nas consequências do rancor obstinado do arcebispo. Por fim, Salsigne fizera-a evocar o vulto disforme de Fritz Hauer e ela pensara na carta do pai, que o saxão lhe entregara ao chegar a Tolosa com a sua carroça, a sua mulher e os seus filhos louros, que, apesar do tempo passado no Poitou, só falavam um áspero patoá germânico.
Angélique chorara muito ao receber a carta, pois o pai anunciava-lhe a morte do velho Guilherme Lútzen. Fora esconder-se num canto escuro e chorara horas a fio. Nem mesmo a Joffrey soubera explicar o que sentia nem por que motivo o seu coração se dilacerava quando pensava no velho rosto barbudo, com os seus severos olhos claros, que outrora tinham sabido ser tão ternos para a pequena Angélique. Mas o marido acariciara-a e amimara-a muito docemente, sem lhe fazer perguntas, e à noite a sua mágoa estava um pouco atenuada. O passado era o passado. No entanto, a carta do barão Armando fizera surgir fantasmazinhos descalços e de cabelos cheios de palha nos corredores gelados do velho castelo de Monteloup, a cuja sombra as galinhas se recolhiam no Verão.
O barão também se lamentava. A vida continuava difícil, embora todos tivessem o necessário graças ao negócio dos muares e à generosidade do conde de Peyrac. A região sofrera uma fome terrível e isso, acrescentado às perseguições dos guardas aduaneiros aos contrabandistas de sal, levara à revolta os habitantes do pântano. Emergindo subitamente do meio dos seus caniçais, tinham pilhado diversos burgos, recusado o pagamento do imposto e matado fiscais e agentes de cobrança. Fora necessário mandar contra eles os soldados do rei e persegui-los, ”a fugir como enguias nos canais”. Houvera muitos enforcados nos cruzamentos das estradas.
Angélique compreendeu, de repente, o que significava ”ser” uma das maiores fortunas da província. Esquecera aquele mundo oprimido, perseguido pelo medo dos impostos e das exacções. Não se teria tornaddo demasiado egoísta no inebriamento da sua felicidade e do seu luxo? Talvez o arcebispo se mostrasse menos severo se ela tivesse sabido seduzi-lo, ocupando-se das suas obras de caridade...
Ouviu o obre Bernalli suspirar.
Que estrada! É pior do que os nossos Abruzos! E a vossa bela carruagem metida nisto! Ficará reduzida a cavacos. É um verdadeiro crime!
Supliquei-vos que viajásseis nela lembrou Angélique. Ao menos teria servido para qualquer coisa.
Mas o galante italiano protestou, não sem levar a mão aos rins doridos:
Signora, um homem digno desse nome não ousaria passear numa carruagem enquanto uma jovem dama viajava a cavalo.
Os vossos escrúpulos já não se usam, meu pobre Bernalli. Hoje em dia não existem tantas delicadezas. Mas começo a conhecer-vos e, por isso, estou certa de que, mal virdes a nossa maquinaria hidráulica erguendo e arremessando água, vos curareis do vosso derreamento.
O rosto do sábio iluminou-se.
Deveras, senhora, recordais-vos da minha mania por essa ciência a que chamo hidráulica? O vosso marido não deixou de me tentar, informando-me de que construíra em Salsigne uma máquina para elevar a água de uma torrente que corre num fundo desfiladeiro. Não foi preciso mais para me fazer de novo à estrada. Pergunto a mim mesmo se ele não terá descoberto o movimento perpétuo.
Exagerais, meu caro disse atrás deles a voz de Jeffrey de Peyrac. Trata-se apenas de um modelo a imitar os aríetes hidráulicos que vi na China e que podem elevar a água a cento e cinquenta toesas e mais. Olhai lá em baixo. Estamos a chegar.
Não tardaram a encontrar-se na margem de uma pequena torrente e viram uma espécie de caixa basculante, que girava de súbito à volta de um eixo e projectava intervaladamente, numa bela parábola, um jacto de água a grande altura.
Essa água caía numa espécie de bacia situada numa elevação, de onde voltava a descer em seguida muito devagar, recolhida por canalizações de madeira.
Um arco-íris artificial nimbava aquela maquinaria com os seus irisados multicores, e Angélique achou o aríete hidráulico muito bonito. Mas Bernalli pareceu decepcionado e disse com ressentimento:
Perdeis dezanove avos do caudal da torrente. Isto não tem absolutamente nada a ver com o movimento perpétuo!
Pouco me importa a perda de caudal e de força redarguiu o conde. O que me interessa é que tenho a água à altura necessária e que o pequeno caudal me chega para concentrar a minha rocha aurífera triturada.
Adiaram para o dia seguinte a visita à mina. O capitoul da aldeia preparara-lhes alojamento modesto, mas suficiente. Uma carroça trouxera leitos e malas. Peyrac pôs as casas à disposição de Bernalli, do monge Bécher e de Andijos, que, naturalmente, não podia deixar de fazer parte do grupo.
Para si preferia uma grande tenda de tecto duplo, que trouxera da Síria.
Creio que herdámos dos cruzados o hábito de acampar. Com este calor e nesta região, que é a mais seca de toda a França, vereis, Angélique, que ficamos muito melhor do que numa construção de pedra e terra batida.
De facto, chegada a noite, ela saboreou o ar fresco que descia das montanhas. Os panos da tenda levantados deixavam ver o céu avermelhado pelo poente e ouviam-se, nas margens do Gave, os cantos tristes e solenes dos mineiros saxões.
Jeffrey de Peyrac parecia preocupado, ao contrário do que era seu hábito.
Não gosto deste monge! exclamou, de súbito, com violência. Não só não compreenderá nada, como ainda interpretará tudo segundo a sua mentalidade tortuosa. Teria preferido explicar-me com o arcebispo, mas ele quer uma ”testemunha científica”. Ah, ah, que piada! Qualquer outro valeria mais do que este engrolador de padre-nossos.
Mas eu tenho ouvido dizer que muitos sábios ilustres foram igualmente religiosos observou Angélique, um pouco chocada.
O conde não conteve um gesto de irritação ao redarguir:
Não o nego e ainda vou mais longe: durante séculos, a Igreja conservou o património cultural do mundo. Presentemente, porém, esgota-se na escolástica. A ciência é confiada a iluminados capazes de negar factos que se metem pelos olhos dentro, desde que não consigam encontrar uma explicação teológica para um fenómeno que tem apenas uma explicação natural.
Calou-se e, apertando bruscamente a mulher ao peito, disse-lhe uma frase que ela só compreenderia mais tarde:
Eu também vos escolhi como testemunha.
Na manhã seguinte, o saxão Fritz Hauer apresentou-se para conduzir os visitantes à mina de ouro.
Esta consistia numa grande escavação que formava uma pedreira na base do contraforte de Corbières. Explorava-se uma enorme porção de terreno com cinquenta toesas de comprimento e quinze toesas de largura e a sua massa cinzenta era seccionada em blocos mais pequenos, com a ajuda de cunhas de ferro e madeira, os quais eram carregados em carroças, que os levavam para as mós.
Outros pilões hidráulicos atraíram especialmente a atenção de Bernalli. Eram feitos de um revestimento de chapas de ferro sobre êmbolos de madeira, que basculavam quando um caixão se enchia de água e perdia o equilíbrio.
Que perda de energia hidráulica! suspirou Bernalli. Mas que simplicidade de instalação, do ponto de vista da supressão de mão-de-obra! Também é uma das vossas invenções, conde?
Limitei-me a imitar os Chineses, que, segundo me afirmaram, têm estas instalações há três ou quatro mil anos. Utilizam-nas sobretudo para descascar o arroz, que é o seu alimento habitual.
Mas onde está o ouro em tudo isto? perguntou judiciosamente o monge Bécher. Só vejo um pó cinzento e pesado, sem dúvida, que os vossos trabalhadores tiram daquela rocha verde e cinzenta triturada.
Vereis a demonstração na fundição saxónica.
O pequeno grupo desceu para onde se encontravam fornos catalões cobertos, instalados num recinto sem muros.
Foles accionados cada um por dois garotos emitiam um bafo escaldante e sufocante. Chamas lívidas, com um odor a alho muito pronunciado, jorravam por instantes das bocarras abertas dos fornos, deixando uma espécie de vapor fuliginoso e pesado que se depositava a toda a volta, sob a forma de neve branca.
Angélique pegou num pouco dessa neve e quis levá-la à boca, por causa do cheiro a alho que a intrigava. Mas, como um gnomo saído dos Infernos, um monstro humano de avental de couro deu-lhe uma pancada violenta na mão, para impedir o seu gesto.
Antes que ela pudesse reagir, o gnomo rosnou:
Gift, Gnadige Dame (Veneno, nobre dama).
Indecisa, Angélique limpou a mão, enquanto o olhar do monge Bécher pousava, pesado, nela.
Entre nós disse, suavemente, os alquimistas trabalham com uma máscara.
Mas Joffrey, que ouvira tudo, interveio:
Entre nós, não há alquimia nenhuma, embora nenhum destes ingredientes seja para comer, claro, e nem sequer para tocar. Distribuís regularmente leite a toda a vossa gente, Fritz? perguntou em alemão.
As seis vacas chegaram cá primeiro do que nós, alteza!
Bem, não esqueçais que o leite não é para vender, mas sim para beber.
Não temos necessidade de o vender, alteza, e, além disso, desejamos continuar vivos o mais tempo possível respondeu o velho contramestre corcunda.
Pode-se saber, senhor, que matéria em fusão pastosa é aquela que entrevejo naquele forno infernal? perguntou Bécher, benzendo se.
É a mesma areia pesada, lavada e seca que vistes extrair da mina.
E é este pó cinzento que, segundo vós, contém ouro? Não vi brilhar a mínima palheta, nem mesmo há pouco, no rasto da lavada pela água.
No entanto, trata-se de facto de rocha aurífera. Traz-nos uma pá dela, Fritz.
O trabalhador enfiou uma pá num enorme monte de areia granulada verde-acinzentada, de aspecto vagamente metálico.
Com precaução, Bécher espalhou um pouco na palma da mão, cheirou, provou, cuspiu imediatamente e declarou:
Vitríolo de arsénico. Veneno violento, mas que não tem nada a ver com o ouro. De resto, o ouro provém de saibro e nunca de rocha, e a pedreira que vimos há pouco não contém um átomo de saibro.
O que dizeis é exacto, distinto confrade confirmou Jeffrey de Peyrac, que acrescentou, dirigindo-se ao contramestre saxão: Se é a altura, junta o teu chumbo!
Foi, no entanto, preciso esperar bastante tempo. A massa que estava no forno tornava-se cada vez mais rubra, fundia-se e fervilhava. Os vapores pesados e brancos continuavam a sair e a depositar-se por toda a parte, até no vestuário, sob a forma de uma camada branca e pulverulenta.
Depois, quando já não- saía quase fumo nenhum e as chamas diminuíram, dois saxões de avental de couro trouxeram num carro diversos lingotes de chumbo e lançaram-nos na massa pastosa.
O banho liquefez-se e amodorrou e o saxão mexeu-o com um pau verde comprido.
Formaram-se diversas bolhas e depois começou a subir uma espuma. Fritz Hauer retirou-a várias vezes com enormes passadores e ganchos de ferro e voltou a mexer.
Por fim, o contramestre inclinou-se ao nível de uma abertura existente em plano inferior à cuba do forno, retirou a rolha de barro que a obstruía e começou a cair um fio prateado para os moldes de antemão preparados.
O monge aproximou-se, curioso, e observou:
Nada disso será alguma vez mais do que chumbo.
Continuamos de acordo confirmou o Sr. de Peyrac. De súbito, porém, o monge soltou um grito estridente:
Vejo as três cores!
Ofegava e apontava as irisações do arrefecimento do lingote. Tartamudeava, com as mãos a tremer:
A Grande Obra, vi a Grande Obra!
Endoideceu, o bom do monge comentou Andijos, sem respeito pelo homem de confiança do arcebispo.
Jeffrey de Peyrac explicou, a sorrir indulgentemente:
Os alquimistas atribuem sempre grande importância ao aparecimento das ”três cores” na obtenção da pedra filosofal e na transmutação dos metais. No entanto, trata-se de um fenómeno sem grande importância, semelhante ao do arco-íris, depois da chuva.
Inesperadamente, Bécher caiu de joelhos diante do marido de Angélique e, titubeante, agradeceu-lhe por lhe ter permitido assistir à ”obra da sua vida”.
Irritado com a ridícula manifestação, o conde ordenou secamente:
Levantai-vos, padre. Ainda não vistes precisamente nada, como tereis ocasião de verificar, Não há aí nenhuma pedra filosofal e eu lamento-o por vós.
O saxão Fritz Hauer observava a cena com uma curiosa expressão de reticência no rosto pigmentado de poeira e resíduos de rocha.
Muss ich das Blei durchbrennen vor alien diesen Herrschaflen? perguntou.
Procede como se aqui estivesse apenas eu.
Procedo à copelação diante de toda a gente?
Angélique viu o lingote, ainda morno, ser agarrado com trapos molhados e lançado para um carro. Transportaram-no para um forno pequeno, instalado por cima de uma forja já muito vermelha.
Os tijolos da cavidade central do forno, que formavam uma espécie de cadinho aberto, eram muito brancos, leves e porosos. Eram feitos com os ossos de animais cujos cadáveres amontoados nas proximidades evolavam um fedor insuportável, que, misturado com o cheiro a alho e a enxofre, tornava a atmosfera quase irrespirável.
De vermelho que estava do calor e da excitação, o monge Bécher tornou-se lívido ao ver o monte de ossos e começou a benzer-se e a murmurar esconjurações.
Incapaz de conter o riso, o conde disse a Bernalli:
Vede o efeito que os nossos trabalhos produzem neste sábio moderno. Quando penso que a copelação sobre cinzas de ossos era uma brincadeira de crianças no tempo dos Romanos e dos Gregos!
Apesar de tudo, Bécher aguentou a pé firme perante o espectáculo aterrador. Muito pálido e a desfiar o rosário, não desviou os olhos dos preparativos a que procediam o velho saxão e os seus ajudantes.
Um deles deitava brasas na forja e o outro accionava o fole de pedal, enquanto o chumbo começava a fundir-se de uma vez, para em seguida se juntar no centro da escavação redonda constituída pelos tijolos de osso do forno.
Depois de tudo derretido, atiçaram mais o fogo e o chumbo começou a fumegar.
A um sinal do velho Fritz, um rapaz trouxe um fole cujo bico estava introduzido num bocado de tubo de barro refractário. Colocou a ponta do tubo na beira da cuba e deu ao fole, lançando ar frio para a superfície vermelha-escura da massa de chumbo fundido.
De súbito, com um ruído sibilante, o ar soprado para o metal líquido iluminou-se e cresceu. A mancha luminosa aumentou de intensidade, passou ao rubro branco e alastrou ao conjunto do metal.
Rapidamente, os jovens ajudantes retiraram então todas as brasas incandescentes do forno e os grandes foles deixaram também de funcionar.
A copelação prosseguiu sozinha: o metal fazia bolhas e fervilhava. De vez em quando cobria-se de um véu escuro, que depois se rasgava e formava placas escuras, que pareciam dançar à superfície do líquido luminoso. Quando uma dessas ilhas flutuantes chegava à beira da cuba, os tijolos retinham-na como que por magia e a superfície tornava-se mais imparofuseante.
Simultaneamente, o menisco de metal diminuía a olhos vistos. Acabou por ficar reduzido ao tamanho de uma grande bolacha, tornou-se mais escuro e esbraseou-se com uma luz súbita. Nesse momento, Angélique viu claramente que o metal restante estremecia violentamente e, por fim, se imobilizava e escurecia muito.
É o fenómeno do relâmpago descrito por Berzélio, que trabalhou muito na copelação e na separaçãoobservou Bernalli. Sinto me muito feliz por ter assistido a uma operação metalúrgica que só conhecia através de leituras.
O alquimista não dizia nada e o seu olhar tornara-se distante e vago. Entretanto, Fritz pegou na bolacha metálica com uma tenaz, mergulhou-a em água e apresentou-a, amarela e brilhante, ao amo.
Ouro puro murmurou com respeito o monge alquimista.
Não é absolutamente puro, pois, de contrário, não teríamos visto o fenómeno do relâmpago, que denuncia a presença de prata disse Peyrac.
Gostaria de saber se este ouro resiste ao espírito-de-nitro e ao espírito-de-sal.
Evidentemente que sim, pois trata-se de ouro verdadeiro! Refeito da emoção, o religioso perguntou se lhe podiam dar uma amostrinha do produto, para entregar ao seu benfeitor, o arcebispo.
Levai-lhe esta placa de ouro bruto retirado das entranhas das nossas Corbières respondeu-lhe o conde de Peyrac e fazei-lhe compreender que este ouro provém de uma rocha que já o contém. Compete-lhe a ele procurar nas suas terras qualquer jazida que o torne rico.
Conan Bécher embrulhou cuidadosamente num lenço a placa preciosa, que pesava pelo menos duas libras, e não disse nada.
A viagem de regresso foi assinalada por um incidente insignificante, na aparência, mas que, mais tarde, viria a representar certo papel na vida de Angélique e do marido.
A meio caminho de Tolosa, no segundo dia de viagem, o cavalo baio que ela montava começou a coxear, ferido por um silex da estrada pedregosa. Não havia outro cavalo para o substituir, a não ser que se tirasse um da carruagem, que tinha quatro. Mas Angélique sentir-se-ia humilhada se montasse um grosseiro animal de tiro. Refugiou-se, por isso, na carruagem, onde Bernalli, fraco cavaleiro, já se instalara. Ao vê-lo assim exausto por tão pequena jornada, Angélique ainda o admirou mais pela coragem de empreender tão longas viagens a fim de contemplar um aríete hidráulico ou discorrer acerca da gravidade dos corpos. De mais a mais, banido de diversos países, o italiano era pobre e viajava sem criados, em cavalos de aluguer. Apesar dos solavancos da carruagem, sentia-se encantado com aquilo a que chamava um ”extraordinário conforto”, e, quando Angélique lhe pediu, a rir, um lugarzinho, baixou, atrapalhado, as pernas, que estendera no banco.
O conde e Bernardo de Andijos caracolearam durante algum tempo ao lado da carruagem, mas a estrada era estreita e muito poeirenta e isso obrigou-os a distanciar-se, por causa da poeira levantada pelo veículo, precedido por dois criados a cavalo.
A estrada tornava-se cada vez mais estreita e sinuosa. À saída de uma curva, a carruagem parou, com um protesto das rodas, e os seus ocupantes viram um grupo de cavaleiros, que pareciam barrar-lhes a passagem.
Não vos inquieteis, senhora disse Bernalli, espreitando pela janela. São apenas os lacaios de uma outra equipagem que vem em sentido contrário.
Mas não conseguiremos passar lado a lado nesta estrada tão estreita! exclamou Angélique.
Os criados de ambos os lados injuriavam-se copiosamente. Cheios de insolência, os recém-chegados pretendiam que a carruagem do Sr. de Peyrac recuasse e, para que não restassem dúvidas de que se consideravam com direito de passar primeiro, um dos lacaios começou a distribuir grandes chicotadas, que atingiram diversas pessoas da comitiva oposta e os cavalos da carruagem. Os animais empinaram-se, o veículo oscilou e Angélique teve a sensação de que iam despenhar-se no barranco. Não pó de conter um grito.
Jeffrey de Peyrac chegou nesse momento e, com uma expressão terrível, dirigiu-se ao homem do chicote e fustigou-o em pleno rosto com o pingalim. Entretanto chegou a segunda carruagem, que parou também com um rangido de eixos. Dela saltou um homem gordo e apopléctico, todo cheio de rendas e fitas e tão coberto de pó de maquilhagem como de poeira, o que, juntamente com o suor da viagem, fazia uma estranha mistura. Brandiu uma bengala de castão de marfim e enfeitada com uma roseta de cetim e gritou:
Atreve-se a bater nos meus homens! Ignorais, espécie de... de cavaleiro-alcaravão, que afrontais o presidente do Parlamento de Tolosa, barão de Massenau e Sr. de Pouillac e de outros lugares?... Peço-vos que vos afasteis e nos deixeis passar.
O conde virou se e saudou com exagero.
Muita honra. Sois parente de um tal Sr. Massenau, ajudante de notário, de que me falaram?
Sr. de Peyrac! exclamou o outro, um pouco desconcertado. Mas a sua cólera, exacerbada pelo calor do Sol no zénite, não se apazigou e o seu rosto tornou-se cor de violeta.
Observo-vos que, apesar de muito recente, a minha nobreza é tão autêntica como a vossa, conde! Poderia mostrar-vos os decretos da câmara do rei, certificando o meu enobrecimento.
Acredito em vós, Messire Massenau. A sociedade ainda geme do esforço feito para vos guindar tão alto.
Haveis de me dar contas dessa alusão. Que me censurais?
Não achais o lugar mal escolhido para tal discussão? perguntou Joffrey de Peyrac, que tinha dificuldade em dominar o cavalo, enervado pelo calor e por aquele homem gordo que gesticulava diante dele, de bengala na mão; mas o barão de Massenau não se deu por vencido.
Fica-vos muito bem falar das coisas públicas, Sr. Conde! Vós que já nem vos dignais comparecer nas assembleias do Parlamento!
Não me interessa um Parlamento sem autoridade. Só lá encontraria arrivistas e novos-ricos, ávidos de comprarem os seus títulos de nobreza ao Sr. Fouquet ou ao cardeal de Mazarino... ao mesmo tempo que destroem as derradeiras liberdades locais do Linguadoque.
Senhor, represento um dos mais altos funcionários da justiça do rei! O Linguadoque é há muito tempo província do Estado, ligada à coroa. É inconveniente falar diante de mim nas liberdades locais.
É inconveniente pronunciar diante de vós a simples palavra liberdade, cujo sentido sois incapaz de compreender. Só servis para viver dos subsídios do rei, é a isso que chamais servir.
É já uma maneira de servir, ao passo que vós...
Eu não lhe peço nada e mando-lhe sem o mínimo atraso os impostos da minha gente, que pago em belo ouro puro extraído das minhas terras ou ganho pelo comércio. Sabeis, Sr. Massenau, que represento um quarto do milhão de libras que o Linguadoque rende? Informação para os quatro mil e quinhentos fidalgos e onze mil burgueses da província.
Mas o presidente do Parlamento só retivera uma frase:
Ganho pelo comércio! exclamou, escandalizado. É então verdade que comerciais?
Comercio e produzo. E orgulho-me disso, pois não tenho feitio para estender a mão ao rei.
Ah, gostais de vos mostrar desdenhoso, Sr. de Peyrac! Mas lembrai-vos do seguinte: são os novos nobres e a burguesia que representam o futuro e a força do reino.
Fico encantado! replicou, irónico, o conde, voltando ao tom de chacota. Que a nova nobreza faça a sua aprendizagem tendo a cortesia de se afastar para deixar passar esta carruagem, onde a Sr.a de Peyrac se impacienta.
Mas o novo barão, obstinado, bateu o pé na poeira e no esterco e replicou:
Não há motivo algum para que seja eu a desviar-me. Repito-vos que a minha nobreza vale tanto como a vossa.
Mas eu sou mais rico do que vós, verme gordo! gritou Joffrey. E como só o dinheiro conta para os burgueses, pois bem, afastai-vos, Sr. Massenau, deixai passar a fortuna.
Lançou-se para a frente, empurrando os criados do magistrado, que mal teve tempo de saltar para o lado, a fim de não ser colhido pela carruagem com os brasões do conde. O cocheiro, que só esperava um sinal do amo, teve muito gosto em levar a palma àquela criadagem de plebeu.
Ao passar, Angélique entreviu o rosto apoplético do Sr. Massenau, que, brandindo a bengala enfeitada, gritava:
Farei um relatório... farei dois relatórios! Monsenhor de Orleães, governador do Linguadoque, será informado... e o conselho do rei também!
Uma manhã, ao entrar com o marido na biblioteca do palácio, Angélique viu Clemente Tonnel, o mordomo, a copiar para tabuinhas enceradas títulos de livros. Como da primeira vez em que fora surpreendido, pareceu embaraçado e procurou esconder as tabuinhas e o estilete.
Atrevido, parece que vos interessais decididamente pelo latim! exclamou o conde, mais surpreendido do que contrariado.
Senti-me sempre atraído pelos estudos, Sr. Conde. A minha aspiração era tornar-me ajudante de notário, e por isso constitui grande alegria para mim pertencer à casa não só de um grande senhor, mas também de um sábio ilustre.
Não serão os meus livros sobre alquimia que poderão instruir-vos em matéria de direito observou Joffrey de Peyrac, de sobrancelhas franzidas.
As atitudes cautelosas do mordomo nunca lhe tinham agradado. De todas as pessoas que trabalhavam em sua casa, era ele o único a quem não tratava por tu.
Quando Clemente Tonnel saiu, Angélique disse, preocupada:
Não tenho razão de queixa do serviço de Clemente, mas, não sei porquê, a sua presença desagrada-me cada vez mais. Quando o vejo, tenho a impressão de que me recorda algo de desagradável... No entanto, fui eu que o trouxe comigo do Poitou.
Ora! exclamou Joffrey, com um encolher de ombros. Carece de discrição, mas, enquanto a sua paixão pelo saber não o levar a meter o nariz no meu laboratório...
Angélique ficou inexplicavelmente apreensiva e, ao longo do dia, o rosto picado das bexigas do mordomo perturbou diversas vezes os seus pensamentos.
Passado algum tempo, Clemente Tonnel pediu uma licença, a fim de ir a Niort tratar dos assuntos da herança. ”Parece que nunca mais acaba de herdar”, pensou Angélique, lembrando-se de que ele lhe dissera ter já deixado uma casa por essa mesma razão. O mordomo prometeu regressar no mês seguinte, mas, ao vê-lo ajaezar o cavalo com todo o cuidado, Angélique teve o pressentimento de que não voltaria a pôr-lhe os olhos em cima tão cedo. Por isso renunciou a confiar-lhe uma carta para a família, como pensara fazer.
Depois de o homem partir, sentiu um desejo incompreensível de voltar a ver Monteloup e os seus campos. No entanto, não sentia a falta do pai. Embora fosse muito feliz, guardava-lhe um vago rancor por causa do seu casamento. Os irmãos e as irmãs tinham-se dispersado, o velho Guilherme morrera e, a julgar pelas cartas que recebia, as tias tornavam-se rabugentas e taroucas e a ama cada vez mais autoritária. O seu pensamento aflorou, por instantes, a recordação de Nicolau, que desaparecera da região depois do seu casamento.
À força de se interrogar a si própria, chegou à conclusão de que a atormentava a ideia de regressar à sua terra para ir ao castelo do Plessis e verificar se o famoso cofrezinho com o veneno continuava no esconderijo da falsa torrezinha. Não havia razão alguma para que não continuasse; só demolindo o castelo poderiam descobri-lo. Porque voltava a preocupá-la, de repente, aquela velha história? Os antagonismos da época já iam longe, o Sr. de Mazarino, o rei e o seu jovem irmão continuavam vivos e o Sr. Fouquet obtivera o poder sem o crime. Não constava, até, que o príncipe de Conde voltava a estar nas boas graças reais?
Afastou, decidida, semelhantes pensamentos e não tardou a recuperar a tranquilidade.
Nascimento de Florimundo. Luis XIV em Tolosa
A atmosfera era de alegria, tanto em casa de Angélique como no reino. E o arcebispo de Tolosa, solicitado por cuidados mais importantes, dava tréguas à vigilância desconfiada de que rodeava o seu rival, o conde de Peyrac.
Com efeito, Monsenhor de Fontenac acabava de ser convocado, assim como o arcebispo de Baiona, para acompanhar o Sr. de Mazarino na sua viagem aos Pirenéus.
Toda a França repetia a notícia: com um aparato de fazer tremer o mundo, o Sr. Cardeal dirigia-se a uma ilha do Bidassoa, no País Basco, a fim de negociar a paz com os Espanhóis. Acabar-se-ia, portanto, a guerra eterna, que renascia todos os anos com as flores da Primavera. Mas, mais ainda do que essa notícia tão esperada, um projecto incrível enchia toda a gente de contentamento, até ao mais humilde artesão do reino: como penhor de paz, a altiva Espanha aceitava oferecer a sua infanta como esposa ao jovem rei de França. Assim, apesar das reticências e dos olhares invejosos, dos dois lados dos Pirenéus, todos se empavonavam, pois na Europa do momento, entre a Inglaterra em revolta, a poalha dos pequenos principados alemães e italianos e os povos plebeus a que chamavam ”marinheiros” flamengos e holandeses, só os dois príncipes eram dignos um do outro.
A que outro rei se podia destinar a infanta, filha única de Filipe IV, verdadeiro ídolo de tez de nácar, educada na sombra austera dos sombrios palácios?
E que outra princesa oferecia tantas garantias de nobreza e prometia tantas vantagens de aliança para se tornar esposa daquele jovem príncipe de 20 anos, esperança de uma das maiores nações?
Naturalmente, as cortes da província comentavam o acontecimento com paixão e as damas de Tolosa contavam umas às outras que o jovem rei chorava muito, em segredo, pois estava loucamente apaixonado por uma amiguinha de infância, a morena Maria Mancini, sobrinha do cardeal. Mas a razão de Estado impunha-se. E, na ocorrência, o cardeal demonstrava de modo claro que, para ele, a glória do seu real pupilo e o bem do reino estavam primeiro do que tudo.
Queria a paz como corolário supremo das intrigas que as suas mãos italianas teciam havia anos. A sua família foi impiedosamente afastada. Luís XIV desposaria a infanta.
Assim, com oito carruagens para a sua pessoa, dez carros para a sua bagagem, vinte e quatro machos, cento e cinquenta servos de libré, cem cavaleiros e duzentos infantes, o cardeal pôs-se a caminho das margens cor de esmeralda de São João da Luz.
De passagem, reclamou a companhia dos arcebispos de Baiona e de Tolosa, com todo o seu séquito, a fim de aumentarem o aspecto sumptuoso da embaixada. Entretanto, do outro lado das montanhas, D. Luís de Haro, representante de Sua Majestade Católica, opondo a tanto luxo uma simplicidade altiva, atravessava os planaltos de Castela levando nas suas arcas nada mais do que rolos de tapeçarias cujas cenas recordavam a quem de direito a glória do antigo reino de Carlos V.
Ninguém se apressava, pois nenhum dos dois queria chegar primeiro e ver-se reduzido à humilhação de esperar o outro. Acabaram por se arrastar metro a metro e, por um milagre da etiqueta, o italiano e o espanhol chegaram no mesmo dia e à mesma hora às margens do Bidassoa. Em seguida, veio a indecisão. Quem lançaria primeiro a barca à água, para chegar à pequena ilha dos Faisões, no meio do rio, na qual devia efectuar-se o encontro? Cada um achou a solução que melhor conveio ao seu orgulho: o cardeal e D. Luís de Haro anunciaram um ao outro, simultaneamente, que estavam doentes. Como o estratagema falhou, por demasiado coincidente, houve que esperar decentemente que as ”doenças” se curassem. Mas nenhum deles parecia querer curar-se...
O mundo interrogava-se, excitado: assinar-se-ia a paz? Realizar-se-ia o casamento? Comentava-se o mínimo gesto.
Em Tolosa, Angélique não acompanhava essas coisas com excessivo interesse, toda absorta na alegria de um acontecimento pessoal, que lhe parecia muito mais importante do que o casamento do rei.
Com efeito, como a sua aliança com Jeffrey se estreitava dia após dia, começara ardentemente a desejar ter um filho. Parecia-lhe que só então seria deveras sua mulher. Ele bem lhe afirmava que nunca amara uma mulher ao ponto de lhe mostrar o seu laboratório e falar-lhe de matemáticas, mas ela permanecia céptica e tinha crises de ciúme retrospectivo, que o fazia rir e o encantavam secretamente.
Angélique aprendera a conhecer a sensibilidade daquele carácter audacioso, a avaliar a coragem de que dera provas ao dominar a sua fealdade e o seu aleijão. Admirava-o por ter conquistado tal vitória e pensava que, se fosse belo e invulnerável, não seria capaz de o amar tão apaixonadamente. Queria dar-lhe um filho para completar a sua felicidade, mas os dias passavam e começavam a recear que fosse estéril.
Quando, finalmente, no princípio do Inverno de 1658, descobriu que estava grávida, chorou de ventura.
Jeffrey não ocultou o seu entusiasmo nem o seu orgulho. Nesse Inverno, quando ia uma grande azáfama com os preparativos do casamento real, ainda não decidido, mas a que todos os fidalgos da província esperavam assistir, a vida foi muito calma no palácio do Gai Savoir. Entregue aos seus trabalhos e à sua jovem esposa, o conde de Peyrac fez uma trégua na vida mundana que mantivera até então em sua casa. Além disso, e sem dizer nada a Angélique, aproveitava-se da ausência do arcebispo para voltar a dominar a vida pública de Tolosa, com grande contentamento de uma parte dos capitouls e da população.
Angélique instalou-se, para o nascimento do filho, num pequeno castelo que o conde possuía no Béarn, nos contrafortes dos Pirenéus, onde a temperatura era mais fresca do que na cidade.
Naturalmente, os futuros pais discutiram muito que nome dariam àquele filho, herdeiro dos condes de Tolosa. Jeffrey queria chamar-lhe Cantor, em homenagem ao célebre trovador do Linguadoque, Cantor de Marmont, mas, como a criança nasceu em plena festa, quando se realizavam em Tolosa os jogos florais, chamaram-lhe Florimundo.
Era um rapazinho moreno, de abundantes cabelos negros. Durante alguns dias, Angélique sentiu por ele um vago rancor, devido à angústia e às dores do parto, embora a parteira lhe afirmasse que, tratando-se de um primeiro filho, as coisas tinham corrido muito bem. Mas Angélique quase nunca estivera doente e ignorava a dor física, pelo que, ao longo das intermináveis horas de espera, se sentira pouco a pouco vencida por aquele sofrimento elementar e o seu orgulho revoltara-se. Encontrava-se sozinha numa estrada onde nem o amor nem a amizade a podiam ajudar, dominada por aquela criança desconhecida que já a reivindicava inteiramente. Os rostos que a rodeavam tornavam-se-lhe estranhos.
Aquela hora foi para ela a prefiguração da atroz solidão em que um dia se encontraria. Ignorava-o, sem dúvida, mas o seu ser recebeu como que um aviso e durante vinte e quatro horas Jeffrey de Peyrac sentiu-se inquieto com a sua palidez, o seu mutismo e o seu sorriso constrangido.
Depois, na noite do terceiro dia, quando se inclinava curiosamente para o berço onde dormia o filho, Angélique reconheceu um rosto de feições cinzeladas, o rosto que o perfil intacto de Jeffrey lhe revelara algumas vezes. Imaginou um sabre cruel a abater-se sobre aquela cara de anjinho, o corpo grácil atirado por uma janela, quebrado na neve sobre a qual choviam chamas...
A visão foi tão clara que gritou, horrorizada, pegou no recém-nascido e apertou-o convulsivamente ao peito. Tinha os seios doridos, porque o leite apojava e a parteira ligara-lhos muito apertados. As senhoras da nobreza não amamentavam os filhos. Uma ama jovem, forte e saudável levaria Florimundo para as montanhas, onde ele passaria os primeiros anos da sua existência.
Mas, quando, nessa noite, a parteira voltou ao quarto da parida, ergueu os braços ao céu, pois Florimundo sugava com muito afã o seio da própria mãe.
Enlouquecestes, senhora? Como secar-vos agora o leite? Tereis febre e o seio duro.
Eu própria o amamentarei respondeu Angélique, peremptoriamente. Não quero que mo atirem por uma janela!
Falou-se, com escândalo, da nobre dama que procedia como uma camponesa. Por fim decidiu-se que, apesar de tudo, a ama faria parte da casa da Sr.a de Peyrac. Participaria na amamentação de Florimundo, que tinha um apetite voraz.
Entretanto, e quando a questão do leite levava a agitação até mesmo ao capitou da aldeiazinha bearnesa dependente do castelo, chegou Bernardo de Andijos. O conde de Peyrac acabara por o nomear primeiro fidalgo da sua casa e mandara o a Paris, a fim de preparar o seu palácio para uma viagem que contava fazer à capital.
No regresso, Andijos passara por Tolosa, para representar o conde nos festejos dos jogos florais.
Não o esperavam no Béarn quando ele apareceu, com um ar muito agitado. Entregando as rédeas do cavalo a um lacaio, subiu a escada a quatro e quatro e irrompeu como um furacão pelo quarto de Angélique. Esta estava estendida na cama, enquanto Joffrey de Peyrac, sentado no parapeito da janela, tocava guitarra e cantarolava.
Andijos não prestou a mínima atenção ao quadro familiar e gritou, ofegante:
O rei está a chegar!
Aonde?”
A vossa casa, ao Gai Savoir, a Tolosa!
Depois deixou-se cair numa cadeira e enxugou o suor.
Vejamos disse Joffrey de Peyrac, depois de tocar uma melodiazinha na guitarra, para deixar o recém-chegado recuperar o fôlego, não percamos a cabeça. Disseram me que o cardeal, a mãe e a corte se tinham posto a caminho, a fim de se reunirem ao cardeal em São João da Luz, mas porque passariam por Tolosa?
É uma história muito complicada! Parece que, à força de trocarem gentilezas, D. Luís de Haro e o Sr. de Mazarino ainda não abordaram o assunto do casamento. Por outro lado, consta que as relações se azedaram por causa do Sr. de Conde. A Espanha quer que o recebamos de braços abertos e esqueçamos não só as traições da Fronda, mas também que esse príncipe de sangue francês foi durante anos um general espanhol. A pílula é amarga e difícil de tragar. A chegada do rei, em tais condições, seria grotesca. Mazarino aconselhou a que se viajasse, e viaja-se. A corte dirige-se a Aix, onde a presença do rei apaziguará sem dúvida a revolta que acaba de se desencadear. Mas toda essa elegante gente passa por Tolosa e vós não estais lá! E o arcebispo também não! Os capilouZs estão desvairados...
No entanto, não é a primeira vez que recebem uma grande personagem.
É preciso que lá estejais! afirmou Andijos, em tom suplicante. Vim buscar vos pessoalmente. Parece que, ao saber que passariam por Tolosa, o rei disse: ”Vou finalmente conhecer esse grande Coxo do Linguadoque, acerca do qual me têm moído o bicho do ouvido!”
Ah, quero partir para Tolosa! exclamou Angélique, dando um pulo na cama.
Mas logo se deixou cair nas almofadas, com uma careta de dor. Ainda estava muito dorida e enfraquecida, não se encontrava em condições de empreender uma viagem pelas más estradas da montanha e de suportar as fadigas de uma recepção principesca. Os olhos encheram se lhe de lágrimas de decepção.
Oh, o rei em Tolosa, o rei no Gai Savoir e eu não o verei!
Não choreis, minha querida pediu Jeffrey. Prometo-vos que serei tão solícito e amável que não poderão deixar de nos convidar para o casamento. Vereis o rei em São João da Luz, não como um viajante cheio de poeira, mas sim em toda a sua glória.
Enquanto o conde saía, a fim de dar as ordens necessárias para a sua partida no dia seguinte, ao nascer da alva, o prestimoso Andijos tentava consolá-la:
Vosso marido tem razão, minha bela senhora. A corte! O rei! Ora, que importância tem isso? Uma só refeição no Gai Savoir vale muito mais do que uma festa no Louvre. Acreditai, estive no Louvre e tive tanto frio na antecâmara do conselho que o pingo me gelou no nariz! Até parece que o rei de França não tem florestas onde arranje lenha para aquecer o seu palácio! Quanto aos funcionários da casa real, vi-os com os calções de tal maneira esburacados que as damas da rainha baixavam os olhos, apesar de não serem nada tímidas...
Fala-se muito em que o cardeal-preceptor não quis habituar o seu real pupilo a um luxo que estaria desproporcionado com os meios do país...
Não sei quais terão sido as intenções do cardeal, que, pela sua parte, nunca se privou de comprar diamantes em bruto ou lapidados, quadros, ”bibliotecas”, tapeçarias e estampas. Mas creio que o rei, debaixo da sua aparência tímida, está impaciente por sacudir semelhante tutela. Está farto da sopa de favas e das censuras da mãe, está farto de arcar com as desventuras da França pilhada. E compreende-se que assim aconteça quando se é um belo rapaz e ainda por cima rei. Não faltará muito tempo para que sacuda a sua juba de leão.
Como é ele? Descrevei-mo pediu Angélique, impaciente. -
Nada mau, nada mau! Tem distinção, majestade. Mas, em virtude de ter corrido de cidade em cidade no tempo da Fronda, manteve-se mais ignorante do que um criado e eu digo-vos que, se ele não fosse rei, o julgaria um pouco sonso. Além disso, teve bexigas e tem o rosto todo picado.
Oh, tentais desencorajar-me! protestou Angélique.E falais como um desses malditos gascões, bearneses ou albigenses que passam a vida a perguntar a si mesmos por que demónio não continuou a Aquitânia a ser um reino independente do reino da França. Para vós só existe Tolosa e o vosso sol. Mas eu morro de desejo de conhecer Paris e ver o rei.
Vê-lo-eis no seu casamento. Talvez essa cerimónia celebre a verdadeira maioridade do nosso soberano. Mas, se fordes a Paris, parai em Vaux para cumprimentar o Sr. Fouquet, que é o verdadeiro rei do momento. Que luxo, meus amigos, que esplendor!
Com que então, também vós fostes cortejar esse financeiro desonesto e sem educação? perguntou o conde de Peyrac, que regressava ao quarto.
Indispensável, meu caro. Além de tal passo ser necessário para se ser recebido seja onde for, em Paris, pois os príncipes são seus devotos, confesso que me devorava a curiosidade de ver no seu ambiente o grande tesoureiro do reino, que é sem dúvida a primeira grande personagem do país a seguir a Mazarino.
Sede corajoso e não temais dizer a verdade: antes de Mazarino. Todos sabem que Mazarino não encontra crédito algum junto dos emprestadores de fundos, nem mesmo quando se trata do bem do país, ao passo que Fouquet tem a confiança geral.
Mas o hábil italiano não tem ciúmes disso. Fouquet faz entrar dinheiro no tesouro real, para alimentar as guerras, e isso é tudo quanto lhe pedem... por enquanto. Ele não se importa que esse dinheiro seja emprestado pelos usurários com vinte e cinco e até cinquenta por cento de juros. A corte, o rei e o cardeal vivem dessas malversações. Não o prenderão tão depressa! E ele continuará a alardear o seu emblema o esquilo e a sua divisa: Quo non ascendam?(Até onde não subirei?)
Jeffrey de Peyrac e Bernardo de Andijos discutiram durante mais alguns momentos o fausto insólito de Fouquet, que começava por ser referendárío e depois membro do Parlamento de Paris, mas que nem por isso deixava de ser filho de um simples magistrado bretão. Angélique estava pensativa, pois, quando ouvia falar de Fouquet, recordava-se do cofrezinho com o veneno e essa recordação era-lhe sempre desagradável.
A conversa foi interrompida por um criado que veio trazer, numa bandeja, uma refeição para o marquês.
Ui! exclamou Andijos, ao queimar os dedos nos brioches quentes que continham no interior, miraculosamente, uma noz de foie gras gelado. Só aqui é que se comem semelhantes maravilhas. Aqui e em Vaux, note-se. Fouquet tem um cozinheiro excepcional, um tal Vatel. Oh, isso recorda-me um encontro... estranho! Adivinhai quem surpreendi em grande conversa com o Sr. Fouquet, Sr. de Belle-Isle e de outros lugares e quase vice-rei da Bretanha... Adivinhais?
É difícil. Ele conhece tanta gente...
Tentai adivinhar, mesmo assim. É alguém da vossa casa... se assim se pode dizer.
Depois de pensar um bocado, Angélique sugeriu que poderia ter sido o seu cunhado, marido da sua irmã Hortense, que era homem de toga em Paris, como outrora o fora o célebre superintendente.
Mas Andijos abanou a cabeça, negativamente.
Ah, se não tivesse tanto medo do vosso marido, só vos daria a informação a troco de um beijo, pois jamais adivinhareis!
Pois bem, tomai o beijo, coisa que é de bom tom quando se revê pela primeira vez uma jovem mãe, e dizei-me quem foi, pois cansais-me de curiosidade.
Lá vai: surpreendi o vosso antigo mordomo, esse tal Clemente Tonnel que trabalhou diversos anos para voz em Tolosa, em grande conciliábulo com o superintendente.
Estais com certeza enganado, ele partira apenas para o Poitou observou Angélique com grande precipitação.E não existe razão alguma para se dar com grandes personagens. A menos que procure empregar-se em Vaux.
Foi o que julguei compreender depois da sua conversa. Falavam acerca de Vatel, o cozinheiro do superintendente.
Vedes? redarguiu Angélica, com um alívio que não compreendia. Procurava apenas trabalhar sob as ordens desse tal Vatel, que dizem ser genial. Acho, no entanto, que nos deveria ter avisado de que não voltaria ao Linguadoque. Mas não se pode esperar deferência,ia gente comum, quando deixamos de lhe ser úteis.
Sim, sim! concordou Andijos, que parecia pensar noutra coisa. Houve no entanto, um pormenor que me pareceu curioso. Dei comigo a entrar de improviso, no aposento onde o superintendente falava com o famoso Clemente. Fazia parte de um grupo de fidalgos mais ou menos alegres pelo vinho... Pedimos desculpa ao superintendente, mas eu observei que o nosso homem conversava de modo muito familiar com o Sr. Fouquet e assumiu uma atitude mais servil ao ver-nos entrar. Reconheceu-me. Quando saímos, vi-o dizer precipitadamente algumas palavras a Fouquet. Este fitou em mim um olhar frio, de serpente, e depois disse: ”Não creio que isso tenha importância.”Foi então a ti que consideraram sem importância, meu amigo? perguntou Peyrac, que dedilhava despreocupadamente a guitarra.
Pareceu-me...
Eis uma judiciosa opinião!
Andijos fingiu que tirava a espada, brincalhão, e a conversa prosseguiu, entre risos.
Um espião no Gai Savoir. Partida para assistir ao casamento do rei
”É absolutamente necessário que me recorde”, pensou Angélique. ”É uma coisa que está na minha cabeça, bem refundida no fundo dos meus pensamentos. Mas sei que é muito importante. Tenho de me recordar!”
Apoiava o rosto nas mãos, fechava os olhos, concentrava-se. Era uma coisa antiga e passara-se no castelo do Plessis. Disso tinha a certeza; mas o resto era tudo confusão.
A chama da lareira aquecia-lhe a testa. Pegou num guarda-fogo de seda pintada e protegeu-se, abanando-se maquinalmente. Lá fora, na noite, rugia a tempestade. Tempestade de Primavera e de montanha, sem relâmpagos, mas com rajadas de granizo grosso, que tamborilava nos vidros. Incapaz de dormir, levantara-se e fora sentar-se diante da chaminé. Tinha algumas dores nas costas e irritava-se por não recuperar mais depressa as forças. A ama afirmava que a sua fraqueza resultava da teimosia em amamentar, mas Angélique não lhe dava ouvidos. Quando pegava no seu bebé, o apertava a si e o via mamar, sentia uma alegria cada vez maior. Modificava-se, sentia que se tornava grave, enternecida. Via-se já transformada numa matrona solene e indulgente, rodeada de fedelhos irrequietos. Porque pensava tão frequentemente na sua infância, quando a pequena Angélique estava a desaparecer nela própria? O que a preocupava não era um mal-estar surdo, inexplicável, pois pouco a pouco o assunto desvendava-se, precisava-se: ”Há qualquer coisa de que é absolutamente necessário lembrar-me!”
Esperara nessa noite o regresso do marido, que mandara um correio anunciar a sua vinda. Mas a tempestade devia tê-lo atrasado, com certeza, e só chegaria no dia seguinte.
Isso decepcionara-a tanto que não pudera conter as lágrimas. Esperava com uma impaciência tão grande que lhe contasse a recepção ao rei! Tê-la-ia distraído. Diziam que a refeição e a festa tinham sido esplêndidas. Que pena não ter podido assistir, ter ficado para ali a moer a cabeça, a tentar trazer à superfície um farrapo de recordação, um pormenor que era capaz de não ter importância nenhuma!...
”Foi no Plessis, no quarto do príncipe de Conde... Enquanto eu espreitava pela janela. Tenho de rever todas as coisas a partir desse momento, pormenor a pormenor ”
Uma porta bateu e ouviu-se um ruído de vozes no átrio do pequeno castelo.
Angélique levantou-se de um pulo e saiu a correr do quarto. Reconheceu a voz de Jeffrey.
”Oh, meu querido, sois vós finalmente! Como sou feliz!”
Desceu a escada a correr e ele recebeu-a nos braços.
Sentou-se a seus pés numa almofada, encostada a ele, e quando os criados saíram pediu, impaciente:
Contai!
Palavra, correu tudo muito bem disse Jeffrey de Peyrac, a debicar um cacho de uvas. A cidade fez coisas belas, mas, sem me querer gabar, creio que a recepção do Gai Savoir ultrapassou tudo o mais. Consegui mandar vir a tempo, de Lião, um mestre maquinista que nos organizou uma festa muito bela.
E o rei? O rei?
O rei é um belo jovem, que parece apreciar as honras que lhe prestam. Possui faces cheias, olhos escuros acariciadores e muita majestade. Desconfio que tem o coração magoado. A pequena Mancini deixou-lhe lá uma ferida de amor que está longe de cicatrizar... Mas, como tem em alta conta a sua missão de rei, inclina-se perante a razão de Estado. Vi a rainha-mãe, bela, triste e um pouco reservada. Vi a Grande Mademoiselle e o Petit Monsieur brigarem por questões de etiqueta. Que mais vos posso dizer? Vi muitos belos nomes e muitas caras feias!... Na realidade, a mim nada deu maior prazer do que rever o pequeno Péguilin. Sabeis quem é? O cavaleiro de Lauzun, sobrinho do duque de Gramont, que é governador do Béarn. Tive-o como pequeno pajem em Tolosa, antes de ele ir para Paris. Ainda me parece que o vejo com a sua cara de gato, no tempo em que encarreguei a Sr.a de Vérant de o iniciar.
Jeffrey!
Mas ele cumpriu as suas promessas e pôs em prática os ensinamentos das nossas cortes de amor, pois verifiquei que era o menino bonito de todas aquelas damas. E o seu espírito granjeou lhe a amizade do rei, que não pode passar sem as suas brincadeiras.
E o rei? Falai me do rei! Exprimiu-vos a sua satisfação pela recepção que lhe fizestes?
Exprimiu, sim, com muita benevolência. E lamentou diversas vezes a vossa ausência. Sim, o rei ficou satisfeito... demasiado satisfeito.
”Demasiado” satisfeito? Porque dizeis isso com o vosso sorrizinho mordaz?
Porque me contaram o seguinte: Quando o rei subia para a carruagem, um cortesão observou-lhe que a nossa festa igualava o esplendor das de Fouquet. Então sua majestade respondeu: ”Sim, com efeito, e pergunto a mim próprio se não irá sendo tempo de fazer essa gente vomitar!” A boa rainha exclamou: ”Que observação, meu filho, depois de uma festa dada para vos agradar!” E o rei respondeu-lhe: ”Estou farto de ver os meus próprios súbditos esmagarem-me com o seu fausto.”
Ora essa! Que rapaz invejoso! exclamou Angélique, indignada. Não posso acreditar. Tendes a certeza de que ele disse tais palavras?
Foi o meu fiel Afonso, que segurava a porta da carruagem, que as ouviu e mas repetiu.
Esses sentimentos tão mesquinhos não podem ser do próprio rei; foram com certeza os cortesãos que lhe azedaram a disposição e o viraram contra nós. Estais certo de que não demonstrastes demasiada insolência a algum deles?
Fui todo açúcar e mel, garanto-vos. Apapariquei-os tanto quanto é possível, ao ponto de colocar no quarto de cada um dos fidalgos que ficaram no castelo uma bolsa cheia de ouro. E juro-vos que nenhum deles se esqueceu de a levar!
Lisonjeaste-los, mas, ao mesmo tempo, humilhaste-los, e eles ressentiram-se observou Angélique, abanando pensativamente a cabeça
Levantou-se e depois sentou-se nos joelhos do marido e aninhou-se contra ele. Lá fora, a tempestade continuava a rugir.
Sinto um calafrio todas as vezes que ouço pronunciar o nome de Fouquet murmurou. Revejo o cofrezinho do veneno, que esquecera durante tanto tempo e que se tornou agora, para mim, como que uma ideia fixa.
Estais muito nervosa, minha amiga! Irei ter, de futuro, uma esposa que treme ao mínimo sopro?
Preciso de me lembrar de qualquer coisa murmurou a jovem, fechando os olhos.
Roçou a face na cabeleira rescendente a violetas, cujos anéis húmidos pareciam frisados, e acrescentou:
Se pudésseis ajudar-me a recordar... Mas é impossível. Se conseguisse lembrar-me, creio que veria de onde vem o perigo.
Mas não há perigo nenhum, minha querida. O nascimento de Florimundo transtornou-vos.
Vejo o quarto... prosseguiu Angélique, de olhos fechados.O príncipe de Conde levantou-se da cama porque bateram à porta... mas eu não ouvira bater. O príncipe vestiu o roupão e gritou: ”Estou com a duquesa de Beaufort...” No entanto, ao fundo do quarto, o criado abriu a porta e apresentou o monge de capuz... O monge chamava-se Exili...
Calou-se e olhou bruscamente em frente, com uma fixidez que assustou o conde.
Angélique!
Agora lembro-me murmurou, em voz surda. Lembro-me, Jeffrey... O criado do príncipe de Conde era... Clemente Tonnel!
Sois tonta, querida! exclamou o conde, a rir. Esse homem esteve ao nosso serviço durante anos e só agora vos apercebeis dessa semelhança?
Só o tinha entrevisto rapidamente na penumbra. Mas aquele rosto bexigoso, aquelas maneiras cautelosas... Sim, Joffrey, agora tenho a certeza, era ele. E compreendo por que motivo, enquanto esteve em Tolosa, nunca fui capaz de o olhar sem inquietação. Lembrai-vos do que me disseste um dia? ”O espião mais perigoso é aquele de que não se suspeita:” Havíeis começado a senti-lo rondar pela casa... O espião desconhecido era ele.
Acho-vos muito romanesca, para uma mulher que se interessa pelas ciências. Acariciou-lhe a fronte e perguntou: Não tereis um pouco de febre?
Mas ela abanou a cabeça irritada. - Não zombeis! Atormenta-me a ideia de que esse homem me espia há anos. Por conta de quem? Do Sr. de Conde? De Fouquet?
Nunca falastes a ninguém desse caso?,
Falei a vós, uma vez... e ele ouviu-nos. Tudo isso é tão antigo! Tranquilizai-vos, meu tesouro, creio que forjais ideias... No entanto, meses depois, quando ela acabava de desmamar Florimundo, o marido disse-lhe uma manhã, em tom despreocupado:
Não desejaria forçar-vos, mas ser-me-ia agradável saber que todas as manhãs tomáveis isto, com a vossa refeição.
Abriu a mão, na qual ela viu brilhar uma pastilha branca.
Que é?
Veneno... em dose ínfima.
Que temeis, Jeffrey?perguntou, a fitá-lo.
Nada. Mas é um hábito com o qual sempre me dei muito bem.
O corpo habitua-se pouco a pouco ao veneno. Pensais que alguém pode tentar envenenar-me? Não penso nada, minha querida... Não acredito, simplesmente, no poder do chifre de licorne. No mês de Maio seguinte, o conde de Beyrac e a mulher foram convidados para o casamento real, que teria lugar em São João da Luz, na margem do Bidassoa. O rei Filipe IV de Espanha entregaria pessoalmente a filha, a infanta Maria Teresa, ao jovem rei Luís XIV. A paz estava assinada... ou quase. A nobreza de França congestionava as estradas, a caminho da cidadezinha basca.
Joffrey e Angélique saíram de Tolosa de manhã cedo, antes de o calor apertar. Naturalmente, Florimundo também ia, com a ama, a embaiadeira e o negrinho encarregado de o fazer rir. Transformara-se num bebé saudável, embora sem ser gordo, com uma encantadora carinha de Menino Jesus espanhol: olhos e caracóis negros.
A aia Margarida, indispensável, tomava conta, num dos carros, do guarda-roupa da ama. Kuassi-Ba, ao qual tinham mandado fazer três librés, qual delas a mais espampanante, assumia ares de grão-vizir num cavalo tão preto como ele. Iam também Afonso, o espião do arcebispo, sempre fiel, quatro músicos de um dos quais, um violinistazinho chamado Giovani, Angélique gostava muito e um tal Francisco Binet, barbeiro-cabeleireiro, sem o qual Joffrey de Peyrac não ia a lado nenhum. Criados e lacaios completavam a equipagem, que os carros de Bernardo de Andijos e de Cerbalaud precediam.
Toda entregue à excitação e à preocupação da partida, Angélique mal reparou que deixavam para trás os arredores de Tolosa.
Quando a carruagem transpunha uma ponte do Carona, porém, deu um gritinho e encostou o nariz ao vidro da janela.
Que tendes, minha querida? perguntou-lhe Joffrey de Peyrac.
Quero ver Tolosa mais uma vez.
Contemplou a cidade cor-de-rosa estendida nas margens do rio, com as flechas das suas igrejas e a rigidez das suas torres. Apertou-lhe o coração uma grande angústia.
Oh, Tolosa! murmurou. Oh, palácio do Gai Savoir! Tinha o pressentimento de que nunca mais os reveria.
Anne e Serge Golon
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