Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ANGÚSTIA
fannnnn
umer ummmmm
fannnnn umer ummmmm
Isto ressoa: mesmo no nevoeiro.
Mas algumas vezes esses sons diminuíam — assim como a dor — e permanecia apenas o nevoeiro. Lembrava-se das trevas: trevas sólidas haviam precedido o nevoeiro. Isto significava que estivesse melhorando? Faça-se a luz (mesmo que nevoenta) e a luz foi feita. E dai em diante? Aqueles sons existiam durante as trevas Ele não sabia responder a essas perguntas. E fazia sentido formular tais perguntas? Não sabia responder a esta também.
A dor localizava-se em algum lugar abaixo dos sons, à esquerda do sol e ao sul dos seus ouvidos. E isso era tudo o que realmente sabia.
Por um período de tempo que lhe pareceu longo demais (e assim foi, já que a dor e o nevoeiro eram as duas únicas coisas que existiam), aqueles sons eram a única realidade exterior. Não tinha a menor idéia de quem ele era ou do lugar onde estava, e não fazia questão de saber, seria preferível ter morrido. Mas dentro daquele nevoeiro de dor que lhe envolvia a cabeça como nuvens de uma tempestade de verão, ignorava até mesmo este desejo.
Com o passar do tempo, percebeu que havia períodos sem dor, e que estes obedeciam a um ciclo. E então, pela primeira vez, desde que se elevara das trevas, precedidas pelo nevoeiro, ele teve um pensamento e este nada tinha a ver com qualquer que fosse a sua atual situação. Ele pensou numa estaca partida ao meio que fora fincada nas areias da praia Revere, onde seus pais freqüentemente o levavam quando criança. Ele sempre insistia para que estendessem a toalha num local onde pudesse contemplar aquela estaca, que lhe parecia uma presa saliente e solitária de um monstro ali enterrado. Gostava de ficar sentado e observar a maré vir subindo até cobrir a estaca e então, horas mais tarde, depois de terem comido seus sanduíches e a salada de batatas, depois dele ter persuadido seu pai lhe dar os últimos drops de Kool-Aid que ele trouxera dentro de uma enorme bolsa térmica, e pouco antes de sua mãe decidir que era hora de arrumarem as coisas para voltarem para casa, a ponta da estaca de madeira apodrecida tornava a aparecer. À princípio, via-se apenas um pedaço dela reluzindo por entre as ondas e, depois, ela começava a crescer, mais e mais. por volta da hora em que todo o lixo fora recolhido e jogado dentro de um enorme latão onde se lia mantenha sua praia limpa, em que todos os brinquedos de Paulie haviam sido guardados,
(Paulie, é esse meu nome eu sou Paulie e hoje à noite a mamãe vai passar óleo Jonhson's para crianças em minhas queimaduras de sol, pensou ele por entre as estrondosas trovoadas que agora vivia) e em que a toalha de praia já havia sido dobrada, a estaca teria reaparecido quase totalmente, com suas laterais escurecidas e gastas pelo limo, coberta de espuma. É o movimento das mares, tentara lhe explicar seu pai, certa vez. Mas ele sempre soubera que era por causa da estaca. A maré ia e voltava. A estaca permanecia, mesmo que algumas vezes não pudesse ser vista. Se não fosse a estaca, a maré não existiria.
Essa lembrança girava e girava em sua cabeça, como o vôo de uma mosca indolente, e ele tentou descobrir seu significado, mas os sons o interromperam por um longo tempo.
fannnn
liii tuuuuuuudo
fannnn umer ummmm
Às vezes os sons cessavam. Às vezes ele cessava. A primeira lembrança verdadeiramente clara deste "agora", o "agora" fora do nevoeiro da tempestade, era de ter morrido, de subitamente ter dado conta de que não conseguia mais respirar. Mas estava tudo bem, isto até era bom; conseguia suportar um pouco de dor, mas assim já era demais e ele sentiu-se feliz por estar chegando o seu fim.
Foi então que sentiu uma boca grudar-se na sua, sem dúvida alguma a boca de uma mulher, apesar dos lábios secos e duros. A respiração daquela mulher entrou pela sua boca, desceu-lhe pela garganta e lhe invadiu os pulmões, e quando aqueles lábios se afastaram dos seus, ele sentiu, pela primeira vez, o cheiro de sua carcereira. Sentiu-a pelo hálito da respiração, que ela forçara para dentro dele como um homem força certa parte de seu corpo dentro do corpo de uma mulher relutante. Era um hálito fétido, mistura de biscoitos de baunilha com sorvete de chocolate, molho de galinha e manteiga de amendoim.
Escutou uma voz que gritava:
— Respire, seu filho da mãe! Paul, respire!
Aqueles lábios encaixaram-se de novo aos seus e aquele hálito desceu por sua garganta abaixo, deslocando o ar como um trem do metrô que passa e levanta atrás de si folhas soltas de jornal e papéis de bala jogados pelo chão. Os lábios dela soltaram-se dos seus e ele pensou: "Pelo amor de Deus, não expire esse ar em cima de mim", mas ele não pôde evitar e aquele mau cheiro, oh que mau cheiro, que terrível mau CHEIRO.
— Respire, seu filho da mãe! — guinchou aquela voz que ele não via de onde vinha.
— Eu respiro, mas por favor não me faça isso de novo, não me contamine mais — e ele realmente tentou respirar, mas antes que terminasse, aqueles lábios grudaram-se de novo aos seus, aqueles lábios secos e mortos como duas tiras de couro curtido, E ela o invadiu com seu hálito novamente.
Quando ela tirou os lábios de sua boca, ele não só deixou que a respiração dela saísse de seus pulmões, como a expulsou com todas as suas forças, numa gigantesca expiração. Cuspiu-a para fora dele; e esperou que seus pulmões voltassem a trabalhar, da maneira como vinham fazendo durante toda a vida, sem qualquer ajuda sua. E como eles não voltaram, ele fez um esforço gigantesco e inspirou ruidosamente e aí, sim, seus pulmões voltaram a trabalhar sozinhos e com a maior rapidez, numa tentativa de expulsar o gosto e o cheiro daquela mulher para fora dele.
O ar comum nunca lhe pareceu tão agradável.
Ele começou a ver-se envolvido de novo no nevoeiro, mas antes
que aquele mundo se desvanecesse diante dele, ouviu a mulher murmurar:
— Ufa! Esta foi por pouco!
Não, não foi por pouco, pensou ele, e desmaiou.
Sonhou com a estaca, tão real, que ele quase podia tocar a ponta verde-musgo com palma da mão.
Quando voltou ao seu estado de semiconsciência, ele conseguiu relacionar a estaca com a sua situação atual — que lhe fugia das mãos. A dor nada tinha a ver com as marés — essa foi a mensagem do sonho que lhe ficou realmente na memória. A dor parecia ir e voltar, mas era como a estaca — às vezes visível, outras vezes coberta, mas sempre presente, quando a dor não o arrasava com aquele nevoeiro denso e cinzento feito pedra, ele agradecia silenciosamente, mas não se deixava enganar — ela ainda estava ali, esperando para reaparecer. E não era mais uma única estaca e sim duas; a dor eram as estacas, e uma parte já descobrira há um longo tempo o que só agora sua mente reconhecia: as estacas partidas ao meio eram suas duas pernas quebradas.
Só muito tempo mais tarde, porém, ele foi capaz de entreabrir os lábios colados um no outro pela saliva ressecada e resmungar um "Onde estou?" dirigindo-se à mulher sentada ao lado de sua cama, que tinha um livro nas mãos. O nome do autor daquele livro era Paul Sheldon e foi sem a menor surpresa que ele reparou ser esse um de seus livros.
— Sidewinder, Colorado —, respondeu ela quando ele finalmente conseguiu falar — Meu nome é Annie Wilkes e sou...
— Sei quem você é — interrompeu ele —, você é minha fã número um.
— Sim! — exclamou ela, sorrindo — é isso mesmo o que eu sou.
Trevas. Dor e nevoeiro. A seguir, tomar conhecimento de que, apesar da dor constante, ela era algumas vezes sufocada através de um acordo desagradável que ele supunha trazia-lhe alívio. A primeira lembrança verdadeira: a de ter morrido e de ter sido trazido de volta graças à respiração fedorenta daquela mulher.
Lembrança seguinte: os dedos daquela mulher enfiavam-lhe alguma coisa na boca, a intervalos regulares. Era algo parecido com umas cápsulas, mas como não lhe desse água, as cápsulas permaneciam em sua boca, e à medida que iam se desmanchando, deixavam um gosto terrivelmente amargo, como o de aspirina. Teria sido ótimo cuspir aquele amargor, mas ele sabia que era melhor engolir, pois era ele quem fazia a maré subir, cobrir a estaca
(ESTACAS são ESTACAS, elas são duas, tudo bem, elas são duas agora, mas fiquem quietas, vocês sabem, bem quietas quietinhas shhhhhhh) e fazer com que ela sumisse por algum tempo.
Todas essas lembranças lhe chegavam a intervalos bem espaçados, mas como a dor não cedesse e, sim, se desgastasse (tal como a estaca da praia Revere também devia ter se desgastado, já que nada é eterno, pensou ele — a criança que fora um dia teria certamente zombado de tamanha heresia), as coisas externas começaram a tomar um ritmo mais rápido e o mundo real, com toda a sua carga de lembranças, experiências e preconceitos, se restabeleceu. Ele era Paul Sheldon, e escrevia livros de dois tipos: os bons e os best-sellers. Casara-se duas vezes e se divorciara outras tantas. Era um fumante inveterado (ou tinha sido, antes que isso acontecesse, o que quer que "isso" significasse). Algo muito sério acontecia a ele, mas ainda estava vivo. O nevoeiro cinza-chumbo começou a se dissipar cada vez mais rápido, antes mesmo de sua fã número um lhe comprar a velha Royal, com seus estalidos, seu sorriso amarelo onde faltava um dente, e sua voz de Ducky Daddles. Mas muito antes disso, Paul já havia compreendido que estava numa bruta de uma enrascada.
A fração intuitiva de sua mente via aquela mulher antes mesmo que ele desse conta que a estava vendo, e devia também tê-la compreendido antes mesmo dele pensar que a estava compreendendo — e por que outra razão ele associava a ela imagens tão sinistras e ameaçadoras? Todas as vezes em que ela entrava no quarto, vinha-lhe à cabeça a imagem de túmulos, do destino, e de ídolos cultuados por supersticiosas tribos africanas, descritas nos romances de H. Rider Haggard.
A imagem de Annie Wilkes como uma deusa africana saída de livros como She ou As minas do rei Salomão era, não só ridícula, como também estranhamente apropriada. Ela era uma mulher corpulenta e, com exceção dos seios volumosos e nada convidativos que sobressaíam por baixo do casaco de malha cinza com que estava sempre vestida, seu corpo parecia totalmente desprovido de curvas femininas — não se notavam as curvas da cintura, das nádegas, e nem mesmo as da batata das pernas, sempre escondidas pelas diversas saias de algodão que usava em casa (quando cuidava de suas tarefas ao ar livre, ela se recolhia em seu quarto e colocava calças jeans). Seu corpo era robusto, mas nada atraente. Passava-lhe a sensação de algo coagulado, fechado, sem orifícios, sem espaços abertos ou hiatos.
Acima de tudo, ela lhe dava a perturbadora sensação de solidez, como se não houvesse ali veias ou órgãos internos, como se ela pudesse ser apenas uma compacta Annie Wilkes, de um lado a outro e de cima a baixo. E estava cada vez mais convencido de que os olhos dela, embora aparentassem se mover, eram apenas pintados. Eles não deviam se mexer mais do que os olhos de certos rostos pintados, que dão a impressão de segui-lo com o olhar para qualquer lado que você ande. Imaginava que se pudesse enfiar dois dedos de sua mão por dentro das narinas dela, não conseguiria avançar nem três milímetros, e logo esbarraria numa superfície sólida (talvez levemente suada ao toque dos dedos); até mesmo o casaco cinza, as saias antiquadas que usava em casa, e o jeans desbotado para as tarefas no quintal, pareciam fazer parte daquele corpo fibroso, sólido e sem orifícios. Sendo assim, a sensação de que ela fosse como uma deusa num romance impetuoso não o surpreendeu nem um pouco. Como os ídolos, ela oferecia uma única coisa: um terror incômodo, constante e profundo. Como um ídolo, ela tudo dominava.
Não, espere um pouco, isso não está correto. Ela realmente oferecia alguma coisa a mais. Ela lhe dava as cápsulas que faziam a maré subir, cobrindo as estacas.
As cápsulas eram a maré; Annie Wilkes era a presença da lua, enfiando-lhe cápsulas na boca como quem joga detritos ao mar. Ela lhe dava duas cápsulas a cada seis horas. A princípio, ele percebia a chegada dela quando sentia dois dedos entrando-lhe pela boca (muito cedo ele aprendeu a absorver avidamente aqueles dedos nojentos, apesar do gosto amargo do remédio), e, mais tarde, já a distinguia pelo casaco cinza e uma de suas muitas saias. A noite, ela sempre trazia consigo um de seus livros. Surgia num roupão felpudo cor-de-rosa, o rosto reluzente e besuntado de creme (ele seria capaz de dizer facilmente o principal componente daquele creme, mesmo que jamais tivesse posto os olhos na embalagem: o cheiro de lanolina era forte e notório) e o sacudia, tirando-o de seu sono profundo. Trazia suas cápsulas aninhadas na palma das mãos e ele percebia, por trás dos ombros sólidos daquela mulher, a lua cavernosa, aninhada a um canto da janela
Passado algum tempo — depois do seu temor ter se tornado evidente demais para ser ignorado — foi que ele percebeu que ela o vinha dopando com um analgésico chamado Novril, composto por uma alta dosagem de codeína. A razão por que ela não precisasse lhe trazer a comadre com a freqüência habitual não se devia apenas ao fato de estar numa dieta baseada unicamente em alimentos líquidos e gelatinosos (anteriormente, durante o nevoeiro, ela o alimentara por via intravenosa), mas também por que o uso de Novril acarretava prisão de ventre nos pacientes que o tomavam. Outro efeito colateral do Novril, e este muito mais sério, era a redução do nível respiratório em pacientes sensíveis. Paul não se encaixava particularmente nesta categoria, embora fosse um fumante crônico há quase dezoito anos, mas sua respiração havia parado de verdade pelo menos uma vez: quando ela lhe fizera respiração boca a boca. Era possível que houvessem ocorrido outras paradas respiratórias durante o nevoeiro, mas ele não poderia lembrar. O que aconteceu a ele poderia ter sido apenas uma parada respiratória, mas ultimamente vinha suspeitando que ela quase o matara com uma acidental dose excessiva. Ao contrário do que se imaginava, ela não sabia tanto assim a respeito do que estava fazendo. E isso era apenas uma das coisas que o amedrontavam em Annie.
Cerca de dez dias após ter emergido das trevas, Paul descobriu três coisas quase ao mesmo tempo. A primeira delas era a certeza de que Annie dispunha de uma grande quantidade de Novril (na verdade, ela dispunha de uma grande quantidade de remédios, de todos os tipos). A segunda, que estava viciado em Novril. E a terceira, que Annie Wilkes era uma mulher louca e muito perigosa.
As trevas haviam antecedido a dor e o nevoeiro; pouco depois, ele começou a lembrar do que existia antes das trevas, à medida que ela ia contando o que havia acontecido. Ele fizera as perguntas habituais que uma pessoa normalmente faz após recobrar a consciência e fora informado que se encontrava na pequena cidade de Sidewinder, no Colorado. Ela lhe contou que lera cada um de seus oito romances pelo menos duas vezes, e que os seus prediletos, os livros da série Misery, ela havia lido umas quatro, cinco, seis vezes talvez, e que desejara que ele pudesse escrevê-los com mais freqüência. Ela contou ainda, que mal pôde acreditar que o seu paciente fosse mesmo o escritor Paul Sheldon, mesmo depois de ter conferido o documento de identidade, que estava na carteira.
— E por falar nisso, onde anda minha carteira? — perguntou ele.
— Eu a guardei num local bem seguro — respondeu. Subitamente, porém, o sorriso dela se fechou e seu semblante anuviou-se, numa expressão que ele não gostou nem um pouco — era como descobrir uma fenda muito profunda no meio das flores de verão em um campo aprazível.
— Você acha que eu teria coragem de roubar alguma coisa de sua carteira? — indagou ela.
— Não, é claro que não. É que... —É que toda a minha vida está ali naquela carteira, pensou ele. A minha vida longe deste quarto. Longe dessa dor. Longe do jeito com que o tempo parece se esticar, como um fio comprido e cor-de-rosa de chiclete que um menino estica com a mão quando está aborrecido — porque é isso o que está acontecendo nessa última hora mais ou menos, enquanto as cápsulas não vêm.
— E então, meu caro? — insistiu ela.
Aterrorizado, ele percebeu que os olhos dela se fechavam e tornavam-se cada vez mais sombrios. A fenda estava se abrindo, como um terremoto se alastrando por trás das sobrancelhas. Ele podia ouvir o gemido penetrante do vento lá fora e, subitamente, lhe veio à cabeça a imagem dela levantando-o pelos ares e jogando-o por cima dos ombros sólidos. Ele cairia estendido no chão como um saco de estopa atirado contra uma parede de pedras e ela o deixaria lá fora até transformar-se num bolo de neve. Ele morreria de frio, mas, antes disso, suas pernas latejariam e ele gritaria de dor.
— É só porque meu pai sempre me dizia para não tirar os olhos de minha carteira — retrucou ele, assombrado com a facilidade com que a mentira lhe saíra dos lábios.
Seu pai tinha um modo de vida tal, que nem dava conta da existência de Paul, a não ser para o absolutamente necessário. Tanto quanto podia se lembrar, seu pai só lhe dera um único conselho em toda a sua vida. No seu décimo quarto aniversário, seu pai havia lhe dado um envelope pequeno com uma camisinha Red Devil dentro.
— Deixe isso na carteira — dissera Roger Sheldon —, e se algum dia você ficar excitado com alguma garota num drive-in, perca um segundo entre excitado o bastante para querer e excitado demais para se preocupar e coloque a camisinha. Já tem criança demais neste mundo e não quero ver você entrando para o exército aos dezesseis anos de idade.
— Meu pai me disse isso tantas vezes, que nunca mais me esqueci prosseguiu Paul. — Peço desculpas se a ofendi.
Ela se descontraiu. Abriu um sorriso, a fenda fechou-se. As flores de verão balançavam no campo outra vez. Ele imaginou que se enfiasse uma de suas mãos dentro daquele sorriso não encontraria nada além de trevas, ainda que flexíveis.
— Não fiquei ofendida. Sua carteira está bem guardada. Espere um pouquinho só... tenho algo para você.
Ela saiu do quarto e retornou logo depois trazendo um prato nas mãos, onde boiavam alguns legumes numa sopa fumegante. Ele não conseguiu comer muito, mas ainda assim comeu mais do que julgara de início, e ela pareceu ficar satisfeita. Enquanto lhe dava a sopa, ela ia contando o que havia acontecido e ele foi se lembrando de tudo à medida que ela falava. Afinal, era bom ficar sabendo como você aparece com as duas pernas quebradas, embora a maneira como você ficasse sabendo de um fato como esse fosse bastante perturbadora — era como se ele fosse personagem de um livro ou de uma peça, um personagem cuja biografia não fosse recontada como uma história e, sim, fosse sendo criada como uma história de ficção.
Ela havia ido a Sidewinder em seu jipe de tração nas quatro rodas; pretendia fazer algumas compras na mercearia e se abastecer com ração para seus animais... ah, sim, também queria ver os livros novos que haviam chegado no Wilson's. Isso fora há quase duas semanas, numa quarta-feira, pois os livros novos sempre chegavam às terças.
— Eu ia pelo caminho pensando mesmo em você! — recomeçou ela, enquanto lhe dava outra colherada e, muito profissionalmente, enxugava com um guardanapo uma gota que ficara no canto da boca. — E isso é que torna essa coincidência mais incrível ainda, você não percebe? Eu ia pensando que O filho de Misery tivesse finalmente saído, mas, para azar meu, não tinha chegado ainda.
Segundo ela, uma tempestade estava a caminho, mas até o meio-dia o serviço de meteorologia garantia que ela seguiria para o sul, em direção ao Novo México e Sangre de Cristo.
— Foi isso mesmo — recordou-se ele. — Eles disseram que ela mudaria de direção. À princípio, foi por isso que resolvi sair.
Ao tentar mexer as pernas, sentiu uma dor dilacerante e Paul soltou um gemido.
— Não faça isso, advertiu ela. — Se permitir que suas pernas abram a boca, elas não vão mais parar de falar. . . e eu não posso lhe dar o remédio durante as próximas duas horas. Eu até já estou lhe dando cápsulas demais. . .
Porque não estou num hospital? Essa era a pergunta a ser feita, mas ele não estava certo que tanto ele quanto ela quisessem tal pergunta sendo formulada. Pelo menos, não por enquanto.
— Quando cheguei à mercearia, Tony Roberts me aconselhou a entrar e esperar que a tempestade passasse, antes de começar a voltar para cá e eu lhe disse que. . .
— Qual é a distância daqui até a cidade? — interrompeu ele.
— Uma boa distância — respondeu ela, vagamente, olhando pela janela.
Houve uma pausa desagradável e Paul ficou aterrorizado pelo que viu no rosto dela, porque nele só havia o vazio; o negro vazio de uma fenda que se abre nos campos de uma colina; o negro vazio onde flores não crescem e onde uma queda poderia não mais ter fim. Aquele era o rosto de uma mulher que se desligara momentaneamente de suas opiniões, de suas referências, de toda a sua vida. Era o rosto de uma mulher que perdera não só o fio da história que contava, mas que perdera também toda a memória. Ele visitara um hospício certa vez (há alguns anos atrás, quando estava colhendo material para o livro Misery, o primeiro dos quatro da série que acabou sendo sua principal fonte de renda nos últimos oito anos) e já havia visto aquele olhar, ou, melhor dizendo, aquele não-olhar. Essa expressão vazia no olhar era chamada de catatonia, mas para o que deixara Paul aterrorizado, ainda não havia uma expressão definida. Talvez fosse melhor explicá-la com uma vaga comparação: naquele momento, era como se os pensamentos dela houvessem se transformado na mesma consistência de seu corpo: pensamentos sólidos, fibrosos, sem orifícios, sem espaços vazios ou hiatos.
Pouco a pouco, o rosto dela foi se iluminando. Seus pensamentos pareceram voltar, flutuando, vindos de algum lugar. Flutuando, pensou ele, não era bem a palavra certa. Ela não estava se enchendo de pensamentos, como uma piscina vai se enchendo de água; ela estava se aquecendo. . . É, era isso mesmo. . . ela estava se aquecendo, como um eletrodoméstico qualquer, uma torradeira ou um saco d'água elétrico.
— ... eu disse a Tony: "Essa tempestade vai para o sul" — disse ela num balbucio, vagarosamente, até que as palavras retomassem sua cadência normal e ela pudesse conversar outra vez com a mesma desenvoltura anterior. Mas agora ele estava atento. Qualquer coisa que ela dizia soava um tanto estranha, fora do comum. Ouvir Annie Wilkes falando era como ouvir uma música fora de rotação — . . .mas ele me alertou: "Ela mudou de idéia!' "Que nada!", eu lhe respondi. "É melhor eu ir para casa."
"— Se eu fosse a senhora, ficaria aqui na cidade. Estão dizendo no rádio que ninguém está preparado para enfrentar uma tempestade dessas."
— Mas eu precisava voltar, é claro, não há mais ninguém para dar comida aos animais, a não ser eu. Os vizinhos mais próximos, os Royd-mans, moram a muitos quilômetros daqui, e, além do mais, eles não gostam de mim.
Ela lançou-lhe um olhar cortante ao dizer isso e, como ele nada respondesse, passou a colher na borda do prato, numa maneira muito autoritária, e perguntou:
— Satisfeito?
— Sim, já estou satisfeito. Obrigado. Estava muito gostosa. Você tem muitos animais por aqui?
Por que se tiver, pensou ele, você deve ter alguém para lhe ajudar; pelo menos um empregado. "Ajuda" era palavra-chave, ou parecia ser, já que ela não usava aliança de casamento.
— Não muitos — respondeu — Meia dúzia de galinhas chocadeiras, duas vacas e Misery.
Ele arregalou os olhos, e ela sorriu.
— Você não deve achar muito gentil eu dar à minha porca o mesmo nome da mulher linda e corajosa que você inventou, mas é esse o nome que dei a ela e minha intenção não foi desrespeitá-lo. — Ela fez uma pausa e prosseguiu: — Ela é bem mansinha.
E dizendo isso, franziu o nariz e, pelo menos por um instante, se transformou numa porca, eriçando até mesmo os pêlos que lhe cresciam no queixo.
— Oinc! Oinc! U-u! OINC! — fez ela, imitando o animal. Paul olhava para ela com os olhos ainda mais arregalados.
Ela não percebeu; desligara-se outra vez seu olhar estava vago e perdido, sem brilho. Mesmo a luz refletida pelo pequeno abajur não se demorava muito naquele olhar.
Finalmente, ela deu um suspiro e retomou seu estado.
— Andei cerca de cinco quilômetros e começou a nevar forte; aqui é assim: quando começa, a neve vem sempre com força. Eu vinha bem devagar, com os faróis acesos e a certa altura avistei o seu carro, capotado e fora da estrada.
Annie virou-se para ele com um olhar de reprovação:
— Você não estava com os faróis ligados.
— A tempestade me pegou de surpresa — justificou-se ele, lembrando-se só naquele momento o quanto havia sido pego de surpresa, embora ainda não conseguisse se lembrar do quanto estava bêbado.???
— Eu poderia não ter parado o jipe, se você estivesse no meio de uma ladeira. Sei que não é muito cristão dizer isso mas já havia uma boa camada de neve na pista e, mesmo num jipe com tração nas quatro rodas nunca se pode ter certeza que ele seguirá adiante se perder a velocidade. Seria mais fácil dizer a mim mesma: Ah, eles conseguiram escapar, pegaram uma carona e pronto. Mas eu estava numa reta, bem no alto do terceiro morro depois da casa dos Roydmans. Parei o carro, desci escutei alguém gemendo — e esse alguém era você, Paul.
Annie lhe dirigiu um sorriso forçado, meio estranho e maternal. Pela primeira vez, um pensamento inteiramente claro lhe surgiu na cabeça: Estou numa encrenca: essa mulher não é boa da cabeça.
Nos vinte minutos seguintes, os dois ficaram conversando, ele deitado e ela sentada ao lado da cama, naquele quarto aparentemente sem uso. Mas à medida que seu corpo foi absorvendo a sopa, a dor nas pernas recomeçou. Ele fez o possível para prestar atenção no que ela dizia, mas não teve muito êxito. Sua mente estava dividida. Por um lado, escutava Annie contando como o retirara dos destroços de seu Camaro ano 74 e esse seu lado doía e latejava, como um par de velhas estacas de madeira carcomida, que começa a despontar, cintilante, por entre as ondas da maré que vai baixando. Por outro lado, via a si mesmo no Hotel Boulderaro, onde terminara seu último romance — obrigado, Senhor, pelas coisas pequenas! —, em que Misery Chastain não era a protagonista.
Havia inúmeras razões pelas quais não queria escrever mais sobre Misery, mas uma delas se sobrepunha a todas as outras de maneira inabalável e irreversível: Misery — obrigado, Senhor, pelas coisas grandes! — estava finalmente morta. Morrera cinco páginas antes do final de O filho de Misery. Ninguém deixaria de derramar uma lágrima quando lesse o trecho do livro, nem mesmo Paul foi capaz. Só que as lágrimas que lhe escorriam dos olhos eram o resultado de histéricas gargalhadas.
Ao terminar o último livro, um romance moderno protagonizado por um ladrão de carros, lembrara-se do momento exato em que datilografara a última frase de O filho de Misery: ''E então, Ian e Geoffrey deixaram o cemitério ao lado da igreja de Little Dunthorpe, confortando um ao outro, determinados a recomeçarem uma nova vida". Enquanto escrevia esta última linha, Paul gargalhara tão ruidosamente que mal conseguia acertar as teclas da máquina, tendo que voltar e apagar certas letras várias vezes. Obrigado, Senhor, pela fita corretora de sua boa amiga IBM! Ele escrevera FIM logo abaixo do texto e saíra aos pulos pelo quarto — no mesmo quarto do Hotel Boulderaro — gritando sem parar: Livre! finalmente Livre! Graças ao bom Deus, estou finalmente livre! Aquela cadela finalmente morreu!
O livro novo chamava-se Carros velozes e ele não teve motivos para gargalhar histericamente ao terminá-lo. Ficara sentado de frente para a máquina de escrever, pensando: Você pode ter acabado de ganhar o Prêmio de Melhor Livro Americano do próximo ano, meu caro. Ele tirou o. . .
—". . . pequeno machucado na sua testa direita, mas não parecia ser nada sério. Mas as suas pernas. . . mesmo já tendo começado a escurecer, pude logo perceber que suas pernas não. . . "
. . .fone do gancho e discou para o serviço de quarto, pedindo uma garrafa de Dom Pérignon. Lembrou-se de ficar andando de um lado para o outro do quarto — o mesmo quarto em que terminara todos os seus livros desde 1974 — enquanto esperava o champanhe; lembrou-se de dar uma nota de cinqüenta dólares ao garçom como gorjeta, e de ter perguntado a ele sobre a previsão do tempo; lembrou-se do garçom, muito satisfeito e embaraçado, lhe dizer, entre muitos sorrisos, que a tempestade desviara para o sul, em direção ao Novo México, e que não vinha mais para aqueles lados; lembrou-se de pegar na garrafa gelada, de ouvir o suave estampido da rolha e do gosto seco, meio ácido-meio amargo, do primeiro copo de champanhe; lembrou-se de ter aberto a mala e de ter dado uma olhada na passagem de avião para Nova Iorque; lembrou-se de ter decidido subitamente, assim sem mais nem menos de. . .
— ... era melhor eu trazer para minha casa imediatamente! Foi uma dificuldade leva-lo até o jipe, mas eu sou uma mulher bem avantajada — como você já deve ter reparado. Eu tinha uma pilha de lençóis comigo e, assim, embrulhei você num deles e mesmo com a pouca luz do entardecer, percebi que você me parecia muito familiar! Pensei que talvez. . .
. . .pegar o Camaro no estacionamento do hotel e seguir para oeste de carro, em vez de pegar o avião. Afinal de contas, o que havia para ele em Nova Iorque? Apenas uma casa, vazia, fria, nada acolhedora e, possivelmente, arrombada. Que se dane! pensou ele, bebendo mais champanhe. Siga para o oeste meu jovem, para oeste! A idéia era maluca demais para fazer sentido. Pegue apenas uma muda de roupa e o. . .
— ... encontrei sua mala e a peguei também. Já não enxergava quase nada e estava amedrontada com a idéia de que você morresse sob os meus cuidados, ou qualquer coisa assim. Então liguei logo o carro e peguei sua. ...
. . .manuscrito de Carros velozes e ganhe a estrada em direção a Las Vegas, Reno ou até mesmo Los Angeles. Lembrou-se que a idéia também lhe parecera muito tola a princípio — aquela era uma viagem para ter sido feita pelo jovem de vinte e quatro anos que fora um dia, ao ter vendido seu primeiro romance, mas não para o homem de quarenta e dois anos de idade que ele era no momento. Algumas taças de champanhe mais tarde, e a idéia não lhe pareceu nem um pouco tola. Na verdade, parecia-lhe esplêndida, uma espécie de Grande Odisséia para Algum Lugar; uma maneira de se familiarizar de novo com a realidade depois de ter se embrenhado nos meandros fictícios do livro. E, assim, ele. . .
—. . .me veio como uma luz! Tinha certeza de que você estava morrendo. . . quero dizer, eu estava certa que sim! Aí peguei sua carteira dentro da mala, tirei a carteira de motorista e vi o nome; Paul Sheldon. Deve ser mera coincidência, pensei. Mas a foto da carteira também se parecia com você. Fiquei tão assustada, que precisei me sentar na cadeira da cozinha. Pensei até que ia desmaiar. Depois de algum tempo, comecei a achar que talvez as foto fosse uma coincidência também, afinal essas fotografias não se parecem muito com ninguém. . . mas quando encontrei sua carteira da Associação dos Escritores e uma outra, do PEN, soube logo que você. . .
. . .acabou se metendo em apuros quando a neve começou a cair. Muito antes disso, porém, ele havia parado no bar do hotel e dado a George uma gorjeta de vinte dólares para que ele lhe conseguisse outra garrafa de Don Pérignon. Sob um céu cinza-chumbo, ele esvaziou a garrafa enquanto dirigia em direção às montanhas Rochosas e, em algum lugar ao leste do túnel Eisenhower, ele saiu da auto-estrada porque as pistas estavam secas e vazias e a tempestade seguia para o sul. E afinal de contas, o túnel o deixava nervoso. Escutava uma fita antiga de Bo Diddley no toca-fitas instalado no painel e só ligou o rádio depois que o Camaro começou a derrapar e a deslizar de verdade. Foi só então que percebeu que aquilo não seria uma nevasca passageira, comum no interior, e sim uma tempestade bem real; a tempestade talvez não tivesse seguido para o sul, afinal; ela talvez estivesse vindo bem na sua direção e ele talvez estivesse se metendo em apuros (assim como esse em que você está agora). . .
. . .embora se encontrasse bêbado o bastante para achar que conseguiria escapar. Dessa forma, ao invés de parar em Cana e procurar um hotel, ele resolveu seguir em frente. Lembrou-se então da tarde ter se transformado em noite; lembrou-se que o efeito do champanhe começava a se dissipar; lembrou-se de ter se inclinado para um cigarro no porta-luvas e foi neste instante que a última derrapada aconteceu. Ele tentou parar o carro; mas o resultado foi ainda pior; lembrou-se de uma forte pancada abafada e o mundo virou de cabeça para baixo. Ele havia. . .
— ... gritado! E quando eu o ouvi gritando, percebi que ia sobreviver. Pessoas moribundas raramente conseguem gritar, elas não têm forças para isso, eu entendo muito bem dessas coisas. Decidi então ajudar você a viver. Dei-lhe um dos meus analgésicos e você dormiu; ao acordar, começou a gritar outra vez e lhe dei outra dose. Depois você teve febre, mas consegui combatê-la com Keflex. Por uma ou duas vezes, você quase morreu, mas agora isso já passou. Prometo a você que sim.
Ela se levantou e lhe disse:
— Agora você precisa descansar e recuperar suas forças, Paul.
— Minhas pernas estão doendo.
— Tenho certeza que estão. Dentro de uma hora eu lhe trarei seu remédio.
— Agora, por favor.
Sentia-se humilhado em pedir tal coisa, mas não podia evitar. A rnaré baixara e as duas estacas resistiam de pé, imponentes e reais, e isso era algo que não podia ser evitado nem mediado.
— Daqui a uma hora — proferiu ela com firmeza, já se dirigindo para a porta, levando a colher numa das mãos e a tigela de sopa na outra.
— Espere!
Ela voltou-se e lhe dirigiu um olhar amoroso e implacável. Paul não gostou daquele olhar. Não gostou nem um pouco.
— Já faz duas semanas que estou aqui?
Ela pareceu ficar confusa outra vez, além de aborrecida. E ele percebeu que a noção que ela tinha do tempo não era das melhores.
— Mais ou menos isso.
— E eu estava inconsciente?
— A maior parte do tempo.
— E como eu me alimentava?
— Ela o olhou, pensativa, e respondeu laconicamente:
— I V
— IV?
Ela interpretou seu atordoamento como se fosse uma simples ignorância do assunto.
— Eu o alimentei por via intravenosa. Através de tubos. É por isso que seus braços estão cheios de marcas — explicou ela, dirigindo-lhe um olhar vago mas pensativo. — Você me deve a vida, Paul. Espero que se lembre disso. Espero que se lembre sempre disso.
E dizendo isso, saiu.
A hora passara. De alguma maneira e finalmente, aquela hora passara.
Deitado na cama, ele suava frio e tremia ao mesmo tempo. De outro cômodo da casa vinham os sons de Hawkeye e Hot Lips e as vozes dos disc-jóqueis da WKRP, uma rádio barulhenta e extravagante de Cincinnati. A voz de um locutor exaltava as qualidades das facas Ginsu, colocava um telefone à disposição dos ouvintes do Colorado que estivessem ansiosos para ganhar um conjunto de facas e avisava que as telefonistas já estavam esperando.
Paul Sheldon também estava esperando.
Assim que o relógio do outro cômodo bateu oito horas, ela reapareceu prontamente, trazendo as duas cápsulas e um copo de água.
Ele levantou o corpo apoiando-se nos cotovelos, ávido pelo remédio, e ela sentou-se na cama.
— Finalmente consegui comprar seu último livro, há dois dias apenas — ela informou.
O barulho dos cubos de gelo batendo nas paredes do copo quase o enloqueceu.
— . . .O filho de Misery . . . Adorei! É tão bom quanto os anteriores. E melhor que eles! É o melhor de todos!
— Obrigado — balbuciou ele, sentindo o suor lhe escorrer pelo rosto. — Agora, por favor. . . as minhas pernas. . . muito doloridas. . .
— Eu sabia que ela acabaria se casando com Ian — disse ela, com um sorriso nos lábios — e aposto como Ian e Geoffrey vão voltar a ser amigos novamente, não vão? Não, não me conte! — arrependeu-se ela, subitamente — Deixe que eu mesma descubra. Estou lendo este aos poucos, para não acabar logo. Demora tanto até sair outro livro da série. . .
Sua pernas latejavam e ele sentia uma profunda pressão na altura da virilha. Havia tateado seu corpo naquela região, e julgava que sua bacia estivesse intacta, embora parecesse estranha e retorcida. Do joelho para baixo, nada parecia estar intacto. Ele não queria nem olhar. Via o contorno retorcido e encaroçado de suas pernas por baixo do lençol e isso já era o bastante.
— Miss Wilkes, por favor. . . eu estou com dores. . .
— Me chame de Annie. Todos os meus amigos me chamam assim. Ela lhe entregou o copo gelado e embaciado pela umidade, mas não lhe deu o remédio. Annie era a lua, as cápsulas em sua mão eram a maré. E era a lua quem comandava a maré, que viria subindo, até cobrir as estacas. Ela levantou a mão e Paul abriu imediatamente a boca, mas, subitamente, ela afastou a mão, recolhendo o remédio.
— Tomei a liberdade de olhar o que tinha dentro da sua bolsa. Você não se importa, não é mesmo?
— Não, é claro que não. O remédio. . .
Pela testa lhe escorria um suor frio e quente ao mesmo tempo. Estaria prestes a gritar? Achava que sim.
— Havia um manuscrito lá dentro — insinuou Annie, ao mesmo tempo em que passava as cápsulas da mão direita para a esquerda, vagarosamente. Paul acompanhava o movimento com os olhos.
— O nome do livro é Carros velozes, não é um dos livros Misery — retomou ela, dirigindo-lhe um olhar de reprovação que, como todos os seus olhares, confundia-se também com uma expressão amorosa e maternal. — No século dezenove não existiam carros, fossem eles velozes ou não!
Annie riu de seu próprio comentário e prosseguiu:
— Tomei também a liberdade de dar uma olhada no manuscrito. . . Você não se importa, não é?
E dizendo isso, Annie inclinou a mão esquerda lentamente e fez cair as cápsulas na mão direita outra vez, e elas fizeram um delicado ruído ao tocarem uma na outra.
— Por favor. . . — murmurou ele — Não, não me importo, mas por favor. . .
— E se eu o lesse? Você não se incomodaria que eu o lesse?
— Não. . . — Seus ossos estavam quebrados, suas pernas pareciam um amontoado de cacos de vidro inflamados, mas ele tentou esboçar um sorriso. — Não, é claro que não me importo. . .
— Por que eu jamais seria capaz de fazer uma coisa dessas sem a sua permissão — afirmou ela, com toda a seriedade — Tenho o maior respeito por você. Para dizer a verdade, Paul, amo você.
Annie enrubesceu, súbita e alarmantemente. Uma das cápsulas caiu de suas mãos e foi parar em cima da colcha. Paul tentou pegá-la, mas Annie foi mais rápida e ignorou seu gemido. Annie tornou a assumir aquele ar vago e seus olhos perderam-se pela janela.
— São suas idéias, sua criatividade — foi isso o que quis dizer. Desesperado, só lhe restou pensar numa resposta:
— Sim, eu sei o que quis dizer, Annie, você é minha fã número um. . .
Dessa vez, Annie não pareceu se esquentar. Ela se incendiou:
— É isso mesmo! — exclamou — É exatamente isso! E como tal, você não se incomodaria que eu lesse o manuscrito, não é? Eu o lerei como uma. . . fã ardorosa, mesmo que não goste de seus outros livros da mesma maneira que gosto dos livros Misery.
— Não, não me importo — disse ele, fechando os olhos.
Não, eu não me importo se você pegar todas as páginas do livro e fizer delas barquinhos de papel, se quiser. . . Mas, por favor, eu estou morrendo. . .
— Você é uma pessoa muito boa — disse ela, ternamente —, sabia que agiria assim. Só de ler os seus livros, sabia como você reagiria. Eu não poderia esperar outra coisa do homem que imaginou alguém como Misery Chastain. . . Não só imaginar, mas em dar vida a ela!. . .
Subitamente, os dedos de Annie estavam em sua boca — dedos revoltantemente íntimos; sujos, porém, bem-vindos. Paul sorveu as cápsulas trazidas por aqueles dedos e as engoliu antes mesmo que suas mãos trêmulas lhe trouxessem o copo até a boca, não sem entornar um pouco da água.
— É como uma criança, uma boa criança — declarou ela.
Paul não podia vê-la. Seus olhos permaneciam fechados, e enchiam-se de lágrimas.
— Quero perguntar tantas coisas a você. . .quero saber tantas coisas, Paul.
Lágrimas escorriam-lhe pelos olhos.
— Vamos ser muito felizes aqui — disse ela, levantando-se.
Uma onda de horror lhe invadiu o coração, mas ainda assim Paul permaneceu com os olhos fechados.
A maré subiu e Paul se deixou levar. No outro cômodo, a televisão ficou ligada por algum tempo. O relógio tocava de vez em quando, e Paul tentava contar as badaladas, mas sempre perdia a conta.
I.V. Através de tubos. É por isso que seus braços estão cheios de marcas.
Apoiando-se num dos cotovelos, ele tateou em busca do interruptor e finalmente conseguiu acender o abajur. Examinou seus braços e reparou nos furos marcados por um ponto de sangue escurecido, envoltos num círculo arroxeado.
Paul recostou-se na cama e olhou para o teto, ouvindo o barulho do vento. Ali estava ele, entre a vida e a morte, em pleno inverno, com uma mulher que não era boa da cabeça, que o alimentara por meio de tubos quando ele estava inconsciente, que aparentemente possuía um estoque imenso de medicamentos e que não comunicara a ninguém que ele estava ali.
Todas essas coisas tinham a sua importância, mas ele começou logo a perceber que havia uma outra coisa ainda mais importante: a maré estava baixando. Ele ficou esperando que o despertador dela tocasse, lá no andar de cima. Ainda era cedo, mas já era hora de Paul começar a esperar que o alarme disparasse.
Ela era maluca, mas ele dependia dela.
Estou mesmo numa enrascada, pensou ele, olhando distraidamente para o teto, enquanto gotas de suor começavam a brotar de novo em sua testa.
Na manhã seguinte, ela lhe trouxe um pouco mais de sopa. Disse a ele que já havia lido quarenta páginas de seu "livro-manuscrito'', como chamava ao seu novo romance, e adiantou que este não era tão bom quanto os anteriores.
— É difícil da gente entender: fica indo e voltando no tempo.
— É só uma técnica, nada mais — respondeu ele — É o assunto quem determina a forma.
Como estivesse no meio do estágio entre a dor e o alívio, ele conseguia pensar um pouco melhor sobre o que ela dizia. E de alguma forma tinha a ligeira impressão que os segredos de sua profissão pudessem interessá-la, ou mesmo fasciná-la. Pelo menos, este era um assunto que sempre fascinava as pessoas nos seminários de literatura para os quais ele às vezes discursava, quando era mais novo.
— O rapaz tem a cabeça um pouco confusa — retomou ele —, você deve ter reparado, e então. . .
— É isso mesmo! Ele é muito confuso! — interrompeu ela. — Isso o torna pouco interessante. . . Eu não diria desinteressante — afinal de contas, você seria incapaz de criar um personagem desinteressante — e, sim, menos interessante. E como é vulgar! Volta e meia solta um palavrão! Ele não tem. . .
Annie fez uma pausa, como se estivesse pensando, mas continuou dando-lhe a sopa, automaticamente, e limpando o canto de sua boca sem ao menos olhar o que fazia, como uma datilografa muito experiente, que não precisa ficar olhando para o teclado da máquina. Foi muito fácil, para ele, chegar à conclusão de que Annie devia ter sido uma enfermeira; não, não uma médica. . . Médicos não saberiam quando uma gota de sopa escorreria da boca de um paciente com tamanha exatidão. . .
Se o meteorologista de plantão no dia da tempestade fosse tão eficiente no seu serviço como Annie é no dela, eu não estaria metido nessa maldita confusão, pensou ele, amargamente.
— Ele não tem classe! — proferiu Annie, de súbito, dando um pulo e quase derramando sopa de carne em seu rosto pálido.
— Entendo o que quer dizer, Annie — retrucou ele, pacientemente. É verdade, Tony Bonasaro não tem classe. Ele é apenas um garoto criado num bairro pobre e que luta para se livrar daquele ambiente nocivo. . . quanto aos palavrões, bem. . .todas as pessoas em. . .
— Não, elas não falam assim! — interrompeu Annie, dirigindo-lhe um olhar de reprovação. — Como é que você acha que eu falo quando vou até a cidade comprar comida? ''Ei, Tony, me dê um saco dessa maldita ração para porcos, outro dessa droga de ração para gado e um pouquinho daquela porcaria de remédio!" E como você acha que ele me responde? "Você foi danadinha, Annie, em vir direto a esta droga de armazém!"
O rosto de Annie escureceu como o céu antes de um furacão. Paul permaneceu deitado, completamente aterrorizado. A tigela de sopa balançava nas mãos de Annie e uma ou duas gotas caíram no lençol.
— E então eu desço a rua, vou até o banco e falo assim para a senhora Bollinger: "Desconte este maldito cheque e me passe esses malditos cinqüenta dólares o mais rápido possível!" Você acha que quando eles me levaram ao tribunal lá em Den. . .
O caldo escuro da sopa de carne virou em cima do lençol. Annie olhou para ele e tornou a olhar para o lençol. Seu rosto estava transtornado.
— Olhe só o que você me obrigou a fazer!
— Eu sinto muito.
— Sente, sim! Sente muito! — gritou Annie, atirando a tigela de encontro à parede.
A tigela se espatifou e o restante da sopa se esparramou pela parede. Paul engoliu em seco.
Annie se desligou. Permaneceu sentada por uns trinta segundos e nem o coração de Paul ousava bater.
Levantando a cabeça pouco a pouco, Annie, subitamente, soltou uma gargalhada.
— Eu tenho um gênio. . .
— Eu sinto muito — desculpou-se ele, engolindo em seco outra vez.
— É bom que sinta mesmo!
O rosto dela pareceu esvaziar-se novamente e Annie ficou olhando, indiferente, para a parede. Paul achou que ela havia se desligado como das outras vezes, mas ela se levantou pesadamente e soltou um longo suspiro.
— Você não precisa usar essas palavras sujas nos livros Misery, porque naquele tempo eles não usavam essa linguagem. Naquele tempo, essas palavras não haviam nem sido inventadas. Nestes tempos brutais, exigem-se palavras brutais, eu suponho, mas aqueles tempos antigos é que eram bons. Você deveria escrever apenas os livros Misery, Paul. Como sua fã número um, essa é a minha opinião sincera.
Annie foi até a porta e voltou-se:
— Vou colocar o livro-manuscrito de volta na sua bolsa e terminar de ler O filho de Misery. Pode ser que eu o leia mais tarde.
— Se isso a deixa irritada, então não leia — retrucou Paul, arriscando um sorriso. — Prefiro que você não fique irritada, você sabe, de certo modo, eu dependo de você. . .
Annie não retribuiu o sorriso, mas respondeu:
— É, você depende de mim. Depende mesmo, não é, Paul? E dizendo isso, saiu.
A maré baixou e as estacas reapareceram. Paul ficou à espera das badaladas do relógio. Duas badaladas. As badaladas soaram. Paul apoiou-se nos cotovelos, com os olhos fixos na porta. Annie entrou, vestida com o casaco de malha e uma de suas muitas saias; ela usava ainda um avental e trazia um balde numa das mãos.
— Suponho que você queira tomar essa porcaria de remédio.
— Sim, por favor — respondeu ele, tentando sorrir gentilmente. Paul sentiu vergonha de agir assim. Parecia uma criatura grotesca a si mesmo, um estranho.
— Aqui está, mas antes vou ter que limpar a sujeira que você fez. E você terá que esperar até que eu termine.
Deitado onde estava, Paul contemplava o contorno de suas pernas por baixo do lençol. Pareciam galhos quebrados de uma árvore. De sua testa começaram a escorrer as primeiras gotas de suor frio. Paul ficou observando Annie a colocar o balde no chão e a catar os cacos do prato. Ela saiu do quarto, voltou, ajoelhou-se no chão e tirou do balde um pano encharcado de sabão. Depois de torcê-lo, Annie começou a limpar a parede. Paul ficou a observá-la e, por fim, seu corpo começou a tremer e a dor, a piorar. A certa altura, Annie virou-se e reparou que ele tremia e que as roupas de cama já estavam encharcadas de suor. Ela deu um sorriso irônico e Paul julgou que pudesse matá-la por isso.
— A sopa ressecou — disse ela, retomando a limpeza — Acho que isso ainda vai demorar um pouco, Paul.
A mancha de sopa foi desaparecendo da parede, mas Annie continuou a esfregar. Tornava a colocar o pano no balde, torcia-o e recomeçava a esfregar, interminavelmente. Paul não podia ver o rosto dela, mas tinha quase certeza que Annie se desligara outra vez e a simples idéia de que ela poderia continuar esfregando a parede por horas a fio o atormentava.
Pouco antes do relógio bater uma badalada, marcando as duas horas e trinta minutos, Annie finalmente se levantou. Sem uma palavra, jogou o pano dentro do balde, pegou-o pela alça e saiu do quarto. Deitado onde estava, Paul podia ouvir o assoalho estalar a cada passo, marcando a passagem sólida e imperturbável de Annie. Ouviu-a jogando fora a água do balde e — inacreditavelmente — ouviu-a abrir de novo a torneira, enchendo-o uma vez mais. Paul começou a chorar silenciosamente. A maré nunca estivera tão baixa, e ele não divisava nada além de duas estacas carcomidas lançando duas sombras intermináveis e desfeitas na areia úmida.
Parada no meio da porta, Annie o observava. Paul tinha o rosto molhado de suor, mas Annie limitou-se a lhe dirigir o mesmo olhar severo e maternal.
— Agora é preciso enxaguar — anunciou ela, olhando para a parede, onde já não se via a menor mancha de sopa. — Caso contrário, o sabão deixará marca na parede. Eu preciso fazer isso, preciso fazer tudo direitinho. O fato de morar sozinha não é desculpa para não fazer as coisas direito. Minha mãe tinha um lema e eu vivo de acordo com ele. Ela costumava dizer: "Uma vez que se faça algo malfeito, nunca mais se fará bem-feito!'
— Por favor. . . — balbuciou —, as dores, por favor. . . eu estou morrendo.
— Não, você não está morrendo.
— Eu vou gritar. . . — ameaçou ele, começando a chorar mais alto. Doía ter que chorar. Doíam suas pernas e doía seu coração. — Eu não posso mais me segurar. . .
— Então pode começar a gritar. Mas lembre-se: foi você quem fez essa sujeira, não eu. A culpa é toda sua.
De alguma forma, Paul conseguiu segurar o grito e ficou a observar Annie: ela mergulhava o pano no balde, torcia-o e enxaguava a parede; mergulhava, torcia e enxaguava. Quando finalmente o relógio que ele imaginava ficar na sala bateu três vezes, ela se levantou e pegou o balde.
Ela está indo embora. Ela está indo embora, eu vou escutá-la jogando a água do balde fora e ela pode sumir por algumas horas, só porque ainda não acabou de me castigar.
Mas ao invés de sair, Annie se dirigiu até ele, enfiou a mão no bolso do avental e desta vez não lhe deu duas cápsulas, mas três.
— Aqui estão — disse ela, com ternura.
Ele agarrou o remédio e enfiou-o rapidamente na boca. Ao levantar os olhos, porém, ele viu que Annie levantava o balde de plástico amarelo e começava a virá-lo em direção ao seu rosto, tomando todo o seu campo de visão. A água cinzenta e suja quase entornou no lençol.
— Vamos, beba! — disse ela, numa voz ainda muito terna. Paul a encarou com os olhos esbugalhados.
— Beba! Sei que não precisa de água para engolir o remédio, mas acredite em mim: eu posso tomar essas cápsulas de volta da sua boca. E além do mais, essa é apenas a água que usei para enxaguar, não vai lhe fazer mal algum.
Annie curvou-se por cima dele, dura como um monolito, inclinando o balde na direção de sua boca. Paul pôde ver o pano de chão boiando na água suja, coberto por uma fina camada de espuma. Uma parte dele se alarmou, mas Paul não hesitou nem um minuto. Tomou a água sofregamente, engolindo o remédio, e o gosto que lhe ficou na boca o fez recordar das vezes em que sua mãe o obrigava a escovar os dentes com sabão. Logo em seguida, Paul arrotou.
— Se eu fosse você, não vomitaria, Paul. Nada de remédio até as nove da noite — disse ela, ao mesmo tempo que seu rosto adquiria aquele olhar vago de sempre. Subitamente, porém, o rosto de Annie se iluminou, e ela abriu um sorriso.
— Você não vai mais me fazer ficar com raiva, vai?
— Não — murmurou ele. Como poderia provocar a ira da lua que comandava as marés? Mas que idéia! Que idéia mais idiota!
— Eu amo você — declarou ela, beijando-lhe uma das bochechas. Annie saiu do quarto, sem voltar-se para trás, carregando o balde numa das mãos. Ela lembrava uma robusta camponesa a carregar um balde cheio de leite, ligeiramente afastado do corpo, para não derramar nem uma gota.
Paul recostou-se. Sua boca estava com gosto de areia e emboço de parede. E com gosto de sabão.
Eu não vou vomitar. . . não vou vomitar. . . não vou.
Esse pensamento insistente começou a desaparecer de sua mente e Paul percebeu que ia adormecer. Conseguira segurar o remédio no estômago o tempo suficiente para que ele fizesse efeito. Ele ganhara.
Dessa vez.
Paul teve um pesadelo. Sonhou que estava sendo comido por um pássaro. Ouviu um estrondo e pensou: Isso mesmo! Atire nele! Atire nesse pássaro maldito.
Ao acordar, entretanto, ele reparou que o estrondo era apenas Annie Wilkes fechando a porta da cozinha. Annie fora cuidar de seus serviços e ele pôde ouvir os passos dela sobre a neve. Ela passou em frente à janela e ele a viu, vestida num casacão de lã, com o capuz sobre a cabeça. O ar quente da respiração dela formava uma aura de fumaça branca, que lhe envolvia a cabeça. Ela nem olhou aqui para dentro, tão compenetrada com o serviço, pensou ele. Alimentar os animais, limpar o estábulo, fazer algum encantamento, quem sabe — ele não colocaria a mão no fogo por ela. O céu estava de um violeta escuro — hora do pôr-do-sol. Deviam ser umas cinco e meia, seis da tarde, talvez.
A maré ainda estava alta e Paul poderia tornar a dormir; de fato, ele queria dormir, mas também queria refletir um pouco sobre a situação incrível em que se encontrava, e isso devia ser feito agora, enquanto era capaz de pensar racionalmente.
Estava começando a descobrir, porém, que a pior coisa era ele nem ao menos querer pensar na situação — mesmo que a única maneira de tentar resolvê-la fosse, a princípio, pensar sobre ela. Paul afastava esses pensamentos da cabeça, tal como uma criança que afasta o prato de comida da sua frente, embora saiba que não poderá sair da mesa antes de acabar de comer.
Paul não queria pensar sobre a sua situação, por que viver aquela situação já era o bastante. Não queria pensar, por que todas as vezes a sua cabeça se enchia de imagens tenebrosas: o rosto vazio de Annie, os ídolos de pedra, e a lembrança do balde de plástico amarelo vindo em sua direção. Pensar em todas essas coisas não mudaria nem um pouco a sua situação e era ainda pior do que ficar sem pensar. Mas sempre que pensava em Annie e na sua condição em relação a ela dentro da casa dela, esses pensamentos lhe invadiam a cabeça, expulsando todos os outros. Seu coração disparava, um pouco por medo, mas também por sentir-se envergonhado. Via a si mesmo encostando os lábios na borda do balde amarelo, via a água suja com sabão e o pano de chão a boiar lá dentro. E ainda assim, ele bebera aquela água sem a menor hesitação. Jamais contaria isso a alguém, caso conseguisse escapar. Paul até chegou a pensar que seria capaz de enganar a si mesmo a esse respeito, mas jamais seria capaz de fazê-lo.
Ainda assim, angustiado ou não (e ele o estava), ainda queria viver.
Pense nisso, homem! Meu Deus, será que você já está tão intimidado que não quer nem mais tentar escapar?
Não — mas já estou quase nesse ponto.
Foi então que um pensamento estranho e colérico lhe veio à cabeça: Ela não gosta do meu livro novo porque é burra demais para compreendê-lo.
O pensamento não era apenas estranho; nas atuais circunstâncias, a opinião de Annie sobre Carros velozes era totalmente irrelevante. Ao pensar nas coisas que ela lhe dissera, ele descobriu algo novo: sentir raiva de Annie era muito melhor do que sentir medo de Annie. E ele foi fundo nesta descoberta.
Burra demais? Não! Turrona demais! Ela não só não quer saber de mudanças, como também não quer nem ouvir falar nelas.
Era isso mesmo. Ela podia ser maluca, mas será que a avaliação dela em relação ao seu trabalho era assim tão diferente da avaliação de centenas de milhares de leitores espalhados por todo o país — noventa por cento deles, mulheres —, que mal podiam esperar pela publicação de um novo livro de quinhentas páginas, contando as aventuras de uma criança rejeitada que acabara se casando com um nobre? Não, não era! Todos queriam Misery, Misery e mais Misery. Cada uma das vezes em que ele dedicara um ou dois anos para escrever outro tipo de livro — os que ele julgava (a princípio com toda a certeza, em seguida, com alguma esperança e, finalmente, com um crescente desespero) serem seus livros "sérios" —, ele recebera uma chuva de cartas de protesto, em que muitas das leitoras assinavam "a sua fã número um". O tom das cartas variava entre a perplexidade (que de algum modo afetava a todas elas), a reprovação e o ódio mais declarado. Mas a mensagem era sempre a mesma: O livro não era o que eu esperava, não era o que eu queria. Por favor, volte para a Misery, quero saber o que Misery vai fazer em seguida. Ele poderia escrever algo como um novo Tess de D'Urbervilles, O som e a fúria ou Under the Volcano; não faria a menor diferença. Elas continuariam pedindo Misery, Misery e mais Misery.
É difícil de entender. . .ele não é interessante. . . e como é vulgar!
A raiva de Paul voltou a atacar; raiva da estupidez inflexível de Annie, raiva por ela o ter raptado e por mantê-lo prisioneiro; raiva por obrigá-lo a escolher entre beber a água suja de um balde ou agüentar a dor de duas pernas quebradas; e, acima de tudo, ainda tinha que se controlar enquanto Annie criticava o melhor livro que ele jamais conseguira escrever.
— Dane-se você e os palavrões que você detesta! — proferiu ele em voz alta, sentindo-se melhor e senhor de si.
Mas Paul sabia que este pequeno desabafo era inexpressivo e digno de pena. Afinal de contas, Annie estava no celeiro, onde não poderia ouvi-lo, a maré estava bem alta e as estacas, submersas. Ainda assim. . .
Lembrou-se do dia em que Annie entrara no quarto e, com as cápsulas na mão, o coagira a permitir que ela lesse o manuscrito de Carros velozes. O rosto de Paul foi ficando vermelho, não só pela vergonha e humilhação por que passara, mas também porque estava cheio de ódio: um ódio que se transformara de uma pequena centelha para um fogaréu. Jamais permitira que alguém lesse um de seus livros sem que antes ele o tivesse revisado e passado a limpo. Jamais! Nem mesmo Bryce, seu agente. Jamais permitira! E agora ele nem ao menos. . .
Seus pensamentos foram interrompidos. Ao longe, pôde ouvir o triste mugido de uma vaca.
Ele nem ao menos tirava cópia de seus manuscritos antes da segunda revisão!
O manuscrito de Carros velozes, que agora estava na posse de Annie, era a única cópia que existia em todo o mundo! Ele chegara até a queimar as anotações!
Dois anos de trabalho e ela não gostara — ela era maluca.
Ela só gostava de Misery; era de Misery que ela gostava, e não de um ladrão de carros do Harlem hispânico que falava palavrão.
Lembrou-se de ter pensado: Não, eu não me importo se você pegar todas as páginas do livro e fizer delas barquinhos de papel, mas por favor. . .
A humilhação e o ódio reapareceram, despertando o primeiro latejo de dor. Era verdade. . . seu trabalho, o orgulho que tinha pelo trabalho e o próprio valor do trabalho em si nada significavam quando a dor apertava. O fato dela fazer isso com ele — mais ainda, de ter o poder de fazer isso com ele, quando Paul passara a maior parte de sua vida achando que a palavra "escritor" era a que melhor o definia — tornava Annie uma pessoa ainda mais monstruosa, da qual ele precisava escapar. Ela era realmente como uma deusa — caso não o matasse, destruiria tudo que existia dentro dele.
Paul ouviu agora o grito estridente da porca. E pensar que Annie achara que ele ia se importar com o nome que ela dera ao animal. . . Paul considerava Misery um nome superapropriado para uma porca. . . Lembrou-se de Annie imitando o animal: seu lábio superior franzido, as bochechas até parecendo terem se achatado. Por um instante Annie parecia-se realmente com uma porca: Oinc!OINC!
Do celeiro, chegava a voz de Annie a mexer com Misery. Paul recostou-se, colocando um dos braços sobre os olhos. Era preciso conservar o ódio que sentia, porque isso o fazia sentir-se corajoso. Um homem corajoso é capaz de pensar, ao contrário de um covarde.
Aquela era uma mulher que havia sido enfermeira, disso ele tinha certeza. Estaria trabalhando ainda? Não, Annie não saía para trabalhar. Por que razão teria deixado de exercer a profissão? Isso parecia óbvio: Ela tinha um parafuso a menos. E se isso era óbvio para ele, que vivia por entre um nevoeiro de dor, seria também óbvio para seus colegas de profissão.
E ele tinha motivos de sobra para ter certeza do quanto ela não regulava da cabeça, não tinha? Ela o tirara dos destroços de um acidente de carro e ao invés de chamar uma ambulância ou mesmo a polícia, o trouxera para a casa dela; instalara-o em seu quarto de hóspedes, alimentara-o através de tubos nas veias e o entupia de narcótico, chegando a ponto de causar o que ela chamava de "depressão respiratória", pelo menos uma vez; ela não contara a ninguém que ele estava ali, e se não o fizera até o momento, era porque não tinha a menor intenção de fazê-lo.
Teria ela agido dessa mesma maneira se tivesse salvo do acidente uma pessoa qualquer? Não, achava que não. Ela o tinha raptado por que ele era Paul Sheldon e ela, . .
— Ela é a minha fã número um — murmurou Paul.
Uma lembrança terrível passou por sua cabeça. Certa vez sua mãe o levara ao Zoológico de Boston, e ele ficara encantado por um pássaro grande e imponente. Suas penas — vermelhas, violeta e azuis — eram as mais lindas que ele jamais havia visto. . . e os olhos, os mais tristes. Paul perguntou à mãe de onde aquele pássaro viera e ela lhe respondera "da África". Naquele instante, Paul compreendeu que o pássaro estava condenado a morrer numa gaiola, num lugar muito distante daquele a que Deus o destinara, e ele começou a chorar; sua mãe lhe comprou um sorvete e ele parou de chorar por algum tempo. Mas logo recomeçou e ela o levou para casa. No caminho de volta para Lynn, sua mãe o chamara de maricas e chorão.
As penas. Os olhos.
A dor nas pernas começou a aumentar.
Não. Não, não.
Paul apertou o braço contra os olhos. Do celeiro, chegavam ruídos de Annie a se movimentar. Impossível saber o que ela estava fazendo, mas em sua mente, (são suas IDÉIAS, sua CRIATIVIDADE — foi isso o que quis dizer) podia vê-la a arrastar fiapos de capim do celeiro com a sola de suas botas; podia até ver os fiapos rolando pelo chão.
Da África. Esse pássaro veio da África. Da. . .
De súbito, seus pensamentos foram arrebatados pela lembrança da voz estridente e agitada de Annie: Você acha que quando eles me levaram ao tribunal lá em Den. . .
Ao tribunal. Quando eles me levaram ao tribunal lá em Denver.
A senhora jura dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade?
("Não sei de onde ele tira essas coisas!")
Eu sei.
("Ele vive escrevendo coisas desse tipo.")
Diga seu nome completo.
("Do MEU lado da família, não tem ninguém com uma imaginação igual à dele.")
Annie Wilkes.
("Tão vivida!")
Meu nome é Annie Wilkes.
Gostaria que ela dissesse mais coisas, mas ela não dizia.
— Vamos lá — murmurou ele, ainda com o braço dobrado sobre os olhos.
Era assim, nessa posição, que conseguia pensar melhor, imaginar melhor. Sua mãe costumava falar dele orgulhosamente (a não ser quando o chamava de maricas e chorão) com a senhora Mulvaney, uma vizinha; gabava-se de sua imaginação fértil, tão vivida, e contava que ele vivia escrevendo historinhas incríveis.
— Vamos lá. Vamos lá. Vamos lá.
Paul imaginou o tribunal em Denver. Via Annie Wilkes, não mais vestida em seus jeans, mas num desbotado vestido preto e roxo, com um chapéu horroroso na cabeça. A sala estava lotada. O juiz era calvo e usava óculos. Seus bigodes brancos encobriam, apenas parcialmente, um sinal de nascença.
Annie Wilkes.
("Imagine só! Ele começou a ler aos três anos de idade!")
Como. . . como uma fã ardorosa.
("Ele está sempre escrevendo, inventando histórias.'')
Agora é preciso enxaguar.
("Da África. Esse pássaro veio")
— Vamos lá — murmurou Paul.
Mas não conseguiu ir adiante. O promotor perguntara-lhe o nome, e ela respondera inúmeras vezes que se chamava Annie Wilkes, e não dissera nada além disso; com seu corpo sólido, sinistro e fibroso Annie Wilkes repetia apenas seu nome — nada além disso.
Tentando adivinhar a razão pela qual aquela ex-enfermeira que o mantinha prisioneiro teria sido levada ao tribunal, Paul adormeceu.
Paul estava na enfermaria de um hospital. Um alívio tão grande o invadiu, que ele quase chorou. Alguma coisa acontecera enquanto estivera dormindo. Alguém havia chegado ou, talvez, Annie tivesse se compadecido e mudado de idéia a seu respeito. Mas isso não importava. Paul havia adormecido na casa daquela mulher monstruosa e acordara num hospital.
Mas por que o haviam colocado numa enfermaria tão grande, que lembrava um hangar para aviões? Idênticas fileiras de leitos, onde homens deitados tinham os braços ligados por tubos a frascos idênticos, lotavam todo o galpão. Paul sentou-se na cama e reparou que todos os homens eram idênticos também — todos tinham a sua cara.
Ao longe, o relógio soou uma badalada e ele compreendeu que o relógio soava do outro lado da parede de um sonho. Apenas um sonho. E uma tristeza profunda substituiu o alívio.
Do outro lado da ampla enfermaria, uma porta se abriu e dela surgiu Annie Wilkes, metida num vestido comprido coberto por um avental e com uma touca na cabeça — tal como Misery Chastain no seu livro O amor de Misery. Em um dos braços, ela trazia uma cesta de palha. Ao se aproximar dele, Annie levantou o pano que trazia na cesta e encheu a mão com o que havia lá dentro, atirando algo no rosto do adormecido Paul Sheldon. Areia. Annie jogara areia e fingia ser Misery Chastain fingindo ser joão-pestana. Joana Pestana.
O rosto daquele Paul Sheldon tornou-se lívido e o medo tomou conta dele. Paul acordou e percebeu que Annie Wilkes estava debruçada em cima dele. Numa das mãos, ela carregava um livro grosso, O filho de Misery e, pelo marcador, ele percebeu que ela estava quase no final da leitura.
— Você estava gemendo — disse ela.
— Tive um pesadelo.
— Um pesadelo sobre o quê? — perguntou Annie.
— África — mentiu ele, dizendo a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
Na manhã seguinte, Annie foi entrando pelo quarto, com o rosto transtornado. Paul estava cochilando, mas despertou imediatamente e levantou o corpo, apoiando-se nos cotovelos.
— Senhorita Wilkes? Annie? Está tudo bem?. . .
— Não!
Meu Deus, ela vai ter um ataque cardíaco!, pensou ele. Se por um instante ficara assustado, no momento seguinte ficou eufórico. Tomara que ela tenha um ataque! Um ataque fulminante! Ele ficaria feliz da vida em ir se arrastando até o telefone, por mais que suas pernas doessem. Seria capaz de se arrastar sobre cacos de vidro, se fosse preciso.
E Annie estava tendo um ataque . . . mas não do tipo que ele queria.
Ela vinha em sua direção num andar cambaleante, como o de um marinheiro que acaba de pisar em terra firme após uma longa viagem.
— O que. . . — Paul tentou se esquivar, mas não havia para onde fugir. Atrás da cabeceira da cama, havia apenas a parede. — Não!
Annie se aproximava e acabou tropeçando. Por um segundo, Paul achou que ela iria cair em cima dele. Annie se debruçou sobre a cama e o encarou. Seu rosto estava pálido, suas cordas vocais retesadas e uma veia lhe saltava na testa. Annie cerrou os punhos, sólidos e rijos feito pedra, e explodiu:
— Seu. . . seu. . . seu trapaceiro!
— Mas. . . eu não estou enten. . .
Subitamente, porém, ele entendeu o que acontecera. Lembrou-se que o marcador estava a poucas páginas do fim. Annie terminara de ler o livro. Agora sabia de tudo. Sabia que Misery não era estéril. Era Ian quem não podia ter filhos. Ele imaginou Annie sentada na sala de estar, onde ele ainda não tivera oportunidade de ir. Teria ela ficado de queixo caído e olhos arregalados quando Misery finalmente descobriu toda a verdade e tomou sua decisão, indo encontrar-se, sorrateiramente, com Geoffrey? Teriam seus olhos se enchido de lágrimas ao perceber que Misery e Geoffrey, longe de terem tido um furtivo caso de amor, nas costas do homem que ambos amavam, estavam oferecendo a Ian um presente inigualável: um filho que ele acreditaria ser seu de verdade? E não teria se comovido quando Misery contou a Ian que estava grávida, e ele a tomou em seus braços, com os olhos cheios de lágrimas, e murmurou: "Minha querida, minha querida." Em questão de segundos, Paul teve certeza que Annie reagira assim. Mas ao perceber que Misery falecera ao dar à luz um menino, a quem Ian e Geoffrey provavelmente criariam juntos, ela não se emocionou até as lágrimas. Annie ficara possessa da vida.
— Ela não pode ter morrido! — gritava Annie, com os punhos cerrados — Misery Chastain NÃO PODE ESTAR MORTA!
— Annie, por favor. . .
Annie passou a mão num jarro que havia na mesa-de-cabeceira e atirou-lhe a água gelada no rosto. Um cubo de gelo bateu em seu ouvido esquerdo e escorregou pelo travesseiro, indo parar embaixo do ombro. Na sua mente, ("Tão vívida!") ele a viu acertando o jarro na cabeça. Ele morreria de traumatismo craniano e hemorragia cerebral, em meio àquela poça de água gelada e com os braços arrepiados.
Ela estava prestes a fazer tal coisa, não havia a menor dúvida.
No último instante, porém, Annie deu-lhe as costas e atirou o jarro contra a porta. Tal como o prato de sopa, o jarro de água se espatifou pelo chão.
Annie voltou-se de novo para ele. Seu rosto estava vermelho de raiva.
— Trapaceiro! — disse ela, ofegante, tirando o cabelo, que lhe caía pelo rosto com as costas da mãos. — Seu trapaceiro! Como pôde fazer tal coisa?
Paul interveio rápida e urgentemente, com os olhos brilhantes cravados no rosto de Annie — tinha certeza que sua vida poderia depender do que ele dissesse nos próximos vinte segundos.
— Annie, em 1871 era muito comum as mulheres morrerem de parto. Misery deu a vida por seu marido, seu melhor amigo e por seu filho. O espírito de Misery irá sempre. . .
— Não quero saber do espírito dela! — gritou Annie abrindo os dedos da mão, num gesto brusco, como se fosse arrancar-lhe os olhos.
— Eu quero Misery! E você a matou). Você assassinou Misery! Annie cerrou os punhos novamente e deu dois socos no travesseiro, um de cada lado de sua cabeça, deixando dois sulcos profundos. Paul foi sacudido como uma boneca de pano. Suas pernas tocaram uma na outra e ele gritou:
— Eu não a matei!
Annie ficou paralisada, olhando para ele com um olhar sombrio — o olhar daquela fenda.
— É claro que não! — respondeu ela com sarcasmo. — E se não foi você, Paul Sheldon, quem mais poderia ter sido?
— Ninguém a matou — retrucou ele, mais calmo. — Misery apenas morreu.
Nos últimos tempos, ele descobrira que esta era a verdade. Se Misery fosse uma pessoa de verdade, ele seria uma das pessoas a quem a polícia certamente viria interrogar. Afinal de contas, ele tinha motivos para acabar com ela: Paul a odiava. Desde o terceiro livro da série, Paul passara a odiar Misery. Há quatro anos atrás, no dia primeiro de abril, Paul mandara imprimir um folheto, confidencialmente, e o enviara aos amigos mais chegados. Chamava-se O passatempo de Misery e, nele, Paul descrevia o animado fim de semana que ela passara no campo, ao lado de Growler, um setter irlandês que pertencia a Ian.
Paul poderia tê-la matado,. . . mas não o fizera. Apesar de seu desprezo, a morte de Misery fora quase uma surpresa para ele próprio. Apegara-se de tal modo à idéia de que a arte deveria imitar a vida real, pelo menos um mínimo que fosse, que esse propósito não o abandonou mais até o final das aventuras já batidas de Misery. E ela morrera de uma maneira surpreendente para ele. Nem mesmo o fato dele ter saído aos pulos pelo quarto ao final do livro, poderia mudar aquele fato consumado.
— Você está mentindo — sussurrou Annie — Eu achei que você era um homem bom, mas estava enganada. Você não passa de um trapaceiro velho e mentiroso.
— Misery se foi. Isso é tudo. Essas coisas acontecem. . . A vida é assim, quando alguém. . .
Annie derrubou a mesinha-de-cabeceira e a única gaveta voou longe, jogando no chão o que havia dentro: seu relógio de pulso e alguns trocados. Paul, que nem ao menos sabia que seus pertences estavam naquela gaveta, encolheu-se timidamente.
— Você acha que eu nasci ontem? — vociferou ela, retraindo os lábios. — Na minha profissão vi dezenas, ou melhor, centenas de pessoas morrerem. Às vezes elas se vão dormindo, outras vezes, vão aos gritos. Elas simplesmente se vão, como você mesmo disse. Mas isso não acontece com personagens de livros! Deus leva as pessoas quando é chegada a hora, mas um escritor é Deus em relação a seus personagens, e assim como Deus nos criou, um escritor também cria seus personagens. Ninguém pode querer que Deus venha se explicar quando leva alguém que gostamos, não há dúvida, eu aceito. Mas em relação a Misery, eu tenho algo a lhe dizer, seu trapaceiro: Por um acaso, Deus está com duas pernas quebradas, na minha casa, comendo da minha comida e. . .
Aquela expressão indefinida tomou conta de Annie. Ela ficou de pé, com os braços caídos ao longo do corpo, olhando vagamente para uma velha fotografia do Arco do Triunfo que havia na parede. Deitado na cama, com dois sulcos profundos no travesseiro, um de cada lado da cabeça, Paul a observava. Ainda podia ouvir as gotas de água pingando no chão. Foi então que, pela primeira vez, ele teve a certeza de que seria capaz de cometer um assassinato. Na verdade, essa questão já lhe ocorrerá uma ou duas vezes, anteriormente, mas de uma maneira apenas teórica. Agora, porém, ela surgia de uma maneira real, e ele soube que seria capaz. Se Annie não tivesse atirado o jarro na parede, ele o quebraria no chão e tentaria cortar uma das veias da garganta dela, aproveitando o alheamento de Annie, que permanecia parada e inerte como um cabideiro.
Paul olhou para o chão e reparou que dentro da gaveta haviam sido guardados sua caneta e uma escova, além do relógio e do dinheiro trocado. Sua carteira não estava ali. E, mais importante ainda, seu canivete suíço também não.
Aos poucos, Annie foi voltando ao normal e sua raiva, afinal, se dissipou. Ela olhou para ele com tristeza e disse:
— Acho melhor eu ir embora. Acho melhor não ficar perto de você. Não me parece muito. . . prudente.
— Ir embora? Mas ir para onde?
— Não importa para onde. Um lugar que conheço. . . Se ficar aqui, vou acabar fazendo algo insensato. Preciso pensar. Adeus, Paul.
— Você vai estar de volta a tempo de me dar o remédio? — perguntou ele, aterrorizado.
Annie atravessou o quarto e saiu, sem dar uma palavra. E pela primeira vez, ele ouviu o barulho de uma chave na fechadura.
Paul ouvia os passos de Annie descendo o corredor e se encolheu todo, ao ouvi-la gritando algo que ele não compreendeu, seguido do barulho de algum objeto se espatifando no chão. Uma porta bateu e, em seguida, ele a ouviu dando partida no jipe. Conseguiu distinguir o barulho surdo dos pneus sobre a neve e, pouco a pouco, o ruído do motor foi diminuindo até sumir de vez.
Paul estava sozinho.
Esta sozinho e trancado num quarto na casa de Annie Wilkes. Preso a uma cama. A distância entre Denver e aquele quarto era tal como. . . a distância entre o Zoológico de Boston e a África.
Deitado na cama, Paul limitava-se a olhar para o teto. Sua garganta estava seca e seu coração disparara.
Pouco depois, o relógio da sala bateu meio-dia, e a maré começou a baixar.
Cinqüenta e uma horas.
Paul sabia o tempo exato. Conseguira se reclinar e apanhar com a ponta dos dedos a caneta de escrita fina que trazia no bolso na hora do acidente. Cada vez que o relógio batia, Paul rabiscava um tracinho no braço. Quatro traços horizontais e um diagonal significavam cinco horas. Quando Annie retornou, havia em seu braço dez grupos de cinco traços e um tracinho extra. Os rabiscos, muito nítidos a princípio, foram se tornando falhos à medida que suas mãos foram ficando menos firmes. Não acreditava ter perdido uma só badalada. Ele cochilara um pouco, mas nunca pegara no sono, e cada vez que o relógio soava, Paul despertava.
Passado algum tempo, ele começou a sentir fome e sede, mesmo estando com as dores. Era algo assim como uma corrida de cavalos. A princípio, o Rei da Dor saíra na frente, deixando o Esfomeado para trás; a égua Sede Encantadora ficara perdida por trás de uma nuvem de poeira. No dia seguinte da partida de Annie, por volta do nascer do sol, o Esfomeado viu seus esforços recompensados e deixou o Rei da Dor para trás.
Paul passara a norte toda cochilando e acordando encharcado de suor. Tinha certeza que estava morrendo. Depois de algum tempo, começou a desejar que realmente estivesse. Só assim estaria livre daquele sofrimento. Jamais pudera imaginar o quanto uma dor podia ser insuportável. As estacas estavam cada vez maiores. Podia até ver crustáceos agarrados a elas, pedaços descorados e pendurados nas fissuras da madeira. Eles é que tinham sorte; para eles não existia dor. Por volta das três da manhã, Paul se entregara a uma acesso de gemidos inúteis.
Na metade do segundo dia — na hora de número vinte e quatro — ele percebeu que apesar das dores terríveis havia mais alguma coisa o incomodando. Era a entrega completa. Podem chamar esse cavalo de A Vingança do Lixo, se o desejarem. Paul precisava muito mais daquelas cápsulas do que podia imaginar.
Ele começou, então, a pensar na possibilidade de sair da cama, mas só de imaginar a dor da queda, acabou desistindo. Podia imaginar muito bem ("Tão vivida!") a intensidade da dor. Ele poderia tentar, mas de que adiantaria? Annie trancara a porta. O que mais poderia ele fazer além de se arrastar até a porta como uma serpente?
Tomado pelo desespero, Paul puxou os lençóis pela primeira vez.
Esperava desesperadamente que a situação não fosse tão ruim quanto os contornos do lençol sugeriam. E não era assim tão ruim. Era muito pior. Paul olhou horrorizado para o que restara dele dos joelhos para baixo. Em sua mente, irrompeu a voz de Ronald Reagan em King's Row: "Onde está o que sobrou de mim?"
O que sobrara dele estava bem ali e ele talvez fosse até capaz de sair-se bem dessa. As probabilidades talvez fossem remotas, mas ele supunha que seria pelo menos tecnicamente possível. . . embora pudesse não mais voltar a andar. Pelo menos não até que as pernas fossem cortadas em pedacinhos, coladas com a ajuda de aço, examinadas sem a menor piedade e sujeitadas a meia dúzia de dolorosos procedimentos.
Ele calculara que Annie havia colocado telas em suas pernas, pois conseguira senti-las, mas, até então, ignorava do que elas fossem feitas. A parte inferior de suas duas pernas estava cercada por duas hastes finas de aço, que se pareciam com os restos de uma muleta muito bem cortados com uma serra. Essas hastes foram tão bem colocadas que, dos joelhos para baixo, ele se parecia com Im-Ho-Tep por ocasião da descoberta de seu túmulo. Suas pernas serpenteavam estranhamente dos joelhos para baixo: uma ponta saliente aqui, um sulco profundo acolá. O joelho esquerdo — um dos maiores focos de dor — parecia não existir mais. Entre a batata da perna e a coxa havia apenas um punhado de carne saliente. A parte superior de ambas as pernas estava bastante inchada e levemente inclinada para fora. Tanto as coxas quanto a virilha e o pênis estavam cobertos de feridas quase cicatrizadas.
Paul imaginara que suas pernas estavam quebradas, mas se enganara. Elas estavam reduzidas a pó.
Chorando e gemendo ao mesmo tempo, Paul tornou a se cobrir com o lençol. Nada de sair da cama. Era melhor ficar onde estava, morrer naquela cama e aceitar a intensidade da dor, por maior que ela fosse, até que tudo estivesse acabado.
Por volta das quatro da tarde do segundo dia, a égua Sede Encantadora apertou o cerco. Já fazia algum tempo que a garganta e a boca estavam secas, mas agora isso o estava incomodando sobremaneira. Sua língua parecia enorme e grossa, e até engolir a saliva causava dor. Em seu pensamento surgiu a imagem do jarro de água que Annie atirara contra a parede.
Paul cochilou, abriu os olhos e tornou a cochilar.
O dia se foi e a noite caiu.
Sentiu uma vontade enorme de urinar. Paul, então, enrolou o pênis no lençol e, improvisando um tosco filtro, urinou em suas mãos trêmulas, dispostas em formato de concha. Tentando encarar o que fazia como o reinicio de um ciclo, Paul bebeu o pouco de urina que suas mãos conseguiram segurar e ainda lambeu os dedos. Aqui estava algo que ele não pretendia jamais contar a ninguém, caso vivesse o bastante para contar alguma coisa a alguém. . .
Paul começou a achar que Annie havia morrido. Ela era uma pessoa tremendamente inconstante, e pessoas assim muitas vezes acabavam se suicidando. Ele a imaginou ("Tão vivida") parando o jipe no acostamento da estrada, puxando um revólver calibre quarenta e quatro que ficava embaixo do banco, colocando-o na boca e, finalmente, atirando.
"Agora que Misery morreu não tem mais graça viver. Adeus, mundo cruel!" Annie começaria a chorar convulsivamente e puxaria o gatilho.
Paul começou a gemer e soltou um grito. Lá fora, o vento também gritava. . . mas não lhe dava a menor atenção.
Quem sabe um acidente? Seria possível? Mas é claro que sim! Paul imaginou Annie dirigindo perigosamente e, então, ("Ele não herdou isso de ninguém da minha família") o vazio tomaria conta dela. O carro sairia da estrada e Annie cairia num abismo; o carro se transformaria numa bola de fogo, e Annie morreria sem ao menos dar-se conta.
E se ela estava morta, ele morreria onde estava, como um rato numa ratoeira.
Volta e meia, Paul desejava ficar inconsciente, pois isso acarretaria algum alívio. Mas esse estado nunca sobreveio. Ao invés disso, vieram a Hora Trinta e a Hora Quarenta; logo depois, O Rei da Dor e a Sede Encantadora fundiram-se num único animal (O Esfomeado ficara para trás). Paul começou a se sentir como um pedaço de tecido vivo exposto na lâmina de um microscópico ou como uma minhoca presa a um anzol — algo que se mexia incessantemente esperando apenas a chegada da morte.
Quando Annie retornou, Paul julgou, à princípio, que estivesse sonhando. Mas a realidade — ou a mera luta pela sobrevivência — assumiu o seu devido lugar e Paul começou a gemer, pedir, implorar, tudo ao mesmo tempo — tudo isso brotando de um fundo poço de irrealidades. A única coisa que conseguia distinguir claramente era que Annie usava um vestido azul-marinho e um chapéu com um enfeite — exatamente o tipo de roupa que ele a imaginara usando no tribunal, em Denver.
Ela estava muito corada e seus olhos brilhavam, cheios de vida. Ela estava tão bonita quanto Annie Wilkes jamais conseguiria aparentar. Mais tarde, quando Paul tentou se lembrar dessa imagem, os únicos detalhes que lhe vieram à mente com nitidez foram as bochechas coradas e o chapéu enfeitado. Do último reduto de lucidez e clareza que ainda lhe restava, Paul conseguiu formular um pensamento racional: Ela está parecendo uma viúva que acaba de dar uma trepada depois de dez anos sem transar.
Annie trazia na mão um copo de água bem grande.
— Tome — disse ela, colocando as mãos frias por trás de seu pescoço, para que ele pudesse beber a água sem engasgar.
Os poros secos de sua língua clamavam por água. Paul tomou três longos goles, deixando que a água escorresse pelo queixo e molhasse a camiseta. Annie afastou o copo e Paul estendeu as mãos trêmulas, insaciável.
— Vá com calma, Paul. Um pouquinho de cada vez, senão você vai vomitar.
Pouco depois, Annie permitiu que ele tomasse mais dois goles.
— Meu remédio. . .— implorou Paul, tossindo e lambendo os lábios.
Já nem se lembrava direito de que tivera coragem de beber sua própria urina, nem do gosto que ela tinha, tão salgada. . .
— O remédio. . .dores. . . por favor, Annie, ajude-me pelo amor de Deus. . . as dores estão terríveis. . .
— Eu sei que estão, Paul, mas você precisa me escutar — disse ela, dirigindo-lhe aquele olhar severo e ao mesmo tempo maternal. — Eu precisei me afastar daqui para pensar um pouco. Eu pensei bastante, Paul, e espero ter tomado a decisão certa. A princípio eu não tinha muita certeza, meus pensamentos ficam meio confusos, eu sei. Por causa disso é que não conseguia me lembrar onde eu estava todas aquelas vezes em que fui interrogada. Então eu resolvi rezar. Deus existe, Paul, e ele responde às nossas preces. Sempre. Então eu me pus a rezar: "Meu Bom Deus, Paul Sheldon pode estar morto quando eu voltar", mas Deus me respondeu: "Não, ele não morreu. Eu o poupei para que você pudesse mostrar-lhe qual o caminho a seguir".
Paul tinha os olhos fixos no copo, e mal ouvia o que Annie dizia. Ela permitiu que ele tomasse mais três goles. Seu corpo começou a ficar dormente e Paul arrotou.
Durante todo o tempo, Annie o observava com um olhar muito bondoso.
— Eu vou lhe dar o remédio, mas antes você terá que fazer uma coisa. Volto já — disse ela, saindo do quarto.
— Não! — gritou Paul.
Annie não lhe deu a menor atenção.
Deitado na cama, envolto numa onda de dor, Paul tentava, em vão, não gemer.
De início, Paul pensou que estivesse delirando. A cena que se descortinava à sua frente era grotesca demais para ser real: Annie entrara no quarto arrastando uma churrasqueira.
— Annie, eu estou morrendo de dor — lamentou-se Paul, começando a chorar.
— Eu sei, meu querido — retrucou Annie, dando-lhe um beijo no rosto; o toque dos lábios dela parecia suave como uma pluma. — Eu trago já seu remédio.
Annie tornou a sair e Paul ficou olhando para aquele objeto, que cairia bem num pátio em um dia de verão, mas que estava bem ali, em seu quarto. Mais do que nunca, aquela churrasqueira lhe trouxe à memória a imagem de ídolos e sacrifícios.
E era exatamente um sacrifício o que Annie tinha em mente. Quando voltou, ela trazia numa das mãos o manuscrito de Carros velozes — o único manuscrito que existia, fruto de dois anos de trabalho — e, na outra, ela trazia uma caixa de fósforos Diamond Blue Tip.
— Não! — gritou Paul.
Todo o seu corpo tremia. Por um segundo, um pensamento lhe varou a cabeça: por menos de cem dólares ele poderia ter tirado xerox de seu livro, quando ainda estava em Boulder. Todo mundo — Bryce, suas duas ex-esposas, e, com os diabos, até mesmo sua mãe — sempre costumava recriminá-lo por não tirar pelo menos uma cópia dos originais para deixar guardada. Afinal de contas, o Hotel Boulderaro, assim como sua casa de Nova Iorque, poderiam pegar fogo; poderiam ocorrer furacões, enchentes ou outra calamidade qualquer. E Paul negava-se terminantemente a fazer tal coisa, alegando um motivo nada racional: acreditava que tirar cópias dos originais lhe atrairia azar.
Muito bem: aqui estavam o azar e uma calamidade reunidos numa só pessoa: o furacão Annie. Ela era tão ingênua, que não lhe passou pela cabeça, nem por um só instante, que poderia existir uma cópia de Carros velozes guardada em algum lugar. Se ele ao menos tivesse dado ouvidos. . . se ao menos tivesse gasto uns míseros cem dólares. . .
— É isso mesmo. — disse ela, entregando-lhe a caixa de fósforos.
Annie segurava o manuscrito contra o peito, e Paul pôde ver a primeira página do livro, escrito em folhas brancas e perfeitas, da marca Hammermill Bond. O rosto de Annie continuava sereno e luminoso.
— Não — contestou ele, virando o rosto.
— Sim, Paul — rebateu Annie. — Ele é obsceno, e além disso, não é bom.
— Você não saberia dizer o que é bom, nem mesmo se o livro pudesse andar e arrancar o seu nariz — replicou Paul, sem se importar.
Annie sorriu, docemente. Pelo visto, o mau humor dela parece ter saído de férias, pensou Paul. Mas conhecendo Annie Wilkes como ele já conhecia, Paul sabia que ele poderia retornar a qualquer instante: "Não agüentei ficar longe de você! Como vão as coisas por aqui?"
— Em primeiro lugar, uma coisa boa não arrancaria o meu nariz — respondeu Annie. — Uma coisa maligna, sim. Mas não uma coisa boa. Em segundo lugar, eu sei muito bem distinguir quando alguma coisa é boa no momento em que a vejo. Você é uma pessoa boa, Paul Sheldon. Tudo o que você precisa é de uma pequena ajuda. Vamos logo, pegue os fósforos.
— Não — respondeu Paul, balançando a cabeça de um lado para o outro como um obstinado.
— Sim.
— Não!
— Sim.
— Com os diabos, não!
— Pode esbravejar à vontade. Eu já ouvi esse tipo de linguagem antes.
— Eu não vou fazer uma coisa dessas — decidiu Paul, fechando os olhos.
Mas quando Paul os abriu, alguns instantes depois, percebeu que Annie tinha nas mãos uma caixa de remédio. Em letras azuis e brilhantes lia-se o nome Novril, e, logo abaixo, em letras vermelhas, lia-se AMOSTRA GRÁTIS. VENDA SOB PRESCRIÇÃO MÉDICA. De dentro da caixa, Annie retirou uma carteia com quatro cápsulas protegidas por um plástico transparente. Paul tentou pegá-la, mas Annie puxou a mão, rapidamente.
— Depois que você queimar o livro, eu lhe darei todas as quatro e a dor passará. Você vai começar a se sentir calmo novamente e quando estiver melhor trocarei a roupa de cama e a sua roupa também. Vejo que você está todo molhado e isso deve incomodar. Até lá, você também deve estar como fome e eu lhe trarei uma sopa, quem sabe até uma torradinha, sem manteiga. Mas antes de você queimar o livro eu não poderei fazer nada, Paul. Sinto muito.
Sua boca estava quase gritando — Está bem, está bem! — e ele mordeu a língua. Paul tentou se esquivar dela, esquivar-se daquela carteia encantadora e maravilhosa, daquelas cápsulas envolvidas no plástico transparente.
— Você é um monstro!
Pela segunda vez, Paul julgou ter despertado o ódio de Annie, mas ela limitou-se a lhe dirigir um sorriso complacente, que escondia alguma tristeza.
— Sou, sim! Isso é o que diria uma criança quando a mãe entra de repente na cozinha e a pega brincando com o detergente. É claro que ela não usaria as mesmas palavras, mas diria algo como: "Mamãe, como você é malvada!"
Annie acariciou os cabelos de Paul, passou a mão em seu rosto, no pescoço e apertou seus ombros, suavemente.
— As mães ficam muito tristes quando seus filhos as chamam de malvadas ou quando os filhos começam a chorar, assim como você está chorando agora. Mas elas sabem que estão agindo certo e, assim, fazem o que deve ser feito. É isso o que estou fazendo.
Annie deu três tapinhas no manuscrito — 190.000 palavras e cinco personagens que um Paul Sheldon saudável e cheio de vida julgara tão importantes; 190.000 palavras e cinco personagens que ele julgava cada vez mais insignificantes a cada minuto que passava.
As cápsulas. As cápsulas. Ele precisava daquelas malditas cápsulas. Os personagens eram apenas uma imagem, as cápsulas eram reais.
— E então, Paul?
— Não — disse ele, entre soluços.
O barulhinho reconfortante das cápsulas presas na carteia — o silêncio — o barulho dos palitos batendo uns contra os outros dentro da caixa de fósforos.
— Paul?
— Não!
— Paul, eu estou espetando.
Pelo amor de Deus, por que você está fazendo isso comigo? A quem você está querendo impressionar? Você acha que está no cinema, ou num programa de televisão e que há um auditório julgando a sua atuação? Faça o que ela quer ou agüente as conseqüências, ou seja, você acabará morrendo e ela queimará o manuscrito do mesmo jeito. E o que você vai escolher: ficar aqui e sofrer o diabo por causa de um livro que venderia apenas metade dos exemplares que o livro menos vendido da série Misery? Um livro que Peter Prescott, com seu estilo amável e refinado, arrasaria em sua coluna na "bíblia" das críticas literárias, a revista Newsweek? Ora, vamos, lá, seja sensato! Até mesmo Galileu se retratou quando percebeu que eles levariam a cabo suas ameaças!
— Eu estou esperando, Paul. E posso esperar o dia inteiro, embora eu tenha meus motivos para suspeitar que você esteja prestes a entrar em estado de coma. Para falar a verdade, acho que você já está entrando em coma, eu conheço essas coisas. . .
A voz de Annie parecia um zumbido.
Está bem! Me dê logo esses fósforos! Traga um maçarico! Traga uma granada! Traga uma bomba nuclear, e eu faço o que você quiser, sua megera maldita!
Assim dizia a voz do oportunista que queria sobreviver. Mas uma outra voz, quase inaudível, quase entrando em estado de coma, persistia em meio à escuridão: Cento e noventa mil palavras! Cinco personagens! Dois anos de trabalho! E a essência de tudo: a verdade. O que ele julgava ser a MALDITA verdade!
As molas da cama ressoaram quando Annie se levantou.
— Está muito bem! Você é um menino teimoso. Não posso ficar aqui sentada a noite toda, embora isso seja um prazer. Mas vim dirigindo quase uma hora, o mais rápido possível para chegar logo aqui. Vou descansar um pouco e mais tarde eu voltarei para ver se você mudou de idéia. . .
— Então você queima o livro! — gritou Paul. Annie voltou-se e o encarou.
— Eu não posso fazer isso. Se pudesse, eu faria, Paul, só para poupá-lo dessa tristeza.
— Mas por que não?
— Porque você deve fazê-lo por iniciativa própria — respondeu ela de uma maneira muito afetada.
Paul soltou uma gargalhada e, pela primeira vez desde que voltara, o rosto de Annie se fechou e ela saiu do quarto levando o manuscrito embaixo do braço.
Uma hora mais tarde, quando Annie voltou ao quarto, Paul apanhou a caixa de fósforos.
Ela colocou a página-título do livro sobre a grelha da churrasqueira. Paul tentou, em vão, acender o fósforo, mas ele caiu de suas mãos.
Annie, então, acendeu-o e pôs o palito aceso em sua mão. Paul levou o palito até a pontinha da folha e observou, fascinado, como a chama experimentava o sabor do papel e depois o engolia. Desta vez, Annie trouxera um garfo da cozinha. Quando a folha queimou por completo, ela empurrou as cinzas para dentro da grelha.
— Isso vai levar um tempo enorme, eu não agüe. . .
— Não, não vai levar tanto tempo assim. É preciso, porém, que você destrua algumas das páginas, como um sinal de sua compreensão.
Annie colocou a primeira página do livro sobre a grelha e Paul ainda pôde ler uma das frases que escrevera há uns dois anos atrás, no seu apartamento em Nova Iorque: "Eu não tenho carro — disse Tony Bonasaro enquanto se dirigia para a garota que descia as escadas — e aprendo tudo devagar; mas sou um motorista muito veloz."
A frase o levou de volta no tempo, como costumam fazer alguns programas de rádio. Lembrou-se que ficara andando de um lado para o outro do apartamento, completamente tomado pelo livro, mais do que isso, "grávido" — e aqui começavam as dores do parto. Lembrou-se de ter encontrado o sutiã de Joan embaixo de uma das almofadas do sofá, e o fato dela ter estado ali há uns três meses atrás mostrava bem o tipo de arrumação que a empregada fazia. Lembrou-se de escutar o motor dos carros trafegando pelas ruas de Nova Iorque e de ouvir, ao longe, o monótono repicar de sinos de uma igreja chamando os fiéis para a missa.
Lembrou de sentar-se à maquina.
Como sempre, o abençoado alívio de começar um trabalho, a gostosa sensação de penetrar por uma brecha de luz muito brilhante.
E como sempre, a suspeita de que não escreveria tão bem quanto gostaria.
E como sempre, o terror de não ser capaz de terminar o livro, de dar algum branco.
E como sempre, a sensação maravilhosa e estimulante de ter começado uma viagem.
— Annie, não me obrigue a fazer isso — pediu ele, numa voz nítida, porém sussurrante.
Imóvel, Annie segurava a caixa de fósforos ao alcance das mãos de Paul.
— A escolha é sua.
E assim Paul destruiu o seu livro.
Annie o fez queimar a primeira e a última folha, além de nove pares de páginas retiradas de diferentes pontos do livro. Segundo ela, nove era o número que simbolizava o poder, e nove duas vezes traria boa sorte. Paul percebeu que ela buscara nesses símbolos uma maneira de apagar todas as obscenidades que ela encontrara, até o ponto em que lera o livro.
Quando ele já havia terminado de queimar o último par de páginas escolhido por ela, Annie lhe disse:
— Como você se comportou como um bom menino e levou tudo na esportiva, podemos terminar logo com isso. Sei que isso dói tanto quanto as suas pernas.
Annie retirou a grelha e colocou o restante das folhas dentro da churrasqueira. O quarto todo cheirava a fósforos e a papel queimado. É o cheiro da ante-sala do inferno!, pensou ele, num delírio. Se tivesse alguma coisa no que restara de seu estômago, ele por certo teria vomitado.
Ela riscou outro fósforo e entregou a ele. Sem saber como, Paul conseguiu se curvar e jogá-lo dentro da churrasqueira. Não se importava mais. Não se importava.
Annie cutucou-o nos ombros e Paul entreabriu os olhos.
— O fósforo apagou — disse ela, ao mesmo tempo em que riscava outro palito e o colocava em sua mão.
Mais uma vez Paul se inclinou — o movimento fez com que suas pernas se enchessem de cãibras — e levou o palito até a ponta das folhas. Dessa vez, a chama se espalhou por completo.
De olhos fechados, Paul recostou-se no travesseiro, sentido o calor das chamas e ouvindo o crepitar do fogo.
— Meu Deus do céu! — gritou Annie, apavorada.
Paul abriu os olhos e viu as folhas queimadas se elevando pelo quarto por causa do ar quente.
Annie saiu correndo do quarto. Paul a ouviu abrindo a bica da banheira e enchendo um balde. Indolentemente, Paul observava um pedaço de papel vagar pelo quarto e ir parar numa das cortinas transparentes, fazendo nela um pequeno furo, como de uma ponta de cigarro. Seu lençol estava coberto de cinzas, assim como seus braços. Paul não ligava. Não ligava nem um pouco.
Ao entrar no quarto, Annie parecia querer olhar para todos os cantos ao mesmo tempo, como se tentasse descobrir o trajeto de cada folha de papel chamuscado que se elevava no ar. Dentro da churrasqueira, as chamas crepitavam e cresciam.
— Meu Deus do céu! — exclamou Annie, segurando o balde nas mãos.
Annie parecia indecisa não só quanto ao local em que deveria jogar água, como também quanto à própria necessidade de ter que usar deste artifício. Seu lábios estavam trêmulos e molhados de saliva, e Paul a observava.
— Meu Deus do céu! Meu Deus do céu! — era tudo o que ela parecia conseguir dizer.
Mesmo com o corpo cheio de dores, Paul experimentou um segundo de extenso prazer. Então era assim que Annie Wilkes ficava quando estava apavorada. . . Paul adorou vê-la nesse estado.
Annie finalmente se decidiu, ao ver uma folha ainda em chamas subindo pelo ar quente. Com um outro "Meu Deus do céu!", ela virou o balde cuidadosamente dentro da churrasqueira. Um enorme chiado ressoou pelo quarto, elevando uma nuvem de fumaça. O cheiro de queimado e de umidade se tornou forte e insuportável.
Ela saiu do quarto e Paul apoiou-se nos cotovelos uma última vez. Dentro da churrasqueira, algo que se parecia com um pedaço de madeira queimada boiava num lago escuro e nauseante.
Pouco depois, Annie voltou ao quarto. E por incrível que pareça ela ainda estava agitada. .
Annie sentou-se na cama e lhe empurrou as cápsulas na boca.
"Eu ainda mato você", pensou ele engolindo o remédio e se recostando no travesseiro.
— Vamos, coma.
Paul ouvia a voz distante de Annie e sentiu uma pontada de dor. Ao abrir os olhos, percebeu que ela estava sentada a seu lado — pela primeira vez, seu rosto estava realmente do mesmo nível que o dela; ele a encarava frente a frente. Ainda tonto, Paul percebeu, com alguma surpresa, que, pela primeira vez depois de alguns séculos, ele estava sentado. . . ele estava sentado, de verdade.
"E quem se importa com isso?, pensou ele, tornando a fechar os olhos. A maré estava alta e as estacas, submersas. Finalmente, a maré subira. E da próxima vez que ela baixasse, podia ficar por lá para sempre, e ele sairia pegando onda, enquanto ouvessem ondas para surfar. . . Mais tarde. Só mais tarde ele queria pensar em ficar sentado. . .
— Vamos, coma! — repetiu ela, e ele sentiu uma pontada de dor outra vez, uma dor do lado esquerdo da cabeça. Paul soltou um gemido e tentou se esquivar
— Vamos, Paul, você tem que comer. Você tem que voltar a si para comer, caso contrário. . .
Era na orelha esquerda. Annie estava puxando sua orelha.
— Ei — murmurou ele — Não faça isso, pelo amor de Deus.
Seus olhos estavam pesados, mas Paul os abriu. Um segundo depois, sentiu uma colher entrando por sua boca e Paul teve que engolir a sopa quente para não engasgar.
E subitamente, saído de algum lugar — a mais sensacional aparição que já presenciei, senhoras e senhores! — o Esfomeado irrompeu de novo na pista de corrida. Aquela única colherada de sopa parecia ter despertado suas entranhas de algum transe hipnótico. Paul tomou a sopa avidamente, sem saciar de todo a fome.
Lembrou-se vagamente de ver Annie empurrando a churrasqueira sinistra e fumegante para fora do quarto e lembrou-se de vê-la trazendo alguma coisa parecida com um carrinho de supermercado. Paul estivera tonto e drogado, mas essas imagens não lhe causavam mais nenhum impacto; afinal de contas, estava hospedado na casa Annie Wilkes. Churrasqueiras, carrinhos de supermercado. . . amanhã seriam um parquímetro e uma ogiva nuclear. Quando se vive num lugar como esse, coisas esquisitas nunca param de acontecer.
Paul estivera inconsciente, mas percebia agora que o carrinho de supermercado nada mais era que uma cadeira de rodas dobrável. E era nela que ele estava sentado. Suas pernas, presas nas talas, estavam esticadas à sua frente e a região da bacia, como estivesse inchada, não parecia muito satisfeita com a nova posição.
Ela me colocou na cadeira quando eu estava dormindo, pensou ele. Ela me carregou no colo. Um peso desses. . . Ela deve ser mesmo muito forte.
— Pronto, acabou! — anunciou Annie. — Fico satisfeita de ver como você tomou a sopa toda, Paul. Acho que você vai ficar bom. Eu não diria "novinho em folha" — não, isso nunca — mas, se não tivermos mais nenhum desses. . . contratempos. . . acho que você poderá melhorar. Agora vou trocar os lençóis e, depois, as suas roupas. E se você não estiver sentindo dor e ainda estiver com fome, deixarei que coma umas torradinhas. . .
— Muito obrigado, Annie. — respondeu ele, com humildade. Vai ser na sua garganta. E eu talvez permita que você antes solte um:
"Meu Deus do céu". Mas só um. Annie. Só um.
Quatro horas mais tarde, Paul estava de volta na cama e nesse instante, ele seria capaz de queimar todos os livros por uma única cápsula de Novril. Enquanto estivera sentado, suas pernas não haviam incomodado (afinal, suas veias estavam entupidas de narcótico — o suficiente para fazer dormir metade do exército da Prússia), mas agora, que estava deitado, era como se toda a parte inferior de seu corpo tivesse sido tomada por uma nuvem de abelhas.
Aquela sopa devia realmente ter recobrado as suas forças, pois ele não se lembrava de ter podido gritar tão alto desde que saíra do nevoeiro.
Imaginava que Annie estivera um longo tempo parada no corredor, do outro lado da porta, antes de entrar. Estivera imóvel, desligada, com o olhar vazio a contemplar a maçaneta da porta ou, quem sabe, as linhas de sua própria mão.
— Aqui está — disse ela, dando-lhe duas cápsulas dessa vez. Paul segurou o punho de Annie para firmar o copo e engoliu o remédio.
— Comprei dois presentes para você.
— É mesmo? — murmurou ele.
Annie apontou para o canto do quarto, onde se encontrava a cadeira de rodas dotada de um suporte para apoiar as pernas, que ficava projetado para frente.
— O outro eu mostro amanhã. E agora, Paul, trate de dormir um pouco.
Paul, entretanto, ficou um longo tempo sem conseguir pegar no sono. Curtindo os efeitos da droga, ele começou a pensar na sua situação. Não lhe doía tanto agora. Doía menos do que pensar no livro que escrevera e depois destruíra.
Tantas coisas. . . coisas isoladas que se juntavam como pedaços diferentes de pano numa colcha de retalhos.
Segundo Annie, eles estavam a quilômetros dos vizinhos mais próximos que, por sinal, não gostavam dela. Como era mesmo o nome deles? Boynton. Não, era Roydman. Sim, era isso mesmo, Roydman. E qual era a distância até a cidade? Não muito distante, por certo. Calculava que estivesse dentro de um círculo cujo diâmetro tivesse no mínimo uns vinte e cinco quilômetros e, no máximo, setenta. A casa de Annie Wilkes ficava bem ao centro deste círculo. A casa dos Roydmans e a cidade de Sidewinder, por menor que esta fosse, deviam ficar. . .
E o meu carro? Meu Camaro também está em algum lugar dentro deste círculo. Será que a polícia encontrou o meu carro?
Achava que não. Ele era uma pessoa muito conhecida. Se o carro com os documentos em seu nome tivesse sido encontrado, uma averiguação das mais simples revelaria que ele estivera em Boulder, antes de sumir de vista. A descoberta de seu carro daria início a uma busca, os jornais noticiariam o seu desaparecimento. . .
Ela nunca assiste televisão, nem escuta rádio — a não ser que use fones de ouvido.
Isso tudo o fazia lembrar do cachorro numa história de Sherlock Holmes — aquele que nunca latia. Seu carrão não havia sido encontrado porque nenhum policial aparecera por ali. Se ele tivesse sido encontrado, os policiais não teriam averiguado todas as pessoas dentro desse círculo imaginário? E quantas pessoas mais havia dentro desse círculo, tão perto da Western Slope? Os Roydmans, Annie Wilkes, talvez umas dez ou doze pessoas.
Mas o fato do carro não ter sido encontrado até o momento não significava que ele não seria encontrado.
Sua imaginação tão vívida (que ele não herdara de ninguém da família de sua mãe) assumiu o comando. O policial era alto, tinha um ar distante, mas atraente, e suas costeletas eram um pouco mais compridas que o comum. Ele usava óculos escuros e espelhados, que refletiam em duplicata a imagem da pessoa que estivesse sendo interrogada, e tinha um forte sotaque típico do meio-oeste.
Encontramos um carro capotado na encosta da montanha Humbuggy. O carro pertence a um escritor muito famoso, Paul Sheldon. Há sangue nos bancos e no painel, mas não há o menor sinal dele. Na certa, conseguiu sair do carro e deve estar perambulando por aí, meio sem rumo. . .
Paul soltou uma gargalhada. Mas é claro que o policial não poderia imaginar o estado de suas pernas. Era natural que pensassem assim, já que ele não estava nas imediações do local do acidente. Não era possível que o curso das investigações os levasse a pensar em algo tão improvável quanto um seqüestro. Pelo menos, não de início. Nunca, talvez.
A senhora se lembra de ver alguém pela estrada no dia da tempestade? Ele é alto, tem quarenta e dois anos e cabelos ruivos. Devia estar usando calça jeans, blusa de flanela quadriculada e casaco de lã. Ele podia estar mancando. . . Ora, a senhora nem ao menos saberia quem ele é?
Annie convidaria o policial para tomar um café na cozinha, mas tomaria o cuidado de fechar todas as portas entre a cozinha e seu quarto de hóspedes. No caso dele começar a gemer.
Que nada, senhor, eu não vi ninguém! Para falar a verdade, eu vim para casa o mais cedo que pude. Tony Roberts me avisou que a tempestade não estava mais indo para o sul.
O policial deixaria a xícara de café sobre a mesa e se levantaria, dizendo:
Está bem, se a senhora vir alguma pessoa parecida com a descrição que lhe dei, avise imediatamente a polícia. Ele é uma pessoa muito famosa. Já saiu até na revista People. E em outra também. . .
Não se preocupe, senhor.
E o policial iria embora.
Talvez esta cena já tivesse acontecido e ele simplesmente ignorasse. Talvez este mesmo policial que imaginara, ou algum colega dele, tivesse interrogado Annie Wilkes enquanto ele estava dopado. Deus é testemunha das muitas horas em que ele estivera dopado. Depois de pensar mais um pouco, Paul concluiu que isso não era muito provável. Ele não era uma pessoa qualquer. Ele já aparecera na revista People (primeiro best-seller) e na revista Us (primeiro divórcio); haviam formulado uma questão sobre a vida dele no programa de Waltes Scott, "Personality Parade", que ia ao ar aos domingos. Eles tornariam a procurá-lo, talvez por telefone, ou pessoalmente. Quando uma celebridade — ou uma quase-celebridade, como um escritor — desaparecia, a polícia fechava o cerco e se esmerava nas investigações.
Você está apenas imaginando.
Talvez imaginando; talvez deduzindo. E de qualquer maneira, era melhor fazer isso do que ficar prostrado na cama, sem se ocupar com nada.
Havia muretas de proteção na estrada?
Tentou se lembrar, mas não conseguiu. A única coisa que conseguia lembrar era de ter se abaixado para apanhar os cigarros e, então, o mundo virou de cabeça para baixo de uma maneira formidável, dando início às trevas. Mais uma vez, a dedução (ou uma simples adivinhação, se você quiser bancar o mal-humorado) lhe disse que não. Muretas amassadas ou grades de proteção partidas teriam chamado a atenção da polícia rodoviária.
Mas, então, o que acontecera realmente?
Perdera o controle do carro numa pequena descida com inclinação suficiente para o carro capotar. Se fosse à beira de um precipício, haveria muretas; se fosse à beira de um precicípio, teria sido muito difícil, ou praticamente impossível, que Annie tivesse conseguido chegar até onde o carro estava, e, muito menos, que tivesse conseguido trazê-lo de volta para a estrada.
Mas onde estaria o carro? Enterrado no meio da neve, é claro.
Paul colocou o braço sobre os olhos e imaginou o trator da prefeitura descendo a estrada onde ele capotara. Passavam-se duas horas depois do acidente. O trator era um pequeno ponto amarelo num mar de neve branca. O motorista estava agasalhado até os ossos; na cabeça, trazia um antigo boné de maquinista, nas cores azul e branco. À sua direita, no fim de um barranco que mais adiante se transformaria num desfiladeiro típico dessa região, encontra-se o Camaro de Paul Sheldon. E a parte que mais se podia ver dele era apenas o pára-choque traseiro, onde se via um adesivo azul e desbotado com os dizeres: HART PARA PRESIDENTE. O rapaz que dirige o trator não avista o carro; o adesivo está muito desbotado para chamar a atenção de alguém. As pás do trator diminuem seu campo de visão e, além disso, o dia está escurecendo e ele está exausto. Tudo o que quer no momento é terminar sua última travessia, fazer a manobra de volta e tomar um gole de bebida.
Ele segue em frente e as pás do trator jogam montes de neve cinzenta nas valas ao longo da estrada. Seu Camaro está, agora, quase todo soterrado. Mais tarde, na mais profunda escuridão da noite, quando mesmo as coisas que estão a um palmo de nosso nariz parecem irreais, seria a vez de um outro funcionário limpar a pista. Ele viria no sentido contrário e acabaria de soterrar o carro.
Paul abriu os olhos e ficou contemplando o teto. Uma rachadura no gesso formava uma linha que lhe lembrava três letras M entrelaçadas. Ao longo do interminável correr dos dias em que passara ali deitado, Paul se tornara bastante familiarizado com aquelas letras e, agora que se deparava com elas mais uma vez, começou a pensar em palavras começadas com m: malvada, miserável, megera e machucado.
É.
Podia ter acontecido assim. Podia.
E ela já haveria pensado no que aconteceria quando seu carro fosse encontrado?
Haveria, sim. Ela era maluca, mas não era tola.
Mas jamais passara pela cabeça dela que ele podia ter uma cópia de Carros velozes.
É, ela estava certa. Aquela cadela estava certa. Eu não tinha nenhuma cópia.
Na sua cabeça surgiram as imagens das folhas de papel chamuscadas flutuando pelo quarto; as chamas, o barulhinho do fogo, o cheiro da destruição. Paul cerrou os dentes e tentou afastar as imagens da cabeça. Nem sempre era bom ter uma imaginação muito vívida.
Não, você não tirou nenhuma cópia do livro. Mas nove entre dez escritores teriam tirado. Teriam sim, se ganhassem pelo menos tanto quanto você ganha pelos seus livros, mesmo pelos que não são da série Misery. Isso nem passou pela cabeça dela.
Annie não é escritora.
Nem tola — e nisso nós dois concordamos. Para mim, Annie se acha o máximo; seu ego não é apenas forte, mas inquestionavelmente grandioso. Queimar o livro lhe pareceu a coisa mais apropriada. E o conceito dela a respeito da coisa mais apropriada iria por água abaixo com a simples lembrança de uma insignificante máquina de tirar xerox e alguns pares de moedas de vinte e cinco centavos. . . e isso, meu amigo, sequer havia passado pela cabeça dela.
As deduções de Paul eram como castelos de areia, mas para ele, Annie parecia tão sólida quanto o rochedo de Gibraltar. Devido às muitas pesquisas que fizera para um dos livros Misery, Paul não era um simples leigo quando se tratava de comportamentos neuróticos e psicóticos. Embora uma pessoa às raias de uma psicose pudesse alternar períodos de profunda depressão com períodos de intensa alegria, que beiram a violência, Paul sabia que o ego estava por trás desses estados, certo de que todos os olhos estavam voltados para ele, e certo de que ele estava estrelando um grande espetáculo, cujo desenlace era aguardado por milhares de ansiosos espectadores.
Esse ego impedia o curso dos pensamentos; e estes acabavam se tornando bastante previsíveis, visto que convergiam sempre numa mesma direção: Partiam da pessoa desequilibrada e se dirigiam para objetos, situações e pessoas fora do seu campo de controle (ou seja, para suas fantasias: um neurótico conseguia distinguir a fantasia da realidade, mas para o psicótico elas eram exatamente a mesma coisa).
Annie Wilkes queria destruir Carros velozes. Portanto, para ela, existia apenas uma única cópia.
Talvez eu tivesse conseguido evitar tudo isso se dissesse a ela que existia uma outra cópia; ela perceberia como seria inútil aquilo tudo, ela. . .
Paul estava quase adormecendo, más seus pensamentos o despertaram e ele abriu os olhos.
Sim, Annie perceberia que seria inútil destruir o livro. Ela se veria obrigada a seguir num daqueles pensamentos que lhe escapavam ao controle. Seu ego estaria ofendido, reclamaria. . .
Eu tenho um gênio!
Se Annie se visse obrigada a reconhecer que não adiantaria destruir o seu "livro obsceno", não acabaria ela se decidindo a eliminar, então, o autor do livro? Afinal de contas, não havia nenhuma outra cópia de Paul Sheldon.
O coração de Paul disparou. No outro cômodo, o relógio começou a bater. Paul ouviu os passos pesados de Annie andando no andar de cima. Ouviu-a urinando e puxando a descarga do banheiro. Tornou a ouvir os passos dela e o estalido das molas da cama.
Você não vai me fazer ficar com raiva de novo, vai?
Paul tentou acompanhar seus pensamentos, tal como um cavalo marchador tenta acertar o passo. De que adiantava toda essa análise barata? E o carro? Quando seria encontrado? E o que isso significava para ele no momento?
— Espera um pouco — murmurou ele, na escuridão do quarto. — Espere um minuto só, não desligue o telefone. Espere um pouco.
Paul colocou o braço sobre os olhos, trazendo de volta o policial com óculos escuros e costeletas maiores que o comum.
Encontramos um carro capotado na encosta da montanha Humbuggy. . . era isso o que o policial estava dizendo, e bla-bla-blá. . .
Só que desta vez Annie não o convida para tomar café. Desta vez ela não se sentirá a salvo até que ele tenha ido embora e sumido de vista. Mesmo da cozinha, com duas portas fechadas e com o hóspede completamente dopado, o policial poderia ouvir um gemido.
Se o carro fosse encontrado, Annie Wilkes ia sentir que estava correndo perigo, não ia?
— Ia, sim. — murmurou Paul.
As pernas estavam começando a doer outra vez, mas Paul estava tão aterrorizado que nem percebeu.
Annie estaria em apuros, não porque o tivesse levado para sua casa, especialmente no caso dela ser mais próxima do local do acidente do que a cidade de Sidewinder, como ele acreditava; por uma ação dessas Annie poderia até ganhar uma medalha e um título vitalício do fã-clube de Misery Chastain (para infelicidade de Paul, tal coisa existia). Mas o problema era que Annie o levara para sua casa, acomodara-o em seu quarto de hóspedes e não avisara a ninguém. Não dera sequer um telefonema para o hospital mais próximo. "Aqui quem fala é Annie Wilkes. Eu moro no alto da montanha Humbuggy e socorri um homem na estrada. Ele parece que foi atropelado pelo King Kong.'' O problema era que Annie o viciara com um remédio a que ela certamente não poderia ter acesso, nem mesmo se ele estivesse apenas metade viciado do que julgava estar. O problema era que Annie o submetera a um misterioso tratamento intravenoso, espetara agulhas em seus braços e colocara suas pernas em talas feitas de muletas de alumínio serradas. O problema era que Annie Wilkes fora levada ao tribunal de Denver. . . não como testemunha de defesa, pensou ele. Aposto que não.
O policial entra na impecável viatura da polícia (impecável a não ser pela grande quantidade de neve que se acumula nas rodas e no pára-choque) e Annie sente um alívio. . . mas não está mais segura, porque ela agora é como um animal acuado.
A polícia vai ser incansável em suas buscas porque ele não é uma pessoa qualquer; ele é Paul Sheldon, um deus da literatura, que fez nascer Misery Chastain, a queridinha de todos. Mas caso não o encontrem, talvez suspendam as buscas, ou, então, as transfiram para um outro local. Mas quem sabe um dos Roydmans não a viu naquela noite, carregando uma trouxa, que mais se parecia com um homem enrolado, na traseira do jipe? Mesmo que eles nada tivessem visto, Annie ficaria imaginando se os Roydmans não iriam inventar histórias a seu respeito. Afinal de contas, eles não gostavam dela.
Mas os guardas poderiam voltar e, da próxima vez, o hóspede talvez não ficasse quieto.
Paul lembrou-se do olhar desnorteado de Annie quando as chamas da churrasqueira estavam quase fugindo ao seu controle. Lembrou-se de vê-la passar a língua nos lábios e andar de um lado para outro com as mãos abanando e retornando ao quarto a toda hora. No quarto em que seu hóspede estava perdido em uma nuvem de fumaça. Uma vez ou outra Annie exclamava: "Meu Deus do céu!", e sua voz ecoava pela casa vazia.
Annie roubava um pássaro raro, de lindas penas — um pássaro raro que viera da África.
E o que eles iam fazer com ela quando descobrissem?
Ora, iam levá-la ao tribunal outra vez. Iam levá-la outra vez ao tribunal de Denver. Mas ela agora não sairia livre.
Paul tirou o braço dos olhos e ficou olhando para o teto, onde os Ms entrelaçados pareciam flutuar. Não era preciso colocar o braço sobre os olhos para imaginar o restante. Ela ainda o manteria preso por uma semana, mas bastaria uma outra visita ou um telefonema dos policiais para que ela decidisse se livrar de seu pássaro raro. Ela acabaria fazendo isso, tal como os cães decidem se livrar da caça quando percebem que estão sendo perseguidos.
Ela lhe daria cinco cápsulas ao invés de duas; ou o asfixiaria com o travesseiro; ou simplesmente lhe daria um tiro. Ela devia ter uma espingarda em algum lugar. Quase todas as pessoas que moravam no interior tinham uma espingarda, e isso resolveria o problema.
Não, um tiro não.
Seria muito inconveniente.
Deixaria provas.
Nada disso ocorrera até o momento porque o carro não havia sido encontrado. A polícia devia estar procurando-o em Nova Iorque ou Los Angeles, mas ninguém estava procurando por ele em Sidewinder, Colorado.
Mas na primavera.
Os Ms separaram-se um do outro lá no teto. Marcas. Manchas. Molhadas.
A dor nas pernas aumentou. A próxima vez que o relógio batesse, Annie apareceria com o remédio. Mas ele teve receio que ela pudesse ler seus pensamentos. Paul desviou o olhar para a parede à sua esquerda, onde havia um calendário pendurado. Pelo calendário, estavam em fevereiro, e a estampa do mês mostrava um menino andando de trenó. Mas os cálculos de Paul indicavam que já deviam estar no início de março. Annie Wilkes devia ter se esquecido de virar a folhinha.
Quanto tempo levaria até que a neve derretesse e deixasse à mostra seu Camaro com chapa de Nova Iorque e os documentos no porta-luvas confirmassem que o veículo pertencia a Paul Sheldon? Quanto tempo até que aquele policial aparecesse por aqui? Ou que ela lesse as notícias no jornal?
Quanto tempo ainda, até que a primavera derretesse toda a neve?
Seis semanas? Cinco, talvez?
Esse pode ser todo o tempo que eu ainda tenho de vida, pensou ele, começando a tremer. Suas pernas estavam completamente despertas e Paul só conseguiu dormir depois que Annie lhe trouxe o remédio.
Na noite seguinte Annie lhe apresentou a Royal, uma máquina de escrever fabricada numa era em que máquinas elétricas, televisões a cores e telefones com teclas eram frutos de ficção científica. Ela era preta como carvão; nas laterais, duas placas de vidro deixavam à mostra suas alavancas, molas, hastes e lingüetas. A alavanca de retrocesso, feita de aço e frouxa pela falta de uso, mais parecia o polegar de uma pessoa pedindo carona. O cilindro estava empoeirado e o revestimento de borracha era gasto e cheio de marcas. Na frente da máquina, lia-se o nome — Royal — em letras que formavam um semicírculo. Annie segurou a máquina por alguns instantes para que ele a examinasse e, resmungando alguma coisa, a depositou na cama, entre as duas pernas de Paul.
Ele encarou a máquina.
Ela estava rindo para ele?
Meu Deus! Era isso mesmo o que dava a parecer.
De qualquer modo, ela lhe cheirou a encrenca. A fita era de duas cores, um vermelho e um preto muito desbotados. Paul nem se lembrava mais que existiam máquinas com fitas assim, e a visão que tinha à sua frente não lhe causou a menor nostalgia.
— E então? — perguntou Annie, entusiasmada — O que acha?
— É bem simpática. Uma verdadeira antigüidade.
— Eu não a comprei como antigüidade — respondeu ela, fechando o sorriso. — Eu a comprei em segunda mão. Foi um achado!
— Uma máquina de escrever nunca é uma antigüidade — respondeu ele, prontamente. — Uma boa máquina dura para sempre, é praticamente eterna. . .
Se Paul pudesse aproximar-se da máquina, ele a teria acariciado. Se Paul pudesse aproximar-se da máquina, ele a teria beijado. O sorriso de Annie voltou e Paul suspirou, aliviado.
— Eu a comprei na "Novidades Usadas" — não é um nome idiota para se dar a uma loja? Mas a dona da loja, Nancy Dartmonger, é uma mulher idiota.
Uma sombra cobriu o rosto de Annie, mas dessa vez ele percebeu imediatamente que o problema não era com ele. Paul vinha desco-brindo que seu instinto de sobrevivência não era apenas um simples instinto, mas também um meio surpreendente de conhecê-la melhor. Descobrira que estava se acostumando aos ciclos de Annie, às suas mudanças de humor.
— Além de idiota, ela é malvada. Já se divorciou duas vezes e agora está vivendo com um balconista de bar. Por isso, quando você disse que ela era uma antigüidade. . .
— Ela me parece bem simpática.
Annie ficou calada por alguns instantes e depois falou timidamente, como se fizesse uma confissão:
— Ela não tem o "N".
— É mesmo?
— Aqui. . . Dá para ver? — perguntou ela, inclinando a máquina.
Paul deu uma olhadela no semicírculo das letras e reparou que havia uma falha, tal qual uma boca de dentes estragados em que falta um molar.
— Hum. . . estou vendo.
Annie tornou a colocar a máquina no lugar e a cama balançou. Paul calculou que uma máquina daquelas devia pesar uns vinte quilos, pois devia ter sido fabricada numa época em que não havia liga de metais, nem matéria plástica. . . nem tampouco adiantamento pela venda de livros, nem lançamento de filmes, nem USA Today, nem Entertainment Tonight e nem pessoas famosas fazendo comerciais de cartões de crédito e vodca.
A Royal sorria para ele, anunciando problemas.
— Ela queria quarenta e cinco dólares por ela, mas acabou deixando por quarenta; por causa do "n" que está faltando.
Annie lhe dirigiu um sorriso cheio de malícia, que dizia: ninguém me engana.
Paul retribuiu o sorriso. A maré estava alta, o que tornava possível sorrir e mentir com facilidade.
— Ela lhe deu um desconto? E você não teve que pechinchar?
— Eu disse a ela que "n" era uma letra muito importante — admitiu ela.
— Melhor para você!
Esta era uma nova descoberta para Paul: a bajulação se tornava também muito fácil, à medida que você ia pegando o jeitinho.
O sorriso de Annie tornou-se embaraçado, como se ela o convidasse a partilhar de um segredo delicioso:
— Eu disse a ela que "n" era uma das letras do nome do meu escritor predileto.
— E são duas das letras no nome da minha enfermeira predileta.
O rosto de Annie se incendiou e suas bochechas sólidas ficaram ruborizadas. É exatamente assim que ficavam os ídolos dos livros de H. Rider Haggard quando acendiam fogueiras na boca das estátuas. Era exatamente assim que ficavam quando anoitecia.
— Você está caçoando de mim — disse ela, num sorriso tímido.
— Não, não estou.
— Está bem.
Annie pareceu se desligar, mas não daquela maneira. Estava apenas satisfeita, um pouco embaraçada, e dando alguns minutos para organizar seus pensamentos. Paul também poderia estar satisfeito com o curso das coisas, não fosse pelo peso da máquina de escrever, tão sólida quanto Annie e também tão avariada. Pousada na cama, a Royal lhe dirigia um sorriso sem um dos dentes, anunciando problemas.
— A cadeira de rodas custou muito mais. . . Os estoques da Ostomy praticamente sumiram desde que eu. . .
Annie interrompeu o que ia dizer. Franziu as sobrancelhas, soltou um pigarro e sorriu.
— Mas já era hora de você voltar a se sentar, Paul, e eu não lamento nem um pouco o dinheiro que ela me custou. E é evidente que você não poderá bater à máquina sentado, não é mesmo?
— É, eu não poderia. . .
— Arranjei uma placa de madeira. . . cortei do tamanho certo. . . comprei papel. . . Espere um instante!
Annie saiu do quarto correndo como uma menina, deixando Paul e a máquina a olharem um para o outro. Paul parou de sorrir no momento em que Annie lhe deu as costas, mas a Royal não se alterou. Algum tempo mais tarde, Paul desconfiou que, já naquela época, ele pressentira o que estava por acontecer, assim como pressentira como seria trabalhar naquela máquina, como ela rangeria através de seu sorriso, tal como Ducky Daddles, aquele personagem da história em quadrinhos.
Quando voltou, Annie trazia uma placa de madeira de um metro por um e vinte mais ou menos e, na outra mão, um pacote de papel da marca Corrasable Bond.
— Olhe só! — exclamou Annie, colocando a placa de madeira nos braços da cadeira de rodas que estava ao lado da cama, como se aguardasse a chegada de um ilustre visitante. Uma vez mais, Paul pôde imaginar sua imagem sentado na cadeira, por trás daquela placa, enclausurado como um prisioneiro.
Ela colocou a máquina na placa de madeira, de frente para sua imagem. Ao lado, colocou o pacote do Corrasable Bond — a marca de papel que ele mais odiava no mundo; porque a tinta não fixava no papel e só das folhas roçarem umas nas outras, todo o trabalho acabava borrado.
Annie montara algo como uma escrivaninha para um aleijado.
— O que você acha?
— Parece bem — disse ele, soltando a maior mentira de sua vida com incrível naturalidade. Em seguida, Paul fez uma pergunta para a qual já adivinhava a resposta: — E o que você acha que eu devo escrever?
— Ora, Paul! Eu não acho. Eu sei o que você vai escrever — disse ela entusiasmada, com os olhos a lhe saltarem do rosto. — Você vai usar esta máquina para escrever um livro novo. O melhor livro de sua vida! A volta de Misery!
A volta de Misery. Paul não esboçou a menor reação. Na sua cabeça surgiu a imagem de um trabalhador que acaba de perder a mão numa serra. Contemplando o punho amputado, ele experimentaria a mesma sensação de vazio que sentia no momento.
— É isso mesmo! — exclamou Annie, exultante, mantendo as mãos vigorosas cruzadas sobre o peito. — Vai ser um livro só para mim, Paul! Será minha recompensa por ter lhe salvado a vida! A primeira e única edição do mais novo livro Misery! Terei algo que ninguém mais no mundo poderá ter, não importa o quanto eles o desejem! Pense nisso Paul!
— Annie, Misery está morta.
Inacreditavelmente, porém, ele já considerava a idéia de trazê-la de volta. Paul sentiu certa repulsa pela idéia, mas nenhuma surpresa. Afinal, um homem que fora capaz de beber a água suja de um balde não teria problemas para escrever alguma coisa, seguindo orientações alheias.
— Não, ela não está morta — retrucou Annie, sonhadoramente. — Mesmo quando eu estava. . . com raiva de você, eu sabia que ela não havia morrido de verdade. Sabia que você não seria capaz de matá-la. Pois você é uma pessoa boa, Paul.
— Sou? — perguntou ele, desviando o olhar para a máquina de escrever, que lhe sorria.
Vamos ver se você é bom mesmo, meu amigo, sussurou-lhe a máquina.
— É, sim.
— Annie, eu nem sei se vou conseguir me sentar nessa cadeira. Da última vez. . .
— Da última vez você sentiu muita dor. E da próxima vez, também vai sentir. Mais ainda, talvez. Mas daqui a pouco — e esse dia já está chegando, embora possa parecer a você que ainda vai demorar — vai doer menos. E menos. . . e menos.
— Annie, você me responde a uma pergunta?
— Mas é claro, querido!
— Se eu escrever esta história para você. . .
— Um romance! Um tão grande quanto os outros — maior ainda! Paul fechou os olhos e tornou a abri-los:
— Está bem. Se eu escrever esse romance, você me deixará ir embora quando terminar?
Por alguns instantes, uma nuvem escura tomou conta do rosto de Annie e ela lhe dirigiu um olhar muito cauteloso:
— Você fala como se eu o mantivesse prisioneiro, Paul. Paul a encarou sem dizer uma palavra.
— Acho que quando você terminar, você estará ponto para. . . pronto para se encontrar com pessoas outra vez. Era isso o que você queria ouvir?
— Era exatamente isso o que eu queria ouvir.
— Francamente! Eu imaginava que escritores fossem egocêntricos, mas não imaginava que isso significasse também ingratidão!
Como Paul ainda a encarasse, Annie desviou o olhar, impaciente e embaraçada.
— Vou precisar de todos os livros Misery, se você tiver, já que não tenho comigo a relação com todos os tópicos do livro.
— Mas é claro que eu tenho! E que relação é essa?
— São um punhado de folhas soltas onde guardo todas as anotações sobre Misery: os personagens e os lugares, principalmente, além de diferentes tipos de citações, a seqüência cronológica, o contexto histórico. . .
Paul percebeu que Annie não o ouvia. Era a segunda vez que ela não mostrava o menor interesse pelos segredos de sua profissão, um assunto que fascinaria uma platéia de pseudo-escritores. E a razão era das mais simples. Annie era a encarnação de um arquétipo da era vitoriana, mais conhecido como "O Leitor Fiel". Ela não queria saber de suas anotações porque para ela, Misery e os personagens que a cercavam eram pessoas de verdade. Suas anotações nada significavam. Se começasse a falar sobre um recenseamento na cidade de Little Dunthorpe, aí sim, ela talvez começasse a se interessar.
— Eu vou lhe trazer os livros, mas vou logo avisando que as pontas das páginas estão dobradas, por que é assim que marco o lugar em que parei de ler. Mas isso é um sinal de que o livro foi lido muitas vezes e lido com carinho, não é mesmo?
— Sim, é verdade — respondeu ele. Não havia necessidade de mentir dessa vez.
— Vou aprender encadernação e eu mesma irei encadernar A volta de Misery — disse ela, com o olhar perdido em pensamentos. — Com exceção da Bíblia que minha mãe me deixou, este será o único livro que pertencerá só a mim.
— Isso vai ser bom — respondeu ele, só para dizer alguma coisa, pois estava começando a sentir-se enjoado.
— Agora eu vou deixá-lo para que possa começar a pensar. Isso tudo é tão excitante! Você também não acha, Paul?
— Acho, Annie. Acho sim.
— Daqui a meia hora estarei de volta com um pedaço de peito de galinha, purê de batata e ervilha. E você tem sido tão bonzinho, que vou lhe dar um pouco de gelatina também. Trarei seu remédio na hora certa e, se você precisar, deixarei que tome uma cápsula a mais durante a noite. Quero fazer tudo para que durma bem e comece a trabalhar amanhã. Aposto como você vai melhorar muito mais rápido quando estiver trabalhando.
Annie foi até a porta e voltou-se. Levou a mão até os lábios e lhe soprou um beijo, numa cena ridícula.
Paul resistiu o quanto pôde, mas acabou encarando a máquina de escrever mais uma vez. Pousada sobre a cômoda, ela sorria. Olhar para aquela máquina era como olhar para um instrumento de tortura — estrapada, corda e roldana, que pairavam inertes, mas por alguns instantes apenas.
Acho que quando você terminar, você estará pronto para. . .pronto para se encontrar com pessoas outra vez.
Ah, Annie, você estava mentindo para mim e para você mesma. Eu percebi, e você percebeu também. Estava escrito nos seus olhos.
O limitado campo de visão que se abria agora à sua frente era dos mais desagradáveis: seis semanas de dores nas pernas, restabelecendo contato com Misery Chastain, nascida Carmichael, seguida de um rápido enterro no fundo do quintal. Ou quem sabe ela talvez oferecesse seus restos mortais para Misery, a porca? Haveria um pouco de justiça nisso, embora pudesse parecer algo mórbido.
Então não escreva o livro! Deixe que ela fique com raiva. Annie é como um frasco de nitroglicerina ambulante. Sacuda ela um pouco até explodir! Será melhor do que ficar aqui sofrendo.
Paul tentou se fixar nos Ms entrelaçados do teto, mas pouco depois já estava encarando a máquina outra vez. Em cima da cômoda, pesada, silenciosa e cheia de palavras que ele não queria escrever, ela lhe dirigia um sorriso em que faltava um dos dentes.
Não acho que você pense assim, meu velho amigo. Você ainda quer continuar vivo, mesmo que isto signifique sofrer. E mesmo se for preciso trazer Misery de volta, você o fará. Ou pelo menos tentará. Mas antes de tudo, você vai ter que aprender a lidar comigo. . . e eu não fui com a sua cara.
— Nem eu com a sua — murmurou Paul.
Dessa vez, ele tentou olhar para a janela, onde flocos de neve caíam. Mas sem ao menos dar conta de desviar os olhos, Paul percebeu pouco depois que encarava mais uma vez a máquina de escrever, num misto de atração e repulsa ao mesmo tempo.
Dessa vez, não foi tão doloroso sentar na cadeira, e isso era bom, pois a experiência anterior o deixara certo de que as tentativas futuras seriam tão dolorosas quanto a primeira.
Annie colocou a bandeja sobre a cômoda e trouxe a cadeira até a cama. Enquanto ela o ajudava a sentar, uma passageira onda de dor percorreu toda a região da bacia. Ela se debruçou para pegá-lo no colo e Paul pôde sentir por alguns instantes o pulsar das veias na garganta de Annie. Num gesto de repulsa, ele virou o rosto. Passando os braços firmemente por baixo das costas e das nádegas dele, Annie levantou-o pelos ares.
— Tente não mexer nada dos joelhos para baixo.
Dizendo isso, Annie o depositou na cadeira com a maior facilidade, como se colocasse um livro na única brecha existente numa estante. Annie era muito forte. Mesmo que ele estivesse em forma, uma briga entre os dois seria difícil. E no estado em que se encontrava, seria algo assim como Wally Cox contra Boom Boom Mancini.
Annie apoiou a placa de madeira nos braços da cadeira e foi até a cômoda apanhar o prato de comida.
— Viu como ela encaixa direitinho? — perguntou ela.
— Annie, queria lhe pedir um favor.
— O que é?
— Você poderia virar a máquina de escrever de modo que ela fique virada para a parede?
— Por que você quer que eu faça uma coisa dessas? — perguntou ela, franzindo as sobrancelhas.
— É só uma superstição que tenho. Sempre viro a máquina para a parede antes de começar a escrever um livro. Na verdade, faço isso todas as noites, antes de dormir.
— Entendo. É como não deixar o sapato virado de cabeça para baixo para a mãe da gente não morrer. Eu nunca deixo meus sapatos nessa posição.
Annie virou a máquina, que ficou a encarar o vazio da parede.
— Está melhor assim?
— Bem melhor.
— Você é tão bobinho!. . .
Annie aproximou-se e começou a lhe dar a comida na boca.
Paul sonhou que Annie Wilkes vivia no harém de um lendário califa árabe, tirando gênios e demônios de dentro de garrafas e voando sobre o reino num tapete voador verde e branco, com chapa do estado de Colorado. Annie passou próximo a ele, e Paul pôde ver os cabelos dela ao vento e os seus olhos brilhantes e atentos como os de um comandante de uma embarcação, navegando por entre imensos blocos de gelo flutuante.
Annie dizia:
Era uma vez. Era uma vez, há muitos e muitos anos. Nos tempos em que o avô de meu avô era apenas um menino. Esta é a história de como Um menino muito pobre. Quem me contou esta história foi um homem que. Era uma vez. Era uma vez.
Quando Paul acordou, Annie o estava sacudindo. Raios de sol invadiam o quarto e a neve parara de cair.
— Vamos, acorde, seu dorminhoco. Trouxe iogurte e um gostoso ovo cozido. Já é hora de trabalhar.
Paul olhou para o rosto animado de Annie e experimentou uma sensação nova e estranha: esperança. Sonhara que Annie Wilkes era Scheherazade. Finos tecidos envolviam seu corpo sólido e seus pés enormes calçavam sapatos pontudos, bordados de lantejoulas cor-de-rosa. Annie voava em seu tapete e entoava as frases mágicas que costumam abrir as melhores histórias.
Mas Annie não era Scheherazade. Ele era. E se o que ele escrevesse fosse bom o bastante, se ela protelasse sua morte só para saber como ia terminar a história, por mais que os instintos animais de Annie a impelissem para acabar com ele. . .
Ele não teria uma chance de escapar?
Paul olhou por cima dos ombros de Annie e percebeu que ela virara a máquina de escrever antes de acordá-lo. Ela lhe dirigia um sorriso resplandecente, onde faltava um dente. Era como se dissesse: É bom ter esperanças e é muito nobre querer lutar. Mas o destino já está traçado.
Annie empurrou a cadeira até a janela e pela primeira vez em semanas ele pôde sentir os raios de sol sobre a pele lívida e coberta de escaras. A sensação era de um prazer intenso e Paul sentiu-se agradecido. Ao passar o dedo na vidraça embaciada da janela, Paul experimentou uma sensação repousante e ao mesmo tempo melancólica, como a carta de um velho amigo.
Pela primeira vez em semanas — que lhe pareciam anos — ele pôde divisar uma paisagem diferente daquela inalterável que avistava de sua cama: o papel de parede azulado, a gravura do Arco do Triunfo e a folhinha com um interminável mês de fevereiro, estampando a figura de um menino deslizando pelas encostas de uma montanha em seu trenó. (Paul supunha que a imagem daquele menino com o gorro de lã na cabeça surgiria em sua cabeça todas as vezes que entrasse o mês de fevereiro, mesmo no caso dele ainda viver o bastante para presenciar a entrada de fevereiro por mais uns cinqüenta anos.) Paul olhava para este novo mundo tão extasiado quanto da primeira vez que fora ao cinema, ainda criança, e assistira a Bambi.
O horizonte ficava perto, o que era comum na região das montanhas Rochosas. A vista não ia muito além das montanhas altas e escarpadas. O céu era de um azul intenso, sem nuvens, e um verde tapete de florestas se estendia até a encosta da montanha mais próxima. Entre a casa de Annie e o início da floresta, Paul calculou que houvesse cerca de trinta acres de campo aberto, cobertos por uma camada de neve alva e brilhante. Seria impossível dizer se esses campos eram cultivados ou não. E essa vista que se decortinava à sua frente só era quebrada por uma única construção: um gracioso celeiro vermelho. Quando ele a ouvia falar de seus animais ou quando a via passar pela janela, toda empertigada e com uma expressão impenetrável no rosto, ele imaginava o celeiro como um barracão saído de um livro infantil com histórias de fantasmas: o telhado afundado pelo peso da neve caindo ao longo dos anos, as janelas empoeiradas e quebradas, algumas tapadas com pedaços de papelão, as portas compridas, soltas talvez, caindo para o lado de fora. A graciosa construção pintada de vermelho com arremates cor de creme parecia-se mais com uma garagem para cinco veículos construída por um rico fazendeiro. Próximo ao celeiro, havia um jipe Cherokee com uns cinco anos de uso, mas em muito bom estado. Ao lado do jipe, presa a um cavalete de madeira feito artesanalmente, via-se uma pá de trator limpar a neve. Bastaria que ela levasse o jipe cuidadosamente até a frente do cavalete para encaixar as pás no gancho que havia no chassi — o tipo de coisa perfeita para uma mulher que vivia sozinha e não contava com a ajuda de nenhum vizinho (Annie provavelmente não aceitaria nem um prato de costeletas de porco daqueles trapaceiros dos Roydmans, mesmo que estivesse morrendo de fome). A entrada estava limpa e sem neve (prova de que ela realmente utilizava a pá), mas Paul não podia ver a estrada, pois a casa cobria seu campo de visão.
— Vejo que gostou do meu celeiro.
Surpreso, Paul voltou-se para ela, mas o movimento súbito e impensado lhe causou uma onda de dor no que restara de sua canela e no punhado de carne saliente em que seu joelho se transformara. Sentia como se sua perna estivesse sendo espetada por finas agulhas, mas aos poucos a dor foi diminuindo.
Annie trazia uma bandeja nas mãos. Comida leve, comida de doente. . . mas seu estômago acordou na mesma hora. Quando ela chegou mais perto, Paul percebeu que ela usava sapatilhas brancas, como as de uma enfermeira.
— Ele é realmente muito bonito.
Ela colocou a bandeja na placa de madeira a sua frente, e puxou uma cadeira.
— Ora, ora. . . "Você é aquilo que aparenta", costumava dizer minha mãe. Eu mantenho o celeiro sempre limpinho para os vizinhos não falarem. Eles estão sempre procurando algum motivo para falar mal de mim. Por isso, tudo está sempre arrumadinho. . .Manter as aparências é algo muito importante. E o celeiro não me dá tanto trabalho assim, é só não deixar o serviço acumular. A parte mais detestável é tentar impedir que a neve destrua o telhado.
A parte mais detestável. Guarde mais essa pérola do vocabulário de Annie Wilkes para quando você for escrever as suas memórias — no caso de você ainda ter a oportunidade de escrever suas memórias. Guarde ainda "trapaceiro" e "ora, ora", além das muitas que ainda vão aparecer com o correr do tempo.
— Há dois anos atrás, Billy Haversham instalou umas fitas elétricas em todo o telhado. Basta ligar um interruptor e elas se aquecem, derretendo a neve. Mas acho que não vou usá-las neste inverno. Olhe só como a neve está derretendo naturalmente.
Paul ia levando uma garfada de ovo para a boca, mas parou no meio do caminho. Ao longo do telhado do celeiro formava-se uma fileira de pedaços compridos de gelo, que pingavam cada vez mais depressa, indo cair numa calha que se estendia na base da parede.
— Ainda não são nove horas e a temperatura já passou dos sete graus!
Annie parecia radiante, e Paul esperava que o pára-choque traseiro do seu Camaro também estivesse assim — radiante e brilhando ao sol, a medida que a neve derretia.
Paul largou o garfo no prato.
— Não vai querer a última garfada! Já está satisfeito?
— Sim, estou satisfeito.
Na sua cabeça surgiu a imagem dos Roydmans subindo a estrada de Sidewinder. Um brilho forte ofusca a vista da senhora Roydman e ela protege os olhos com uma das mãos.
— O que é aquilo?. . . Não vá dizer que estou ficando maluca, mas há alguma coisa ali embaixo. O reflexo foi tão forte que me cegou a vista! Dê marcha à ré. Quero dar uma olhada naquilo ali.
— Então deixe-me levar a bandeja para que você possa começar a trabalhar.
Annie lhe dirigiu um olhar caloroso e desabafou;
— Você nem pode imaginar como estou animada, Paul!
Annie foi embora e o deixou na cadeira. Paul ficou contemplando os pingos de gelo derretendo e caindo na calha que se estendia ao longo da parede.
— Se fosse possível, eu gostaria de um tipo de papel diferente — pediu Paul, quando Annie retornou ao quarto para colocar a máquina na placa de madeira.
— Você não quer esse papel? — perguntou ela, apontando para o pacote embrulhado em papel celofane. — Mas esse é o mais caro que existe! Eu me certifiquei quando fui comprá-lo na Paper Patch.
— Sua mãe nunca lhe disse que o mais caro nem sempre é o melhor?
Annie franziu as sobrancelhas e sua defensiva inicial transformou-se em indignação. Paul adivinhou que a raiva de Annie estava a caminho.
— Não, minha mãe nunca me disse isso, seu espertinho. O que ela me disse foi que quando você paga pouco não compra nada que preste.
Paul sabia agora que o clima dentro de Annie era algo parecido com a primavera do meio-oeste: ela era uma mulher cheia de furacões prestes a irromper; se nesse momento ele fosse um agricultor e olhasse para um céu igual ao rosto de Annie, Paul sairia correndo e esconderia a família e os animais no abrigo do porão. Annie estava pálida, as narinas respiravam ruidosamente como as de um animal farejando fogo, e ela abria e fechava as mãos, como se pretendesse esmagar punhados de ar.
Sua dependência e vulnerabilidade em relação a Annie o advertiam para voltar atrás e apaziguar o ânimo dela enquanto havia tempo — se é que ainda havia tempo —, e fazer como as tribos nos romances de Rider Haggard, que ofereciam sacrifícios para sua deusa quando ela se enfurecia.
Mas havia nele uma outra parte, mais astuta e menos intimidada, que o lembrava a cada instante que ele não poderia representar o papel de Scheherazade se bancasse o amedrontado e conciliador toda vez que ela explodisse. Se agisse assim, ela acabaria explodindo cada vez com mais freqüência. Se você não tivesse uma coisa que ela quisesse tão terrivelmente, essa parte sua raciocinava, ela o teria levado para um hospital ou o teria matado há muito tempo, para proteger-se dos Roydmans — por que para ela, o mundo estava cheio de Roydmans; para ela, eles estavam escondidos atrás de cada arbusto. Se você não tomar a iniciativa nesse exato momento, Paulie, nunca mais será capaz de fazê-lo.
Annie estava ainda mais ofegante e suas mãos abriam e fechavam num ritmo alucinante. Paul percebeu que ela avançaria sobre ele em questão de segundos.
Reunindo toda a coragem que ainda lhe restava e tentando desesperadamente acertar o tom exato para demonstrar a mais casual irritação, ele disse:
— Você pode muito bem parar com isso; ficar furiosa não muda em nada a situação.
Annie ficou paralisada, como se tivesse levado uma bofetada.
— Eu não estou tentando enganá-la, Annie — frisou ele, com toda a paciência.
— Está, sim. Você não quer escrever o meu livro e fica arrumando desculpas para não começar. Sabia que você ia fazer isso, Paul. Mas não vai adiantar nada!
— Isso que você está dizendo é uma bobagem. Por acaso eu disse que não ia começar?
— Não. . . mas. . .
— Pois bem, eu vou começar. Venha até aqui que eu vou lhe mostrar uma coisa, vou lhe mostrar qual é o problema. E traga aquele potinho Webster, por favor.
— Trazer o quê?
— Aquele potinho com lápis e canetas. Na redação dos jornais eles são chamados de potes Webster, em homenagem a Daniel Webster.
Paul inventara aquela história impulsivamente, mas ela surtiu o efeito desejado: Annie pareceu mais confusa do que nunca, perdida num termo específico, que desconhecia, e seu ódio não só se difundiu, como diminuiu. Ele percebeu que ela não se sentia nem mais no direito de ficar com raiva.
Annie largou o pote de canetas sobre a tábua. Meu Deus! Eu venci! Não, não fui eu. Foi Misery! Misery venceu!
Mas não havia sido Misery, Scheherazade. Scheherazade havia vencido.
Annie ia fazer uma pergunta, mas Paul a interrompeu:
— Preste atenção.
Paul apanhou uma folha no pacote e traçou duas linhas paralelas, uma a lápis e outra a caneta. Em seguida, esfregou o dedo polegar sobre as linhas, deixando um rastro na direção que o dedo corria.
— Viu só?
— Viu o quê?
— A tinta da máquina também vai manchar. Não tanto quanto a mancha deixada pelo lápis, mas muito pior do que a da caneta.
— E você pretende ficar aí sentado e esfregar cada folha com o polegar?
— Só das folhas roçarem umas nas outras por um período de semanas, dias talvez, já será o bastante para elas ficarem borradas. E eu quando escrevo um livro costumo manusear muito as folhas, procurando um nome ou uma data escritos anteriormente. Por Deus, Annie, uma das primeiras coisas que a gente aprende quando entra para esse negócio é que os editores detestam livros escritos nesse papel, tanto quanto detestam folhas escritas a mão.
— Não fale dessa maneira. Detesto quando você se refere a isso desse jeito.
Paul a olhou sem entender nada.
— Chamar o que, de que jeito?
— O talento que Deus lhe deu. Você se desmoraliza quando se refere a seus livros como um negócio, e eu detesto quando faz tal coisa.
— Desculpe-me.
— Assim você age como uma prostituta — afirmou Annie, impassível.
As coisas não são assim, Annie, pensou ele, tomado de raiva. Eu não sou como uma prostituta. Carros velozes era uma história de como deixar de se prostituir. E foi por esse motivo que resolvi acabar de vez com aquela cadela da Misery. Eu estava a caminho da costa oeste justamente para comemorar minha liberdade, por ter deixado de ser uma prostituta. E você não fez nada além de me tirar do carro capotado e me trazer de volta para o bordel. Faço por dois dólares; mas se quiser que eu a enlouqueça de prazer, serão quatro dólares! Volta e meia eu vejo um brilho em seu olhar e sinto que você sabe muito bem disso. Um júri pode não condená-la alegando insanidade, mas não eu, Annie. Comigo não cola.
— Essa é uma boa questão. Agora, voltando ao papel. . .
— Eu vou comprar a porcaria de papel que você quer — disse ela, irritada. — Me diga qual é a marca e eu vou buscar.
— Contanto que você compreenda que eu estou do seu lado. . .
— Não me faça rir. Ninguém nunca ficou do meu lado desde a morte de minha mãe, há vinte anos atrás.
— Acredite em mim se quiser, Annie. Se você é tão insegura de si mesma que não compreende o quanto me sinto agradecido por ter me salvado a vida, é problema seu.
Paul a observava atentamente e percebeu, mais uma vez, que os olhos dela brilharam. Annie estava em dúvida, queria acreditar nele. Bom. Muito bom. Ele lhe dirigiu o olhar que imaginava aparentar toda sinceridade possível, ao mesmo tempo em que via a si mesmo cortando as veias da garganta de Annie, as veias que mantinham em funcionamento um cérebro doentio.
— Pelo menos você deveria acreditar que eu estou a favor do livro. Você fez um comentário a respeito da encadernação. Você está pretendendo encadernar o livro, não?
— Exatamente.
É claro que você mesma vai encaderná-lo. Por que se você aparecesse com esse manuscrito numa tipografia alguém poderia levantar suspeitas. Você pode ser ingênua, mas não tão ingênua assim. Paul Sheldon está desaparecido. E se o tipógrafo se lembrar de ter aceito uma encomenda do tamanho de um livro, e que ainda por cima era protagonizada pelo mais conhecido personagem de Paul Sheldon ? E se ele se lembrar das instruções dadas por você? Instruções tão categóricas que nenhum tipógrafo se esqueceria: uma única cópia de um manuscrito tão grande que dava para fazer um livro.
Uma única cópia.
Como ela era, seu guarda? Bem, era uma mulher avantajada, parecia uma deusa de pedra descrita nos livros de H. Rider Haggard. Só um minutinho. . . eu tenho o nome e o endereço dela nos arquivos, deixe-me apenas encontrar a cópia da fatura. . .
— Também não tenho nada contra. Um manuscrito encadernado pode ficar muito bonito, se a edição for boa. Mas eu acho que um livro deve ser feito para durar bastante tempo. Se eu o escrever neste papel, Annie, daqui a uns dez anos, ou menos, você não terá nada além de um punhado de páginas borradas. Isto é, a não ser que você guarde o livro na estante e não mexa muito nele.
Mas ela não faria uma coisa dessas, não é mesmo? Claro que não. Annie ia querer abrir o livro todos os dias, a toda hora, talvez. Ia tirá-lo da estante e devorá-lo
Annie lhe dirigiu um olhar estranho e implacável. E ele não gostou nem um pouco daquele olhar, um olhar tão ostensivamente contrariado. Paul começou a ficar nervoso. Ele já conhecia a ira de Annie, mas nesse olhar havia algo de novo, uma expressão bronca e um pouco infantil.
— Você não precisa falar mais nada. Eu já disse que vou buscar o papel. Como é o nome?
— Vá a essa loja onde você esteve. . .
— Paper Patch.
— Isso mesmo, vá até a Paper Patch e peça duas resmas — cada resma corresponde a um pacote com quinhentas folhas. . .
— Sei muito bem o que é uma resma. Eu não sou burra, Paul.
— Eu sei disso.
Paul estava ficando cada vez mais nervoso. Suas pernas estavam começando a incomodar e, como estivesse sentado há quase uma hora, sua bacia também estava incomodando.
Fique calmo. Pelo amor de Deus, não ponha a perder o que você já conseguiu.
Mas eu consegui alguma coisa? Ou isso é apenas fruto da minha imaginação?
— Peça a eles duas resmas de papel branco para mimeógrafo. Hammermill Bond é uma boa marca, Traid Modern também. As duas resmas desse tipo de papel lhe custarão menos que esta única resma. Creio que elas darão para fazer todo o trabalho, o rascunho e o original.
— Vou até lá agora mesmo — disse Annie, levantando-se.
Paul a olhou aterrorizado. Annie pretendia sair sem lhe dar o remédio e, ainda por cima, ia deixá-lo sentado. As dores já estavam começando; imagine só como estariam fortes quando ela retornasse, por mais rápido que ela fosse.
— Você não precisa ir lá agora — interveio ele, rapidamente. — Este papel serve muito bem para começar o trabalho. Afinal de contas, eu terei que passar tudo a limpo. . .
— Só uma pessoa tola começaria um trabalho com uma ferramenta inadequada.
Dizendo assim, Annie passou a mão no pacote, apanhou a folha de papel que ele rabiscara, amassou-a com força e jogou-a na cesta de lixo. O mesmo olhar implacável e obstinado tomou conta do rosto de Annie, como uma máscara. Seus olhos brilhavam como duas moedas de fogo.
— Eu vou à cidade agora. Sei que você está ansioso para começar a trabalhar, já que está do meu lado. — Annie frisou as últimas palavras com uma forte dose de sarcasmo. (Paul julgava ser muito mais raiva de si mesma do que outra coisa.) — Sendo assim, não vou nem me dar ao trabalho de colocá-lo de volta na cama.
Annie abriu um sorriso e seus lábios lembraram a ele os lábios de um animalzinho de estimação. Ela se aproximou dele em seus silenciosos sapatos de enfermeira e passou a mão em seus cabelos. Paul recuou. Não queria fazer tal movimento, mas não conseguiu evitar. Annie sorriu ainda mais.
— Suponho que tenhamos que adiar o inicio de A volta de Misery por um dia ou dois, talvez mesmo três. . . Acho que você vai levar uns três dias para conseguir se sentar de novo. As dores são fortes. . . Eu tinha colocado uma garrafa de champanhe no congelador, mas estou vendo que ela vai voltar para a despensa. . .
— Annie, eu posso começar o trabalho, é só você. . .
— Não, Paul.
Annie foi até a porta e voltou-se. Em seu rosto, a mesma expressão implacável, dura como pedra.
— Antes de ir, gostaria de lhe dizer uma coisa, para que você possa refletir. Sei que pareço uma pessoa burra e tola, e é normal que você pense que pode me enganar. Mas eu não sou tola, Paul, nem muito menos burra.
Subitamente, o rosto de Annie se transformou. Por trás da máscara de pedra surgiu a fisionomia de uma criança colérica e fora de si. Por alguns segundos, Paul julgou que seu próprio medo o mataria. Ele ainda julgava ter levado vantagem sobre ela? Que vantagem? E alguém lá podia fazer o papel de Scheherazade quando o carcereiro era maluco?
Annie investiu para cima dele, com passadas firmes, joelhos arqueados e os braços balançando ao longo do corpo. Os grampos que prendiam o cabelo de Annie caíram pelo chão e mechas lhe caíram pelo rosto. Sua passagem não era mais silenciosa. Annie parecia o gigante Golias invadindo o vale dos Ossos. Presa à parede, a gravura do Arco do Triunfo gemeu de medo.
— Yah! — gritou ela, dando um soco no punhado de carne saliente que restava do joelho esquerdo de Paul Sheldon.
Paul jogou a cabeça para trás, soltando um uivo de dor, e as veias de seu pescoço e testa saltaram. Todo o seu corpo tremia de dor.
Annie levantou a máquina de escrever como se fosse uma caixa de papelão vazia e a colocou na cômoda.
— Fique aí sentado — disse ela com um sorriso nos lábios —, e pense bem sobre quem é que manda aqui. Pense bem em tudo o que posso fazer para machucá-lo caso tente me enganar ou caso se comporte mal. Fique aí e grite o quanto quiser, porque ninguém pode ouvi-lo. Ninguém nunca aparece por aqui porque todos sabem que Annie Wilkes é maluca, todos sabem do que ela foi capaz, mesmo que eles a tenham julgado inocente.
Ela foi até a porta e voltou-se. Antecipando outro ataque, Paul soltou um grito. Annie riu ainda mais.
— E vou lhe dizer mais uma coisa — disse ela, com ternura — Eles acham que eu consegui escapar impune, e eles estavam certos. Pense nisso, Paul. Pense bem no que eu disse, enquanto vou até a cidade comprar a porcaria de papel que você quiser.
Annie bateu a porta com força e a casa inteira tremeu. Logo depois ele ouviu a chave rodando na fechadura.
Paul recostou-se na cadeira, tentando fazer o corpo parar de tremer, porque isto aumentava ainda mais a dor. Lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Repetidas vezes, ele a viu voando para cima dele; repetidas vezes, ele a viu descendo a mão com toda força no que restara de seu joelho; repetidas vezes ele sentiu o impacto terrível da pancada.
— Meu Deus, por favor. . . — gemeu ele, ouvindo-a ligar o jipe —, livre-me disso ou acabe comigo de uma vez. . . mate-me logo ou livre-me. . .
O ruído do motor foi diminuindo e Deus não fez nem uma coisa nem outra. E Paul ficou onde estava, tomado de dor e lágrimas.
Mais tarde, Paul imaginou que as pessoas — com sua injustiça infalível — viessem provavelmente a julgar o que ele fez em seguida como um ato de heroísmo. E ele as deixaria pensar assim, porque estava fazendo apenas uma última e hesitante tentativa de sobreviver.
Imaginou até que parece ouvir um daqueles ardorosos comentaristas esportivos — Howard Cosell, Warner Wolf ou, talvez, o mais impetuoso de todos, Johnny Most — descrevendo as cenas que se seguiram. Os seus esforços para chegar até o estoque de remédios de Annie, antes que a dor o matasse, transformaram-se num tipo diferente de esporte, uma substituição experimental do Monday Night Football, talvez. Como poderíamos chamar a essa nova modalidade de esporte? Corrida para a droga?
"Mal posso acreditar na coragem que esse menino está demonstrando hoje!", dizia, entusiasmado, o comentarista imaginário na cabeça de Paul Sheldon. "Duvido que qualquer um de vocês aqui presentes no estádio Annie Wilkes — ou qualquer um de nossos telespectadores — acreditasse que ele conseguiria mover aquela cadeira depois da agressão que levou! Mas lá está ele. . . A cadeira está se mexendo! Vamos conferir no replay!"
Gotas de suor lhe escorriam pela testa e pingavam nos olhos. Paul passou a língua nos lábios e sentiu um gosto salgado, mistura de lágrimas e suor. Seu corpo não parara de tremer e a dor era insuportável.
Chega um ponto em que a discussão sobre a própria dor se torna supérflua. Ninguém no mundo imagina que uma dor como essa possa existir! Ninguém! É como se o corpo estivesse possuído por um demônio!
A única coisa que o empurrava para frente era a lembrança das cápsulas de Novril que ela guardava em algum lugar da casa. O quarto trancado a chave. . . a possibilidade do remédio não ser guardado no banheiro do andar inferior como ele imaginava e, sim, escondido em alguma parte. . . o risco que corria com a chegada inesperada de Annie. . . nada disso importava, comparado à intensidade da dor. Cada problema teria que ser solucionado em seu devido tempo, caso contrário ele morreria ali mesmo. Isso era tudo.
Paul sentia como se pregos quentes lhe estivessem sendo enfiados nas pernas, e o movimento só fez aumentar a sensação de quentura. Mas a cadeira andou. Pouco a pouco, ela começou a deslizar.
Depois de arrastar a cadeira por cerca de um metro, ele percebeu que estava na direção do canto do quarto; era preciso girar a cadeira.
Com o corpo tremendo, Paul segurou a roda direita e (pense nas cápsulas, pense apenas no alívio das cápsulas) empurrou-a com força, mas a cadeira apenas rangeu com o atrito da borracha nos tacos de madeira. Paul tentou novamente, primeiro com força e em seguida sem tanta intensidade. Seus músculos estavam flácidos como geléia, mas dessa vez ele conseguiu fazer a manobra.
Segurando nas duas rodas, Paul deu um impulso e conseguiu fazer a cadeira deslizar por pouco mais de um metro. Mas ao parar para endireitar o corpo, Paul esmoreceu.
Cinco minutos mais tarde, ele pareceu voltar a realidade, ao ouvir a instigante voz do comentarista: "Ele vai tentar novamente! Eu mal posso acreditar na coragem desse Paul Sheldon!"
Uma parte de sua mente reconhecia a presença da dor, mas uma outra parte dirigiu o seu olhar para o chão, perto da porta, onde caíra um dos grampos que prendiam o cabelo de Annie. Paul arrastou-se até a porta e abaixou-se, mas as pontas dos dedos não chegaram até o chão. Paul mordeu os lábios. Gotas de suor escorriam pelo seu rosto, encharcando o pijama.
"Eu não acredito que ele vá conseguir apanhar aquele grampo, meus amigos; ele está se esforçando ao máximo, mas não acredito que ele consiga."
Talvez não.
Tentando ignorar a dor — uma pressão forte e parecida com a de um dente incluso — ele foi se inclinando pouco a pouco para o lado direito. Paul gemia alto, mas como Annie o prevenira, ali no havia ninguém para ouvir seus gritos.
Por muito pouco as pontas dos dedos não tocaram no grampo caído no chão; sua pele estava tão esticada com essa posição, que ele teve a nítida impressão de que ela ia romper-se e que suas entranhas iam jorrar para longe.
Meu Deus, por favor me ajude
Apesar da dor Paul abaixou-se mais uma vez, mas seus dedos tocaram no grampo apenas de leve empurrando-o para o lado. Ainda curvado para o lado direito ele deixou-se escorregar na cadeira. Paul deu um grito de dor. De olhos arregalados, boca entreaberta e língua para fora — gotas de saliva pingavam pelo chão —, Paul fez outra tentativa... imprensou o grampo entre os dedos. .. pegou-o... quase o perdeu. . . segurou-o firme na mão.
Voltar à posição inicial causou-lhe uma forte onda de dor e Paul; muito ofegante, apoiou a cabeça no desconfortável encosto da cadeira. À sua frente, o grampo, em cima da placa de madeira. Por alguns instantes, Paul pensou que ia vomitar, Mas o enjôo acabou passando.
O que você está esperando?, resmungou uma voz dentro dele. Está esperando a dor passar? Mas ela não vai passar! Annie vive falando da mãe dela, mas a sua mãe também costumava lhe dizer certas coisas, não?
É, ela dizia, sim.
Sentado na cadeira — a cabeça caída para trás, o rosto molhado de suor, os cabelos colados na testa — Paul recitou um dos ditados que sua mãe costumava dizer, como se invocasse poderosas palavras mágicas: "A preguiça é a mãe de todos os vícios."
Pois então, o que você está esperando, Paulie? trate de fazer alguma coisa antes que aquele insuperável peso-pesado apareça.
Paul começou a arrastar a cadeira outra vez, em direção à porta. Ele sabia que ela estava trancada, mas achava que poderia abri-la. Tony Bonasaro, que no momento nada mais era do que um monte de cinzas escuras, havia sido um ladrão de carros. Na fase de pesquisa para escrever Carros velozes, Paul contara com a ajuda de um corajoso e ousado ex-policial chamado Tom Twyford e ele o colocara a par dos diversos artifícios usados por ladrões de carro. Tom o ensinara a fazer ligação direta, a arrombar portas utilizando um pedaço de arame fino e maleável, apelidado pelos ladrões de 'Slim Jims', e a desligar alarmes contra roubo.
Vamos supor que você não queira roubar um carro — dissera-lhe Tom há cerca de dois anos e meio, num lindo dia de primavera, em Nova Iorque — Você já tem o carro, mas está sem gasolina. Você arranja uma mangueira, mas o carro que escolhe para abastecer o seu tem uma tranca na entrada do tanque. Isto é problema? Não, não é. Essas trancas são super vagabundas. Tudo o que você precisa é de um grampo de cabelo.
Paul levou cinco intermináveis minutos tentando posicionar a cadeira no lugar ideal, a roda esquerda quase encostada na porta.
A fechadura era antiga e sem brilho, e lembrou a Paul os desenhos de John Tenniel no livro Alice no País das Maravilhas. Soltando um gemido, Paul ajeitou-se na cadeira e olhou pela fechadura: um pequeno corredor levava até a sala de estar, onde se via um tapete vermelho-escuro, um antiquado sofá estofado com um material semelhante ao tapete e um abajur com desenhos no quebra-luz. Na metade do corredor, à esquerda, havia uma porta entreaberta. O coração de Paul disparou. Tinha certeza que aquele devia ser o banheiro do andar inferior — Paul percebera que Annie trazia água de algum lugar próximo (incluindo a vez em que ela enchera o balde com a água que ele bebera com tanta sofreguidão) — e não era ali que ela passava antes de lhe trazer o remédio? Achava que sim.
Paul apanhou o grampo, mas ele escorregou, indo parar na borda da placa de madeira.
— Não!
Paul soltou um grito rouco e amparou o grampo antes que ele caísse. Segurando-o na mão fechada, Paul deixou-se ficar onde estava, desanimado.
Embora não pudesse afirmar com certeza, dessa vez ele pareceu ter se desligado por um espaço maior de tempo. Com exceção da dor profunda no joelho esquerdo, ele julgou que o resto de suas pernas não estivesse doendo tanto. Cuidadosamente, Paul segurou o grampo.
Agora, pensou ele, desdobrando o grampo, você não vai tremer nem um pouco. Ponha isso na cabeça: você não vai tremer nem um pouquinho!
Paul introduziu o grampo no buraco da fechadura. Na sua mente (Tão vívida!) surgiu a voz do comentarista esportivo descrevendo a cena.
O suor lhe escorria pelo rosto já molhado. Paul colou o ouvido na porta, ouvindo. . . mais do que isso, sentindo. . .
O volteador de uma fechadura barata é parecido com o arco de uma cadeira de balanço — dissera-lhe Tom, ao mesmo tempo em que fazia um movimento com as mãos para demonstrar o que dizia. — Você quer virar uma cadeira de balanço ? É a coisa mais fácil do mundo, certo? Tudo o que tem a fazer é segurar o arco, empurrá-lo com força e a vovozinha voa pelos ares. . . E isso é tudo o que você tem a fazer com uma fechadura barata. Levante o volteador e puxe a porta, antes que ele volte ao lugar.
Paul conseguira puxar o volteador por duas vezes, mas o grampo escorregara de sua mão e ele voltara à posição inicial. O grampo estava ficando cada vez mais torto e Paul achou que ele se partiria no meio se tentasse mais duas ou três vezes.
— Meu Deus, por favor. — murmurou ele, introduzindo o grampo mais uma vez no buraco da fechadura. — Por favor, meu Deus. Dê uma chance aqui ao rapaz; isso é tudo o que eu peço.
("Meus amigos, Paul Sheldon se comportou hoje como um herói, mas esta tem que ser uma última tentativa. Todos assistem em silêncio. . .")
Paul fechou os olhos e a voz do comentarista foi diminuindo. Ansioso, ele esperava ouvir o estalido do volteador. Agora! Ele sentia a pressão do volteador no grampo! Paul podia vê-lo — tão parecido com o arco de uma cadeira de balanço! — segurando a lingüeta da fechadura, prendendo-a no lugar, prendendo-o em seu lugar.
Elas são super vagabundas, Paul, fique calmo.
Mas era difícil manter a calma quando se está morrendo de dor.
Paul passou a mão esquerda por baixo do braço direito e segurou na maçaneta, ao mesmo tempo em que empurrava o volteador só mais um pouquinho. . . só mais um pouquinho. . .
Em sua mente, ele imaginou o volteador se mexendo dentro da fechadura empoeirada, imaginou a lingüeta se abrindo. . . Não é necessário empurrar muito, não, por Deus, não! Não é necessário virar a cadeira de balanço, para usarmos a metáfora de Tom Twyford. No instante exato que ele desimpedir a lingüeta. . . abra a porta. . .
O grampo estava entortando e escorregando de suas mãos. Desesperado, Paul empurrou o máximo que pôde e virou a maçaneta. Ele ouviu um estalido e o grampo partiu-se ao meio, metade dele indo perder-se dentro da fechadura. . . Paul permaneceu imóvel, contemplando o seu fracasso quando, subitamente, percebeu que a porta se abria.
— Meu Deus, muito obrigado! — murmurou.
Vamos conferir no replay!, exclamou Warner Wolf. No estádio Annie Wilkes a multidão delirava, sem falar nas comemorações dos milhões de telespectadores, em suas casas.
— Ainda não é hora de comemorar, Warner — retrucou ele, começando a demorada tarefa de posicionar a cadeira de frente para a porta.
Paul experimentou um instante terrível — terrível, não; apavorante, medonho — quando percebeu que a cadeira talvez fosse grande demais para passar pela porta. Foi por isso que Annie trouxe a cadeira dobrada, pensou ele, com tristeza.
Mas ele conseguiu passar, não sem dificuldade. Colocando-se bem ao centro da passagem, Paul inclinou-se para a frente e agarrou-se nos portais, para tomar impulso. O eixo das rodas arranhou a madeira, mas ele conseguiu passar.
E Paul desfaleceu pela terceira vez.
Uma voz chamava por ele. Paul abriu os olhos e viu Annie apontando-lhe um revólver. Os olhos dela brilhavam de fúria e os dentes reluziam, cobertos de saliva.
— Se você precisa tanto assim de liberdade, Paul, eu fico orgulhosa de concedê-la a você.
Dizendo isso, Annie puxou o gatilho.
Paul recuou, esperando o tiro. Mas Annie não estava ali, é claro. Paul estava apenas imaginando.
É um aviso. Annie pode chegar a qualquer momento. A qualquer momento.
A intensidade de luz que vinha da porta entreaberta tornara-se ainda maior, e Paul calculou que fosse quase meio-dia. Queria ouvir as badaladas do relógio para ter noção do tempo, mas este se recusava a bater.
Ela ficou cinqüenta e uma horas fora da outra vez.
Foi isso mesmo. E desta vez pode ficar umas oitenta. Ou então, você pode escutar o jipe se aproximando daqui a cinco minutos. Caso você não saiba, meu amigo, o serviço de meteorologia consegue detectar a aproximação de um vendaval, mas jamais consegue dizer o lugar e a hora exatos em que ele vai irromper.
— É verdade — murmurou Paul, empurrando a cadeira na direção do banheiro.
Ao se aproximar, Paul divisou um cômodo simples, com azulejos brancos de formato hexagonal cobrindo o chão. Havia uma banheira antiga, daquelas apoiadas sobre pés, e das duas torneiras saía um comprido rastro de ferrugem. Ao lado, via-se um armário e, na parede em frente, ficavam a pia e um pequeno armário para remédios.
O balde de plástico amarelo encontrava-se dentro da banheira — Paul podia ver sua borda.
O banheiro era grande o bastante para ele entrar e fazer a manobra da cadeira, mas seus braços estavam exaustos. Paul sempre fora um menino franzino e, depois de adulto, tentara cuidar bem de si mesmo. Mas seus braços não passavam agora de braços de um aleijado, e o menino franzino que ele fora um dia estava de volta. Todas as horas que ele gastara correndo, fazendo exercícios e musculação de nada haviam adiantado.
A porta do banheiro, pelo menos, era mais larga que a do quarto, e foi bem mais fácil passar por ela. Paul esbarrou no batente da porta e a cadeira deslizou suavemente sobre os azulejos do chão. Ele sentiu um cheiro forte, que associou imediatamente a hospitais e que julgou ser Lysol. Como suspeitava, não havia ali nenhum vaso sanitário. O barulho da descarga vinha sempre do andar superior, e era esta mesma descarga que ele ouvia quando usava a comadre e Annie a levava para fora do quarto. Ali havia apenas a banheira, a pia e o armário que estava com a porta aberta.
Paul deu uma olhadela nas pilhas de toalhas azuis bem arrumadas — ele já as conhecia, Annie o enxugava com elas — e virou-se para o armário de remédios que ficava acima da pia.
Fora de seu alcance.
Por mais que ele se esticasse, seus dedos não chegariam a tocar no armário. Paul sabia disso, mas tentou assim mesmo, incapaz de conceber que o destino, Deus, ou "quem quer que fosse" pudesse ser tão cruel com ele. Era como um jogador de futebol correndo desesperadamente atrás de uma bola que jamais conseguiria alcançar.
Paul abaixou o braço, soltou um gemido e recostou-se na cadeira, ofegante. Ao sentir que ia desfalecer outra vez, Paul tentou se animar, procurando algo com que pudesse alcançar o armário. A um canto do banheiro, avistou um esfregão de cabo azul.
Vai querer usar isso? Vai mesmo? É, era isso mesmo o que esperava de você. Abrir o armário e deixar cair um monte de remédios na pia. E como todo mundo tem pelo menos um vidrinho de Listerine ou Scope em casa, você vai acabar quebrando-os. E como é que você pretende colocar tudo de volta no lugar? E o que vai acontecer quando ela chegar e descobrir a bagunça que você fez, hein?
— Eu direi a ela que foi Misery — resmungou ele. — Ela derrubou os vidros quando veio procurar um remédio que lhe trouxesse de volta a vida.
Paul começou a chorar, mas mesmo através das lágrimas continuou procurando por alguma coisa, tentando ter alguma idéia, encontrar uma saída.
Ao olhar pela segunda vez para o armário das toalhas, porém, Paul arregalou os olhos e sua respiração quase parou.
Da primeira vez, ele passara os olhos muito superficialmente na prateleira cheia de lençóis, fronhas e toalhas. Agora, seus olhos pairavam no chão do armário, onde havia inúmeras caixas de papelão estampando rótulos tais como UPJOHN, lilly e CAM Pharmaceuticals.
Paul girou a cadeira rapidamente, sem se importar com a dor que sobreveio.
Meu Deus, eu te peço por favor que nessas caixas não esteja apenas o estoque extra de xampus e tampões ou retratos da velha santíssima e adorada mãe de Annie. . .
Paul tateou uma das caixas, puxou-a e a abriu. Nada de xampus ou amostras de produtos Avon. Longe disso. Ali havia uma infinidade de caixas de remédio, amostras grátis em sua maioria, além de uma enorme quantidade de cápsulas e pílulas coloridas dos mais diversos tipos e tamanhos, soltas e sem invólucro. Paul conhecia algumas delas — Motrim e Lopressor, remédios para hipertensão, que seu pai tomara nos últimos três anos de vida. As outras, porém, ele não fazia a menor idéia para que serviam.
— Onde está o Novril?! — murmurou ele, mexendo avidamente na caixa. O suor não parava de escorrer pelo seu rosto e suas pernas latejavam e doíam.
Nada de Novril. Paul fechou a caixa e empurrou-a de volta para o lugar, sem se preocupar muito em recolocá-la exatamente na mesma posição. Isso não faria a menor diferença. Aquilo era apenas um amontoado de remédios malditos. . .
Paul inclinou-se e conseguiu puxar uma segunda caixa; ao abri-la, ele mal acreditou no que viu.
Darvon. Darvocet. Darvon Composto. Morphose e Complexo Morphose. Librium. Valium. E Novril. Dúzias e mais dúzias de caixas de amostra grátis. Caixas adoráveis, caixas queridas. Santíssimas e adoradas caixinhas. Paul abriu uma delas e pôs os olhos nas cápsulas que Annie lhe dava a cada seis horas.
NÃO PODE SER ADMINISTRADO SEM PRESCRIÇÃO MÉDICA, dizia a caixa.
— Ó meu Deus, muito obrigado pelo doutor estar bem aqui! - murmurou ele, entre soluços.
Paul abriu o invólucro com os dentes e engoliu três cápsulas ao mesmo tempo, ignorando o gosto amargo que elas deixavam na boca. Por alguns instantes, Paul ficou olhando para as cinco que restaram no invólucro entreaberto, e decidiu tomar uma quarta.
Com o rosto abaixado, Paul olhou rapidamente à sua volta, entre atento e assustado. Sabia que ainda era muito cedo para sentir o efeito do remédio, mas de algum modo ele já o sentia. O simples fato de ter as cápsulas para tomar parecia mais importante do que tomar o remédio pura e simplesmente. Era como se agora tivesse o controle da lua e das marés, como se houvesse lutado e conseguido o que queria. Este era um pensamento estranho e intenso, mas também aterrador e que tinha uma nota de culpa e de heresia.
Se ela chega agora. . .
— Muito bem, eu já entendi.
Paul deu uma olhadela na caixa, tentando calcular quantas embalagens de Novril ele poderia carregar sem que ela percebesse que um ratinho chamado Paul Sheldon estivera roendo o seu queijo. . .Paul soltou uma gargalhada de alívio e compreendeu que o remédio não estava atuando apenas nas suas pernas. Para usarmos um termo vulgar, Paul estava completamente doidão.
Mexa-se, seu tonto. Não há tempo para ficar curtindo onda.
Paul apanhou cinco caixas, um total de quarenta cápsulas, refreando seus instintos em levar algumas a mais. Em seguida, revolveu as caixas e vidros de remédio que restaram, esperando que ficassem mais ou menos na posição em que os encontrara, e empurrou a caixa de volta ao lugar.
Um carro se aproximava.
Paul se empertigou e abriu bem os olhos, agarrando as rodas da cadeira, em pânico. Se fosse Annie, ele estava perdido. Não seria capaz de manobrar a cadeira enorme e desengonçada de volta para o quarto antes dela entrar. Talvez conseguisse acertar Annie com o cabo do esfregão antes que ela torcesse seu pescoço como se faz com uma galinha.
Sentado na cadeira, as pernas esticadas e as caixas de Novril no colo, Paul esperava para ver se o carro entraria ou seguiria em frente.
O barulho do motor aumentou cada vez mais. . . e foi diminuindo.
Muito bem. Você precisa de outro aviso, Paul?
Para falar a verdade, ele não precisava. Paul deu uma última olhadela nas caixas. Elas pareciam estar exatamente na mesma posição, mas ele não podia garantir, pois as vira por trás do nevoeiro de dor. Ele sabia, porém, que elas não poderiam estar assim tão desarrumadas como lhe pareceu a princípio. Como todos os neuróticos, Annie tinha os sentidos aguçados e devia saber a posição exata de cada uma daquelas caixas. Bastaria que olhasse de relance para descobrir, de alguma maneira misteriosa, que alguém estivera mexendo ali. Paul, entretanto, não sentiu medo, mas resignação. Ele precisara do remédio e conseguira escapar do quarto para buscá-lo. Se houvesse castigos, ele agüentaria as conseqüências, pois não lhe restara nenhuma alternativa a não ser o que acabara de fazer. E de tudo o que Annie já fizera com ele, a resignação era o sintoma da pior delas: Annie o transformara num animalzinho massacrado pelas dores e sem nenhuma opção mais digna de vida.
Paul foi empurrando a cadeira para trás, olhando de vez em quando para ter certeza que se dirigia para a porta. Se fizesse um movimento como esse antes de tomar o remédio, ele certamente teria gritado de dor, mas esta agora desaparecera atrás de uma linda nuvem transparente.
Ao voltar ao corredor, um pensamento terrível lhe veio à cabeça: e se o chão do banheiro estivesse ligeiramente molhado, ou empoeirado?
Paul olhou o azulejo, e a simples possibilidade de que houvesse deixado marcas no chão fez com que ele as visse de fato. Paul sacudiu a cabeça e tornou a olhar. Nenhuma marca. Mas a porta do banheiro estava um pouquinho mais aberta, não? Empurrando a cadeira para a frente, ele pegou a maçaneta, e abriu um pouco a porta. Mais um pouco. Agora, sim. Era assim que ela estava.
Pronto para voltar ao quarto, mãos nas rodas da cadeira, Paul percebeu que estava virado para o lado da sala e não era ali que a maioria das pessoas instalava um telefone?
Uma idéia lhe iluminou a cabeça como um raio de sol sobre um campo coberto de neblina.
— Delegacia de Polícia de Sidewinder. Oficial Humbuggy falando.
— Escute bem o que vou dizer, guarda Humbuggy, escute com atenção e não me interrompa, pois não tenho muito tempo. Meu nome é Paul Sheldon e estou na casa de Annie Wilkes. Ela me mantém como prisioneiro por pelo menos duas semanas, ou talvez por cerca de um mês inteiro.
— Annie Wilkes?!
— Venha para cá imediatamente e traga uma ambulância. Pelo amor de Deus, venha logo, antes que ela volte. . .
— Bem antes dela voltar — murmurou Paul — Muito antes.
E o que o fez pensar que ela tem telefone? Você já viu Annie ligando para alguém? Para quem ela ia telefonar? Para os seus bons amigos, os Roydmans?
Só por que ela não fica pendurada no telefone o dia inteiro não significa que ela não compreenda que acidentes acontecem; ela pode escorregar na escada, quebrar um braço ou uma perna, o celeiro pode pegar fogo. . .
E quantas vezes você já ouviu esse suposto telefone tocar?
E o que isso quer dizer? Por um acaso a companhia telefônica virá cortar o telefone se ele não tocar pelo menos uma vez por dia? Além do mais, eu estive inconsciente a maior parte do tempo.
Você está se arriscando sem necessidade. Você está se arriscando e sabe muito bem disso.
Sim ele sabia. Mas a possibilidade de encontrar um telefone, de tocar o plástico escuro do fone, de discar um número e ouvir o ruído, eram tentações muito fortes para ele resistir.
Paul manobrou a cadeira em direção à sala e avançou.
O lugar cheirava a mofo, era abafado e sufocante. Embora as cortinas entreabertas permitissem uma linda vista das montanhas, a sala era escura — porque a pintura é escura, pensou Paul. A cor predominante era o vermelho-escuro, dando a sensação de que alguém espalhara uma grande quantidade de sangue por todo lado.
Em cima da lareira, via-se a descorada fotografia de uma mulher ameaçadora, de olhos pequeninos perdidos no meio de um rosto carnudo e com uma boca que lembrava um botão de rosa. A fotografia, numa moldura dourada, era imensa, tal como a fotografia do presidente, exposta no saguão da agência central dos Correios de uma grande cidade. Paul não precisava de um documento autenticado para atestar que aquela mulher era a santíssima mãe de Annie.
Paul avançou um pouco mais e o braço esquerdo da cadeira esbarrou numa pequenina mesa cheia de peças de cerâmica. Elas bambolearam e uma delas — um pingüim sentado num bloco de gelo — tombou para o lado.
Sem pensar, Paul a agarrou antes que caísse. O gesto casual foi logo substituído, porém, por uma tremedeira. Paul segurava o pingüim com a mão fechada e tentava fazer com que o corpo parasse de tremer. Você conseguiu segurá-lo, relaxe. Além do mais, há um tapete no chão, ele não ia se quebrar.. .
Mas de tivesse quebrado?, respondeu sua mente, aos gritos. Se tivesse QUEBRADO? Volte para o quarto, por favor, antes que deixe algum rastro. . .
Não, ainda não. Por mais assustado que estivesse, ainda não era hora de voltar ao quarto. Tudo isso já lhe custara muito. Ele agüentaria as conseqüências.
Paul passou os olhos pela sala atulhada de móveis pesados e desajeitados. Ela tinha tudo para ser dominada pela linda vista das montanhas Rochosas que se descortinava da janela colonial, mas a sala era totalmente dominada pelo retrato daquela mulher gorda, presa numa horrorosa moldura dourada cheia de arabescos, enfeites e drapeados.
Em cima de uma mesa, ao lado do sofá em que Annie devia sentar para assistir televisão, havia um telefone.
Paul colocou a estatueta de cerâmica (minha história já foi CONTADA), era o letreiro que se lia no cubinho de gelo, com todo o cuidado, prendendo a respiração, e partiu em direção ao telefone.
Na frente do sofá havia uma mesinha com um horrível jarro verde cheio de flores secas. O arranjo parecia mal equilibrado e pronto para cair no chão se ele passasse perto e Paul desviou-se dele.
Nenhum carro se aproximava — lá fora ouvia-se apenas o ruído do vento.
Paul tocou o aparelho e tirou-o do gancho.
Uma estranha sensação de fracasso o envolveu antes mesmo que ele levasse o fone ao ouvido e escutasse o silêncio. Ao recolocar o fone no gancho, o verso de uma velha canção de Roger Miller surgiu em sua cabeça: sem telefone, sem bolada, sem um bichinho de estimação. . . sem ao menos um cigarro. . .
Paul seguiu o fio do telefone com os olhos, viu a pequenina tomada na parede e o fio entrando por ela. Tudo parecia perfeitamente em ordem.
Tal como o celeiro e as fitas elétricas no telhado.
Manter as aparências é algo muito importante.
Paul fechou os olhos e imaginou Annie retirando o interruptor, enchendo o buraco de cola e recolocando-o no lugar — a cola branca endureceria e congelaria para todo o sempre. A Companhia Telefônica não faria a menor idéia de que o telefone estava mudo, a não ser que alguém tentasse ligar para ela e comunicasse à companhia que a ligação não completava. Mas ninguém ligava para Annie, não é? Ela receberia regularmente as contas do telefone mudo e as pagaria antes do vencimento, mas o telefone nada mais era do que uma peça de decoração, mais uma prova da luta interminável de Annie em manter as aparências, assim como o gracioso celeiro recém-pintado de vermelho, com arremates cor de creme, e fitas elétricas no telhado para derreter a neve. Teria ela cortado o telefone por ter previsto uma aventura como essa que ele acabara de fazer, fugindo do quarto? Paul duvidava. O toque do telefone teria deixado Annie nervosa muito antes de sua chegada. Annie ficaria longas horas acordada de noite, ouvindo os gemidos do. vento, e pensando que as pessoas que não gostavam dela ou as que a odiavam claramente — o mundo estava cheio de Roydmans — poderiam ter a infeliz idéia de ligar para ela e gritar: Você é culpada, Annie! Eles a levaram ao tribunal de Denver e nós sabemos que você é culpada! Ninguém que é inocente é levado ao tribunal de Denver! Caso solicitasse, Annie conseguiria que seu número não constasse da lista telefônica — qualquer pessoa levada a um tribunal por causa de um crime maior (e se ela fora levada a Denver, era esse o caso) conseguiria tal coisa, mesmo que tivesse sido absolvida —, mas isso não satisfaria uma pessoa neurótica como Annie. Todos estavam contra ela. Eles acabariam conseguindo descobrir o seu número. Os próprios promotores que a acusaram teriam o maior prazer de entregar o número de seu telefone para qualquer um que pedisse; e é claro que alguém ia pedir tal coisa. Annie encarava o mundo como uma massa escura de seres humanos que se mexia como o mar, um universo maléfico cercando um pequenino palco em que um único foco de luz brilhante e intensa iluminava apenas a. . . ela. Era melhor, portanto, acabar com o telefone, silenciá-lo, assim como ela faria com ele se descobrisse do que ele fora capaz.
Paul entrou em pânico. Sua mente lhe dizia para voltar imediatamente para o quarto, esconder as cápsulas em algum lugar e voltar a cadeira para a janela. Só assim ela não notaria nenhuma diferença, nenhuma diferença mesmo. E dessa vez, Paul concordou com sua voz interior. Concordou inteiramente.
Paul arrastou a cadeira cuidadosamente para trás e, quando viu que tinha algum espaço, começou a difícil tarefa de manobrar a cadeira, tomando cuidado de não esbarrar na mesinha.
Quando estava quase terminando a manobra, Paul ouviu o motor de um carro e soube simplesmente que era ela voltando da cidade.
Paul quase desmaiou. A sensação de terror era tão intensa, que ele jamais experimentara nada igual na vida, um misto de terror e profunda culpa. De súbito, lhe veio à lembrança o único incidente semelhante a este, embora a sensação de desespero fosse então muito menos intensa do que a atual. Ele tinha doze anos e estava de férias. O pai estava no trabalho e sua mãe acabara de sair com a senhora Kaspbrak para passar o dia em Boston. Paul pegara o maço de cigarros da mãe e acendera um deles. Ele fumava avidamente, sentindo-se ao mesmo tempo enjoado e importante, tal como imaginava sentirem-se os ladrões de banco após um grande assalto. Quando já fumara metade do cigarro e o quarto estava cheio de fumaça, Paul escutou a porta da frente abrir. "Paulie? Sou eu! Esqueci a bolsa!" Paul agitava as mãos em meio à fumaça, ciente de que nada adiantaria, de que ele fora pego e de que levaria umas boas palmadas.
Dessa vez seria algo muito pior do que simples palmadas.
Lembrou-se de uma das visões que tivera: Annie apontando-lhe um revólver e dizendo "Se você precisa tanto assim de liberdade, Paul, eu fico orgulhosa de concedê-la a você".
O motor do carro diminuiu a marcha. Era ela mesmo.
Paul mal sentiu as mãos tocarem as rodas da cadeira e avançou em direção ao corredor, não sem antes dar uma olhada na estatueta do pingüim sentado no bloco de gelo. Estaria no mesmo local? Impossível dizer, Paul esperava que sim.
Atravessando o corredor e ganhando velocidade, ele esperava passar direto pela porta do quarto. Mas foi por pouco que não conseguiu. E este pouco era o bastante. A cadeira de rodas chocou-se com o batente da porta e bamboleou.
Saiu alguma lasca da pintura? gritou a voz dentro dele. Pelo amor de Deus, você lascou a parede? Você deixou algum rastro?
Não, nenhum. Ficou uma pequenina marca, mas não saiu nenhuma lasca. Louvado seja Deus. Paul empurrava a cadeira para frente e para trás, freneticamente, tentando passar pela porta estreita.
O motor do carro aumentava à medida que se aproximava e diminuía a marcha.
Vai ser fácil. . .fácil. . .
Ao empurrar a cadeira, o eixo de cada uma das rodas ficou preso na porta. Paul tentou se soltar, mas sabia que era inútil. Estava preso entre os batentes da porta como a rolha numa garrafa de vinho. . .
Num último esforço desesperado, com os músculos retesados como as cordas de um violão, Paul conseguiu soltar a cadeira fazendo um pequenino ruído.
O jipe Cherokee acabava de entrar na garagem.
Ela vai trazer alguns pacotes, as resmas de papel, talvez algumas compras também, ela vai estar carregada e vai ter que andar devagar para não escorregar na neve, você já está no quarto, o pior já passou, ainda há tempo, ainda há. . .
Paul avançou pelo quarto e fez uma desajeitada manobra, colocando a cadeira paralela à porta. Annie desligara o motor do jipe.
Inclinado sobre o corpo, Paul agarrou a maçaneta e tentou fechar a porta, mas a lingüeta bateu contra o batente, impedindo que ela se fechasse. Paul empurrou a lingüeta com o polegar; ela cedeu um pouquinho e estacou. Ela simplesmente se recusava a entrar.
Por alguns instantes, Paul ficou observando, atônito, e um antigo ditado dos marinheiros lhe veio à cabeça: Quando uma coisa pode dar errado, ela fatalmente dará errado.
Por favor, Meu Deus, o fato dela ter desligado o telefone já não foi o bastante?
Paul soltou a lingüeta e tentou empurrá-la outra vez, mas encontrou a mesma resistência. Um pequeno estalo dentro da fechadura fez com que ele compreendesse o que acontecera. O pedaço do grampo de cabelo que se partira estava impedindo a entrada da lingüeta.
A porta do jipe abriu e Paul pôde escutar os resmungos de Annie e o roçar dos pacotes de papel que ela tirava do carro.
— Vamos lá — sussurrou ele, começando a pressionar suavemente a lingüeta, para frente e para trás. Ela cedeu um pouco, mas continuou emperrada. Paul podia sentir o maldito grampo de cabelo impedindo a passagem.
— Vamos lá. Vamos lá. . . vamos lá. . .
Sem ao menos perceber, Paul começou a chorar e as lágrimas se misturaram ao suor que lhe escorria pelo rosto; ele mal percebia que as pernas ainda latejavam, apesar de todo o remédio que tomara, e que ele pagaria um preço muito alto por essa travessura.
Não tão alto quanto o que você terá que pagar se não conseguir fechar essa maldita porta, Paulie.
Paul ouviu os passos cuidadosos de Annie sobre a neve, o roçar das sacolas de compras e o tilintar do chaveiro na mão. . .
— Vamos lá. . . vamos lá. . . vamos lá. . .
Mais uma vez, a lingüeta cedeu um pouco, fazendo um pequeno ruído. Mas ainda não era o bastante.
— Por favor, vamos lá. . .
Paul pressionava a lingüeta com mais rapidez, quando ouviu Annie abrindo a porta da cozinha.
— Sou eu, Paul! Comprei seu papel! — gritou Annie muito animada, trazendo-lhe à memória a terrível lembrança daquele dia em que sua mãe o surpreendera fumando.
Descoberto! Eu fui descoberto! Meu Deus, por favor, não permita que ela me maltrate!
Paul continuava a apertar a lingüeta convulsivamente, até que um ruído abafado o certificou que o grampo de cabelo se deslocara, deixando livre a lingüeta. Da cozinha, vinha o barulho de Annie tirando os agasalhos.
Paul fechou a porta, e o trinco estalou tão alto (será que ela ouviu? Deve ter ouvido, deve ter, sim!) quanto o disparo de um revólver.
Os passos pesados de Annie já podiam ser ouvidos pelo corredor, e Paul ainda tentava recolocar a cadeira próximo à janela.
— Você está acordado, Paul? Consegui comprar o papel! Dando um último solavanco na cadeira, Paul aproximou-se da janela no momento exato em que Annie punha a chave na fechadura.
Não vai abrir. . . o grampo. . . ela vai desconfiar. . .
Mas o grampo deve ter se alojado em algum lugar onde não atrapalhasse o funcionamento da chave, pois Annie conseguiu abrir a porta sem qualquer problema.
Sentado na cadeira, de olhos entreabertos, Paul esperava tremendamente que tivesse colocado a cadeira no lugar certo (ou pelo menos tão perto a ponto de Annie não reparar na diferença), esperando que ela julgasse o suor do rosto e a tremedeira do corpo como sintomas da falta do medicamento, esperando, acima de tudo, que ele não tivesse deixando nenhum rastro para trás. . .
Quando a porta abriu, Paul abaixou a cabeça e só então percebeu que na luta desesperada para não deixar o menor rastro possível, ele se esquecera de apagar o maior de todos eles: as caixas de Novril, em seu colo.
Annie entrou carregando uma resma de papel em cada mão e dirigiu-lhe um sorriso.
— Não foi esse que você pediu? Triad Modern. Aqui tem duas resmas e tem mais duas lá na cozinha, no caso de você precisar. Sendo assim. . .
Annie parou de falar e franziu as sobrancelhas.
— Como você está suando!. . . Parece estar febril também. . . O que você andou fazendo, hein?
A voz interior de seu ego secundário entrou em pânico e começou a gritar que estava tudo perdido, que era melhor desistir de tudo, aconselhou-o a confessar o que fizera e a esperar pela misericórdia de Annie; mas ainda assim, Paul conseguiu perceber que a aparente desconfiança dela não passava de um gracejo.
— Você bem sabe o que andei fazendo. . . Tudo o que faço é sofrer.
Annie tirou um lenço de papel do bolso da saia e enxugou a testa de Paul. O lenço ficou encharcado.
— As dores tem sido fortes? — perguntou ela com um sorriso que estampava um suposto e terrível ar maternal.
— Muito, muito fortes. . . Eu poderia tomar. . .
— Eu bem que lhe avisei para não me deixar nervosa. Vivendo e aprendendo, não é assim que reza o ditado? Se você viver, Paul, acabará aprendendo.
— Posso tomar o remédio agora?
— Num minutinho.
Até o momento, Annie não tirara os olhos do rosto pálido e suado de Paul, que estava começando a se encher de pequenas brotoejas.
— Antes eu quero ter certeza de que não há mais nada que você precise, nada que a velha e boa Annie tenha se esquecido de comprar, porque ela desconhece os seus métodos de trabalho, está me ouvindo, seu espertinho? Quero ter certeza que você não vai querer que eu volte à cidade para comprar um gravador, ou alguma coisa do gênero. Se for preciso comprar mais alguma coisa, conte comigo. Seu pedido é uma ordem. Irei agora mesmo, e nem vou me preocupar de lhe dar o remédio antes, pois estarei logo de volta. O que me diz, seu espertinho? Tudo pronto?
— Tudo pronto. Annie, por favor. . .
— E você não vai mais me deixar nervosa?
— Não, eu não vou mais deixar você nervosa.
— Isso é bom, pois quando acontece eu fico fora de mim. Annie finalmente abaixou os olhos e percebeu que ele segurava as mãos entre as pernas. Por um longo tempo, Annie ficou observando.
— Por que você está com as mãos desse jeito, Paul?
Ele começou a chorar. Paul chorava de culpa e era exatamente isso o que mais o aborrecia: além de tudo o que lhe causara, aquela mulher monstruosa o obrigava a sentir-se culpado. E Paul chorava por isso. . . e também por mero cansaço.
Com lágrimas a lhe escorrerem pelo rosto, Paul levantou os olhos e arriscou sua última cartada:
— Eu preciso do remédio. . . e do urinol. Consegui me segurar até agora, Annie, mas não estou mais me agüentando e não quero fazer xixi na calça outra vez. . .
Annie sorriu, radiante, e tirou uma mecha de cabelo que lhe caíra na testa.
— Coitadinho!. . . Annie está abusando de você, não está? Está, sim! Como você é malvada, Annie! Eu vou pegar, agora mesmo. . .
Esconder as caixas de remédio embaixo do tapete estava fora de questão, mesmo que houvesse tempo para isso. O volume das caixas ficaria óbvio demais, embora elas fossem pequenas. Sendo assim, Paul as enfiou dentro da cueca, acomodando-as entre as nádegas. O movimento resultou em algumas dores a mais, e Paul pôde sentir as pontas das caixas espetando sua pele.
Annie retornou trazendo duas cápsulas de Novril e um copo de água numa das mãos, e um urinol antigo e metálico, que se parecia com um secador de cabelo, na outra.
Mais duas cápsulas dessas além das que você tomou há meia hora atrás vão acabar fazendo você entrar em estado de coma, isso se não acabarem te matando, pensou ele.
Por mim, tudo bem, respondeu de imediato a voz dentro dele.
Paul tomou o remédio e ela lhe entregou o urinol:
— Você precisa de ajuda, Paul?
— Não, eu posso fazer isso sozinho.
Annie afastou-se um pouco e Paul tentou enfiar o pênis desajeitadamente dentro do tubo comprido e gélido. Quando o barulho da urina ressoou pelo quarto, Paul percebeu que olhava para ela, e viu que Annie sorria.
— Já fez? — perguntou ela, pouco depois.
— Já.
Paul não precisara fazer muito esforço para urinar, porque com tanto movimento, ele acabara ficando mesmo apertado.
— Agora é hora de voltar para a cama — disse ela pegando o urinol e colocando-o no chão.— Você deve estar exausto. . . e suas pernas devem estar doendo muito. . .
Paul concordou com a cabeça, embora na verdade não conseguisse sentir mais nada — a dose excessiva do remédio o arrastava para a inconsciência com uma rapidez impressionante e ele já começava a enxergar o quarto através de uma transparente nuvem cinzenta. Mas Paul ainda tinha um pensamento na cabeça: Annie ia levantá-lo, e só não veria o volume das caixas em suas nádegas se fosse completamente cega.
Annie empurrou a cadeira até a cama.
— Só mais um pouquinho, Paul, e você poderá dormir direito.
— Você poderia esperar cinco minutos? — conseguiu perguntar Paul.
— Eu pensei que você estivesse cheio de dores, rapaz — insinuou ela.
— E estou. . . — respondeu ele através da nuvem que se tornava ligeiramente mais densa — Está doendo muito. . . muito mesmo. Principalmente o joelho. . . bem onde você me deu um soco quando. . . quando ficou nervosa. . . Ainda não estou preparado para você me pegar no colo. . . você poderia esperar uns cinco minutinhos. . . para. . .
Paul sabia exatamente o que queria dizer, mas as palavras lhe fugiam, perdendo-se pela nuvem cinzenta. Sentindo-se impotente, sabendo que ia acabar sendo pego, ele a encarou.
— Para o remédio fazer efeito, não é isso o que você quer dizer? Paul balançou a cabeça, agradecido.
— Está bem, eu espero. Vou arrumar as compras e volto daqui a pouco.
Assim que Annie deixou o quarto, Paul enfiou a mão na cueca e retirou as caixas de remédio, escondendo-as embaixo do colchão. A nuvem tornava-se cada vez mais densa, mudando de cinza para o negro.
Empurre as caixas o mais que puder, pensou ele, às cegas. Certifique-se que as caixas não vão vir junto do lençol se Annie resolver trocar as roupas de cama. Certifique-se que as caixas. . .
Escondida a última caixa, Paul deixou-se ficar recostado na cadeira, olhando para o teto, onde três letras M pareciam flutuar.
África, pensou ele.
Agora é preciso enxaguar, pensou ele.
Estou numa bruta enrascada, pensou ele.
Rastros, pensou ele. Será que deixei algum rastro? Será. . .
Paul Sheldon desfaleceu. E quando voltou a si, quatorze horas mais tarde, a neve tornara a cair.
MISERY
A arte de escrever não causa dor; nasce da dor.
MONTAIGNE
Ian Carmichael não seria capaz de se mudar de Little Dunthorpe nem por todos os tesouros da Rainha, mas tinha que admitir que quando chovia em Cornwall, a chuva era sempre mais forte do que em qualquer outro lugar da Inglaterra.
No cabideiro que ficava no vestíbulo, havia uma pequena toalha pendurada e Ian a usou para secar os cabelos louros, após ter pendurado o casaco encharcado e de ter tirado as botas.
Ao longe, ressoando pela sala, ele podia ouvir os acordes de uma melodia de Chopin , e ele ficou ouvindo, paralisado, com a toalha na mão esquerda.
Em seu rosto, a água da chuva se misturou as lágrimas.
- Nunca chore na frente dela, meu amigo; isso é algo que você nunca deve fazer - dissera-lhe Geoffrey certa vez.
E Geoffrey estava certo, como sempre. Seu velho e bom amigo Geoffrey raramente se enganava. Mas quando estava sozinho, a viva lembrança de Misery escapando da morte sempre o invadia e era praticamente impossível conter as lágrimas. Ian a amava tanto. Sem ela, não saberia viver. A vida sem Misery não faria o menor sentido para ele.
O parto de Misery havia sido longo e difícil, mas não tão longo e difícil quanto o de qualquer outra mulher, afirmara a parteira. Foi só depois da meia-noite, cerca de uma hora depois de Geoffrey ter saído a cavalo em busca de um médico, que a parteira começou a ficar preocupada de verdade. E foi por essa hora que a hemorragia começara.
- Meu bom amigo Geoffrey! - murmurou Ian, entrando na cozinha ampla e aconchegante, típica das casas de campo do sudoeste da Inglaterra.
- Falou comigo, senhor? - perguntou a senhora Ramage, a excêntrica e adorável governanta que vinha saindo de dentro da despensa. Como sempre, sua touca estava tombada para o lado e ela fedia a rapé, um vício que ela acreditava, depois de todos esses anos, ser ainda um segredo.
- Nada de importante, senhora Ramage.
- Do Jeito que o seu casaco está pingando, senhor, imagino que deva ter se afogado lá fora!
- Quase isso.
"Se Geoffrey tivesse demorado mais dez minutos naquela noite, Misery teria morrido..." Embora tentasse afastar da cabeça esse pensamento terrível e também inútil, ele sempre surgia, pois Ian não podia conceber sua vida sem a presença de Misery.
Mas para livrá-lo desses pensamentos tristes, o choro de uma saudável criança fez-se ouvir. Era seu filho que acabara de acordar e reclamava pela mamada da tarde. Ian distinguiu a voz de Annie Wilkes, a eficiente enfermeira de Thomas, acalmando a criança e trocando-lhe a fralda.
- O pequenino está com apetite hoje! - observou a senhora Ramage. Por alguns instantes, Ian ficou se deliciando com a idéia de ser pai de um menino, até que a esposa surgiu na porta, interrompendo seus pensamentos.
- Olá, querido!
Ian levantou os olhos e olhou para a sua Misery, para a sua querida. Ali estava ela, parada na porta, com os cabelos castanhos caindo sobre os ombros, com suas mechas vermelho-escuras que refletiam o inexplicável brilho de emoções passadas. Seu rosto continuava pálido, mas já se podia notar que ele começava a recobrar o viço anterior. Os olhos escuros e expressivos refletiam o brilho das luzes da cozinha, brilhando como pequeninas pedras preciosas sobre um fundo de veludo Negro.
- Minha querida! - disse ele, correndo para abraça-la, como fizera certo dia em Liverpool, quando julgara que os piratas a haviam raptado, tal como previra Mad Jack Wickersham.
A senhora Ramage lembrou-se de súbito que deixara alguma coisa por fazer na sala e deixou-os, com um sorriso nos lábios. A própria senhora Ramage também costumava perder-se em pensamentos, imaginando como seria a vida de todos eles se Geoffrey tivesse chegado uma hora mais tarde com o medico, naquela noite escura de tempestade, há dois meses atrás; e se a transfusão experimental de sangue não tivesse surtido o efeito esperado, embora seu patrão tivesse tão bravamente concordado em doar seu próprio sangue à esposa.
- Tem certas coisas que não devemos ficar pensando - resmungou ela, seguindo pelo corredor.
Era um bom conselho e Ian já o havia repetido para si mesmo. Às vezes, porem, era muito mais fácil dar conselhos do que recebê-los - tanto ele quanto a senhora Ramage já haviam descoberto isso.
Ian abraçava Misery com firmeza, sentindo que ela vivera, morrera e agora voltara a vida, e ele podia senti-la através do doce perfume de sua pele cálida.
Ian colocou a mão no colo de Misery e sentiu as batidas fortes de seu coração.
- Se você tivesse morrido, eu teria morrido junto - sussurrou Ian.
Misery passou a mão pelo pescoço do esposo, apertando-o ainda mais contra si e disse:
- Não diga isso, meu amor; é uma tolice. Eu estou bem aqui. Agora, me dê um beijo... Se eu tiver que morrer de alguma coisa, vai ser de desejo por você...
Ian lhe deu um longo beijo e afundou as mãos nos cabelos castanhos e sedosos de Misery.
E durante aqueles instantes, nada no mundo tinha a menor importância para os dois.
Annie colocou as três folhas datilografadas em cima da mesinha-de-cabeceira e Paul ficou à espera de algum comentário. Ele não estava nervoso, mas curioso, além de muito surpreso consigo mesmo pela facilidade com que mergulhara outra vez no universo de Misery, um universo piegas e melodramático. Mas não havia sido tão desagradável quanto ele imaginara a princípio. Muito pelo contrário, ele sentira um quê de reconfortante, como calçar um velho par de chinelos. E foi por esse motivo que ele ficou boquiaberto e completamente pasmo com a crítica que ela fez:
— Não está certo.
— Você. . . você não gostou?
Paul mal podia acreditar no que ela dizia. Como podia gostar tanto dos outros livros Misery e não gostar desse? Todos os elementos que tanto caracterizavam os livros anteriores estavam ali presentes, transformando-o numa caricatura: a velha governanta de ar maternal cheirando rapé na despensa, Ian e Misery alisando um ao outro como qualquer casalzinho assanhado que acaba de chegar do baile do ginásio da escola numa sexta à noite. . .
Mas agora era a vez de Annie mostrar-se admirada.
— Não gostei?! Como poderia?! É maravilhoso! Cheguei a chorar quando Ian a tomou em seus braços. Eu simplesmente não pude evitar. . .
De fato, Paul reparou que Annie tinha os olhos ainda vermelhos.
— E foi tão gentil de sua parte dar o meu nome à enfermeira de Thomas. . .
Muita esperteza de minha parte, é o que você quer dizer, pensou ele. Pelo menos é o que espero. E se é que você quer saber, o nome do bebê ia ser Sean e, não, Thomas. Eu só mudei porque ia ter que preencher mais um maldito n.
— Então eu não compreendo. . .
— Não, você não compreende. Eu não disse que não gostei do livro, eu disse que não estava certo. Você trapaceou, vai ter que começar novamente. . .
Como podia tê-la julgado a leitora perfeita? Você bem merece, Paul: quando comete um erro de início, vai com ele até o fim. A Leitora Fiel acabara de se tornar uma Editora Impiedosa.
Mesmo sem perceber, Paul assumiu um ar concentrado, como sempre fazia quando ouvia algum leitor. Era o que ele chamava de expressão "Em que posso ser útil, senhora?" Para ele, a maioria dos editores era como uma mulher que invade a oficina e vai logo instruindo o mecânico para dar um fim no barulho estranho do motor ou no ruído embaixo do painel, e quer o serviço pronto para ontem. Seu ar sincero de concentração servia para bajular os editores, e quando eles se sentiam adulados, muitas vezes acabavam abrindo mão de suas idéias malucas.
— Como assim? — perguntou.
— Geoffrey foi em busca de um médico; até aí, tudo bem. Isso foi no capítulo trinta e oito de O filho de Misery. Só que o médico nunca apareceu, você sabe muito bem disso. O cavalo de Geoffrey caiu ao pular a cerca de terreno daquele imprestável, o senhor Cranthorpe — eu espero sinceramente, Paul, que esse trapaceiro receba um castigo bem merecido em A volta de Misery. Geoffrey quebrou algumas costelas e ficou a noite toda na chuva, até que um pastor o encontrou. O médico não apareceu; você entende agora?
— Acho que sim. — respondeu Paul, sem conseguir tirar os olhos dela.
Julgara que ela estava querendo bancar a editora, ou até mesmo a colaboradora, preparando o terreno para lhe dizer o que e como escrever. Mas a coisa não era bem assim. Vejamos o caso do senhor Cranthorpe. Ela esperava que ele fosse castigado, mas não fez disso uma exigência. Para ela, o curso da história era algo fora de seu alcance, embora tivesse o autor do livro em suas mãos. Mas há certas coisas que simplesmente não podem ser feitas. A criatividade, ou á falta de criatividade, nada tinha a ver com essa história; e insistir nisso era algo tão tolo como refutar a lei da gravidade ou jogar pingue-pongue contra a parede. Ela era a Leitora Fiel, sim, mas isso não significava que também fosse a Leitora Palerma.
Annie não admitia que ele tivesse matado Misery. . ., mas também não admitiria que ele a trouxesse de volta utilizando-se de algum artifício duvidoso.
Mas meu Deus do céu! Eu matei Misery!, pensou ele, desanimado. Como vou sair dessa?
— Quando eu era garota, costumava assistir a seriados no cinema. Havia um episódio novo a cada semana. Tinha o do Flash Gordon, do Vingador Mascarado e até um sobre Frank Buck, aquele homem que foi para a África caçar animais selvagens e que conseguia dominar leões com a força do olhar. Você se lembra desses seriados?
— Lembro, sim; mas. . . você não pode ser tão velha assim, Annie. Você deve ter assistido a esses seriados na televisão ou então ficou sabendo deles por um irmão ou irmã mais velho.
Nas bochechas sólidas de Annie formaram-se duas covinhas, que logo desapareceram.
— Ora, seu tolo. . . Eu tinha mesmo um irmão mais velho e nós costumávamos ir ao cinema todos os sábados à tarde. Isso foi em Bakersfield, Califórnia, onde fui criada. Eu gostava do cine-jornal, dos desenhos animados e dos filmes, mas o que eu mais adorava eram os seriados. Eu me pegava pensando neles nos momentos mais inesperados, durante a semana toda; quando assistia a uma aula chata ou quando tomava conta daqueles quatro fedelhos da senhora Krenmitz, que morava no andar de baixo. Eu simplesmente odiava aqueles fedelhos. . .
Annie mergulhou em mais um de seus silêncios melancólicos, desligando-se de tudo, olhos fixos no canto do quarto. Era a primeira vez que isso acontecia depois de um longo período e Paul ficou incomodado com a idéia de Annie estar entrando em mais uma de suas fases negativas. Se isso estava mesmo acontecendo, era melhor tomar cuidado.
Passados alguns instantes, Annie se recobrou e, como sempre, tinha no rosto uma expressão de surpresa, como se não esperasse encontrar o mundo ainda no mesmo lugar.
— Rocket Man era o meu favorito. Lá estava ele, no fim do capítulo seis — Morte no Céu — totalmente inconsciente, dentro de um avião caindo vertiginosamente. Ou então no capítulo nove — Destruição pelo Fogo — em que ele termina amarrado numa cadeira, dentro de um armazém em chamas. As vezes era o carro que não tinha freios, em outras era a exposição a um gás venenoso ou alguma coisa relacionada com eletricidade. . .
Annie falava com uma emoção tão genuína que chegava a soar como algo grotesco.
— São os chamados filme de suspense — arriscou dizer ele. Annie franziu as sobrancelhas e disse:
— Eu sei muito bem, seu espertinho. Às vezes fico pensando que você acha que eu sou burra!
— Mas é claro que não, Annie!
Ela fez um gesto impaciente com uma das mãos e Paul compreendeu que era melhor — pelo menos por hoje — não interrompê-la mais.
— Era a maior diversão tentar descobrir como ele ia conseguir escapar. Às vezes eu descobria, outras vezes não. Mas eu não ligava muito, contanto que eles agissem corretamente. Estou me referindo às pessoas que escreviam as histórias.
Annie lhe dirigiu um olhar cortante para ter certeza que ele entendera a indireta. Paul dificilmente não teria entendido.
— Como por exemplo, a vez em que ele estava inconsciente dentro do avião. Ele recobrou os sentidos e descobriu um pára-quedas embaixo do assento. Ele pulou e conseguiu se salvar — e isso foi certo.
Qualquer professor de literatura discordaria de você, minha cara, pensou ele. Você está se referindo a uma coisa chamada de Deus ex machina, o deus de um mecanismo, utilizado primeiramente nos anfiteatros gregos. Quando o autor metia o herói numa enrascada impossível de escapar, do alto do palco descia uma escada toda enfeitada de flores. O herói sentava-se nela e era içado para o alto, livrando-se do perigo. Só que o mais simplório camponês entenderia o simbolismo: o herói fora salvo por Deus. Mas esse deus ex machina — também conhecido no meio teatral como o "velho truque do pára-quedas embaixo do assento" — saiu de moda por volta de 1700. Exceto, é claro, para os seriados do Rocket Man e para os livros de Nancy Drew. Acho que você está um pouco desatualizada, Annie.
Por um instante terrível e também inesquecível, Paul pensou que ia ter um ataque de riso. Mas como o humor de Annie não estava lá muito bom naquela manhã, era melhor se prevenir contra um provável castigo desagradável e doloroso. Levando a mão até a boca, Paul simulou um acesso de tosse.
Annie lhe deu alguns tapas tão fortes nas costas, que chegaram a lhe machucar.
— Está melhor?
— Estou sim, obrigado.
— Posso continuar, Paul, ou você agora vai ter um ataque de espirros? Quer que eu apanhe o balde? Você não está com vontade de vomitar?
— Não, Annie, por favor, continue. O que você está contando é simplesmente fascinante.
Annie pareceu se acalmar — mas não muito, só um pouquinho.
— Encontrar um pára-quedas embaixo do assento foi uma saída correta. Talvez não muito realista, mas correta.
Paul estava estarrecido — as tiradas brilhantes e ocasionais de Annie sempre o deixavam assim — e viu-se obrigado a concordar com ela. "Correto" e "realista" podem ser sinônimos em alguns casos, mas este não era um deles.
— Vejamos agora um outro episódio em que você poderá ver exatamente o que há de errado com o que escreveu ontem. Escute bem o que vou dizer, Paul.
— Sou todo ouvidos.
Annie lançou-lhe um olhar penetrante para ver se ele não estava debochando, mas Paul tinha no rosto pálido o ar compenetrado de um aluno estudioso. A vontade de rir passara por completo quando dera conta que Annie podia saber tudo a respeito de "deus ex machina", exceto o nome.
— Então muito bem. Este era um dos episódios em que havia um carro sem freios. Os bandidos haviam posto Rocket Man — vestido com o disfarce de sua identidade secreta — dentro de um carro sem freios. Em seguida, soldaram as portas e largaram o carro numa estrada sinuosa nas encostas de uma montanha. Eu me lembro que naquele dia eu fiquei sentada só na beirada da cadeira do cinema. . .
Annie estava sentada na beirada de sua cama e Paul estava de frente para ela. Haviam passado cinco dias desde que ele se aventurara a sair do quarto e Paul estava surpreso com a rapidez com que se recuperara do episódio. Só o fato de não ter sido descoberto parecia lhe proporcionar uma agradável sensação revigorante.
Ela tinha os olhos perdidos na folhinha da parede, onde um menino sorridente deslizava de trenó num interminável mês de fevereiro.
— E lá estava Rocket Man, coitado, sem sua roupa ou seu capacete especial, tentando dirigir o carro e abrir a porta ao mesmo tempo, mais atrapalhado que um homem de um braço só tentando colocar um papel de parede.
Subitamente, Paul conseguiu visualizar a cena e instintivamente compreendeu como algo tão absurdo e melodramático podia ter sido apresentado como cena de suspense. As tomadas seriam feitas de um ângulo que mostrasse o abismo e seriam desordenadas e rápidas. Corta. Aparecem os pés de Rocket Man (Paul via claramente os sapatos — um modelo bico fino típico dos anos quarenta) pisando inutilmente no pedal solto. Corta. Aparece o ombro dele empurrando a porta. Corta. Aparece a porta pelo lado de fora, mostrando-nos um pedaço de solda que está se soltando. A cena mais idiota, nem um pouco literária, mas que servia para alguma coisa. Acelerar corações, por exemplo. Uma versão cinematográfica do Chivas Regal do interior.
— A estrada termina num precipício e todo mundo sabe que se Rocket Man não sair daquele velho Hudson, ele é um homem morto. Meu amigo, lá vinha o carro e Rocket Man ainda insistia em tentar fazer os freios pegarem ou abrir a porta e aí. . . o carro despenca! Voa pelos ares, choca-se naquela muralha de pedra e explode, indo cair no mar. Surge então um letreiro na tela: Próximo Episódio — O Monstro Voa.
Sentada na beiradinha da cama, Annie apertava as mãos com força, ofegante
— Depois disso, eu mal consegui assistir ao outro filme — disse ela sem se voltar para ele e com os olhos ainda perdidos na parede. — E não pensei no Rocket Man uma vez ou outra durante aquela semana. Eu pensei nele o tempo inteiro! Como conseguiria escapar? Eu mal podia imaginar. . . No sábado seguinte, ao meio-dia, eu já estava plantada na porta do cinema, embora a bilheteria só abrisse à uma e quinze e o filme não começasse antes das duas. Você sabe o que aconteceu, Paul? Não, você nem imagina!
Paul continuou calado, embora desconfiasse o que acontecera em seguida. Compreendia agora como ela podia ter gostado do que escrevera, mesmo achando que não estava certo. E Annie expressara sua opinião sem a sofisticação literária e muitas vezes não confiável de um editor, mas com a flagrante e incontestável convicção de uma Leitora Fiel. Paul ficou surpreso em descobrir que estava envergonhado. Annie estava com razão. O que ele escrevera não estava certo.
— O outro filme sempre começava com o final do último episódio. Eles mostraram a estrada, o precipício e Rocket Man tentando abrir a porta. Mas alguns instantes antes do carro despencar, eles mostraram a porta se abrindo e Rocket Man rolando pela estrada! Só então o carro voou pelos ares. O cinema veio abaixo e todos davam vivas porque Rocket Man se salvara, mas eu não fiquei contente, Paul! Eu fiquei furiosa! E comecei a gritar: "Não foi isso o que aconteceu semana passada! Não foi isso o que aconteceu!"
Annie levantou-se bruscamente e começou a andar de um lado para o outro, socando uma mão na outra. Os olhos brilhavam e os cabelos ondulados caíam sobre o rosto ligeiramente abaixado.
— Meu irmão tentou me fazer calar, mas quando viu que não ia adiantar, tentou tapar minha boca com as mãos. Eu lhe dei uma mordida e continuei gritando: "Não foi isso o que aconteceu semana passada! Será que vocês não se lembram? Será que ficaram todos com amnésia?!" Meu irmão disse assim: "Annie, você ficou maluca?", mas eu sabia que não estava maluca. Foi então que apareceu o gerente do cinema dizendo que se eu não me calasse ele teria que me colocar para fora. Aí eu respondi: "O senhor pode apostar como eu vou embora! Isso foi um truque sujo, não foi isso o que aconteceu semana passada."
Annie virou-se e Paul pôde ver claramente um brilho assassino naquele olhar.
— Ele não podia ter saído da porcaria daquele carro! Ele ainda estava lá dentro quando o carro despencou no abismo! Você está me entendendo?
— Estou.
— VOCÊ ESTÁ ENTENDENDO?
Com toda a ferocidade, Annie deu um salto na direção de Paul. Mesmo com a certeza de que ela vinha para machucá-lo como da vez anterior, possivelmente porque não tivesse como se vingar do roteirista trapaceiro que retirara Rocket Man do Hudson antes dele cair no abismo, Paul não se esquivou. Ela abrira para ele a janela de seu passado e Paul pôde ver através dela as raízes da instabilidade atual de Annie. E isso o deixou aterrorizado: a revolta de Annie, apesar de infantil, era algo inquestionavelmente real.
Annie, porém, não bateu nele. Segurou-o pela camisa, e o puxou até que seu rosto quase tocasse no dela:
— VOCÊ ENTENDE?
— Entendo, Annie, entendo sim.
Annie o encarou com um olhar furioso e sombrio. Depois de alguns instantes, julgando que ele devia estar dizendo a verdade, ela largou sua camisa com um certo descaso, empurrando-o contra a cadeira.
Paul fez uma careta de dor.
— Então você sabe muito bem o que está errado.
— Eu acho que sim.
Deus pode me mandar um castigo se eu disser que sei de um jeito para consertar essa situação!
E aquela sua outra voz acrescentou prontamente: Não sei se Deus vai lhe castigar ou salvar, Paulie, mas de uma coisa eu tenho certeza: se você não arranjar uma maneira de trazer Misery de volta — uma maneira em que ela acredite — ela vai acabar te matando.
— Então comece a escrever. — disse ela, secamente, saindo do quarto.
Paul olhava para a máquina à sua frente. Enes! Ele jamais imaginara quantas letras "n" havia em média numa linha datilografada.
Eu pensei que você fosse um dos bons, provocou a máquina de escrever. Paul arrumara para ela uma voz zombeteira, um pouco precoce, como a de um adolescente bom de mira num filme de faroeste — um garoto preocupado apenas em fazer fama rapidamente aqui por essas paragens. Você não é assim tão bom; não consegue nem agradar uma ex-enfermeira maluca e gorda. Vai ver, o seu talento também foi afetado naquele acidente. . . e você ainda não se recuperou.
Paul recostou-se na cadeira o mais que pôde e fechou os olhos. Seria mais fácil aceitar a recusa de Annie pelo que ele escrevera se pudesse pôr a culpa na dor, mas, na verdade, as dores haviam diminuído.
As cápsulas roubadas estavam muito bem escondidas entre o colchão e o estrado da cama, mas Paul ainda não tomara nenhuma delas — só em saber que ele as tinha era o bastante. Era algo como um "seguro contra Annie". Annie as acabaria encontrando se enfiasse na cabeça a idéia de virar o colchão, mas este era um risco que ele estava disposto a correr.
Nenhum outro problema havia surgido entre eles desde a discussão sobre o papel. Ela lhe trazia o remédio regularmente e Paul perguntava a si mesmo se Annie não desconfiava que ele estava viciado naquela droga.
Ora, Paul, o que é isso, você está exagerando, não?
Não, não estava. Há três dias atrás, certo de que Annie se encontrava no andar superior, Paul apanhara uma das caixas do remédio e lera a bula de cima a baixo, embora julgasse já ter lido o suficiente quando se deparou com o principal componente da droga. Novril soletrava-se assim: C-O-D-E-Í-N-A;
O fato é que você está melhorando, Paul. Dos joelhos para baixo, suas pernas podem se parecer com desenho de um garoto de quatro anos de idade, mas você está melhor. Você pode passar sem aspirina ou Empirin, não é você que precisa de Novril. Você está apenas alimentando o seu fantasma.
Ele tinha que reduzir a quantidade das cápsulas; ele precisava deixar de tomar algumas delas. E até que conseguisse isso, Annie continuaria a mantê-lo preso numa corrente, assim como o mantinha preso na cadeira — numa corrente de cápsulas de Novril. . .
Tudo bem, eu vou deixar de tomar uma das duas cápsulas que ela me traz de vez em quando. Vou esconder embaixo da língua e guardá-la junto das outras, embaixo do colchão. Mas não hoje. Ainda não estou preparado para isso hoje. Fica para amanhã.
Em sua cabeça, surgiu a voz da Rainha passando sermão em Alice: Nós aqui sabemos o que deveríamos ter feito ontem, e sabemos o que devemos fazer amanhã, mas nunca sabemos o que devemos fazer hoje.
Ora, ora, Paulie, você é mesmo um impostor, insinuou a máquina com a voz firme de valentão que ele inventara para ela.
— Nós, os trapaceiros, nunca somos muito divertidos, mas você tem que reconhecer que nós nunca desistimos — murmurou Paul.
É melhor você pensar seriamente a respeito da quantidade enorme de remédio que está tomando, Paul. É melhor você pensar muito seriamente a esse respeito.
Subitamente, Paul decidiu, sem mais nem menos, que começaria a diminuir a dose de remédio quando conseguisse escrever um primeiro capítulo que agradasse a Annie, um capítulo que ela julgasse não ser uma mentira.
Uma parte dele — aquela que ouvia às melhores e mais sensatas sugestões de editores com uma dose de boa vontade meio contrariada — protestou dizendo que a mulher era maluca e que não havia como prever o que ela iria ou não aceitar; qualquer coisa que ele tentasse seria apenas uma jogada de sorte.
Mas uma outra parte — esta, muito mais consciente — discordava. Ele saberia reconhecer uma boa idéia assim que a tivesse, e ela faria aquele monte de bobagens que dera a Annie para ler — bobagens que haviam lhe custado três dias de trabalho e recomeços sem fim — pareceram um monte de cocô de cachorro ao lado de uma moeda de prata. E não sabia ele que estivera tudo errado desde o início? Não era de seu feitio escrever com tanta dificuldade, tampouco encher uma cesta de lixo até a metade com folhas datilografadas também só até a metade, folhas que invariavelmente terminavam com frases do tipo: "Misery voltou-se para ele, olhos brilhando, e seus lábios murmuraram as palavras mágicas: "Oh, que merda", isso não está dando certo!!! Paul colocara a culpa nas dores e no fato de encontrar-se numa situação tal, que não precisava escrever só para o seu sustento, mas para salvar sua própria vida. Suas primeiras idéias não passavam de mentiras ilusórias. Para falar a verdade, a fonte secara. O texto era ruim porque ele estivera mentindo, e ele sabia muito bem disso.
— Ela conhece o seu jogo muito bem, seu cabeça oca. E agora, o que pretende fazer? — perguntou a máquina de escrever com sua voz insolente e irritante.
Ele não sabia, embora imaginasse que fosse preciso fazer alguma coisa, e rápido. Ele não levara em consideração o estado de espírito de Annie naquela manhã, e podia se considerar um cara de sorte por ela não ter lhe quebrado as pernas de novo com um taco de beisebol, nem derramado ácido em suas mãos, ou qualquer coisa do gênero, para demonstrar que não gostara da maneira como começara o livro. Essas reações críticas eram sempre possíveis, levando em consideração a visão unilateral que Annie tinha do mundo. Se conseguisse escapar desta com vida, Paul mandaria um recado para Christopher. "Quando o editor me lembrava que você estava pretendendo fazer a crítica de um de meus livros, minhas pernas costumavam tremer. Você me elogiou algumas vezes, Chris, meu velho amigo, mas também arrasou comigo mais de uma vez, você bem sabe. De qualquer forma, eu só queria lhe dizer para continuar assim e fazer o pior que puder, pois acabo de descobrir um novo e completo método crítico, meu caro. Poderíamos chamá-lo de Churrasqueira Colorado ou de Escola de Pensamento do Balde Amarelo. Ele faz com que as coisas que vocês escrevem pareçam tão assustadoras quanto um passeio pelo carrossel do Central Park."
Isso tudo é muito divertido, Paul; ficar inventando bilhetes para mandar para críticos pode ser um bom passatempo, mas o que você precisa mesmo é de colocar mãos à obra. O que acha?
É, é isso mesmo.
A máquina sorria afetadamente para ele.
— Como eu te odeio! — murmurou Paul de mau humor, desviando os olhos para a janela.
A tempestade de neve que começara no dia seguinte ao da sua expedição ao banheiro persistira por dois dias. Havia pelo menos quarenta e cinco centímetros de neve no chão, desde a última nevasca. Quando o sol finalmente despontou por entre as nuvens, o jipe Cherokee de Annie não passava de um monte indistinto, na alameda em frente à casa.
No momento, porém, o sol voltara a brilhar e o céu mais uma vez surgia radiante. Sentado perto da janela, Paul sentia o calor e a luminosidade do sol em seu rosto e em suas mãos. Longos pingentes de gelo tornavam a derreter ao longo do telhado do celeiro. Paul lembrou rapidamente do carro coberto de neve, pegou uma folha de papel e colocou-a na Royal. No canto superior esquerdo da folha, escreveu A volta de Misery e, no canto direito, o número 1. Paul puchou a folha e bateu: Capítulo 1. Paul batia nas teclas com mais força do que necessário só para Annie ouvir que ele, finalmente, começara a escrever alguma coisa.
Logo abaixo de Capítulo 1 havia aquele imenso espaço branco como um banco de gelo, no qual ele tropeçaria e morreria, asfixiado pela massa gelada.
África.
Contanto que eles agissem corretamente.
Aquele pássaro veio da África.
Tinha um pára-quedas embaixo do assento.
África.
Agora é preciso enxaguar.
Paul sabia que não devia, mas deixou-se levar pelos pensamentos — se Annie o pegasse à toa ao invés de trabalhando, certamente ficaria furiosa. Ele não estava à toa; Ele estava, de certa forma, pensando. Buscando. Procurando.
Procurando o quê, Paulie?
Isso era óbvio. O avião estava caindo. Ele estava procurando o pára-quedas embaixo do assento. OK? Certo o bastante?
Certo o bastante. Encontrar um pára-quedas embaixo do assento é uma saída correta. Talvez não muito realista, mas correta.
Quando era criança, sua mãe o mandara uma ou duas vezes para uma colônia de férias no Centro Comunitário de Malden, durante o verão. E foi lá que ele aprendeu esse jogo. . . as crianças sentavam-se em círculo. . . o jogo era mais ou menos como os seriados que Annie gostava. . .ele quase sempre ganhava. Como era mesmo o nome do jogo?
Paul podia ver um grupo de quinze ou vinte crianças sentadas em círculo num canto do pátio, onde o sol não batia. Todas elas vestiam camisetas do Centro Comunitário de Malden e escutavam atentamente às instruções que o supervisor dava. Você Consegue?, o nome do jogo era Você Consegue? e era exatamente como os seriados, o nome daquele jogo era Você Consegue? Paulie, e é esse o nome do jogo agora, não é?
Era. Ele achava que sim.
Em Você Consegue?, o supervisor começaria a contar uma história a respeito de um menino chamado Corrigan, o descuidado. Corrigan estava perdido no meio de uma floresta na América do Sul. Subitamente, Corrigan percebeu que há leões cercando-o por todos os lados. Corrigan, o descuidado, está cercado por leões que se aproximam a cada minuto que passa. São apenas cinco da tarde, mas isso não é problema para aqueles pequenos gatinhos. No entender dos leões sul-americanos, o jantar às oito da noite é algo que vale apenas para os bobos.
A mente sonolenta de Paul via claramente o cronômetro do supervisor, embora fizessem mais de trinta anos que ele tivera nas mãos aquele cronômetro de prata de lei. Podia ver a lâmina fina dos números, o ponteiro menor que marcava os décimos de segundo e as letras miúdas que formavam o nome do fabricante: annex.
O supervisor escolheria um deles e perguntaria: "Daniel, você consegue?'' No instante que ele acabasse de falar, o cronômetro era acionado e Daniel tinha exatamente dez segundos para continuar a história. Se não conseguisse dizer nada naquele espaço de tempo, Daniel teria que abandonar o círculo e sair da brincadeira. Mas se conseguisse salvar Corrigan dos leões, o supervisor olharia para o círculo e faria a pergunta seguinte — e era esta, precisamente, a pergunta que lembrava Paul a situação em que se encontrava. A segunda pergunta do jogo era: "Ele conseguiu?".
Este era exatamente o papel de Annie. Não era necessária uma saída realista, mas uma saída correta. Daniel poderia dizer, por exemplo: "Por sorte, Corrigan, o distraído, estava com a sua Winchester e tinha bastante munição. Ele matou três leões e os outros fugiram assustados!" Neste caso, Daniel conseguira encontrar uma saída. O supervisor pararia o cronômetro e começaria outra história em que Corrigan, o distraído, se encontrava preso até a cintura num poço de areia movediça.
Dez segundos, porém, não eram o bastante e todos se atrapalhavam facilmente ou. . . tentavam trapacear. Alguém poderia continuar a história assim: "Foi então que apareceu aquele pássaro enorme, um abutre andino, penso eu, e Corrigan agarrou-o pelo pescoço; o pássaro o levantou pelos ares, e livrou-o da areia movediça."
Quando o supervisor perguntasse: "Ele conseguiu?", você tinha que levantar a mão se concordasse com a solução apresentada, ou mantê-la abaixada se achasse que ele ou ela haviam trapaceado. No caso do abutre andino, a criança provavelmente seria convidada a deixar o círculo.
Você consegue, Paul?
Claro! É assim que ganho a vida. É assim que consigo manter duas casas, uma em Nova Iorque, outra em Los Angeles. Por que eu consigo. E não tenho que pedir desculpas por isso, com os diabos! Tem um monte de gente que escreve melhor do que eu, entende melhor as pessoas e compreende do que a mente humana é capaz — estou cansado de saber disso! Mas quando o supervisor perguntava: "Eles conseguiram?", quase ninguém levantava a mão. Mas eles levantavam a mão para mim. . . ou para Misery. . .mas no final, é tudo a mesma coisa. Você consegue? Claro, pode apostar que sim! Há milhares de coisas neste mundo que eu não consigo fazer. Não conseguiria rebater uma bola em curva, mesmo que voltasse para a escola. Não sei consertar um vazamento numa pia. Não sei andar de skate nem tirar um fá maior no violão. Tentei me casar duas vezes, mas não consegui manter o casamento em nenhuma delas. Mas quando se trata de levar você por aí, de amedrontá-lo, de envolvê-lo, de fazer você chorar, rir e até gritar — eu consigo! Eu sou capaz! EU CONSIGO.
— O que temos aqui, meus amigos, são duas coisas em demasia: muito papo furado e muita folha em branco. — murmurou a voz insolente da máquina de escrever, intrometendo-se em meu profundo devaneio.
Você consegue?
Claro! Claro que sim! Ele conseguiu?
Não. Ele trapaceara. Em O filho de Misery, o médico não viera. Talvez a maioria de vocês possa ter se esquecido do que aconteceu na semana passada, mas o ídolo de pedra jamais se esquece. Paul tinha que deixar o círculo e sair da brincadeira. Me desculpem, por favor. Agora é preciso enxaguar. Agora é preciso. . .
— Enxaguar — murmurou Paul, apoiando-se no lado direito do corpo. Sua perna esquerda ficou ligeiramente torcida e uma onda de dor o invadiu, tirando-o da sonolência em que se encontrava. Cinco minutos haviam passado. Annie estava na cozinha lavando os pratos e ele ouvia o barulho da louça, a água caindo. Ela geralmente cantarolava enquanto fazia suas tarefas, mas Annie hoje estava em silêncio. Mau sinal. Aqui vai um boletim meteorológico especial para os moradores do município Sheldon. Um furacão está se aproximando e deve atingir o município até as cinco da tarde. Repito: Um furacão está. . .
Mas já era hora de parar de brincadeiras e arregaçar as mangas para o trabalho. Ela queria Misery de volta do mundo dos mortos, mas tinha que ser uma saída correta. Não muito realista, mas correta. Se conseguisse fazer isso nessa manhã, talvez conseguisse segurar a depressão que ele pressentia a caminho, antes que ela explodisse com toda a sua força.
Com o queixo apoiado numa das mãos, Paul observava a vista da janela. Estava agora totalmente desperto e, mesmo sem dar conta, sua mente não parava de pensar um só instante. Os dois ou três andares superiores de sua mente — aqueles que se ocupam de pensamentos do tipo: "qual a última vez que lavei a cabeça" ou "será que Annie vai trazer a próxima dose de remédio na hora certa?" — pareciam ter sumido de cena; deviam ter saído discretamente para degustar um prato de carne ou algo assim. Seus sentidos estavam ligados, mas Paul não prestava a menor atenção ao que seus olhos viam ou ao que seus ouvidos escutavam.
Uma outra parte de sua mente trabalhava furiosamente buscando idéias, rejeitando-as, combinando-as e rejeitando as combinações. Paul tinha noção deste processo interior, mas não tinha, nem tampouco queria, um contato direto com ele. Aquele era um trabalho duro e suado, como o dos trabalhadores explorados.
Paul chamava a esse processo de TENTAR TER UMA IDÉIA; e TENTAR TER UMA IDÉIA era bem diferente de TER UMA IDÉIA. TER UMA IDÉIA era uma maneira mais simples de dizer: "Eu estava inspirado" ou "Eureca!" ou, ainda, "Minha musa me inspirou!"
A idéia de Carros velozes surgira em sua cabeça um belo dia em Nova Iorque. Ele saíra de casa com a única intenção de comprar um videocassete para sua casa na rua 83, quando passou por um estacionamento e viu um dos empregados tentando abrir a porta de um carro com um pé-de-cabra. Isso foi tudo. Paul não tinha idéia se aquele ato era certo ou errado e, depois de andar dois ou três quarteirões, aquilo já não tinha mais importância. O empregado do estacionamento acabara de se tornar Tony Bonasaro. Ele sabia tudo sobre Tony, exceto o nome, que tirou mais tarde de um catálogo telefônico. Metade da história já amadurecera em sua mente e o restante começava a se encaixar. Paul sentia-se leve, feliz, extasiado. Sua musa chegara e ela era tão bem-vinda quanto um cheque inesperado chegando pelo Correio. Saíra para comprar um videocassete e voltara para casa com algo muito melhor. Ele tivera uma IDÉIA!
Tentar TER UMA IDÉIA não era um processo tão nobre nem tão sublime — embora fosse tão misterioso e necessário — quanto o outro. Quando se está escrevendo um livro, quase sempre aparece um bloqueio em alguma parte, e não adianta querer ir adiante, a não ser que se tenha uma IDÉIA.
Quando precisava de alguma IDÉIA, Paul geralmente vestia um casaco e saía para um passeio. Para ele, caminhar era um ótimo exercício, embora fosse também tedioso. Se não tivesse que sair em busca de uma IDÉIA, Paul levava um livro. Quando não havia com quem conversar durante o passeio, o livro tornava-se uma necessidade. Mas quando era realmente preciso TER UMA IDÉIA, o tédio estava para o bloqueio na história como a quimioterapia está para um sujeito canceroso.
Lá pelo meio de Carros velozes, Tony matara o tenente Gray quando este tentou lhe colocar algemas, sorrateiramente, dentro de um cinema em Times Square. Paul queria que Tony escapasse impune — pelo menos por algum tempo — porque não haveria uma terceira parte do livro mostrando Tony atrás das grades. Tony não podia simplesmente sair do cinema e deixar Gray sentado numa poltrona com o cabo de uma navalha enfiado embaixo do braço esquerdo, porque pelo menos três pessoas sabiam que Gray saíra para se encontrar com ele.
O problema era: como se livrar do corpo. E Paul não sabia o que fazer. Aparecera o bloqueio. E era esse o jogo. Corrigan, o distraído, acaba de matar um cara dentro de um cinema em Times Square e agora precisa levar o corpo até o carro sem que ninguém faça comentários do tipo: "Ei, esse cara está mesmo morto como parece ou apenas sofreu algum ataque?" Se conseguir levar o corpo de Gray até o carro, Corrigan irá até Queens e o largará numa construção abandonada que conhece. Paulie, você consegue?
Não era preciso responder em dez segundos, é claro. Paul ainda não tinha vendido o livro — estava escrevendo por conta própria — e não havia nenhum prazo estipulado para entrega. Mas havia sempre um prazo, uma hora em que era preciso deixar o círculo, e a maioria dos escritores sabia disso. Quando o bloqueio demorava muito a ser transposto, a história começava a se deteriorar, a cair aos pedaços; todos os pequeninos truques e artimanhas começavam a aparecer.
Paul saíra para um passeio e nada tinha em mente, exatamente como neste momento. Ainda não caminhara nem dois quilômetros quando um de seus trabalhadores forçados gritou lá de dentro: E se ele começar um incêndio?
Podia dar certo. Paul ainda não tivera o "estalo", nem sentia-se verdadeiramente inspirado; era como um carpinteiro que olhasse para um pedaço de madeira achando que ele pode quebrar o galho.
Tony podia tocar fogo no estofo de uma poltrona. Como? Ora, nesses cinemas, as poltronas estão sempre rasgadas. Haveria muita fumaça. Bastante fumaça. Ele não sairia de imediato. Assim que fosse possível, ele sairia carregando Gray, que passaria perfeitamente por uma pessoa desmaiada. E então?
A idéia era boa, mas não tinha nada de excepcional. Além disso, havia uma série de detalhes a serem elaborados. Mas ele tivera UMA idéia. Podia continuar o livro.
Paul nunca precisara ter uma idéia para começar um livro, mas seu instinto lhe dizia que isto podia ser feito.
Sentado calmamente na cadeira, o rosto na palma da mão, Paul observava o celeiro. Se pudesse caminhar, estaria lá fora, dando um passeio pelo campo. Sentado calmamente na cadeira, quase a cochilar, Paul esperava que algo lhe ocorresse. Não tinha noção de nada a seu redor, exceto dos pensamentos interiores. Construíra edifícios inteiros de faz de conta, fizera cálculos, acabara condenando-os e demolindo-os num abrir e fechar de olhos. Dez minutos se passaram. Quinze. Annie passava o aspirador na sala, sem cantarolar. Paul ouvia o barulho do aparelho, sem sentir que estava ouvindo. Os sons entravam por um ouvido e saíam pelo outro, como água correndo por uma calha.
Por fim, os rapazes dos trabalhos forçados deram uma luz, como faziam de vez em quando. Eles não paravam um só instante e Paul não os invejava nem um pouco.
Sentado calmamente na cadeira, Paul começou a TER UMA IDÉIA. A parte consciente de sua mente voltava a trabalhar — O DOUTOR ESTÁ! — e ele pegou essa idéia como se pega uma carta que o carteiro joga por debaixo da porta. Paul começou a examiná-la, quase a rejeitou (aquilo não era o rumor de reclamações dos rapazes lá de dentro?), decidiu reconsiderá-la e chegou à conclusão de que metade dela serviria para alguma coisa.
Uma outra luz — esta, mais intensa que a primeira.
Paul começou a bater com os dedos no peitoril da janela, inquieto.
Por volta das onze da manhã, começou a trabalhar. A princípio, num ritmo lento — uma ou outra batida seguida de longos intervalos silenciosos; algo equivalente a um arquipélago visto do alto: uma comprida fileira de montinhos de terra, entrecortada por extensas faixas azuis de mar.
Pouco a pouco, os intervalos de silêncio foram diminuindo e podia-se ouvir, de vez em quando, eventuais piques de batidas na máquina — elas soariam tão agradáveis na máquina elétrica de Paul, mas as batidas da Royal eram pesadas e terrivelmente irritantes.
Paul, entretanto, não prestou a menor atenção à voz esganiçada da máquina. Lá pelo final da primeira página, ele ainda estava aquecendo, mas ao chegar ao final da segunda, Paul já estava num pique total.
Algum tempo mais tarde, Annie desligou o aspirador e apareceu na porta do quarto a observá-lo. Paul não fazia a menor idéia de que Annie estava ali parada — para falar a verdade, ele não fazia idéia nem que ele estivesse ali. Conseguira escapar. Encontrava-se no cemitério da igreja de Little Dunthorpe, respirando o ar úmido da noite, sentindo o aroma do musgo, da terra e da neblina; ouviu o relógio da torre da igreja presbiteriana bater duas badaladas e colocou-o na história, sem pestanejar. Quando estava embalado, Paul chegava a ver as cenas através do papel. E era assim que se sentia agora.
Annie ficou a observá-lo por um longo tempo. Estava imóvel, com o rosto sério e sombrio, mas satisfeito. Quando ela foi embora, Paul sequer ouviu os pesados passos dela pelo corredor.
Paul trabalhou direto até às três da tarde e, às oito da noite, pediu a Annie que o colocasse de volta na cadeira; trabalhou por mais três horas, embora fortes dores o atacassem por volta das dez. Quando ela entrou no quarto, às onze horas, Paul pediu mais quinze minutos.
— Por hoje já chega, Paul. Você está branco feito uma vela.
Annie o colocou na cama e em menos de três minutos Paul estava dormindo. Pela primeira vez desde que saíra do nevoeiro, Paul conseguiu dormir direto a noite inteira. E pela primeira vez também, não teve qualquer tipo de sonho.
Mas sonhara bastante enquanto estivera acordado.
A VOLTA SE MISERY
Por um instante, Geoffrey Alliburton não soube dizer quem era aquele homem batendo na porta, não só porque estivesse sonolento e a campainha o tivesse acordado de um sono profundo. Para ele, a vida numa pequenina vila tinha um aspecto irritante: ali não vivia gente suficiente para que uma pessoa pudesse ser considerada um perfeito estranho; muito pelo contrário, havia apenas gente o suficiente para que um reconhecesse o outro de imediato. Algumas vezes, bastava ver alguém familiar para se começar uma conversa - esta sensação de familiaridade nem escondia uma improvável mas inteiramente possível relação ilegítima do passado. Na maioria das vezes, era possível lidar com esses momentos: a conversa seguia o seu curso normal e sempre a pessoa tentava se esforçar ao máximo para lembrar o nome de uma pessoa que ela não devia ter esquecido. A coisa só se tornava mais embaraçosa quando dois rostos familiares apareciam de uma só vez e a pessoa se via na obrigação de fazer as apresentações.
- Espero não estar incomodando, senhor - desculpou-se o homem, sem parar de revirar um boné de pano barato que tinha nas mãos.
A luz do lampião que trazia, Geoffrey pôde ver um homem de pele amarelada, cheia de rugas, com uma expressão terrivelmente assustada.
- Eu não queria falar com o senhor Bookings. Pelo menos não antes de ter falado com o senhor, se o senhor entende o que quero dizer.
Geoffrey não entendia, mas lembrou-se subitamente quem era aquele visitante noturno. A menção do nome do senhor Bookings, ministro da igreja, esclarecera o mistério. Há três dias atrás, o ministro encomendara o corpo de Misery no pequeno cemitério que ficava atrás da sacristia. Este homem estivera presente ao enterro e se mantivera a uma distância considerável, onde ninguém reparasse nele.
Chamava-se Colter e era um dos sacristãos da igreja. Ou melhor, para usar de franqueza, ele era coveiro.
- Em que lhe posso ser útil, Colter?
- São aqueles ruídos, senhor - disse o homem, cheio de hesitação. Os ruídos no cemitério. A senhora não descansa em paz, senhor, não descansa mesmo, senhor, eu estou com medo. Eu...
Geoffrey sentiu como se alguém tivesse lhe dado um soco na boca do estômago. Respirou fundo e sentiu uma onda quente de dor nas costelas, enfaixadas pelo doutor Shinebone. As sombrias previsões do medico afirmavam que ele certamente pegaria uma pneumonia depois de ficar a noite inteira dentro de uma vala, embaixo de um temporal. Já haviam passado três dias, porém, e Geoffrey não sentira nenhuma ponta de febre nem fora atacado pela tosse. Estava certo que não ficaria doente. Deus não perdoava os pecados assim tão facilmente, mas Geoffrey acreditava que Ele o pouparia para que pudesse viver bastante e perpetuar a memória de sua pobre querida.
- O senhor está bem? - perguntou Colter. - Ouvi dizer que o senhor não estava nada bem naquela noite. Na noite em que ela morreu...
- Sim, estou bem - assegurou-lhe Geoffrey - Esses ruídos que você afirma escutar, Colter... você sabe que eles não passam de pura imaginação, não sabe?
- Imaginação? - perguntou Colter, parecendo ofendido. - Só falta o senhor me dizer agora que não acredita mais em Jesus nem na vida eterna! Ora, Duncan Fromsley não viu o velho Patterson dois dias depois do enterro, tão brilhante quanto o brilho do pântano?
"E foi isso provavelmente o que ele viu", pensou Geoffrey; "o brilho do pântano somado ao bafo do que quer que o velho Fromsley tenha bebido por ultimo."
- E metade da cidade não viu aquele padreco que vagueia pelo terraço da fazenda Ridgeheath? - continuou o coveiro. - Eles ate mandaram buscar duas senhoras da Sociedade Psíquica de Londres para estudar a aparição.
Geoffrey sabia a quem Colter estava se referindo: duas velhas histéricas provavelmente sofrendo dos distúrbios da meia-idade.
- Fantasmas são tão reais quanto eu ou o senhor - afirmou Colter com veemência - A existência deles não me incomoda, mas aqueles ruídos são terrivelmente fantasmagóricos. Eu nem quero mais ir ao cemitério, mas tenho que cavar a sepultura do bebê dos Roydmans, que faleceu...
Geoffrey disse a si mesmo para ter paciência.. O impulso de mandar o pobre coveiro embora era, porém, quase irresistível. Geoffrey estava dormindo em frente a lareira, na mais santa paz, com um livro largado no colo e Colter o acordara... A cada segundo que passava, ele ficava ainda mais desperto pois a dor terrível pela perda de sua querida tomava conta de seu coração. Ela morrera há três dias, logo faria uma semana... um mês... um ano... dez anos. "Mas a dor", pensou ele, "era como uma pedra à beira mar." Quando ele dormia, era como se a maré subisse e trouxesse algum alívio. O sono era a rnaré que cobria a pedra da dor. Assim que acordava, porem, a maré começava a baixar e a pedra tornava-se visível outra vez, a prova incontestável de uma realidade irreparável. E a pedra permaneceria ali para sempre - ou até que Deus decidisse destruí-la.
Como esse idiota ousava vir até aqui com essa história de fantasmas!
A expressão do coveiro era, entretanto, tão sofrida, que Geoffrey acabou se controlando.
- Misery era muito querida - disse ele, calmamente.
- Sim, senhor, ela era, sim - respondeu Colter com fervor, enfiando a mão no bolso, de onde tirou um enorme lenço vermelho. O coveiro assoou o nariz estrondosamente e começou a chorar.
- Todos nós sofremos muito com a partida de Misery - disse Geoffrey ao mesmo tempo em que levava as mãos ate as ataduras e começava a coçar-se vigorosamente.
- Sim, senhor, todos nós sentimos muito, muito mesmo.
A voz de Colter estava abafada sob o lenço, mas Geoffrey podia ver os olhos dele. O coveiro chorava de verdade. Vendo isso, a raiva de Geoffrey se dissipou e ele se compadeceu do coveiro.
- Ela era tão boa, senhor! Sim, uma ótima pessoa e o que aconteceu foi terrível...
- É, ela era uma boa pessoa - retrucou Geoffrey serenamente. Um pouco contrariado, ele percebeu que estava prestes a chorar e que suas lágrimas cairiam como uma tempestade ao entardecer de um dia de verão. - Muitas vezes, Colter, quando perdemos uma pessoa muito especial - uma pessoa especialmente querida para nós - torna-se muito difícil aceitar que ela se foi. Por isso, imaginamos que ela não se foi, você está me entendendo
- Sim, senhor - respondeu Colter, impaciente. Mas aqueles ruídos!... Ah! Se o senhor ouvisse os ruídos!...
- Que tipo de ruídos você diz escutar? - perguntou Geoffrey, pacientemente.
Ele pensava que Colter fosse falar de algo como o barulho do vento entre as árvores - barulhos evidentemente aumentados pela própria imaginação - ou talvez de algum animal se dirigindo para o riacho Little Dunthorpe, que corria atrás do cemitério. Mas ele jamais esperara ouvir o que Colter lhe disse Numa voz muito assustada:
- Arranhões, senhor! Como se ela estivesse viva lá embaixo e estivesse tentando voltar para o mundo dos vivos.
Quinze minutos mais tarde, já sozinho, Geoffrey apoiou as mãos numa mesinha a um canto da sala de jantar. Sacudindo a cabeça de um lado para o outro, Geoffrey parecia um homem na proa de um navio, no meio de um vendaval. Mas ele se sentia no meio de um vendaval. Ele estava quase acreditando que a febre prevista tão alegremente pelo doutor Shinebone chegara, afinal, e com toda força. Mas não era por causa da febre que suas bochechas estavam vermelhas como dois botões de rosa e que sua pele estava tão branca feito uma vela. E também não era por causa da febre que suas mãos tremiam ao ponto de quase derrubar a garrafa de brandy que estava sobre a mesa..
Se houvesse alguma chance - por menor que fosse - daquela idéia monstruosa que Colter lhe enfiara na cabeça ser verdadeira, então não havia motivo nenhum de ficar ali parado. Geoffrey, porem, achava que precisava de um trago para não desmaiar.
Foi então que ele fez uma coisa que jamais fizera em toda a sua vida - e que jamais tornaria a fazer: Geoffrey Alliburton tomou a garrafa nas mãos e bebeu diretamente do gargalo.
- Preciso averiguar isso tudo - murmurou ele - Por Deus, eu preciso averiguar isso tudo. Mas se eu for até o fim dessa aventura maluca e descobrir que tudo não passava da imaginação fértil de um coveiro, eu vou arrancar a pele de Colter, não importa o quanto ele diga gostar de Misery.
Geoffrey pegou a carruagem e saiu. No céu escuro e sombrio, a lua minguante aparecia e desaparecia, interminavelmente, por trás de nuvens passageiras. Ele demorara apenas o bastante para vestir a primeira roupa que encontrou: um paletó de smoking marrom-escuro. A cauda do paletó voava ao vento e Geoffrey açoitava a velha égua, que não estava gostando nada do ritmo imposto por ele. Geoffrey, por sua vez, também não estava gostando das dores que sentia no ombro... mas tanto as suas dores quanto as do animal não podiam ser evitadas.
Arranhões, senhor! Como se ela estivesse viva lá embaixo e estivesse tentando voltar para o mundo dos vivos.
Este comentário, por si só, não teria causado tanto horror em Geoffrey. Mas ele lembrava agora de ter estado na fazenda Calthorpe no dia em que Misery morrera. Ele e Ian estava de frente um para o outro. Ian tentou sorrir, embora estivesse com os olhos rasos de água.
- Talvez fosse mais fácil se ela parecesse, pelo menos parecesse estar morta... Sei que isso pode parecer...
- Tolice - respondeu Geoffrey, tentando sorrir. - O agente funerário se esmerou bastante, não resta duvida.
- Agente funerário?! - gritou Ian.
Pela primeira vez, Geoffrey compreendera realmente que seu amigo estava a beira da loucura.
- Um agente funerário! Por Deus! Eu jamais permitira que um agente funerário viesse passar ruge e batom na minha esposa querida, como se ela fosse uma boneca!
- Ian, meu caro! Não precisa ficar... - Geoffrey pretendia apenas tocar o ombro do amigo, mas acabou por abraçá-lo. E os dois choraram, um nos braços do outro, como duas crianças. No cômodo ao lado, o filho de Misery - um menino de apenas um dia e ainda sem nome escolhido - começou também a chorar. A senhora Ramage, cujo coração também estava partido, entoou uma canção de ninar. Sua voz estava embargada e entrecortada de lágrimas.
Naquele momento, Geoffrey estivera muito mais preocupado com o estado em que Ian se encontrava do que no que ele dissera ou como o dissera. Só agora, porem, açoitando Mary para que ela corresse mais em direção a Little Dunthorpe, sem se incomodar com as dores no ombro, é que as palavras de Ian voltavam a sua cabeça, dando ainda mais sentido à historia de Colter: Se ela parecesse estar morta. Se ela parecesse estar mais morta, meu amigo...
E isso não era tudo. Naquela mesma tarde, as pessoas do vilarejo começaram a subir o monte Calthorpe para dar pêsames ao viúvo e o doutor Shinebone retornara. Ele não parecia estar bem e aparentava muito cansaço. Isto não era de estranhar Numa pessoa que garantia ter apertado a mão de Wellington - o Duque de Ferro, em pessoa - quando ele (Shinebone, não Wellington) ainda era criança. Geoffrey achava que esta história não passava de um exagero, mas o velho Shinny, como ele e Ian chamavam o médico quando garotos, acompanhara todas as suas doenças durante a infância e, mesmo naquela época, Shinny lhe parecia um homem muito idoso. Mesmo considerando que uma criança geralmente vê uma pessoa com mais de vinte e cinco como alguém de idade, ele imaginava que Shinny devia ter atualmente uns setenta e cinco anos.
Ele era velho... e as ultimas vinte e quatro horas haviam sido bastante conturbadas. Um homem velho e cansado não poderia ter cometido um erro?
Um erro terrível e irreparável?
Este pensamento, mais do que qualquer outro, foi o que fez Geoffrey sair de casa naquela noite fria e cheia de vento, em que a lua vagava incerta por entre as nuvens.
Teria o medico sido capaz de cometer um erro como esse? Parte dele - uma parte medrosa e covarde, que preferia correr o risco de perder Misery para sempre do que levar em conta as inevitáveis conseqüências de um erro como esse - negava que isto tivesse acontecido. Mas quando Shinny chegara...
Ele estava sentado ao lado de Ian, que dizia frases incoerentes, lembrando-se de quando eles haviam salvo Misery do calabouço do palácio de um louco visconde francês chamado Leroux. Ian lembrava de como eles haviam conseguido escapar, dentro de uma carroça de fervo, e de como, num momento crítico, Misery distraíra a guarda do visconde, balançando delicadamente uma de suas lindas pernas, que ela deixara à mostra. Geoffrey também se deixará levar por aquelas lembranças e agora se recriminava por isso. Por causa do seu estado, nem ele nem Ian haviam tomado conhecimento da presença de Shinny.
E o médico não estava com um ar distante, estranho e preocupado? Aquilo era apertas cansaço, ou seria alguma coisa mais... uma suspeita?
Não, é claro que não, protestou a mente de Geoffrey, apreensiva.
A carruagem voava, subindo o monte Calthorpe. A casa da fazenda estava às escuras, mas havia luz no chalé da senhora Ramage.
- Vamos, Mary! - disse ele à égua, açoitando-a uma vez mais. - Falta pouco, menina. Logo você poderá descansar.
Mas não tanto quanto imagina..
O exame que Shinny fizera em seu ombro deslocado parecia-lhe agora bastante superficial. E o médico não dirigira a Ian uma unica palavra, apesar do estado lastimável em que este se encontrava. A visita do médico fora tão breve quanto as convenções sociais para a situação exigiriam. Ao final da visita, ele perguntara: "Ela está na sala?"; Ian conseguira responder: "Sim, ela está na sala. De um beijo nela por mim, Shinny, e diga a ela que eu a verei muito em breve."
Ian começara a chorar convulsivamente. O medico murmurara duas ou três palavras de condolência e fora até a sala. Parecia-lhe agora que o velho carniceiro se demorara na sala mais do que ele pensava... ou Geoffrey estava sendo traído pela memória? Quando Shinny voltou da sala, sua expressao mudara e ele parecia alegre - não, sua memória não o estava traindo: Geoffrey teve certeza que aquela expressão não era adequada para um ambiente de dor e lágrimas, onde a senhora Ramage já tomara as providências de pendurar cortinas pretas nas janelas.
Geoffrey acompanhou o médico até a cozinha e, muito hesitante, pediu que ele desse a Ian algum remédio para dormir.
Shinny parecia estar bastante perturbado e dissera:
- Não é como o caso da Senhorita Evelyn-Hyde. Tive o cuidado de verificar para ter certeza.
O médico entrara na carruagem e partira, sem atender ao pedido de Geoffrey. Ele tornou a entrar e esqueceu-se do estranho comentário do médico, atribuindo o estranho comportamento dele a idade avançada, ao cansaço e a uma maneira particular de expressar sentimentos de pesar. Seus pensamentos voltaram a se ocupar de Ian e ele decidiu que, sem a ajuda de remédio para dormir, não lhe restara outra alternativa a não ser forçar o amigo a beber uma garrafa de uísque, ate que desmaiasse.
Esquecer... tirar da cabeça.
Até agora.
Não é como o caso da senhorita Evelyn-Hyde. Tive o cuidado de verificar para ter certeza.
Certeza de que?
Geoffrey não sabia, mas estava disposto a descobrir, nem que tivesse que pagar qualquer preço para provar que não estava mentalmente perturbado. E ele sabia que o preço podia ser bem alto.
A senhora Ramage ainda estava acordada quando Geoffrey bateu à sua porta. Já passavam duas horas do horário normal dela se recolher, mas, desde a morte de Misery, ela passara a se deitar cada vez mais tarde. Como não conseguisse pegar logo no sono, ela adiava a hora de deitar para não ficar tanto tempo a se remexer na cama.
Apesar de ser uma mulher pratica e bastante equilibrada, a senhora Ramage soltou um pequeno grito ao ouvir aquelas inesperadas batidas em sua porta, e chegou a se queimar com o leite quente que colocava numa xícara. Ultimamente, ela parecia estar sempre prestes a gritar, movida por um sentimento esquisito e ameaçador que jamais lembrava ter sentido algum dia. Não era um sentimento de tristeza, embora a senhora Ramage também estivesse tomada de dor. Ela às vezes tinha a impressão que certos pensamentos que gostaria de deixar de lado ficavam dando voltas em sua cabeça amargurada, triste e cansada.
- Quem bate à minha porta às dez horas da noite? - perguntou ela - Seja lá quem for, muito obrigada pela queimadura que acabo de levar:
- Sou eu, senhora Ramage. Geoffrey Alliburton! Pelo amor da Deus, abra a porta!
A senhora Ramage ficou de boca aberta e já corria para abrir a porta quando se lembrou que estava de camisola. Jamais escutara Geoffrey gritando daquele jeito e não acreditaria se alguém viesse lhe contar. Se havia algum homem em toda a Inglaterra cujo coração fosse mais corajoso do que o de seu querido patrão, esse homem era Geoffrey. Mas a voz dele parecia trêmula como a de uma mulher à beira de um ataque histérico.
- Só um minuto, senhor Geoffrey. Eu estou meio despida.
- Com os diabos! - gritou Geoffrey - Eu não me incomodaria se a senhora estivesse completamente despida! Abra a porta! Abra essa porta, pelo amor de Deus!
A senhora Ramage vacilou apenas por um segundo antes de correr e abrir a porta. A expressão do rosto dele deixou-a bastante atordoada e, mais uma vez, a presença distante de pensamentos nefandos se fez notar no fundo de sua mente.
Parado da soleira da porta, Geoffrey mantinha-se numa posição inclinada e estranha, como se sua coluna se tivesse deformado como as dos mascates, deformadas ao longo dos anos com o peso das sacolas. A mão direita de Geoffrey estava presa em ataduras embaixo do braço esquerdo; os cabelos estavam em desalinho; os olhos castanho escuros saltavam do rosto lívido; suas roupas, então, eram dignas de nota se levarmos em conta a maneira sempre cuidadosa (almofadinha, segundo alguns) com que Geoffrey se vestia. Ele usava um velho paletó de smoking com a cintura torta, a camisa com o colarinho desabotoado e as calças grossas de sarja cairiam melhor num jardineiro do que num dos homens mais ricos de Little Dunthorpe. Nos pés, Geoffrey calçava um velho par de chinelos.
A senhora Ramage, por sua vez, também não estava vestida para ir a nenhum baile: usava uma comprida camisola branca e uma touca com duas fitas desamarradas, que lhe caiam pelo rosto. Ela o observou cuidadosamente e percebeu que ele tornara a machucar as costelas quebradas há três noites atrás, quando saíra em busca do médico. Mas não era apenas de dor que seus olhos brilhavam. Geoffrey estava aterrorizado e mal conseguia se controlar.
- Senhor Geoffrey, o que foi que...
- Nada de perguntas - disse ele, numa voz muito rouca. - Não pelo menos até que me responda à pergunta que tenho a lhe fazer.
- Que pergunta, senhor? - disse ela, levando a mão até o volumoso peito. Agora, ela estava verdadeiramente assustada.
- O nome da senhorita Evelyn-Hyde significa alguma coisa para a senhora?
Subitamente, ela compreendeu a razão daqueles pensamentos sinistros que lhe vinham à cabeça desde a noite do último sábado. Aquele pensamento terrível já devia ter lhe ocorrido antes e ela o rejeitara, pois agora não precisou de maiores explicações. A simples menção do nome da pobre Senhorita Charlotte Evelyn-Hyde, falecida em Storping-on-Firkill, uma vila a oeste de Little Dunthorpe, foi o suficiente para que ela desse um grito pavoroso.
- Oh, meu Deus! Oh, meu Jesus Cristo! Ela foi enterrada viva? Ela foi enterrada viva? A minha querida Misery foi enterrada viva?
Antes que Geoffrey pudesse responder, a velha e corajosa senhora Ramage fez uma coisa que jamais fizera na vida, e que jamais tornaria a fazer; ela simplesmente desmaiou.
Geoffrey não tinha tempo para procurar por sais aromáticos e ate mesmo duvidava que uma senhora corajosa e forte como ela os tivesse em casa. Embaixo da pia, Geoffrey encontrou um pedaço de pano que cheirava ligeiramerfte a amônia. Ele o apanhou e esfregou pelo nariz e pela boca da senhora Ramage. A hipótese levantada por Colter, por mais tola que parecesse, era muito terrível para que ele se preocupasse com coisas sem importância.
Ela voltou a si movendo-se bruscamente. Deu um grito e abriu os olhos, e neles havia uma expressão confusa e desnorteada. Ela sentou-se e perguntou:
- Não, senhor Geoffrey; não foi isso o que o senhor quis dizer, diga que não é verdade...
- Eu não sei ainda se é verdade ou não. Mas nós vamos descobrir imediatamente. Imediatamente, senhora Ramage. Eu não posso cavar sozinho, se é que vai ser preciso cavar. A senhora poderia me ajudar, se for preciso? Não posso recorrer a mais ninguém.
Ela o olhava horrorizada, com as mãos cobrindo a boca. Até suas unhas estavam sem cor.
- O meu patrão... - disse ela, atordoada - 0 senhor Ian...
- Ele não deve ficar sabendo de nada, até que nós saibamos um pouco mais! Se Deus é bom, ele jamais deve ficar sabendo!
Geoffrey não ousou exprimir sua esperança mais profunda, esperança tão grande quanto seus receios. Se Deus fosse bom, ele ia descobrir esta noite... quando o único amor de sua vida seria resgatado do mundo dos mortos tão milagrosamente quanto Lázaro...
- Mas isso é terrível... terrível - desabafou ela, numa voz fraca e agitada.
Apoiando-se na mesa, a senhora Ramage levantou-se, cambaleante. Fios soltos de cabelo escorregavam da touca e lhe cobriam o rosto,
- A senhora está bem? - perguntou Geoffrey, com gentileza - Se não estiver, eu mesmo me encarrego de tudo.
Ela respirou fundo e firmou-se.
- Apanhe duas pás no barracão lá dos fundos - disse ela, dirigindo-se para a despensa - Acho que também tem uma picareta. Coloque-as na carruagem. Eu tenho meia garrafa de gim aqui na despensa. Ela está intocada desde que Bill morreu, há cinco anos atrás, no dia primeiro de agosto. Eu vou tomar um trago e me encontro com o senhor lá fora.
- A senhora é uma mulher corajosa. Ande depressa.
- Nada me assusta - disse ela, pegando a garrafa com a mão ligeiramente trêmula.
Não havia a menor camada de pó na garrafa (nem mesmo a despensa escapava da incansável flanela da senhora Ramage), mas o rótulo onde se lia CLOUGH & POOR BOOZIERS estava amarelado.
- Ande depressa o senhor!
Ela detestava bebidas fortes e seu estômago fez menção de vomitar o líquido de cheiro desagradável e gosto oleoso. Mas ela não permitiu. Precisaria daquele gole esta noite.
Sob um céu escuro marcado pela silhueta negra das nuvens que corriam para oeste e pela lua que descia para o horizonte, a carruagem seguia a toda velocidade em direção ao cemitério. A senhora Ramage era quem agora tocava a confusa égua Mary, que diria a eles - caso os animais pudessem falar - que devia haver algo errado; a essa hora da noite, ela deveria estar dormindo em sua aconchegante cocheira. As pás e a picareta batiam umas nas outras e a senhora Ramage imaginou que se alguém os visse, levaria um susto daqueles: deviam estar parecendo um par de ressurrecionistas das histórias de Dickens... ou um ressurrecionista sentado numa carruagem dirigida por um fantasma. Isto porque ela estava toda de branco - não tivera tempo sequer de vestir um roupão - e as fitas da touca e a camisola esvoaçavam ao vento, cobrindo seus tornozelos rijos e firmes.
Lá estava a igreja. Apavorada com o barulho do vento passando por entre as árvores, ela fez com que Mary seguisse pela alameda. Indagando a si mesma sobre o motivo que fazia um lugar tão sagrado parecer tão assustador à noite, ela chegou à conclusão que o problema não era com a igreja em si... mas com o objetivo daquela missão.
O primeiro pensamento que lhe viera a cabeça quando voltara a si era o de que precisava ajudar Geoffrey. Ele não estivera presente em todos os momentos, ajudando-os sempre, sem pestanejar? Só mais tarde foi que ela percebeu o quanto a idéia era maluca. O problema em questão não era mais a coragem de Geoffrey; era a saúde mental dele que estava em jogo.
Mas não havia sido preciso que Geoffrey lhe dissesse mais nada; a simples menção do nome da Senhorita Evelyn-Hyde fora o suficiente.
Lembrava-se agora que nem o senhor Geoffrey, nem o seu patrão estavam em Little Dunthorpe quando o caso aconteceu, cerca de seis meses atrás. Era primavera e Misery acabara de entrar na fase mais tranqüila da gravidez. Os enjôos matinais haviam passado, a barriga começava a despontar e os desconfortos maiores ainda estavam por vir. Muito alegremente, Misery despachara os dois homens para uma temporada de caça, jogos de carta, futebol e algumas outras atividades tolas que os homens tanto apreciam. Eles ficariam uma semana em Oak Hall, em Doncaster. A princípio, seu patrão ficara em dúvida se deveria ir ou não, mas Misery lhe garantira que estava muito bem, e quase o empurrara pela porta afora. A senhora Ramage não tinha duvidas que Misery estaria bem, mas todas as vezes que seu patrão e o senhor Geoffrey passavam uma temporada em Doncaster, ela ficava temerosa que um deles - ou quem sabe os dois - não voltasse com vida.
Oak Hall era uma propriedade herdada por Albert Fossington, um colega de escola de Ian e Geoffrey. A senhora Ramage tinha fortes razões para acreditar que Bertie Fossington fosse maluco. Cerca de três anos atrás, Bertie comera seu cavalo favorito - o que ele montava para jogar polo - quando o animal quebrou duas das pernas e precisou ser sacrificado. "Foi um gesto de carinho", dissera ele, na época. "Aprendi isso lá na Cidade do Cabo, com os Griquas. Ótimas pessoas. Eles põem lenha e tudo o que encontram nas fogueiras, e então? Alguns deles conseguiram carregar os doze volumes dosMapas de Navegação da Marinha, só no lábio inferior, Ah-AH! Me ensinaram que todo homem deve comer as pessoas que ama. É bastante poético, embora repugnante, Não?!"
Apesar do comportamento esquisito, o senhor Geoffrey e o seu patrão nutriam por Bertie um carinho grande. Numa das visitas de Bertie, em que ele quase despedaçara a cabeça de um dos gatos da casa ao tentar Jogar croqué com o pobre animal, a senhora Ramage perguntara a si mesma se o senhor Geoffrey e o seu patrão teriam que comer Bertie quando ele morresse. Na ultima primavera, os dois haviam passado quase dez dias na companhia dele, em Oak Hall.
Uns dois ou três dias depois deles partirem, a Senhorita Charlotte Evelyn-Hyde, de Storping-on-Firkill, fora encontrada morta no gramado aos fundos de sua casa, Cove O Birches. Próximo ao seu braço esticado, havia um ramo de flores recém arrancadas. O médico do vilarejo, um homem chamado Billford, era tido como um profissional competente, mas mandara chamar o velho doutor Shinebone para uma conversa. Billford diagnosticara a causa da morte como sendo um ataque cardíaco, mas ele não parecia de todo convencido, pois a moça tinha apenas dezoito anos e gozava de excelente saúde.
Alguma coisa parecia estar errada. O velho Shinebone também ficara visivelmente confuso, mas no final acabara concordando com o colega. E toda a vila acabou aceitando o fato: a moça devia ter algum problema congênito no coração e isso era tudo. O caso era raro, mas cada um podia se lembrar de algum caso semelhante ocorrido há algum tempo atrás. Foi provavelmente esta concordância geral que acabou salvando a reputação de Billford - assim como sua cabeça - depois do terrível desfecho. Todos concordavam que a morte da moça era um enigma, mas não passara pela cabeça de ninguém que ela podia não estar morta.
Passados quatro dias do enterro, uma idosa senhora de nome Soames (a senhora Ramage a conhecia vagamente) foi ao cemitério ao lado da Igreja Congregacional para depositar algumas flores no túmulo do marido, falecido no último inverno. Ela percebeu uma coisa branca sobre a terra e pensou, a princípio, que fosse um passarinho morto, já que era muito grande para ser a pétala de uma flor. À medida que se aproximava, porém, ela notou que aquele objeto branco não estava sobre o chão mas, sim, saindo do chão. Um pouco hesitante, a senhora Soames deu dois ou três passos e viu uma mão saindo para fora de um túmulo cavado recentemente. Os dedos congelados revelavam um comovente gesto de súplica e nas pontas dos dedos havia riscas de sangue, exceto no polegar.
A senhora Soames saiu do cemitério aos gritos, subiu correndo a rua principal de Storping-on-Firkill - uma corrida de quase dois quilômetros - e contou o ocorrido ao barbeiro, que também era guarda da polícia local. Em seguida, ela simplesmente desmaiou. A senhora Soames ficou de cama por quase um mês inteiro e ninguém a censurou por isso.
O corpo da pobre Senhorita Evelyn-Hyde foi exumado e a senhora Ramage lamentava terrivelmente que um dia tivesse dado ouvidos às horripilantes histórias sobre exumação de cadáveres. E era isso que ela estava pensando quando Geoffrey mandou a égua parar, em frente ao portão do cemitério da Igreja de Little Dunthorpe.
Reunindo o que restava de seu bom senso, o doutor Billford anunciou a causa da morte como sendo catalepsia. A pobre moça entrara aparentemente num transe hipnótico mortal, muito semelhante ao que os faquires indianos costumavam provocar em si mesmos ao deixarem sua pele ser espetada por agulhas ou antes de permitirem que fossem enterrados vivos. O transe devia ter durado cerca de quarenta e oito horas, talvez sessenta. De qualquer modo, fora o tempo suficiente para a moça voltar a si e ver que não se encontrava mais no jardim de sua casa, onde estivera colhendo flores, mas, sim, dentro de um caixão.
Aquela moça lutara corajosamente pela vida e a senhora Ramage, ao mesmo tempo em que entrava atrás de Geoffrey, no cemitério, onde uma fina neblina fazia as cruzes e estátuas dos túmulos parecerem objetos soltos no ar - chegou a conclusão de que o gesto dela apesar de muito nobre, não deixava de ser horrível.
A moça estava noiva e em sua mão esquerda - não aquela congelada saindo do meio da terra - havia um anel de noivado com um diamante e foi com ele que ela conseguiu rasgar o revestimento de cetim do caixão. Só Deus saberia dizer quantas horas ela gastara tentando levantar a tampa de madeira. Já no final, quase sem ar, ela parecia ter usado a mão esquerda para abrir caminho, enquanto tentava cavar com a direita. Mas não fora o bastante. Quando a encontraram, havia sangue em volta de seus olhos esbugalhados que revelavam uma derradeira expressão de terror.
O relógio na torre da igreja bateu doze badaladas e a senhora Ramage lembrou que sua mãe sempre dizia ser essa a hora em que a porta entre a vida e a morte se abria e os mortos podiam passar de um lado para o outro. Ela fazia tudo para não temer e para não sair correndo, pois o medo aumentaria a cada passo, ao invés de diminuir. Se começasse a correr, acabaria certamente desmaiando.
"Que mulher mais tola e medrosa!", pensou ela, repreendendo a si mesma. "Tola, medrosa e egoísta! Você devia estar pensando no seu patrão e não nos seus medos!... Se houver pelo medos uma chance da minha patroa..." Que nada! Era loucura pensar numa possibilidade dessas. Já passara tanto tempo, tanto tempo.
Ao chegarem em frente ao túmulo de Misery, os dois pararam como que hipnotizados. Além das datas de nascimento e de morte, havia apenas uma única inscrição: Lady Calthorpe. Amada por todos.
- O senhor não trouxe as ferramentas - disse a senhora Ramage, como se acabasse de acordar de um sono profundo.
- Não, ainda não.
Dizendo isso, Geoffrey deitou-se no chão e pôs o ouvido sobre a terra, onde brotos tenros de grama começavam a despontar.
Sob a luz do lampião que trazia na mão, a senhora Ramage não notou nenhuma diferença no rosto de Geoffrey, que continuava tão aterrorizado quanto quando batera em sua porta. Mas isso durou apertas um instante. Logo uma nova expressão surgiu em sua face. Uma expressão de esperança enlouquecida, misturada a uma ponta de horror.
Geoffrey virou-se para ela com os olhos arregalados e sussurrou:
- Eu acho que ela está viva, senhora Ramage!...
Tornando a virar o rosto para o chão, Geoffrey começou a gritar. Em outras circunstâncias, a cena teria sido cômica.
- Misery! Misery! Estamos aqui! Já sabemos de tudo! Espere um pouco! Espere só mais um pouco, minha querida!
Em questão de segundos, Geoffrey se levantou e correu para buscar as ferramentas na carruagem, deixando marcas de chinelo no chão úmido.
Prestes a desmaiar outra vez, a senhora Ramage se ajoelhou e, sem sentir que o fazia, colocou o ouvido direito sobre a terra, numa posiçao semelhante a que vira crianças fazendo quando colocavam o ouvido sobre os trilhos para escutarem o barulho dos trens.
E ela também pode ouvir uns arranhões baixos, feitos com dificuldade, muito diferentes do barulho de um animal cavando uma toca. Esses ruídos eram como o de unhas arranhando um pedaço de madeira.
A senhora Ramage respirou fundo, como que para injetar forças em seu coração, e gritou:
- Estamos aqui! Deus permita que não tenhamos chegado tarde! Nós estamos aqui!
Imediatamente, ela começou a cavar a terra com as mãos trêmulas e, apesar de Geoffrey ter voltado quase em seguida, ela já havia feito um buraco de cerca de vinte centímetros quando ele chegou.
Paul já estava na página nove do capítulo sete — Geoffrey e a senhora Ramage haviam conseguido tirar Misery do caixão com a maior rapidez, mas logo perceberam que ela não fazia a menor idéia de quem eram eles, como também de quem era ela própria — quando Annie entrou no quarto. Desta vez, Paul a ouviu chegar e parou de bater, triste por ser tirado do sonho.
Annie trazia consigo os seis primeiros capítulos, um maço de vinte e uma folhas que ela levara há uma hora atrás. Da vez anterior, ela levara menos de vinte minutos para ler o que ele escrevera. Com o olhar firme, notando sem grande interesse que Annie estava ligeiramente pálida, Paul perguntou:
— E então? Está certo agora?
— Está — respondeu ela distraída, como se estivesse dando uma conclusão precipitada. — Está certo, sim. E está muito bom. Maravilhoso. Mas tão horripilante! Não se parece em nada com os outros livros Misery. Uma pobre mulher acabando com a ponta dos dedos ao arranhá-los contra a tampa do caixão. . .
Annie meneou a cabeça e repetiu:
— Não se parece em nada com os outros livros Misery.
O homem que escreveu essas linhas, minha cara, também estava num estado de espírito dos mais horripilantes, pensou ele.
— Posso continuar?
— Se você não continuar, eu serei capaz de matá-lo! — respondeu Annie com um sorriso.
Mas Paul não retribuiu o sorriso. Em outros tempos, ele consideraria um comentário banal como esse algo semelhante a "Você é tão gostosa que eu seria capaz de comer você todinha". Agora, porém, o comentário não lhe parecia nem um pouco banal.
Ainda assim, Paul estava fascinado pela atitude de Annie, parada na entrada do quarto. Parecia-lhe que Annie estava com receio de se aproximar — como se Annie julgasse que alguma coisa nele a pudesse queimar — e Paul era vivo o bastante para perceber que ela não estava assim por causa do tema do livro, do enterro precipitado. Nada disso. Era por causa da diferença entre o que ele escrevera na primeira tentativa e nesta agora. Aquela primeira parecia uma redação do tipo "Como passei minhas férias de verão", escrita por um garoto da oitava série. Esta era diferente. A fornalha estava acesa. Não que ele tivesse escrito particularmente bem — o argumento era bom, mas os personagens tão estereotipados e previsíveis como sempre — mas dessa vez ele fora capaz de produzir calor; dessa vez, saía fogo pelas entrelinhas.
Ela sentiu o calor e acho que está com receio de chegar perto e se queimar, pensou ele, divertido.
— Muito bem — disse ele com brandura. — Annie, você não vai precisar me matar. Eu quero continuar. Sendo assim, por que não fazer isso agora mesmo?
— Mas é claro — disse ela aproximando-se.
Annie colocou as folhas sobre o tablado de madeira e recuou rapidamente.
— Você gostaria de ir lendo o livro à medida que escrevo?
— Gostaria, sim! — exclamou ela, com um sorriso. — Vai ser quase igual aos seriados que assistia quando garota.
— Então vou logo avisando que não posso lhe prometer uma cena de suspense ao final de cada capítulo. Um livro não é feito desse jeito.
— Eu não me importo — disse ela com fervor. — Eu ainda ia querer saber o que aconteceria no capítulo dezoito, mesmo que o dezessete terminasse apenas com Misery, Ian e Geoffrey sentados nas poltronas da varanda, lendo jornais. Eu já estou doida para saber o que vai acontecer. — Não me conte nada! — gritou ela bruscamente, como se Paul tivesse feito menção de lhe contar alguma coisa.
— Bem, eu não costumo mostrar o meu trabalho a ninguém até que ele esteja pronto — explicou ele, com um sorriso nos lábios. — Mas como este é um caso especial, eu ficarei contente de deixar você ler capítulo por capítulo.
E assim começam as mil e uma noites de Paul Sheldon, pensou ele.
— Você poderia me fazer um favor, Annie?
— Qual?
— Ir colocando esses malditos enes.
— Será uma honra! — exclamou ela, radiante — Agora deixarei você sozinho.
Annie foi até a porta, hesitou por alguns instantes e voltou-se. Mostrando uma enorme timidez, Annie lhe deu a única sugestão editorial de toda a sua vida:
— Talvez pudesse ter sido uma abelha.
Paul já virara de frente para a máquina, à procura da brecha no papel. Ele queria levar Misery até o chalé da senhora Ramage antes de parar de trabalhar. Tentando disfarçar a impaciência, Paul olhou para ela e perguntou:
— O que foi que você disse?
— Uma abelha — frisou ela, corando até as orelhas. — Em cada doze pessoas, uma é alérgica à picada de abelhas. Vi um monte de casos desses antes de. . . antes de me aposentar como enfermeira. A alergia pode se manifestar de diversas maneiras. Às vezes, uma picada de abelha pode causar estado de coma, o que é muito parecido com o que as pessoas costumam chamar de. . . uh. . . catalepsia.
Annie estava toda vermelha.
Paul considerou a idéia por alguns instantes e a descartou. Uma picada de abelha podia ter sido o motivo da pobre senhorita Evelyn Hyde ser enterrada viva. Até fazia sentido. Era primavera quando o caso aconteceu e, além disso, a moça estava no jardim. Mas Paul já havia decidido que a verdade do livro dependeria de como os dois enterros pudessem estar relacionados. Misery morrera em seu quarto e o fato de ser inverno, época em que não há muitas abelhas, não era o problema principal. O problema estava justamente na raridade de uma reação cataléptica. Paul achava que a Leitora Fiel não ia engolir o fato de duas mulheres sem nenhum parentesco, morando em cidades vizinhas, serem enterradas vivas num espaço de apenas seis meses, vítimas de uma reação à picada de abelhas.
Mas Paul não podia dizer isso a Annie, não apenas porque ela ficaria irritada. Ele não podia dizer isso a Annie porque ela ficaria muito ofendida. E apesar de toda a dor que já lhe causara, Paul não a queria machucar dessa maneira. Por que ele sabia o que era ser machucado assim.
— É uma possibilidade — disse ele, recorrendo à saída mais comum usada pelos escritores. — Vou guardá-la nos meus "arquivos", Annie, mas já tenho algumas idéias na cabeça. Pode ser que ela não sirva.
— Eu sei disso. . . você é o escritor, não eu. Esqueça o que eu disse. Sinto muito.
— Não seja bo. . .
Annie já estava longe e suas passadas pesadas desciam o corredor, em direção à sala. Paul ficou olhando para a porta vazia. Seus olhos abaixaram e se arregalaram.
A vinte centímetros do chão, em cada um dos batentes da porta, havia uma mancha escura e Paul compreendeu imediatamente que aquelas eram as marcas das rodas da cadeira. Annie não reparara nelas até agora. Já estavam ali há quase uma semana e era um milagre ela não ter reparado. Mas muito em breve — amanhã ou talvez hoje mesmo à tarde — ela apareceria com o aspirador de pó e descobriria.
Ela descobriria.
Paul escreveu muito pouco naquele dia.
A brecha no papel desaparecera.
Na manhã seguinte, Paul tomava uma xícara de café recostado sobre os travesseiros e observava as marcas na porta com o mesmo olhar culpado de um assassino que acaba de descobrir uma mancha de sangue na roupa, que ele, por negligência, esqueceu de limpar. Subitamente, Annie entrou correndo pelo quarto, com os olhos arregalados a lhe saltarem da face. Numa das mãos, ela trazia uma flanela e, na outra, inacreditavelmente, trazia um par de algemas.
Paul mal teve tempo de perguntar o que tinha acontecido. Em pânico, ela o colocou sentado e ele sentiu a pior onda de dor de todos aqueles dias. Paul deu um grito, a xícara escorregou de sua mão e se espatifou no assoalho. As coisas vivem quebrando por aqui, pensou ele. Ela viu as manchas. É claro que viu. Provavelmente, há muito tempo atrás. Para ele, esta era a única desculpa para justificar o comportamento extravagante de Annie — ela descobrira as manchas, afinal, e este era apenas o início de uma nova e sensacional série de torturas.
— Cale a boca, seu idiota — reclamou Annie, puxando os braços de Paul.
Ao mesmo tempo em que ouviu as algemas se fecharem, ele distinguiu o motor de um carro se aproximando. Paul ia abrindo a boca com intenção de falar, talvez de gritar, mas não teve tempo de fazer nem uma coisa nem outra. Annie lhe enfiou a flanela na boca e ele sentiu um gosto desagradável, que julgou ser Pledge, Endust ou algum produto do gênero.
— Não faça barulho! — advertiu ela, segurando o rosto de Paul entre as mãos. Os cabelos de Annie caíam sobre a testa e as bochechas. — Eu estou avisando, Paul. Se quem quer que esteja chegando ouvir alguma coisa — ou se eu ouvir alguma coisa e achar que ele também ouviu, eu mato ele, ou eles, depois mato você e, depois, a mim mesma.
Annie se empertigou. Seus olhos estava enormes. Nos lábios, via-se uma mancha de gema de ovo ressecada.
— Lembre-se bem, Paul!
Ele balançou a cabeça, mas Annie nem reparou. Ela já havia corrido para atender a porta. Um Chevy Bel-Air velho mas bem conservado estacionara atrás do jipe Cherokee de Annie. Paul escutou uma porta abrir e fechar e, pelo barulho, ele percebeu que era a porta do armário em que ela guardava as roupas de trabalhar no quintal.
O homem era tão velho e conservado quanto o carro — um homem típico do Colorado, se é que Paul alguma vez já havia visto algum deles. Ele parecia ter sessenta e cinco anos de idade, mas poderia muito bem ter oitenta; podia ser um antigo sócio de um escritório de advocacia ou o dono semi-aposentado de uma firma de construção; mas parecia-se mais com um fazendeiro ou um corretor de imóveis; devia ser um republicano daqueles que não colariam um adesivo no pára-choque do carro, mas colocariam um par de sapatos italianos de bico fino nos pés; devia ser, ainda, algum tipo de autoridade da prefeitura local, porque apenas um assunto dessa ordem podia fazer com que um homem daqueles e uma mulher solitária como Annie tivessem ocasião de se encontrar.
Paul viu Annie correndo na direção do homem, como que para interceptá-lo, e percebeu que um pouco daquela cena que ele imaginara parecia estar se tornando realidade. Só que não era um guarda quem vinha chegando, mas uma autoridade. Uma autoridade acabava de chegar na casa de Annie e a chegada dela serviria apenas para encurtar a duração de sua vida.
Por que não o convida para entrar, Annie? pensou ele, tentando não se sufocar com a flanela cheia de pó. Por que não o convida para entrar e conhecer o seu pássaro africano?
Oh, não. Annie preferiria levá-lo até o Aeroporto Internacional de Stapleton e colocar em suas mãos uma passagem para Nova Iorque na primeira classe do que convidar o Senhor Homem de Negócios das Montanhas Rochosas para entrar.
Annie começou a falar antes mesmo de chegar perto do homem. O vapor quente que lhe saía da boca formava pequenas nuvens que lembravam os balões vazios das histórias em quadrinhos. O visitante estendeu a mão enfiada numa elegante luva de couro preta, mas Annie a olhou com desprezo. De dedo em riste, ela começou a esbravejar e mais balões brancos e vazios brotaram de sua boca. Annie terminou de enfiar o casaco e só parou de apontar o dedo para o homem quando fechou o zíper do agasalho.
O homem tirou do bolso do sobretudo uma folha de papel e o estendeu para Annie, como a lhe pedir desculpas. Paul não tinha idéia do que se tratava, mas estava certo que Annie tinha uma palavra para ele: uma porcaria, talvez. Sem parar de falar um só instante, ela conduziu o homem pela alameda, tirando-o do campo de visão de Paul. Tudo o que ele via agora era a sombra dos dois na neve e ele percebeu que ela fizera aquilo de propósito. Se ele, Paul, não podia mais vê-los, logo não haveria a menor chance de que o senhor Rancho Grande pudesse vê-lo na janela do quarto de hóspedes.
Por cerca de cinco minutos, a sombra dos dois ficou refletida na neve que derretia e em certo momento Paul chegou a ouvir a voz furiosa e prepotente de Annie. Aqueles foram cinco longos minutos para ele. Seus ombros doíam e ele não tinha como se mexer para se acomodar melhor, pois Annie arrumara um jeito de prender as algemas na cabeceira da cama.
O pior de tudo, entretanto, era a flanela na boca. O cheiro do lustra-móveis estava provocando dor de cabeça e ele começou a se sentir cada vez mais enjoado. Paul concentrou-se em controlar os enjôos — de nada lhe adiantaria morrer sufocado, com a traquéia cheia de vômito, enquanto Annie discutia com um idoso funcionário da prefeitura, que aparava os cabelos uma vez por semana no barbeiro local e que provavelmente usava galochas em cima dos sapatos finos e pretos durante o inverno.
Quando Paul tornou a vê-los, gotas de suor frio lhe escorriam pela testa. Era Annie agora quem tinha o papel na mão e que seguia atrás do senhor Rancho Grande, de dedo em riste, com balões vazios a lhe saírem pela boca. O senhor Rancho Grande não se dignou a virar para ela. Seu rosto estava cautelosamente inexpressivo e apenas os lábios, pressionados um contra o outro, demonstravam algum tipo de emoção interior. Raiva? Talvez. Repugnância? Sim, era mais provável que fosse.
Você acha que ela é maluca. Você e seus parceiros de pôquer — que provavelmente são os que controlam essa droga de cidade e que provavelmente jogaram uma rodada para ver quem vinha trazer essa merda de papel. Ninguém gosta de trazer notícias ruins para gente maluca. Oh, senhor Rancho Grande! Se ao menos o senhor soubesse o quanto ela é realmente maluca, duvido que tivesse coragem de dar as costas para ela desse jeito!
O homem entrou no Bel-Air e bateu a porta. Annie continuou a lhe apontar o dedo através do vidro fechado e Paul pôde ouvi-la outra vez:
— . . .acha que é tão. . . tão. . . tão espeeeeeerto!
O senhor Rancho Grande começou a dar marcha à ré lentamente, sem dar a menor atenção a Annie.
— . . .acha que é tão importante — disse ela ainda mais alto, cerrando os dentes.
Subitamente, Annie deu um pontapé no pára-choque dianteiro do carro com tanta força que os flocos de neve que estavam sobre ele se espalharam pelo chão. O homem, que olhava por sobre o ombro direito enquanto manobrava o carro, voltou-se para ela estarrecido, sem mais demonstrar a cautelosa neutralidade que conseguira manter durante a visita.
— Vou lhe dizer uma coisa, seu trapaceiro! CÃO QUE LADRA NÃO MORDE! O que acha disso, hein?
Se o senhor Rancho Grande achava alguma coisa a respeito, não daria a Annie o prazer de demonstrá-lo — a mesma expressão de indiferença lhe cobriu a face, como uma máscara — e ele se foi.
Annie ainda ficou parada por alguns instantes, de mãos na cintura, antes de entrar em casa. Paul a ouviu abrir a porta da cozinha e fechá-la com força.
Muito bem, ele já foi embora. O senhor Rancho Grande foi embora, mas eu ainda estou aqui. Eu ainda estou aqui.
Dessa vez, entretanto, Annie não descontou sua raiva em cima dele.
Com o casaco aberto, ela entrou no quarto e começou a andar de um lado para o outro, sem olhar para ele. De vez em quando, Annie esfregava o papel no próprio nariz, como um gesto de autopunição.
— Dez por cento de multa! A conta está atrasada, é o que ele diz! Hipotecas! Advogados! Pagamento trimestral! Vencido! Porcaria! Pateta! Paspalho!
Paul soltou um gemido, mas Annie não tomou conhecimento. Ela estava no quarto sozinha, andando de um lado para o outro, cortando o ar com seu corpo sólido. Paul não parava de pensar que ela acabaria rasgando o papel em pedacinhos, mas Annie não pareceu ter coragem para tanto.
— Quinhentos e seis dólares! — gritou ela, sacudindo o papel no rosto de Paul e atirando a flanela no chão, distraidamente.
Paul virou o rosto e deu um arroto. Seus braços pareciam estar se soltando do tronco.
— Quinhentos e seis dólares e dezessete centavos! Eles sabem muito bem que eu não quero ninguém por aqui! Eu avisei! E olhe só para isso! Olhe só!
Paul não pôde evitar outro arroto.
— Se você vomitar, vai ter que ficar todo sujo! Eu tenho mais o que fazer. Ele disse algo a respeito de penhorar minha casa. O que significa isso?
— Algemas. . . — gemeu ele.
— Já sei, já sei — resmungou ela, impaciente. — Às vezes você parece um bebezinho! . .
Annie tirou a chave do bolso da saia e empurrou-o ainda mais para a esquerda. O nariz de Paul ficou imprensado contra os lençóis e ele soltou um grito. Mas Annie o ignorou. Houve um estalido e logo as mãos de Paul estavam livres. Ele sentou e recostou-se de volta nos travesseiros, tomando o cuidado de manter as pernas bem esticadas. Seus pulsos estavam esbranquiçados, mas Paul reparou que o sangue tornava a circular normalmente.
Annie enfiou as algemas no bolso da saia distraidamente, como se elas fossem um objeto comum, encontrado nas melhores casas, tal como um cabide ou lenços de papel Kleenex.
— O que é uma hipoteca? Isso significa que eles vão ficar com a minha casa? É isso o que significa?
— Não, isso significa que. . . — Paul deu um pigarro para limpar a garganta e, mais uma vez, sentiu o gosto horrível da flanela na boca. Paul soltou um soluço e arrotou. Annie não deu a mínima e continuou a encará-lo, impaciente, até que ele conseguisse falar.
— Isso significa apenas que você não pode vender a casa.
— "Apenas?'' Você tem uma idéia muito estranha do que quer dizer "apenas", senhor Paul Sheldon! Suponho que os problemas de uma pobre viúva como eu não sejam muito importantes para um cara rico como o senhor, seu espertinho!
— Muito pelo contrário. Os seus problemas são meus problemas, Annie. Eu só quis dizer que uma hipoteca não é muito comparado com o que eles poderiam fazer se você estivesse seriamente endividada. É esse o caso?
— Endividada? Você quer dizer num aperto?
— Num aperto, numa encrenca, sim, foi isso o que quis dizer.
— Eu não sou nenhuma aproveitadora! — disse ela e Paul pôde ver o brilho dos dentes dela enquanto falava. — Eu pago minhas contas, só que dessa vez. . . dessa vez eu. . .
Você se esqueceu, não foi isso? Você se esqueceu, da mesma maneira como sempre se esquece de virar o mês de fevereiro desse maldito calendário. Só que esquecer de pagar os impostos trimestrais é uma coisa muito mais grave do que esquecer de virar o calendário e você está furiosa porque é a primeira vez que esquece algo tão importante. A verdade é que você está piorando, não está, Annie? Piorando a cada dia que passa. Os psicóticos conseguem viver bem com o mundo até certo ponto e algumas vezes, como você bem sabe, eles deixam algum rastro imundo para trás. Mas há uma linha separando o mundo da psicose tratável da intratável. E a cada dia que passa você chega mais perto dessa linha. . . e uma parte de você está ciente disso.
— Eu não pude evitar — disse ela, emburrada. — Você me mantém ocupada o tempo inteiro.
Foi então que ele teve uma idéia — uma ótima idéia. E a possibilidade dela dar certo era enorme.
— Eu sei disso — retrucou ele, com sinceridade. — Devo minha vida a você e tenho sido um peso. Tenho quatrocentos dólares na minha carteira. Quero que apanhe o dinheiro e pague o que deve.
Annie olhou para ele confusa e satisfeita ao mesmo tempo.
— Mas Paul! Eu não posso aceitar seu dinheiro.
— Não é meu dinheiro. É todo seu — Paul lhe dirigiu seu melhor sorriso e pensou: Tudo o que espero, Annie, é que você continue a se esquecer das coisas para eu poder apanhar uma de suas facas e tenho certeza que estou em condições de usá-la direitinho. . . Você vai estar ardendo no fogo do inferno antes mesmo de dar conta que morreu.
— Ele é todo seu. Considere-o como uma parte da minha dívida com você.
Paul calou-se por um instante e arriscou dizer:
— Você é louca de pensar que eu não reconheço que estaria morto a essa hora se você não tivesse aparecido.
— Eu não sei. . . Paul. . .
— Eu falo sério — disse ele trocando o sorriso por uma expressão da mais cativante sinceridade (ele assim esperava — Por favor, Meu Deus, permita que seja bem cativante). — Você sabe que não salvou só a minha vida. Você salvou duas vidas: se não fosse você, Misery ainda estaria morta.
Annie o olhava radiante, o papel esquecido nas mãos.
— Você me mostrou que eu estava errado, me colocou nos eixos outra vez. Devo a você muito mais do que quatrocentos dólares por isso. Se não aceitar o dinheiro, eu ficarei chateado.
— Bem, eu. . . está bem. . . Eu. . . muito obrigada.
— Eu é que agradeço. Posso ver o papel?
Annie entregou-lhe o papel sem nenhuma objeção. Era apenas um aviso comunicando a multa sobre os impostos. A penhora da casa era pouco mais que uma formalidade. Paul passou os olhos rapidamente e devolveu-o.
— Você tem algum dinheiro no banco? Annie desviou os olhos.
— Tenho algumas economias, mas não num banco. Não confio em bancos.
— Aí diz que eles não podem penhorar a casa a não ser que você deixe de pagar o imposto até o dia vinte e cinco de março. Que dia é hoje?
Annie franziu as sobrancelhas ao ver o calendário.
— Meu Deus! Ele está errado!
Annie virou a folhinha, o menino e o trenó desapareceram — Paul assistiu a cena com um absurdo e profundo desapontamento. Março estampava um riacho de águas cristalinas serpenteando por entre as margens cobertas de neve.
Com um olhar míope, Annie aproximou-se do calendário e exclamou:
— Vinte e cinco de março é hoje!
Meu Deus, já tão tarde, tão tarde, pensou ele.
— Então foi por isso que ele veio.
Ele não veio para lhe dizer que a casa foi penhorada, Annie. Ele veio apenas avisar que serão obrigados a tomar essa medida se você não for à prefeitura levar o dinheiro até hoje. O homem estava praticamente lhe prestando um favor.
— Se você pagar os quinhentos e seis dólares até. . .
—. . . e dezessete centavos — interrompeu Annie, furiosa. — não se esqueça dessa porcaria de centavos.
— Muito bem, e dezessete centavos. Se você pagar isso hoje, antes da repartição fechar, nada de penhora. Se as pessoas desta cidade sentem por você realmente o que você acredita que elas sentem, Annie. . .
— Eles me odeiam! Estão todos contra mim, Paul!
— . . .então os seus impostos são uma das maneiras pelas quais eles podem tentar expulsá-la daqui. Ameaçar de penhora uma pessoa que se esqueceu de pagar apenas um imposto trimestral é uma medida estranha. Cheira mal. Isso fede, para dizer a verdade. Se você esquecesse dois pagamentos eles poderiam tentar lhe tirar a casa, vendê-la num leilão. A idéia é meio maluca, mas imagino que tecnicamente eles teriam esse direito.
Annie soltou uma gargalhada estridente.
— Eles que tentem! Eu acabo com eles! Você me escutou?
— No final das contas, eles é que acabam com você — disse Paul calmamente. — Mas não é essa a questão.
— Então qual é a questão?
— Annie, deve haver pessoas aqui em Sidewinder com os impostos atrasados há mais de dois ou três anos. Ninguém está tirando a casa delas ou vendendo seus móveis na prefeitura. Na maioria dos casos, a coisa mais grave que acontece a essas pessoas é o corte no fornecimento de água. Vamos pegar os Roydmans, por exemplo. — Paul lhe dirigiu um olhar judicioso: — Você acha que eles pagam os impostos em dia?
— Aquela gentinha? — disse Annie quase aos gritos. — Duvido!
— Eles estão apenas querendo lhe provocar — insinuou ele, sem acreditar muito no que dizia.
— Daqui eu não saio! Vou ficar aqui só para cuspir na cara deles! Vou ficar aqui e cuspir na cara deles!
— Você pode conseguir os cento e seis dólares que faltam para juntar com o dinheiro da minha carteira?
— Posso.
Annie parecia mais aliviada.
— Ótimo. Sugiro a você que pague essa droga de imposto hoje mesmo.
E enquanto você estiver fora, eu vou ver se consigo tirar aquelas manchas da porta. E enquanto você estiver fora, acho que vou tentar arrumar uma maneira de cair fora daqui, Annie. Já estou farto da sua hospitalidade.
— Acho que deve haver uns dezessete centavos ali na mesinha-de-cabeceira — finalizou ele, conseguindo dar um sorriso.
Annie Wilkes seguia suas próprias regras internas e, de certa forma, mostrava-se surpreendentemente cerimoniosa. Ela o obrigara a tomar água suja de um balde; privara-o do remédio até ele quase não agüentar de dor; obrigara-o a destruir a única cópia de seu livro mais recente; algemara-o e colocara em sua boca uma flanela cheia de cera para móveis — mas Annie não apanharia dinheiro de sua carteira. Ela trouxe a velha e gasta Lord Buxton que ele usava desde a universidade e colocou-a em suas mãos.
Todos os documentos haviam desaparecido. Para isso, Annie não tivera o menor escrúpulo. E Paul achou melhor não perguntar por eles.
Os documentos tinham sumido, mas o dinheiro estava todo ali. As notas, de cinqüenta na maioria, novinhas em folha. Com uma nitidez ao mesmo tempo sinistra e surpreendente, Paul viu a si mesmo parando o Camaro em frente à caixa externa do Banco Boulder, um dia antes de terminar Carros velozes. Lembrou-se de quando fez o cheque de quatrocentos e cinqüenta dólares e de que o endossara no verso antes de passar para o caixa (quem sabe até mesmo os rapazes dos trabalhos forçados estivessem jogando conversa fora naquele momento? Paul achava isso bastante provável). O homem que fizera aquelas coisas era uma pessoa livre, saudável e de bem com a vida — mas que não tivera o bom senso de apreciar devidamente nenhum destes gestos tão agradáveis. O homem que fizera aquelas coisas dera uma olhadela na garota do caixa com um olhar vivo e interessado — ela era alta, loura e usava um vestido lilás que destacava seu corpo roliço com um toque especial. E ela também olhara para ele. . . O que ela acharia dele agora, perguntou Paul a si mesmo?
Tinha quase vinte quilos a menos, parecia ter dez anos a mais e tinha um par de pernas inúteis e retorcidas.
— Paul?
Ele levantou os olhos. Em sua mão, havia quatrocentos e vinte dólares no total.
— O que foi?
Annie o observava com uma expressão desconcertante, misto de ternura e amor maternal — mas desconcertante, por causa da escuridão completa e sólida que havia por trás.
— Você está chorando, Paul?
Ele esfregou o rosto com a mão, sim, havia lágrimas escorrendo. Paul deu um sorriso e estendeu a mão com o dinheiro.
— Só um pouquinho. Eu estava pensando em como você tem sido boa para mim, Annie. Acho que a maioria das pessoas não conseguiria entender. . . mas eu posso.
Os olhos dela brilharam. Annie inclinou-se e tocou suavemente em seus lábios. Paul sentiu alguma coisa na respiração dela, alguma coisa vinda das entranhas profundas e amargas de Annie, alguma coisa que cheirava a peixe morto. Uma coisa mil vezes pior que o cheiro e/ou gosto da flanela com cera. E isso lhe trouxe de volta à memória o gosto amargo da respiração dela (Respire, seu filho da mãe, RESPIRE!) entrando-lhe pela garganta como um vento nojento de inverno. Paul sentiu um aperto no estômago, mas sorriu para ela.
— Eu amo você, meu querido — disse ela.
— Você poderia me colocar na cadeira antes de ir? Quero escrever um pouco.
— É claro — tornou ela, abraçando-o. — É claro que sim, meu querido.
A gentileza de Annie não chegou ao ponto dela deixar a porta sem trancar, mas isto não era problema. Dessa vez, Paul não estava morrendo de dores nem com outros sintomas. Com a mesma assiduidade com que um esquilo colhe nozes para o inverno, ele apanhara quatro grampos de cabelo pelo chão e os escondera embaixo do colchão, juntamente com as cápsulas.
Quando teve certeza que Annie já saíra e não mais perambulava pela casa para ver se ele ia "fazer alguma travessura" (outra pérola do vocabulário de Annie para sua coleção), Paul empurrou a cadeira até a cama e apanhou os grampos. Da mesinha-de-cabeceira pegou a caixa de Kleenex e a jarra de água. Mesmo com a Royal no tablado de madeira à sua frente, não foi muito difícil para ele empurrar a cadeira — seus braços estavam bem mais fortes. Annie Wilkes ficaria surpresa em saber como seus braços estavam fortes e ele esperava sinceramente que ela muito em breve o descobrisse.
Como máquina de escrever, a Royal era uma droga, mas era um aparelho ótimo para exercitar os músculos. Paul começara a levantar a Royal toda vez que Annie o colocava na cadeira e saía do quarto. A princípio, o máximo que conseguia era levantá-la umas cinco vezes cerca de quinze centímetros. Agora, porém, já conseguia erguê-la até dezoito centímetros, sem parar — nada mau, quando aquela droga pesava pelo menos um vinte e dois quilos.
Paul enfiou um dos grampos na fechadura e colocou os outros na boca, como uma costureira faz com alfinetes quando está costurando a bainha de um vestido. A contrário do que imaginava, o pedaço de grampo que ficara dentro da fechadura não o atrapalhou. Paul conseguiu puxar o volteador quase de primeira, liberando a lingüeta. Por alguns instantes, ocorreu-lhe a idéia de que Annie tivesse colocado um ferrolho pelo lado de fora — ele tentava parecer bem mais fraco e doente do que realmente estava, embora as suspeitas de uma pessoa paranóica de verdade fossem grandes e profundas — mas a porta abriu.
Sentindo-se ao mesmo tempo culpado e aflito, Paul sentiu a necessidade de terminar o trabalho rápido. Com os ouvidos atentos ao menor ruído do jipe — apesar de Annie só ter saído há quarenta e cinco minutos — ele enfiou um bolo de lenços na água e, inclinando-se desajeitadamente, começou a limpar o lado direito da porta. Seus dentes estavam cerrados e ele tentava ignorar a onda de dor.
Para seu imenso alívio, a marca na porta começou a desaparecer quase imediatamente. Paul temia que a cadeira tivesse arranhado a pintura, mas estava enganado.
Ele manobrou a cadeira e começou a esfregar a marca do outro lado. Quando julgou ter terminado, Paul afastou-se um pouco e olhou para a porta com os olhos extremamente desconfiados de Annie. As marcas ainda estavam lá, mas bem leves, quase imperceptíveis. E ele achou que estava tudo bem.
Esperava que estivesse tudo bem.
— Meu abrigo de furacões — murmurou ele, passando a língua nos lábios e sorrindo com frieza. — Que se danem os vizinhos e os amigos.
Indo de novo até a porta, Paul deu uma olhadinha pelo corredor, mas agora que as marcas estavam limpas ele não via por que se arriscar. Um outro dia, talvez. Ele saberia quando esse dia chegasse.
Tudo o que desejava no momento era escrever.
Paul fechou a porta e o barulho do trinco lhe pareceu muito estridente.
África.
Aquele pássaro veio da África.
Mas você não precisa chorar por aquele pássaro, Paulie, porque depois de algum tempo ele se esquece do aroma das savanas ao meio-dia, do barulho dos animais selvagens bebendo água na fonte e do cheiro ácido das árvores da grande clareira ao norte de Big Road. Depois de algum tempo, ele se esquece do vermelho vivo do sol se pondo atrás de Kilimanjaro. Depois de algum tempo, ele só conhece o pôr-de-sol nevoento e enfumaçado de Boston — isso é tudo o que ele se lembra, tudo o que quer se lembrar. Depois de algum tempo, ele não quer mais ir embora e se alguém o pega e o leva de volta, libertando-o, ele vai apenas se empoleirar em algum canto, triste e com medo e com saudades de casa em dois sentidos desconhecidos e terrivelmente inevitáveis, até que alguém apareça e o mate.
— Oh, África, Oh, merda! — disse ele, numa voz trêmula. Com lágrimas nos olhos, Paul empurrou a cadeira até a cesta de lixo e escondeu os lenços de papel ensopados embaixo das folhas amassadas. Em seguida, ele pôs a cadeira no mesmo local de antes, próximo da janela, e enfiou uma folha na máquina.
A propósito, Paulie, será que o pára-choque do seu carro já está saindo fora da neve? Será que ele já está brilhando alegremente ao sol, esperando apenas que alguém o perceba enquanto você fica aqui sentado jogando fora o que pode ser sua última chance de escape?
Paul olhava indeciso para a folha em branco.
Agora não vou mais conseguir escrever. Isso estragou tudo.
De alguma forma, nada jamais o impedira de escrever. Isto "poderia" acontecer algum dia, Paul sabia disso, mas apesar da conhecida fragilidade do ato criativo, esta sempre fora a coisa mais forte e marcante de sua vida — nada jamais impedira de jorrar aquela louca torrente de sonhos: nem o álcool, nem as drogas, nem as dores. Paul lançou-se a essa torrente como um animal sedento que encontra uma fonte ao cair da noite; em outras palavras, Paul encontrou a brecha no papel e jogou-se dentro dela com gratidão. Quando Annie voltou, às seis e quinze, ele já tinha batido quase cinco folhas.
Nas três semanas seguintes, Paul Sheldon sentiu-se cercado por uma tranqüilidade falsa e eletrizante. Sua boca estava permanentemente seca. Todos os barulhos lhe pareciam altos demais. Havia dias em que Paul se julgava capaz de entortar colheres com um simples olhar, e havia outros em que se sentia a ponto de chorar histericamente.
Fora esse clima e a coceira forte e incessante das pernas sarando, a única coisa tranqüila era a continuidade do trabalho. O bolo de folhas à direita da máquina crescia sem parar. Antes desses estranhos acontecimentos, Paul julgava quatro folhas por dia o seu maior rendimento (quando estava escrevendo Carros velozes, ele batia em média três folhas por dia — duas, muitas vezes — antes da arrancada final). Nessas três semanas eletrizantes, porém, que culminaram na tempestade do dia quinze de abril, Paul conseguira bater doze páginas por dia: sete de manhã e cinco à noite. Se em sua vida anterior (Paul começara a dividir sua vida assim, sem ao menos dar conta) alguém sugerisse a ele trabalhar nesse ritmo, Paul teria dado boas gargalhadas. Quando a chuva começou, ele tinha duzentas e sessenta e sete folhas batidas de A volta de Misery — apenas um rascunho, claro, mas Paul dera uma olhada nele e o considerava surpreendentemente bom.
Em parte, isso devia-se ao fato dele estar levando uma vida surpreendentemente organizada. Nada de noites longas rodando de bar em bar, seguidas de dias longos e atordoados que ele passava tomando café, suco de laranja e tabletes de vitamina B (dias em que só de olhar para a máquina de escrever ele ficara horrorizado e virava as costas). Nada de acordar ao lado de uma loura ou ruiva que ele arranjara em algum lugar a noite passada — uma garota que parecia uma princesa à meia-noite e que virava uma bruxa às dez da manhã. Nada de cigarros. Certa vez, Paul ensaiou pedir um cigarro numa voz muito tímida, mas o olhar de Annie escureceu de tal modo que ele lhe disse imediatamente para esquecer. Ele era o Senhor Perfeito. Nada de maus hábitos (exceto pelas doses de codeína, claro, ainda não fizemos nada a esse respeito, não é mesmo, Paul?), nada de divertimentos. Aqui estou eu, pensou ele certa vez, o único drogado do mundo que leva uma vida monástica. Às sete, levantar. Engolir duas cápsulas de Novril com suco. Às oito, café da manhã, servido na cama. Três vezes por semana, apenas um ovo cozido ou mexido. Cereais nos outros quatro dias. Ser colocado na cadeira, em frente à janela. Encontrar a brecha no papel. Entrar pelo século dezenove onde os homens eram homens e as mulheres usavam anquinhas embaixo do vestido. Almoço. Cochilo. Levantar outra vez, fazer cortes e correções, ou apenas ler. Annie tinha tudo o que Somerset Maugham escrevera (certa vez Paul pensou melancolicamente se ela não teria o primeiro romance de John Fowles, mas achou melhor não perguntar) e ele começou pelos vinte e tantos volumes que compreendiam a obra de autor, fascinado pelo domínio engenhoso que ele mostrava ter sobre a narrativa. Ao longo dos anos, Paul acabara se conformando com o fato de não conseguir mais ler um livro como fazia quando menino; ao tornar-se um escritor, Paul acabou obrigando a si mesmo a analisar qualquer coisa que lesse. Mas Maugham o seduziu de tal jeito que ele voltou a ser novamente um menino — e isso foi maravilhoso. Às cinco da tarde, Annie servia um jantar leve e, às sete, trazia a televisão preto e branco para assistirem M*A*S*H e WKRP Cincinnati. Depois dos programas, Paul escrevia um pouco mais e, quando se cansava, empurrava a cadeira vagarosamente até a cama (ele poderia empurrar mais rápido, mas era bom que Annie não ficasse sabendo). Sempre que ouvia o barulho da cadeira, Annie vinha para colocá-lo na cama. Outra dose de remédio. Pronto. Apagado como uma lâmpada.
E o dia seguinte seria exatamente a mesma coisa. E o dia seguinte. E o dia seguinte.
A razão dessa produção surpreendente não era apenas uma vida metódica. Annie, por si só, era uma razão ainda maior. Afinal de contas, era dela a única e hesitante sugestão da picada de abelha, que acabara dando forma ao livro e dando a Paul um entusiasmo que ele jamais imaginara sentir por Misery novamente.
Desde o início, ele estivera certo de uma coisa: não havia realmente nenhuma Volta de Misery. Ele concentrara toda a sua atenção apenas em arranjar uma maneira de tirar aquela cadela do túmulo sem trapacear, até que Annie se decidiu a inspirá-lo dando-lhe uma lavagem com um punhado de facas Ginsu. Problemas menores, tais como qual seria o enredo do livro, iam ter que esperar.
Nos dois dias seguintes ao da saída de Annie para saldar o imposto, Paul tentou tirar da cabeça o fracasso por não ter tirado proveito do que poderia ter sido a sua grande chance de escapar. Tentou concentrar-se apenas em levar Misery de volta ao chalé da senhora Ramage. Levá-la para a casa de Geoffrey não seria uma boa medida. Os criados — especialmente Tyler, o mordomo fofoqueiro de Geoffrey — iam começar a falar. E era preciso ainda dar certo destaque à amnésia de Misery, causada pelo choque de ter sido enterrada viva. Amnésia? Merda, aquela galinha nem conseguia falar direito. Levando em conta os balbucios comuns de Misery, aqueles eram apenas suspiros de alívio.
Sendo assim, e o resto? Aquela cadela já estava fora do túmulo, e agora? Onde está o restante da maldita história? Será que Geoffrey e a senhora Ramage deviam contar à Ian que Misery estava viva? Paul achava que não, mas não tinha muita certeza — e não ter muita certeza, ele sabia, era uma região do purgatório sem qualquer atrativo reservada exclusivamente para escritores que dirigem correndo sem ter a menor idéia para onde estão indo.
Paul olhava para o celeiro, pensativo. Ian não, não por enquanto. Em primeiro lugar, o médico. Aquele maldito médico com o nome cheio de enes. Shinebone.
Ao pensar no médico, Paul tornou a lembrar do comentário de Annie a respeito da picada de abelha. E este pensamento lhe ocorria nos momentos mais inesperados. Uma em cada doze pessoas. . .
Mas não servia. Duas mulheres sem nenhum parentesco morando em cidades vizinhas — as duas sofrendo de um tipo raro de alergia à picada de abelha?
Três dias após o Grande Saldo do Imposto Annie Wilkes, Paul estava quase adormecendo depois do almoço quando os rapazes dos trabalhos forçados surgiram com um argumento, um argumento de peso. Dessa vez, eles não mandaram apenas uma luz — dessa vez, foi como a explosão de uma bomba H.
Ele sentou-se na cama de um salto, ignorando a onda de dor que sobreveio com o movimento.
— Annie! — gritou ele — Annie, venha até aqui!
Ele a ouviu pulando os degraus dois a dois e correndo para o quarto. Quando entrou, ela tinha os olhos arregalados e muito assustados.
— O que foi que aconteceu, Paul?! Você está com cãibra? Você. . .
— Não é isso — respondeu, mas é claro que ele estava — sua mente estava com cãibra — Não é isso, Annie. Desculpe-me se a assustei, mas você tem que me ajudar a sentar na cadeira. Tive uma idéia fodida!
O palavrão saiu de sua boa sem que ele notasse, mas dessa vez não houve problema — Annie o observava com respeito e ainda muito assustada. Era a versão mundana do fogo pentecostal queimando bem na frente dos olhos dela.
— Claro, Paul.
Annie o colocou na cadeira o mais rápido possível e já ia empurrando-o até a janela quando ele balançou a cabeça, impacientemente.
— Isso não vai demorar, mas é muito importante.
— Tem alguma coisa a ver com o livro?
— É o livro em si! Fique quieta. Não fale comigo. Ignorando a máquina de escrever — ele nunca usava a máquina para fazer anotações — Paul agarrou uma das canetas e em pouco tempo encheu uma folha inteira de garranchos que muito provavelmente só poderiam ser lidos por ele mesmo.
Elas eram parentas. Foram as abelhas e as duas foram afetadas da mesma maneira porque elas eram parentas. Misery era órfã. E daí? A filha da senhora Evelyn-Hyde era IRMÃ DE MISERY. Ou meia-irmã. Isso é provavelmente ainda melhor. Quem começa a desconfiar? Shinny? Não, Shinny é um idiota. A Sra. R. Ela vai visitar Charl. A mãe de E-H e . . .
Foi então que lhe ocorreu uma idéia bastante encantadora — pelo menos em termos de enredo. Paul levantou os olhos arregalados, a boca entreaberta.
— Paul? — perguntou Annie, apreensiva.
— Ela sabia! — murmurou ele — É claro que ela sabia. Ou pelo menos tinha uma grande desconfiança, mas. . .
Paul tornou a se curvar sobre as anotações.
Ela — a Sra. R. — percebe de imediato que a Sra. E-H tem que saber que M. tem parentesco com a sua filha. O mesmo tipo de cabelo ou algo do gênero. Lembre-se que a mãe de E-H está começando a parecer um personagem princ. Você vai ter que trabalhar ele um pouco mais. A Sra. R. começa a perceber que a Sra. E-H PODIA TER sabido que Misery foi enterrada vida!!! E se a velha senhora desconfiar que Misery foi o resultado de seus dias de gandaia?
Paul largou a caneta e pegou o papel. Em seguida, tornou a pegar a caneta vagarosamente e rabiscou mais algumas linhas.
Três pontos imprescindíveis:
Hum, aqui surge uma outra coisa. Será que Misery descobre que a mãe preferia correr o risco de não só uma, mas duas de suas filhas serem enterradas vivas, do que contar a verdade?
E por que não?
— Se você quiser, pode me colocar na cama outra vez. Desculpe-me se pareci meio maluco; eu só estava excitado demais.
— Está tudo bem, Paul — respondeu ela, ainda assustada. Desse dia em diante, o trabalho prosseguiu admiravelmente bem.
Annie tinha razão. A história acabou se tornando muito mais horripilante do que qualquer um dos outros livros Misery. O primeiro capítulo não tinha sido apenas um simples acaso, mas um preâmbulo. De todos os livros da série, entretanto, esse era o que tinha o enredo mais bem elaborado e os personagens mais intensos. Os três últimos não passavam de aventuras previsíveis recheadas de cenas picantes de sexo para agradar às senhoras. Paul começou a reparar que este livro era um romance gótico e, por isso mesmo, dependia mais de um enredo do que de passagens críticas. E os desafios eram constantes. O jogo "Você Consegue?" não tinha servido apenas para dar início ao livro. Pela primeira vez em muitos anos era "Você Consegue?" quase todos os dias. . . e ele estava descobrindo que conseguia. Mas a chuva começou a cair e as coisas se modificaram.
De oito a catorze de abril, os dois desfrutaram de uma sucessão de dias bonitos. O sol brilhava num céu sem nuvens e a temperatura chegou algumas vezes a alcançar os 19 graus. Atrás do gracioso celeiro de Annie, começavam a aparecer pedaços escuros de terra. Escondido atrás do trabalho, Paul procurava não pensar no carro, que a essa altura já devia ter sido encontrado. Isso não afetava o seu trabalho, mas sua disposição; cada vez mais ele sentia como se vivesse numa câmara escura, respirando um ar denso. Toda vez que o Camaro surgia em sua cabeça, ele chamava imediatamente a Polícia da Mente e o pensamento era algemado e levado embora. O problema era que esse pensamento irritante sempre arrumava uma maneira de escapar e aparecer em sua cabeça, de um jeito ou de outro.
Certa noite, Paul sonhou que o senhor Rancho Grande voltava à casa de Annie. Ele saía do seu Chevrolet Bel-Air muito bem conservado e tinha um pedaço do pára-choque do Camaro numa das mãos e o volante na outra. Isso pertence à senhora?, perguntara ele a Annie.
Na manhã seguinte, Paul acordara quase alegre.
Annie, por sua vez, nunca estivera tão bem-humorada como naquela semana cheia de sol, início de primavera. Ela limpava a casa, cozinhava pratos vistosos (mesmo assim, tudo o que ela fazia tinha curiosamente um gosto de comida industrializada, como se anos e anos comendo em refeitórios hospitalares tivessem de algum modo afetado qualquer dote culinário que ela pudesse ter tido algum dia); todas as tardes, ela o embrulhava num lençol grosso e azul, enfiava-lhe um chapéu verde na cabeça e o levava para a varanda dos fundos da casa.
Nessas ocasiões, Paul sempre levava um livro de Maugham, mas raramente o abria — estar ao ar livre era uma sensação maravilhosa demais para que ele desviasse sua atenção para outras coisas. Na maioria das vezes ele se deixava ficar ali sentado, respirando o ar doce e fresco ao invés do ar viciado de seu quarto de doente; ouvia as gotas de gelo caindo e via a sombra das nuvens deslizando vagarosamente sobre os campos onde a neve derretia. E isto era o melhor de tudo.
Annie vivia cantando numa voz alta e desafinada e ria como uma criança das piadas de m*a*s*h e WKRP, especialmente daquelas um pouquinho mais indecentes (que no caso da WKRP eram a maioria). Incansável, ela preencheu todos os enes dos capítulos 9 e 10 assim que Paul os terminou.
O dia quinze de abril amanheceu encoberto e cheio de vento e Annie se modificou. Talvez fosse a queda da temperatura, pensou ele. Mas esta era uma explicação tão boa quanto outra qualquer.
Ela não apareceu para lhe trazer o remédio antes das nove — e a essa altura Paul já estava precisando tanto dele que chegou a pensar em apanhar uma das cápsulas que escondera. Não houve café da manhã. Apenas o remédio. E quando ela entrou no quarto, ainda estava vestida no roupão rosa acolchoado. Com uma profunda apreensão, Paul reparou que marcas vermelhas semelhantes a arranhões cobriam o rosto e os braços de Annie. Havia restos de comida espalhados pelo roupão e ela calçara apenas um dos chinelos. Nhém-nhém, fazia o chinelo de Annie a medida que ela se aproximava. Nhém-nhém, nhém-nhém, nhém-nhém. Os cabelos caídos em volta do rosto. Os olhos sombrios.
— Aqui está.
Annie jogou as cápsulas para ele. Suas mãos estavam imundas. Marcas vermelhas, marrons e uma coisa branca e grudenta. Paul não tinha a menor idéia do que fosse, e também não queria saber. O remédio caiu em seu peito e escorregou em direção ao pescoço. Annie foi embora. Nhém-nhém, nhém-nhém, nhém-nhém.
— Annie?
Ela parou, sem se voltar para ele. Assim de costas, ela parecia ainda maior, o contorno dos ombros no roupão cor-de-rosa, e os cabelos dando a impressão de um capacete amassado. Ela parecia uma mulher das cavernas.
— Está tudo bem com você, Annie?
— Não — disse ela, indiferente, voltando-se para ele.
Com a mesma expressão sombria, Annie começou a apertar o lábio inferior com o polegar e o indicador da mão direita. Ela puxou, torceu e beliscou ao mesmo tempo até que a gengiva começou a sangrar a ponto de escorrer sangue pelo queixo. Sem uma palavra, Annie deu as costas e foi embora enquanto Paul, atordoado, tentava se convencer de que vira realmente aquela cena acontecer. Ela bateu a porta e . . . passou a chave. Nhém-nhém fez o chinelo de Annie descendo o corredor em direção à sala. Paul ouviu o rangido da poltrona favorita de Annie e nada mais. Nem televisão, nem ela cantando. Nem tilintar de pratos e talheres. Ela estava apenas sentada. Sentada na sala, sem estar muito bem.
Foi então que ele ouviu um barulho. Um único barulho, claro e nítido. Uma bofetada. Uma sonora bofetada. E como ele estava do lado de cá de uma porta trancada e ela estava do lado de lá, não era preciso ser Sherlock Holmes para descobrir que Annie esbofeteara a si mesma. E pelo barulho, a bofetada foi para valer. Em sua cabeça, surgiu a imagem de Annie enterrando as unhas curtas na pele sensível e cor-de-rosa da gengiva.
Subitamente, Paul se lembrou de uma observação sobre doentes mentais que ele anotara para o primeiro livro Misery — onde grande parte da ação se passava no Hospital Bedlam, em Londres, para onde Misery fora mandada pela vilã terrivelmente ciumenta. Quando um maníaco-depressivo começa a entrar para valer na fase depressiva, escrevera ele, um dos sintomas apresentados podem ser gestos de auto-punição tais como bofetadas, murros, beliscões, queimaduras com ponta de cigarro, etc...
E Paul subitamente entrou em pânico.
Paul lembrou-se de um ensaio de Edmund Wilson em que ele dizia, no seu estilo tipicamente contrariado, que os padrões de Wordsworth para escrever poesia de boa qualidade — emoções violentas trazendo de volta a lembrança de épocas tranqüilas — serviriam também para a maioria dos romances dramáticos. E isto era provavelmente verdade. Ele conhecia escritores que eram incapazes de escrever depois de uma simples discussão com a esposa e ele mesmo não conseguia escrever quando estava zangado. Mas havia ocasiões em que se obtinha justamente o efeito contrário e Paul se lançava ao trabalho não só porque fosse preciso trabalhar, como também para fugir do que o estivesse aborrecendo, já que estava fora de seu alcance combater o motivo de seu aborrecimento.
Essa era uma dessas ocasiões. Quando Annie não voltou para colocá-lo na cadeira até as onze horas da manhã, Paul decidiu ele mesmo fazer isso. Estava além de suas forças colocar a máquina no tablado de madeira, mas ele poderia escrever à mão. Ele estava certo de que conseguiria subir na cadeira e sabia que provavelmente não seria uma boa idéia Annie ficar sabendo do que ele já podia fazer, mas Paul também precisava dessa outra dose e, com os diabos, não havia como escrever se ficasse na cama sentado.
Arrastando-se até a beira da cama, ele verificou se a cadeira estava travada. Em seguida, agarrou-se nos braços dela e deixou-se cair vagarosamente no assento. A única parte dolorida foi colocar as pernas, uma de cada vez, no suporte à sua frente. Paul empurrou a cadeira até a janela e pegou as folhas de papel.
O barulho de chave na fechadura. Annie o encarou e seus olhos pareciam dois buracos negros e incandescentes. Sua bochecha direita estava inchada e, ao que tudo indicava, Annie ainda ia acabar com um olho roxo naquela manhã. No queixo e em volta da boca havia uma mancha vermelha. Por alguns instantes Paul julgou que fosse sangue, mas ao perceber minúsculas sementes, viu que era apenas geléia de framboesa. Annie olhava para ele. Paul olhava para ela. Durante algum tempo, nenhum dos dois disse uma palavra. Lá fora, os primeiros pingos de chuva batiam no vidro da janela.
— Se você pode sentar na cadeira sozinho, Paul, então acho que também pode completar aqueles malditos enes — disse ela, finalmente.
Annie bateu a porta e passou a chave outra vez. Sentado onde estava, Paul ficou um longo tempo a olhar para a porta, como se ali houvesse alguma coisa para ser vista. Ele estava assustado demais para fazer qualquer outra coisa.
Paul não a viu de novo até o fim da tarde. E depois da visita de Annie, foi impossível trabalhar. Paul ainda fez uma ou duas tentativas, mas foi inútil. Um fracasso. Ele empurrou a cadeira até a cama e, ao tentar subir nela, sua mão escorregou e ele só não caiu por um triz. Todo o peso do corpo tombou sobre a perna esquerda e Paul sentiu uma dor dilacerante penetrando até os ossos.
Ele deu um grito, agarrou-se na cabeceira e arrastou-se para cima da cama. A perna esquerda ficou pendurada, latejando de dor.
Ela vai vir aqui, pensou ele, meio confuso. Ela vai querer ver se Sheldon virou Luciano Pavarotti ou se foi só impressão.
Mas Annie não apareceu. Sem agüentar mais a dor, Paul virou-se desajeitadamente e enfiou a mão embaixo do colchão, apanhando duas cápsulas de Novril. Ele as engoliu em seco — e deixou-se levar pelo efeito do remédio.
Quando voltou a si, Paul achou que ainda estivesse sonhando. A cena era muito surreal para ser verdadeira, como na noite em que Annie entrara no quarto empurrando a churrasqueira. Na mesinha-de-cabeceira havia um copo cheio de cápsulas de Novril e Annie estava sentada a seu lado na cama, com uma ratoeira na mão. Nela, havia um rato — um rato grande e malhado, de pele cinza e marrom. A ratoeira quebrara a coluna vertebral do bicho, suas pernas se contorciam a esmo, no seu bigode viam-se gotas de sangue.
Aquilo não era sonho. Era apenas mais um dia perdido na casa de Annie.
A respiração dela fedia a um corpo se decompondo em meio a comida estragada.
— Annie? — murmurou Paul, desviando os olhos do rato e virando-se para ela ao mesmo tempo que se esticava na cama.
Lá fora entardecia. Um entardecer surpreendentemente azulado e cheio de chuva. A chuva batia contra o vidro da janela e as rajadas de vento sacudiam a casa, fazendo-a gemer.
Se havia alguma coisa de errado com Annie pela manhã, agora estava pior. Muito pior. E ele percebeu que estava vendo Annie sem qualquer máscara — essa era a verdadeira Annie, a Annie interior. A pele do rosto dela, que parecera a ele tão assustadoramente sólida, não tinha o menor sinal de vida. Seu olhar era inexpressivo. Ela trocara de roupa, mas vestira a saia pelo lado avesso. A pele estava ainda mais arranhada e a roupa cheia de restos de comida. Quando ela se mexia, os odores mais variados se faziam sentir. Uma das mangas do casaco estava quase completamente tomada por uma substância ressecada que cheirava a algum tipo de molho.
— Eles correm para o porão quando começa a chover — disse ela, erguendo a ratoeira.
O rato, imobilizado, chiava debilmente, mordendo o ar, e revirava os olhos escuros, infinitamente mais expressivos do que os de sua captora.
— Eu coloco as ratoeiras. É preciso. Lambuzo a ratoeira com bacon e consigo pegar uns oito ou nove. Às vezes, encontro outros. . .
Annie se desligou por quase três minutos, segurando a ratoeira no ar — um caso perfeito de catatonia. Paul olhava para ela, olhava para o rato chiando e se debatendo, e achou que seria impossível as coisas piorarem. Engano seu. Terrível engano.
Paul já estava começando a achar que Annie entrara para sempre naquele estado, quando ela abaixou a ratoeira e continuou a falar como se nada tivesse acontecido.
— . . jogados pelos cantos. Pobres coitados.
Annie olhou para o rato e uma lágrima caiu no pêlo emaranhado do animal.
— Pobres, pobres coitados.
Annie agarrou o rato com uma de suas mãos sólidas e soltou-o da ratoeira. Ele continuou a se debater e a mexer a cabeça, tentando mordê-la. Seu chiado era estridente e assustador. Paul levou a palma das mãos até os lábios trêmulos.
— Como bate o coração dele! Como luta para escapar! Tal como fazemos, Paul. Tal como fazemos. A gente acha que sabe tanta coisa, mas na verdade sabe tanto quanto um rato numa ratoeira — um rato com a coluna quebrada e que ainda pensa que quer viver.
Annie cerrou o punho e em momento algum seus olhos perderam aquela expressão vazia e distante. Paul não queria assistir àquilo, mas não conseguiu desviar os olhos. As veias do braço de Annie começaram a se retesar e um jato fino de sangue jorrou pela boca do animal. Ela enterrou os dedos no rato, esmagando-o, e Paul pôde ouvir o barulho dos ossos partindo. O chão ficou cheio de sangue e os olhos da pobre criatura se esbugalharam.
Annie atirou o corpo do animal num canto do quarto e, indiferente, limpou a mão no lençol, deixando grandes manchas vermelhas.
— Agora ele está em paz. Annie deu de ombros e sorriu.
— Vou apanhar minha arma, Paul. Talvez o outro mundo seja melhor. Para ratos e pessoas — não que haja muita diferença entre ambos.
— Não até eu acabar o livro — disse ele, medindo cada palavra. Era difícil dizer qualquer coisa, pois sua boca parecia anestesiada, como se alguém a houvesse enchido de novocaína. Paul já a vira em estados de depressão, mas nunca igual a esse, e perguntou a si mesmo se alguma vez ela chegara até esse ponto. Era assim que ficavam as pessoas depressivas pouco antes de atirarem na família inteira e, por fim, se suicidarem. Era assim o desespero de uma mulher psicótica que veste a melhor roupa nos filhos, os leva para tomar sorvete, caminha até a ponte mais próxima, pega um em cada braço e se joga. Pessoas depressivas se suicidam. Completamente envolvidos por seus egos nocivos, os psicóticos julgam estar fazendo um favor às pessoas mais chegadas ao decidirem levá-las consigo.
Nunca na minha vida eu estive tão perto da morte, porque é nisso mesmo que ela está pensando. É isso o que essa cadela pretende.
— Misery? — perguntou ela, como se dissesse um nome que jamais tivesse ouvido. Mas por um único instante, um brilho fugidio apareceu naquele olhar, não foi? Paul achava que sim.
— Misery, é claro.
Desesperado, Paul tentava pensar no que dizer em seguida. Qualquer tentativa de aproximação era semelhante a atravessar um campo minado.
— Concordo com você. Na maioria das vezes o mundo é muito cruel — disse ele, acrescentando vagamente: — Especialmente quando chove.
Oh, seu imbecil! Pare de dizer bobagens!
— Quer dizer, eu tive muitas dores nessas últimas semanas, e. . .
— Dor? — Annie o encarou com o mais profundo desprezo. — Você não sabe o que é dor, Paul. Você não faz a menor idéia.
— Eu suponho que não. . . comparado a você.
— É isso mesmo.
— Mas. . . eu gostaria de terminar o livro, quero ver como ele vai terminar. — Paul fez uma pequena pausa e prosseguiu: — E gostaria que você ficasse para ver também. De que adianta uma pessoa escrever um livro, se não há ninguém para ler? Você me compreende?
Com o coração aos pulos, Paul encarava aquele terrível rosto de pedra.
— Annie? Você me compreende?
— Compreendo — respondeu ela, dando um suspiro. — Eu quero saber como o livro vai terminar. Acho que essa é a única coisa no mundo que ainda quero.
Annie levou a mão até a boca e começou a lamber os dedos cheios de sangue, aparentemente sem dar conta do que estava fazendo. Paul cerrou os dentes e ordenou a si mesmo para não vomitar, não vomitar, não vomitar.
— É como esperar pelo fim de um daqueles seriados — disse ela. Annie virou-se subitamente. Seus lábios cheios de sangue pareciam cobertos de batom.
— Eu faço de novo minha proposta, Paul. Deixe-me apanhar a arma e acabar logo com isso. Você não é tolo. Sabe muito bem que eu não posso deixar você sair daqui. E já sabe disso há algum tempo, não é mesmo?
Não pisque os olhos! Se ela vir seus olhos piscando, ela acaba contigo agora mesmo!
— Sim, Annie, mas tudo um dia termina. No final das contas, todos nós chegamos ao fim.
Uma ponta de sorriso em seus lábios. Annie passou a mão no rosto de Paul, afetuosamente.
— Suponho que você pense em fugir. Assim como um rato numa ratoeira tenta fugir, a seu jeito. Mas você não vai conseguir, Paul. Se fosse numa de suas histórias você poderia, mas não é esse o caso. Eu não posso deixar você sair daqui. . . mas poderia levá-lo comigo.
Por uma fração de segundo, Paul pensou em dizer: Está bem, Annie, vá em frente. Vamos acabar logo com isso! Mas seu instinto de sobrevivência e sua vontade de viver — ainda bastante presentes — protestaram em voz alta, afastando aquele momento de fraqueza. Aquilo era simplesmente fraqueza. Fraqueza e covardia. Felizmente ou infelizmente, ele não tinha nenhum desequilíbrio mental a que recorrer.
— Obrigado pela proposta, Annie, mas eu gostaria de terminar o que comecei.
Annie se levantou e deu um suspiro.
— Então está bem. Eu devia saber que você ia dizer isso, porque eu lhe trouxe algumas cápsulas e nem me lembrava. — Annie deu um risinho abafado, sem mover o rosto inexpressivo, como se fosse o boneco de um ventríloquo. — Eu vou ficar fora algum tempo. Se eu não for, o que nós dois queremos não terá mais importância. Porque faço certas coisas. Eu tenho um lugar para onde vou sempre que me sinto desse jeito. Um lugar nas montanhas. Você já leu as histórias do Tio Remus, Paul?
Ele balançou a cabeça, afirmativamente.
— Você lembra do Irmão Coelho contando à Irmã Raposa sobre o seu Lugar Risonho?
— Lembro.
— Pois é assim que chamo ao meu cantinho nas montanhas. É o meu Lugar Risonho. Lembra-se quando lhe contei que eu o encontrei quando estava vindo de Sidewinder?
Ele balançou a cabeça, afirmativamente.
— Bem ... eu estava mentindo. Eu menti porque ainda não lhe conhecia muito bem. Na verdade, eu estava voltando do meu Lugar Risonho. Coloquei uma placa bem em cima da porta: O Lugar Risonho de Annie. Às vezes eu até rio quando estou lá. Mas na maioria das vezes, eu apenas grito.
— Quanto tempo você vai ficar fora, Annie? Annie deixou-se levar até a porta, como num sonho.
— Não posso dizer. Você vai bem, eu lhe trouxe algumas cápsulas. Tome duas a cada seis horas. Ou seis a cada quatro horas. Ou todas de uma vez.
E o que eu vou comer? Paul queria fazer a pergunta, mas não fez. Ele não queria que ela voltasse sua atenção para ele — não queria de modo algum. Queria que ela fosse embora. Cada minuto ao lado de Annie era como estar frente a frente com o Anjo da Morte.
Esticado na cama, Paul ficou a ouvir os ruídos de Annie, a princípio, no andar de cima, depois no de baixo e na cozinha, esperando sinceramente que ela mudasse de idéia e trouxesse a arma. Paul não conseguiu relaxar nem mesmo depois de ouvir a porta da sala bater, a chave rodar na fechadura e os passos de Annie na chuva. A arma podia muito bem estar no jipe.
Ela ligou o motor e acelerou com força. A luz dos faróis passou pela janela, iluminando uma cortina prateada de chuva. Os faróis desviaram para a alameda que levava à casa e foram sumindo. E Annie foi embora.
Dessa vez, ela não seguira para Sidewinder, mas em direção ao alto das montanhas.
— Vai para o seu Lugar Risonho. — murmurou ele, começando a rir.
Ela tinha o lugar dela. Ele já estava no seu. E o acesso de riso só terminou quando Paul se deparou com o corpo estraçalhado do rato a um canto do quarto.
Foi então que lhe surgiu uma idéia na cabeça.
— Quem foi que disse que ela não deixou nada para eu comer?! Paul começou a rir ainda mais alto. Naquela casa vazia, o Lugar Risonho de Paul lembrava mais a cela de um hospício.
Duas horas mais tarde, Paul já tinha aberto a fechadura e forçava a cadeira por entre a porta estreita do quarto, pela segunda vez. Pela última vez, esperava ele. Paul apanhando dois lençóis, enrolara num lenço de papel, todas as cápsulas que havia embaixo do colchão, e as enfiara na cueca. Ele queria dar o fora, com ou sem chuva; esta era sua última chance e, dessa vez, Paul não queria perdê-la. Sidewinder ficava na descida da montanha, a estrada devia estar escorregadia por causa da chuva e mais escura que o poço de uma mina — mas ele ia tentar assim mesmo. Paul não era nenhum santo ou herói, mas não prentendia morrer como um pássaro exótico num jardim zoológico.
Paul lembrou-se vagamente de ter passado uma noite bebendo scotch ao lado de um melancólico autor teatral chamado Bernstein, num dos bares do Village, o Lions Head (se vivesse o bastante para voltar ao Village, Paul ia se jogar no que restava de seus joelhos e beijaria o chão encardido da rua Christopher). A certa altura, a conversa foi parar nos judeus que moravam na Alemanha nos quatro ou cinco anos conturbados que precederam a entrada da Wehrmacht na Polônia e o começo das comemorações. Ele lembrava de ter dito à Berstein que perdera uma tia e um avô no Holocausto que não conseguia entender por que os judeus residentes na Alemanha, enfim, os judeus residentes em toda a Europa, mas especialmente na Alemanha, não tinham fugido enquanto ainda havia tempo. De um modo geral, eles não eram pessoas tolas e muitos já tinham experiências anteriores de uma perseguição como aquela. Eles sabiam com certeza o que estava por vir. Sendo assim, por que tantos deles haviam ficado?
Paul ficou chocado com a resposta de Bernstein, que lhe soou frívola, cruel e incompreensível: "A maioria deles tinha piano. Nós, judeus, somos muito apegados a pianos. E quando se tem um piano, não se pensa muito em fazer uma mudança."
Agora ele compreendia. Compreendia de verdade. No princípio, foram as pernas quebradas e o esmagamento da bacia. Depois, que Deus o ajude, foi o livro. E de certa forma, ele estava se divertindo com o livro. Seria muito fácil — fácil demais — colocar toda a culpa nas pernas quebradas ou na droga, quando na verdade era por causa do livro e do monótono correr dos dias em sua tranqüila rotina de convalescente. Todas essas coisas — mas especialmente o livro tolo e maldito — eram o seu piano. O que faria Annie ao voltar de seu Lugar Risonho se não o encontrasse mais? Queimaria o livro?
— Eu nem ia ligar — disse ele.
E era quase verdade. Se conseguisse viver, ele poderia escrever outro livro — ou mesmo reescrever este, se quisesse. Mas um homem morto não escreve livros nem compra um piano novo.
Paul foi até a sala. Da primeira vez, ela estava toda arrumada, mas agora havia pratos sujos empilhados por toda parte; ele teve a impressão que todas as pessoas da casa estavam por ali. Aparentemente, Annie não só batia em si mesma quando entrava em depressão, como se enchia de comida — sem se preocupar de limpar o que sujava. Paul lembrou-se ligeiramente do hálito fedorento de Annie entrando-lhe pelos pulmões quando ele ainda estava no nevoeiro — e sentiu um aperto no estômago. A maioria dos restos espalhados era de doces. Sobras de sorvete ressecavam em diversas tigelas e pratos fundos; havia farelo de bolo e cobertura de torta nos pratos; um montinho de gelatina de limão coberta com creme chantilly ressecado estava em cima da televisão, perto de uma garrafa plástica de dois litros de Pepsi, ao lado de uma molheira. A garrafa de Pepsi lhe pareceu tão grande quanto a ogiva do foguete Titan-II, e estava toda grudenta e lambuzada. Paul adivinhou logo que Annie devia ter bebido direto no gargalo e que devia estar com as mãos sujas de sorvete ou de algum molho. Ele não escutara o tilintar dos talheres e não se surpreendeu ao reparar que não havia nenhum deles por ali. Pratos e tijelas e mais pratos e nada de talheres. Espalhados pelo tapete e pelo sofá, havia pingos e respingos — a maioria de sorvete ressecado.
Foi isso o que vi no casaco dela. As coisas que ela estava comendo. E era esse o hálito dela também.
A figura de Annie como mulher das cavernas voltou à sua cabeça. Paul a viu sentada na poltrona tomando sorvete com as mãos e enfiando na boca punhados de molho de galinha semicongelado, entre goles de Pepsi — simplesmente comendo e bebendo num profundo estado de depressão.
O pingüim sentado na pedra de gelo ainda estava na mesinha de bibelôs, mas muitas das outras peças de cerâmica haviam sido jogadas no chão e seus cacos pequeninos e pontudos se amontoavam num canto.
Paul não conseguia deixar de lembrar dos dedos de Annie afundando no corpo do rato, das manchas de sangue no lençol. Paul não conseguia deixar de lembrar de Annie chupando os dedos sujos de sangue, tão distraidamente como se fosse sorvete, gelatina ou um pedaço de rocambole escuro e macio. Eram lembranças terríveis, mas eram um incentivo excelente para ele fugir.
O ramo de flores secas que ficava na mesinha de centro estava derrubado, embaixo da mesa mal se podia ver um prato com restos de crosta de pudim de creme e um livro com os dizeres: livro de recordações.
Correr para o Livro de Recordações quando se entra em depressão nunca é uma boa idéia Annie — mas acho que a essa altura da vida você já devia ter aprendido.
Paul atravessou a sala. Na sua frente, ficava a cozinha e à sua direita, ficava uma passagem pequena e larga, que levava à porta da sala. Ao lado dessa passagem havia um lance de escadas que dava para o segundo andar da casa. Paul deu uma olhada rápida nas escadas (havia respingo de sorvete em alguns dos degraus acarpetados e no corrimão) e se dirigiu para a porta. Se havia algum modo de escapar, preso como estava na cadeira de rodas, ele achava que seria pela porta da cozinha, aquela que Annie usava quando ia alimentar os animais e aquela pela qual ela saíra em disparada quando o senhor Rancho Grande apareceu — mas era preciso tentar também a porta da frente. Ele poderia ter uma surpresa.
Mas não teve.
Os degraus da varanda da frente eram tão altos quanto ele receava, mas mesmo que houvesse uma rampa para deficientes (uma possibilidade que ele jamais aceitaria num jogo animado como "Você Consegue?", mesmo que tivesse sido sugerida por um grande amigo seu), ele não poderia usá-la. Na porta da frente havia três fechaduras. Uma das trancas ele conseguiria abrir, mas as outras duas. . . eram da marca Kreigs, as melhores fechaduras do mundo, segundo seu amigo e ex-policial, Tom Twyford. E onde estariam as chaves? Hum. . . vamos ver. Que tal a caminho do Lugar Risonho de Annie? Sim, senhor! Empreste um maçarico a ele para acender o charuto.
Lutando para não entrar em pânico e lembrando a si mesmo que ele não esperava muita coisa da porta da frente, Paul deu meia-volta e dirigiu-se para a cozinha, um cômodo antiquado com um piso claro.
A geladeira era modelo antigo, mas silenciosa. Não era de admirar que os três ou quatro enfeites presos com ímã na porta da geladeira tivessem todos formato de doces: um pedaço de chiclete, uma barra de chocolate e um rocambole Tootsie. Uma das portas do armário estava aberta e Paul pôde ver as prateleiras caprichosamente forradas por um pano de algodão. Em cima da pia havia janelas enormes, que permitiriam a entrada de luz mesmo nos dias nublados. Ela tinha tudo para ser uma cozinha agradável, mas não era. A lata de lixo estava aberta e cheia até a boca. Havia lixo espalhado pelo chão, expelindo um cheiro forte de comida estragada. Mas isto não era a única coisa errada ou o pior cheiro no ar. Havia um outro aroma, que parecia existir principalmente em sua cabeça, mas que nem por isso deixava de ser real. Era o parfum de Wilkes - o aroma psíquico da obsessão.
Havia três portas na cozinha: duas à esquerda e uma bem na sua frente, entre a geladeira e a despensa.
Paul tentou primeiro as da esquerda. A primeira delas era um armário — Paul percebeu antes mesmo de ver os casacos, chapéus, cachecóis e botas de Annie. O rangido das dobradiças foi suficiente. A outra porta era a do quintal, mas nela havia três trancas, duas da marca Kreigs. Roydmans, lá fora,. Paul, aqui dentro.
Paul imaginou Annie rindo.
— Filha da puta!
Paul deu um soco na porta e levou a mão até a boca, cheio de dor. Detestava chorar, mas sua vista ficou embaçada e ele não pôde evitar o choro. Prestes a entrar em pânico mais uma vez, Paul perguntava a si mesmo o que fazer, o que podia fazer, pelo amor de Deus, essa podia ser sua última chance. . .
A primeira coisa a fazer é uma análise completa da situação, disse ele, como se estivesse repreendendo a si mesmo. Isto se você se acalmar um pouquinho. Acha que pode fazer isso, hein, seu maricas?
Paul enxugou os olhos. Ficar chorando não ia resolver nada. Da metade da porta até em cima, havia dezesseis quadradinhos de vidro e ele olhou para fora. Paul pensou em quebrá-los, mas as ripas de madeira, que pareciam muito fortes, teriam que ser quebradas também — o que podia levar horas, já que ele não tinha um serrote. E depois? Que tal um mergulho kamikaze para a varanda dos fundos? Grande idéia. Talvez ele quebrasse a coluna e parasse de pensar um pouco nas pernas. E talvez não demorasse muito para morrer embaixo daquela chuva violenta. Isso acabaria logo com tudo.
Um beco sem saída. Sem uma maldita saída. Pode ser que eu morra, mas juro por Deus como antes de morrer eu vou mostrar à minha fã número um como fiquei feliz em conhecê-la. Isso não é só uma promessa — é um voto sagrado.
A idéia de se vingar de Annie acalmou-o mais do que qualquer repreensão que ele pudesse fazer a si mesmo. Um pouco mais calmo, Paul acendeu o interruptor ao lado da porta. Uma luz lá fora acendeu, que veio a calhar — já estava começando a escurecer quando ele saíra do quarto. A alameda de entrada da casa estava alagada e o quintal estava cheio de lama e água empoçada misturada com pedaços de gelo. Paul chegou mais para o lado e pôde ver pela primeira vez a estrada que passava pela casa de Annie, e ela não era lá grandes coisas: uma pista dupla asfaltada passando entre bancos de neve brilhantes e reluzentes pela água da chuva e do gelo derretendo.
Talvez ela tenha trancado as portas só para os Roydmans não entrarem; ela não precisava trancar as portas para me manter aqui dentro. Se eu sair com essa cadeira de rodas, vou me atolar em menos de cinco segundos. Você não vai a lugar nenhum, Paul. Nem hoje, nem nas próximas semanas — só um mês depois do início do campeonato de beisebol é que esse chão vai ficar firme para você sair numa cadeira de rodas. A não ser que você queira se jogar por uma das janelas e sair rastejando pelo chão.
Não, isso ele não queria fazer. Era fácil imaginar como seus ossos quebrados não iam ficar depois de dez a quinze minutos rastejando por entre as poças geladas e a neve derretendo. E suponhamos que ele consiga chegar até a estrada — quais as chances de acenar para um carro? Os dois únicos carros que ele ouvira por ali, sem ser o jipe de Annie, eram o Bel-Air do senhor Rancho Grande e um carro que passara quando saíra a primeira vez do "quarto de hóspedes" e que quase o matara de susto.
Paul apagou a luz e empurrou a cadeira em direção à outra porta, entre a geladeira e a despensa. Nela havia também três trancas, e ela nem ao menos dava para o lado de fora — não diretamente. Ao lado havia um interruptor e Paul o acendeu. Ele viu um gracioso quarto de ferramentas que ocupava toda a extensão lateral da casa. A um canto, via-se uma pilha de lenha cortada e um machado apoiado num monte de troncos. Do outro lado, havia uma mesa com ferramentas penduradas em pregos. Apesar da lâmpada não ser muito forte, Paul pôde ver que ali havia uma porta — igualmente com três trancas, duas delas, Kreigs.
Os Roydmans. . . todo mundo. . . estão todos contra mim. . .
— Eles, eu não sei, mas eu estou com certeza! — desabafou ele na cozinha vazia.
Paul desistiu das portas e foi até a despensa. Antes de olhar para os alimentos estocados nas prateleiras, ele procurou por fósforos e encontrou duas caixas de cartelas de papel além de pelo menos duas dúzias de caixas da marca Diamond Blue Tips, graciosamente arrumadas.
Por alguns instantes, Paul pensou simplesmente em atear fogo na casa, mas logo depois rejeitou a idéia como sendo das mais ridículas. Mas ele fez uma descoberta que lhe trouxe de volta a idéia do incêndio: havia ali uma outra porta, sem tranca nenhuma.
Paul a abriu e viu um lance de escadas estreito e escuro que levava ao porão, de onde saía um cheiro úmido de vegetais apodrecidos. Ao ouvir uns chiados, Paul lembrou-se de Annie: Eles correm para o porão quando começa a chover. Eu coloco ratoeiras. É preciso.
Paul fechou a porta correndo. Uma gota de suor escorreu de sua testa, foi parar no canto do olho direito e Paul a enxugou. Por alguns instantes, a idéia do incêndio lhe pareceu mais razoável pois ele poderia se abrigar no porão. Mas a escada era íngreme demais, e ainda havia a possibilidade dele ser queimado vivo no caso dos bombeiros de Sidewinder não aparecerem antes da casa desabar. . . e havia os ratos também. . . o chiado dos ratos era o pior de tudo.
Como bate o coração dele! Como luta para escapar! Tal como fazemos, Paul. Tal como fazemos.
— África — disse ele, sem ouvir o que estava dizendo.
Paul olhou para as latas e sacos de comida tentando calcular o que ele poderia levar sem despertar a menor suspeita de Annie. E uma parte dele compreendeu imediatamente o que aquilo significava: ele desistira de fugir.
Só por enquanto, protestou sua mente agitada.
Não, respondeu uma voz funda e implacável: Para sempre, Paul. Para sempre.
— Eu nunca vou desistir, você me ouviu? Nunca!
Ah, não? sussurrou a mesma voz, num tom cínico e sarcástico. Muito bem. . . isso nós vamos ver, certo? Sim, eles iam ver.
A despensa de Annie parecia mais um abrigo antiaéreo. Paul calculou que parte dessas provisões era uma simples amostra da situação real de Annie: uma mulher vivendo sozinha num lugar afastado, onde uma pessoa espera passar pelo menos um certo período — às vezes um dia, às vezes uma ou duas semanas — completamente desligada do resto do mundo. Era até provável que aqueles porcarias, os Roydmans, tivessem uma despensa tão cheia que pudesse deixar admirado um pai de família de qualquer outra parte do país. . . mas ele duvidava que aqueles porcarias, os Roydmans, ou qualquer outro vizinho, tivessem algo parecido com o que estava à sua frente. Aquilo não era uma despensa; era um verdadeiro supermercado. Paul descobriu um certo simbolismo na despensa de Annie: as fileiras de mercadorias significavam a fronteira indefinida entre o Estado Soberano da Realidade e a República Popular da Paranóia. Mas considerando a sua situação atual, tais sutilezas deviam ser deixadas de lado. Foda-se o simbolismo. Ataque a comida.
Sim, mas com cuidado. Não era só uma questão do que ela pudesse sentir falta. Paul deveria apanhar apenas uma quantidade que pudesse esconder no caso dela aparecer de repente. . . e de que outro jeito ela ia chegar? O telefone estava mudo e ele duvidava que ela fosse lhe mandar um telegrama junto com um ramo de flores. No final das contas, não tinha muita importância que Annie sentisse falta de alguma coisa ou descobrisse algo no quarto. Ora, ele precisava comer. Era viciado nisso também.
Sardinhas. Havia montes de sardinhas naquelas latas retangulares que trazem junto um abridor. Muito bem. Ele levaria algumas delas. Latas de presuntada. Nelas não havia abridor, mas Paul poderia abrir algumas na cozinha e comê-las antes que as outras. As latas vazias ele colocaria entre o lixo deixado por Annie. Havia um pacote aberto de passas Sun-Maid cheia de caixinhas menores, que a embalagem de celofane rasgada chamava de "minilanches". Paul acrescentou ao seu estoque, que não parava de crescer, quatro caixas de "minilanches" além de porções individuais de sucrilhos Corn Flakes e Wheaties. Não havia nem uma caixa sequer de porções individuais de cereais pré-açucarados. Annie devia ter acabado com elas na última comilança.
Na prateleira do alto havia uma pilha de Slim Jims tão bem arrumada quanto a pilha de lenha de Annie. Paul apanhou quatro delas, tomando cuidado para não desfazer a pilha em formato de pirâmide. Ele devorou um pacote ali mesmo, deliciando-se com o gostinho salgado e gorduroso, e enfiou o papel amassado na cueca para jogar fora depois.
Suas pernas estavam começando a doer. E como ele não ia mais fugir nem tocar fogo na casa, decidiu voltar para o quarto. Um anti-clímax, mas as coisas poderiam ter sido piores. Tomaria duas cápsulas de Novril e escreveria um pouco até dar sono. Paul duvidava muito que Annie voltasse naquela noite. A chuva não estiara, muito pelo contrário, estava cada vez mais forte. A idéia de escrever tranqüilamente e de ir dormir sabendo que estava completamente sozinho — e que Annie não apareceria com algum plano absurdo, nem exigências mais absurdas ainda — era encantadora, com ou sem anticlímax.
Paul saiu da despensa, apagou a luz e lembrou-se de que era preciso (enxaguar) deixar tudo em seus devidos lugares antes de se recolher. Se seu estoque de comida terminasse antes de Annie voltar, ele poderia buscar mais (como um rato esfomeado, certo, Paulie?) sem esquecer, porém, de tomar todo o cuidado possível. Sem esquecer de que estava pondo sua vida em risco cada vez que deixava o quarto. Não poderia esquecer-se disso de maneira nenhuma.
Ao passar pela sala, o livro de recordações largado embaixo da mesa chamou sua atenção, livro DE recordações. Ele era tão grande quanto um volume com as tragédias de Shakespeare e tão grosso quanto uma Bíblia.
Curioso, Paul o apanhou e o abriu.
Na primeira página havia uma coluna de jornal como título: CASAMENTO de Wilkes E Berryman. A fotografia mostrava um homem lívido de rosto fino e uma mulher de olhos sombrios e lábios grossos. Os olhos de Paul passaram no jornal para o retrato de cima da lareira. Não havia dúvida. A mulher que o recorte chamava de Crysilda Berryman (taí um nome digno de um livro Misery, pensou Paul) era a mãe de Annie. Embaixo do artigo, numa letra caprichosa em tinta preta, lia-se: Jornal de Bakersfild, 30 de maio de 1938.
Na segunda página, a participação de um nascimento: Paul Emery Wilkes, nascido em 12 de maio de 1939, no Bakersfield Receiving Hospital. O pai: Carl Wilkes; a mãe: Crysilda Wilkes. Paul estremeceu ao ver o nome do irmão mais velho de Annie. Era ele quem devia ir com ela ao cinema para assistir aos seriados. Ele também se chamava Paul.
A terceira página anunciava o nascimento de Annie Marie Wilkes, nascida em primeiro de abril de 1943. Isto significava que Annie acabara de completar quarenta e quatro anos. O fato dela ter nascido no dia primeiro de abril, dia dos bobos, não lhe passou despercebido.
Lá fora, o vento soprava com força e a chuva caía violentamente.
Fascinado, temporariamente esquecido das dores, Paul virou a página.
Um notícia recortada da primeira página do Jornal de Bakersfield. A foto mostrava a silhueta de um bombeiro no alto de uma escada contra as labaredas que saíam das janelas de um prédio incendiado.
CINCO MORTOS NO EDIFÍCIO EM CHAMAS
Cinco pessoas morreram, quatro da mesma família, nas primeiras horas da manhã de quarta feira, vítimas de um grande incêndio num prédio de apartamentos na Avenida Watch Hill, em Bakersfield. Entre os mortos havia três crianças — Paul Krenmitz, de oito anos; Frederick Krenmitz, de seis; Alison Krenmitz, de três. A quarta vítima era o pai das crianças, Adrian Krenmitz, de quarenta e um anos de idade. De acordo com o depoimento de sua esposa, a senhora Jessica Krenmitz, ele salvou a filha mais nova, Laurene Krenmitz, de apenas oito meses, e antes de voltar ao prédio em chamas, dissera à ela: Voltarei com os outros num minuto. Reze por nós! "Eu não o vi mais", afirmou a senhora Krenmitz.
A quinta vítima do incêndio chamava-se Irving Thalman, um solteirão de cinqüenta e oito anos que morava no último andar do prédio. O apartamento do terceiro andar estava vazio na hora do incêndio. A família de Carl Wilkes, a princípio relacionada entre os desaparecidos, havia deixado o prédio na noite anterior devido a um vazamento na cozinha.
''Eu lamento muito a perda que teve a senhora Krenmitz, mas tenho que agradecer a Deus por ter poupado meu marido e minhas duas crianças", disse Crysilda Wilkes ao nosso repórter.
O chefe dos bombeiros, Michael O'Whunn, disse que o fogo começou no porão do edifício. Ao ser perguntado sobre a possibilidade do incêndio ter sido criminoso, ele nos disse: "Acho mais provável que um vagabundo qualquer tenha entrado no porão, tomado umas e outras e tenha acidentalmente jogado uma ponta de cigarro em algum canto, dando início ao incêndio. Ao invés de tentar apagar o incêndio, ele deve ter fugido e, com isso, cinco pessoas morreram. Espero pegar esse desocupado. Posso adiantar que a polícia já tem algumas pistas e deve encontrá-lo muito em breve!"
A mesma letra caprichosa escrevera em tinta preta logo abaixo do recorte: 28 de outubro de 1954.
Paul tirou os olhos do livro. Ele estava sereno, mas de repente seu coração disparou e ele sentiu um frio no estômago.
Aqueles fedelhos.
Entre os mortos, havia três crianças.
Aqueles quatro fedelhos da senhora Krenmitz, que morava no andar de baixo.
Oh, não, Jesus Cristo, oh, não.
Ela era apenas uma garotinha! E nem ao menos estava em casa!
Ela tinha onze anos. Era velha o bastante, e esperta o bastante, para fazer um círculo de querosene e colocar uma vela acesa no meio. Talvez ela achasse que nem ia dar certo. Talvez pensasse que o querosene ia evaporar antes da vela queimar por completo. Talvez pensasse que eles escapariam com vida. . . talvez quisesse apenas assustá-los para eles se mudarem dali. Mas foi ela, Paul, foi ela quem fez isso e você sabe muito bem.
É, ele achava que sim. E além do mais, quem suspeitaria dela?
Paul virou a página.
Outro recorte do Jornal de Bakersfield, datado de 19 de julho de 1957. A fotografia mostrava um Carl Wilkes ligeiramente mais velho. Uma coisa era certa: ele não ficaria mais velho do que aparentava no retrato. O recorte era o comunicado de seu falecimento.
CONTADOR DE BAKERSFIELD MORRE NUMA QUEDA INESPERADA
Carl Wilkes, 44, residente há muitos anos em Bakersfield, morreu ontem à noite pouco depois de dar entrada no Hospital Geral Hernandez. Wilkes ia atender o telefone quando, aparentemente, tropeçou em algumas peças de roupas caídas num degrau da escada. O doutor Frank Canley, que o atendeu, revelou que Wilkes quebrou o pescoço e teve traumatismo craniano. Wilkes deixa esposa, um filho de 18 anos, Paul; e uma filha de 14, Annie.
Paul virou a folha e, por alguns instantes, julgou que Annie tivesse recortado duas vezes a notícia sobre a morte do pai, talvez por sentimentalismo ou por distração (Paul achava a última hipótese mais provável). Mas este recorte era de um outro acidente e a razão deles serem tão parecidos era muito simples: nenhum dos dois tinha sido realmente um acidente de verdade.
Paul ficou completamente aterrorizado.
A mesma letra caprichosa escrevera embaixo do recorte: Los Angeles Call, 29 de janeiro de 1962.
ESTUDANTE DA USC MORRE NUMA QUEDA INESPERADA
Andrea Saint James, estudante de enfermagem na USC, já chegou morta ao Mercy Hospital, em North Los Angeles, ontem à noite, aparentemente vítima de um estranho acidente.
A senhorita Saint James dividia um apartamento na rua Delorme, fora do campus universitário, com uma colega de classe, Anne Wilkes, natural de Bakersfield. Pouco antes das onze da noite, a senhorita Wilkes estava estudando quando ouviu um grito, seguido de um "terrível baque". Ela correu para o corredor do terceiro andar e viu a senhorita Saint James estatelada no patamar do andar de baixo, "numa posição muito esquisita".
A senhorita Saint James, natural de Los Angeles, tinha 21 anos de idade.
— Jesus Cristo! — murmurava Paul, vezes sem fim.
Suas mãos tremiam terrivelmente. Paul virou a folha e viu um outro recorte do Los Angeles Call, notificando que o gato que as estudantes de enfermagem julgavam perdido tinha sido envenenado.
Peter Gunn. Nome muito bonito para um gato, pensou ele.
Havia ratos no porão do edifício. A queixa dos moradores resultara numa advertência por parte dos inspetores municipais no ano anterior. Na reunião seguinte da Câmara Municipal, o proprietário causa o maior tumulto, que acaba chegando aos jornais. Annie teria sabido. Multado pelos vereadores, que não gostam que se fale mal deles, o proprietário se vê obrigado a pagar uma quantia elevada e resolve espalhar veneno pelos cantos do porão. O gato come o veneno, fica agonizando por lá uns dias e sai rastejando atrás de suas donas antes de morrer — causando a morte de uma delas.
Uma ironia digna de Paul Harvey, pensou Paul Sheldon, rindo estrondosamente. Aposto que a notícia fez parte de seu noticiário diário.
Elementar. Muito elementar.
Não fosse pelo fato de nós sabermos que Annie apanhou um pouco do veneno para alimentar seu gato. E caso o velho Peter Gunn não quisesse comer, ela provavelmente enfiaria o veneno por sua goela abaixo. Quando ele morreu, Annie o colocou num degrau da escada e ficou torcendo para o plano dar certo. Talvez ela soubesse muito bem que sua colega de quarto voltaria para casa um pouco embriagada. Eu não ficaria nem um pouco surpreso. Um gato morto, umas peças de roupa. O mesmo m.o.,* como diria Tom Twyford. Mas, por quê. Annie? Os recortes dizem tudo, exceto isso: POR QUÊ?
* m.o., do latim, modus operandi = modo de agir.
Nas últimas semanas, uma parte da mente de Paul começara a se transformar em Annie, num gesto de auto-preservação. E foi essa parte de Paul quem respondeu, com a voz insípida e incontestável de Annie. Embora a resposta pudesse soar como algo insano, fazia um sentido perfeito.
Eu a matei porque ela ligava o rádio tarde da noite.
Eu a matei por causa do nome idiota que ela escolheu para o gato.
Eu a matei por que me cansei de ver ela e o namorado trocando beijos longos no sofá enquanto ele enfiava a mão por baixo da saia dela, como se estivesse à procura de alguma coisa
Eu a matei porque a peguei colando na prova.
Eu a matei porque ela me pegou colando.
Essas particularidades não importam, certo ? Eu a matei porque ela era uma porcaria de fedelha e isso era razão suficiente.
— E talvez porque ela fosse a Senhorita Espertinha. — murmurou ele jogando a cabeça para trás e soltando outra estrondosa gargalhada.
Então era este o Livro de Recordações, não é mesmo? Quantas flores estranhas e venenosas brotavam ao longo do gracioso e batido caminho de Annie!
Será que ninguém nunca associou uma queda à outra? Primeiro, o pai; depois, a colega de quarto. É isso o que você está querendo dizer?
Sim, era isso o que ele estava querendo dizer a si mesmo. Os acidentes ocorreram num espaço de cinco anos, em duas cidades diferentes. Foram noticiados por jornais diferentes num estado populoso onde as pessoas provavelmente viviam caindo das escadas e quebrando o pescoço.
E ela era muito, muito esperta.
Tão esperta quanto o próprio Satanás em pessoa, ao que parece. Só que agora ela estava começando a piorar. Para ele, entretanto, seria um triste prêmio de consolação se Annie fosse presa finalmente por causa do assassinato de Paul Sheldon.
Ele virou a página e viu outro recorte do Jornal de Bakersfield — o último desse jornal, como descobriu mais tarde, o título dizia: senhorita Wilkes gradua-se em enfermagem. A moça nascida na cidade foi bem sucedida. 17 de maio de 1966. A foto estampava uma Annie Wilkes surpreendentemente bonita e mais jovem, vestida num uniforme de enfermeira, sorrindo para a câmera. Era o foto da formatura, claro. Annie graduara-se com distinção. Só que para isso teve que matar uma colega de quarto, pensou ele, soltando mais uma estrondosa gargalhada. Em resposta, uma rajada de vento bateu contra a casa, e o quadro da mãe de Annie trepidou na parede.
O recorte seguinte era do Union-Leader, de Manchester, em New Hampshire, 2 de março de 1969. Um simples obituário aparentemente sem qualquer ligação com Annie Wilkes. Ernest Gonyar, 77 anos, morrera no Hospital Saint Joseph. Não diziam exatamente qual a causa da morte, apenas "após uma longa doença''. Deixava esposa, doze filhos e algo em torno de quatrocentos netos e bisnetos. Nada como o método rítmico para gerar descendentes, grandes e pequenos, pensou Paul, com outra gargalhada.
Ela o matou. Foi isso o que aconteceu com o velho e bom Ernie. Por que outra razão esta nota estaria aqui? Este não é o Livro dos Mortos da Annie?
Por quê? Pelo amor de Deus, POR QUÊ?
Mas quando se tratava de Annie Wilkes, essa era uma pergunta sem resposta plausível.
E você bem sabe disso.
Página seguinte, mais um obituário do Union-Leader. 19 de março de 1969. A mulher era identificada como Hester "Queenie'' Beaulifant, 84 anos. A foto mostrava uma pessoa cujos ossos pareciam ter sido exumados do Ossuário La Brea. A mesma coisa que matara Ernie, matara "Queenie" também — ao que parece, aquela doença longa estava se espalhando. Assim como Ernie, ela morrera no Saint Joseph. O velório seria no dia 20 de março, entre duas e seis horas da tarde na Casa Funerária Foster. O enterro era no dia seguinte, às quatro da tarde, no Cemitério Mary Cyr.
Tem que ser uma regravação especial de "Annie, won't you come by here", cantada pelo Mormon Tabernacle Choir, pensou Paul, rindo estrondosamente.
Nas páginas seguintes, mais três obituários do Union-Leader. Dois homens idosos também haviam morrido daquela eterna favorita: a Longa Doença. A terceira era uma mulher de 46 anos chamada Paulette Simeaux, que morrera daquela conhecida segunda colocada: Doença Brusca. Embora a fotografia não fosse muito nítida, Paulette Simeaux fazia com que "Queenie'' Beaulifant se parecesse como Thumbelina. Paul achou que a doença dela devia ter sido brusca mesmo: talvez uma súbita trombose coronária, seguida de um passeio até o Hospital Saint Joseph, seguida de. . .seguida pelo quê? Pelo quê, exatamente?
Ele não queria realmente pensar nessas particularidades. . .mas todos os três haviam morrido no Hospital Saint Joseph.
Se nós olhássemos o livro de registro das enfermeiras em março de 1969, não encontraríamos o nome Wilkes?
Este livro, meu Deus, era grosso demais.
Por favor, chega. Eu não quero ver mais nada. Tive uma idéia. Vou colocar este livro exatamente onde encontrei e vou para o quarto. Acho que não quero mais escrever. Vou tomar uma cápsula a mais e cair na cama. Pode chamar a isso de prevenção contra pesadelos, mas já chega do Livro de Recordações da Annie, se você não se importa. Por favor, se você não se importa.
Mas as mãos de Paul pareciam ter vontade própria e elas continuavam a virar as páginas cada vez mais rápido.
Mais dois obituários publicados pelo Union-Leader, um de setembro de 1969, o outro do início de outubro.
19 de março de 1970. Publicado no Herald, de Harrisburg, na Pensilvânia. Última página do jornal. anunciando novo corpo de auxiliares do hospital. A foto mostrava um homem careca, de óculos, que pareceu a Paul o tipo de pessoa que comia meleca escondido. O artigo ressaltava ainda que além do novo diretor de publicidade (o careca de óculos), o Hospital Riverview contratara vinte outros empregados: dois médicos, oito enfermeiras, cozinheiros, serventes e um porteiro.
Na página seguinte, vou encontrar uma nota sucinta comunicando a morte de algum ancião ou anciã, falecido no Hospital Riverview em Harrisburg, na Pensilvânia.
Certo. Um velho mascate morrera, vítima da mais favorita de todas as enfermidades: Longa Doença.
Seguido de uma anciã, vítima da conhecida segunda colocada: Doença Brusca.
Seguida de uma criança de três anos de idade que caíra dentro de um poço, machucara gravemente a cabeça e entrara no Hospital Riverview em estado de coma.
Um pouco entorpecido, Paul continuou a virar as páginas enquanto o vento e a chuva desabavam sobre a casa. O plano era sempre o mesmo. Ela arranjava um emprego, matava algumas pessoas e se mudava.
Subitamente, uma imagem surgiu em sua cabeça, uma imagem saída de um sonho que ele esquecera e que agora ganhava certa ressonância oracular meio déjà vu. Era a imagem de Annie, metida num vestido comprido coberto por avental e com uma touca na cabeça — tal como uma enfermeira do Hospital Bedlam, em Londres. Num dos braços, ela trazia uma cestinha de palha. À medida que ia passando por entre os leitos, Annie tirava areia do cesto e jogava no rosto dos doentes. Mas aquilo não era areia. Era veneno. E isso os estava matando. Seus rostos se tornavam lívidos e as linhas dos monitores que controlavam suas vidas precárias, tornavam-se apenas uma linha reta.
Talvez ela tenha matado os filhos de Krenmitz porque eles fossem uns fedelhos. . . e sua colega de quarto. . . até mesmo o pai. Mas, e os outros?
Mas Paul sabia. A Annie dentro dele sabia. Velhos e doentes. Todos eles eram velhos e doentes com exceção da senhora Simeaux, que devia estar levando uma vida vegetativa ao entrar no hospital. A senhora Simeaux e o menino que caíra no poço. Annie os matara porque. . .
Pobres coitados. Pobres, pobres coitados.
Era isso mesmo. Para Annie, o mundo estava dividido em três grupos de pessoas: fedelhos, pobres coitados e. . . Annie.
Ela se mudava sempre em direção a oeste. De Harrisburg para Pittsburgh, daí para Duluth e daí para Fargo. E então foi para Denver, em 1978. E em cada caso era sempre a mesma coisa: um "artigo de boas-vindas", em que o nome de Annie aparecia junto ao de outras pessoas (Annie provavelmente deixara passar o artigo de "boas-vindas" de Manchester por não saber que os jornais locais publicavam essas notícias, achava ele), seguido de duas ou três notas comuns de falecimento. E o ciclo recomeçava.
Mas só até Denver.
A princípio, tudo parecia igual. Um artigo com o nome dos recém-chegados, recortado do jornal interno do Receiving Hospital de Denver. A letra caprichosa de Annie identificava o nome do jornal: The Gurney.
— Grande nome para um jornal de hospital. Não sei como não pensaram em chamá-lo The Stool Sample. — disse Paul, sem perceber que dava a gargalhada mais aterrorizante até agora.
Na página seguinte, o primeiro óbito, recortado do Rocky Mountain News. Laura D. Rothberg. Doença longa. 21 de setembro de 1978. Denver Receiving Hospital.
E então este ritmo foi quebrado.
Na folha seguinte, havia um casamento ao invés de um enterro. A fotografia mostrava Annie num vestido branco rendado e a seu lado, segurando suas mãos, um homem chamado Ralph Dugan. Dugan era um fisioterapeuta. O título do recorte dizia: CASAMENTO DE DUGAN E WILKES, Rocky Mountain News, 2 de janeiro de 1979. Dugan era um homem sem nenhum atrativo, exceto por um detalhe: parecia-se com o pai de Annie. Paul achou que se ele tirasse o bigode — que Annie provavelmente deve tê-lo feito raspar logo após a lua-de-mel — a semelhança entre eles seria extraordinária.
Paul manuseou as muitas páginas que ainda faltavam. Ralph Dugan devia ter dado uma olhada em seu horóscopo — ou melhor, horróscopo — no dia em que pediu a mão de Annie, pensou ele.
Aposto que daqui a pouco eu vou encontrar uma notinha a seu respeito. Você deve ter dado de cara com umas peças de roupa ou um gato morto na escada. Um gato morto com um nome bonito.
Mas enganara-se. O recorte seguinte anunciava os recém-chegados a Nederland, uma pequena cidade a oeste de Boulder. Não muito longe daqui, pensou ele. A princípio, ele não encontrou o nome de Annie no pequenino recorte, mas percebeu que estava procurando pelo nome errado. Ela estava ali, mas fazia parte agora de uma entidade sócio-sexual chamada "Senhor e Senhora Ralph Dugan".
Paul ergueu a cabeça. Era um carro se aproximando? Não. . .apenas o vento. Com certeza, apenas o vento. E ele continuou a ver o livro de Annie.
Ralph Dugan voltara para ajudar os coxos, cegos e aleijados do Hospital Municipal Arapahoe; e Annie, provavelmente, voltou a exercer a nobre profissão de enfermeira, proporcionando ajuda e conforto para os gravemente enfermos.
E a matança recomeça, pensou Paul. Resta saber onde Ralph vai aparecer: no princípio, no meio ou no fim?
Mas Paul engana-se mais uma vez. Ao invés de um óbito, o recorte seguinte estampava a xerox de um anúncio de imóveis. No canto esquerdo, ao alto, via-se a fotografia de uma casa. Paul a reconheceu pelo celeiro, apesar de nunca ter visto a casa de Annie por fora.
A letra firme e caprichosa de Annie escrevera logo abaixo: Sinal pago em 3 de março de 1979; escrituras assinadas em 18 de março de 1979.
Uma casa para quando se aposentassem? Um lugar para passarem o verão? Não, eles não podiam se dar esse luxo. O quê, então?
Bem, talvez seja apenas uma hipótese, mas suponhamos que Annie amasse o velho Ralph de verdade. Talvez um ano tivesse passado e Annie ainda não tivesse farejado nada de errado com ele. Alguma coisa mudara. Não houvera mais mortes desde. . .
Paul voltou algumas páginas.
Desde Laura Rothberg, em setembro de 1978. Annie parara com os assassinatos mais ou menos na época em que conheceu Ralph. Mas aquilo foi antes e agora era agora. Ela estava começando a sentir-se pressionada e as crises de depressão estavam de volta. Ela olha para as pessoas idosas. . . para os doentes terminais. . . e acha que eles são uns pobres coitados. Talvez ela tivesse pensando: "É esse ambiente que me deixa deprimida. Esses corredores intermináveis, esse cheiro, o roçar silencioso dos sapatos pelo chão e os gemidos das pessoas sofrendo. Se eu conseguisse sair desse lugar, eu ficaria bem."
Ralph e Annie, portanto, foram morar no campo.
Paul virou a página e arregalou os olhos.
No final da folha, lia-se 43 de agosto de 1880!
A mão furiosa que segurara a caneta rasgara o papel em diversos lugares, apesar dele ser razoavelmente grosso.
O recorte tirado do jornal de Nederland se intitulava divórcios CONCEDIDOS. Paul teve que virar o livro para ver se Annie e Ralph faziam parte daquela lista. Annie colara o recorte de cabeça para baixo.
Sim, lá estavam eles. Ralph e Annie Dugan. Motivo alegado: Crueldade mental.
— Divorciados depois de uma brusca doença — murmurou Paul ao mesmo tempo que levantava a cabeça para certificar-se que nenhum carro se aproximava.
O vento. Apenas o vento. Ainda assim, era melhor voltar para a segurança de seu quarto. Não só porque as dores nas pernas estivessem piores, mas também porque ele estava entrando num estado de total entorpecimento.
Mas Paul debruçou-se sobre o livro novamente. De certa forma, era bom demais para ele parar de ver. Assim como um livro de terror que você não consegue largar antes de terminar.
O casamento de Annie acabara de uma maneira muito mais formal do que Paul julgara a princípio. Mas parecia justo dizer que o divórcio ocorrera após uma brusca doença — um ano e meio de alegre vida em conjunto não era tanto assim.
Eles haviam comprado uma casa em março e ninguém faz uma aquisição dessas quando sente que o casamento está em crise. O que acontecera? Paul não sabia. Ele poderia inventar uma história, mas era só isso o que ela seria. Ao reler o recorte, Paul reparou num detalhe interessante: Angela Ford, de John Ford; Kirsten Frawley, de Stanley Frawley; Danna McLaren, de Lee McLaren; e. . .
Ralph Dugan, de Anne Dugan.
Existe esse costume entre os americanos, não? Ninguém fala muito, mas ele existe. Os homens propõem casamento à luz da lua; as mulheres pedem o divórcio. Nem sempre é assim que acontece, mas na maioria dos casos é assim. Logo, a que conclusão chegamos ao ler esse recorte ? Angela está dizendo:''Saia pelos fundos, Jack!''; Kirsten está dizendo: "Pode mudar seus planos, Stan!"; Danna está dizendo: "Devolva as chaves de casa, Lee!" E o que estará dizendo Ralph, o único nome de homem que vinha na frente do nome da ex-esposa? Acho que talvez ele esteja dizendo: "Deixe-me cair fora daqui!"
— Talvez ele tenha visto o gato morto no degrau da escada — arriscou Paul.
Página seguinte. Mais um artigo de boas-vindas, retirado do Camera, Boulder, Colorado. Na fotografia, cerca de uma dúzia de pessoas se perfilavam no gramado do Hospital Boulder. Annie estava na segunda fila, com o rosto branco e inexpressivo sob o chapéu branco com listra preta. Outra estréia, um outro show. A data indicava 9 de março de 1981. Annie voltara a usar o nome de solteira.
Boulder. Foi aí que ela endoidou de vez.
Paul virava as folhas cada vez mais rápido e seu horror só fazia aumentar. Dois pensamentos insistentes lhe voltavam sempre à cabeça: Por Deus, como não a prenderam logo ? Por Deus, como ela conseguiu escapulir da mão deles?
10 de maio de 1981 — doença longa. 14 de maio de 1981 — doença longa. 23 de maio — doença longa. 9 de junho — doença brusca. 15 de junho — brusca. 16 de junho — longa.
Brusca. Longa. Longa. Brusca. Longa. Longa. Brusca.
As folhas deslizavam pelos dedos de Paul e ele podia sentir o cheiro ressecado da cola.
— Jesus Cristo! Quantas pessoas ela matou?
Se era certo considerar cada nota de falecimento colada naquele livro como um assassinato, então podemos afirmar que Annie matara mais de trinta pessoas por volta do final de 1981. . . todas elas sem o menor rumor por parte das autoridades. É claro que a maioria das vítimas era de pessoas idosas, ou seriamente machucadas, mas ainda assim. . . se formos pensar em. . .
Em 1982 Annie finalmente tropeçou. O recorte datado de 14 de janeiro, retirado do Camera, mostrava o rosto inexpressivo e impenetrável de Annie e se intitulava: nomeada nova enfermeira-CHEFE para O SETOR DE MATERNIDADE.
No dia 29 de janeiro, começaram as mortes de crianças.
Com seu jeito meticuloso, Annie documentara toda a sua história e Paul não tinha a menor dificuldade em seguir a trajetória dela.
Se as pessoas que estavam atrás da sua pele tivessem visto esse livro, Annie, você estaria na cadeia — ou em algum hospício — e ficaria por lá até o final dos tempos.
As duas primeiras mortes não tinham levantado muitas suspeitas — uma das crianças apresentava sérias deficiências de nascença. Mas recém-nascidos — com deficiências ou não — eram bem diferentes de gente velha morrendo de insuficiência renal ou de acidentados que ainda chegam vivos aos hospitais mesmo com metade da cabeça afundada, ou com um buraco do tamanho de um volante na barriga. E Annie começou a matar os saudáveis junto com os avariados. Ele julgou que a profunda psicose de Annie fez com que ela começasse a ver todos eles como pobres, pobres coitados.
Em meados de março de 1982, cinco crianças já haviam morrido no Hospital Boulder, o que deu início a uma minuciosa investigação. O Camera de 24 de março indicava a causa provável como uma "infecção", segundo "fontes seguras" de dentro do hospital. E Paul ficou considerando a idéia dessa fonte segura não ter sido a própria Annie.
Outro bebê morreu em abril. Dois em maio.
E então, a primeira página do Denver Post de primeiro de junho estampava a manchete:
ENFERMEIRA CHEFE DA MATERNIDADE
INTERROGADA SOBRE MORTE DE CRIANÇAS
Nenhuma acusação foi feita "até agora", afirmou a porta-voz da polícia.
Por Michael Leith
Anne Wilkes, 39 anos, enfermeira-chefe da ala de maternidade do Hospital Boulder, será interrogada hoje a respeito das mortes de oito recém-nascidos, ocorridas num espaço de apenas alguns meses. Todas as mortes começaram a acontecer depois da senhorita Wilkes ter tomado posse no cargo.
A porta-voz da polícia, Tamara Kinsolving, negou que a senhorita Wilkes estivesse sendo detida. Ao lhe perguntarem se a enfermeira-chefe havia vindo prestar informações sobre o caso de livre e espontânea vontade, a senhora Kinsolving respondeu: "Eu diria que não foi este o caso. A coisa é um pouco mais grave!" Quando perguntaram a ela se Wilkes estava sendo acusada de algum crime, ela nos disse: "Não. Até agora, não!"
O resto do artigo dava um apanhado geral da carreira de Annie. Era óbvio que Annie mudara constantemente de cidade, mas não havia nenhuma evidência de que os doentes nos hospitais onde ela trabalhara, e não apenas em Boulder, arranjassem sempre um jeito de morrer quando ela estava por perto.
Paul olhou para a fotografia do jornal, fascinado.
Annie presa. Meu bom Deus, Annie sendo presa; o ídolo ainda não caíra, mas estava balançando. . . balançando. . .
Annie subia uma escadaria de pedra acompanhada de perto por uma forte policial. Seu rosto estava inerte, desprovido de qualquer expressão, e ela estava vestida em seu uniforme branco.
Página seguinte: Wilkes em liberdade: silêncio no interrogatório.
Ela conseguira escapar. De alguma maneira, ela conseguira escapar. Era hora dela sumir e aparecer em algum outro lugar — Idaho, Utah, Califórnia, talvez. Mas ela voltou ao trabalho. E ao invés de uma nova coluna de boas-vindas, publicada em algum lugar mais para o oeste, a página seguinte estampava a primeira página do Rocky Mountain News do dia 2 de julho de 1982 com a seguinte manchete, em letras garrafais:
O Horror Continua:
MAIS TRÊS CRIANÇAS
MORREM NO HOSPITAL BOULDER
Dois dias depois, a polícia prendeu um servente do hospital, um porto-riquenho, mas soltou-o nove horas mais tarde. E então, no dia 19 de julho, tanto o Denver Post quando o Rocky Mountain News noticiavam a prisão de Annie. Houve uma breve audiência preliminar no início de agosto e no dia 9 de setembro ela foi levada a julgamento pela morte de uma menina de apenas um dia que ficou conhecida como a Menina Christopher. Além desta, havia sete outras acusações por assassinato de primeiro grau. O artigo ressaltava ainda que muitas das supostas vítimas de Annie não haviam vivido tempo suficiente para que os pais escolhessem um nome para elas.
Espalhadas entre o noticiário do julgamento, havia cartas de leitores nos jornais de Denver e Boulder. Paul percebeu que ela selecionara apenas as mais hostis — aquelas que enfatizavam sua visão parcial da humanidade como Homo Brattus — mas de um modo geral eram todas bastante ofensivas. E parecia haver um consenso: o enforcamento era pena suave demais para Annie Wilkes. Um dos leitores apelidou-a de "Mulher Dragão" e ela carregou o apelido até o final do julgamento. A grande maioria achava que a Mulher Dragão devia ser espetada com forquilhas incandescentes até a morte — e muitos deixavam transparecer que ficariam contentes em servir de algoz.
Ao lado de uma dessas cartas, Annie escrevera uma frase patética, numa letra trêmula, muito diferente da sua habitual caligrafia firme: Pedras machucariam meu corpo; palavras jamais me atingem.
Aparentemente, o grande erro de Annie foi não ter parado quando todos já haviam percebido que alguma coisa estava de fato acontecendo. Isso é que foi mau, mas, infelizmente, não tão mau assim. O ídolo apenas balançou. O andamento do processo seguira formalmente. O promotor alegara que havia marcas de mãos no rosto e no pescoço da Menina Christopher, e que essas marcas correspondiam ao tamanho das mãos de Annie, incluindo a marca de um anel de ametista que ela usava no dedo mindinho da mão direita. Ele afirmou ainda que tinha os registros de entrada e saída de Annie na maternidade e que estes correspondiam aproximadamente às ocasiões em que as mortes haviam ocorrido. Annie, entretanto, era a enfermeira-chefe da maternidade e, por isso mesmo, estava sempre entrando e saindo. A defesa, por sua vez, pôde comprovar que em diversas outras ocasiões Annie estivera na ala da maternidade sem que nada de errado tivesse acontecido. Paul achou que isto era o mesmo que querer provar que meteoros nunca se chocam com a Terra só por que nenhum deles caiu na "Fazenda do João" em cinco dias seguidos. Ele compreendia, porém, como esse argumento podia ter pesado na decisão do júri.
O promotor fez de tudo para que ela caísse em sua rede, mas a marca da mão com o anel foi a prova mais comprometedora que ele conseguiu apresentar. O fato do estado do Colorado ter decidido levar Annie ao tribunal, frente a uma chance tão mínima de condenação, levantou uma suspeita em Paul, mas também lhe deu uma certeza. A suspeita de que durante o interrogatório Annie dissera coisas muito sugestivas e até comprometedoras, mas seu advogado conseguira impedir que fossem inseridas na ata do julgamento. A certeza de que a idéia de Annie em defender-se sozinha na audiência preliminar fora das mais infelizes. E este depoimento o advogado não conseguiu deixar de fora (apesar de todos os seus esforços). E mesmo que em nenhum momento ela tivesse se declarado culpada naqueles três dias de agosto que passou "lá no tribunal em Denver", Paul achava que seu depoimento era quase uma confissão.
Alguns recortes colados no livro apresentavam verdadeiras preciosidades:
Se eles me faziam ficar triste? É claro que eles me faziam ficar triste, levando em consideração o mundo em que vivemos.
Não tenho nada de que me envergonhar. O que faço está feito e nunca olho para trás.
Se eu ia aos enterros? É claro que não. Enterros são muito tristes e deprimentes. Além do mais, não acredito que bebês tenham alma.
Não, eu nunca chorei.
Se eu ficava arrependida? Acho que esta é uma pergunta muito filosófica, não?
É claro que entendi a pergunta. Eu entendo todas as suas perguntas. Sei que estão todos contra mim.
Se ela tivesse insistido em defender-se sozinha no julgamento, pensou ele, o advogado teria lhe dado um tiro para ver se ela calava a boca.
O caso foi julgado no dia 13 de dezembro de 1982. O Rocky Mountain News estampava uma foto surpreendente de Annie sentada calmamente em sua cela lendo À procura de Misery. Dizia a legenda: agoniada? NÃO A mulher DRAGÃO. . .Annie lê calmamente enquanto espera pela sentença.
E então, em 16 de dezembro, a manchete em letras garrafais: mulher dragão considerada inocente. O artigo trazia a opinião de um dos jurados, que pedira para não ser identificado: "Eu tinha sérias dúvidas de que ela fosse inocente, mas infelizmente tinha dúvidas razoáveis de que ela fosse culpada. Espero que seja levada a julgamento também pela morte das outras crianças. E dessa vez talvez o promotor apresente uma prova mais convincente."
Todos sabiam que ela era culpada, mas não tinham como provar. E assim, ela escapuliu da mão deles.
O noticiário se estendia por mais três ou quatro páginas. O promotor afirmava que Annie seria com certeza indiciada pela morte das outras crianças. Três semanas depois, ele negou que algum dia tivesse dito isso. No início de fevereiro de 1983 a promotoria divulgou uma nota dizendo que enquanto o caso da morte de crianças no Hospital Boulder estivesse muito recente, o processo de Annie Wilkes ficaria arquivado.
Escapuliu da mão deles.
O marido não foi intimado a testemunhar nem contra nem a favor. Por que seria?
O livro ainda tinha muitas folhas, mas pelo toque das mãos, Paul sentiu que não eram muitas as páginas com recortes colados. Graças a Deus.
A página seguinte mostrava a Sidewinder Gazette de 19 de novembro de 1984. Excursionistas haviam encontrado o corpo mutilado e parcialmente desmembrado de um jovem na área leste da Reserva Florestal Grider Wildlife. O jornal da semana seguinte identificava o rapaz como sendo Andrew Pomeroy, 23 anos, natural de Cold Stream Harbor, Nova Iorque. Pomeroy saíra de Nova Iorque em setembro do ano anterior com intenção de ir pedindo carona até Los Angeles. A última vez que ele entrou em contato com os pais foi no dia 15 de outubro numa chamada a cobrar feita de Julesburg. O corpo foi encontrado no leito seco de um rio e a polícia acreditava que Pomeroy tinha sido morto nas proximidades da Rodovia 9 e que seu corpo tenha sido carregado pela corrente de gelo derretido com o início da primavera, indo parar na Reserva Florestal. O relatório do legista afirmava que o corpo do rapaz fora mutilado com um machado.
Paul ficou a pensar, não sem motivo, qual seria a distância entre a Reserva Florestal Grider Wildlife e a casa de Annie.
Paul virou a página e deparou com o último recorte — último até o momento. Subitamente, Paul sentiu uma grande falta de ar. Era como se ele tivesse deparado — depois daquela intolerável necrologia das páginas anteriores — com o seu próprio obituário. Não era bem assim. . .
— Mas quase. . . — murmurou ele numa voz rouca. Era uma nota publicada na revista Newsweek, na coluna "Transitions". Logo abaixo do divórcio de uma atriz de TV e da morte de um magnata do aço do meio-oeste, lia-se: desaparecido: Paul Sheldon, 42, romancista conhecido principalmente pela série de livros com a sexy, borbulhante e cabeça oca Misery Chastain. Comunicado feito pelo seu agente, Bryce Bell. "Imagino que ele esteja bem, disse Bell, mas gostaria que ele entrasse em contato para me tranqüilizar; as ex-esposas dele também gostariam que ele entrasse em contato e "tranqüilizasse" a conta bancária delas.'' Sheldon foi visto pela última vez há sete semanas em Boulder, Colorado, para onde fora terminar um novo livro.
A nota saíra há duas semanas atrás.
Desaparecido, isso é tudo. Apenas desaparecido. Ainda não morri, não é como se eu tivesse morrido.
Mas era como se tivesse morrido. Subitamente, Paul viu que precisava demais do remédio. Não eram só as pernas que doíam, tudo doía. Paul recolocou o livro cuidadosamente onde estava e empurrou a cadeira para o quarto de hóspedes.
Lá fora, o vento soprava ainda mais violento, lançando uma chuva fria contra a casa. Paul se encolhia temeroso entre gemidos e tentava desesperadamente controlar-se para não chorar.
Uma hora mais tarde, Paul estava dopado e quase adormecendo. As rajadas de vento pareciam agora mais reconfortantes do que assustadoras.
Não vou conseguir fugir. Não tem jeito. Como era mesmo que Thomas Hardy dizia em 'Jude, the Obscure'? "Alguém poderia ter se apressado em amenizar o terror do menino, mas ninguém o fez. . . porque ninguém nunca o faz." Certo. Absolutamente certo. O navio não vai se aproximar porque não há botes para ninguém. Lone Ranger está muito ocupado fazendo anúncios de cereais para o café da manhã e o Super-homem está filmando em Tinsel Town. Você está sozinho, Paulie. Completamente sozinho. Mas talvez seja bom. Por que você talvez saiba, afinal de contas, qual é a saída, não sabe?
Sim, é claro que ele sabia.
Se quisesse sair dessa, teria que matar Annie.
É essa a saída — a única possível, creio eu. Sendo assim, era o velho jogo novamente, não era? Paulie. . . Você Consegue?
— Consigo — respondeu ele, sem hesitar:
Seus olhos fecharam e Paul adormeceu.
A tempestade continuou durante todo o dia seguinte e só a noite as nuvens se desmancharam e foram levadas para longe. A temperatura caiu bruscamente de quinze positivos para quatro graus abaixo de zero e todo o mundo parecia congelar lá fora. Sentando em frente à janela, Paul observava a manhã branca e cintilante naquele segundo dia sozinho. Misery, a porca, guinchava no celeiro e uma das vacas mugia.
Paul ouvia freqüentemente os animais e eles já faziam parte daquele ambiente tanto quanto o relógio da sala. Mas Paul jamais ouvira a porca guinchando assim. Uma vez, pelo menos, ele escutara a vaca mugindo daquele jeito, um gemido ruim que ele mal distinguira dentro de um sonho ruim — porque ele estava envolvido nas próprias dores. Foi quando Annie sumiu da primeira vez, deixando-o sem remédio. Paul crescera num subúrbio de Boston e passara quase a vida inteira em Nova Iorque, mas ele imaginava o que aqueles dolorosos mugidos significavam. Uma das vacas precisava ser ordenhada. Aparentemente, a outra não precisava, talvez porque os hábitos inconstantes de Annie tivessem secado todo o seu leite.
E a porca?
Esfomeada. Só isso. E era o bastante.
Eles hoje não teriam o menor consolo. Paul duvidava que Annie conseguisse voltar para casa, mesmo se quisesse. Toda essa parte do mundo se transformara num imenso ringue de patinação. Ele estava surpreso com a pena que sentia dos animais e com a raiva que sentia de Annie por seu inadmissível e intolerável egoísmo, deixando-os sofrer em seus cercados.
Se os seus bichos pudessem falar, Annie, eles iam dizer a você quem é a grande trapaceira que existe por aqui.
Paul passou aqueles dias tranqüilo. Comia enlatados, bebia água do jarro, tomava seu remédio e dormia de tarde. A história de Misery, sua amnésia e seu parentesco desconhecido (e espetacularmente leviano), seguiam calmamente em direção à África, cenário da segunda metade do livro. Chegava a ser irônico, mas Annie o coagira a escrever um livro que estava se tornando, sem sombra de dúvida, o melhor livro da série. Ian e Geoffrey estavam em Southampton preparando a escuna Lorelei para a viagem. Misery continuava a entrar em estados de catalepsia nas horas mais inconvenientes (se algum dia ela fosse picada por outra abelha, sua morte seria instantânea); o Continente Negro seria o lugar da salvação ou do fim de Misery. A duzentos e quarenta quilômetros por terra de Lawstown, um pequeno povoado de ingleses e holandeses no extremo norte da Costa da Barbária, viviam os Bourkas, os mais perigosos nativos africanos. Os Bourkas eram conhecidos também como o Povo das Abelhas. As poucas pessoas que se aventuraram pelo território dos Bourkas e conseguiram voltar, contavam histórias fantásticas sobre um rosto de mulher cravado num rochedo alto e escarpado — um rosto impiedoso, de boca entreaberta e um rubi fincado no meio da testa. Havia rumores ainda — rumores, apenas, é verdade, mas incrivelmente persistentes — que nas cavernas por trás daquele ídolo de pedra com a jóia na testa vivia um enxame de abelhas albinas gigantes que se aglomeravam protetoramente em volta da abelha rainha, uma monstruosidade gelatinosa infinitamente venenosa e. . . infinitamente mágica.
Durante aqueles dias, Paul distraiu-se com essas amenidades. Durante a noite, Paul ouvia a porca guinchando e arquitetava um plano para matar a Mulher Dragão.
Paul descobriu que brincar de "Você Consegue?" na vida real era muito diferente de brincar numa roda cheia de meninos sentados de pernas cruzadas, ou na frente de uma máquina de escrever, mesmo depois de adulto. Quando se tratava de um jogo (mesmo que fosse a dinheiro, não deixava de ser um jogo), era possível inventar as coisas mais absurdas e fazer com que elas parecessem aceitáveis — por exemplo, a relação entre Misery Chastain e a senhorita Evelyn-Hyde (elas acabaram virando meio-irmãs; Misery descobriria mais tarde que seu pai estava vivendo na África com os Bourkas). Na vida real, entretanto, o mistério perdia um pouco de seu encanto.
Não que Paul não estivesse tentando. Havia aquele monte de remédio no banheiro — com certeza, devia ter alguma maneira de usá-los para tirar Annie de seu caminho, não? Ou pelo menos de deixá-la indefesa o tempo suficiente para ele acabar com ela. Novril, por exemplo. Uma quantidade suficiente dessa merda e ele não precisaria fazer mais nada. Annie morreria sozinha.
Essa é uma ótima idéia, Paul. Vou lhe dizer o que fazer. Pegue um monte daquelas cápsulas e espalhe pelo sorvete dela. Annie vai pensar que é pistache e vai devorá-las direto.
Não, é claro que isso não ia dar certo. Nem que ele abrisse as cápsulas e misturasse o pozinho no meio do sorvete. Novril era terrivelmente amargo, e ele sabia muito bem pois já experimentara. Seria um gosto que ela reconheceria na hora em meio ao doce do sorvete. . . e aí, azar o seu, Paulie. Azar o seu.
Era uma idéia ótima para um livro, mas na vida real, simplesmente não funcionava. Paul duvidava que tivesse coragem de arriscar, mesmo que o pozinho branco dentro das cápsulas não tivesse absolutamente gosto de nada. Não era um plano infalível; não o bastante. E isso não era um jogo. Era sua vida que estava em jogo.
Muitas outras idéias lhe passaram pela cabeça, mas Paul as rejeitava prontamente. Uma delas foi colocar algum objeto (a máquina de escrever foi a primeira coisa que lhe veio à lembrança) em cima da porta para que ela caísse na cabeça dela assim que entrasse — se ela não morresse, pelo menos ficaria inconsciente. Paul pensou ainda em amarrar um fio na escada para ela tropeçar. Mas em ambos os casos, o problema era o mesmo do velho truque do Novril-misturado-no-sorvete: Nenhum dos dois era infalível. Paul sentia-se literalmente incapaz de pensar no que aconteceria a ele caso o plano falhasse.
No entardecer do segundo dia, os guinchados de Misery tornaram-se mais monótonos que nunca — a porca soava como uma porta aberta, dobraciças enferrujadas, rangendo e balançando ao sabor do vento — mas a vaca parara de mugir de uma hora para a outra. Inquieto, Paul achou que os úberes do pobre animal tivessem arrebentado, causando uma hemorragia e também sua morte. Por alguns instantes, sua imaginação (tão vívida!) apresentou a imagem da vaca morta, caída numa poça de leite e sangue, mas ele tratou de tirá-la da cabeça. Paul disse a si mesmo para deixar de ser bobo — vacas não morriam daquele jeito. Mas a voz que assim dizia não era muito convincente. Ele não fazia a menor idéia se as vacas morriam assim ou não. E além do mais, a vaca não era bem o seu problema, era?
Todas as suas idéias extravagantes convergem para um mesmo ponto: você está querendo matar Annie por controle remoto, você não quer sujar as mãos de sangue. É como uma pessoa que adora um bife grosso e mal passado, mas não agüenta uma hora dentro de um matadouro. Mas escute uma coisa, Paulie, de uma vez por todas: este é o momento de sua vida em que você deve encarar a realidade de frente. Nada de fantasias. Nada de ficar dando voltas. Certo?
Certo.
Paul foi até a cozinha e revirou algumas gavetas à procura de uma faca. Ele escolheu o facão mais comprido e voltou para o quarto, não sem antes limpar as marcas que a cadeira deixara nos portais. As marcas de seus passeios, entretanto, estavam ficando cada vez mais evidentes.
Não importa. Se ela não os descobrir agora, não descobrirá nunca mais.
Paul colocou a faca na mesinha-de-cabeceira, depois arrastou-se para a cama e a escondeu embaixo do colchão. Quando Annie voltasse, ele iria pedir um bom copo de água gelada; no momento em que ela se inclinasse sobre ele para lhe entregar o copo, ele enfiaria a faca na garganta dela.
Nada de fantasias.
Paul fechou os olhos e adormeceu. Quando o jipe entrou deslizando pela alameda da casa, com os faróis apagados e o motor desligado, Paul não despertou. Até o momento em que sentiu uma picada de agulha no braço e deparou com Annie debruçada sobre ele, Paul não fazia a menor idéia de que ela tivesse voltado.
À princípio, Paul julgou que estivesse sonhando com o livro. A escuridão vinha de dentro das cavernas no interior do grande rosto de pedra da Abelha Rainha dos Bourkas e a picada era de uma das abelhas. . .
— Paul?
Sonolento, Paul murmurou alguma coisa incompreensível, algo como "dê o fora daqui", "vá embora".
— Paul.
Aquilo não era sonho. Era a voz de Annie.
Paul se esforçou para abrir os olhos. Sim, era ela que estava ali. Por alguns instantes, Paul sentiu uma onda de pânico lhe invadir, mas ela foi simplesmente se dissipando, como um líquido escorrendo por um canal parcialmente obstruído.
Que diabos. . .
Paul estava completamente atordoado. Annie estava de pé no escuro, como se nunca tivesse ido embora, metida numa de suas saias de lã e vestindo um casaco antiquado. Ao ver uma seringa na mão dela, Paul compreendeu que a picada não havia sido de uma abelha. Dane-se, dava tudo no mesmo. Ele fora pego pela deusa. Mas o que ela. . .?
A onda de pânico tentou tomá-lo outra vez, mas deparou com alguma barreira. Paul estava ceticamente surpreso. E curioso também para saber de onde ela chegara e por que chegara a essa hora da noite. Paul tentou levantar os braços, mas eles tombaram no lençol, como se pesos invisíveis os puxassem para baixo.
Não importa o que ela aplicou em mim. É aquilo que se escreve na última página de um livro. FIM.
Paul não sentiu medo. Pelo contrário, sentia uma serena euforia.
Pelo menos ela tentou amenizar o fim. . . fazê-lo mais. . .
— Ah, aqui estão eles — disse Annie numa voz estrondosa e faceira — Eu os vejo, Paul. . . esses olhos azuis. Eu já lhe disse alguma vez que você tem os olhos lindos? Suponho que muitas mulheres já tenham lhe dito isso, mulheres mais bonitas e mais ousadas que eu.
Ela voltou. Voltou sorrateiramente durante a madrugada e me matou — uma injeção ou picada de abelha, não faz diferença. E tanto esforço para apanhar aquela faca. Agora eu sou o último da lista considerável dos cadáveres de Annie.
A euforia causada pela injeção começou a se espalhar e Paul pensou, quase bem-humorado: Eu me saí uma Scheherazade da pior qualidade.
Paul achou que ia pegar no sono de novo — no sono eterno — mas enganou-se. Ele a viu guardando a seringa no bolso da saia e sentando na beirada da cama. . . mas não no lugar em que geralmente costumava sentar. Annie sentara aos pés da cama e, por alguns instantes, tudo o que ele pôde ver foram as costas sólidas e impenetráveis de Annie a se abaixar como se verificasse alguma coisa. Paul ouviu um barulho de madeira, seguido de um metálico e de um outro barulho que ele já escutara em algum lugar. Pouco depois, ele lembrou o que era. Apanhe os fósforos, Paul.
Diamond Blue Tips. Paul não imaginava o que mais ela tinha ali aos pés da cama, mas uma das coisas era uma caixa de fósforos da marca Diamond Blue Tips.
Annie virou-se e sorriu para ele. O que quer que tivesse acontecido, a apocalíptica depressão dela havia passado. Annie colocou um cacho de cabelo atrás da orelha, com um gesto gracioso, o que não combinava muito com o cabelo sujo e sem brilho.
Sujo e sem brilho cara você tem que lembrar dessa essa não foi tão ruim assim cara você está doidão agora todo o passado foi apenas um preâmbulo para esta merda ei cara é essa a veia ora eu estou fodido mas esta droga é o máximo é como descer numa onda de mais de um quilômetro de altura é como. . .— O que você quer ouvir primeiro, Paul? As boas ou as más notícias?
— As boas primeiro. — respondeu ele, dando um sorriso amarelo. — Acho que a má notícia é que este é o FIM, não? Acho que você não gostou do livro tanto assim, não é? Horrível demais. . .mas eu tentei. E estava dando certo. Eu estava começando a. . .você sabe. . . a pensar em terminá-lo.
— Eu adorei o livro, Paul! — proferiu ela, dirigindo-lhe um olhar de reprovação. — Eu lhe disse desde o início, e eu nunca digo mentiras. Eu gostei tanto dele, que só quero ler quando você terminar. Sinto muito que você mesmo tenha que preencher os enes, mas se eu fosse fazer isso. . . ia acabar dando uma espiada na história.
Paul abriu ainda mais o sorriso e achou que ele ia se abrir tanto, que acabaria dando a volta do pescoço e arrancando sua pobre cabeça; ela rolaria pelo chão e iria parar ao lado do urinol. Em alguma parte profunda e escondida de sua mente, onde a droga ainda não chegara, ele sentiu como um alarme a disparar. Ela adorara o livro, logo não podia ter intenção de matá-lo. Não importa o que estivesse acontecendo. Annie não pretendia matá-lo. E se ele já a conhecia bem, Annie devia ter em mente algo muito pior.
A luz do quarto não lhe parecia mais opaca; parecia maravilhosamente cristalina, maravilhosamente cheia de raios e fascínio; dentro daquela luz ele podia imaginar garças azuis apoiadas em uma só perna surgindo por entre um nevoeiro cinzento, no silêncio dos lagos das regiões montanhosas; dentro daquela luz ele podia imaginar o brilho das partículas de malacacheta nas pedras espalhadas entre a relva de primavera nas campinas montanhosas refletindo o brilho do vidro da janela; dentro daquela luz ele podia imaginar duendes caminhando em fila, seguindo para o trabalho, em meio a folhas tenras de hera cheias de orvalho, dentro daquela luz. . .
Cara você está viajando, pensou ele, sorrindo ligeiramente.
Annie retribuiu o sorriso.
— A boa notícia, é que o seu carro não está mais lá. Eu estava muito preocupada com o carro, Paul. Eu sabia que ia precisar de uma tempestade como essa para me livrar dele, e talvez nem isso desse resultado. A corrente de neve derretida deu cabo daquele trapaceiro, Pomeroy, mas um carro é muito mais pesado que um homem, mesmo um homem cheio de porcaria como Pomeroy. Só que a tempestade e o degelo da neve levaram seu carro. Ele não está mais onde estava. Essa é a boa notícia.
— Quem. . .
Mais alarmes disparando dentro dele. Pomeroy. . . ele já ouvira esse nome, mas não sabia dizer exatamente onde. E então ele se lembrou. Pomeroy. O grande Andrew Pomeroy, vinte e três anos, natural de Cold Stream Harbor, Nova Iorque. Encontrado na Reserva Florestal Grider Wildlife, onde quer que ela ficasse.
— Ora, Paul, não precisa se fazer de desentendido — disse Annie com aquela voz afetada que ele já conhecia tão bem. — Eu sei que você sabe quem era Andy Pomeroy, porque sei que você andou vendo o meu livro. Acho que, de certo modo, eu esperava que você o visse. Afinal de contas, por que outro motivo eu o teria deixado do lado de fora? Mas eu dei um jeito de me certificar, você sabe, eu sempre me certifico de tudo. E tive certeza. As linhas estavam fora do lugar.
— As linhas — murmurou ele.
— Ah! Eu li uma vez a respeito de uma maneira para descobrir se alguém andou bisbilhotando as suas gavetas. Você passa uma linha fina por entre os puxadores e se uma delas aparecer arrebentada, já viu, não é? Alguém andou bisbilhotando as suas gavetas, certo? Está vendo como é fácil?
— Estou, Annie.
Paul estava escutando, mas o que ele queria mesmo era continuar viajando naquela luz maravilhosa.
Pela segunda vez, Annie se reclinou para verificar o que quer que ela tinha ali ao pé da cama; e pela segunda vez ele distinguiu o barulho seco de um objeto de madeira batendo contra um metálico. Ela voltou-se para ele e passou a mão distraidamente pelo cabelo.
— Fiz a mesma coisa com o livro, só que ao invés de usar um fio de linha, usei fios de meu próprio cabelo. Coloquei três fios em três lugares diferentes e quando cheguei aqui esta manhã — bem cedinho, me arrastando feito um ratinho para não acordar você — todos eles estavam fora do lugar. E foi assim que descobri que você andou vendo o meu livro!
Annie deu um sorriso triunfante e Paul pressentiu nele algo desagradável, que não soube dizer direito o que era.
— Não que isso tivesse me deixado surpresa. Eu sabia que você já estivera fora do quarto. E essa é a má notícia. Eu já sabia disso há muito, muito tempo, Paul.
Paul achou que devia sentir-se aterrorizado. Ela sabia, e desde o início, ao que parece. . . mas ele sentia apenas uma deliciosa euforia. O que Annie estava dizendo não tinha a menor importância comparada à luz gloriosa que se tornava mais intensa à medida que o dia clareava.
— Mas nós estávamos falando do seu carro — disse ela, com um ar de quem retomava o assunto em questão. — Lá no meu lugar nas montanhas eu tenho um jogo de correntes para pneus. Ontem à tarde eu já estava me sentindo bem melhor — passei a maior parte do meu tempo lá, de joelhos, rezando profundamente; e então me veio a resposta, como sempre vem; e ela era das mais simples, como sempre é. Tudo o que levamos ao Senhor nas orações ele retribui multiplicado por mil. Sendo assim, peguei as correntes, coloquei nos pneus e vim até a estrada. Não foi nada fácil. Mesmo com as correntes, eu sabia que podia ter um acidente. E nessas estradas sinuosas aqui das montanhas, um acidente nunca é pequeno. Mas eu me sentia tranqüila e protegida pois estava fazendo a vontade do Senhor.
— Isso foi muito louvável, Annie — murmurou ele.
Annie lhe dirigiu um olhar ao mesmo tempo surpreso e desconfiado. . . e então ela se descontraiu e abriu um sorriso.
— Tenho um presente para você, Paul. — disse ela, numa voz terna.
Antes que ele lhe perguntasse o que era — Paul não estava muito certo de que gostaria de receber qualquer presente vindo de Annie — ela continuou:
— A estrada estava terrivelmente escorregadia. Eu quase saí da estrada por duas vezes. . . Na segunda vez, Old Bessie, o meu jipe, foi rodopiando até bater num monte de neve.
Annie deu uma gargalhada.
— Isso foi por volta de meia-noite. Então apareceu um trator do Departamento de Obras de Eustice, que vinha jogando areia na pista, e eles me ajudaram a tirar o jipe de lá.
— Viva o Departamento de Obras de Eustice! — disse ele, numa pronúncia arrastada e ininteligível.
— Os três quilômetros depois de sair da estrada estadual é que foram o pior pedaço. A Rodovia 9, você sabe, aquela onde você se acidentou. Eles já haviam jogado areia na pista. Eu parei no lugar do acidente e procurei pelo carro. Sabia muito bem o que fazer se eu o visse. Porque podem vir fazer perguntas e eu seria a primeira pessoa a quem eles viriam perguntar alguma coisa — e acho que você sabe muito bem por quê
Eu saí na sua frente, Annie. Já repassei essa cena toda há três semanas atrás.
— Umas das razões de eu ter trazido você para cá foi algo maior que uma simples coincidência. . . algo parecido com a Providência Divina.
— O que se parecia com a Providência Divina, Annie? — ele conseguiu perguntar.
— O seu carro caiu quase no mesmo lugar onde eu me livrei daquele desagradável Pomeroy. Aquele que se dizia um artista.
Annie fez um gesto de desprezo com a mão e endireitou as pernas. Elas roçaram no que quer que Annie tivesse ali junto dela e mais uma vez ele escutou o barulho de madeira batendo contra algo metálico.
— Dei carona para ele quando voltava de Estes Park. Eu tinha ido ver uma amostra de cerâmica. Adoro estatuetas de cerâmica.
— Já percebi.
A voz dele parecia vir de alguns anos-luz. Capitão Kirk! Uma voz surgindo do mundo etéreo!, pensou ele, sorrindo timidamente. A parte mais profunda de sua mente, aquela que a droga não atingia, tentou fazer com que ele calasse a boca, simplesmente fechasse o bico. Mas de que adiantava? Ela já sabia. É claro que ela sabia — A Abelha Rainha dos Bourkas sabe de tudo.
— A que eu mais gostei foi a do pingüim sentado no bloco de gelo.
— Obrigada, Paul. . . ela é mesmo muito bonita, não é? Pomeroy estava pedindo carona na estrada. Ele carregava uma mochila nas costas e me disse que era um artista. Só mais tarde foi que descobri que ele não passava de um trapaceiro hippie viciado em drogas e que passara os dois últimos meses lavando pratos num restaurante do Estes Park. Quando eu disse que morava em Sidewinder, ele falou que aquilo era uma tremenda coincidência! Ele disse que estava vindo para Sidewinder! Disse que estava a serviço de uma revista em Nova Iorque e que vinha para desenhar as ruínas de um velho hotel da região, e que seus desenhos iam ser usados para ilustrar uma matéria que eles estavam preparando. Era um hotel famoso chamado Overlook, que foi totalmente destruído num incêndio há dez anos atrás. Foi o vigia quem tocou fogo no hotel. Todo mundo da cidade diz que ele era maluco. Mas não importa mais — ele já está morto. Deixei que Pomeroy viesse ficar aqui comigo e nos tornamos amantes.
Annie virou-se para ele. Seus olhos escuros brilhavam no rosto branco, sólido e robusto.
Se Andrew Pomeroy se interessou por você, ele deve ser tão maluco quando o vigia que tocou fogo no hotel, pensou ele.
— Foi então que descobri que ele não vinha para desenhar hotel nenhum. Ele estava desenhando por conta própria, com intenção apenas de vender os desenhos e ganhar algum dinheiro. Ele nem soube dizer se a revista estava mesmo escrevendo um artigo sobre o Overlook. Descobri isso muito rápido! Depois, então, resolvi dar uma espiada no bloco de desenhos dele. Eu estava dentro dos meus direitos. Afinal de contas, ele estava dormindo e comendo na minha casa. Só havia oito ou nove desenhos no bloco inteiro e eles eram horrorosos.
Annie contorceu o rosto e, por alguns instantes, ele lembrou-se da vez em que ela imitara a porca.
— Eu seria capaz de desenhar melhor que ele! Quando ele chegou e me viu espiando os desenhos, ficou fora de si. Ele disse que eu estava bisbilhotando e eu respondi que olhar coisas dentro de minha própria casa não era bisbilhotar. E disse a ele que se ele era um artista, eu me chamava Madame Curie. Ele começou a rir. Ele riu de mim. Aí, eu. . . eu...
— Você o matou. — murmurou Paul, numa voz distante e fraca. Annie deu um sorriso constrangido e desviou os olhos para a parede.
— Bem, acho que foi mais ou menos assim. Não me lembro direito. Só sei que ele já estava morto. Lembro de. . . lembro de ter dado um banho nele.
Paul olhou para ela, horrorizado. Na sua cabeça, surgiu a imagem do corpo nu de Pomeroy boiando na banheira, a cabeça caída para trás, os olhos esbugalhados mirando o teto. . .
— Eu tive que dar um banho nele. Você provavelmente desconhece o que a polícia pode descobrir a partir de um único fio de cabelo, de alguma sujeira embaixo das unhas ou de um pouquinho de terra no cabelo de um cadáver! Você não sabe dessas coisas, mas eu trabalhei em hospitais a minha vida inteira e sei muito bem! Sei muito bem como são essas coisas! Sei de todos esses aspectos legais!
Annie estava caminhando para mais um de seus típicos estados de exaltação e Paul percebeu que devia fazer alguma coisa para acalmá-la, nem que fosse temporariamente, mas sua boca parecia entorpecida.
— Estão todos contra mim! Todos eles! Você acha que eles iam me escutar se eu tentasse explicar como tudo aconteceu? Você acha? Você acha? Claro que não! Eles provavelmente iam dizer alguma coisa maluca, que eu quis tomar liberdades com ele, ele riu de mim, e por isso eu o matei. Aposto como iam dizer algo assim!
Quer saber o que mais, Annie! Acho que isso pode muito bem ter acontecido.
— Esses trapaceiros daqui fariam qualquer coisa para me meter em apuros ou sujar o meu nome.
Annie calou-se. Sua respiração estava agitada, mas não ofegante, e ela o encarava como se dissesse: Você que ouse me desdizer! Você que ouse!
Pouco depois ela pareceu se acalmar e prosseguiu:
— Eu dei um banho. . . no que restava dele. . . e nas roupas também. Sabia muito bem o que ia fazer. Lá fora caía a primeira neve do ano e as previsões eram de que teríamos uma camada de trinta centímetros de neve na manhã seguinte. Eu coloquei as roupas numa sacola de plástico e embrulhei o corpo num lençol. Quando escureceu, fui até o leito seco do rio na Rodovia 9 e andei cerca de um quilômetro e meio além do lugar onde seu carro caiu. Eu entrei no bosque e simplesmente larguei tudo no chão. Você deve ter pensado que eu ia escondê-lo, mas não foi isso o que fiz. Sabia que a neve ia cobri-lo e que se eu o deixasse no leito do rio, ele seria levado pelas águas quando a primavera chegasse. E foi isso o que aconteceu, só que eu jamais poderia imaginar que ele fosse parar tão longe! O corpo só foi encontrado um ano depois dele. . . dele ter morrido, a mais de quarenta quilômetros do lugar onde eu o deixei. Para dizer a verdade, teria sido melhor que ele não tivesse ido parar tão longe. A Reserva de Grider está sempre cheia de excursionistas e observadores de pássaros. Os bosques mais próximos são menos movimentados.
Annie deu um sorriso.
— É por ali que está o seu carro, Paul, em algum lugar entre a Rodovia 9 e a Reserva Florestal Grider Wildlife, no meio de um bosque. Não dá nem para ver ele da estrada. No meu jipe tem uma lanterna muito forte e vi que não há nada no leito do rio até ele seguir para dentro do bosque. Acho que vou caminhando até lá qualquer dia desses, quando as águas baixarem, mas tenho quase certeza que ele não está por ali. Daqui há uns dois, cinco ou sete anos, um caçador vai encontrá-lo todo enferrujado e com esquilos aninhados nos bancos. Até lá, você já terá terminado o meu livro e estará de volta a Nova Iorque, Los Angeles ou qualquer outro lugar para onde você resolva ir. E eu ficarei aqui, levando minha vida pacata de sempre. Talvez a gente escreva uma carta, de vez em quando.
Annie deu um sorriso e ficou pensativa, mas logo o sorriso desapareceu e ela retomou a conversa.
— Enquanto vinha para cá, eu pensei bastante. Se o seu carro não está mais ali, então você pode ficar e terminar o meu livro. Eu não sabia se você poderia terminá-lo, mas nunca disse nada para não chatear você. De certo modo, eu não queria dizer nada pois achava que você não escreveria tão bem. Isso pode soar um pouco desanimador de minha parte, mas não era assim que eu me sentia. Veja só, eu comecei amando em você apenas aquela parte que escrevia histórias maravilhosas, porque esta era a única parte que eu conhecia. Eu não sabia mais nada sobre você e achava que aquela parte que eu não conhecia podia ser até desagradável. Você sabe que eu não sou idiota. Eu sempre leio sobre os chamados "escritores famosos", e sei que na maioria das vezes eles são muito desagradáveis. F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e aquele caipira do Mississippi — Faulkner, eu acho —, todos eles podem ter ganho prêmios Pulitzer, mas não passavam de umas porcarias de bêbados. E muitos outros também. Quando não estavam escrevendo histórias maravilhosas, estão bebendo, trepando, tomando drogas e Deus sabe lá o quê. Mas você não é assim, Paul. Depois de algum tempo, eu comecei a conhecer o outro lado de Paul Sheldon. Espero que não se importe que eu diga, mas. . . comecei a amar esta parte dele também.
— Muito obrigado, Annie — disse ele, no topo de uma onda dourada e reluzente.
Você pode ter se enganado, Annie quero dizer: as situações que levariam um homem a cair em tentação simplesmente não existem por aqui; fica difícil sair por aí de bar em bar com duas pernas quebradas, e quanto às drogas, a Abelha Rainha dos Bourkas se encarrega de fazer isso por mim.
— Mas você ia querer ficar? — prosseguiu ela. — Esta foi a pergunta que fiz a mim mesma. E por mais que eu quisesse me enganar a respeito, eu sabia muito bem da resposta — sabia mesmo antes de ter visto a marca nos portais.
Annie apontou para a porta e Paul pensou: Aposto como ela sabia desde a primeira vez que saí. Enganar a si mesma? Você não, Annie. Nunca. Eu é que estava enganando a mim mesmo.
— Lembra da primeira vez que eu fui embora? Depois daquela discussão boba sobre o papel?
— Lembro, Annie.
— Aquela foi a primeira vez que você saiu do quarto, não foi?
— Foi.
Não fazia sentido negar.
— Claro. . . você queria o remédio. Eu devia saber que você faria qualquer coisa pelas cápsulas, mas quando eu fico fora de mim, eu. . . você sabe.
Annie deu um risinho nervoso, mas Paul continuou sério. A lembrança daquelas intermináveis horas de dor, embaladas pela voz fantasmagórica do comentarista esportivo narrando seus movimentos passo a passo, era ainda forte demais.
É, eu sei como você fica, pensou ele. Você fica terrível.
— A princípio, eu não estava bem certa. Eu reparei que algumas estatuetas da mesa da sala estavam fora do lugar, mas achei que eu mesma pudesse ter mexido nelas — às vezes eu sou bastante desatenta. Passou pela minha cabeça que você pudesse ter saído do quarto, mas aí eu pensei: Não, isso é impossível. Ele está muito machucado e, além do mais, a porta estava trancada. Até enfiei a mão no bolso para ver se a chave estava mesmo comigo. Então eu me lembrei que você estava na cadeira e que talvez. . . Uma das coisas que a gente aprende quando trabalha dez anos como enfermeira é que se deve sempre checar todas as dúvidas. Dei uma olhada no banheiro. A maioria das coisas que guardo lá são amostras grátis de remédio que eu trazia quando ainda estava trabalhando; você devia ver a quantidade de remédios que rola dentro de um hospital, Paul! Às vezes, eu pegava alguns. . . bem. . . alguns que estavam sobrando — mas não era só eu, não. Sempre tomei cuidado para não pegar remédios à base de morfina. Esses ficam trancados. Eles vivem contando e recontando, e guardam os números num registro. Se eles desconfiarem que uma enfermeira está levando os "retalhos" para casa — é assim que eles falam — eles começam a vigiá-la até terem certeza. E, aí, bang! — Annie bateu com a mão na cama — rua! E dificilmente elas vão conseguir trabalhar novamente como enfermeiras! Mas eu fui mais esperta que eles. Quando vi as caixas de remédio no banheiro, tive a mesma impressão de quando vi as estatuetas. Elas me pareceram fora do lugar e eu tive quase certeza que uma caixa que ficava no fundo da caixa maior, estava agora em cima de outra. Mas eu não estava cem por cento certa. Eu mesma podia ter mexido nelas quando. . . bem. . . quando estava distraída. Eu já estava disposta a deixar esse assunto de lado quando, dois dias depois, eu vim até o quarto para lhe trazer o remédio. Você estava quieto, tirando um sono. Torci a maçaneta, mas ela resistiu durante alguns segundos. Era como se a porta estivesse trancada. Quando tentei outra vez, ela cedeu, e eu escutei um barulho dentro da fechadura. Você começou a se mexer e eu lhe dei o remédio, como se nada tivesse acontecido, como se eu não tivesse desconfiado de nada. Eu disfarço muito bem, Paul. Naquela mesma tarde, quando o ajudei a ir para a cadeira, eu me senti como são Paulo a caminho de Damasco: meus olhos se abriram. Percebi que você estava mais corado e que seus braços pareciam mais fortes; percebi que apesar das dores você já estava mexendo com as pernas — só um pouquinho, eu sei, mas já estava mexendo com elas; percebi o quanto você estava saudável. E foi só então que percebi que poderia ter problemas com você, mesmo que ninguém estranho aparecesse por aqui. Naquele dia eu olhei para você e vi que talvez mais alguém soubesse disfarçar tão bem quanto eu. De noite, eu lhe dei um remédio mais forte e quando tive certeza que você não ia acordar nem com uma granada explodindo embaixo da cama, eu peguei minha caixa de ferramentas e tirei a fechadura da porta. E olhe só o que encontrei!
Annie enfiou a mão no bolso da camisa masculina e colocou alguma coisa em sua mão dormente. Paul a levantou até a altura do rosto e arregalou os olhos. Era um pedaço retorcido de grampo de cabelo.
Paul começou a rir. Ele não pôde evitar.
— Qual é a graça, Paul?
— Naquele dia que você foi pagar o imposto, eu precisei abrir a porta. A cadeira de rodas é muito larga, deixou marcas na porta, e eu queria limpá-las.
— Para que eu não visse.
— É, mas você tinha visto, não é?
— Depois de encontrar um dos meus grampos na fechadura? — Agora era ela quem ria. — Pode apostar que sim!
Paul concordou com a cabeça e riu ainda mais alto. Paul ria tanto que os olhos chegaram a encher de lágrimas. Tanto trabalho. . .tanta preocupação. . . para nada. Era engraçado demais.
— Eu fiquei pensando que o pedaço de grampo ia me atrapalhar. . . mas, não! Nem fez barulho. E havia uma boa razão para isso, não? Ele não fez barulho porque você o tirou. . . Como você foi boba, Annie.
— É, como eu fui boba — respondeu ela, com um risinho. Annie mexeu com as pernas. Mais uma vez, aquele barulho de madeira batendo contra algo metálico.
— Quantas vezes você esteve fora do quarto? A faca, Jesus Cristo, a faca!
— Duas. Não, não. . . espere. Ontem à tarde eu tornei a sair para encher o jarro de água, por volta das cinco horas.
Era verdade. Ele tinha enchido o jarro, mas este não foi o verdadeiro motivo da sua terceira saída do quarto. O verdadeiro motivo estava embaixo do colchão. A princesa e o grão de ervilha escondido. Paulie e a faca.
— Três vezes no total, contando com essa última para buscar água.
— Diga a verdade, Paul.
— Só três, juro. E nunca para tentar fugir. Jesus Cristo! No caso de você não ter reparado, eu estou aqui escrevendo um livro.
— Não use o nome do Salvador em vão, Paul.
— Pare de falar meu nome desse jeito que eu paro também. Da primeira vez, eu estava com tantas dores que me sentia como se alguém tivesse me jogado no inferno dos joelhos para baixo. E alguém tinha feito isso. Você, Annie.
— Cale-se, Paul!
— Da segunda vez eu só queria comer alguma coisa e pegar umas cápsulas a mais, para o caso de você demorar a voltar — acrescentou ele, ignorando-a — E aí eu fiquei com sede. Nada mais. Nada de conspirações.
— E não tentou usar o telefone, nem abrir as fechaduras, suponho, já que é um menino tão bonzinho. . .
— Claro que tentei usar o telefone. . . e é claro que dei uma olhada nas fechaduras. . . não que eu fosse conseguir ir muito longe naquele lamaçal, mesmo que você tivesse deixado as portas escancaradas.
Os efeitos da droga aumentavam trazendo ondas cada vez maiores. Ele só queria que ela calasse a boca e fosse embora. Ela o dopara bastante para ele contar toda a verdade e ele receava ter que pagar pelas conseqüências. Mas antes de tudo, ele queria dormir.
— Quantas vezes você saiu do quarto?
— Eu já disse. . .
— Quantas vezes? — Annie levantou o tom de voz. — Diga a verdade!
— Eu estou dizendo a verdade. Três vezes!
— Quantas vezes?
Apesar da dose excessiva que ela lhe dera, Paul começou a ficar assustado.
Se ela fizer alguma coisa comigo, pelo menos não vai doer muito. . . e ela quer que eu termine o livro. . . ela disse. . .
— Não me faça de boba.
Paul reparou como a pele de Annie era reluzente; parecia um plástico muito bem esticado numa superfície de pedra. A pele de Annie parecia não ter poros.
— Annie, eu juro. . .
— Mentirosos também juram! Mentirosos adoram jurar! Muito bem, vá em frente e continue a me tratar como uma boba, se é isso o que você quer. Para mim está muito bem. Pior para você. Trate uma mulher que não é boba como se ela fosse boba, e verá como ela põe as garras de fora. Deixe-me dizer uma coisa, Paul. Eu espalhei fios de linha e fios do meu próprio cabelo por toda a casa e muitos deles estavam fora do lugar. Outros simplesmente desapareceram. . . puff! E não foi só no meu livro, não. . . mas no corredor, nas gavetas da minha cômoda lá em cima. . . no barracão de ferramentas. . .em todos os lugares.
Annie, como eu poderia ter estado no barracão, com todos aqueles trincos na porta da cozinha? Paul quis fazer a pergunta, mas ela não deu chance.
— E você continua a insistir que foram apenas três vezes, não é, seu espertinho? Eu vou dizer a você quem é o bobo aqui.
Paul a encarou, meio grogue e aterrorizado. O que poderia dizer a ela? Era tudo tão maluco. . . tão paranóico. . .
Meu Deus, pensou ele, esquecendo-se momentaneamente do barracão, lá em cima? Será que ela disse LÁ EM CIMA ?
— Annie, pelo amor de Deus, como eu poderia ter ido lá em cima?
— Certo! — gritou ela, numa voz esganiçada. — No outro dia eu entrei no quarto e você tinha se sentado na cadeira sozinho! Se pôde fazer tal coisa, poderia ter conseguido ir lá em cima! Você poderia ter rastejado pelo chão!
— Podia sim, com duas pernas quebradas e o joelho esmagado. De novo, aquela fenda escura no olhar; uma fenda escura no meio de um campo. Annie Wilkes foi embora. A Abelha Rainha dos Bourkas surgiu.
— Não queira bancar o espertinho comigo, Paul. — sussurrou ela.
— Annie, um de nós dois tem que ceder um pouco e você não está se esforçando. Tente pelo menos pensar como eu poderia ter ras. . .
— Quantas vezes?
— Três.
— A primeira para pegar o remédio.
— Foi. Cápsulas de Novril.
— A segunda para pegar comida.
— Isso mesmo.
— A terceira para pegar água.
— Foi, Annie, eu estou tão zonzo. . .
— Você encheu o jarro no banheiro.
— Foi. . .
— A primeira para o remédio; a segunda para a comida; a terceira para a água.
— Foi o que eu disse! — ele tentou gritar, mas só conseguiu pronunciar um murmúrio.
Annie enfiou a mão no bolso e exibiu a faca. A lâmina afiada reluziu na luz clara da manhã. Annie virou-se subitamente e atirou a faca contra a parede — um golpe mortal, desfechado com o mesmo jeito aparentemente displicente de um atirador de facas. Ela foi se cravar embaixo do retrato do Arco do Triunfo.
— Eu dei uma olhada embaixo do colchão antes de dar a injeção pré-operatória. Eu esperava encontrar cápsulas apenas; a faca foi realmente uma surpresa. Quase me cortei com ela. Mas não foi você que a colocou ali, não é?
Paul não respondeu. Sua cabeça rodava e rodava como um brinquedo de parque de diversões completamente desgovernado. Pré-operatória? Foi isso o que ela disse? Pré-operatória? Paul de repente teve certeza que Annie ia apanhar a faca da parede para castrá-lo.
— Não, não foi você que a colocou embaixo do colchão. Você saiu do quarto uma vez para buscar remédio, outra para comida e outra para água. A faca deve. . . deve ter flutuado até aqui e se escondido embaixo do colchão sozinha! Claro, foi isso o que aconteceu!
Annie deu uma gargalhada de escárnio. PRÉ-OPERATÓRIA??? Meu Deus, foi isso mesmo o que ela disse?
— Maldito seja! Quantas vezes você saiu do quarto?
— Está bem! Está bem! Eu peguei a faca quando fui buscar água! Eu confesso! Se você acha que isso significa que eu saí mais vezes, vá em frente! Se você quer que sejam cinco, foram cinco! Se você quer que sejam vinte, cinqüenta, cem vezes. . . então foram. Eu concordo. O número de vezes que você achar, Annie, foi o número de vezes que eu saí!
Envolvido pela raiva e pelo efeito do narcótico, Paul esqueceu por alguns instantes do sentido nebuloso e assustador daquele termo: pré-operatória. Queria dizer tantas coisas a ela, mesmo sabendo que uma paranóica incontrolável como Annie não iria aceitar o que era tão evidente. O porão estava úmido; fita durex não agarra em superfícies úmidas; sem dúvida, as ratoeiras descolaram e foram parar em algum outro lugar. E os ratos? Com o porão cheio de água e a dona da casa fora, eles subiram. Paul os ouvira. Claro. Eram os donos da casa. E foram atraídos pelos restos de comida que ela deixara espalhados. Os ratos eram os prováveis diabinhos que tinham tirado os fios de Annie do lugar. Mas ela ia simplesmente rejeitar uma possibilidade dessas. Para Annie, Paul estava quase no ponto de poder disputar a Maratona de Nova Iorque.
— Annie. . . Annie, o que você quis dizer com injeção pré-operatória?
Ela, porém, estava com o pensamento fixo em outra questão.
— Eu digo que foram pelo menos sete vezes — recomeçou ela, brandamente. — Não foram sete?
— Se você quer que sejam sete, então foram sete. O que você quis dizer com. . .
— Vejo que continua teimando. Acho que pessoas como você acabam se acostumando tanto a mentir para viver, que não conseguem mais parar. Muito bem, Paul. Por que a causa não muda se você saiu do quarto sete vezes, setenta ou setenta vezes sete. . . não muda a causa, nem tampouco o efeito.
Paul estava flutuando, flutuando, flutuando. Com os olhos fechados ele a ouvia como se Annie estivesse muito, rnuito distante. . .como uma voz sobrenatural saindo de uma nuvem. Deusa, pensou ele.
— Você alguma vez já escutou falar de tempos antigos nas minas de diamante de Kimberly, Paul?
— Foi lá que escrevi o livro. . . — disse ele, sem nenhum motivo, começando a rir.(pré-operatória? injeção pré-operatória)
— Às vezes, os mineiros nativos roubavam diamantes. Eles embrulhavam numa folha de árvore e enfiavam no ânus. Se conseguiam sair da mina sem serem descobertos, eles fugiam correndo. E você sabe o que os ingleses faziam quando os pegavam antes de passarem por Oranjerivier e cruzarem a fronteira de Boer?
— Acho que eles os matavam — respondeu Paul, ainda de olhos fechados.
— Claro que não! Isso seria o mesmo que jogar fora um carro de luxo só por causa de uma mola solta no banco. Se eles fossem pegos, os ingleses davam um jeito deles continuarem trabalhando. . . mas também davam um jeito deles nunca mais sairem correndo. A operação chamava-se amputação, Paul, e é isso o que vou fazer com você. Para a minha segurança ... e a sua também. Acredite em mim, você precisa ser defendido de você mesmo. Lembre-se apenas que vai doer um pouquinho e logo tudo estará terminado. Ponha isso na cabeça.
O terror invadiu seu estado de entorpecimento e ele arregalou os olhos. Annie levantou-se e puxou o lençol, deixando à mostra as pernas quebradas e os pés descalços de Paul.
— Não! Annie, não!. . . o que quer que você esteja pensando. . . nós podemos conversar, não podemos?. . . por favor. . .
Annie se abaixou e quando tornou a levantar, tinha um machado numa das mãos e um pequeno maçarico na outra. A lâmina do machado brilhou. No maçarico estava escrito Bernz-O-matiC. Annie abaixou-se novamente e apanhou um vidro escuro e a caixa de fósforos. No vidro estava escrito Betadine.
Paul jamais se esqueceu daqueles objetos, daquelas palavras, daqueles nomes.
— Annie, não! Eu vou ficar aqui, Annie! Eu não saio nem mais da cama! Por favor! Pelo amor de Deus, não faça isso comigo!
— Tudo vai dar certo.
O rosto de Annie tinha o olhar inexpressivo e desligado do vazio perturbador. E pouco antes dele ser completamente tomado pelo pânico, Paul compreendeu que quando tudo estivesse terminado, ela teria apenas uma vaga lembrança de tudo o que fizera, assim como tinha apenas uma vaga lembrança de ter matado crianças, velhos, doentes metais e Andrew Pomeroy. Afinal de contas, esta era a mulher que há apenas alguns minutos afirmara ter trabalhado dez anos como enfermeira, apesar de ter se formado em 1966.
Ela matou Pomeroy com esse mesmo machado. Eu sei que foi.
Paul continuou pedindo e implorando, mas as palavras que lhe saíam da boca não passavam de balbucios quase ininteligíveis. Ele tentou se virar, ficar de costas para ela, mas as pernas doeram terrivelmente. Ele tentou encolhê-las, torná-las um alvo menos fácil, mas o joelho latejou horrivelmente.
— Só mais um minuto, Paul — disse ela abrindo o vidro de Betadine e espalhando uma substância marrom no tornozelo esquerdo dele. — Só mais um minuto e tudo estará terminado.
Annie inclinou o machado, os músculos de seu braço forte se retesaram, e ela espalhou Betadine sobre a lâmina. Paul pôde ver o brilho do anel de ametista que ela ainda usava no dedo mindinho. O cheiro do Betadine lembrava o de um consultório médico. Aquele cheiro significava que iam fazer alguma coisa com ele.
— Você não vai sentir muita dor, Paul. A dor não vai ser forte. Annie virou o outro lado do machado e espalhou Betadine na lâmina, que estava ligeiramente enferrujada.
Annie Annie oh Annie por favor por favor não por favor Annie não eu prometo a você ficar bonzinho eu juro por Deus que vou ficar bonzinho por favor me dê uma chance de ficar bonzinho OH ANNIE por favor DEIXE EU FICAR BONZINHO...
— Uma dorzinha de nada e esta situação desagradável terá terminado para sempre, Paul.
Annie jogou o vidro aberto de Betadine por cima do ombro — o rosto sempre vazio, inexpressivo e inquestionavelmente sólido; os dedos da mão direita deslizaram pelo cabo do machado até quase tocar na lâmina. Annie levantou o machado com as duas mãos e entreabriu as pernas, como um lenhador.
ANNIE OH POR FAVOR POR FAVOR NÃO ME MACHUQUE!
— Não se preocupe — disse ela, com os olhos meigos e ao mesmo tempo vagos. — Eu sou uma enfermeira formada.
O machado desceu com um zunido e afundou na perna esquerda de Paul Sheldon, pouco abaixo do tornozelo. Um raio gigantesco de dor explodiu, subindo por todo o seu corpo. Um jorro de sangue vermelho escuro respingou pela parede e pelo rosto de Annie, lembrando a pintura de guerra dos índios. Paul pôde ouvir o barulho da lâmina partindo os ossos quando ela puxou o machado. Paul olhou para baixo, sem acreditar no que via. O lençol estava se enchendo de sangue e os dedos do pé tremiam. Então ele a viu levantar mais uma vez o machado, cheio de sangue escorrendo. O cabelo dela se soltara dos grampos e lhe caía pelo rosto inexpressivo.
Apesar das dores terríveis, Paul tentou puxar a perna, mas percebeu que só ela se mexia, não o pé. O movimento só fez abrir ainda mais a incisão, como uma boca aberta. Ele ainda teve tempo de reparar que o pé só estava ligado à perna por um único pedaço de carne, antes dela desfechar o segundo golpe e afundar o machado no que restava de sua perna. As molas do colchão se soltaram e pularam para fora.
Annie jogou o machado no chão. Por alguns instantes, ela ficou distraída a olhar para o bico do maçarico e, então, apanhou a caixa de fósforos. Ela acendeu um dos palitos e abriu a válvula do maçarico que tinha a inscrição Bernz-O-matiC. A válvula fez um pequeno silvo. O sangue jorrava do lugar em que seu pé estivera um dia. Com todo cuidado, Annie levou o fósforo até o bico do Bernz-O-matiC. Uma chama amarela e comprida surgiu. Annie regulou a chama e ela se tornou pequena e azul-escura.
— Não dá para suturar. Não há tempo. Torniquete não é aconselhável, não há um ponto central de pressão. Eu vou ter que (enxaguar) cauterizar.
Annie debruçou-se sobre ele. Paul gritou ao sentir o fogo na perna sangrando e em carne viva. Uma fumaça começou a subir pelo quarto. Era doce o seu aroma. Ele e sua primeira esposa tinham passado a lua-de-mel em Maui e haviam ido a um luau. Esse cheiro lembrou a ele o cheiro do porco ao ser tirado do buraco onde estivera assando o dia inteiro. O porco estava num espeto, enegrecido, caindo, despedaçando-se.
A dor estava gritando. Ele estava gritando.
— Já está terminado.
Annie virou o maçarico e a ponta do lençol começou a pegar fogo. O cotoco da perna não sangrava mais, mas estava tão enegrecido quanto o porco do luau — Eileen virara o rosto, mas Paul assistira a tudo fascinado. Eles puxavam a pele torrada do porco com tanta facilidade como se tira a camisa depois de um jogo de futebol.
— Quase terminando. . .
Annie desligou o maçarico. Sua perna gravemente ferida bailava por trás de uma cortina de chamas. Annie abaixou-se, apanhou o velho conhecido balde amarelo e apagou o fogo.
Paul gritava e gritava. Dores! Deusa! Dores! Oh, África! Annie olhava para ele e para o lençol preto e ensangüentado com uma ligeira preocupação. Seu rosto era o de uma mulher que acaba de ouvir no rádio que um terremoto matou dez mil pessoas na Turquia ou no Paquistão.
— Você vai ficar bom Paul — disse ela, numa voz subitamente assustada.
Ela começou a olhar de um lado para o outro sem parar, tal como fizera no dia em que as chamas do livro estavam prestes a sair de seu controle. De repente ela achou o que procurava e pareceu ficar aliviada.
— Vou jogar fora esse lixo.
Annie apanhou o seu pé. Os dedos ainda tremiam. Quando Annie chegou até a porta, eles pararam de se mexer. Paul ainda pôde ver uma cicatriz que tinha no peito do pé. Lembrava-se dela. Ele pisara numa garrafa quebrada quando era menino. Foi na praia Revere? É, ele achava que sim. Ele se lembrava de ter começado a chorar e de seu pai lhe dizer que era apenas um pequeno talho — seu pai o mandara parar de agir como alguém que tivesse perdido o pé. Annie parou na porta e voltou-se para ele. Paul gritava e se contorcia no lençol queimado e encharcado de sangue. Seu rosto estava tão pálido quanto o de um defunto.
— Agora você está amputado. E não venha botar a culpa em mim. A culpa é toda sua.
Annie sumiu. E Paul também.
Uma nuvem negra. Paul afundava numa nuvem negra, sem se importar se a nuvem significava a morte ou a inconsciência. E ele quase desejou que fosse. Só que. . . sem dores, por favor. Sem lembranças, sem dores, sem horror, sem Annie Wilkes.
Paul afundava em direção à nuvem, afundava para dentro da nuvem, mal distinguindo seus próprios gritos e o cheiro de sua própria carne queimada.
Os pensamentos de Paul foram se desvanecendo. Deusa! Vou matar você! Deusa! Vou matar você! Deusa!
E então nada mais havia além do vazio.
PAUL
"Não adianta. Estou tentando dormir há meia hora e não consigo. Escrever tornou-se aqui uma espécie de vício. É a única coisa que desejo fazer. Essa tarde, li tudo o que escrevi. . . e me pareceu tão vivido. Sei que parece vivido por que minha imaginação preenche todos os trechos que uma outra pessoa não compreenderia. Quer dizer, é vaidade minha. Mas parece um toque de mágica. . . Eu simplesmente não consigo viver o presente. Se o fizesse, enlouqueceria."
JOHN FOWLES O Colecionador
- Jesus Santíssimo - murmurou Ian, jogando-se para frente.
Geoffrey agarrou-o pelo braço. A batida ritmada dos tambores ecoava em sua cabeça como algo saído de um ritual assassino. As abelhas zumbiam sem parar, entrando e saindo da clareira como que atraídas por um ímã, pensou Geoffrey repulsivamente, tal como eles.
Paul segurou a máquina e sacudiu-a. Uma peça pequenina caiu sobre o tablado que lhe servia de mesa. Paul apanhou-a.
Era a letra t. A máquina de escrever tinha simplesmente cuspido o seu t.
Vou reclamar à gerência. Não vou apenas pedir uma máquina nova, vou exigir outra! Ela tem dinheiro, eu sei que tem. Talvez esteja escondido no meio das frutas no celeiro ou enfiado entre as paredes do Lugar Risonho, mas ela tem grana, e o "t", meu Deus, a segunda letra mais usada em minha língua. . .
Mas é claro que ele não ia pedir nada a Annie, e muito menos exigir. Em tempos passados, vivia um homem que teria pelo menos tido coragem de pedir. Um homem que vivia consumido por dores terríveis, um homem que não tinha nada a que se agarrar, nem mesmo a essa droga de livro. Aquele homem teria pedido outra máquina. Machucado ou não, aquele homem tinha tido peito de pelo menos tentar enfrentar Annie Wilkes.
Esse homem tinha sido ele, e Paul achou que devia se envergonhar. Mas aquele homem tinha duas grandes vantagens sobre este: aquele homem tinha dois pés. . . e dois dedos polegares.
Paul ficou pensativo por alguns instantes, releu a última linha que escrevera (preenchendo mentalmente os espaços em branco) e simplesmente voltou ao trabalho.
Melhor assim. Melhor não pedir nada. Melhor não fazer provocações. Lá fora, as abelhas zuniam. Era o primeiro dia de verão.
Tinham sido.
- Solte-me! - gritou Ian, levantando as mãos para Geoffrey. Seus olhos saltavam furiosos do rosto lívido e ele parecia ignorar totalmente quem o segurava, impedindo-o de se aproximar de sua querida. Geoffrey teve certeza que Ian ficara fora de si quando Hezekiah puxou os arbustos e eles puderam ver o que estava acontecendo. Ian estava quase na beirada e ao menor movimento acabaria caindo na clareira. Se isso acontecesse, ele traria Misery consigo.
- Ian..
- Solte-me! - disse ele, tentando livrar-se das mãos de Geoffrey.
- Não faça isso, senhor. - murmurou Hezekiah, receoso. - As abelhas ficarão irritadas, podem picar a senhora..
Ian não pareceu ter ouvido. Com o olhar perplexo e ao mesmo tempo furioso, ele deu um soco no seu velho amigo Geoffrey, que ficou a ver estrelas.
Hezekiah começou a balançar o potencialmente mortífero gosha - um saco com areia que os Bourkas usavam em seus trabalhos ocultos - e disse:
- Não! deixe que eu cuido disso!
Com certa relutância, Hezekiah segurou a ponta do fio de couro que prendia o saco e balançou-o vagarosamente, como se ele fosse um pêndulo.
Ian deu outro soco em Geoffrey e dessa vez os dentes dele abriram um corte nos lábios. Ele sentiu o gosto do sangue quente a lhe escorrer pela boca e segurou a blusa desbotada de Ian, que ficou ainda mais rasgada do que já estava. Por pouco ele não se soltou. Meio atordoado, Geoffrey percebeu que Ian vestira essa mesma blusa no jantar oferecido pelo barão e pela baronesa, há três dias atrás. Claro que era a mesma camisa, nenhum deles tinha tido oportunidade de trocar de roupa desde aquela noite. Há três dias atrás... pelo estado da camisa, Ian parecia estar usando a camisa há pelo menos três anos e Geoffrey teve a sensação que o jantar parecia ter sido há pelo menos três séculos atrás. "Só há três dias atrás," pensou ele novamente, ainda atordoado, pouco antes de Ian começar a lhe bater outra vez.
- Maldito seja você! Solte-me!
Ian socava o rosto de Geoffrey sem parar. Em seu estado normal, Ian seria capaz de morrer por aquele amigo.
- Você quer demonstrar o seu amor por ela matando-a? - perguntou Geoffrey, calmamente - Se é isso o que quer fazer, então você terá que me bater até eu perder os sentidos.
Ian hesitou. Um brilho aparentemente sensato pareceu retornar a seus olhos aterrorizados e enlouquecidos.
- Preciso ir ter com ela - murmurou ele, como que dentro de um sonho. - Desculpe-me por ter batido em você, Geoffrey, desculpe-me sinceramente, meu velho amigo.. sei que você me compreende, mas eu preciso... você esta vendo..
Ian olhou novamente, como que para confirmar a cena terrível que se descortinava a sua frente. Mais uma vez, ele fez menção de correr em direção a Misery, presa a uma arvore, no centro da clareira. As mãos levantadas dela estavam presas no galho mais baixo do eucalipto, única árvore existente na clareira, pelas algemas de aço do Barão Heidzig, único objeto que os Bourkas aparentemente haviam gostado, antes de empurrá-lo para dentro da boca da deusa, levando-o de encontro a uma morte inquestionavelmente terrível.
Dessa vez, foi Hezekiah quem segurou Ian. Os arbustos roçaram uns nos outros, fazendo barulho e Geoffrey olhou para dentro da clareira quase sem ar, como um homem escalando uma montanha com uma carga de explosivos nas costas. "Uma picada apenas. Só uma e ela morre", pensou ele.
- Não, senhor... - disse Hezekiah, com uma certa paciência assustadora - É como se a deusa dos Bourkas dissesse... se formos ate lá, as abelhas saem desse transe, e se isso acontecer, não terá mais importância se ela morrerá com uma só picada ou com mil. Se as abelhas acordarem, todos nós morreremos, mas ela será a primeira e sua morte será a pior.
Pouco a pouco, Ian começou a se acalmar e ficou entre os dois homens, um branco e o outro negro. Um pouco relutante, Ian olhou para a clareira, como se não quisesse ver, mas ao mesmo Tempo sem conseguir evitar o olhar.
- O que vamos fazer? 0 que vamos fazer para salvar a minha querida?
- Eu não sei - respondeu Geoffrey.
Ele próprio estava tão aflito que mal conseguiu reprimir o que ia dizer. Não era a primeira vez que este pensamento lhe ocorria. Ian possuía a mulher que ele também amava (embora em segredo) e podia desabafar, grilar e ficar quase tão histérico quanto uma mulher, ao passo que ele precisava sempre disfarçar seus sentimentos. Mas afinal de contas, para o resto do mundo, ele e Misery eram apenas amigos.
"É, apenas amigos", pensou ele com ironia, voltando os olhos para a clareira, para a sua "amiga".
Misery não usava uma só peça de roupa, mas Geoffrey julgou que mesmo um padre puritano, desses que aparecem nos vilarejos três vezes por semana para rezarem a missa, não a acusaria de indecente. Esse padre fictício sairia correndo só de ver Misery, mas seus gritos seriam causados mais pelo terror do que por atentado ao pudor. Misery não usava uma só peça de roupa, mas estava longe de estar despida..
Misery estava coberta por abelhas, da cabeça até a ponta dos pés. Ela parecia vestida num estranho hábito de freira, que se mexia e ondulava pelas curvas dos seios e quadris, mesmo sem ter a menor sombra de vento. Seu rosto parecia coberto por um véu, tal qual as mulheres muçulmanas. Só os olhos azuis podiam ser vistos através daquela mascara que rastejava lentamente pelo rosto, pelos lábios, pelo nariz e pelo queixo de Misery. Mais abelhas gigantes e marrons africanas, as mais venenosas e enfezadas de todo o mundo, rodeavam as algemas do barão cobrindo as mãos de Misery como se fossem luvas.
Enquanto Geoffrey a observava, mais e mais abelhas surgiam de todos os lugares, e ele reparou, apesar de seu estado, que a maioria delas vinha do oeste, onde estava localizada a grande rocha com o rosto da deusa.
Os tambores pulsavam num ritmo inalterável e as batidas eram quase tão soporíferas quanto o zumbido das abelhas, mas Geoffrey sabia que o adormecimento delas era apenas ilusório, pois testemunhara o que tinha acontecido com a baronesa - graças a Deus Ian tinha sido poupado do espetáculo... O zunido soporífero das abelhas subitamente aumentava tal como o zunido de uma furiosa serra elétrica... um som que abafara os gritos agoniados da mulher morrendo aos poucos. Ela era uma mulher tola e fútil, e perigosa também - quase os matara ao soltar a surucucu de Stringfellow - mas fosse ela tola ou não, fútil ou não, perigosa ou não, ninguém, nem homem nem mulher, merecia morrer daquele jeito.
A pergunta de Ian ecoou na cabeça de Geoffrey: "O que vamos fazer? O que vamos fazer para salvar a minha querida?"
- Não há nada que possamos fazer agora - respondeu Hezekiah - mas ela não corre perigo. Enquanto os tambores estiverem tocando, as abelhas continuarão adormecidas, e a senhora Misery também adormecerá.
As abelhas cobriam o corpo de Misery como um lençol grosso e móvel. Os olhos dela, abertos mas absortos, pareciam começar a dar lugar às abelhas fervilhantes e barulhentas.
- E se os tambores pararem? - perguntou Geoffrey, num sussurro.
E então, os tambores pararam. Por um segundo, os três.
Paul olhou para a última frase sem acreditar no que via. Ele levantou a Royal — ele continuava a fazer da máquina um tipo peculiar de halteres toda vez que Annie estava fora do quarto, só Deus sabe por quê — e sacudiu-a. Uma outra letra caiu no tablado que lhe servia de mesa.
Lá de fora vinha o ruído do cortador de grama azul-claro — Annie estava no jardim, dando uma aparadinha na grama para aqueles porcarias, os Roydmans, não terem nada a falar a respeito dela na cidade.
Paul recolocou a máquina no tablado e levantou-a só de um lado para apanhar a peça que caíra. Os raios longos do sol da tarde inclinavam-se pela janela e Paul olhou para a letra, incrédulo.
O pedacinho de metal, em alto relevo, e sujo de tinta era: E e.
Para sua alegria, a velha Royal cuspira a letra mais usada de sua língua.
Paul olhou para o calendário. A foto de um campo florido mostrava o mês de maio, mas ele passara a contar os dias numa folha de rascunho e, de acordo com este calendário particular, estavam no dia 21 de junho.
Deixe que venham esses loucos, longos e preguiçosos dias de verão, pensou ele com amargura, jogando a letra de metal na lata de lixo.
O que fazer agora? Mas é claro que ele sabia qual era o próximo passo. Escrever à mão. Era este o próximo passo.
Mas não agora. Paul sentiu-se subitamente cansado. Embora há poucos segundos atrás estivesse ansioso para atrair Ian, Geoffrey e o sempre divertido Hezekiah até a emboscada dos Bourkas, fazendo com que todos entrassem dentro das cavernas atrás do rosto da deusa para o grande final. A brecha no papel fechara-se com um estrondo.
Amanhã.
Amanhã ele continuaria a história à mão.
Dane-se para escrever à mão. Reclame à gerência, Paul.
Mas ele não ia fazer tal coisa. Annie andava muito esquisita.
Paul ouvia o ruído monótono do cortador de grama, via a sombra dela no chão e, como sempre acontecia quando ele ficava a pensar que Annie andava muito esquisita, a imagem do machado subindo e descendo voltava à sua cabeça; a imagem do rosto horrendo e impassível de Annie todo salpicado de sangue. Tudo tão claro. Cada palavra que ela proferira, cada grito que ele gritara, o barulho do machado partindo o osso, o sangue na parede. Tudo cristalino. E, como ele sempre também fazia, Paul tentou bloquear essas lembranças.
Paul entrevistara inúmeras vítimas de acidentes para escrever a reviravolta final de Carros velozes — Tony Bonasaro sofria um acidente quase fatal ao tentar fugir da polícia (o acidente levava ao epílogo do livro, em que Tony era interrogado por um colega do falecido tenente Gray, num quarto de hospital). E Paul ouvira sempre a mesma história. A maneira como ela era contada podia ser diferente, mas o conteúdo era sempre o mesmo: Eu só lembro de entrar no carro e de ter acordado aqui. Não lembro de mais nada.
Por que isso não acontecera com ele?
Porque os escritores lembram-se de tudo, Paul. Especialmente dos sofrimentos. Mande um escritor tirar a roupa e aponte para cada cicatriz e ele lhe contará a história de cada uma delas. As maiores acabam virando livros, não amnésia. Para ser um escritor é preciso ter um pouco de talento, mas o único pré-requisito de verdade é a capacidade de lembrar a história de cada cicatriz.
A arte consiste na permanência das lembranças.
Quem disse isso? Thomas Szasz? William Faulkner? Cyndi Lauper?
Esta última lhe trouxe outras lembranças, uma associação triste e dolorosa, comparada à sua situação atual: Cindy Lauper cantando em seu jeito alegre uma música chamada "Girls just want to have fun". Era tão clara a lembrança que Paul quase podia ouvi-la: Oh daddy dear, you're still number one/ But girls, they wanna have fuh-un/ Oh when the workin day is done/ Girls just wanna have fun*
* "Você continua sendo meu preferido, papai/ Mas as meninas querem se divertir Quando saem do trabalho/ As meninas só querem se divertir."
Subitamente, Paul desejou escutar uma música de rock-and-roll muito mais do que algum dia ele desejara um cigarro. Não precisava ser Cindy Lauper. Qualquer um servia. Jesus Cristo, Ted Nugent seria bom.
O machado descendo.
O zunido do machado.
Não pense nisso.
Isso era tolice, ele vivia dizendo a si mesmo para não pensar nisso, mas sabia o tempo inteiro que aquilo estava bem ali, como um nó na garganta. E ele ia ficar com aquilo engasgado ou ia tomar a atitude de um homem e colocar tudo para fora?
Outra lembrança; hoje era o dia das Mais Pedidas de Paul Sheldon. Lembrara-se de Oliver Reed como o cientista maluco, porém convincente, do filme The Brood, de David Cronenberg. Reed incitava seus pacientes do Instituto de Psicoplasmática (nome que Paul achou terrivelmente engraçado) a "irem até o fim, a irem direto até o fim".
Bem. . . talvez aquele não fosse um mau conselho, dependendo da ocasião.
Eu fui até o fim uma vez. Foi o bastante.
Isso era um disparate. Se ir até o fim uma vez apenas era o bastante, era melhor ele ter virado um vendedor de aspiradores de pó como seu pai.
Vá até o fim. Vá com isso até o fim, Paul. Comece com Misery. Não. Sim. Dane-se.
Paul inclinou-se, pôs as mãos sobre os olhos e, gostasse ou não, começou a passar tudo de novo até o fim. Tudo até o fim.
Ele não morrera nem dormira, mas depois da amputação a dor desaparecera. Ele se deixara levar como um balão de puro pensamento, separado do corpo e preso apenas por um fio comprido.
Droga, por que estava se preocupando? Ela fizera mesmo. E desde aquele instante até agora, seu tempo fora tomado por dores, tédio e acessos ocasionais de trabalho no livro tolo e melodramático, apenas para escapar dos dois primeiros. Nada fazia sentido.
Ah, não é assim — há uma ligação, Paul. Há uma linha que liga isso tudo. Uma linha bem verdadeira. Você não vê?
Misery, claro. Era ela a linha que a tudo ligava, mas fosse falsa ou verdadeira, não deixava de ser tola demais.
Como substantivo comum, significava dor*, geralmente uma dor prolongada e freqüentemente sem sentido; como nome próprio, significava um personagem e um enredo, este último muito mais prolongado e sem sentido, mas que estava chegando ao fim. Misery ocupara os últimos quatro (talvez cinco) meses de sua vida, muito bem, era Misery demais, Misery todos os dias, mas, sem dúvida, isso era muito simples, sem duvida. . .
* — Misery, em inglês, é o substantivo usado para designar 'sofrimento', 'dor' e 'aflição' e, não, 'miséria'.
Não, Paul. Nada é simples em se tratando de Misery. Exceto pelo fato que você deve sua vida a ela, assim como isso pode ser. . .você acabou virando Scheherazade afinal de contas, não foi?
Mais uma vez, Paul tentou afastar esses pensamentos da cabeça, mas não conseguiu. As lembranças permaneciam. A carcereira também queria se divertir. Um pensamento novo e inesperado lhe surgiu na cabeça, dando margem a uma nova série de pensamentos.
O que você continua a não ver, justamente por ser tão óbvio, é que você está se passando por Scheherazade para você mesmo.
Paul piscou os olhos, abaixou a mão e ficou vendo os raios de sol de verão que ele não esperara ver novamente. A sombra de Annie surgiu e desapareceu.
Seria aquilo verdade?
Scheherazade para mim mesmo? Se isso fosse verdade, então ele estava na frente da maior idiotice do mundo: ele devia sua vida ao fato de querer terminar uma droga de livro que Annie o persuadira a escrever. Ele devia ter morrido. . . mas não pôde morrer. Não enquanto não soubesse como o livro ia terminar.
Você está ficando maluco.
Tem certeza?
Não, ele não tinha. Ele não tinha certeza de nada.
Só de uma coisa: sua vida dependera e continuava a depender de Misery.
Paul deixou a mente vagar.
A nuvem. Comece pela nuvem.
Dessa vez, a nuvem tinha sido mais escura, mais densa e, de certo modo, mais suave. A sensação não era a de estar flutuando, mas escorregando. Às vezes, os pensamentos surgiam, outras vezes ele sentia dores e, algumas vezes, ele ouvia a voz de Annie, distante, como da vez em que as chamas do livro escaparam da churrasqueira e ela quase perdeu o controle da situação.
— Beba isso, Paul... . você precisa beber isso!
Escorregando?
Não.
Este não era o verbo apropriado. O verbo correto era afundando. Paul lembrou-se de um telefonema às três da manhã, na época em que estava na Universidade. O inspetor do alojamento do quarto andar bateu em sua porta muito sonolento chamando-o para atender o telefone. Era sua mãe. Venha o mais rápido que puder, Paulie. Seu pai teve um ataque. Ele está afundando... Paul foi para casa o mais rápido que pôde, forçando o velho Ford a uma velocidade de setenta quilômetros por hora, apesar das trepidações que surgiam sempre que ele passava dos cinqüenta. No final das contas, seu esforço foi em vão. Quando ele chegou, seu pai não estava mais afundando — já tinha afundado.
O quanto ele não teria chegado perto de afundar na noite do machado? Paul não sabia dizer, mas o simples fato dele quase não ter sentido dores na semana seguinte à amputação talvez fosse um bom indicador do quanto ele tinha chegado perto de afundar. Além do pânico na voz de Annie.
Paul estivera num estado de semicoma; mal conseguia respirar devido aos efeitos colaterais do remédio que inibia a respiração, e os tubos de glicose estavam de novo espetados em seu braço. O que o trouxe de volta foram o rufar dos tambores e o zumbido das abelhas.
Tambores Bourkas.
Abelhas Bourkas.
Sonhos Bourkas.
As cores voltavam vagarosamente, e implacavelmente para uma terra e uma tribo que não existiam além das margens do papel em que ele escrevia.
Sonhava com a deusa, com o rosto da deusa, seu vulto negro sobre a mata verde, meditando, se desgastando. Deusa negra, Continente Negro, um rosto de pedra cheio de abelhas. Mas uma imagem se sobrepôs a todas essas e, com o passar do tempo, ela foi se tornando cada vez mais clara, como se um slide gigantesco estivesse sendo projetado na nuvem em que ele se encontrava. Era a imagem de um velho eucalipto no centro de uma clareira. Pendurado no galho mais baixo do eucalipto via-se um par de algemas antigas de aço. As abelhas passeavam pelas algemas, mas elas estavam vazias. Elas estavam vazias porque Misery tinha. . .
— Escapado? Ela tinha, não tinha? Não era assim que a história deveria continuar?
Era, mas ele não tinha tanta certeza agora. O que significavam aquelas algemas vazias? Ela teria sido levada para algum lugar? Para dentro do rosto da deusa? Levada para a grande Abelha Rainha dos Bourkas?
Você está se passando por Scheherazade para você mesmo.
Para quem você está contando essa história, Paul? Para quem ? Para Annie?
Claro que não. Ele não olhava pela brecha no papel para ver Annie, ou para agradar Annie. . . ele olhava pela brecha para fugir de Annie.
A dor recomeçara. E as cãibras. A nuvem começou a clarear e a desvanecer. Paul começou a ver o quarto, o que era mau, e a ver Annie, o que era ainda pior. Mas ele decidira viver. Uma parte dele, que era tão viciada em seriados quanto Annie fora quando garota, havia decidido que ele não ia morrer enquanto não soubesse como o livro ia acabar.
Teria ela sido salva por Ian e Geoffrey?
Ou teria sido levada para dentro do rosto da deusa?
Era ridículo, mas essas perguntas tolas lhe pareciam realmente precisar de respostas.
A princípio, Annie não quis que ele voltasse ao trabalho. Paul podia ver nos olhos dela o quanto Annie ainda estava assustada. Ele não devia ter morrido por pouco. Ela estava tomando cuidados extremos com ele, trocando os curativos de seu coto ainda úmido a cada oito horas (com um ar de quem sabia que jamais ganharia uma medalha pelo que fizera — embora achasse que merecia — Annie o informara que, de início, trocara os curativos de quatro em quatro horas), dando-lhe banhos com uma esponja e esfregando álcool em seu corpo — como se repudiasse tudo o que havia feito a ele. Para Annie, o trabalho o faria sofrer. Sei que isso vai lhe atrasar, Paul. Não diria isso, se não achasse, acredite em mim. Você pelo menos sabe o que vai acontecer, mas eu estou louca para descobrir o que vai acontecer em seguida. Ao que parece, ela havia lido tudo o que ele escrevera — todo o seu trabalho pré-cirúrgico, poderíamos assim dizer — enquanto ele estava à beira da morte. . . mais de trezentas páginas datilografadas. Paul deixara sem preencher os enes das últimas quarenta páginas, mas Annie fizera isso por ele e veio lhe mostrar as folhas com um desafiante ar de orgulho. Os enes dela eram caprichados e contrastavam com os dele, que não passavam de rabiscos.
Embora ela não tivesse feito nenhum comentário a respeito, Paul acreditava que ela fizera aquilo ou como prova de seus cuidados — Como você pode dizer que eu fui cruel com você, Paul, depois de ver todos esses enes que eu preenchi? —, ou como um gesto de reparação, ou, ainda, como um possível rito quase supersticioso: muitos curativos trocados, muitos banhos de esponja, muitos enes preenchidos e Paul sobreviveria. Os trabalhos da Abelha Rainha dos Bourkas é poderoso, Bwana, preencha esses enes e tudo acabará bem.
Foi assim que ela havia começado. . . mas, então, o ter que apareceu. Paul conhecia todos os sintomas. Ela não estava brincando quando afirmara estar louca para saber o que ia acontecer em seguida.
Porque você continuou a viver só para saber o que ia acontecer em seguida, não é isso o que quer dizer?
Podia parecer maluquice, algo tão absurdo que ele devia se envergonhar, mas achava que sim.
Ter que.
Paul ficara irritado ao descobrir que conseguia desenvolver isso à vontade nos livros Misery, mas quando se tratava de seus livros sérios, ele raramente conseguia, ou mesmo nunca. Você não sabe exatamente onde buscar o ter que, mas sempre sabe quando o encontra. Ele fazia o ponteiro de um suposto marcador interior subir até o máximo. Mesmo sentado de frente para a máquina, meio de ressaca, entre goles de café e uma ou duas pastilhas de Rolaid a cada duas horas (sabendo que ele devia largar o cigarro, pelo menos durante a manhã, mas sem nunca tomar a iniciativa), meses antes de acabar o livro e alguns anos-luz antes dele ser publicado, você sentia o ter que quando o encontrava. E quando isso acontecia, Paul sentia-se envergonhado e manipulado. Mas era isto o que sustentava o seu trabalho. Jesus Cristo! Havia dias em que a brecha no papel era pequenina, seu brilho era fraco e os diálogos eram tolos demais. Ele ia em frente porque não tinha outra alternativa. Confúcio dizia que se um homem quisesse plantar uma fileira de milho, teria primeiro que revolver uma tonelada de terra. Assim, um dia a brecha se abria numa visão panorâmica e brilhava mais que os raios de sol num filme épico de Cecil B. De Mille. E ele sabia que encontrara o ter que, bem vivo, forte e ativo.
O ter que, em: "Acho que ainda vou ficar aqui uns quinze ou vinte minutos, querida, tenho que ver como este capítulo vai terminar!" O cara que diz isso passou o dia inteiro no trabalho só pensando na hora de deitar, mas sabe que se demorar um pouco a ir para a cama, a mulher estará dormindo quando ele finalmente entrar no quarto.
O ter que, em: "Sei que está na hora do jantar — ele fica furioso quando jantamos com a TV ligada — mas eu tenho que saber como isso vai terminar."
Tenho que saber se ela vai viver.
Tenho que saber se ele vai pegar o patife que matou o pai.
Tenho que saber se ela vai descobrir que sua melhor amiga está saindo com o seu marido.
Ter que. Tão detestável quanto um emprego num bar de segunda, tão bom quanto uma trepada com a garota mais bem-dotada do mundo. Ah cara era tão ruim ah cara era tão bom ih cara no final das contas não tem mais importância se foi rude ou grosseiro porque no final das contas era como aquela música dos Jacksons — não pare até ter tido o bastante.
Você está se passando por Scheherazade para você mesmo. Esta não era uma idéia que ele pudesse expressar ou mesmo compreender, não naquela ocasião; ele estava cheio de dores. Mas ele já sabia daquilo, não?
Você não. Os rapazes dos trabalhos forçados. Eles sabiam.
É, isso fazia sentido.
O barulho do cortador aumentou e Annie apareceu na janela. Ela reparou que ele estava olhando e fez um aceno com a mão. Paul retribuiu o aceno, levantando uma das mãos — aquela que ainda tinha o dedo polegar. Annie sumiu de vista. Política da boa vizinhança.
Paul finalmente conseguira convencê-la de que voltar ao trabalho seria bom para ele. . . Vivia perseguido pelas imagens nítidas que o haviam atraído para fora da nuvem, e perseguido era a palavra exata: enquanto não conseguisse transportar aquelas imagens para o papel, elas permaneceriam vivas dentro dele.
Embora não tivesse acreditado nele — não naquela ocasião —, Annie consentiu que ele voltasse a trabalhar. Não que ele a tivesse convencido, mas por causa do ter que.
A princípio, ele só conseguira trabalhar por alguns curtos e dolorosos espaços de tempo — quinze minutos, meia hora, talvez, se a história assim exigisse. Mas eram minutos dolorosos. Qualquer mudança de posição lhe atiçava as dores no coto da perna, como a brisa do vento atiça as chamas de uma fogueira que está quase apagando. As dores eram terríveis enquanto ele estava escrevendo, mas o pior eram as duas horas seguintes. A ferida, que começava a cicatrizar, provocava uma coceira tão forte que sua perna parecia coberta por um enxame de abelhas indolentes, quase o levando à loucura.
Ele estava certo, não ela. Ele não voltou a ficar bom — o que seria difícil na atual situação — mas a saúde melhorou e ele se sentiu mais forte. Paul reconhecia que seus horizontes haviam diminuído, mas aceitava o fato como sendo o preço de sua sobrevivência. Ele estava genuinamente surpreso de ainda estar vivo.
Sentado na frente da máquina, cujos dentes estavam cada vez mais podres, e lembrando dos tempos em que seu trabalho predominava sobre os acontecimentos, Paul cochilava. É, ele achava que talvez tivesse sido seu próprio Scheherazade, tanto quanto era agora a própria mulher do seu sonho, entregando-se aos mais impetuosos arroubos e fantasias. Paul não precisava de um psiquiatra para lhe dizer que escrever também tinha o seu lado auto-erótico — você toca a máquina, não a sua pele, mas qualquer um desses gestos estava intimamente ligado à velocidade dos sentidos, à agilidade das mãos e à entrega sincera da arte de fingir.
E aquilo não era uma espécie de trepada, mesmo que das mais i1árias? Porque foi só ele recomeçar. . . ela não o interrompia enquanto ele estava trabalhando, mas assim que ele terminava, ela vinha apanhar as folhas com a desculpa de preencher as letras que faltavam. Do mesmo modo como um homem de faro sexual aguçado sabe quais as garotas que o vão aborrecer no final da noite, Paul sabia que, na verdade, Annie vinha apanhar sua dose diária. Apanhar o seu ter que.
Os seriados. É, de volta aos seriados. Com a diferença de que nos últimos meses ela está indo todos os dias ao invés de apenas aos sábados à tarde; e o Paul que a leva agora é o seu escritor de estimação ao invés do seu irmão mais velho.
As restrições de Paul contra a máquina de escrever aumentavam à medida que as dores iam diminuindo, mas ele foi ficando mais tolerante. . . apesar de ultimamente não estar conseguindo escrever rápido o bastante para atender as exigências de Annie.
O ter que foi o que os manteve vivos — sem dúvida; não fosse por isso, Annie o teria matado e se suicidado há muito tempo atrás — mas foi também o motivo dele ter perdido o dedo polegar. Foi horrível, mas de certo modo, cômico também. Pode parecer ironia, Paul, mas vai fazer bem ao seu sangue.
Pense no quanto não poderia ter sido pior.
Ela podia ter cortado seu pênis, por exemplo.
— E pênis eu só tenho um — disse ele, começando a rir desvairadamente no quarto vazio, de frente para a Royal detestável, com seu sorriso onde faltavam vários dentes. Paul gargalhou até sentir o estômago doer, até o coto da perna doer. Paul gargalhou até a mente doer. A certa altura, as gargalhadas se transformaram em soluços secos, que atiçaram a dor no que restava do polegar esquerdo. Só então ele parou de rir. De um modo meio deprimente, Paul perguntou a si mesmo o quanto não estaria perto de enlouquecer.
Não que isso tivesse qualquer importância, supôs ele.
Alguns dias antes da amputação do dedo — menos de uma semana, talvez — Annie entrou no quarto com dois pratos fundos cheios de sorvete de baunilha, uma lata de calda de chocolate Hershey, uma lata de creme chantilly Reddi-Wip e um pote de cerejas ao marasquino tão vermelhas quanto uma amostra de sangue num tubo de ensaio.
— Pensei em fazer um sundae para nós, Paul — disse ela num tom de voz de quem fingia estar contente.
Paul não gostou nem do tom de voz, nem do olhar inquieto de Annie. Sou uma menina levada, é o que dizia aquele olhar. Ele desconfiou e ficou apavorado. Era muito fácil para ele imaginar Annie com aquele olhar colocando umas peças de roupa no degrau de uma escada, um gato morto em outro.
— Ora, Annie, muito obrigado — disse ele, observando-a colocar duas nuvens imensas de creme chantilly num dos pratos. Seus gestos demonstravam certa prática meio desajeitada de quem é viciada em doces há muitos anos.
— Não precisa agradecer. Você merece. Tem trabalhado tanto. . . — insinuou ela, entregando-lhe o sundae.
O doce ficou enjoativo depois da terceira colherada, mas Paul achou mais prudente continuar comendo. Uma das regras de sobrevivência mais fundamentais desse lugar tão pitoresco era: Quando Annie oferece, é melhor comer. Por alguns instantes, os dois ficaram em silêncio. Annie, então, pôs a colher no prato, limpou o sorvete derretido e a calda que lhe escorria da boca com as costas da mãos e disse amigavelmente:
— Conte-me o fim da história.
— O que foi que você disse? — perguntou ele, largando a colher no prato.
— Conte-me o fim da história. Eu simplesmente não agüento mais esperar.
E ele não sabia que isso ia acontecer? Sabia. Se alguém viesse entregar a Annie os vinte novos filmes da série de Rocket Man, será que ela ia esperar para ver um por semana, ou pelo menos, um por dia?
Paul olhou para o sundae de Annie — semidevorado, com uma cereja enterrada no creme chantilly e outra boiando na calda de chocolate — e lembrou-se dos pratos com restos de doce espalhados pela sala.
Não, Annie não era do tipo que sabia esperar. Ela assistiria aos vinte filmes numa única noite, mesmo que ficasse com a vista cansada e com uma violenta dor de cabeça.
Porque Annie adorava coisas doces.
— Não posso fazer isso — respondeu ele.
O rosto de Annie escureceu — mas não havia nele um certo alívio também?
— Não? Por que não?
Porque você não terá a menor consideração por mim amanhã de manhã, ele pensou em dizer. Mas ia dar um aperto nela Um aperto rigoroso.
— Porque sou um péssimo contador de histórias.
Annie sorveu o que restava do sorvete em cinco enormes colheradas que teriam congelado a garganta de Paul. Ela o encarou com raiva, não como se ele fosse o grande Paul Sheldon, mas como alguém que tivesse se atrevido a criticar o grande Paul Sheldon.
— Se você é um contador de histórias tão ruim assim, como pode ter escrito tantos best-sellers e ter uma multidão de admiradores que adoram o que você escreve?
— Eu não disse que era um péssimo escritor de histórias. Para falar a verdade, eu acho até que sou muito bom nisso. Mas como contador de histórias, sou um fracasso. . .
— Você está arrumando uma porcaria de desculpa.
O rosto de Annie estava ainda mais sombrio. Ela cerrou as mãos, apoiadas sobre o pano grosso da saia. O Furacão Annie estava de volta. Tudo o que ia embora, voltava. Só que a situação era agora diferente, não era? Paul estava mais aterrorizado do que nunca, mas ela perdera um pouco do domínio sobre ele. Sua vida agora não parecia valer tanto assim, com ter que ou sem ter que. Paul só tinha medo que ela o machucasse.
— Não é desculpa — retrucou ele. — São coisas diferentes, é como querer comparar laranjas com maçãs, Annie. As pessoas que contam histórias geralmente não conseguem escrever histórias. Se você pensar realmente que quem escreve histórias sabe se expressar bem, é porque nunca assistiu um escritor tentando dar entrevista no programa Today.
— Bem, eu não quero mais esperar — advertiu ela, de mau humor. — Fiz um sundae gostoso para você e o mínimo que você poderia fazer era me contar algumas coisas, não precisa ser a história toda. . . por exemplo. . . o barão vai matar Calthorpe? — Os olhos dela brilhavam. — Isso é uma coisa que eu quero muito saber. E o que ele vai fazer com o corpo, se o matar? Vai cortar em pedacinhos e colocar naquele baú que a esposa dele não perde de vista? Acho que é isso que vai acontecer.
Paul sacudiu a cabeça de um lado para o outro — não para indicar que ela estivesse errada, mas para demonstrar que ele não ia contar nada.
O rosto de Annie escureceu mais ainda, mas ela lhe disse numa voz suave:
— Você está me fazendo ficar com raiva e sabe disso, não é, Paul?
— Claro que sei, mas não posso evitar.
— Eu poderia fazer você evitar. Eu poderia fazer você contar.
Mas Annie parecia frustrada, como se soubesse que não poderia fazer tal coisa. Ela poderia fazer com que ele dissesse certas coisas, mas não contar o que ela queria.
— Annie, você lembra de me ter contado o que um garotinho diz para a mãe quando ela o surpreende brincando com o detergente da pia? Mamãe, como você é malvada! Não é isso o que você está dizendo agora? Paul, como você é malvado?
— Se você me fizer ficar com mais raiva, não respondo pelos meus atos.
Paul percebeu, entretanto, que o momento crítico passara — por mais estranho que pareça, Annie era muito vulnerável a esses conceitos de disciplina e comportamento.
— Eu vou ter que arriscar. Porque estou no papel daquela mãe. Eu não estou lhe dizendo não para ser malvado, ou para lhe contrariar, mas porque faço questão que você goste do livro. . . Se eu lhe contar o que você quer saber, você não vai gostar mais dele e nem vai querer mais o livro.
E aí, o que vai acontecer comigo, Annie?, ele pensou mas não disse.
— Então me conte pelo menos se aquele negro, Hezekiah, sabe realmente onde está o pai de Misery! Conte pelo menos isso!
— Você quer o livro ou quer que eu responda um questionário?
— Não fale comigo nesse tom de sarcasmo!
— Então não finja que não entendeu o que eu disse! — gritou ele, em resposta. Annie recuou, entre surpresa e apreensiva, e seu rosto desanuviou. Tudo o que restou foi o olhar esquisito da menina levada. — Você quer abrir a barriga da galinha dos ovos de ouro! É isso o que está acontecendo. Mas quando o fazendeiro da história fez isso, o que ele passou a ter foi uma galinha morta e um monte de tripas sem valor algum!
— Está bem, Paul, está bem. Vai acabar de tomar o sorvete?
— Não agüento mais comer.
— Estou vendo. Eu aborreci você, me desculpe. Acho que está com a razão, eu não devia ter perguntado.
Annie estava completamente calma outra vez. Ao contrário do que ele imaginava, ela não ficou com raiva nem entrou em depressão. A velha rotina voltou ao normal. Ele escrevia, Annie lia ao final do dia. E entre a discussão e a amputação do dedo se passou um tempo suficiente para que ele não relacionasse uma coisa com a outra. Mas só até esse momento.
Eu reclamei da máquina, pensou ele, olhando para a Royal e ouvindo o cortador de grama. Paul teve a impressão que o barulho dele diminuíra, mas não deu conta que era ele, e não Annie, quem estava se distanciando. Ele estava quase cochilando. Dera para fazer isso agora, passar o tempo cochilando como os velhinhos nos asilos.
Não reclamei muito; uma vez só. Mas foi o suficiente, não foi? Mais do que suficiente. Foi quando? Uma semana depois dela aparecer com aqueles sundaes horríveis? Por aí. Uma semana e uma reclamação. Eu só disse que a batida das teclas sem as letras estavam me dando nos nervos. Eu nem ao menos sugeri que ela arrumasse outra máquina usada com todas as letras na loja daquela mulher, Nancy Whoremonger, ou sei lá quem mais. Eu só disse que aquelas batidas estavam me dando nos nervos e então, em questão de minutos, presto chango, você olha para a mão esquerda de Paul e vê o polegar, olha de novo e já não o vê mais. Só que ela não fez isso porque eu reclamei da máquina, não é mesmo? Ela fez isso porque eu lhe disse um não e ela teve que aceitar. Foi um gesto de vingança. E a vingança foi resultado de uma compreensão. Compreensão de quê? Ora, de que não é só ela quem coloca as cartas na mesa — e que exerço um certo domínio passivo sobre ela. O domínio do ter que. Até que acabei virando um Scheherazade razoável no final das contas.
Isso era loucura. Isso era cômico. Mas também era real. Milhões de pessoas podiam zombar, mas só por não terem ainda percebido o quanto pode ser forte a influência da arte — mesmo um tipo tão degenerado quanto os romances populares. As donas-de-casa distribuíam suas tarefas de acordo com as novelas da tarde. Se voltavam a trabalhar, tratavam de comprar imediatamente um videocassete para gravarem as novelas e assistirem quando chegassem em casa. Quando Arthur Conan Doyle matou Sherlock Holmes em Reichen-bach Falls, toda a Inglaterra vitoriana se uniu em um só coro, exigindo a sua volta. O tom dos protestos foi exatamente igual aos de Annie — eles não tinham ficado consternados, mas, furiosos. Doyle foi repreendido até mesmo por sua mãe, quando ele comunicou a ela a intenção de matar Holmes. A resposta indignada veio pelo correio: "Matar o simpático senhor Holmes? Que disparate! Não se atreva!"
O caso de um amigo seu, por exemplo, Gary Ruddman, que trabalhava na Biblioteca Estadual de Boulder. Paul apareceu um dia para visitá-lo e deu com as cortinas cerradas e uma faixa preta na porta. Paul ficou preocupado e bateu várias vezes até que o amigo viesse atender. Vá embora, pediu Gary, Estou muito triste. Uma pessoa morreu. Uma pessoa muito importante para mim. Paul quis saber quem havia morrido e Gary lhe respondeu, aborrecido: Van der Valk. Paul sentiu que Gary se afastava da porta e bateu outra vez, mas não obteve resposta. Van der Valk, ele soube mais tarde, era um detetive criado — e depois destruído — por um escritor chamado Nicolas Freeling.
Paul ficara convencido que a reação de Gary era das mais infundadas; ele achava que Gary estava bancando o pretensioso. Em resumo: era só pose. Paul continuou a achar isso até 1983, quando leu The World According to Garp. Ele caiu na bobagem de ler pouco antes de deitar a cena em que o filho mais novo de Garp morre, imprensado na alavanca da mudança. Paul ficou horas sem conseguir dormir. A cena não lhe saía da cabeça. Enquanto rolava na cama, Paul reconheceu que era ridículo ficar se lastimando pela morte de um personagem de livro e, é claro, era exatamente isso o que ele estava fazendo. A compreensão deste fato, entretanto, não foi de muita ajuda, e Paul foi levado a pensar que Gary talvez tivesse sentido algo muito mais forte com a morte de Van der Valk do que ele julgara na ocasião. Isso tudo lhe trouxe à memória uma outra lembrança: a de terminar de ler The Lord of the Flies, de William Golding, aos doze anos de idade; era um dia quente de verão e ele ia para a cozinha tomar um copo de limonada gelada. No meio do caminho, Paul saiu em disparada para o banheiro e vomitou.
Subitamente, Paul começou a lembrar de outros casos de entusiasmo obsessivo: o povo se aglomerando no porto de Baltimore todos os meses à espera do navio que trazia os novos fascículos de Litle Dorrit e Oliver Twist, de Dickens (muitos se afogavam, mas isso não desencorajava ninguém); a anciã de cento e cinco anos de idade que afirmara querer viver até que Galsworthy terminasse de escrever The Forsyte Saga — e que morrera menos de uma hora depois de terem lido para ela a última página do último volume; o jovem alpinista hospitalizado, vítima de um caso supostamente fatal de hipotermia, cujos amigos tinham lido sem parar, vinte e quatro horas por dia, o livro The Lord of the Rings. Até que ele saísse do estado de coma; e como esses, centenas de outros casos..
Paul imaginava que todo escritor de best-seller tivesse um ou mais casos de envolvimento radical de leitores no mundo do faz-de-conta que eles criavam. . . casos de complexo de Scheherazade, inventou ele agora, quase cochilando ao som do cortador de grama que parecia ecoar cada vez mais longe. Lembrava-se de duas cartas sugerindo temas para os livros Misery, com cenários do tipo Disneyworld. Uma delas chegava a incluir uma planta tosca e grosseira. O primeiro prêmio, entretanto, ficou para uma outra admiradora (Annie Wilkes ainda não tinha aparecido na sua vida), a Sra Roman D. Sandpiper III, de Ink Beach, na Flórida. A Sra Roman D. Sandpiper, cujo nome era Virgínia, transformara um dos quartos do andar superior de sua casa na sala de Misery. Ela incluíra na carta retratos Polaroid da cadeira de balanço de Misery, da escrivaninha de Misery (tão completa que chegava a ter metade de uma carta de agradecimento ao senhor Faverey, onde ela dizia que estaria de plantão no dia 20 de novembro, na School Hall Recitation — Paul achou a letra extraordinariamente apropriada para a sua heroína, não uma letra redonda e floreada com a da maioria das mulheres, mas uma letra vertical apenas meio feminina, do sofá de Misery, do bordado de Misery. (Deixe que o Amor o Ensine; Não se atreva a Ensinar o Amor), etc, etc, etc. A Sra Roman D. ("Virgínia") Sandpiper garantia que os móveis eram autênticos e não reproduções, Paul como não pudesse ter certeza, acabou achando que deviam ser mesmo. Assim sendo, esse pedacinho de mundo de faz-de-conta devia ter custado à Sra Roman D. ("Virgínia") Sandpiper alguns milhares de dólares. A Sra Roman D. ("Virgínia") Sandpiper apressou-se em dizer que não estava se utilizando da personagem dele para ganhar dinheiro e que não tinha a menor intenção de fazê-lo — Deus não permita! — mas ela gostaria muito que ele visse as fotos e lhe dissesse se havia alguma coisa errada (ela tinha certeza que devia ter muitas). A Sra Roman D. Sandpiper esperava também que ele desse a sua opinião a respeito. Ao ver as fotos, Paul tivera uma sensação estranha e extraordinariamente impalpável — era como se estivesse olhando fotografias de sua própria imaginação. Ele sabia que daquele dia em diante todas as vezes que tentasse imaginar a sala e o estúdio de Misery, as fotografias da Sra Roman D. ("Virgínia") Sandpiper lhe viriam imediatamente à cabeça, bloqueando a sua imaginação com uma realidade expressiva, mas de apenas uma dimensão. Dizer a ela o que estava errado? Loucura. Daquele dia em diante era ele quem iria se preocupar com isso. Paul escreveu um bilhete dando-lhe os parabéns e expressando sua admiração — um bilhete que de modo algum insinuava certas perguntas a respeito da Sra Roman ("Virgínia") Sandpiper que haviam lhe passado pela cabeça, por exemplo, o quanto ela era realmente tímida. A resposta veio com novas fotos Polaroid. Se a primeira carta da Sra Roman D. ("Virgínia") Sandpiper trazia duas folhas escritas à mão e sete Polaroides, a segunda chegara com dez folhas e quarenta Polaroides. A carta era um manual completo (e exaustivo ao extremo) dos lugares onde a Sra Roman D. ("Virgínia") encontrara cada peça, quanto pagara e como fora restaurada. A Sra Roman D. ("Virgínia") Sandpiper dizia ainda que encontrara um homem chamado McKibbon que possuía uma espingarda antiga e que ele fizera para ela o tiro na parede, ao lado da cadeira. Embora não pudesse garantir a legitimidade histórica da espingarda, a Sra Roman D. ("Virgínia") Sandpiper certificara-se de que o calibre era o mesmo. Em sua maioria, as fotos eram closes de pequenos detalhes. Não fosse pelas explicações escritas no verso, elas poderiam estar em qualquer revista de palavras cruzadas, na seção "Adivinhe o que É", em que a maxiampliação de uma das hastes de um clipe de papel ficava parecendo um poste ou o abridor no alto de uma lata de cerveja, uma escultura de Picasso. Paul não respondeu a essa carta, o que não impediu a Sra Roman D. ("Virgínia") Sandpiper de lhe escrever mais cinco (as quatro primeiras com fotos Polaroides) antes de se fechar num silêncio enigmático e ligeiramente ofendido.
Na última carta, ela assinara simplesmente Sra Roman D. Sandpiper. O convite para chamá-la de "Virgínia" (embora feito entre parênteses) fora retirado.
Os sentimentos dela, por mais obsessivos que fossem, não tinham chegado à fixação paranóica de Annie, mas Paul compreendeu que eles eram provenientes de uma mesma fonte: o complexo de Scheherazade. O poder atraente, profundo e natural do ter que.
Paul deixou-se levar e adormeceu.
Paul passou aqueles dias cochilando como fazem os velhinhos, sem mais nem menos e, às vezes, nas horas mais impróprias, e o seu sono era como o sono dos velhos. Em outras palavras, um sono separado do mundo dos acordados apenas por uma fina película. Ele continuou a ouvir o ruído do cortador de grama, mas este se tornou mais profundo, mais forte e cortante: o ruído de uma faca elétrica.
Ele havia escolhido o dia errado para reclamar da Royal e do ene que faltava, mas era evidente que nunca existiria o dia certo para dizer não a Annie Wilkes. O castigo podia demorar. . . mas não deixava de vir.
Bem, se isso o incomoda tanto, terei que fazer alguma coisa para fazer você parar de pensar nesse velho ene. Paul escutou Annie revirando coisas pela cozinha, jogando outras no chão, e resmungando naquela estranha linguagem de Annie Wilkes. Dez minutos depois ela apareceu com a seringa, o Betadine e a faca elétrica. Paul começou imediatamente a gritar. De certo modo, ele era como os cachorros de Pavlov. Toda vez que Pavlov tocava uma sineta, os cachorros começavam a salivar. Toda vez que Annie entrava no quarto de hóspedes com uma seringa, um vidro de Betadine e algum objeto afiado e cortante, ele começava a gritar. Ela ligou a faca no interruptor próximo à cadeira de rodas e Paul gritou, protestou e fez mais e mais promessas de que seria bonzinho. Quando ele tentou se esquivar da seringa, Annie o avisou para ficar quieto, ou o que estava prestes a acontecer poderia não ter os benefícios de qualquer anestésico. Paul continuou a se afastar da seringa, choramingando e implorando, mas ela sugeriu que talvez fosse melhor usar a faca na garganta dele e acabar logo com tudo.
Ele, então, ficou quieto e deixou que ela lhe aplicasse a injeção, passasse Betadine no seu polegar esquerdo e na lâmina da faca. Quando Annie a ligou, as lâminas se movimentaram para frente e para trás, espalhando gotas marrons de Betadine pelo ar — mas ela pareceu não perceber. No final de tudo, havia também muitas gotas vermelhas espalhadas por todo o lado. Porque quando Annie decidia uma coisa, ela ia até o fim. Annie não se comovia com pedidos. Annie não se comovia com gritos. Annie mantinha-se sempre firme nas suas decisões.
Quando as lâminas trepidantes da faca penetraram por entre a membrana macia que havia entre o dedo indicador e o dedo polegar prestes-a-morrer, Annie assegurou a ele mais uma vez, em seu tom de voz de "isso-dói-mais-na-mamãe-do-que-em-você-Paulie", que ela o amava.
E aí, naquela mesma noite. . .
Você não está sonhando, Paul. Você está pensando coisas que não se atreve a pensar quando está acordado. Então acorde. Pelo amor de Deus, ACORDE!
Paul não conseguia acordar.
De manhã ela cortara seu fora seu dedo polegar e de noite ela entrara no quarto alegremente e ele continuava sentado e meio atordoado pela droga e pelas dores com a mão esquerda enfaixada presa junto ao peito e ela trazia um bolo e berrava ''Parabéns pra você numa voz desafinada mas não era dia de seu aniversário e havia velas espalhadas pelo bolo e bem ao centro espetado no meio do glacê como uma vela extra vinha seu dedo polegar seu dedo polegar morto e cinzento com a unha ligeiramente roída de um lado porque ele costumava roer a unha quando estava à procura de alguma palavra e ela disse a ele se você prometer ficar bonzinho Paul pode comer um pedaço de bolo mas não vai precisar comer nenhum pedaço dessa vela especial e então ele prometeu ficar bonzinho porque não queria ser obrigado a comer daquela vela especial mas também porque especialmente porque certamente porque Annie era a maior Annie era boa vamos agradecer a ela pela comida inclusive aquilo que não teremos que comer as meninas só querem se divertir mas algumas coisa ruim se aproxima por favor não me faça comer o meu dedo Annie mamãe Annie deusa Annie quando Annie está por perto é melhor ser sincero ela sabe quando você se comportou bem ou mal então fique bonzinho pelo amor da deusa é melhor não chorar é melhor não ficar emburrado mas acima de tudo é melhor não gritar não gritar não gritar não
Ele não gritara.
Mas agora, ao acordar, ele gritou. Com um movimento tão brusco que todo o seu corpo doeu e sem perceber que seus lábios estavam grudados um no outro com força para segurar o grito — embora a amputação do dedo já tivesse ocorrido há mais de um mês.
Paul estava tão concentrado em não gritar que nem percebeu o que vinha chegando pela alameda da casa. E quando ele finalmente deu conta, pensou que fosse uma miragem.
Um carro de polícia do estado do Colorado.
O período que seguiu à amputação do dedo foi um pouco confuso e a única atividade de Paul, além do livro, era contar a passagem dos dias. Isso já estava se tornando uma obsessão e ele chegava às vezes a perder mais de cinco minutos contando e recontando os dias que haviam passado para ter a certeza de que não esquecera de nenhum.
Você está ficando tão ruim quanto ela. Pensou certa vez.
E daí?, respondeu sua mente, muita abatida.
Paul adiantara bastante o livro depois da amputação do pé, no que Annie chamava, muito afetadamente, de "seu período de convalescença". Não — bastante era falsa modéstia, se é que isso existia. Ele trabalhara maravilhosamente para um homem que no passado se julgava incapaz de trabalhar se estivesse sem cigarros ou com uma dor de cabeça ligeiramente mais forte, ou com dor na coluna. Seria melhor dizer que ele agira como um herói, mas Paul achava que isso era fuga, pois as dores tinham sido realmente insuportáveis. Quando a perna começou finalmente a sarar, surgiu uma "fantasmagórica coceira" no pé que não eslava mais lá, e era ainda pior que as dores. O que mais o incomodava era a falta do pé. Paul acordava inúmeras vezes durante a noite usando o pé direito para coçar o vazio, alguns centímetros abaixo do lugar onde sua perna esquerda agora terminava.
Mas ainda assim ele continuara a trabalhar.
Só depois da amputação do polegar esquerdo, e daquele extravagante bolo de aniversário que parecia ter saído do cenário de Whatever Happened to Baby Jane, foi que a lixeira começou a ficar entupida de folhas amassadas. Ele perde um pé, quase morre, continua trabalhando. Ele perde um dedo da mão e cai num estado de estranhas inquietações. Não devia ser o contrário?
Para dizer a verdade, ele passara uma semana inteira na cama, com febre, mas isso era o de menos; o máximo que sua temperatura chegou a alcançar foi pouco mais de trinta e oito graus e isso não era motivo para nenhum drama. A febre, mais provavelmente causada por um estado geral de enfraquecimento do que por alguma infecção específica, não era problema para Annie. Entre outros souvenirs que ela tinha em casa, havia Keflex e Ampicillin. Ela o medicou e ele melhorou. . . tanto quanto foi possível melhorar dadas as estranhas circunstâncias em ele vivia. Mas havia algo de errado. Ele parecia ter perdido alguma substância vital, e o resultado final não foi muito bom. Paul tentou botar a culpa no ene que faltava na máquina, mas ele já havia pesado isso antes. Afinal de contas, o que era um ene comparado a um pé faltando e, agora, numa atração extra, um dedo da mão faltando?
Mas qualquer que fosse a razão, havia alguma coisa perturbando seu sonho e reduzindo gradualmente a brecha no papel por onde costumava enxergar. No inicio — ele era capaz de jurar! — a brecha era tão larga quanto o Túnel Lincoln. Agora, porém, era menor que um nó na madeira num tapume por onde um pedestre intrometido bisbilhota um prédio lindo em construção. Ele tinha que se retorcer e inclinar o pescoço se quisesse ver alguma coisa e, na maioria das vezes, as coisas realmente importantes aconteciam fora de seu campo de visão. . . o que não era surpresa, já que a brecha era tão pequena.
Em termos práticos, o que aconteceu após a amputação do dedo e a semana de febre era óbvio demais. A linguagem do livro se tornara muito floreada e inflamada — ele não estava parodiando a si mesmo, não muito, mas estava caminhando para isso e se sentia incapaz de evitar. Certos lapsos na continuidade começaram a se multiplicar como ratos se multiplicam silenciosamente pelos cantos do porão. Por cerca de trinta páginas, o Barão se transformou no Visconde de A procura de Misery e ele teve que rasgar todas as folhas.
Não tem importância, Paul, repetia ele, inúmeras vezes, alguns dias antes da Royal cuspir o tê e depois o e. Esse maldito livro está quase no fim. E estava mesmo. Escrever o livro se tornara uma tortura e terminar o livro significava o fim de sua vida. O fato deste último começar a lhe parecer ligeiramente mais atraente do que o anterior dizia tudo o que precisava ser dito a respeito da piora de seu corpo, de sua mente e de seu espírito. O livro seguia em frente, apesar de tudo, como se fosse algo independente. Os lapsos na continuidade eram irritantes, mas secundários. Paul estava tendo mais problemas com o próprio faz-de-conta do que jamais tivera em toda sua vida — o jogo "Você Consegue?" passara de uma simples brincadeira a um exercício elaborado. Apesar de todas as coisas terríveis a que Annie o submetera, o livro continuava a crescer. Ele podia reclamar que perdera alguma coisa — sua energia, talvez — além dos litros e mais litros de sangue que haviam jorrado de seu dedo na amputação, mas a história continuava ótima, de longe o melhor livro da série. O enredo podia ser melodramático, mas era bem trabalhado, e, no seu jeito meio despretensioso, era até divertido. Se algum dia fosse publicado numa quantidade diferente desta tiragem limitada da edição Annie Wilkes, (primeira edição: um exemplar), Paul achava que ia vender horrores. É, ele ia acabar o livro, se aquela maldita máquina não desmontasse.
Você tinha obrigação de ser tão valente, pensou ele certa vez após uma série de exercícios de peso que continuava a fazer. Seus braços estavam finos e trêmulos, o coto do dedo latejava de dor e uma fina camada de suor começava a brotar em sua testa. Você não era aquele jovem pistoleiro metido a valentão que queria fazer nome em cima desse velho xerife? Só que você já perdeu uma letra e venho notando que outras — o tê, o e e o gê, por exemplo — estão começando a ficar meio estranhos. . . às vezes viram para um lado, outras vezes para o outro, às vezes saem por cima da linha, outras vezes por baixo. Acho que este velho xerife talvez ganhe esta rodada, meu caro. Acho que este velho xerife talvez continue a lhe bater até você morre.. . e aquela cadela talvez saiba disso. E por essa razão, talvez, ela tenha cortado meu polegar esquerdo. Como diz aquele velho ditado: ela pode ser maluca, mas não é surda.
Paul olhara para a máquina tenso e cansado.
Vá em frente. Vá em frente e acabe com ela. Vou terminar o livro de qualquer maneira. Se ela quiser me comprar outra máquina, eu agradeço pela gentileza, mas caso contrário termino o livro naquele maldito bloco de rascunho.
A única coisa que eu não vou fazer é gritar.
Eu não vou gritar.
Eu.
Eu não vou.
Eu não vou gritar!
Sentado de frente para a janela, Paul agora tinha certeza, certeza absoluta, que o carro de polícia entrando na casa de Annie era tão real quanto seu pé tinha sido um dia.
Grite! Com os diabos, grite!
Paul queria gritar, mas a ameaça tinha sido bem clara — clara demais. Ele nem conseguia abrir a boca. Ele tentou, mas se lembrou dos respingos marrons do Betadine saindo da faca elétrica. Ele tentou, mas se lembrou do machado partindo o osso, do suave chiado do Bernz O-matiC acendendo quando ela riscou o fósforo.
Ele tentou abrir a boca, mas não conseguiu.
Tentou levantar as mãos. Não conseguiu.
Um gemido horripilante saiu de seus lábios cerrados e suas mãos bateram levemente na lateral da Royal — e isso foi tudo que conseuiu fazer, o único gesto que parecia capaz de fazer para controlar seu futuro. Mas nada do que havia lhe acontecido antes — exceto talvez o momento em que ele reparou que sua perna mexia mas o pé continuava imóvel — foi tão terrível quanto aquela imobilidade. Na verdade, ela não durou muito tempo; cinco segundos, talvez, por certo não mais que dez. Para ele, entretanto, pareciam anos.
Bem ali em sua frente estava a salvação: tudo que ele precisava fazer era quebrar o vidro da janela, arrancar a mordaça que aquela cadela colocara em sua boca, e começar a gritar: Socorro! Socorro! Salvem-me de Annie! Salvem-me da deusa!
Ao mesmo tempo, outra voz gritava dentro dele: Eu prometo ser bonzinho, Annie! Eu não vou gritar! Eu vou ser bonzinho, pelo amor da deusa, eu vou ser bonzinho! Eu juro que não grito, não arranque mais nenhum pedaço de mim! Será que até este momento ele tivera alguma vez a consciência exata do quanto ela o deixara acovardado, do quanto ela havia arrancado da parte essencial de sua personalidade, do fogo de seu espírito? Paul tinha consciência do quanto vivia aterrorizado, mas teria também noção do quanto ela suprimira da sua realidade subjetiva, que ele antes julgava tão forte?
De uma coisa ele tinha quase certeza: havia muito mais coisa errada com ele do que a imobilidade, assim como havia muito mais coisa errada com o que ele estava escrevendo do que o ene que faltava, do que a febre, do que os lapsos na continuidade, do que a perda da sua energia. A verdade era tão simples quanto terrível; tão terrivelmente simples. Ele estava morrendo aos poucos, mas morrer desse jeito não era tão ruim quanto ele temia. Mas ele também estava se apagando, o que era péssimo, pois envolvia uma certa debilidade mental.
Não grite!, gritou uma voz em pânico dentro dele ao ver o guarda saindo do carro e ajeitando o boné que lembrava o do Smokey Bear. Ele devia ter uns vinte e dois ou vinte e três anos de idade e usava óculos escuros. No meio do caminho, ele se deteve para ajeitar o vinco da calça caqui do uniforme. A trinta metros dele, um homem envelhecido o observava por trás de uma janela — um homem de olhos azuis a saltarem do rosto lívido e barbudo, gemendo por entre os lábios cerrados e agitando as mãos inutilmente sobre uma tábua apoiada nos braços de uma cadeira de rodas.
não grite (grite, sim) grite e tudo estará acabado grite e será o fim (isso nunca vai ter um fim não até que eu esteja morto aquele menino não é páreo para a deusa). Pelo amor de Deus Paul será que você já morreu e não sabe? Grite, seu titica de galinha! grite até não agüentar mais!
Os lábios de Paul se entreabriram. Ele respirou fundo e fechou os olhos. Não tinha a menor idéia do que ia gritar, se é que ia gritar alguma coisa — até que saiu. — ÁFRICA!
Paul levantou as mãos trêmulas que se agitaram como pássaros assustados e as levou até a cabeça, como se quisesse segurar os miolos prestes a explodir.
— África! África! Socorro! Socorro! África!
Paul abriu os olhos. Smokey estava olhando para a casa, mas Paul não pôde ver os olhos dele por causa dos óculos escuros. Ele, entretanto, fez um ligeiro movimento com a cabeça demonstrando certo espanto; deu mais um passo e parou.
Paul olhou para a tábua de madeira. Á direita da maquina havia um pesado cinzeiro de cerâmica, que em outros tempos estaria cheio de pontas de cigarro. Agora, porém, a coisa mais perigosa que havia nele eram clipes de papel e uma borracha. Paul agarrou-o e o jogou pela janela. O vidro se espatifou e Paul julgou que este fosse o barulho mais intenso que ele jamais ouviu. As paredes desmoronaram, pensou ele, irrefletidamente.
— Aqui! Socorro! Cuidado com a mulher! Ela é maluca!
O policial olhou para ele de queixo caído. Ele enfiou a mão no bolso da camisa e apanhou um pedaço de papel que só podia ser o retrato. Depois de olhar bem, ele avançou até a beirada da alameda e anunciou as quatro únicas palavras que Paul o ouviu dizer, as quatro últimas palavras que ele diria em vida. Depois disso, tudo o que ele viria pronunciar seriam gemidos ininteligíveis.
— Ei! É você mesmo!
Paul estivera tão concentrado no policial que só avistou Annie quando já era tarde demais. Mas quando ele finalmente a viu, ficou totalmente aterrorizado. Annie tinha se transformado numa deusa de verdade, metade humana, metade máquina, sentada no alto do cortador de grama Lawnboy, um estranho centauro feminino. O chapéu dela caíra pelo chão e seu rosto contraído mostrava os dentes cerrados. Numa das mãos segurava a cruz de madeira que marcava o túmulo de Bossie — a primeira vaca ou a segunda, Paul não lembrava mais, que finalmente tinha parado de mugir.
Bossie tinha morrido. A chegada da primavera tornou macia a terra e Paul assistiu pela janela — entre mudo de espanto e acessos de riso — ao enterro da vaca. Annie cavou a sepultura (o que tomou grande parte do seu dia), passou uma corrente pela barriga de Bossie (que também se tornara muito mais macia) e puxou-a com o jipe. Paul apostou consigo mesmo que Bossie se partiria ao meio antes de Annie chegar até a sepultura, mas esta aposta ele perdeu. Depois de jogar a vaca no buraco, uma Annie imperturbável começou a cobri-la com terra — uma tarefa que só terminou quando o dia escureceu.
Paul viu ainda quando ela enfiou a cruz na sepultura e leu uma passagem da Bíblia sob a luz da lua que acabava de surgir.
Agora Annie empunhava a cruz como uma lança, com a ponta suja de terra apontada para as costas do policial.
— Atrás de você! Cuidado! — gritou Paul, consciente de que era tarde demais.
Com um grito estridente, Annie afundou a cruz nas costas do rapaz.
Ele gemeu, deu uns passos para a frente, o corpo inclinado para trás. Seu rosto parecia o rosto de um homem tentando expelir uma pedra dos rins ou sofrendo de uma crise de flatulência.
A cruz tombou para o chão à medida que ele se aproximou da janela, por onde o rosto desolado de um inválido o observava através das vidraças despedaçadas. O policial levou a mão até as costas, num gesto que Paul achou semelhante ao de um homem tentando coçar um ponto das costas que nunca conseguiria alcançar.
Annie desceu do Lawnboy e ficou estática, com as mãos cruzadas sobre o bico dos seios. Mas pouco depois avançou em direção ao rapaz e arrancou-lhe a cruz das costas. Ele se virou, tentando apanhar o revólver, mas Annie enfiou a ponta afiada na barriga dele.
Com outro gemido, o policial caiu de joelhos e abraçou a barriga. Paul pôde ver o uniforme dele rasgado nas costas, onde Annie lhe deu a primeira estocada.
Annie soltou a cruz outra vez — a extremidade pontiaguda se quebrara, deixando uma ponta lascada — e furou as costas dele entre as omoplatas — Annie parecia estar querendo matar um vampiro. As duas primeiras estocadas talvez não tivessem sido muito profundas nem causado muito dano mas a terceira perfurou as costas do rapaz e ele caiu estatelado no chão.
— AQUI! — gritou Annie, puxando violentamente a cruz da sepultura de Bossie das costas do policial. — gostou disso, seu velho trapaceiro?
— Annie, pare com isso!
Annie levantou os olhos e virou-se para Paul. Seus olhos escuros faiscavam e os cabelos sujos caíam em desalinho pelo rosto. Seus lábios se abriram ligeiramente num sorriso lunático de quem venceu todos os obstáculos.
— AQUI! — gritou ela, introduzindo a cruz nas costas do rapaz; nas nádegas; na coxa; no pescoço; na virilha; Annie perfurou o policial uma meia dúzia de vezes, gritando "aqui!" a cada gesto, até que a cruz se partisse ao meio.
— Aqui — disse ela distraidamente, dirigindo-se para o mesmo local de onde viera correndo. Pouco antes de passar pela janela, Annie largou a cruz ensangüentada no chão, como um objeto que não tivesse mais nenhum interesse.
Paul pôs as mãos nas rodas da cadeira, sem muita certeza de que pretendia ir a alguma parte — quem sabe à cozinha para apanhar uma faca. Não para tentar matar Annie, não, claro que não; quando ela visse a faca sairia correndo para buscar sua arma. A faca não era para matar Annie, mas para defender-se da vingança dela, cortando os pulsos primeiro. Paul não sabia se era esta a sua intenção, mas reconhecia que a idéia era das melhores. Porque se havia uma hora para abandonar o barco, a hora era essa. E ele também já estava cansado de perder pedaços do seu corpo toda vez que Annie ficava com raiva.
Foi então que ele viu uma coisa que o deixou paralisado.
O policial.
O policial ainda estava vivo.
Ele levantou a cabeça. Seus óculos haviam caído e Paul pôde ver os olhos dele. Paul pôde ver como ele era novo, tão novo, tão machucado e tão assustado. Seu rosto estava coberto de sangue. Ele ficou de joelhos, caiu, com um grande esforço tornou a se levantar e começou a rastejar na direção do carro.
Quando estava no meio do caminho entre a casa e a alameda, ele perdeu o equilíbrio e caiu de costas no gramado. Por alguns instantes, ele ficou estendido, com as pernas para o ar, tão indefeso quanto uma tartaruga de cabeça para baixo. Ele conseguiu se virar vagarosamente e esforçou-se outra vez para ficar de joelhos. Seu uniforme estava cada vez mais encharcado de sangue; as manchas menores iam se alastrando sensivelmente até formarem outras maiores.
Smokey conseguiu chegar até a alameda mas, subitamente, o barulho do cortador de grama se fez ouvir.
— Cuidado! — gritou Paul — Ela está voltando! Cuidado!
O policial virou a cabeça e seu rosto ficou tomado de pânico. Ele apanhou a arma — um revólver grande, preto, de cano longo e coronha de madeira — e Annie reapareceu, sentada no alto do Lawnboy, aproximando-se a toda velocidade.
— ATIRE NELA! — gritou Paul.
Mas ao invés de atirar, ele se atrapalhou e a arma caiu ao chão. Ao esticar a mão para apanhá-la, Annie desviou o Lawnboy e passou por cima da mão e do antebraço do rapaz. Um jato assombroso de sangue esguichou pelo bocal de saída de grama. O rapaz vestido no uniforme de polícia soltou um grito estridente. As lâminas giratórias passaram pela arma, provocando um som metálico. Annie veio fazer a manobra perto da janela e por um segundo seus olhos fitaram os de Paul. E ele teve certeza do que aquele olhar significava. Primeiro Smokey, depois você.
O rapaz estava caído de lado, mas ao ouvir o cortador se aproximando, ele se virou e, dando impulso com os calcanhares, tentou desesperadamente entrar debaixo do carro, onde ela não o atingiria.
Mas ele nem chegou perto. Com um grito esganiçado, Annie passou com as lâminas do cortador por cima da cabeça dele.
Paul viu de relance o brilho aterrorizado nos olhos castanhos do rapaz, viu os farrapos da blusa caqui do uniforme saindo de um braço levantado num gesto inútil de defesa, e virou a cabeça.
O motor do Lawnboy engasgou e ele ouviu uma série de barulhos estranhamente líquidos e abafados.
Paul fechou os olhos e vomitou.
Paul só tornou a abrir os olhos quando ouviu o barulho de chaves na porta da cozinha. Com a porta do quarto aberta, ele a viu descendo o corredor, metida num velho par de botas marrons, calça jeans com um chaveiro pendurado na presilha do cinto e a blusa masculina salpicada de sangue. Paul encolheu-se de medo e teve ímpetos de dizer: Se você cortar mais algum pedaço de mim eu vou morrer, Annie. Meu corpo não agüenta outra amputação. Eu morro de propósito! Mas ele não conseguiu dizer uma palavra — apenas gemidos aterrorizados que o aborreceram ainda mais.
Annie, entretanto, não deu chance que ele abrisse a boca.
— De você eu cuido mais tarde — disse ela, passando a chave na fechadura, uma Kreig nova que teria derrotado o próprio Tom Twyford em pessoa. Ela atravessou o corredor e suas passadas firmes foram diminuindo pouco a pouco.
Desanimado, Paul olhou pela janela. Apenas uma parte do corpo do rapaz podia ser vista e a cabeça continuava embaixo do cortador de grama, que estava ligeiramente inclinado para o lado. O cortador de Annie era um pequenino trator, próprio para manter gramados pouco maiores que o normal bonitos e bem aparados. Mas não fora projetado para manter-se de pé e equilibrado ao passar por cima de pedras, troncos de madeira ou cabeças de policiais. Se o carro da polícia não estivesse estacionado exatamente onde estava e se o rapaz não tivesse chegado tão perto dele, o cortador teria certamente tombado e Annie teria rolado pelo chão — pode ser que ela saísse ilesa do tombo, mas era possível também que saísse seriamente machucada.
Ela tem uma sorte dos diabos, pensou Paul melancolicamente, enquanto observava. Annie colocou o cortador na posição correta e soltou a cabeça do rapaz com um só empurrão, mas o cortador bateu na lateral do carro da polícia, arranhando a pintura.
Agora que o rapaz estava morto. Paul pôde observá-lo melhor. Ele parecia um boneco grande e maltratado por um bando de crianças levadas. Paul sentiu uma compaixão enorme por aquele rapaz anônimo, misturada com outro sentimento que ele não distinguiu à princípio. Depois de refletir por alguns instantes, ele descobriu, sem muita surpresa, que era inveja. O policial não voltaria mais para casa, para sua esposa e filhos, se é que os tinha, mas em compensação escapara de Annie Wilkes.
Ela segurou a mão ensangüentada do rapaz e o puxou pela alameda até o celeiro, que estava com a porta entreaberta. Quando ia saindo, Annie a abriu por completo, entrou no carro e guardou-o lá dentro também. Annie parecia praticamente serena. Ao sair do celeiro, puxou a porta pelos trilhos e deixou apenas uma abertura suficiente para ela entrar e sair.
Com as mãos na cintura, Annie desceu a alameda até a metade e olhou a sua volta. Mais uma vez, Paul percebeu nela uma extraordinária sensação de serenidade.
A parte inferior do cortador estava toda suja de sangue, especialmente o bocal de saída de grama, onde o sangue ainda pingava. Farrapos do uniforme caqui estavam espalhados pela alameda e pelo gramado recém-cortado. Havia manchas e gotas de sangue por todo o lado. A arma do policial estava largada no chão, com o cano arranhado e reluzindo um brilho metálico onde a pintura soltara. Preso num dos espinhos do cactos que Annie plantara em maio, havia um pedaço de papel retangular. A cruz da sepultura de Bossie ficara na alameda, como uma ilustração daquele espetáculo repugnante.
Annie saiu de seu campo de visão e voltou para casa. Quando entrou na cozinha, Paul a ouviu cantando. Pouco depois ele a viu de novo pela janela, com um grande saco verde de lixo nas mãos e mais uns três ou quatro enfiados nos bolsos da calça. A camisa dela estava molhada de suor embaixo das axilas, em volta do pescoço e, nas costas, uma mancha comprida de suor lembrou a ele vagamente uma árvore.
É muito saco para pouco lixo, pensou ele sabendo perfeitamente que havia lixo bastante para encher todos eles.
Ela catou os trapos do uniforme, apanhou a cruz, partiu-a e enfiou-a no saco. Inacreditavelmente, Annie se ajoelhou e se benzeu depois de jogar a cruz fora. Em seguida, pegou o revólver, descarregou-o e guardou as balas num dos bolsos. Com uma pancadinha de quem tem muita prática no assunto, Annie fechou o tambor da sua arma e enfiou-a na cintura. Quando apanhou o pedaço do papel espetado no cactos, Annie ficou a contemplá-lo muito pensativa. Depois de algum tempo, enfiou-o também num dos bolsos da calça. Ela guardou os sacos de lixo no celeiro e ia se dirigindo para o telheiro ao lado da casa quando alguma coisa lhe chamou a atenção. O cinzeiro. Annie o entregou gentilmente a Paul pela janela quebrada.
— Aqui está, Paul.
Um pouco atordoado, Paul apanhou-o.
— Depois eu venho catar os clipes de papel. — disse ela, como se esta fosse uma questão que tivesse passado pela cabeça dele.
Por alguns segundos, Paul pensou em jogar o cinzeiro na cabeça dela, partir aquela cabeça tão doentia. Mas ao pensar no que aconteceria a ele — no que poderia acontecer a ele — caso ela ficasse apenas machucada, Paul recolocou o cinzeiro onde estava, com sua mão trêmula que não tinha mais dedo polegar.
— Eu não o matei, você sabe — disse ela, olhando para ele.
— Annie...
— Você o matou. Se tivesse ficado com a boca fechada, eu o teria despachado. Ele ainda estaria vivo e eu não teria que limpar toda essa sujeira.
— É, ele teria ido embora por aquela estrada. E quanto a mim, Annie?
— Não sei o que quer dizer — respondeu ela, enrolando a mangueira do jardim nos braços.
— Você sabe, sim. Ele tinha um retrato meu. Está bem aí no seu bolso, não está?
Nas profundezas de seu estado de choque, Paul parecia ter encontrado sua própria serenidade.
— Não me faça perguntas para que eu não precise mentir — disse ela, enfiando a ponta da mangueira numa bica que havia à esquerda da janela de Paul.
— Um policial com meu retrato na mão significa que meu carro foi encontrado. Nós dois sabíamos que isso ia acontecer. Eu só estou surpreso de ter demorado tanto. Num livro, um carro pode simplesmente sumir da história — acho que eu mesmo seria capaz de convencer o público disso — mas não na vida real. Só que nós ficamos nos enganando a esse respeito, não foi, Annie? Você, por causa do livro; eu, por causa da minha vida, por mais infeliz que ela tenha se tornado.
— Não sei do que está falando — disse ela, abrindo a torneira. — Tudo o que sei foi que você matou aquele pobre rapaz ao jogar o cinzeiro pela janela. Você está confundindo o que poderia ter acontecido à você com o que já aconteceu a ele.
Annie riu para ele. Um sorriso desatinado, com uma expressão que realmente o deixou aterrorizado. Era o próprio demônio que estava por trás do olhar de Annie.
— Sua cadela. . .
— Cadela maluca, não é mais correto? — retrucou ela, ainda sorrindo.
— É claro. . . você é maluca.
— Nós vamos ter uma conversinha sobre isso mais tarde, está bem? Quando eu tiver mais tempo. Nós teremos muito o que conversar. Mas como você pode ver, eu agora estou muito ocupada.
Annie ligou a mangueira e passou quase meia hora limpando o sangue do cortador de grama, da alameda e do gramado, enquanto o jato de água formava lindos arco-íris contra a luz do sol.
Quando terminou, Annie enrolou a mangueira nos braços. O dia ainda estava claro, mas a sombra dela formava um rastro comprido sobre o gramado. Eram seis horas.
Annie soltou a mangueira de plástico verde da bica, guardou-a embaixo do telheiro e voltou para olhar a alameda cheia de água e o gramado que parecia coberto de orvalho.
Em seguida, ela trepou no cortador e deu a volta na casa. Paul abriu um sorriso. Ela tinha uma sorte dos diabos e quando estava em apuros tinha quase tanta esperteza quanto o próprio diabo, mas quase era a palavra chave. Em Boulder, ela dera um passo em falso e conseguira escapar por muita sorte. Mas agora ela dera outro passo em falso, e ele assistira. Annie levou o cortador de grama, mas esqueceu-se da lâmina — para falar a verdade, esqueceu-se da lâmina e da armação que a revestia. Pode ser que ela lembrasse mais tarde, mas Paul achava difícil. Certas coisas davam sempre um jeito de se ausentar da cabeça de Annie assim que o momento presente virava passado. Ocorreu a ele que a cabeça de Annie era como o cortador de grama: ele parecia em ordem, mas bastava virá-lo de cabeça para baixo para ver uma máquina assassina com uma lâmina muito afiada coberta de sangue.
Annie tornou a entrar em casa pela porta da cozinha e subiu as escadas. Durante alguns minutos, Paul a ouviu revirando alguma coisa pelo andar de cima e quando ela desceu, bem devagarinho, ele sentiu que ela vinha arrastando algo pesado, mas flexível. Ele hesitou um pouco, mas acabou empurrando a cadeira e encostando o ouvido na porta de madeira.
Os passos de Annie diminuíram, ligeiramente abafados, mas ele continuou a ouvir o barulho de um objeto sendo arrastado. Imediatamente uma idéia surgiu em sua cabeça, provocando uma onda de pânico.
O barracão! Ela foi ao barracão pegar o machado! O machado novamente!
Mas aquilo durou apenas um instante. Paul tratou de tirar o pensamento da cabeça. Annie não tinha ido para o barracão; ela estava indo para o porão. Ela estava arrastando alguma coisa para o porão.
Quando ele a ouviu subindo, empurrou a cadeira rapidamente até a janela. Ao sentir os passos dela vindo para o quarto, ao ouvir a chave na fechadura, ele pensou: Ela veio me matar.
E a única sensação que ele sentiu foi alívio.
A porta se abriu e Annie ficou parada a observá-lo. Ela trocara de roupa e agora vestia uma camiseta de malha branca e calça caqui. Num dos ombros, ela trazia pendurada uma pequenina bolsa caqui, grande demais para ser uma carteira, mas não tão grande para ser uma sacola.
Assim que ela entrou, Paul ficou surpreso por conseguir se dirigir a ela com certa dignidade:
— Se veio para me matar, Annie, vá em frente, mas tenha a bondade de ser rápida. Não arranque mais nenhum pedaço de mim.
— Eu não vou matar você, Paul. Isto é, não se eu tiver um pouco de sorte. Eu devia matar você — sei muito bem disso — mas sou maluca, não sou? E quem é maluco nem sempre costuma cuidar direito dos seus interesses, não é mesmo?
Annie empurrou a cadeira e levou-o pelo corredor. Ele podia ouvir o barulho da bolsa batendo contra o corpo sólido dela e reparou que nunca a havia visto com aquela bolsa antes. Quando ia à cidade de vestido, ela carregava uma carteira grande, dessas que as solteironas usam para ir às quermesses da igreja; quando ia de calças compridas, levava uma carteira pequena enfiada num dos bolsos, tal como um homem.
Os raios dourados do sol iluminavam toda a cozinha. A sombra das pernas da mesa refletidas no piso formavam barras horizontais que o fizeram lembrar das grades de uma prisão. Pelo relógio em cima do fogão, eram seis e quinze. Como não tivesse motivos para acreditar que ela fosse tão relapsa com os relógios quanto era com calendários (o dali ainda estava em maio) Paul achou que a hora estivesse certa. Os primeiros grilos já começavam a cantar. Eu sempre escutava os grilos quando era menino, pensou ele, quase a chorar.
Annie empurrou-o pela despensa, e parou em frente à porta do porão, que estava aberta. Uma luz amarelada bruxuleava lá dentro e o cheiro das últimas chuvas de inverno ainda estava presente.
Lá embaixo tem aranhas, pensou ele. Lá embaixo tem camundongos. Lá embaixo tem ratos.
— Não conte comigo — disse ele.
Annie o olhou impaciente e ele reparou que desde que matara o policial ela parecia quase normal. Seu rosto estava firme, mas ligeiramente aflito, como o de uma mulher se preparando para um grande jantar.
— Você vai para o porão e a única dúvida é: você quer que eu o leve no colo ou carregado nas costas? Cinco segundos para decidir.
— Nas costas — respondeu ele, de imediato.
— Muito espertinho.
Annie virou-se de costas para que ele passasse a mão por seu pescoço e lhe avisou:
— Não tente bancar o engraçadinho tentando me sufocar, Paul. Aprendi caratê em Harrisburg e sou muito boa nisso. Largo você no chão. Ele pode estar sujo, mas é duro o bastante. Você quebrará a coluna.
Annie o levantou com a maior facilidade. As pernas de Paul, retorcidas e horríveis como as de um aleijado, ficaram penduradas ao longo do corpo dela. A esquerda, com o punhado de carne inchada onde ficava seu antigo joelho, estava ligeiramente menor que a outra. Paul descobrira que conseguia ficar de pé apoiado na perna direita, embora por curtos períodos de tempo. Isto, entretanto, lhe causava dores insuportáveis que duravam horas e não passavam com o remédio.
Ela começou a descer as escadas e o cheiro forte de pedra, madeira, umidade e legumes estragados tornou-se mais forte. Lá embaixo havia três lâmpadas e ele pôde ver as teias de aranha tecidas entre as vigas do teto e as paredes de pedra cheias de gretas irregulares como o desenho de uma criança. O lugar era fresco, mas não agradável.
Paul nunca se aproximara tanto de Annie quanto naquele instante em que ela o carregava pela escada íngreme do porão. E só se aproximaria dela assim uma vez mais. A experiência foi das mais desagradáveis. Ele pôde sentir o suor de Annie, resultado de seus últimos movimentos, e embora ele realmente gostasse do cheiro do suor "saudável" — que ele associava a trabalho e a grandes esforços, coisas que muito respeitava — o cheiro dela era insuportável. Além do suor, havia também sujeira. Paul achava que ela se tornara tão relapsa no banho quanto era em relação aos calendários. De dentro da orelha dela saía um punhado de cera marrom-escura e ele perguntou a si mesmo, com certa repugnância, como ela ainda podia escutar alguma coisa.
Ali, encostado numa das paredes, havia um colchão, que Annie trouxera arrastado, e ao lado dele, uma mesa de televisão velha e quebrada, cheia de enlatados e garrafas. Ela se aproximou do colchão e se agachou.
— Pode sair, Paul.
Com todo o cuidado, ele a soltou e deixou-se cair no colchão. Ela começou a revirar a bolsa e Paul a olhou desconfiado.
Quando a agulha de uma seringa brilhou na luz fraca e amarelada do porão, Paul começou imediatamente a gritar.
— Não! Não! Não!
— Ora, ora — disse ela — Você deve estar achando que Annie está realmente de mau humor hoje. Relaxe, Paul.
Ela colocou a seringa sobre a mesinha e explicou:
— Isto é escopolamina, um remédio a base de morfina. Você tem muita sorte de eu ter morfina em casa. Eu disse como eles vigiam de perto esses remédios nos ambulatórios dos hospitais, não disse? Vou deixar isto com você. Aqui é muito úmido e suas pernas podem doer muito antes de eu voltar.
— Espere!
Annie lhe dirigiu um olhar ligeiramente perturbado — o olhar de um cúmplice para outro.
— Você atira longe uma porcaria de cinzeiro e eu é que fico cheia de serviço. Volto já.
Logo depois ela estava de volta, trazendo as almofadas do sofá e os lençóis da cama. Ela ajeitou as almofadas nas suas costas para que ele pudesse sentar sem muito desconforto, mas mesmo assim ele pôde sentir a friagem das paredes de pedra.
Ela abriu duas garrafas de Pepsi com o abridor do chaveiro e estendeu uma para ele. Annie tomou metade da sua sem parar e abafou um arroto com a mão, num gesto feminino.
— Precisamos conversar — disse ela — Ou, melhor, eu preciso falar e você precisa ouvir.
— Annie, quando eu disse que você era maluca, eu. . .
— Não quero ouvir uma palavra sobre isso! Mais tarde, talvez. Não que eu vá tentar mudar a sua opinião — um espertinho como você que vive de pensar. Tudo o que fiz foi salvar você de um acidente de carro antes de você morrer congelado e tratar das suas pernas quebradas e lhe dar remédio para aliviar suas dores e cuidar de você e fazer você se livrar de um livro ruim e escrever o melhor livro que você jamais escreveu em toda a sua vida. Se isso é ser maluca, então me leve para um hospício.
Oh, Annie, se ao menos alguém conseguisse. . .
E antes que conseguisse impedir, Paul estava dizendo:
— Você também cortou fora o meu pé, porra!
Annie lhe deu uma bofetada com tanta força que a cabeça de Paul chegou a tombar para o lado.
— Não fale palavrão na minha frente! Você pode não ter sido educado, mas eu fui muito bem educada. Você tem sorte de eu não ter cortado o seu pênis. Eu pensei nisso, sabia?
Paul olhou para ela e sentiu um frio no estômago.
— Sabia, Annie — disse ele, calmamente.
Annie arregalou os olhos e por poucos instantes ela pareceu estar surpresa e com a consciência culpada. Era o olhar da Menina Levada, não da Mulher Malvada.
— Escute uma coisa, Paul, preste bem atenção. Tudo estará bem se ninguém aparecer para procurar aquele rapaz antes de escurecer. Daqui a uma hora e meia mais ou menos já estará escuro. Se alguém aparecer antes disso. . .
Annie enfiou a mão na bolso e apanhou o revólver do policial. As luzes do porão refletiram o arranhão metálico que o Lawnboy fizera no cano da arma.
— Se alguém aparecer antes disso, tenho esta arma. Primeiro em quem aparecer, depois em você e depois em mim.
Annie contou a ele seus planos. Assim que escurecesse, ela ia levar o carro de polícia para o seu Lugar Risonho e o deixaria estacionado no alpendre ao lado da cabana, onde ficaria bem escondido. Para ela, o único perigo estava na Rodovia 9, mas como só teria que percorrer nela cerca de seis quilômetros, o risco não era tanto assim. Saindo da rodovia, o caminho para as montanhas era de estradas de terra pouco movimentadas, muitas delas sem uso, desde que o gado parou de utilizá-las para ir pastar no alto das montanhas. Annie ressaltou ainda que muitas dessas estradas tinham porteiras, mas que ela e Ralph tinham ganho as chaves dos proprietários em pessoa, sem ter que precisar pedir, quando compraram a cabana. Isso é o que se chama de boa vizinhança, frisou ela, dando a uma expressão agradável algumas conotações insuspeitadas: desconfiança, desprezo e uma pitada de mau gosto.
— Agora que você mostrou que não é digno de confiança, eu queria levá-lo só para não o perder de vista, mas vi que não ia dar certo. Eu poderia colocá-lo na mala do carro, mas seria impossível trazê-lo de volta pois vou ter que descer na bicicleta do Ralph. Quem sabe eu não levo um tombo e quebro a porcaria do meu pescoço?
Annie deu uma gargalhada para mostrar o quanto aquilo seria engraçado, mas Paul continuou sério.
— Se isso acontecer de verdade, o que será de mim, Annie?
— Você vai estar bem, Paul — disse ela, com serenidade — Como é ansioso!
Annie foi até uma das janelinhas do porão e ficou contemplando o cair da noite enquanto Paul a observava, melancólico. Se Annie levasse um tombo da bicicleta do marido numa daquelas estradas de terra, ele não acreditava que ficaria bem. No que ele acreditava realmente é que teria uma morte horrível naquele lugar e que seu corpo ia servir de comida para os ratos. A propósito, eles certamente já deviam estar de olho naqueles dois humanos indesejáveis que haviam invadido o seu domínio. Na porta da despensa havia agora uma fechadura Kreig, além de um ferrolho da grossura do seu pulso e as janelinhas do porão, como se refletissem a paranóia de Annie, não passavam de pequenas aberturas de cinqüenta centímetros por trinta. Isso, aliás, não lhe pareceu muito estranho — afinal de contas, as casas não refletiam a personalidade de seus moradores? Paul não se achava capaz de passar por aquelas janelinhas nem que estivesse bem de saúde, o que não era o seu caso. E não serviu de conforto a idéia de que pudesse quebrar um dos vidros e gritar por socorro caso alguém aparecesse antes dele morrer de fome.
Paul começou a sentir as primeiras pontadas de dor na perna. Fora a necessidade do remédio. Seu corpo clamava pelo Novril. Era o seu ter que, não era? Claro que era.
Annie se aproximou e abriu a terceira garrafa de Pepsi.
— Antes de sair trago outras para você. Estou precisando de açúcar. Você não se incomoda, não é?
— Claro que não. Minha Pepsi é sua Pepsi. Annie abriu a tampa de rosca e bebeu avidamente.
Beber de um só gole, dá vontade de cantar, pensou ele. De quem era aquilo? Roger Miller, não era? Muito engraçado isso aparecer na sua cabeça.
Hilariante.
— Vou colocar ele no carro e levar para o meu Lugar Risonho. Vou pegar todas as coisas dele. Guardo o carro no alpendre e enterro ele juntamente com. . .você sabe. . . com os trapos dele. . . num bosque lá das montanhas.
Paul não disse nada. Não parava de pensar em Bossie mugindo, mugindo e mugindo até morrer. Outra grande lição que ele aprendera sobre a vida naquelas paragens era: Vacas mortas não mugem.
— Vou colocar uma corrente bloqueando a entrada da casa. Sei que se a polícia aparecer isso pode levantar suspeitas, mas prefiro assim; senão eles podem se aproximar da casa e ouvir a bagunça que você vai fazer. Pensei em deixá-lo amordaçado, mas seria perigoso, principalmente porque você está tomando remédios que afetam a respiração. Você pode vomitar. Ou ficar com o nariz entupido por causa da umidade. Se o seu nariz entupir e você não puder respirar pela boca. . .
Annie desviou o olhar e se desligou. Ficou tão silenciosa quanto as pedras da parede e tão vazia quanto a primeira garrafa de Pepsi que abriu. Dá vontade de cantar. E Annie não tinha cantado hoje? Pode apostar que sim. Irmãos, como Annie cantara enquanto limpava o quintal! Paul riu sozinho, mas ela não pareceu ter notado. Olhou para ele e piscou os olhos.
— Vou deixar um bilhete na cerca — disse ela bem devagar, como se estivesse organizando os pensamentos. — A uns cinqüenta quilômetros daqui tem uma cidade chamada Steamboat Heaven — não é um nome engraçado para uma cidade? Esta semana está acontecendo o que eles chamam de "a maior feira do mundo''. Todo verão eles organizam essa feira e lá tem muitas pessoas vendendo cerâmica. Vou deixar um bilhete dizendo que fui à Steamboat Heaven dar uma olhada nas peças de cerâmica. Vou dizer também que devo passar a noite lá. Se depois alguém vier me perguntar onde dormi, para que possam chegar os registros do hotel, eu direi que as cerâmicas não eram bonitas e que eu resolvi voltar na mesma noite. Só que me senti cansada. . . sim, é isso o que vou dizer. Vou dizer que encostei o carro no acostamento porque fiquei com medo de dormir no volante. Eu pretendia apenas tirar um cochilo, mas estava tão cansada que acabei dormindo a noite inteira.
Paul estava assombrado com a astúcia de Annie e percebeu, subitamente, que ela estava fazendo uma coisa que ele não podia fazer: brincando de "Você Consegue?" na vida real.
Talvez seja por isso que ela não escreve livros. Ela não precisa.
— Voltarei o mais rápido que puder porque a polícia vai vir até aqui. — continuou ela.
Essa possibilidade não pareceu abalar nem um pouco a estranha serenidade que ela demonstrava, mas Paul tinha lá suas dúvidas de que no fundo ela não estivesse percebendo que a brincadeira estava chegando ao fim.
— Não acho que a polícia venha ainda esta noite, a não ser que seja para dar uma olhada na estrada, mas sei que eles vão aparecer mais cedo ou mais tarde, tão logo tenham certeza de que o policial está desaparecido. Eles vão refazer todo o trajeto dele para tentar descobrir onde foi que ele foi visto pela última vez. Você não acha, Paul?
— Acho.
— Eu devo estar de volta antes deles aparecerem. Se eu sair bem cedinho, quando o dia clarear, acho que terei chegado por volta da hora do almoço. Devo chegar antes deles. Se aquele policial começou a ronda em Sidewinder, deve ter parado em vários lugares antes de vir até aqui. E quando eles aparecerem, você já estará de volta ao quarto, muito bem acomodado. E eu não vou lhe amarrar, nem fechar a sua boca, Paul. Porque da próxima vez, devem ser dois deles; pelo menos dois, você não acha, Paul?
Ele achava.
Annie balançou a cabeça, satisfeita.
— Pois eu posso com dois, se for preciso. — Annie deu um tapinha na bolsa caqui. — Enquanto eu estiver falando com eles lá fora, eu quero que você se lembre desta arma, Paul, antes de abrir a boca. Quero que você se lembre que ela vai ficar aqui o tempo todo quando eles aparecerem amanhã ou num outro dia qualquer. A bolsa vai ficar aberta. Você pode vê-los, Paul, mas se eles o virem — seja sem querer ou por que você tentou alguma coisa como a de hoje — eu tiro a arma da bolsa e começo a atirar. Você já foi o responsável pela morte daquele rapaz.
— Tolice.
Paul achou que Annie fosse maltratá-lo por isso, mas não se incomodou.
Mas ela não fez nada. Annie lhe dirigiu apenas um sorriso calmo e maternal.
— Você sabe que sim. Não vou enganar a mim mesma achando que você se importa com isso, não vou mesmo, mas você sabe que foi o responsável pela morte dele. E não vou me enganar achando que você se importará se duas outras pessoas acabarem morrendo para ajudar você. . . mas não vai adiantar, Paul. Porque se eu tiver que matar dois, eu mato quatro. Eles. . . e nós. E você quer saber de uma coisa? Acho que você ainda quer salvar a sua pele.
— Não muito — respondeu ele — Para lhe dizer a verdade, Annie, a cada dia que passa eu ligo menos para a minha vida.
Annie deu uma risada.
— Já escutei isso antes! Mas é só alguém sentir uma mão a lhe apertar a garganta que a coisa muda de figura! E como muda! Nessas horas, eles gritam, berram e viram um bando de fedelhos!
Não que isso tenha impedido você de seguir em frente, não é, Annie?
— De qualquer maneira, fica o aviso. Se você realmente não se importa mais, então pode gritar assim que eles chegarem. A escolha é sua.
Paul não disse nada.
— Quando eles vierem, eu vou estar lá na frente e dizer, sim, claro, um policial esteve aqui, sim. Eu estava de saída para a feira de cerâmica em Steamboat Heaven quando ele chegou. Vou dizer que ele me mostrou o seu retrato e que eu respondi que não tinha visto você por aqui. Então um deles vai me perguntar: "Isso foi no último inverno, senhorita Wilkes, como pode ter tanta certeza que não o viu?'', e eu vou responder: "Se Elvis Presley ainda fosse vivo e o senhor o visse no último inverno, não se lembraria de ter visto ele?" E ele ia responder que sim, que era provável que sim, mas o que isso tem a ver com o preço do café em Bornéu? Aí eu respondo: "Paul Sheldon é o meu escritor favorito e já vi fotos dele inúmeras vezes." Eu vou ter que dizer isso, Paul. Sabe por quê?
Ele sabia. Paul continuava estarrecido com a esperteza de Annie, apesar de reconhecer que não deveria se surpreender com mais nada que partisse dela. Lembrava-se muito bem da legenda embaixo da foto dela na prisão, tirada entre o fim do julgamento e a volta ao tribunal. Paul lembrava de cada palavra, agoniada? não a mulher DRAGÃO. Annie lê calmamente enquanto espera pela sentença.
— E então, eu vou dizer que o policial fez algumas anotações num bloquinho e me agradeceu pela atenção. Vou dizer que eu o convidei para uma xícara de café, mesmo estando atrasada para sair, e eles me perguntarão por que fiz isso. E eu vou responder que o policial provavelmente devia saber do meu passado e que eu queria que ele entrasse para ter certeza que tudo estava em ordem. Só que ele não quis entrar, tinha que ir a outros lugares. Então eu perguntei se ele não gostaria de levar uma Pepsi gelada com ele, já que o dia estava tão quente, e ele aceitou, dizendo que era muita gentileza.
Annie tomou a segunda Pepsi e segurou a garrafa entre eles. Visto através da garrafa de plástico, o olho de Annie parecia enorme e embaçado como o de um Ciclope, e a cabeça parecia ter um tumor num dos lados.
— Eu vou jogar esta garrafa na vala da estrada, a uns três quilômetros daqui. Só que antes eu vou esfregar a mão dele na garrafa. — disse ela, com um sorriso. — Impressões digitais! Eles vão pensar que ele passou por aqui e foi embora. Isso não é bom, Paul?
Paul ficou ainda mais estarrecido.
— Eles vão subir a estrada atrás dele, mas não vão encontrá-lo. Ele terá simplesmente desaparecido. Puff!
— Puff! — exclamou Paul.
— Eles não vão demorar muito a voltar, eu sei disso. Afinal de contas, se não descobrirem nenhuma pista além desta garrafa, eles são capazes de desconfiar de mim. Afinal de contas, eu sou maluca, não sou? Todos dizem isso. A princípio, acho que eles vão acreditar em mim. Não acho que eles vão querer entrar e revistar a casa logo de primeira. Eles vão procurar por ele em outros lugares antes de voltarem aqui. Nós ainda temos algum tempo. Uma semana, talvez. Annie olhou para ele frente a frente e disse:
— Você vai ter que escrever mais rápido, Paul.
A noite caiu e a polícia não veio. Annie, entretanto, não ficou fazendo companhia a Paul. Ela queria substituir o vidro da janela e catar os cacos e os clipes de papel espalhados pelo gramado.
— Quando a polícia vier amanhã à procura de sua ovelha desgarrada, não queremos que eles encontrem nada fora de ordem, não é, Paul? — dissera ela.
Então deixe eles darem uma olhada embaixo do cortador de grama, minha cara. Se eles derem uma olhadinha lá, vão encontrar um montão de coisas fora de ordem.
Por mais que Paul tentasse fazer sua imaginação tão vívida trabalhar, ele não conseguia idealizar uma situação que os levasse a isso.
— Você não imagina o porquê de eu ter lhe contado tudo isso, Paul? — perguntou ela pouco antes de subir para dar um jeito na vidraça da janela. — O porquê de eu ter lhe contado os meus planos com essa riqueza de detalhes?
— Não — respondeu ele, abatido.
— Por um lado, eu queria que ficasse sabendo do que pode acontecer se você agir como agiu hoje, e o que deve fazer para continuar vivo. Mas também queria que soubesse que eu acabaria com tudo agora mesmo, não fosse o livro. Eu ainda me interesso pelo livro.
Annie deu um sorriso, ao mesmo tempo radiante e pensativo, e lhe assegurou:
— Esse é, realmente, o melhor livro Misery que você já escreveu, e eu quero muito saber como ele vai terminar.
— Eu também, Annie.
Annie olhou para ele, muito surpresa.
— Ora. . . mas você sabe, não sabe?
— Quando começo a escrever um livro, sempre acho que sei como ele vai terminar, mas na verdade nenhum dos meus livros terminou exatamente do jeito que eu imaginava a princípio. Se você parar para pensar, vai ver que não há nada de excepcional nisso. Escrever um livro é como disparar um ICBM*. . . só que o livro corre no tempo, não no espaço. O tempo da narrativa, aquele que os personagens passam vivendo a história; e o tempo real, aquele que o autor leva escrevendo o livro todo. Terminar um romance exatamente daquele jeito que você imaginou no início é como disparar um míssil para o outro lado do planeta e querer que a bomba caia dentro de uma cesta de basquete. Teoricamente, pode funcionar. Muitos autores afirmam com a cara mais lavada que isso é moleza, mas eu duvido.
* ICBM — Inter-Continental Ballistic Missile (Míssil disparado de um continente para outro)
— É, eu compreendo.
— Eu devo ter um excelente sistema de navegação aqui nos meus equipamentos, porque sempre chego perto. E quando se tem uma carga altamente explosiva dentro de um míssil, perto é bom o bastante. Neste momento, por exemplo, eu vejo duas saídas possíveis para o livro. Uma é muito triste. A outra pode não ser um final feliz digno de um filme de Hollywood como você gosta, mas pelo menos lança alguma esperança para o futuro.
Annie ficou alarmada e. . . subitamente, ameaçadora:
— Você não está pensando em matar Misery de novo, está, Paul? Paul deu um sorriso.
— O que você ia fazer, Annie? Me matar? Isso não me mete medo. Eu posso não saber o que vai acontecer a Misery, mas sei muito bem o que vai acontecer a mim... e a você. Eu vou escrever fim na última folha. Você vai ler, e aí você é que vai escrever fim, não é? O fim de nós dois. E este fim, eu nem preciso imaginar. Não importa o que digam, a vida não é muito diferente da ficção. Na maioria das vezes, a gente sabe exatamente como as coisas vão acontecer.
— Mas. . .
— Acho que sei qual dos dois vai ser o fim do livro. Tem oitenta por cento de chance de ser este e, se for mesmo, você vai gostar. Mas mesmo assim, nenhum de nós vai ficar sabendo dos detalhes até que ele esteja escrito, certo?
— É, acho que não.
— Você se lembra daquele anúncio antigo dos ônibus Greyhound? Ele dizia assim: "A viagem já é metade da diversão!"
— De qualquer maneira, está quase no fim, não está?
— Está, já está quase no fim.
Antes de sair, Annie lhe trouxe outra garrafa de Pepsi, um pacote de bolachas, sardinhas, queijo e. . . a comadre.
— Se você me trouxer as folhas batidas e um daqueles blocos, eu posso trabalhar escrevendo à mão. Vai ajudar a passar o tempo.
Annie considerou a idéia por alguns instantes e balançou a cabeça dizendo que não.
— Eu gostaria muito, Paul, mas não pode ser. Eu teria que deixar pelo menos uma luz acesa e não posso arriscar.
A idéia de ser deixado sozinho naquele porão provocou nele uma momentânea onda de pânico, seguida de calafrios em diversas partes do corpo. Paul pensou nos ratos escondidos em suas tocas por entre as fendas da parede de pedra; pensou neles saindo das tocas quando o porão estivesse às escuras; pensou neles farejando a sua debilidade, talvez.
— Não me deixe no escuro, Annie. Por favor, não faça isso comigo.
— É preciso. Se eles virem uma luz acesa no porão, podem parar para investigar, com ou sem corrente na entrada da casa, com ou sem bilhete na cerca. Se eu deixasse uma lanterna, você poderia fazer sinais. Se eu deixasse uma vela, você poderia incendiar a casa. Está vendo como já o conheço bem?
Paul raramente ousava mencionar as vezes em que estivera fora do quarto, porque isto sempre a deixava furiosa; mas o medo de ficar sozinho no escuro o impeliu a dizer:
— Se eu quisesse tacar fogo na casa, Annie, eu poderia ter feito isso há muito tempo atrás.
— Naquele tempo as coisas eram diferentes — respondeu ela, secamente. — Sinto muito que você tenha que ficar no escuro. Sinto, mas você vai ter que ficar. A culpa é toda sua, por isso, pare de se comportar como um fedelho. Preciso ir agora. Se achar que precisa daquela injeção, aplique na perna.
Annie voltou-se e completou:
— Ou no traseiro.
Ela começou a subir as escadas.
— Cubra as janelas! — gritou ele. — Cubra com um lençol. . . ou. . .ou. . . pinte-as de preto ou. . . Pelo amor de Deus, Annie, os ratos! Os ratos!
Annie já estava no terceiro degrau. Ela parou e virou-se para ele com um olhar sombrio e inexpressivo:
— Não tenho tempo para fazer nem uma coisa nem outra. De qualquer maneira, os ratos não vão lhe incomodar. Quem sabe eles não pensam que você é um deles, Paul? Eles podem adotá-lo. . .
Annie riu e começou a subir as escadas, rindo cada vez mais alto. Paul ouviu um clique, as luzes apagaram e Annie continuou rindo e ele garantiu a si mesmo que não ia gritar, não ia implorar, não ia fazer nada daquilo. Mas a umidade pegajosa das sombras e o estrondo da risada de Annie foram demais para ele e Paul começou a gritar para ela não fazer isso com ele, para não abandoná-lo ali, mas ela continuou rindo e ele ouviu um estalido quando a porta foi fechada e a risada dela diminuiu mas continuou presente, a risada dela estava do outro lado da porta, do lado onde havia luz e ele ouviu um trinco ser fechado, outra porta bater e a risada dela diminuiu mais ainda (mas continuou presente), e outro trinco fechou, um ferrolho fechou e a risada dela se distanciou, a risada dela estava lá fora, e mesmo depois dela ligar o carro, dar marcha à ré, colocar a corrente e ir embora, Paul achou que ainda podia ouvi-la. Paul achou que ainda podia ouvir Annie rindo, rindo e rindo.
No centro do porão ficava a bancada de uma velha fornalha escurecida, que lembrou a ele um polvo. Paul esperava poder escutar as badaladas do relógio da sala, mas uma ventania forte de verão, tão comum naquelas noites, não permitiu. Só restou o tempo, arrastando-se interminavelmente. Quando o vento cessava, ele ouvia o canto dos grilos e. . . algum tempo mais tarde começou a ouvir também o barulho furtivo que ele tanto temera: o andar curto e arrastado dos ratos.
Mas não era dos ratos que ele estava com medo, era? Não. Era do policial. A sua maldita imaginação, tão vívida, raramente metia medo nele, mas quando isso acontecia, era um deus-nos-acuda. Deus o acudira quando a coisa começou, mas ela agora simplesmente disparara. O fato de seus pensamentos parecerem irracionais não fazia a menor diferença na escuridão. Na escuridão, as coisas racionais pareciam tolices, e as lógicas, parte de um sonho. Na escuridão, pensava-se com os sentidos. Ele não parava de imaginar o policial voltando à vida — alguma forma de vida — levantando-se por entre o monte de capim em que Annie o escondera, cheio de fiapos espalhados pelo corpo, o rosto coberto de sangue e sem vida, retalhado pela lâmina do cortador de grama. Paul via o policial se arrastando pelo gramado, em direção à casa, com o uniforme rasgado esvoaçando ao sabor do vento; ele o via atravessando a parede como num passe de mágica e aparecendo bem ali no porão; ele o via se arrastando pelo chão imundo de pedra e os barulhos que ele escutava não eram dos ratos, mas do policial se aproximando. E havia um único pensamento no cérebro morto daquele rapaz: Você me matou. Você abriu a boca e me matou. Você atirou um cinzeiro e me matou. Seu porcaria, filho da puta, você me tirou a vida.
A certa altura, Paul sentiu os dedos do policial roçando em seu rosto e deu um grito, ao mesmo tempo em que se jogou para o lado. Suas pernas latejaram. Paul esfregou as mãos furiosamente pelo rosto, atirando longe uma aranha.
A agitação cessou temporariamente a dor nas pernas, aliviou o nervosismo pela necessidade do remédio e diminuiu um pouco o medo. Por outro lado, seus olhos começaram a se acostumar com a escuridão e isso também ajudou. Não que ali houvesse muita coisa para ser vista — a fornalha, os restos de uma pilha de carvão, a mesinha com a sombra das latas e. . . à sua direita. . .que sombra era aquela? Ali, perto daquelas pedras salientes. Paul conhecia aquela sombra. E alguma coisa nela o fez lembrar de uma sensação desagradável. O topo redondo apoiava-se em três pernas. Parecia uma miniatura das máquinas assassinas de The War of the Worlds, de Orson Welles. Paul tentou adivinhar o que era, cochilou, acordou, olhou novamente e pensou: Claro! Devia ter sabido desde o início! Isso é uma máquina assassina. E se existe algum marciano no planeta Terra, ele é a maldita Annie Wilkes. Isso aí é a churrasqueira. O crematório onde ela me fez queimar Carros velozes.
Paul mudou de posição e deu um gemido. Sentia dores nas pernas — especialmente no punhado de carne que restara do seu joelho esquerdo — e também na bacia, o que era um mau sinal. Há dois meses já não sentia mais dores na bacia.
Paul tateou em busca da seringa, mas tornou a colocá-la no lugar. Só uma pequena dose, dissera Annie. Era melhor guardar para depois.
Ao ouvir ruídos num dos cantos do porão, Paul virou imediatamente a cabeça, esperando ver o policial rastejando em sua direção e encarando-o com seu único olho castanho no rosto retalhado: Se não fosse você, eu agora estaria em casa vendo TV, ao lado da minha esposa.
Mas não havia policial nenhum por ali. A sombra indistinta talvez fosse produto da sua imaginação, mas era provável que fosse apenas um rato. Paul decidiu relaxar um pouco. Esta seria uma noite muito comprida.
Paul tirou um cochilo e acordou todo curvado para o lado esquerdo, com a cabeça caída, tal qual um bêbado jogado na rua. Ele se esticou, e as pernas doeram terrivelmente. Ao tentar urinar, Paul sentiu tanta dificuldade que pressentiu uma infecção urinária a caminho. Tornara-se tão vulnerável. Tão vulnerável a tudo. Paul colocou a comadre no chão e apanhou a seringa.
Uma pequena dose de escopolamina, dissera Annie. Pode ser que sim, mas pode ser também uma dose forte de alguma outra coisa. Quem sabe da mesma droga que ela usava em pessoas como Ernie Gonyar e "Queenie" Beaulifant?
Os lábios de Paul se abriram num pequeno sorriso. E isso era tão ruim assim? A resposta foi um estrondoso NÃO! Isso era ótimo. As estacas desapareceriam para sempre. E as marés baixas chegariam ao fim. Para sempre.
Com estes pensamentos em mente, Paul procurou sentir uma das veias da perna esquerda. E apesar de nunca ter aplicado uma injeção em si mesmo em toda a sua vida, Paul o fez com eficiência e com certo entusiasmo.
Paul não morreu, mas também não dormiu. A dor foi embora e ele se deixou levar como um balão de puro pensamento, separado do corpo e preso apenas por um fio comprido.
Você estava se passando por Scheherazade para você mesmo, pensou ele enquanto seus olhos contemplavam a churrasqueira. Paul pensou nos raios mortais dos marcianos incendiando Londres.
Paul lembrou-se subitamente de uma música de um grupo chamado The Trammps, que dizia mais ou menos assim: Burn, baby, burn, burn the mother down. . .*
Uma luz.
Uma idéia.
Burn the mother down. . .
Paul adormeceu.
* Burn the mother down = Queime sua mãe inteirinha.
Quando acordou, o porão estava iluminado pela luz nevoenta da manhã. Em cima da mesinha, um rato enorme com o rabo graciosamente enrolado em volta do corpo roía um pedaço de queijo que Annie deixara para ele.
Paul deu um grito, jogou-se para o lado e gritou ainda mais por causa das pernas. O rato desapareceu.
Annie deixara algumas cápsulas para ele. Embora soubesse que o Novril não aliviaria mais suas dores, era melhor do que nada.
Além do mais, com ou sem dor, está na hora da sua dose matinal, não é, Paul?
Ele tomou duas cápsulas com Pepsi e se recostou nas almofadas, sentindo uma ponta de dor nos rins. Tinha alguma coisa de errado com eles. Ótimo.
Marcianos. Máquinas assassinas marcianas.
Paul olhou para a churrasqueira esperando que ela se parecesse com uma churrasqueira na luz da manhã: uma churrasqueira e nada mais. E ficou surpreso ao descobrir que ela ainda se parecia com uma daquelas pomposas máquinas assassinas de Welles.
Você tinha tido uma idéia — qual foi?
A música dos Trammps voltou à sua cabeça:
Burn, baby, burn, burn the mother down!
Mesmo? E que mãe era essa? Ela não deixou nem ao menos uma vela.
Os rapazes dos trabalhos forçados lhe mandaram um recado.
Você não tem que queimar nada agora. Nem aqui.
Do que vocês estão falando, rapazes? Será que vocês podem me. . .
E então veio a idéia, de uma só vez, da mesma maneira como todas as boas idéias sempre surgem. Perfeita, impecável e tão maravilhosamente convincente por sua crueldade.
Burn the mother down...
Paul olhou para a churrasqueira esperando sentir de novo a dor pelo que ele fizera — pelo que ela o obrigara a fazer. E ela veio, mas fraca e suave; a dor nos rins era pior. Como foi mesmo que ela disse ontem? Tudo o que fiz foi. . . fazer você se livrar de um livro ruim e escrever o melhor livro que você jamais escreveu em toda a sua vida. . .
Talvez houvesse uma ponta de verdade nisso. Talvez ele tivesse superestimado Carros velozes.
Você é que está tentando se convencer disso, sussurrou uma voz dentro dele. Se conseguir sair dessa, vai acabar achando que nunca precisou do pé esquerdo — afinal de contas, são cinco unhas a menos para cortar. E hoje em dia, eles fazem maravilhas com próteses. Nada disso, Paul. Aquele era um ótimo livro e aquele era um ótimo pé. Não vamos nos enganar.
Ainda assim, uma parte mais impenetrável de sua mente desconfiava que pensar dessa forma é que era enganar a si mesmo.
Enganar, não, Paul. Vamos encarar a verdade. Mentir para si mesmo. Um cara que inventa histórias é um cara que mente para todas as pessoas. Por isso, não poderá jamais mentir para si mesmo. Parece engraçado, mas é verdade. Se começar com isso, pode fechar a máquina e virar corretor ou qualquer outra coisa, porque você já terá dado o seu recado.
Mas, então, o que era verdade? A verdade, caso vocês insistam, é que ele tinha ficado bastante ofendido com a crescente recusa da crítica especializada em considerá-lo algo mais que um "escritor popular" (que para ele significava apenas um degrau acima de um cara pago para escrever por outro). Essa denominação não se enquadrava à imagem que ele fazia de si mesmo como um Escritor Sério, que escrevia romances melosos apenas para subsidiar (toque de trombetas, por favor!) o seu TRABALHO DE VERDADE! Ele detestava Misery? Será que detestava? Se assim fosse, como fora tão fácil se embrenhar outra vez no mundo dela? Mais que fácil; uma delícia, assim como entrar numa banheira de águas mornas com um bom livro numa das mãos e uma cerveja gelada na outra. Talvez o que ele detestasse fosse o fato do rosto de Misery na capa dos livros ofuscar a foto do autor, impedindo que os críticos reconhecessem nele um novo Mailer ou um novo Cheever — que reconhecessem nele uma pessoa importante. E não teria sido essa a razão dos seus "livros sérios'' terem se tornando cada vez mais acanhados e motivo de riso? Olhem para mim! Olhem como sou bom! Ei, rapazes! Esse livro tem um enfoque diferente! Esse livro tem alguns trechos com fluxo da consciência! Esse é o meu TRABALHO DE VERDADE, seus bundões! Não se Atrevam a virar as costas para mim! Não se Atrevam, seus porcarias, seus fedelhos! Não se atrevam a dar as costas para o meu TRABALHO DE VERDADE! Não se ATREVAM OU eu. . . eu. . .
Eu, o quê? O que você vai fazer? Cortar o pé deles? Serrar o dedo deles?
Paul foi tomado por uma súbita tremedeira. Precisava urinar. Ele apanhou a comadre e finalmente conseguiu urinar, embora doesse mais que da vez anterior. Paul gemeu e continuou a gemer por muito e muito tempo.
Finalmente, o Novril começou a fazer efeito — embora só um pouquinho — e ele cochilou.
Abrindo os olhos pesados, Paul vislumbrou a churrasqueira.
Como você ia se sentir se ela o fizesse queimar A volta de Misery? perguntou uma sussurrante voz interior. Paul teve um sobressalto, mas, ainda sonolento, percebeu que isto o machucaria, sim, machucaria muito. Isto faria com que a dor de ver Carros velozes virando fumaça se parecesse com a pontada nos rins, comparada com a dor que sentira quando Annie descera o machado com força sobre a sua perna, arrancando-lhe o pé e exercendo sua autoridade editorial sobre ele.
Ele percebeu também que não era bem essa a pergunta.
A pergunta era: Como Annie ia se sentir?
Perto da churrasqueira havia uma mesa com uma meia dúzia de latas e potes.
Uma dessas latinhas era de fluido para acender carvão em churrasqueira.
E se fosse Annie a gritar de dor? Você não fica curioso para saber como ela ia ficar? Nem um pouquinho curioso? Quem com ferro fere, com ferro será ferido, não é assim que diz o ditado? Só que o ditado foi inventado muito antes dos Fluidos Ronson Fast-Lite.
Burn the mother down.
Paul adormeceu com um ligeiro sorriso no rosto pálido e debilitado.
Às três e quinze da tarde, Annie apareceu muito silenciosa, o que parecia indicar mais cansaço do que um estado depressivo. Seus cabelos naturalmente ondulados estavam amassados com o formato do capacete que ela havia usado. Paul perguntou se tudo tinha corrido bem e ela balançou a cabeça, afirmativamente.
— Sim, acho que sim. Se não tivesse tido problemas com a bicicleta, já teria chegado há uma hora. A corrente estava enferrujada. Como estão suas pernas, Paul? Quer tomar outra dose antes de subir?
Depois de quase vinte horas naquele lugar úmido, as pernas de Paul pareciam ter milhares de alfinetes espetados. Ele precisava urgentemente de outra dose, mas não ali. Ali não ia adiantar.
— Acho que estou bem.
Annie virou de costas e se agachou.
— Vamos, segure em mim. Mas não se esqueça do que eu disse sobre tentar me sufocar. Estou exausta e nem um pouco a fim de brincadeiras.
— Eu também não estou para brincadeiras.
— Ótimo.
Annie o levantou com um grunhido e Paul teve que engolir um grito de aflição. Annie se dirigiu para as escadas com a cabeça ligeiramente inclinada e ele percebeu que ela estava — ou devia estar — olhando para a mesinha. A olhadela rápida e aparentemente casual de Annie lhe pareceu longa demais e ele teve certeza que ela dera pela falta da lata de fluido, escondida na cueca. Tantos meses depois de seus primeiros furtos e ele finalmente arranjara coragem de roubar mais alguma coisa. . . Se as mãos de Annie deslizassem pela sua perna, elas iam encontrar algo mais que um simples traseiro.
Com a mesma expressão no rosto, Annie desviou os olhos da mesa e Paul sentiu um alívio tão grande que o sacolejo da subida tornou-se quase tolerável. Annie sabia como manter o rosto impassível quando o desejava, mas Paul achava — ou esperava — que a tivesse enganado.
Que dessa vez ele a tivesse realmente enganado.
— Acho que agora eu aceitaria aquela dose, Annie — disse Paul quando ela o colocou na cama.
Annie examinou por alguns instantes o rosto lívido e suado de Paul, antes de sair do quarto.
Assim que ela se retirou, Paul apanhou a latinha da cueca e a enfiou embaixo do colchão. Ele nunca mais escondera nada no colchão nem pretendia deixar a lata ali por muito tempo, apenas até o final do dia. Mais tarde ele a colocaria num lugar seguro.
Depois de lhe aplicar a injeção, Annie colocou um bloco de papel e alguns lápis bem apontados no peitoril da janela, e empurrou a cadeira de rodas para perto da cama.
— Vou dormir um pouco. Se algum carro chegar, eu escuto; mas se não aparecer ninguém, sou capaz de dormir até amanhã de manhã. Se resolver trabalhar, a cadeira está aí perto e as folhas datilografadas, ali no chão. Mas eu não aconselharia até que suas pernas fiquem mais aquecidas.
— Neste exato momento, não conseguiria trabalhar, mas acho que à noite provavelmente eu poderia fazer um grande esforço nesse sentido. Eu entendi muito bem o que você quis dizer com trabalhar mais rápido.
— Fico feliz, Paul. Quanto tempo ainda acha que precisa?
— Em condições normais, eu diria um mês. Se conseguir trabalhar no mesmo ritmo destes últimos dias, duas semanas. E se fizer realmente um superesforço, cinco dias, uma semana, talvez. O livro vai estar no rascunho, mas estará acabado.
Annie deu um suspiro e ficou olhando as mãos, melancolicamente.
— Sinto que temos menos de duas semanas.
— Eu gostaria que você me prometesse uma coisa.
Annie o encarou sem raiva ou desconfiança, apenas ligeiramente curiosa.
— O que é?
— Que não lesse as folhas até eu terminar. . .ou até que eu tenha que. . .você sabe. . .
— Parar?
— É, ou até que eu tenha que parar. Só assim você vai sentir o final como um todo. Vai ser muito mais emocionante.
— Esse vai ser um livro muito bom, não é?
— Vai — respondeu Paul com um sorriso — Vai ser o melhor.
Por volta das oito da noite, Paul passou cuidadosamente da cama para a cadeira. Paul não ouvia o menor barulho lá em cima desde que as molas da cama rangeram, anunciando que Annie fora dormir às quatro horas da tarde. Ela devia realmente estar muito cansada.
Ele apanhou a latinha de fluido e empurrou a cadeira para o seu "local de trabalho" onde ficavam: a máquina com três dentes faltando no sorriso antipático, a cesta de lixo, os lápis, os blocos de papel, as folhas datilografadas e uma pilha de folhas de rascunho — algumas que ele ainda ia utilizar e outras que iriam para a cesta de lixo.
Ou teriam ido, anteriormente.
Ali estava, ainda que imperceptível, a porta para um outro mundo. Ali estava também a sua própria alma — como desenhos em série que, com o correr das folhas, dão a ilusão de movimento.
Com a longa prática adquirida, Paul manobrou a cadeira e parou entre a pilha de folhas e a parede. Ele se deteve por alguns instantes para ver se escutava algum barulho e, em seguida, puxou um pedaço do rodapé de uns vinte centímetros, que ele descobrira estar solto há cerca de um mês. Ele sabia pela fina camada de poeira acumulada (daqui a pouco você vai estar espalhando fios do seu próprio cabelo só para ter certeza) que Annie ignorava aquele pedaço solto do rodapé.
Ali dentro havia um pequeno buraco cheio de poeira e cocô de rato.
Paul escondeu a latinha de Fast-Lite e recolocou o rodapé no lugar. Por poucos segundos, Paul ficou com medo que ela não fosse encaixar (Meu Deus! Annie tinha a visão tão apurada!), mas ela acabou entrando perfeitamente.
Só depois de observar atentamente o rodapé, foi que ele apanhou o bloco e um dos lápis e se embrenhou pela brecha do papel.
Paul escreveu quatro horas seguidas — até a ponta dos três lápis terminar —, empurrou a cadeira até a cama, deitou-se e caiu imediatamente no sono.
Paul parou de escrever ao ouvir o motor de um carro se aproximando e ficou surpreso por se sentir tão calmo — o único sentimento dele naquele exato momento era uma certa contrariedade por ter sido interrompido quando a história fluía como o vôo de uma borboleta e o inquietava como uma picada de abelha. As botas de Annie ecoaram pelo corredor.
— Esconda-se! — vinha dizendo ela.
Ao entrar, Annie percebeu que ele já havia se afastado da janela. Seu rosto estava tenso e tinha uma expressão implacável. A bolsa caqui pendurada no ombro estava com o fecho aberto. Ela deu uma olhadela rápida no peitoril da janela para ver se não havia nenhum objeto dele à vista.
— É a polícia. — Annie parecia tensa, mas controlada. A bolsa caqui estava bem ao alcance da mão direita. — Você vai se comportar, Paul?
— Vou.
Annie olhou para o rosto dele atentamente.
— Vou confiar em você — disse ela finalmente, fechando a porta, mas sem se dar ao trabalho de passar a chave.
O carro entrou pela alameda do jardim. O ronco suave do motor era a marca registrada do Plymouth 442. Assim que ouviu a porta da tela da cozinha bater, Paul se aproximou da janela o suficiente para espiar a cena sem ser visto. Annie estava parada e o carro parou na frente dela. O policial que vinha dirigindo saiu do carro quase no mesmo local onde o jovem guarda proferira suas últimas quatro palavras. . . mas terminavam aí as semelhanças. Aquele primeiro policial que aparecera era um jovem franzino, recém-saído da adolescência e novato na polícia, que vinha colher dados sem grande importância sobre um escritor desmiolado que sofrera um acidente e que se arrastara para morrer no bosque ou saíra alegremente dos destroços com o polegar levantado a pedir carona.
O homem que agora saía do carro devia ter uns quarenta anos de idade e tinha os ombros enormes. Seu rosto tinha o formato retangular e uma expressão firme, com apenas algumas rugas em volta dos olhos e dos cantos da boca. Annie era uma mulher avantajada, mas na frente dele chegava quase a parecer miúda.
Havia ainda outra diferença. O policial que Annie matara viera sozinho, mas desse carro saiu ainda um homem baixo, à paisana, que tinha os ombros curvados e os cabelos louros e ralos. Davi e Golias, pensou ele. Mutt e Jeff. Jesus Cristo!
O policial à paisana deu apenas alguns passos para fora do carro. Ele parecia velho e cansado, e tinha o rosto de um homem que está morrendo de sono. . . exceto pelos olhos azul-claros. Os olhos estavam atentos, alertas. . . Paul julgou que ele fosse um homem ágil.
Os dois cercaram Annie. Ela começou a falar, olhando para cima quando se dirigia a Golias, olhando para baixo quando se dirigia a Davi. Paul ficou imaginando o que aconteceria se ele quebrasse o vidro e gritasse por socorro novamente. Achava que eles tinham oitenta por cento de chance de agarrá-la. Oh, Annie era rápida, mas o policial corpulento parecia ser ainda mais rápido, apesar do tamanho, e forte o bastante para arrancar urna árvore de tamanho médio com raiz e tudo. O andar acanhado do policial à paisana podia ser propositalmente ilusório, assim como sua expressão sonolenta. Paul achava que eles podiam com ela. . . exceto pelo fator surpresa. Eles ficariam surpresos com os gritos, não ela. E nisso, Annie levava vantagem.
Além disso, o policial à paisana estava com o casaco todo abotoado, apesar do calor. Se Annie atirasse primeiro em Golias, talvez conseguisse apontar a arma para o rosto de Davi antes dele desabotoar aquele maldito casaco e sacar o revólver. Acima de tudo, aquele casaco abotoado indicava que Annie tinha razão: aquela era apenas uma visita de rotina.
Até o momento.
Eu não o matei, você sabe. Você o matou. Se tivesse ficado com a boca fechada, eu o teria despachado. Ele ainda estaria vivo. . .
E ele acreditava nisso? Claro que não! Mas por um momento ele sentiu um doloroso sentimento de culpa, como uma punhalada. E ele ia ficar de boca fechada só porque Annie tinha vinte por cento de chance de acabar com eles dois também?
O sentimento de culpa voltou e foi embora. A resposta para essa pergunta também era não. Seria louvável atribuir a si mesmo tamanho altruísmo, mas não era bem este o caso. E o caso era simples: ele mesmo queria cuidar de Annie Wilkes. O máximo que eles poderiam fazer era colocá-la na prisão, sua cadela, mas eu sei como fazer você sofrer.
Claro que havia sempre a possibilidade deles farejarem um rato. Caçar ratos, afinal de contas, era o trabalho deles e os dois deviam conhecer o passado de Annie. Se era assim que as coisas deviam acontecer, então, que acontecessem. . . mas Paul achava que Annie seria capaz de escapar da polícia uma última vez.
Ele agora estava bem a par da situação. Depois daquela longa noite de sono, Annie passara a ouvir constantemente o rádio e o policial desaparecido — cujo nome era Duane Kushner — estava sempre no noticiário. Eles revelaram que ele estava seguindo pistas de um escritor famoso chamado Paul Sheldon, mas o desaparecimento de Kushner não foi relacionado com o desaparecimento do próprio Paul nem por suposição. Pelo menos, não até o momento.
Com a neve derretida pela chegada da primavera, o Camaro foi rolando oito quilômetros pelo leito do rio e não fosse por uma simples obra do acaso, teria ficado mais um mês ou até um ano no meio da floresta sem ser descoberto. Um helicóptero da Guarda Nacional sobrevoava a Reserva numa missão de combate às drogas (em outras palavras, à procura de plantações de maconha) quando os policiais viram o reflexo do sol no que restara do pára-brisa do Camaro. Eles desceram numa clareira próxima para ver de perto e encontram o carro. As batidas violentas que ele recebera ao ser carregado pelas águas acabaram por encobrir a gravidade do acidente em si. O rádio não informava se o carro deixara rastros de sangue para servir de análise para a perícia (se é que uma análise fora realizada), mas Paul sabia que uma análise minuciosa acusaria poucos mas preciosos rastros de sangue — o carro passara quase toda a primavera com a neve derretida escoando por dentro dele.
No Colorado, todas as atenções estavam voltadas para o policial Duane Kushner, o que podia ser comprovado pela presença daqueles dois visitantes na casa de Annie. Até o momento, todas as suspeitas recaíam em três aspectos legais: contrabando de bebida; maconha; cocaína. Era possível que Duane tivesse descoberto, ainda que casualmente, um armazenamento, uma plantação ou uma destilaria de uma daquelas três substâncias quando procurava pelo escritor recém-chegado à região. Como as esperanças de encontrar Duane com vida começassem a se dissipar, o assunto em questão passou a ser o motivo dele ter saído sozinho para fazer uma patrulha. Paul duvidava que a polícia do Colorado tivesse recursos suficientes para financiar um sistema de patrulhamento em duplas, mas era evidente que eles estavam à procura de Kushner em grupos de dois. Para não correr nenhum risco.
Golias apontou para a casa. Annie deu de ombros e balançou a cabeça. Davi disse alguma coisa. Pouco depois, Annie pareceu concordar e os conduziu pela alameda que levava à cozinha. Paul ouviu as dobradiças da porta rangerem e eles entraram. O barulho de tantos passos ali dentro era aterrorizante, quase uma profanação.
— A que horas mais ou menos ele esteve aqui? — perguntou Golias; tinha que ser Golias — a voz era grossa, com sotaque do meio-oeste e castigada pelo fumo.
Por volta das quatro, disse ela. Pouco antes, pouco depois. Ela tinha acabado de cortar a grama e não estava usando relógio. Era um dia muito quente; disso ela se lembrava bem.
— Quanto tempo ele esteve aqui, senhora? — perguntou Davi.
— Senhorita, por favor.
— Desculpe-me.
Annie disse que não poderia ter certeza, mas que ele não se demorara muito tempo. Uns cinco minutos, talvez.
— Ele lhe mostrou algum retrato?
— Claro. Foi por isso que ele veio.
Paul estava assombrado com a calma e a cordialidade de Annie.
— E a senhorita tinha visto aquele homem do retrato?
— Claro que sim. Era Paul Sheldon, eu o reconheci imediatamente. Tenho todos os livros dele. Gosto deles demais. Isso deixou o policial Kushner desapontado. Ele disse que se era esse o caso, eu devia saber o que estava falando. Ele parecia desanimado e também parecia estar com muito calor.
— É, estava muito quente naquele dia — disse Golias e Paul ficou alarmado com a proximidade da voz dele. Na sala? Quase certo que sim. Apesar do tamanho, ele se movimentava como um lince.
A voz de Annie também estava mais próxima. Os policiais haviam passado para a sala, mesmo sem serem convidados, e ela viera atrás deles. Eles deviam estar querendo dar uma olhada na casa.
Annie ainda parecia estar calma, embora seu escritor de estimação estivesse a poucos metros deles apenas. Ela contou a eles que convidara o policial para um café gelado, mas ele recusara. Ela então perguntou se ele não queria levar uma garrafa de. . .
— Por favor, cuidado com isso! — Annie interrompeu a si mesma, elevando o tom de voz. — Gosto muito das minhas coisas e algumas delas são bastante frágeis.
— Desculpe.
Aquela voz baixa e sussurrante devia ser de Davi, uma voz ao mesmo tempo humilde e ligeiramente assustada. Em outras circunstâncias, aquele tom de voz para um policial poderia parecer engraçado, mas este não era o caso e Paul não achou graça nenhuma. Sentado bem esticado, com as mãos segurando firmemente os braços da cadeira, Paul ouviu o barulho suave de um objeto sendo colocado cuidadosamente no lugar (o pingüim sentado no bloco de gelo, talvez). Paul imaginou que Annie estivesse remexendo a bolsa com as mãos e só via a hora de um dos policiais — Golias, provavelmente — perguntar a ela que diabo havia ali dentro. E aí, começaria o tiroteio.
— O que a senhorita estava dizendo? — perguntou Davi.
— Eu perguntei a ele se não queria levar uma garrafa de Pepsi, afinal, o dia estava tão quente... Eu sempre deixo as garrafas na geladeira, bem perto do congelador. Elas ficam geladas, mas não chegam a congelar. Ele respondeu que seria muito gentil de minha parte. Ele era um rapaz muito educado. O senhor poderia me responder como podem permitir a um rapaz tão novo como ele sair assim sozinho?
— Ele tomou o refrigerante aqui? — perguntou Davi, ignorando a pergunta de Annie. A voz dele estava tão perto. Paul percebeu que ele devia estar parado no corredor que dava para o banheiro e o quarto de hóspedes. Paul se esticou mais ainda na cadeira e seu coração disparou.
— Não — respondeu Annie, mais calma que nunca. — Ele levou a garrafa com ele. Disse que precisava ir andando.
— Para onde vai esse corredor? — perguntou Golias.
E Paul ouviu o passo das botas, a princípio abafado pelo tapete da sala, tornar-se mais nítido quando ele passou para o chão de tacos do corredor.
— Dá num banheiro e num quarto vazio. Eu durmo ali algumas vezes, quando faz calor. Se quiser, pode dar uma olhada, mas garanto ao senhor que não há nenhum policial amarrado no pé da minha cama.
— Não, tenho certeza que não — retrucou Davi. Surpreendentemente, os passos e as vozes começaram a diminuir, indo em direção à cozinha.
— Ele lhe pareceu perturbado com alguma coisa?
— Nem um pouco. Apenas cansado e com calor. A respiração de Paul começou a voltar ao normal.
— Nem preocupado com nada?
— Não.
— E não disse para onde iria em seguida?
Os policiais provavelmente não devem ter dado conta, mas os ouvidos já acostumados de Paul perceberam nela um momento de hesitação — aquilo podia ser uma armadilha, uma ratoeira pronta para disparar agora ou dentro de alguns instantes.
— Não — disse ela, finalmente. — Mas ele seguiu para oeste. Deve ter ido em direção a Springer Road, para o lado daquelas fazendas.
— Muito obrigado por ter colaborado conosco, senhorita — disse Davi — Pode ser que a gente volte para fazer mais perguntas.
— Está bem, fiquem a vontade. Não tenho tido muita companhia ultimamente.
— A senhorita se incomoda de nos mostrar o celeiro? — perguntou Golias, subitamente.
— Claro que não, mas não deixem de dizer "olá" quando entrarem.
— Dizer "olá" para quem, senhorita? — perguntou Davi.
— Ora, para Misery, a minha porca.
Annie estava parada na porta olhando para ele tão fixamente, mas tão fixamente, que ele começou a sentir o rosto queimar e percebeu que estava ficando ruborizado. Os policiais haviam ido embora há quinze minutos.
— Tem alguma coisa de errado com o meu rosto? — perguntou ele, finalmente.
— Por que você não gritou?
Antes de entrar no carro, os policiais fizeram um ligeiro cumprimento com o chapéu, mas nenhum dos dois sorriu. Mesmo assistindo a cena de um ângulo reduzido, Paul pôde perceber a expressão que eles tinham no olhar. Eles sabiam quem era ela.
— Eu fiquei esperando você gritar o tempo todo — prosseguiu ela. — Eles teriam pulado em cima de mim.
— Pode ser que sim, pode ser que não.
— Então por que não gritou?
— Annie, se você passar a vida inteira achando que o pior vai sempre acontecer, você vai ter que se enganar uma vez ou outra.
— Não banque o espertinho comigo!
Paul percebeu que Annie parecia impassível, mas estava profundamente confusa. O silêncio de Paul não se encaixava na visão que ela alimentava do mundo como uma luta constante: A Boa Annie versus o time insuperável e brigão dos Fedelhos Porcarias.
— Quem está bancando o espertinho? Eu disse que não ia abrir a boca e não abri. Quero terminar o meu livro relativamente em paz. Quero terminá-lo para você.
Annie olhou para ele desconfiada, querendo acreditar, receando acreditar. . . e finalmente acreditando. E ela fazia bem em acreditar, porque ele estava falando a verdade.
— Então trate de trabalhar — disse ela ternamente — Trate de pegar no livro imediatamente. Você viu o jeito com que eles olharam para mim.
Os dois dias subseqüentes transcorreram tão tranqüilos quanto os que precederam a visita de Duane Kushner — era até possível duvidar que Duane Kushner tivesse algum dia aparecido. Paul escrevia sem parar. Ele desistira temporariamente da máquina de escrever e Annie a colocara no console embaixo do quadro com o Arco do Triunfo, sem dar uma palavra. Naqueles dois dias, Paul encheu três dos quatro blocos de rascunho. Quando terminasse com eles, passaria a escrever nas folhas de datilografar. Annie apontava a meia dúzia de lápis Berol Black Warrior, ele escrevia até as pontas terminarem e ela os apontava novamente. Os lápis iam diminuindo gradualmente de tamanho enquanto Paul se sentava ao sol, de frente para a janela, e se debruçava sobre a história. De vez em quando, ele agitava distraidamente o dedão do pé direito no ar, como a coçar a sola do pé esquerdo que não existia mais, olhando pela brecha no papel. E ela se abrira de tal modo que o livro caminhava para o clímax da forma mais natural, como sempre acontece com os melhores livros. Paul enxergava tudo com clareza: três grupos distintos, mas todos firmemente decididos, caminhavam pelas cavernas dentro do rosto da deusa; dois deles, com intenção de matar Misery e o último — formado por Ian, Geoffrey e Hezekiah, para salvá-la; enquanto isso, a aldeia dos Bourkas ardia em chamas e os poucos sobreviventes se aglomeravam na saída da caverna — no ouvido esquerdo da deusa — prontos para acabar com qualquer um que ousasse sair lá de dentro com vida.
No terceiro dia após a visita de Davi e Golias, o transe hipnótico dos Bourkas encontrava-se bastante abalado, mas não de todo destruído, quando uma caminhonete creme da Ford com os dizeres KTKA/Grand Junction pintados na porta invadiu o jardim de Annie. A parte traseira da caminhonete estava apinhada de equipamentos de vídeo.
— Meu Deus! — exclamou Paul, entre bem-humorado, surpreso e aterrorizado — Que bagunça é essa?
A caminhonete mal estacionara e um rapaz de calça desbotada e camiseta pulou fora dela. Ele trazia nas mãos um objeto grande e preto e por uma fração de segundos Paul pensou que fosse uma bomba de gás lacrimogêneo. Quando ele pousou o objeto no ombro e se virou para a casa, Paul percebeu que era uma câmera. Uma garota bonita saiu pela porta da frente ajeitando os cabelos, e antes de se colocar frente à câmera, parou para dar uma olhada final na maquiagem no espelho retrovisor.
Os olhos do mundo exterior — tão afastados da Mulher Dragão nos últimos anos — voltava a atacar violentamente.
Paul afastou a cadeira o mais rápido possível, esperando ter saído da janela a tempo.
Bem, se você quiser ter certeza de que não apareceu, é só dar uma olhada no noticiário das seis, pensou ele ao mesmo tempo que tapava a boca com as mãos, para abafar o riso.
A porta de tela da cozinha se escancarou.
— Caiam fora daqui! — gritou Annie — Saiam já da minha casa!
— Senhorita Wilkes, nós gostaríamos de. . . — disse uma voz ao longe.
— Vocês gostariam é de um tiro no traseiro se não derem o fora daqui!
— Senhorita Wilkes, eu sou Glenna Roberts da KTKA. ..
— Você podia ser o Jesus Cristo do planeta Marte! Saiam da minha casa se não quiserem MORRER!
— Mas. . .
PUM!
Annie pelo amor de Deus você matou a repórt. . .
Paul chegou a cadeira para a frente e deu uma espiada. Ele não tinha outra escolha — precisava dar uma olhada. E ficou aliviado ao ver que Annie atirara para o alto. Mas foi o bastante. Glenna Roberts se jogou de cabeça dentro da caminhonete. O cinegrafista virou a câmera para Annie; Annie virou a espingarda para o cinegrafista. O rapaz — achando que era mais jogo continuar vivo para ver o Grateful Dead novamente do que filmar a Mulher Dragão — entrou correndo na caminhonete, que deu marcha à ré antes mesmo dele fechar a porta.
Com a espingarda na mão, Annie ficou observando eles irem embora, antes de voltar vagarosamente para casa. Paul ouviu quando ela largou a espingarda na mesa e veio para o quarto. Annie parecia pior do que nunca. Seu rosto estava pálido, e tinha uma expressão furiosa; ela olhava de um lado para o outro, inquieta.
— Eles voltaram — sussurrou ela.
— Vá com calma.
— Eu sabia que esses fedelhos acabariam voltando. E eles voltaram.
— Eles já foram embora, Annie. Você os expulsou.
— Eles nunca vão embora. Alguém deve ter dito a eles que aquele policial esteve na casa da Mulher Dragão antes de desaparecer. E aqui estão eles!
— Annie. . .
— Você sabe o que eles querem?
— Claro, já lidei muito com a imprensa. Eles querem as duas mesmas coisas de sempre: que você cometa algum erro grave enquanto eles estiverem gravando e que alguém pague uns martínis no final da tarde. Mas, Annie, você precisa ficar cal. . .
— É isso o que eles querem! — disse ela, arranhando o rosto com as unhas até sair sangue.
— Annie, pare com isso!
— E mais isso!
Annie deu uma bofetada em si mesma, deixando a marca dos dedos na bochecha esquerda.
— E mais isso!
Outra bofetada, ainda mais forte, que espalhou o sangue que lhe corria pela bochecha direita.
— Pare com ISSO! — gritou ele.
— É isso o que eles querem! — respondeu ela, aos gritos, esfregando as mãos pelo rosto e estendendo-as sujas de sangue para que ele visse. Annie saiu do quarto.
Paul só conseguiu escrever muito tempo depois. A princípio, a imagem de Annie arranhando o rosto não lhe saía da cabeça e o trabalho seguiu lentamente. Ele percebeu, entretanto, que era inútil pensar nela e que era preciso terminar o livro. Logo a história o envolveu e ele se embrenhou pela brecha do papel.
E como sempre acontecia naqueles dias, Paul se entregou ao trabalho com uma abençoada sensação de alívio.
No dia seguinte, apareceram mais policiais, só que da polícia municipal, não da estadual. Com eles veio um homem franzino carregando uma maleta que só podia ter uma máquina de escrever. Sempre com o rosto impassível, Annie ficou conversando com eles alguns minutos no jardim antes de fazê-los entrar.
Sentado silenciosamente com um maço de folhas no colo (o último bloco de rascunho terminara na noite passada), Paul escutou Annie prestando depoimento à polícia. Ela repetiu exatamente a mesma história que contara a Davi e Golias quatro dias atrás. Para ele, aquilo tudo não passava de pura amolação. E ficou estarrecido ao perceber que estava começando a sentir pena de Annie Wilkes.
O policial de Sidewinder que fez a maioria das perguntas, começou explicando a Annie que ela poderia exigir a presença de um advogado, mas ela recusou a proposta e simplesmente repetiu o que já dissera. Paul percebeu que ela não se contradisse uma só vez.
Eles ficaram na cozinha cerca de meia hora e, no final, o policial perguntou como ela tinha conseguido aqueles ferimentos horríveis no rosto.
— Foi durante a noite — respondeu ela — Tive um pesadelo.
— Que tipo de pesadelo? — perguntou o policial.
— Sonhei que as pessoas se lembravam de mim depois de todos esses anos e começavam a aparecer por aqui novamente.
Quando eles partiram, Annie veio até o quarto. Ela tinha no rosto uma expressão distante e infeliz.
— Isso aqui está ficando muito movimentado — observou ele, com um sorriso.
Annie continuou séria.
— De quanto tempo ainda precisa?
Paul hesitou alguns instantes. Olhou para as folhas datilografadas e para a pilha de folhas escritas à mão.
— Dois dias — disse ele, voltando a olhar para ela. — Talvez três.
— Da próxima vez eles vão trazer um mandato de busca — disse Annie, saindo do quarto antes que Paul pudesse responder qualquer coisa.
Annie tornou a aparecer à meia noite e quinze.
— Você já devia ter ido para a cama há uma hora atrás, Paul.
Paul levantou os olhos surpreendido por ter sido tirado do mundo encantado do livro — Geoffrey acabara se tornando o herói dessa história e estava frente a frente com a horrenda abelha rainha, com quem teria que lutar para salvar a vida de Misery.
— Não faz mal. Daqui a pouco eu durmo. Tem coisas que se você não escreve na hora, depois não consegue mais.
Paul fez um gesto vago com a mão dolorida. No dedo indicador, havia surgido um calombo — metade calo, metade bolha — no local onde o lápis exercia maior pressão. As cápsulas poderiam lhe aliviar a dor, mas também levariam embora duas idéias.
— Você acha o livro bom, não acha? — perguntou Annie, ternamente. — Bom de verdade. Você já não está escrevendo ele só para mim, não é mesmo?
— Ah, não.
Paul esteve a ponto de dizer: Ele nunca foi para você, Annie; nem para você, nem para aquelas pessoas que assinam suas cartas dizendo "sou sua fã número um". Quando a gente começa a escrever o livro, elas todas estão com a cabeça no mundo da lua. Mas também nunca foi para minhas ex-esposas, nem para minha mãe, nem para meu pai. A razão pela qual os escritores quase sempre colocam uma dedicatória num livro é que o egoísmo deles é tanto que chega a deixar eles mesmos horrorizados.
Mas não seria sensato dizer isso a ela.
Paul escreveu até o dia clarear. Quando foi para a cama, dormiu cerca de quatro horas e teve sonhos confusos e desagradáveis. Num deles, o pai de Annie apareceu subindo uma escada comprida, carregando na mão uma cesta cheia de papéis que pareciam recortes de jornais. Paul tentou gritar, tentou alertá-lo do perigo, mas toda vez que abria a boca, a única coisa que conseguia dizer eram parágrafos bem organizados de uma história, que começavam sempre com as mesmas palavras: "Certo dia, há uma semana atrás. . ." Annie então aparecia aos gritos, descendo o corredor às pressas com as mãos esticadas para empurrar o pai. . .só que os gritos dela estavam se tornando zumbidos estranhos e o corpo dela se encrespou e se curvou para a frente, porque Annie estava se transformando numa abelha.
No dia seguinte, Annie não recebeu a visita de nenhuma autoridade oficial, mas um bando de visitantes não-oficiais apareceu. Os chamados "curiosos". Certa hora, foi um carro cheio de adolescentes. Quando eles entraram no jardim para manobrarem o carro, Annie saiu de casa correndo e gritando para eles saírem dali se não quisessem levar um tiro.
— Foda-se, Mulher Dragão! — gritou um deles.
— Onde foi que você enterrou ele? — perguntou um outro quando o carro já se afastava, levantando uma nuvem de poeira.
Um terceiro atirou nela uma garrafa. Paul imaginou imediatamente um adesivo para o carro deles: colabore com os delinqüentes juvenis DE SIDEWINDER.
Uma hora mais tarde, Paul viu Annie passando silenciosamente pela janela, com as luvas de trabalho, dirigindo-se para o celeiro. Algum tempo depois, ela voltou com uma corrente enrolada com arame farpado. Annie bloqueou a entrada da casa e prendeu no arame alguns pedaços de pano vermelho para sinalizar a corrente.
— Isso não vai impedir a entrada dos policiais — disse ela ao entrar — mas vai manter longe aqueles fedelhos.
— Hum-hum.
— Suas mãos, Paul. . . parecem inchadas.
— Hum-hum.
— Eu detesto bancar a chata, Paul, mas. . .
— Amanhã. — disse ele.
— Amanhã? Mesmo?
O rosto de Annie se iluminou.
— Espero que sim. Por volta das seis.
— Isso é maravilhoso, Paul! Posso começar a ler agora?
— Eu preferia que você esperasse.
— Então eu espero — disse ela, olhando para ele de um jeito derretido. Paul a detestava ainda mais quando ela o olhava assim.
— Adoro você, Paul. E você sabe disso, não sabe?
— Sei — respondeu ele, voltando ao trabalho.
Naquela noite, Annie lhe trouxe uma pílula de Keflex — ele estava pouco a pouco melhorando da infecção urinaria — e um balde com gelo. Ela deixou ainda uma toalha cuidadosamente dobrada junto dele e saiu sem dizer uma palavra.
Paul largou o lápis e, com a ajuda da mão esquerda, desdobrou os dedos da mão direita. Ele a enfiou no balde de gelo até que ela ficasse dormente e isso fez com que desinchasse um pouco. Em seguida, Paul a enrolou na toalha e ficou contemplando a escuridão até sentir o sangue circulando novamente na mão. Ele pôs a toalha de lado, flexionou os dedos algumas vezes (a princípio fazendo uma careta de dor) e retomou o trabalho.
Quando o dia clareou, Paul empurrou a cadeira vagarosamente até a cama, deitou-se e caiu no sono. Ele sonhou que estava perdido em meio a uma tempestade de neve, mas a neve eram folhas soltas que esvoaçavam pelo mundo, deixando-o desorientado, e cada folha estava datilografada mas nelas não havia nenhum ene, nem tê, nem e, e ele compreendeu que assim que a nevasca passasse, ele próprio teria que preencher à mão cada espaço vazio, decifrando palavras que mal estavam escritas.
Paul acordou por volta das onze horas. Assim que Annie ouviu movimento no quarto, apareceu com um suco de laranja, as cápsulas e um prato fumegante de sopa de galinha. Annie estava radiante.
— Hoje é um dia muito especial, não é, Paul?
— É, sim.
Paul não conseguiu segurar a colher com a mão direita. Ela estava inchada, vermelha, e dura feito pedra. "Estes últimos dias foram como uma interminável noite de autógrafos", pensou ele.
— Coitada da sua mão, Paul! Vou apanhar mais uma cápsula agora mesmo!
— Não precisa. Esta vai ser a arrancada final; quero meus pensamentos livres de remédios.
— Mas você não pode escrever com a mão desse jeito!
— Não, não posso — concordou ele — Minha mão está um lixo. Vou terminar o livro do mesmo modo que comecei: com a Royal. Umas oito páginas ou dez serão o bastante. Acho que consigo escrever mesmo sem o ene, o tê e o e.
— Eu devia ter lhe comprado outra máquina.
Annie parecia sinceramente arrependida e seus olhos encheram-se de lágrimas. Paul achava cenas ocasionais como essa as mais desagradáveis, pois através delas ele vislumbrava a mulher que ela teria sido se a educação dela tivesse sido correta ou se os remédios que ela ingerira não tivessem lhe afetado tanto as glândulas do corpo. Ou as duas coisas juntas.
— Eu errei. É duro admitir, mas é verdade. Só porque não quis aceitar que aquela mulher, Nancy Dartmonger, tivesse levado a melhor. Desculpe-me, Paul. . . Coitada da sua mão. . .
Annie levantou a mão dele, cuidadosamente, imitando Níobe, e a beijou.
— Está tudo bem — garantiu ele. — Nós vamos nos entender, Ducky Daddles e eu. Eu odeio, mas como acho que ela também me odeia, ficamos empatados.
— De quem você está falando?
— Da Royal. Eu a apelidei assim por causa daquele personagem da história em quadrinhos.
— Ah!. . .
Annie apagou. Desligou-se completamente. Paul esperou que ela voltasse a si enquanto tomava a sopa, segurando a colher desajeitadamente entre o dedo indicador e o dedo médio da mão esquerda. Quando finalmente voltou a si, Annie abriu um sorriso radiante, como alguém que acaba de acordar e percebe que vai fazer um lindo dia.
— Já acabou? Se tomou tudo, tenho algo especial para você.
Paul inclinou o prato mostrando a ela apenas um punhado de massinhas que ficara no fundo.
— Viu como sou uma boa abelha operária, Annie? — perguntou ele sem o menor vestígio de sorriso nos lábios.
— Você é a melhor abelha operária que jamais existiu, Paul, e merece um prêmio por isso! Para falar a verdade. . . espere! Espere até ver o que eu trouxe para você!
Annie saiu do quarto às pressas. Paul olhou para o calendário, virou-se para o Arco do Triunfo e depois olhou para cima, onde os Ms entrelaçados dançavam no teto. Por último, Paul encarou a máquina de escrever e a enorme pilha de papéis desalinhados. Adeus para vocês, pensou ele, vagamente, quando Annie apareceu com outra bandeja na mão.
Havia quatro pratos na bandeja: um com fatias de limão, outro com ovos mexidos e um terceiro com torradas. O quarto prato era um pouco maior e estava ao centro. Nele havia um enorme (porcaria) monte de caviar.
— Não sei se você gosta — disse ela, timidamente. — Eu mesma não sei se gosto. Para dizer a verdade, nunca provei.
Paul começou a rir. Paul riu até a barriga doer, até as pernas doerem, até a própria mão doer; muito em breve, ele provavelmente teria mais alguma parte do corpo doente já que Annie era paranóica o bastante para achar que se alguém estava rindo, só podia estar rindo dela. Mas ainda assim, ele não conseguiu parar. Paul continuou a rir até perder o fôlego e se engasgar; suas bochechas ficaram vermelhas, os olhos cheios de água. Aquela mulher cortara seu pé com um machado, serrara seu dedo com uma faça elétrica e agora aparecia com uma montanha de caviar suficiente para alimentar um elefante. Mas para sua surpresa, aquele olhar sombrio não tomou conta do rosto dela. Ao contrário, Annie começou a rir também.
Caviar é uma dessas coisas que você adora ou detesta, mas Paul não era nem de uma opinião nem de outra. Quando voava na primeira classe e a aeromoça colocava um prato de caviar na frente dele, Paul comia e depois se esquecia que caviar existia; até a próxima vez que uma aeromoça colocasse um prato de caviar na frente dele. Agora, porém, Paul comeu avidamente, com todos os acompanhamentos a que tinha direito, como se tivesse descoberto os prazeres da comida pela primeira vez na vida.
Annie não gostou nem um pouco de caviar. Ela beliscou a pontinha de uma torrada, fez uma cara de nojo e deixou de lado. Paul, entretanto, comeu com sofreguidão. Em quinze minutos, devorara metade do monte Beluga... Paul deu um arroto, cobriu imediatamente a boca com as mãos e olhou para ela, receoso. Mas Annie soltou uma alegre gargalhada.
Eu vou matar você, Annie, pensou ele, sorrindo para ela. Vou matar você de verdade. Pode ser que eu vá junto — o que provavelmente vai acontecer —, mas irei com a barriga entupida de caviar. Podia ser pior.
— Estava uma delícia, mas não agüento mais.
— Se comer mais, vai acabar vomitando. Isso aí tem muito condimento — disse ela, sorrindo para ele. — Mas ainda preparei outra surpresa! Uma garrafa de champanha! Só que é para mais tarde. . . quando você terminar o livro. É uma garrafa de Dom Pérignon. Custou setenta e cinco dólares! Uma única garrafa! Mas Chuckie Yoder, da loja de bebidas, me garantiu que esta é a melhor.
— Chuckie Yoder tem toda razão — Paul lembrou-se que o Dom Pérignon era parcialmente culpado por ele ter vindo parar nesse inferno. Depois de alguns instantes, ele pediu: — Eu gostaria de uma outra coisa também, quando terminar o livro.
— E o que é?
— Você disse certa vez que tinha guardado todas as minhas coisas.
— E guardei.
— Bem. . . dentro da minha pasta tem um maço de cigarros. Eu gostaria de fumar um cigarro quando terminasse o livro.
O sorriso de Annie fechou pouco a pouco.
— Você sabe que essas coisas não lhe fazem bem, Paul. O fumo provoca câncer.
— Annie, você acha que a essa altura eu vou me preocupar com câncer?
Ela não respondeu.
— Eu quero um só. Sempre que termino um livro, eu gosto de me recostar na cadeira e fumar um cigarro. Acredite em mim: esse é o que tem o melhor sabor, melhor até do que aquele que você fuma depois de um belo jantar. Pelo menos, é assim que costumava ser. Imagino que agora eu possa até ficar tonto ou ter ânsia de vômito, mas gostaria de manter esse pequeno vínculo com o passado. O que você me diz, Annie? Vamos, lá, seja camarada. Eu tenho sido.
— Está bem. . . mas antes do champanha. Eu não vou tomar uma bebida espumante de setenta e cinco dólares no mesmo quarto em que você estiver soprando esse veneno no ar.
— Ótimo. Se você me trouxer na hora do almoço, eu vou deixar no peitoril da janela, onde eu possa vê-lo de vez em quando. Quando terminar o livro, eu preencho as letras, acendo o cigarro e fumo até achar que vou desmaiar. Depois eu te chamo.
— Está bem, mas saiba que eu não estou gostando nada disso. Mesmo que você não vá pegar um câncer de pulmão por causa de um cigarro só, eu continuo não gostando. E sabe por quê, Paul?
— Não.
— Por que só as abelhas não-operárias é que fumam — concluiu ela, recolhendo os pratos.
- Senhor Ian, ela está..?
- Shhhhh! - fez Ian, exaltado.
Hezekiah calou a boca. Geoffrey sentiu o coração disparar. La de fora, vinha o rangido suave dos cordames, o barulho suave das velas batendo nas primeiras brisas refrescantes e, de vez em quando, ouvia-se o grito de um pássaro. Ao longe, Geoffrey ouvia um grupo de homens no convés cantando uma canção de marinheiros, com suas vozes desafinadas. Aqui dentro, porém, tudo era silêncio. Três homens, dois brancos e um negro, esperavam para ver se Misery viveria... ou...
Ian deu um gemido rouco; Hezekiah cruzou os braços com força; Geoffrey mal conseguia controlar seu estado já quase histérico. Depois de tudo aquilo, será que Deus poderia ser tão cruel a ponto de deixar Misery morrer? Em outras circunstâncias, Geoffrey teria se atrevido a negar uma possibilidade dessas, muito mais por graça do que por indignação. A idéia de um Deus cruel lhe soaria terrivelmente absurda em outros tempos.
Mas suas opiniões a respeito de Deus, assim como a respeito de muitas outras coisas, haviam mudado bastante, e essa mudança ocorrera na África. Foi na África que ele descobriu que não havia um só Deus, mas muitos deuses - e que muitos deles eram mais que cruéis - eram loucos. E isso mudava tudo. A crueldade podia ser compreendida. Quanto à loucura, não havia argumentos.
Se a sua Misery estava mesmo morta, como temia, Geoffrey iria até a proa e se jogaria ao mar. Ele sempre soubera que os deuses eram severos, e sempre aceitara esta idéia. Mas Geoffrey não tinha vontade de viver num mundo em que os deuses fossem loucos.
Esses pensamentos mórbidos foram interrompidos pela voz ofegante e estridente de Hezekiah.
- Senhor Ian! Senhor Geoffrey! Os olhos dela! Estão mexendo! Os magníficos e brilhantes olhos de Misery se abriram. Eles miraram Ian, depois Geoffrey, e Ian novamente por alguns instantes Geoffrey sentiu que eles estavam confusos; mas quando percebeu que ela os reconhecia, ele sentiu uma felicidade imersa lhe invadir a alma.
- Onde estou? - perguntou ela, bocejando e esticando o corpo - Ian... Geoffrey... Estamos num navio? Por que estou com tanta fome?
Rindo e chorando ao mesmo tempo, Ian abraçou-a, repetindo incansavelmente o nome da esposa.
Misery abraçou-o também, entre confusa e feliz. Ao ver Misery bem outra vez, Geoffrey sentiu que poderia suportar a felicidade dos dois até o fim da vida. Ele ficaria sozinho, mas estaria em paz.
Os deuses talvez não fossem loucos , afinal; pelo menos, não todos.
- Acho melhor deixarmos os dois sozinhos, não acha? - disse Geoffrey, tocando Hezekiah no ombro.
- Acho sim, senhor Geoffrey. - respondeu ele com um sorriso, deixando a mostra seus sete dentes de ouro.
Geoffrey deu um último olhar para Misery. Por apenas um segundo, aqueles magníficos olhos azuis contemplaram os seus. Geoffrey se sentiu aquecido, preenchido por completo.
"Eu te amo, minha querida, pensou ele, "você pode me ouvir?" Talvez a resposta tenha sido apenas um apelo desesperado de seu próprio coração, mas ele achava que não. Ela foi tão clara; tão parecida com a voz de Misery.
Sim, eu posso ouvi-lo... Também te amo.
Geoffrey fechou a porta atrás de si e dirigiu-se para a proa do navio. Ao invés de se jogar ao mar, como pensara fazer, ele acendeu o cachimbo e fumou lentamente, enquanto contemplava o sol descendo por trás daquela silhueta distante que se perdia no horizonte - a silhueta da África.
E como não havia outro jeito, Paul arrancou a folha da máquina e rabiscou a caneta a palavra mais amada e mais detestada do vocabulário de um escritor: FIM
A mão inchada de Paul resistiu na hora de preencher as letras que faltavam, mas ele as obrigou ao trabalho. Afinal de contas, se elas não ficassem um pouco mais flexíveis, ele não conseguiria ir até o fim.
Quando terminou, Paul largou a caneta e ficou contemplando o trabalho. E como sempre acontecia quando terminava um livro, ele se sentiu estranhamente vazio, abatido, consciente de que por um mínimo de sucesso ele pagara um preço absurdo.
Era sempre assim — sempre assim. Era como subir um caminho íngreme no meio do mato e, depois de muito esforço, descobrir a paisagem nada gratificante de uma auto-estrada com alguns postos de gasolina.
Ainda assim, era bom terminar — sempre bom terminar. Era bom produzir, ter criado alguma coisa. De certa forma, ele compreendia e apreciava este ato de heroísmo em criar pequeninas vidas que não existiam, em dar a sensação de movimento e a ilusão de vida. E compreendeu — finalmente — que ele era um pouco tolo em usar esse truque, mas este era o único truque que ele conhecia. E, se sempre terminava sentindo-se vazio, ele jamais deixara de fazê-lo com amor. Paul acariciou as folhas e sorriu.
Em seguida, ele apanhou o Marlboro que ela deixara no peitoril da janela. Ao lado, havia um cinzeiro de cerâmica com o desenho de um barco de passeio a vapor e, em volta, os dizeres: lembrança DE HANNIBAL, MISSOURI — O LAR DO CONTISTA AMERICANO.
No cinzeiro havia uma caixa de fósforos com um único palito dentro — tudo o que ela lhe permitira. Um palito, porém, era o bastante.
Paul pôde ouvir Annie no andar de cima. Ótimo. Ele tinha tempo suficiente para fazer alguns preparativos, e tempo suficiente para saber se Annie estava descendo antes dele estar pronto para ela.
Chegou a hora do truque para valer, Annie. Vamos ver se eu consigo. Vamos ver: "Você Consegue", Paul?
Ignorando a dor nas pernas, Paul abaixou-se e removeu o pedaço solto do rodapé.
Cinco minutos mais tarde, Paul chamou por ela e ouviu as pesadas passadas de Annie descendo as escadas. Ele imaginava que quando este momento chegasse, ele ficaria extremamente nervoso, mas para seu alívio percebeu que estava bastante calmo. O quarto estava tomado pelo cheiro forte do fluido, que escorria pela tábua de madeira entre os braços da cadeira e pingava pelo chão.
— Paul, você acabou mesmo? — perguntou ela, ainda no corredor.
Paul olhou a pilha de papéis encharcada de fluido em cima da tábua de madeira, ao lado da insuportável máquina de escrever.
— Bem. . . fiz o melhor que pude, Annie.
— Que maravilha! Mal posso acreditar! Depois de todo esse tempo! Espere um instante, vou apanhar o champanha!
— Ótimo!
Paul ouviu os passos de Annie pisando forte no chão da cozinha. Estou ouvindo esses passos pela última vez, pensou ele, maravilhado. Essa sensação abalou ligeiramente a sua calma. O medo começou a rondá-lo. . . juntamente com um outro sentimento. Algo que ele supôs vir da distante costa da África.
A porta da geladeira foi aberta e fechada. E ela vinha atravessando a cozinha. E ela vinha para cá.
Paul não havia fumado o cigarro, é claro. Ele continuava no peitoril da janela. Era o fósforo que ele queria. Aquele único palito de fósforo.
E se não acender?
Agora, porém, era tarde demais para pensar nisso.
Paul esticou a mão e apanhou o cinzeiro com a caixa de fósforos. Ele pegou o único palito. Annie vinha pelo corredor. Paul riscou o palito e, com efeito, ele não acendeu.
Calma. Com calma ele acende! Paul riscou novamente. Nada. Calma. . . calma. . .
— Espero que. . .
Annie estacou na porta do quarto e engoliu o que ia dizer. Paul estava na cadeira, por trás de uma barricada de papéis empilhados e da antiquada máquina de escrever. Paul virara de propósito a primeira folha da pilha para que Annie a lesse:
A VOLTA DE MISERY
De Paul Sheldon
Em cima da pilha encharcada de fluido pairava a mão trêmula e inchada de Paul, segurando um palito de fósforo aceso.
Parada no meio da porta, uma Annie boquiaberta segurava uma garrafa de champanha enrolada num guardanapo.
— Paul? — disse ela, com cautela. — O que você está fazendo?
— Já fiz. E ficou bom, Annie. Você tinha razão. Este é o melhor livro da série, talvez o melhor livro que eu jamais tenha escrito em toda a minha vida. Agora vou fazer um pequeno truque com ele. Um truque daqueles! Aprendi com você.
— Paul, não! — gritou ela agoniada, ao compreender o que estava prestes a acontecer. Ela levantou os braços e a garrafa de champanha explodiu no chão feito um torpedo, espalhando espuma para todos os lados. — Não! Não! POR favor, NÃO!..
— Pena que você não vá ler o livro nunca! — disse ele com um sorriso sincero e radiante, o primeiro sorriso de verdade, em meses. — Modéstia à parte, o livro é muito bom. Ele é magnífico, Annie!
A chama do fósforo estava quase tocando a ponta dos dedos dele, e Paul largou-o. Por um segundo, ele teve medo que o fósforo tivesse apagado durante a queda, mas uma chama azulada surgiu na primeira folha e, com um chiado suave, começou a se espalhar pela pilha de papel, até se tornar forte e amarelada.
— POR DEUS, NÃO! — gritou ela — MISERY NÃO! MISERY NÃO! NÃO ELA! ELA NÃO! NÃO! NÃO!
O rosto de Annie bruxuleava por trás das chamas.
— Quer fazer algum pedido, Annie? — gritou ele, em resposta — Quer fazer algum pedido, sua bruxa fodida!
— MEU DEUS DO CÉU, PAUL, O QUE É QUE VOCÊ ESTÁ FAZEEEEEEEEEEENDO!
Annie se precipitou para a frente, com os braços esticados. A pilha de papel estava incendiando. A Royal começou a ficar enegrecida. O fluido escorrera para debaixo dela e algumas chamas azuladas dançavam por entre as teclas. Paul sentia o rosto pelando, a pele tostando.
— MISERY NÃO! VOCÊ NÃO PODE QUEIMAR MISERY! SEU FEDELHO! SEU PORCARIA! VOCÊ NÃO PODE QUEIMAR MISERY!
E então ela fez exatamente o que Paul esperava que ela fizesse. Annie agarrou a pilha de papel em chamas, com intenção de correr para o banheiro e, talvez, afundá-la na banheira.
Quando ela deu as costas, Paul ergueu a máquina acima da cabeça, sem se importar com as queimaduras que o ferro quente deixava em suas mãos, especialmente na direita, tão inchada. Pequenas gotas de chama azulada caíram do fundo da Royal, mas Paul não deu a elas mais atenção do que à dor que sentiu nas costas ao erguer a máquina pesada. Em seu rosto havia apenas uma expressão enlouquecida de esforço e concentração. Paul atirou a máquina e acertou nas costas sólidas e largas de Annie.
Com um gemido estridente, Annie caiu no chão, por cima da pilha em chamas.
A superfície da tábua que lhe servira de escrivaninha estava pontilhada de pequenas chamas azuladas. Ofegante, Paul atirou-a longe e, sentindo o cheiro do ferro queimado, ele ficou de pé, pulando na perna direita.
Annie gemia e se contorcia no chão. Uma chama surgiu entre o corpo dela e o braço esquerdo e ela gritou. Paul sentiu o cheiro da pele e gordura queimando.
Annie se jogou para o lado e conseguiu ficar de joelhos. A maioria das folhas se espalhara pelo chão, umas pegando fogo, outras espumando no champanha. Mas ela ainda tinha algumas na mão. O casaco começou a pegar fogo; cacos de vidro estavam espetados nos braços dela e um pedaço maior penetrara na bochecha.
— Eu vou te matar! — disse ela, cambaleando na direção de Paul. Ainda de joelhos, ela deu três "passos" e caiu em cima da máquina. Ela se contorceu de dor e virou de frente, mas Paul se jogou sobre ela, sentindo o formato da máquina, mesmo por baixo do corpo de Annie. Ela gritou, esperneou e tentou sair de baixo dele.
As chamas começaram a cercar os dois e Paul sentiu o calor implacável saindo daquele monte de carne que se contorcia e tentava se levantar. Ele sabia que pelo menos o casaco e a combinação deviam estar grudados no corpo de Annie, mas não teve pena.
Ela tentou fazê-lo cair, mas ele agüentou firme. Deitado em cima dela, Paul parecia um homem prestes a cometer um estupro. Seu rosto estava frente a frente com o dela. A mão dele apalpava o chão à procura de alguma coisa que ele sabia muito bem o que era.
— Saia de cima de mim!
Paul alcançou a ponta de uma folha em chamas.
— Saia de cima de mim!
Ele amassou a folha, apertando o fogo entre os dedos. Paul sentia o cheiro de Annie — um cheiro de carne queimada, suor, ódio e loucura.
— SAIA DE CIMA DE MIM! — gritou ela, escancarando a boca. Paul viu-se, de súbito, olhando para dentro da caverna úmida e avermelhada da deusa.
— SAIA DE CIMA DE MIM, SEU PORCARIIIIIIA. . .
Paul enfiou a folha, meio branca, meio chamuscada, dentro daquela garganta aberta e estridente. Os olhos dela se arregalaram, num misto de horror, choque e dor.
— Aqui está o seu livro, Annie! — disse ele, ofegante, enquanto amassava outro bolo de papel, encharcado de champanha.
Annie se contorceu e o punhado de carne saliente que restara do joelho de Paul bateu no chão, causando uma terrível onda de dor — mas ele continuou em cima dela. Eu vou acabar com você, vou sim, Annie. Vou acabar com você, porque a única coisa que posso fazer é também a pior coisa que está ao meu alcance. Engula o meu livro! Engula o meu livro! Engula até SUFOCAR! Paul enfiou o bolo de papel molhado pela garganta dela, num gesto furioso, empurrando ainda mais para dentro o primeiro maço de papel chamuscado, que ele enfiara anteriormente.
— Aqui está, Annie. O primeiro e único exemplar da Edição Annie Wilkes. Que tal? Coma, Annie, aproveite, seja uma boa abelha operária e coma o seu livro inteiro!
Paul enfiou um terceiro bolo de papel; e um quarto. O quinto ainda estava em chamas, mas a palma da mão dele, cheia de bolhas, apagou o fogo quando entrava na boca de Annie.
Um gemido estranho começou a surgir dentro dela e, subitamente, ela deu um empurrão extraordinário e Paul foi ao chão. Com dificuldade, Annie conseguiu ficar de joelhos. Ela levou as mãos à garganta inchada e escurecida. Com exceção da gola, o casaco dela pegara fogo por completo. A pele da barriga estava coberta de bolhas e o champanha escorria do bolo de papel que ela tinha na boca.
— Mmrnmm! Mmft! Mmmft!
Ainda segurando a garganta, Annie conseguiu ficar de pé. Paul se arrastou desajeitadamente pelo chão, olhando para ela com atenção.
— Mmmmm! Mmmft! Mmmmmft!
Ela deu um passo na direção dele. Dois. E tropeçou caindo em cima da máquina. Dessa vez, a cabeça dela ficou virada para o lado, e Paul pôde perceber no rosto dela uma expressão incrédula e horrorizada: O que aconteceu, Paul? Eu estava lhe trazendo champanha, não estava?
Caída de encontro à parede, Annie parecia um saco de entulho que despencara no chão com um estrondo que abalara a estrutura da casa.
O corpo de Annie apagara a pilha de folhas em chamas. Elas agora não passavam de um monte preto e fumegante no meio do quarto. A espuma do champanha apagara a maioria das folhas soltas, mas algumas haviam voado de encontro à parede e o papel de parede, à esquerda da porta, tinha alguns pontos de fogo. . . mas sem grande intensidade.
Apoiando-se nos cotovelos, Paul foi se arrastando até a cama e puxou a colcha. Do mesmo jeito, voltou rastejando em direção à parede, afastando os cacos do caminho com a palma das mãos. Suas costas estavam machucadas; a mão direita, gravemente queimada; a cabeça doía; o estômago estava embrulhado com o doce aroma de carne queimada — mas ele estava livre. A deusa estava morta e ele estava livre.
Paul apoiou-se no joelho direito e levantou-se desajeitadamente. Com a colcha molhada de champanha e suja de cinzas, ele começou a apagar as chamas. Quando apagava uma folha perto do rodapé, alguma coisa se incendiou no meio da parede. O calendário, nada mais.
Paul voltou rastejando em direção à cadeira. No meio do caminho, Annie abriu os olhos.
Paul não acreditou no que estava vendo: Annie se levantou lentamente e ficou de joelhos. Paul continuava apoiado nas mãos, as pernas largadas para trás, uma versão adulta do sobrinho do Popeye.
Não. . . não, você morreu.
Você está enganado, Paul. Você não pode matar a deusa. A deusa é imortal. Agora é preciso enxaguar.
Os olhos de Annie, horríveis, estavam esbugalhados. Um ferimento enorme no alto da cabeça minava sangue por todo o rosto dela.
— Sssseeeeuu. . .— tentou gritar ela, com a garganta entupida de papel.
Annie começou a vir na direção dele, os braços esticados para pegá-lo.
— Ssseeeeuuu tttrraappaaa. . .
Paul deu meia-volta e começou a rastejar em direção à porta. Annie estava atrás dele. Quando atravessava os cacos de vidro, ele sentiu a mão dela agarrando seu tornozelo esquerdo. Annie agarrou-o com força e Paul soltou um grito de dor.
— Seu trapa. . . — fez ela, exultante.
Paul virou a cabeça. Annie estava ficando roxa e inchada. E ele percebeu que ela estava se transformando mesmo na deusa dos Bourkas.
Com toda força, Paul deu um puxão na perna sem pé e ela se soltou das mãos de Annie. Ela ficou apenas com a tira de couro que usara para apertar o coto da perna.
Paul começou a chorar e continuou rastejando pelo chão. Seu rosto cobriu-se de suor. Apoiado nos cotovelos, Paul se arrastava como um soldado tentando passar por baixo de uma rajada de metralhadora. E bem atrás dele, o barulho surdo de um joelho batendo no chão. E outro. E mais outro. Ela vinha atrás dele. Annie era tão forte quanto ele sempre receara.
Ele a queimara, quebrara a coluna dela enchera a goela de papel e ela ainda ainda ainda vinha atrás dele.
— . . .ceiro! — gritou ela — Trapa. . . ceiro!
Um caco de vidro entrou no cotovelo de Paul, mas ele seguiu em frente. Paul seguiu em frente, como se tivesse uma tachinha enfiada no braço.
Annie agarrou-o pela batata da perna.
— Ah!. . . Agh!. . . Agh!
Paul virou outra vez. Sim, o rosto de Annie estava preto, cada vez mais preto, os olhos cheios de sangue saltavam do rosto e as veias da garganta estavam inchadas, salientes. A boca de Annie começou a se mexer e Paul percebeu que ela estava tentando rir.
Paul já estava perto da porta. Paul se agarrou desesperadamente no batente da porta.
— Ah!. . .Agh!. . .Agh! A mão dela na coxa dele. Um joelho. Outro.
Mais perto. A sombra de Annie. A sombra de Annie o cobriu.
— Não! — gritou ele.
Paul sentiu que Annie puxava sua perna com força. Agarrado junto à porta, Paul fechou os olhos.
— Ah!. . .Agh!. . . Agh!
Em cima dele. Tambores. Deusa-tambor.
As mãos de Annie subiram pelas costas de Paul como duas aranhas e ela agarrou-o pelo pescoço.
— Ah!. . . Agh!. . . Trapa. . . ceiro!
Paul ficou sem ar. Paul continuou agarrando a porta. Paul continuou agarrando a porta e sentiu Annie em cima dele sentiu as mãos de Annie apertando o seu pescoço e ele gritou. Será que você não morre será que você não morre nunca será que. . .
— Ah!. . . Ah. . .
A pressão no pescoço diminuiu. Por alguns instantes, Paul conseguiu respirar. Annie, então, caiu em cima dele. Aquele monte de carne flácida caiu em cima dele e Paul não conseguiu mais respirar.
Paul esforçou-se para sair de baixo dela como um homem que tenta sair de baixo de uma avalanche. E para isso teve que reunir toda a força que lhe restara.
Ele rastejou para fora do quarto, sempre esperando que a mão de Annie o agarrasse pelo tornozelo a qualquer momento. Mas isso não aconteceu. Ela continuava parada, com a cara no chão, em meio a uma poça de sangue, champanha e cacos de vidro. Será que estava morta? Ela tinha que estar morta. Mas Paul não acreditava muito.
Ele bateu a porta. A tranca que ela colocara por fora lhe pareceu alta demais, mas ele conseguiu se levantar até alcançá-la. Paul fechou a tranca e caiu no chão, num acesso de tremedeira.
Por um tempo indeterminado, ele deixou-se ficar naquele estado de entorpecimento. Até que escutou um barulho. Os ratos, pensou ele. São os ra. . .
Os dedos grossos e ensangüentados de Annie surgiram por baixo da porta e lhe agarraram a camisa.
Com um grito, Paul jogou-se para o lado e as pernas latejaram de dor. Paul fechou a mão e martelou aqueles dedos incessantamente. E ao invés deles recuarem, eles apenas tremeram e estacaram.
Que este seja o fim dela. Por favor Meu Deus permita que este seja o fim dela.
Paul agora sentia dores terríveis. Ele começou a rastejar em direção ao banheiro, mas voltou os olhos no meio do caminho. Lá estava a mão de Annie por baixo da porta. Por mais que as dores o afligissem, Paul não agüentava olhar para aquela mão estendida. Ele deu meia-volta e empurrou-as para dentro. Paul teve que se controlar muito para conseguir tal coisa. Ele estava certo de que ela o agarraria assim que se aproximasse.
Quando finalmente chegou ao banheiro, todo o seu corpo doía. Ele entrou e fechou a porta.
Meu Deus, e se ela mudou os remédios de lugar?
Mas ela não tinha feito isso. Aquele emaranhado de caixas continuava no mesmo lugar, inclusive as amostras grátis de Novril. Paul tomou três delas sem água, e rastejou até a porta, bloqueando a entrada com o peso do corpo.
Paul adormeceu.
Já estava escuro quando Paul acordou. A princípio ele não soube dizer onde estava — como seu quarto ficara tão pequeno? E então ele se lembrou de tudo e experimentou uma estranha certeza: ela não morrera, mesmo agora ela não morrera. Annie estava do outro lado da porta, com o machado na mão, esperando por ele. Quando colocasse a cabeça para fora ela desceria o machado em seu pescoço e sua cabeça sairia rolando feito uma bola de boliche — enquanto Annie ria e ria.
Isso é loucura, disse ele, tentando convencer a si mesmo. Mas foi então que ele ouviu — ou pensou ouvir — um suave farfalhar, como a saia engomada de uma mulher roçando suavemente contra a parede.
É invenção sua. É a sua imaginação... tão vívida
Não. Eu ouvi, sim
Mas ele não tinha ouvido nada. E sabia que não. Paul esticou a mão em direção à maçaneta, mas recuou. Ele sabia que não tinha ouvido nada, mas. . . e se tivesse?
Ela pode ter saído pela janela.
Paul, ela está morta;
A resposta, ilógica e implacável: A deusa nunca morre.
Paul percebeu que estava mordendo os lábios furiosamente e obrigou a si mesmo a parar com aquilo. Não era assim que se ficava maluco? Era. Paul estava muito perto da loucura, mas, não tinha motivo? Mas se permitisse que a loucura se instalasse — e os policiais finalmente aparecessem dentro de um ou dois dias para encontrar apenas uma mulher morta no quarto de hóspedes e um punhado de carne chorando no banheiro, um punhado de carne chorosa, que um dia atendera pelo nome do escritor Paul Sheldon — Annie não sairia vitoriosa?
Sem dúvida. Agora, Paulie, você vai ser uma boa abelha operária e vai seguir o roteiro direitinho, certo?
OK.
Paul esticou a mão para virar a maçaneta. . . e recuou outra vez. Ele não conseguiria seguir o roteiro original. Nele, Paul vira a si mesmo colocando fogo nos papéis e vira Annie apanhando as folhas — isso acontecera de verdade. Só que ele devia ter acertado a maldita máquina na cabeça de Annie, não nas costas dela. No roteiro, ele imaginara ir até a sala e incendiar a casa, depois de fugir pela janela. Ele sabia que ia levar um tombo daqueles, mas sabia também o quanto Annie era meticulosa em matéria de trancar as portas. Melhor cair do que morrer carbonizado, dissera João Batista certa vez, se ele não estava enganado.
Se fosse num livro, tudo seria de acordo com o roteiro. . . mas a vida era uma desordem. O que podia ser dito de uma vida em que a maioria das decisões era tomada depois de um copo de bebida ou de alguma outra coisa qualquer? Uma vida que não era sequer dividida em capítulos?
— Uma desordem — murmurou ele — É bom que existam sujeitos como eu para manter a vida bem enxaguada. A garrafa do champanha não estava incluída no roteiro, mas isso era o de menos, comparado à vitalidade sem fim daquela mulher, e à sua atual indecisão.
Enquanto não tivesse certeza de que Annie estava morta, Paul não poderia causar um incêndio capaz de chamar a atenção das pessoas. Não porque Annie pudesse estar viva — ele a queimaria viva sem nenhum remorso.
Não era Annie que o detinha. Era o livro. O livro de verdade. A pilha que ele queimara nada mais era do que uma página-título por cima de folhas em branco, intercaladas por folhas de rascunho. O manuscrito original de A volta de Misery estava bem escondido, embaixo da cama. A não ser que ela esteja viva. Se ela estiver viva, deve estar lá dentro lendo o livro.
E o que você vai fazer?
Espere bem aqui, aconselhou-o uma parte de sua mente. Espere bem aqui, porque é mais seguro.
Mas uma outra parte, essa mais corajosa, insistia para ele seguir o roteiro, pelo menos até onde fosse possível: ir até a sala; quebrar a janela; dar o fora dessa casa horrorosa; dar um jeito de chegar até a estrada e acenar para um carro. Em outros tempos, essa última etapa poderia levar alguns dias, mas, atualmente, a casa de Annie virara um espécie de ponto turístico.
Paul reuniu toda a coragem e virou a maçaneta. A porta abriu lentamente para a escuridão e, com efeito, lá estava Annie, lá estava a deusa, parada nas sombras, o vulto branco do uniforme de enfermeira..
Paul fechou os olhos com força e tornou a abri-los. Sombras, sim. Annie, não. Paul nunca vira Annie vestida de enfermeira, exceto nas fotos dos jornais. Sombras apenas. Sombras e sua (tão vívida) imaginação.
Paul arrastou-se até o corredor e olhou a porta do quarto. Nada. A porta estava fechada. Ele virou em direção a sala.
Havia muitas sombras. Annie podia estar escondida nelas. Annie podia ser uma delas. E ela podia estar segurando o machado.
Paul rastejava.
Ali estava o sofá e Annie estava por trás dele. Ali ficava a porta da cozinha e Annie estava por trás dela. Os tacos rangiam atrás dele e. . . é claro! Annie estava atrás dele!
Paul virou para trás com o coração aos pulos, a cabeça latejando, e Annie estava lá, com o machado levantado, mas só por alguns segundos, antes de se desfazer por entre as sombras. Quando finalmente alcançou a sala, Paul ouviu o barulho de um carro se aproximando e a luz dos faróis iluminou a janela. Paul ouviu os pneus derraparem e compreendeu que eles haviam deparado com a corrente na entrada.
Alguém abriu e fechou a porta do carro:
— Merda! Olhe só para isso!
Paul arrastou-se rapidamente e olhou para fora. Alguém vinha se aproximando da casa. Alguém com um chapéu que tornava aquela silhueta inconfundível. Um policial.
Paul passou a mão na mesinha com as peças de cerâmica — algumas caíram e se espatifaram no chão — e apanhou uma delas. E isso foi como acontece nos livros. A coerência precisa dos romances, cada vez mais rara na vida real.
Era o pingüim sentado no bloco de gelo.
MINHA HISTÓRIA JÁ FOI contada, dizia o letreiro no bloco de gelo. Foi, sim! Graças a Deus!
Apoiado no braço esquerdo, Paul agarrou o pingüim com a mão direita. As bolhas arrebentaram e o pus começou a escorrer. E exatamente como havia feito com o cinzeiro há algum tempo atrás, Paul atirou o pingüim no vidro da janela.
— Aqui! — gritou ele, delirante. — Aqui! Aqui! Por favor! Eu estou aqui!
Houve ainda um outro detalhe típico de romance nesse desfecho: os dois policiais que acabavam de chegar eram os mesmos que haviam interrogado Annie a respeito de Kushner, Davi e Golias. Hoje, entretanto, Davi não estava com o casaco abotoado. Ele trazia a arma na mão. Davi chamava-se Wicks; Golias, McKnight. E eles traziam um mandato de busca. Quando finalmente entraram na sala, atendendo aos gritos desesperados de Paul, eles se viram frente a frente com um homem que parecia um farrapo humano.
— Eu me lembro de ter lido um livro quando estava no ginásio — diria Wicks à esposa na manhã seguinte. — Acho que se chamava O conde Monte Cristo, ou talvez O prisioneiro de Zenda. Mas isso não importa. Um dos personagens do livro passara quarenta anos numa solitária. Em quarenta anos, ele não vira uma só pessoa. Era assim que parecia o cara que encontramos ontem.
Wicks faria uma pausa para tentar expressar da melhor maneira o choque entre as diferentes emoções que sentira — horror, piedade, repulsa e compaixão, mas, acima de tudo, surpresa, por encontrar um homem naquelas condições ainda com vida. Ele não tinha palavras para descrever o que sentira.
— Quando nos viu — finalizaria Wicks —, ele começou a chorar. Ele não parava de me chamar de Davi, não sei por quê.
— Talvez achasse você parecido com algum conhecido dele — diria a esposa.
— É, talvez.
A pele de Paul estava escura e seu corpo, fraco. Ele esbarrou na mesinha, o corpo tremendo, e virou- se para eles com os olhos esbugalhados.
— Quem é vo. . . ia perguntando McKnight.
— Deusa — interrompeu o homem esquelético jogado no chão. Ele passou a língua nos lábios e prosseguiu: — Tomem cuidado com ela. No quarto. Foi onde me prendeu. Escritor de estimação. Quarto. É lá que ela está.
— Annie Wilkes? — perguntou Wicks, apontando para o corredor.
— Naquele quarto?
— É, lá mesmo. Trancada por fora. Mas claro. Tem a janela.
— Quem é vo. . . ia perguntando McKnight pela segunda vez.
— Pelo amor de Deus, será que você não está vendo? — interveio Wicks. — É aquele cara que Kushner estava procurando. O escritor. Não lembro o nome, mas é ele, sim.
— Graças a Deus. . . — murmurou o homem esquelético.
— O que foi que disse? — perguntou Wicks aproximando-se dele e franzindo as sobrancelhas.
— Graças a Deus não lembra do meu nome.
— Eu não estava atrás de você, amigo.
— Eu sei. Não importa. Mas tomem cuidado. Acho que ela está morta, mas tomem cuidado. Se estiver viva. . . é muito perigosa. . . como uma serpente.
Com um tremendo esforço, Paul colocou a perna retorcida sob o facho de luz da lanterna de McKnight.
— Cortou fora meu pé. Machado.
Por longos segundos os dois ficaram olhando o vazio onde existira um dia um pé esquerdo de Paul.
— Deus do céu! — murmurou McKnight.
— Vamos — disse Wicks, sacando o revólver.
Com todo o cuidado, os dois atravessaram o corredor, em direção ao quarto de Paul.
— Tomem cuidado com ela! — gritou ele, abalado. — Tomem cuidado! Eles abriram a tranca e entraram. Paul se encostou na parede e jogou a cabeça para trás, de olhos fechados. Estava com frio. Seu corpo não parava de tremer. Eles iam gritar; ou ela ia gritar. Poderia haver alguma briga. Poderia haver tiros. Paul se preparou para as duas coisas. O tempo passou; um longo tempo passou.
Por fim, ele ouviu o barulho de botas descendo o corredor. Paul abriu os olhos. Era Wicks.
— Ela está morta, eu sabia. . . — murmurou Paul. — Uma parte de minha mente sabia, mas eu mal posso acredi..
— Há sangue, vidros quebrados e papéis queimado naquele quarto — interrompeu Wicks. — Mas não tem ninguém lá dentro.
Paul Sheldon olhou para Wicks e começou a gritar. E continuou gritando até desmaiar.
DEUSA
— Você receberá a visita de uma estranha alta e misteriosa — disse a cigana a Misery.
Estarrecida, Misery percebeu duas coisas ao mesmo tempo: aquela mulher não era cigana, nem elas estavam sozinhas na cabana. E ela pôde sentir o perfume de Gwendolyn Chastain segundos antes dessa louca agarrar seu pescoço.
— Para dizer a verdade — revelou a falsa cigana —, ela está bem aqui.
Misery tentou gritar, mas não conseguiu nem ao menos respirar.
O filho de Misery
— É sempre assim, senhor Ian — disse Hezekiah, — Não importa de onde a gente olhe, ela sempre parece estar olhando para a gente. Não sei se é verdade, mas os Bourkas dizem que mesmo lá dentro, ela, a deusa, parece estar olhando para a gente.
— Ora, isso é apenas um rosto esculpido na pedra — protestou Ian.
— Eu sei, senhor Ian — concordou Hezekiah — Mas é por isso que ela tem poder.
A volta de Misery
fannnnn
umer ummmmm
fannnnn umer ummmmm
Isto ressoa: mesmo no nevoeiro.
Agora é preciso enxaguar, disse ela. E eis como foi enxaguado:
Passados nove meses do dia em que Wicks e McKnight o carregaram da casa de Annie numa maca improvisada, Paul dividia seu tempo entre o Doctors Hospital, em Queens, e um apartamento novo no lado leste de Manhattan. Suas pernas haviam sido quebradas outra vez. A esquerda estava engessada do joelho para baixo e os médicos o advertiram que ele mancaria pelo resto da vida. Mas ele poderia andar e, no futuro, andar sem sentir dor. O problema na perna teria sido muito mais grave e complicado se ele estivesse andando com o seu próprio pé, e não com uma prótese feita sob medida. Ironicamente, Annie havia lhe prestado um favor.
Paul estava bebendo muito e não escrevia nada. E tinha pesadelos horríveis.
Nessa tarde de maio, Paul saia do elevador do nono andar e, para variar, vinha pensando. Não em Annie, mas no pacote volumoso que trazia desajeitadamente embaixo do braço: dois exemplares de A volta de Misery. Não era surpresa que seu editor tivesse agilizado a publicação do livro, levando em conta as manchetes de jornais de todo o mundo que destacavam as condições extraordinárias em que ele fora escrito. A Hastings House encomendara uma primeira edição sem precedentes de um milhão de exemplares.
— E isso é só o começo — garantira Charlie Merrill, seu editor, durante o almoço de onde Paul acabava de chegar com os volumes embaixo do braço. — Esse livro vai vender mais do que qualquer outra coisa no mundo, meu caro. Nós devíamos ficar de joelhos e agradecer a Deus pela história do livro ser tão boa quanto a história por trás do livro.
Paul tinha dúvidas de que aquilo fosse verdade, mas já não se importava. Desejava apenas esquecer tudo e encontrar o próximo livro. . . mas os dias improdutivos começaram a se tornar semanas improdutivas, e estas a se tornar meses improdutivos. . . e Paul começou a duvidar que algum dia haveria um próximo livro.
Charlie pedira a ele um relato dos dias de cativeiro. Segundo ele, este venderia mais até do que A volta de Misery, para falar a verdade, venderia mais que Iacocca. Só por curiosidade, Paul perguntou se ele teria alguma idéia da cifra que os direitos autorais de um livro como esse pudessem atingir. Charlie tirou os longos fios de cabelo dos olhos, acendeu um Camel e disse sem pestanejar:
— Acho que poderíamos fixar um mínimo de dez milhões de dólares e promover um grande leilão.
Paul percebeu depois de alguns instantes que Charlie falava sério ou, pelo menos, assim pensava.
Mas não havia jeito dele escrever aquele livro, nem agora nem nunca, provavelmente. Seu negócio era escrever romances. Ele podia escrever o que Charlie pedira, mas isso seria admitir para si mesmo que jamais escreveria um outro romance.
"E ia ser como um romance", e esteve ele a ponto de dizer a Charlie Merrill. . . Mas Charlie não ia se importar.
Eu partiria dos fatos, mas ia começar a enfeitar um pouquinho aqui. . .depois um pouquinho ali. . .depois mais um pouquinho. Não para fazer com que eu pareça melhor (embora eu provavelmente o fizesse) e também não para fazer Annie parecer pior (impossível). Mas simplesmente pela coerência. Não quero fazer ficção comigo mesmo. Escrever pode ser algo semelhante a masturbação, mas Deus não permite que seja também um ato de autocanibalismo.
O apartamento 9-E era o mais distante do elevador e hoje o corredor parecia ter quilômetros de extensão. Paul seguia mancando melancolicamente, com uma bengala em cada mão. Clack. . . clack. . . clack. . . clack. Deus, como ele detestava aquele barulho.
As pernas doíam terrivelmente e Paul desejava como nunca uma cápsula de Novril. As vezes ele achava que só valeria a pena voltar para a casa de Annie por causa das doses do remédio. Os médicos haviam lhe tirado o Novril. Suas doses agora eram de bebida. Assim que entrasse em casa, Paul ia preparar uma dose dupla de bourbon.
E então, encarar a tela vazia do processador de texto de quinze mil dólares por um tempo interminável.
Clack. . . clack. . . clack. . . clack.
A questão agora era apanhar a chave no bolso sem derrubar os livros no envelope de papel pardo, nem as bengalas. Paul ia apoiando as bengalas na parede quando os livros escorregaram e caíram em cima do capacho. O envelope rasgou-se ao meio.
— Merda.
Só para aumentar a confusão, as bengalas caíram.
Paul fechou os olhos, tentando se equilibrar nas pernas retorcidas e cheias de dor, sem saber se começava a chorar ou se enlouquecia de vez. Era melhor enlouquecer. Paul não queria chorar ali no corredor, mas as lágrimas estavam prestes a cair. E ele precisava chorar. As pernas doíam o tempo todo. Ele desejava como nunca uma dose de Novril ao invés da dose forte de aspirina que eles lhe haviam dado no hospital. Ele queria aquela outra dose, a dose de Annie. E oh, como ele se sentia cansado o tempo inteiro. . . O que ele precisava para se manter de pé não eram aquelas malditas bengalas, mas seus jogos e histórias de faz-de-conta. Isso era a dose boa e infalível, mas que tinha desaparecido. Ao que parece, a hora do recreio terminara.
O fim é assim, pensou ele ao abrir a porta e entrar cambaleante no apartamento. É por essa razão que ninguém escreve sobre isso. É tão deprimente. Ela devia ter morrido quando eu enchi a garganta dela com os papéis em branco queimados, e eu devia ter morrido ali também. Naquele momento, mais do que em nenhum outro, nós éramos realmente como personagens num daqueles seriados de Annie: nada era cinza; tudo era branco ou preto, bom ou mau. Eu era Geoffrey e Annie era a Abelha Rainha dos Bourkas. Eu já ouvi falar de muitos desenlaces. . . mas isso é ridículo. Seja uma boa abelha operária primeiro e depois. . .
Paul estacou. Só agora percebia como o apartamento estava escuro. E aquele cheiro. Ele conhecia aquele cheiro, uma mistura fatal de terra com pó-de-arroz.
Annie surgiu por trás do sofá como um fantasma, metida no uniforme de enfermeira. Annie tinha um machado na mão e gritava: Hora de enxaguar, Paul! Hora de enxaguar!
Paul soltou um grito e tentou se virar com as pernas doloridas. Meio desajeitada, Annie pulou do sofá, cheia de vigor. Paul ouviu o farfalhar do uniforme engomado. O primeiro golpe de machado não fez mais do que cortar o ar — ou pelo menos foi isso o que ele pensou até cair no chão e sentir o cheiro do próprio sangue. Paul olhou para o seu corpo e viu que ela o cortara ao meio.
— Enxaguar! — gritou ela, arrancando-lhe a mão direita.
— Enxaguar! — gritou ela, arrancando-lhe a esquerda.
Paul começou a rastejar em direção à porta aberta, com os cotos do pulso pingando sangue. Inacreditavelmente, os livros ainda estavam caídos no capacho, os livros que Charlie entregara a ele dentro de um envelope no Mr. Lee's durante o almoço, o envelope que ele deslizara sobre a impecável toalha branca da mesa ao som de uma música estridente que saía de um alto-falante pouco acima de sua cabeça.
Paul tentou gritar: "Annie, agora você pode ler o livro!'', mas no meio da frase a cabeça de Paul saiu rolando pelo chão, em direção à parede. Sua última visão do mundo, ainda que meio indistinta, foi do seu próprio corpo caindo e dos sapatos brancos de Annie, um de cada lado dele.
"Deusa", pensou ele, antes de morrer.
Roteiro: Um esboço ou sinopse. O esboço de um enredo
— Webster's New Collegiate
Escritor: Aquele que escreve, esp. profissionalmente.
— Webster 's New Collegiate Faz-de-conta - Fingir ou fingimento.
— Webster's New Collegiate
Paulie, Você Consegue?
Claro, claro que ele conseguia. No roteiro do escritor, Annie ainda estava viva, embora ele soubesse que isso era apenas um faz-de-conta.
Ele realmente tinha ido almoçar com Charlie Merrill e tinham conversado aquilo tudo. Só que ao entrar no apartamento, Paul percebeu que ele estava escuro porque a faxineira havia fechado as cortinas. Ele realmente tinha caído no chão e abafado um grito de medo quando Annie surgiu por trás do sofá, mas foi por causa de Dumpster, um gato vesgo da raça siamesa que Paul arranjara no depósito público de animais há um mês.
Não havia Annie nenhuma, porque Annie não era nenhuma deusa, apenas uma mulher maluca que judiara de Paul por motivos particulares. Ela conseguira arrancar quase todo o papel da garganta e pulara a janela do quarto, enquanto Paul dormia no banheiro. Ela chegou a ir até o celeiro e caiu por lá. Quando Wicks e McKnight a encontraram, Annie estava morta, mas não por estrangulamento. Na verdade, Annie morrera de traumatismo craniano ao bater com a cabeça na parede. E ela batera com a cabeça na parede ao tropeçar na máquina. Sendo assim, Annie de certa forma fora morta pela mesma máquina de escrever que Paul tanto odiava.
Mas ela tinha planos para ele. E dessa vez o machado não resolveria.
Eles a encontraram ao lado do cercado de Misery, com a mão no cabo da serra elétrica.
Isso tudo, porém, era passado. Annie estava morta e enterrada. Mas tal qual Misery Chastain, não descansava em paz. Em seus sonhos e pensamentos, Paul sempre a desenterrava repetidas vezes. Você não pode matar a deusa. Talvez possa embriagá-la com bourbon por algum tempo, mas isso é tudo.
Paul foi até o bar, olhou para uma garrafa e desviou os olhos para o local onde estavam seus livros e as bengalas. Paul deu à garrafa um olhar de despedida e, num andar cambaleante, foi apanhar suas coisas.
Enxaguar.
Meia hora mais tarde, Paul estava sentado na frente da tela vazia do processador, pensando no quanto ele devia ser masoquista. Ao invés da bebida, Paul tomara uma aspirina, mas isso não mudava em nada o que estava por acontecer: ele ia ficar sentado por quinze minutos, meia hora talvez, olhando apenas o cursor brilhando no escuro até desligar a máquina e ir tomar aquele drinque.
A não ser. . .
A não ser pelo fato dele ter visto uma coisa engraçada quando voltava para casa, e isso ter dado a ele uma idéia. Não uma grande idéia. Só uma idéia pequenina. Afinal de contas, foi um pequenino incidente, nada mais. Ele vira um menino empurrando um carrinho de supermercado na rua Quarenta e Oito, só isso. Mas dentro do carrinho, havia uma gaiola com um animal peludo que ele a princípio pensou que fosse um gato. Ao olhar mais de perto, Paul percebeu que o animal tinha uma faixa branca nas costas.
— Ei, menino! Isso é um gambá?
— É — respondeu ele, empurrando o carrinho mais depressa.
Ninguém pára para conversas mais demoradas numa cidade, especialmente para conversar com sujeitos estranhos que usam calças imensas, têm olheiras e usam bengalas. O menino virou a esquina e sumiu.
Paul seguiu em frente. Queria tomar um táxi, mas precisava andar pelo menos um quilômetro e meio por dia e era isso que estava fazendo, embora as pernas doessem como o diabo. Para afastar os pensamentos daquele quilômetro e meio, Paul começou a imaginar de onde aquele menino surgira, de onde aquele carrinho surgira e, principalmente, de onde aquele gambá surgira..
Paul ouviu um barulho às suas costas e virou a cabeça. Annie vinha saindo da cozinha metida numa calça jeans e vestida com uma blusa vermelha de flanela igual à dos lenhadores. Annie trazia na mão a serra elétrica.
Ele fechou os olhos, tornou a abri-los e não viu nada. Subitamente, Paul ficou irritado. Voltou-se para o processador de texto e começou a martelar as teclas, furiosamente.
O menino ouviu um barulho nos fundos do prédio e apesar de ter lhe passado pela cabeça que podiam ser ratos, ele virou a esquina mesmo assim. Ainda era muito cedo para voltar para casa. Ele matara as aulas que havia depois do almoço e ainda faltava uma hora e meia para a saída do colégio.
O que ele viu encostado a uma parede, sob um raio de sol cheio de poeira, não era um rato, mas um gato grande e preto com o rabo mais vistoso que ele já vira.
Paul fez uma pausa, com o coração aos pulos.
Paulie, Você Consegue?
Essa era uma pergunta que ele não ousou responder. Paul debruçou-se sobre o teclado e, depois de alguns instantes, começou a bater nas teclas. . . suavemente.
Aquilo não era um gato. Eddie Desmond vivia em Nova Iorque desde que nascera, mas já tinha visitado o Jardim Zoológico de Bronx e, Jesus Cristo!, não haviam os livros de gravuras?.. . Ele sabia que bicho era aquele, embora não fizesse a menor idéia de como ele viera parar nesse prédio abandonado na rua 105 Leste. A faixa branca nas costas era flagrante. Aquilo era um gambá.
Eddie aproximou-se dele lentamente, os pés cobertos de poeira
Ele conseguira. Ele conseguira.
E assim, com medo e gratidão, Paul conseguiu. A brecha no papel se abriu e ele enxergou através dela, sem perceber que seus dedos ganhavam velocidade, sem perceber que sua pernas doloridas se encontravam na mesma cidade, mas a cinqüenta quarteirões dali, sem perceber que chorava enquanto escrevia.
Stephen King
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