Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ANJOS DO MAL / Shannon Drake
ANJOS DO MAL / Shannon Drake

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Quando os sonhos se tornam pesadelos, e o prazer vem das sombras...
Num luxuoso baile de carnaval em Veneza, bizarros acontecimentos aterrorizam a crítica literária Jordan Riley. À medida que as festividades se transformam num tumulto apavorante, ela é salva por um homem forte e poderoso, vestido numa estranha fantasia. Seriam os terríveis acontecimentos que Jordan testemunhou apenas parte de uma grotesca encenação teatral, um divertimento macabro, ou algo mais sinistro?...
De uma antiga igreja em Veneza a uma sociedade secreta em Nova Orleans, Jordan embarca numa viagem que transcorre no limiar da realidade. Seu misterioso salvador a persegue como uma sombra. A proximidade daquele homem a atormenta e provoca, despertando-lhe um anseio desconhecido e um desejo que a consome...

 

 

 

 

 

 



A lua reinava sozinha na noite escura. Esplendorosa, parecia lançar um olhar de zombaria sobre a terra.
Apesar de que a visão dele à noite fosse excelente, esse luar o ajudava a ver melhor ainda.
Decidira vigiar a cidade ali do Campanário de São Marcos. Observou as pessoas lá embaixo, voltou o olhar para a beleza do céu negro, e sentiu a tensão e á concentração aumentar.
Era Carnaval em Veneza. Era a primeira noite de celebração. A primeira noite dos grandes bailes...
Terça-feira gorda. O delírio máximo.
Eles atacarão hoje à noite.
Ruas, vielas e canais estavam tomados por centenas de pessoas com suas ricas fantasias e máscaras enigmáticas. Músicos, artistas, ricos e pobres, estavam todos ali para uma noite de brincadeiras. Havia um mundo tomado pelas sombras, apesar das luzes espalhadas pela cidade, e das lanternas que tantos carregavam.
Terça-feira gorda. A festa antes da Quaresma.
Sim, eles deviam estar ansiosos por aquela festa. E estariam ali àquela noite. Para se fartarem... Para saciarem a fome...
A não ser que...
Silenciosamente, com a graça de um predador, ele deixou o seu abrigo. E entrou na cidade...

Jordan Riley abriu as cortinas da janela de seu quarto no Hotel Danieli. Tinha a sorte de poder ver as águas do canal de São Marcos, visualizou as lanchas a vapor, as gôndolas e a multidão indo e vindo das docas. Logo adiante, a magnífica cúpula da igreja de Santa Maria della Salute. E, se inclinasse o corpo para fora da janela aberta, enxergaria, à sua direita, parte da Praça de São Marcos, um lugar inesquecível.
A noite estava tomada por risos e música. Por toda a parte havia camaradagem e alegria. A celebração antes da Quaresma podia ser bem conhecida e amada em outras grandes cidades, também. No entanto, Jordan não acreditava que ninguém, em qualquer parte do mundo, soubesse celebrar o Carnaval da forma como os venezianos faziam.
Não importava o quanto os foliões usassem as mais exóticas fantasias, eram todos extremamente elegantes.
- Jordan, está pronta?
Ela se voltou e se deparou com Jared, seu primo. Se não soubesse que era ele, jamais o teria reconhecido. Ele viera fantasiado de dottore, uma fantasia muito popular ali. Pestes haviam atingido Veneza tantas vezes, que os médicos usavam uma máscara com um enorme nariz, usualmente uma espécie de bico, uma reminiscência de como se vestiam aqueles que haviam combatido os vapores fedorentos. As máscaras eram elaboradas, assustadoras.
- Se estou pronta? Sim! Mal posso esperar. Está incrível lá fora!
Jordan estivera em Veneza várias vezes antes, jamais na época de Carnaval. Agora Jared e sua esposa, Cindy, a haviam convencido a acompanhá-los para o festival. Sentia-se um pouco sem jeito por estar com os dois sem ter um acompanhante. Contudo, sabia falar um pouco de italiano e poderia se virar perfeitamente, bem. Isso sem contar que muitos venezianos falavam inglês.
- Graças a Deus! Pensei que pretendia se enfiar em um buraco e não sair esta noite - o primo observou.
- Eu? De jeito algum! - Ela tinha alugado a sua fantasia na última hora. Um traje da Renascença espetacular.
- Sua fantasia é bem bonita - elogiou Jared. - Faz você parecer mais alta.
- São os sapatos. - De salto muito alto, um sinal da vaidade feminina.
- Cuidado para não cair desta altura...
- Não fique aí caçoando apenas porque é alto demais. - Jared era tão alto e ela tão baixinha. Mas ambos haviam herdado os olhos verdes da avó. Isto e o apego por lugares desconhecidos, por cidades como Veneza, e todo o seu charme tão particular.
- Vai acabar esparramada no chão com esses sapatos, prima.
Jordan podia jurar que o primo estava sorrindo por detrás da máscara.
- Olá, vocês dois, vamos embora. Já é tarde!
Cindy, em um traje negro da era vitoriana, apareceu à porta. Como Jared, ela também era alta.
- Jordan! Que sapatos espetaculares. Creio que esta noite as pessoas não vão pensar que você é minha filha.
- Cindy! Você também está determinada a me torturar?
- Eu? Claro que não, mas sou apenas cinco anos mais velha e vivem me perguntando se sou sua mãe.
- Vocês duas estão espetaculares. Serão as mais belas mulheres na festa. E agora, podemos ir? - Jared tratou de encerrar a conversa das duas.
Momentos depois, eles passavam pelo lobby do gracioso hotel. Todos os empregados ali usavam máscaras, e se cumprimentavam. Era uma noite de diversão e sorrisos.
Deixaram o hotel e se misturaram à multidão em frente ao canal. Táxis marítimos, pequenos barcos a vapor e gôndolas faziam uma parada ali, e o lugar estava completamente congestionado.
- Senhoras, esperem aqui um minuto. - Agitando a capa, Jared se afastou.
Jordan e Cindy recuaram alguns passos, fugindo da maré de pessoas, e aguardaram enquanto Jared buscava um transporte para levá-los ao baile. Realizado anualmente, o baile acontecia em um palácio histórico, e era sempre o evento de maior prestígio da noite.
Como adorava tudo o que vinha da Itália, Jared trabalhava como representante de uma empresa de turismo americana ali em Veneza. Dividia seu tempo entre aquele país e os Estados Unidos e sabia falar italiano muito bem.
Pena que Jordan soubesse tão pouco da língua. Naquele momento, por exemplo, um homem parara perto dela, sorrira e falara qualquer coisa que ela não tinha entendido. Limitou-se a sorrir de volta, o homem bateu em seu chapéu num gesto de despedida e seguiu em frente.
- Vou ter de ficar de olho em você a noite inteira - Cindy observou. - Aquele malandro estava tentando dar em cima de você.
- Maldade sua. Como sabe a natureza de um desconhecido? Cindy riu, balançando os longos cabelos loiros.
- Ele se vestia como um qualquer, Jordan, não percebeu?
- Não, vi a cauda e os pelos cinzentos sobre os ombros...
- Um malandro - Cindy repetiu. - Um rato da Renascença, mesmo assim um sujeito reles. Temos de tomar cuidado. Imagino a quantidade deles que não há por aí. Sem falar dos lobos. E você parece ser a presa ideal.
- Senhoras! - Jared chamou, adiantando-se na direção das duas. - Precisamos ir até a Praça de São Marcos. Lá pegaremos um transporte com mais facilidade.
O clima estava fresco e agradável, a cidade maravilhosamente viva. Luzes se refletiam na água do canal. Eram cores diferentes e fantásticas, formando um belo mosaico.
As fantasias se mesclavam entre elaborados trajes de época com outras de animais. Pássaros exibiam uma incrível plumagem e os gatos, um pelo brilhante.
De súbito, Jordan sentiu como se alguém a observasse e levantou o olhar. O Leão de Veneza estava lá em cima de um alto pilar de mármore, encarando-a, para em seguida, olhar em volta, para a Basílica de São Marcos e o Palácio dos Doges.
A noite, as sombras pareciam dançar, como se fossem entidades reais, escondendo-se por detrás das gárgulas, das orgulhosas estátuas e de outras criaturas fantásticas, esculpidas naqueles prédios esplêndidos pelos maiores artistas de todos os tempos.
O sino da igreja ressoou na noite. Seguido por outros. Jared segurou Jordan pelo braço e a conduziu até o vaporetto, e logo estavam cortando as águas dos canais da cidade.
- Ah, ali está o nosso palácio!
Jordan tentou se lembrar de tudo o que ouvira sobre o evento daquela noite. O baile era oferecido por Nari, condessa della Trieste, uma mulher com ancestrais tão antigos quanto a própria cidade. Era muito rica, tendo se casado bem várias vezes. Seu único amor, no entanto, eram as artes e o Palazzo Trieste. Este era esplendoroso com seus arcos, arquitetura, trabalho em pedra e mármore. Uma construção planejada mais para uma residência do que uma fortaleza. Lindos portões de ferro ofereciam entrada pelos canais,
No grande foyer, ao pé da escadaria de mármore, os três foram saudados pela condessa, uma mulher de pouca estatura e surpreendentemente bonita, vestida toda de branco, com imensas penas adornando seu traje e uma máscara emplumada. Manejava o adereço com naturalidade, acenando para as visitas, sorrindo e cumprimentando os recém-chegados.
- Jared, benvenuto! Cindy, ciao, bella!
Distribuiu beijos a todos eles, depois pegou as mãos de Jordan e a observou com maior atenção.
- Oh, a prima, Jared! Bella, bella, bella. Fala um pouco de italiano? Poço, eh? Grazie, bella, por ter vindo à minha pequena festa.
- Grazie mille - Jordan respondeu.
- Então fala italiano.
- Muito pouco, infelizmente.
- Ah, ainda assim, dance, alegre-se. - A condessa riu, seus olhos negros ainda atentos a Jared.
Jordan sentiu-se meio sem-graça, imaginando se a anfitriã não seria mais íntima do primo do que ele sugeria. Afastou logo tal pensamento, Jared e Cindy estavam muito apaixonados, formavam o casal perfeito.
- O bufê será servido lá em cima, e o champanhe aqui - ofereceu a condessa, estendendo a mão para pegar uma taça da bandeja de um garçom. - E a dança está em toda parte.
- Não vou deixá-la sozinha durante o jantar, prometo. Preciso apenas encontrar alguns conhecidos... Negócios... - Jared comunicou a Jordan, enquanto entravam.
- Ele só se importa em abandonar você - Cindy brincou, provocando o marido.
- Você conhece todos, querida.
- Será que alguém reconhece as pessoas por aqui? - Cindy balançou a cabeça, enquanto caminhavam até a mesa do bufê.
Jordan notou que as fantasias ali eram ainda mais requintadas e extravagantes do que as que vira na rua. Deviam ter custado milhares de dólares, com certeza. Ela, então, começou a se sentir malvestida. Muitas mulheres usavam jóias verdadeiras. Seria capaz de jurar que o traje de uma delas brilhava com esmeraldas legítimas.
- Jordan, sinto muito, mas aquele pavão com o enorme leque é sra. Meroni. Preciso cumprimentá-la. Venha comigo... - Cindy anunciou.
- Pode ir. Vou circular um pouco.
- Tome cuidado com os ratos.
- Se eu optar por lobos, vou me assegurar de que ao menos sejam muito ricos.
- E jovens - aconselhou Cindy. - Ou melhor, bem velhos para logo morrerem fazendo de você uma viúva abonada.
- Vou me lembrar disso. Cindy sorriu e se afastou.
Ele a viu caminhando para a mesa do bufê.
Era pequenina e perfeita. Uma mulher com cabelos escuros e ondulados caindo pelos ombros, e usando agora um par de trancas, em concessão ao estilo renascentista de seu traje. Outras exibiam fantasias mais luxuosas, mas nenhuma se movia com elegância tão natural.
Como muitas das mulheres ali, ela segurava a máscara na mão. Por vezes a levava aos olhos, dava um gole em seu champanhe. Naquele momento estudava como segurar taça de bebida, a máscara e o pequeno camarão que pretendia comer.
Ele deixou o balcão, desceu as escadas sem tirar os olhos dela. Aproximou-se, abordando-a primeiro em italiano. Quando notou que ela ficara confusa, passou a falar em inglês:
- Boa noite. Perdoe a minha impertinência... - Abaixou a voz. - Suponho que deveríamos ser apresentados, mas como você parece estar enfrentando uma dificuldade, pensei em vir aqui ajudá-la. - Estendeu a mão, oferecendo-se para segurar a taça de champanhe, a máscara ou as duas coisas. Jordan levantou o olhar, um leve sorriso nos lábios.
- Não tenho muita certeza se devo aceitar a sua ajuda. Fui alertada pela esposa de meu primo para tomar cuidado com os ratos e lobos e todos os predadores nesta noite.
- A não ser que fossem podres de ricos - ele murmurou, fazendo-a rir.
- Bem... - Olhou-o com mais atenção da cabeça aos pés. - Você é um lobo.
- Um lobo? - ele disse com certo desprezo.
Jordan apontou para a fantasia. A máscara dele era de couro, com abertura para o nariz e dentes. Usava um manto negro, que cobria os pelos do peito.
- Talvez eu seja um lobo jovem, rico, quem sabe muito rico até. Arrisque-se. Dance comigo. Bem - ele emendou, pensativo - coma o camarão, termine o seu champanhe, e então dance comigo.
- Será...
- Viva perigosamente. Estamos em Veneza. É Carnaval.
Jordan sorriu. Estendeu-lhe a máscara, terminou de mastigar o seu camarão, tomou um gole de champanhe, e balançou a cabeça concordando.
- Farei o melhor que puder.
Em um minuto, estavam na pista de dança do terraço com vista para o canal. O luar, capturado nas águas, refletia os mascarados valsando. Jordan o alertara que não sabia dançar aquele tipo de música. Assim deixou-se levar e não se saiu mal.
- Você é muito alto - ela reclamou.
- E você pequenina demais. Mas vamos conseguir lidar com essa diferença de altura.
- Você não é italiano?
- Um lobo e nem mesmo italiano - admitiu ele.
- Americano?
- Eu diria que sou um cidadão do mundo. Você, claro, é americana.
- Eu poderia ser inglesa.
- De jeito algum.
- Bem, é verdade. - Todos reconheciam imediatamente os americanos. Antes até de abrirem a boca. - Sou de Charleston, Carolina do Sul - ela admitiu. - E você?
- No momento, a Itália é o meu lar fora de casa. Há poucos povos hospitaleiros como os italianos.
- Onde você nasceu? - Os olhos verdes de Jordan brilharam, de curiosidade.
Ele sorriu, decidindo não contar nada. Havia uma pequena razão para agir daquele jeito. Depois da meia noite...
Na verdade, não deveriam estar dançando. Nem mesmo conversando. O ataque estava para acontecer. Mas ela o atraíra, despertara os seus sentidos, talvez os instintos. Ao que tudo indicava, cativara sua mente. E quem sabe a alma!
- Senhor? Perdoe-me, sr. Lobo? Onde foi que nasceu?
- Longe daqui, muito longe. - A resposta foi evasiva. De repente, alguém bateu de leve no ombro dele.
- Signore, per piacere...
Um cavalheiro vitoriano, com certeza inglês, o interrompera querendo dançar com Jordan.
Ele cedeu com um gesto de cabeça.
- Tome cuidado, americana - advertiu.
Jordan sorriu, mas com um ar de decepção, ele notou. Ou era o que desejaria que ela tivesse sentido.
Observou-a se afastar, dançando.
Os pés de Jordan doíam. Mesmo acostumada a andar com saltos altos. Claro, não tão altos. E a noite estava muito interessante. Primeiro dançara com o lobo. Uma figura enigmática, alta e tão charmosa. Pena não ter a menor idéia de sua real aparência, pois ele usava máscara. No entanto, sua altura era algo difícil de esconder. Será que o reconheceria se o encontrasse sem a fantasia? Notaria a voz, pensou. Sem contar o perfume agradável, um aroma com um nítido toque sensual...
Depois do lobo, o inglês. Então um arlequim.
Este elogiara seu traje, os olhos, os cabelos e a linha do pescoço.
Ela rira, mas procurara manter-se à distância.
- O senhor é efusivo demais - observara.
- Ah, nunca! Que pele adoravelmente branca. E como suas veias pulsam visíveis...
Exatamente quando ela começava a se sentir desconfortável, um anjo da morte vestido de couro e seda a tirou do arlequim. Este era espanhol, alto e atraente. Comentou da sua esplêndida energia, comparando-a a um raio de luz que fluía de seu corpo.
Jordan agradeceu. As feições dele estavam cobertas por forte maquiagem, mas os olhos eram escuros e sensuais.
Cindy, você tem razão, há predadores por toda a parte. Uma tentação...
Enquanto falavam, um mascarado usando calções justos e uma jaqueta surgiu no terraço, tocando um sino.
Falou em italiano, no princípio, mas foi traduzindo o que dizia, para ser entendido por todos os convidados do baile.
- Ouçam, ouçam, o espetáculo está começando! Há muito tempo, Odo, o conde de Castello, gerou uma filha tão bela que todos da nobreza o consideravam rico. Mas Odo lamentava a falta de um herdeiro. Eliminou então a sua esposa...
O mascarado puxou uma senhora de meia idade, perguntando-lhe se queria participar da encenação. Ela concordou, rindo.
- Então - o mascarado continuou -, ele sacudiu a pobre criatura e lhe deu o beijo da morte!
A impressão era de que o mascarado murmurava alguma coisa para a senhora. O corpo dela ficou mole, e ele a deixou cair no chão.
- Então, Odo se casou novamente. Mas esta esposa, também, falhou em lhe dar um filho. - No meio dos convidados, ele encontrou outra matrona que alegremente concordou em interpretar a segunda esposa do conde. Ele lhe murmurou algo, ela amoleceu o corpo e escorregou até um chão.
- E mais uma vez, Odo arranjou outra esposa!
Desta vez a escolhida foi uma dama que já ria antes mesmo de ser convidada. O processo se repetiu.
- Ora, ele teve mais esposas que o Barba-Azul! - O mascarado dançou pela sala, escolhendo uma mulher após a outra. Então ele parou, sacudindo a cabeça, dramaticamente. - Mas ainda assim, nenhuma mulher lhe deu um filho! Por isso, ele, então, ofereceu a sua belíssima filha.
O mascarado foi passeando por entre os convidados. Jordan reparou que ele também era alto e poderoso. Os músculos delineados pela roupa justa. De repente, notou que o ator vinha em sua direção e recuou.
- Americana - ela declarou.
- Não importa - Ele estendeu a mão, e Jordan começou a menear a cabeça, mas ele já a segurava.
- Assim ele ofereceu a sua alma ao próprio diabo para que encontrasse um homem que se tornaria marido de sua filha, e continuasse com o nome de sua família. Ah! E onde está o diabo?
Enquanto o mascarado procurava o diabo, os convidados riam.
Foi quando Jordan notou algo escorrendo da cabeça da mulher que interpretara a primeira mulher do conde.
Sangue.
Arregalou os olhos e levou a mão à boca, e começou a gritar.
O mascarado viu a reação dela, e a segurou. Jordan lutou querendo se livrar, mas a força que a prendia era mais poderosa. Horrorizada, viu o salão subitamente ficar tomado por...
Bestas. Demônios. Talvez estivesse vendo coisas, com certeza. Mulheres gritavam. Todos pareciam ter dentes muito afiados.
- Largue-me!
Jordan lutou com desespero, chutando e berrando. Encontrou-se encurralada em um canto do terraço, barrada pelo mascarado, que agora tinha sangue no corpo.
Subitamente alguém agarrou o agressor, livrando-a. Foi então que ela se viu diante dos olhos de um lobo.
O mascarado grunhiu, murmurando palavras em uma língua desconhecida. O lobo respondeu e os dois se atacaram.
Jordan tornou a gritar quando a força de um golpe na cabeça do mascarado quebrou-lhe o pescoço.
Tudo parecia ter enlouquecido no elegante palácio.
Jordan deu um passo para trás, abismada. Havia bestas na casa toda. Bestas! Criaturas usando todo tipo de fantasia. Animais com longos dentes, agora borrados de sangue.
Ainda em desespero, agora porque o lobo a segurava.
Ele a tirou do terraço e entraram na neblina que se formara. Era como cair em um buraco negro...
Ele a colocou em um barco, e ordenou ao remador:
- Reme! Rápido!
O sujeito não pensou duas vezes.
O lobo saltou do barco para a calçada e lhes deu as costas, sumindo na neblina da noite.



Capítulo I



Na manhã seguinte, a claridade era excelente. Nenhuma neblina, nem sinal de maldade no ar. Somente a beleza de um lindo dia de inverno.
Jared buscou a sua paciência.
- Tudo isso é por causa de Steven! Tudo não passou de um espetáculo provocante, claro, mas você continua insistindo em sua versão.
Jordan se empertigou. Abaixou o olhar e contou até dez. Steven tinha morrido havia um ano. Ela aceitara o fato. Quando da morte dele, sentira-se devastada, e tivera o seu período de mágoa e raiva, mas jamais fora paranóica.
Lançou um olhar glacial para o primo.
- Isto não tem nada a ver com Steven! Absolutamente nada! Tem a ver com a noite passada.
- Jordan, entenda uma coisa, querida. Você se enganou - Jared insistiu, procurando se controlar. - No começo, entendi a sua reação. Você estava assustada, mas foi apenas um espetáculo. Se persistir nisso, vai acabar destruindo o meu relacionamento com a condessa. Arruinar minha profissão. Acredite em mim... a condessa é uma mulher importante e responsável. Gasta uma verdadeira fortuna com caridade, adora festas, mesmo as mais assustadoras. Não cultua rito macabro algum.
Jordan tinha de admitir que naquela manhã, sentada no restaurante do hotel, repleto de garçons educados e alegres em uniformes normais, tentara aceitar a versão que insistiam que ela acreditasse. Mas era difícil.
Até mesmo a polícia perdera a paciência com ela na noite anterior. Como uma renomada crítica literária, ela levara alguns livros para ler durante as férias. Não só livros, mas também material para ser revisado, e dois manuscritos, sendo um de ficção e o outro não. Um deles havia sido escrito por um produtor de Hollywood. Este tendo sido o responsável por levar às telas os filmes de terror mais populares das da última década.
Ela ouvira todas as explicações. Assistira a um espetáculo, nada mais. Apenas um espetáculo, haviam lhe dito. Pois, sim!
E Jared estava convencido de que seu relacionamento com a condessa era a chave de tudo o que acontecia em Veneza, de bom ou de ruim. Nada parecia ocorrer ali sem o conhecimento ou cooperação dessa mulher. Assim o primo jamais a apoiaria em qualquer crítica que ela fizesse contra um show mesmo que doentio.
- Jared, você está errado. Muito errado. Não estou me deixando levar pela minha imaginação. Não acredito em fantasmas, nem em entidade alguma. Contudo, sei que coisas ruins acontecem. E há quem acredite no sobrenatural. Preste atenção e lembre-se de uma coisa, tudo isso vem sendo documentado. Antoine Leger, por exemplo, era um canibal e bebia sangue. Morreu na guilhotina em 1824. O qual foi o crime dele? Escondia-se na floresta, esperando por suas vítimas. Atacava jovens, estuprava as pobrezinhas, depois as matava, bebia seu sangue e comia seus corações.
Cindy não se conteve e entrou na conversa.
- Você anda lendo livros demais. São apenas histórias.
- Não de ficção! - protestou Jordan. - Já disse que aquele homem era real!
Jared colocou a xícara sobre o pires com nítida impaciência.
- Jordan...
- Não pode sequer considerar a possibilidade de que alguma coisa aconteceu à noite passada?
Ela sabia que estava pressionando demais o primo, mas apesar de todas as explicações que escutara, apesar da manhã bonita e agradável e estarem em Veneza, não conseguia deixar o assunto simplesmente de lado.
Perto dela, pessoas tomavam seus cafés, riam, conversavam e liam jornais com naturalidade.
Como esquecer a cena grotesca que presenciara? Tudo tinha acontecido tão depressa...
De alguma forma, ela conseguira que o remador entendesse que deveria levá-la a um posto policial. Falara com um policial atencioso, e ele lhe assegurara de que a situação seria imediatamente investigada, mesmo não parecendo acreditar muito na história, depois que soubera de tudo o que ocorrera no palácio da Condessa de Trieste.
Os policiais receberam também Jared, Cindy e a condessa. Esta achara natural a reação de Jordan, já que era americana. O primo, porém, agira como se fosse um irmão mais velho, preocupado com o estado de pânico que ela se encontrava. Explicara com voz gentil que ela se enganara, pois assistira apenas a um espetáculo carnavalesco. Nada de criminoso havia acontecido no palácio.
Afirmara também que não soubera com antecedência sobre o espetáculo assustador. Garantira que tinha sido natural que Jordan se apavorasse daquele jeito.
Jordan, contudo, tinha insistido em sua versão. Tentara convencer a condessa de que alguns de seus convidados eram loucos, e que talvez ela não tivesse idéia do que acontecera em sua própria festa, mas assassinos tinham estado lá. A condessa sacudira sua bela cabeça com tristeza. O oficial pigarreara, e dissera a Jordan que eles haviam dado uma busca no palácio e haviam encontrado apenas convidados fantasiados, alguns poucos usando trajes com sangue de mentira, todos arrependidos por terem-na assustado de tal forma.
- Mas eu estou lhes dizendo, vi pessoas morrerem. Voltem lá, eles devem ter limpado tudo. Não sei muito sobre procedimento policial, mas talvez se usassem luminol... Aquele líquido que revela sinal de sangue...
A condessa, então, se irritara, pois começara a falar rapidamente em italiano com os policiais. Depois se voltara novamente para ela.
- Minha querida, como é a prima de Jared, eu a perdôo por tal afronta, mas deve esquecer todos esses filmes tolos que vocês americanos assistem, e aceitar que nós também temos senso de humor e gostamos do macabro. Jared me contou, é claro, sobre o seu passado, por isso, minha criança, eu entendo a sua reação. Meu palácio continua aberto para você. Procure ser racional sobre tudo isto.
- Precisamos deixar a condessa voltar para casa - Jared dissera com firmeza.
Antes que Jordan pudesse continuar a protestar, o policial estava se desculpando com a condessa e conduzindo-a até a rua. A condessa a beijará no rosto, insistindo para que ela aparecesse a qualquer hora.
Jordan ainda tentara convencer os policiais depois da partida da condessa, mas a paciência deles havia se esgotado.
- Quem é esse homem vestido de lobo que a tirou do palácio? - Jared quis saber.
- Ele saltou comigo da sacada e então... desapareceu no meio do nevoeiro.
Todos a encararam como se tivesse perdido a razão. Sim, pobre Jordan. Talvez precisasse ser internada em um sanatório de loucos.
De volta ao hotel, Cindy conseguira que servissem chá para Jordan e insistira em passar a noite em seu quarto. O suspiro de impaciência de Jared a tinha levado a recusar. Dormira sob o efeito de um calmante que Cindy, por certo, colocara no chá. E sonhara ter acordado, e que havia um enorme lobo à sua janela.
Agora, ali no restaurante, tentou colocar essas lembranças de lado. O primo já estava cansado daquela história.
- Jordan, estou lhe implorando. Você tem de parar com isso. Essas são pessoas com quem trabalho. A condessa é muito importante para o meu trabalho, minha posição aqui na Itália, para minha carreira e para minha vida. Se continuar com essa sua história maluca, vai me atrapalhar muito. Por favor, entenda que foi uma festa de máscaras, muitas fantasias, uma casa mal-assombrada, com efeitos especiais. Esqueça disso tudo. Toda Veneza está falando sobre o caso.
- Jared, estou dizendo que...
- E a polícia já explicou. A condessa deixou a festa para ir falar com você. Todos tentaram explicar o acontecido, mas você se recusa a acreditar.
- Se você estivesse lá...
Irritado, ele se levantou, jogando o guardanapo sobre a mesa.
- Tenho de ir agora, Jordan. Preciso remediar as coisas antes que você me arruíne a vida.
- Você tem de entender que está colocando o emprego de Jared em risco, afinal ele é amigo dessas pessoas. A condessa é muito importante para o trabalho dele. - suplicou Cindy. - Honestamente, querida, sei que você se assustou, mas já lhe explicaram o que houve.
Jordan suspirou. Não tentaria convencer Cindy de que havia estranhas criaturas rondando Veneza. Talvez ela estivesse mesmo exagerando. Quem sabe fossem seus livros. Afinal, o sol estava brilhando. Era uma linda manhã, especialmente para um dia de inverno.
Bom, chega de café. É hora de dar uma volta e ficar sozinha, pensou, levantando-se
- Jordan, espere, onde está indo?
- Não se preocupe. Não vou até a polícia de novo. Quero apenas passear pela praça.
- Não sei se deveria sair por aí sem companhia. - Cindy franziu a testa em sinal de preocupação.
- Por quê? Já me disseram que não existem monstros por aqui. Que tudo foi obra de minha imaginação. Um show, não foi?
- Mas você está perturbada...
- Se for o caso, é melhor que eu supere.
- Jordan, onde quer que esteja indo, posso ir com você...
- Preciso caminhar, Cindy. Sozinha.
Cindy parecia tão abalada, que, por um momento, Jordan se esqueceu um pouco do medo e da raiva que estava sentindo de Jared.
- Estou bem, é verdade. Vou dar uma olhada nas vitrines das joalherias.
- Podemos comprar jóias fora da praça. Você não vai encontrar nada a não ser preços para turistas. Eu a levarei a alguns lugares...
- Cindy, eu a encontrarei mais tarde.
- Não se esqueça de que vamos ao baile dos artistas nesta noite.
- Não se preocupe. - Jordan saiu do restaurante e preferiu descer as escadas do hotel a esperar o elevador. No andar térreo, havia uma grande movimentação. As festas em Veneza durariam ainda uma semana.
Ela abriu caminho por entre a multidão e subitamente parou. Era como se estivesse sendo observada. Voltou-se, irritada consigo mesma, esperando que a sensação não durasse o dia inteiro.
Estranhou, com certo alívio, ao perceber que, de fato, alguém a encarava abertamente. Uma mulher jovem e atraente olhava para ela e murmurava alguma coisa para um homem mais velho a seu lado. Quando notou que ela havia percebido, em vez de disfarçar, a mulher veio até ela.
Ao se aproximar, a mulher não era tão jovem quanto parecera. Devia beirar os quarenta anos. Magra, loira e cabelos bem curtos. Sorriu e estendeu a Jordan a mão cheia de anéis.
- Como vai, srta. Riley. Sou Tiff Henley, uma conterrânea sua.
- Como vai? Sim, sou Jordan Riley, mas... - Jordan aceitou a mão.
- Não nos encontramos a noite passada, mas estávamos no mesmo baile. Fico feliz que esteja bem. Causou um tumulto e tanto.
Jordan sentiu o rubor cobrir seu rosto.
- Lamento. Não vi você e...
- Creio que você se encontrava no segundo andar durante o espetáculo, enquanto estávamos jantando e dançando no primeiro. Não assisti ao show, mas todos sabem que a condessa é conhecida por suas extravagâncias. Está tudo bem agora?
- Suponho que causei uma confusão. Mas parecia tão real - Jordan justificou. A mulher parecia medi-la. Por causa de Jared, ela esforçou-se para não reagir.
- Você é escritora? - Tiff Henley perguntou.
- Sou crítica de livros. E você?... - indagou Jordan.
- Digamos que eu seja apenas rica. Gostaria de convidá-la a tomar café comigo uma hora dessas. - Tiff sorriu.
- Claro, adoraria isso - Jordan aceitou, simpatizando com a outra.
- Talvez amanhã?
- Para mim está ótimo. Você está hospedada neste hotel?
- Não, estou aqui com um amigo. - Tiff apontou para o homem com quem conversava, antes de encontrar-se com Jordan. - Ele precisa de uma fantasia para o baile dos artistas nesta noite. Você vai?
- Sim, creio que sim.
- Tenho certeza de que vai se divertir. As entradas são baratas, a comida mais ou menos. As bebidas são fortes.
- Eu a verei lá, então.
- Suponho que não vai me ver, já que estarei fantasiada, claro. Mas vamos nos encontrar. Aluguei um palácio perto da ilha. E um lugar fabuloso que pertenceu à família dos doges no passado. Se quiser, podemos tomar o nosso café por lá. O lugar tem história, fantasmas, escândalos, e tudo o mais. Oh, lamento, não quero deixá-la assustada ou coisa assim...
- Não se preocupe. Não me apavoro tão facilmente.
- Ótimo! - Tiff sorriu. - Não se deixe perturbar com os comentários de ontem. O povo fala de mim o tempo todo, e tenho sobrevivido.
Antes que Jordan pudesse responder, Tiff voltou para o lado do amigo. Jordan se surpreendeu por se sentir bem melhor depois daquela conversa. Sorriu e se despediu de sua mais nova amiga.
Atravessando a ponte que havia em frente ao hotel, parou para contemplar a famosa Ponte dos Suspiros. Uma gôndola passou levando um casal, embalados pela música romântica, entoada pelo gondoleiro.
A Praça São Marcos estava cheia, muitos mascarados.
Anônimos... esta era a chave, ela pensou. Era fácil vir ali, usar uma máscara, misturar-se na multidão e...
O pensamento lhe trouxe de volta o mal-estar. Na verdade, não reconheceria ninguém que estivera no baile da noite anterior. Com exceção da condessa, claro. Mas os outros poderiam estar ali, na mesma praça, e ela não saberia.
Passando por uma vitrine que exibia manequins, ela, subitamente, parou estarrecida.
Por um momento...
Não. Era apenas um boneco. Por um momento, pensara estar vendo o rosto de Steven em um dos manequins.
O coração acelerou. Talvez Jared estivesse certo. Andava vendo coisas.
As feições do boneco eram muito semelhantes às de Steven. Os olhos haviam sido pintados na cor de amêndoas, o cabelo tinha a mesma cor, o tamanho do corpo era correspondente ao dele.
Sentiu a tristeza voltar. Um ano não era tanto tempo assim.
Steven entrara em sua vida e pouco depois já correspondia aos seus sentimentos. Ele era charmoso, inteligente... nobre. Talvez tivesse errado ao escolher a profissão de policial, pois confiava demais nas pessoas. Apesar de odiar a violência, ele tinha entrado para o Departamento de Homicídios. Era um homem que acreditava na reabilitação, e era completamente contra a pena de morte. Acreditava que os suspeitos deviam ser pegos vivos.
E isso lhe custara a própria vida.
Jordan passara pelos estágios da mágoa, negação, raiva e dor, mas continuara com a mente sã. Por fim, entrara em um estágio de aceitação. Em nenhum momento perdera a razão.
Bem... talvez tivesse. Riu com amargura. Afinal, agora estava vendo as feições de Steven em um manequim de uma vitrine.
Ainda sentia a falta dele, porém seguira com sua vida. Steven morrera sob circunstâncias cruéis, e ela seria uma tola se esquecesse que coisas horríveis acontecem.
Uma brisa suave e fresca levantou seus cabelos. Imaginou se a mesma não pudesse levar o passado de sua mente. Ela amava a Itália, adorava Veneza, e não iria permitir que a condessa lhe estragasse as férias.
Afastou o olhar da vitrine e continuou a andar.
De repente, voltou a se sentir vigiada.
Teve a sensação de que alguém estava bem a seu lado. Percebeu um incômodo sussurro, frio e fétido. Era como se dedos gelados lhe tocassem no ombro.

Gino Meroni não desgostava de seu trabalho.
Anos antes, quando era um garoto, os pais haviam imigrado para a América. Estudara em um colégio em Nova York, mas precisara parar por não ter nem o dinheiro, nem a inclinação para prosseguir com os estudos. Aos dezoito anos, declarara sua independência. Deveria estar trabalhando para ajudar a família, mas não suportava o choro dos bebês, muito menos as orações da mãe e sua insistência para que ele freqüentasse a igreja todos os domingos. Tampouco agüentava o ar de tristeza quando ela o alertava sobre estar andando com gente errada.
Contudo, seus amigos conheciam os bares mais baratos. Sabiam bem onde conseguir dinheiro quando estavam sem nenhum. Conheciam as rotas mal policiadas. Eram excelentes em aliviar pessoas do peso de suas bolsas, carteiras e pacotes.
Em uma noite quando estava na Quinta Avenida, cometera o erro de assaltar um policial à paisana.
Não queria ficar na cadeia e ligara para casa. O pai se recusara a livrá-lo. No entanto, ele acabou não indo para a prisão porque o advogado tinha conseguido que a pena fosse paga com trabalho comunitário. E esse trabalho o levara ao Central Park, um lugar onde ele havia aprimorado a arte de surpresa e ataque.
Uma certa noite, uma paulada na cabeça de um velho, que tinha pegado a prostituta errada, acabou por matar o homem. Gino não percebera isso na hora, havia lido a notícia no jornal do dia seguinte. Não ficara com medo de ser preso. Tinha aprendido a usar luvas, atacar e correr. Não tinha sido visto, nem deixara impressões digitais na madeira com que matara o homem. A prostituta, que não tinha visto o rosto dele, nem o ouvido falar, correra mais depressa do que ele depois do homicídio.
A ausência de medo de ser pego era algo que o surpreendia. Não sentia remorso algum por ter matado o homem. Afinal o sujeito era um velho sujo. O golpe na cabeça o tinha livrado de sofrimentos futuros.
Roubar as pessoas distraídas não era o suficiente. Precisava de um trabalho. Assim acabou trabalhando nas docas e levou o emprego a sério. Em um bar uma noite, ele conheceu um estranho que lhe deu algumas dicas de como melhorar a sua renda.
Ele concordou em se encontrar com o sujeito novamente.
O homem abriu um novo mundo à sua frente.
Primeiro, havia as drogas. E que diferença faziam depois de um longo dia de trabalho duro. Gino era um homem bonito. O estranho não somente lhe arranjou drogas, como mulheres. Ele fez sucesso. Gostavam de seu sotaque. Todas as noites, ele desfrutava de alguma coisa nova.
Sabia, claro, que nada na vida era de graça. Esperava que o estranho lhe pedisse alguns favores em troca. E era serviço fácil. Passou a introduzir certos carregamentos nos navios, sem que passassem por vistoria alguma. Ficava mais do que feliz em atender esses pedidos. A essa altura já tinha um carro novo e um apartamento decente. Por vezes passava a noite em algum hotel apenas pelo gostinho de poder ficar ali.
Pagava pouco, ganhava muito.
Então, em um fim de tarde, quando estava para encerrar o dia, dois inspetores chegaram às docas. O Estrela de Sheba, registrado como um navio de um país do Oriente Médio, estava para deixar o porto. Havia mercadoria infiltrada ali ilegalmente. Era uma carga importante, o amigo lhe havia enfatizado. Quando os inspetores chegaram, os estivadores desconfiaram de que algo estava errado e sumiram. Assim, Gino se encontrou sozinho com os dois homens do governo.
Um deles colocou de lado uma barra de ferro e Gino decidiu usá-la.
Escondeu os dois homens mortos atrás da mercadoria ilegal. O Estrela de Sheba partiu na hora certa. Mas os corpos foram achados, e desta vez, ele tinha se esquecido de se livrar da barra de ferro, e testemunhas o tinham visto com os dois homens do governo. A parte boa da história foi que a mercadoria ilegal chegou ao seu destino sem ser mexida. O pior foi Gino ser preso e acusado de assassinato.
O amigo, naturalmente, lhe arranjou uma advogada muito bonita. Quando tentou flertar, descobriu que a dra. Jill Barret era também muito inteligente. Jill logo o colocou em seu lugar e explicou a gravidade de sua situação.
Segundo ela, a cadeia era um lugar ruim. Havia dúzias de sujeitos bem maiores do que ele. Desse modo, o melhor era que escapasse e saísse do país. Jill conhecia um lugar na Itália, Gino poderia voltar para sua terra natal. Ele era de Bari e Jill de Veneza. Mas isso não importava. Havia muito serviço que ele poderia fazer lá para ela. Seriam providenciados documentos falsos. A idéia o agradara mais do que ter de conviver com a escória, homens sujos, sem dentes, verdadeiros animais.
A fuga foi providenciada para o dia em que ele iria ser transferido para outra prisão. A escolta policial foi detida por outro carro de policia e desapareceu. Na verdade, ele mesmo não entendeu o que acontecera, tampouco perguntara.
Em um hotel perto do aeroporto recebeu roupa e o passaporte com uma nova identidade. Chegou a Veneza via Paris. No começo tinha pouca coisa a fazer. Terminou descobrindo que dra. Barret era uma mulher importante. O trabalho variava entre entregador e dirigir uma lancha. Jill estivera fora dali por anos, agora voltava para a casa da família. No entanto, viajava muito, passava pouco tempo em Veneza. Ela era uma mulher rica e tinha muitas obrigações sociais a atender em outros países.
Com o tempo, ele descobriu como os seus verdadeiros talentos seriam usados. Mas não se importou com isso.
Não desgostava do trabalho. Não se importava que o lugar fosse frio, nem que seu trabalho fosse sujo.
Mas naquele instante sentia medo pela primeira vez na vida.
Jill era maravilhosa, porém era melhor não irritá-la.
No meio de seu trabalho, enchendo e pesando toneis que ele afundaria no fundo do Mar Adriático, Gino sentiu um arrepio.
Olhou à sua volta em desespero, contando e recontando os toneis.
Sentiu no coração um frio mais profundo que o que vinha do mar.
Estava faltando uma peça da carga.

Nada.
Jordan se virou bem devagar mais uma vez, incapaz de deixar de ouvir um sussurro em seu ouvido. Observou atentamente as ruas à sua volta, esperando ver Tiff que a teria seguido, pronta para conversar de novo.
No entanto, não havia ninguém na rua movimentada que parecesse interessado nela. Pessoas passavam rindo e falando as mais diferentes línguas: inglês, italiano, alemão e francês.
Agora já não sentia mais a sensação de alguém tocando em sua nuca ou murmurando em seu ouvido.
Então, subitamente, ouviu o seu nome sendo chamado.
- Jordan!
Olhando na direção que o som viera, viu Lynn Mallory, uma artista plástica americana que trabalhava em uma loja ali em Veneza, a Arte della Anna Maria.
- Lynn!
- Jordan! Onde está a sua fantasia?
- Preferi traje casual nesta manhã.
- Bem, depois do que lhe aconteceu ontem...
- Ah, você já soube também... - Jordan murmurou com desgosto.
- Alguns de nossos clientes estavam no baile e nos contaram o que houve. Mas diga-me, você está bem agora?
- Sim, estou. Descobri que o conceito de diversão da condessa é macabro. Tudo foi muito real - Jordan percebeu que estava na defensiva.
- Bem, não vai precisar ter medo quando for ao nosso baile, querida. - Lynn se alegrou de repente. - Esta noite estaremos todos no baile dos artistas. Mas na sexta-feira, haverá o baile da Anna Maria. Temos um palácio também. Alugado, claro. E sem criaturas estranhas.
- Bem, Jared já deve estar com as entradas. Tem certeza de que quer que eu vá?
- Ora, mas é claro que sim! - Lynn riu. - Certamente Jared lhe contou que o baile de sexta-feira é o nosso.
- Ele só mencionou o da condessa, pois parece que ela é muito importante para o trabalho dele.
- A condessa... ela é uma mulher nobre e rica. Sua festa é definitivamente para a elite. Só vai quem é convidado.
- Bem, eu preferiria não ter sido convidada. Agora parece que fiquei famosa por aqui. O sorriso de Lynn aumentou.
- Lamento que a notícia tenha se espalhado, minha amiga. Você sabia que nem todo mundo gosta da condessa?
- Lynn! - Anna Maria, uma mulher alta e magra na casa dos quarenta anos, saiu da loja naquele momento. - Isso é despeito. Diz isso porque não foi convidada. A condessa é uma mulher maravilhosa. E ela tem feito muito por Veneza.
- E você também tem feito, mas é como se nem existisse! - Lynn protestou.
- Jordan, não preste atenção em nenhuma de nós duas. - Anna Maria pegou um cigarro e o acendeu, aspirando-o e exalando a fumaça com um leve suspiro de prazer.
- Tenho de admitir que adoro ouvir falar alguma coisa de ruim sobre a condessa - Jordan comentou. - Se tudo foi apenas uma simulação, então foi de péssimo gosto.
- Foi tudo um teatro? - Lynn quis saber.
- É o que todos querem que eu acredite. - Jordan deu de ombros. - A polícia se irritou, meu primo ainda está bravo, e a condessa...
- A festa dela era exclusiva, mas não explica o espetáculo doentio. Eu lhe garanto de que o baile dos artistas desta noite será maravilhoso. Então, o que vai usar?
- Tenho apenas uma fantasia...
- Uma não é o suficiente, meu bem. Venha, vamos entrar. Encontraremos algo para você! Uma fantasia para o baile desta noite e outra para a nossa festa de sexta.
- Mas não é necessário...
- Ah, é sim! Estamos em Veneza e é Carnaval, você tem de desfrutar de todo o seu esplendor.
Jordan hesitou, pensando que talvez devesse voltar ao hotel, contudo se sentia bem com as pessoas que não a julgavam uma maluca. Seria divertido usar uma nova fantasia.

Jared gostava de tomar transporte público em Veneza, especialmente os vaporettos. Mas naquele dia tomara uma lancha particular.
Chegou ao palácio, e foi levado ao quarto da condessa, um aposento maior que muitas casas inteiras. Havia o toque da Renascença ali, desde enorme cama de dossel até os tapetes persas. Sobre a lareira da antessala havia duas assustadoras gárgulas uma de cada lado, como se o par guardasse as chamas que poderiam ser um portal direto para o inferno.
A condessa, vestida com um elegante roupão de seda branca, estava sentada em um sofá em tom carmesim junto à lareira. Um serviço de chá estava à sua frente. Olhou para Jared com frieza e raiva controlada quando ele entrou.
- Condessa...
- Eu fiz tudo por você. - Um leve sorriso surgiu nos lábios dela. -Tudo. E você não conseguiu manter sob controle aquela intrometida em minha festa?
- Não sei como ela se afastou de mim...
- Essa justificativa não é aceitável.
A condessa não o convidara a sentar-se. Jared ficou de pé, sem saber bem o que fazer, até que se aproximou dela. Seus olhares se cruzaram, ele se ajoelhou, inclinando a cabeça.
- Peço-lhe perdão.
Nari exibiu a primeira página do jornal. Uma repórter contava os detalhes do ocorrido na festa, nitidamente a favor da anfitriã, em texto escrito com bom humor. Apesar de o nome da condessa ser mencionado com destaque, Jordan era citada apenas como uma ingênua turista americana.
- Lamento - ele repetiu.
- Faça com que ela pare com todo esse absurdo.
- Já conversamos a respeito. A condessa caiu na risada.
- Bem, vamos ver. Se eu for forçada a me responsabilizar por esse assunto...
- Posso controlar Jordan.
- Oh, imagino que sim.
- Não se esqueça de que a senhora me mandou trazê-la à festa.
- Esperava que a controlasse.
Jared continuou ajoelhado, a cabeça abaixada.
- Tudo o que tem é por minha causa.
Ele meneou a cabeça em concordância.
- Agora caiu em desgraça.
- Vou... vou embora, então.
Ela tocou no cabelo dele, um movimento tão leve como um suspiro.
- Não! - ela exclamou depois de um momento. - Pode ficar mais um pouco porque estou entediada nesta manhã. Vou permitir que tome chá comigo. Gostaria disso, não é?
- Para tomar chá com a senhora, condessa, eu até morreria. - Ao levantar a cabeça, prendeu-a pelo olhar e ganhou um sorriso.
Nari se levantou e ficou parada junto ao fogo.
- Sim, meu querido rapaz, você morreria por mim.

- Está vendo? Vai usar isto! - Raphael Gambi colocou na cabeça o chapéu adornado com contas. Fez uma pose sugestiva. Jordan riu. As brincadeiras de Raphael tinham conseguido que ela quase se esquecesse completamente da condessa e o malfadado baile.
- Vinil? - Ela jamais usara vinil antes a não ser nos sapatos e bolsas. - Em mim?
- Oh, si, si! Não para o nosso baile. Mas para o baile do artista nesta noite? Sim, sim. Ousado, provocante! Você vai abafar.
- Não tenho certeza se quero tanto sucesso - Jordan murmurou.
- Posso imaginar... - Raphael lançou um olhar de pena a Jordan. - Sim, eu ouvi. Que mulher horrorosa!
Jordan arqueou a sobrancelha, e ele deu de ombros.
- Ela se considera boa demais para entrar em nossa loja. Pensa que é a rainha de Veneza. - Os olhos de Raphael brilharam subitamente, sua atenção voltada à fantasia. - Confie em mim, em vinil, você vai superar essa mulher horrorosa.
- Não sei não... Vou pensar. Agora, para a festa de vocês...
- Nenhum problema. O traje de fada - ele disse com firme determinação.
O traje a que ele se referia era branco, prateado e dourado.
Acompanhava uma tiara com penas e seda.
- Tem certeza?
- Claro que tenho.
Anna Maria apareceu junto à escada que levava aos provadores.
- Desculpe, mas Roberto Capo está aqui. Ele disse que você havia separado alguma coisa para esta noite.
- Oh, sim! - Raphael bateu palmas. Sorriu para Jordan. - É um amigo. Adora o baile dos artistas. Volto em minutos - ele disse, descendo as escadas apressadamente.
- Vem conosco para o café? - Anna Maria convidou Jordan. - Estaremos esperando na calçada enquanto você se troca.
Jordan trocou de roupa e desceu as escadas, notando que Raphael estava falando com um homem moreno e não muito alto. O homem se voltou, e ela o reconheceu como sendo um dos policiais com quem estivera na noite anterior. Como ele não falava inglês muito bem, mal haviam conversado. Agora ele se voltava e lhe sorria.
- Buon giorno, signorina Riley. Hoje... está bem? - ele a questionou.
- Sim, obrigada. - Ela ergueu as mãos para o ar, justificando. - É que tudo parecia tão real...
Perdera a conta quantas vezes dissera a mesma coisa! Roberto Capo balançou a cabeça.
- Entendo. Mascarados, simulações... isso tudo pode...
- Mexer com nossa imaginação - Raphael completou. Capo concordou.
- Sou Roberto.
- Sim, Roberto Capo, eu me lembro.
- Lamento pelo seu problema de ontem.
- Tudo bem. Agora vou deixá-lo escolher uma fantasia.
Jordan virou-se para sair, mas um tanto sem jeito, ele a chamou, tocando em seu ombro. Era um homem bonito, ela notou, com olhos escuros, feições clássicas e uma boa estatura.
- Se tiver medo, por favor, me procure. Eu não... - Roberto se voltou para Raphael como que pedindo ajuda para encontrar as palavras certas.
- Ele não vai rir de você, nem ficar bravo - Raphael completou.
Roberto falou alguma coisa bem depressa, e o outro traduziu.
- É sempre melhor investigar. E ele quer contar com sua ajuda, se vier a precisar.
Jordan olhou surpresa para os dois homens.
- Ficaria feliz em ajudar a qualquer hora. Se precisar de mim, estou no Hotel Danieli. - Ela sorriu, satisfeita.
- Gostaria de saber mais... de como a senhorita chegou ao posto policial. - Roberto balançou a cabeça.
- De barco.
- Fugiu do palácio, então?
- Um lobo... - Jordan hesitou. - Bem um dos convidados, vestido de lobo, me levou até o barco.
- Quem era ele? A senhorita o conhecia? Sabe como ele se chama?
- Lamento, mas não.
- Se o vir novamente, me avise, eu gostaria de falar com ele.
- Acho que não o reconhecerei. Ele usava uma máscara.
- E a voz?
- Fique tranqüilo que se eu ouvir qualquer coisa familiar, mando avisá-lo imediatamente. - Jordan acenou uma despedida e deixou a loja.
- Ah, aí está você! -Anna Maria exclamou.
- Desculpe-me por ter demorado tanto.
- Eu é que agradeço pelo atraso. O movimento está uma loucura.
Anna Maria abriu caminho por entre as lojas populares e chegaram a uma viela.
Por um momento, uma nuvem encobriu o sol. Jordan sentiu um arrepio e fechou melhor o casaco. A impressão era de que enormes asas negras estivessem sobre a viela, engolindo a claridade como uma enorme ave faminta.
- Ah, arranjamos uma folga, e lá se vai o sol! - Lynn resmungou, aparentemente não vendo nada de estranho na inesperada escuridão.
Jordan tentou se recompor, porém não pôde continuar a caminhar sem antes fazer uma parada para prestar atenção a todos os ruídos.
Nenhum som...
O pequeno café na viela estava cheio. Mesmo assim os expressos eram servidos no balcão para quem estava em pé. As três se ajeitaram em um espaço entre o balcão e uma parede, e fizeram os pedidos.
As três conversaram sobre amenidades até que Anna Maria decidiu que já era hora de voltar à loja.
No caminho, Lynn foi apontando para as placas com os nomes das ruas. Enquanto Jordan tentava memorizar alguns detalhes, distraiu-se e terminou por chocar-se contra alguém.
Perdeu o equilíbrio e foi segura por duas mãos fortes. Ao levantar o olhar deparou-se com um homem muito bem-vestido em um terno Armani, uma moldura perfeita para um corpo robusto. Ele era bem alto, cabelos castanhos claros e olhos azuis. A julgar pelos cabelos rebeldes, que chegavam até os ombros, ela o imaginou um cantor de rock.
- Você está bem? - ele perguntou em inglês.
- Ragnor! - Anna Maria exclamou, interrompendo-o.
O homem se inclinou e beijou Anna Maria nos dois lados do rosto, o cumprimento foi retribuído entusiasticamente. Lynn também o cumprimentou, então apontou para Jordan.
- Ragnor, esta é a srta. Jordan Riley. Ragnor é amigo de todos nós da loja. Jordan é iniciante no que diz respeito a Carnaval.
- Bem-vinda, então.
Um pensamento cruzou a mente de Jordan. Pela estatura daquele homem e maneira de se portar, imaginou que pudesse ser a mesma pessoa que a tirara da festa da condessa.
No entanto, Ragnor não mostrava sinais de que a estava reconhecendo.
- Você estava ontem no baile da condessa? - ela perguntou, decidindo que somente uma pergunta direta poderia lhe tirar as dúvidas.
- Não - ele respondeu.
Os olhos dele haviam brilhado mais forte por um segundo ou tudo não passava de sua fértil imaginação?
- Ragnor não iria a uma festa da condessa - Lynn disse toda satisfeita. - Ele também não gosta dela.
- Lynn! - Anna Maria lançou um olhar de alerta para a colega.
Ragnor continuava a olhar para Jordan.
- Mas foi o que você me disse outro dia no café, não foi, Ragnor? - Lynn persistiu. Lançou um olhar para Anna Maria. - Não estou divulgando segredo algum. Estou apenas tentando fazer com que Jordan se sinta melhor por não gostar daquela mulher.
- Eu jamais entraria em uma lista de convidados da condessa - Ragnor constatou. - Percebo que estão com pressa e não quero retardá-las.
- Estamos voltando para a loja. - Anna Maria sorriu. - Por que não passa por lá para conversarmos? Você pretende ir ao baile dos artistas hoje à noite?
- Sim, é claro. E passarei pela loja. - Novamente ele beijou Anna Maria e Lynn no rosto, e ofereceu a mão para Jordan. - Prazer em conhecê-la, srta. Riley.
- Obrigada.
- Se vai passar pela loja, não demore. Estamos tentando convencer Jordan a vestir uma fantasia de vinil para o baile desta noite. Você poderia ajudar com a sua opinião.
- Talvez - respondeu ele, educadamente, então acenou em despedida.
Elas retomaram o caminho da loja, e Anna Maria e Lynn iniciaram de imediato uma discussão sobre qual poderia ser a fantasia certa para um homem da altura de Ragnor.
- Quem é ele? - Jordan perguntou.
- Ragnor é... um homem de negócios - Anna Maria explicou.
- Nós o conhecemos faz pouco tempo - Lynn acrescentou.
- Ele não é italiano, certo? - Jordan ainda não sossegara com as informações.
- Não.
- Ele me lembra alguém que conheci a noite passada.
- Isso seria impossível - Lynn contestou. - Ele tem razão, jamais entraria em uma lista de convidados da condessa. E sabem o que penso?
- Temo que vamos descobrir agora. - Anna Maria suspirou fundo.
- A condessa tem ciúmes dele. Ragnor não tem título algum, nem história, mas há rumores de que ele vem de uma família extraordinária. Não é exibido nem pretensioso, tanto que as pessoas querem estar perto dele. Ele tem carisma, algo que atrai bastante.
- Ele é um homem muito bonito e inteligente. Além de se interessar por Arte e História. E por Veneza, é claro. - Anna Maria suspirou.
- E o que dizer daquele corpo? - Lynn abriu um sorriso. Anna Maria revirou os olhos e mudou de assunto:
- Venha, Jordan, vamos experimentar o traje de vinil.

Nari estava cansada, aborrecida, faminta e inquieta. Na noite anterior, com o escândalo em sua festa, não tivera chance de se divertir nem um pouco.
Deveria estar descansando agora, e não passeando pelas ruas com tanta naturalidade, apesar da máscara que usava. Afinal tinha uma posição a zelar.
Estava definitivamente...
Faminta.
Precisava encontrar alguém com a qual pudesse matar a fome. Sem mencionar o fato de que não queria ficar em casa.
Não gostaria de ser surpreendida em pleno descanso por visitantes indesejados. Na certa, ele apareceria por lá. Estivera a observá-la, esperando. Ele se achava no direito de aparecer, dar-lhe ordens e forçá-la a mudar os seus hábitos.
Ah, se soubesse como estava enganado!
Ele não sabia quem estava em Veneza agora e com quem ela vinha convivendo. De súbito, sentiu-se tomada por uma nostalgia, uma sensação de perda e dor. Com certeza, porque o tinha visto de novo. Lembrou-se de como tinha sido.
Deu uma volta pela Praça de São Marcos, escutando a orquestra que estava tocando, observando cada pessoa em particular... alguém que quisesse compartilhar de algum tempo com ela.
Impaciente, bateu o pé no chão acompanhando a música. Quanta gente tola naquela festa de rua. Continuou a observar e então viu a mulher americana, Tiff Henly. Não estava fantasiada. Era atraente, embora já não tão nova. Nari tinha ouvido rumores de que o último marido de Tiff chegara perto dos noventa anos. Naturalmente demorara mais tempo para morrer do que a esposa antecipara.
Naquele momento a americana olhava a vitrine de uma das joalherias mais caras de Veneza.
Nari sorriu e começou a caminhar em direção a ela. Tiff adoraria ser convidada para almoçar.
Mal dera dois passos quando um homem de baixa estatura e cabelos grisalhos se reuniu à americana, assim como outros dois mais jovens, estes usando capas e máscaras bizarras. O grupo olhou para a vitrine, discutindo as qualidades dos itens expostos.
Outra mulher se uniu ao grupo. Nari suspirou e balançou a cabeça.
Ela estava exausta. Realmente não tinha energia para lidar com esse tipo de gente naquele momento. Ainda assim, precisava de uma refeição, por menor que fosse. Apenas uma pequena mordida. Estava com tanta fome...
Levantou a gola de sua capa protegendo-se da brisa de inverno, virou-se e entrou no meio da multidão.
Ainda havia claridade.
Ela simplesmente ainda não estava em seu auge.
Mas a noite viria em breve.
- Molto, molto... - Raphael gesticulou, então sorriu. - Muito sexy. -
Jordan estava no provador vestida com um macacão de vinil vermelho, sentindo-se ridícula.
- Pareço uma meretriz - declarou para Anna Maria e Lynn.
- Não, nada disso! - Raphael protestou, sacudindo a cabeça. - Parece uma heroína de história em quadrinhos! Agora, as botas vão dar o toque final.
- Dêem-lhe um chicote e correntes e ela poderá domar leões.
Surpresa, Jordan se voltou. O homem alto estava na loja, encostado na parede. Em princípio não o havia visto por conta dos inúmeros marionetes pendurados, restringindo-lhe o campo de visão, sem contar com os manequins e araras de roupas.
Ele então se antecipou e a estudava com a mesma acuidade que Raphael. Entretanto, a avaliação parecia mais hostil.
- Ora, Ragnor, ela está maravilhosa! - Anna Maria protestou.
- Ah, sim, concordo. Mas tenho impressão de que a srta. Riley não quer parecer... assim tão provocante nesta noite. - Um sorriso surgiu em seus lábios. - Com essa roupa, ela só não receberá a atenção dos cegos.
Jordan não se sentira bem com o traje, mas se irritou com o comentário daquele estranho. Olhou para Raphael e tomou uma decisão.
- Penso que combina comigo. Vou levá-lo.
- Muito bem! - Raphael aplaudiu. Ragnor deu de ombros.
- Espero que a polícia esteja de plantão hoje. Tenha uma noite agradável, srta. Riley. - Ele inclinou a cabeça na direção dela, beijou Anna Maria no rosto, e deixou a loja.
- Talvez o traje seja muito... - Jordan começou a dizer.
- Ele é perfeito! - Lynn anunciou. - Estamos no Carnaval, Jordan, e você não está parecendo uma... A fantasia é incrível!
Jordan consultou o relógio, sentindo-se culpada por ter largado Cindy.
- Melhor eu voltar ao hotel. Mas vou usar a fantasia. Prometo.
- Não há nada a temer. - Anna Maria sorriu. - Todos nós estaremos no baile e a protegeremos dos lobos.
O comentário foi feito como uma piada, mas Jordan chegou a sentir um arrepio correr pelo corpo.
- Enfim, se estiver na companhia de vocês, estarei bem. Bom, agora tenho de ir.
- Eu a acompanharei - Raphael se ofereceu. - A praça deve estar uma loucura agora, cheia demais.
- Eu estarei bem...
- Não se preocupe. Eu preciso mesmo entregar uma fantasia em seu hotel.
- Obrigada, então. - Enquanto trocava de roupa, Jordan ficou pensando se não deveria ter seguido o conselho do estranho.
Quando estava pronta, encontrou Raphael com um enorme pacote.
- Andiamo - chamou ele, alegre. - Não se distancie de mim.
Jordan sorriu, seguindo-o de perto.
Passaram pela basílica, e atravessaram a ponte do Palácio dos Doges até o Hotel Danieli, onde se separaram no lobby.
- Aposto que vai desbancar qualquer mulher na festa - Raphael garantiu, beijando-a no rosto.
Jordan agradeceu e ficou imaginando se Jared teria voltado ao hotel.
Ragnor chegou ao palácio em uma lancha alugada, pedindo que o barqueiro esperasse, mesmo se ele passasse mais de uma hora lá dentro.
Desceu com cuidado, atento às ondas, batendo nas docas.
Quando não atenderam à porta, ele a abriu. Como era de se esperar, surgiram os criados, um homem magro de uns sessenta anos, vestido de preto, e uma mulher com expressão de mau humor. Estavam esperando por ele, mas por que haviam ignorado a batida na porta, Ragnor ainda não compreendera.
- Onde ela está?
- Não está em casa - disse o mordomo. - E o senhor está invadindo o palácio, destruindo a privacidade da propriedade da condessa...
- Chame a polícia, se quiser - Ragnor sugeriu. Ignorando o casal, dirigiu-se às escadas. O criado tolamente tirara uma espada e agora tentava lidar com o pesado metal. O idiota. Jamais alcançaria o pescoço de Ragnor com um golpe.
Ele evitou o primeiro golpe, e por fim desarmou o criado com facilidade. Subiu as escadas e entrou no quarto da condessa.
Aparentemente os criados não haviam mentido. A condessa não estava ali. Ele examinou o guarda-roupa. Foi até o closet e o banheiro, mas não havia nem sinal da mulher.
Desgostoso, deixou o quarto, e seguiu para o salão do segundo andar. Estava tudo muito limpo. Ajoelhou-se e tocou no chão. O forte cheiro de desinfetante e de produto de limpeza lhe invadiu as narinas.
Levantou-se e se voltou ao sentir a presença de alguém. O criado que ele desarmara havia arranjado ajuda. Os dois homens que o encaravam eram quase do seu tamanho.
E bem armados. Onde, diabos, ela encontrara aqueles homens?
Ele abanou a mão.
- Senhores, venham e me peguem. - Consultou o relógio. - E façam isso depressa, por favor.
Se a condessa não estava ali, onde estaria?

Diferente da festa da condessa onde somente se entrava com convite, o baile dos artistas era aberto a todos, e parecia que a metade da população de Veneza decidira comparecer. Enquanto caminhava pelas ruas, Jordan sentiu a atmosfera alegre e cheia de expectativa. Todos riam à sua volta, e aqueles que usavam fantasias e máscaras de nobres se cumprimentavam com reverências elegantes.
Jordan estava de braço dado com Cindy, ignorando Jared que continuava obstinado. Ele tentara dissuadi-la a ir à festa.
- Jordan, não é uma boa idéia. Depois de a noite passada...
- Não se preocupe, primo. Não vou embaraçá-lo diante de seus amigos.
- Você há de concordar comigo que exagerou...
- Está preocupado comigo, ou com sua própria aparência?
- Isso importa? Se terminar berrando que há sangue, monstros e cultistas...
- Jared, nem vou ficar com você no baile.
Isso pareceu perturbá-lo. Cindy começava a ficar aborrecida com o comportamento do marido, mas tentava ser fiel a ele e a Jordan ao mesmo tempo.
- Então pensa que vai ficar perambulando pela festa sozinha? Com esse traje? Esteja certa de que cada cão perdido de Veneza vai estar nos seus calcanhares.
- Pelo amor de Deus! Não vou fazer nada de anormal, não vou acusar ninguém de assassinato em frente aos seus amigos!
Irritada, ela se apressou e tomou uma boa dianteira do casal. Para sua surpresa, o primo correu a alcançá-la.
- Jordan. Desculpe.
Ela hesitou. Não podia ver a expressão do rosto do primo, somente seus olhos. E estes remetiam ao primo carinhoso que Jared sempre fora.
- Sabe, Jared, um dos policiais conversou hoje comigo na loja de fantasias. Não demonstrou acreditar que sou maluca. Coisas ruins acontecem o tempo todo.
- O fato é que você ficou contra a condessa. Talvez por não saber, ou não entender, quem ela seja de verdade.
- Sei quem ela é e o que ela significa para você. Subitamente, Jared sentiu-se péssimo.
- Acredite em mim, você tem como conhecê-la. Se soubesse quem ela é...
- Pois vou me divertir, e não pensar em sua condessa. Vou evitá-la a noite inteira.
- É improvável que ela apareça neste baile.
- Muito popular para o gosto dela?
- Bem, digamos que ela não aprecie multidões.
- Então estaremos bem, não acha?
Jordan se surpreendeu ao ouvir Jared concordar.
- Sim, claro. Mas, por favor, por mim, comporte-se.
- Fique tranqüilo. Se me perguntarem sobre a festa, direi apenas que achei tudo macabro demais para o meu gosto.
Ele concordou, aliviado. Cindy se aproximou, satisfeita que os dois tinham se entendido.
- Estamos chegando. Jordan, saiba que no ano passado os artistas exibiram uma dança meio...
- Eles se esfaquearam? - ela perguntou e desejou morder a língua no mesmo instante.
- Não, a dança foi muito erótica. - Cindy riu. - Bem, vamos ver neste ano. Ah, olhe a multidão!
Eles tinham chegado à praça. Dezenas de pessoas estavam em fila, entregando os seus bilhetes para o porteiro. Este tinha o rosto pintado de branco e preto. Jordan observou o homem cuidadosamente. Não se lembrava de tê-lo visto antes.
Dentro de uma enorme tenda montada para o baile, havia mesas em volta de um palco. Jared sugeriu que elas encontrassem uma mesa enquanto ele ia providenciar bebidas.
Jordan e Cindy foram abordadas por uma rainha mascarada, vestindo um elaborado traje em veludo que brilhava com as pedrarias.
- Meninas!
- Raphael? - Jordan indagou, surpresa. Ele riu com prazer.
- Sim, claro, venham, temos uma mesa logo ali.
- Jared foi arranjar bebidas - Cindy informou.
- Ótimo! Temos vinho em nossa mesa e cadeiras para todos.
Raphael levou-as até a uma mesa. Anna Maria, linda em um traje egípcio, levantou-se para saudá-las. Lynn, usando uma vestimenta bíblica, ergueu-se também, beijando Jordan no rosto, e cumprimentando Cindy depois. Havia outros funcionários da loja, além de vários clientes e fornecedores.
O mestre de cerimônias anunciou a orquestra e a música começou a tocar. Jared apareceu, sem a máscara agora, perguntando a Raphael se podia roubar a sua prima por um minuto para uma dança.
- Está gostando? - ele quis saber.
- Oh, sim. E você?
O sorriso dele aumentou.
- Muito. Aproveito para me desculpar novamente.
- Lastimo se o magoei de alguma forma, Jared. Eu não direi mais nada a não ser que um cadáver caia no meu pé.
- Jordan... Vamos esquecer tudo o que passou. Estamos em uma festa. E lamento ter criticado a sua fantasia. Você apenas está sexy demais. E eu como primo...
Raphael os interrompeu, trazendo duas taças de champanhe.
- Com licença, mas vá dançar com sua esposa - sugeriu ele a Jared.
- Agora eu tenho de receber ordens de você? - Jared brincou.
- Sim, esta noite sou uma rainha. Caia fora, vamos!
Jared piscou para Jordan e saiu em busca de Cindy. Jordan o observou ir, rindo, feliz. Parecia de novo o primo que conhecia e amava.
- Saúde! - Raphael brindou,
Ela o imitou, tomando um gole da bebida. Logo sentiu a cabeça começar a girar.
- Acho que já passei da minha conta.
- Hoje vale tudo. Relaxe. Estamos em Veneza. - Raphael começou a cantar. Parou de repente. - Esqueci que sua roupa é de vinil. Imagino o calor que não está- sentindo. Quer se sentar?
Jordan sorriu, agradecida. Raphael a levou de volta à mesa quando o mestre de cerimônias anunciou a próxima atração. Em um repente as luzes se apagaram, restando apenas um ponto iluminado.
A cadeira dela estava de frente para o palco. Tirou a máscara e observou uma linda jovem aparecer sob a luz. O traje era de um azul fluorescente, os cabelos longos e escuros. Uma corda de nylon surgiu de repente do teto. Bem devagar e com movimentos sensuais, ela se aproximou da corda. Pegou-a e foi subindo com incrível agilidade. Enroscou-a em torno dos quadris, e fez poses ao som de uma flauta e um violino.
A música entrou em um ritmo especial. Um homem apareceu no palco, usando uma roupa similar, mas em dourado. Tomando a ponta da corda, uniu-se à moça. Seus corpos assumiram formas quase irreais. Ao voltarem juntos para o chão, deram início a uma dança acrobática. A música e a performance estavam repletos de sensualidade.
Jordan encontrava-se imóvel como os demais espectadores, apesar de que a certo momento tomara consciência de que havia alguém atrás de si. Percebeu que Ragnor ocupava agora na cadeira a seu lado, próximo demais. Os olhos dele estavam presos nos dançarinos, embora soubesse que ela notara a sua presença.
- Eles são realmente incríveis, não são? - ele murmurou.
Não fez movimento algum, mas Jordan podia jurar que estavam ainda mais próximos. Tinha certeza de que as palavras eram para ela apenas. Ragnor falava com suavidade, o tom de voz profundo, sentida na pele do pescoço como uma carícia. - As capacidades da mente e do corpo humano são admiráveis... quando todas as suas vias são exploradas.
Os olhos dele se voltaram para Jordan. Ela se viu discordando por mera provocação.
- Eles são apenas contorcionistas e dançarinos extraordinários. Na certa praticam dança e ginástica desde criança.
Ragnor sorriu levemente.
- Ah, essa é a voz de uma mente prática! O conjunto da luz com a música não lhe passa uma sensação de magia?
Jordan sentiu o corpo quente demais,
- Eu diria que eles são excelentes artistas, e que o palco foi bem planejado, que a iluminação e música são maravilhosas.
- Então não sente nenhum apelo emocional? - Ele não se movera, mas a sensação de proximidade continuava intensa.
- Os dois são muito bonitos...
- Sente a beleza, de fato?
- Talvez fosse melhor que você fizesse brincadeiras semânticas com outras pessoas - ironizou ela. Contudo, não deixou de responder a questão: - Sim, sinto o belo. É como observar a beleza interior de alguém, a transparência de uma alma, a candura de um gesto...
Ele voltara a prestar atenção nos artistas, um pequeno sorriso curvou seus lábios.
- E quanto à magia? - perguntou, subitamente.
- Se percebo algo diferente? Não. - Onde ele estaria vendo magia? Na verdade, as sensações se aproximavam mais ao desconforto por estarem tão perto um do outro. Seria magia sentir a presença dele como se a estivesse tocando?
Jordan notou que muitos se abanavam no aposento. E havia a necessidade de se comentar. Os homens se inclinavam para as esposas, amantes, amigos, ou mesmo estranhos atrás das máscaras.
Se ele a tivesse tocado, seu instinto a teria feito pousar a mão sobre o joelho dele, inclinando-se em sua direção. Gostaria que Ragnor levasse os dedos em sua nuca, acariciando-a, também no rosto...
O calor na sala aumentara. Ela moveu-se em busca de sua taça de champanhe. Teria preferido um galão de água, qualquer coisa serviria.
Ragnor alcançou a taça, embora não parecesse fazer movimento algum. Quando as mãos se tocaram de leve, houve uma intensa troca de energia. Jordan tomou um gole da bebida, o calor se tornara implacável. Imaginou que não demoraria a cair direto nos braços desse homem, com toda a ansiedade e expectativa. O olhar dele era confiante, misterioso...
As luzes voltaram a acender. A sala voltou à vida com uma explosão de aplausos.
Jordan estava segurando a taça vazia. Ragnor não estava assim tão perto. Em volta da mesa as pessoas conversavam e riam, e Cindy estava nos braços de Jared. A cabeça dele próxima ao ouvido dela, murmurando alguma coisa que fazia os olhos dela brilhar, além de lhe trazer um sorriso aos lábios.
Jordan levantou-se, surpreendendo Raphael, que se sentava ao seu lado.
- Vi um amigo - ela mentiu e saiu rapidamente. Apressou-se a chegar ao bar para pedir um copo de água.
Antes que pudesse abrir caminho por entre as mesas, que estavam ao lado do palco, foi parada por uma mulher com um traje da Renascença que a agarrou pelo braço.
- Jordan Riley! Sou eu, Tiff. Tiff Henley! Pensei que era você quando vi o seu traje, mas você estava com a máscara antes. Essa roupa e incrível. Absolutamente arrasadora!
- Olá - Jordan cumprimentou-a. - Você também está linda nesta fantasia.
- Obrigada, mandei fazê-la sob medida. Mas perdeu toda a graça perto da sua. - Atrás da máscara, Tiff a media de cima a baixo. - Bem, parece que ela foi feita para você. Diga-me, é muito quente?
- Você não imagina o quanto.
- Talvez precise de um pouco de ar... alguma água. Por favor... Roberto, per favore, acqua per signorina Riley.
Jordan olhou para a mesa. Devia ter notado a presença do policial, Roberto. Ele se levantou ao chamado de Tiff.
- Gostaria de ir até lá fora onde está mais fresco? - ofereceu ele.
- Não precisa ausentar-se da festa por minha causa - protestou Jordan.
- Gostaria de andar um pouco.
- Vá, vá! Refresquem-se! - Tiff exclamou, pegando sua taça de champanhe. - Ah, Jordan, vamos tomar café amanhã, certo?
- Sim, certamente.
Roberto a ajudou a abrir caminho entre as mesas e vencer as barricadas que haviam colocado para controlar a multidão além da tenda. A lua cheia reinava no céu estrelado. O luar incidia direto sobre a tenda. A cena seria linda se não fossem os prédios antigos, que criavam um inquietante mundo de sombras em volta. O policial percebeu a necessidade de Jordan por luz e acendeu um cigarro. Ela se sentou, enquanto ele continuou de pé.
- Você não teve mais nenhuma outra... dificuldade? - Roberto quis saber.
- Nenhuma.
- Fico feliz em saber. Amo a minha cidade. Veneza é muito bonita. Não há lugar assim em todo o mundo.
- De fato esta é uma cidade fascinante.
Antes que ele pudesse fazer algum comentário, ouviram que alguém se aproximava. Não demorou para que Alfredo Manetti, outro policial que Jordan conhecera na noite anterior, se juntasse a eles.
- Boa noite, Roberto, srta. Riley...
- A srta. Riley está se divertindo bastante - Roberto noticiou ao colega em um inglês bem lento.
- Fico contente. Gostou da apresentação?
- Oh, sim! Nada de sangue ou coisa parecida.
- O baile dos artistas é bem diferente. Divertido, bonito... para todos. E acredito que a condessa esteja aqui... Apesar de que ela jamais admitiria se divertir em um lugar assim comum, mas eu vi uma linda Jezebel nesta noite, e aposto que era ela.
- Quem não gosta de festas, não é mesmo? - Jordan levantou-se. - Se me derem licença, creio que devo entrar. A festa parece ter acabado.
- Oh, sim, naturalmente. Jordan se voltou para Roberto.
- Obrigada pelo passeio. Está muito mais fresco aqui fora! Não esperou pela resposta e se apressou a entrar na tenda.
Notou que o homem que recebera os bilhetes na entrada estava agora dormindo, caído no chão. Passou por ele, e voltou a enfrentar a multidão que começava a deixar o lugar. Sentiu então que alguém lhe segurava o braço.
Era Lynn Mallory.
- Você está indo embora?
- Temos um dia duro pela frente amanhã. O Carnaval continua, você sabe.
Lynn parecia cansada, mas feliz.
- Onde estão todos? Ainda dançando?
- Penso que sim. Jared e Cindy parecem dois recém-casados. Ainda mais depois de terem assistido aos dois acrobatas. Anna Maria... penso que já foi. Há pouco vi Raphael com outra rainha. Estavam comparando as fantasias e as jóias.
- Obrigada, então. Boa noite.
- Vejo você amanhã?
- Claro. Vou tomar café no palácio de Tiff, mas passarei na loja à tarde.
Lynn despediu-se alegremente e saiu. Jordan estava abrindo caminho para chegar à sua mesa quando sentiu alguém lhe segurar o braço novamente.
- Você fugiu.
Era Ragnor, em uma fantasia da época da Reforma. Os calções, sapatos, camisa e um colete acolchoado tudo em preto. O cabelo parecia mais claro em contraste com a roupa. Para completar o traje, ele esta usando uma capa, também.
- Não. Eu não fugi. Fui apenas tomar um pouco de ar. Enquanto ela falava, percebeu que Ragnor a levava à pista de dança.
- Já é tarde...
- Quer escapar novamente?
Ela se deixou levar.
- Na verdade, já é muito tarde...
- Acho que você deveria ir embora. Mas para casa.
- Bem, gostaria mesmo de voltar ao hotel...
- Estou me referindo à sua casa. Seu lar acolhedor nos Estados Unidos.
Jordan arqueou a sobrancelha, mal acreditando no que acabara de ouvir.
- Isso foi rude de sua parte - disse por fim.
- Temo que você possa ser a causa de muitos problemas ocorridos por aqui - acusou ele.
- Eu?! Como se atreve? Uma mulher com poder e status privilegiado apresenta uma cena horrível e sou eu quem está criando problemas? Está defendendo a condessa?
- Não a estou defendendo. Mas penso que você deveria ir embora. Não entendo como pôde ir àquela festa...
- Oras, eu fui convidada!
- Você deve ter percebido que muitas das pessoas que você conhece não estavam no baile. - Ele balançou a mão no ar.
- Como soube onde eu estive? Pelo que sei não estivemos no mesmo lugar.
- A história está por toda Veneza.
- Ah, sim, pelo que ouvi. Mas isso já é passado...
- Verdade? A polícia a está vigiando.
- Ótimo! Não fiz nada de errado.
- Mas irritou a condessa.
- Sabe de uma coisa? Não estou nem um pouco preocupada.
- Mas deveria.
- Sou americana. Não me curvo diante da realeza européia. A conversa ríspida continuou enquanto dançavam pelo salão.
Seria um momento perfeito para ela se esquivar. Entretanto, não havia como escapar de Ragnor e de suas mãos grandes e dedos longos
- O engraçado é que tive a impressão de que você não gostava da condessa - ela observou. - Mas suponho que a opinião dessa mulher seja tão importante para você quanto para os outros.
- De maneira nenhuma.
- Então...
- Continuo dizendo que deve voltar para casa. Está se colocando em perigo aqui.
- Por quê? A condessa é algum tipo de mestre do crime?
- Em minha opinião, sim.
- Tenho certeza de que estou em perfeita segurança. E como bem notou, a polícia está me vigiando.
- Não tenho muita certeza se a polícia é confiável.
- Está dizendo que os agentes também são criminosos?
- Nunca diria tal coisa.
- Ainda não entendi aonde quer chegar.
- Por ser frágil, acredito que você esteja em perigo, Volte para sua casa.
Ela parou de dançar e o encarou.
- Posso não ser alta nem ter muito peso, mas lhe asseguro do que não sou frágil.
- Pelo que entendi você está sofrendo de uma perda recente...
- O que não me fez perder a lucidez. Independentemente da minha pseudofragilidade, creio que a polícia deveria investigar melhor o que de fato aconteceu na festa da condessa.
- Saiba que essa sua insistência a coloca em risco.
- Está insinuando que devo deixar de lado o que testemunhei?
- Repito: é melhor você voltar para casa, no próximo avião. Deveria deixar este caso para aqueles que sabem como lidar com esse tipo de problema.
- Então existem assuntos a serem resolvidos? - ela insistiu.
Ragnor suspirou, irritado.
- Nada que diga respeito a você.
- Desculpe, mas...
- Não há nada que possa fazer.
- E quanto a você?
- Confie em mim, srta. Riley, seria melhor se voltasse para casa. Perdeu um ente querido recentemente...
- Já faz um ano.
- Talvez esteja susceptível aos medos e pesadelos.
- Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Ou teria? O manequim não a fitara através dos olhos de Steven?
Ao término da música, Ragnor a soltou e se afastou sem outra palavra. Surpresa e furiosa, ela voltou para a mesa onde seu grupo estivera sentado.
Esperou que o mestre de cerimônias anunciasse a última dança da noite em várias línguas. Vasculhou a pista de dança com o olhar, mas não viu nem sinal de Jared ou Cindy. Sentou-se por mais algum tempo. O primo e a esposa jamais a largariam ali. Tamborilou a unha sobre a mesa. O som da última música foi aos poucos se esvaindo.
Ainda havia alguns convidados que conversavam, animados, mas a orquestra parará de tocar e os músicos já se retiravam. Jordan concluiu que Jared e Cindy deviam ter pensado que ela tinha ido embora com Anna Maria ou alguém mais da loja de fantasias, quando viram sua máscara abandonada sobre a mesa.
Levantou-se, olhou em volta em busca de Tiff ou Roberto, mas a mesa onde eles haviam se sentado estava vazia também.
Já que caminhara até ali, bem que poderia fazer o caminho de volta.
Reuniu-se à animada multidão que deixava o local. Muitos pareciam estar seguindo para a mesma direção que ela. Quando chegou a uma encruzilhada, um caminho que ligava uma ilha a outra, ela parou, confusa, tentando se lembrar de onde viera.
Veneza era uma cidade histórica, maravilhosa. Para um visitante distraído, porém, naquela escuridão tudo parecia igual.
- Droga!
Alguma coisa pareceu zumbir em seu ouvido, não um mosquito, mas algo maior. O que quer que fosse tinha asas.
Um morcego?! Ela sentiu um arrepio.
A ponte. Talvez aquele fosse o caminho que a levaria de volta ao hotel. Procurou se acalmar. A ponte era velha e um esconderijo perfeito para abrigar morcegos.
Decidida, atravessou para o outro lado do rio.
As lojas estavam todas fechadas. Já era muito tarde. Ela olhou para as janelas escuras, tentando se lembrar se as notara antes. Se conseguisse voltar à Praça de São Marcos, seria capaz de encontrar o caminho do hotel.
Se pudesse encontrar alguém que lhe passasse essa informação, estaria tudo resolvido.
Viu uma placa em um prédio à frente e correu até lá. Uma placa indicativa, em formato de flecha, apontava para a esquerda com as palavras "San Marco" inscritas.
Seguiu a direção indicada pela flecha, passando por debaixo de um arco entre prédios. Olhou para trás para se assegurar de que tomara o rumo certo. As vielas estavam ainda mais escuras pela sombra dos prédios.
Inquieta, ela apressou o passo, mas parou, de repente. Mais uma vez sentiu alguma coisa voar roçando os seus cabelos. Assustada, arfou ruidosamente.
Céus, os morcegos de novo! Desta vez sentiu-se tocada. Saiu em disparada, sacudindo a cabeça para espantá-los e sentindo-se dominada pelo medo.
Pequenas e aterrorizantes criaturas a atacavam!
Parou de nova, balançando mais uma vez a cabeça, inalando fundo. Qual o caminho que escolhera? A sua frente havia outro arco. Era o mesmo de antes ou outro?
Outra vez... Asas... Voando perto, mas agora não a tocavam. Instintivamente, ela foi se abaixando.
Agora, porém, as asas pareciam emitir murmúrios. Avisos, não palavras, mas sons que reverberavam e tremulavam perigosamente...
Jordan voltou a correr, passando por debaixo de um novo arco. Viu-se diante de outra ponte que atravessava um pequeno canal. E havia alguém lá. Um homem. Fantasiado com capa e máscara de dottore.
- Jared!
O homem continuava ali, esperando por ela.
- Jared! - ela tornou a chamar. Jamais ficara tão feliz em ver alguém na vida. Por um instante, pensou ter visto ele fazer um gesto para que ela se aproximasse.
Então ele se moveu, atravessando a ponte e tomando o caminho oposto.
- Espere por mim! - ela gritou.
Ao atravessar uma nova ponte, tropeçou e caiu. Amaldiçoou as botas de couro vermelhas e olhou para a perna, sentindo uma forte dor no joelho. Para sua surpresa, uma sombra surgiu à sua volta.
Indiferente a dor ela se levantou e correu, olhou pára trás e viu que a sombra parecia se erguer do chão tomando forma. Continuou a correr, tentando encontrar a rua que levava a outra ponte. Um farfalhar de asas de repente soou atrás dela. Morcegos... sombras... e novamente o som sibilante como vozes que não diziam nada. Sussurros nas sombras...
Correu ainda mais depressa, chegando a uma praça agora iluminada. Podia ver o caminho que levava a outra ponte. Mas não havia uma única alma viva ali.
Jordan...
Ela virou de um lado a outro, pensando ter ouvido seu nome. Uma brisa fria a envolveu.
Jordan...
Olhou para a frente e viu uma ponte mais larga diante de si. Ele estava lá. Jared! Ou um homem, uma pessoa com a fantasia de dottore.
Correu em direção à ponte. Jared já a vencera. Seguira para um caminho mais escuro à frente.
- Maldição, espere!
Ela não queria olhar para trás, mas não conseguiu evitar. As sombras dançavam ao lado dos prédios e nos caminhos. Moviam-se rapidamente, como se estivessem vindo para pegá-la.
Jordan percebeu que tinha chegado a uma rua sem saída. Virou-se para voltar para trás. As sombras a haviam encurralado. Tinha de escapar dali, rápido, sabendo que naquele minuto entrara em total pânico.
Jordan...
Pensou ter ouvido seu nome outra vez. Um som seguido de uma risada, nem masculina nem feminina, mas...
Algo maligno, sinistro.
Bater de asas, sons, risadas, murmúrios...
Jordan ficou estática, olhando a dança das sombras, ouvindo os murmúrios, as provocações, as risadas, tentando se convencer de que tudo era fruto de sua imaginação.
No entanto, as sombras tomavam forma. Como dançarinos deslizando pela parede.
De repente, ela foi empurrada. E teve a certeza de ouvir o comando:
Vá!
O instinto incitou-a a mover-se de novo. Correu, na direção para onde fora empurrada. Uma cacofonia de murmúrios podia ser ouvida. Respirações ofegantes que a acompanhavam.
Apavorada, ela correu e correu...
Uma sombra surgiu diante dela, e a colisão foi inevitável.
Era um velho homem e ele resmungava algo sobre Carnevale e turistas!
Jordan sequer tinha fôlego para lhe pedir desculpas.
- Piazza San Marco. Perfavore!
O homem apontou para a direita.
Ela lhe agradeceu e se pôs a correr de novo, e então viu que ia na direção do Hotel Danieli.
Entrou em uma área iluminada. Lá havia pessoas. Não muitas. Um casal de namorados contemplava o luar. Algumas pessoas aguardavam a chegada do vaporetto. Um empregado varria a frente de um restaurante.
Ofegante, Jordan parou de correr, curvou-se procurando normalizar a respiração.
Deus, estivera perdida e confusa! Um morcego tocara em seu cabelo... Entrara em pânico e correra como uma tola, e se machucara ao cair... E finalmente estava a salvo.
Endireitou o corpo sentindo fortes dores no tronco, o joelho ainda latejando.
Maldito Jared! Ela a esperara, mas não por muito tempo! Não tinha se preocupado, não percebera que ela estava perdida e com medo.
Voltou-se mais uma vez para o caminho de onde viera. Se o velho ainda estivesse lá, ela lhe acenaria em agradecimento.
Mas homem havia desaparecido.
Prendeu a respiração ao ver que em seu lugar, havia um lobo. Um enorme lobo prateado, sentado no meio do caminho.
Enquanto o observava, o animal ficou em pé, para depois virar-se e desaparecer por entre as sombras.






Capítulo II



Entrando no hotel, Jordan viu Jared e Cindy sentados em um dos sofás. À mesinha havia xícaras de café vazias. Os dois estavam cochichando, parecendo bastante sonolentos e românticos.
- Jordan! - Cindy exclamou, levantando-se. - Estava começando a me preocupar com você. Sabíamos que saiu do baile com a turma da Anna Maria, mas a festa já acabou faz um muito tempo.
- Não saí com o grupo de Anna Maria. Um garçom sorriu para ela.
- Gostaria de tomar algo, senhorita?
- Chá, por favor - ela pediu, sentando-se em uma poltrona.
- Onde você estava? - Jared perguntou.
- Eu sabia que não devíamos ter saído - Cindy resmungou. - Mas quando vimos a sua máscara sobre a mesa...
- Você está bem, prima?
- Tudo bem.
- Você não estava com o pessoal da loja? Jordan meneou a cabeça, observando o casal.
- Eles pensaram que eu ia voltar com vocês.
- E onde esteve esse tempo todo? Não estava na tenda quando saímos de lá.
- Eu estava com dois policiais.
Jared franziu a testa, e antes que ele pudesse fazer qualquer comentário, Jordan se adiantou.
- Não se preocupe. Não fiz acusação alguma contra ninguém. Apenas conversamos sobre o baile dos artistas e a beleza de Veneza. E, claro, o calor que se sente debaixo de uma roupa de vinil.
- Você ainda está linda - Cindy disse, sorrindo.
- Mas muito provocante. - Jared estava distraído. - Você veio sozinha? Tenho certeza de que as ruas estão cheias de lobos esta noite.
- Na verdade, acho que vi um deles no caminho.
- Não vi nenhuma fantasia de lobo hoje, você viu, querido? - Cindy quis saber.
Jordan decidiu nem mencionar o fato de que pensara ter visto um lobo de verdade.
- Não - Jared concordou. - Prima, por favor, me desculpe. Nunca deveríamos tê-la deixado, Confesso que fiquei sentido ao pensar que você tivesse vindo embora sem nos dizer nada.
- Eu não teria feito isso. - Jordan meneou a cabeça - Ao menos você conseguiu chegar aqui direitinho - Cindy disse.
Jordan ergueu as mãos.
- Estou aqui. - Sorriu para o garçom que lhe entregou o chá. - Na verdade, eu vim disposta a lhe dar uma bronca, Jared. E penso que levei mais tempo para voltar porque segui o médico errado.
- Como assim?
- Quando saí, eu confundi as ruas. Então, vi alguém fantasiado de médico à minha frente. Pensei que era você e que estivesse me esperando.
- Essa fantasia de médico é uma das mais comuns da cidade. Espero que não tenha se assustado.
- Não, não - ela mentiu. - E agora, vocês dois não precisam me esperar. Podem ir para o quarto. Terminarei o chá e subirei.
Cindy se levantou, e Jared fez o mesmo mais devagar.
- Tem certeza de que vai ficar bem? - Ele não parecia de todo convencido.
Ela acenou com a cabeça em concordância. Cindy então a beijou no rosto e pegou a mão do marido.
Depois que o casal se afastou, Jordan se recostou na cadeira. Terminou o chá e dirigiu-se para o quarto.
Ao chegar à janela do aposento, antes de trancá-la, resolveu abri-la para olhar a rua.
A noite estava calma. Até os últimos foliões já haviam se recolhido.
Estava para cerrar as cortinas, quando decidiu sentar-se em uma poltrona junto à janela e fechar os olhos, permitindo que a brisa a envolvesse. A sugestão de Ragnor enquanto dançavam lhe passou pela cabeça.
Talvez eu devesse mesmo ir para casa, ela pensou.
Steven Moore entrou para a força policial como um investigador policial exatamente quando acontecia uma série de crimes bizarros na cidade e seus arredores. Em uma mansão colonial abandonada fora da cidade haviam acontecido fatos estranhos. Luzes eram vistas, músicas era ouvidas, e as crianças das fazendas por perto juravam ouvir risadas e cantos. A casa foi investigada e descobriu-se que os sem-teto haviam feito dali a sua moradia.
Foi então que um corpo foi achado. Depois outro. Este decapitado, e havia estranhas marcas por todo o corpo. Steven foi um dos que tinham achado o corpo.
O próximo crime ocorreu em um moinho abandonado. Dessa vez, havia impressões digitais em uma garrafa de cerveja pertencentes a um jovem que contou à polícia histórias bizarras sobre um culto ao demônio. Segundo ele, havia um grande mestre que exigia que ele e outros capturassem jovens mulheres, de preferência mendigas ou fugitivas, para levá-las às cerimônias.
O rapaz jurou que não tinha participado dos crimes, nem podia reconhecer os líderes do culto. Infelizmente, dias mais tarde, o pobre-coitado foi encontrado morto em sua cela na detenção juvenil. Não se sabe como tinha arranjado uma lâmina, e cortado a própria garganta.
Jordan conhecera Steven em um restaurante local. Tinham conversado e tomado um café juntos. Ela aceitara um convite para encontrá-lo outra vez, habilidade em manter seu trabalho e o restante de sua vida em equilíbrio não era tão eficaz. Ele estava quase sempre ocupado, mas Jordan não se importava. Sempre tinha algo a fazer, um livro para ler, e Charleston era sua cidade natal.
Depois de pouco tempo de namoro, ele a pedira em casamento. Jordan não levara o fato de conhecê-lo havia apenas seis meses em consideração e vibrara com o pedido.
Pouco antes do Natal, Jared e Cindy haviam oferecido aos dois uma maravilhosa festa de noivado.
Não muito tempo depois, outra pessoa morta foi encontrada no pântano. Já em decomposição, o corpo se reduzira a pouco mais do que ossos em poucos dias, animais predadores haviam ajudado no processo. Desta vez, os patologistas encontraram talhos em uma vértebra do pescoço. A polícia logo desconfiou de que o tal culto não desaparecera de vez, que estivera apenas em um intervalo. O FBI foi chamado para ajudar nas investigações.
Marcas de pneus foram achadas perto do pântano e revelaram que o veículo usado para jogar o corpo era um novo modelo de caminhão. Uma faca foi encontrada perto do local e levou a polícia ao proprietário de um caminhão Ford, porém tanto o suspeito quanto o caminhão tinham desaparecido. A busca prosseguiu.
Certo dia, Steven passou pela casa de Jordan para contar, animado, que estava seguindo uma pista quente. Avisou que chegaria bem tarde da noite. O fato não a assustou, uma vez que estava acostumada às mudanças de horário, tanto que ajustara seu horário de trabalho ao dele. Como ele tinha uma chave da porta principal, poderia chegar a hora que quisesse e acordá-la.
Mas, infelizmente, ele não voltou.
Naquela noite, houve um incêndio em um celeiro abandonado. Por horas, os bombeiros trabalharam desesperadamente para controlar o fogo. A polícia concluiu que a tarefa fora mais complicada e que o crime havia sido muito bem planejado por um incendiário.
Por fim, quando o fogo foi debelado, oito corpos carbonizados foram descobertos.
Semanas mais tarde, os patologistas identificaram as outras vítimas. O de Steven foi o primeiro deles, pois a fivela de seu cinto assim como o distintivo mal tinham sido danificados. Entre os outros havia mais dois policiais, uma prostituta de vinte e três anos e cinco membros do culto. Um deles foi identificado pela arcada dentária, como sendo o dono do caminhão Ford. Unindo as evidências, a polícia e o FBI deduziram que Steven e os outros estiveram ali na esperança de surpreender os membros da tal cerimônia. Um tiroteio acontecera, e o querosene jogado ali destruíra a cena do crime. As velas colocadas ao redor da vítima haviam sido o estopim.
Apesar da dor imensa, Jordan sabia que Steven sentiria que sua morte valera a pena por ter destruído uma coisa tão monstruosa como uma crença maléfica que tirara tantas vidas. Contudo, isso não mudava o fato de que ele estava morto...
A brisa fresca da noite veneziana trouxe à mente de Jordan a lembrança do último inverno que tinham passado juntos. Não percebeu quando passou do estado de consciência para o sono, as lembranças se misturando com os sonhos...
Ela estava com Steven, em um lugar onde nevava. De repente, viu-se olhando para os olhos de um lobo.
O animal era enorme. Parecia tomar todo o espaço da janela. O animal rangeu os enormes dentes.
- Jordan, o maldito lobo está vindo. - Era a voz de Steven que ela ouvia.
- Não há lobos em Veneza. Apenas cachorros grandes.
Um sonho, cheio de nuvens e memórias de um calor que queimava aos poucos, capaz inclusive de modificar o próprio conceito de inverno. As nuvens pareciam girar, até que ela se viu frente a frente com um par de olhos amarelados de um lobo.
O animal era imenso, chegava a tomar a janela inteira, os lábios arregaçados, deixando à mostra os caninos brilhantes.
A névoa envolveu Steven e o lobo. Estava frio, os flocos de neve congelavam sua pele.
Jordan acordou de repente. E por pouco não gritou, assustada.
Um homem estava inclinado sobre ela. Ainda estava sentada na cadeira junto à janela, o homem não era tinha nenhuma forma definida, apenas um borrão escuro...
- Jared! - ela exclamou.
O primo se aprumou. Ele vestia apenas as calças do pijama, o peito nu. Por um momento, ele pareceu desconcertado, como se tivesse chegado até ali andando como um sonâmbulo. Olhou para a janela e se afastou. Estava nevando em Veneza. Pequenos cristais de neve se prendiam na vidraça.
- Você está bem, Jared?
- Sim, sim - ele disse, rapidamente. - Estava preocupado com você.
- Por quê?
- Queria ter certeza de que tinha subido e estava bem. Mas você não respondeu quando eu bati na porta.
- Engraçado, lembro-me de ter passado o trinco. - Jordan olhou para a porta.
- Ela estava aberta. Bem, acho que foi bom eu ter vindo. - Ele olhou apreensivo para a janela aberta. - Você poderia pegar uma pneumonia. Feche as janelas e entre debaixo das cobertas.
- Jared, mas eu juro que tranquei a porta!
- Pensou que tivesse, mas não o fez.
Jordan sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Havia algo estranho, mesmo porque nevava na cidade, algo não tão comum em Veneza.
- Vá para a cama, Jordan. Já me preocupei demais com você. Tomara que não tenha pegado um resfriado.
Ela sorriu.
- Estou bem e vou me enfiar debaixo dos cobertores e dormir até tarde. - Dito isso, deu um beijo no rosto do primo e sorriu. - Eu me diverti muito esta noite.
- Fico contente. - A expressão de infelicidade contradizia sua fala.
- Não é o que parece.
- Eu não devia ter permitido que você viesse para cá. Não devia tê-la levado à festa da condessa... Não devia...
- Já lhe disse que estou bem.
Na verdade, não estava. Estivera sonhando com o ex-noivo e com lobos, que apareciam nas sombras das ruas. Não importava o que acontecera, ou o que imaginara, não iria comentar mais nada com Jared.
- Estou bem e tenho me divertido bastante. Agora volte para sua cama.
Ele a observou por um instante, e se virou para sair. Já à porta, ele disse:
- Venha aqui trancar esta porta.
- E você volte para sua esposa!
Quando ele já tinha ido embora, Jordan se encontrava totalmente acordada. Ligou a televisão e começou a assistir a um show. Pouco depois, decidiu voltar para cama. Mas deixou o aparelho ligado e a luz acesa.
Cindy acordou, subitamente. Não sabia a razão. Por um momento olhou para a escuridão do quarto. Apalpou o lado da cama.
- Jared? - chamou por ele, encontrando-o em frente à janela aberta.
- Acordei você, desculpe.
Jogando o cobertor para o lado, ela levantou e foi até ele, abraçando-o e apoiando a cabeça nas costas largas.
- Meus Deus, você está gelado! O que está fazendo aqui parado?
Ele ficou em silêncio por um momento.
- Está nevando. É um acontecimento raro em Veneza.
- Você já viu neve antes. Vamos voltar para a cama, vou aquecê-lo.
Ele se voltou para a esposa com um olhar que a fez estremecer.
- Verdade? Estou com frio, com muito frio... Havia algo de estranho acontecendo com Jared.
Eles estavam casados fazia anos. Ela o amava, apreciava sua companhia, e a vida sexual entre ambos era muito boa. No entanto, nessa noite...
Os braços de Jared pareciam mais fortes. O simples toque de suas mãos sobre os ombros dela provocou uma reação erótica.
Haviam feito amor um pouco antes, logo depois de subirem para o quarto. Mas... o que estava acontecendo naquele momento parecia quase ilícito. Erótico, excitante...
A janela permaneceu aberta. Ele se inclinou e a beijou com força, uma paixão avassaladora. Cindy sentiu a língua de Jared deslizar com fúria por seu pescoço, fazendo vibrar cada célula de seu corpo. Um segundo depois ele a levantava. Quando a colocou na cama, a camisola tinha sido arrancada de seu corpo e se achava em tiras jogada no chão.
Uma perda pequena...
Cindy começou a tremer, não de frio, mas pela excitação que tomara conta de seu corpo.
- Meu Deus, o que você andou bebendo esta noite? - ela murmurou.
Jared não respondeu. Ele estava entre suas pernas. Cindy entrou em espasmos de êxtase, sentindo-se em brasas. Ele a possuía com força... quase a machucando com o seu ardor. Ela desejou murmurar um protesto, mas não pôde. Sentiu a voz falhar ao ser sacudida por espasmos violentos.
Mais tarde, ela não sabia precisar o quanto, sentiu frio novamente. Jared se encolhera de lado, tremendo.
- Esquecemos de fechar a janela - lembrou ela.
Como ele apenas gemeu em resposta, Cindy levantou-se e caminhou nua até a janela, fechando as vidraças. Passou no banheiro e olhou-se no espelho.
Assustou-se ao ver marcas vermelhas em seu pescoço, e um fio de sangue escorrendo de um dos seios. Suas coxas também estavam feridas.
Lavou-se rapidamente. Os pequenos cortes não tinham importância.
Apagou a luz do banheiro e voltou para debaixo das cobertas.
Jared estava deitado de costas, olhando para o teto.
- Jared?
Finalmente ele se moveu, deslizando as mãos pelos cabelos dela.
- Hum?...
- Foi bom demais, porém não tenho certeza se quero tentar isso de novo todas as noites.
- Por que não?
- Ganhei alguns arranhões.
- Mordidas de amor. - concluiu ele sem dar muita importância ao fato.
Entretanto, Cindy não mencionou que mordidas de amor não sangravam. Afinal, tudo tinha sido espetacular demais para se reclamar.
- Jared?
- Hum?...
- Eu te amo.
Levou um bom tempo para ele responder. Voltou-se para abraçá-la, tremendo.
- Jared, o que está acontecendo?
- Nada, apenas estou com frio.
Ele a beijou na testa. Um carinho diferente, terno e doce. Mas continuava a tremer.
- Vou pegar outro cobertor.
Cindy voltou a se levantar e tropeçou em alguma coisa no escuro e lamentou não ter acendido a luz. No segundo seguinte, Jared estava ao lado dela, conduzindo-a de volta.
- Cindy, vamos voltar para cama. Você tem todo o calor de que eu preciso.
Ela sorriu, imaginando se ele enxergaria no escuro, pois não havia batido em nada até alcançá-la. Parou de pensar no assunto, quando se aconchegaram na cama, e ele continuava a tremer. Nenhum outro comentário foi feito. Cindy esforçou-se para mantê-lo aquecido. Gostaria de fazê-lo entender que o achava um homem muito doce e que o amava.
E pensar que nos últimos tempos havia momentos em que ela se sentia como se estivesse se transformando em um monstro.
Um monstro de olhos verdes.
Havia alimentado tais dúvidas.
Mas nesta noite... estava envergonhada de si mesma.
Jared a amava. Completamente, ela pensou.
Pequenos cortes... umas poucas gotas de sangue não significavam nada.
Nada mesmo.
Cindy e Jared não estavam à mesa no café da manhã. Talvez ainda estivessem fazendo amor.
No restaurante do último andar do hotel, Jordan pediu café e um croissant, lembrando-se de que prometera ir ao palácio de Tiff logo mais. Passou os olhos no texto que escrevera sobre o livro de vampiros e acrescentou algumas notas a mais, que deveriam ser incluídas na versão final. Ainda era cedo quando terminou a segunda xícara de café. Voltou para o quarto, calculando que horas seriam então nos Estados Unidos.
Uma hora da manhã.
Recebia seu trabalho de Liz Schultz, sua agente. A amiga dormia tarde, portanto não se importaria com um telefonema aquela hora.
Jordan discou o número e se surpreendeu quando Liz atendeu quase que imediatamente.
- Olá, Liz, é Jordan.
- Jordan! Olá, que bom ouvi-la. Espere! Vai me dizer que está se divertindo tanto que não quer mais trabalhar.
- Nada disso. - Jordan riu. - Queria lhe contar que o livro sobre vampiros é ótimo. Vou lhe passar por fax a minha avaliação. Só falta digitá-la.
- Que ótimo! Mas me conte, como está Veneza?
- Maravilhosa. Estou me divertindo muito. Sempre adorei esta cidade, mas agora está diferente por causa das fantasias de Carnaval.
- Algum homem que valha a pena?
Jordan hesitou, pensando no baile da condessa.
- Oh, Jordan, desculpe, sei que ainda é cedo demais...
- Não, não, Liz, eu apenas estava pensando que ter lido o livro sobre vampiros pode ter me influenciado...
Liz suspirou fundo.
- Oh, eu não deveria ter lhe passado esse livro.
- Não se preocupe, estou bem. - Ela se pôs a relatar os últimos acontecimentos à amiga, Desde o baile da condessa e o que havia acontecido até então.
No outro lado da linha, Liz hesitou.
- Não sei não, Jordan. Talvez eu tenha errado ao lhe dar esse livro. Por que não volta para casa?
- Não, Liz, honestamente. E você vai gostar de minha crítica.
- Tenho certeza de que o autor vai ficar feliz. E por acaso tenho outro, para ser publicado no próximo outubro.
- Sobre vampiros?
- Vampiros, cultos, satanismo, enfim... há um capítulo sobre como se defender contra vampiros. O autor é um policial.
Jordan sentiu um aperto no peito.
- Um policial?
- Um sujeito em Nova Orleans que tem trabalhado com os casos mais bizarros. Ele não afirma que os vampiros existem, mas sugere o modo de lidar com pessoas que pensam que são vampiros. O livro inclui as lendas também. Uma leitura interessante.
- Mande o livro para mim.
- Jordan, toda essa leitura não vai fazer bem a você, especialmente sob as atuais circunstâncias...
- Não sou uma pessoa frágil a ponto de perder o controle. Se esse livro foi escrito por um policial, então eu o quero ler.
- Você não está pensando que a apresentação na festa da condessa...
- Foi real? - Jordan hesitou, lembrando-se da dança com Ragnor e seus comentários sobre a condessa. - Liz, sou apenas uma turista em uma cidade linda. Especialmente por causa de Jared, estou sendo educada e cortês. Mas quero esse seu livro.
- Devia voltar para cá. Se a mulher for perigosa...
- Liz, estou hospedada em um dos mais belos hotéis do mundo, com meu primo e a esposa no quarto ao lado. Estou bem. E a polícia acha que sou meio louca, assim estão mantendo o olho em mim. Mande logo esse maldito livro. Por favor.
- Está bem, está bem. Mas me ligue sempre.
- Prometo que farei isso.
As duas se despediram e Jordan desligou. Consultou o seu relógio.
Já era hora de descer e pedir que alguém a orientasse sobre como chegar ao palácio que Tiff Henley alugara.

* * *
Tiff abriu a porta, quando Jordan bateu a tranca em formato de uma enorme boca de leão.
- Oh, que bom que veio, querida - ela cumprimentou, satisfeita. - Venha. Vamos subir. Eu devia ter convidado Cindy e Jared para o chá.
- Não se sinta mal. Eles ainda estão dormindo.
Jordan seguiu Tiff. O palácio era enorme, com corredores que levava para ambos os lados. À frente havia um amplo salão com piso de mármore e portas-balcão que abriam para um terraço com vista para o encantador canal.
- Temos aquecedor aqui fora - Tiff assegurou a Jordan, enquanto se acomodavam à mesa. - Bem, não quero ser rude ou cruel ou nada desse tipo, mas exatamente qual é a triste história que você esconde atrás dessa sua natureza sensível?
- Não sou sensível...
- Seu noivo foi assassinado. Jordan suspirou.
- Tiff, estou com a mente sã.
- Claro que sim. Lamento muito o que houve. Que coisa horrível. Ele era um policial, não é, morto em serviço? Caçando alguns terríveis assassinos...
- Evidentemente você sabe a história inteira.
- Bem, soube por uma das garotas da loja de arte. Acredito que a história tenha chegado até lá por Cindy. E você ainda está de luto por causa desse pobre homem? Seu primo não deveria tê-la trazido aqui. - Tiff riu suavemente. - Chá?
- Obrigada.
Tiff serviu duas xícaras e estendeu uma para Jordan.
- Talvez ainda esteja de luto, e quem sabe, um pouco sensível.
- Eu amei muito o meu noivo. - Jordan tentou mudar de assunto. - Você é viúva, pelo que sei.
- Diversas vezes. Tenho certeza de que ouviu isso também.
- Sim. Quanto a Steven... ainda sinto falta dele. Realmente o amava. Mas ele se foi e tenho de me conformar. Assim gosto de ir a festas, conhecer pessoas...
- Eu a vi com Ragnor à noite passada. Fiquei com ciúme. Mas claro, ele é muito novo para mim. Só me casei com homens velhos, um mais novo seria uma novidade.
- Vá em frente, então. - Jordan ergueu as mãos para o alto.
- Mas ele não está interessado em mim. Eu o observei bem e percebi que ele só tinha olhos para você a noite inteira.
Jordan não sabia bem por que a observação de Tiff a perturbava... ou excitava. Encolheu os ombros.
- Você deve saber como é perder alguém. Assim, imagino que também tenha consciência de que nunca se consegue superar totalmente a súbita perda de um ente querido.
- Eu nunca passei por situação semelhante - contou Tiff, servindo-se de peixe defumado. - Na verdade, minha última perda levou mais tempo do que eu planejava. Eu me casei com um homem velho pelo dinheiro, e os médicos tinham lhe dado apenas seis meses de vida. Mas, graças a mim, ele viveu um ano e meio a mais.
- Isso é incrível - Jordan anuiu, forçando um sorriso.
- É o que eu penso - Tiff disse cheia de orgulho. - Mas agora... vamos voltar a Ragnor. Sabe o que eu acho?
Jordan arqueou a sobrancelha, esperando.
- Penso que ele esteja incógnito aqui, que anda se escondendo.
- Como assim? Ele anda por aí bem à vontade.
- Note que ninguém sabe muito a seu respeito. Ele apareceu em Veneza há pouco tempo, para fazer negócios com alguns americanos que investiram na restauração de Veneza. Ele é popular com certas pessoas, exceção seja feita à condessa. Quem sabe pertence ao submundo?
- Na minha opinião, ele não é italiano.
- Não, mas há famílias envolvidas com crimes por toda a Europa. Talvez ele tenha feito alguma coisa horrível quando jovem, ou quem sabe seja um criminoso...
- Eu acho é que nós duas devemos nos manter distantes - concluiu Jordan.
- Bom Deus, não! Isso o torna ainda mais fascinante. Além do fato de que ele parece estar contra a condessa!
- Confesso que este é um aspecto a seu favor - Jordan reconheceu.
- Bem, tenho de admitir que eu adoraria conhecer melhor a condessa. Mas não se preocupe, não convidaria vocês duas ao mesmo tempo. Para ser sincera, eu queria que ela me convidasse para ir ao seu palácio. Bem, mas voltando a Ragnor. Vou convidá-lo para vir aqui. Posso usá-la como isca?
- Isca? - Jordan estranhou o termo empregado.
- Sim, posso dizer a ele que estou oferecendo um jantar e que você estará presente. Dessa forma, eu o atrairia ao meu abrigo. Posso tentá-lo com ostras e licor. Sabia que ostras são afrodisíacas?
Jordan caiu, na risada.
- Tiff, você é terrível!
- Venha, vou lhe mostrar o resto do palácio e contar as estranhas histórias das assombrações que, dizem, ainda rondam pelos aposentos...

Ragnor estava sentado a uma mesa na praça de São Marcos.
O dia estava frio e o sol não se fazia presente, a orquestra parará por um tempo de tocar, e ele tinha uma boa visão das pessoas indo e vindo pela praça.
Como o dia estava claro, ele não era o único a usar óculos de sol. Se bem que sempre gostara das sombras, razão pela qual comprara o primeiro par de óculos escuros.
Não era particularmente fã de fantasias e não tinha intenção de usar uma durante o dia. Preferia circular com uma longa capa preta de couro. Botas, igualmente negras, deixavam seus pés aquecidos.
Tomou um gole de café e acomodou-se bem na cadeira. De onde estava era possível ver desde a Basílica até a parte mais nova da praça. Olhando para o outro lado tinha-se uma visão de quem ia e vinha do Campanile. Era um excelente lugar para se observar pessoas.
Dali teria uma boa visão de Nari quando ela resolvesse aparecer. Ela podia fingir e afirmar que não andava pelas ruas.
Especialmente durante o dia. Mas ele sabia que não era bem assim.
De repente, ela apareceu. Usava um vestido longo, uma capa e uma máscara teatral. Ragnor deixou dinheiro sobre a mesa e se pôs a segui-la.
Junto a um canal estreito, ele quase a alcançou. Porém, foi impedido por alguém que inesperadamente veio em sua direção. A colisão foi inevitável.
- Olá, Ragnor. Sou eu, Tiff Henley. Que bom que o encontrei!
- Olá, desculpe-me pelo encontrão. Estou com pressa e... - Ele olhou além dela, irritando-se por ter perdido a condessa.
- Bem, vou oferecer um coquetel em minha casa, antes do baile e gostaria que você viesse.
Ele mal ouviu o que ele dizia, ainda tentando encontrar Nari entre a multidão. Não havia notado que Tiff estava com as mãos espalmadas sobre seu peito, impedindo-o de se mover. Teve vontade de empurrá-la para o lado, mas havia muita gente como testemunha. Contendo a raiva, forçou a se controlar.
- Ouça, Tiff...
- A americana estará lá.
A informação o fez olhar para baixo.
- Quem? - Ele sabia a quem Tiff se referia e também a razão de estar falando dela.
- Jordan Riley. E a família dela... e alguns outros.
Observando Tiff, ele teve certeza que ela estava fazendo a lista de convidados enquanto falava.
- Adoraria que você fosse. - Ela estava determinada a tocá-lo, puxando-o agora pelo braço. - Quero dizer, será muito bem-vindo em minha casa a qualquer hora.
- Eu sei. Vou fazer o possível para comparecer, agora se me der licença... - Ele queria encontrar Nari, e teria de encontrá-la.
O crepúsculo estava se fechando.

Nari estava no centro da praça, mascarada, cercada por gente. Ela olhava para o céu, apreciando o cair do dia. Logo anoiteceria. Podia ouvir as risadas à sua volta, as conversas, as línguas diferentes. Podia ouvir a música, tocada por uma orquestra. Quando se concentrou, podia até ouvir mais.
Um pulsar... Doce, delicioso... Respiração.
A essência... da vida.
Seria naquela noite. Tinha um plano em mente.
Quase como um jogo. Gato e rato. A caçada criava um aroma mais doce de medo no ar. E o gosto do medo...
Tremeu quando sentiu que alguém lhe segurava o braço. Ergueu o olhar, horrorizada.
Ragnor. Ele a encontrara.
- Isso vai ter de parar - ele disse.
Furiosa, ela teve vontade de se soltar, porém sabia que não poderia.
- Verdade? O que vai fazer? Pretende me matar? - ela o provocou.
- Vou afastá-la daqui.
- Então é essa sua intenção - ela disse, suavemente. Já que não conseguiria escapar, por que não desfrutar do momento? Em um gesto de carinho, acariciou-lhe o rosto com os nós dos dedos. - Ragnor...
Comum movimento brusco, ele a forçou a abaixar a mão.
- Por acaso acha que eu esqueci? - Nari sorriu.
- Eu lhe faço a mesma pergunta. Estou lhe dizendo que isso tem de parar. Estou avisando. Ameaçando-a, se preferir. Pode ter tudo, uma vida aqui, um belo palácio, um título, uma posição. Você...
- Está se esquecendo de si próprio, não é, Ragnor. Sei que você se acha diferente, seja honesto comigo, o que o coloca acima de nós iodos?
- De todos? Muitos estão vivendo...
- Trancados em um mundo como se estivessem em uma jaula.
- Sendo racionais e sobrevivendo. Nari, olhe em volta, você tem tudo em seu poder.
Ela o observou por um momento.
- Não, não é assim. Mas sei o que eu sou.
- Há tantas outras coisas que você poderia ser.
Nari se ergueu na ponta dos pés para sussurrar no ouvido dele.
- Gosto do jeito que sou.
- Vou dizer pela última vez, agora realmente é uma ameaça. Eu poderia...
- Poderia fazer o quê? Acabar comigo no meio desse povo todo? Eles o prenderiam, jogariam você em uma cela. Claro, você poderia escapar... mas como ficaria o seu prestígio? Não poderia ficar andando no meio das pessoas, não é? Maldição para mim e para você, Ragnor.
- Já somos malditos - ele murmurou com amargura.
- A verdade é uma só, você sempre se achou muito superior. - E ele de fato era diferente. Nari sentiu um espasmo de fome tão violento que mal conseguiu se conter.
Desejou tocá-lo novamente. Tantos anos haviam se passado... ele ainda era Ragnor. Um homem forte, seguro de si e lindo. Velhos arrependimentos vieram à tona. Bem, tomara decisões, fizera suas escolhas. Ela o havia subestimado. E agora, olhando dentro dos olhos dele, sabia que era tarde demais.
- Há leis...
- A lei deles?... Nossas leis?... Que leis? - ela retrucou. - O mundo enfrenta um caos, Ragnor, não notou ainda? E nós prevaleceremos. Você é um tolo. Não sabe que...
- Sei que posso acabar com você e o farei.
- Assim tão fácil? - A pergunta foi seguida de um movimento sensual de corpo, roçando-se contra o ele.
- Como um estalar de dedos. Nari se afastou.
- Ah, imagino que seja por causa da garota americana.
- Não. É o que você está fazendo.
- Mentiroso! Sei que esteve observando aquela garota.
- Se tenho algum interesse na jovem, Nari, foi você quem o criou.
Nari riu. Tinha encontrado a fraqueza dele.
- Ela não gosta de você, Ragnor. A moça sente que você não é... bem, ela sabe que tem alguma coisa de errada.
- Por que ela estava entre os convidados... em seu baile?
- O que posso fazer se a tolinha entrou no lugar errado? - Depois de certa hesitação, ela resolveu mentir. Eventualmente, toda a verdade viria à tona. Que a jovem tinha sido selecionada.
- Seus atos, o horror que está criando, vai além da jovem americana. Você trará o fogo do inferno sobre nós.
- Sobre você, talvez. Nós é que somos o fogo do inferno. - Ela suavizou a voz. - Não sente necessidade às vezes... de fazer como nos velhos tempos?... Lembra-se de como era, como poderia ser...
Novamente Nari levou as mãos sobre o peito dele e foi repelida. Ela se surpreendeu com a fúria da rejeição.
- Você é um idiota, Ragnor! E quanto à americana, eu, pelo menos, sou amiga da família dela. Na verdade, tenho planos para nós hoje à noite.
Ele apertou a mão delicada com tanta força que podia até lhe quebrar um osso. Nari sentiu seu poder se esvaindo.
- Se tocar sequer um dedo nela...
- E seu interesse é mesmo em benefício da humanidade? Se eu a tocar? - Nari começou a rir. - Se pensa que tem de lidar apenas comigo...
- Do que está falando?
- Largue-me! Está me machucando - ela gemeu: Alguém na multidão podia ouvi-la. Havia policiais na praça. Ainda assim, ele não afrouxou o aperto.
- Diga-me o que está acontecendo. Aonde vai se encontrar com ela nesta noite? Dó que está falando?
- Ela estará no Harry's. - Nari sabia que não agüentaria muito mais a pressão daqueles dedos fortes. Não podia quebrar nenhum nesse momento. - E vai ter de me matar para conseguir que eu lhe diga mais alguma coisa. Se me executar, não saberá mais nada, e pior, será caçado, e sua preciosa miniatura de mulher estará perdida.
- Nem pense nisso, Nari. Eu já lhe disse que isso tem de parar! Não tem nada a ver com a americana...
- Ótimo! Porque Se me machucar agora, serei eu a dar um fim nela! Até a última... lambida.
Ragnor a soltou.
- Certo, Nari. Que diabos você está falando?
Nari engoliu em seco. Forçou-se a não se deixar envolver pelo fascínio que ele sempre lhe provocava.
- Está bem, Ragnor. Melhor se preocupar com ela. Sabe a razão? Vocês dois vão morrer!
Nari viu as raiva estampada nas feições de Ragnor,
Logo ela encontrou sua força, deu um passo para trás, e desapareceu na multidão.
Os planos dela para a noite estavam arruinados. E, no entanto...
Ragnor não poderia se arriscar a segui-la. Havia feito suas ameaças, e recebera um alerta em troca. E ele tinha uma fraqueza, não importava o quanto negasse.
O medo regeria seus passos, por isso teria de estar sempre atento.
E enquanto o gato estivesse muito, muito ocupado, o rato poderia brincar...

No quarto, Jordan encontrou um pedaço de papel enfiado por debaixo da porta.
Olá, garota!
Onde se meteu? Pergunta boba, se estiver lendo isto agora, é porque está em seu quarto! Sentimos a sua falta hoje. Vá nos encontrar no Harry's às 8 horas. Por favor, esteja lá, ou ficarei tão preocupada que não conseguirei nem comer meu macarrão favorito!
Com amor,
Cindy
Sorrindo, colocou o bilhete de lado. O Harry's estava localizado perto do Palácio dos Doges. Um lugar lotado à noite. Gostava de ir lá e queria mesmo ficar no meio de uma multidão.
Consultou o relógio. Tinha muito tempo ainda.
Caminhou até o banheiro, encheu a banheira e acrescentou um óleo de banho perfumado, verificando se a água estava mesmo quente.
Despiu-se e vestiu apenas um roupão. Ligou para o serviço de quarto e pediu que lhe trouxessem chá.
Abriu a janela enquanto esperava, olhando para a rua e para o canal. Veneza começava a tomar vida com a aproximação da noite. Deixou a janela e ligou a televisão. Assistiu ao noticiário, procurando descobrir se havia acontecido alguma coisa na cidade.
Bateram à porta.
- Entre - ela disse, distraída.
Um garçom entrou com uma bandeja de chá. Ela agradeceu, assinou a nota e fez questão de trancar a porta quando ele saiu.
Com uma xícara de chá na mão, voltou ao banheiro e testou a água. Ao entrar na banheira, fechou os olhos e relaxou. A água estava quente e maravilhosa.
Não usaria nenhuma fantasia nesta noite. Iria usar um vestido preto de festa.
Estava tão relaxada que não soube o que a assustou de repente.
Sentou-se na banheira, olhando em volta, tentando descobrir o que a tirara de seus devaneios.
Prestou atenção. Nada...
Saiu da banheira, vestiu o roupão e voltou para o quarto. A primeira coisa que notou foi que havia deixado a janela aberta. O ar frio entrara ali. Era como se o vento viesse carregado de murmúrios que fustigavam seu rosto e balançavam seus cabelos. Apressou-se em fechar a janela. Mas ainda sentia frio.
Um arrepio a fez estremecer inteira. Olhou dentro dos armários, depois debaixo da cama e então se sentiu uma tola. Não havia ninguém no quarto. Mesmo assim sentia-se inquieta.
O banho estava arruinado. Definitivamente não voltaria à banheira.
Nem se sentia à vontade em seu próprio quarto. Viu-se subitamente ansiosa por sair dali. No entanto ainda era muito cedo para encontrar Jared e Cindy.
Mas nunca cedo demais para ir até o Harry's e tomar um aperitivo.
Vestiu-se rapidamente, nem se preocupando em se maquiar e dando apenas uma escovadela nos cabelos.

Quando bateram na porta, Tiff estava no andar superior. Havia enchido sua banheira com cristais perfumados e afundara nela. Não esperava ninguém, e pensou em continuar ali. Estava maravilhosamente relaxada. A idéia de se levantar, se secar, caminhar até o andar de baixo e atender à porta não era nada agradável.
O som de uma nova batida ressoou na casa.
Quem sabe poderia ser ele, sua última obsessão?
Ragnor havia sido cordial na rua, mesmo deixando claro que estava com pressa.
Talvez, apenas talvez...
Saiu da banheira e vestiu o roupão. Como o tecido era de seda, imediatamente grudou em seu corpo. Mas talvez isso não fosse de todo mau. Afinal, ainda tinha um belo corpo.
Pensando assim, secou um pouco os cabelos e se apressou em descer as escadas.
- Já estou indo! - ela gritou.
Abriu a porta... para uma mulher de altura media e vestida com fantasia, máscara e uma longa capa.
- Sim?...
- Tiff?
- Condessa? - Mal conseguia esconder a sua incredulidade.
- Eu estava nas redondezas. Contaram-me que você estava hospedada neste palácio. Mas que rudeza de minha parte vir visitá-la sem avisar, mas...
- Ora, por favor, deixe disso! - Tiff se apressou a dizer, dando um passo para o lado para deixar a outra entrar. - Estou muito feliz em vê-la.
- Estava esperando alguém?
- Não... - Tiff riu, nervosa. - Ainda bem que insistiu em bater na porta.
A condessa sorriu, levemente.
- Deve perdoar a minha aparência - Tiff disse. - Eu estava saindo do banho. Por favor, entre.
- Não vou me demorar. - A condessa entrou no vestíbulo, tirando a máscara.
- Deixe-me guardar seu casaco e máscara... A condessa estendeu a capa, e olhou em volta.
- Se me der um minuto, posso me vestir... - Tiff disse, nervosa.
A condessa abanou-a mão, sorrindo.
- Não, não faça nada! Vou ficar apenas uns minutos, e então você poderá voltar aos seus afazeres. Não gostaria de atrapalhar a sua rotina.
- Aceita um cálice vinho? Podemos nos sentar no andar de cima.
- Vinho tinto, por favor.
- Ótimo.
Ainda se sentindo meio estranha e surpresa, Tiff começou a subir as escadas, seguida por Nari. Serviu dois cálices de vinho e quando voltou-se para oferecer à condessa, percebeu que ela havia sumido.
- Condessa?...
- Estou aqui!
Ela estava no quarto principal. Virou-se quando Tiff entrou, e com um sorriso nos lábios, aceitou o cálice de vinho.
- Magnífico! Fizeram mesmo um trabalho extraordinário na reforma do palácio. Que refúgio adorável...
- Gosto de conforto.
- Uma coisa que compartilhamos. - A condessa foi até as janelas, abertas para o terraço. - Definitivamente maravilhoso. E esta é minha hora favorita do dia. Quando as cores do pôr do sol vão sumindo, e a noite chega com todas as suas sombras e segredos.
A condessa ficou parada ali. Tiff caminhou até a enorme cama e sentou-se, observando-a.
- Perde-se tanto tempo dormindo - Nari declarou, indo se sentar ao lado da anfitriã. Tomou um gole do vinho. - Excelente sabor. Uma boa escolha da safra. Obrigada.
- Posso lhe servir mais um pouco?
- Não, não, apenas fique sentada! Deixe-me desfrutar de sua companhia. Levo algum tempo quando degusto um novo sabor. - A voz soou como um leve sussurro. - Você me fascina.
- Verdade? Como pode...
- Sim, eu realmente admiro uma mulher como você. Este é um mundo difícil. Os homens vêm dominando as mulheres por tanto tempo.
- Bem, eu não estou certa se...
- Ah, pense sobre isso. Há sempre um empresário acompanhado por uma secretária novinha, que o usa para subir na vida. Ou então, um executivo velho que esconde um caso extra-conjugal. E você, minha adorável mulher, virou a mesa. É por isso que eu a admiro. Não precisa se curvar a ninguém porque é dona de si mesma. E agora, enquanto é ainda relativamente jovem, tem modos e maneiras de fazer o que quer, com quem quiser.
- Bem, há aqueles, incluindo meus enteados, que me vêem como uma caça-dotes. Além do mais, infelizmente não sou assim mais tão jovem. - Tiff esboçou um sorriso.
Não percebeu que deixara parte de suas pernas expostas quando se voltou para a condessa para poderem conversar.
- Mas é jovem o suficiente. Está com uma forma admirável.
Os longos dedos da condessa, cobertos de jóias, apoiaram-se no joelho da outra, depois deslizando sorrateiramente para o interior das coxas.
Tiff não se embaraçava facilmente, entretanto, parecia que o sangue fluíra para a parte de baixo de seu corpo, deixando-a lânguida. Mencionou fechar o robe, mas a condessa a impediu, segurando sua mão. Devia se mover, afastar-se...
Os olhares de Nari eram cada vez mais sensuais, chegavam a ponto de enfeitiçar Tiff, que não conseguia se mexer e tampouco podia mover os olhos. Os movimentos ousados dos dedos da condessa continuavam a subir por suas pernas...
- Diga-me, bella, já esteve antes com uma mulher?
Ela deveria dizer alguma coisa espirituosa, mas seus lábios mal conseguiam se mover.
- Não...
A condessa ergueu os ombros, enquanto seus dedos invadiam delicadamente a intimidade úmida de Tiff.
- Nem eu... Faz muito tempo... Quando descobri que os homens são falsos... capazes de seduzir jovens inocentes... Eu aprendi que também podemos ser sedutoras, atraentes... e apetitosas.
Tiff engoliu em seco. Não, ela nunca antes estivera com uma mulher, mas...
- Que judiação... Tantos anos com apenas velhos em busca de seus próprios prazeres. Oh, as coisas que deve ter feito para tornar isso... possível!
A condessa parecia ser capaz de ler a mente dela. Mesmo quando falava, Tiff ia sentindo o estranho calor invadir o seu corpo. Deus, sim! As coisas que havia feito, a paciência de que precisara, o prazer que dera aos maridos... enquanto não encontrava prazer algum para si própria.
- Posso lhe mostrar como sentir prazer - a condessa murmurou, aproximando-se até tocar a pele umedecida de Tiff com os lábios...
Nari jantou bem devagar, sem pressa.
Quando estava saciada, sentou-se, observando o corpo pálido de mulher sobre a cama.
Curiosa, levantou-se, estudando o que havia restado.
Ali estava uma mulher que morrera feliz. Havia várias maneiras de desfrutar uma boa e rica refeição. As veias do pescoço eram ótimas, contudo aquelas das coxas podiam ser perfuradas de um modo que o sangue fluísse com mais vagar.
Continuou a observar o corpo que, lhe dera tanto prazer. Gargalhou ao lembrar-se como Tiff tentara agradá-la.
- Pobre garota... você buscou seu próprio fim, não foi?
Levantou-se tão satisfeita como uma gata bem alimentada, sem ter tido de dividir sua refeição com ninguém.
Caminhou até a janela e olhou para a escuridão da noite. Sentia-se completamente revigorada, poderosa e linda.
Então, subitamente, mesmo depois de uma deliciosa refeição, Nari sentiu o gosto de bile. Rangeu os dentes, odiando aquele homem. Ela tinha vindo ali porque...
Ele a deixara com muita fome, tão faminta, de um modo impossível de se satisfazer, não importava quão doce houvesse sido seduzir a sua presa...
Voltou o olhar para Tiff. Alguma coisa tinha de ser feito com os restos mortais. Que aborrecimento!
Ao olhar para a rua, estremeceu. Havia mais policiais na região do que de costume. Qual seria a razão?
Por um momento, pensou que ele poderia estar bravo. Deveria ter compartilhado o banquete. Quem sabe não tivesse escolhido a vítima certa.
Balançando os cabelos e inclinando a cabeça para trás, lembrou-se de que, vez por outra, ele também se esquecia de quem ela era.
Sentiu ódio, amargura e desejo de vingança crescente dentro de si. Ora, estava quase alcançando o seu objetivo. Estava saciada. Certamente tinha seu próprio poder. Havia muito tempo que não se sentia assim tão deliciosamente forte.
Fechou a janela.
A noite estava apenas começando.

O Harry's estava cheio como sempre. Pessoas esperavam por mesas, junto ao bar ou à porta.
Jordan hesitou, pois não havia um lugar vazio. Pensou em pedir uma bebida e ir para o lado de fora, porém estava frio demais.
Enquanto pensava em qual atitude tomar, viu o maitre se apressar em sua direção. Sorriu, pensando que ele se ofereceria para guardar o seu casaco: Então percebeu que não era o alvo do rapaz e sim alguém mais atrás.
- Signore, seja bem-vindo.
Jordan sentiu alguém pousar a mão em seu ombro. Voltou-se e se deparou com Ragnor, que cumprimentava o chefe dos garçons.
- A dama e eu gostaríamos de tomar alguma coisa - Ragnor disse.
Um casal que estava no extremo oposto do bar se levantou, deixando um espaço vazio.
Um momento depois, Jordan estava sentada no banquinho do bar, tomando seu vinho. Ragnor optara por uísque com gelo.
- Como conseguiu afugentar as pessoas do bar? - ela perguntou.
- O balcão é muito movimentado. Pessoas saem, outras seguem para a mesa de jantar.
- Muito conveniente.
- Conheço o pessoal daqui. Para minha sorte surgiu este lugar vago. O que pensa que eu poderia ter feito? Controlar as mentes alheias?
Jordan se sentiu um pouco ridícula e, então, com raiva. E na defensiva.
- Você estava me seguindo?
Ragnor demorou a responder, pois a estudava de cima a baixo.
- Seu ego é muito grande para uma pessoa tão pequena.
- Pensei que fosse voltar a me dizer para deixar Veneza. - Ruborizada, ela voltou a atenção para o misturador da bebida. Não queria levantar os olhos, uma vez que sabia que ele a estudava com detalhes. Estava ciente também de que o vestido preto lhe marcava o corpo curvilíneo. Em seu restrito campo de visão naquele momento, percebeu o quanto ele estava bem-vestido em um terno sob medida, como o havia visto em outra ocasião. Aproveitou para mais uma vez olhar as mãos grandes de dedos longos. Ragnor poderia estrelar em um filme de bárbaros com a mesma classe e elegância com que trajava roupas de grife.
- A propósito, você está partindo de Veneza? - ele perguntou.
- Pode ser que sim...
- Mas não está indo agora tomar um avião?
- Não.
Ela pensou que ele iria argumentar de alguma forma. No entanto, Ragnor apenas deu de ombros.
- Talvez isso seja o melhor.
- Que eu fique? Ora, que generosidade a sua...
- Como é o Hotel Danieli? - ele perguntou, o tom de voz casual.
- Ótimo. Já se hospedou lá?
- Já nem me lembro mais. Talvez eu vá até lá para ver.
- Pode tomar café ou bebidas no lobby a qualquer hora. Um leve sorriso surgiu nos lábios de Ragnor.
- Não vai me permitir acompanhá-la?
- Agora? Vou me encontrar com meu primo e a esposa aqui.
- Tudo indica que não apenas com eles...
De onde ele estava sentado, de frente para Jordan, ele podia ver a porta. Jordan se voltou e viu que Jared e Cindy tinham chegado acompanhados de Anna Maria, Raphael e Lynn.
Os olhos de Raphael brilharam quando ele a viu.
- Olá, queridinha!
Depois da entrada dramática, beijou Jordan nas duas bochechas e admirou-lhe o vestido preto.
Enquanto isso, Ragnor levantou-se do banquinho do bar, espreguiçou-se enquanto Anna Maria se aproximava deles com um largo sorriso nos lábios. Lynn a seguia, cumprimentando a todos. Cindy ficou satisfeita em ver Ragnor, somente Jared parecia um pouco deslocado. Anna Maria convidou Ragnor para o jantar, e Jared franziu a testa não gostando da idéia.
Jordan deu de ombros, tentando assegurar ao primo que não tinha sido ela a tomar a iniciativa do convite.
O maitre se aproximou, e os conduziu até a mesa reservada. Jordan sentiu a mão de Ragnor em suas costas, guiando-a por entre as pessoas. A pressão dos dedos dele contra sua pele desnuda a perturbou. Imaginou-os deslizando sobre seus braços. E não parando ali... Ficou comprovado que aquele homem de fato exercia algum fascínio sobre ela.
O encanto se rompeu quando ele a trouxe de volta à realidade, ao puxar uma cadeira para que ela se acomodasse. O constrangimento a levou a ficar com o rosto muito corado.
Talvez ele se sente em algum outro lugar, que não seja ao meu lado!
O oposto aconteceu.
O desconforto inicial foi aliviado por um garçom ao colocar diante dela a bebida que começara a tomar no bar. Procurando aliviar a tensão, ela tomou um longo gole.
- Então, onde esteve o dia inteiro? - Cindy, subitamente, indagou a Jordan.
- Fui tomar café com Tiff.
- O palácio não é maravilhoso? - Raphael perguntou.
- Muito bonito.
- Dizem que o mármore do vestíbulo veio das ruínas de um palácio romano - Anna Maria acrescentou.
- E você ficou tomando café o dia inteiro? - Jared perguntou.
A pergunta pareceu um pouco irritante para Jordan. Percebeu que todos na mesa a olhavam esperando por sua resposta.
- Tomei café, fiz compras, dei umas voltas.
- Pensei que fosse passar na loja - Lynn cobrou.
- Sabia que vocês estariam muito ocupados.
- Tiff é incrível - Raphael disse.
- Na verdade, uma prostituta bem paga. - Jared balançou a cabeça.
- Jared! - Cindy o repreendeu.
- Bem, ela se casa com velhos ricos pelo dinheiro. Não é a mesma coisa?
- O que dizer quando um velho descarta a esposa com quem viveu por mais de trinta anos, trocando-a por uma mais nova? - Jordan defendeu a amiga. - Eu gosto de Tiff.
- O que acha da sra. Tiffany Henley, Ragnor? - Cindy o inquiriu.
- Suponho que todos nós temos nossas preferências. - Ragnor arqueou a sobrancelha. - Concordo que ela seja enervante, sem dúvida.
- Eu os vi juntos hoje à tarde - Jordan interrompeu. Os olhos de Ragnor se voltaram para ela com interesse.
- Verdade? E onde estava quando nos viu?
- No canal.
- O que estava fazendo no canal? - Cindy perguntou, franzindo a testa.
- Voltando da casa de Tiff. Então peguei uma gôndola.
- Tomou uma gôndola sozinha? - Jared mostrou-se chocado.
- Não me diga que isso é perigoso também.
- Só se passeia de gôndola com um amante - emendou Raphael.
- Pois não era o meu caso. Peguei a gôndola para voltar ao hotel.
- Então... o que Tiff queria com você? - Raphael perguntou a Ragnor.
- Ela me convidou para o coquetel que pretende oferecer antes do baile de Anna Maria.
- Tiff Henley vai oferecer um coquetel? - Cindy parecia surpresa.
- Ela me assegurou de que vocês todos irão - Ragnor respondeu.
- Fomos convidados. Não tive a chance de falar do coquetel antes - Jordan se apressou a dizer.
- Então você já sabia da festa? - Jared se voltou para a prima.
- Soube hoje de manhã.
O garçom, que estava parado ao lado, pigarreou. Jared rapidamente pediu desculpas e perguntou a todos o que desejavam beber.
Ragnor cochichou no ouvido de Jordan.
- Sinto que não gosta de mim, srta. Riley.
- E verdade.
- Posso saber a razão?
- Talvez porque me insulte cada vez que nos encontramos.
- Eu nem sonharia em insultá-la.
- Penso que observou que eu parecia uma verdadeira prostituta naquela roupa de vinil vermelho.
Um leve sorriso surgiu nos lábios sedutores.
- Eu poderia me desculpar, porém não serviria como um contra-argumento, não é? Vamos começar de novo, por que não gosta de mim?
- Talvez porque seja um mentiroso - disse ela.
- Que mentiras lhe contei?
- Você estava na festa da condessa. E nega isso. Ragnor se endireitou na cadeira.
- A condessa e eu não somos amigos, isso eu lhe asseguro. E não estou mentindo.
Ela estava inclinada a acreditar nele, mas nesse momento, Raphael dirigiu-se a Ragnor:
- Eu o vi com a condessa na praça hoje. Pelo menos, tenho certeza de que era ela apesar da máscara. Havia alguma coisa em seus movimentos que a denunciava. Decidiram que não são mais grandes inimigos? Afinal, vocês pareciam bem próximos.
- Como o sol e a lua, meu amigo. Todos na mesa se voltaram para Ragnor.
Jordan pediu licença, dizendo que iria ao banheiro das damas e solicitou a Lynn que pedisse seu prato. Apressou-se a afastar-se da mesa. A primeira coisa que fez quando se viu sozinha foi lavar o rosto com água fria, para depois mirar-se no espelho.
- Volte para casa e pare com toda essa insanidade! - disse a si mesma. Por mais que soubesse que aquela seria a atitude mais sensata a tomar, mesmo que pudesse ser considerada como uma fuga, sentia-se compelida a ficar. Ragnor era um mentiroso. Estivera com Tiff naquele dia, e com a condessa na praça. Contudo, isso não mudava o fato de que ela se sentia dividida entre a hostilidade... e um desejo quase incontrolável por ele.
- Ele tem um corpo tão bonito - ela disse para o reflexo no espelho. - Feições másculas, mãos enormes. Você tem estado tão sozinha, perdeu o noivo faz um ano. É humana...
Subitamente percebeu que uma moça a observava surpresa. Havia falado alto.
Ao sair do banheiro deu de encontro com Ragnor. Ele aparentemente a seguira, e a esperava à porta:
- Preciso convencê-la de que não sou amigo da condessa - ele disse.
- As suas amizades são problema seu, senhor... senhor... - Jordan fez um gesto de impaciência com as mãos. - Nem mesmo sei o seu sobrenome.
- Saiba que é muito importante que acredite em mim.
- Por quê?
- Acredite no que estou dizendo.
- Lamento, não costumo confiar em estranhos. - Ela o enfrentou com o olhar, enquanto ele reagiu, puxando-a pela mão.
- Não sou tão estranho assim.
- Pelo visto temos diferentes pontos de vista. - Livrando a mão, Jordan começou a andar.
Como em um passe de mágica, Ragnor surgiu à sua frente.
- Lamento se a ofendi com o comentário sobre sua fantasia. O fato é que você estava provocante demais.
- Obrigada. E agora... com a sua licença. Dessa vez ele a deixou ir.
- Espero ter pedido os pratos certos para você - Lynn disse quando ela se sentou à mesa.
- Confio na sua escolha. O que vou comer?
- Um rigatoni funghetti, ou seja, uma deliciosa massa com funghi ao óleo e alho.
- Excelente! - agradeceu com um sorriso.
Voltou a atenção ao assunto que os demais conversavam à mesa. Lendas. Ragnor comentava alguma coisa sobre o que Cindy dissera.
Falavam sobre lendas, anjos, deuses e deusas, guerreiros vikings.
O jantar transcorreu agradavelmente. Quando já estavam na sobremesa, o assunto se voltou para o baile daquela noite.
- Será que a condessa vai aparecer? - Cindy questionou Anna Maria.
- Oh, não. Ela não tem convite.
- Mas ela é curiosa, veste fantasias e anda pelas ruas, apesar de que jamais admitiria isso! - Raphael observou.
- Ora, sabemos para quem vendemos nossos convites. Tenho a lista completa de quem vai ao meu baile.
- Mas e se ela aparecesse à porta, nós a deixaríamos entrar? - Lynn perguntou.
Anna Maria ajeitou o cabelo.
- Fique tranqüila, a condessa não irá à festa. E já é tarde. Teremos um longo dia amanhã. Melhor irmos agora. Signore, a conta, por favor. - Ela acenou a um garçom.
A conta já estava paga.
- Como me convidei para jantar com vocês, achei que arcar com a despesa era o mínimo que eu poderia fazer - explicou Ragnor.
Todos agradeceram a gentileza com um gesto de cabeça, menos Jordan, que ficou curiosa.
- A que horas você pagou essa conta? - ela quis saber.
- Quando a segui até o toalete das damas.
- Então não estava realmente me seguindo. Apenas aconteceu de estar lá.
- Não exatamente. Eu a segui, também.
Ele puxou a cadeira para que ela se levantasse. Já fora do restaurante, todos se despediram. Anna Maria e seu grupo estavam prontos para pegar o vaporetto.
- Para onde está indo? - Jared perguntou a Ragnor.
- Na verdade, reservei um quarto no Danieli. Jordan ficou surpresa.
- Ótimo! Podemos caminhar juntos - Cindy exultou. Enfiou o braço no do marido, liderando o grupo.
Jordan se voltou para Ragnor.
- Já está hospedado no Danieli?
- Estou.
- E onde ficava antes?
- Com amigos.
- Então por que se decidiu mudar para o Danieli?
- Não tenho estado lá faz tempo - respondeu ele com ar displicente.
Continuaram a caminhar.
- Obrigada pelo jantar.
- Foi um prazer.
Como se assaltada por uma dúvida, Jordan parou de repente.
- O que você faz para viver?
- Em muitos lugares da Europa, essa pergunta pode ser considerada indelicada.
- Sou americana. De acordo com muitos europeus, temos uma tendência a ser rudes.
- Não é o seu caso.
- Por que simplesmente não dá uma resposta direta?
- Lido com antigüidades.
- Acredito ser uma profissão bem lucrativa. - Ela fez uma pausa, apontando para o terno que ele usava. - Armani, Versace, quartos no Danieli, viagens constantes, pelo que parece. Afora isso, sei que você fala várias línguas. Isso tende a sugerir uma bela educação. Mas ainda acredito que haja alguma coisa a mais.
- Você não acha que está se metendo na minha vida pessoal?
- Sou muito curiosa.
- Não vai me perguntar se sou um traficante de drogas?
- Claro que não!
- Está bem, vou lhe contar um pouco de mim. Ganhei uma boa herança.
- E de onde é sua família?
- Noruega.
- Noruega?!
- Não sei por que tanta surpresa. Tenho um tipo nórdico. Além do meu nome, característico da região, ainda tem o nome de família.
- Eu já lhe disse antes. Não sei o seu sobrenome.
- Wulfsson.
- Wulf-son? - ela repetiu. - Significando... filho de lobo!
- E um sobrenome muito comum no meu país - ele disse. Lobo. Filho de lobo.
O homem alto com a roupa de lobo, pulando do balcão para um barco.
Um lobo no meio das sombras.
Um enorme cão. Certo.
Jordan se sentiu meio sem jeito.
Passaram por uma vitrine de uma loja. Ela olhou e parou.
Lá estava o manequim de novo. Aquele que vira antes. O que tinha o rosto de Steven.
- O que houve? - Ragnor estranhou.
Ela não percebeu que tinha parado com os olhos fixos no manequim. O rosto de Steven lhe passou pela mente repetidas vezes. Sacudiu a cabeça.
- Nada.
Sentiu as mãos de Ragnor em seus ombros, a intensidade de seu olhar.
- O que está vendo?
- Nada. Apenas estou cansada. - Jordan não tinha intenções de compartilhar de suas lembranças de Steven com ninguém.
Não satisfeito, ele olhou para a vitrine, depois se voltou para ela.
- Gostaria que confiasse em mim.
- É apenas uma vitrine de loja, como pode ver. Jared e Cindy pararam um pouco mais à frente.
- Ei, vocês dois ainda vão demorar muito? - Cindy chamou.
Jordan caminhou rapidamente passando o primo e a esposa. Ragnor também apertou o passo. Ela praticamente correu até o hotel, entrou, pegou a chave e subiu ao quarto.
As cortinas estavam afastadas, e a janela entreaberta, o suficiente para gelar o ambiente.
Lembrou-se da sensação que sentira ali no quarto antes de sair. Sem pensar duas vezes, examinou o quarto, o banheiro, debaixo da cama, mesmo o gabinete da televisão. Fechou as cortinas e cerrou totalmente a janela.
Despiu-se e colocou uma camisola de flanela.
Bateram à porta. Ela espiou pelo olho mágico, e viu que Ragnor estava ali. Hesitou antes de abrir a porta.
- O que foi? - Havia raiva e exasperação em sua voz.
- Eu apenas queria me assegurar de que você está em segurança.
- Eu tinha até trancado a porta.
- Importa-se se eu der uma olhada?
- Já é mais de meia noite.
- Bem mais - ele murmurou. - Prometo que não me demorarei.
- Está bem, entre e olhe tudo. E depois, por favor...
Ele entrou e repetiu todas as ações que ela tinha feito. Jordan o observou parada junto à porta.
Daqui a pouco ele vai embora.
Tinha de ir. Bem que gostaria de pedir que ficasse. Antes, porém, iria enfrentá-lo, dizendo que além de mal o conhecer, estava convicta de que ele ainda estava mentindo.
Vou acusá-lo de evasivo, se não inteiramente misteriosa.
E se ele for um assassino em série? Está certo que não posso me julgar superior a Tiff. Como então interpretar essa urgência de tocá-lo e averiguar o que há por baixo daquelas roupas? Que corpo magnífico... que vontade de pular na cama e viver intensamente o momento...
- Parece tudo bem - ele finalmente falou.
- Foi o que pensei. Escute, você não é por acaso um contrabandista de antigüidades?
- Não.
- Um criminoso de qualquer espécie? Ele hesitou um instante.
- Já sei! Você é um criminoso!
- Não, no momento, não.
- Oh, excelente! Está me alertando para ser cuidadosa, quando o perigo está em meu quarto...
- Você complica muito as coisas com essa ansiedade.
- Saia daqui!
Para sua surpresa, ele obedeceu. No segundo seguinte, já lamentava o fato. Que loucura! Padecia de uma insana tentação de se atirar nos braços dele.
- Quando estiver disposto a me dar algumas explicações, e falar sem rodeios, me procure.
Fechou a porta e a trancou. Recostou-se na madeira e mordiscou o lábio inferior. Não o ouviu ir embora. Um momento depois, abriu a porta de novo. O corredor estava vazio. Tornou a fechar a porta e passou a tranca.
Levou um tempo enorme para dormir. Quando conseguiu, os sonhos voltaram.
Lá estava Steven novamente, vestido como o manequim da vitrine, entretanto era o homem que conhecera, apaixonado, carinhoso, nobre... tudo o que havia de bom. Chamou-a pelo nome, tentando alcançá-la através do mar de neblina, pedindo desculpas por não ter podido estar mais por perto.
- É o lobo - ele disse. - Você tem de se livrar daquele lobo.
- Não há lobos em Veneza - ela respondeu. - As pessoas me disseram que são apenas cães enormes.
Lá estava o lobo novamente. Prateado, enorme, sentado ao pé da cama. Grunhiu quando Steven se aproximou. Jordan divisou os caninos afiados.
- Senti sua falta - confessou Steven. Era preciso explicar a presença do lobo ali.
- Não há lobos aqui. Acho que é apenas um cachorro, Steven, não vê os olhos dele?
Jordan se viu envolvida no nevoeiro. Não deveria haver nenhuma névoa no quarto. Na certa a criada deixara a janela aberta.
- Jordan...
Era Steven, chamando seu nome.
- Também senti sua falta, Steven, - Foi tomada pelo sentimento de culpa. Sentira a falta dele. Havia sido um bom homem. Um policial. Importava-se com as vítimas, fizera tudo, e dera até a vida em sacrifício.
Senti sua falta, mas estou louca para ir para a cama com ouro homem, Steven, ela pensou.
Não disse as palavras em voz alta, mas era um sonho. Será que ele leria sua mente em um sonho? Estivera tão apaixonada, noiva, não devia se esquecer dele tão depressa. Um ano. Steven estava morto, e ela não.
Havia uma explicação, sim, claro!
- Sinto sua falta, Steven - ela repetiu.
- Tem de me amar mais do que ao lobo!
- Mas eu te amo!
- Leve-me de volta à sua mente, Jordan.
- Você está sempre lá. O lobo grunhiu mais alto.
O nevoeiro tomou conta de tudo e ela acordou em um sobressalto.
Apesar de as cortinas estarem fechadas, alguma claridade entrava no quarto. Ela podia ver os raios dançando no ar.
Não havia nevoeiro em seu quarto. E nenhum lobo.
Nenhum sinal de Steven, naturalmente.
A manhã chegara e os sonhos haviam se esvaído.



Capítulo III



Jordan acordou bem tarde.
Apesar da hora, seguiu para o restaurante do andar de cima do hotel, desesperada por um café. Um dos garçons lhe sorriu e apressou-se em servi-la.
- Signorina Riley - o garçom disse. - Posso lhe conseguir ovos, se quiser.
- Café está bom. O senhor viu meu primo e sua esposa.
- Faz pouco tempo que a sra. Riley saiu daqui.
- Bem, obrigada.
Na mesa ao lado, uma mulher estava terminando de tomar seu café, enquanto o marido lia o jornal.
- Mesmo aqui em Veneza! - o homem disse em inglês.
- O que foi, querido?
- Acharam uma cabeça no canal.
- Meu Deus, que horrível! E quanto ao resto do corpo.
- Não acharam ainda.
Jordan se viu levantando e se aproximando do casai.
- Desculpem-me, lamento me intrometer. Mas não pude deixar de ouvir a notícia horrível.
O senhor abaixou o jornal e olhou para Jordan.
- É verdade, mas não se preocupe. Esta é uma cidade segura, minha jovem. Deve se tratar de uma vingança pessoal.
- Oh, será que ele tinha inimigos?
- Bem, na verdade, a cabeça ainda continua sem ser identificada. A polícia está tentando descobrir a quem pertencia, verificando listas de pessoas desaparecidas. Quer dar uma olhada no jornal?
Jordan sacudiu a cabeça, agradecendo ao homem.
- Muito prazer, sou Jordan Riley - ela disse, estendendo a mão.
- Alyssa e Harold Atwater. Muito prazer. - De súbito, a atenção da mulher voltou-se para a porta. - Veja, querido, aquele é o homem de quem lhe falei antes. Penso que seja um ator de cinema.
Jordan se virou, e viu Ragnor Wulfsson entrando no restaurante. Ele trazia um jornal embaixo do braço, os olhos escondidos atrás de óculos escuros. Usava jeans preto, uma camisa bonita e uma jaqueta preta.
Ela empertigou-se e ofereceu um sorriso ao casal.
- Lida com antigüidades - ela disse.
- Oh, você o conhece! - Alyssa ruborizou. - Bem, fica difícil não reparar nele.
- Concordo. Mas não o conheço muito bem.
- Bom dia a todos - Ragnor cumprimentou. Acenou para Harold e Alyssa, e voltou-se para Jordan. - Você chegou agora?
- Cheguei há poucos minutos. Ragnor, deixe-me apresentá-lo ao sr. e sra. Atwater. Esse é Ragnor Wulfsson.
Ragnor olhou á manchete do jornal.
- Descobriram uma cabeça em um dos canais - Jordan informou.
- Essa cabeça pode ter vindo flutuando da Grécia ou Albânia ou... de algum outro lugar - opinou Alyssa.
- Não penso que uma cabeça pudesse vir de tão longe. - Harold balançou a cabeça.
Enquanto ele falava, o garçom se aproximou, trazendo a omelete de Jordan. O prato tinha sido decorado com folhas verdes e tomates. E os ovos...
- Oh, vocês homens, por favor, querem largar esse jornal! - Alyssa murmurou, parecendo enjoada só de olhar a omelete.
- Está tudo bem? - o garçom perguntou. - Sr. Wulfsson, posso lhe trazer café? Vai se sentar com a srta. Riley?
- Sim, obrigado. Alyssa se levantou.
- Vá comer a sua omelete, enquanto está quente - ela sugeriu a Jordan. - Foi adorável conhecê-los. Harold, agora temos de ir.
- Não, não temos...
-Temos sim. Nós nos veremos depois. - Ela puxou o marido pelo braço.
- Pode ficar com o jornal - o homem ofereceu a Ragnor.
- Muito obrigado.
- Não me lembro de tê-lo convidado a tomar café da manhã comigo - Jordan observou.
- Este não é propriamente um café da manhã - ele murmurou, os olhos ainda presos no jornal.
Jordan desejou saber ler em italiano.
- O que o artigo diz?
- Não muita coisa. Uma cabeça foi achada em um dos canais menores.
- Perto do palácio da condessa?
Ragnor ergueu os olhos cobertos pelos óculos escuros.
- Sim.
- Pessoas foram mortas naquela festa. Estou convencida disso. Se pelo menos alguém acreditasse em mim...
Ragnor não a contradisse. Foi traduzindo o artigo.
- A polícia chamará um especialista para recriar o rosto assim facilitará a identificação. Não há nenhum relato de pessoa desaparecida em Veneza nestes últimos dias.
- Pode tirar esses óculos, por favor? - Jordan o encarou.
- Não.
- Mas usá-los à mesa é extremamente rude. É algo que nem um americano ousaria fazer.
- Vejo americanos usando óculos de sol à mesa o tempo todo - ele disse, distraído.
- Você fica o tempo todo me alertando de que estou em perigo, que crio perigo, então me diz que uma cabeça cortada não significa nada em Veneza. - Jordan empurrou o prato com a omelete para o lado.
- Eu não disse isso.
- Então o que tem a dizer a respeito?
- Que você não pode simplesmente presumir que a cabeça tenha alguma coisa a ver com a condessa. E se for à polícia, insistindo de novo que a festa da condessa estava cheia de criaturas dilacerando os convidados, irão pensar que você está louca. Tendo visões, sofrendo de estresse causado pela perda de seu noivo.
Jordan começou a se levantar, mas ele a segurou pelo braço.
- Por que fica com raiva de mim quando eu lhe digo a verdade?
- Não me disse a verdade sobre nada, Ragnor!
- Eu disse o que precisava saber.
- Bem, no momento, tenho trabalho a fazer. Assim, se me der licença...
- Onde está indo?
- O que você tem com isso?
- Onde você vai? - Ragnor repetiu, sem se importar de tê-la irritado.
- À portaria. Deve ter chegado por FedEx uma encomenda para mim. Então voltarei ao meu quarto para trabalhar.
- E depois?
- Vou devolver uma fantasia para Anna Maria e alugar outra para essa noite.
- Eu estarei no lobby. Gostaria que me procurasse antes de sair.
- E se eu não quiser que me acompanhe?
- Não vai ser fácil se livrar de mim. Ah, e você não comeu nada.
- Não estou com fome. E estou ansiosa para começar a trabalhar.
Ragnor soltou a mão dela, voltando sua atenção ao artigo do jornal.
Jordan tomou o elevador para o andar de baixo e foi direto à portaria, perguntando se havia chegado alguma encomenda. Para sua surpresa, tinha chegado.
Havia um bilhete da agente preso no alto do pacote. E o nome da obra, Lendas de um Vampiro e uma Mente Criminosa.
Ela começou a ler enquanto subia as escadas. Havia uma introdução falando do autor, um policial chamado Sean Canady de Nova Orleans. Havia trabalhado no Departamento de Homicídios por anos.
A primeira parte do livro centrava-se em narrar casos resolvidos, aqueles que envolviam ocultismo e vampirismo, voltando no tempo e falando em canibalismo.
O texto era envolvente. No quarto, Jordan se ajeitou na cama e continuou a ler até que se lembrou que não tinha trancado a porta.
O texto deixava claro que ela deveria fazer isso.
Levantou-se, correu até a porta, trancou-a, e voltou a ler. O livro era bem-escrito e detalhado. Havia uma parte sobre casos que continuavam sendo investigados, incluindo o assassinato de várias prostitutas em Nova Orleans, além das mortes estranhas que tinham ocorrido em Charleston, na Carolina do Sul.
Steven era citado no livro. Jordan mordiscou o lábio enquanto lia essa parte.
Havia um capítulo sobre várias psicologias envolvendo tais assassinatos, escritos em cooperação com um membro do FBI, que trabalhava traçando os perfis dos criminosos. O autor deixava claro que os assassinos em série geralmente eram homens brancos, com idade entre vinte e trinta e cinco anos, tinham empregos temporários e eram casados. Muitos eram charmosos, atraentes e de bela aparência.
Algumas vezes os assassinos deixavam as suas assinaturas. Outras, eles queriam ser pegos. Em alguns casos, queriam testar seu poder vencendo os policiais. Havia outros, porém, que matavam por pura maldade. E ainda uma pequena parte que acreditava estar lidando com vampiros.
O autor detalhara também uma lista de sugestões sobre como se manter a salvo. A maioria deles seguia o bom-senso, mesmo assim, Jordan continuou a ler com atenção.
Evite estar sozinho no escuro em um lugar potencialmente perigoso.
Sempre mantenha as portas e janelas trancadas.
Tenha um cachorro. O latido afasta muitos dos criminosos.
Nunca convide estranhos a entrar. Nunca!
Ao ouvir uma batida na porta, ela pulou de susto. Ao consultar o relógio, percebeu que já eram três horas da tarde. O tempo havia passado sem que ela tivesse notado.
Levantou-se e, sem saber por qual razão, decidiu esconder o manuscrito debaixo do travesseiro. Caminhou até a porta, espiou pelo olho mágico esperando ver Jared e Cindy. Mas era Ragnor.
Nunca convide um estranho a entrar. Nunca!
Mas...
Na noite anterior, ela já havia burlado a regra principal
Ragnor tornou a bater na porta.
Jordan endireitou os ombros, respirou fundo e percebeu o quanto a leitura do manuscrito a estava afetando. Quando Ragnor bateu pela terceira vez, ela abriu a porta.
Ele a olhava em expectativa e consultou o relógio.
- Você está pronta?
- Para o quê?
- Ir até a loja de Anna Maria e devolver a sua última fantasia. Aposto que Raphael separou outra tão bonita quanto a primeira para você usar esta noite.
Jordan queria pedir a ele que fosse embora. Não tinha certeza se gostaria de ir ao baile. Talvez quisesse mesmo ficar imersa em sua leitura.
Quem sabe enlouquecera de vez?
Ragnor tinha uma presença incrível. Eia gostava do som de sua voz, do formato de seu queixo...
Como antes, sentia a tentação de cair nos braços dele, encostar a cabeça em peito, e acreditar que tudo estava bem e normal, que ele não era um homem com um milhão de segredos, que... ela podia entregar-se a essas sensações sem temor.
Deu um passo para trás. Não, definitivamente não iria ser refém dessa insanidade.
Mas sabia que teria de ir ao baile. E devolver a fantasia e pegar outra. E, é claro, tinha de ir até o palácio de Tiff para o coquetel.
- Claro. Então vamos.
- Não vai pegar a fantasia?
- Oh, sim!
Foi pegar a fantasia que estava pendurada ao lado da janela. Um assassino pode ser charmoso, atraente na aparência e modos...
Jordan se apressou a sair para o corredor, ansiosa em chegar ao lobby e estar no meio de muita gente.
Não demorou muito para chegarem à rua. Em um ato de gentileza, ele pegou o cabide com a fantasia e jogou-a por cima do ombro.
- Por que tem medo de mim? - Ragnor foi direto ao assunto.
- Acredito que mente para mim, além de ser muito evasivo ao responder às minhas perguntas.
- Pois eu já lhe respondi várias delas. Meu nome é Ragnor Wulfsson. Sou da Noruega e lido com antigüidades.
- E odeia a condessa, embora se encontre com ela. Sem compromisso, de acordo com Raphael. O que há entre vocês dois?
- Absolutamente nada.
- Onde a conheceu?
- Na Escócia, anos atrás. Somos inimigos declarados. Isso é suficiente?
- Não.
- Pois vai ter de ser suficiente por ora. E se não confia em mim, porque continua comigo?
- Porque parece que não consigo me livrar de você.
Ele não respondeu e apertou o passo. Jordan precisou correr para acompanhá-lo. Chegaram à loja de Anna Maria. Lynn estava do lado de fora, fumando.
- Buon giorno! - exultou ela, cumprimentando os dois com os beijos costumeiros. - Estávamos preocupados achando que você tinha decidido não ir ao baile.
- Eu jamais perderia uma festa dessas - Jordan assegurou.
- Vamos entrar, as fantasias dos dois estão prontas! Dentro da loja, Raphael atendia uma freguesa, mas largou-a ao ver Jordan e a cumprimentou com euforia.
- Ouviu falar sobre a cabeça? - ele perguntou. Jordan acenou que sim.
- Em Veneza! No Carnaval. - Raphael estava indignado que tal crime pudesse sujar o bom nome da cidade e a festa.
- Mas você não deve se preocupar. Ninguém sabe de onde veio. A polícia está empenhada em desvendar o mistério. Agora uma coisa, prometa-me que continuará amando Veneza.
- Mas é claro que sim! Conte-me, qual será sua fantasia esta noite?
Ele abriu um enorme sorriso.
- Vai ter de esperar e ver.
Ragnor estava entretido conversando com Anna Maria. Quando a porta se abriu e Cindy e Jared entraram.
- Oh, aqui está você! - Cindy mostrou-se feliz ao ver Jordan, embora estivesse com uma aparência cansada. - Estava preocupada.
- Não devia estar.
Cindy deu uma olhadela para Ragnor e sorriu.
- E não devia mesmo.
- Não acha que está passando tempo demais com esse sujeito? Não sabemos muito sobre ele - Jared a censurou, baixinho.
- Vínhamos os dois para cá, e não tinha razão para que não caminhássemos juntos.
- Mas onde você esteve o dia inteiro?
- Em meu quarto, trabalhando.
A explicação pareceu satisfazê-lo. Ela queria acreditar que Jared estivesse agindo como um irmão mais velho, mas algo lhe dizia não ser bem essa a razão.
- Até depois - Ragnor se despediu, beijando Anna Maria e seguiu para a porta. Jordan fez menção de segui-lo, mas Jared lhe segurou o braço.
- Por que está indo com ele?
- Ora, estamos indo para o mesmo lugar. - Jordan puxou o braço. - Ah, ficou sabendo que tiraram uma cabeça do canal? Não uma cabeça de peixe, Jared, uma humana.
- Sim, eu ouvi. Isso deve significar que existem corpos boiando nas águas desde a casa da condessa. - Ele suspirou, exasperado.
- Isso significa que alguém foi morto... e que lhe cortaram a cabeça fora.
- Ei, vocês estão bloqueando a porta - reclamou Cindy.
Jordan abriu caminho e alcançou rapidamente Ragnor, que levava as duas fantasias. Colocou a mão no braço dele, surpreendendo-o. Havia feito aquilo apenas para irritar o primo.
- Tome cuidado com ele - advertiu Ragnor.
- Jared é meu primo e eu o adoro. Não é um estranho.
- Pode não existir alguém mais estranho do que a pessoa que você pensa conhecer.
- Pelo amor de Deus!
O silêncio prevaleceu enquanto caminhavam. Por fim, ele fez um comentário que a confundiu:
- Cindy não me pareceu bem, está muito pálida.
- Deve ser porque ela vai todas as noites a alguma festa. Mais uma vez caminharam sem trocar nenhuma palavra.
Perto do hotel, eles passaram pela loja com o manequim na vitrine. Sem perceber, Jordan parou mais uma vez, tentando se convencer de que se tratava apenas de um manequim.
- Diga-me o que está acontecendo - Ragnor exigiu.
- Não é nada. Gosto do traje.
- Depois você diz que sou eu o mentiroso.
- Temos de nos apressar se vamos passar pela casa de Tiff. Fique sabendo, sr. Wulfsson, que ela está interessada no senhor.
- Tiff é uma pessoa agradável.
Jordan sorriu. Gostava da moça também, no entanto, jamais a descreveria como agradável.
- Creio que ela seja mais intrigante do que meramente agradável.
Ragnor parou e fitou Jordan.
- Você não sabia nada sobre o coquetel desta noite até que eu falei sobre ele, não é?
- Não fiquei surpresa. Já lhe disse que vi vocês dois juntos.
- Não estávamos "juntos"!
- Ela quer que você visite o palácio.
- Já conheço o lugar.
- Está bem, ela quer que você visite o palácio com ela. Ele não respondeu de imediato, mas ao chegar em frente ao hotel, parou de supetão.
- E você não tem nenhum interesse por mim?
Jordan riu, divertindo-se com a conversa. Talvez em outras circunstâncias tivesse interesse. Isso se não estivesse sonhando com Steven, se...
- Não confio em você - ela declarou.
- Mas tem de confiar.
- Quem sabe se você me der razão para tanto... Entraram no hotel e quando ela foi pedir sua chave, Jared apareceu a seu lado.
- Vamos nos encontrar no lobby em trinta minutos. Esse coquetel será uma chatice.
- Você não precisa ir se não quiser, Jared.
- Não. Cindy e eu iremos. - Ele olhou para o lado onde Cindy e Ragnor conversavam.
Jordan percebeu que ele se retesou. Notou que a preocupação do primo não era exatamente com ela, mas com a hostilidade que tinha com Ragnor.
- Está bem, vamos nos encontrar aqui no lobby em trinta minutos.
Jordan pegou a fantasia com Ragnor, agradeceu por tê-la carregado e subiu para o quarto.
Mal teve tempo para entrar no chuveiro e se vestir. A fantasia era simples e fácil de usar. Penteou os cabelos e colocou uma maquiagem leve.
Satisfeita, deixou o quarto e foi se reunir com os outros no lobby.
Ragnor usava sua típica capa negra e um chapéu à moda inglesa. Cindy estava linda em um elaborado traje elisabetano, e Jared continuava com a mesma fantasia de dottore.
Apesar de exaurida, Cindy estava com uma boa aparência. Jared, por sua vez, parecia tenso. Mantinha a máscara enquanto caminhavam. Ragnor ia em silêncio, atento, porém, e bastante educado e cortês com Cindy.
Continuaram a conversar, discutindo pontos turísticos da cidade. Jordan, subitamente, se sentiu ansiosa para chegar logo à casa de Tiff. No entanto, quando chegaram, e ela bateu a enorme aldrava, ninguém atendeu.
O grupo ficou ali um pouco constrangido. Jared suspirou, irritado.
- Bem, ótimo, ela nos convida, e não fica em casa para nos receber. Tem certeza de que esta é a hora certa e a noite certa, Jordan?
- Ela disse que seria antes da festa de Anna Maria - respondeu Ragnor. - Que não podia ser em nenhuma outra noite.
- Isso é ridículo! - reclamou Jared.
- Estou preocupada com ela - Jordan disse.
- Preocupada com ela! - Jared exclamou. - Ela nos fez andar por meia Veneza, e nem está aqui para nos receber!
- Mas ela queria mesmo que viéssemos: - Jordan argumentou. Bateu com força na porta. - Tiff!
- Jordan, se ela nem consegue ouvir essas trancas, não vai conseguir escutar você chamando. - Jared consultou o relógio. - Vamos lhe dar cinco minutos.
Ficaram parados à entrada do palácio.
- Acho melhor chamarmos a polícia - Jordan sugeriu.
- A polícia! Porque ela se esqueceu que nos convidou para uma festa?
- Ela não deve ter se esquecido, sei disso.
- Tente a porta - Cindy sugeriu. Jared experimentou a maçaneta.
- Trancada.
- Tenho certeza absoluta de que ela não esqueceria nosso compromisso - Jordan repetiu.
- Mas você disse que não teve contato com ela hoje - Cindy lembrou.
- E eu arranjei muitos convidados para a festa de Anna Maria - Jared disse. - Não posso chegar atrasado.
- Nesse caso, sugiro que vocês três sigam para a festa de Anna Maria e eu irei depois - Ragnor disse. - Posso esperar aqui por mais algum tempo e ver se ela aparece.
- Vou ficar também - Jordan informou. Agora era Ragnor que parecia impaciente com ela.
- Pode ir, Jordan. Vou dar cinco minutos a Tiff, então estarei bem atrás de vocês.
Jordan deu de ombros. Bem, se Tiff voltasse nos próximos minutos, ficaria mais do que feliz se encontrasse Ragnor ali esperando por ela, sozinho.
Deveria estar feliz em livrar-se da incumbência, porém, tinha um pressentimento de que algo não ia bem.
- Está certo - ela disse, finalmente, e reuniu-se aos primos.
Ragnor os observou ir embora.
Esperou até que virassem a esquina. Então tentou a maçaneta de novo. Olhou em volta.
Escuridão, sombras. Ninguém na rua. Momento certo para entrar no palácio sem ser notado.
O vestíbulo estava vazio. Não havia sinal de luta. O chão de mármore brilhava.
- Tiff! - ele chamou.
Subiu as escadas, chegou ao balcão, depois aos quartos. Entrou na suíte principal. Nada parecia estar faltando ali. A enorme cama exibia todo o seu esplendor de seda. Ele se virou e começou a deixar o aposento, quando sentiu um leve cheiro que lhe despertou a atenção.
Sangue. Aproximou-se da cama, olhou atentamente para a seda. Ali havia uma pequena gota.
Talvez Nari não tivesse feito de propósito, mas deixara o seu cartão de visitas.
Quando eles chegaram ao palácio que Anna Maria havia alugado, as festividades já haviam começado.
Entraram no espaçoso vestíbulo já cheio de convidados, vestidos com magníficas fantasias e máscaras. Todos conversavam, serviam-se de salgadinhos encontrados nas mesas dos lados e dos vinhos e champanhe, que circulavam sobre as bandejas dos elegantes garçons em seus trajes pretos.
No momento em que entrou, Jared foi cumprimentado por vários conhecidos e logo se envolveu em uma conversa com um grupo.
Cindy sugeriu que fossem se servir dos salgadinhos. Quando se aproximavam da comida, foram abordados por uma bela sulista. Jordan olhou curiosa para a mulher.
A bela então caiu na risada.
- Sou eu!
- Raphael! - Jordan exclamou.
- Não estou magnífico, meninas? - perguntou ele, dando uma meia-volta.
- Raphael, você viu se Tiff Henley já chegou?
- Não a vi. Mas ela vai aparecer. Vocês não ficaram de encontrá-la antes da festa?
- Sim, mas quando chegamos ao palácio dela, não havia ninguém em casa.
Raphael levou as mãos ao ar, indicando que Tiff podia bem agir assim.
- Provavelmente se esqueceu que tinha convidado vocês. As trombetas soaram. Raphael sorriu, satisfeito.
- Oh, estão anunciando que podemos subir e tomar nossos lugares. Senhorinha... - Ele ofereceu o braço a Jordan. - Sua fantasia está perfeita. Você está gloriosa como uma sereia mítica.
- Não chego a seus pés, você me superou por muito. Raphael riu todo feliz.
- Quem está em nossa mesa?
- Jared e Cindy, Lynn e eu, a autora de um livro de culinária e seu marido, um artista inglês com a esposa, e o meu amigo policial, Roberto Capo. Você gosta dele, não é?
Sim, Jordan gostava do oficial. Na noite fatídica do baile da condessa, ele fora o único que não a tratara como louca. Seria bom revê-lo, assim poderia questioná-lo sobre as investigações em torno da cabeça que tinha sido encontrada no canal.
- E quanto a Tiff?
- Ela deve se sentar com amigos antigos. Mas vamos procurá-la mais tarde, se isso a deixa feliz.
- E Ragnor?
- Ele fala tantas línguas que deverá se sentar com alemães e escandinavos. Anna Maria sempre tenta reunir na mesma mesa pessoas com quem possam conversar.
- E onde ela vai se sentar?
- Anna Maria não se senta, ela circula. - Raphael revirou os olhos. - É a anfitriã e vai de mesa a mesa, assegurando-se de que todos estão se divertindo. Ela é uma mulher maravilhosa.
- Com certeza.
No topo das escadas, eles foram cumprimentados por anfitriões vestidos como a Guarda Suíça. Entraram num grande salão onde havia mais mesas de bufê com as mais deliciosas iguarias.
- Aqui estamos! - Raphael indicou a mesa deles. Roberto Capo e dois casais já estavam sentados. Os homens se levantaram e Raphael fez as devidas apresentações.
Roberto sorriu, e Jordan sentou-se ao lado do policial Lynn chegou em seguida, vestida de toureiro, usando, inclusive, bigode, capa vermelha e uma espada.
- De plástico, infelizmente - explicou ela.
- Soube que acharam uma cabeça no rio - Jordan tocou o braço de Roberto, questionando-o sobre o assunto que a vinha incomodando.
- Você não precisa se preocupar com isso. Por acaso está associando com as estranhezas que presenciou no baile da condessa?
- Não foi isso o que eu disse. Achei curioso apenas. Já descobriram a identidade da vítima?
- A cabeça ainda está sendo examinada pela perícia. Ainda não encontramos o resto do corpo. Não há nenhum caso de morte por violência recentemente para que uma comparação seja feita. Vamos fazer um desenho do rosto e espalhar por toda a Europa.
Jordan ficou desapontada, pois não havia descoberto nada de novo.
De longe, Jared a observava. Ele estava abatido, o que a levou a acreditar que havia causado mais aborrecimento do que imaginara. Quem sabe não fosse essa a razão de Cindy também não estar com uma aparência muito boa.
Ainda assim, ela não estivera errada. Ou a condessa tinha mesmo convidado um grupo de criaturas assassinas, ou seu senso de humor e gosto artístico ficava muito a dever.
- Vamos dançar? - Raphael a convidou.
- Jamais dancei com uma dama tão charmosa - Jordan lhe assegurou. - Mas antes, diga-me onde Tiff vai se sentar.
- Mesa sete, na sala onde está montado o Palácio dos Prazeres. Penso que ela vai adorar.
Caminharam até a mesa sete que estava vazia. Parecia, no entanto, que alguém estivera sentado em cada uma das cadeiras. Raphael fez um sinal de pouco-caso.
- Viu como não precisava se preocupar com Tiff? Vamos, desfrute a sua noite.
- Espere. E onde Ragnor pode estar?
- Mesa dezoito, no andar de cima. -Ele grunhiu. - Está bem, vamos dar uma olhada.
Porém, no andar de cima, as mesas também estavam todas vazias.
- Talvez os dois tenham ido tentar a sorte - Raphael sugeriu. - Esqueça deles.
No andar de baixo, seguiram para a pista de dança. Como o amigo previra, foram interrompidos já na segunda música. Um folião vestido de dottore veio e dançou com Jordan.
Em princípio ela teve certeza de que era Jared. Fez uma brincadeira, mas não houve resposta. Ao terminar a música, o mascarado agradeceu em italiano pela dança.
Contudo, havia alguma coisa familiar naquele homem...
Enquanto ela dançava com um "Júlio César," notou que havia pelo menos cinco fantasiados de dottore no salão. Todos pareciam ter o mesmo peso.
Era mais de meia noite quando Raphael sugeriu que fossem ler seus destinos nas cartas.
- Não sei não... - Jordan contemporizou, mas não se opôs.
A italiana, que abriu as cartas para ela, pediu que tocasse o baralho. Quando obedeceu a mesma solicitação pela segunda vez, passou a prestar atenção às cartas que apareciam. Viu que uma delas era a que simbolizava a Morte antes que a mulher pudesse recolhê-las.
- Aquela era a morte, certo? - Jordan perguntou a Raphael.
- Pode significar muitas coisas. Uma delas é que você deve evitar as sombras. E tomar muito cuidado com as profundezas da noite.
- Mas morte é uma delas.
- Jordan, preste a atenção para o que acabei de lhe dizer.
- Sim, mas que diabos quer dizer "profundezas da noite"?
- A verdadeira morte da noite. Quer saber de uma coisa? Vamos dançar de novo. O ambiente aqui não está bom.
No andar de baixo, Roberto Capo foi o primeiro a convidá-la para acompanhá-lo em uma melodia. E foi enquanto dançavam que ela reconheceu que estava preocupada com à amiga.
- Tiff Henley. Você a conhece? - indagou sem meandros. Ele fez que não com um sinal de cabeça.
- Quando viu sua amiga... pela última vez?
- Ontem.
- Então a cabeça... não é dela.
- Oh, não, claro que não! Estou apenas preocupada.
- Vamos ver se conseguimos encontrá-la. E quem sabe descobrir alguma coisa a mais.
- Sobre a condessa?
- A condessa... aquele homem, o lobo. Viu o homem de novo?
- Não - mentiu. Afinal tinha certeza de que Ragnor...
- Estarei no posto policial. Apareça se sentir medo. Ou preocupação. Se sua amiga não aparecer - confortou ele em seu parco inglês.
- Obrigada.
Um momento depois, Raphael estava a rodeando de novo.
- O Palácio dos Prazeres. Temos de ir ao Palácio dos Prazeres.
- O que acontece lá?
- Eles a despem, a banham com óleos e mel, abusam de você sem misericórdia.
- Acho que vou pular essa parte. Raphael soltou um suspiro.
- Não seja tola! Eles banham suas mãos com óleos e colocam uvas entre seus lábios. É divertido.
Jordan percebeu que o amigo não a deixaria escapar.
- Se abusarem demais de mim, jamais o perdoarei.
- E se fizerem o mesmo comigo e você os detiver, serei eu quem não a desculparei nunca. Venha, vamos nos divertir.
Aparentemente muitas pessoas pretendiam a mesma coisa. As filas eram longas e todos riam, animados.
Alguém chamou Jordan. Raphael lhe deu um leve empurrão.
Ela entrou em uma tenda. Sentiu-se como se tivesse caindo em um buraco negro.
Por um momento, não aconteceu nada. A escuridão era perturbadora. Fechou os olhos na tentativa de ajustá-los ao ambiente. E então teve a sensação de que estava sendo impulsionada para a frente.
Venha para mim...
Ela teria ouvido mesmo as palavras ou tudo era fruto de sua imaginação? A tenda recendia a um perfume suave, talvez incenso, misturado a uma fragrância de sândalo, que a fez se lembrar de Steven.
Venha para mim...
As palavras estavam incrustadas em sua mente, tanto que ela quase deu um passo à frente. A escuridão se tornou assustadora e ela entrou em pânico. Alguma coisa ia pular sobre ela, subjugando-a, arrastando-a para algo horrível.
Podia sentir isso, quase testar, tocar...
Houve um toque suave em sua mão. Ela quase soltou um grito, quando vislumbrou uma moça fantasiada de escrava de harém lhe estendendo a mão direita. Outra pessoa pegou a esquerda. E ela foi levada para as profundezas da tenda, e então, apesar de que não tocara em nada, tomou consciência de que estava diante de outra pessoa. Percebeu-se aquecida por um calor que a envolvia.
Aos poucos o medo foi desaparecendo. Uma estranha sensação de total bem-estar substituiu o pânico.
Um óleo aquecido foi derramado sobre seu corpo e a pele massageada em seguida. O calor provocou uma estranha sensação na nuca. Algo frio e exótico lhe tocou os lábios. Uma uva que ela saboreou.
Podia ouvir a pessoa à sua frente. Um homem. O murmúrio que vinha de seus lábios trazia junto o aroma de vinho. Exalava uma masculinidade que conferiram a ela uma sensação de calma e segurança.
Uma uva foi pressionada entre seus dedos, então Jordan percebeu que agora deveriam trocar os frutos entre si. E outra vez teve de entreabrir a boca para pegar a uva que lhe era oferecida, estranhando que um ato bobo pudesse ser tão erótico. Na sua vez, fez o mesmo, estendendo a fruta para os lábios de seu parceiro oculto nas sombras.
Os dois estavam muito próximos, a ponto de ela se deixar envolver pelo langor. Ela poderia se inclinar para a frente, encontrar as mãos que a tocavam.
Alguém pressionou-lhe os ombros com dedos fortes, massageando os pontos tensos. Ela fechou os olhos. Não podia relaxar demais e se entregar a um total estranho. Sentia o delicioso torpor aumentar, tentou bravamente resistir.
As carícias eram leves e perturbadoras. Algo lhe foi colocado novamente nos lábios. Vinho. Quente, rico, delicioso. Dedos novamente nos ombros, no rosto...
Soou um gongo e a garota do harém pegou-lhe a mão e a levou para a saída.
Ao dar o primeiro passo para fora, assustou-se e logo em seguida ficou furiosa. Ragnor a esperava para ajudá-la a descer os degraus. Que idiota! Devia ter sabido, reconhecido o seu aroma.
- Você planejou isso...
- Desculpe-me, mas estávamos em filas opostas. E você entrou no Palácio dos Prazeres por vontade própria.
- Jordan! - Raphael chamou, pronto para entrar na tenda. - Foi seduzida lá dentro?
- Não!
- Droga! - Ele sumiu dentro da tenda. Ragnor parecia muito satisfeito.
- Isso foi rude - Jordan reclamou.
- Por quê? Você não devia saber quem era o seu par.
- Mas você sabia, não é?
- Fique feliz por ser a minha vez.
- Por quê?
- Alguém mais podia ter abusado de você. Você foi... compelida a ir.
- Compelida? Quando eu entrei, eu...
- Você estava o quê?
- Assustada - ela admitiu, largando-o e atravessando a sala. Quando parou, viu que Ragnor a seguira. - Você viu Tiff? Ela estava em casa? Ela veio até aqui com você?
Ele balançou a cabeça, os olhos atentos.
- Lamento. Eu esperei, mas não a vi. E também não a vi por aqui ainda.
Antes que Jordan pudesse perguntar alguma coisa a mais, Raphael apareceu exultante.
- Oh, vocês dois se encontraram! E eu...
- O que aconteceu?
- Quase fui devorado por uma amazona de quatrocentos quilos! Ela ria feito louca, insinuando dedos onde não devia.
- Era o que você queria - Jordan o lembrou.
- Sim, mas... as pessoas gostam de ser seduzidas pelas pessoas certas.
- Você tem de se arriscar no Palácio dos Prazeres - Ragnor disse. - Agora, preciso ir. - Ele deixou Jordan e Raphael e foi direto ao balcão onde havia alguns fumantes.
Jordan o observou se afastar, nada satisfeita. Estivera com raiva ao descobrir que tinha sido ele a seduzi-la. Porque sentira um medo intenso, depois uma atração incrível, ficando totalmente vulnerável.
Teria sido melhor continuar amedrontada.
E agora ao observá-lo de longe, sentia-se perdida, com frio, como se o calor de seu corpo tivesse ido embora.
Ela e Raphael retornaram ao salão de baile. Jordan visualizou Jared e Cindy dançando juntos. Bem, talvez nem fosse seu primo, pois havia vários homens fantasiados de dottore ali.
Roberto se aproximou dela, que o puxou pelo braço.
- Ainda não vi minha amiga - disse, elevando a voz para ser ouvida, apesar da música alta. - Estou muito preocupada. O coquetel que ela nos ofereceria antes do baile era muito importante, por isso duvido de que ela fosse perder.
- Vá até a delegacia amanhã. Procure por mim, entendeu? Jordan assentiu e olhando por cima dos ombros dele, viu algumas pessoas fantasiadas de dottore.
Um deles se aproximou, deixando-a com uma sensação ruim. Poderia ser Jared ou não.
Aquele dottore era um alemão que falava um misto de italiano com inglês, uma pessoa agradável.
Enquanto dançavam, ela viu que Cindy tinha descido com Jared. Pelo menos, ela pensava ser seu primo.
O médico alemão era divertido e dançaram mais três vezes. Quando terminaram, ela estava sem ar e implorando para sair da pista. Tomou um copo de água e mal teve tempo de descansar e outro dottore a tirou para dançar. Encarou-o nos olhos e não reconheceu o primo.
Tomou mais copo de água, e viu que havia pelo menos quatro fantasiados de dottore por perto.
Durante uma excelente interpretação de uma música de Elvis Presley, Ragnor substituiu seu parceiro. Ela pensou em protestar, mas não tinha razão para tanto. Afinal, sentia-se atraída por ele. Gostava de estar ao seu lado, mesmo que seus pensamentos se desviassem para o erótico.
Acomodou-se confortavelmente nos braços dele.
- Ainda nenhum sinal de Tiff? - ela perguntou.
Ragnor acenou que não.
- Há alguma coisa errada. -: Ela ainda pode aparecer.
Jordan desconfiava de que nem ele mesmo acreditava naquela possibilidade.
Quando a música terminou, ela sugeriu que tomassem alguma bebida para aplacar a sede.
Por cima de sua cabeça, Ragnor espreitava o recinto.
- Está procurando por Tiff?
- Como?... Ah, queira me desculpar. Volto já. Mais uma vez, ele simplesmente se foi. Lynn encontrou-a sentada à mesa.
- Olá, esta é minha canção favorita. Importa-se de dançar com um toureiro?
Jordan olhou em volta, Muitos começavam a ir embora, outros continuavam se divertindo.
- Claro.
- A fantasia não foi uma boa idéia - Lynn admitiu.
- Nenhum rapaz interessante me abordou! Na verdade, nenhum rapaz veio atrás de mim.
- Deve ter sido o bigode - Jordan brincou.
Um momento depois, outro fantasiado de dottore parou diante dela. Lynn se voltou para dançar com um cigano.
- Então?
Jordan arqueou a sobrancelha, olhando bem o seu parceiro.
- Sou eu, Jared. Está se divertindo? O que foi, muitos amigos venezianos? Já não fala mais comigo?
- Tentei conversar com um médico alemão e outro brasileiro. Como ia adivinhar que agora este era você?
- Porque sou alto e devastadoramente lindo, mesmo com um manto e uma máscara!
- Que tola sou! Eu me esqueci! - ela brincou. - Ei, você viu Tiff por aí?
Jared respondeu que não com um sinal de cabeça.
- Mas se eu tivesse visto...
- Sei, sei, poderia não reconhecê-la.
- Quem sabe ela não quer passar por misteriosa, para depois nos brindar com histórias fantásticas de suas conquistas?
Quando a música terminou, Jordan sugeriu ao primo que fosse procurar a esposa. Ele concordou e se afastou.
Ela voltou ao bufê onde os pratos começavam a ser retirados. Um garçom lhe estendeu uma cerveja. Ela deu de ombros, agradeceu ao homem e aceitou a bebida. Observou então os dançarinos e descobriu que um fantasiado de Deus Sol se aproximava.
Colocou a cerveja de lado e seguiu-o para a pista.
Enquanto dançavam, ele lhe disse que não deixasse de visitar o Museu Guggenheim. Ela lhe assegurou de que tinha ido lá muitas vezes.
- E as igrejas? Temos tantas delas aqui, mas precisa conhecê-las. Há duzentas.
- Outro dia eu vi uma igreja, mas... um amigo me deteve e eu não entrei. Quem sabe posso encontrá-la de novo.
- Faça um esforço para isso.
Quando a dança terminou, ele se ofereceu para acompanhá-la ao hotel.
Jordan viu outro fantasiado de dottore junto à porta. Alto, cabelos escuros. E, por certo, devastadoramente lindo, mesmo com a máscara.
- Não, obrigada. Eu vim com minha família. Eles já devem estar indo também.
O homem lhe fez uma elegante mesura e se afastou.
Um daqueles fantasiados de dottore mencionava sair. Jordan decidiu ir atrás dele, achando que era Jared. Mas antes que saísse da sala, Ragnor apareceu à sua frente.
- Preciso alcançar Jared - ela disse.
- Aquele não é Jared.
- Como sabe?
- Ele saiu há poucos minutos com Cindy. Ela não se sentia bem.
- E me deixou para trás?
- Ele sabia que você tinha amigos aqui.
- Ora, sei que ele não confia em você. Ragnor deu de ombros.
- Isso é normal. Mas você não pode voltar para o hotel sozinha.
- Estamos em Veneza, uma cidade segura.
- Vamos para o mesmo hotel. - Então você pode me seguir.
O último dos vaporettos tinha deixado o cais com a maioria dos convidados. Jordan e Ragnor ficaram aguardando qualquer outra condução que passasse por ali.
- Creio que você devia ficar grata por estar comigo.
- Por quê?
- Não há mais ninguém pôr aqui.
Jordan indicou um guarda, parado junto às docas, pronto a tomar o próximo barco.
- Ele é um estranho.
- Duvido de que alguém possa ser mais estranho que você.
- Talvez tenha razão - Ragnor concordou.
- Por que você não fala muito sobre si mesmo?
- Por que não confia em seus sentimentos?
- Talvez porque sinto que você seja uma pessoa perigosa.
- Pode ser que tenha razão... em parte.
Jordan suspirou.
- Nunca vamos completar assunto algum.
- Depende só de você - assegurou ele.
Apesar da brisa fria, Jordan sentiu-se quente. As palavras de Ragnor tinham definitivamente uma conotação de sensualidade. E para ela, não havia como pensar em outra coisa.
No entanto, mesmo quando sentia a excitação aumentar, pensou ter ouvido um som estranho. Olhando em direção ao palácio de onde tinham acabado de sair, as sombras pareciam ganhar vida. Levantou o olhar para o céu, na dúvida se nuvens escuras haviam encoberto a lua. Por mais uma vez, o medo do escuro voltou a arrepiar-lhe a pele.
Sim, ela estava feliz por Ragnor estar ali.
Inadvertidamente, aproximou-se dele. Não protestou quando foi envolvida pelos braços fortes.
O táxi marítimo por fim chegou. O guarda e o condutor a ajudaram a entrar. Ragnor veio logo em seguida.
O veículo cruzou em velocidade as águas dos canais, causando enjôo em Jordan, sua cabeça estava girando.
Encostou-se nos ombros de Ragnor. Os dedos dele acariciando-lhe os cabelos. O toque era inebriante, não havia como não se render.
Um momento depois, já tinham chegado às docas diante do hotel.
- Que horas são?
- Quase três - Ragnor respondeu, ao ajudá-la a deixar o barco.
- Meu Deus, nós fechamos o baile.
- Nas profundezas da noite - ele murmurou.
Jordan meneou a cabeça. Aquela era a segunda, ou terceira vez que ele empregava a mesma expressão.
Começaram a caminhar em direção ao hotel. Quando estavam para chegar, ela voltou o olhar mais uma vez para as docas.
Percebeu as sombras, movendo-se... Respirou fundo, procurando-se acalmar da sensação de estar ouvindo novamente os sussurros, as batidas das asas dos morcegos...
Ora, nas docas não havia morcegos!
Bastou Ragnor olhar para trás para que os sons parassem.
Eram reais ou ela os imaginara? Teria ele os feito parar com seu olhar?
- Venha subir ao seu quarto. Já é muito tarde. E as nuvens estão vindo. À lua será encoberta.
Jordan recostou a cabeça no braço dele enquanto andavam.
- Você tem medo do escuro?
- Ao contrário, amo a escuridão.
Quando estavam próximos à porta do hotel, ela parou de novo, e espreitou os arredores. Havia uma sombra estranha perto da porta. O medo lhe congelou o sangue. Podia jurar que ouvira o farfalhar de asas.
Se Ragnor percebera, não demonstrou. Preocupou-se em conduzi-la para dentro. Pararam à recepção para pegarem as chaves.
- Então você está mesmo hospedado aqui? - ela murmurou.
- Claro que sim. O que pensou?
- Não sei - ela confessou. - Bem, boa noite.
- Vou acompanhá-la até o quarto. Ela concordou sem objetar.
Quando abriu a porta do quarto, ele entrou primeiro. Jordan o observou examinar o quarto todo, depois o banheiro, a saleta, e debaixo da cama.
- Está esperando encontrar alguma coisa ruim? - ela perguntou, encostada à porta. Sentindo uma ligeira dor de cabeça, imaginou que talvez as visões e sons que ouvira tivessem sido provocados pelo excesso do álcool.
- Você está bem? - ele perguntou.
- Ótima - ela disse, enquanto tentava atravessar o quarto com dignidade, embora não em linha reta.
Ele riu, indo ajudá-la, levando-a até a cama.
- Muita bebida, não é? - Sentou-se ao lado dela. - A sua coroa está torta... - Enquanto falava, ele tirou os grampos e soltou o enfeite, jogando-o em uma poltrona e, sem nem mesmo olhar, acertou em cheio. Os dedos deslizaram pelos cabelos dela, em uma carícia lenta. Então se inclinou e a beijou.
O calor emitido pelos lábios de Ragnor a fez estremecer. Instintivamente, ela o enlaçou pelo pescoço, entregando-se à carícia. Era um beijo de um amante experiente, que movia-se seguindo uma paixão controlada, quente e úmida.
Jordan testou os lábios dele, a língua, o movimento afoito dentro de sua boca parecia ser uma invasão íntima, criando uma antecipação por todo o corpo. Quando se afastaram, o sabor doce do beijo permaneceu em seus lábios.
Devo ir embora?
Ele teria dito isso, ou como sombras e murmúrios na noite, ela também o imaginara?
Com a ponta da língua, ela umedeceu os lábios, para voltar a falar. Tão envolvida que estava, rezou para que aquelas sensações extasiantes não fossem apenas reações ao álcool. Como que para se certificar, tocou-o no rosto, encontrando sua boca novamente. Os lábios se encontraram mais uma vez, enquanto Ragnor lutava para se livrar do casaco, gravata e camisa.
Jordan interrompeu o beijo, sem fôlego, espalmando as mãos sobre os músculos bem definidos do peito dele. Havia alguma coisa a mais. Ele usava um medalhão religioso. Um objeto antigo, lindo, com um desenho celta, que remetia a uma cruz trabalhada. Sem que houvesse qualquer explicação lógica, ela sentiu um alívio reconfortante dominar seu corpo.
Percebeu que estava parada ali, admirando a jóia. Induzida por sua beleza, ela deslizou os dedos pelo medalhão, sentindo o desejo tomar conta de seu corpo.
Acariciar a pele quente, em contraste com o objeto frio, foi uma sensação única, responsável por afastá-la de todos os medos. Tocá-lo era algo fascinante. Esqueceu-se do medalhão, e de todos os seus medos.
- Gostos de mãos grandes - sussurrou quando ele a abraçou.
- Muitos vêem minhas mãos, mas não sabem o que elas podem fazer.
- São assim tão espetaculares?
- Poderá julgar por si só.
Deitar-se na cama foi uma seqüência natural ao beijarem-se de novo. Ragnor delineou-lhe o maxilar com a ponta da língua, movendo-a para o pescoço, até o colo...
Jordan percebeu-se nua e não soube se participara do ato de despir-se ou não, o importante era que a fantasia branca e dourada jazia esquecida no chão. Na certa por obra daquelas mãos e boca talentosas. Gostaria que ele também estivesse totalmente nu. E em instantes viu-se envolvida imersa em uma outra esfera, ausente de realidade, sem medos ou fantasmas que a vinham incomodando.
Ragnor era uma parede de músculos, e a tocava com uma fome e paixão, mesclada com ternura. Jordan queria se agarrar a ele a cada vez que uma nova onda de desejo a engolfava.
Sim, aquilo era muito bom...
Os afagos ousados aumentavam a intimidade, cada roçar de lábios era um carinho sobre sua pele. A viagem seguia lenta a cada nova descoberta, levando-a ao total abandono.
Um beijo próximo aos seios disparou uma faísca que a percorreu como uma lava incandescente a pavimentar-lhe o corpo todo. Em meio aos movimentos sôfregos, ele se posicionou entre as pernas dela pronto para dominá-la.
Sons escaparam de sua boca, palavras, gemidos... quando finalmente Ragnor ergueu-se e a penetrou. Jordan sentiu o quarto se iluminar quando um orgasmo a fez estremecer com a força que parecia parar o mundo.
Viu a noite se tornar um borrão.
A noite...
A noite profunda. A fome tinha se tornado uma agonia do desejo. Ela chegou ao clímax, intoxicada com suas sensações, e então estava tão exausta e ao mesmo tempo tão feliz de estar ali ao lado dele, que dormiu segura e aquecida.
A salvo.
A palavra pareceu cair dentro das profundidades de seu sono.
Ele permanecia um estranho. Mais estranho do que qualquer um que encontrasse na rua.
Estranho...
Oh, como era tola!
Fora totalmente...
Seduzida.
Jordan acordou com uma terrível dor de cabeça, gemendo alto, odiando-se por ter misturado bebidas. Olhou imediatamente para o outro lado da cama.
Ninguém.
Em um primeiro momento, imaginou se não desfrutara de um sonho erótico de bizarras proporções, produzido pelo exagero de álcool que consumira na festa. Percebeu que estava nua, e que sua fantasia estava caída ao pé da cama. Ura olhar para o relógio de cabeceira mostrou-lhe que eram quase três da tarde. Podia ouvir o movimento no corredor do seu andar.
A criada, ela pensou, esperando pacientemente para entrar.
Esse pensamento a levou a deixar a cama às pressas, sem se importar com a cabeça latejante. Se Ragnor tivesse saído do quarto, a porta deveria estar destrancada. Infelizmente estava enganada.
Deu um passo para trás, confusa.
Como ele tinha conseguido fazer isso?
Havia imaginado todas as possibilidades até concluir que ele devia ter pedido a camareira que trancasse a porta pelo lado de fora. Com certeza era isso.
Foi até o banheiro e, depois de tomar dois comprimidos contra dor, ligou a água quente do chuveiro e deixou que a água banhasse seu corpo como um bálsamo calmante.
Terminado o banho, vestiu-se bem depressa. Parou diante do computador e viu que sua caixa de entrada de e-mail estava lotada. Um dos primeiros havia sido enviado pelo policial de Nova Orleans, o mesmo que escrevera o livro.
Gostaria de conversar com você sobre o livro. Ele deixara um endereço e um número de telefone.
Ela escreveu de volta, avisando que ligaria mais tarde.
Carregando os dois livros, nos quais estava trabalhando, seguiu para o restaurante no andar superior para comer alguma coisa. O casal americano estava lá, e eles a cumprimentaram sorridentes. Ela passou os olhos pelo salão procurando por Ragnor, mas não havia nem sinal.
Abriu o livro e leu sobre um caso que ocorrera em uma cidade pequena perto de São Francisco. Depois sobre um caso de um assassino em série. O criminoso, um homem branco de uns trinta anos, casado e com um filho e uma posição de executivo, tinha sido considerado por muitos como um vampiro.
Suas vítimas tinham sido torturadas, estupradas e seu sangue sugado. Ele selecionava mulheres que viviam sozinhas em apartamentos de fácil acesso.
Distraiu-se, então, pensando em Ragnor. Nunca o encontrara nas primeiras horas da manhã. Ele tinha um estranho hábito de aparecer de repente, do nada, sem qualquer aviso prévio e desaparecia da mesma forma.
Saiu do restaurante e voltou ao quarto, ansiosa. Já diante do espelho, com todas as luzes acesas, examinou cuidadosamente o seu pescoço. Nem uma marca, maculando sua pele alva. Sentiu-se uma tola pela desconfiança.
Consultou novamente o e-mail. Nenhuma resposta, ainda. Guardou na bolsa os dois livros e deixou o hotel, apressada, na expectativa de chegar logo ao Distrito Policial onde Roberto Capo trabalhava.
No posto teve a informação de que ele havia saído.
Ela ouviu alguém chamar seu nome. Voltou-se e se viu diante de Alfredo Manetti.
- Srta. Riley, como vai?
- Muito bem, obrigada.
- O que faz por aqui? - ele perguntou. - Vamos até o meu escritório.
Um momento depois, ela estava sentada diante da mesma escrivaninha onde estivera depois da festa da condessa. Mas nessa manhã, Alfredo não parecia ter intenção de fazer qualquer chacota.
- Ainda está preocupada? - ele quis saber.
Ela se inclinou para a frente e colocou as mãos sobre a escrivaninha.
- Tenho certeza de que meu primo lhe contou que fui noiva de um policial do Departamento de Homicídios, e que ele foi morto perseguindo cultistas. Sei que algum mistério existe. E agora... vocês estão analisando uma cabeça cortada.
Alfredo também se inclinou para a frente.
- Posso lhe assegurar de que os patologistas estão procurando identificar a vítima e a causa de sua morte.
- Bem, eu diria que ter a cabeça decepada é razão para morte certa - ela murmurou.
Alfredo ruborizou.
- O que a traz até a delegacia? - Alfredo perguntou
- Uma amiga minha desapareceu. Tiff Henley.
- A sra. Henley vem e vai como o vento - respondeu Alfredo, impaciente.
- Sim, mas ela convidou alguns de nós para um coquetel e não estava em casa quando chegamos. E tampouco apareceu no baile de ontem à noite. Gostaria de descobrir o que aconteceu com ela.
- Vou investigar. E quanto à condessa... ela tem contribuído com grandes somas de dinheiro para crianças de orfanato por toda a Itália. Ajuda aos pobres pela Europa inteira. É extremamente generosa.
- Não estou acusando a condessa de nada. Apenas acredito que alguma coisa de ruim anda acontecendo, e se isso não parar, muitas pessoas morrerão.
Ela se levantou. Agradeceu ao policial e deixou o posto.
Quando entrou no lobby do Hotel Danieli descobriu que Roberto Capo lhe deixara uma mensagem, marcando um encontro em uma cantina. Deixara o endereço onde ela poderia encontrá-lo até sete e meia ou oito horas da noite,
Jordan consultou o relógio. Ainda eram cinco, mas ela decidiu ir imediatamente.
Um funcionário lhe ensinou como chegar ao restaurante. Poderia ir de taxi marítimo ou andando. Decidiu ir a pé.
Em frente do hotel, ficou parada por um minuto, prestando atenção a tudo. Ouviu conversas, risadas e um ou outro grito. Um vaporetto parou junto ao cais, havia bastante gente aguardando para embarcar.
Continuou parada por mais alguns segundos e percebeu que, na verdade, estava atenta a sons de asas batendo ou mesmos sussurros misteriosos que volta e meia a rodeavam.
Não havia nada, porém, além de sua imaginação.
Caminhou até a casa de Tiff e bateu na porta. Esperou por dez minutos, batendo de novo e de novo.
Nenhuma resposta.
Finalmente desistindo, seguiu para a cantina.
No começo do caminho, ela encontrou uma pessoa aqui outra ali. As festividades do Carnaval estavam quase no fim, mesmo assim havia ainda fantasiados. A maioria, porém, já estava com roupa de trabalho.
Quando foi se aproximando da área onde deveria encontrar Roberto, percebeu que havia cada vez menos movimento. Ao seguir o mapa que tinham lhe dado, atravessou uma pequena ponte, depois outra. Havia poucas lojas por ali e poucas luzes.
Inquietou-se ao notar a noite chegando. Escurecia muito cedo em Veneza no inverno. O medo, que nos últimos dias se tornara seu companheiro, voltou a dominá-la. Respirou fundo, e recobrando a calma, consultou o mapa e seguiu para uma nova ponte.
Parou no meio da ponte. Engoliu em seco, pois, parado no centro de outra ponte havia alguém fantasiado de dottore. O luar, ainda tímido, o envolvia, enquanto tudo à sua volta estava mergulhado em sombras.
Sentiu o coração bater descompassado. Se seguisse seu instinto de sobrevivência, deveria sair correndo dali. Contudo, agiu justamente de maneira contrária.
Então o dottore se voltou, parecendo flutuar sobre a ponte, a capa voando atrás de si.
Ela começou a correr, ouvindo nitidamente o barulho de asas bater. Corria por um corredor escuro e estreito, sem sequer poder consultar o mapa. De súbito, viu-se em uma praça, iluminada por alguns postes aqui, outros ali.
Em meio a uma névoa era possível visualizar a velha igreja. Sentiu-se tomada por uma compulsão de ir naquela direção. Mais do que tentada. Era como se uma força a puxasse para lá.
Olhou o mapa de novo. A cantina ficava à direita. Isso significava que teria de voltar à igreja. E mesmo que a vontade de entrar ali fosse praticamente irresistível, ela hesitou.
Vislumbrou as luzes de uma pequena cantina no caminho à sua frente.
Passou por um arco medieval entre prédios antigos. Viu, então, Roberto Capo no outro lado. Ele balançava as mãos com veemência.
- Não venha aqui! Vá embora! - gritou.
O farfalhar de asas era real, um zunido ensurdecedor. As sombras dos arcos ganharam vida, dando a impressão de aumentar a cada segundo, como se fosse uma massa preta e viscosa, voando na direção dela.
Sombras que se transformam sob a lua! Roberto a mandara correr. As sombras alongavam-se também na direção oposta, absorvendo Roberto sob as asas de um enorme pássaro da cor do ébano.
Ela se virou e correu desesperada. Derrubou o mapa, nem pensou em parar para pegá-lo. Não queria olhar para trás. Era como se asas negras a seguissem, muito próximas, precisava escapar antes que...
Sentiu um frio na nuca. Voltou a sentir aquela sensação de dedos gelados tocando-a ao sair do meio daquela massa negra, curvando-se como um galho de hera e enrolando-se em seu pescoço, puxando-a com força...
Dominada pelo medo, enlouquecida, virou à esquerda como haviam indicado. Olhou para trás. Foi então que viu o homem fantasiado, parado sob o arco, perto de onde vira Roberto acenar.
Ficou imóvel, olhando. O dottore tirou a máscara. Seu rosto continuou nas sombras.
Ele enfiou a mão no bolso em busca de alguma coisa. Uma faca? Seria um psicótico, escondido atrás de uma máscara, percorrendo Veneza, incorporando Jack, o Estripador?
Ele não sacou nenhum objeto pontiagudo, e sim cigarros e fósforos. Jordan teve esperança de ver-lhe o rosto quando o fósforo fosse aceso. A pequena brasa resplandeceu e o cigarro foi aceso. As mãos em concha e a cabeça inclinada não favoreceram uma boa visão de sua face.
Não havia nenhuma arma à vista, mas a ameaça ainda era palpável. Os movimentos daquele homem eram suspeitosamente descuidados.
O homem não precisaria de uma arma muito poderosa para torturar, destruir, ou assassinar. Ela poderia correr, e não faria diferença alguma, porque cedo ou tarde seria capturada, não importando o quão rápida fosse.
Inspirou profundamente, procurando inalar também um pouco de razão e sanidade. Notou algo se aproximando, vindo de todos os lados, como se fosse um manto, mais escuro do que a noite, envolvendo-a por inteiro. Um terror indescritível a paralisou, prendendo-lhe os pés ao chão, impossibilitando-a de andar, incapaz de qualquer outra ação que não fosse abrir a boca e gritar.
Lembrando-se do alerta de Roberto: Corra!, reuniu suas forças derradeiras e projetou-se para a frente na maior velocidade que pôde.
Deus do céu, estava de correndo de sombras! Fugia do médico, da ameaça de maldade que havia nas ruas de Veneza, do desconhecido...
Terminou chegando a uma rua larga onde havia um ponto do vaporetto, que não demorou a chegar. Por sorte, havia muita gente por ali.
O alívio, embora o coração ainda estivesse em disparada, a fez perceber como estava com o corpo dolorido. Ela mal podia respirar!
Tudo porque um homem fantasiado de dottore havia acendido um cigarro!
Tentou pensar com calma, normalizar a respiração. Todos ali pareciam normais. Conversando tranqüilamente. Será que o medo criava mais medo? Teria sido tudo uma fantasia? O que ela realmente vira.
Um homem fantasiado de dottore acendendo um cigarro.
Mas e quanto a Roberto Capo, gritando e mandando que fugisse?
Um vaporetto chegou e ela subiu. Lembrou-se de que não tinha comprado um bilhete, nem sabia para onde estava indo.
Felizmente a embarcação estava cheia. Ninguém solicitou seu bilhete. Perguntou a um dos passageiros se o barco iria até a Praça de São Marcos.
- Si, si. Ao Hotel Danieli.
Ela agradeceu. A cada parada, pessoas desciam, e Jordan as observava distraída. Começava a questionar sua sanidade. A impressão que tinha era de estar protagonizando um filme de terror. Entretanto tinha visto Roberto Capo em carne e osso. E ele mandara que ela fugisse.
O vaporetto atracou no cais do Hotel Danieli. Ela desceu e caminhou em direção ao hotel. Pediu por sua chave. Ao dirigir-se para o elevador, viu Ragnor sentado no vestíbulo, lendo um jornal. Havia uma xícara de café vazia à sua frente, indicando que ele estava ali fazia bastante tempo.
Quando a viu, levantou-se em um sobressalto.
- Onde diabos você se meteu?
- Isso não é de sua conta! - ela retrucou, arqueando a sobrancelha.
- Seu primo estava preocupado. Uma sensação de culpa a envolveu.
- Eles dormiam e eu saí.
- Eu estava preocupado.
- Lamento não tê-lo avisado. - Uma onda de calor subiu por eu corpo, era a maneira que reagia àquela forte química que havia entre os dois.
Mesmo que gostasse de estar com ele, ninguém o nomeara como seu guardião. Havia outros mistérios que precisavam ser resolvidos. Não queria que Ragnor soubesse de sua ida à delegacia, nem desejava falar sobre a estranha experiência das sombras.
- Já jantou?
- Vou procurar Jared e Cindy antes.
- Eles fizeram a refeição e foram para a cama.
- Assim cedo? Era esse o nível de preocupação comigo?
- Eu disse a Cindy que se você não aparecesse logo, eu sairia à sua procura. Mas telefone para o quarto deles. Ela vai gostar de saber que você voltou.
Foi o que Jordan fez. A prima a atendeu com uma voz de exaustão.
- O que há de errado, Cindy?
- Não sei. Talvez uma gripe. Dormi a manhã inteira, e ainda estou cansada. Onde esteve? Quase morremos de preocupação.
- Apenas saí. Lembre-se, Veneza é uma cidade segura.
- Sei, sei, mesmo assim... Fico com medo quando não sei onde você está.
- Não se preocupe comigo. Talvez você devesse procurar um médico, Cindy.
- Farei isso se não melhorar. Na verdade, não me sinto doente, apenas exausta.
Jordan ouviu Jared sussurrar alguma coisa para a esposa.
- Ah, Jared quer que você tome cuidado com Ragnor - Cindy continuou. - Não confie nele e não o deixe entrar em seu quarto.
Jordan não disse que o conselho chegara atrasado.
- Vou jantar - ela disse. Não estava mentindo, apenas omitindo. Como poderia argumentar com o primo quando ela mesma não tinha certeza sobre seus sentimentos?
Desligou o telefone e voltou até Ragnor, que lia o jornal.
- Eles estavam deitados - informou.
- Não quer comer alguma coisa?
- Quero, sim. Mas me dê um minuto. Quero ir até o meu quarto.
Ragnor franziu a testa, mostrando-se contrário à idéia. Decidido a acompanhá-la, levantou-se, dobrando o jornal.
- Volto já - ela prometeu, e subiu as escadas antes que ele pudesse detê-la.
Entrou no quarto e consultou o seu e-mail. Havia outro enviado pelo policial de Nova Orleans. Era simples, breve, e direto.
Por favor, ligue a qualquer hora.
Ela considerou a possibilidade de ligar naquele momento. A conversa levaria muito tempo. Assim, resolveu que a ligação ficaria para a manhã seguinte.
Lavou o rosto, trocou de jaqueta e abriu a porta para sair. Ragnor estava esperando por ela no corredor.
- Estava ficando preocupado.
- Por que todo mundo se preocupa comigo o tempo todo? - Jordan suspirou, exasperada.
- Já lhe disse... pensei que pudesse estar com problemas.
Ele ficou em silêncio enquanto caminhavam até o restaurante, um pequeno lugar não longe dali. Apenas atravessaram uma ponte. Havia bastante gente nas ruas e também no restaurante. Motivo para deixá-la tranqüila e segura.
Pediram vinho e escolheram os pratos. E quando o vinho chegou, junto com um antipasto, Ragnor tirou o jornal do bolso de sua jaqueta. Abriu-o, alisou-o e apontou para um retrato.
- Reconhece essa pessoa?
Jordan olhou o rosto e o título em cima da foto. As palavras não significaram nada para ela, exceto pensar ter reconhecido a palavra morte.
- Nunca vi esse homem antes. Por quê?
- É o retrato feito pelo artista da polícia técnica do homem, cuja cabeça foi encontrada no canal.
Jordan olhou bem o retrato. Balançou a cabeça bem devagar.
- Tenho certeza de nunca tê-lo visto. Você o conhece? Ragnor negou em um gesto de cabeça.
- Por que acha que ele foi assassinado?
- Não sei. Mas não quero que saia sozinha.
- Ei, espere um minuto! Está me dizendo...
- Faça o que eu digo, será melhor.
- Você nunca explica nada. Sempre falando em círculos e com meias palavras.
- Então vamos conversar sobre outras coisas.
- Certo. Sobre você.
- Não, sobre você - ele contestou.
A massa chegou e Jordan testou uma garfada, estava deliciosa. Prova de que Ragnor conhecia bem Veneza, e também os bons restaurantes. Bebericou o vinho, observando-o por cima do cálice.
- Sou um livro aberto - ela iniciou a narrativa. - Nasci e vivo até hoje em Charleston. Jared e eu crescemos com minha avó. Ele começou a namorar Cindy na escola. Eles sempre se adoraram.
- Está falando de Jared e Cindy. E quanto a você?
- Bem, deixei Charleston para ir para a faculdade. Formei-me em Inglês e Literatura Comparativa. Escrevo artigos, mas em geral faço críticas de livros. Não posso reclamar da vida neste aspecto.
- E quanto à sua vida pessoal? Outro gole de vinho.
- Já lhe disse. Fui noiva de um policial chamado Steven. Ele foi morto. Tenho certeza de que sabe de todos os detalhes. Foi por isso que me exaltei na festa da condessa, vendo crimes onde havia apenas diversão.
- E depois da morte de seu noivo?
- Apenas trabalho. Não quer me perguntar de minha vida antes de Steven? Houve um sujeito chamado Zachary que conheci no primeiro ano de colégio. Depois namorei com Jimmy Adair. Ele queria se mudar para Montana. Voltar no tempo e viver em uma cabana sem eletricidade e estudar os lobos.
- Você tem alguma coisa contra os lobos?
- Não, não. Adoro visitar Jimmy de vez em quando. Só não quero morar lá. Oh, e adoro filmes, também. .Bem, aí está. Então conheci Steven e...
- Ele era perfeito?
- Você devia dizer que sentia muito, ou coisa assim. - Ragnor deu de ombros, e ela continuou: - Agora, quem é você?
- Ragnor Wulfsson.
- Seu nome verdadeiro?
- É sim.
Os pratos principais foram servidos.
- E você veio mesmo da Noruega?
- Nasci lá.
- E tem viajado muito. A serviço ou lazer?
- Diferentes coisas com o correr dos anos. Mas principalmente gastando o dinheiro da família. Lidando com antigüidades aqui e ali.
- E aprendendo línguas. Você deve ser brilhante.
- Não mais do que os outros. Viajo, escuto e aprendo. O tempo ajuda muito.
- Você me disse que conhece a condessa faz tempo...
- Não gostaria de falar sobre isso.
- Pensa que ela seja pura maldade? - Jordan insistiu, provocando-o.
- Tenho certeza de que sim.
- E pensa que a condessa causou a morte desse homem, não é?
- Não tenho provas.
- Devia contar a polícia.
- Ah, sim, e eles a prenderiam porque eu penso que ela causou a morte de um homem?
Jordan balançou os ombros.
- Talvez ajudasse ao menos ir até a polícia. Eles poderiam me levar mais a sério. Apesar de que Roberto Capo...
- O que houve? - Ragnor endireitou-se na cadeira.
- Ele não pensa que sou louca. Você deveria dizer a ele o que pensa. Quem sabe se eles não investigariam a condessa.
- Não faria diferença alguma.
- Por que não?
- Confie em mim, ela esconde bem os seus pecados. Mais uma vez, o garçom chegou à mesa. Agora trazendo café e a sobremesa. Ambos decidiram apenas pelo café.
- Você soube alguma coisa sobre Tiff? - Jordan perguntou.
- Não. - A expressão de Ragnor não se alterou.
- Não está preocupado?
- Por que eu estaria? - O som da voz dele soou cansado.
- Temos de mandar alguém investigar por que ela está desaparecida.
- Acredito que a polícia já esteja fazendo isso.
- O que o leva a pensar assim?
- Eu mesmo verifiquei - Ragnor hesitou. - E prometo que voltarei ao posto e insistirei que descubram alguma coisa.
Jordan ficou satisfeita. O garçom trouxe a conta, Ragnor a pagou e deixaram o restaurante. As ruas estavam mais calmas. Se bem que na companhia de Ragnor, ela nunca via sombras. Nem ouvia sussurros.
- Vai insistir que a polícia faça alguma coisa? - ela perguntou enquanto caminhavam.
- Pode deixar.
Quando voltaram ao hotel, ele a seguiu até quarto. Jordan o observou a examinar tudo, como fizera no dia anterior.
- Você parece mais neurótico do que eu.
- Já lhe disse que estou preocupado com você.
Jordan ficou em silêncio por um momento enquanto Ragnor a fitava.
- Vai ficar? - ela perguntou, então.
- Vou. - A voz dele soou macia.
Ela trancou a porta. Um minuto depois, estava nos braços dele.
Horas mais tarde, ela se voltou para Ragnor.
- Quem é você realmente?
Ragnor ficou em silêncio por um momento, apenas brincando com os cabelos dela.
- Já lhe disse a verdade. Sou da Noruega. E meu nome é Ragnor Wulfsson. - Ele a puxou para os seus braços, e fechou os olhos.
Jordan sabia que ele não estava dormindo.
Afastou-se um pouco e o observou. Mesmo, com a escuridão no quarto, ela podia ver o contorno daquele rosto bonito. Além disso, ele era um amante incrível. Gostava de Ragnor, gostava de estar com ele. Gostaria de saber mais sobre sua vida, conhecê-lo mais.
Amava quando ele a tocava. Nunca se sentira assim antes.
- Muito bem, então o que você é?
- Um homem - ele murmurou e ficou imóvel.



Capítulo IV



Quando Ragnor era uma criança, não tinha noção do mundo de violência e crueldade no qual tinha nascido, nem do estranho patrimônio que estaria em seu caminho.
A vila junto ao mar, onde morava, era produtiva e pacífica. Os fazendeiros trabalhavam a terra, os pescadores iam para o mar, os pastores cuidavam dos rebanhos.
Na primavera e no verão, os campos eram ricos, e as florestas cheias de caça. Durante os longos e frios invernos, os homens trabalhavam belas imagens na madeira, e os contadores de histórias entretinham os jovens e velhos com contos sobre poderosos deuses, sobre guerras entre os gigantes e sobre todas as criaturas da Terra.
Havia lei e ordem em seu povo: disputas eram resolvidas na casa grande, onde seu tio avô tinha a palavra final. Algumas vezes, claro, uma reclamação mais grave levava a uma batalha que era como uma guerra entre deuses. Odin assoprava o vento norte e Thor, em sua fúria, enviava os relâmpagos e os trovões. Não havia desonra em morrer em tal batalha, porque o Valhalla era o paraíso dos guerreiros e estava aberto apenas aos que lutassem com grande coragem e desafiassem o Reino de Hei, a deusa do submundo.
Apesar da riqueza de sua vila e da costumeira paz que reinava ali, foi-lhe ensinado, desde muito pequeno, os preceitos de uma batalha. O pai dele era primo do chefe maior e governava o lugar com honra. Era também temido como um dos mais poderosos dos guerreiros. Ele quase sempre estava ausente da vila, e seu nome era falado em voz baixa e com grande respeito e medo.
Como o sétimo filho deste incrível homem, desde menino, Ragnor fora observado com muita expectativa, e sabia que um dia deveria provar aos outros homens o seu poder e coragem. Não lhe permitiam o fracasso. Não era de se estranhar, porque a maioria dos jovens de famílias nobres aprendia as virtudes da força e poder. Apesar da boa localização e riqueza da terra natal, o lugar continuaria rico se produzisse filhos que se aventurassem pelos mares, estabelecessem novos lares e trariam de volta riquezas de outros.
Ele sempre soubera que seria um viking. Seria seu modo de vida. Seus irmãos mais novos haviam ido, e voltado, algumas vezes anos mais tarde. Vinham como senhores de grandes conquistas, trazendo ouro e arte estrangeira. Contavam sobre monges que, talhavam seus livros na madeira, indivíduos que adoravam apenas um deus, mas não recebiam ajuda deste quando lutavam contra homens a quem chamavam de demônios, que surgiam às suas margens.
Quando o pai estava longe, a mãe falava do marido, então abaixava a cabeça e murmurava uma prece para Freya. Conforme ele foi crescendo, começou a imaginar se ela rezava para que o marido voltasse, ou para que permanecesse onde quer que estivesse.
Ao se aproximar dos treze anos, Ragnor já era mais alto que a maioria dos homens de seu povo, e também era singularmente apto em seu treino com armas.
Algumas de suas primeiras lembranças eram de suas idas às docas para assistir à volta dos guerreiros, homens duros e corajosos que navegavam os mares, enfrentando o vento e a tempestade para atacar as cidades da costa. Estavam em busca de ouro e tesouros, algumas vezes voltavam não apenas com as riquezas, mas com carga humana também, escravos para trabalhar para as esposas dos nobres, para lavrar os campos, fazer a colheita. Ali era uma comunidade intrigante, onde a valentia e a coragem inabalável eram os grandes traços de um homem. Um escravo, que provasse o seu valor, poderia um dia, tornar-se um deles e sair pelos mares também. Quando os guerreiras voltavam, todos corriam para saldar os heróis, para ouvir suas histórias de luta e conquista e se maravilhar com os produtos de civilizações além dos mares.
Aos treze anos, Ragnor foi velejar com o irmão mais velho, Hagan. Pararam nas ilhas ao norte da Escócia, então ao sul, invadindo uma aldeia ao longo das Hébridas. Rumores diziam que os monges tinham vindo da França, com relicários de ouro trabalhados pelos melhores ourives de Paris. Os vikings não tinham interesse nos frágeis ossos, nem nas cinzas guardados em vasos de ouro, já que se interessavam apenas pelo metal precioso.
Velejar era bom e Ragnor adorava. Não se importava com o trabalho árduo de remar o imenso navio com cabeça de dragão, quando não havia vento. Amava uma tempestade no mar. O vento que varria o céu, as ondas se agigantando, tudo o fazia se sentir mais vivo, um guerreiro contra os obstáculos dispostos pelos deuses.
As ilhas onde seus distantes primos governavam eram intrigantes. Ele nunca havia visto antes tantos povos diferentes, muitos deles baixos, cabelos escuros e falando uma língua estranha, que ele achava fascinante.
Nestas ilhas, eles se refaziam das viagens, treinavam com armas, e se envolviam em competições para ganhar mulheres, armaduras, armas e escudos. Tudo seguia muito bem, até que um dos senhores do lugar ouvira falar sobre um tesouro que os visitantes tinham colhido em vilas do sul. Acharam-se, então, com mais direito a esse tesouro e começaram discussões acaloradas. Hagan levantou a voz e clamou que seu irmão nascera sob um signo especial, pois ele poderia enfrentar um homem duas vezes a sua altura, e duas vezes o seu tamanho. Esse irmão, o sétimo filho do sétimo filho, nascido sob a lua negra nas profundezas da noite, iria lutar contra quem fosse o mais forte e o mais capaz. O combate seguiria até a morte e o homem que vencesse seria aquele que clamaria pelo tesouro.
Ragnor surpreendera-se, assim como aqueles que riam dele. Embora não pudesse humilhar o irmão, não estava de todo certo da razão que levara Hagan a colocá-lo em risco de morte. O senhor da ilha, porém, se aproximara dele e o examinara atentamente. Ragnor o informara que as proezas de seu destino ainda não haviam sido testadas, mas o homem exigira que a luta acontecesse como Hagan sugerira. E assim ele escolheu um de seus campeões, Olaf, o Gigante, para ser o seu adversário.
Olaf parecia tão largo quanto alto. Sua altura era impressionante. Não havia sinal algum de gordura. Tudo era músculo. Ragnor, porém, era magro, apesar de seu treino com armas pesadas e o trabalho monótono de remar. Os deuses esperavam que ele tivesse coragem quando se colocou diante de Olaf. Ragnor não conseguiu deixar de olhar para o irmão, deixando claro que se sentia traído. Sabia, porém, que era melhor cair diante de um ataque de Olaf, que apelar para a covardia e ter de enfrentar a fúria de seus compatriotas. Dessa maneira, pisou no chão sujo da arena. Foram-lhe concedidos três escudos e três armas. Ele escolheu um machado, um cetro e uma espada.
Mal havia erguido o escudo de madeira quando Olaf caiu em cima dele, prometendo lhe dar uma morte rápida e indolor, permitindo que uma criança fosse ao encontro dos deuses.
O golpe do machado do adversário atingiu o escudo de Ragnor. Olaf voltou a investir. Ele pulou de lado, o golpe do gigante falhou e seu machado caiu no chão de barro.
Ragnor viu seu oponente pegar o machado e atacar mais uma vez. Recuou e começou a andar em círculos, para diversão de quem assistia à luta. Quando Olaf atingiu seu escudo, ele o largou e pegou a espada.
Quando o gigante veio, rindo e agitando seu machado, Ragnor deu um passo à frente e enterrou a espada no pescoço do adversário com precisão mortal.
Surpreso, Olaf deixou cair a arma e levou ambas as mãos ao ferimento. O sangue cobriu os dedos do homem. Por segundos, que pareceram uma eternidade, Olaf olhou para Ragnor. Por fim, caiu morto no chão.
Os homens à volta gritaram e aplaudiram. O irmão correu para levantá-lo nos ombros. Apesar de toda a glória, ele sentia um imenso vazio dentro de si.
Naquela noite, Ragnor foi presenteado por um escudo trabalhado em prata, uma antigüidade encontrada nas ruínas de uma vila romana. O senhor da vila lhe deu ainda duas mulheres.
Ele não se importou com o segundo presente, porém, elas lhe ensinaram coisas que jamais imaginara existir. Com a bebida que consumira e da energia exigida pelas mulheres, não dormira naquela noite. Poderia inclusive ter morrido. Na manhã seguinte, ele abordou o irmão.
- Você me fez arriscar minha vida.
- Não é verdade.
- O homem era o dobro de meu tamanho, era um bruto.
- Mas você é o sétimo filho de seu pai, que é um sétimo filho também.
- Então sou imortal? Um filho dos deuses? - ele ironizou. Hagan tocou com um dedo a testa de Ragnor.
- O sétimo filho de um lobo, que é o sétimo filho de outro da mesma espécie. Fruto da noite. Você tem a astúcia de um lobo, bem como sua fome e lealdade.
- Foi isso que me manteve vivo?
- Bem, eu ouvi dizer que isso aconteceria. Agora tenho a prova. - Hagan deu um enorme sorriso.
- Você arriscou a minha vida! - Ragnor repetiu, irado.
- Um viking não vive para sempre. E o lugar dele é no Valhalla, seu paraíso, somente se ele realizar grandes feitos na Terra.
No dia seguinte, ambos deixaram o lugar, em busca de novos tesouros.
Quando chegaram a uma praia, Ragnor sentiu-se doente diante da carnificina que ocorreu ali. Os homens de seu irmão atacaram uma pequena comunidade de monges.
Ouviram-se gritos por toda a parte, pessoas correndo, caindo de joelhos, rezando para os deuses. Hagan ria e os ignorava, cortando-os ao meio, quando se aproximavam do lugar de adoração.
Então Ragnor gritou com tal força que todos se voltaram para ele.
- Parem! Deixem essa gente viver! Vocês vieram pelo tesouro. Levem-no!
- Você é um covarde? - Ulric, um dos mais destemidos, gritou. - O sétimo filho de outro sétimo filho... um covarde? - Ele caiu na gargalhada.
- Não tenho a coragem que você tem de dilacerar os homens desarmados. Os deuses devem estar rindo de você. Um guerreiro! Um homem que mata homens que são como carneiros! Reinou um momento de profundo silêncio.
- Peguem o tesouro! - Ragnor insistiu.
Os monges estavam surpresos demais para protestar. Ragnor sabia que muitos dos monges teriam morrido para salvar suas relíquias. Um deles se colocou diante da porta do monastério.
- Levem a prata e o ouro, mas deixem os ossos e as cinzas, que não significam nada para vocês.
- Deixem os seus talismãs! - ordenou Ragnor. - Pelo que sei, os deuses são capazes de atos de misericórdia.
Os vikings terminaram por deixar para trás as relíquias dos monges. Antes da partida dos guerreiros, um monge procurou por Ragnor.
- Tive visões de que você viria - prenunciou o monge. Ragnor pareceu cético e o religioso riu.
- Não me provoque ou deixo que eles lhe cortem a garganta.
- Um jovem com gênio forte, mas ainda assim um jovem.
- Não mais.
- Ainda se passarão anos antes que você esteja totalmente crescido. Rezei muito quando, anos atrás, soube que os navios vikings viriam. E Deus me respondeu em sonho, dizendo que eu não tivesse medo. Você viria para nos proteger.
- Vim para roubar prata.
O monge deu de ombros. Tirou um medalhão do pescoço e o entregou a Ragnor.
- Prata, não roubada, e sim dada. Essa relíquia veio do corpo de São João Batista.
- Não acredito...
- Dê tempo ao tempo. Você é o sétimo filho de outro sétimo filho, eu sei. No entanto, não é o sétimo filho de sua mãe.
Ragnor estremeceu.
- Seu pai a levou desta terra há muitos anos. Ela era uma curandeira, uma criança pagã, trazida para a Igreja. Seu pai foi abençoado, ou amaldiçoado, com o dom do poder. Sua mãe sabia o caminho das coisas da Terra.
- Você é um tolo. Como pode saber disso tudo?
- Para você, Deus é Odin. Para os romanos, Jove. Ele é maior que todos imaginam, sempre foi um e o mesmo. E isso eu sei.
O monge se afastou. Naquela noite, Ragnor perguntou a Hagan sobre o pai. Hagan, deliciando-se com uma enorme perna de carneiro, assumiu uma postura de desdém.
- Ele teve três esposas. Maida, minha mãe. Ingrid, que ele roubou dos dinamarqueses. Elspeth, sua mãe, que ele pegou ao norte daqui, anos atrás.
Mais tarde, quando eles partiram, Ragnor viu o monge nas escadas do monastério mais uma vez. O monge acenou, mas Ragnor não respondeu.
Não voltaram à Noruega. Notícias do que eles haviam poupado os monges chegaram até os mais distantes lugares. Ninguém, porém, os julgou como fracos, ao contrário, muitos nobres buscavam por seus serviços. Eram nobres governadores de ilhas, senhores da Escócia, reis da Irlanda. Eles viajaram até mesmo a Sicília. Hagan ouvia aqueles que queriam contratar os seus serviços, e como era um direito entre os noruegueses, os homens eram livres para escolherem lutar ou recusar determinada batalha.
Ragnor se encontrou voltando algumas vezes ao monastério, intrigado com os livros e com as várias línguas que os religiosos podiam falar. Chegou a devolver os relicários de prata que havia tomado.
- E o que você quer em troca? - o monge perguntara a Ragnor.
- Quero aprender a falar línguas diferentes. O latim que vocês escrevem, o gales que escuto nas vilas, o inglês das terras baixas. Então o francês e...
- Uma por vez, rapaz.
E assim ele se tornara um visitante regular.
Com o passar do tempo, Ragnor também participou de lutas e, a cada estação que passava, ficava mais adepto da arte da guerra. Entre os vikings, muitos vinham até ele lhe pedir que participasse de determinada batalha.
- Dublin é uma cidade fundada pelos vikings - disseram a ele. - O rei nos pede para lutar contra os invasores do norte. Será uma boa luta.
Acabara por descobrir que a guerra de fato valera a pena. Sendo assim, podia ser um selvagem. Tirava vidas com violência e, no entanto, se recusava a permitir matanças de camponeses, mulheres, crianças e dos idosos de qualquer lugar em que lutava.
Eles lutaram para um rei de uma ilha na costa oeste da Escócia, uma batalha contra dinamarqueses, gente como eles próprios.
O rei os recompensou com uma pequena ilha. Eles foram se tornando cada vez mais ricos, e outros foram se unindo ao grupo. Os homens tomaram esposas, algumas por vontade própria, outras à força. Viajaram para casa e levaram riquezas. Ragnor não tinha desejo de continuar ali. A mãe já morrera e ele jamais passara muito tempo com o pai. Lamentava o fato, porque havia tantas perguntas que poderia ter-lhe feito.
O tio, no entanto, era ainda o chefe. E assegurou a Ragnor que sua mãe, apesar de ter sido originalmente uma escrava, vivera muito tempo entre eles, todos a haviam honrado com um grande funeral.
Tendo pouco a que se apegar, Ragnor voltara para Hagan e seus homens na ilha, que possuíam na costa oeste da Escócia,
Aos trinta anos ele já tinha sua própria casa, gado, carneiros e cavalos. Não havia se casado, porém não vivia sozinho. Havia muitas mulheres em sua vida: estranhas em lugares distantes, cativas ansiosas em agradá-lo, e criadas dispostas a servir. O irmão e ele haviam formado um forte laço de amizade e reuniram um grande exército de mercenários.
Naquele ano, eles haviam sido chamados pelo rico senhor de terras ao sul. Ragnor viajara com Hagan para as negociações.
O povo deste senhor fora vencido e morto. Não muito distante, exércitos inimigos tinham vindo e destruído uma vila. Eram invasores destemidos, atacavam montados em cavalos e desapareciam dentro da noite. Gostavam de invadir quando a escuridão reinava.
O povo todo estava apavorado. O inimigo matava sem pestanejar. Passavam por qualquer defesa à noite, sem ninguém saber. Muitas das crianças haviam desaparecido.
A missão agradara aos irmãos vikings. Na viagem de volta, eles pararam naquele mesmo monastério. Ragnor não saberia explicar a razão, mas gostava de conversar com o velho monge, que outrora havia defendido, o homem cujo nome era Peter.
Peter estava à sua espera. Tinha sopa e pão prontos, e escutou avidamente a tudo o que os irmãos contaram.
- O mal chegou - Peter profetizou.
- Ora, ora... - Hagan riu. - São estrangeiros, covardes, e como Ragnor diria, quem luta contra os desarmados são os fracos. Eles querem é caçar mulheres.
- Está nos dizendo que não devemos ir? - indagou Ragnor.
- Não, ao contrário. E vocês precisam não apenas matar esses infiéis. Devem destruí-los completamente. Eles usam qualquer arma: mãos, punhos, dentes. Sim, dentes, vocês devem estar atentos na batalha. Esse é um inimigo muito antigo. Não apenas trazem a morte, mas a infecção. São principalmente contra Deus.
- Mas se seu deus fosse poderoso, ele os destruiria.
- Deus criou o homem com um coração e uma alma. Um homem pode lutar pelo bem e pelo mal.
- A causa do homem é boa, a de seu inimigo é ruim - discordou Hagan.
Peter o ignorara. Olhara diretamente para Ragnor.
- Tome cuidado.
- Nós os destruiremos - Hagan assegurou. - Voltaremos à nossa ilha, reuniremos nossos navios, e armaremos nossas defesas. Acabaremos com os inimigos desse povo!
Duas semanas depois, eles haviam feito a jornada. No entanto, quando se aproximaram da vila, onde tão recentemente Hagan e Ragnor haviam sido tão bem-vindos, encontraram apenas cinzas. Muitos dos vikings queriam apenas voltar, mas Hagan queria continuar. Havia prometido ajuda àquele povo, queria descobrir se ainda havia pessoas vivas e sepultar os mortos.
Subitamente Ragnor notou que outros navios também chegavam. Em um deles havia monges, Peter era um deles. Este vinha em pé na frente da embarcação, com o vento batendo em seus cabelos e vestes. Todos estavam armados de espadas.
Ragnor e Hagan foram cumprimentar os monges quando eles desembarcaram.
- Desistiram de seguir o caminho da paz e pegar as espadas? - Hagan interrogou.
- Travamos uma batalha de Deus. Contra aqueles que roubaram dos mortos, não dos vivos.
- Monge, o que fala não faz sentido - Hagan retrucou.
Ragnor virou-se e seguiu em direção ao centro do vilarejo. Estava tudo calmo. Ao que tudo indicava não fora poupada criatura alguma. Cavalos e cães estavam mortos no meio dos humanos.
- A maldade está presente aqui - Gudric, outro viking, alertou ao apontar para o monge. - Como ele disse, até os deuses teriam medo de vir aqui.
Ragnor viu Peter cortando a cabeça de um morto.
- Peter! - ele exclamou, abismado.
- Nós o cremaremos com preces - justificou o monge, como se isso explicasse as suas ações.
- Vamos cuidar dos vivos - comandou Hagan.
Continuaram andando e chegaram à igreja da vila. A porta rangeu. Os irmãos se entreolharam e Hagan encolheu os ombros.
- Quem quer viver para sempre? - ele perguntou.
- Vou primeiro - Ragnor disse. - Sou o sétimo filho.
- Iremos juntos.
- É apenas uma igreja.
Olharam mais de perto. A porta então se abriu. Uma criança correu para Hagan, seguido de um rapaz.
- Corremos para a igreja quando eles atacaram - ele disse. - Eles atacaram os carneiros e as vacas. Eu vi meu pai...
Ele não disse mais nada e tombou no chão. Os monges, que os acompanhavam, ajudaram o jovem a se levantar.
- Quantos ainda vivem?
- Uns quinze, vinte... estão todos na igreja.
- Comecem a construir uma barricada! - Hagan ordenou para os homens.
- Faça o que quiser. - Peter clamou. - Eu estou lhe dizendo, estará mais seguro na igreja.
- Precisamos montar nossas defesas... - Ragnor argumentou.
- Então monte-as. Faça o que tem a fazer. - Peter se voltou para o menino. - Onde estão os outros?
- Saindo agora que os viram...
Neste momento pessoas foram saindo da igreja. Uma mulher correu para os braços de Ragnor.
- Graças a Deus! - ela murmurou. Ele apenas a encarou sem nada dizer.
- Vocês estão aqui, vocês vieram. Não mentiram para o meu pai, o nosso senhor.
- Chegamos tarde demais.
- Não importa, manterão o restante de nós a salvo.
- Faremos isso, ou morreremos junto - Ragnor prometeu.
- Vamos aos mortos, meus irmãos - Peter ordenou aos monges. - A noite está chegando muito rápido.
Ragnor balançou a cabeça, enquanto os monges passaram a trabalhar com energia redobrada, pegando os animais e as pessoas. Um grande crematório foi aceso.
O cheiro de carne sendo queimada era enjoativo.
Até para um viking.
Quando a noite caiu, Peter insistiu que eles fossem para dentro da igreja. Hagan concordou. Os noruegueses não tinham medo da noite, ele assegurara a Peter. Os homens estavam exaustos. A igreja lhes parecia agora o melhor centro de defesa.
As horas haviam se passado. As mulheres sobreviventes tinham reunido toda a comida e água que encontraram. A filha do chefe da vila veio ficar ao lado de Ragnor, que estava no posto de vigia.
- Hagan diz que outro homem ficará em seu lugar. Você tem de comer - ela disse. - Venha, tenho comida para você.
Ela o levou a um canto onde os bancos de madeira tinham sido postos juntos, criando uma mesa improvisada.
- Estou comendo a sua parte? - Ragnor quis saber da mulher.
- Se estivesse, seria bem-vindo. Estou a seu dispor...
- Você viu os homens que vieram à noite?
- Não vi nada. Vim para cá e me escondi debaixo do altar, como meu pai me mandou. Sabia que eles chegariam junto com a noite. Os homens lutaram. Muitas das mulheres e crianças conseguiram entrar também na igreja, outros não tiveram tanta sorte.
- Não a vi quando me encontrei com seu pai e com os outros - informou Ragnor. - Não sabia que o chefe tinha uma filha. Qual é o seu nome?
Os olhos dela brilharam.
- Nari. Meu nome é Nari. - E ela entrelaçou os dedos nos dele.

Cindy estava dormindo profundamente. Um sono sem sonhos. Estava enfraquecida pelo toque do marido.
Ele murmurou contra o ouvido dela, enquanto movia as mãos. ^ - Quer que eu pare? - perguntou ela ao acordar.
Sim!, ela teve vontade de gritar.
Ficou quieta. Amava toda aquela atenção, apenas estava exausta. Tinha medo de admitir, pois duvidara da fidelidade do marido, e tivera ciúmes terríveis da condessa, apesar de que procurara não demonstrá-los. Primeiro, claro, negara isso para si mesmo. Queria se convencer de que estava errada.
Reuniu toda a energia possível e voltou-se para o marido.
- Nunca pare. Desculpe, é que ando tão, tão cansada...
- Está tudo bem. Tenho energia por dois.
E ele tinha. Cindy não precisou se mover. Jared parecia tomado por uma febre e ela se deixou levar. De repente ele começou a ser rude, feroz, o que algumas vezes tinha sido bom, mas nesta noite...
Ele conseguiu o que queria, Cindy tinha de admitir que também havia gostado. Entretanto, quando ele a beijou de novo, o toque brutal, os dentes...
- Jared! - Ela encontrou energia para detê-lo. - Eu te amo, mas não entendo isto, você está me machucando.
Um momento depois Cindy o viu se erguer e ficar parado diante da janela aberta, enquanto ela estava toda dolorida e gelada. Ele não voltou a deitar ao lado dela, deixara o quarto sem dizer nada.

* * *
Jordan dormiu aconchegada a Ragnor.
Deve ser por isso que muitas pessoas se casam, ela pensou.
Descansar e sentir a presença do companheiro. A noite foi passando, e quando os pálidos raios do sol ainda não tinham se firmado, ele continuava ali.
Não muito depois, virou-se na cama buscando uma posição mais confortável. Agora os raios do amanhecer estavam atravessando as frestas da cortina.
Jordan se levantou e foi ao banheiro.
- Ragnor? - ela chamou, mas não houve resposta. Não o tinha visto sair. Subitamente sentiu um arrepio e caminhou pelo quarto, acendendo todas as luzes. O quarto estava vazio. E a porta estava trancada.
Perplexa, sentou-se ao pé da cama. Devia voltar a dormir. Era cedo ainda. Contudo, não conseguiria, assim se levantou e tomou um longo banho. Vestiu-se e notou seus livros sobre a mesa.
Seria melhor parar com a leitura, pois estava perturbando seus pensamentos.
Mesmo assim pegou o livro escrito pelo policial, ajeitou os travesseiros, e abriu o volume. Naquele capítulo, o autor narrava casos mais atuais, falando sobre vampiros modernos, sobre cultos lidando com vampiros.
Largou o livro, pegou a chave e a bolsa, e deixou o hotel.
Era um belo dia. As ruas estavam cheias. Pessoas passeavam com cachorros, faziam compras, apressavam-se para ir ao trabalho.
Jordan parou em uma lojinha de produtos religiosos e comprou vários crucifixos, pequenos e grandes, e uma bela cruz de prata. Depois seguiu para uma igreja em busca de água-benta.
A última parada foi em um mercado onde comprou frutas e uma réstia de alho.
Voltou ao quarto e decorou as janelas com as trancas de alho. A criada já estivera ali, assim pelo menos por um dia poderia ficar aquela decoração. Jogou água-benta na janela, rezando. Talvez não fossem as preces certas, pediu a Deus que não a deixasse enlouquecer.
Com isso feito, desceu à portaria do hotel e pediu uma ligação para a polícia. Roberto Capo não havia chegado ainda.
Em seguida pediu que ligassem para Tiff Henley. Mais uma ligação perdida.
Jordan agradeceu ao funcionário do hotel, e teria tomado o café em seu quarto se não tivesse visto Cindy sentada no lobby.
Para sua surpresa, a prima, que desprezava óculos de sol nos mais quentes dias no sul da Califórnia, usava agora lentes escuras.
- Cindy?
- Jordan! Que bom. Quer tomar café?
- Claro.
Sentaram-se frente a frente. Cindy tirou os óculos e havia círculos escuros debaixo dos olhos.
- Você precisa ir a um médico.
- Estaremos de volta aos Estados Unidos em uma semana e...
- Existem excelentes médicos em Veneza. Li sobre um que...
- Na verdade, não creio que eu estou doente.
- Jared é assim tão animalesco? - Jordan arqueou a sobrancelha.
- É quase como se estivéssemos em uma segunda lua de mel. Estou satisfeita, claro. Sabe que sempre o amei e... - respondeu Cindy, corada.
- Ele devia deixar você dormir.
- Não ouse dizer nada para ele. Vou voltar ao quarto e tomar um longo banho quente e então dormirei um pouco.
- Vou tentar não dizer nada. Será que ele não reparou nas suas olheiras?
- Se você disser alguma coisa, vou ficar sentida. Ah, olhe lá, Jared vem vindo.
Jared, vestido com jeans e jaqueta, se aproximou. Beijou Jordan na testa, e se sentou ao lado da esposa. Jordan o observou. Ele parecia bastante amoroso, tomando a mão da esposa, beijando-a no rosto. Não parecia notar as olheiras.
- Já pediu café para mim? - ele perguntou a Cindy.
- Não sabia que você estava vindo. Não tinha idéia de onde estivesse.
- Vocês duas se esquecem, eu trabalho enquanto estou aqui.
- E para quem exatamente você trabalha? - indagou Jordan.
- Para algumas pessoas envolvidas com o comitê Salve Veneza. Eles doam dinheiro para restaurar prédios, coisas assim. - Jared consultou o relógio. - Infelizmente tenho outro encontro em minutos. E você, minha prima, a condessa pediu que você venha jantar conosco amanhã à noite. Ela está muito preocupada e quer se desculpar por tê-la assustado você.
- Não volto lá por várias razões. Não posso me imaginar jantando com ela. Não gosto daquela mulher.
- Eu entendo. - Jared suspirou. - Eu também tenho de agüentar pessoas desagradáveis. Não percebe que está me prejudicando agindo dessa maneira? A condessa significa dinheiro grande. Ela influencia muitas pessoas de seu ciclo.
- Ela não é a única pessoa no mundo com dinheiro.
- Veneza é o meu lugar, o meu amor. - Ele consultou novamente o relógio e se levantou, - Não tenho tempo para o café. Jordan, seja boazinha comigo, sim? Preciso que vá ao jantar.
Ele beijou Cindy na testa de novo, presumindo que conseguira uma resposta afirmativa de Jordan quanto ao jantar.
- O que vai fazer hoje? - ele perguntou a Cindy.
- Vou dormir.
- Ok. Voltarei na hora do jantar.
- Eu te amo - Cindy murmurou quando ele começou a se afastar. Parou e olhou para Jordan. - E você, o que vai fazer?
- Vou devolver minha fantasia. Talvez fazer algumas compras. E estarei em meu quarto por algum tempo, caso precise de mim - dito isso, Jordan estava a caminho do quarto quando Jared a deteve.
- Jordan...
- Dê uma folga para sua mulher! - ela disse com raiva. Tinha certeza de que ele a seguiria, mas Cindy o chamara e Jared lhe dera as costas.
Aproveitou o momento e subiu as escadas.
Não ficou em seu quarto todo o tempo que pretendia. Estava preocupada com Cindy, mas decidiu devolver logo a fantasia. Pegou o livro de vampiros e desceu as escadas.
Nem Cindy nem Jared estavam no lobby.
Mais uma vez ela pediu ao funcionário que atendia à portaria que ligasse tanto para Tiff como para Roberto Capo. Sem sucesso, mais uma vez.
Deixou o hotel e seguiu direto para a loja de Anna Maria. Depois dos cumprimentos habituais, Lynn a atualizou com as novidades.
Raphael apareceu, então. Estava indo para uma cantina.
- Sabe seu amigo, o policial, Roberto Capo?
- Sim?
- Bem, eu me encontrei com ele em um bar. Creio que ele pensa que anda acontecendo alguma coisa ruim em Veneza.
- Você se encontrou com Roberto?
- Não, eu ia me encontrar com ele, mas quando o vi, ele me mandou correr.
- Como assim?
- Eu estava perto de onde nos encontraríamos, e eu o vi... tenho certeza de que era ele... de repente ele me disse para ir embora, correr.
- Talvez ele estivesse em alguma operação policial ou algo assim.
- Não sei não. Liguei para o posto policial duas vezes, e não o encontrei.
- Estranho.
Os dois foram juntos até o restaurante. Quando se sentaram, ela mostrou o livro que trouxera.
- Sei que toda Veneza está convencida de que estou reagindo como insana porque fui noiva de um policial que morreu assassinado. Mas este livro... bem, ele fala sobre vários cultos, de pessoas doentes e que coisas ruins acontecem.
Antes que Raphael pudesse responder, Anna Maria reuniu-se a eles na mesa, com um prato de massa em sua bandeja.
- Ah, finalmente! - ela disse, sentando-se. Olhou então o livro. - O que é isso?
- Um livro sobre assassinos vampiros - Raphael disse.
- Raphael! - Jordan protestou. - É sobre crimes cometidos por pessoas que se julgam vampiros, ou monstros de algum tipo.
- Não devia estar lendo isso - Anna Maria disse, começando a comer.
Raphael se pôs a folhear o livro.
- Sabe, não me surpreenderia se a condessa fosse um monstro horrível.
- Só porque não simpatiza com certas pessoas isso não significa que sejam monstros - Anna Maria observou.
- Mas acharam uma cabeça boiando no canal - lembrou Jordan.
- E tem havido outras coisas. - Raphael começou a falar sobre casos horríveis.
- Assim você vai deixar Jordan nervosa - Anna Maria protestou.
- Nada disso, estou feliz porque ele entende a razão de eu estar preocupada, especialmente quanto a Tiff.
Neste momento, Jordan teve certeza de que vira Ragnor na rua. Não havia muitos homens tão altos quanto ele. Ela se levantou e beijou Anna Maria no rosto.
- A condessa tem algo de ruim, estou convencida disso. Acho até que Cindy sabe disso, mas finge não saber por causa de Jared. Agora me dêem licença, por favor. Penso que vi um amigo.
Raphael começou a protestar, mas ela já corria pela rua.
Era definitivamente Ragnor. Ele não estava muito longe, porém, hesitou em vez de ir ao encontro dele. Havia uma mulher com ele, usando uma capa e um chapéu enorme, que escondia suas feições. Jordan teve certeza de que era Nari.
A mulher o puxou pelo braço e forçou-o a abaixar-se para ouvir algo que ela dizia. Depois, seguiram por uma viela estreita.
Jordan ficou ali, estática, uma brisa lhe gelando o rosto. Resolveu segui-los e chegou a uma viela. Caminhou toda sua extensão, chegando a um canal.
Não havia sinal de Ragnor ou da condessa, mas ela permaneceu ali, ouvindo uma música e vendo que a maioria das pessoas estava agora olhando para uma gôndola que se aproximava.
Era preta e coberta por pano também preto. Havia buquês de flores à sua volta.
Dentro da gôndola, um caixão. Enorme, preto, com enfeites dourados. Havia flores sobre ele. Uma mulher, vestida de luto, estava de pé dentro da gôndola, como se estivesse guardando o caixão.
Atrás da gôndola vinham outras, todas também com panos pretos.
Jordan compreendeu que estava assistindo a uma procissão fúnebre de Veneza. A gôndola agora passava por debaixo de outra ponte.
Em cima da ponte, observando o cortejo, estava um homem. Jordan podia jurar que estava fantasiado de dottore.
Então, depois que a gôndola passou, ele olhou direto para Jordan, por vários minutos, em seguida ergueu a mão, e desapareceu.
Jordan não notou de imediato o bilhete. Quando voltou ao hotel e abriu a porta de seu quarto tudo o que queria era ver se algo fora mexido lá dentro.
Os dentes de alho continuavam alinhados na janela. Os vidros com água-benta continuavam no lugar certo. Ela tocou no crucifixo que colocara no pescoço.
Foi ao computador, checar o e-mail. Ficou feliz porque recebera um do policial de Nova Orleans.
Por favor, venha e nos procure em casa, a hora que quiser. Ele deixara um endereço.
Jordan pegou o telefone e ligou, mas infelizmente foi a secretária eletrônica que atendeu. Deixou uma mensagem.
Obrigada, adoraria conhecê-lo.
Tentou o número de Roberto Capo que Raphael lhe dera. Ficou frustrada ao ouvir uma voz metalizada.
Deixou uma mensagem: Roberto, aqui é Jordan Riley. Por favor, ligue-me. Estou preocupada com você.
Estava ligando para Tiff quando notou o envelope que haviam enfiado debaixo da porta. Pegou-o, abriu-o e encontrou uma mensagem escrita por um empregado do hotel.
A srta. Henley ligou. Por favor, encontre-a nesta tarde, se for possível.
Havia um endereço também escrito. Jordan não tinha a menor idéia de onde ficava.
Mais uma vez, fez uma revista em seu quarto, verificando se estava bem protegido. Não querendo que a criada da noite viesse e mudasse alguma coisa, ou abrisse uma janela, deixou a plaquinha de "Não Perturbe", pendurada na maçaneta do lado de fora. Tocando na cruz, e colocando um dos vidros com água-benta na bolsa, desceu as escadas bem depressa.
Pediu orientação para localizar o endereço e arranjou um novo mapa para se orientar melhor em Veneza. Como ainda estava claro, ela decidiu caminhar, enquanto memorizava o caminho na ida.
A medida em que o sol ia se pondo, ela aumentava a distância do hotel. O vento frio fazia esvoaçar seus cabelos.
Quando se aproximou de seu destino, as ruas se apresentavam mais quietas. Entrou na parte residencial da cidade, passou por um mercado de frutas e verduras, por pracinhas sempre com uma igreja no centro, fontes, estátuas e mesmo pequenos jardins.
Viu-se em um lugar que já conhecia. Reconheceu o arco onde vira Roberto Gapo e encontrou a cantina onde ele marcara o encontro. Notou que já havia sombras nas ruas.
Começou a falar em voz alta para manter a coragem.
- Se não encontrar Tiff imediatamente, irei a esta cantina ou então direto ao ponto do vaporetto.
Consultou o endereço no mapa, e parecia que estava no lugar certo, porém não via nada a não ser prédios velhos. Avistou a velha igreja que a intrigara antes. Notou que muitas das janelas estavam com vidros quebrados.
Decidiu descer a rua, e ver se conseguia encontrar algum morador ou lojista que pudesse lhe dizer exatamente onde era o local que procurava.
Ouviu ruídos sinistros e sentiu um calafrio na espinha. Eram murmúrios vindo das sombras, bater de asas, sons que pareciam ser palavras incompreensíveis.
A noite chegou silenciosa, favorecendo as sombras aterrorizantes.
Jordan começou a descer a ruela. Os sons de seus passos ecoando na escuridão. Ela virou uma esquina e encontrou uma velha senhora. Procurou se fazer entender e lhe estendeu o endereço.
- Si. La chiesa - a mulher informou.
- A igreja - Jordan repetiu. Ela, então, voltou bem devagar. - Tiff, se isto for algum tipo de brincadeira, vou me aborrecer com você. - Aos poucos se aproximou da igreja. Subiu as escadas e abriu a porta da igreja. - Tiff?...
Havia velas acesas, quase todas no altar. Notou as sombras nos cantos. Levou a mão ao peito e segurou o crucifixo com força. A esta altura o medo já a dominava. Olhou à sua volta para ter certeza de que as sombras não se moviam. Aguçou os ouvidos, percebeu apenas o som da sua própria respiração.
Saia logo daqui, idiota!
Notou que as velas no altar estavam colocadas em volta de algo retangular.
Um corpo.
Por um momento, ela imóvel, com a sensação de que seu coração havia parado de bater.
- Tiff?... - Começou a andar de novo, apressando o passo. Sim, era Tiff. Estendida fora do altar com um traje branco.
- Tiff, isso não é divertido! Levante-se daí!
Alguma coisa bateu em sua cabeça. De súbito, o teto. acima ganhou vida com o bater de asas.
- Morcegos, idiotas! Se me assustarem de novo, voltarei aqui com uma lata de gasolina e fósforos e incendiarei metade de Veneza! - ela ameaçou, levantando a mão para o teto.
- Droga...
Aproximou-se do altar, pálida e muito irritada, mas não iria sair dali deixando Tiffany Henley.
- Vamos, levante-se!
Aproximou-se mais. Era definitivamente a amiga. Vestida de branco... Coberta por um manto branco. Quando a tocou, no entanto, deu um pulo para trás ao perceber que o braço de Tiff estava gelado.
Olhou para o rosto de Tiff. Os olhos estavam fechados, a pele era de um tom acinzentado. Jordan engoliu em seco, perdendo a respiração.
- T-Tiff?... - ela murmurou de novo, a voz mais um lamento. Procurou levantar o corpo, deixando-o cair em seguida. A cabeça havia sido separada do corpo.
Decapitada.
Por um instante ficou petrificada.
Virou-se então para sair correndo, mas a porta estava bloqueada. Havia um homem ali, vestido com calças pretas e jaqueta de couro, contrastando com o cabelo dourado.
Ragnor Wulfsson.
- Ora, seu cretino! - ela gritou, buscando alguma coisa para jogar nele.
- Jordan, não!
Jogou uma vela em Ragnor, depois outra.
- Pare com isso! - ele gritou. - Venha cá, corra para mim.
Ela recuou, procurando um meio de sair dali sem passar por ele.
- Jordan! - ele gritou o nome dela de novo.
E então, isso foi tudo do que ela se lembraria depois. Sentiu algo batendo em sua cabeça.
Uma sombra se moveu. E o mundo caiu em uma terrível escuridão.
- Jordan, Jordan...
Ela ouviu seu nome sendo chamado repetidas vezes. Então sentiu o coração disparado. Abriu os olhos. Era noite. Olhou em volta e viu Raphael.
- Você acordou. Não tenho um celular. Fique quietinha que vou buscar ajuda.
Jordan agarrou o braço dele com desespero.
- Não, não me deixe! Olhe dentro da igreja.
Raphael a olhou, pensando que ela ainda estivesse sob efeito da batida na cabeça.
- Jordan, este não é um bom lugar para encontrar alguém. Não sei o que você pretendia, mas...
- A igreja, olhe dentro da igreja - ela disse, desesperada.
- Você tem de ir para um hospital...
- Não! - Será que tinha enlouquecido de vez? Precisava mesmo, ir para um hospital. O crânio podia estar fraturado. O que tinha acontecido?
Bem, ela entrara na igreja, vira o corpo... E então Ragnor.
- Espere! - Não sabia como conseguira chegar fora da igreja, mas Raphael não devia entrar.
- O que foi?
- Tiff... Tiff está morta. No altar... Alguém cortou a sua cabeça...
Raphael a encarou por uns instantes, depois caminhou em direção da igreja.
- Não, não entre! Pode ser perigoso.
Mas ele a ignorou. Seguiu para a porta que já estava aberta.
Raphael já subia as escadas, quando Jordan se levantou com esforço. Passou a mão pela cabeça. Tudo parecia bem. Com passos trôpegos e rápidos entrou na igreja atrás do amigo. As velas não estavam mais acesas. O lugar estava completamente vazio. Seguiu até o altar e não viu qualquer sinal de Tiff. Nenhuma mancha de sangue.
- Mas... Ela estava aqui! - Jordan murmurou.
- Quem?
- Tiff! Estou lhe dizendo, ela estava aqui e decepada! Raphael andou pela nave. Olhou aqui e ali.
- Jordan, não há nada aqui.
- Mas havia!
- Jordan, Anna Maria estava certa. Não devia colocar coisas na cabeça.
- Droga! - Jordan rangeu os dentes. - Estou lhe dizendo que vim aqui é vi um corpo no altar. Pensei que Tiff estivesse me pregando uma peça. Ela tinha me deixado uma mensagem no hotel pedindo que a encontrasse aqui. E lá estava ela, no altar. Ao me aproximar, pedi a ela parar com aquelas bobagens. Então a toquei, tentei sacudi-la pelos ombros. A cabeça caiu para um lado. Não estava presa ao corpo. Depois eu vi Ragnor à porta, e... alguém me atingiu na cabeça.
Raphael ficou olhando para ela, tentando não parecer cético.
- Pensa que esteve aqui... que imaginou Tiff sem cabeça?
- Não, não imaginei nada!
- E você viu Ragnor?
- Vi.
- E ele caminhou até você e a atingiu na cabeça?
- Eu... não! - ela murmurou, confusa por um momento.
Tinha certeza de ter visto Ragnor, sim. Ele gritava, implorando para que ela fosse até ele. E em vez de obedecer, ela lhe atirara coisas em cima.
- Não sei...
A igreja estava muito escura e cheia de sombras. Raphael estremeceu.
- Vamos sair daqui.
- Espere, um segundo - ela murmurou. Caminhou de volta ao altar, passando os dedos sobre a superfície.
- Juro que ela estava aqui. Veja este altar. Olhe este lugar. Não há poeira alguma, quando deveria estar imundo.
- Venha. Chamaremos a polícia de um telefone público - Raphael a acalmou.
Encontraram um telefone. Raphael ligou para a polícia, esperou por um minuto, então cobriu o bucal.
- Roberto não foi trabalhar hoje. Está com febre. Alfredo Manetti está na linha.
Jordan ergueu as mãos em desespero. Convencer aquele homem de alguma coisa seria impossível. Ela teria de lhe entregar a cabeça sobre uma bandeja de prata para que ele reconhecesse sua razão.
Raphael começou a falar. Falou por um longo tempo e lançava vez por outra olhares significativos a Jordan. Por fim desligou.
- Eles estão vindo. Venha, vamos beber alguma coisa.
- Não quero uma bebida. Não quero álcool algum.
- Tem razão, nada de álcool. Mas quem sabe um café. Vamos ter de esperar um pouco porque eu disse a Manetti que não era uma emergência. Ninguém corre perigo neste minuto.
Jordan ficou imaginando se isso seria verdade. Olhando em volta, estremeceu. Não ouvia nenhum sussurro, nem batida de asas. As sombras não estavam se movendo.
Ainda assim, sentia-se como se estivesse sendo observada. Como se olhos malignos a enxergassem através da escuridão.
- Um café me fará bem - ela murmurou. - Mas como soube que eu estava aqui?
- Você telefonou.
- Telefonei?
- Ligou para a loja e me deixou uma mensagem.
- Não fiz isso! - ela assegurou, meneando a cabeça.
- Bem, alguém fez. Não atendi ao chamado. Foi Lynn quem tomou o recado.
Um momento depois, Alfredo Manetti chegou à cantina. Foi direto à mesa onde os dois estavam. Puxou uma cadeira e sentou-se.
- Muito bem, srta. Riley. Conte-me o que aconteceu. Ela se empertigou na cadeira e o enfrentou.
- Recebi um recado de Tiff Henley. Lembra-se de que eu lhe disse que ela tinha desaparecido? E que prometeu investigar?
Manetti fez sinal que sim.
- Continue...
- No recado ela deixava um endereço e me pedia que a encontrasse. Segui as indicações que me passaram no hotel e fui parar na igreja. Então entrei e vi velas acesas. Havia alguma coisa no altar e me aproximei. O que vi foi Tiff. Pensei que ela estivesse pregando uma peça em mim. Quando a levantei, descobri que tinha sido decapitada.
Manetti a fitava, friamente.
- O corpo desapareceu?
- Ela estava lá, mande seus homens checar. Não há sinal de pó sobre o altar. Mas como eu sugeri antes, use luminol, encontrará manchas de sangue invisíveis ao olho humano.
- Está insultando a polícia italiana, srta. Riley?
- Apenas desafiando as suas técnicas de investigação.
Ele pareceu achar um pouco divertido, porém procurou se manter sério.
- E a senhorita tem certeza de que viu Tiffany Henley?
- Claro que sim.
- Estranho. Quando lhe disse que investigaria o desaparecimento dela, eu o fiz. A sra. Henley deixou Veneza em um voo da Alitália para Paris, sábado, às onze horas da manhã.
Jordan sentiu como se lhe tivessem jogado um balde de água fria.
- Isso é impossível!
- Ela comprou pessoalmente o bilhete no aeroporto. O balconista se lembra dela.
- Então ela voltou! - Jordan murmurou, as palavras soando falsas até aos próprios ouvidos. Olhou para Manetti. - Vai examinar a igreja?
Ele balançou a cabeça afirmativamente e se voltou para Raphael.
- O que você viu?
Raphael respirou fundo. Não queria deixar Jordan em uma situação constrangedora.
- Bem, não havia nenhum corpo lá quando cheguei.
- E o que estava fazendo naquela área?
- Jordan ligou...
- Não liguei!
- Alguém ligou dizendo ser Jordan e pediu para encontrá-la diante da igreja.
Manetti meneou a cabeça.
- Então recebeu um telefonema, foi até lá, e a srta. Riley estava inconsciente junto à fonte?
- Si.
- Mas parece bem agora, Srta. Riley.
- Se não fosse um galo na cabeça.
- Talvez queira passar em um hospital... A batida pode ter provocado visões.
- Não estou tendo visões.
- Venham. Vamos tentar descobrir o que aconteceu. Deixaram a cantina e voltaram à igreja. Mannetti trouxera outros policiais, e todos já estavam lá dentro. Iluminaram todos os cantos e não havia sinal de nada fora do comum. Nada no altar.
- Havia outras coisas aqui - Jordan murmurou.
- Desapareceram também, então? - Manetti disse.
- Não tem a menor intenção de acreditar em nada do que digo, nem de investigar de verdade o assunto, não é? - Jordan desesperou-se.
- Ao contrário. Pode notar que tenho seis homens aqui, Investiguei o desaparecimento da sra. Henley. Agora, pode olhar por aqui e não vai encontrar nada a não ser poeira.
Jordan caminhou até o altar e voltou a passar a mão sobre ele.
- É justamente isso que estou dizendo, não há poeira aqui!
- Srta. Riley, mendigos costumam dormir em lugares abandonados. Algum deles pode ter estado, aqui.
Naquele momento, Jordan compreendeu que nada do que dissesse convenceria aquele homem de que tinha visto a cabeça decepada de Tiff Henley.
- Eu jamais pregaria peças na polícia - ela disse com raiva.
- Sei que não faria isso.
- Então...
- Lamento. A senhorita bateu a cabeça. Mandei ligar para o seu hotel. Seu primo e a esposa não estão lá. Apesar de que o Carnaval seja uma festa divertida, talvez não tenha sido a melhor época para a senhorita ter visitado Veneza - o policial sugeriu.
Jordan o encarou com pensamento bem longe dali.
Não confio mais em meu primo, isso é triste, mas é verdade. Você duvida de cada uma de minhas palavras: E agora, o homem que me fazia sentir segura provou que era... O quê?
- Vi Ragnor Wulfsson dentro da igreja. Encontre-o e ele confirmará o que estou dizendo.
- Muito bem. Procuraremos pelo homem. Agora, há pouca coisa aqui que possamos fazer. Penso que deveria ir para um hospital, já que não encontramos os seus parentes.
- Não. Estou muito bem. Por favor, se conseguir se comunicar com meu primo diga-lhe que eu estarei no Harry's entre dez a onze horas.
- Lamento dizer, srta. Riley, acho que seria conveniente considerar encurtar sua visita a Veneza.
- Obrigada. Talvez tenha razão. Quando estiver no hotel, farei os devidos arranjos.
- Nós a deixaremos no Danieli, então.
- Eu posso fazer isso - Raphael se ofereceu,
- Não, não. Seremos nós a acompanhá-la.
- Bondade sua. Especialmente porque antes teremos de dar uma parada em seu posto.
Manetti franziu a testa.
- No posto?
- Oh, sim, quero preencher um relatório. Isso em caso de se provar verdade no futuro aquilo que vi.
- Claro... - Manetti murmurou.
- Raphael, gostaria muito se fosse conosco também. - Queria contar com o amigo como testemunha.
A lancha da polícia os levou ao posto. Jordan sentou-se diante da escrivaninha de um policial, ignorando seus olhares enquanto digitava o que ela dizia. Quando estava quase no fim do relato, houve uma comoção em frente do posto. Manetti pediu licença e foi ver o que era. Jordan terminou, Raphael leu o texto, acenou para ela que estava correto.
- Vamos - ela chamou o amigo. - Quero sair logo daqui. Se bem que é melhor cuidar de si. Manetti pensa que sou louca, mas alguma coisa de muito ruim anda acontecendo aqui. Por favor, Raphael, fique perto de outras pessoas. E use uma cruz. Você tem sido meu amigo e isso pode acabar colocando você em perigo.
- Jordan...
- Não discuta, apenas tome cuidado.
- E o que você vai fazer?
- Não se preocupe. Voltarei ao hotel, ficarei trancada...
- Você disse que iria ao Harry's...
- Mais tarde, vou seguir pelo caminho que estiver cheio de gente.
Raphael a levou de volta ao hotel. Jordan prometeu ir vê-lo no dia seguinte, o que era uma mentira. Ligaria para a loja quando pudesse para dizer que estava bem. Assim que o amigo deixou o hotel, ela subiu ao seu quarto, correndo.
Não queria que Ragnor a encontrasse.
Primeiro consultou pela internet e descobriu que poderia deixar Veneza ainda naquela noite. Pegaria um voo até Paris e depois uma conexão para Nova Orleans. Se não perdesse mais tempo, poderia sair do hotel imediatamente e tomar um táxi marítimo até o aeroporto.
Parou sentindo uma brisa dentro do quarto, quando não devia haver nenhuma. Correu até a porta. Estava trancada. Voltou depressa ao laptop.
Reservou uma passagem, rezando para que seu cartão de crédito não fosse recusado. Estava muito nervosa. Procurou se acalmar um pouco para poder enviar ainda um e-mail para o policial de Nova Orleans, passando a ele o número de seu voo e hora de chegada. Pelas suas contas, estaria nos Estados Unidos depois da meia noite.
Guardou o laptop na mala, colocou alguma roupa, deixando o restante de seus pertences no quarto. Temendo que alguma força oculta a detivesse, saiu depressa dali.
Não parou na portaria, e nem tomou uma condução em frente o hotel. Apressou-se a ir até a Praça de São Marcos e dali tomou uma lancha para o aeroporto.
Foi a última pessoa a embarcar antes de o avião partir. Observou Veneza do alto ir desaparecendo. Amava a cidade. Voltaria em breve...

Gino Meroni subiu ao salão no segundo andar do palácio.
Ele estava sozinho no aposento, vestido com a fantasia de dottore. Gostava de ser conhecido como tal. Oh, sim, gostava de curar as pessoas de todos os males.
Gino estava acostumado com essas estranhezas do Carnaval, com as peculiaridades de seus patrões, também. Sabia que havia cometido um erro grave. Mas tinha se esforçado para corrigi-lo, e não esperava não ter medo naquela noite.
Mas estava.
As brasas ardiam na lareira. Era a única luz na sala.
O dottore estava sentado em uma cadeira junto ao fogo. Era um homem grande demais para se acomodar ali. Além do mais, estava bravo.
Havia acontecido muita coisa naquela noite. Algo em que não estivera envolvido, e havia dado errado. Sabia que a condessa não estava em casa por ter sido ferida com gravidade. O dottore estava... Ele havia escapado ileso, o que não foi o caso dos outros.
Naquela noite, Gino havia cumprido todas as suas tarefas com sucesso. As chamas da lareira dançavam pela sala em sombras vermelho-sangue.
O dottore estava sentado imóvel, os nós dos dedos brancos, tamanha força com que se segurava nos braços da cadeira. A sala imersa em um silêncio sepulcral. O dottore fez com que Gino ficasse ali em pé por muito tempo, balançando ao trocar o peso do corpo de uma perna para a outra.
- Bem?... - O dottore finalmente quebrou o silêncio pesado.
- Executei o que me foi pedido. Fui rápido e limpei o nosso lugar, mas não pude fazer muita coisa com a mulher porque ela não estava sozinha. - Gino deixou de dizer que estava terminando a limpeza quando um homem entrou na igreja acompanhado pela mulher. - A polícia apareceu. Havia muitos homens. Mas está tudo certo agora. Não deixei nada para trás.
- Mas a garota seguiu com a polícia?
- Isso não importa, pois estão certos de que ela é louca. - Gino colocou uma nota de exaustão na voz. - Havia uma sujeira enorme com que lidar. Mal fui capaz de assegurar sua segurança.
O dottore balançou a cabeça, gravemente.
- Isso não teria sido necessário se você não tivesse sido descuidado com seus afazeres. Ainda temos muito trabalho a lidar por causa de sua inabilidade de agir com eficiência.
Ele tinha perdido a cabeça. Aquela cabeça! Tinha de limpar tudo para essa gente, e tinha perdido uma cabeça...
- Venho trabalhando bem para o senhor - Gino se defendeu. - Não faço perguntas. Arrisco-me.
- Não trouxe a moça.
- Não pude. - Gino ergueu as mãos. - Mas o que há de tão especial com essa moça? Posso lhe trazer dúzias delas.
- A srta. Riley é quem me interessa. Você falhou.
- Não criei o problema na igreja...
- Falhou comigo.
- Eu o defendi. A moça ainda está por aí. Poderá pegá-la em outro momento. Talvez seu jogo dure um pouco mais. Quanto ao meu outro erro... eu o cometi. Mas foi um erro só.
- Meus empregados não cometem erros, Gino. - O dottore se curvou para a frente.
- A condessa disse que... - Gino estava suando, apesar de o corpo estar gelado.
- A condessa não tem nada a ver com isto! Você falhou comigo!
Desde que era um adulto, Gino aprendera a lidar com a morte e com o perigo. Entrando no mundo do crime, sempre estivera ciente de quais seriam as possíveis conseqüências.
Sempre pensara que saberia, e aceitaria, quando a hora chegasse.
Mas o pavor e o medo que sentia naquele momento eram horríveis. Temia começar a tremer, perder o controle, humilhar-se completamente.
Talvez o dottore estivesse blefando, alertando-o com uma ameaça. Porém, erros não eram aceitos. E ele não blefava.
- Então, depois de todo o meu serviço, o senhor... saciará a sua sede de sangue em mim? - Gino tentou soar como se pudesse morrer com honra.
- Eu? Eu adoeceria, Gino.
- Então...
- Há outros que estão com fome.
O dottore ergueu a mão. De todos os cantos e sombras da sala, Gino podia ouvir sons assustadores.
Assobios... Risos... Murmúrios...
Não ia gritar, não ia...
A primeira dor pareceu cortá-lo ao meio. O horror o envolveu. Sufocou-se em seu próprio sangue.
A morte desceu como um manto cruel. Os gritos ecoaram por todo o palácio, maculando o silêncio da noite.

Tudo transcorria bem. Jordan se acomodara em um assento na classe executiva. Estava exausta, mas tensa. Uma taça de champanhe a acalmou. Vinho com o jantar poderia ajudá-la com algumas horas de sono antes de chegar a Nova Orleans. O jantar fora bom. Ela tentara assistir a um filme. O assento ao seu lado estava vazio. Perfeito.
Estava indo se encontrar um homem que não conhecia, que poderia ser um louco. Pensou se, de fato, não estava perdendo a razão.
Olhou à sua volta no avião. Mais uma vez sentindo aquela estranha sensação.
Alguém estava ali.
Ora, claro, o avião estava cheio. No entanto, era difícil evitar. Experimentava mesmo a sensação de estar sendo...
Seguida?
Isto é loucura!, disse a si mesma.
Forçou-se a fechar os olhos e dormir. O champanhe, o vinho cumpriram sua função levando-a a adormecer.
Ouviu-se um barulho. O farfalhar de asas.
Jordan abriu os olhos. As aeromoças haviam se reunido e agora a encaravam. Uma mulher muito magra estava entre elas. Todas a olhavam, sorriam, abriam as bocas.
Tinham mais do que dentes... eram presas enormes, caninos afiados, brilhantes, brancos.
Ela se voltou, tentando passar para o banco ao lado. Estava usando uma cruz e carregava um frasco de água-benta. Mas não conseguia alcançar a bolsa. Não podia rastejar até o banco ao lado porque este agora estava ocupado. Ragnor. Ele ria e o avião estava repleto de morcegos. As asas ressoavam por toda a parte. Com um sussurro, ela pediu ajuda a Ragnor. Mas obviamente, ele não ajudaria, porque sua boca estava aberta também, seus caninos eram os maiores, pareciam lâminas afiadas...
- Srta. Riley!...
Ela acordou de sobressalto.
Uma aeromoça estava à sua frente, tocando-lhe o ombro. A moça não tinha presas. E também não havia nenhum morcego dentro do avião.
- Desconfio de que teve um pesadelo, senhorita. Estava gritando.
- Oh, sinto muito! - Jordan murmurou, consternada. A mulher sorriu.
- Tudo bem. Nada se pode fazer quando se tem um pesadelo. Mas poderia ficar acordada...
- Sim, naturalmente.
- Quero dizer... Sei que será difícil não dormir...
- Sim, claro. E minhas desculpas, novamente.
- Foi um grito aterrorizante. Até nos fundos ele foi ouvido.
Jordan ruborizou.
Ficar acordada... Estava perdendo mesmo a razão. Via monstros em toda parte.
Sabia que tinha sido um pesadelo. Contudo, o que acontecera na igreja tinha sido real.
Consultou o relógio e rezou para que o tempo passasse bem depressa.
Ela tinha sonhado...
E ainda assim, continuava com a sensação de que alguma coisa não estava certa. Forças invisíveis a perturbavam.
Caçada.

A noite foi passando. Graças à insistência do monge, eles todos estavam dentro da igreja, com a porta protegida por barricadas.
Ragnor tinha comido. Com Nari a seu lado, ele descansava perto da porta principal, as costas contra a parede, os olhos fechados. Aprendera a dormir em qualquer posição e a acordar com qualquer ruído.
Não foi um ruído, porém, que o tirou do sono, e sim um terrível estrondo de um trovão, como se a terra inteira tremesse. Em um ímpeto, ele ergueu-se, a espada em punho. À sua volta, outros haviam acordado e também estavam de pé. O barulho diminuiu, o som foi se tornando constante e não tão grave, assemelhando-se a centenas de pássaros ou às batidas de milhares de pares de asas.
Ulric olhou alerta para a porta.
- O que, em nome de Thor...
O irmão Peter estava no altar, de joelhos. Ragnor seguiu até ali.
- O que foi isso? - ele perguntou, interrompendo a prece do monge. Peter ergueu a mão, pedindo que o aguardasse terminar.
Finalmente, Peter se levantou.
- É o mal chegando, e nós o combateremos! - Hagan gritou.
- Não podemos lutar com a sua violência brutal - Peter constatou, suspirando fundo.
- E você pode lutar contra ele? - Hagan caçoou.
- Sim, porque conheço sua face.
- Pois eu reconhecerei essa face se a vir! - Hagan grunhiu, furioso.
- Minha fé em meu Deus é mais forte do que esse mal. - Peter levantou as mãos.
- Não acredito em seu Deus.
- Então reze para o seu Odin. Ouça-o, pois tenho certeza de que ele também lhe dirá para se manter dentro destas paredes.
Tão abruptamente quanto viera, o alarido se extinguiu. Peter ficou parado por um longo tempo, escutando.
- Por esta noite, acabou. Eles vão voltar...
- E o que faremos? - Ulric questionou. - Vamos nos acovardar dentro destas paredes noite após noite? Não é assim que lutamos e vencemos.
- Os filhos do diabo têm poder durante o dia, mas não a mesma força que possuem à noite. Eles não se transformam em cinzas sob a luz do sol, porém enfraquecem com ela, e Deus sabe, há força suficiente no sol aqui no inverno. Durante o dia, nós os caçaremos. Encontraremos seu esconderijo. Nós os perseguiremos como se procuram lobos, e os destruiremos.
Ulric e outros não aprovaram o plano. Não admitiram também que estavam com medo. Resolveram descansar.
Pela manhã, Peter mandou-os cortar árvores e preparar estacas. Tais armas derrubariam os inimigos. Depois estes deveriam ser queimados ou decapitados, porque eram capazes de se curar de qualquer ferimento, e voltariam.
Enquanto Ragnor estava nos bosques, a mulher, Nari, levou-lhe água e comida. Depois que ele comeu, sentaram-se lado a lado, e ela disse que acreditava nas palavras do monge, porque havia visto o destino de sua vila.
Ragnor havia comentado como ela parecia diferente dos outros. Ela, então, contara que não era filha do senhor da vila, e sim uma órfã, cujos pais haviam chegado do norte para atacar os escoceses. O pai era da Normandia, a mãe do sul. O senhor da ilha a adotara.
Ele nem sonhara em fazer amor naquela tarde. Contudo, amaram-se à exaustão.
Mais tarde, quando o sol do meio-dia surgiu no céu, eles saíram em busca dos inimigos. Mas naquele dia não encontraram nada, e à noite os sons voltaram, violentos como uma tempestade sobre a igreja onde estavam recolhidos.
Hagan foi convencido então a ficar dentro da igreja.
No dia seguinte, começaram a busca de novo, mais uma vez, sem sucesso.
Naquela noite, na igreja, os sons vieram e partiram. Ragnor dormia profundamente, até acordar sobressaltado. Percebeu que Nari não estava mais a seu lado.
Hagan começou a gritar que o inimigo devia ter entrado e a levado embora.
- Eles não entraram aqui! - Peter disse. - Foi Nari quem caiu em tentação.
- Onde estava o seu Deus? - Hagan perguntou, furioso.
- Não na alma de Nari - retrucou o monge.
Ragnor ouviu a discussão e ficou quieto. Colocara sua espada na cintura e se preparava para cavalgar.
- Dê-me as armas que puder, Peter. Vou atrás deles. Dê-me suas cruzes, aquelas que vocês chamam de sagradas.
- Seus tolos! Não entendem? A cruz só ajuda se você acreditar em seu poder.
- Mesmo não me auxiliando, irei assim mesmo - Ragnor anunciou.
Partiram em um grupo de cerca de vinte guerreiros, armados com escudos, espadas, machados, cetros e estacas. Nas profundezas da noite, ficava difícil encontrar a trilha. Ulric encontrou pegadas humanas, seguidas por pegadas de uma criatura de quatro patas.
- Monstros! - Hagan gritou. - Estamos sendo atormentados por uma matilha de lobos.
E ele teria esporeado seu cavalo, se Ragnor não o tivesse impedido.
- Lobos não fazem aqueles sons, como as batidas de asas que temos escutado.
- Mas há lobos à frente, e nós os deteremos.
- E devemos tomar cuidado enquanto seguimos.
- Foi sua mulher que eles levaram! - bradou Hagan.
- E eu a pegarei de volta. Mesmo assim, devemos seguir com cuidado.
Apesar da escuridão, eles continuaram, a lua iluminando o caminho. Por fim, chegaram a um abrigo rodeado de árvores. Hagan foi o primeiro a desmontar.
- Irmão, tome cuidado - Ragnor alertou. Mas Hagan não estava para ouvir conselhos.
- Não sou o sétimo filho de outro sétimo filho, mas sou o filho de um grande guerreiro de nosso povo, e não temo uma luta! Homens que irão para Valhalla, sigam-me!
Entraram na caverna. Gunther, conhecido como um dos mais destemidos, seguiu à frente. Antes que os outros passassem pelas sombras da entrada, ele soltou um grito, como se tivesse sido cravado por centenas de espadas no peito sem proteção.
O inimigo lhes caiu em cima. Eram homens, e ao mesmo tempo não eram humanos. Tinham a pele escura como os nascidos no Mediterrâneo e a pele clara dos povos do Norte. Eram muitos, e havia mulheres entre eles. Não ficavam apenas no chão, mas moviam-se em um piscar de olhos, levantavam no ar, desapareciam na fumaça, ou vapor, ou ar.
Ragnor apressou-se em defesa de seus homens. O inimigo não lutava com armas, mas com as mãos nuas. E dentes.
Eram, ou pareciam ser, lobos, homens em um minuto, criaturas no outro. Ragnor lembrou-se do aviso do monge, e então foi em frente, decepando cabeças. Derrubou dois, três e viu-se lutando praticamente sozinho. Os vikings eram abatidos com facilidade. Viu corpos caindo. Quatro, cinco, seis... e ele girava a espada em todas as direções.
Eram lutadores esguios, com pele escura e pelo de animal. Ragnor viu um homem alto, acompanhado de uma mulher. Eles não falavam, mas comunicavam-se de alguma forma. Várias criaturas formaram um semicírculo à volta dele, fechando cada vez mais o cerco. No centro, Ragnor movia a espada com toda a força em arco, tentando derrubar tantos quantos fosse possível...
De súbito, estavam todos sobre ele. Ragnor sentiu a agonia de sua pele sendo dilacerada. A impressão era de que o sangue jorrava diante de seus olhos.
Depois de tudo, veio a escuridão.



Capítulo V



Ragnor recuperou os sentidos mais tarde naquele dia. Estava no chão, e seu primeiro pensamento foi de surpresa por estar vivo. Sentiu uma tremenda dor e uma sede terrível. Rangendo os dentes, sentou-se e olhou à sua volta. Seus homens estavam caídos ali, ou o que restara deles.
Ragnor levantou-se, sentindo que ainda lhe restava alguma força. Se tomasse água, poderia pegar os mortos, queimar o que lhes restara. Podia...
Água. Precisava de água.
Olhou para o céu. O sol de inverno era impiedoso. Entrou na caverna, esquecendo-se do inimigo, determinado a escapar do sol. Lá dentro, descobriu que o inimigo se fora. Terminou por encontrar Nari. Ela parecia morta, mas não estava com o corpo em pedaços. Observando mais atentamente, percebeu que ela não estava morta.
Procurou por água. Para ele e para reavivar Nari. Não havia nenhuma bica por perto.
Um rato passou por ele. Surpreendeu-se ao agarrar o pequeno animal e mordê-lo como um louco, sugando-o. Olhou para a carcaça horrorizada e o jogou longe. Mas sua força e o desejo de viver superavam o desgosto. Saiu da caverna a fim de procurar lenha. Quando acendeu um fogo em uma pira para o funeral em massa, ouviu o som de passos e se levantou. De espada em punho, aguardou, pronto para lutar contra o inimigo. Eram os monges que chegavam. Peter não ficou surpreso em vê-lo de pé.
- E os outros?
- Eles se transformaram no que você está vendo.
- Queime-os. Encontrou Nari?
- Ela está na caverna.
- Eu me encarregarei dela.
As palavras de Peter perturbaram Ragnor.
- Deixe-a em paz! - ele rugiu.
- Ela precisa ser destruída.
- Eles não a mataram. Talvez tenha sido usada como isca para nos pegar.
O monge o ignorou e entrou na caverna. Ragnor o seguiu, segurando-o pelo braço.
- Vamos apenas queimar os mortos.
Com a ajuda dos monges, a fogueira foi rapidamente armada. Ragnor sentiu uma dor profunda quando.colocou Gunther nas chamas. Os monges rezaram em latim, Desejou que essas preces pudessem levar os noruegueses ao Valhalla. No entanto, quando sentiu o cheiro de carne queimada e observou as chamas se erguendo ao céu, agarrou o braço de Peter.
- Onde está meu irmão? Ele precisa receber este rito funeral como os outros...
- Os monges pegaram todos os corpos - Peter disse. - Exceto o daquela mulher, Nari.
Ragnor concordou, e quando tudo terminou, voltou para dentro da caverna em busca da mulher. Ela já acordara e lhe estendeu os braços.
- Tive tanto medo - murmurou Nari.
- Está tudo bem agora.
Nari se aconchegou nos braços dele.
- Pensei que você estivesse morta. Quase foi lançada à fogueira,
- Ainda bem que você me salvou.
Ele a colocou sobre seu cavalo e voltaram para a igreja junto ao mar. Nari quis ficar no sol, apesar de já estar escurecendo. Não se lembrava de nada da noite anterior, por isso não podia contar o que sabia sobre os inimigos.
Peter sentou-se com Ragnor, revivendo a batalha por seguidas vezes. Os monges trouxeram comida, a caça que haviam pegado na floresta. Ragnor estava faminto, e nada o satisfazia. Sabia que Peter o observava e subitamente desejou comê-lo.
Estavam na igreja. Ragnor se levantou e saiu abruptamente. Para seu horror, encontrou Nari junto à água, com o corpo de um dos monges em seu colo, o pescoço aberto. Nari o encarou com a boca cheia de sangue.
Ele sentiu desejo de matá-la naquele instante, mas então...
Sentiu um súbito desejo de também sugar o sangue. O cheiro era irresistível. Empurrou Nari e começou a desfrutar do corpo do monge. Depois ergueu-se coberto de sangue.
Coberto com o sangue do bom homem, ele se levantou.
- Há um outro mundo lá fora - contou ela, sorrindo. - Um mundo com puro poder, algo maior que qualquer um que você tenha conhecido.
Ragnor puxou-a para cima, colocando-a de pé à sua frente.
- Não viverei deste jeito.
- Pensa que é assim tão forte? Você é um fraco! Ainda nem entendeu a dádiva que recebeu.
- Dádiva? - ele indagou, incrédulo. - Estamos amaldiçoados!
Nari se aproximou dele, acariciando-o.
- Ajude-me.
- Tem de haver um modo... - ele murmurou, então sacudiu a cabeça. - Venha. - Tirou a espada da cintura e arrastou Nari para a igreja.
Na entrada, ela se acovardou.
- Não posso... não posso entrar.
- Então, espere aqui.
- Você pretende nos destruir.
- Quero nos fazer merecedores de um lugar em Valhalla. Ragnor entrou na igreja e jogou a espada aos pés de Peter.
- Faça o que tiver de fazer. Corte a minha cabeça, me queime na fogueira e jogue minhas cinzas no mar. Maldição, faça isso agora! E faça o mesmo com Nari.
Peter ignorou a espada a seus pés.
- Não posso - ele disse.
- Peter, você não entende, seu tolo. Acabo de comer um de seus homens sagrados!
O monge limitou-se a olhar para baixo.
- Você está em solo sagrado. Percebi seu desejo de morder o meu pescoço o dia inteiro. Quando o achamos, eu sabia que você não era mais um de nós. A sua essência é a mesma, ainda tem o poder de lutar contra o mal.
- Seu tolo, eu sou a personalização do mal.
- Não poderia estar aqui, não na casa de meu Deus, se fosse.
Ragnor soltou um grito de ódio e saiu da igreja, determinado a mostrar a Peter a verdade. Queria pegar Nari, mas ela sumira.
Monge tolo, pensou. Ele não compreendia a agonia, a fome que rasgava suas entranhas. Passou por outros monges, trabalhando no campo, juntando lenha. Soltou um rugido alto a fim de provar que podia ser realmente uma ameaça. Os monges o encararam, sem demonstrar medo algum. Voltou-se para a floresta e sumiu por entre as árvores.
E enquanto corria, algo foi acontecendo. Já não se mantinha sobre dois pés, era uma besta em busca de caça. Garras substituíram os dedos. Atacou a primeira criatura que viu.
Algum tempo depois, Peter o encontrou e se aproximou, sem medo algum da noite ou de Ragnor.
- Precisa me destruir - suplicou Ragnor. - Olhe o que eu fiz.
- Comeu um veado. Também gosto dessa carne.
- Sou um deles, um dos monstros.
- Precisa voltar comigo para a igreja. Ragnor olhou admirado para o monge.
- Para que eu possa devorar outro dos seus?
Peter limitou-se a andar. Ragnor praguejou, mas o seguiu, andando logo atrás, lembrando-o de que a qualquer momento poderia atacá-lo. Mas em nenhum momento o monge olhou para trás.
A área da vila e da igreja tinha o odor pútrido. Os irmãos tinham cremado o monge morto.
Dentro da igreja, Peter tomou as mãos de Ragnor.
- Vai fazer um voto esta noite de obedecer apenas a um poder superior.
- Não acredito no seu Deus.
- Penso que acredita. Mas não importa para quem faça o juramento, se para Alá, Thor, ou qualquer deus dos pagãos. É da natureza dos homens e do mundo. Há forças. Isso ninguém nega. Há a tormenta e a bonança. A terra treme e se acalma. Os homens lutam e encontram a paz. Há os inocentes e os malvados. Você precisa existir. Para cada força, há uma reação contrária.
- Você é louco.
- Então me trate como um. Faça o que estou pedindo.
Ragnor repetiu as palavras que o monge foi lhe dizendo. Quando terminou, compreendeu que os outros monges haviam entrado no recinto e estavam de joelhos.
Naquela noite, ele ficou na igreja, agoniado. Os sons da noite não vieram. No entanto, logo após a meia-noite, na escuridão total, ele sentiu o desejo de escapar.
Ficou parado junto à porta da igreja, e Peter veio para o seu lado.
- O quer de mim? - Ragnor gemeu.
- Você vai aprender a vencer a dor. Ragnor não acreditou no que ouviu.
Ao escurecer no dia seguinte, Nari voltou. Veio com a cabeça baixa e lágrimas nos olhos.
- Ajude-me, os monges querem me destruir.
- Isso é o que deveria acontecer a nós dois.
- Não... eles não farão mal a você. Por favor, deixe-me ficar a seu lado. Se houver um modo... Eu imploro.
Ele nunca havia se sentido tão sozinho, ou tão enraivecido e acima de tudo sem poder fazer nada. Nari sabia do estado em que ele estava.
Os monges construíram para os dois um lugar onde pudessem morar enquanto eles ficavam dentro da igreja. Com o passar do tempo, Ragnor descobriu que sua agonia podia ser apaziguada.
A floresta à sua volta começou a ficar sem veados. O mais selvagem porco do mato podia ser rapidamente dominado.
Era uma vida estranha, os monges sempre vigiando e seguindo com seus afazeres. Ragnor perguntou a Peter porque ele continuava ali. Afinal, os ataques haviam cessado, e as criaturas se mudado para outro lugar.
- Ficarei enquanto precisar de mim.
Ele e Ragnor haviam criado um elo. Peter parecia entendê-lo.
Enquanto isso, Ragnor e Nari corriam à noite, sentiam o vento, a escuridão e o poder. Festejavam no sangue, faziam amor com a mesma selvageria com que caçavam e se alimentavam. Quando amanhecia, dormiam e descansavam.
Os monges observavam, e esperavam.
Após um ano daquele ritual, Ragnor começou a se inquietar. Conversou com Peter e lhe disse que queria voltar para casa, ou para a ilha que considerara seu lar por tantos anos.
Peter o observou atentamente.
- Você está pronto.
- Sei que estou.
- E Nari?
- Ela me escuta.
O monge ficou em silêncio.
- Então devem partir. Mas lembre-se, estamos aqui.
- Por que não volta para a sua casa também?
- A luta ainda não terminou.
Ragnor e Nari viajaram no dia seguinte. Voltaram à ilha onde tinham estado antes. Ele criara uma história fantástica sobre a morte do irmão em batalha para os conterrâneos, já que cada guerreiro devia ter sua saga.
Viveu com Nari, e de novo navegou pelos mares com seus homens. Havia guerras a vencer. Ela era como uma rainha viking, esperando a sua volta, compartilhando com ele o segredo de sua imensa força.
Meses se passaram, e ele foi tomado pelo desejo de voltar à igreja onde Peter ficara em guarda contra o mal que, ele acreditava, voltaria a qualquer momento. Nari escolheu não acompanhá-lo.
Ragnor voltou à vila com a sensação de que algo de errado acontecia. No entanto, quando chegou, a vila estava crescendo, embora as pessoas continuassem dormindo dentro da igreja. Os campos eram ricos, a caça farta.
Ele dormia sozinho na pequena cabana de madeira que havia sido construída para si. Passava os dias com Peter, conversando, argumentando, aprendendo.
Então, em um anoitecer, Ragnor encontrou o monge parado nas escadas da igreja, olhando à frente com uma expressão estranha.
- O que foi?
Peter o olhou, surpreso.
- Não sabe? Não sente?
- Não.
- Eles voltaram.
- Quem?
- Eles estão lá. Querendo alguma coisa. Observando. Esperando.
- Então entre na igreja. Não há nada que possa ser feito. No dia seguinte, a igreja pegou fogo.
Anoiteceu, e as chamas ainda ardiam. As pessoas estavam à volta do fogo, com muito medo.
Ragnor ficou de guarda, agora ciente de que de fato algo se aproximava... alguém...
Havia um sussurrar de maldade no ar.
Então eles vieram.
Vieram em uma revoada, como asas na escuridão. Guinchavam através do ar noturno, preenchendo-o com gritos e o farfalhar de centenas de asas. Em um momento não passavam de sombras, e de súbito se tornavam reais. Primeiro era a escuridão cheia de sensações, em seguida a visão cega da luz das labaredas.
Os monges lutaram com espadas, estranhos guerreiros em roupões marrons, lutando contra demônios. Sabiam que venceriam se decepassem as cabeças, os inimigos feneceriam.
A luta terminou deixando o chão coberto de corpos de bestas e de religiosos. E na escuridão da noite, o fogo ardeu mais uma vez, queimando os restos mortais.
Ao amanhecer, Ragnor precisava dormir. Os monges e o povo da vila começaram a trabalhar freneticamente, construíram a igreja de novo, uma triste estrutura. Todos rezaram e imploraram para que seu templo fosse santificado.
Ragnor acordou para descobrir que não estava sozinho. Nari estava de volta.
- Ouvi o chamado - contou ela. Acomodou-se junto a ele, ansiosa para ter sua paixão satisfeita.
Ao acordar, Ragnor descobriu que ela havia partido.
Eles o cercaram enquanto ainda estava na cama. O líder empunhava sua espada, com um sorriso de deboche nos lábios. Ragnor se levantou, admirado.
- Por todos os deuses... você!
- Hora de morrer, sétimo filho do sétimo filho. Nari colocou-se ao lado do inimigo.
- Lamento, Ragnor. Mas não existimos para consumir o sangue de ratos e porcos do mato. Poderia ter havido o maior poder entre nós, porém...
Ela parou de falar. Optara pela morte de Ragnor.
- Quando estiver em Valhalla, pense em me perdoar.
O líder do bando deu um passo à frente e Ragnor saltou, nu, desarmado, desesperado para lutar o quanto pudesse.
- Quem quer viver para sempre?
A espada fez um ruído estranho ao cortar as sombras que assombravam o quarto.
Ragnor encarou o irmão, sua própria carne e sangue, e então, o bando de demônios. E havia sido Nari que o conduzira àquele ponto.
Ela o traíra, apesar de todos os esforços dele para salvá-la, mesmo tendo ocasionado a morte de tantas pessoas. Jamais esperava se decepcionar com uma mulher que havia compartilhado de suas novas paixões e fomes selvagens, e da esperança de ter encontrado uma maneira de sobreviver sob a nova forma.
- Você sobreviveu - Ragnor disse a Hagan, ganhando tempo e decidindo como pegaria a espada.
- Sim, sobrevivi, irmão. Com um poder maior do que o seu. O sétimo filho do sétimo filho. O milagroso sétimo filho do lobo! Você se recusou a aceitar o presente de seu nascimento, irmão. Eu saberia o que fazer com tal força e habilidade. Por anos vivi à sua sombra, sabendo que o poder de nosso pai morava em você. Agora eu tenho um poder maior do que o seu. E sabe o que mais, irmãozinho? Não quero dividir essa nova força. Sei como usar este presente e governar com ele. Não deixarei que destrua os que são de minha nova espécie, a nossa espécie. - Hagan parou e cuspiu no chão. - Pode haver apenas um de nós, irmão. Serei eu a governar agora.
Um estranho medo, mais profundo do que jamais vivenciara, envolveu Ragnor.
- O que você fez com Peter? - ele indagou. Hagan apoiou-se na espada.
- Bem, irmão, o que acha? O sangue do homem santo... era realmente delicioso. E quando terminou, grelhamos a sua carne.
Ragnor se enfureceu. Arremessou-se contra o irmão. Em reação, as criaturas de Hagan deram um passo à frente. Ragnor conseguiu mergulhar entre os inimigos e chegar até sua espada. Voltou-se, usando-a com precisão. O sangue que manchou sua arma era daquelas criaturas que tão recentemente tinham se alimentado dos fracos e dos santos. Era como se tivesse sido o seu próprio sangue. Sentiu a dor, a perda, mas sabia que não podia ser vencido agora.
Uma das criaturas surgiu à sua frente, e ele enterrou a espada no pescoço do monstro. Sabia que aquele era o ponto fraco deles.
Tinha de manter a sua cabeça, em todos os sentidos.
Uma espada enterrou-se em suas costas. Ele gemeu de agonia, mesmo assim conseguiu atingir o pescoço da criatura. O inimigo caiu, com as mãos no pescoço.
Outro golpe, outro inimigo vencido. Vieram mais alguns e foram derrubados. No entanto, havia muitos deles.
No fim, Ragnor sangrava por centenas de ferimentos. Caiu e soube que seu irmão, o seu amargo rival desde o minuto de seu nascimento, triunfaria.
Hagan estava parado com o pé sobre seu corpo.
- Deveria me agradecer. Eu o deixei morrer em uma batalha feroz. Você entrará no Valhalla e será feliz por toda a eternidade.
- E você viverá na escuridão do mundo, governada pela deusa dos infernos.
- Não, em vida só estive nas trevas. Agora, vivo no poder e luz de... Hagan! - Uma gargalhada tenebrosa encheu o espaço. - E agora irmãozinho...
Ragnor rangeu os dentes. Manteve os olhos abertos ao observar o irmão erguendo a espada para o golpe final.
No entanto, quando o aço desceu, a lâmina não lhe decepou a cabeça.
- Mate-o, acabe logo com isso! - Nari gritou. - Não o deixe voltar!
Hagan rugiu em sua fúria, e desceu a espada, mais uma vez. E tudo se repetiu. As criaturas imitaram o chefe, porém nenhum conseguia decapitá-lo.
- É o medalhão que ele usa, o de prata! - exclamou Nari.
- Arranque-o! - Hagan ordenou a ela.
Ragnor não sentiu nada quando Nari abaixou-se, sem nem mesmo encontrar seu olhar. As mãos dela buscaram o medalhão, a relíquia que o monge tinha colocado em seu pescoço tantos anos antes. Mas quando ela o tocou, soltou um grito, recuando de dor. De seus dedos queimados, uma fumaça espiralava pelo ar.
Hagan soltou um rugido mais alto. Ele próprio tentou pegar o medalhão, e aconteceu o mesmo.
- Peguem uma estaca. Nós a enfiaremos em seu coração e o enterraremos debaixo das cinzas e das pedras de sua preciosa igreja! - Hagan rugiu.
Na hora em que foi arrastado, Ragnor não sentiu nada. Nem mesmo os golpes da madeira contra seu peito. Não podia abrir os olhos, nem sentir alguma coisa. A escuridão desceu, um manto negro, o nada.
Então era assim a morte, ele pensou.
A morte era indolor...
A agonia estava na vida, ou na existência. Sentira o momento da morte, e quando lhe haviam tirado cada estaca. Brados desesperados escaparam de seus pulmões e garganta.
- Olhem! Há algo neste aqui! - alguém gritou.
Ragnor teve uma visão. Olhava para um homem loiro, alto, inclinado sobre as ruínas do que tinha sido antes uma vila,
Não saberia precisar quanto tempo dormira, ou morrera neste mundo de escuridão. Arvores e videiras cresciam no lugar da antiga igreja. O tempo passara, dias, meses... talvez anos. O homem que agora se inclinava sobre ele parecia ser de sua espécie, um viking, portando uma enorme espada, e a curiosidade brilhando nos olhos azuis.
Outro homem entrou em seu campo de visão, ambos inclinados sobre ele.
O segundo era mais moreno, diferente na aparência. Usava uma túnica com as cores da Escócia.
- O que temos aqui?
- Acha que é ele? - o homem loiro perguntou.
- Segundo rumores, nós o encontraríamos aqui - o escocês antecipou. - Você é conhecido como o filho do lobo?
Ragnor observou atentamente os estranhos que pareciam estar tirando-o dali com um propósito.
- Quem são vocês?
- Ora, fui eu que perguntei primeiro! Há rumores sobre um homem que poderia nos ajudar a lutar contra o senhor das ilhas e sua mulher sanguinária. O homem teria sido enterrado no que restara da antiga abadia. Eu lhe pergunto mais uma vez... É o filho do lobo?
- Sou seu sétimo filho - Ragnor concordou. - Diabos, quem são vocês?
- Somos a maldição - explicou o homem. - Temos leis, desejo de vingança e desejo de sobreviver. - Ele estendeu a mão para Ragnor, que a aceitou, tentando se levantar. Cada ferimento parecia ter reaberto. Mal podia ficar de pé, apesar do poder do homem que o ajudava.
- Ele precisa dormir e de tempo para se curar - declarou o loiro.
- Sim, temos tempo. Sou Lucian - apresentou-se o outro. - Um monstro, talvez. Temos regras de sobrevivência. Assim como você já teve as suas, eu também tenho razões para fazer o que faço. Mantenho a fome e a luxúria dos outros, mas há uma lei, também, muito mais antiga do que nossa própria existência. Quer se unir a nós com seu estranho poder ou devemos colocá-lo de volta em seu túmulo de pedra e cinzas?
Ragnor apoiou-se no homem. Era noite, ele percebeu. A luz tinha parecido muito forte depois da escuridão em que ele estivera em seu túmulo. Olhou à sua volta e viu que os dois homens estavam acompanhados de um exército. Eram vikings, escoceses, irlandeses... Olhou de volta para aquele que parecia se chamar Lucian.
- Vocês não são monges.
- Longe disso, lamento. Preferimos pensar que somos homens, ou monstros, com certa superioridade.
- Somos a lei - o outro disse, batendo nas costas de Ragnor. - Sou Wulfgar. Quer se unir a nós?
- Por que vieram me procurar?
- Há um homem que não segue regra alguma. No entanto há quem diga que ele vive em seu próprio mundo de medo, sabendo que seu irmão pode ressurgir das trevas.
- Pensamos que você deveria ressuscitar - Wulfgar disse. Ragnor olhou para o que era chamado de Lucian.
- Tenho liberdade para destruir meu irmão?
- Estamos contando com o que você sabe sobre ele.
- Ele precisa ser destruído, completamente - Ragnor disse.
Lucian sacudiu a cabeça.
- Enterrado, como você foi. Por toda a eternidade. Não destruímos seres de nossa própria espécie. Nem criamos mais do que dois espécimes por século, a fim de não acabarmos com o equilíbrio do mundo, como está ocorrendo agora.
- Agora?
- Quanto tempo ele dormiu, Wulfgar? - Lucian perguntou.
- Cerca de cem anos, se os rumores forem verdadeiros.
- Cem anos! - Ragnor exclamou.
- Hora de acordar - ordenou Lucian, observando Ragnor. - Segure-o! Ele está a ponto de cair. Precisa se alimentar e descansar.
- Preciso encontrar Hagan. E Nari.
- Primeiro precisa se curar, meu amigo - ponderou Wulfgar.

* * *
Quando desembarcou e passou pela alfândega, Jordan estava pensando em alugar um carro.
Tentou afastar a sensação de estar sendo seguida.
Uma mulher veio em sua direção, era alta, magra, atraente, com olhos verdes, cabelos castanhos e um sorriso bonito. Estendeu a mão.
- Srta. Riley, meu nome é Jade DeVeau. Vim para buscá-la.
Receosa, Jordan a cumprimentou, sorrindo. Devia ser uma amiga do escritor, uma colega, alguém que ele mandara vir encontrá-la...
Seria verdade? Era melhor não se arriscar acreditando nisso de imediato.
O aeroporto estava cheio. Sentiu-se sem jeito de dar uma desculpa, porém não pretendia ir a lugar algum com aquela mulher.
- Meu carro está no estacionamento.
- Poderia me dar licença por um minuto? - Jordan apontou para o banheiro das damas.
- Naturalmente!
Jordan fingiu seguir para o banheiro, enquanto Jade se acomodava na sala de espera. Jordan saiu do aeroporto, respirando com dificuldade devido à corrida. Pela primeira vez em sua vida, suas preces foram atendidas. Havia um táxi esperando.
Acomodou-se no assento de trás, aliviada. Então deu uma olhadela para o motorista pelo espelhinho retrovisor. Era um senhor negro, com aparência distinta. Mesmo assim, sentiu-se inquieta. Ao deparar com o rosário pendurado no espelho retrovisor, pensou se podia se considerar em segurança. Esperava que sim. Precisava chegar à agência de aluguel de carros.
Confie somente em si mesma.
O motorista a levou à agência. Lá ela alugou um sedã e checou o mapa que havia ganhado. Já estivera antes em Nova Orleans, e amava a cidade, porém não estava familiarizada com suas ruas.
Forçou-se a se concentrar na estrada. Já tinha feito uma conversão errada. Deixara para trás o bairro principal da cidade e agora precisava encontrar a estrada para as velhas plantações.
Não conseguia dirigir e ler o mapa ao mesmo tempo, e precisou parar. Subitamente notou que parara em frente a um cemitério. Através das frestas do portão de ferro, notou uma neblina se formando, criando estranhos contornos. Era melhor que saísse dali o quanto antes.
Abriu um pouco a porta do carro, e as luzes internas se acenderam. Consultou o mapa e quase morreu de susto quando bateram na janela.
- Olá, moça, tem um dólar? Talvez uma nota de vinte? Ou cinco?
O homem que segurava a porta estava imundo. Era branco, com uma barba grossa e um cheiro horrível.
- Ei, moça, não tenha medo. Só quero um troco para comprar comida.
Ela viu os dentes. Ou o que restava deles. Eram verdes. Teve a visão de que ele se transformava em uma criatura com gigantescos caninos, salivando, bem à sua frente.
Jordan gritou e o assustou, deu um passo para trás e ligou o carro, voltando para a estrada, cantando os pneus.
Rudy Trenton ficou parado na rua, olhando o pequeno Honda vermelho sumir dentro da noite. Sacudiu a cabeça, tirou o boné de beisebol e cocou a cabeça. Pensou então em pular a cerca do cemitério e encontrar um lugar para dormir em algum mausoléu. Muitos deles estavam trancados. Alguns eram velhos demais, e as portas eram fáceis de ser arrombadas.
Riu alto. Muita gente tinha medo de cemitérios. Bobagem. Não havia pessoa menos perigosa que um morto, já que não podia machucar ninguém.
Rudy se virou. Para sua surpresa, havia um homem saindo do cemitério. Seria mesmo um homem? Ele desconfiou quando o viu já na calçada, sem ter escalado o muro ou destrancado o portão.
- Olá! Tem uma nota de vinte, ou de cinco, ou de um, ou mesmo uma moeda? Preciso comer. Está bem, preciso de uma bebida.
O homem sorriu, como se achando graça na sinceridade de Rudy.
- Eu também preciso de um gole.
Rudy ainda ria quando o homem lhe agarrou os ombros. Não parou de rir até que sentiu dor. Agonia. Os ossos dos ombros quebrando.
O grito de dor foi interrompido quando a jugular foi rompida e ele ouviu o som de alguém chupando seu sangue.

Jordan conseguiu localizar a casa. Pelo menos achava que era aquela casa. Uma mansão, e uma linda propriedade cultivada. Olhou o endereço que tinha escrito e conferiu o número da casa de novo. Sim, estava no lugar certo.
Saiu do carro, tocando na cruz em seu pescoço e batendo na bolsa para se assegurar de que carregava água-benta.
Se este policial for legítimo, vai pensar que sou louca!
Respirando fundo, atravessou o gramado, subiu as escadas e bateu na porta, que foi imediatamente aberta pela mulher que estivera no aeroporto.
- Graças a Deus! - ela disse, aliviada.
- Desculpe, mas tantas coisas estranhas vêm acontecendo comigo que...
- Sim, claro, entendo. Mas estávamos preocupados. Vamos entrar, por favor.
Jordan ainda estava desconfiada. Quando ouviu um choro de bebê, entrou na sala. Um homem alto e moreno lhe estendeu a mão, cumprimentando-a.
- Sr. Canady?
- Não, sou Lucian DeVeau. O marido de Jade. - Ele se voltou, indicando a mulher que estava atrás dele, segurando um bebê. - Esta é Maggie Candy, e Sean está agora no escritório. Já estávamos prestes a sair para encontrá-la. Jade ficou bastante preocupada quando a perdeu de vista no aeroporto.
- Mais uma vez, peço que me desculpem.
- Ainda bem que chegou a salvo. Venha e vamos conversar. Quando ela passava pelo hall, notou a beleza histórica da casa. Uma enorme escadaria surgia já na entrada, e havia um quadro enorme com a pintura de uma linda mulher com um traje do século dezenove.
- Linda casa.
- Obrigada - disse Maggie. - Eu estava para colocar o bebê na cama. Volto já. Deve estar exausta... cansada, com fome e com sede. Mas Jade pode lhe dar tudo o que desejar.
- Agradeço.
Aquilo era muito estranho. Todas aquelas pessoas pareciam estar à sua espera, agiam como se sua presença ali fosse normal. De fato, pareciam mais do que aliviados que tivesse vindo.
- Por aqui - indicou Lucian.
- Sei que posso parecer rude, mas gostaria de saber...
- Sou a editora do livro de Sean - Jade antecipou. - E Lucian...
- Deixe que ela encontre Sean - Lucian sugeriu. - E então podemos explicar coisas em que ela não vai acreditar.
Jordan riu, pois julgava que a situação era justamente inversa.
Lucian a levou para a biblioteca. Quando entrou, ela viu um homem junto à lareira, conversando com alguém na sala.
- Sean, ela chegou. Não tive de sair para procurá-la - avisou Lucian.
- Então você é Jordan Riley.
Sean Canady beirava os quarenta anos, era magro e bonito, com uma expressão bastante séria. Jordan atravessou a sala, pronta para cumprimentá-lo. Então ela viu o homem com quem ele estava falando.
Ragnor Wulfsson.
- Jordan... - Ragnor começou, caminhando na direção dela.
Deus! Era isso! Ela viajara a noite inteira para se encontrar dentro do mesmo clima de horror.
Não havia como escapar, pensou. Tinha vindo em busca de amigos, e agora estava ali sozinha. Com Ragnor.
Nenhuma saída...
Veio-lhe à mente a imagem do corpo de Tiff, a cabeça rolando. Não pensou duas vezes antes de virar-se e sair correndo.
Ignorando os apelos de Jade DeVeau, empurrou a mulher de seu caminho e passou como uma flecha pela porta da frente. Entrou no carro, ligou-o e saiu em disparada, sem nem mesmo saber para onde estava indo.
De repente precisou pisar forte no breque. Havia alguma coisa na estrada à sua frente. Uma sombra. Um homem. Ragnor.
Ela apertou o botão da janela.
- Saia da frente! Juro, eu passo por cima!
- Jordan, pare já, você está em perigo!
- Sim, se estiver com você!
- Não, nada disso, maldição... Vamos voltar para casa e conversar? Nós lhe explicaremos tudo.
- Explicar que são monstros, que matam pessoas, e que Sean Canady escreve sobre vampiros com tanto conhecimento porque é um deles?
- Sean não é um vampiro.
- Mas... você é?
- Jordan, precisamos conversar...
Ela não o deixou terminar de falar. Apertou o acelerador, não querendo atropelar Ragnor, mas tão apavorada que não podia fazer outra coisa. No entanto, quando o carro entrou na estrada, Ragnor desapareceu na escuridão.
Ela diminuiu a velocidade ao se aproximar de um cruzamento, tentando se decidir qual caminho tomar. Parou e olhou pela janela. Olhou para um lado, e quando virou a cabeça, soltou um grito de pavor. Ragnor estava novamente junto do carro.
- Jordan, você tem de me escutar.
Mais uma vez, ela pisou no acelerador, tomando uma das ruas. Um carro vinha da esquerda e buzinou.
Jordan perdeu o controle do carro, que foi bater contra uma árvore. Ela não usara o cinto de segurança ao fugir e assim foi lançada para a frente.
- Jordan!
Ouviu a voz de Ragnor chamando-a. Mesmo machucada e dolorida, em pânico, abriu a porta e começou a correr pela escuridão.
- Jordan!
Logo ele estava atrás dela, as mãos em seus ombros. Jordan gritou, chutando e lutando. Ragnor a segurou com mais força.
- Jordan, pare com isso, pelo amor de Deus. Pare com isso! Tem de me ouvir...
De repente ele a soltou. Ela arregalou os olhos, surpresa, e percebeu que Ragnor apontava para cima, como se ouvisse algo inaudível para ela. Se o pegasse desprevenido, quem sabe...
Seu pensamento foi interrompido por um farfalhar de asas... Asas na escuridão, seguido por sussurros sinistros, um aviso.
Não precisava escapar de Ragnor, já que ele não mais a tocava. Então Jordan viu uma forma apenas poucos metros à frente. A escuridão tomou a forma de um homem, vestido com um enorme casaco preto, de onde tirou uma espada lustrosa.
Ragnor caminhou até o homem, para espanto de Jordan. Viu quando este tirou uma arma de dentro da jaqueta.
Os dois homens se aproximaram um do outro. O estranho balançava a espada de um lado para outro com destreza, fazendo-a sibilar ao cortar o ar. Ragnor portava apenas uma navalha.
Jordan encontrou forças para se mexer. O carro estava inutilizado. Moveu-se então silenciosamente para a rua, do lado oposto onde estavam os dois homens.
Então ela viu Ragnor atacar. O estranho perdeu o equilíbrio. Ragnor lançou-se à frente, atingindo o pescoço do oponente. O homem derrubou a espada, levando as mãos ao pescoço. O sangue espirrava do ferimento. Ragnor não demonstrou misericórdia alguma, ao continuar com os golpes até a cabeça do homem desprender-se do corpo. Um segundo depois, o corpo foi se transformando em cinzas e desapareceu.
Pela primeira vez na vida, Jordan ficou histérica. Não parou de gritar até perceber que Ragnor a encarava.
- Jordan! Ele foi mandado para matar você. Ou detê-la, levá-la embora...
Jordan colocou uma mão à frente, tentando evitar que ele a tocasse, mas perdeu o equilíbrio e caiu. Um segundo depois, ele a puxou pela mão, levantando-a.
- Faça o que quiser! Mate-me, corte minha cabeça...
- Tudo bem, pode gritar se quiser, contanto que me escute!
Os faróis de um carro os iluminaram, Jordan olhou para a rua, esperando por ajuda.
Foi Sean Canady que desceu do carro.
- Jordan, vamos - ordenou Ragnor.
Ele a levou para o carro. Sean abriu a porta, ajudando-a a sentar-se no banco da frente. Ragnor se acomodou no banco de trás.
O carro fez uma rápida manobra.
- O que vão fazer comigo? - ela quis saber.
- Em primeiro lugar, dar-lhe roupa limpa - Sean brincou. - Depois, uma bebida bem forte.
Ela encontrou o olhar de Ragnor pelo espelhinho retrovisor.
- Imagine-se sendo um policial e tendo de conviver com coisas desse tipo - Sean comentou.
- Um policial, mas não um vampiro? - Jordan disse.
- Isso.
Ela ficou em silêncio, imaginando se não estaria sonhando, como estivera no avião. Infelizmente, estava bem acordada. Seu tornozelo doía e o joelho estava todo esfolado. As costas doíam também.
O carro parou diante da casa. Antes que ela tivesse chance de se mover, Ragnor saiu do carro e abriu a porta. Ajudou-a a sair, sem muita gentileza.
- Podemos continuar nossa conversa lá dentro?
Ela o empurrou e subiu a escadaria. Ambas as mulheres estavam esperando por ela.
- Lucian? - Ragnor chamou.
- Ele também foi procurar por vocês - disse Jade. - Estava com medo que pudessem encontrar problemas no caminho.
- Foi isso mesmo que aconteceu.
- Você o conhecia? Ragnor sacudiu a cabeça.
- Eles estão formando um pequeno exército. São noviços, e não sabem lutar direito.
- Vamos para o escritório, por favor! - pediu Maggie. Ela havia terminado de colocar o filho para dormir.
Jordan se sentou na beirada de um sofá perto da lareira. Os outros se postaram ao redor. Ragnor acomodou-se à sua frente. Jordan sentiu o desejo de correr para os braços dele e, ao mesmo tempo, escapar de seu fascínio. Agora ela sabia à razão.
- Jordan, antes de tudo, eu juro, nenhum de nós quer lhe fazer mal - Sean foi o primeiro a falar,
- Estamos tentando protegê-la - Maggie explicou. Jordan olhou surpresa para a moça.
- Você é um vampiro?
- Não... mas já fui. Oh, é uma longa história, e não tenho muita certeza do que me trouxe a cura.
- Eu sou um vampiro - declarou Jade. - Por escolha própria.
Jordan se voltou para a moça.
- Como Lucian, também - completou Jade.
- Então, já pode entender que sabemos do que estamos falando - disse Sean.
Jordan ficou olhando para eles, um por um. Então voltou-se para Ragnor.
- Ótimo. Ótimo mesmo.
- Há mais do que você pode imaginar, Jordan.- Maggie inclinou a cabeça para o lado.
- Acho que deveríamos servir uma bebida forte - Sean ofereceu.
- Melhor você servir. - Ragnor sorriu, levemente. - Tenho certeza de que ela vai pensar que estou tentando envenená-la.
Sean serviu uma bebida para Jordan, que quase deixou o copo cair, de tanto que tremia. Decidiu virar o líquido em um gole só. Como isso poderia piorar ainda mais as coisas? Sean retomou a palavra.
- Tentarei resumir a história. Vampiros existem. Eles existem há séculos.
- Creio que preciso de outra bebida. - Jordan estendeu o copo.
- Nos tempos antigos, era fácil - Ragnor continuou explicando. - Havia guerras, disputas, mortes... por toda a parte.
- E nenhuma imprensa. - Jade sorriu.
- Tampouco polícia técnica - Sean acrescentou.
- Mas há lendas, algumas verdadeiras, outras exageradas, algumas totalmente inventadas - Ragnor assumiu o relato.
- Vivi por muitos anos, sem ferir ninguém - contou Maggie. - Mas há... um instinto. Uma fome. E essa fome gera uma perturbação na vida de um humano.
- Sempre houve tiranos na história do mundo. - Os olhos de Ragnor se prenderam aos de Jordan. - Havia maneiras de se executar uma pessoa sem qualquer alarde.
- E então temos os estranhos assassinatos - Jade completou. - Alguns cometidos por gente doente.
- E outros para aplacar a fome - observou Lucian.
- Mas é uma doença... uma doença muito estranha - explicou Maggie. - E todos que são vampiros não se tornam necessariamente... assassinos.
Jade balançou a cabeça, confirmando.
- Mas aqueles que se tornam criminosos são excepcionalmente perigosos e letais, por causa do poder que detêm.
- A maioria de nós já fez coisas das quais não se orgulha - uma voz soou da porta.
Jordan virou-se e viu que era Lucian DeVeau, que havia voltado.
- Mas isso é passado. - Jade sorriu, levemente.
- Realmente preciso daquela outra bebida - Jordan pediu. Sean continuou as explicações enquanto a esposa enchia de novo o copo de Jordan.
- Houve um tempo em que havia ordem e regras. Lucian ascendeu a um ponto de se tornar...
- Um rei - Maggie completou.
- O rei dos vampiros - murmurou Jordan.
- Havia ordem. - Lucian suspirou. - Existiam coisas que podiam ser feitas, outras não. Tudo para garantir a nossa sobrevivência. Por exemplo, vampiros não podem criar mais do que dois de sua própria espécie a cada século. É uma forma de controle da população, por assim dizer.
- Houve quem protestasse - continuou Maggie. - Aqueles que matavam indiscriminadamente, de forma brutal.
- E aqueles que não aceitavam o fato de que já estavam no século vinte e um e havia muitas alternativas - Sean completou.
- Sean escreveu o livro, Jordan, e Jade, que tem uma editora, vai lançá-lo. Porque há perigo, sempre houve. Somente nos últimos anos, por causa da ciência e da imprensa, pudemos traçar uma linha entre os que são meramente predadores e aqueles que apenas querem sobreviver - disse Lucian.
- Então você é um rei - Jordan murmurou, olhando para Lucian. Depois olhou para Ragnor. - Qual é o seu papel nisso tudo?
- Ragnor é aquele que garante que as leis sejam cumpridas - Lucian informou. - Ele é o sétimo filho de um sétimo filho, e seu pai era possuidor de uma tremenda força e poder.
- Se seu pai era um lobo, você é da mesma espécie, certo? Então era você na festa da condessa... O lobo.
- Você não deveria estar lá.
- E você foi o lobo que eu vi nas ruas na noite seguinte.
- Sim, também estive em sua janela, vigiando o seu quarto, antes que você me convidasse a entrar.
- E desde quando se tem de convidar um vampiro para entrar? - Sean franziu a testa.
- Pensei que você tivesse lido o livro, Jordan.
- A condessa estava atrás de você, em uma vingança pessoal - Ragnor explicou. - Eu a vinha observando pela cidade. Sabia que ela e seus amigos pretendiam ir ao baile... Eu não tinha compreendido como esse culto tinha crescido tanto, o que a condessa já fez. O que eles têm feito.
- Eles?
- Nari nunca está sozinha - explicou Lucian. - Tem se aliado aos mais depravados companheiros, nestes séculos todos.
- Você não deveria estar no baile, não naquele salão em particular - revelou Ragnor. - Mesmo sendo uma predadora e assim se achando no direito de caçar e matar, Nari gosta de uma vida requintada. Não quer ser desmoralizada. Suas vítimas são os pobres, os perdidos, as prostitutas, traficantes e assassinos. Estes desaparecem e ninguém investiga nada. Quando uma prostituta morre, muita gente acha que ela mereceu o castigo.
- Então você decidiu me salvar da carnificina. Que sorte a minha - Jordan ironizou. - Mas deixou toda aquela gente morrer.
- Eu não sabia o que ia acontecer. Tinha acabado de descobrir que Nari escapara, e temia que estivesse com alguém em Veneza, alguém com maior poder que o dela própria.
- Ela escapou? De onde?
Ragnor olhou para Lucian, e foi este quem respondeu:
- Ela ficou enterrada em um caixão no fundo do mar Adriático por duzentos anos. De alguma forma, escapou.
Jordan arregalou os olhos.
- Se ela é uma criatura assim horrível, por que vocês não a detêm e depois cuidam dos demais?
- Nari está sendo usada. Sim, ela é uma criatura horrível. Mas sem Nari, perderemos o poder que está por trás dela. - Ragnor estava desolado.
- Por que você não me disse que...
- Você acreditaria se eu tivesse lhe contado?
- Eu vi tudo o que aconteceu.
- Eu não podia simplesmente entrar no posto policial e convencê-los de que Nari era uma vampira. Tenho capacidade de matá-la, sim...
- Mas não pode ir contra a sua lei - Jordan o interrompeu. - E no entanto, acabo de vê-lo partir para cima de um homem, cortar-lhe a cabeça...
- Ele me atacou. Nossa velha ordem está se tornando um verdadeiro caos. Por isso, temos de mudar as regras. Em um primeiro momento, pensei que você estivesse simplesmente no lugar errado e na hora errada. Temi que continuasse a se expor ao perigo, insistindo que alguma coisa tinha acontecido no baile da condessa. Mas não era isso. Você tinha mesmo de estar lá, isso foi planejado. Eu tenho de seguir Nari até descobrir quem está atrás dessa onda de ferocidade.
- O que quer dizer ao afirmar que foi planejado eu estar ali naquele salão?
- Seu primo Jared fez os arranjos. Por quê, eu não sei. Mas ele está sob a influência de Nari.
- Ele não me colocaria em perigo. - Jordan sentiu um arrepio.
- Em circunstâncias normais, não. Entretanto, este não é o caso agora - Ragnor disse secamente.
Jordan o encarou.
- Por que eu deveria acreditar em você? Por que devo confiar em você agora, quando já mentiu para mim? Quando deixou que Tiff fosse morta? Eu vi o corpo dela, em seguida o vi.
- Sim, você me viu. Passei dias seguindo-a sem que outros notassem a minha presença. Precisa entender. Nari jamais trabalha sozinha. Há alguém mais poderoso por trás dela, e forte e esperto o suficiente a ponto de não se deixar descobrir. Os dois criaram uma poderosa rede.
- Então você estava me usando como isca.
- A princípio, sim - Ragnor admitiu. Jordan esperava que ele negasse suas palavras.
- Como pode estar aqui? Como pôde atravessar o oceano por pensamento?
- Estávamos no mesmo avião.
- Como soube que eu estaria lá?
- Vi quando você fez as reservas pela internet.
- E se achava que Jared era uma criatura do mal, por que não o destruiu?
O silêncio que se seguiu a deixou de sobreaviso, assustando-a. Maggie clareou a garganta e tentou explicar:
- Há diferentes coisas que podem acontecer. Se uma pessoa tem seu sangue drenado e morre, ela volta, a não ser que seu corpo seja decapitado ou destruído da forma certa. Quando um vampiro escolhe ter a obediência de sua vítima, o sangue é tirado aos poucos. Nesse caso, a vítima pode agir de um jeito bem diferente do que faria normalmente. É o que acontece com Jared.
- Jared tem tomado o sangue de Cindy - Ragnor relatou. - E você sabe que estou falando a verdade.
- Não vai destruir o meu primo! - Jordan exclamou. - Li bastante do livro de Sean. Eu o destruirei antes de deixá-lo chegar perto de Jared. E você deixou Tiff morrer!
Ragnor fez que não com a cabeça.
- Eu não tinha idéia de que Nari iria atrás de Tiff. Eu estava ocupado seguindo você.
- E quanto a Roberto Capo?
- Ele está bem, ou estava, quando deixei Veneza.
- Por que me seguiu, já que sabia que eu viria aqui?
- Sabia que eles estariam seguindo você.
- Como?
- Estamos na era do computador, Jordan. E-mails são lidos. O assassino devia estar esperando por você no aeroporto.
- Bem, se o mal está em Veneza, e vocês são gente boa, por que não estão lá?
- Nari não é o único perigo que existe no mundo - observou Lucian.
- Se fosse somente ela, eu teria acabado com tudo ainda na noite do baile - Ragnor declarou. - O que há de importante aqui é que você é o alvo. Por quê? Não sabemos. Precisamos de sua ajuda.
- Não sei nada sobre vampiros. - Jordan rangeu os dentes.
- Nunca tinha assistido a uma decapitação antes.
- Quando você me enviou um e-mail, eu comecei a investigar o caso em Charleston. Um culto estava acontecendo lá - disse Sean.
- E você acha que... eles não eram simplesmente cultistas, que eram... - Jordan respirou fundo.
- Seu noivo foi morto, certo?
Ela balançou a cabeça, concordando.
- Ela... essa Nari... pode estar relacionada com a morte dele?
- Amanhã cedo,vou consultar os arquivos da polícia.
- Jordan, é importante que nos conte tudo o que puder - Lucian pediu. - Precisamos saber contra o que teremos de lutar.
- Sei que um homem foi morto com brutalidade por um grupo de cultistas. Eu não trabalhava com Steven, apenas o escutava contar sobre o seu dia de trabalho. Não sei nomes, nem conheço rostos. Sou uma crítica literária, ele era o policial.
- Por favor, tente pensar em qualquer coisa. Tem de entender. Podemos ser todos destruídos! - Lucian exclamou. - No passado, quando nossa espécie saía dos limites, isso levava a uma destruição em massa. Descobrimos um modo de detê-los, aprisionando-os, com punições físicas. Agora, como lhe dissemos, as coisas mudaram. Há apenas dois lados aqui. E estamos do seu lado.
Jordan começou a se levantar e sentiu tontura. A bebida e a exaustão a derrubaram de volta ao sofá. Tentou se levantar de novo e falar, mas foi em vão. O esforço era grande demais, tanto que ela desfaleceu.

O tempo de cura de Ragnor transcorreu em uma pequenina ilha no mar da Irlanda, a Ilha dos Mortos.
Não era tão difícil naqueles dias para as pessoas comuns aceitarem os "diferentes". Muitos freqüentavam a igreja durante o dia, e deixavam oferendas para a Mãe Terra à noite, assavam pão para os "pequeninos" e aceitavam que havia apenas um Deus, mas também algumas criaturas não conhecidas pelos homens.
Um dia, Ragnor entrou na casa onde Lucian dormia e entrelinha seus convidados. Ali, ele encontrou um guerreiro exausto, com os restos de uma corrente de aço em volta do pescoço. O homem falava sobre uma terrível batalha que acontecera no Sul da Inglaterra.
- Os normandos chegaram à costa da Inglaterra. Nosso rei estava pronto para recebê-los, quando foi morto. O líder normando seguiu para o Norte. Cometas riscaram os céus, e o povo pensou que o mundo estivesse acabando - o homem profetizou.
- Se o rei saxão foi morto, e um normando tomou o trono da Inglaterra, levando para lá a sua nobreza, o mundo como eles conhecem terá um fim - disse Ragnor.
O homem se voltou para ele, surpreso, e abaixou a cabeça.
- Sim, o mundo como nós o conhecemos acabou, e as liberdades que conhecíamos junto com ele. Mas não é por isso que eu vim aqui. - Ele olhou para Lucian. - Quando o exército normando se deslocou para o Norte, houve morte e destruição.
- É o que sempre acontece, quando um povo conquista o outro - apontou Lucian, erguendo a mão. - Não fazemos parte dessa guerra, e não queremos que nos chamem para participar.
- Não foi essa a razão que me trouxe aqui, embora a morte e a devastação sejam lamentáveis e trágicas. Nesta batalha, havia aqueles que acreditavam que o rei Harold pensava que o próprio Deus se levantara contra ele, e assim um novo reino começaria na Inglaterra. Muitos dos grupos normandos eram constituídos por tropas mercenárias. Há dúvida até mesmo se o grande senhor normando sabia de onde eles haviam vindo. Ele chegou para tomar o trono, homens como ele raramente avaliam o custo.
- Por que está aqui, se vê que essa batalha já está perdida? - questionou Lucian.
- Não temo a morte. Meu nome é Edgar, e eu fui feito prisioneiro, como podem ver. - Ele parou de falar, indicando o aro no pescoço. - Escapei, quando deixaram de nos vigiar bem. A morte em si não era nada. Não quando a alma de um homem cai nas mãos de Deus. Foi então que veio uma terrível doença. Um mal vindo das sombras. As pessoas nem sequer adoeciam, já caíam mortas.
- Talvez fosse a peste negra - Lucian observou. - Um homem toca sua esposa, e a doença dela passa para ele. Uma mãe cuida de sua criança enferma e perde também a vida.
- Não foi esse tipo de doença. - Edgar sacudiu a cabeça. - A não ser que uma praga pudesse tomar a forma humana, e risse enquanto os sacerdotes rezavam sobre os mortos e os moribundos.
- Não é uma peste, Lucian. Nós dois sabemos bem disso - disse Ragnor, aproximando-se do saxão. - O mal de que fala toma a forma humana, foi o que disse. Sombras tomando forma sólida. Homens... ou mulheres?
- Uma mulher se aproximou de mim quando eu ajudava um sacerdote a rezar por um morto, perto do campo de batalha em Hastings. Ela ficou parada a meu lado, vestida de preto, como se estivesse de luto. Mas então riu, e disse que os normandos haviam aberto o portão para os amaldiçoados. E... O homem parou de falar.
- Continue - insistiu Ragnor.
- O homem por quem eu rezava faleceu enquanto eu falava. E voltou a andar no dia seguinte.
- Por que veio até nós? - Lucian perguntou.
- Porque há rumores de que os senhores também são capazes de se transformar - Edgar respondeu depois de um momento.
- E não tem medo de nós? - indagou Ragnor.
- Sim, tenho.
- Mesmo assim, veio. - Lucian prosseguiu. - Quando sua terra foi devastada?
- Guerras são vencidas, ou perdidas, no entanto, as almas dos homens são eternas. Fiquei amedrontado no campo de batalha, mas não tanto como agora. Eles dizem que outros vieram para cá. Que os senhores podem ser tão brutais quanto qualquer exército conquistador... mas quando a luta termina, existe a ordem de vida e morte, e que até os caídos podem rezar pela salvação.
- Essa é uma reputação e tanto - Lucian murmurou.
- Nós iremos com você ao Sul, da Inglaterra. - decidiu Ragnor.
- Estou em segurança com vocês.
Apesar do tom de convicção, Ragnor sabia que era uma pergunta.
- Sim, está - afirmou Lucian.
Edgar caminhou até Ragnor e tocou em seu medalhão de prata.
- O senhor deve ter sido um grande governante, um campeão de Deus.
- Deus deve ter mudado de idéia - Ragnor disse, suavemente.
- Assim como o mal vem das sombras, também a justiça pode ser achada no mal - Edgar disse e se afastou.
- Os saxões adoram falar por enigmas - resmungou Wulfgar. - Buscam respostas onde não existe.
Ragnor olhou para os amigos.
- Nós vamos lutar porque sabemos que Nari e meu irmão são os culpados dessa carnificina. A vingança é a maior de minhas preocupações. Estou curado e pronto para enfrentá-los de novo.
- Assim será. Vamos navegar para o Sul com o saxão.
- E reze para que nossos navios não afundem! - esbravejou Wulfgar.
Eles viajaram para o Sul, contornando a costa da Cornualha. Dias se passaram até que chegaram ao povoado conhecido como Twickham, onde governava o senhor supremo de Edgar. Quando foram se aproximando, à luz da lua, Edgar implorou para que parassem.
- Os portões eram mantidos trancados à noite. Agora, eles estão abertos.
- Espere aqui - Lucian disse a Edgar.
- Melhor deixarmos que ele entre na frente, enquanto vamos pelas sombras.
- Isso quer dizer que serei a isca.
- Estaremos logo atrás.
Deixaram os cavalos para trás e se misturaram com as sombras, seguindo Edgar, que cavalgava lentamente.
Tochas queimavam em piras colocadas nos muros. Havia corpos caídos e escudos tombados no chão, em meio a animais mortos e dejetos. De repente, o cavalo de Edgar parou e não quis dar mais nenhum passo à frente, e ele foi obrigado a desmontar. Caminhou em direção à casa principal,e os outros o seguiram.
A porta da casa estava aberta também. Lá dentro, Hagan estava sentado diante do fogo, os pés em cima da mesa, as mãos atrás da cabeça. Reinava um cheiro de morte no ar. Seus homens circulavam por entre os corpos caídos, checando se ainda havia sangue quente para ser sugado.
Sentada na outra ponta da mesa, Nari olhava furiosa para o companheiro, com as mãos no colo e a boca contraída. De longe, Ragnor viu o motivo da ira. Hagan havia tomado um dos colares de escravos e o colocara no pescoço de uma jovem mulher, vestida com uma túnica de fino linho.
- Está com ciúmes, querida Nari? Ela suspirou.
- Estou cansada de você, Hagan!
- Você deve estar querendo voltar para a Escócia e tirar do túmulo o meu querido irmão. Saciar a sua fome, como eu sacio a minha com esta escrava. Mas você tem medo de mim.
- Você é um idiota. Esqueceu quem eu sou.
- É mesmo? Você não é filha de um nobre, querida, mas uma criança adotada. Seu povo foi enganado. Ingênuos que foram, nunca suspeitaram de que você os trairia. Acredito que você não imaginou que se uniria a um guerreiro com uma sede maior do que a sua, alguém poderoso. Ainda assim, tem saudades do meu irmão. Por isso, minha querida, não pode me proibir de me divertir com essa nativa.
Ao ouvir o relato, Ragnor rugiu. Quanto mais ouvia sobre o assunto, mais inconformada ficava por ter amparado a semente de todo o mal. O irmão Peter morrera sem saber que Nari era uma traidora. Quantas vezes havia sonhado que ela voltaria e pediria perdão pela existência escolhida! Jamais suspeitara que havia sido ela que incitara a todos.
Subitamente todos ficaram em alerta na sala. Haviam visto Edgar, parado à porta.
- Ora, ora - Hagan resmungou, levantando-se, abrindo um sorriso de deboche. - O que temos aqui? Um saxão derrotado, querendo voltar para à sua casa? Viu os seus inimigos caídos pelo chão, vencidos?
- Vejo somente que você é o maior dos destruidores da Terra. Vim para detê-lo - Edgar anunciou, puxando a espada.
Nari se levantou também, recuando, os olhos semicerrados. Mais uma vez, seu desejo era se distanciar de qualquer perigo.
Hagan começou a rir. Fez um gesto e dois de seus seguidores foram em direção a Edgar, que não fugiu à luta.
Ragnor saltou contra a criatura que buscava o pescoço de Edgar, e os dois foram ao chão.
Quando Hagan percebeu que Edgar não tinha vindo sozinho, empunhou sua arma e urrou:
- Este é o meu reino! Eu não honro lei alguma das ancestrais e destruirei qualquer um que me desafie!
Edgar, tentando escapar da morte, procurava cortar a cabeça do maior número possível de demônios. Ragnor e os outros haviam saído das sombras, e a sala se tornou um verdadeiro campo de batalha.
E enquanto os amigos lutavam contra o exército que Hagan montara, Ragnor deu um passo à frente para enfrentar o irmão.
- Você! Eu devia ter imaginado! - Hagan gritou, feliz com o desafio. - Meu irmãozinho, quantas vezes terei de mandá-lo para o inferno?
- Desta vez, Hagan, não vai contar com a traição e a surpresa como vantagem, e será você quem irá para o inferno.
Suas espadas se encontraram. Aço contra aço, olhos nos olhos. Hagan atacou Ragnor, que se abaixou e atingiu o irmão no abdômen, lançando-o longe com tal ferocidade que o outro voou pela sala e se chocou contra a lareira. Imediatamente levantou-se, uivando de dor enquanto o fogo o queimava. Enfurecido, olhou o braço queimado e atacou mais uma vez, uivando como um trovão. Ragnor estava pronto e abaixou mais uma vez a espada, atingindo o ombro do irmão. Quando Hagan caiu, Nari de repente pareceu ganhar vida e se atirou em Ragnor, agarrando seu braço.
- Ragnor, ele é seu irmão, é um de... nós. Não pode...
- Não posso o quê, Nari? Lembro-me muito de vocês dois se revezando para perfurar o meu pescoço.
- Mas você não pode fazer isso. Conheço você, e preciso de seu perdão, e...
Nari foi jogada para longe. Wulfgar estava ali, furioso.
- Não, não, minha querida. Os dois devem resolver sozinhos as suas diferenças.
Wulfgar tinha nas mãos um dos colares de ferro que os normandos usavam em seus escravos. Ele o passou em volta do pescoço de Nari, puxando-a, mesmo que um dos homens exibisse os caninos e tentasse mordê-lo. Segurando a corrente com força, Wulfgar agarrou uma madeira em brasa a fim de se defender de qualquer ataque.
Do outro lado da sala, Hagan se levantou, sangrando como um porco que sugara vitimas demais nas últimas semanas. Embora cambaleante, sorriu ao olhar para o irmão.
- Quem quer viver para sempre, irmão? Eu quero. - Dito isso, investiu contra Ragnor.
Este largou a arma, ficando com os dois braços livres. Dessa forma, foi possível agarrar Hagan e levá-lo ao chão ao caírem. Quando Hagan lutou para recuperar sua arma, Ragnor o atingiu nas costas e o lançou em direção à lareira.
A força da colisão lançou brasas por toda parte, transformando o ambiente no nascedouro de chamas. Ragnor olhou para as labaredas e sentiu uma batida nas costas. Era Lucian.
- Para fora! Temos de sair daqui! Edgar, o saxão, estava parado à porta.
- Esperem! - ele gritou. - A jovem, a escrava!
Edgar entrou na sala em chamas. Ragnor praguejou, livrou-se de Lucian e Wulfgar e correu atrás de Edgar. Havia fumaça demais, e ele mal enxergava à frente. Bateu contra a mesa, encontrou a mulher pelo toque, ergueu-a e a jogou nos ombros, e conseguiu sair no momento exato em que o teto desabava. A sensação foi de que haviam voltado ao inferno.
- Ragnor!
Ele baixou o olhar. Não encontrou a jovem escrava. Ele tinha salvado Nari.



Capítulo VI



Jordan sonhou com Jared usando a fantasia de dottore.
- Lamento, Jordan, lamento muito... - desculpou-se, ao tirar a máscara.
Os olhos estavam vermelhos, os dentes pontiagudos, pingando sangue, como se ele fosse meio humano, meio besta. Jordan viu os dentes se aproximando...
- Não, Jared, não! Eles vão matá-lo, não me entende?! Os dentes estavam roçando sua jugular.
Ela devia ter gritado, porque acordou com alguém a sacudindo. Abriu os olhos, e Ragnor estava ali. Ragnor. Uma criatura da noite. E pensar que iniciara um relacionamento amoroso com um morto-vivo. Por pouco não gritou novamente.
- Está tudo bem, não há perigo algum. Você está sonhando de novo.
Ela se sentou na cama, confusa, então percebeu que devia estar em um quarto da enorme mansão. Ragnor sentou-se na beirada da cama.
- Fui criada por minha avó - ela murmurou. - Ela me alertava contra rapazes rebeldes que andavam em motocicletas, contra viciados e contra homens casados. Mal sábia ela que existiam vampiros, também.
Ele a ignorou.
- É importante que nos ajude.
- Claro. Sou a isca.
- Não é bem isso.
- Você disse que me seguiu para descobrir quem estava por trás da condessa.
- No começo, sim.
- Hum... Então, perdeu a cabeça pôr mim.
- Gosto de você e de seu espírito de luta. - Um leve sorriso surgiu nos lábios de Ragnor. - E eu a alertei sobre aquela fantasia sexy. Você estava incrivelmente atraente.
- E você precisava estar bem perto de mim.
- Claro, era preciso protegê-la. Fiquei desesperado para salvar-lhe a vida.
- Por que é tão difícil acreditar em você? - Jordan suspirou.
E por que isso tudo a machucava tanto? Ela sabia desde o começo que algo estava errado. E mesmo pensando assim, ela o desejara. E continuava louca por ele.
- Já sei, devo acreditar porque você está apaixonado por mim.
- Alguma coisa assim.
- Pelo que entendi, você é o mantenedor da ordem. E o sétimo filho de um sétimo filho. Um sugador de sangue. Quantas vezes lhe perguntei sobre sua espécie e o ouvi dizer que era um homem?
- Mas sou um homem. - Ragnor ergueu os braços. - O que exatamente mais? Não sei. Quando eu era jovem, havia uma aura de mistério, um misticismo por ser o sétimo filho de outro sétimo filho. Isso supostamente significava que eu tinha um poder. Quem sabe não era apenas a capacidade de sobreviver... Havia um monge que acreditava que minha sina era ser misericordioso, um traço de personalidade estranho para um viking.
- Quer dizer que você foi um viking! Um que saqueava, destruía ou lutava?
- Lutei muito. - Ragnor estudou suas mãos por um momento. - Derramei muito sangue, também. Mas havia o outro, poder que um monge acreditava ser meu. Quando tentamos defender o que restara de uma vila contra os vampiros, foi preciso muitos deles para me derrubar. Quando pensei que o monge fosse terminar com tudo para mim, ele me forçou a curar. E a fazer um juramento.
- Um juramento?
- Defender os perseguidos e os caçados, jamais derramar sangue inocente... Jurei para Odin e para o Deus cristão... Sou eu que devo perguntar quem sou. A verdade é que em mil anos de existência, não consegui descobrir. Admiti que a vigiava porque queria saber quem estava por trás de Nari. Eu conheço bem essa mulher. Ela nunca lidera. O dottore é quem a apóia. Mas não fui capaz de me aproximar dele a ponto de saber quem era. Houve um tempo em que a lei era tão forte que podíamos sentir quando algo estava para acontecer...
- Com Lucian como rei?
- Ele ainda é poderoso. No passado aceitavam-se mais violência e crimes contra a humanidade. Lucian era chamado de rei, pela falta de um termo melhor. Mantinha uma ordem de preservação, para manter o equilíbrio. Agora não precisamos aterrorizar a população humana ou matar indiscriminadamente. Temos novos recursos de sobrevivência. E estes que se rebelam querem acabar com a ordem. Mas se conseguirem, seremos destruídos.
- Mas se tantos de sua espécie são capazes de existir sem matar, por que vocês não revelam sua presença?
Ragnor a fitou como se ela tivesse ficado louca.
- Muitos de nós lembramos os dias em que inocentes eram queimados em fogueiras. Se alguém lhe dissesse que vampiros estavam morando nas redondezas de sua casa, você acharia seguro?
- Você poderia ter me contado antes.
- Oh, sim, isso seria ótimo. "Quer estar comigo?", eu lhe perguntaria. "Não tenho nenhuma doença venérea, mas sou um vampiro. Honestamente, prometo que não sugarei o seu sangue enquanto estivermos fazendo amor, então tudo bem?". - Ele se levantou. - Você precisa dormir um pouco mais.
Ragnor saiu do quarto e fechou a porta atrás de si.
Jordan ficou tentada a chamá-lo de volta. Queria esquecer todas as confissões que ouvira. Desejava aquele homem estranho que velava por seu sono no hotel Danieli, e por vezes passavam a noite juntos.
Nenhuma estranha doença venérea... Nada tão sério assim... Ragnor tinha apenas mil anos de idade, e era um vampiro.
Naquele momento nada disso importava. O desejo era maior do que o medo.
Com os olhos fixos no teto, lembrou que precisava manter-se racional e manter-se a uma distância segura. Ajeitou-se na cama e dormiu.
Quando acordou na manhã seguinte, descobriu que sua bolsa e maleta de mão tinham sido trazidas para o quarto. Tomou um banho rápido, vestiu-se e deixou o aposento. Quando ia descer as escadas, ouviu-os conversando lá embaixo.
- Acho que Jared Riley se tornou perigoso. - Era a voz de Ragnor.
- Talvez não. - A resposta vinha de Maggie.
- Vamos fazer os arranjos para a viagem a Veneza - anunciou Lucian.
- Esperaremos Sean voltar e ver o que ele descobriu sobre Charleston.
- Gostaria muito de saber o que aconteceu por lá - disse Ragnor.
Jordan voltou ao quarto em busca da bolsa e da agenda de telefones. Em circunstâncias normais, ela jamais faria um telefonema interurbano de uma casa onde era uma visita, mas as circunstâncias não eram normais.
Ligou para o Danieli, e depois de um momento, conectaram-na com o quarto de Jared. O telefone tocou e tocou. Jordan começou a sentir o coração pesado. Por sorte, Cindy atendeu em seguida.
- Cindy? É Jordan.
Seguiu-se um breve silêncio, e então Cindy começou a falar.
- Sua irresponsável! Passamos metade da noite procurando por você. Descobrimos que tinha embarcado para Nova Orleans. Jared já estava doente, piorou e tivemos de levá-lo para o hospital. Estou indo para lá agora. Por que deixou recado para que a encontrássemos no Harry's?
- Tive de partir. Tiff Henley foi assassinada. Eu vi o corpo.
- A polícia disse que ela está em Paris. Jared confirmou, também.
- Seu marido mentiu para você, Cindy.
- Não está me entendendo? Ele está no hospital... doente. Pode estar morrendo!
- Eu amo Jared, você sabe que...
- Mentira. Sua mente está transtornada desde que Steven morreu. E agora você enlouqueceu e magoou Jared...
A voz de Cindy se dissolveu em um pranto sentido.
- Tenho de ir. Vim aqui só para pegar algumas coisas e vou voltar ao hospital. Se tiver alguma consideração por seu primo, volte para cá.
O telefone ficou mudo nas mãos de Jordan. Ela sentiu alguém à porta. Ótimo. Ainda bem que não tinha decidido ser criminosa, nem policial. Havia deixado a porta aberta para fazer uma ligação sigilosa. Ragnor estava parado ali.
- Tenho de voltar para Veneza. Talvez você nem tenha de destruir Jared. Cindy disse que ele pode estar morrendo.
- Vamos todos a Veneza - ele disse, olhando-a friamente. - Você não deveria ter ligado. Telefonemas podem ser rastreados.
- Eles já sabiam que eu estava em Nova Orleans.
- E agora saberão que estamos sabendo sobre Jared. - Ele silenciou. - Precisamos fazer uma parada primeiro.
- Onde?
- Em Charleston.
- Por quê?
- Sean passou o dia pesquisando o seu Steven Moore. Ele apareceu do nada em Charleston. Desapareceu de seu último emprego em Nova York. Supostamente, disse ter sido ferido e sofria então de amnésia naquele momento. Um amigo íntimo dele da polícia de Nova York terminou em um acidente sério. Ninguém se lembra bem de Steven.
- O que está querendo dizer?
- Estou dizendo que seu noivo pode ter sido um vampiro.
- Não... isso é impossível. Você não o conheceu. Ele era o homem mais bondoso, o mais... - Jordan o olhava, estarrecida.
- E talvez um tremendo ator. Virou policial, assim conseguiu um bocado de evidências, livrar-se de pessoas que começavam a perturbar.
- Está errado!
- Ficarei feliz por você se estiver errado.
- Como?
Ele se virou e começou a deixar o quarto. Jordan correu atrás dele e o segurou pelo braço.
- O que está planejando?
- Vamos exumar o corpo de Steven Moore. Jordan deu um passo para trás.
- Mas ele morreu queimado! E vocês não podem simplesmente desenterrá-lo... Uma ordem de exumação leva dias para sair... semanas, mesmo. E eu tenho de voltar para Veneza...
- Estaremos em um avião à meia-noite.
- E depois?
- Chegaremos a Charleston em questão de horas. E logo que anoitecer...
- Vocês mesmos vão cavar? - ela perguntou, incrédula. - Não, não podemos. Estou dizendo que ele foi queimado. Está enterrado já faz um ano em um caixão selado.
- Aposto que o caixão está vazio.
- Steven nunca foi uma criatura do mal. Estamos perdendo tempo. Você vai ver... ele estará no caixão. Além do mais, não conseguiremos desenterrá-lo.
- Teremos ajuda. Lucian e Sean estarão conosco.
- E vocês três vão entrar em um cemitério à noite e desenterrar um caixão?
- Nós quatro. Você vai conosco. Não pretendo perdê-la de vista.
Maggie Canady reservou as passagens de avião a caminho do aeroporto, pelo celular. Ao chegarem ao aeroporto, precisaram apenas pegar as passagens dali para Charleston, depois para Roma e por fim Veneza.
Jordan sentou-se ao lado de Ragnor no trajeto de Nova Orleans a Charleston. Ele ainda não estava muito disposto a conversar. Quando desembarcaram, foram direto alugar um carro.
- E quanto ao carro que aluguei ontem? - Jordan questionou Ragnor.
- Sean se encarregou dele.
- Mas...
- Ele é um policial.
- Podemos parar em minha casa para uma refeição, se quiserem - Jordan sugeriu.
- Não... Não tenho certeza de que seja uma boa idéia.
- Conheço um excelente restaurante nesta área - Sean sugeriu.
- Frituras sulistas, bem, aposto que vocês dois não precisam se preocupar com a taxa do colesterol.
Jordan tentou sorrir da piada.
Ela conhecia o lugar onde pararam. Era uma velha casa transformada em restaurante, bem perto do cemitério. Junto com a refeição, Jordan decidiu que precisava de uma taça de vinho.
Ela decidiu que já que ia cavar o túmulo de um homem que tinha amado, precisava de bastante vinho, também.
- E pensar que a lenda diz que vampiros não precisam de alimento, só de sangue.
Ragnor olhou-a bem sério.
- Gostamos de nossa carne bem crua.
- Como conseguem... o tipo de alimento de que precisam?
- Fazemos. freqüentes visitas aos bancos de sangue - Lucian informou. - Sangue de animal também serve.
- Sangue humano é melhor - Ragnor comentou com naturalidade.
- Está tentando me deixar mais nervosa ainda? - Jordan perguntou.
Ragnor se inclinou sobre a mesa.
- Se eu pretendesse tomar o seu sangue, podia ter feito isso muitas vezes antes.
Ninguém, mais falou por algum tempo. Então Lucian pediu a conta e se levantaram.
Quando chegaram ao cemitério, Sean estacionou o carro alugado no meio de arbustos, num lugar bem discreto.
- Abriremos o portão em um minuto - avisou Ragnor.
Ele e Lucian caminharam até a entrada e desapareceram na névoa. Um momento depois, Sean e Jordan ouviram o ranger do velho portão de ferro. Por um momento, ela fechou os olhos, pensando na insanidade que estava para fazer.
A neblina formava estranhos contornos nas estátuas de mármores sobre os túmulos. Anjos, madonas, cabeças inclinadas em prece pareciam ter adquirido vida.
Jordan tropeçou e caiu. Ragnor a puxou pelo braço, levantando-a.
- Steven está... logo à frente - ela disse.
Ele fora enterrado em uma área aberta entre dois mausoléus particulares. Jordan apontou para o túmulo. A pedra era de mármore preto, dificultando a leitura da inscrição no escuro da noite, porém Lucian e Ragnor não pareciam ter problemas com a visão noturna.
Pararam por um momento. Jordan se lembrou do dia em que estivera ali e escutara as preces da cerimônia fúnebre. O dia estava cinzento, com uma garoa intermitente. Jordan sentira como se seu coração estivesse sendo enterrado.
E naquele momento estava permitindo que profanassem o túmulo. Não havia como detê-los, ela sabia bem disso.
Sean trazia três pás em uma sacola. Cada um pegou uma e começaram a cavar. Jordan observou, apenas alguns metros atrás, espantada com a velocidade com que os homens tiravam aterra.
Engoliu em seco, sentindo uma friagem envolver seu corpo. Fechou os olhos, imaginando-os trazendo o caixão para fora. Fora selado com chumbo.
- Já estamos quase terminando - avisou Sean, saindo da cova e percebendo-a tão pálida.
Ela ouviu o pio de uma coruja e estremeceu. Subitamente sentiu a presença de alguém atrás de si. Virou-se e deparou com um rapaz usando jeans e uma camiseta rasgada, com os cabelos compridos e sujos. Parecia ter voltado de alguma briga de rua. Quando ele sorriu, os caninos, os mesmos com os quais ela sonhara, ficaram evidentes.
Jordan abriu a boca. A princípio, não saiu som algum. Então conseguiu gritar enquanto pegava a água-benta da bolsa.
Jogou a água no rapaz, duvidando que fizesse algum efeito.
Para sua surpresa, ele gritou mais alto que ela, como se tivesse sido atingido por ácido. Levou a mão ao rosto, recuando. Ela ouviu um som horripilante e então viu a carne de seu rosto se decompor...
Ele não estava sozinho. Uma jovem com cabelos crespos surgiu atrás dele, como um animal enfurecido. Jordan jogou mais água, mas não teve muito sucesso, a moça avançava em sua direção.
Antes que ela pudesse alcançar Jordan, uma sombra negra a dominou. Jordan reconheceu Ragnor. Ele atingiu a moça, arremessando-a contra uma árvore. Ela permaneceu no chão, rolando de dor. Então, ergueu-se e atacou.
Ragnor, dessa vez, empunhava uma adaga. Moveu-a no ar enquanto a moça corria. Jordan gritou ao ouvir o barulho da lâmina cortando o pescoço da criatura. Voltou-se, sabendo que a cabeça estava agora separada do corpo.
Lucian também saiu do túmulo e caminhou até a jovem. Jordan se afastou, não querendo ver aquele espetáculo de horror.
- Há mais um deles vindo para cá - avisou Lucian.
- Aquele executivo que estava no restaurante. - Ragnor inclinou a cabeça na direção de Jordan. - Penso que Buffy, nossa matadora de vampiros, não tem mais água-benta.
Sean balançou a cabeça, concordando. Os outros dois voltaram para dentro do túmulo. Um momento depois, ela ouviu um grunhido, como unhas arranhando uma borda. E ouviu o barulho de madeira.
Silêncio.
- O que foi? - murmurou Jordan.
Sean deu a volta no túmulo. Ragnor iluminava o caixão aberto no fundo do buraco com uma lanterna.
Jordan quase desmaiou. Havia um corpo lá dentro, queimado e em decomposição. Não havia mais cabelos, e as feições seriam dificilmente reconhecidas como humanas.
- Eu disse! - exclamou ela, recuando. - Fechem a tampa e deixem-no descansar em paz! - Preparou-se para ir embora, parando no minuto seguinte.
Havia um homem bem-apessoado à sua frente, usando terno. Tinha cabelos loiros, olhos bonitos, sorriso fácil. Só que era um sorriso de longos dentes.
- Venha! - ele chamou, suavemente.
Ragnor saiu do túmulo.
- Venha comigo - o homem repetiu. - Esse homem não sabe o que fazer com uma mulher como você. Posso ensiná-la...
Ragnor deu um passo à frente. Jordan recuou, tampando os ouvidos com as mãos. Sean veio até ela e a aconchegou contra o peito.
- Coisa demais para se presenciar, não é?
- Por favor... vamos terminar e sair daqui depressa.
Mais tarde, ela procurou sanar algumas de suas dúvidas.
- O que vai acontecer quando descobrirem que o túmulo de Steven foi violado?
- À polícia vai ter um belo trabalho - Sean murmurou.
- Não havia tempo para deixarmos tudo em ordem - Ragnor explicou.
- Aqueles jovens... - Jordan mordeu os lábios - eram filhos de alguém.
- Os pais já haviam perdido esses filhos - Sean disse. - Talvez isso a ajude a entender.
Ragnor tocou no ombro dela.
- Você veio munida de água-benta. Isso funciona contra inimigos como esses. Mas seria bom saber que água do mar é mortal.
- Água do mar?
- Isso. Absolutamente mortal. Para todos nós. E Veneza é cheia de canais. Lembre-se disso, se...
Aquele "se" a horrorizou. Descobriu que tinha mais medo por ele do que dele.
Fizeram uma parada para se lavarem em um posto de gasolina na estrada. Chegaram ao aeroporto bem adiantados. Jordan imaginou quem quer que estivesse bancando aquelas passagens devia ter muito dinheiro. Não era qualquer pessoa que conseguia assentos de primeira classe em uma reserva de última hora. Ao embarcar, ela sentiu-se como um deles ao se mover com tanta tranqüilidade, tendo saído recentemente de um cemitério.
Viu-se escolhendo o banco ao lado de Ragnor. Aceitou o champanhe que ofereceram, e abriu uma revista.
Em algum lugar sobre o Atlântico, ela se encolheu, pronta para dormir. Antes de fechar os olhos, voltou-se para Ragnor, estudando suas feições.
- Houve um grande amor em sua vida, Ragnor?
- Sim, há muito tempo... Nari.
Jordan se endireitou na cadeira, sentindo-se uma tola. Mais tarde, sentiu os dedos dele acariciando seus cabelos.
- Será que eu também tive outras vidas? - inquiriu ela com voz sonolenta.
- Nunca pensei no assunto. Por que a dúvida?
- Apenas curiosidade. Andei conversando com a esposa de Sean, e ela me contou que havia conhecido o marido em outras encarnações. Disse que ele já havia sido o grande amor de sua vida muitos anos antes. Além disso, Jade disse que Lucian tem a convicção de ter conhecido Jade em outra vida e com outro corpo.
- Eu também conheci muitas pessoas durante todos os anos de minha existência.
- Você não encontrou o amor da sua vida nessa jornada?
- Não gostaria de tocar nesse assunto. Mas... amei Nari há muitos anos.
Jordan virou o rosto, sentindo-se uma tola.
- Você ainda se encontra com ela em Veneza?
- Sim, para exigir explicações.
- Eu estava certa de que vocês dois... quero dizer, você é como ela. Cheguei a pensar que era um dos seguidores da condessa.
Ragnor a segurou pelo queixo, forçando-a a encará-lo.
- Vou destruí-la - garantiu Ragnor.
- Você pode, de verdade?
- Em um piscar de olhos. Algum dia, eu lhe contarei a razão.
Jordan soube que não tiraria mais nada dele naquele momento. Ajeitou-se na confortável poltrona do avião, tentando cochilar.
Ragnor ajeitou o pequeno travesseiro em seu ombro, pousando a cabeça dela ali. Foi o que bastou para ela cair em um sono profundo. Dormiu até que as luzes da cabine se acenderam e as aeromoças começaram a oferecer o café da manhã, antes de fazerem escala em Roma.
Chegaram a Veneza à tarde. Caminharam para as docas onde os táxis marítimos aguardavam passageiros. Ragnor pediu ao motorista para levá-los para o hospital o mais depressa possível.
Água do mar, ela se lembrou. Água do mar podia destruir as bestas.

Nari sobrevivera naquela noite do incêndio. Nem Edgar fora capaz de cravar-lhe a espada, acabando com ela de vez. Nari implorara pelo perdão de todos.
Lucian e Wulfgar não tinham dado tanta importância, dizendo que, pela lei, não podiam simplesmente lhe cortar a cabeça, ou jogá-la nas chamas, ou mesmo arrancar seu coração.
E assim ela vivera. E passara as semanas seguintes, meses, anos, décadas, tentando provar que tinha aprendido a lealdade, o controle e a moderação. Na época, Ragnor preferia passar seu tempo no Norte do país. Ela, no entanto, não queria nada além de ficar a seu lado.
Guerras começavam e terminavam. O mundo era governado ora por um lorde bondoso, ora por um homem cruel. Quando o rei Filipe da França reuniu seu exército para lutar nas Cruzadas, Ragnor decidiu deixar a ilha, que havia chamado de lar por tantos anos, e partiu para a luta. Nari o encorajara e o acompanhara em algumas batalhas.
Ragnor deslumbrou-se com os lugares diferentes pelos quais passara, França, Espanha e Itália. Este último país o fascinou. Os romanos tinham deixado para trás obras de arte magníficas.
Nari se divertia com o deslumbramento dele, uma vez que estava familiarizada com o país desde os dias do império romano. Foi durante uma das viagens que ela revelou a Ragnor que a viagem era como uma volta para casa, porque viera do Leste europeu quando criança e vivera na Itália durante muitos anos.
Ragnor encantou-se também com os infiéis, achando-os muito cultos, e tão dedicados ao seu deus Alá, como os cristãos ao único e verdadeiro Deus.
No entanto, as areias do deserto eram quentes, a luta brutal, e em tal mundo, lados devem ser tomados. Havia ganhos e perdas, e Ragnor lutava com o ardor de qualquer homem, e matou, pois a morte era o dever de um cavaleiro em batalha. Houve tempos também quando os inimigos negociavam. Ragnor estava sempre junto aos líderes das grandes Cruzadas quando eles se encontravam com os representantes do líder dos árabes, Saladin. As tendas do inimigo eram exóticas e ricas, as cortinas eram excepcionalmente finas.
Durante um desses encontros, conheceu um homem que percebeu ser um de sua própria espécie. Quando as conversas terminaram sem levar a qualquer acordo, os dois se encontraram fora das tendas.
- Vocês, cristãos, vão padecer aqui - o árabe disse a Ragnor, perto dos cavalos, quando se preparavam para montar. - Estou ansioso por esta batalha. Nada como sentir o sabor de um guerreiro santo em luta para desapropriar o meu povo.
- No meu ponto de vista, nada melhor do que o gosto daquele que acredita que é da vontade de seu deus que ele mate e destrua os outros.
- E isso mesmo, para homens como nós, o amor à guerra resume-se ao sabor da batalha. Quer desculpa melhor para o combate do que uma guerra de ideais?
- Sempre haverá guerras com princípios - Ragnor afirmara.
- De fato. Agradeça a Alá e ao seu Deus por isso - respondeu o outro.
O nome dele era Eli Eban, e nas batalhas que se seguiram, ele ganhara respeito até dos guerreiros cristãos.
Uma noite, ao retornar ao local de uma batalha que participara com Nari, Ragnor descobriu que não era o único a voltar ali. O árabe Eli Eban também estava lá, rasgando os corpos dos mortos. Os dois ficaram frente a frente, e Eli percebeu que não travaria uma batalha com alguém de posição mais elevada na hierarquia dos vampiros. Deu um passo atrás, relembrando a Ragnor a lei dos anciãos.
- Aproprie-se dos guerreiros mortos, deixe que os feridos sobrevivam.
Nari presenciou tudo ao lado de Ragnor. Ela não foi tão benevolente, pois fartou-se daqueles que ainda balbuciavam. Em sua concepção, eximia-os de sofrimento, até mesmo encurtando o caminho para o Paraíso.
Aquela foi a noite de amor mais selvagem que vivenciaram.
Na manhã seguinte, Nari tinha ido embora.
Ele a caçou nos meses que se seguiram. E quando a encontrou junto a Eli em uma batalha, roubou-a de volta.
Quando ela chorou desta vez, Ragnor a levou até uma das mais antigas igrejas de uma cidade, e pagou a um sacerdote conhecido para que a enterrasse em um lugar muito fundo e coberto por pedras.
Nari seria sempre uma criança. Sozinha, jamais praticaria atrocidades, que os destruiria aqueles de sua espécie. Entretanto, sempre o trairia se achasse alguém mais interessante.
Ragnor voltaria a vê-la anos mais tarde. Durante esse tempo, ele dividia seus afazeres entre a Inglaterra e a França. Nessa época, era sua companheira, uma jovem condessa francesa, que estava determinada a ajudar seus conterrâneos a escapar de um artefato inventado pelo dr. Joseph Guilhotin. A realeza francesa fazia pouco caso dos humildes, mas a máquina da revolução foi a responsável pela execução de muitos inocentes. Era impossível conter o fluxo da crueldade.
Para Ragnor valia o desafio de tirar das prisões os condenados, para consternação dos poderosos.
Ao entrar na prisão da Bastilha para libertar prisioneiros, Ragnor vira Nari caída no chão de uma cela. Em princípio não a reconhecera, mas uma das prisioneiras contara que a mulher chamava-se condessa Arabella, casada com o cruel lorde d'Argentin, ambos monstros que se divertiam abusando e matando seus criados.
- Eu lhe imploro que me tire daqui - pedira a prisioneira. - A guilhotina será uma bênção, perto do que esta mulher é capaz. Ela ainda está indefesa, porque não se recuperou totalmente, estava muito ferida quando foi capturada,
Ragnor pensou por um momento. Havia ouvido rumores sobre a condessa Arabella, a nobre senhora responsável pelo desaparecimento de tantos jovens criados. Anos se passaram e ele ainda sentia a dor da rejeição. O senso de justiça falou mais alto, levando-o a crer que Nari merecia ser guilhotinada.
- Venha, vamos para a Inglaterra esta noite - ele dissera para a prisioneira.
Nos dias que se seguiram, ele tinha certeza de que sentiria alguma coisa quando a lâmina baixasse, e a existência de Nari terminasse para sempre,
A sensação jamais veio. Anos e anos mais tarde, Ragnor acordou um dia com uma sensação arrasadora. Foi o sinal que lhe indicou que Nari estava de volta.

Ragnor informou na portaria do hospital que Jordan era a parente mais próxima de Jared Riley.
Ele e Lucian precisavam sair, enquanto Sean permaneceria ali com ela. Tocara na cruz que ela usava em torno do pescoço.
- Não perca isso.
- Você é imune a ela, não é? - ela questionou, baixinho.
- Na verdade, sim. Um de meus melhores amigos era um monge, e ele me ensinou muito sobre a sua fé. Mantenha a corrente no pescoço a qualquer custo. Pode ajudá-la a ficar em segurança.
- Isto deteria alguém como Nari?
- Pelo menos retardaria seu ataque.
- Há alguma coisa mais que eu deveria saber?
- Sim. Alguém como Nari não pode entrar em um prédio santo. Se tiver algum problema nas ruas, entre em uma igreja. Felizmente, em Veneza há cerca de duzentas delas.
- Vou me lembrar. - Jordan sorriu.
Ragnor saiu e Sean acompanhou Jordan até o quarto de Jared. Ele lhe disse que ficaria do lado de fora, esperando, caso sua presença fosse necessária.
Jordan soltou um gemido quando abriu a porta e viu o aspecto do primo. Ele estava pálido demais. Recebia uma transfusão de sangue.
- Você voltou.
Cindy estava sentada em uma cadeira no quarto. Não parecia muito melhor que o marido. Pálida demais, cabelos sem brilho, a blusa abotoada errado.
- Estou aqui. Cindy caiu em prantos.
- Oh, Jordan! Tenho certeza de que ele estava tendo um caso com aquela mulher. A condessa. Mas... eu o amo. - Agarrou o braço de Jordan, com os olhos inchados de tanto chorar.
Ela tomara um calmante, Jordan percebeu.
- É aquela condessa. Por culpa dela, Jared está morrendo.
- Não pense isso - Jordan disse, desejando ter toda a certeza que demonstrava.
- Eu chamei a polícia. Eles ficaram de vir aqui e conversar comigo.
Jordan gentilmente largou a mão de Cindy e foi se sentar ao lado do primo.
Ele estava imóvel, então moveu a cabeça, de lado a lado. Os lábios começaram a se mover. Ela se inclinou para acalmá-lo.
- Jared, está tudo bem - ela disse, com os olhos marejados. - Eles estão lhe dando sangue. Isto vai reanimá-lo.
Ela se surpreendeu quando ele a agarrou pelo pulso. Os olhos se voltaram para ela.
- Perdoe-me, Jordan. A polícia... tarde demais para a polícia...
- Não se preocupe, tudo está indo bem.
- Estou morrendo.
- Não está mais.
Cindy o ouvira e se levantara. Jordan deu lugar a Cindy para que ela ficasse ao lado do marido.
- Querido, não ouse morrer, eu te amo, eu te perdôo. Vou fazer com que ela desapareça para sempre...
Jared tinha parado de falar. Jordan olhou ansiosa para os monitores. O pulso dele estava lento demais, embora ainda respirasse.
Ouviu-se uma batida na porta. Jordan se virou e lá estava Roberto Capo. Ficou surpresa ao encontrá-lo vivo, porém mais magro.
- Você está bem, graças a Deus.
- Não me recuperei totalmente...
Ela viu que Sean estava junto à porta, exatamente como prometera.
- Sean, gostaria de lhe apresentar... - ela começou.
- Já nos apresentamos - interrompeu Sean com um aceno de mão.
- Ele é um policial americano - Roberto completou.
- Sim. - Jordan sorriu.
- Nós descobriremos a verdade por detrás da condessa, não é? - Roberto disse.
- Pode contar com isso.
Ele segurou as duas mãos de Jordan por um minuto, então suspirou.
- Vim para conversar com Cindy. Ela me ligou... muito perturbada. Não sabe como, mas pensa que a condessa é a responsável pela doença do signore Jared.
- Graças a Deus veio você, e não Alfredo - Jordan murmurou.
- Alfredo está aqui, também. Na sala de espera. Jordan se voltou para Sean.
- Talvez você pudesse se apresentar para outro italiano. E explicar...
Sean franziu a testa.
- Falar com ele sobre alguns dos assassinatos ocorridos na América.
- Claro. Exceto que...
- Alfredo fala inglês muito bem.
- Então eu vou - concordou Sean, mostrando-se aliviado por não existir a barreira da língua.
- Obrigada - Jordan murmurou. Sean seguiu para a sala de espera.
- Roberto, talvez você pudesse falar com Cindy aqui, longe de Alfredo. Ela está sob o efeito de sedativos, talvez o que diga não faça muito sentido.
- Claro.
Jordan voltou para dentro do quarto.
- Cindy, Roberto está aqui. Ela levantou-se em um ímpeto.
- Vou contar tudo a ele. Alguém precisa prender essa mulher!
Quando Cindy saiu do quarto com Roberto, Jordan sentou-se junto ao doente.
Jordan olhou para Jared. Sean estava ali, falando com Alfredo.
Não morra, por favor! Sei que você não é mau, mas estava sob a influência de Um monstro. Lembre-se de que não está sozinho, pensou ao acariciar o rosto do primo e surpreendeu-se ao notar que a cor, aos poucos, lhe voltara às faces.
A porta se abriu em um repente.
- Cindy ficou... louca. Fugiu daqui... tenho de ir atrás dela - noticiou Roberto.
Correu atrás de Roberto, chegaram ao hall e aos elevadores. Cindy descia em um deles, e o elevador demoraria a subir de volta. Ela e Roberto preferiram então descer pelas escadas.
- Veja, lá está ela - Jordan gritou.
Cindy corria em direção das docas. Pulou para dentro do primeiro táxi marítimo que viu.
- Pare! - Roberto gritou. Tarde demais, a lancha partira.
- Temos de segui-la! - Jordan disse, agarrando a mão de Roberto.
Eles correram pra as docas. Roberto foi exibindo o distintivo a todos, abrindo caminho, passando à frente de turistas que iam tomar a embarcação seguinte. O táxi deles seguiu de perto o de Cindy. Viram quando ela parou e desceu em uma das docas.
- Onde ela está indo? - Jordan murmurou.
- Conheço aquele lugar... fica perto da cantina. Ela está indo àquela igreja - Roberto disse.
Jordan lembrou-se de algo importante que ouvira fazia pouco tempo: Não confie em ninguém.
O taxi marítimo parou nas docas. Enquanto Roberto falava com o motorista em italiano, Jordan saiu correndo. Passou por uma praça, entrou na estreita viela, observando os prédios à sua volta. Viu uma flecha indicando a esquina à esquerda com as palavras Campo di Fratelli. Isso devia significar uma praça com uma igreja. Seguiu o sinal e suspirou aliviada quando notou que passava por um restaurante com mesas na calçada onde umas poucas pessoas bebiam.
Havia uma garrafa de vinho em uma das mesas bem junto à rua. Ela a tirou da mesa, jogou fora o vinho e correu para uma igreja, que havia na praça, rezando para que ninguém a tivesse visto. Pessoas oravam diante de um pequeno altar. Uma ou duas levantaram a cabeça.
Jordan olhou em volta em busca da urna com água-benta, encontrou-a e encheu sua garrafa. Saiu da igreja tão depressa, que deu de encontro com um homem. Começou a pedir desculpas, depois começou. Raphael.
- Jordan! Ouvi dizer que havia deixado a Itália. Contaram-me que seu primo está doente. Lamento muito...
- Está tudo bem. Preciso de sua ajuda. Cindy está em perigo - contou ela, agarrando o braço do amigo.
- Raphael, - existem vampiros, e eu não estou louca. A condessa faz parte desse horrível grupo de sugadores de sangue, e temo que mesmo os policiais estejam envolvidos nisso. Vamos!
- Onde?
- Àquela igreja abandonada. Por favor, me ajude!
Ele soltou um suspiro profundo, mas permitiu que ela o levasse junto.
- Esta rua é mais curta - ele informou.
- Não... eu preciso... primeiro...
- O quê?
Ela viu uma pequena lata de lixo à porta de um prédio de escritórios.
- Isso vai ter de servir. Preciso de água, água do canal.
- Jordan, por favor. Deixe que eu lhe compro uma bebida...
- Preciso de água do canal. Segure isto! - Ela lhe estendeu a água-benta, esvaziou a pequena lixeira e a encheu com água do canal.
Não era fácil correr segurando um balde por menor que fosse, cheio de água. Movia-se ò mais rápido que podia. Raphael a seguia.
Quando chegaram à outra igreja, ela hesitou à porta. A construção estava circundada por uma nuvem cinzenta. Jordan sentiu uma brisa fraca e muito fria varrer-lhe o corpo. Fechou os olhos, e imaginou o som daquele farfalhar já tão conhecido.
Asas na escuridão.
Tinha certeza de que Cindy estava lá dentro. Subiu os degraus com cautela, Raphael a seguia de perto.
Não havia velas acesas dentro da igreja, apenas a escuridão. Subitamente, uma luz brilhou atrás dela, iluminando a nave central.
- Você carrega um balde com água fria, eu estou melhor preparado, com algo útil... como um lanterna - Raphael constatou.
- Ótimo. Ilumine a frente.
E foi o que ele fez. No mesmo instante Jordan viu um caixão junto ao altar. Aproximou-se e olhou para dentro. Prendeu a respiração e arregalou os olhos ao ver Cindy deitada ali.
Teve medo de tocá-la e ver sua cabeça já tinha sido decepada...
- Ela está respirando! - exclamou ao notar o suave subir e descer do peito de Cindy.
- Temos de tirá-la daqui.
Mas antes que um deles pudesse se mover, ouviu-se uma voz vinda da entrada.
- Aí está você! - Era Roberto Capo. E ele estava muito irritado.
Jordan pegou a garrafa com água-benta que Raphael segurava. Quando Roberto se aproximou, ela jogou água em cima dele.
Ele parou, surpreso, e limpou o rosto. Praguejou algo que terminou com essa americana.
- Roberto, me desculpe. Pensei que...
Sentiu um frio nos ossos, pressentiu que eram observados. Virou-se lentamente para Raphael e não pensou duas vezes antes de jogar água nele também.
- Jordan! - reclamou ele, indignado, secando o rosto.
- Isto é loucura e tem de parar! - Roberto disse com firmeza. Enfiou a mão no bolso. Por um momento, Jordan pensou que ele ia sacar uma arma. Era apenas o celular.
- Vou chamar a central. Vocês são todos uns...
- Veja, por favor! Cindy está no caixão - Jordan gritou.
- Vou pedir reforços - Roberto repetiu, abrindo o celular.
Antes que ele pudesse digitar o número, um ruído ensurdecedor de asas batendo, a mesma aterrorizante cacofonia que Jordan já havia ouvido antes, só muito mais alto os fez levar as mãos aos ouvidos. Mesmo no escuro, foi possível sentir a proximidade de milhões de seres.
- Morcegos! - Roberto exclamou, soltando o telefone, que caiu com o visor virado para a porta de entrada.
O facho de luz bateu em uma figura caminhando em direção a eles. Nari, a condessa della Trieste, vinha entrando com passos lentos, usando uma capa negra de Carnaval, o cabelo solto, um sorriso de bom humor no rosto. Parou a alguns passos deles.
- Homem tolo, tolo! Como se a polícia pudesse ir contra a mim. - Quando ela alcançou Roberto, fez um simples gesto que o arremessou para o outro lado da igreja, batendo contra um dos pilares.
- Você, você, você... - Raphael gaguejou.
- O gato comeu a sua língua? Ou só a parte do seu cérebro que processa palavras em inglês?
Raphael ficou petrificado. Estendeu a mão para Jordan querendo a água-benta. Nervoso demais, acabou por derrubar a garrafa, espalhando a água pelo chão.
- Que bondade a sua! - clamou ela depois de gargalhar. Em seguida, deu um passo em direção a Raphael. Sem o mínimo esforço, empurrou-o para longe. Jordan o viu quando ele tentou levantar a cabeça, e sem sucesso, tombou-a de novo.
- Oh, querida, minha bela Jordan! Finalmente chegou o nosso dia de acerto de contas.
- Sua miserável! - Jordan tinha ainda uma arma final, o balde com água do mar.
- Sou Diana, a deusa da caça! E você, querida menina, é a presa. - Ergueu os braços. O farfalhar de asas recomeçou e uma massa negra foi descendo aos poucos. Antes mesmo de chegaram ao chão, foram tomando formas e postando-se ao redor de Jordan.
As figuras vestiam máscaras de Carnaval e longas capas pretas. Algumas das máscaras não tinham expressão, outras eram típicas do Dia das Bruxas... bruxas, alienígenas, e monstros.
Jordan girava sobre os calcanhares para olhar cada um deles. O círculo foi se fechando. A distância diminuindo...
Ela esperou que estivessem bem perto para levantar o balde e jogar a água. Para sua surpresa, a criatura com cara de monstro, a mais atingida, começou a gritar em desespero. Silenciou apenas quando principiou a derreter, emitindo, um som horripilante.
Os outros observavam atentos à criatura desfalecer até transformar-se em um lodo negro
Todas à sua volta o processo degradante.
Os olhos dos monstros, e os da condessa se voltaram para Jordan. Ela viu surpresa neles, e então raiva.
- Peguem-na! - a condessa ordenou. O grupo hesitou.
- Peguem-na!
Jordan começou a jogar a água novamente, infelizmente não havia o suficiente. As criaturas gritavam e se debatiam quando atingidas pelas gotas, porém não paravam de se movimentar.
De repente, todos tiraram as máscaras. Eram pessoas idosas, jovens, homens, mulheres. Isto é, não podiam ser pessoas. Todos sorriam para ela, mas um riso de ódio, grunhindo, rugindo a cada passo dado.
Jordan defendeu-se jogando o restante da água para a frente. Outra criatura caiu. Infelizmente, eram muitos para se abater.
Ela berrou quando as mãos pegajosas a tocaram. Esperou pela dor lancinante dos caninos se enterrando em sua pele. Nenhum deles a mordeu. Alguns a ergueram, colocando-a sobre o altar. Gritou, chutou, esperneou, de nada adiantou, logo se viu amarrada e colocada dentro de um caixão. Então, para sua surpresa, as criaturas se afastaram.
A condessa me fará de banquete, pensou.
Nari apenas se aproximou do altar, ficando parada em frente ao caixão onde Cindy estava adormecida, alheia a tudo.
Então, virando a cabeça, Jordan o viu.
O dottore. O homem que a tinha aparecido por toda Veneza. Aquele que seguira e fora seguida.
Bem devagar, ele foi se aproximando de onde elas estavam. Jordan sentiu um frio mórbido, algo que nunca havia sentido antes. Era uma sensação que lhe parecia escorrer sob a pele, uma espécie de medo que superava o mais profundo terror da morte.
Ele se aproximava, cada vez mais perto... Trazia consigo o frio da escuridão, a assombração das tumbas, o pretume...
O Mal.
Ele empurrou Nari para o lado e foi até Jordan. Estendeu as mãos enluvadas e tocou-a no rosto. Ela recuou, perplexa. Se possível, teria gritado de revolta, emitindo o som do mais profundo dos horrores, existentes em sua alma, porém nada se ouviu.
- Como vai, Jordan? - cumprimentou ele, tirando a máscara de dottore.
Ela arregalou os olhos. Por um breve momento, o espanto foi tamanho que chegou a substituir o medo.
- Steven...
Sim, era ele, e ao mesmo tempo, não era o mesmo homem que conhecera. Seu noivo havia sido bondoso, as feições tinham vida e cor e...
A criatura à sua frente sustentava olhos de um brilho vermelho, o rosto tenso, e a boca curvada em um sorriso cáustico e cruel.
- Em carne e osso.
- Impossível. Eu... nós... eles...
- Vocês profanaram o meu túmulo, e lá estava eu. Ora, ora! Quanta ingenuidade. Era outro corpo, queimado, passando-se pelo meu.
- Eu... não! - ela murmurou. - Você era... um policial! Tinha compaixão pelos outros...
- Eu era bom? Nada disso. Saiba que eu estava entediado, e temia que desconfiassem de minhas andanças pela Europa. Não queria ser notado. Ah, sim, existiu um Steven Moore. E ele era um sujeito decente, como se pode dizer. Gostei muito dele e de sua família correta, muito mesmo. Tomei o nome dele e fui para Nova Orleans. E conheci você. Tanta paixão e amor pela vida e humanidade, tudo em um pequeno e perfeito pacote. Claro, acabei me envolvendo demais, e... Enfim, tudo é bom quando termina bem, certo?
- E agora, qual será o fim, Steven? - ela perguntou, friamente, ciente de que não poderia vencê-lo. Somente odiá-lo.
- Acaba do único modo possível, claro. Você vai se juntar a nós. A nós! A verdadeira força em nossa espécie. Você se tornará a mais forte caçadora. Vai se unir a mim agora. Ah, Jordan, lembra-se como era? Vai ser melhor. Sua tola! Caindo na conversa desses meus patéticos inimigos! Eles não são nada diante do tipo de banquete, da fartura e excitação que posso proporcionar. Nós somos os mestres. Os predadores. Certa vez, me trancaram em um caixão de aço de aço na Iugoslávia por um bom tempo. Houve um terremoto. As pessoas bondosas vieram me salvar. Eu estava faminto. Meus salvadores se tornaram uma refeição divina.
Steven soltou uma gargalhada.
- Eu andei, encontrei mais uma vez a querida Nari... e conheci você. Foi tudo tão fácil. Nari ficou com Jared. Jared quase matou Cindy. E apesar de que você me escapou na festa, em seu quarto e nas ruas, não terá o mesmo sucesso desta vez. Tenho sentido a sua falta, meu amor, e agora... agora estamos juntos.
Steven começou a se inclinar, terno como o amante que fora um dia. Contrário às boas lembranças, ele estava escancarada. Os caninos protuberantes pingavam saliva. Eram imensos, longos e muito afiados.
Jordan fechou os olhos, rangeu os dentes, esperando, rezando...
Ele soltou um som de surpresa, recuando de uma hora para outra. Jordan arregalou os olhos.
Uma mancha negra desceu do alto da cúpula da igreja. Uma sombra de asas enormes e ameaçadoras, que deixava a impressão de cobrir toda a igreja.
Ragnor.
Ele arrancou Steven de cima de Jordan e ficaram frente a frente.
- Afaste-se dela - Ragnor ordenou.
- Você estava certo. É Steven. - Jordan conseguiu dizer.
- Nada disso. Hagan, saia de perto dela. Steven riu.
- Não sabia que era eu, não é? Tornei-me perigoso demais, e você não consegue mais entrar em minha mente. Pensou que eu estivesse enterrado desde a última vez que lutamos? Não, venho bebendo muito sangue. Sou detentor de um poder que nem você consegue imaginar.
- Estou lhe dizendo pela última vez... afaste-se desta mulher.
- Não, irmão, ela é minha. Sempre consegui tirar suas mulheres, não é?
- Como assim? Ele é seu irmão, Ragnor? - Jordan tentou desatar os nós das amarras que a prendiam ao altar enquanto os dois homens se moviam um na direção do outro.
- Meio-irmão - Ragnor respondeu. - Eu devia ter sabido. Ele passou os últimos mil anos tentando me destruir.
- Ela não tem interesse algum em você, irmão. Ouça o que estou dizendo e repito: Sempre roubei suas mulheres.
- Está se referindo a Nari? Ela não vale nada. Mas esta mulher? Não, jamais ficará com ela.
Ragnor sorriu para Jordan. Ela sentiu uma onda de confiança e fé envolvê-la como um manto de carinho.
Viu Ragnor se voltar para Hagan, o homem que ela conhecera como Steven.
- Você passou sua existência tendo ciúmes de mim. Desta vez, vou não vou mandá-lo para Valhala, mas para o Inferno.
Hagan riu da ameaça. O irmão não se perturbou.
- As velhas leis foram desrespeitadas demais. Você vai passar por sua segunda morte, e tudo estará terminado.
Inesperadamente, Hagan agarrou Jordan com tanta força que as amarras se soltaram, queimando-lhe a pele. Ele a ergueu pelo cabelo. Jordan sentiu o calor daquela respiração nojenta. Os dentes dele estavam abaixando.
- Quero que veja, irmão, enquanto eu a tomo para mim... para toda a eternidade.
Jordan viu, no chão perto dela, uma pequenina poça de água-benta que havia caído antes.
Retorcendo-se, disfarçando, abaixou-se e tocou na água. Não havia o suficiente! Ainda assim, quando ele se inclinou, ela lhe jogou as pequenas gotas nos olhos.
Ele rugiu de dor. Jordan se viu livre e correu direto para os braços de Ragnor. Seus olhares se encontraram e ele a moveu para o lado.
Pressentindo o ataque, Hagan voou para o teto da igreja, apoiando-se em um nicho. Ragnor o seguiu. Depois de um grunhido agudo, Nari também levantou voo. Ragnor a abateu com facilidade.
Uma horda de criaturas surgia de todos os cantos da igreja. De onde estava, Hagan gritou ordens:
- Peguem-no, matem-no, seus idiotas. Estou meio cego. Quando os seguidores de Hagan vieram para capturá-lo,
Ragnor os agarrou um por um, pelas cabeças, pelos ombros... E os fez em pedaços.
Uma das criaturas veio por trás, sorrateira, mas não chegou a tocá-lo. Lucian surgiu da mesma forma inesperada que os inimigos, brandindo a espada, trucidando aquele que ameaçava Ragnor.
Outros começaram a aparecer. Jordan recuou, receosa, pois a antiga igreja estava infestada de morcegos.
Morcegos, asas, ruídos, sussurros... Em princípio um farfalhar, depois um zunido atemorizante. A porta da igreja foi subitamente aberta.
Sean Canady entrou com vidros de água-benta presos ao peito, uma espada na bainha presa à cintura, baldes cheios de água em ambas as mãos. Perfazendo uma meia volta com o braço, jogou água-benta em praticamente todas as direções.
Gritos de agonia ecoavam tão alto que Jordan cobriu os ouvidos e começou a rezar. Olhou quando um dos inimigos vinha em sua direção. Disparou em direção a Sean, arrancando um dos tubos de água.
Correu para Sean, pegou um vidro com água-benta e jogou em quem a atacava. Observou, admirada, quando a criatura encolhia e se decompunha. O barulho subitamente cessou.
O chão estava coberto de seres sem vida.
A estrutura da igreja voltou a vibrar, quando Jordan olhou para cima. Ragnor e o irmão, batiam as imensas asas, voando em círculos, prontos para o confronto final. Sean adiantou-se para a frente.
Lucian surgiu ao seu lado, segurando seu braço.
- Não. Ragnor tem de terminar com isto sozinho.
As sombras desceram ao chão. Os dois homens encaravam-se furiosos.
- Quem quer viver para sempre? - Ragnor perguntou.
Hagan rugiu alto e atacou. Foi um erro porque o irmão estava alerta, pegou-o pela cabeça e a esmagou contra a parede. Ouviu-se um som horrível.
Ragnor segurava apenas ossos, que também não duraram muito em suas mãos, transformando-se em cinzas.
Jordan notou um movimento sutil na lateral da igreja. Ao voltar-se e viu Nari, pronta para escapar. Correu para alcançá-la e ofegante, parou um pouco antes da porta. Só então percebeu que não tinha armas.
Ragnor descia pela nave central quando Nari gritou:
- Não pode ter se esquecido do que fomos um para o outro.
- O tempo, minha querida, faz maravilhas. Isso sem contar que você me traiu com meu irmão, entre outros. Não suficiente, tentou me capturar em uma emboscada, com a clara intenção de me tirar a vida.
- Ragnor.
- Nossa história, Nari, foi permeada por suas traições.
Ela estreitou a distância que os separava, colocando-se bem à sua frente, fitando-o intensamente.
- Ragnor, querido... - A condessa forçou uma voz sensual e espalmou as mãos sobre o peito largo.
Ele levantou o braço e a cobriu com sua capa de Carnaval. Os outros presentes usavam o mesmo tipo de casaco. Quando abaixou o braço e o abriu como em um passe de mágica, uma pilha de cinzas se formou no chão. Ragnor se voltou para Lucian.
- Está terminado - sentenciou. Lucian concordou.
- Eu lidarei com a polícia daqui - Sean garantiu, apontando para Roberto ainda caído no chão, e voltando a si aos poucos.
Ragnor inclinou a cabeça, concordando. Seu olhar continuava fixo à frente. Ao se aproximar de Jordan estendeu-lhe a mão. Para aceitá-la ela tinha de dar um passo a frente.
- Você é única.
- É mesmo?
- Muito diferente do que qualquer espécime que já encontrei. Aceita a minha mão?
- Aonde iremos?
- Veremos depois. Mas você queria a verdade. Exigiu confissões. Agora posso contar tudo e sanar todas as suas dúvidas.
- Ao menos será um relato interessante. - Jordan inclinou a cabeça e sorriu.
- Pretendo esgotá-la com minhas histórias.
Jordan sorriu e estendeu a mão, antes de puxá-la de volta para cobrir a boca.
- Esquecemos de Cindy!
- Eu a levarei para o hospital - Lucian assegurou.
- E Raphael, ele deve estar machucado...
- Iremos todos ao hospital - continuou Lucian, erguendo os ombros.
- Bem? - Ragnor ofereceu a mão novamente, que ela aceitou em seguida.
- Só espero que não fale a noite inteira, meu querido viking.
Saíram juntos da igreja.
Ragnor poderia falar o quanto quisesse, pois Jordan desejava esmiuçar todo o ocorrido. Demandaria todas as explicações possíveis.
Porém...
Só o tempo sabia as respostas...

 

 

                                                   Shannon Drake         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

                                                  

O melhor da literatura para todos os gostos e idades