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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ANNA E O PLANETA / Jostein Gaarder
ANNA E O PLANETA / Jostein Gaarder

 

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

style="text-align: justify;">Até onde chegava a memória, ela se lembrava das famílias da aldeia indo de trenó para o alto da montanha na véspera do Ano-Novo. Os cavalos estavam escovados e enfeitados e sinos e tochas colocados nos trenós clareavam a noite. Houve anos em que um trator teve que abrir caminho para que os cavalos não ficassem atolados na neve alta e fofa. Mas eles costumavam passar a virada nas montanhas, e não iam para lá esquiando, mas em trenós puxados por cavalos. Mesmo diante de toda a mágica do Natal, aquele passeio de trenó era o verdadeiro encantamento do inverno.
Na noite de Ano-Novo, tudo era diferente. Crianças e adultos se juntavam num burburinho frenético. Aquele dia virava as famílias de cabeça para baixo. Em uma única noite, elas se despediam do velho e davam boas-vindas ao novo. Rompiam uma fronteira invisível que separava o que tinha sido do que estava por vir. Feliz Ano-Novo! E obrigado por tudo o que passou!
Anna adorava tanto aquele momento que não conseguia decidir do que mais gostava: se ir lá para o alto festejar o finzinho do ano ou curtir o que chegava enroladinha numa manta de lã com a mãe e o pai ou num abraço gostoso com algum vizinho.
Mas na virada do ano em que Anna completou dez anos, a neve não caiu, nem no alto da montanha nem nas planícies abaixo. O frio já tinha tomado conta da paisagem havia tempo, mas, exceto por uma ou outra geada, não havia neve. A montanha estava lá, vergonhosamente nua sob o céu azul, despida do manto branco com que se cobria no inverno.
Os adultos balbuciavam algo sobre “aquecimento global” e “mudanças climáticas”, e Anna refletia sobre aquelas expressões. Pela primeira vez na vida teve a sensação de que o mundo estava uma confusão.
Mas era véspera de Ano-Novo, hora de subir a montanha, e aquele ano a única maneira de fazer aquilo era rebocado por um trator. As tradicionais visitas de ano-bom teriam que ocorrer enquanto ainda estava claro, pois sem a neve a noite era tão escura que não se via um palmo à frente do nariz. Nem as tochas seriam suficientes, e colocá-las no trator ou no reboque seria uma péssima ideia.

 


 


Bem cedo, cinco tratores partiram serpenteando pelo bosque de bétulas a caminho das montanhas, carregados de bebidas e comidas gostosas. Com ou sem neve, haveria um brinde ao novo ano, talvez até algumas brincadeiras no terreno congelado.

Só que a falta de neve não era o único assunto do momento. Entre o Natal e o Réveillon, algumas pessoas avistaram renas selvagens rondando as fazendas e até brincaram que Papai Noel tinha deixado algumas para trás depois de distribuir os presentes.

Anna percebeu que a aparição das renas era assustadora e preocupante. Elas eram selvagens e nunca tinham se aproximado de áreas urbanas. Numa fazenda, tentaram dar comida a uma rena assustada, e aquilo até virou manchete de jornal:

 

RENA SELVAGEM INVADE ALDEIAS NAS MONTANHAS

 

Um cortejo de tratores com reboques partiu a caminho das montanhas no último dia de dezembro. No primeiro reboque iam Anna e mais algumas crianças. Quanto mais subiam, mais vitrificada parecia a paisagem. Devia ter chovido pouco antes de a temperatura cair abaixo de zero e congelar tudo.

Ao avistar a carcaça de um animal ao lado da pista, os tratores pararam. Era uma rena congelada. Alguém explicou que devia ter morrido de fome.

Anna não entendeu direito. Pouco tempo depois, chegaram ao alto da montanha e ela pôde ver que toda a paisagem estava congelada. Não era possível arrancar nem uma pedrinha ou uma folhinha de grama da carapaça de gelo.

Ao passar pelo lago Brea, os cinco tratores pararam novamente, desligando os motores. Foi decidido que o gelo era seguro, e tanto adultos quanto crianças foram conferir de perto. Uma alegria foi tomando conta de cada um que enxergava as trutas nadando sob a camada de água congelada.

Não demorou para um monte de gente começar a jogar hóquei e andar de trenó, mas Anna preferiu caminhar sozinha pela margem do lago, examinando o líquen congelado.

Sob uma fina camada de gelo ela viu um pouco de musgo, algumas urzes e plantas com folhas vermelhas como brasas. Era uma visão bonita, quase como se ela estivesse diante de um mundo mais nobre e mais delicado do que aquele. Mas não tardou para que se deparasse com um camundongo morto... e outro logo adiante. Sob uma bétula ela descobriu um cadáver de um lemingue, outro pequeno roedor. De repente, aquele gostinho de aventura chegou ao fim. Ela tinha aprendido que camundongos e lemingues passavam o inverno sob os arbustos e a vegetação rasteira, debaixo do manto macio de neve que cobria as montanhas. Agora que não havia mais neve, era difícil para eles sobreviver.

Anna também percebeu por que as renas tinham sido forçadas a ir para terras mais baixas. Não tinha nada a ver com Papai Noel.


SEIS ANOS DEPOIS...

 


O dr. Benjamin

 


Anna estava sentada ao lado dos pais na velha sala de estar revestida de madeira. A noite caíra havia horas, e seu pai já tratara de acender a lareira e todas as velas da casa. Era dia 10 de dezembro, e faltavam apenas duas noites para ela completar dezesseis anos.

Seus pais estavam deitados no sofá, vendo um filme sobre as grandes navegações pelo Oceano Pacífico na TV. Ou seria um documentário sobre um dos lendários capitães de embarcações do século XVIII? Anna não tinha certeza, não estava prestando atenção.

Estava sentada diante da mesa lançando olhares para as imagens do Pacífico que rebrilhavam na tela. Recortava uma pilha de jornais com uma grande tesoura.

Em agosto, Anna começara o ensino médio e, poucos dias depois, conhecera Jonas, que estava um ano à sua frente. Eles logo se tornaram bons amigos e chegaram a brincar que eram namorados, mas com o tempo se descobriram apaixonados de verdade.

Anna pôs uma grande xícara de chá sobre os recortes de jornal e sorriu. A vida podia trazer grandes reviravoltas!

Para aquilo pelo menos ela estava bem preparada. Naquele dia, tinha ganhado o velho anel que pertencera à tia de sua avó, Sunniva. Ela sabia havia muito tempo que ia herdá-lo quando fizesse dezesseis anos. O presente já fora entregue porque a mãe de Anna ia viajar cedo no dia seguinte para uma conferência. A família se reuniu para o jantar e de sobremesa comeu um bolo de marzipã com uma rosa vermelha na cobertura que a mãe de Anna comprara na confeitaria. Assim que terminaram a refeição, Anna abriu o embrulho e tirou o anel de rubi da caixa velha. Anna passou o resto da noite com a joia enfiada no dedo, admirando-a cinco ou seis vezes por minuto enquanto recortava os jornais.

O anel tinha mais de um século, talvez até muito mais que isso. Aquela joia ancestral estava ligada a uma série de histórias incríveis.

Anna também ganhara de presente o celular que tanto desejara. Embora fosse um celular daqueles, tinha quase sido deixado de lado diante do anel. Mas era incrível ter acesso ao vasto mundo da internet com apenas um toque.

Mas o mais incrível que acontecera naquele ano tinha sido a viagem para Oslo, em meados de outubro, embora a história tenha começado um pouco antes.

Desde pequena, Anna costumava ouvir que tinha uma imaginação muito fértil.

Quando perguntavam no que estava pensando, ela contava muitas histórias, e todos achavam aquilo encantador. Foi durante a primavera que começaram a surgir histórias que Anna sentia que eram verdadeiras. Ela achava que tinham mesmo acontecido com ela, talvez em outro tempo, ou até mesmo em outra realidade.

Então Anna resolveu conversar com uma psicóloga, e as sessões avançaram outono adentro. Por fim, a mulher achou melhor que ela fosse consultar um psiquiatra em Oslo.

Anna não rejeitou a ideia nem achou que era algo de que devia se envergonhar; parecia até uma honra ser examinada por um psiquiatra.

Mas ela exigiu viajar sem os pais, e Jonas se ofereceu para acompanhá-la. Sua mãe e seu pai, entretanto, bateram o pé e decidiram que um dos dois teria que ir junto. O combinado foi que ela viajaria com Jonas, mas sua mãe iria também, em outra cabine do trem.

No início da tarde, os três já estavam no hospital onde Anna tinha uma consulta marcada. Nem a mãe nem Jonas, porém, puderam entrar no consultório, e Anna percebeu que sua mãe reagiu como se tivesse sofrido uma derrota. Ela queria estar junto da filha enquanto sua alma era desvendada, mas tinha que se contentar em ficar na sala de espera com Jonas.

Anna simpatizou com o dr. Benjamin. Ele era um senhor de cinquenta ou sessenta anos, com cabelo grisalho comprido preso num rabo de cavalo. Usava um único e minúsculo brinco de estrela violeta, e guardava uma caneta vermelha no bolso da jaqueta preta. Tinha um brilho nos olhos curioso e pareceu muito interessado enquanto conversavam.

A garota ainda se lembrava da primeira coisa que o psiquiatra dissera assim que fechara a porta do consultório: que aquele era o dia de sorte de ambos, porque a consulta seguinte tinha sido cancelada, e os dois poderiam passar mais tempo conversando.

O sol banhava a sala pintada de branco, e Anna admirou as folhas amarelas e vermelhas que coloriam as árvores no outono. Até conseguiu avistar um esquilo subindo e descendo de um pinheiro.

— Sciurus vulgaris — ela disse. — O esquilo comum. Já não são tão comuns na Inglaterra. Ele vem perdendo espaço para o esquilo-cinzento, que é norte-americano.

O psiquiatra arregalou os olhos, e Anna achou que talvez estivesse impressionado com seu conhecimento sobre a natureza. Quando ele se virou para olhar para o esquilo, ela notou a foto de uma linda mulher num porta-retratos vermelho em cima da escrivaninha. Uma filha ou a esposa? Anna quis perguntar, mas no instante seguinte o dr. Benjamin se virou e encobriu a imagem. Ela resolveu deixar para lá.

Anna ficou imaginando como seria ser submetida a um exame psiquiátrico. Não era nada fácil imaginar como um médico espiaria dentro da cabeça dela, mas supôs que a primeira coisa que faria seria examinar seus olhos com um instrumento óptico especial.

Afinal, os olhos não são o espelho da alma? Também achava que ele tentaria enxergar dentro de sua cabeça através das orelhas, do nariz ou da boca, porque, diferentemente de um psicólogo, o psiquiatra era um médico de formação. Ela não tinha certeza se deveria dar crédito às fantasias que iam se apossando de sua mente como pequenos trechos de filmes, mas realmente estava com medo de que ele a hipnotizasse e a forçasse a revelar todos os seus segredos. Torcia para que não fizesse isso, pois não gostava da ideia de perder o controle sobre si mesma. Se o psiquiatra queria saber de suas intimidades, teria que lançar mão de outros recursos.

Mas eles apenas conversaram! O dr. Benjamin lhe fez várias perguntas interessantes, e a conversa foi ficando tão animada que Anna até se permitiu perguntar algumas coisas. Como um psiquiatra se sentia? Ele mesmo não tinha algumas histórias engraçadas para compartilhar? Também não sonhava que era outra pessoa? Tinha a sensação de ser uma espécie de clarividente?

Depois de uma longa pausa, o dr. Benjamin resumiu a conversa.

— Anna — ele disse —, não vejo nenhum indício de que você esteja doente. Tem uma imaginação fora do comum e uma maneira peculiar de se colocar em situações pelas quais não passou. Você pode achar isso um pouco cansativo às vezes, mas é normal.

Anna concordava. Tinha certeza de que não estava maluca. Ainda bem que não tinha perdido a capacidade de acreditar nas próprias fantasias de vez em quando, pensou.

Ela contou que tinha a sensação de que seus pensamentos a invadiam, em vez de surgir dentro da sua cabeça.

O médico ficou sentado, assentindo.

— Acho que sei como é — ele disse. — Tem uma imaginação tão vertiginosa que as coisas parecem desmoronar sobre você, que até duvida que façam algum sentido. Mas a imaginação é uma característica humana. Todos a temos, em maior ou menor grau.

Todos temos uma vida nos sonhos. Só que no dia seguinte nem todos conseguem se lembrar do que sonharam. É aí que reside seu dom muito raro. Você carrega consigo os sonhos da noite anterior...

Anna fora um tanto cautelosa ao colocar todas as cartas sobre a mesa.

— Ao mesmo tempo, tenho a sensação de que esses sonhos vêm de outra realidade, ou de outra época.

O psiquiatra voltou a assentir.

— A capacidade de acreditar também é um traço muito arraigado na nossa natureza.

Os homens, em todas as épocas, contataram forças sobrenaturais, como deuses, anjos ou seres ancestrais. Alguns até afirmam que viram esses seres, ou os conheceram. Para algumas pessoas, essa crença se manifesta de maneira mais intensa do que para outras.

É exatamente como as demais diferenças entre as pessoas. Alguns são ótimos no xadrez, outros fazendo cálculos de cabeça. Outros sabem usar a imaginação ou acreditam intensamente. Nesse último caso, talvez Anna Nyrud se destaque dos demais.

Ela observou novamente a luz do sol que brincava com o colorido das folhas lá fora.

— No entanto, se você achasse que as abelhas e os besouros do seu jardim são controlados pela CIA e estão espionando você, então eu diria que tem um grave distúrbio mental.

Ela o interrompeu: — Como você sabe que tem um jardim onde eu moro?

— Você disse à sua psicóloga que não queria encontrar uma rena em seu jardim.

Anna riu.

— Gosto muito do meu jardim. E das abelhas...

— Ah, é?

— Elas são parte da natureza, assim como você e eu. E é claro que não são controladas pela CIA. São controladas pelos próprios genes. Acho que são uma espécie de representantes da Mãe Natureza.

— Exatamente — disse o médico. — E isso não pode ser considerado uma ideia extravagante, ou, como dizemos no jargão médico, uma “ideação delirante”.

Ele espiava a tela do computador de vez em quando, enquanto conversavam. Anna se deu conta de que o psiquiatra estava consultando o relatório que a psicóloga lhe enviara.

— Você tem medo de alguma coisa, Anna? — dr. Benjamin perguntou.

Ela respondeu de bate-pronto: — Aquecimento global.

O fleumático psiquiatra era um médico experiente e foi a primeira vez que pareceu surpreso diante da fala de Anna.

— O que foi que você disse? — ele perguntou.

— Disse que tenho medo do aquecimento global, da mudança climática causada pelo homem. Tenho medo de que estejamos colocando o meio ambiente em jogo sem a mínima consideração pelos que virão depois de nós.

O psiquiatra levou alguns segundos para responder.

— Esse é um medo real que infelizmente não posso tirar dos seus ombros. Se dissesse que tem medo de aranhas, seria diferente. Em circunstâncias assim falamos em “fobia”, e pode até ser o caso de algum tipo de tratamento, como uma exposição gradual àquilo que o paciente tem medo. Mas não há como tratar um paciente preocupado com o aquecimento global.

Anna encarou o dr. Benjamin e deu uma olhada em seu brinco.

— Você tem ideia de quantos bilhões de toneladas de dióxido de carbono a humanidade lançou na atmosfera somente nos últimos dez anos?

Para grande surpresa de Anna, o psiquiatra respondeu sem titubear: — Sei que hoje há cerca de quarenta por cento mais dióxido de carbono na atmosfera do que quando começamos a queimar petróleo, carvão e gás, derrubar florestas e cultivar a terra de forma intensiva. Há mais de seiscentos mil anos o nível de dióxido de carbono não era tão alto, e a razão da mudança são as emissões realizadas pelo homem.

Ela ficou impressionada. Não eram muitas as pessoas que dominavam aquele assunto, a despeito de sua importância. Anna fez um sinal de positivo e disse: — Os gases que provocam o efeito estufa já são tantos que ninguém mais sabe as consequências que terão no clima. E as emissões continuam acontecendo...

O dr. Benjamin apoiou as palmas da mão na mesa à frente, abaixou a cabeça e se inclinou para a frente durante um ou dois segundos. Então finalmente voltou a encará-la. Aparentava até certo constrangimento. Ele disse: — Estamos entrando numa área que não é bem minha especialidade, mas posso lhe garantir que também me preocupo com tudo o que diz respeito à queima de carbono e às consequências que pode ter para a vida na Terra. Muito embora essas coisas não tenham nada a ver com a psiquiatria...

Quando ele hesitou em prosseguir, ela disse: — Pode continuar. Sou toda ouvidos.

Ele disse:

— Às vezes eu me pergunto se vivemos numa cultura que se recusa a ver algumas verdades fundamentais. Você compreende o que quero dizer com isso?

— Acho que sim. Achamos tão incômodo refletir sobre certas coisas que preferimos esquecer que elas existem.

— É exatamente isso.

Anna sentiu um impulso súbito. Não sabia o motivo, só tinha acontecido, como se sua mente tivesse se conectado a outra realidade, e ela se percebeu dizendo: — O que você acharia se eu lhe dissesse que tenho medo dos árabes?

Ele riu um bocado.

— Bem, provavelmente ia sugerir que você passasse um pouco de tempo com eles.

Acho que seria a melhor conduta a tomar.

— Certo...

— Mas, voltando ao assunto, não tratamos de pacientes preocupados com o aquecimento global. Mas talvez devêssemos prescrever algo para a ausência de preocupação com esse problema. Porque não estamos lidando direito com essa ameaça. Ao contrário! Estamos tentando ignorar o problema.

Anna percebeu que o psiquiatra se dirigia a ela o tempo inteiro como uma adulta, e gostou disso. Ele falava com ela de igual para igual. Só ficou sem palavras quando ele quis saber se ela pertencia a alguma organização ambiental. Era uma pergunta inusitada para um consultório médico, mas foi ela quem tinha começado a falar sobre mudanças climáticas.

A garota respondeu que aquilo não existia onde ela morava. Lá tudo se resumia a estudar e trabalhar, dar umas voltas de carro ou moto e, claro, sair à noite e encher a cara no fim de semana.

— Aquele jovem que veio com você é seu irmão?

Ela riu.

— Ah, não, é o Jonas. Ele é só meu namorado.

Ela achou que parecia descolada dizendo: “Ele é só meu namorado”.

Jonas também teria achado.

— Ele se preocupa com as questões climáticas?

— Jonas está no segundo ano e estuda física, química e biologia. Sabe como é, está aprendendo um pouquinho sobre o mundo...

— Sim, com certeza.

— Na verdade o aquecimento global não tem tanto a ver com o que vemos com nossos olhos. Ou se aprende do que se trata, ou se vive na ignorância.

— Acho que você tem razão, Anna. Não me surpreenderia se menos de um por cento da população do país conseguisse calcular sua pegada de carbono.

Anna sentiu o coração dar um salto. A pegada de carbono era um assunto sobre o qual ela e Jonas tinham acabado de falar. Seu trabalho final do nono ano tinha sido sobre aquecimento global. Ela perguntou: — Você sabe? Sabe fazer a conta da sua pegada de carbono?

O bondoso médico fez uma breve palestra para Anna enquanto desligava seu computador e arrumava umas folhas de papel em cima da escrivaninha. Primeiramente, discorreu sobre o ciclo que o dióxido de carbono percorre na natureza. As plantas retiram o dióxido de carbono do ar através da fotossíntese e dessa maneira mantêm o carbono dentro de organismos vivos, enquanto o mesmo gás é liberado no ar pela respiração dos animais e pela decomposição da matéria orgânica. Ele apontou o notável equilíbrio entre a quantidade de dióxido de carbono que é liberada na atmosfera através de erupções vulcânicas e aquela que é decomposta pelo clima e pelo vento, e por fim acaba entranhado na crosta da Terra. Equilíbrio esse que permaneceu quase constante durante centenas de milhares de anos, sem que a humanidade o influenciasse. O dr. Benjamin continuou: — Todo o carbono que foi armazenado em petróleo, carvão e gás ficou “estacionado” nesse circuito durante milhares de anos. Mas esse equilíbrio sutil...

Anna tirou as palavras de sua boca.

— ... foi totalmente abalado pelos homens, que queimaram petróleo, carvão e gás e despejaram dióxido de carbono na atmosfera.

— Exatamente. Embora a quantidade de dióxido de carbono liberada devido a atividades humanas produza apenas uma pequena fração do que está em circulação decorrente do ciclo natural do carbono, o resultado é um excesso de resíduos que a natureza não consegue mais manter na crosta terrestre. Então a atmosfera vai ficando cada vez mais saturada de dióxido de carbono.

— Porque ele não para de se acumular.

— Correto. Você sabe disso tão bem quanto eu. Se a cada dia ingerir mais calorias de que seu corpo necessita para se manter funcionando, com o tempo vai acumular gordura. O dióxido de carbono se acumula da mesma forma na atmosfera.

— E torna a Terra mais quente. Quanto mais dióxido de carbono houver na atmosfera terrestre, mais calor. Por isso as geleiras e os glaciares estão derretendo, e o que já está ruim vai piorando, porque o gelo e a neve refletem a maior parte dos raios solares, mas o mar e as montanhas, não. Então a Terra esquenta ainda mais.

— É isso que chamamos de reforço indutivo.

— Isso pode fazer com que o solo congelado da tundra derreta também, liberando não apenas dióxido de carbono, mas metano. Esse é outro gás importante para o efeito estufa, que só contribui para tornar a Terra ainda mais quente. A quantidade de vapor de água na atmosfera vai aumentar, e o calor também. Agora é o gelo da Groenlândia que está ameaçado, e talvez as geleiras da Antártida.

O dr. Benjamin ergueu a mão espalmada e Anna percebeu que ele estava tentando contê-la. Mas ela não podia desperdiçar aquela oportunidade de falar. Então disse: — O efeito estufa pode sair completamente do controle e, na pior das hipóteses, fazer com que a temperatura média do planeta aumente entre seis e oito graus. Então talvez todo o gelo que existe sobre o planeta derreta, e o nível do oceano suba algumas dezenas de metros. Na mitologia nórdica existe uma palavra para o que pode vir a acontecer com a Terra: ragnarök.

O dr. Benjamin se levantou para se despedir e acompanhar Anna até a porta. Mas antes de abri-la, ele disse: — E se você e Jonas começassem uma organização ambiental juntos? Acho que dentro dessas duas cabecinhas mora uma pequena fera louca para defender o local onde vocês moram. Talvez seja a melhor coisa a fazer para conviver com o medo que você tem da destruição provocada pelas mudanças climáticas. Não é saudável ficar represando o medo dentro de si por muito tempo. Ele pode facilmente se instalar e ficar remoendo dentro da gente. E estou falando novamente como um psiquiatra. Se puder lhe dar um conselho é esse: ponha seu medo para fora. Dê uma volta com ele e alivie sua mente!

O dr. Benjamin remexeu num dos bolsos e entregou a Anna o cartão de visitas.

— Me ligue ou me mande um e-mail se quiser falar mais. Não é incômodo nenhum.

Quando chegaram à sala de espera, o psiquiatra apertou a mão da mãe de Anna e de Jonas. Ele alternou o olhar entre um e outro e disse: — Muito obrigado por me emprestarem Anna. Vocês têm sorte de conviver com ela.

A mãe de Anna ficou tão orgulhosa que até fez uma reverência para agradecer. No bonde a caminho do centro, perguntou por que o psiquiatra tinha um brinco de estrela, como se a filha pudesse explicar o motivo. Sua mãe e Jonas não tinham como saber o que ela e o dr. Benjamin tinham conversado, então ela respondeu: — É porque ele sabe que habitamos um planeta frágil que gira em torno de uma estrela no espaço. Nem todas as pessoas têm consciência disso. Só as que têm podem usar uma estrela roxa na orelha.

Tanto sua mãe quanto Jonas olharam boquiabertos para ela, que acrescentou: — Um adulto não sai por aí com um brinco de estrela se não houver uma associação com o fato de viver num corpo celeste.

A mãe de Anna voltou para casa no trem da tarde, mas a garota e Jonas ficaram passeando de mãos dadas pelas ruas da capital e só tomaram o trem noturno. Eles passearam pelo parque Frogner e pelas docas de Aker, e visitaram a Casa do Meio Ambiente, em Grensen, que abrigava várias organizações ambientais. A caminho de casa, planejaram como seria o grupo ambiental que iam criar. Jonas achou a ideia ótima.

De início, ele seria o responsável por reunir ativistas. Tinha sido sugestão de Anna, porque ela sabia que Jonas era um garoto popular e achava que conseguiria atrair várias garotas para o grupo sem muito esforço. Ele riu.

— Não vai ter só menina, vai?

— Claro que não. Mas conseguindo atrair meninas, os meninos vêm também.

A tarefa principal de Anna seria recortar artigos sobre clima e meio ambiente de jornais e revistas, e encontrar material na internet. Por isso na noite de dez de dezembro ela estava com a tesoura e os jornais na mão. Havia muitas notícias sobre o assunto por conta do fracasso de um acordo de cúpula no Qatar. Ela ainda ia fazer um apanhado de áudios e vídeos do YouTube, podcasts e outras fontes.

Anna largou a tesoura e se sentou ao lado dos pais diante da TV. O filme que passava era sobre o capitão Cook, que observou o trânsito de Vênus na ilha paradisíaca do Taiti, no oceano Pacífico. Trânsito de Vênus é o movimento que o planeta faz diante do disco solar, um fenômeno tão raro que pode levar mais de um século para se repetir.

Na época do capitão Cook, foi importante observá-lo em vários locais do globo simultaneamente, porque só daquele modo foi possível para os astrônomos calcular a extensão do sistema solar.

Anna conseguia perceber um quê de romantismo na viagem que o capitão britânico precisou fazer para uma exótica ilha nos mares do sul para calcular a distância da Terra até Vênus, chamado assim por causa da deusa do amor. Segundo o filme, o capitão e sua tripulação levaram o romantismo ao pé da letra e ficaram mais preocupados com as mulheres da ilha onde aportaram do que com Vênus e distâncias no espaço.

Os créditos do filme subiram e o telejornal da noite começou: o prêmio Nobel da paz tinha sido outorgado à União Europeia. Vinte e um chefes de Estado tinham ido para Oslo. Uma voluntária norueguesa havia sido feita refém na fronteira entre o Quênia e a Somália. Ela se chamava Ester Antonsen e trabalhava para o Programa Mundial de Alimentos.

Anna deu boa-noite aos pais, apanhou os recortes de jornal e o celular novo, e subiu para o quarto. Aquela noite ela nem teria que programar o despertador do celular, porque não haveria aula no dia seguinte: os professores iam fazer planejamento. Mas ela tinha prometido que ligaria para Jonas assim que acordasse.

O dia tinha sido especial. Ela tinha herdado o antigo anel da tia Sunniva. Ganhara o celular novinho que causaria a maior inveja no pessoal da escola. Tinha feito uma boa seleção de jornais antigos e recortado todos os artigos sobre clima e meio ambiente. E logo ia completar dezesseis anos!

Anna estava animada com o que ia sonhar. Sabia que assim que adormecesse sua alma ia se revirar e adentrar outra realidade.


O terminal

 


Ela pisca e se chama Nova. Tudo parece diferente.

Sai da cama e no mesmo instante uma luz difusa a surpreende. Assim que estende a mão na direção da fonte, a luz fica mais forte. Na tela do terminal acima de sua cabeça está escrito: SÁBADO, 12 DE DEZEMBRO DE 2082.

Ela observa os contornos do quarto onde dormia. As paredes são vermelhas como sangue. Nota a chuva lavando a estreita janela que vai do chão ao teto inclinado.

O aparelho bipa e a imagem de um macaquinho de olhos bem redondos surge na tela. Mais um primata está comprovadamente extinto. O mico desapareceu da natureza há muito tempo, quando o ecossistema onde vivia foi devastado. E agora o último animal em cativeiro morreu. É angustiante e triste.

Outro bipe. Uma iguana, também da América do Sul. Declarada extinta.

Ela, indefesa, sente as bochechas arderem. Surgem então imagens em movimento de um antílope africano no terminal. Ele é declarado extinto pela União Internacional para Conservação da Natureza, inclusive em cativeiro.

Imensos rebanhos de antílopes, gnus e girafas que habitavam onde um dia foi a savana africana desaparecidos há uma geração. Os grandes predadores se foram, assim como os ruminantes. Em jardins zoológicos aqui e ali restaram espécies de carnívoros e herbívoros, mas foram se extinguindo nos cativeiros.

Faz muito tempo que Nova instalou o aplicativo Espécies Extintas, que a mantém informada sobre o desaparecimento de espécies vegetais e animais. Ela pode muito bem desinstalá-lo e fechar os olhos para tudo o que se passa ao seu redor, mas acha que é sua obrigação acompanhar o fim dos biomas terrestres. Está com raiva. Mas só isso não basta, e não há nada que possa fazer...

A principal causa da morte de tantas plantas e de tantos animais é o aquecimento global, que acelerou vertiginosamente há algumas décadas. Cem anos atrás o planeta era um lugar maravilhoso. No decorrer do século, porém, perdeu muito de seu encanto. O mundo jamais voltará a ser como antes. Já faz muito tempo que a humanidade parou de despejar dióxido de carbono na atmosfera— que coisa mais idiota!—, mas não é possível extrair os gases do efeito estufa do ar. O planeta passou por vários pontos de inflexão cruciais. Não são mais os homens os responsáveis pelo aquecimento global. Os processos agora acontecem por conta própria.

Ela toca a tela do terminal e acessa a Câmera Terrestre. Ao mesmo tempo, liga a enorme tela pendurada sobre a cama no teto inclinado. O terminal serve como controle remoto. Ela se endireita na cama e lança olhares vagos pelo planeta.

Como estará o tempo no polo Norte? Ela observa uma foto azul cintilante do oceano Ártico, e o quarto inteiro se enche daquela luz. O extremo do polo está completamente sem gelo. Como quase não está ventando, somente o mar ligeiramente encrespado e um pedaço da boia onde a câmara está instalada denotam que é uma imagem real. Faz décadas que o último urso-polar selvagem foi avistado na natureza, mas ainda existem uns poucos em cativeiro.

E como estará o oceano Pacífico ou o Índico? Muitos dos antigos atóis de corais já estão submersos; países inteiros foram inundados. Os postes sobressaindo no mar indicam locais onde antes havia ruas. Em alguns há placas indicando a localização em pleno oceano: Maldivas, Kiribati, Tuvalu. Aqui e ali se veem prédios cor de marfim, imersos um ou dois metros na água cristalina— templos antigos, mesquitas, igrejas. Civilizações imersas, paraísos exóticos de outrora.

E quanto à tundra siberiana? Lá a coisa está fervilhando. Nova escolhe algumas câmeras que já usou, olha fixamente para a finíssima tela de vídeo no teto e acha que pode até sentir o gás metano através da lama e do pântano. Vai ficar ainda mais quente...

Ela toca a tela do pequeno terminal e surge a imagem atualizada de um globo com imagens de satélite recentes sobrepostas. O globo gira lentamente. Os continentes não parecem um pouco menores do que há pouquíssimo tempo?

O mar não engoliu mais um pedacinho das cidades costeiras? O manto de gelo sobre a Groenlândia e a Antártida está menor que ano passado, com certeza.

Como estarão as coisas perto de casa? Ela encontra uma câmera localizada bem no centro do planalto do parque nacional de Hardanger. Mesmo tão perto do fim do ano, ainda há folhas balançando nas árvores. Sobre as copas voam gaivotas e corvos. Ela dá um zoom para examinar as urzes e o solo da floresta. Um camundongo aparece entre os troncos brancos das bétulas e uma raposa-vermelha o agarra!

Sobrou um pouco de natureza, mas apenas vestígios da diversidade, migalhas em uma mesa onde houve um banquete no passado. É bom que algo tenha restado, mas ela não pode se contentar com isso. Acha que tem direito a viver na natureza. Não em um queijo suíço, cheio de buracos.

Ela decide que vai passar o resto do dia vendo fotos e filmes do início do século. Aparecem em questão de segundos, basta inserir as datas. Define o limite em 12 de dezembro de 2012. Isso implica uma seleção rigorosa. De agora em diante, só pode acessar páginas da web feitas antes disso. Portanto, vai passar o resto do dia vendo imagens e vídeos das regiões selvagens do planeta de antes de 12 de dezembro de 2012. O mundo ainda era uma delícia naquele tempo, então o dia promete! Ela fecha o aplicativo com as atualizações constantes da União Internacional para Conservação da Natureza. Vai abrir de novo amanhã. Vai bipar um bocado então, porque Nova se recusa a admitir que um reles molusco ou uma simples violeta sejam declarados extintos sem que ela saiba.

Não foi por acaso que colocou a data limite de busca em 12 de dezembro de 2012. Ela sabe que foi por aí que os ecossistemas começaram a ruir. E foi nesse dia que sua bisavó completou dezesseis anos.

Ela passa a navegar pelos arquivos, começando pelos primatas. A barriga chega a doer quando assiste aos primeiros vídeos dos chimpanzés. São tão divertidos que não consegue parar de rir. Eles são tão parecidos com os seres humanos! E têm personalidades distintas em relação aos outros de sua espécie, assim como nós. No meio dos arbustos, jovens chimpanzés brincam quase como se fossem crianças humanas. Pouco tempo antes o planeta Terra era lar de criaturas muito divertidas.

Na grande tela sob o teto ela também vê vídeos de gorilas. Os animais que observa tão atentamente são a própria ponte entre os homens e os outros bichos. Alguns parecem tristonhos, porque de alguma forma pressentem o que está por vir. Agora não tem mais jeito: eles já se foram para nunca mais voltar. Ela depara com alguns vídeos de orangotangos de pelo avermelhado, naturais de Bornéu e Sumatra. Ah! Acaba de testemunhar uma orangotango dando à luz um filhote! Ele parece saudável e forte, mas talvez fosse um dos últimos a nascer na natureza...

Quando sua bisavó era jovem, viu essas mesmas imagens, gravadas naquela época. Mas Olla— como a chamam — também falou com pessoas que estiveram num safári na África e viram os grandes primatas com os próprios olhos. Soltos. Na natureza. Isso jamais voltará a acontecer. Nunca uma pessoa voltará a ver um chimpanzé ou um gorila em seu estado selvagem.

Nova procura mais vídeos. Endireita-se na cama, sabendo que tem milhares de imagens maravilhosas sobre a natureza entre as quais escolher. Prefere um da BBC que tem David Attenborough como apresentador. De queixo caído, ela não consegue desgrudar os olhos do mundo de outrora.

Vídeos lindíssimos da vida fervilhando ao redor dos grandes recifes de corais. Moluscos, caranguejos, algas marinhas, tartarugas de todas as cores possíveis. É como se Deus tivesse pintado à mão aqueles peixes um a um.

Mas ela está dolorosamente consciente de que tudo aquilo desapareceu para sempre. Não existem mais recifes de corais como aqueles— claro que não!—, e não existe mais aquela infinidade de peixes multicoloridos. O mar se tornou ácido demais, forçado durante mais de um século a engolir milhões e milhões de toneladas de dióxido de carbono. Era como se um diabinho um dia dissesse: “Agora chega! Vamos deixar que as fogueiras de petróleo e carvão sufoquem essa incrível riqueza!”.

Ela olha para a tela novamente e localiza onde foi a grande floresta tropical amazônica, reduzida hoje à maior savana do mundo.

Ela assiste a um filme antigo sobre borboletas. Algumas das espécies são tão bonitas, com seus padrões vibrantes, que ela chega a sentir arrepios, sabendo muito bem que hoje só existem entre as miríades de megabites armazenados nos bancos de dados.

Nunca as telas e os displays espalhados pelo mundo exibiram tantas imagens esplendorosas da natureza quanto hoje. Mas nunca o que restou de diversidade foi tão pobre.

Ela lê na grande tela no teto o que as pessoas escreviam nos jornais e em sites no começo do século. Tudo o que estava na internet naquele tempo continua disponível; todas as palavras, imagens e músicas continuam suspensas na eletrosfera. Num artigo ela lê: “Em outras palavras, não temos direito de legar um planeta que tenha menos serventia do que aquele que herdamos”. Humpf! Ela folheia outra matéria: “Posso imaginar o desespero e o sofrimento dos nossos netos e bisnetos, tanto no que diz respeito à perda de recursos como gás e petróleo, como no que concerne ao desaparecimento da biodiversidade”.

Ela balança a cabeça. Não foi por falta de aviso.

Ela se pergunta se Olla escreveu alguma coisa quando jovem. Com o limite da busca, só vai encontrar o que tiver escrito antes dos dezesseis anos. Procura por “Anna Nyrud”. Tenta em vários aplicativos de busca até finalmente algo aparecer na tela! É uma espécie de carta— para ela, Nova!

Querida Nova, diz a carta. Ela treme, mas continua lendo. Não sei como será o mundo quando você estiver lendo isto. Mas você sabe...

Como é possível? A carta é de 11 de dezembro de 2012, um dia antes de Olla completar dezesseis anos, apenas um dia antes do limite do filtro de busca. Como é possível Olla ter escrito uma carta para Nova mais de cinquenta anos antes de ela nascer?

Nova conferiu o filtro. Era o mesmo. O terminal não exibia nada depois de 12 de dezembro de 2012.

Como Olla sabia, mais de cinquenta anos antes, que teria uma bisneta chamada Nova? Por acaso era vidente?

Será que ainda é?

Nova se levanta da cama e caminha. Desliga a grande tela, mas continua segurando o pequeno terminal. Põe para tocar um arquivo de áudio, também do começo do século.

Uma voz masculina diz: “desde o final do século XVIII, as reservas de combustível fóssil nos tentam como o gênio da lâmpada fez com Aladim. ‘Me tire daqui’, sussurrou o carbono. Nós cedemos à tentação. Agora, sofremos para enfiá-lo de volta na lâmpada”.

A chuva açoita a janela. Ela se senta sob o telhado inclinado e tenta espiar lá fora. Por entre as gotas de chuva, admira a rodovia onde, muito tempo atrás, havia um posto de gasolina. Barras de concreto e pedaços de ferro retorcido ainda estão de pé. Carros quase não rodam mais pelo vale, mas caravanas árabes montadas em camelos e dromedários cruzam o país. O norte da África e o Oriente Médio não são mais habitáveis, e milhares de refugiados climáticos dessa parte do mundo fogem para o norte e se instalam no noroeste da Noruega.

Ela se agacha e pressiona o rosto contra a janela. Agora consegue enxergar melhor. Lá embaixo há um pequeno aglomerado de pessoas e três camelos carregados. Uma coluna de fumaça se ergue de uma fogueira...


A luz azul

 


Anna acordou com o barulho de uma sirene. A muito custo abriu os olhos e percebeu a luz azul que piscava na rua invadindo seu quarto. Mas não queria acordar, não podia acordar. Estava sonhando com algo muito importante e precisava voltar para dar um jeito em alguma coisa por lá...

Não era a primeira vez que era acordada por uma sirene. Poucas semanas antes, Jonas tinha dormido no “quarto das almofadas”, um cômodo chamado assim porque tinha um sofá coberto por almofadas que tia Sunniva tinha bordado. Os bordados faziam referência a contos de fadas. Quando era pequena, Anna mergulhava em cada uma daquelas almofadas, admirando as figuras, e seus pais lhe contavam as histórias desenhadas ali quase toda noite. Só quando já estava bem crescidinha Anna aprendera a diferenciar “contos de fadas” e “almofadas”, duas palavras tão diferentes, apesar da rima.

Quando Jonas dormira ali, eles foram acordados no meio da noite pelo uivo das sirenes de veículos estacionados no fim da rua. Os dois quase trombaram no corredor e desceram correndo as escadas para ver o que estava acontecendo. Segundos depois, os pais de Anna chegaram, esbaforidos.

Ambulâncias, carros de polícia e caminhões dos bombeiros não paravam de chegar, acelerando em alta velocidade pelas ruas de ambos os lados do vale. Iluminado pelo brilho ofuscante da luz azul, eles perceberam o contorno de um caminhão-tanque que tinha tombado na pista escorregadia. A polícia já tinha tratado de isolar a área. Mais tarde souberam que havia um enorme risco de explosão e incêndio, pois o caminhão-tanque transportava milhares de litros de gasolina, que os bombeiros já estavam bombeando para outro local. Um policial gritou para a família de Anna, quase com raiva:

— Fora daqui! Agora!

Eles deram meia-volta e voltaram para casa. De início ficaram no jardim vendo o espetáculo, mas a certa altura Anna e Jonas foram para a cozinha acompanhar as notícias pelo rádio enquanto a mãe preparava chocolate quente e o pai se sentava em frente à lareira para fumar seu cachimbo.

Naquela noite, Anna nem se deu ao trabalho de levantar por causa das sirenes. Ela estava dando duro em outro mundo. Estava trabalhando. Tinha dormido e voltado ao sonho de antes.


A bisavó

 


Alguém bate na porta e vai entrando no quarto. Ela se vira e percebe que é Olla. Está vestida com um quimono azul.

Nova se senta na beirada da cama e olha para a bisavó. Consegue perceber um traço familiar e sente algo estranho e intrigante. O rosto dela é pequenininho e enrugado. É aniversário de Olla hoje, e ela está completando oitenta e seis anos!

Mas há alguma coisa diferente, distorcida. Nova sente um calafrio. A velha bisavó parece envolta numa aura de despedida e mudança.

No dedo anelar está o antigo anel com um rubi vermelho. Tem alguma coisa nele. Olla está no quarto como uma mensageira de outro tempo. Com dois dedos enrugados, segura a joia vermelha. Então diz: — Você está pensando no rubi, Nova.

Ela assente. Olla consegue ler pensamentos. Pelo menos os de Nova.

A velha puxa a cadeira de madeira da escrivaninha e se senta diante da bisneta. Ela diz: — Hoje vou contar dos pássaros que viviam na montanha naquela época. Sabe, ainda consigo ouvir aqueles trinados melancólicos como o assobio de uma flauta.

Alguma coisa se contorce dentro de Nova. Será que ela vai ouvir? Será que vai prestar atenção no que diz a velhinha?

Cheia de amargura, ela diz baixinho: — Você não precisa contar nada. Só quero saber como trazer os pássaros de volta.

Ela encara a bisavó. O rosto envelhecido denota uma mágoa profunda. Ou remorso.

Mas Nova não sente dó.

— Também quero de volta os grandes primatas, os leões e os tigres. Todos eles. Não deve ser tão difícil de compreender. Quero os ursos-polares e os lobos. E o papagaio-do-mar, tão bonitinho! O maçarico-real também, não esqueça! E a uva-de-urso, a rosa-alpina, a magnólia e o salgueiro-anão. Sabia que ele na verdade é um arbusto, mesmo que não passe de cinco centímetros de altura? Ou será que foi você quem me disse isso?

A velha deu de ombros.

— Mas Nova...

— Sabe o que quero? Será que devo dizer? Quero milhões de espécies de plantas e animais de volta. Nem mais nem menos. Quero beber água pura da torneira. Quero segurar uma vara de pescar na margem do rio. E quero que esse inverno pegajoso termine.

— Nova!

— Só quero um mundo tão maravilhoso quanto aquele em que você viveu quando tinha minha idade. E sabe por quê? Porque você me deve isso!

— Espere aí, Nova!

— Ou quer que eu acompanhe você pela floresta? Me dê o mundo. Me dê um rebanho de renas selvagens em Hardangervidda, outro em Jotunheimen e outro em Rondane. Faça o que eu digo já. Se não, pode levantar e ir embora.

— Mas Nova...

— Quem dera a humanidade e tudo o que cresce e floresce neste planeta pudessem ter uma segunda chance!

Não seria uma boa? E não seria pedir demais. Podia ser como numa competição de tiro. Se errar o primeiro tudo bem, você tem mais uma chance. Tudo o que quero é que você me devolva meu mundo. Quando a gente faz algo errado, não deve ficar deitado, se remoendo de culpa e de vergonha. Nada disso. O certo é levantar rapidinho e consertar o que fez. Então seja uma boa bisavó e me dê as plantas e os animais de volta, Olla. Então poderemos conversar sobre o canto dos pássaros.

Por um instante ela encara a bisavó nos olhos. Estão levemente marejados. Parecem assustados e tristes. Nova voltou a falar: — Por que estou aqui resmungando? Tudo isso é bobagem! Não dá para mudar nada. Não podemos fazer nada.

Não é verdade, Olla? Ou você vai me dizer que existe um gênio da lâmpada que pode nos ajudar?

Olla se endireita na cadeira. Ela parece ter medo de que a bisneta lhe dê um bofetão no rosto a qualquer momento. Ou um soco. Com força.

Mas a senhora diz: — Era algo assim que eu ia dizer.

— Como?

A velha volta a remexer o rubi misterioso e lança um olhar esperançoso para a bisneta.

— Talvez o mundo tenha outra chance...

A pequena Olla. O que está dizendo ali sentada? Fala de um jeito tão fascinante que Nova se deixa levar.

— Como assim?— ela sussurra. — Existe uma saída?

Os olhos de Olla brilham. Ela assente e sorri confiante.

Elas são amigas. É possível ser amiga da própria bisavó. Ela também já teve dezesseis anos, afinal.

Mas o que vão inventar? Ela olha para as paredes vermelho-sangue e em seguida para Olla, de quimono azul.

— Talvez possamos gritar de volta no tempo e pedir aos que viviam aqui antes de nós que tenham um pouco de consideração pelos seus descendentes. Mas vamos ter que gritar bem alto para que nos escutem.

A velha balança a cabeça.

— Isso é impossível. Mas tenho uma ideia.

— Diga, então. É algo sobrenatural?

— Não sei, minha filha. Talvez seja totalmente natural.

Nova abre um sorriso de orelha a orelha.

— Acho que estou entendendo— ela se anima. — Você vai tentar estabelecer algum tipo de contato com as pessoas que habitaram a Terra antes de nós. Você pode contar para elas como será o futuro se a humanidade não parar de esgotar os recursos da natureza. Diga, Olla. É isso?

A velha assente misteriosamente.

Nova fica pensando a respeito. Ela se levanta da cama e sai arrastando os pés pelo chão. Através da estreita janela que vai do chão ao teto, observa novamente a rodovia. Os camelos continuam por lá, com um pequeno grupo de pessoas...

— É impossível. — Ela solta um suspiro. — Não podemos pôr de volta nos trilhos uma natureza que descarrilou completamente.

— Você tem certeza?— emenda a velha, com um sorriso maroto, novamente tamborilando os dedos no rubi vermelho.

— É o rubi?— pergunta a bisneta. — Tem alguma coisa a ver com isso? É ele que vai nos trazer as renas de volta?

A bisavó volta a assentir e a garota ri.

— Foi o que pensei— ela diz. — Sempre soube que essa joia antiga tinha algum segredo.

E o que mais? Será que ela pode pedir outras coisas?

— É possível trazer de volta o bufo-real também? Só um casalzinho, por favor! E as lontras, claro. E as borboletas...

Nova não pode desistir. Pensa rápido, porque é agora ou nunca. Toda aquela sucessão de desejos pode simplesmente virar pó e desaparecer tão rapidamente como uma estrela cadente rasgando o céu de noite. Mas consegue pensar tão rápido quanto uma estrela cadente? Ela se arrisca.

— Posso pedir um milhão de espécies de plantas e animais?

— Sim, minha querida.

Nova precisa fazer tudo o que estiver ao seu alcance para garantir que é possível. Ela diz: — E os biomas! Não adianta nada salvar um casal de cada espécie, Olla, você sabe muito bem o que estou dizendo. Tanto plantas como animais precisam de um lugar para viver, precisam prosperar. A floresta tropical, por exemplo, precisa voltar; a acidez dos oceanos precisa ser corrigida; a temperatura no alto das montanhas precisa diminuir; a savana africana precisa ser irrigada e reconstruída. Você sabe disso muito bem... Desse jeito é possível!

Olla põe os dedos em torno do anel e, com uma voz solene, quase como se estivesse lançando um feitiço, diz: — Em breve você vai voltar à Terra como era quando eu tinha sua idade, mas vai me prometer que vai cuidar muito bem dela. Assim, nós teremos uma segunda chance. De agora em diante, precisamos estar atentas o tempo inteiro, porque não vai haver uma terceira.

Aquelas palavras ecoavam no vazio, como se estivessem sendo ditas em um porão ou emanassem de uma caverna.

Olla continua: — Vamos nos encontrar novamente dentro de setenta anos. E então vai ser sua vez de ir ao tribunal.

Nova está se sentindo exausta. Ficou completamente exaurida por ter sido enredada no maior feitiço já lançado.

O quarto começa a balançar e Olla sorri de um jeito infantil demais para uma senhora tão idosa. Ela apoia a cabeça no encosto da velha cadeira onde está sentada, como se estivesse se preparando para morrer. Mas se põe a cantar com uma voz rouca um cântico de um sabá de feiticeiras ou algo parecido. Soando como um chocalho, ela canta: — Todos os pássaros, os mais pequenininhos... voem pelo ar! Cucos e pintarroxos, tordos e estorninhos...

cantem sem cessar! O lariço que no alto se verga... traga de novo a primavera. Gelo e neve sumam já. Sol e alegria venham cá!


As caixas vermelhas

 


Anna acordou sobressaltada e logo arregalou os olhos. O quarto estava com um cheiro estranho de lugar fechado. Acendeu o abajur ao lado da cama e olhou para cima, onde o teto inclinado encontrava as paredes revestidas de azul-claro.

Ela tinha sonhado...

Um sonho estranho, intrigante e promissor!

Tinha sido transportada para o futuro, mas morava no mesmo local. No sonho, as paredes eram vermelho-sangue e no teto havia uma enorme tela plana conectada à internet.

Ela escutou o burburinho de um bando de pardais do lado de fora. Até no inverno eles cantavam, quando o tempo estava bom. Então ouviu o ruído do motor de um carro no posto de gasolina. O barulho da porta se fechando. E lá vinha um carro, a oeste. E mais outro, acelerando.

Ela juntou as mãos e sentiu o anel com o rubi vermelho. Estava na família desde que tia Sunniva tinha ido morar nos Estados Unidos e o ganhara como presente de noivado.

Semanas depois, o noivo se afogou na grande cheia do rio Mississippi, em circunstâncias muito estranhas.

“O velho carbúnculo”, era como gostavam de se referir à joia, quase como se ela representasse algo mágico, como se fosse uma maravilha destinada a sobreviver a todos eles. Anna era sua dona havia uma noite. Ele tinha pertencido à sua avó, que morrera no ano anterior. Tia Sunniva não tivera filhos, por isso ele passara à avó da garota.

Aquele anel vermelho tinha alguma coisa a ver com o sonho de Anna...

No sonho, ela se chamava Nova, e tinha uma bisavó chamada Anna, que fazia aniversário no mesmo dia que o seu. Já era 11 de dezembro, e Anna faria dezesseis anos no dia seguinte!

A bisavó— ou Olla— usava um anel de ouro e rubi no mesmo formato do que Anna tinha na mão. Devia ser o mesmo anel— e o mesmo dedo! No sonho, ela era a própria bisneta e tinha se visto como uma velha!

Não era nada de mais Anna sonhar que era a própria bisneta, pois certa vez sonhara que era Napoleão e, em outra ocasião, tinha sido um ganso. Mas fora mesmo um sonho?

Anna não tinha tanta certeza. Parecera tão real e familiar, não apenas durante o sonho, mas bem depois de ter despertado.

Bastaram umas poucas gerações para muitos dos biomas serem destruídos e milhares de espécies vegetais e animais serem extintas. Tomada por amargura e ódio, ela tinha se voltado contra sua velha bisavó e exigido o mundo inteiro de volta, uma natureza rica e diversa como aquela do início do século. Então aconteceu algo maravilhoso, porque aquele era exatamente o início do século, e tudo de errado que tinha acontecido desde que a bisavó completara dezesseis anos fora reparado. Anna retrocedeu setenta anos no tempo. Seu corpo ainda sentia o tranco. Graças ao anel misterioso, tanto ela como o resto do mundo tinham ganhado uma segunda chance.

Ia ser um dia e tanto! Era como testemunhar o limiar de uma nova era. Tudo poderia começar de novo! O mundo era novo, tinha sido inteiramente renovado, e todas as espécies extintas de plantas e animais tinham sido revividas. Um contingente de um milhão de espécies tinha sido recolocado no lugar, em seu hábitat.

Mas milhões de espécies continuavam em perigo. Notícias assustadoras não paravam de chegar. Mas não era tarde demais para salvar a Terra. O mundo tinha uma segunda chance!

Ela pensou na misteriosa carta que Nova tinha encontrado na internet. Era um texto que Olla tinha escrito para a bisneta muito tempo antes de ela ter nascido. Mas o que dizia a carta?

Saltou da cama, sentou diante da escrivaninha e ligou o computador. Não podia se distrair. Tinha que se concentrar para lembrar com a maior riqueza de detalhes o que dizia a carta que Olla tinha escrito exatamente setenta anos antes de Nova encontrá-la.

Como o computador estava ligado, ela escreveu: Querida Nova, não sei como será o mundo quando você estiver lendo isto, mas você sabe. Sabe o tamanho da devastação, o tanto que a natureza foi reduzida e até mesmo quais espécies vegetais e animais foram extintas.

Não lhe ocorreu mais nada. A carta era longa e abrangente, e ela imaginou que ao longo do dia talvez se lembrasse com mais detalhes do que a bisavó tinha escrito.

Nomeou o arquivo como “Carta para Nova” e o salvou.

Anna lançou um olhar para a janela estreita que ia do chão ao teto e percebeu que era um lindo e ensolarado dia de dezembro. Aquilo era ótimo, porque ela não tinha aula nem nada planejado. O Sol tinha acabado de nascer e projetava sombras sobre a paisagem coberta de neve. Anna estava totalmente imersa em pensamentos sobre o sonho que continuavam a fervilhar em sua cabeça. Parecia tão real quanto o dia de inverno lá fora. E mais quente.

Ela vasculhou a escrivaninha. Havia diversos relatórios do Instituto Worldwatch, uma edição recente do Catálogo de Espécies Ameaçadas da Noruega, um pequeno livro sobre mudanças climáticas e um livro maravilhoso chamado Um hiato na natureza: descobrindo os animais extintos no mundo, que seu pai tinha acabado de trazer de uma viagem à Austrália.

Em cima da escrivaninha havia várias prateleiras com livros e na prateleira inferior estavam caixas de sapato que Anna tinha encapado com papel vermelho. Numa delas estava escrito “O que é o mundo?”, e na outra “O que precisa ser feito?”. Nas duas havia diversos recortes de jornal e impressões de artigos da internet.

A internet!

No sonho, Nova tinha lido os mesmos artigos guardados nas caixas vermelhas. Um deles Anna tinha recortado na noite anterior, enquanto seus pais assistiam ao filme sobre o capitão Cook.

Ela se levantou, tirou as caixas da prateleira e as colocou sobre a escrivaninha.

Folheou rapidamente os papéis e logo encontrou o que procurava.

Um importante fundamento das éticas é a Regra de Ouro, ou o princípio da reciprocidade: não fazer aos outros o que não deseja que façam com você. Mas a Regra de Ouro não pode separar “nós” e “os outros”. Estamos começando a perceber que o princípio da reciprocidade é mais amplo: não podemos fazer à próxima geração o que não gostaríamos que a geração anterior tivesse feito conosco.

É simples assim. Ame o próximo como a si mesmo. Isso precisa incluir as gerações que virão, absolutamente todos os que viverão na Terra depois de nós.

As pessoas não habitam a Terra ao mesmo tempo. A humanidade inteira não vive de uma única vez, ao mesmo tempo. Pessoas viveram antes de nós, outras vivem agora, outras viverão depois. Todos são nossos semelhantes.

Precisamos deixar para eles o mesmo que desejaríamos que nos tivessem deixado, caso tivessem habitado o planeta antes de nós.

É uma lei muito simples. Em outras palavras, não temos o direito de deixar um planeta que tenha menos serventia do que aquele que herdamos. Com menos peixes nos oceanos. Menos água potável. Menos comida.

Menos florestas tropicais. Menos natureza. Menos recifes de corais. Menos geleiras e pistas de esqui. Menos espécies vegetais e animais.

Menos belezas! Menos maravilhas! Menos esplendor e alegria!

Ufa! Anna ficou até cansada depois de ler aquele texto de novo. Era a terceira ou quarta vez que o lia, e era exatamente o mesmo texto que sua bisneta encontrara na internet setenta anos depois! Afinal, tudo o que está na rede pode permanecer lá para sempre. Todos os textos e imagens do nosso tempo ficarão na eletrosfera.

Coitados dos nossos descendentes, ela pensou, que não apenas teriam que suportar a vida num planeta enfraquecido pelo egoísmo e pela negligência das gerações anteriores, mas também teriam que viver cheios de cuidados. “Ame o próximo como a si mesmo. Isso precisa incluir as gerações que virão.” Não admira que ler aquelas frases num futuro distante pudesse parecer ofensivo, quando já era muito, muito tarde para fazer alguma coisa a respeito.

E havia mais. Nova lera outro texto na internet. Anna folheou rapidamente o material da caixa “O que precisa ser feito?”, e por fim encontrou o que procurava.

Tanto os problemas climáticos como aqueles que ameaçam a biodiversidade estão relacionados à ganância. Mas ela não costuma preocupar os gananciosos. Existem vários exemplos históricos disso.

De acordo com o princípio da reciprocidade, deveríamos nos permitir usar recursos não renováveis apenas se tivéssemos certeza de que nossos descendentes poderão sobreviver sem eles.

Questões éticas não são necessariamente difíceis de responder— nossa capacidade de chegar às respostas é que costuma falhar.

Posso imaginar o desespero e o sofrimento de nossos netos e bisnetos, tanto no que diz respeito à perda de recursos como no que concerne ao desaparecimento da biodiversidade: “Vocês ficaram com tudo para si! Não deixaram nada para nós!”.

Ficaram com tudo...

Com a mente agitada, Anna despertou de um sonho intenso que ainda ocupava sua mente. Se fosse apenas um sonho...

Ela se lembrou de Jonas. Tinha prometido telefonar assim que acordasse. Mas ele teria que esperar um pouco. Precisava lembrar mais, e lhe ocorrera que Nova escutara alguma coisa enquanto zanzava pelo quarto.

Anna sabia que tinha guardado o texto daquele áudio numa das caixas. Mas onde estaria? Procurou em ambas, mas não estava lá. Tinha que estar em outro lugar, mas onde? Haveria um motivo especial para não ter guardado aquele texto de volta? As peças foram se encaixando em sua cabeça e ela não tardou a tirar um livro da prateleira. Chamava-se As mil e uma noites. Alguma coisa nele a chamava. O texto que Anna procurava estava lá dentro, marcando a página em que parara de ler.

Vivemos um momento sem precedentes em todos os aspectos. Nós, por um lado, pertencemos a uma geração triunfante que explora o Universo e mapeia o genoma humano. Mas, ao mesmo tempo, somos a primeira geração a destruir seriamente os ecossistemas de nosso próprio planeta. Testemunhamos como a existência humana degrada os recursos e leva os biomas ao colapso. Modificamos nosso entorno de tal forma que se tornou comum classificar o tempo em que vivemos como uma nova era geológica, chamada de “antropoceno”.

Nas plantas e nos animas, assim como nos oceanos e no petróleo, no carvão e no gás residem enormes reservas de carbono que mal podem esperar a hora de ser oxidadas e se desprender na atmosfera. Num planeta morto, como Vênus, o dióxido de carbono perfaz a maior parte da atmosfera, e aqui aconteceria o mesmo caso os processos terrestres não o colocassem em cheque. Mas, desde o final do século XVIII, as reservas de combustível fóssil nos tentam como o gênio da lâmpada fez com Aladim. “Me tire daqui”, sussurrou o carbono.

Nós cedemos à tentação. Agora, sofremos para enfiá-lo de volta na lâmpada.

Caso todo o petróleo, o carvão e o gás que ainda se encontram neste planeta sejam extraídos e liberados na atmosfera, talvez nossa civilização não sobreviva. Mesmo assim, muitas pessoas veem como um direito divino se apropriar de todos os combustíveis fósseis disponíveis em seu limite territorial. Por que as nações que abrigam as florestas tropicais deveriam pensar diferente e não agir como bem entendem em relação às suas matas? Qual é a diferença, em relação ao somatório global do carbono?

E qual é a diferença em termos do fim da biodiversidade?

Anna foi até a janela que dava para o vale. Olhou para o movimentado posto de gasolina. Teve a impressão de estar observando um fóssil vivo: tão antiquado, tão deslocado de seu tempo, parecendo uma relíquia de outras épocas, e mesmo assim funcionando a pleno vapor!

Ela se lembrou de outra coisa com que tinha sonhado...


O guarda-chuva

 


Chove forte, e ela desce o terreno íngreme debaixo de um guarda-chuva vermelho. O guarda-chuva é tão grande que uma turma inteira do jardim de infância caberia embaixo dele. Nas encostas das colinas do outro lado do rio ela consegue avistar a grande quantidade de solo erodido e a rodovia que se destaca no terreno.

Vai até onde antigamente havia um posto de gasolina. Agora lá é uma espécie de hospedaria onde os árabes fazem uma parada antes de se aventurar montanha acima. Os camelos bebem água e os homens comem e descansam. Na várzea junto ao rio arde uma enorme fogueira, em volta da qual alguns homens se aquecem.

Ela avança no meio da multidão: mulheres vestidas com túnicas pretas até os pés e homens com vestes semelhantes, só que brancas. Somente Nova carrega um guarda-chuva vermelho, tão largo que as pessoas abrem caminho, embora algumas aproveitem para se meter debaixo dele. As crianças não precisam nem se curvar. Muita gente a cumprimenta, sorrindo.

Todos estão felizes e sorridentes. Um homem faz malabarismos com antigas lâmpadas a óleo, mulheres e crianças batem palmas. Moradores da aldeia vendem espetinhos de cordeiro e bebidas quentes. Outros vendem capas de chuva e tapetes que custam moedas de ouro.

Um garoto está de pé na grama, afastado do burburinho, e ela pergunta a uma das mulheres de preto se ele está doente. A mulher faz cara de preocupação e assente. “Viagem longa”, diz.

Nova vai até o garoto e o protege com o guarda-chuva, para que não fique ensopado. Duas mulheres de preto vão até ela. A garota aponta para a casa e diz que o garoto pode dormir lá.

Ele vai, acompanhado das mulheres. Olla os recebe na porta, e Nova explica que o garoto está doente e precisa ficar ali até se recuperar. Elas o acomodam no quarto das almofadas. Talvez devam chamar um médico; é provável que ele precise de remédios.


O petróleo

 


Não paravam de chegar carros ao posto de gasolina. Os motoristas tinham o hábito de deixar o automóvel ligado enquanto entravam na loja para comprar cachorros-quentes e batatas fritas. Anna sentiu vergonha da quantidade de gases expelida pelos carros ali. Um sanduíche movido a combustível, pensou ela. O gás cinza-azulado dos escapamentos estava bem visível, com a temperatura talvez dez ou doze graus abaixo de zero. Na janela estreita não havia termômetro instalado, mas Anna dominava a arte de estimar a temperatura durante o inverno apenas observando a cor e a consistência da fumaça que saía dos carros.

Parada diante da janela, ficou pensando em algo que tinha lido sobre petróleo.

Havia rabiscado uns números quase incompreensíveis num post-it que segurava nas mãos.

Um barril equivalia a cento e cinquenta e nove litros de petróleo, e era vendido por cerca de cem dólares, ou seiscentas coroas norueguesas. Ele produzia a mesma quantidade de energia que dez mil horas de trabalho manual. Na Noruega, aquilo correspondia a seis anos de trabalho. Considerando um salário de trezentas e cinquenta mil coroas norueguesas por ano, seriam dois milhões e cem mil no total. Logo, um único barril de petróleo produzia uma quantidade de energia que custaria o correspondente a mais de dois milhões de coroas de trabalho manual. Mas um norte-americano médio consome cerca de vinte e cinco barris de petróleo por ano. Isso corresponde a cento e cinquenta anos de trabalho, e seria o mesmo que dizer que, em apenas uma hora, cada norte-americano médio dispõe de cento e cinquenta “escravos de energia” a seu serviço— propelindo carros e acionando equipamentos, refrigeradores, aparelhos de ar condicionado, aviões, fábricas, fazendas e equipamentos de entretenimento. Isso falando apenas em petróleo! Não se pode esquecer o carvão e o gás.

Anna se perguntava se o petróleo não seria um recurso barato demais. Nos Estados Unidos, ele foi introduzido mais ou menos na mesma época que a abolição da escravidão. No início, as fazendas no Texas prosperaram com a mão de obra escrava da África Ocidental. Depois, prosperaram por conta do petróleo.

Porém, pagando aos trabalhadores apenas seiscentas coroas por seis anos de trabalho braçal! Não era mais do que cem coroas por ano. Era o que se pode chamar de salário-fome.

Qual era a razão para aquele recurso ser tão barato? Anna conseguiu chegar a uma resposta: o petróleo só era tão barato porque ninguém detinha a posse dele. Ninguém o possuía, portanto ele não tinha preço. A única coisa necessária era extraí-lo do solo!

O petróleo existe há milhões de anos. É, na verdade, um reservatório de vários milhões de anos de energia solar. Mas, como não pertence a ninguém, pode ser desperdiçado. E, de repente, era uma vez o petróleo!

Anna examinou o papelzinho amarelo e balançou a cabeça.

Era verdade que o petróleo tirara muitas pessoas da pobreza, como gostavam de afirmar os políticos e ministros. Mas também era verdade que tornara outras reféns de um luxo completamente sem sentido, de um desperdício fútil sem precedentes.

Além do post-it, Anna também segurava um recorte de jornal. Era um anúncio de uma agência de viagens. A passagem mais barata para Paris custava apenas cento e dezenove coroas. Ela não fazia ideia se havia outras tão baratas quanto aquela. Mas o mais interessante era o que diziam as letras miúdas: TAXAS E IMPOSTOS INCLUSOS. Uma viagem para Paris custando cento e dezenove coroas incluindo impostos e taxas! Era a mesma coisa que ela pagava por quatro passagens de bonde em Oslo. O que não estava escrito em letras miúdas, mas Anna tinha lido em outro lugar, era que uma viagem aérea de ida e volta de Oslo a Paris tinha o mesmo impacto no clima que seis anos de um percurso de carro de seis ou sete quilômetros entre casa e trabalho. Anna também tinha lido que uma viagem de ida e volta entre Oslo e Nova York impactava o clima com a mesma intensidade que cinquenta mil carros rodando ao longo de um dia.

As pessoas não estariam gastando recursos que poderiam beneficiar enormemente as gerações futuras? Não estariam recarregando baterias que deveriam durar muito mais tempo? Não faltaria pouco para o petróleo ser substituído por mãos calejadas, pescoços rijos e ombros doloridos? Anna não estaria testemunhando um grande assalto às gerações que estavam por vir?

Além de queimar todo aquele combustível fóssil num prazo mais curto, a humanidade estava minando os fundamentos dos recursos naturais renováveis. Aquela orgia petrolífera seria uma ameaça real à própria subsistência de plantas, animais e do homem. Tal devastação da natureza seria um assalto àqueles que deveriam herdar o planeta.

Ela continuava parada diante da janela. No sonho, os fazendeiros vendiam espetinhos de cordeiro para os refugiados do clima que cruzavam o país, muitos para tentar a sorte como comerciantes na costa noroeste da Noruega.

Anna não teve como deixar de rir dos pensamentos que fervilhavam em sua mente.

Ao mesmo tempo, aquilo parecia tão real. Ela recordava muito pouco das férias de verão que tinha passado na Itália, e mal lembrava o que tinha acontecido na escola no dia anterior.

Havia mais naquele sonho. Dava a impressão de não ter fim. Dormindo, ela tinha criado um universo inteiro no futuro, paralelo àquele onde vivia. Era só puxar um fio e uma série de novos acontecimentos se seguia, episódios que tinha vivido antes, depois ou às vezes até simultaneamente aos demais...


Os camelos

 


O garoto está melhor. Ele tem a mesma idade que ela, ou talvez seja um ano mais velho. Os dois estão sentados no quarto das almofadas jogando ludo. Ela joga com as peças vermelhas; ele, com as azuis.

O garoto diz que o jogo veio da Índia. Os reis de lá jogavam ludo com peças vivas: mulheres do próprio harém.

Até dezesseis jovens ficavam reunidas no pátio onde os quadrinhos do jogo eram marcados com bandeirinhas vermelhas e brancas.

Ele consegue juntar três peças. Arremessa os dados novamente e então junta quatro. Ela o declara vencedor, porque conseguiu fazer o “minarete”. Eles discordam sobre as regras e encerram a partida.

Lá fora, sob a grande faia vermelho-sangue, admiram juntos o vale. O camelo furtivo se aproxima da hospedaria.

O garoto árabe se vira para ela e diz: — Meu trisavô viajava montado em camelos. Meu bisavô dirigia uma Mercedes, e meu avô viajava pelo mundo num Jumbo. Nós voltamos a viajar em camelos. — Ele olha pensativo para ela e acrescenta:— O petróleo foi uma tragédia para meu país. Ficamos ricos num piscar de olhos, e agora estamos pobres. Como podemos ser ricos se nem temos mais um país onde morar?

O garoto vai viajar. Outro grupo de árabes e uma cáfila de camelos estão reunidos ao lado da hospedaria. Sai fumaça das grelhas e panelas. A bisavó de Nova sai para se despedir. Então o garoto tira um anel vermelho do dedo.

Ele o entrega para Olla e agradece pelo pernoite e pelos cuidados.

Nova fica triste porque é Olla quem recebe os agradecimentos. Mas ele se vira para ela e acaricia seus cabelos.

É a primeira vez que um garoto faz isso com ela. Ele diz que a bisavó é velha, e um dia Nova vai herdar o anel. Ele diz que é o anel de Aladim, da velha história contada em As mil e uma noites.

Ela encara bem aqueles dois olhos escuros, quase completamente negros, e se dá conta do mistério profundo.


O arquivo

 


Anna caiu em si ao se sentar num pufe azul diante da janela estreita. Ela estava esgotada. Conseguiu evoluir bastante, voltando setenta anos no tempo. O mundo era como uma luva que ela podia virar do avesso e continuar usando. Ela era duas. Tinha dezesseis anos em 2082 e completaria dezesseis anos no dia seguinte, em 2012.

O aniversário estava chegando!

Ela tirou o anel e o observou brilhar em frente à janela. Diziam que a cor daquele rubi era como sangue de pomba: vermelho profundo, mas com um quê azulado. Anna conseguia ver o reflexo no vidro. Era um rubi-estrela, chamado assim porque em sua superfície rebrilha uma estrela de seis pontas.

Ela sabia o que tinha se passado com o anel nos cem anos anteriores, ou quase. Mas já tinha ouvido relatos sobre ele que eram bem mais antigos. A velha tia Sunniva tinha contado à família que era de origem persa, mas a pedra vinha da Birmânia...

Anna sentou diante do computador e digitou “www.arkive.org”. No instante seguinte, estava em seu site favorito: Imagens da Vida na Terra.

Na tela, ela logo viu uma foto de Sir David Attenborough e um lince ibérico. Podia escolher entre milhares de espécies animais e vegetais para analisar de perto e admirar lindas fotografias e vídeos. Podia aprender sobre os hábitats de determinada espécie e compará-los com o passado recente.

Muitos dos ecossistemas do planeta já tinham diminuído de tamanho, e os corredores que interligavam as zonas imaculadas estavam desaparecendo num ritmo acelerado. Na África, por exemplo, o continente era quase inteiramente coberto por plantas e animais, mas aquela área tinha sido reduzida a poucos espaços de floresta original. O mesmo valia para Europa, Ásia e América. A diferença era que a redução da biodiversidade na Europa começara muito antes que nos demais continentes. Nas áreas centrais do velho continente quase não havia mais grandes predadores. Somente na Noruega, mais de cinco mil ursos tinham desaparecido na segunda metade do século XIX.

Ela escreveu “Hominidae” no campo de busca e pôde escolher entre as seis espécies de grandes primatas: duas de chimpanzés, duas de gorilas e duas de orangotangos. Quatro estavam seriamente ameaçadas, e duas eram consideradas criticamente ameaçadas pela União Internacional para Conservação da Natureza.

Portanto, todos os grandes símios da Terra estavam séria ou criticamente ameaçados.

“Criticamente ameaçados” significava que estavam sob “risco extremamente alto” de serem extintos em poucas décadas, enquanto “sériamente ameaçados” queria dizer que sofriam “risco muito alto” de extinção. “Muito alto” tampouco era bom.

Ela clicou em alguns vídeos. Eram as mesmas imagens que tinha visto na tela pendurada no teto inclinado quando estava no avesso da luva. Mas lá, poucas dezenas de anos depois, as espécies já estavam extintas. No momento, a situação ainda não era tão desesperadora. Alguns animais continuavam vivendo soltos na natureza, em um punhado de colônias isoladas, em oásis dispersos dentro dos biomas originais.

Ao mesmo tempo, o homem tinha evoluído para se tornar o mamífero mais predominante no mundo. Não havia nenhuma espécie com um número maior de indivíduos que o Homo sapiens. Claro que uma coisa estava ligada à outra: era exatamente o ser humano quem ameaçava suas espécies próximas de extinção, não apenas com a derrubada das florestas e a eliminação dos biomas originais, mas devido à caça ilegal.

Ela deu uma olhada em alguns dos grandes predadores do planeta. Muitas daquelas espécies estavam correndo tanto risco quanto os grandes primatas. Ao longo dos séculos anteriores, a distribuição geográfica do tigre havia sido reduzida em noventa e três por cento. A diminuição da biodiversidade não valia, naturalmente, apenas para os grandes primatas e predadores. Milhares— provavelmente centenas de milhares— de espécies vegetais e animais estavam ameaçadas simplesmente porque grandes ecossistemas estavam sendo reduzidos e eliminados por conta das mudanças climáticas causadas pelo homem.

Anna deu uma olhada no rubi vermelho mais uma vez. Em sua existência, a natureza do planeta fora dramaticamente alterada. Como estariam as coisas em mais cem anos?

Anna tinha quase esquecido o outro presente de aniversário que tinha ganhado.

Pegou o celular novinho e o ligou. Tinha recebido uma mensagem de texto, a primeira no novo aparelho. Era de Jonas.

Tá acordada? Me liga.

Ela ficou com peso na consciência, porque tinha prometido ligar assim que acordasse, mas respondeu: Tô ocupada. Negócio sério, importância cósmica. Ligo daqui a pouco.

Passaram alguns segundos e veio a resposta: Tá. Quando puder. Quero saber dessa história.

Vários aplicativos de jornais e outras mídias tinham vindo instalados no celular. Ela acessou o de um site de notícias e foi levada à manchete “AINDA DESAPARECIDA”.

A norueguesa Ester Antonsen (foto) ainda é refém na Somália. Membro de uma das maiores organizações alimentares do mundo, o Programa Mundial de Alimentos, ela foi levada ontem do aeroporto internacional de Mogadíscio. Estava acompanhada de um colega norte-americano e de um egípcio, que também foram levados, além de motoristas locais responsáveis por conduzir os caminhões de alimentos.

Enquanto isso, a fome continua sendo um problema sério no Chifre da África. Depois da seca catastrófica do ano passado, milhões de pessoas já morreram, e muitos refugiados tentam se salvar fugindo da área afetada.

Fatores políticos sem dúvida tiveram impacto no aumento do sofrimento da população, mas cientistas não têm mais como descartar a hipótese de que haja uma relação com as mudanças climáticas induzidas pelo homem.

Anna reparou na foto da norueguesa desaparecida. Ela devia ter uns trinta anos. Será que já a tinha visto? Não a conhecia? Não seria aquela professora substituta do ano anterior? Ou era apenas mais um sonho?

Já acontecera de Anna ser apresentada a pessoas que nunca tinha visto antes e ter certeza de que havia sonhado com elas. Chegara à conclusão de que era melhor nem mencionar aquilo para alguém que tinha acabado de conhecer. Em contextos assim, era melhor não dizer uma frase como: “Foi muito legal conhecer você pessoalmente, depois de te ver nos meus sonhos”.


A caravana

 


Ela está sentada no alto da corcova de um camelo. Na sua frente, mais quatro animais seguem sacolejando. São usados para carregar pertences da comitiva, como tapetes e outros objetos de artesanato que serão vendidos nos grandes mercados de Molde e de Kristiansund. Também carregam colares de pérolas e sacos de especiarias que pendem dos flancos.

Somente Nova ocupa uma sela num camelo, e é o garoto árabe quem lidera a comitiva. Sobre os ombros ela veste uma capa vermelha, que ganhou de presente de uma das mulheres. Olhando a paisagem do alto ela se sente uma princesa árabe. O garoto olha para ela e sorri.

— Sheika!— ele diz.

Ela vai acompanhar a caravana por um trecho do caminho, mas vai pegar o ônibus elétrico para voltar para casa quando passarem por Lo, no extremo oeste do vale. Decidiu ir junto apenas por diversão, mas ficou bem amiga do garoto árabe e agora os dois não se desgrudam.

A comitiva é composta por umas trinta pessoas de todas as idades. Na frente dos camelos vai um homem batendo repetidamente num tambor de pele de camelo, e uma menina de uns doze anos fica ao redor dançando e tocando uma flauta de bambu.

Eles cruzam a ponte e começam a longa marcha para cruzar a montanha. Parou de chover, mas o terreno está molhado e gotas de água ainda pingam das árvores.

O rio ruge cortando o vale, e o nível da água está perigosamente alto. Espera-se que leve alguns dias para voltar a chover.

O país nunca esteve tão quente, úmido e verde, e a água dos rios nunca foi tão turva. Em quarenta anos, a população quintuplicou, não apenas por conta dos nascimentos, mas pelas constantes levas de imigrantes climáticos.

Somente as regiões mais ao norte do globo tiveram certas vantagens decorrentes das dramáticas mudanças do clima.

Além disso, em muitos países do norte ainda havia bastante espaço livre.

Ela conta ao garoto árabe sobre os céticos climáticos do início do século. Eram pessoas de meia-idade que por muito tempo negaram que o aquecimento global existia. Ou se recusavam a admitir que era causado pelo homem. De qualquer maneira, era apenas uma questão de olhar para quem vivia no extremo norte...

— É o que chamo de não estar nem aí para o perigo— retrucou o garoto árabe. — As avestruzes da África e do Oriente Médio às vezes ficavam tão assustadas que enfiavam a cabeça na areia. A tática nem sempre funcionava, e agora elas estão extintas.

Sentada no camelo, Nova começa a rir. Quase tem que gritar para ele escutá-la.

— E tinha gente que dizia que não era preciso se preocupar com o derretimento de gelo do Ártico. Quase ninguém mais andava de esqui ou de patins por lá mesmo... Além disso, debaixo do gelo havia enormes depósitos de petróleo, e a Noruega tinha direito sobre o petróleo até quase o polo Norte. Para que se preocupar em manter os ursos-polares vivos? Já não bastava ter que salvar os pandas? Os céticos do clima, porém, não perceberam que quando o gelo derreteu era um aviso de que o planeta inteiro estava se aquecendo. E agora aqui estou eu, na Noruega, na corcunda de um camelo!

*

Eles chegam a Lo. Ele a ajuda a descer do camelo e a caravana some de vista sem demora. O ônibus elétrico chegará a qualquer momento.

Os dois trocam Skype e prometem que vão se encontrar de novo. Ele mostra no celular imagens do pequeno emirado de onde vem. Mas Nova não consegue ver nada. É apenas areia.

— Não tem mais cidades?— pergunta ela.

— Claro que tem. As cidades estão lá, só que debaixo da areia.

Ele mexe no aparelhinho e finalmente consegue encontrar um pequeno bloco de prédios despontando um ou dois metros acima da areia do deserto. Então diz: — É um minarete.

O ônibus chega e eles batem as mãos antes de ela embarcar.


As listas vermelhas

 


Anna ficou parada com o celular nas mãos imaginando de onde conhecia aquela mulher que tinha sido sequestrada. Seria do passeio que fizera por Oslo com Jonas? Os dois esbarraram com várias pessoas quando visitaram a Casa do Meio Ambiente para pegar panfletos e dicas úteis de como fundar uma organização ambiental. Mas não era provável que ela já estivesse na África na missão do programa de alimentos da ONU?

Conversaram com alguém do Fundo Amazônia e com uma mulher que mencionou um Fundo para Países em Desenvolvimento. Será que aquelas organizações tinham algum tipo de parceria com o Programa Mundial de Alimentos? Não fazia sentido... não exatamente.

Ela pegou o maravilhoso livro australiano Um hiato na natureza. Pesava mais de um quilo, talvez um quilo e meio. A capa tinha o desenho de um dodó, pombo gigante que habitava as Ilhas Maurício e tinha sido visto pela última vez em 1681. Na primeira página havia um desenho de um moa, um pássaro dizimado pelos maoris na Nova Zelândia por volta do ano 1600, seguido por imagens de mamíferos, pássaros e répteis extintos de 1500 a 1989.

Dodós e moas tinham em comum o fato de que não podiam voar. Além disso, não tinham inimigos naturais até os europeus chegarem ao seu hábitat. Então, tornaram-se presas fáceis.

Anna tinha lido em algum lugar que o moa continuava a ocupar um espaço no folclore maori. Na Nova Zelândia — ou Ao-tea-roa, o nome do país no idioma maori— até então se ouvia a seguinte canção de lamento: “Não tem moa, não tem moa, na velha Ao-tea-roa. Sumiram. Comeram tudo. Foram embora e não tem mais moa”.

Dentro do livro havia uma página impressa da internet: As listas vermelhas de espécies vegetais e animais ameaçadas continuam sendo publicadas em volumes ricamente ilustrados. Há espécies que estão criticamente ameaçadas, seriamente ameaçadas e vulneráveis. Uma evolução natural dessa tendência será, em alguns anos, encontrar belíssimos “livros de arte” com espécies já extintas. Serão as mesmíssimas fotografias que poucos anos antes ilustravam listas de espécies ameaçadas, e talvez no futuro passemos a nos referir a elas como “fotofósseis”, isto é, espécies que chamaram a atenção do público pouco antes que seus biomas desaparecessem e as levassem consigo.

Não é irônico que a fotografia— e o armazenamento digital de informações— tenha se popularizado justo agora quando começamos a ameaçar seriamente a biodiversidade da Terra? Um dia o interesse das crianças por dinossauros vai ser substituído por uma verdadeira febre de galerias de fotos de aves e mamíferos extintos. Pelo menos nesse caso podemos esperar um renascimento do jogo da memória.

Era loucura. Que direito o ser humano tinha de erradicar outras formas de vida?

O que havia de errado com nossa espécie? Era o que Anna precisava descobrir o mais rápido possível.

Então ela teve uma ideia. Abriu a gaveta da escrivaninha e procurou o cartão do dr.

Benjamin. Ele tinha dito que ela poderia ligar se quisesse. Por via das dúvidas, enviou uma mensagem de texto primeiro.

O que há de errado com os humanos? Podemos falar sobre isso? Posso te ligar?

Beijos, Anna ( Nyrud ) Não demorou nem um minuto para ele responder.

Pode ligar agora. Não estou no trabalho.

“Não estou no trabalho.” Por que ele tinha escrito aquilo? Se ele estivesse no hospital, não seria conveniente ligar. Mesmo assim alguma coisa parecia estranha. Por que o dr. Benjamin teria que deixar tão claro que não estava no trabalho? E por que não estava?

Um caos começou a turvar seus pensamentos. Mas, mesmo antes de conseguir organizar as ideias, Anna simplesmente ligou. Passaram-se alguns segundos e ele atendeu.

— Benjamin.

— Aqui é a Anna.

— Olá!

— Parecendo nervoso pela sua voz.

— Sim, claro. Por que me ligou, Anna?

“Claro”? Anna entendeu muito bem. Mas se lembrou do motivo do telefonema.

— Existe algum exame psiquiátrico da espécie humana? Estamos destruindo nosso próprio planeta. Por que fazemos isso?

— ...

— Alô?

— “O que há de errado com os humanos?”, você escreveu. E não sabe de nada?

— Do quê?

— Da minha filha.

— Ester Antonsen!

— Sim, minha filha. Então você sabia?

— Não, só percebi agora. Agorinha mesmo! Tinha uma foto dela na sua escrivaninha... num porta-retratos vermelho. Acho que chamou minha atenção.

— Na verdade é uma foto da minha esposa quando tinha a idade dela.

— É mesmo? Então as duas são muito parecidas...

— Sim... Mas pode falar, Anna. Diga. Estou um pouco nervoso e certamente preciso desabafar um pouco.

— Um psiquiatra em casa ainda tem disposição para bater um papo com os pacientes?

— É assim mesmo. A mente humana é uma coisa complicada.

— Sobre o que você quer conversar?

— Recebeu a visita de alguma rena esses dias?

Ela riu.

— Sim, o tempo inteiro. Acho que elas estão me espionando para o Papai Noel.

— Talvez estejam tentando descobrir o que você quer de Natal.

— Talvez... Acho que Ester vai ficar bem, e não porque acredito em Papai Noel. E acho que você tem que pensar positivo, dr. Benjamin. Não vai ajudar em nada se ficar abatido. Além disso, pode ser que precise de uma reserva de energia nos próximos dias.

— Isso é verdade, Anna. Bem pensado.

— E acho que ela está fazendo um ótimo trabalho no Programa Mundial de Alimentos. É muito bom que existam pessoas entusiasmadas assim. — Anna voltou ao motivo inicial da ligação e disse:— Quanto ao exame psiquiátrico da humanidade, podemos deixar para uma próxima. Aí posso contar sobre uns sonhos malucos que ando tendo. Sonhei que era minha própria bisneta e me vi como uma bisavó velhinha. O que também podemos deixar para outro momento.

— Acho melhor, Anna. Mas obrigado por ter ligado.

— Vou acompanhar de perto o noticiário, dr. Benjamin.

— Benjamin... ou dr. Antonsen.

— Muito bem, dr. Antonsen. Quero dizer, Benjamin! Devia ter lido direito seu cartão. Agora que liguei os pontos.

— Até breve!

— Tchau.


Noite de inverno

 


Ela está sentada numa pequena clareira na floresta, sob um céu de estrelas cintilantes. Segura o terminal, tentando descobrir o que se passou com seu planeta. Quer ver a devastação. Por isso escapou para o meio da floresta. Quer ver o mundo se desfazendo. Sente-se tão envergonhada que nem consegue ver a tela em casa. Alguém poderia entrar e descobrir o que estava acontecendo. Pare já de choramingar, Nova!

A garota observa a tela do terminal e vai clicando em todos os pontos do planeta, um atrás do outro. Tem à disposição um conjunto de aplicativos que reúnem todas as informações sobre o extermínio da natureza.

O globo inteiro é vigiado por câmeras conectadas à internet, e num piscar de olhos ela acompanha o encolhimento das geleiras nos confins do mundo. De trecho em trecho pode ver a seca gradualmente se alastrando sobre a África, a América, a Austrália e o Oriente Médio. É uma verdade quadridimensional. Ela enxerga nitidamente os detalhes de um mundo cuja natureza um dia foi exuberante e diversa, e no instante seguinte testemunha como um padrão de aniquilamento foi se tornando cada vez mais comum. Revê como os continentes, países e regiões foram perdendo a riqueza de espécies e o esplendor. A tecnologia é fácil, seus dedos vão dançando pela tela com destreza, mas é uma dança macabra.

Ela tem acesso aos noticiários transmitidos em todo o mundo, reportagens e documentários, e os aplicativos selecionam o que vai ver segundo critérios que ela mesma estipulou. Ela tem acesso a tudo. Não há limites no planeta.

Na percepção. Ela está on-line. Cem por cento conectada.

Nova amplia e reduz as imagens. O terminal é uma máquina do tempo. Suas têmporas pulsam com tantas sensações. O aparelho possui bons alto-falantes e muitas dessas sensações chegam à sua alma pelos ouvidos. Ela não apenas vê como a humanidade derrubou as florestas tropicais. Ouve o ruído das motosserras. Ouve as chamas farfalhando e o crepitar das brasas. Vê as terríveis imagens de ciclones e furacões, os borrifos de água, ouve o uivo do vento e o choro e o desespero das pessoas.

Segue de perto como a população mundial vai diminuindo gradativamente, como milhões são dizimados pela fome e pelas catástrofes climáticas, como milhões morrem numa última e desesperada guerra para conquistar o que restava de recursos naturais e solo fértil. Não houve mais nenhum censo de verdade depois que os conflitos irromperam. Mas se estima que a população mundial tenha se reduzido a menos de um bilhão de pessoas.

Nenhuma das paisagens pelas quais ela navega é imaginária. É um jogo com apenas duas coordenadas: tempo e espaço. A Amazônia de 1960 não é a Amazônia de 2060. O Serengueti de 2080 não é o Serengueti de 1980. A Terra de 2082 não é a Terra de 2012.

O ano de Anna não é o ano de Nova. O relógio do apocalipse não marca mais cinco para as doze. Marca doze... do doze.

Ela se volta uma última vez para o mundo tal como era— as florestas tropicais infinitas, as savanas e os recifes de corais... Só que ecossistemas intactos como esses não existem mais. O que corta o coração é justamente vê-los brilhando na tela. É como se estivesse diante de paisagens de outro planeta, e não da sua Terra debilitada e estéril.

Ela chora. Desliga o terminal e tudo ao redor fica escuro como breu. Lá no alto, milhares de sóis distantes perfuram minúsculos orifícios no manto da noite. Ela admira o largo cinturão de estrelas da Via Láctea. O céu está cheio de sóis como o dela. Porém estão tão longe que não lhe dizem respeito, e ela não encontra nenhum conforto neles.

Talvez exista vida inteligente apenas em seu próprio planeta. E quando chegar o dia em que já não vão existir pessoas aqui? Será que as estrelas e os planetas continuarão existindo no espaço sem alguém para reparar neles?

Ela se encolhe e tenta parar de chorar. Está determinada a não se sentir mal. Não inveja aqueles que foram responsáveis pelo que aconteceu com seu planeta. Não chora nem se sente mal por eles.


A herança mundial

 


Anna acompanhava o drama dos reféns pela internet. Mas não havia notícias novas do Chifre da África. Ela deparou com um curto boletim de um canal de TV. Tinha ido ao ar pela manhã, mas demorara um século para baixá-lo. Aos poucos, Anna se familiarizava com o novo celular. Em pouco tempo já estava acessando os podcasts da rádio pública norueguesa e escutando um programa que tinha sido transmitido alguns dias antes. Uma voz masculina dizia: O homem moderno é resultado de uma longa conformação de pressupostos histórico-culturais da própria civilização que nos moldou. Podemos dizer que administramos uma herança cultural. Além disso, somos moldados pela história biológica deste planeta. Então também administramos uma herança genética.

Bilhões de anos foram necessários para esse resultado. A bem dizer, é preciso bilhões de anos para criar um ser humano! Mas será que conseguiremos chegar ao terceiro milênio?

O que é o tempo? Primeiro temos o horizonte individual, depois o familiar, o intelectual e o cultural, mas temos ainda o que chamamos de tempo geológico. Descendemos de uns poucos seres que se arrastaram para fora do mar há pouco mais de trezentos e cinquenta milhões de anos. Em última instância, dizemos respeito a uma escala de tempo cósmica. Habitamos um Universo que tem aproximadamente 13,7 bilhões anos de idade.

Mas os períodos de tempo que mencionamos antes não estão de fato tão separados como parecem à primeira vista. Temos motivos para nos sentir em casa no Universo. O planeta onde vivemos tem quase certamente um terço da idade do Universo, e o filo a que pertencemos, o dos vertebrados, tem cerca de dez por cento do tempo de vida da Terra e deste sistema solar. O Universo não é mais infinito do que isso. O mesmo vale se invertermos o raciocínio: nossas raízes e nossa ancestralidade estão profundamente arraigados no seio universal.

O homem é possivelmente o único ser vivo em todo o Universo provido de uma consciência universal— um deslumbre arrebatador diante desse misterioso todo do qual somos parte. Preservar os fundamentos da vida neste planeta não é apenas uma responsabilidade global— é uma responsabilidade cósmica.

“Temos motivos para nos sentir em casa no Universo.” Foi esta a frase que mais a impressionara quando escutou o programa pela primeira vez. Mesmo que existisse em outros planetas, a vida na Terra representava todo o Universo, e com a sua consciência, o ser humano ocupava um lugar privilegiado nele. Mas o ser humano não poderia existir sem que existissem outras vidas. Uma condição necessária para a existência humana era a existência de algo tão minúsculo e insignificante como certas bactérias.

Até mesmo elas tinham uma importância cósmica, pois contribuíram para elevar a consciência humana sobre o planeta e sobre o Universo. Era preciso tirar o chapéu para aqueles micro-organismos! As bactérias dificilmente receberiam o devido crédito por desempenhar um papel cósmico!

Anna caiu na gargalhada. A ideia de que uma bactéria minúscula contribuía para dar um sentido ao Universo era muito engraçada.

Ela espiou na direção do posto de gasolina e se deu conta do belíssimo dia de inverno que fazia. Era hora de ligar para Jonas! Mas ele se antecipou.

Jonas morava em Lo, no alto do vale, a poucos quilômetros dali. Eles nunca tinham se visto até Anna entrar no ensino médio, no outono. A escola congregava alunos de boa parte do condado, alguns separados por vários quilômetros de distância. Aquela era uma das razões pelas quais era tão difícil organizar atividades à noite.

A neve chegara mais cedo naquele ano, e já era possível esquiar desde meados de novembro. Os alunos se encontravam no alto das montanhas, onde a família de Anna possuía uma casa havia muito tempo. E foi exatamente aquilo que Jonas sugeriu. Ele disse que aquele era o último dia em que namoraria uma menina de quinze anos.

Não fora a melhor coisa a dizer, e avivara em Anna a lembrança da misteriosa carta que Olla tinha escrito para a bisneta. Ela tinha que ser escrita antes de 12 de dezembro de 2012. Do contrário, não chegaria à destinatária. Do contrário, não passaria pelo filtro da pesquisa. Era aquela a questão. Era aquela a lógica. Anna disse: — Na verdade, estou um pouco ocupada. Com uns lances.

— De importância cósmica?

— É. Mas tem outra coisa também. Você viu o noticiário hoje?

— Você demorou tanto para me ligar que deu tempo de dar uma zapeada na internet. Por quê?

— Ester Antonsen.

— A da Somália?

— Sim...

— É tão bizarro que nem parece verdade. Ser capturada no aeroporto em Mogadíscio...

— Ester Antonsen é filha do Benjamin. Acabei de ligar para ele.

— Você falou com o dr. Benjamin?

— Dr. Antonsen, Jonas. O nome dele é Benjamin Antonsen.

— Certo.

— Foi mal, eu que fiz confusão com o nome dele.

— Mas ele ligou só para dizer que a filha tinha sido sequestrada?

— Não, eu que liguei.

— Pra quê?

— Não importa. Queria perguntar sobre uma avaliação psiquiátrica da humanidade. Nosso desprezo em relação a outras formas de vida, nossa falta de respeito pelos nossos descendentes. Mas talvez na verdade eu tenha ligado porque acabara de ver uma foto de Ester Antonsen na internet. Devo ter lembrado da foto que Benjamin tinha no consultório. Na verdade era da mulher dele mais nova, então as duas devem ser muito parecidas...

— Anna, vamos continuar esse assunto na montanha. Podemos acompanhar o noticiário de lá, claro.

Ela fingiu que não estava a fim.

— Só vou com uma condição — disse.

— Qual?

— Você vai ter que esquiar por oito quilômetros. E vai ter que pensar numa coisa.

— Ah, é?

— É uma tarefa que vai ter que me ajudar a resolver.

— Então tá. Faço qualquer coisa por você.

— Como vamos conseguir salvar mil e uma espécies de plantas e animais?

— Hã?! Isso tem a ver com nosso grupo ambiental?

— Não diretamente. Só preciso organizar os pensamentos... Tive um sonho essa noite.

— Típico. Mas por que mil e uma?

Ela riu.

— Como as mil e uma noites. As crianças dizem mil quando querem se referir a algo infinitamente grande, mas eu digo mil e um.

— Você está é ficando maluca.

— Pode ser. Estou com um pouco de medo disso. Mas Benjamin disse que não estou.

— Vamos confiar nele, então.

— Quando a gente se encontrar, você tem que me dizer como vamos conseguir salvar mil e uma espécies de plantas e animais da extinção. Se conseguir, ganha um beijo. Se não conseguir, ganha um soco!

— Então é melhor eu conseguir. Você não pode me dar um soco.

— Não quero mesmo. Gosto muito de você.

— Ufa! Nos vemos na montanha daqui a umas duas horas?

— Espera um pouco.

— O quê?

— Você acha que realidades paralelas existem?

— Anna!

— Tive de novo a sensação de estar vivendo em dois mundos diferentes. Ou pelo menos de ter algum tipo de ligação com outra dimensão. De existir alguma coisa do outro lado... É uma coisa que eu sinto.

— Já falamos sobre isso antes.

— Já.

— Fico com medo quando você fala desse jeito.

— Medo de que exista outra dimensão? Ou medo do que pode estar do outro lado?

— Medo de que existam várias realidades ao mesmo tempo dentro da sua cabeça.

— Não precisa ter medo, Jonas. A gente se vê daqui a pouco.

— Boa viagem! Vê se você se concentra um pouco na realidade que compartilha comigo!

— Vou tentar. Nos vemos logo!

— Tchau!

Anna levantou, pensativa, então aconteceu de novo: ela deparou com um pedacinho de algo que percebia como se fosse uma eternidade, uma cena cotidiana de outra vida, um milésimo de outro universo...


Os balões

 


Ela sai pelo jardim carregando um monte de balões vermelhos. Em cada um está desenhada em azul a silhueta de uma espécie extinta. Anna vai até a hospedaria vender os balões por lá. Precisa de dinheiro para comprar um terminal novo. Muitos viajantes vão querer comprar um balão vermelho com um leão ou um gorila para dar aos filhos.

Seus pais estão no jardim, cada um em cima de uma escada, fazendo a polinização das plantas manualmente. Não existem mais abelhas e vespas. Elas começaram a sumir há mais de cem anos. As causas foram várias, e de repente já não havia mais abelhas. O trabalho árduo que bilhões delas executavam tinha que ser realizado por mãos humanas.

Os dois acenam para ela do alto da escada. Ambos estão usando macacão azul. Ela acha que estão lindos.

— Belos balões— diz o pai.

— É quase uma pena se desfazer deles— diz a mãe.

Sua bisavó surge no jardim trazendo uma grande bandeja nas mãos. Preparou alguma coisa para comer. Nova sabe que é comida sintética. Está de saco cheio de tanta comida sintética, mesmo que digam que contém todos os nutrientes essenciais de que precisa.

Olla pede ajuda para pôr a mesa no jardim, onde já está um vaso com tulipas vermelhas. Ela vai até a bisavó e tira as coisas da bandeja. Passa o monte de balões da mão esquerda para a direita, mas perde a concentração por uma fração de segundos e deixa escapar o fio. Isso acontece agora.

Agora!

Eles flutuam a uma distância de pouco mais de um braço, ainda tão próximos que ela quase consegue agarrá-los de volta com um pulo. Ela tenta e tenta, mas é tarde demais, os balões continuam a subir pelo ar, carregados pelo vento até desaparecer como pontinhos vermelhos no fundo azul.


A piscina

 


Havia duas possibilidades. A primeira era que Anna tinha sonhado com todos os episódios de um futuro distante. Naquele caso, uma sequência inteira de eventos coloridos, encadeados como pérolas de um colar, devia ter ocorrido desde o fim da noite anterior, quando ela fora dormir, até a hora que acordara pela manhã com os sonhos na memória. A segunda era que, ao longo do tempo, ela tinha recolhido todos aqueles sonhos em um único universo, e somente naquele dia conseguira se lembrar de todos juntos. O sonho com Olla e o anel vermelho, pelo menos, tinha sido durante aquela noite, pois fora com ele que acordara. Talvez realmente tivesse despertado os demais do oceano de esquecimento onde estavam.

Qual das possibilidades seria a mais provável? E qual seria a mais plausível?

Havia uma terceira possibilidade, que Anna não estava disposta a descartar: a de que tudo o que sonhara era verdadeiro. Talvez trouxesse dentro de si uma futura bisneta, uma criança maravilhosa que inexplicavelmente conseguia transmitir suas impressões e vivências para a bisavó, ou seja, Anna, quando tinha a mesma idade que ela. Havia muitas coisas na natureza que as pessoas não entendiam. O tempo, por exemplo. O que era ele, afinal?

Pelo menos uma coisa era certa: os pais de Nova, que estavam no alto da escada fazendo a polinização manual, não pareciam nem de longe com os pais de Anna.

Ambos não pareciam com ninguém que ela conhecesse.

Ela não conseguia se lembrar de ter visto uma mulher tão linda quanto a mãe de Nova, nem mesmo nos filmes. Tampouco conhecera um cara tão bonito quanto o pai de Nova. Seu olhar era vivaz e tinha um brilho intenso que não esvanecia. Se pudesse, Anna seria capaz de cruzar meio mundo para voltar a encontrá-los.

Ou era ela vidente ou as pessoas que tinha visto no sonho eram reais e existiriam num futuro distante. Ou ela tinha criado do nada dois indivíduos distintos, fruto da mais pura imaginação. Qual seria a hipótese mais ousada? Talvez ela os tivesse criado!

Se soubesse desenhar, teria condições de reproduzir o rosto dos pais de Nova nos mínimos detalhes. Se os visse de relance no meio da rua, imediatamente os reconheceria e iria até eles. Um dos dois tinha que ser neto de Anna.

De novo ela se lembrou da carta que Nova encontrara na internet, um texto escrito quando Olla era jovem. Mas aquela pessoa era Anna, ora! Ela estava ficando tonta com tantos sonhos superpostos e inter-relacionados.

Realidade, sonho...

O que era realidade? E o que era sonho?

No banheiro, ela se pegou pensando num dia de primavera em que a mãe estava no jardim medindo tudo com uma longa fita métrica. Anna perguntara o que ela estava aprontando, e a mãe respondera que talvez fossem fazer uma piscina ali. Não era tão caro assim, ela explicara. Na verdade era bem mais barato do que tinham pensado.

Eles estavam comparando preços.

A princípio, Anna ficou de queixo caído. Depois ficou muito preocupada, sobretudo com a saúde e o bem-estar da mãe. Não havia lugar para piscina naquele jardim. Mas a mãe insistia que havia, por isso estava medindo o local. Obviamente teriam que remover as árvores frutíferas. E as rosas e as groselheiras. O pequeno jardim também abrigava uma colmeia, mas já fazia tempo que o pai queria acabar com aquele negócio de apicultura.

— O verão aqui é muito curto, Anna. É bom tomar um banho refrescante quando o sol resolve aparecer. Além disso, é saudável.

No meio da grama havia um banco pintado de branco e algumas cadeiras de jardim em volta de uma mesinha, e Anna esticara o braço para pedir que a mãe fosse se sentar um instante. Ela fizera como a filha pedira, sentando-se no banco do jardim, e Anna arrastara a cadeira para poder encarar bem nos olhos da mãe enquanto conversavam.

Ela dissera:

— Nessa cotação que vocês fizeram está incluído o que vamos perder de receitas neste jardim? Todas as peras, ameixas, cerejas e groselhas? E as rosas?

Anna se oferecera para fazer uma planilha. Chamara a atenção da mãe para o fato de que a natureza não se tratava apenas daquilo que era belo e admirável. Mencionara também algo que poderiam chamar de seus “serviços”. Assim que dissera aquilo, acrescentara que gostaria de deixar bem claro que adorava a grama cheia de trevos e as flores vermelhas e brancas exatamente do jeito que estavam, amava zanzar pelo jardim e se sentir parte dele, e se seus pais não tinham percebido, ela continuava a ser aquela menina que brincava nos galhos da pereira.

Para ter certeza de que a mãe a compreendera bem, terminara dizendo: — Amo isso aqui.

Nunca mais se voltara a falar no assunto da piscina.


As tulipas

 


Ela passeia na margem do rio com um buquê de tulipas vermelhas que provavelmente comprou na floricultura.

De repente, escuta uma sucessão de estrondos vindos do outro lado do rio. Cruza a ponte e ouve os golpes ritmados que vêm da floresta de pinheiros no alto da colina. Vê um pinheiro caindo. E mais um.

Ela se aventura por uma trilha estreita e sobe até o alto, onde o desmatamento está acontecendo, e encontra um grupo de homens de uniforme azul. Cada um empunha um machado e derruba uma árvore. Talvez sejam vinte ao todo. Nova fica com a impressão de que eles têm por volta de dois metros de altura e pesam mais de cem quilos.

Um dos homens está usando um gorro vermelho. Talvez seja o chefe. Ela vai até ele e encara seu rosto luzidio. O homem tem olhos violetas e deixa o machado de lado por um momento.

Ela pergunta:

— O que está acontecendo?

O homem enxuga o suor da testa e responde: — Estamos cortando esta floresta.

— Por quê?

Ele ri, ela acha que por conta da pergunta tão ingênua. Mas ele não é ingênuo. Diz: — Para dar lugar a um parque eólico. Por isso a floresta precisa ser derrubada. Tirar daqui para por ali, senhorita.

Quase sempre é assim.

— Acho uma pena perder a floresta.

Ele ri de novo, olha para as tulipas vermelhas e diz: — Mas talvez não seja essa a questão.

— Como assim?

— Pergunte quanto tempo vamos demorar para fazer esse trabalho.

— Quanto tempo vocês vão demorar?

Ele ergue um polegar e responde: — Ainda estamos no começo da primavera, somos vinte homens e os machados são afiados. Conseguimos terminar antes do Natal.

Ela assente.

— Então feliz Natal!

Ela lhe entrega as tulipas vermelhas e acrescenta: — Tome. Devem ser para você.

O grandalhão se curva respeitosamente.

— Muito obrigado. Que tal se eu contasse uma historinha curiosa?

Ela observa intrigada aqueles olhos violetas e volta a assentir. Ele diz: — Se tivesse um barril de diesel e uma motosserra, daria conta desse trabalho sozinho em dois dias.


A chave

 


Anna guardou o celular novo no bolso da jaqueta azul e, quando estava prestes a sair, lançou um olhar para as caixas “O que é o mundo?” e “O que precisa ser feito?”.

Pegou as folhas impressas e os recortes de jornal, guardou em sacos plásticos e os enfiou na jaqueta. Pouco tempo depois já estava a caminho do posto de gasolina, levando os bastões na mão esquerda e os esquis sobre o ombro direito.

Na frente do lava-jato havia um carro estacionado com o motor ligado. Anna deixou os esquis no chão e no instante seguinte surgiu uma mulher vestindo um jaquetão amarelo a caminho do carro. Ela trazia um cachorro-quente numa mão e uma revista na outra. Anna gritou para ela: — Eu estava pronta para desligar o carro e jogar a chave na neve!

Ela rapidamente calçou os esquis e tomou o rumo da montanha.

Estamos destruindo nosso planeta, pensou . Somos os culpados, isso está acontecendo diante dos nossos olhos.

Dias antes tinha feito uma cópia da chave da casa na montanha para Jonas, caso chegasse lá antes dela. Estava curiosa para saber quem seria o primeiro lá. Ele tinha que percorrer oito quilômetros; ela, apenas cinco. Mas Jonas esquiava mais rápido.

Ela tinha dado a ele muito no que pensar no caminho, mas aquilo não significava que ia reduzir a velocidade. Talvez acontecesse exatamente o contrário, Anna imaginou.

Quanto mais rápido se pensava, mais rápido se andava. Ou o contrário: quanto mais rápido se andava, mais rápido se pensava.

Ela ia devagar, lembrando-se do drama dos reféns na Somália e da conversa estranha que tivera com Benjamin. Antes de guardar o celular no bolso, consultou os jornais e fez algumas pesquisas. Descobriu que barcos estrangeiros tinham pescado uma grande quantidade de peixes na costa da Somália, e aquela era uma das razões dos episódios de pirataria que estavam ocorrendo ali. Durante muitos anos, pesqueiros— até mesmo da União Europeia— haviam pescado ilegalmente no mar da Somália, lucrando centenas de milhões de dólares por ano. O país exigiu nas Nações Unidas que os navios de guerra que estavam sendo empregados no combate à pirataria também fossem usados para impedir a pesca ilegal... Anna tinha lido que a Somália protestara contra os planos do Quênia de perfurar sua costa ilegalmente em busca de petróleo.

Segundo a convenção marítima das Nações Unidas, muitos dos campos de petróleo existentes pertenciam à Somália. Quatro grandes petrolíferas estavam envolvidas, entre elas a estatal norueguesa. Mas não havia nada de novo sobre os reféns, exceto a notícia de que os sequestradores ainda não tinham feito nenhuma exigência para libertá-los.

Anna chegou ao topo da montanha dando impulsos fortes com os bastões. Já perto da casa, parou um instante e ficou hipnotizada ao avistar uma caixa de correio verde.

Teria sonhado com caixas verdes como aquela? Ou seria algum tipo de robô ou máquina? Não, ela não tinha como se lembrar do que se tratava. Mas talvez ao longo do dia se lembrasse de algo. Mal passava do meio-dia.

Ela se encontrava bem no meio da floresta de Lia, onde Nova tinha estado com seu terminal portátil, admirando as estrelas. Ficou de pé, sorrindo para si mesma.

No meio daquelas árvores, Anna mantinha um esconderijo, um pedaço de chão que, durante o inverno, ficava quase totalmente livre de poluição visual, protegido tanto das luzes da cidade como dos holofotes da pista de esqui. Lá ela poderia ficar na escuridão apenas admirando o céu, exatamente como Nova.

A vida no planeta ainda tirava seu fôlego, muito mais que todos aqueles corpos celestes inanimados. Um esquilo não era mais notável que um buraco negro? Uma lebre ou uma raposa não eram mais importantes do que uma supernova sem vida?

Anna costumava ir para a floresta de Lia quando queria ficar um pouco sozinha durante o dia. Certa vez, pouco tempo antes, tinha discutido com Jonas por causa de suas “visões”. Anna ficara tão chateada que decidira se esconder na floresta.

Nunca tinha acontecido de esbarrar com alguém ali, no meio das árvores. Mas já tinha visto cervos. Sempre achara que eles eram seres mais misteriosos que os humanos. Não tinham trabalho. Não iam à escola, portanto não tinham que se preocupar com lição de casa. Não tinham casa, religião nem apólice de seguro. Não tinham nome nem carteira de identidade, tampouco pertenciam a alguém. Apenas eram. E, mesmo assim, não tinham menos alma por isso.

Como seria estar dentro do cérebro de um cervo? Seria mais ou menos diferente do que o cérebro de um camelo?

No sonho, Nova estava sentada no meio daquele descampado. Mas não exatamente onde Anna estava. O local era o mesmo, só que setenta anos no futuro. E havia outra coisa: não fora por acaso que Nova tinha escolhido exatamente aquela clareira. Talvez Olla a tivesse levado lá. De qualquer forma, Anna decidiu que algum dia estaria destinada a se tornar bisavó de uma garota que se chamava Nova, então ia lhe mostrar aquela clareira na floresta...

Ela achou que seus pensamentos estavam girando em círculos e desatou a rir. Riu tão alto que chegou a balançar os galhos de uns arbustos. Em seguida voltou a caminhar.

Quinze minutos depois, já tinha chegado ao planalto da montanha. A imponente estepe estava banhada pelo sol do inverno, e seu topo descampado se estendia até onde alcançava a vista.


As trilhas

 


É fim de outono. Enrolada num cachecol vermelho, Nova caminha por uma trilha na direção do velho curral.

Deixou para trás as encostas íngremes e chegou ao platô. Também ali as bétulas vicejam emaranhadas. Ela sabe que a área costumava ser um cume ermo, mas o campo aberto está repleto de bétulas e arbustos. Ocultas pela vegetação densa, ela já não consegue ver nem a estepe nem as rochas preto-azuladas da montanha. Sabe que em algum lugar atrás da mata de bétulas, nos picos da montanha, existe um local coberto de musgo e líquen; sabe que naquela altitude é possível aprender mais sobre mitos e lendas antigos; talvez conheça o terreno o suficiente para encontrar o caminho que leva até o meio daquela vastidão de trilhas e estradas cobertas por pedregulhos, mas simplesmente não consegue avistá-los de onde está. Mesmo assim, ela adora percorrer as trilhas por entre os troncos brancos das bétulas. As árvores e as urzes reluzem em tons intensos de amarelo e vermelho, e este ano o chão da floresta está atapetado de mirtilos e uvas-do-monte.

Ela caminha a passos leves; a sensação é de flutuar alguns milímetros acima do solo. A trilha encontra outra. Sem nem se dar conta ela sai de uma e passa para a outra. O passeio até o curral pode ficar para outra vez.

Ela quase sente vergonha por estar ali, divertindo-se nas trilhas, pois sabe muito bem que as infinitas matas de bétulas significam que muito da flora e da fauna montanhosa desapareceu. A paisagem perdeu suas características tradicionais, na qual vacas, ovelhas e cabras costumavam pastar. E ela sabe que o preço a pagar pela existência dos labirintos de bétulas naquela altitude é a seca, a fome e a crise climática em outras partes do mundo.

Mas ela se deixa absorver pela paisagem. Sente-se em casa. Ao se aproximar de uma guarita vermelha, onde um soldado uniformizado monta guarda diante de uma cancela fortificada, fica um tanto surpresa, mas aquela floresta lhe pertence e ela conhece as regras.

O soldado pede para inspecionar o terminal. Ela lhe entrega. Ele toca o aparelho e vai passando as telas em alta velocidade. Ela tem a impressão de que ele passa por centenas de sites em poucos segundos. Em seguida ele lhe devolve o terminal, abre a cancela e a deixa passar.


O curral

 


Anna se enfurnou dentro da casa. Lá fora o tempo tinha virado e ventava muito. Ela acendeu o fogão e colocou água para ferver para um chá. Tinha chegado antes de Jonas.

Às vezes, quando ficava sozinha ali, tinha a vaga sensação de estar na companhia de um ou mais amigos invisíveis. Às vezes ouvia um burburinho, não reverberando nas paredes, mas dentro da própria cabeça. Quando estava a fim, respondia em voz alta: “Não, não concordo com nada do que estão dizendo!” ou “Exatamente! É como sempre digo!”. Ela falava tão alto que chegava a assustar os pássaros no quintal. Se alguém a flagrasse, ia dizer que estava falando sozinha. Mas Anna nunca se sentia intimidada por aqueles pensamentos.

De repente, ouviu a própria voz ecoando no ambiente: — Como estarão as coisas com Ester?

Anna correu para pegar o celular no bolso da jaqueta. Tinha sinal. Ela entrou no site que costumava ler e havia muitas, muitas notícias.

Tanto o refém norte-americano como o egípcio foram libertados do cativeiro na Somália e conseguiram cruzar a fronteira com o Quênia, onde estão em poder das autoridades e da equipe do Programa Mundial de Alimentos da ONU. Apenas a voluntária norueguesa, Ester Antonsen, continua refém no convulsionado país do Chifre da África. Sarah Hames e Ali Al-Hamid divulgaram as exigências dos sequestradores. Para libertá-la, exigem que a Statoil, estatal norueguesa do petróleo, suspenda as atividades de perfuração em parceria com empresas do Quênia no alto-mar somali, que consideram ilegais. Hames e Al-Hamid se referem aos sequestradores como “profissionais” e “determinados”...

Anna não precisou ler mais nada. Ligou para Benjamin. Demorou um bom tempo para ele atender.

— Ben!

— Aqui é Anna. Como você está?

— Não posso falar por muito tempo, tenho que deixar a linha desocupada.

— Você está tendo o auxílio de que precisa?

— Também tenho que fornecer auxílio. Ester tem marido e filhos.

— Eles estão aí com você?

— Agora não. Estou tentando falar com o ministério das Relações Exteriores.

— Ninguém fez contato com ela ainda?

— Não, ninguém. O que mais me preocupa é o estado atual dela.

— Claro.

— Desde pequena sempre teve claustrofobia. Sabe o que é?

— Pânico de lugares fechados.

— E eu, um psiquiatra, nunca consegui curar minha filha. Quando vai para Nova York, prefere subir trinta lances de escada a pegar um elevador. Mas preciso desligar, Anna. Não posso falar mais.

— Espere!

— Fale rápido.

— Calma! Tente conter os impulsos negativos. Pegue o celular e dê uma volta. Você precisa espairecer. Limpar a mente!

— Você é uma garota muito peculiar, Anna. Obrigado!

Para se ocupar e não ficar ali parada mordendo os lábios, Anna pegou os dois sacos plásticos com recortes de jornal e páginas impressas. Primeiro colocou os dois em cima de um baú antigo, mas logo abriu os sacos e espalhou os papéis em cima da mesa comprida— “O que é o mundo?” numa ponta e “O que precisa ser feito” na outra, sempre checando pela janela se Jonas estava chegando.

De onde estava era possível ver quilômetros na direção sudoeste, só precisava se aproximar da janela e inclinar o rosto para a direita. Era por ali que ele chegaria esquiando, mas ela não conseguiu ver nenhum vestígio de movimento no terreno, nem mesmo pelo desfiladeiro íngreme que sumia no horizonte.

Ainda era o começo da tarde, mas a poucos dias do solstício de verão, então o sol já estava se pondo. A luz oblíqua entrava quase perpendicular pela janela e enchia seus olhos.

Ela torcia para que Ester não estivesse num quarto escuro com as mãos amarradas e a cabeça apoiada no chão de terra, embora imaginasse exatamente aquela cena. Mesmo assim, preferiu acreditar que ela estava sendo bem tratada. E preferiu achar que a Statoil cumprisse as exigências o mais breve possível. Caso contrário, ela ia discutir com o grupo ambiental alguma forma de agir no dia seguinte!

Um recorte de jornal diante dela tratava de fé e esperança. Estava na caixa intitulada “O que é o mundo?”.

Segundo as teorias mais recentes, o Universo surgiu há cerca de 13,7 bilhões de anos, no que ficou conhecido como Big Bang. Concluir que o nascimento do Universo equivale ao princípio de todas as coisas, entretanto, pode ser precipitado. A grande explosão talvez tenha se tratado de uma transição entre um estado e outro.

O que haveria “debaixo” ou “detrás” do Universo é algo que ninguém tem como afirmar. O mundo é cheio de enigmas. Às vezes, a coisa mais sensata a fazer é se curvar diante do insondável.

Perscrutar o céu noturno é perceber as fronteiras da nossa compreensão. Para além desses horizontes existem possibilidades infinitas para a fé.

É preciso ter fé na vida, assim como é preciso ter esperança de que o mundo tem salvação. Mas não é razoável supor que um novo céu e uma nova Terra nos aguardam. Não é razoável acreditar que forças sobrenaturais algum dia vão promover um juízo final. Em algum momento seremos julgados pelos nossos próprios descendentes. É possível não pensar neles, mas eles nunca deixarão de pensar em nós.

“Perscrutar o céu noturno é perceber as fronteiras da nossa compreensão.” Ou penetrar a própria mente. Anna achou tudo muito estranho. Haveria alguma conexão entre uma coisa e outra? Poderia existir uma ligação entre os mistérios que ela experimentava nas profundezas da mente e os enigmas ocultos do universo físico lá fora?


Cotas climáticas

 


Chove forte. Ela veste botas de cano alto e caminha abrigada sob o guarda-chuva vermelho. Vai ao supermercado, provavelmente apenas para comprar algo para o jantar. A escassez de produtos tem sido grande.

Montaram uma vendinha diante do supermercado. É a primeira vez que vê algo parecido por ali.

Atrás do balcão está um homem de cabelo branco com um avental cinza distribuindo panfletos. Ao se aproximar, Nova vê que são folhetos turísticos antigos. Parecem novos e brilhantes, e folhetos desse tipo não são mais impressos.

Do teto da banca pende uma bandeirola em que está escrito: COTAS CLIMÁTICAS EM PROMOÇÃO.

Ela pega um panfleto com fotos atraentes de praias branquinhas e piscinas azuis-turquesa, e o homem de cabelo branco dá um grande sorriso. Os dois estão bem abrigados dos pingos. Ele provavelmente ficou impressionado com o tamanho do guarda-chuva dela, então diz: — Seria muito bom dar um tempo numa praia ensolarada agora, não é, querida? Você pode comprar cotas climáticas aqui.

Ela devolve o panfleto, aponta para a bancada e diz: — Eles devem ter pelo menos uns quarenta anos.

— Exatamente— responde o homem.

Ela diz:

— Você não vende viagens de verdade.

Ele a encara confuso, quase irritado.

— Quem disse que as cotas precisam ser reais? É apenas um jogo, não sabe?

O homem destaca um formulário de um bloco, tira uma caneta vermelha do bolso do casaco e pergunta: — Qual é seu nome?

— Nova— ela responde.

— Sobrenome?

— Nyrud.

Ele rabisca o formulário e lhe entrega. Ela lê: 01

(uma) cota climática. Por meio desta, Nova Nyrud tem permissão de emitir uma tonelada de CO2 correspondente a uma viagem aérea para Alicante ou Nápoles.

Ela observa o formulário, depois o rosto do homem. Então diz: — Mas não vou viajar.

Ele assente.

— Por isso está recebendo essa cota de graça. Se realmente fosse emitir uma tonelada de dióxido de carbono, teria que pagar por ela. Poluir a atmosfera terrestre tem seu preço.

— Claro...

— Agora você compreendeu a regra do jogo. Pode viajar para onde quiser com a consciência limpa, é só comprar cotas climáticas correspondentes à distância que for percorrer. É tudo baseado numa matemática bem simples.

Mas ela não consegue entender a lógica.

— Você está dizendo que basta comprar cotas climáticas para poder viajar sem poluir?

O homem de cabelo branco balança a cabeça enfaticamente.

— Assim você neutraliza os efeitos climáticos da sua viagem, o que é bem simpático. Essa grande diferença não custa mais que cem ou duzentas coroas.

Ela volta a observar a miríade de fotos coloridas. Fica tentada pelos coqueiros e pelas praias. Em algumas delas está escrito OFERTA, PROMOÇÃO, MELHOR PREÇO DO INVERNO. Volta a encarar o homem de cabelo branco e diz:

— Então vou comprar o dobro do que preciso. Não seria simplesmente ótimo para o clima se eu viajasse sem parar agora?

O homem se põe a pensar. Fica matutando, como se fizesse um cálculo mental. Por fim, balança a cabeça e afirma: — Para ficar na mesma matemática simples, é preciso que seu balanço seja positivo. Quanto mais viajar, melhor será para o meio ambiente. Algumas viagens curtas de fim de semana e ZÁS! Você acabou de sugar um tanto assim de gases que causam o efeito estufa da atmosfera. E ainda tem devolução de taxa. Um ótimo negócio, querida. Acho que você ganhou essa rodada.

Ela se vira abruptamente, de modo que o enorme guarda-chuva pende de um lado e uma enxurrada de água escorre sobre a bancada onde estão os panfletos. Não sabe se foi por acaso ou de propósito. Ela se curva diante do homem de cabelo branco, derramando um pouco mais de água sobre os panfletos turísticos, as mãos espalmadas em frente ao peito.

— Desculpe! É esse clima maluco.


Uma nova chance

 


Anna estava de volta à janela. Tinha conseguido avistar um minúsculo ponto vermelho se aproximando ao longe, que logo fora ofuscado pelo sol de dezembro.

Pegou o binóculo e foi espiar na varanda. Sim, era mesmo Jonas vestindo um macacão de esqui vermelho. Só ele esquiava daquele jeito.

Dez minutos depois, envolto em neblina de tão ofegante, lá estava ele subindo os largos degraus de madeira do pórtico. O ar ainda estava tão frio que nuvens brancas se formavam ao redor dele cada vez que exalava. Ela tirou o gorro azul que cobria até as orelhas dele, passou os braços em volta de seu pescoço e lhe deu um beijo. Jonas a abraçou, mas precisava recuperar o fôlego.

— Faz... tempo... que você chegou?— perguntou.

Ela disse:

— Só o tempo de sentir saudade. Ou seja, acabei de chegar.

— E está sozinha?

Ela riu.

— Claro, Jonas. Não vim com amigos invisíveis hoje. Não vi duendes nem fadas pelo caminho.

Ele continuava ofegante.

— Tem... notícias... dos reféns?

Anna pegou o celular, tocou na manchete e lhe entregou o aparelho. Enquanto ele lia, disse:

— Falei com Benjamin. Ele não está nada bem. Mas acho que consegui levantar um pouco seu moral.

— Como assim?

— Sugeri que ele fosse dar uma volta. Não resolve os problemas, mas também não cria outros.

Ele tinha recuperado o fôlego. Aproximou-se, pôs as mãos ao redor do rosto dela e a beijou.

— Sempre achei que você seria uma boa psicóloga — disse Jonas.

Ela o encarou.

— Sempre? Ou nesses três meses?

— Não importa. Acho que conheço você bem.

Só então ele relaxou as mãos, mas sem tirar os olhos dela. Anna adorava aquilo.

Gostava quando Jonas apenas ficava parado, fitando seus olhos. Às vezes passavam tanto tempo daquele jeito que um começava a rir, arrastando o outro junto.

Ele reparou nos papéis e recortes de jornal espalhados na mesa comprida. A tarefa de Anna era construir um arquivo para o grupo ambiental, e aquela era a primeira vez que ela exibia os resultados de seu trabalho.

— Estou curiosa para saber se você tem alguma coisa— ela disse.

Jonas sorriu misteriosamente, e Anna teve a sensação que ele não ia decepcioná-la.

— Mas não vou pressionar. Primeiro quero explicar por que dei essa tarefa para você.

— Foi por causa de alguma coisa com que você sonhou esta noite?

Ele tentou puxá-la para mais perto, mas Anna ficou firme no lugar. Era hora de dizer algo importante.

— Tive um sonho totalmente maluco, e ele está relacionado com sua tarefa, com esses papéis e com a seca no Chifre da África. Está entendendo?

— Não, Anna, mas continue.

Ele desabou no banco, de costas para a janela. Ela gesticulava sem parar.

— Sonhei que vivia algumas gerações no futuro. Bem depois da era do petróleo, quase todas as reservas fósseis de carbono já tinham sido queimadas e lançadas no ar.

A devastação das florestas tropicais e o apodrecimento de metros e metros de camadas de turfa aumentaram a concentração de dióxido de carbono na atmosfera, e o gás se depositou no leito dos oceanos, contribuindo para destruir ainda mais os recursos da Terra, principalmente nossas fontes de alimento.

Jonas olhou para ela.

— Você realmente sabe tudo de ciências, hein?

Ela ficou feliz ao ver que ele não estava irritado. Mas disse: — Estou tentando contar um sonho, Jonas! Tenha um pouco de respeito! O aquecimento global tinha levado à desertificação das regiões tropicais, e isso contribuiu para liberar mais dióxido de carbono na atmosfera. Milhares de espécies foram dizimadas, todos os grandes primatas desapareceram e havia apenas três lêmures vivos. E até insetos insubstituíveis como abelhas e vespas estavam total ou parcialmente extintos, então os homens precisavam fazer a polinização com as próprias mãos. A natureza tinha entrado em colapso, os ecossistemas tinham chegado num ponto de esgotamento, a civilização corria risco de sumir do mapa e a população havia sido bastante reduzida por causa do clima. Então ocorreram as últimas guerras pelos recursos e tudo terminou. O silêncio caiu sobre o que restou das pessoas.

— O pior é que isso pode mesmo acontecer— Jonas comentou.

Ela tinha pegado xícaras de chá e biscoitos e agora se aproximava com o bule. Jonas aproveitou a oportunidade para tentar abraçar Anna de novo, mas ela se desvencilhou com um sorriso.

— Me escute — disse ela. — Eu tinha um tablet incrível que mostrava absolutamente tudo o que fora escrito na história da humanidade, tudo o que tinha sido filmado ou gravado, tudo o que as câmeras capturavam na natureza. Conseguia assistir em câmera lenta tudo o que tinha se passado com o planeta, e passava horas sentada estudando imagens reais de plantas e animais extintos havia muito tempo.

— E é justamente o que está acontecendo. Essa extinção...

Ela se virou abruptamente.

— Me senti abusada e enganada! Os recursos do planeta haviam sido roubados pelas gerações que tinham vindo antes de mim. Eu morava com meus pais e minha bisavó na mesma casa onde moro agora. Na verdade, até no mesmo quarto, mas no sonho as paredes eram vermelho-sangue. Me chamava Nova, esqueci de contar, e a bisavó se chamava Anna, mas nós a chamávamos de Olla.

— Anna. Como você... — disse Jonas.

Ela achou que era impossível contar tudo o que tinha sonhado, pois a cada momento novos lembranças iam lhe surgindo e puxando outras que ela mal conseguia terminar e encadear com a anterior, fazendo a narrativa inteira perder o sentido.

— Além disso, ela completava dezesseis anos na mesma data que eu. Isso foi em 2082, e a bisavó tinha oitenta e seis anos.

Jonas assobiou bem alto. Ele disse: — Estou começando a pensar numa coisa...

— Eu tinha uma relação muito problemática com essa bisavó. Era uma relação de amor e ódio. Gostava dela, mas a odiava por representar uma geração gananciosa que tinha vivido antes de mim e sabia para onde estávamos indo, mas não havia feito nada para alterar o curso da história. Exigi que me devolvesse todos os ecossistemas intactos, exatamente como eram quando tinha minha idade. Ou então eu ia mandar minha bisavó para a floresta. Acho que seria capaz até de matar a senhorinha, como as crianças dos velhos contos de fadas, que faziam justiça com as próprias mãos, matando bruxas e monstros.

— E aí você acordou?

Ela balançou a cabeça. Mas como ia continuar? Então disse: — Onde hoje fica o posto de gasolina não havia mais posto nenhum, porque quase não existiam carros nas ruas, só os brancos. Estou lembrando agora, e nem quero voltar a lembrar. Era cada vez mais comum caravanas de árabes com camelos cruzarem as montanhas do noroeste da Noruega, parando no velho posto de gasolina para descansar e fazer uma refeição.

— Árabes?

— Refugiados climáticos. Os países onde moravam foram engolidos pela areia do deserto. Uma vez um garoto árabe ficou doente e foi morar com a gente no quarto das almofadas até ficar em condições de se juntar à caravana e cruzar as montanhas.

Chamamos o médico e o garoto tomou remédios. Mas fiquei meio responsável por cuidar dele. Passamos dias jogando ludo e outros jogos de tabuleiro. Quando ele estava pronto para viajar, deu a Olla um anel com um rubi enorme e disse que era o autêntico anel de Aladim...

— Quanto tempo ele ficou morando no quarto das almofadas?— quis saber Jonas, aparentando preocupação.

Anna não respondeu. Estava mais do que ocupada tentando se lembrar do que mais tinha sonhado.

— Desde aquele dia Olla não tirou o anel do dedo. Numa manhã qualquer ela entrou no meu quarto e disse que o mundo e todas as espécies de animais e vegetais extintas teriam uma nova chance. Mexeu no rubi vermelho e pareceu que aquela nova chance tinha a ver com ele. Então o quarto começou a balançar e ela começou a cantar bem alto com uma voz horrível e desafinada: “Todos os pássaros, os mais pequenininhos...

voem pelo ar!”. Aí eu acordei, Jonas. Isso foi poucas horas atrás. Escutei os pássaros cantando lá fora. Estava totalmente convencida de que o sonho era verdadeiro e a bisavó tinha conseguido cumprir sua promessa. O mundo tinha realmente uma segunda chance, e um milhão de plantas e animais haviam voltado ao seu lugar original. Tinham sido reinstalados!

Jonas continuou sentado, balançando a cabeça.

— Incrível — disse ele. — Eu mesmo estou quase acreditando nesse sonho.

— Mas o que no sonho era uma responsabilidade da bisavó se tornou minha responsabilidade. De repente os papéis se inverteram. Agora sou eu quem preciso fazer alguma coisa para combater a destruição do clima. E então, daqui a setenta anos, vou reencontrar minha bisneta. E a questão será novamente avaliada, e eu serei a bisavó, que pode ser expulsa para a floresta se a Terra não estiver em condições melhores. Se eu não conseguir evitar que os ecossistemas sejam destruídos e a natureza seja dizimada, terei condenado a mim mesma.

— Que tenso— reconheceu Jonas. — Acho que você nem precisa falar mais nada.

— Mas tem mais— Anna insistiu. — Quando acordei, estava com esse anel mágico no dedo, o mesmo que tinha aparecido para mim no sonho.

Ele a interrompeu.

— O que você acabou de dizer?

Anna levantou a manga esquerda do casaco, ergueu a mão e apontou para o anel com o rubi vermelho incrustado que usava no anelar.

— Olhe aqui! — disse ela. — Este era o anel que Olla usava no sonho. Foi ele que nos permitiu voltar à linha de partida.

Aparentemente, Jonas não sabia em que acreditar.

— Esse anel apareceu no seu dedo quando você acordou? Foi isso que você disse?

Ela assentiu enfaticamente, e ele ficou remoendo seus pensamentos. Então disse: — Ou você o tinha colocado no dedo quando foi dormir ontem à noite?

Anna balançou a cabeça orgulhosa e misteriosa. Contou que tinha ganhado o anel de presente no dia anterior.

— Por causa desse sonho resolvi usar este anel vermelho no dedo pelo resto da vida. Vai servir para nunca me esquecer da responsabilidade que caiu sobre meus ombros. É óbvio que ele vai estar no meu dedo quando eu me tornar bisavó. E, se a minha bisneta for mesmo uma garota, vou convencer seus pais de que o nome dela deve ser Nova. Então o sonho vai se realizar. E um dia vou poder entrar naquele quarto quando ela tiver por volta de dezesseis anos. Vou fazer de tudo para evitar que preste atenção no misterioso rubi. E o ciclo chegará ao fim.

Ele olhou para ela, preocupado.

— Mas se você for clarividente mesmo, muito da natureza terá desaparecido. O planeta inteiro será arrasado.

Ela balançou a cabeça.

— O mundo ganhou uma nova chance. Era esse o ponto principal. Eu ia ganhar o mundo inteiro de volta da mesma forma que era quando a bisavó tinha dezesseis anos. Mas só teria essa oportunidade.

Ela olhou para a mesa repleta de folhas de papel e recortes de jornal, depois fitou Jonas novamente e disse: — De agora em diante, precisamos trabalhar duro!


Os carros brancos

 


Pela janela estreita ela vê que a aldeia recebe a visita de um dos carros brancos. Faz muito tempo que não vêm. A passos rápidos, desce as escadas, enfia os pés num par de mocassins, veste um casaco e se precipita porta afora.

No jardim, esbarra com a mãe, que está chegando em casa com um buquê de azevinhos, folhas verdes com bagas vermelhas. Nova não diz para onde está indo. Sabe que ela não gosta dos carros brancos.

Assim que se aproxima, avista um grupo de pessoas cruzando a ponte do outro lado do rio. Não é a única ansiosa para saber o que será exibido. Em breve, consegue ler o que está escrito em letras azuis enormes na lateral do carro: ÚLTIMOS LÊMURES DO MUNDO. Ou seja, existem vários lêmures ainda!

Ela sabe que lêmures são símios de Madagascar. Sabe que nos últimos anos só existiam exemplares vivos da espécie em Berlim. Apenas quando não havia mais esperanças de que uma espécie em extinção podia mais se recuperar, os jardins zoológicos tinham permissão para transportar os animais pelo mundo em carros brancos para exibi-los em vários países. Os lêmures tinham desaparecido na natureza havia muitos anos.

Ela compra o ingresso de um homem com bochechas vermelhas e cavanhaque preto. Ele vende algodão-doce e pipoca também, mas ela não quer nada daquilo.

O ingresso é do tamanho de uma carta de baralho. De um lado há a foto de um lêmure com a legenda Lemur catta, do outro está escrito Animalia, Chordata, Mammalia, Primates, Lemuridae. Constam também algumas informações sobre os motivos da extinção da espécie em Madagascar: o hábitat foi destruído por incêndios, as árvores foram cortadas para produzir carvão vegetal e os animais remanescentes foram caçados pelo homem. O golpe de misericórdia veio com o aquecimento global.

Ela é a primeira expectadora a entrar no carro. O bagageiro inteiro foi transformado numa grande jaula, e dentro dela três lêmures saltitam entre plantas e troncos artificiais. O chão é coberto com serragem. São três fêmeas, segundo explica o ingresso. Ela já viu vários ingressos como aquele antes. Tem uma coleção deles. São uma memória valiosa dos animais que conseguiu ver antes que desaparecessem.

Os três lêmures têm cerca de um metro do focinho preto até a ponta da cauda. Mais da metade do comprimento do corpo consiste da comprida cauda com listras pretas e brancas. Os animais saltam nervosos de um lado para o outro atrás da grade e a encaram com seus olhos amarelos. Ela fica imaginando o quanto são capazes de entender.

Acha que mais do que conseguem expressar. Sabe que em um ano ou talvez dois o aplicativo da União Mundial de Conservação vai bipar e será a última lembrança que terá daquela espécie.

Ela faz vídeos dos lêmures. Sai do carro branco e encontra um pai segurando uma criança em cada mão. As duas estão cheias de expectativa. Já tomaram sorvete e comeram pipoca. Entram no carro para admirar os animais exóticos e talvez comer um algodão-doce em seguida. Não é todo dia que os carros brancos passam por ali.


A rã

 


Anna entrou novamente num site de notícias e leu em voz alta: A Statoil, estatal norueguesa do petróleo, nega que vai se envolver nas áreas de conflito no Chifre da África. No que se refere a outras áreas na plataforma queniana, não nega nem confirma especulações devido a questões de concorrência.

Jonas disse:

— Mas extrair petróleo eles vão.

Ela lhe lançou um olhar quase suplicante.

— Agora a questão não é essa.

— E qual é?

— Essa notícia vai ajudar Ester Antonsen? Ou Ben?

— Ben?

— Às vezes ele atende como Ben. Vou mandar uma mensagem.

Ela escreveu duas palavras: Alguma novidade?

Passaram-se alguns minutos até vir a resposta: Não. Mando notícias.

Anna deixou escapar um suspiro.

— Ele deve estar bem deprimido — disse ela.

Jonas estava dando uma olhada em alguns papéis sobre a mesa. Pegou uma folha de papel e leu em voz alta: A natureza humana é caracterizada por uma contínua orientação horizontal. Sempre olhamos em volta em busca de possíveis perigos e presas. Dessa forma temos uma facilidade natural para nos defender. Mas não temos a mesma facilidade para proteger nossos semelhantes, muito menos para proteger outras espécies.

É algo intrínseco da nossa natureza o favorecimento dos nossos próprios genes. Contudo, não temos nenhum sistema natural capaz de protegê-los pelas próximas cinco ou oito gerações. É algo que teremos que aprender tão bem como aprendemos os direitos humanos.

Desde nossa origem na África, estamos travando uma batalha para que o galho da nossa espécie não seja podado da árvore do desenvolvimento. Temos sido bem-sucedidos, porque ainda estamos aqui. Mas a humanidade enquanto espécie se mostrou tão bem-sucedida que estamos ameaçando nosso próprio meio de subsistência.

Tivemos tanto êxito que estamos ameaçando a sobrevivência da nossa espécie como um todo.

Para um primata brincalhão, imaginativo e vaidoso, é fácil esquecer que a natureza, no fim das contas, também somos nós. Mas seremos tão brincalhões e vaidosos a ponto de colocar nossa própria diversão à frente do futuro do planeta?

— É uma boa pergunta— observou Jonas.

— Qual?

Anna pensou na grande pergunta que tinha feito a ele pelo celular antes de sair de casa. Como salvar mil e uma espécies de animais e plantas? Mas ele apontou para a página que acabara de ler e disse: — Somos tão irresponsáveis a ponto de colocar em risco o futuro do planeta?

Ela deu um sorriso um pouco indulgente.

— Foi por isso que separei esse artigo.

Anna gostava de saber que Jonas dava valor ao trabalho que ela tinha feito. Ao mesmo tempo, estava curiosa para descobrir o que ele tinha pensado pelo caminho.

Então perguntou: — Como vamos fazer? Como podemos impedir que mil e uma espécies de plantas e animais sejam extintas?

Ele pôs a folha de volta na mesa. Encontrou outro recorte de jornal que leu em voz alta como se fosse a resposta definitiva à pergunta que Anna tinha feito: Se quisermos ser capazes de salvar a biodiversidade deste planeta, será necessário modificar nosso modo de pensar e adotar uma postura copernicana. Tão ingênuo quanto acreditar que todos os corpos celestes orbitavam nosso planeta é viver como se tudo dissesse respeito à época em que vivemos. Nossa época não possui nenhuma importância a mais do que as que estão por vir. Para nós, naturalmente, nosso próprio tempo é mais importante.

Mas não podemos viver como se ele também fosse para os que virão depois.

Jonas assentiu, primeiro para si mesmo, depois para Anna.

— Visto com o olhar de hoje, claro que a crença de que a Terra era o centro do Universo e todos os outros corpos celestes orbitavam nosso planeta é ridícula. Mas a ideia de viver como se existissem vários outros planetas para explorar além desse que compartilhamos agora é menos ridícula?

Anna começou a ficar impaciente. Queria saber o que Jonas tinha pensado. Ele tirou outra folha da pilha “O que é preciso ser feito?” e leu em voz alta: Diz uma antiga parábola que uma rã jogada em uma panela de água fervente saltará imediatamente para salvar a própria pele. Mas, se a rã for colocada em uma panela de água fria que gradualmente é aquecida até o ponto de ebulição, não perceberá o perigo e morrerá cozida.

Novamente Jonas ficou sentado balançando a cabeça. Então disse: — Nossa geração é essa rã? Ou a democracia em que vivemos? O planeta vai suportar toda essa idiotice humana?


As máquinas verdes

 


Ela está na capital com o garoto árabe que passou alguns dias no quarto das almofadas. Eles se encontraram novamente. Olla não está mais viva e é Nova quem carrega o anel vermelho. Ela cresceu e virou adulta, e está vestindo uma roupa preta com um xale vermelho sobre os ombros. O traje elegante cai muito bem ali na capital, e a cor tem a ver com o fato de a bisavó ter morrido.

O garoto árabe também é um adulto. Usa uma túnica branca comprida que chega a varrer o asfalto por onde caminha. Ela não sabe que tipo de roupa usa debaixo da túnica.

Eles passeiam pelas principais ruas da cidade e inspecionam as máquinas verdes que em pouco tempo estarão disponíveis para o público. Mas as ruas continuam desertas. Nova e o árabe têm o centro inteiro para si.

As caixas verdes foram montadas a cada duas esquinas, em todas as estações de metrô e em frente a prédios importantes.

Os sinos dos relógios da prefeitura começam a tocar uma melodia folclórica bem conhecida. É o sinal que estavam esperando. Cada um segue para sua máquina, ela com o cartão vermelho e ele com o azul.

Ao chegar eles se entreolham, balançam a cabeça ao mesmo tempo e só então passam o cartão na máquina. Ela escolhe em quais plantas e animais investirá dinheiro. Cada vez que digita um número, surge um vídeo na tela. Não é possível imprimir as imagens sem que tenha sido doado um pouco de dinheiro para preservar aquele pedaço de natureza apresentado no vídeo.

Enquanto olha para a tela e doa a quantia, a cidade vai se enchendo de pessoas. Elas surgem das estações de metrô, dos ônibus, marchando pelas ruas. Muitas querem experimentar as máquinas verdes. Logo a cidade se enche de vida, e por trás das novas atrações vai se formando uma aglomeração. Pessoas conversam animadas. Discutem e gesticulam.

No meio de tanta gente, Nova consegue reencontrar seu companheiro. Ainda bem que ele é um palmo mais alto do que a maioria das pessoas. Eles se encontram e batem a palma das mãos. Ela olha para ele e ri.

— É como colocar o mundo nos trilhos de novo— ela diz.

Ele retruca:

— O negócio é levar a natureza humana a sério.


Gamificação

 


— O mundo ganhou uma nova oportunidade — disse Anna —, e agora preciso pensar em como aproveitar isso.

Jonas ergueu os olhos dos papéis espalhados pela mesa. Deu o sorriso largo que Anna tanto gostava de ver, abriu o zíper do bolso do macacão de esqui, tirou umas páginas dobradas de lá e as entregou para ela.

No alto da primeira folha Anna leu em letras grandes: “Como salvar mil e uma espécies de plantas e animais?”. Em letras menores estava: “Resposta para a tarefa de Anna” .

Ela folheou rapidamente e contou sete páginas. Olhou para ele e disse: — Tudo bem que você se atrasou, mas como conseguiu escrever tudo isso?

— É segredo. Agora leia.

Anna começou a ler em voz alta o texto que tinha nas mãos. Jonas colocou lenha na lareira e ficou espiando com o binóculo pela pequena vidraça quadrada.

Todos os animais e plantas dependem de seus hábitats, e quando um pedaço da natureza é atacado todas as espécies que vivem nesse ecossistema também são. O destino dessas áreas não impacta nem um pouco a economia. Os ricos não medem esforços para se tornar ainda mais ricos extraindo recursos naturais como petróleo, carvão e minerais em regiões vulneráveis, por exemplo. Mas a pobreza humana também pode levar à exploração de ecossistemas de forma insustentável.

O problema é que tais questões normalmente têm uma dimensão muito maior que a individual. O que posso fazer pela Amazônia, por exemplo? Qual é a minha responsabilidade pela savana africana ou pelos peixes no oceano Atlântico? Não é assim que as pessoas pensam. Não é assim que o cérebro humano é construído.

O homem é um animal leviano, egocêntrico e individualista. Todas as tentativas de salvar a humanidade e o planeta onde vivemos devem partir dessa premissa.

Por exemplo, imagine que você está especialmente preocupado com o tigre e quer fazer alguma coisa para salvar essa espécie da extinção. Pode então ir até a cidade e perguntar às pessoas que encontrar se estão dispostas a pagar para que seu hábitat seja preservado. Talvez você ande com uma sacola arrecadando dinheiro para o Fundo do Tigre, talvez organize um bazar ou uma rifa. Já que está lidando com pessoas, a rifa e o bazar parecem ótimas opções.

Quase todos dão um dinheirinho para o tigre, sem pensar, contribuindo com o valor de uma barra de chocolate ou qualquer outro doce. Alguns dão uma quantia dez vezes maior, digamos. Mas alguns contribuem cem vezes mais para apoiar os tigres, e uns poucos estarão dispostos a investir milhares ou dezenas de milhares, sobretudo se essa contribuição aparecer no jornal. Além disso, não podemos ignorar o fato de que pode haver um grande investidor que, por algum motivo pessoal, como uma necessidade de aparecer, queira doar meio milhão de dólares a fim de preservar o tigre para seus descendentes. Obras de arte valem isso, ou seja, objetos que são um deleite para os olhos, ainda que inanimados, sem vida, incapazes de se reproduzir, que jamais vão crescer. Cedo ou tarde é bem possível que uma senhora destine toda a sua fortuna ao futuro do tigre, porque o avô dela era um tenente britânico na Índia que estivera envolvido na captura de oito tigres, sendo que um desses tigres decora a lareira da biblioteca da antiga mansão de sua família em Birmingham.

É possível até contar com um apoio global ao tigre, basta abrir uma conta bancária, a “conta do tigre”, por exemplo, e imagine que milhões de pessoas vão depositar algum dinheiro nessa conta em intervalos regulares, uma vez por mês que seja, para “apadrinhar” o tigre. Logo, milhares de dólares serão acumulados para esse gigantesco programa para assegurar a manutenção do bioma do tigre. Em primeiro lugar, é preciso investir enormes somas para impedir a caça ilegal e a captura, tanto dele como de suas presas, na pior das hipóteses mobilizando um verdadeiro exército de guardas florestais numa única medida emergencial. No mercado ilegal, a pele de tigre chega a ultrapassar meio milhão de dólares, e esse valor sobe conforme a quantidade de animais vivos na natureza vai sendo reduzida. Os preços disparam também quanto maiores forem as sanções e punições aplicadas a esse tipo de crime. Logo, o nível das punições precisa ser elevado. Mas esse programa de patrulheiros ambientais é apenas o primeiro passo. Com o tempo é preciso garantir a manutenção de corredores permanentes entre as diversas reservas onde habitam as populações de tigres para evitar a consanguinidade, é preciso garantir a existência dos animais dos quais os tigres se alimentam (como javalis, cervos e antílopes)— e isso novamente implica preservar o entorno vegetal do qual esses herbívoros dependem. Preservar o tigre significa preservar também uma grande sucessão de espécies animais e vegetais. Visto assim, o tigre é apenas um símbolo de algo muito maior que ele mesmo, e se desaparecer será um sinal de que é a natureza que está sendo destruída.

— Certo — disse Anna. — E por que o tigre, e não o urso-polar, nosso vizinho?

— Acho que a resposta está na próxima frase.

Ela continuou a leitura.

Por que focar em uma única espécie em particular? E quanto ao bufo-real e à raposa-da-montanha? E quanto às rãs e salamandras? O que vai ser das outras espécies que também estão ameaçadas? A resposta é: cada espécie deverá ter sua própria conta bancária. Além do programa para salvar o tigre, deve haver mil outros. E isso totalizará exatamente mil e um fundos para espécies vegetais e animais ameaçadas, um número bastante razoável.

Haverá opções suficientes. Em vez de contribuir para preservar o tigre, pode-se apoiar outro fundo, como o do leão ou o da salamandra— tudo segundo uma motivação estritamente pessoal, para não dizer emocional. A questão é a liberdade de escolha e todo o debate que traz consigo.

Relatórios sugerem que nada menos que um milhão de espécies podem estar ameaçadas devido às mudanças climáticas. Mas não acho que seria adequado ter um milhão de fundos diferentes. Talvez tenhamos que estabelecer um fundo exclusivo para cada uma das grandes aves e mamíferos, mas um único fundo deve dar conta de todos os pulgões ameaçados de extinção. Deve bastar para atrair o interesse de um doador que— por razões pessoais, como um episódio ocorrido na infância— tenha um interesse específico por pulgões. Mas para salvar os pulgões é preciso salvar as folhas, e as corças, e os linces. Pois tudo na natureza está inter-relacionado.

A biodiversidade diz respeito tanto à perda da natureza e dos ecossistemas como à perda de espécies. As que perderam seu hábitat natural e só podem continuar existindo em jardins zoológicos estão a apenas um passo da extinção.

— Não consigo entender como você teve tempo de escrever tanto.

Anna olhou para Jonas, mas ele continuava de costas, espiando a montanha com o binóculo velho. Ela não conseguia ver a expressão no rosto dele.

— O que você está achando?

— Muito bom. Estou animada.

— Continue!

Minha pergunta é: quais sistemas são sustentáveis no que diz respeito ao compromisso das pessoas com a biodiversidade? Já mencionei a liberdade de escolha como um fator importante. Vou dar outro exemplo.

Imagine que as pessoas pudessem escolher o destino do dinheiro que são obrigadas a pagar a título de imposto de renda em vez de apenas receberem o desconto, quase como uma multa comunitária, já que elas não exercem influência direta sobre como o dinheiro será empregado. Não acho que seria caótico se tivessem escolha. Nesse caso, alguns iam aplicar tudo na educação, outros na pesquisa, na proteção ambiental, na cooperação internacional, no transporte coletivo, em museus, escolas básicas, hospitais, teatros ou na assistência a idosos. O resultado final talvez fosse o mesmo de hoje. A diferença é que teríamos contribuintes mais satisfeitos. Esse sistema leva em conta o prazer que nós, seres humanos, sentimos diante de tudo o que se refere a jogos, competição e prestígio individual.

Podemos transpor isso para a proteção ambiental. Se os políticos de repente introduzissem um novo imposto ambiental, com certeza muitos protestariam contra mais um. Afinal, o que se quer dizer com “imposto ambiental”

e qual política é a melhor e mais importante? Se em vez disso fosse adotado um imposto mais específico para preservar a biodiversidade, ou seja, a quantidade de plantas e animais em estado selvagem, talvez mais pessoas concordassem, mas mesmo assim alguns protestariam. Afinal, quais espécies seriam as mais importantes? “Eu, por exemplo, detesto lobos e glutões”, talvez argumentasse um fazendeiro, e um jovem da cidade talvez não quisesse pagar imposto para preservar algo tão distante de sua realidade como falcões-gerifaltes ou corujas-das-neves, espécies das quais alguém não tem o menor interesse em se aproximar. Mas, se cada contribuinte pudesse escolher numa lista de até oito espécies, imediatamente entraria em cena um componente pessoal, envolvendo opinião e vontade. Isso se tornaria um assunto relevante, objeto de conversa.

Anna comentou: — Mas você acha mesmo uma boa ideia mil e um fundos diferentes para a população mundial gerenciar? Um dia o sujeito pode pôr uma moedinha no fundo do urso, outro dia ele fica com dó da águia-real, do bufo-real ou do açor. E, uma vez no ano, no Natal, por exemplo, esse sujeito faz uma pequena contribuição para uma salamandra ou uma rã.

— Ou o contrário: uma vez por semana ele contribui para a salamandra e a rã e para a águia-real e o açor no Natal e no Ano-Novo. Afinal, o que vem primeiro, o açor ou a rã?

— A rã — disse ela. — O açor precisa se alimentar para sobreviver.

— E antes da rã?

— Insetos e a mata. Uma vez vi uma rã engolindo uma minhoca inteira.

— E antes disso?

— As plantas... os cogumelos... e os organismos unicelulares.

— Certo.

— Mas, Jonas, não é possível que você tenha escrito tudo isso hoje. Não acredito. Realmente não acredito!

— Você não pode apenas ler?

Ela voltou a olhar para a folha.

Mas posso antever uma objeção. As pessoas se preocupam mesmo com a natureza? Por acaso não transformamos a Terra num grande parque de diversões? Talvez haja tantas atrações à disposição que não conseguimos nos dedicar às grandes tarefas comunitárias. Compartilhamos um planeta, mas não é todo mundo que consegue pensar numa dimensão planetária. Há muita liberdade, muitos direitos individuais, muito poder econômico concentrado, muitos barris de petróleo e motores a jato para os mais ricos, pouquíssima responsabilidade pelo planeta onde vivemos e por uma divisão justa dos recursos que ele nos oferece. Há milhares de outros aspectos com que as pessoas se preocupam antes, para depois se debruçar num assunto tão específico como a natureza e o bem-estar do planeta. Pense nas revistas semanais sobre esportes, restaurantes, vinhos, carros, cruzeiros, celulares, computadores, jardinagem, decoração, culinária, exercício, doenças, estilo de vida, saúde, sexo... Para não falar nas de fofoca. Todo dia uma celebridade se casou ou separou, ficou doente, deu entrada numa clínica de reabilitação. É disso que as pessoas estão falando. É lá que os seres humanos se veem. É isso que querem. Nós nos distanciamos da natureza em que vivemos e da qual somos inteiramente dependentes. Chegamos a um ponto em que a maioria das pessoas consegue recitar mais nomes de jogadores de futebol e atores de cinema que espécies de pássaros.

O que quero dizer com isso? Acredito que com esse tipo de abordagem humanizada talvez possamos salvar da extinção um número tão ousado quanto mil e uma espécies vegetais e animais. Com esse tipo de apelo à natureza humana, quero dizer. É importante contar com ele. Temos apenas que mudar o foco. Do placar do jogo, das fofocas sobre as celebridades e da dita “arte e cultura” para o mundo em si, para a natureza viva e para toda a extensão de espécies vegetais e animais que correm risco de desaparecer. Podemos continuar tratando desses assuntos, mas também precisamos falar um pouco do papagaio-do-mar e do rinoceronte, não apenas de equipes de futebol. Poderíamos criar uma loteria das espécies ameaçadas. “Quer participar do sorteio de 31 de julho para ajudar o papagaio-do-mar?” “Já comprei bilhetes para ajudar a coruja-das-neves.” “Para aqueles que não gostam de pássaros, tenho aqui bilhetes da loteria do lince, que vai correr amanhã. Os resultados estarão disponíveis na internet.” Já posso até ouvir o dinheiro entrando. Consigo escutar pessoas se gabando por estar do lado da natureza. “Pode deixar, a conta é comigo. Acabei de ganhar uma grana na loteria da tartaruga-do-mar...”

Anna ficou de queixo caído, mas Jonas nem percebeu, porque continuava de costas.

— Jonas... Jonas!

Só então ele se virou.

— Você é maluco! — disse ela. — E lindo, aliás. Mas precisa ir num psicólogo. Talvez nós dois devêssemos ir para Oslo de novo. Você pode bater um papo com Benjamin depois que Ester voltar da África!

Ele sorriu, e Anna continuou a ler.

“Um pré-requisito para que tudo isso aconteça é a elaboração de um catálogo com uma conta para cada espécie animal e vegetal ameaçada de extinção, uma lista completa que deve estar facilmente acessível na internet.

“Poderia ser realizada uma loteria global para cada família de espécie ameaçada. Por exemplo, para todos os felinos, todas as corujas ou todos os ursos. Ou poderia ser estipulado um prêmio ainda maior com sorteios anuais para cada ordem de animais: predadores, anseriformes, artiodátilos... Os sorteios locais seriam transmitidos ao vivo pela TV, com tapete vermelho e tudo, e os sorteios mundiais seriam realizados num grande show. Enquanto isso, seria possível fazer eventos em menor escala, em favor dos poucos exemplares restantes de determinada espécie, por exemplo, porque é preciso um controle rígido da quantidade de indivíduos que restam intactos na natureza.

“Mas volto a perguntar: temos razão para acreditar que a população mundial vai se submeter a uma algazarra desse tamanho para arrecadar dinheiro em prol de espécies vegetais e animais? Eu diria que, se uma cidade inteira é capaz de passar o jantar debatendo se onze homens conseguem meter uma bola na rede do gol adversário ou vice-versa, não é impossível que, sob certas condições, as pessoas possam se envolver e passar a acompanhar quantos leões ou chimpanzés ainda restam no mundo, especialmente se puderem ganhar algum dinheiro com isso, ou talvez até algum reconhecimento ou quinze minutinhos de fama. Imagine se as pessoas pudessem aprender um pouco sobre a natureza com joguinhos de perguntas e respostas— tanto na sociedade e no país onde vivem como na aldeia global. Uns até poderiam ganhar grandes prêmios em dinheiro, enquanto outros se transformariam em celebridades instantâneas: “Olha só quem está ali! Ele gabaritou todos os filos animais de novo: moluscos, artrópodes e vertebrados. Depois de nadar em dinheiro comprou um carro elétrico e um dúplex em um bairro chique”. Por que não? Os milionários da fauna não seriam como os demais milionários.”

— Não, Jonas. Agora acho que você exagerou. Isso está parecendo coisa de blog ou jornal escolar.

— Você não leu até o fim.

— Além do que, não pode ter escrito isso hoje. Você só copiou da internet?

Ele sorriu, sem dar sinal de que ia responder. Anna continuou a ler.

“Pode até parecer como fazer um pacto com o diabo. Mas quero que seja feito um pacto com a natureza humana.

Acredito que todo o burburinho pode assumir um novo conteúdo, ainda que a forma continue sendo a mesma. Não temos por que nos importar se grande parte dos adultos às vezes se comportam como criancinhas. O fato é que um dia fomos crianças. Então vamos manter de pé a competição, porque as pessoas adoram isso. “Quantos tigres ainda existem no mundo e onde vivem? Resposta exata ou eliminação... Muito bem! E o que é necessário para que eles consigam sobreviver? Cuidado agora, você só tem uma chance... O que devemos fazer para proteger o hábitat do tigre, tanto o tigre-de-bengala como o siberiano? E o que não devemos fazer? Agora a problemática do tigre vai adquirir um contexto global. Faça um breve relatório sobre a condição dos grandes felinos no mundo, da família Felidae. Agora diga o que aconteceu nesse campo ao longo do último semestre. É preciso acertar a resposta...”

Não seria libertadora a sensação de ver outro tipo de notícia ganhando espaço nos jornais em vez de fofocas?

“Designer de interiores apoia cento e catorze vertebrados em extinção.” “Professor de inglês sempre gostou de rãs e salamandras.” “Professor Hjort deixa fortuna para fundo de artiodátilos.” “Agricultor vende antiga fazenda e destina todo o dinheiro para os leões.” “Aposentada continua contribuindo semanalmente com a raposa-da-montanha.” “Quem fez mais pelos pássaros no ano que passou?” “Grande expectativa para a transmissão da ave-do-paraíso neste domingo.

“E é preciso dar alguma coisa às pessoas. Elas precisam de coisas palpáveis que possam pendurar na parede ou colocar em cima da lareira. Quem doou mil coroas às renas selvagens recebe uma fita ou uma faixa de determinada cor. Quando superar as cinco mil coroas, recebe o mesmo brinde em outra cor. E assim por diante.

“Isso é bom, um traço absolutamente saudável e inerente à natureza humana. Ou as pessoas podem ficar em casa em seus quartos pesquisando seus vizinhos na internet: “Sabia que ele é faixa preta em rena selvagem?”. Renderia um belo assunto para o almoço do dia de Natal. Estou até me animando com o ser humano de novo!”

— Mas não é possível que você tenha escrito isso tudo enquanto estava calçando os esquis. Chegou só dez ou quinze minutos mais tarde do que eu esperava. Não dez horas! E, depois de trabalhar por algumas semanas na criação do grupo ambiental, acho estranho você não escrever nada sobre as mudanças climáticas.

— Termine de ler, Anna!

Novamente posso pensar em argumentos contrários. Afinal, o que fazer em relação às mudanças climáticas? O aquecimento global não é a principal ameaça a milhões de espécies vegetais e animais? Isso é absolutamente verdadeiro e, portanto, devemos dizer que toda a renda que for destinada aos mil e um fundos será empregada em moinhos de vento, energia solar, pesquisa de fontes de energia alternativa e, sobretudo, para ajudar a reduzir a emissão de gases— como se fosse um extra a toda diversão. Talvez seja fácil assim. Reduzir a emissão de gases não é mais um problema, apenas parte de um novo e popular esporte.

Meu propósito é mostrar que a longo prazo não adianta apelar para a consciência pesada de cada pessoa, que carrega nos ombros um bilionésimo de responsabilidade pelo futuro da Terra. Como seria possível abordar essa questão? Como é viver com um bilionésimo de responsabilidade por um planeta inteiro? Se esse projeto não apelar à natureza humana, não irá a lugar nenhum. Leve em consideração o interesse e o gosto pelo colecionamento relacionado a plantas e animais que já existe hoje. Eu me refiro ao interesse por tudo, desde orquídeas, besouros e borboletas até ungulados, tentilhões e papagaios, rosas, bagas e rododendros, gatos e cachorros, cobras e iguanas, ratos e camundongos. Quando alguém decide dar uma pequena contribuição ao fundo da rosa ou do papagaio, também está se juntando a um imenso esforço para frear o aquecimento global.

Termino com um agradecimento especial a Anna Nyrud, por me inspirar a sentar durante catorze minutos diante do computador para revisar essa tarefa sobre diversidade biológica que apresentei para a classe na quinta-feira passada.

O título era

 

“Como podemos fazer as pessoas se engajarem na defesa da biodiversidade?”.

Jonas Heimly

Lo, 11/12/2012

 

Anna tirou os olhos do papel.

— Agora entendi... Foi uma bela apresentação. Muito boa, na verdade. Mas quem vai fazer tudo isso acontecer?

Jonas não respondeu.

— O que a professora disse? Deu nota?

— Ela disse que achou legal, que o texto estava bom e que a apresentação na frente da classe foi muito bem conduzida. Ela disse que o único motivo para não me dar nota máxima foi porque não detalhei direito como a coisa toda pode ser implementada. As ideias eram originais, mas estavam um pouco “soltas no ar”.

— Também achei.

Os dois ficaram sentados um instante sem dizer nada. De repente ele arregalou os olhos.

— Espere um pouco. Esqueça os catálogos, as contas e todo o lance do depósito.

Acho que pensei em alguns mecanismos.

— Como assim?

— Estou falando do jogo em si.

— E?

— Estou pensando numas máquinas verdes que a gente possa colocar em todo lugar onde as pessoas circulem, no mundo inteiro. Em aeroportos, esquinas, nas estações de metrô... É só passar o cartão nessas máquinas. Você digita o código da espécie que quer apoiar, um número de um a mil e um, e vão passando umas imagens dela numa telinha. Como se fosse uma TV. Você pode assistir à espécie que vai proteger e participar de diversos jogos que dão prêmios em dinheiro. Existem bilhões de pessoas e milhões de espécies de plantas e animais, não deve ser impossível bolar jogos e brincadeiras para ajudar no processo de preservação. É o que chamam de gamificação...

Anna suspirou exasperada.

— Você já falou disso antes— ela disse.

— Não! Acabei de pensar nisso.

Ela suspirou de novo.

— Então devo ter sonhado.

Seu olhar estava distante. Durante alguns segundos, ficou apenas sentada olhando na direção dele.

— Anna? Anna!

Ela o encarou nos olhos e disse: — Desculpe, Jonas. Não posso evitar.


A casa

 


Ela acabou de pintar as unhas de vermelho e está no meio da floresta de bétulas. Parece estranho fazer as unhas pouco antes de sair para a floresta. Ela não vai encontrar ninguém. Além disso, pode precisar usar as mãos.

Lá no alto, onde a vegetação é rasteira, ela avista o antigo curral. Nos velhos tempos, as cabras e vacas eram mantidas ali desde o Dia de São João até setembro. Porcos ficavam abrigados no celeiro, e galinhas ciscavam no quintal. Ovelhas ficavam soltas o verão inteiro, campeando livres pela montanha onde hoje é a floresta.

A velha casa não só não era mais usada como foi tomada pelo mato. Mas o curral ainda segue firme atrás da cerca de pedra coberta de musgo, como um mundo à parte. Algumas dessas construções foram restauradas e servem como belas casas de fim de semana, e as famílias cuidam de deixar os quintais livres de mato e árvores.

Ela apressa o passo por entre os troncos brancos, pula um riacho agitado e se alegra ao pensar que talvez seja a única a conhecer aqueles segredos. Escuta o farfalhar das folhas e avista um cervo. Deve ser um filhote. Por um segundo o animal fica paralisado, observando-a. No instante seguinte, desaparece.

Ela sobe o derradeiro monte antes da velha casa. Pensa em entrar, mas ao se aproximar, vê pelas vidraças quadradas que já há alguém ali. É a bisavó Anna. Sem dúvida é Anna, mas quando jovem. Ela viu montes e montes de fotos e vídeos de quando Olla era adolescente. Ela vê um garoto lá dentro, também adolescente.

Ela passa apressada e vai embora. Não quer incomodá-los.


O anel de Aladim

 


Jonas puxou a mão de Anna para cima da mesa e começou a remexer no anel. Ele disse:

— Me conte sobre ele.

— No sonho? Ou na aventura do Aladim?

— Na vida real.

Anna contou que o anel estava na família havia mais de cem anos. Sua avó se chamava Sigrid e o ganhara da velha tia Sunniva, sua tia-avó, que tinha emigrado para os Estados Unidos e ficado noiva de um persa comerciante de tapetes, Esmail Ibrahimi.

Era uma história muito, muito triste, porque Sunniva ganhara o anel de noivado e poucas semanas depois Esmail caíra de um barco a vapor no Mississippi e nunca mais fora visto. Na verdade, não sabiam se ele tinha caído ou sido empurrado do convés, porque o comerciante levava consigo um bazar inteiro de tapetes persas. Era uma carga e tanto, que desaparecera antes que alguém pudesse se dar conta. Tia Sunniva estava farta dos Estados Unidos e poucos anos depois voltou para sua velha terra natal. A única coisa que levara consigo fora o maravilhoso anel. E o luto, uma tristeza sem fim, pois era cegamente apaixonada pelo galante persa, tanto que os romances que teve no futuro acabaram sendo postos em dúvida e considerados “inapropriados”. Mas o anel era de verdade. Uma joia incomparável, envolta em mistério. Diziam que tinha pertencido a Aladim, exatamente como em As mil e uma noites. Pelo menos era o que a tia Sunniva alegava. Ela repetiu essa história até morrer de uma tuberculose devastadora, sozinha, tal como tinha retornado dos Estados Unidos. A tristeza por não ter tido filhos a atormentou até o fim, por isso ela era mais afeita às crianças do que qualquer outra pessoa da família. Por vezes a fio, repetia que desejava, do fundo do coração, ter alguma importância para as pessoas que viveriam no mundo depois dela.

Um resultado visível desse desejo foi que conseguiu tecer, tricotar ou bordar peças para todos os sobrinhos e sobrinhas, incluindo a avó materna de Anna, que tinha recebido as almofadas com desenhos de contos de fadas. E havia o anel, uma verdadeira preciosidade, que jamais poderia ser doado. Deveria passar de dedo em dedo ao longo de gerações, e seu lugar agora era com Anna.

Jonas levantou a mão dela e o examinou mais de perto. Ele disse: — É incrível como é bonito... e tenho a impressão de que é muito antigo, de uma época totalmente diferente.

Jonas olhou para ela.

— Mas você acha mesmo que é o da história de Aladim? Não era ele quem tinha uma lâmpada maravilhosa?

Anna assentiu e disse: — Sunniva tinha apenas trinta e oito anos quando morreu de tuberculose, e esse anel era a única prova visível de que o grande amor dela tinha existido. Ele devia amar Sunniva mais do que qualquer um em sua vida. Ninguém dá um anel tão especial para qualquer um. Disso não tenho dúvida. Esmail garantiu à tia Sunniva que o anel tinha mais de mil anos.

— Acho que ele exagerou. Sua tia devia ser um pouco ingênua também.

Anna balançou a cabeça.

— Faz uns cinquenta anos que um joalheiro norueguês examinou o anel, um especialista em joias orientais, e concluiu que deve ter pelo menos centenas de anos.

Disse que era uma relíquia que deveria ir para o museu do Teerã. Além disso, garantiu que o rubi é originário da Birmânia.

— Mas não de um conto de fadas.

Ela retomou a história.

— Esmail vinha de uma família tradicional, com uma história que atravessava os séculos. Oitocentos anos antes, o Aladim histórico tinha vivido na Pérsia. Seu nome quer dizer “alteza da fé”, e ele se chamava assim porque fazia preces diárias e se mantinha fiel ao Todo-Poderoso. Aladim enfrentou um feiticeiro que queria tirar sua vida, porque tinha proposto casamento a uma bela garota. Ele conseguiu roubar um anel mágico do feiticeiro, e com ele no dedo ficou imune a todas as formas de magia negra.

Jonas pigarreou.

— E esse Aladim é o mesmo das histórias?

Anna fez que sim, mas depois balançou a cabeça negativamente.

— Não necessariamente— ela respondeu. — Houve um Peer Gynt que morou no vale do Gudbrand. Mas é o mesmo Peer de quem ouvimos falar nas peças de Ibsen? De jeito nenhum. Mas se agora estou aqui usando um anel que pertenceu ao Aladim real, que morou na Pérsia do século XII, acho que é o suficiente. Além disso, pode haver outra explicação, como minha mãe sempre diz. E você sabe que ela é muito sensata.

— Qual é a outra explicação?— Jonas perguntou. — Posso ser sensato também.

Ela o encarou.

— Não é inconcebível que o anel tenha pertencido a alguém que se chamava Aladim. Mas é razoável supor que esse Aladim tenha sido chamado assim por causa do Aladim da história. Ninguém sabe ao certo a idade de um conto tão antigo.

— Eu aceito essa versão — disse Jonas. — Acho que concordo com sua mãe.

Passamos um tempinho juntos na sala de espera do dr. Benjamin e conversamos um pouco. É evidente que ela é a sensata da família.

— Com certeza— respondeu Anna. E repetiu em seguida com uma voz solene:— Com certeza! Mas Sunniva contou mais coisas sobre o anel, coisas em que ela acreditava piamente até o dia em que morreu. Para entender melhor, é preciso conhecer As mil e uma noites.

Jonas olhou para o relógio e Anna entendeu por quê. Dali duas horas o sol ia se pôr, e tudo ficaria escuro. Mas ela continuou: — Em duas oportunidades, Aladim se salvou com a ajuda do anel. A primeira foi quando estava preso numa caverna e juntou as mãos em prece para implorar ao Todo-Poderoso. Então o gênio do anel se revelou e o libertou do cativeiro. A segunda foi quando seu palácio inteiro, com a princesa e os servos, foi transferido da África para a China. Aladim ficou na margem do rio e juntou novamente as mãos em prece para pedir que não se afogasse em sua mágoa sem fim. Ele tocou o anel e o mesmo gênio se revelou, pronto para reunir Aladim com sua amada princesa. O gênio do anel não tinha o poder de mover o palácio com a princesa e os servos de volta para a África, só o gênio da lâmpada, que estava na África, mas tinha o poder de levar Aladim até o palácio.

— É, disso eu lembro — disse Jonas.

— Tia Sunniva sempre dizia que o anel tinha o poder de atender a três desejos desde que fora forjado. Somente dois foram usados por Aladim. Ela morreu com a convicção de que, se estiver em apuros, o portador do anel poderia ter qualquer desejo atendido, mas apenas um. A própria tia Sunniva nunca pensou em nada importante o bastante, nem mesmo quando encarou a morte nos olhos. Ela dizia que era melhor passar a oportunidade adiante para um herdeiro que tivesse um desejo tão grande que só um anel capaz de mover mundos pudesse satisfazer.

Jonas se levantou da mesa e começou a andar em círculos sobre as tábuas largas de madeira do assoalho. Finalmente apontou para Anna e disse: — E você herdou essa chance?

Ela o encarou e assentiu. Resignada, mas com certo ar de vitória, disse: — Mas eu já usei o último pedido, Jonas. Não existe mais. Não agora, mas daqui a setenta anos, quando tudo no nosso planeta estava tão ruim que já não existia mais vida nas florestas tropicais e áreas alagadas, nas pradarias e savanas. Meu desejo mais sincero era que o mundo tivesse uma segunda chance. E era muito grande para o gênio do anel realizar. Então pedi para voltar no tempo, para quando o mundo ainda tinha uma chance. E, abracadabra, aqui estou! E encontrei você. E aqui estamos, Jonas. Não temos nenhuma oportunidade além desta. De agora em diante precisamos saber exatamente o que estamos fazendo. Porque acabou a mágica no anel do Aladim, tenho certeza.

Jonas balançou a cabeça. Em seguida, deixou escapar: — Não sei mais no que acreditar.

Anna disse:

— Talvez isso não seja o mais importante.

— Como assim?

— O mais importante é acreditar.

Anna deu uma espiada pela vidraça quadrada. Imediatamente viu uma garota da sua idade passando atrás do curral. Não conseguiu ver seu rosto, mas havia algo bem familiar na figura que caminhava por ali.

Saiu porta afora e gritou bem alto: — Olá!

Jonas quis saber para quem estava gritando.

— Era a Nova — disse ela fechando a porta. — Passou por aqui. Você não viu?

— Não.

— É com ela que tenho sonhado. É ela que vejo quando durmo.

Ele a segurou firme pelos ombros.

— Você não está falando sério quando diz que viu sua própria bisneta passando lá fora, está?

— Claro que estou!

— Mas Anna...

— O quê?

— Acha que consegue filmar com o celular o que viu?

Ela pensou bem. Depois disse: — Talvez não. Mas a questão não é essa.

— Então qual é?

— A questão é que eu a vi.


O tribunal do clima

 


É verão e Nova está usando um vestido vermelho bem leve. Foi convocada como testemunha pelo Tribunal Internacional do Clima, em Haia, na Holanda. É a primeira vez que viaja ao exterior.

Ela cruza a cidade de mãos dadas com o garoto árabe. Estão namorando, ou talvez estejam apenas fingindo. Ele veste um terno escuro e uma camisa branca; parece um político. Também foi chamado como testemunha pelo Tribunal do Clima, e talvez esse seja o motivo do terno. Caminhando pela cidade, podem ser confundidos com recém-casados, mas tudo não passa de um teatro, uma brincadeira.

Vão cortando caminho por entre os edifícios altos e chegam a uma grande praça onde dezenas de camelos estão enfileirados. Um dia esse lugar deve ter sido um estacionamento. Veículos de quatro rodas continuam a rodar pela cidade, e alguns até estão parados ali agora, mas não são muitos. Os camelos estão atados às árvores, e os veículos estão conectados às estações de carregamento.

Muitos anos atrás, a Noruega foi condenada pelo Tribunal Internacional do Clima a usar noventa e sete por cento de seu fundo soberano no combate à pobreza em diversas iniciativas climáticas, como a construção de diques e barragens. O emirado de onde vem o garoto árabe recebeu uma pena semelhante. Alguns foram responsabilizados pelos estragos ao planeta devido à queima de petróleo, carvão e gás. Mesmo assim, a rápida utilização das baterias fósseis drenou os recursos do planeta, e a Noruega recebeu uma sentença particularmente severa por conta da responsabilidade de sua estatal petrolífera pela poluição causada pela extração de petróleo em solos betuminosos. Em sua defesa, a empresa disse que, se não tivesse agido assim, outros teriam extraído o petróleo de maneira ainda mais poluente. Essa declaração acabou caindo na boca do povo: “Se não fizermos, outros fazem, e poluem ainda mais”. Em Haia, vários criminosos de guerra se justificaram de maneira parecida.

Eles sobem as escadarias do grande prédio onde vão testemunhar. Todos os olhos se voltam para os dois.

Crianças jogam pétalas de rosas— parece que estão casando, pelo menos para as crianças, de tão lindos que estão.

No alto da escadaria, são entrevistados por um canal de TV, que pergunta o que vão dizer. Ela olha para a câmera e explica: — Somos jovens. Vamos dizer que não se trata mais de um conflito entre nações. Só existe uma atmosfera, e não se veem fronteiras do espaço. Gerações estão contrapostas nesse conflito, e nós, os jovens de hoje, somos vítimas da catástrofe climática.

Ela sente o garoto apertando com força sua mão. Talvez signifique que concorda, que acha que está se expressando muito bem, ou apenas que estão juntos em algo muito importante.

Ele olha para a câmera e diz: — Viemos de duas nações petrolíferas que enriqueceram de repente. Fui obrigado a fugir da seca arrasadora e do sol causticante do meu país. Agora esse país não existe mais. Tudo é deserto e a terra não é mais habitável.

Ela olha para o garoto e sorri. Então se vira para a câmera e acrescenta: — Este jovem é um dos milhões de refugiados do clima, e agora ele mora no meu país.


As luvas

 


Eles começaram a arrumar a casa para ir embora. Anna fechou o gás enquanto Jonas limpava a bancada da cozinha. Ele perguntou se deveria acompanhá-la até sua casa e dormir por lá. Ou o garoto árabe estaria no quarto das almofadas?

Ela riu. Então ficou séria. Segurou as duas mãos dele e o encarou.

— Hoje não dá, Jonas. Preciso escrever uma carta e enviar antes que anoiteça... O prazo tem a ver com meu aniversário... Preciso me livrar disso antes de completar dezesseis anos...

Anna guardou as folhas e os recortes de volta nos sacos plásticos e enfiou na jaqueta. Jonas dobrou as páginas que tinha escrito. Ele disse: — Eu devia ter dado uma resposta melhor sobre como salvar mil e uma espécies de plantas e animais. Talvez eu tenha sido muito precipitado usando a apresentação.

— Achei que ficou legal, Jonas.

Ele pôs a mão no ombro dela e a encarou bem nos olhos.

— Fiquei feliz por você não me bater.

— Não ia ser nada grave. Quero ter você do meu lado sempre.

Os dois desceram o morro do curral. Quando já se aproximavam do lago, despediram-se. Então ele perguntou para quem ela ia escrever. Alguém conhecido?

Anna fez mistério. Disse que era para alguém que Jonas talvez conhecesse um dia.

Mas que ia demorar um pouco.

De repente algo chamou a atenção dele. Examinou as luvas vermelhas dela e disse: — Quando cheguei você estava usando luvas azuis.

Anna fez que sim com a cabeça.

— Onde estão?

Ela levantou as luvas.

— Aqui...

Ele simplesmente balançou a cabeça, mas ela as tirou e mostrou que podiam ser viradas do avesso e usadas de ambos os lados. De um eram azuis; do outro, vermelhas.

Ele a abraçou e disse: — Cuidado ao descer, certo? E não fique procurando... ela. Não me deixe, Anna.

Não se perca. Prometa isso. Não quero você assim... tão distante.


O zoológico

 


Eles estão dentro de um bonde lotado que se afasta da cidade. Faz calor. Vestem calça jeans e camiseta leve. Não é perceptível que o garoto vem de um país árabe. Por baixo da camiseta, ela está usando um sutiã vermelho.

Os dois descem do bonde em frente à entrada de um grande parque. Sobre o largo portão há um enorme letreiro vermelho: ZOOLÓGICO INTERNACIONAL DE HAIA. A entrada é gratuita. O zoológico pertence a todos e é considerado Patrimônio Mundial pela Unesco.

Assim que entram, percebem um rebuliço de animais se movimentando entre arbustos e árvores espalhadas pelas enormes planícies que lembram uma savana. Até predadores perigosos como leões e tigres vivem livres, junto de antílopes e cervos, insetos, roedores, primatas e marsupiais. São mansos e até enganam, mas Nova sabe que não são animais de verdade. São hologramas de última geração. Não são feitos de carne e osso, mas de raios laser.

Os animais parecem reais, tanto na aparência como no movimento. Diante dos dois um canguru gigante salta de repente. Uma pantera negra cruza o jardim devagar. Pombas e aves de rapina se digladiam no ar. Mas eles não estão vivos. São virtuais. Por isso não são perigosos, nem para os humanos nem para si mesmos. Pela mesma razão são mudos. Não precisam ser alimentados, limpos ou vacinados. Não fazem suas necessidades nos arbustos.

Ele põe o braço direito em volta dos ombros dela. Passear pelo grande jardim é como perambular por um mundo de outrora, quase como retornar ao Jardim do Éden.

Não foi por acaso que o Governo Mundial escolheu Haia para sediar o Zoológico Internacional. O parque foi instalado na mesma cidade do Tribunal Internacional do Clima para servir como testemunha das regiões assoladas do planeta. Os animais vivos do parque estão desaparecidos da superfície da Terra há muito, assim como seus hábitats.

A vegetação em todo o ambiente também é virtual. Todos os arbustos, as árvores e plantas estão extintos. Somente a grama onde pisam é verdadeira, e quando ela se agacha para amarrar os cadarços vê um pequenino pulgão vermelho como brasa. Ele parece real, mas não é possível garantir.

Um chacal carente os acompanha pelo caminho. O garoto árabe tenta afastá-lo com os pés, mas o animal não é palpável. É apenas uma miragem.

Ele para e deixa o animal seguir adiante. Acaricia os cabelos castanhos dela, deixa que deslizem entre seus dedos.

Então pergunta: — Esse parque deveria alegrar a humanidade? Ou ser uma lembrança triste?

Ela enfia as mãos sob a camisa dele, agarra seu peito e ergue os olhos. Então diz: — É uma lembrança desagradável, mas necessária, da extinção das espécies, que as pessoas jamais poderão esquecer.


A identidade

 


Estava começando a escurecer. Anna desceu de esquis a encosta da montanha, desviando das bétulas e passando ao lado do estacionamento. Continuou descendo pela estrada que a neve ainda não tinha encoberto completamente.

De repente viu de relance a mesma garota que tinha passado atrás do curral. A garota tomou um susto e se escondeu atrás de um arvoredo. Levava debaixo do braço um aparelho que emitia um brilho azulado. Anna conseguiu vislumbrar seu rosto. Ela parecia um pouco... consigo própria.

Ocorreu-lhe que não tinha visto o próprio rosto quando sonhava que era aquela garota. Não tinha se visto diante de um espelho no sonho, mesmo sendo uma situação tão corriqueira.

Ela deu um impulso e acelerou na direção da garota. Chegou a uma clareira entre as bétulas e observou pegadas profundas na neve. A garota que procurava tinha evaporado.

Já estava escuro, mas não completamente. Não havia indício de que a noite seria enluarada, mas estrelas não paravam de surgir no céu.

Anna tinha lido em algum lugar que a estrela mais próxima do Sol estava a 4,3 anos-luz de distância. Ela se chamava Alfa Centauro. Mas seriam necessários cinco milhões de anos cruzando o espaço na velocidade de um avião a jato para chegar até ela.

Isso tornava a Terra ainda mais vulnerável e preciosa.

Anna se lembrou de um artigo em uma de suas caixas. Falava sobre ter coragem de dar um passo à frente ir além de si mesmo. Ela estava com ele, mas estava escuro demais para ler, e Anna não tinha lanterna. Lembrou-se da bisneta passando por ali com um aparelho portátil, então tirou as luvas e pegou o celular. Lembrou-se de um trecho e buscou na internet, tentando encontrar o artigo. Digitou: “Até onde vai nosso horizonte ético?”. Não demorou nem um segundo para o artigo surgir na tela. Ela leu em silêncio.

Até onde vai nosso horizonte ético? Em última análise, essa é uma questão de identidade. O que é o ser humano?

Quem sou eu? Se eu fosse apenas meu ser— o corpo que está aqui sentado escrevendo—, seria uma criatura desprovida de esperança. No longo prazo, pelo menos. Mas tenho uma identidade tão profunda que vai além do meu próprio corpo e da minha breve existência na Terra. Sou parte de algo— que também é parte de mim— maior e mais poderoso do que eu mesmo.

Se tivesse que escolher entre morrer agora mesmo com a certeza de que a humanidade continuaria por milhares de anos ou viver com saúde até completar cem anos e testemunhar sua extinção, nem hesitaria. Escolheria morrer aqui e agora— e não como vítima, mas porque algo que considero “meu” é representado por toda a humanidade.

Temo perder esse pedaço de mim. A simples hipótese de que isso pode acontecer me deixa aterrorizado. A ideia de que a humanidade perecerá em cem ou mil anos me assusta mais do que a certeza de que meu próprio corpo entregará os pontos a qualquer momento— que é exatamente isso que acontecerá um dia.

Penso em nome de todo o planeta em que vivo. Ele também sou eu. Eu me importo com o destino dele porque tenho medo de perder a essência da minha própria identidade.

O texto não estava assinado, e Anna ficou imaginando de quem poderia ser. Uma mulher ou um homem? Então começou a rir. Ele tratava exatamente de ser algo maior e mais poderoso do que si mesmo.

Talvez por aquela razão não estivesse assinado!


O planeta

 


Ela está numa nave espacial com o garoto árabe. Os dois conquistaram um prêmio internacional pelas iniciativas bem-sucedidas em prol do planeta onde vivem, então ganharam doze voltas em órbita da Terra num micro-ônibus espacial.

São apenas os dois na cabine minúscula. Não precisam fazer nada. Tudo é controlado por computadores, e podem simplesmente relaxar e aproveitar a viagem.

Observam o planeta lá embaixo. Lembram-se das imagens que viram do planeta azul tiradas pela Apollo mais de cem anos atrás. Acham que o planeta está irreconhecível. Do espaço, vê-se que está coberto de nuvens, e isso corresponde com as tempestades no nível do solo. O mesmo planeta que há cem anos parecia uma bola de gude agora lembra muito mais um novelo de lã desbotado.

Mesmo estando tão nublado, passear pelo espaço é uma experiência sensacional, e eles conseguem divisar pontos de verde, marrom e azul entre as nuvens. Ali está a África, a Índia, a China e o Japão.

O que mais impressiona é o silêncio. As únicas coisas que ela consegue ouvir são a respiração dele e seu coração batendo. Ou será o dela?

O garoto árabe não para de olhar para ela e sorrir.

— Você é tão linda— ele diz. Ela fica envergonhada e se vira na direção do planeta de onde os dois vêm. Admira o lugar que a criou e quer chamar a atenção para ele dizendo como o planeta já foi maravilhosamente belo.

Nenhum ser humano na Terra pode vê-los agora. Estão totalmente isolados, na companhia um do outro. A viagem que fazem juntos é tão distante... A forma mais íntima de passar alguns dias com alguém de quem se gosta é numa pequena nave espacial.

No espaço, a noite e o dia não passam de poucas horas. Eles admiraram doze amanheceres e doze crepúsculos, e acima das nuvens o céu é sempre azul.


A carta

 


Anna jantou com seu pai e deu boa-noite. Ele não parava de dizer que ela não deveria usar o anel ao sair para esquiar. E se o tivesse perdido na neve?

Ele estava chocado. Sem nem perceber ela podia tirar as luvas para ajustar as botas ou os esquis, ou abrir um bolso para ler uma mensagem no celular. E o anel ficava um pouco folgado no dedo dela. Por isso mesmo esperaram que completasse dezesseis anos para ficar com ele.

Anna estava sentada diante do computador no sótão. Tinha terminado de escrever a carta para sua própria bisneta e a postou no blog do grupo ambiental. Enquanto escrevia, ia se lembrando de trechos da carta que Nova tinha encontrado na internet, mas a maior parte escreveu sozinha. Mais uma vez leu o que tinha escrito.


Querida Nova,

Não sei como será o mundo quando você estiver lendo isto. Mas você sabe. Sabe o tamanho da devastação, o tanto que a natureza foi reduzida e até mesmo quais espécies vegetais e animais foram extintas.

Acho difícil escrever para você. Não é fácil escrever para alguém que viverá na Terra várias gerações depois de mim, e o fato de ser minha bisneta torna a tarefa ainda mais complicada. Mas serei o mais honesta e direta possível.

Aqui onde estou, num dos lugares mais ricos do mundo, infelizmente o que conta é apenas uma coisa: o “gasto”, que apelidamos de “consumo”. Em outras partes do mundo, as pessoas se referem a “sustento”.

Se preferimos termos como “gasto” ou “consumo” é porque talvez nos recusemos a admitir que existam limites. O copo nunca fica cheio. Uma palavrinha que quase não utilizamos é “basta”. Preferimos recorrer a outra, de apenas quatro letras: “mais”.

Você conhece as consequências melhor do que eu. O gelo que cobre a Groenlândia e os icebergs do oceano Ártico começaram a diminuir, e a busca por novas reservas de petróleo e gás já começou. Os políticos dizem que precisamos ir atrás da última gota de petróleo, porque o mundo precisa de mais energia. Mais petróleo e gás são necessários para eliminar a pobreza, dizem. Mas estão mentindo. Sabem que isso não é feito em nome do interesse dos mais pobres. É claro que estão cientes de que a queima de petróleo e carvão pelos mais ricos só piora a vida dos mais pobres. São as empresas de petróleo e os países produtores que precisam obter mais lucros. Ou seja, é sempre mais, mais. Não existe disposição política para deixar as novas reservas de petróleo e gás intocadas. Infelizmente, isso corresponde à vontade da maioria das pessoas. Somos uma geração egoísta. Uma geração brutal. Pouco se leva em conta que os que virão depois de nós podem precisar dessa reserva de energia. Outra palavra que raramente usamos é “poupar”. Mas expressões como “consciência ambiental”, “carbono neutro” e afins são cada vez mais empregadas nos jornais e em documentos públicos. Criamos um idioma, quase uma língua de brincadeira, que tem pouca relação com a realidade.

Será que não existe um mínimo de otimismo ou coragem neste labirinto? Talvez. Só posso me perguntar, e sei que você já tem a resposta.

Minha contribuição é muito pequena, mas não tenho uma alternativa melhor quando o objetivo é um esforço compartilhado para preservar os recursos do planeta.

Tente imaginar o seguinte: em todos os lugares por onde o homem passa— florestas, montanhas, praças, esquinas, estações de metrô e aeroportos...— são instaladas máquinas verdes. Nelas as pessoas podem passar um cartão para assistir a trechos de maravilhosos filmes sobre a natureza. Talvez alguém queira apreciar melhor determinada planta, determinado animal, ou um ecossistema ou hábitat específico onde viviam milhares de espécies. O ponto é: só podemos desfrutar da natureza tanto quanto nos responsabilizamos por ela. Todo o dinheiro arrecadado por essas máquinas— poderiam ser milhões delas instaladas pelo mundo afora— será utilizado para salvar a Terra. Os usuários também terão à disposição um monte de jogos e competições com prêmios em dinheiro.

É um tanto irônico uma nova geração de caça-níqueis ser responsável por dar um pouco de esperança ao mundo. Dói admitir. Mas não iremos a lugar nenhum se negarmos a natureza das pessoas e dos governos.

Tem tanta coisa que não sei sobre o futuro... Só sei que quero fazer parte dele. E talvez tenha dado o primeiro passo.

Desejo tudo de bom para você e para o mundo no qual crescerá e viverá sua vida.

Com amor,

Sua bisavó Anna (Nyrud)


Já passava da meia-noite, e era seu aniversário. Dia 12 de dezembro de 2012. Ela se admirou por nada de mais ter acontecido quando completou dezesseis anos: nenhum acidente de carro na rua, nada caindo da estante, nem mesmo um monte de neve acumulada rolando pelo teto.

Algum tempo depois, ela recebeu uma mensagem no celular. Era de Benjamin: Está tudo bem. Ela foi libertada pelos soldados quenianos há poucos minutos. Ligou agora e está bem. Obrigado pelo apoio! Beijos. P.S.: Ela foi bem tratada, pôde caminhar ao ar livre e não teve pés e mãos amarrados. Até jogou dados com os sequestradores! Dei aquela caminhada que sugeriu.

Anna suspirou aliviada e sentiu uma lágrima escorrer pelo canto do olho. Mas o psiquiatra não ia escapar tão facilmente. Ela lhe ligou, e assim que atendeu, ele disse: — É você, Anna?

— Tinha certeza de que Ester seria libertada na virada do dia 12.

— Por quê?

— Estamos entrando em uma nova era.

— Mas por quê?

— Acho que você não vai ter paciência para ouvir tudo. Mas é meu aniversário de dezesseis anos.

— Parabéns!

— Obrigada.

— Fiquei feliz que ligou, Anna. Mas é tarde, preciso desligar. E sou seu médico.

— Então vou só dizer uma coisa e fazer uma pergunta.

— Diga!

— Já contei a você que sempre sonho que sou minha própria bisneta. Agora também consigo ver Nova quando estou acordada. Você continua achando que não estou doente?

— Você não está doente, Anna. Aliás...

— Sim?

— Talvez você seja mais sã que a maioria das pessoas. Talvez mais gente devesse ser como você.

— Como assim?

— Temos que ser capazes de visualizar nossos descendentes, precisamos sentir mais a presença dos que vão herdar a nossa Terra.

— Que bom ouvir isso!

— E o que você queria perguntar?

— Por que você usa um brinco de estrela?

Ele riu.

— Foi um presente que minha mulher me deu há mais de trinta anos, poucos dias depois que Ester nasceu.

— Ah...

— Ester significa “estrela”. E não uma estrela qualquer, mas a estrela da manhã, Vênus.

— Que tola eu fui!

— Por quê?

— Porque não percebi isso logo. É maravilhoso!

— Bom, boa noite, Anna.

— Boa noite, Benjamin.

— Ah, espere um pouco!

— Sim?

— Você autoriza que eu quebre o sigilo médico?

— Não tenho nada a esconder. Mas por quê?

— Gostaria de falar de você para Ester. O tempo inteiro você me fez lembrar dela quando tinha sua idade. Vocês têm muito em comum: são extrovertidas, francas e compartilham os mesmos ideais.

— Legal. Mande lembranças para ela!

— Sou proibido de falar sobre um paciente.

— Tudo bem, não me incomodo. E, por favor, conte sobre tudo o que falamos. Além disso, você não me tratou. Apenas garantiu que eu não precisava de tratamento. Não fui sua “paciente”.

— É um jeito de ver a coisa.

— Você é só um amigo, Benjamin.

Ele riu.

— Então está tudo certo. Boa noite, Anna.

— Boa noite.

Ela foi se trocar e escovar os dentes, depois desabou na cama. Era como se uma eternidade tivesse transcorrido desde a última vez que se deitara ali.

Talvez porque estava de volta na mesma cama em que tinha acordado quando se lembrou de uma importante passagem ocorrida no sonho da noite anterior.


A falha lógica

 


É cedo e está chovendo forte. Ela está sentada na cama do quarto vermelho, lendo no terminal portátil. Acha que está sozinha, mas logo vê Olla parada diante da janela estreita, admirando o vale. Pigarreia para Olla saber que ela está ali. A velha se vira e pergunta com ternura: — O que foi, minha querida?

Ela lê em voz alta a carta que acabou de surgir na tela: Querida Nova, não sei como será o mundo quando você estiver lendo isso. Mas você sabe...

Olla treme dos pés à cabeça. Mexe o braço esquerdo, exibindo o anel vermelho que resplandece no ar. É como se quisesse mostrar poder. Ela diz: — Então você encontrou o que lhe escrevi.

— Mas o que foi feito das máquinas verdes? Chegaram a ser instaladas?

Olla a encara e responde ríspida: — Cuidado, Nova! Qualquer resposta que eu dê vai implicar uma falha lógica.

— Também seria uma falha lógica se eu perguntasse o nome do meu bisavô?

A velha balançou a cabeça, quase faceira.

— Você não lembra?— pergunta ela. — Não faz tanto tempo assim que ele segurava você no colo. Mas o garoto em que você está pensando se chamava Jonas e morava em Lo.

— Jonas...

— Nunca contei que nos encontrávamos no antigo curral? Ele esquiava de Lo, e eu da minha casa. Naquele tempo dizíamos apenas “Vamos nos encontrar na montanha”.

— E agora lá é um matagal.

A bisavó Anna volta a lhe lançar um olhar severo e a coloca no devido lugar.

— Cuidado! Novamente aqui a lógica pode se romper. Agora o mundo ganhou uma nova chance.

Ela volta a sacudir o braço esquerdo e o anel reluz.


O bisavô

 


Anna ficou deitada um bom tempo, escutando os estalos e rangidos na parede congelada lá fora. Assim que caiu no sono, começou a sonhar com um pássaro vermelho que bicava o vidro da janela, querendo entrar. O sonho era tão lívido e o bicar do pássaro era tão intenso que ela acordou. Acendeu o abajur, pegou o celular e viu que tinha recebido uma mensagem. Talvez aquilo a tivesse despertado. Ou foram apenas os estalos nas paredes?

A mensagem era de Jonas.

Tá acordada?

Ela digitou.

Sim. Você me acordou.

Parabéns!

Obrigado, Jonas.

Já li.

Não entendi.

O que você escreveu. Você postou no blog.

Não pensei que alguém fosse ler antes de 2082. Me liga.

No instante seguinte o celular tocou. Ele disse: — Já soube que terminou tudo bem na África?

— Sim. Falei com o Benjamin. Ele está muito feliz... Sabe por que usa um brinco de estrela?

— Não, por quê?

— Ele ganhou de presente da mulher poucos dias depois que Ester nasceu. E Ester significa “estrela”...

Jonas elogiou Anna pela carta que tinha postado na internet. Estava especialmente feliz por ela ter escrito sobre as máquinas verdes. Limpou a garganta e disse: — Reparei que você escreveu bem no finalzinho: “Tem tanta coisa que não sei sobre o futuro. Só sei que quero fazer parte dele. E talvez tenha dado o primeiro passo”.

— Sim, escrevi para minha bisneta.

Ele limpou a garganta mais uma vez.

— Talvez eu possa ser o bisavô dela.

Anna riu tão alto que achou que tinha acordado seu pai no andar de baixo. Ela sussurrou no celular: — Não é um pouco cedo para isso?

Agora era ele quem estava rindo.

— Claro, sua louca— ele disse.

— Tem tanta coisa louca nesse mundo...

Ele disse:

— Podemos começar crescendo juntos. Acho que não tenho pressa para nos tornarmos bisavô e bisavó.

Ela riu de novo.

— Quero fazer muitas coisas além de pôr uma criança no mundo. No verão vou de bicicleta até Bergen. Quer ir junto?

— Quero, se você for comigo de trem até Roma.

— Está falando sério?

— Claro!

— É isso que eu quero. Será que dá para ir para lá da Holanda?

— Claro. Os holandeses também viajam para Roma. Quer conhecer Amsterdam?

— Muito, mas agora estava pensando em ir para Haia.

— Haia? Você é amiga de algum criminoso de guerra?

— Não, mas um dia talvez seja criado um Tribunal Internacional do Clima em Haia.

Gostaria de passear por lá com você. Quero ver como é hoje. Talvez até mostre pra você. Um espaço vazio enorme, talvez um parque, ou mesmo um bairro inteiro.

— Agora você me deixou curioso.

— Promete que vamos dar uma chance para este planeta? Isso é o mais importante.

E que vamos conseguir muita gente para nossa causa?

— Claro.

— Você acredita mesmo nisso, Jonas? Quero que a gente tenha fé no que está fazendo.

— Sim...

— Você está otimista? Ou pessimista?

— Não sei. Talvez as duas coisas. E você?

— Estou otimista. E sabe por quê? Acho imoral ser pessimista.

— Imoral?

— Pessimismo não passa de um sinônimo para preguiça. Tenho minhas preocupações, claro, mas os pessimistas já desistiram.

— Você tem razão.

— Não podemos perder a esperança. E isso quer dizer que precisamos lutar. Está disposto, Jonas? Quer batalhar pelo mundo comigo?

— Vou com você para qualquer lugar.

— Então vou fazer um teste com você.

— Pode fazer!

— Vamos começar a ler juntos?

— Ler?

— Hamsun, Dostoiévski, os clássicos. Shakespeare, Homero. Os contos de fadas, As mil e uma noites... E os mitos! Podemos começar pelos gregos e nórdicos. Quero ler sobre o ragnarök. Sobre Cassandra, que era sensitiva, mas ninguém acreditava nela...

— Você quer dizer ler em voz alta? Juntos? É isso?

— Não, não. Lermos os mesmos livros ao mesmo tempo. Assim podemos viver em outros mundos juntos. Saindo e entrando das mesmas paisagens e fantasias.

Construindo e compartilhando um grande círculo virtual de coisas e pessoas. Então vamos poder passear na montanha acompanhados de vários amigos invisíveis.

— Tá. Combinado.

— Vamos começar amanhã. Vou comprar dois exemplares dos Mistérios de Hamsun.

Vi na livraria e fiquei louca pelo título. É meu aniversário, então meu pai deve me dar algum dinheiro. Você já leu?

— Não. Você não para de me surpreender.

— Que bom.

— Talvez...

— Acho que viver é uma loucura. Ter dezesseis anos é completamente diferente de ter apenas quinze anos e trezentos e sessenta e quatro dias. Tem tanta coisa que eu quero... Sabe o que vou fazer antes de ir pra escola amanhã?

— Não. Não sou Cassandra.

— Vou descobrir quantas espécies de pulgões existem.

— Está vendo como você é maluca?

— Mas foi você quem me fez pensar nisso.

— Eu?

— Você escreveu que queria criar um fundo específico para todas as espécies de pulgão ameaçadas. Então fiquei pensando em quantas seriam.

— Tinha esquecido completamente! Bom, acho melhor a gente dormir.

— Não seja tão chato, Jonas. Quando você me mandou a mensagem eu já estava dormindo, e agora estou completamente acordada.

— Depois de um dia como esse você provavelmente vai cair no sono rápido. Além do que, seu pai deve levar o café na cama para você.

— Espero que traga sanduíches e chá! Estou bem crescidinha para bolo com refrigerante.

— Então boa noite!

— Sabe o que vou fazer se não conseguir pegar no sono?

— Contar carneirinhos?

— Quase. Contar pulgões. Vou fechar os olhos e contar pulgões hiperativos, daqueles bem vermelhos. Amanhã você vai saber quantos foram até eu dormir.

— Talvez eu faça a mesma coisa. Então vamos saber quem demorou mais pra dormir. Boa noite, Anna. Até amanhã!

— Boa noite.


O vilarejo

 


É noite e está escuro como breu, mas faz muito calor. Ela está sentada no chão, nos arredores de um vilarejo, com três homens de sua idade. O brilho azulado de um lampião a gás permite ver que todos carregam metralhadoras. O lampião está pendurado no alto de um galpão em ruínas. Encostadas na parede estão sacas de milho nas quais se lê

 

PROGRAMA MUNDIAL DE ALIMENTOS.

 

Ela escuta os grilos nos arbustos em volta. Consegue ouvir vozes femininas conversando e rindo, um bode berrando e o choro de um recém-nascido. O choro termina abruptamente, e ela imagina que alguém pegou o bebê no colo.

Ela não sente medo, mas começa a pensar em onde está e em quem é. Ela é Ester, e a vida a transformou numa refém num local ermo na fronteira entra a Somália e o Quênia.

Morcegos voam em torno da lâmpada. Ela olha para os sequestradores. Eles balançam a cabeça. Ela ergue os dados na mão e os lança sobre o chão marrom-avermelhado. Os dados rolam e param todos com o seis para cima.

Ester sorri diante de tanta sorte. Até os homens com as metralhadoras dão um sorriso.

— Você ganhou!— diz um deles.

Num tom de voz menos alegre, outro diz: — Pessoas brancas do norte sempre ganham.

No meio deles há uma garrafa de limonada e quatro copos. Um dos homens serve a bebida.

Ela olha para cima. O céu sem lua oferece o mais generoso espetáculo de estrelas que já viu. Ester pensa como é incrível que possa haver tanta guerra e animosidade diante de tal visão do Universo. Ela se sente envergonhada pela humanidade.

O intenso estrilar dos grilos e o barulho da aldeia vizinha apenas realçam a calma daquela noite. Há algo nesses ruídos noturnos que inspira confiança e segurança.

De repente alguma coisa se mexe nos arbustos, e o idílio é abruptamente quebrado por tiros e palavras de ordem ditas num idioma que ela não compreende. Um dos sequestradores consegue soltar uma rajada de tiros com a metralhadora, mas no momento seguinte todos estão deitados no chão implorando por misericórdia, até Ester, que age como eles: deita-se no chão e se rende. Da aldeia ressoa um pedido de socorro das mulheres que conversavam e riam, e o bebê começa a chorar novamente.

Os sequestradores são algemados e conduzidos a um jipe verde surgido do nada, e um oficial de farda segura Ester pela mão e diz:

— Seu pai manda lembranças!


Ester

 


Anna dormiu poucas horas, mas quando acordou, achou que tinham se passado meses. De novo estivera num lugar bem longínquo. Mal teve tempo de se lembrar do sonho— ela era Ester e tinha sido feita refém no Chifre da África— antes do celular tocar.

Tinha certeza de que era Jonas ligando.

— Oiê!

Então escutou uma voz feminina.

— É você, Anna?

— Sim?

— Aqui é Ester Antonsen. Estou ligando de Nairóbi.

Anna teve um sobressalto.

— Não estou entendendo... Acabei de acordar de um sonho em que eu era você...

Por que está me ligando?

— Você faz dezesseis anos hoje. Liguei por isso. Parabéns!

— Obrigada.

— Meu pai me contou sobre você. Foi ele quem sugeriu que ligasse. Você foi muito importante para ele no período em que fiquei como refém. Preciso agradecer por isso!

Anna ficou feliz por saber que tinha ajudado Benjamin. Ela disse: — Falei para ele não se preocupar com o sigilo médico e pedi que mandasse lembranças a você. Admiro muito pessoas assim entusiasmadas, que põem a mão na massa para ajudar os mais pobres.

Antes que Anna conseguisse dizer mais alguma coisa, Ester perguntou: — É verdade que você sonhou que era eu?

— Sim. Às vezes sonho que sou outra pessoa. Foi assim que acabei conhecendo seu pai. Uma vez sonhei que era um elefante. Foi tão estranho ser um elefante... Mas esta noite sonhei que era você. Como foi com os sequestradores?

— Eles me trataram bem. Pedi para dormir ao relento e eles deixaram, ficavam só se alternando para me vigiar. Passamos a noite acordados jogando dados.

— E você ganhou. Não foi?

— Como você sabe?

— Bem...

— Anna, como você sabe disso?

— Você sabe o que aconteceu com os sequestradores? Eles têm mulher e filhos...

— Foram entregues às autoridades da Somália.

— E o que vai acontecer?

— Vou dizer que me trataram com respeito. Mas não foi um conto de fadas, Anna.

Fiquei com medo. Não podemos aceitar que trabalhadores humanitários sejam tomados como reféns. Podemos tentar entender os terroristas, mas o terror nunca se justifica.

Talvez eles passem alguns anos na cadeia antes que possam voltar para casa.

— Verdade... Falando em “mulher e filhos”...

— O quê?

— Vi uma foto sua num site. Aí liguei para Benjamin, provavelmente porque reconheci você de uma foto que estava na escrivaninha dele.

— Mas a foto na escrivaninha dele é da minha mãe. Foi tirada muito tempo atrás.

— Eu sei. Vocês devem ser muito parecidas.

Ester ficou muda do outro lado da linha. Depois disse: — Sempre comentam que pareço com minha mãe quando tinha minha idade. Mas ela morreu quando eu era pequena, Anna, e desde então meu pai é tudo o que tenho. E agora Lukas, meu filho. Quando fui feita refém, meu pai teve muito medo de me perder também, e mais medo ainda de que Lukas tivesse que crescer sem uma mãe por perto.

— Entendo. Ele estava muito nervoso... Quantos anos tem o Lukas?

— Oito. Ele ama o avô, e vice-versa.

— Imagino. Seu pai é um bom amigo. Sabe por quê?

— Não. Me conta.

— Ele entende a questão do clima e se importa com ela. E fala sério sobre essas coisas comigo, apesar de eu ser uma adolescente.

— Quando eu tinha dezesseis, falava das mesmas coisas com meu pai. Ele ainda não era tão aberto. Fui eu que ensinei tudo sobre o assunto a ele.

— Ah, é? A filha ensinando ao pai?

— Ele também me ensinou bastante coisa. A pescar. Sobre os pássaros. A fazer flautas de salgueiro, barquinhos de casca de árvore e guirlandas de flores.

— Ele deve ter sido um bom pai.

— Quando comecei a me interessar pela questão ambiental, me filiei a uma organização não governamental. Passei a falar com o meu pai sobre as mudanças climáticas. E o mantenho atualizado desde então.

— Legal! E dá pra resumir como está essa questão?

— As geleiras do planeta estão derretendo, e o gelo do Ártico chegou a um mínimo preocupante. Este ano tivemos o outono mais quente da história, e nos Estados Unidos mais de mil recordes de temperatura foram batidos. Muitos dos efeitos negativos do aquecimento global apareceram bem antes do esperado, mesmo se compararmos com os cenários mais pessimistas traçados pelos cientistas. Milhões de pessoas já estão sofrendo consequências de fenômenos que previmos há apenas alguns anos. Estamos testemunhando exemplos mais frequentes e mais devastadores de catástrofes climáticas, como inundações, ondas de calor e incêndios florestais. Pessoas estão tendo que migrar para fugir deles.

— Eu sei...

— Mas o mundo não consegue chegar a um acordo para reduzir as emissões de carbono. Os países produtores de petróleo querem extrair até a última gota. Os mais ricos não se dispõem a abrir mão de uns poucos privilégios. Quanto mais tempo levarmos para mudar nossa atitude, mais difícil será.

— Essas catástrofes já devem ter começado a causar muito prejuízo.

— Claro. Não faz tantos anos que descobrimos que somos a primeira geração a influenciar o clima da Terra e a última que não terá que pagar por isso. Mas esse conceito já nem é mais válido. Vi com meus próprios olhos e vivenciei de perto as emergências climáticas, presenciei secas catastróficas, segurei crianças moribundas na mão... É terrível, Anna. Porque não é a natureza que mata. Somos nós, as pessoas.

— Quando terminar a escola, vou meter a mão na massa também.

— Você pode pôr a mão na massa já. Mas antes disso queria que nos conhecêssemos pessoalmente.

— Não sei se sou tão boa como Benjamin lhe disse. Mas não mordo.

— Vou voltar para a Noruega na próxima semana. Você costuma ir a Oslo?

— Posso ir, mas...

— Sim?

— Tenho um namorado que se chama Jonas.

— Já ouvi falar dele também.

— Não sei se gosto disso.

— Do quê?

— De Benjamin ter contato até isso.

— Não tem nada de mais, Anna. O que você estava dizendo?

— Criamos um grupo ambiental na escola, na verdade por sugestão de Benjamin. Se você vier nos visitar e contar o que viu na África, talvez a escola inteira queira ouvir.

Com certeza vão nos deixar usar o auditório. Senão podemos simplesmente ocupar o lugar. Você pode contar sobre as vítimas atuais do aquecimento global. Talvez até tenha fotos para mostrar. Pode contar histórias...

— Vou com muito prazer, Anna.

— Tem que ser no fim do dia. Mas você pode dormir em casa. Não faz ideia das maravilhas que meu pai inventa na cozinha! Minha mãe é melhor nas sobremesas...

— Huuum! Que legal!

— A gente tem um quartinho de hóspedes com um sofá gigante e dezessete almofadas diferentes.

— Dezessete?

— Cada uma delas tem um bordado de conto de fadas. Tem uma com uma imagem linda do Aladim na caverna subterrânea onde encontrou a lâmpada maravilhosa. Não é todo mundo que lembra que o Aladim também tinha um anel mágico, mas ele está bem destacado no bordado, e de alguma forma tem a ver com hoje. Conto direitinho quando nos encontrarmos. Você já andou num camelo?

— Várias vezes.

— Só andei uma vez. Benjamin me disse para fazer amizade com árabes, e ultimamente eles têm me feito companhia.

— Onde?

— Dentro da minha cabeça... Agora estou ouvindo meu pai mexendo na cozinha, ele deve querer me acordar com o café na cama. Conto muito mais quando a gente se encontrar. Não vejo a hora! Agora preciso fingir que estou dormindo.

— Claro!

— Ou será que digo logo que Ester Antonsen me ligou para desejar feliz aniversário? Tudo bem por você?

— Com certeza. Não precisa manter sigilo em relação a mim.

— Tenha um bom dia!

— Você também, Anna! É o seu dia!

 

 

                                                                  Jostein Gardeen

 

 

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