Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ANOS FELIZES
A tarde de domingo estava luminosa e a campina, coberta de neve, brilhava ao sol. A brisa do sul soprava brandamente, mas fazia tanto frio que os patins do trenó rangiam ao deslizarem sobre a neve compacta. Os cascos dos cavalos produziam um surdo ruído — ploque, ploque, ploque. Pa conservava-se calado.
Sentada a seu lado, na tábua posta de través, Laura também nada dizia. Não havia o que dizer. Ia ser professora.
Ainda na véspera, era uma menina de escola. Agora, era professora. Acontecera tão subitamente... Mal podia, imaginar que na manhã seguinte já não iria à escola, com sua irmãzinha Carrie, nem se sentaria à carteira, junto de Ida Brown. Mas, ao contrário, estaria ensinando.
Não sabia, realmente, o que fazer. Nunca havia ensinado e ainda não completara dezesseis anos. Mesmo para quinze, era pequena; e agora se sentia muito pequenina.
A terra nevada passava, ligeira, e se estendia em torno. O céu, profundo e tênue, erguia-se vazio. Laura não olhava para trás, mas sabia que a cidade estava agora a muitos quilômetros, era apenas uma mancha escura na campina vazia e branca. Lá, na tépida sala de estar, Ma, Carrie e Grace ficaram muito longe.
O sítio de Brewster achava-se ainda a muitos quilômetros à frente. Ficava a dezoito quilômetros da cidade. Laura não sabia como era. Não conhecia ninguém lá. Vira o Sr. Brewster apenas uma vez, quando a veio contratar para lecionar em sua escola. Era magro e trigueiro como qualquer sitiante; não aparentava muita coisa.
Pa olhava a distância em frente, sustendo as rédeas nas mãos enfiadas em mitenes, e de quando em quando assobiava para incitar os cavalos. Mas sabia o que Laura sentia. Por fim, voltou-se para ela e falou, como se estivesse respondendo ao seu temor da manhã seguinte:-
— Bem, Laura! Você agora é professora! Sabíamos que seria, não é? Mas não o esperávamos tão cedo.
— Acha que poderei ser, Pa — respondeu Laura. — Imagine... imagine só... que as crianças não se importem, quando me virem tão pequena.
— É claro que vai ser — respondeu Pa. — Ainda não falhou em nada do que tentou. Já?
— Bem, ainda não — admitiu Laura. — Mas nunca tentei ser professora.
— Você se saiu bem em todos os seus empreendimentos — disse o pai. — Nunca procurou fugir e sempre persistiu até alcançar o que pretendia. O bom êxito deve ser um hábito, como tudo mais que uma pessoa faz.
Houve novo silêncio, apenas quebrado pelo ranger dos patins do trenó e o ploque, ploque, ploque das patas dos cavalos sobre a neve dura. Laura sentiu-se um pouco melhor. Era verdade: sempre persistira, sempre tivera de persistir. Bem, agora teria de ser professora.
— Lembra-se daquele tempo no Riacho das Ameixeiras? — disse o pai — quando sua mãe e eu tínhamos ido à cidade e veio a nevasca? E você conseguiu levar toda a pilha de lenha para dentro de casa?
Laura riu às gargalhadas e o riso de Pa ressoava como o repicar de sinos no silêncio gelado. Como se sentira pequena, assustada e ridícula, naquele dia já tão distante!
— Assim é que se enfrentam as situações — disse o pai. — Confie em você mesma e resolverá qualquer problema. Confiar em você mesma é o único jeito de fazer que os outros confiem em você.
Fez uma pausa e acrescentou:
— Há uma coisa que você deve evitar.
— Que é, Pa? — indagou Laura.
— Você é estourada. Costuma agir ou falar primeiro e pensar depois. Agora, precisa pensar antes e falar depois. Lembre-se disto e não terá problemas.
— Eu me lembrarei, Pa — disse Laura com veemência.
Estava realmente muito frio para conversas. Abrigados sob as pesadas mantas e cobertas, seguiam calados rumo ao sul. O vento frio fustigava-lhes as faces. Marcas meio apagadas de patins e trenós estendiam-se em frente. Nada mais se via, exceto a terra baixa, branca e sem fim, o imenso céu pálido e as sombras azuis dos cavalos a amortecer o fulgor da neve.
O vento agitava o grosso véu de lã preta diante dos olhos de Laura. Seu hálito gelava, formando uma placa úmida e fria a bater-lhe contra a boca e o nariz.
Viu, por fim, uma casa à sua frente. Muito pequena a princípio, foi crescendo à medida que se aproximavam. Quase um quilômetro mais longe, havia outra, menor, e muito mais além, uma outra. Depois, surgiu ainda outra. Quatro casas ao todo, bastante separadas umas das outras e pequeninas na campina branca.
Pa estancou os cavalos. A casa do Sr. Brewster lembrava duas casinhas de concessão reunidas, formando um telhado de duas águas. A cobertura de folha alcatroada era nua e a neve fundida congelara-se em grandes flocos que pendiam das goteiras em colunas empoladas, tão grossas que Laura não poderia abraçar. Pareciam dentes enormes e escalavrados. Alguns mordiam a neve e outros estavam partidos. Lascas de gelo espalhavam-se pela neve suja, em volta da porta, onde água de lavadura fora derramada. A janela não tinha cortinas e a fumaça saía pela chaminé do fogão, presa à cobertura por arames.
O Sr. Brewster abriu a porta. Uma criança gritava dentro de casa e ele falou alto para ser ouvido:
— Entre, Ingalls! Entre e aqueça-se.
— Obrigado — respondeu Pa — mas estou a quase vinte quilômetros de casa e é melhor ir andando.
Laura escorregou rápida para fora das cobertas, para que o frio não entrasse. Pa entregou-lhe a sacola de Ma, com a sua muda de roupa branca, seu outro vestido e os livros escolares.
— Adeus, Pa — disse.
— Adeus, Laura.
Seus olhos azuis sorriam, encorajando-a. Mas dezoito quilômetros eram muito para percorrer com freqüência. Não o veria de novo antes de dois meses.
Entrou logo. Vinha da luz brilhante do sol e, por alguns instantes, nada pôde ver. O Sr. Brewster disse:
— Esta é a Sra. Brewster; Lib, esta é a professora. Uma mulher de aspecto rabugento, ao pé do fogão, mexia algo numa frigideira. Um menino agarrava-se às suas saias e chorava, o rosto sujo e o nariz precisando de um lenço.
— Boa tarde, Sra. Brewster — disse Laura tão agradavelmente quanto pôde.
— Vá ao outro compartimento e tire os seus agasalhos — disse a Sra. Brewster. — Pendure-os atrás da cortina, onde está o sofá.
Deu as costas a Laura e continuou a mexer o caldo na frigideira.
Laura não sabia o que pensar. Não poderia ter feito nada que ofendesse a Sra. Brewster. Entrou na outra peça.
A parede divisória acompanhava a parte mais alta da cobertura e dividia a casa em duas partes iguais. De cada lado da divisão, os caibros e a cobertura de folha alcatroada desciam até as paredes baixas, de tábuas, com as frestas bem revestidas até o chão, e sem acabamento interno, escoradas por barrotes nus. Era como a casa de Pa na concessão, porém menor e sem teto.
O outro compartimento era muito frio, é claro, com uma janela que abria para a campina vazia e nevada. Junto à parede, sob a janela, estava o sofá, de fabricação comum. Tinha espaldar de madeira curva e um dos extremos era mais alto. A cama estava feita no sofá. Cortinas de chita parda pendiam junto à parede, em cada extremidade de um cordel atravessado acima da janela, e podiam ser puxadas, escondendo o sofá. Do outro lado do compartimento, havia uma cama encostada à parede e, nos pés da cama, lugar bastante para uma escrivaninha.
Laura pendurou o casaco, o agasalho, o véu e o capuz em pregos, por trás da cortina de chita e pôs no chão, por baixo deles, a sacola de Ma. E ali ficou, tiritando, sem coragem de voltar ao outro compartimento, aquecido, onde se achava a Sra. Brewster. Mas tinha de voltar. E voltou.
O Sr. Brewster sentara-se ao pé do fogo, com o garotinho sobre os joelhos. A Sra. Brewster raspava o molho para dentro de uma tigela. A mesa estava posta e os pratos e talheres espalhavam-se sem ordem pela toalha branca, cheia de manchas e estendida obliquamente.
— Posso ajudá-la, Sra. Brewster? — perguntou Laura, enchendo-se de coragem. A Sra. Brewster não respondeu. Jogou com raiva algumas batatas em um prato e o atirou à mesa. O relógio na parede começou a ranger, preparando-se para dar as horas, e Laura viu que faltavam cinco minutos para as quatro.
— Agora, almoçamos tão tarde que fazemos apenas duas refeições por dia — explicou o Sr. Brewster.
— De quem é a culpa? — bradou a Sra. Brewster. — Como se eu não tivesse bastante que fazer, trabalhando como uma escrava de manhã à noite, neste...
O Sr. Brewster elevou a voz.
— Só quis dizer que os dias são tão curtos...
— Então explique-se!
A Sra. Brewster empurrou com violência a cadeira alta para junto da mesa, pegou o menino e o sentou nela, à força.
— O jantar está servido — disse o Sr. Brewster a Laura, que ocupou o lugar vago. O Sr. Brewster passou-lhe as batatas, carne de porco salgada e molho. A comida era boa, mas o silêncio da Sra. Brewster era tão desagradável que Laura mal podia engolir.
— A escola fica longe daqui? — tentou perguntar jovialmente.
O Sr. Brewster respondeu:
— Menos de um quilômetro, atravessando o terreno. É uma casinha de concessão. O sujeito que obteve aquele quarto de terra não conseguiu sustentar-se. Desistiu e voltou para o Leste.
E calou-se também. O garoto, inquieto, tentava alcançar as coisas sobre a mesa. De repente, arremessou ao chão o prato de estanho em que comia. A Sra. Brewster bateu-lhe na mão e ele gritou. E continuou a gritar e bater no pé da mesa.
Por fim, a refeição acabou. O Sr. Brewster retirou o balde de leite do prego em que pendia na parede e dirigiu-se ao estábulo. A Sra. Brewster sentou o menino no chão e ele aos poucos foi parando de chorar, enquanto Laura ajudava a tirar a mesa. Depois, apanhou um avental na sacola de Ma, prendeu-o sobre seu vestido de princesa marrom e tomou uma toalha para enxugar os pratos que a Sra. Brewster ia lavando.
— Como se chama o seu menino, Sra. Brewster? — perguntou, esperando que se tornasse mais amável.
— John — disse a Sra. Brewster.
— É um bonito nome. Podem chamá-lo de Johnny, enquanto for pequeno. E, quando crescer, John é um bom nome para um homem. A senhora o chama agora de Johnny?
A Sra. Brewster não respondeu. O silêncio era cada vez mais terrível. Laura sentia o rosto arder. Continuou a enxugar os pratos às tontas. Quando terminaram, a Sra. Brewster jogou fora a água da lavadura e pendurou a bacia no prego. Sentou-se na cadeira de balanço e ficou a embalançar-se ociosa, enquanto Johnny engatinhava para baixo do fogão. Puxou o rabo do gato, que o arranhou, fazendo-o chorar. A Sra. Brewster continuou a embalançar-se.
Laura não ousou interferir. Johnny chorava, a Sra. Brewster embalançava-se mal-humorada e Laura sentada à cadeira, junto à mesa, olhava a campina lá fora. A estrada seguia direita, cortava a neve e perdia-se de vista. A dezoito quilômetros de distância estava a sua casa. Ma, agora, deveria estar fazendo o jantar; Carrie chegava da escola; deveriam estar rindo e conversando com Grace. Pa iria chegar e erguer Grace nos braços, como costumava fazer com Laura quando era pequena. E continuariam conversando à mesa do jantar. Então, sentados à luz do candeeiro, leriam aconchegados, enquanto Carrie estudava. Depois Pa tocaria o seu violino.
A sala foi-se tornando escura. Laura já não podia ver a estrada. Por fim, o Sr. Brewster entrou com o leite. E a Sra. Brewster acendeu o candeeiro. Coou o leite, arrumou a vasilha e o Sr. Brewster sentou-se e abriu um jornal. Ninguém falou. O silêncio desagradável era triste e pesado.
Laura não sabia o que fazer. Era muito cedo para deitar-se. Não havia outro jornal e nenhum livro na sala. Pensou então nos seus livros escolares. Foi ao quarto, frio e escuro, e tateou a sacola de Ma até encontrar o seu livro de História. Levou-o para a sala e, sentando-se de novo à mesa, começou a estudar.
Pelo menos, nada me impede de estudar, pensou com tristeza. Sentia-se magoada e ferida como se tivesse recebido pancadas mas, aos poucos, foi esquecendo onde estava, conservando a atenção presa à História. Afinal, ouviu o relógio bater as oito horas. Levantou-se e educadamente deu boa noite. A Sra. Brewster não respondeu, mas o Sr. Brewster disse:
— Boa noite.
No quarto, tiritando, Laura despiu o vestido, as roupas de baixo e se enfiou na camisola de flanela. Meteu-se sob as cobertas, no sofá, e puxou as cortinas de chita em volta dele. O travesseiro era de penas e havia lençóis e muitas mantas, mas o sofá era muito estreito.
Ouvia a Sra. Brewster falar, irada e muito depressa. As mantas cobriam a cabeça de Laura, de modo que só a ponta do nariz estava de fora, ao frio, mas não pôde deixar de ouvir a querela da Sra. Brewster:
— ...convém a você, mas eu tenho de sustentar uma hóspede. — E ouviu mais: — Este lugar horrível, nesta solidão! Professora, com efeito!... Eu também seria professora, se não tivesse casado com um...
Laura pensou: Ela não quer hospedar a professora; é isso. Teria sido hostil a qualquer outra pessoa.
Esforçou-se por não ouvir mais e dormir; mas, durante toda a noite, em seu sono, precisou cuidar de não cair do estreito sofá e continuou receosa da manhã seguinte, quando teria de começar a lecionar.
Laura ouviu bater a tampa do fogão. Por um instante, viu-se em sua cama com Mary enquanto o pai acendia o fogo da manhã. Mas notou a cortina de chita e percebeu onde estava e lembrou-se de que, nesse dia, teria de começar a lecionar.
Ouviu o Sr. Brewster retirar do prego o balde de leite e bater a porta, saindo. Do outro lado da cortina, a Sra. Brewster levantava-se. Johnny choramingou e depois calou-se. Laura não se mexeu; parecia-lhe que, se permanecesse bem quieta, poderia impedir o dia de avançar.
O Sr. Brewster entrou com o leite. Ouviu-o dizer:
— Vou fazer fogo na escola. Estarei de volta à hora da refeição. E bateu a porta de novo.
De um pulo, Laura levantou as cobertas. O ar estava extremamente frio. Os dentes lhe batiam e os dedos entorpecidos mal podiam abo toar os sapatos.
Na cozinha, não fazia tanto frio. A Sra. Brewster partira o gelo no balde d'água e enchia a chaleira. E respondeu amavelmente ao bom dia de Laura. Laura encheu a bacia, posta sobre o banco, ao pé da porta, e lavou as mãos e o rosto. A água gelada lhe formigava nas faces e, quando se penteou, viu seu rosto que se refletia, rosado, no espelho colocado acima do banco.
Fatias de carne de porco salgada frigiam ao fogo e s Sra. Brewster cortava batatas, cozidas e já frias, em uma outra frigideira posta sobre o fogão. Johnny agitava-se no quarto e Laura rapidamente prendeu as trancas com os grampos, atou o avental e disse:
— Deixe-me preparar as batatas, enquanto a senhora veste o menino.
A Sra. Brewster trouxe Johnny para perto do fogão e o arrumou para o almoço e Laura acabou de cortar as batatas, polvilhou-as com sal e pimenta e cobriu-as. Depois, virou as fatias de carne e pôs cuidadosamente a mesa.
— Foi bom que minha mãe me dissesse para trazer este avental grande — disse. — É melhor um avental bem amplo, que cubra todo o vestido, não é?
A Sra. Brewster não respondeu. O fogão rubro aquecia toda a sala, que continuava a parecer triste. Apenas palavras curtas e indispensáveis foram ditas à mesa.
Foi um alívio quando Laura pôde colocar os agasalhos, apanhar os livros e a merendeira de lata e deixar aquela casa. Pôs-se a caminhar os oitocentos metros nevados que a separavam da escola. Na neve lisa, mal se viam as pegadas do Sr. Brewster, tão separadas umas das outras que Laura não podia andar sobre elas.
Patinando, afundando na neve espessa, Laura de repente riu alto.
Bem, pensou. Aqui estou, receosa de prosseguir, mas não recuarei. Ensinar não pode ser tão mau quanto permanecer naquela casa com a Sra. Brewster. De qualquer modo, não pode ser pior.
Mas, de súbito, sentiu tanto medo que teve de dizer em voz alta:
— Tenho que persistir!
Pela chaminé da velha estufa, na casinha da concessão, subia ao céu da manhã a fumaça negra do carvão. Duas outras filas de pegadas vinham até a porta e Laura ouviu vozes no interior da casa. Reuniu suas forças por um instante, abriu a porta e entrou.
As frestas entre as tábuas das paredes não eram cobertas de ripas. Réstias de sol entravam pelas fendas, sobre um correr de seis bancos e carteiras de fabricação caseira e que vinha até o meio da sala. Ao fundo, preso às ripas da parede oposta, havia um quadrado de tábuas pintadas de preto, para servir de quadro-negro.
À frente dos bancos havia uma grande estufa. Seus flancos curvos e a tampa mostravam-se rubros do calor do fogo e à sua volta reuniam-se os colegiais aos quais Laura deveria lecionar. Olharam-na todos. Eram cinco, e dois rapazes e uma mocinha eram mais altos do que ela.
— Bom dia — conseguiu dizer.
Responderam todos, ainda olhando-a. Uma pequena janela, junto à porta, deixava entrar um retângulo de sol. Mais além, no canto próximo à estufa, havia uma pequena mesa e uma cadeira.
É a mesa da professora, pensou Laura. E então: Céus! a professora sou eu!
Seus passos soavam fortemente. Todos os olhos a seguiam. Colocou os livros e a merendeira sobre a mesa e tirou o casaco e o capuz, pendurando-os a um prego na parede, junto à cadeira. Na mesa, viu um pequeno relógio. Os ponteiros marcavam cinco minutos para as nove.
De algum modo tinha de passar os cinco minutos, antes de dar início à aula.
Descalçou devagar as mitenes e guardou-as no bolso do casaco. Depois, enfrentando todos os olhares, foi até a estufa. Estendeu as mãos, como para aquecê-las. Todos os alunos lhe abriram caminho, sempre olhando-a. Precisava dizer alguma coisa. Precisava.
— Faz frio esta manhã, não é? — disse. E, sem esperar resposta: — Acham que podem manter-se aquecidos nos bancos longe da estufa?
Um dos rapazes respondeu prontamente:
— Sento-me no último banco. É o mais frio. A mocinha alta falou:
— Carlos e eu temos de nos sentar juntos; estudamos nos mesmos livros.
— Está bem. Assim, todos podem sentar-se mais perto da estufa — disse Laura. Para sua alegre surpresa, os cinco minutos haviam passado!
— Podem sentar-se. A aula vai principiar.
A meninazinha ocupou a carteira da frente. Seguiam-se a mocinha alta e Carlos e, atrás deles, o outro rapaz alto. Laura bateu na mesa com o lápis:
— A aula vai começar. Vou anotar seus nomes e idades.
A meninazinha era Ruby Brewster e tinha nove anos, cabelos castanhos, olhos castanhos e brilhantes. Era mansa e sossegada como um ratinho. Laura achou que deveria ser dócil e boa. Havia terminado o Primeiro Livro de Leitura e, em Aritmética, estava aprendendo subtração.
O menino era seu irmão, Tommy Brewster. Contava onze anos. Terminara o Segundo Livro e chegara à divisão simples.
Os dois que sentavam juntos eram Carlos e Marta Harrison. Carlos tinha dezessete anos; era magro, pálido e lento no falar. Marta tinha dezesseis anos, era mais viva e falava por ambos.
O último rapazola era Clarence Brewster. Também era mais velho que Laura. Tinha olhos castanhos, ainda mais brilhantes e vivos que os de sua irmãzinha Ruby. Seu cabelo escuro era espesso e rebelde e falava e mexia-se com desembaraço. Tinha um modo de falar que era quase insolente.
Clarence, Carlos e Marta estavam todos no Quarto Livro de Leitura. Achavam-se além da metade do Livro de Ortografia e, em Aritmética, davam frações. Em Geografia, haviam estudado os Estados da Nova Inglaterra e responderam tão bem às perguntas que Laura os fez estudar os Estados do Meio Atlântico. Nenhum estudara Gramática ou História, mas Laura havia trazido a gramática de sua mãe e Clarence tinha um livro de História.
— Muito bem — disse Laura. — Podem começar Gramática e História e trocar os livros para estudar as lições.
Depois que se informou de tudo isso e passou as lições, já era hora do recreio. Puseram os agasalhos e saíram a brincar na neve. E Laura deu um suspiro de alívio. A primeira quarta parte do primeiro dia havia passado.
Então começou a fazer planos. Daria Leitura, Aritmética e Gramática de manhã e à tarde Leitura, outra vez, História, Escrita e Ortografia. Havia três classes de Ortografia, pois Ruby e Tommy estavam muito atrasados no Livro de Ortografia.
Passados quinze minutos, bateu na janela para chamar os alunos. E até o meio-dia ouviu e corrigiu pacientemente a leitura em voz alta.
A hora do recreio escoou-se lentamente. Sozinha à mesa, Laura comeu o pão com manteiga, enquanto os outros se juntavam em torno da estufa, conversando, brincando e comendo o que haviam levado nas merendeiras Depois, os meninos apostaram corridas lá fora na neve, Marta e Ruby observavam da janela e Laura deixou-se estar sentada à mesa. Agora, era professora e deveria portar-se como tal.
Por fim, a hora passou e outra vez bateu à janela. Os rapazes vieram correndo, expirando nuvens de vapor e sacudindo o ar frio dos casacos e agasalhos ao pendurá-los. O frio e o exercício os animara.
Laura disse:
— O fogo está baixo. Carlos, por favor, quer pôr-lhe mais carvão?
De bom grado, mas devagar, Carlos tomou o pesado tabuleiro de carvão e despejou-o quase todo na estufa.
— Da próxima vez, sou eu! — disse Clarence. Talvez não tivesse tido a intenção de ser impertinente. Se assim fosse, que poderia fazer Laura? Era um rapazola troncudo e rude, mais alto do que ela e mais velho. Piscava os olhos castanhos, olhando-a. Ela se fazia tão alta quanto podia. E bateu com o lápis na mesa:
— Atenção! — exclamou.
Embora os alunos fossem poucos, julgou melhor seguir a rotina da escola da cidade e chamar cada classe separadamente para recitar sua lição. Ruby era a única em sua classe, de modo que deveria saber bem todas as respostas, pois não havia ninguém para ajudá-la, respondendo também a algumas perguntas. Laura deixou-a soletrar devagar e, quando cometia um erro, poderia tentar de novo. Soletrava palavra por palavra de sua lição. Tommy era mais vagaroso, mas Laura lhe deu tempo para pensar e tentar e ele se saiu bem.
Depois, Marta, Carlos e Clarence soletraram. Marta não cometeu erros, mas Carlos saltou cinco palavras e Clarence saltou três. Pela primeira vez, teria de castigá-los.
— Marta, pode sentar-se — disse. — Carlos e Clarence, vão ao quadro-negro e escrevam as palavras que saltaram, três vezes cada uma.
Carlos foi, devagar, e começou a escrever as palavras. Clarence olhou de soslaio para Laura, com ar provocante. E escreveu depressa, com letras grandes e espalhadas que cobriam a sua metade do quadro-negro com apenas seis palavras. Voltou-se para Laura e, sem ao menos levantar a mão para pedir licença, disse:
— Professora! ü quadro-negro é muito pequeno. Divertia-se com o seu castigo por ter errado a lição.
Desafiava Laura. Por um longo, terrível momento, ali ficou a rir-se para ela, que o encarava fixamente. Então, Laura disse:
— Sim, o quadro-negro é muito pequeno, Clarence. É pequeno, mas você vai apagar o que escreveu e escrever de novo as palavras com mais cuidado. Faça as letras menores e haverá bastante espaço.
Ele teria de obedecer. Não saberia o que fazer, se ele não obedecesse. Ainda mostrando os dentes, bonacheirão, ele se voltou para o quadro-negro e apagou os garranchos. Escreveu as três palavras, três vezes cada uma e, por baixo, assinou o nome, com um floreio.
Aliviada, Laura verificou que eram quatro horas.
— Podem guardar os livros — disse. Quando todos os livros estavam nas prateleiras, sob os tampos das carteiras, acrescentou: — A aula está terminada.
Clarence arrebatou o casaco, o gorro e o agasalho do prego em que pendiam e, dando um grito, foi o primeiro a se lançar porta afora. Tommy foi-lhe nos calcanhares. Mas esperaram, na neve, que Laura ajudasse Ruby a vestir o casaco e prender o capuz. Mais sossegados, Carlos e Martha embrulharam-se bem em seus abrigos, antes de sair. Deveriam caminhar um quilômetro e meio.
Laura, de pé, à janela, viu-os partir. Podia ver a casinha de concessão do irmão do Sr. Brewster, distante apenas uns oitocentos metros. O fumo saía da chaminé e a janela de oeste refletia a luz do sol poente. Clarence e Tommy lutavam na neve e Ruby seguia-os, balançando seu capuz vermelho. Até onde Laura podia ver, pela janela de leste, o céu estava limpo.
A casinha da escola não tinha janela para noroeste. Se uma nevasca viesse de lá, não o saberia até ser alcançada.
Limpou o quadro-negro e varreu o chão. Não era necessário uma lata de lixo, porque as fendas entre as tábuas do soalho eram muito largas. Fechou os respiradouros da estufa, vestiu os agasalhos, apanhou os livros e a merendeira e, fechando cuidadosamente a porta atrás de si, partiu pelo mesmo caminho da manhã, para a casa da Sra. Brewster.
Seu primeiro dia como professora estava findo. Laura deu graças a Deus.
Abrindo penosamente seu caminho na neve, Laura procurava sentir-se alegre. Era difícil, pensava, dar-se com a Sra. Brewster; mas não deveria estar sempre mal-humorada. Talvez, esta tarde, não se mostrasse tão desagradável.
Assim Laura chegou, coberta de neve e queimada de frio, e falou cordialmente à Sra. Brewster. Mas, a todos os seus esforços, a Sra. Brewster respondia com frases curtas, quando respondia. Ao jantar, ninguém falou. O silêncio era tão pesado e desagradável que Laura não pôde falar.
Depois, ajudou de novo na limpeza e de novo ficou sentada, na sala que escurecia, enquanto a Sra. Brewster se embalançava, calada. Laura sentia-se mal, de tanta vontade de estar em casa.
Logo que a Sra. Brewster acendeu o candeeiro, Laura trouxe seus livros escolares para a mesa. Passou lições a si própria e decidiu estudá-las antes de se deitar. Queria acompanhar a sua classe, na cidade, e esperava estudar bastante para esquecer onde estava.
Fazia-se pequena em sua cadeira, pois o silêncio parecia oprimi-la de todos os lados. A Sra. Brewster sentava-se ociosa. O Sr. Brewster tinha Johnny adormecido sobre os joelhos e olhava fixamente o fogo que luzia pelo respiradouro aberto do fogão. O relógio bateu as sete horas. Bateu as oito. Bateu as nove. Laura fez um esforço e disse:
— Está ficando tarde. Desejo-lhes boa noite.
A Sra. Brewster não lhe deu atenção. O Sr. Brewster estremeceu e respondeu:
— Boa noite.
Antes que Laura pudesse enfiar-se na cama, na escuridão gelada, a Sra. Brewster começou a censurar o marido. Laura esforçou-se por não ouvir. Puxou as cobertas sobre a cabeça e apertou as orelhas contra o travesseiro, mas não pôde deixar de escutar. Sabia que a Sra. Brewster queria que escutasse. Dizia que não se iria matar de trabalho por uma garota vadia que não tinha o que fazer senão vestir-se e passar o dia sentada, na escola. Disse que, se o Sr. Brewster não pusesse Laura fora de casa, ela voltaria só para o Leste. E prosseguia sempre. E o som de sua voz fazia que Laura se sentisse mal; era a voz de quem se divertia em ferir os outros.
Laura não sabia o que fazer. Queria voltar, mas não podia sequer pensar em sua casa, porque choraria. Tinha de descobrir o que faria. Não havia outro lugar onde ficasse; as outras duas casas na colônia eram meras casinhas de concessão. Em casa dos Harrisons, eram quatro pessoas em um só compartimento e, em casa do irmão do Sr. Brewster, eram cinco. Não podiam, de modo nenhum, arranjar lugar para Laura.
De fato, não ajudava a Sra. Brewster, pensou. Apenas fazia a cama e auxiliava na cozinha. A Sra. Brewster agora se lamentava por causa da terra lisa, do vento e do frio; queria voltar para o Leste. De repente, Laura compreendeu:
— Ela não está brigando por minha causa. Está só querendo um pretexto para brigar. É egoísta e mesquinha.
O Sr. Brewster não dizia palavra. Laura pensou: Também tenho que suportar isso. Não há outro lugar onde possa ficar.
Quando acordou, de manhã, pensou: Tenho que suportar só um dia de cada vez.
Era penoso ficar onde não era desejada. Procurou não dar trabalho à Sra. Brewster e ajudá-la no que pudesse. Disse delicadamente:
— Bom dia — e sorriu. Mas não pôde permanecer sorrindo. Não sabia, até ali, que são necessárias duas pessoas para fazer um sorriso.
O segundo dia de escola lhe fazia medo. Contudo, transcorreu sossegado. Clarence preguiçava, em vez de estudar, e Laura receava ter de castigá-lo de novo, mas ele soube as lições. Talvez não lhe causasse embaraços.
Era estranho que se sentisse tão cansada às quatro horas. O segundo dia terminara, ao meio-dia seguinte teria completado a primeira metade da semana.
De repente, Laura prendeu a respiração e estacou imóvel no caminho nevado. Tinha pensado no sábado e domingo, dois dias inteiros a passar naquela casa, com a Sra. Brewster. Ouviu-se dizer, em voz alta:
— Oh, Pa, não posso!
Mas isso era choramingar e sentiu-se envergonhada. Ninguém a ouvira. Em redor, a campina estendia-se deserta, branca, imensa e silenciosa. Preferia ficar ali, ao frio intenso, a entrar naquela casa miserável ou ter de voltar, no dia seguinte, a um angustioso dia de escola. Mas o sol se punha e de novo nasceria; tudo devia continuar.
De noite, Laura sonhou outra vez que estava perdida em uma nevasca. Conhecia o sonho. Já o havia sonhado algumas vezes, desde que realmente se perdera com Carrie em uma nevasca. Mas esta era pior que a outra. Agora, a neve alfinetava e duras rajadas de vento quase a arrancavam e a Carrie do estreito sofá. Laura segurava-se a Carrie com todas as suas forças, por longo tempo, mas de repente Carrie desapareceu; a nevasca a arrebatara. O coração de Laura parou, de horror. Não podia avançar, não tinha mais alento, afundava cada vez mais na escuridão. Então Pa surgiu, guiando o trenó, vindo da cidade. E gritou-lhe: "Que tal passar o sábado em casa, Canarinho?" Ma, Mary, Carrie e Grace estavam muito surpresas. Mary disse, feliz: "Oh, Laura!" O rosto de Ma iluminou-se com um sorriso. Carrie correu a ajudar Laura a tirar os agasalhos e Grace saltava, batendo as mãos. "Charles, por que não nos disse?" exclamou Ma, e Pa respondeu: "Então, Carolina, eu disse que ia buscar uma pequena carga. Laura é pequena." E Laura lembrou-se de como, à mesa do jantar, Pa bebeu o chá, empurrou a xícara e disse: "Acho que vou buscar uma pequena carga, esta tarde." Ma exclamou: "Oh, Charles!" Laura não saíra de casa; ainda estava lá.
Então despertou. Estava em casa dos Brewster e era. quarta-feira de manhã. Mas o sonho fora tão real que quase acreditava nele. Pa poderia vir buscá-la para passar o sábado em casa. Era bem próprio dele fazer tal surpresa.
Nevara de noite. Tinha que abrir caminho para a escola, de novo. A luz do sol matutino brilhava ligeiramente rosada sobre muitas milhas de neve pura e qualquer sombrazinha parecia azul tênue. Laura, afundando e avançando entre os flocos macios, viu Clarence abrir caminho para Tommy e Ruby, que o seguiam. Patinharam ao mesmo tempo até a porta da casinha da escola.
A pequena Ruby estava coberta de neve da cabeça aos pés. Até no capuz e nas trancas havia neve. Laura escovou-a e lhe disse que conservasse os agasalhos até que a sala estivesse mais quente. Clarence atirou mais carvão ao fogo, enquanto Laura sacudia os próprios agasalhos e varria a neve pelas fendas entre as tábuas do assoalho. A luz do sol, que entrava pela janela, fazia a casinha parecer morna, mas fazia mais frio que lá fora. Logo, porém, o bom fogo da estufa tornou invisível sua respiração. Eram nove horas e Laura disse:
— A aula vai começar.
Marta e Carlos chegaram ofegantes, três minutos depois. Laura não desejava marcá-los como atrasados. Tiveram de abrir caminho por quase dois quilômetros. Alguns passos na neve funda são fáceis e divertidos, mas abrir caminho é esforço que se torna maior a cada passo. Por um momento, Laura pensou em desculpar Marta e Carlos esta vez. Mas não seria honesto. Nada poderia mudar a realidade: estavam atrasados.
— Lamento, mas tenho de marcar o seu atraso — disse. — Mas podem chegar-se à estufa e aquecer-se, antes de ocuparem seus lugares.
— Pedimos desculpas, Senhorita Ingalls — disse Marta. — Não previmos que iríamos demorar tanto.
— Abrir caminho é penoso, bem sei — disse Laura. E, de repente, ela e Marta sorriram-se, um sorriso amistoso que fez Laura sentir que ser professora era fácil. Disse: — Classe do Segundo Livro, de pé! Venha à mesa. — E Ruby, a classe do Segundo Livro, levantou-se e ficou de pé à sua frente.
Toda a manhã passou tranqüila. Ao meio-dia, Ruby veio à mesa de Laura e timidamente lhe ofereceu um pedaço de bolo. Depois da refeição, tirada das merendeiras, Clarence convidou-a para sair e jogar bolas de neve. E Marta acrescentou:
— Por favor, venha. Assim, seremos três de cada lado. Laura, contente de ser convidada e ansiosa por se achar ao sol e à neve, foi. Era muito divertido. Ela, Marta e Ruby lutavam contra Carlos, Clarence e Tommy. O ar estava cheio de bolas de neve. Clarence e Laura eram os mais rápidos, esquivando-se, cavando e modelando a neve com as mãos calçadas de mitenes, arremessando e fugindo de novo. Laura aquecia-se e ria, quando um grande torrão de neve estourou sobre seus olhos e sua boca aberta, polvilhando-lhe todo o rosto.
— Oh, não! Foi sem querer — ouviu Clarence dizer.
— Sim, foi de propósito! Acertou em cheio — respondeu Laura, esfregando os olhos, às cegas.
— Espere, deixe-me limpar, fique quieta — disse ele. Segurou-a pelo ombro, como se fosse Ruby, e enxugou-lhe o rosto com a ponta do agasalho.
— Obrigada — disse Laura. Mas viu que não deveria continuar jogando. Era muito pequena e muito jovem; não conseguiria manter a disciplina entre seus alunos, se jogasse com eles.
Naquela mesma tarde, Clarence puxou os cabelos de Marta. Quando virava a cabeça, sua trança castanha abanava rapidamente a carteira dele, que a agarrou e lhe deu um puxão.
— Clarence — disse Laura — deixe Marta em paz. Preste atenção à sua lição.
Recebeu em resposta um sorriso amável, que dizia tão claramente como por palavras:
— Está bem. Se está ordenando, ficarei quieto. Para seu horror, Laura quase sorriu. Agora, estava certa de que teria aborrecimentos com Clarence.
Quarta-feira terminava. Faltava apenas a quinta e depois a sexta. Laura esforçava-se por não esperar que o pai viesse buscá-la, mas não podia deixar de pensar. Ele seria muito capaz de vir e poupar-lhe dois dias tristes em casa da Sra. Brewster. Mas é claro que não sabia que ela se sentia tão deprimida. Não deveria esperá-lo. Mas certamente viria se o tempo estivesse bom. Se viesse, haveria apenas mais duas noites a suportar. E depois, sexta-feira à noite, estaria em casa! Todavia, não o esperava; não deveria, para não ficar desapontada se não viesse. Sabia que em casa sentiam sua falta. Se o tempo fosse ameno, certamente ele viria.
Mas, na manhã de sexta-feira, o céu apresentou-se tormentoso e o vento se tornou mais frio. O dia todo, na escola, Laura escutou o vento, temerosa de que o seu zumbido se convertesse no uivar da nevasca e que a casinha subitamente fosse abalada e a janela se tornasse opaca. O vento soprava mais frio pelas frestas. Seu rumor aumentava e, a cada rajada, a neve voava pela campina. Laura sentiu que o pai não viria. Trinta e seis quilômetros, nesse tempo, eram muito para os cavalos.
— Como vou passar o tempo até segunda-feira? — indagou-se Laura.
Sentindo-se infeliz, tirou os olhos da janela e viu Carlos sentado, meio adormecido. De repente, deu um salto, completamente acordado. Clarence espetara-lhe um alfinete no braço. Laura quase riu, mas o olhar de Clarence encontrou o seu e ele riu com os olhos. Não o poderia permitir.
— Clarence — disse — por que não estuda?
— Sei as lições — respondeu.
Não o duvidava. Clarence aprendia com facilidade e podia acompanhar Marta e Carlos, ainda lhe restando muito tempo de folga.
— Vejamos se sabe a sua lição de Ortografia — disse ela. Bateu sobre a mesa: — Terceira classe de Ortografia, levante-se e venha à mesa.
A casinha tremia ao vento, que a cada instante uivava mais forte em volta. O calor da estufa, aquecida ao rubro, derretia a neve que entrava pelas frestas e escorria, molhando o assoalho. Clarence escrevia corretamente as palavras que Laura lhe apresentava, enquanto ela se perguntava se deveria encerrar a aula mais cedo. Se esperasse e a tempestade piorasse, Carlos e Marta talvez não chegassem a casa.
Pareceu-lhe que o vento tinha um som estranhamente argentino. Ficou escutando. Todos escutavam. Não entendia o que estava acontecendo. O céu não mudara. Nuvens cinzentas e baixas corriam sobre a planície coberta de neve que voava. O estranho som foi-se tornando mais forte, quase-musical. De repente, o ar se encheu do tilintar de guizos. Guizos do trenó.
Iodos respiraram e sorriram. Dois cavalos castanhos passaram velozes em frente à janela. Laura conhecia-os, eram Príncipe e Lady, os cavalos do jovem Sr. Wilder! Os guizos do trenó tilintaram mais fortemente e pararam. Depois, alguns guizos soaram. Os cavalos castanhos estancaram junto à parede sul, abrigados pela casa.
Laura sentiu-se tão nervosa que teve de fazer um esforço para firmar a voz:
— Podem sentar-se.
Esperou um pouco e acrescentou:
— Podem guardar os livros. É um pouco cedo, mas o temporal está piorando. A aula está terminada.
Clarence saiu de um pulo e logo voltou: — É alguém à sua espera, professora! Laura ajudava Ruby a vestir o casaco.
— Diga-lhe que estarei lá em um instante.
— Venha, Carlos! Veja os cavalos! — E Clarence bateu a porta, fazendo a casa estremecer. Laura vestiu rapidamente o casaco e atou o capuz e o agasalho. Fechou os respiradouros da estufa, enfiou as mãos nas mitenes e apanhou os livros e a merendeira. Estava tão excitada que mal podia respirar. Pa não viera, mas, de qualquer modo, iria para casa!
Almanzo Wilder estava sentado em um trenó tão baixo e pequeno que mais parecia um monte de peles sobre a neve, atrás de Príncipe e Lady. Abrigava-se em um casaco de búfalo e um gorro de pele com abas, tão confortável quanto um capuz.
Não saltou para a neve. Ao contrário, ergueu as mantas e deu a mão a Laura, ajudando-a a entrar no trenó e aconchegou as cobertas em volta. Eram peles de búfalo, peludas e quentes, forradas de flanela.
— Quer passar em casa de Brewster? — indagou.
— É preciso, para deixar a merendeira e apanhar a sacola — respondeu Laura.
Em casa de Brewster, Johnny gritava raivosamente e, quando Laura saiu, viu que Almanzo olhava o casebre com desagrado. Mas agora tudo ficava para trás; ia para sua casa. Almanzo prendeu as cobertas confortavelmente em volta dela, os guizos do trenó entraram a tilintar, alegres, e velozmente, levada pelos cavalos castanhos, Laura voltava ao lar.
Disse, através do espesso véu de lã preta:
— Foi amável de sua parte vir buscar-me. Pensei que meu pai viesse.
Almanzo hesitou:
— Bem... Ele pretendia vir, mas eu lhe disse que seria uma caminhada bastante dura para a parelha dele.
— Ela terá de me trazer de volta — disse Laura, duvidosa. — Deverei estar na escola segunda-feira de manhã.
— Talvez Príncipe e Lady possam vir de novo — respondeu Almanzo.
Laura sentiu-se embaraçada. Não pretendera sugerir. Não havia pensado sequer que ele a trouxesse de volta. Ainda uma vez, falara antes de pensar. O conselho do pai era correto: deveria sempre e sempre pensar antes de falar. E disse consigo: Depois disto, pensarei sempre antes de falar. E falou, sem imaginar que poderia parecer desagradável:
— Oh, não se incomode. Meu pai me trará de volta.
— Não será incômodo — disse Almanzo. — Prometi levá-la a passeio quando meu trenó ficasse pronto. Aqui está ele. Que acha?
— E bom estar-se nele. É tão pequeno... — respondeu Laura.
— Fi-lo menor que os comprados feitos. Tem um metro e meio de comprimento, apenas, e sessenta e cinco centímetros de largura, no fundo. É mais cômodo de se andar e mais leve para os cavalos — explicou Almanzo. — Nem sentem que estão puxando.
— Parece que estamos voando! — disse Laura. Nunca pensara numa velocidade tão maravilhosa.
As nuvens baixas corriam para trás, acima da cabeça; a neve soprada pelo vento passava como fumaça, de cada lado, e os lustrosos cavalos castanhos avançavam velozes, deixando escapar música das fieiras de guizos. Não se sentia qualquer oscilação ou arranco; o pequeno trenó deslizava pela neve tão facilmente como um pássaro no ar.
Quase demasiado cedo, embora não suficientemente cedo, passaram sob as janelas da Rua Principal e logo chegaram à porta da casa do pai, que se abriu. E o pai lá estava, de pé. Rápida como o pensamento, Laura saltou do trenó e subiu os degraus, dizendo:
— Muito obrigada, Sr. Wilder. Boa noite — falou de um fôlego e entrou.
O sorriso de Ma iluminava-lhe o rosto. Carrie veio correndo e desenrolou o agasalho e o véu de Laura. E Grace batia as mãos, exclamando:
— Laura chegou!
Então, o pai entrou e disse.
— Deixe-me vê-la. Bem, bem, é o mesmo Canarinho de sempre.
Havia muito que falar e contar. A grande sala de estar nunca parecera tão bonita. As paredes agora estavam na cor castanho-escura, pois cada ano as tábuas de pinho se fazem mais escuras. A mesa achava-se coberta com a toalha de quadrados vermelhos e os tapetes de retalhos trançados alegravam o assoalho. De cada lado das janelas, guarnecidas de cortinas brancas, havia as cadeiras de balanço. E também a cadeira comprada para Mary e a cadeira de vime que o pai fizera para a mãe, fazia tanto tempo, no Território de Indiana. Sobre elas, as almofadas de retalhos. E lá estava o cesto de trabalhos de Ma e o seu tricô com as agulhas enfiadas no novelo de lã. Kitty estirou-se preguiçosamente, bocejou e veio esfregar-se, ronronando, às pernas de Laura. Na escrivaninha de Pa, viu o cesto de contas azuis feito por Mary.
A conversa continuou à mesa do jantar; Laura sentia mais fome de conversa que de alimento. Falou de cada um de seus alunos e Ma contou da última carta de Mary, que ia muito bem no colégio para cegos, em Iowa. Carrie contou todas as novidades da escola na cidade. Grace falou das palavras que aprendera a ler e da última briga de Kitty com um cão.
Depois do jantar, quando ela e Carrie acabaram de lavar a louça, o pai disse, como Laura esperava:
— Se você me trouxer o violino, Laura, poderemos ter um pouco de música.
E tocou marchas patrióticas da Escócia e dos Estados Unidos; tocou as velhas e doces canções de amor e as alegres músicas de dança. Laura sentia-se tão feliz que a garganta lhe apertava.
à hora de deitar, quando subiu com Carrie e Grace, olhou, da janela da água-furtada, as luzes da cidade que piscavam aqui e ali, em meio ao vento e à neve. E quando se agasalhou sob as cobertas, ouviu o pai e a mãe que subiam para seu quarto, no alto da escada. Ouviu a voz agradável e mansa da mãe e a voz grave do pai que lhe respondia. Sentiu-se tão contente de estar em casa por duas noites e quase dois dias que mal pôde dormir.
E o sono foi profundo e bom, sem receio de cair do sofá estreito.
Pareceu-lhe que quase no mesmo instante seus olhos se abriram; ouviu bater a tampa do fogão, lá embaixo, e compreendeu que estava em casa.
— Bom dia! — disse Carrie de sua cama. E Grace saltou e gritou:
— Bom dia, Laura!
— Bom dia — disse Ma, sorrindo, quando Laura desceu à cozinha.
E o pai entrou com o leite e disse:
— Bom dia, Canarinho!
Laura nunca observara, antes, que dizer bom dia fazia o dia bom. De qualquer modo, aprendera alguma coisa com a Sra. Brewster, pensou.
A refeição foi muito agradável. Depois, ligeiras, tagarelando sempre, Laura e Carrie lavaram a louça e subiram para arranjar as camas. E, quando estendiam o lençol, Laura disse:
— Carrie, já pensou algumas vezes como somos felizes em ter uma casa como esta?
Carrie olhou em volta, surpresa. Nada havia para ser visto, a não ser as duas camas, as três caixas embaixo da calha, onde guardavam suas coisas, e a parte inferior das ripas do telhado. Havia também a chaminé do fogão, que subia do assoalho e saía pelo telhado.
— É confortável — disse Carrie. E estenderam a primeira coberta, prendendo-a nos cantos. — Acho que nunca pensei bem nisso.
— Espere até sair de casa — disse Laura — e você pensará.
— Não gosta mesmo de ser professora? — perguntou Carrie, em voz baixa.
— Não, não gosto — quase murmurou Laura. — Mas Pa e Ma não devem saber.
Afofaram os travesseiros, colocando-os em seus lugares, e passaram à cama de Laura.
— Talvez você não precise... muito tempo — consolou Carrie. Desabotoaram a fronha e enfiaram os braços na palha, revolvendo-a. — Talvez você se case, como Ma.
— Não pretendo — disse Laura. Bateu a fronha, alisando-a e abotoou-a. — Pronto. Agora a coberta de baixo. Prefiro ficar em casa a qualquer outra coisa.
— Sempre? — indagou Carrie.
— Sim, sempre — disse Laura. E assim o desejava de todo o coração. Estendeu o lençol. — Mas não posso, pelo menos sempre. Tenho de continuar ensinando.
Prenderam as colchas e ajeitaram o travesseiro de Laura. As camas estavam feitas. Carrie disse que varreria.
— Eu sempre varro, agora. E, se vai visitar Mary Power, quanto mais cedo for, mais cedo voltará.
— Só quero saber se estou acompanhando a minha classe — disse Laura. Desceu, pôs no fogão a chaleira da lavadura e a encheu com o balde em que trouxe água do poço. Deixou-a a esquentar e foi ver Mary Power.
Esquecera inteiramente que jamais gostara da cidade. A manhã era clara e alegre. A luz do sol brilhava nos sulcos gelados da neve da rua e cintilava nas bordas geladas dos passeios de madeira. Nos dois quarteirões, havia agora apenas dois terrenos vagos, do lado oeste da rua, e diversas lojas haviam sido pintadas de branco ou cinza. A mercearia de Harthorn fora pintada de vermelho. Por toda parte havia o movimento e a agitação da manhã. Os lojistas, de grossos casacos e gorros, varriam pedaços de neve pisada dos passeios fronteiros às suas lojas e conversavam e riam. Portas batiam; galinhas cacarejavam e cavalos relinchavam nas estrebarias.
O Sr. Fuller e depois o Sr. Bradley tiraram os gorros e lhe deram bom dia quando passou. O Sr. Bradley falou:
— Ouvi dizer que está ensinando na escola de Brewster, Senhorita Ingalls?
Laura sentiu-se muito crescida.
— Sim — respondeu. — Vim à cidade apenas passar o sábado.
— Desejo-lhe bom êxito — disse o Sr. Bradley.
— Agradecida, Sr. Bradley — respondeu.
Na alfaiataria do Sr. Power, o pai de Mary, sentado sobre a mesa, de pernas cruzadas, ocupava-se em coser. Na sala traseira, Mary ajudava sua mãe no serviço da manhã.
— Vejam quem está aqui — exclamou a Sra. Power. — Como vai a professora?
— Muito bem, obrigada — respondeu Laura.
— Gosta de ensinar? — quis saber Mary.
— Vou indo bem, parece — disse Laura. — Mas preferiria estar em casa. Ficarei contente quando os dois meses houverem passado.
— Nós todas também — falou Mary. — Sentimos muito sua ausência na escola.
Laura gostou:
— Sentem mesmo? Também sinto muito sua falta.
— Nellie Oleson quis sentar-se no seu lugar — prosseguiu Mary. — Mas Ida não deixou. Disse que estava guardando o lugar, até a sua volta e o Professor Owen concordou.
— Para que queria Nellie Oleson o meu lugar? — exclamou Laura. — O dela é tão bom quanto o meu, ou quase.
— Nellie é assim mesmo — disse Mary. — Quer sempre o que os outros têm. Nada mais. Oh, Laura, ela vai ficar sem fala quando eu lhe disser que Almanzo Wilder a trouxe para casa no seu novo trenó!
Riram ambas. Laura sentia-se um pouco envergonhada, mas não podia deixar de rir. Lembraram-se de Nellie a vangloriar-se de que iria passear no trenó puxado por aqueles cavalos castanhos. Mas até agora não o conseguira.
— Mal posso esperar — disse Mary. E a Sra. Power falou:
— Não é bonito, Mary.
— Mas a senhora deveria ver como Nellie Oleson está sempre contando prosa e se mostrando e criticando Laura. E agora Laura está ensinando e Almanzo Wilder a está namorando!
— Oh, não! Não está me namorando — protestou Laura. — Nada disso. Trouxe-me para obsequiar meu pai.
Mary riu:
— Ele deve pensar muito em seu pai! — disse, provocante. Olhou Laura e acrescentou: — Desculpe.
— Não me aborreço — replicou Laura. — Tudo é simples quando estamos sós ou em nossa casa, mas logo que encontramos outras pessoas, começam as dificuldades. Só não quero que pense que o Sr. Wilder é o meu namorado, porque não é.
— Está bem — concordou Mary.
— Vim aqui apenas um instante — explicou Laura. — Deixei a água da limpeza aquecendo. Diga-me onde está, nas suas lições, Mary.
Depois que Mary disse, Laura viu que estava acompanhando a classe, graças ao seu estudo noturno. E voltou para casa.
Aquele dia foi muito bom. Laura lavou, engomou e passou a roupa, branca e fresca. Depois, na acolhedora sala de estar, descoseu o seu lindo chapéu de veludo castanho, tagarelando sempre com Ma, Carrie e Grace. Escovou e passou ao vapor o veludo e o estendeu de novo sobre a fôrma de tarlatana, experimentando-o em seguida. Parecia um chapéu novo, caindo-lhe melhor que antes. O tempo deu apenas para escovar, molhar e passar o seu vestido castanho e ajudar Ma a preparar uma ceia ligeira. Em seguida, banharam-se, um a um, na cozinha morna e foram deitar-se.
Se eu pudesse viver sempre assim, nada mais desejaria, pensou Laura, adormecendo. Talvez goste mais porque só tenho a noite de hoje e amanhã de manhã.
O sol matinal e o céu apresentavam seu tranqüilo aspecto domingueiro e a cidade estava sossegada, quando Laura, Carrie, Grace e Ma, devagar, se puseram a caminho. As tarefas da manhã estavam feitas, o feijão do almoço cozia lentamente no forno. Pa cerrou cuidadosamente os respiradouros da estufa, saiu e fechou a porta.
Laura e Carrie iam à frente; Pa e Ma seguiam-nas, dando as mãos a Grace. Bem dispostos e arrumados, envergando as melhores roupas domingueiras, andavam devagar na fria manhã, cuidando de não escorregar no chão gelado. Cautelosamente, pela rua, e em fila simples, cortando o terreno traseiro do armazém de Fuller, outras pessoas também se dirigiam à igreja.
Laura entrou e olhou ansiosa os bancos parcialmente ocupados. Lá estava Ida! Seus olhos brilharam quando viu Laura. E Ida Brown deslizou pelo banco, fazendo lugar, e apertou o braço de Laura.
— Viva! Que alegria em vê-la! — segredou. — Quando chegou?
— Sexta-feira, depois da aula. Voltarei esta tarde — respondeu Laura. Havia pouco tempo para conversar, antes da escola dominical.
— Está gostando de ensinar? — indagou Ida.
— Não, não gosto! Mas não conte a ninguém. Vou bem, por ora.
— Não contarei — prometeu. — Sabia que você iria bem. Mas o seu lugar na escola está vazio...
— Logo estarei de volta. São só sete semanas mais — disse Laura.
— Laura — exclamou Ida — você se importa se Nellie Oleson se sentar comigo, enquanto estiver ausente?
— Que, Ida Brown... — começou Laura. Mas percebeu que Ida estava apenas caçoando. — Claro que não — disse. — Pergunte-lhe se quer.
Como estavam na igreja e não deviam rir, calaram-se, agitando-se e quase se sufocando no esforço por se manterem sérias. O advogado Barnes bateu no púlpito, pedindo atenção para a escola dominical. Não podiam mais conversar. Levantaram-se e acompanharam o canto:
"Escola dominical!
Mais suave e mais querida
Que a mansão senhorial!
Meu coração te procura,
Doce lar dominical!"
Cantavam ambas e achavam que era ainda melhor que conversar. Ida é muito boa, pensou Laura quando, de pé, lado a lado, conservavam o livro de hinos aberto à sua frente.
"Meu errante coração
Aqui o carninho encontrou.
A via da salvação
Neste lar, seguro, achou."
Clara e firme, a voz de Laura sustentava o tom. E a voz de Ida, grave e doce, repetia:
"Meu coração te procura,
Doce lar dominical!"
E as duas vozes de novo se fundiram.
A escola dominical era a parte agradável do serviço religioso. Embora só pudessem falar ao professor, sobre a lição, Ida e Laura podiam sorrir-se e cantar juntas. Finda a escola dominical, houve tempo apenas de dizer: Adeus, adeus. Ida foi sentar-se ao lado da Sra. Brown, no banco dianteiro, enquanto o Reverendo Brown pregava um de seus longos e enfadonhos sermões.
Laura e Carrie sentaram-se com o pai, a mãe e Grace. Laura prestou atenção ao tema, para repeti-lo em casa, quando o pai lhe perguntasse. Depois, não precisava ouvir mais. Na igreja, sentia sempre a ausência de Mary. Sentada com muita correção, a seu lado, Mary vigiava para que Laura se portasse bem. Era estranho pensar que tinham sido crianças e que agora Mary estivesse no colégio e Laura fosse professora. Esforçava-se por não pensar na Sra. Brewster nem na escola. Afinal, Mary fora para o colégio e Laura ganhava quarenta dólares. Dariam decerto para que Mary permanecesse no colégio o ano seguinte. Talvez tudo fosse bem, se perseverasse. De qualquer modo, era preciso tentar. Nada sai bem se não nos esforçamos. E Laura pensava: Se eu puder controlar Clarence mais sete semanas...
Carrie beliscou-lhe o braço. Todos estavam de pé, para cantar a Doxologia. O serviço religioso terminara..
O almoço foi ótimo. O feijão cozido de Ma estava delicioso. E o pão com manteiga e os pepinos em conserva, também. Todos se sentiam bem dispostos, alegres e tagarelas. Laura exclamou:
— Como isto aqui é bom!
— E pena que a casa de Brewster não seja melhor— disse Pa.
— Oh, Pa, não me queixei! — exclamou Laura, surpresa.
— Sei que não se queixou — respondeu o pai. — Bem, faça queixo duro. Sete semanas passam depressa e logo estará novamente em casa.
Como era agradável, depois de lavarem a louça ficarem todos na sala da frente e aí passarem o resto da tarde. O sol entrava pelas vidraças claras das janelas e aquecia a sala. Ma balançava-se mansamente; Carrie e Grace viam as figuras no grande livro verde do pai: Maravilhas do Mundo Animal. Pa lia tópicos da Gazeta Pioneira para Ma e, sentada à sua secretária, Laura escrevia uma carta a Mary. Atentamente, com a pequena caneta de madrepérola de Ma, do feitio de uma pena de ave, ia escrevendo sobre sua escola e os seus alunos. Claro que não contou nada desagradável. O relógio batia e, de quando em quando, Kitty se espreguiçava com indolência e ronronava.
Finda a carta, Laura subiu e pôs suas roupas limpas na sacola de Ma, trazendo-a para baixo, para a sala da frente. Deveria ser hora de partir, mas o pai lia o seu jornal e não se moveu.
Ma olhou o relógio e disse mansamente:
— Charles, é bom que você se mexa. Do contrário, partirá atrasado. A distância é grande, para ir e voltar, e agora anoitece cedo.
Pa virou uma folha do jornal e disse:
— Oh, não há pressa.
Laura e Ma olharam-se, espantadas. Olharam o relógio e olharam de novo para o pai, que não se moveu, mas tinha algo de sorridente no aspecto de sua barba castanha. Laura sentou-se.
O relógio batia e o pai, calado, lia o jornal. Por duas vezes, Ma quase falou, mas ficou calada. Por fim, sem erguer os olhos, o pai disse:
— Há quem esteja preocupado com a minha parelha.
— Por que, Charles? Acho que não há nada com os cavalos — exclamou Ma.
— Bem — disse Pa. — Não são muito novos, de fato, mas ainda agüentam bem dezoito quilômetros de ida e outros tantos de volta.
— Charles — falou Ma, desconsolada.
Pa olhou para Laura e seus olhos piscavam.
— Talvez não tenha de guiá-los tão longe — disse. Guizos de trenó desciam a rua, cada vez mais claros e fortes. Tilintaram todos e pararam em frente. Pa foi à porta e abriu-a.
— Boa tarde, Sr. Ingalls — Laura ouviu Almanzo Wilder dizer. — Passei para saber se Laura permite que a leve à escola?
— Bem, creio que Laura gostaria de viajar no seu trenó — respondeu Pa.
— Faz-se tarde e está bastante frio para deter os cavalos, pois estão sem as cobertas — explicou Almanzo. — Vou levá-los até o fim da rua e passarei na volta.
— Direi a Laura — respondeu Pa e fechou a porta enquanto os guizos se afastavam.
— Então, Laura?
— Gosto de viajar de trenó — disse Laura. Ligeira, atou o capuz e vestiu o casaco. Os guizos voltavam. Mal teve tempo de dizer adeus e já paravam à porta.
— Não esqueça a sacola — disse Ma, e Laura voltou e apanhou-a.
— Obrigada, Ma. Adeus! — disse e saiu, dirigindo-se ao trenó. Almanzo ajudou-a a entrar e prendeu as cobertas em roda. Príncipe e Lady partiram rápidos, os guizos tilintaram a sua música e lá se foi Laura a caminho da escola.
Durante a semana, tudo saiu mal. Nada encorajava Laura. O tempo manteve-se sombrio. Pesadas nuvens pairavam baixas e extensas sobre a campina branco-cinza e o vento soprava monótono. O frio era úmido e viscoso. As estufas deitavam fumo.
A Sra. Brewster descurava as tarefas domésticas. Não varria a neve que o Sr. Brewster trazia consigo ao entrar e que formava poças pastosas com as cinzas caídas do fogão. Não fazia a cama, nem mesmo estendia as cobertas. Duas vezes por dia, cozia batatas e carne de porco salgada e as punha à mesa. O resto do tempo, deixava-se estar sentada, cismando. Nem penteava o cabelo. E pareceu a Laura que Johnny chorou de raiva toda a semana.
Uma vez, Laura tentou distraí-lo, mas ele lhe bateu e a Sra. Brewster bradou, irada:
— Deixe-o em paz! .
Depois do jantar, o garoto adormecia sobre os joelhos do pai e a Sra. Brewster permanecia sentada. O ar abafava com o silêncio da Sra. Brewster e o Sr. Brewster parecia uma bossa numa trave. Ouvira dizer isso antes, mas não entendera o que queria dizer. Uma bossa numa trave não faz mal a ninguém, mas não pode ser removida.
O silêncio era tão gritante que Laura mal podia estudar. Quando ia para a cama, a Sra. Brewster começava a discutir com o marido. Queria voltar para o Leste.
De qualquer modo, Laura não teria podido estudar bem, pois se aborrecia muito na escola. Apesar de todos os seus esforços, as coisas iam de mal a pior. A começar de segunda-feira, quando Tommy não soube uma palavra de sua lição. Ruby não o deixava ver o livro, disse.
— Como?! — exclamou Laura, surpresa. E a doce e pequenina Ruby converteu-se, de súbito, em uma verdadeira fúria. Laura assustou-se tanto que, antes que pudesse detê-los, Ruby e Tommy estavam atracados.
Severamente, Laura acabou com aquilo. Foi ao lugar de Tommy e deu-lhe o livro.
— Agora aprenda esta lição — disse. — Fique aí durante o recreio e diga-me a lição.
No dia seguinte, Ruby não soube a lição. Ficou de pé em frente a Laura, de mãos às costas, inocente como um gatinho, e disse:
— Não pude estudar, professora. A senhora deu o livro a Tommy.
Laura lembrou-se de contar até dez. Depois disse:
— Muito bem. Agora, você e Tommy sentem-se juntos e estudem.
Não estudavam a mesma lição do livro, mas poderiam conservá-lo aberto em dois lugares diferentes. Inclinando-se para um lado, Tommy podia estudar sua lição, enquanto Ruby, inclinada para o outro, estudava a dela. Assim Laura e Mary costumavam estudar suas lições no livro de Ma. Mas Tommy e Ruby não queriam. E lutavam, cada qual querendo abrir mais o livro de seu lado. Laura repetia com energia:
— Tommy! Ruby!
Mas nenhum dos dois aprendeu bem a lição.
Marta não soube resolver os problemas de Aritmética e Carlos deixava-se estar sentado a olhar distraidamente pela janela, onde nada havia que ver senão o céu cinzento. Quando Laura lhe disse que desse atenção à sua lição, ficou a contemplar uma página, cismando. Laura percebeu que não estava lendo. Era muito pequena e quando Marta, Carlos e Clarence se punham de pé à sua frente, para dizerem as lições, sentia que eram demasiado crescidos. Por mais que se esforçasse, não conseguia interessá-los, nem mesmo em Geografia e História.
Segunda-feira, Clarence soube parte de sua lição de História, mas quando Laura perguntou quando fora estabelecida a primeira colônia na Virgínia, respondeu desatento:
— Não estudei essa parte. A lição era muito comprida — replicou Clarence, fitando-lhe os olhos apertados e sorridentes que diziam: E agora, que vai fazer?
Laura ficou furiosa, mas quando seus olhos encontraram os dele, sentiu que ele esperava vê-la assim. Que fazer? Não poderia castigá-lo, porque era muito grande. Nem deveria mostrar a sua cólera.
Procurou manter-se calma e virou as páginas do livro, refletindo. Faltava-lhe energia, mas não deveria deixá-lo perceber. Finalmente, disse:
— É pena que não tenha estudado, porque a sua próxima lição será muito mais comprida. Não podemos atrasar Carlos e Marta.
E passou a ouvir Carlos e Marta recitarem a lição. Depois marcou outra lição, da extensão costumeira.
No dia seguinte, Clarence não soube sua lição de História.
— Não adianta tentar aprender lições tão compridas — disse ele.
— Se não quer aprender, você é quem perde — advertiu Laura. E continuou a lhe fazer perguntas, esperando que se envergonhasse de responder sempre: Não sei. Mas ele não se envergonhava.
Cada dia, sentia, mais desanimada, que estava fracassando. Não sabia ensinar. Sua primeira experiência era um desastre. Não obteria outro certificado. E não poderia ganhar mais dinheiro. Mary teria que deixar o colégio, por culpa sua. Dificilmente aprendia as próprias lições, embora as estudasse não apenas à noite, mas ao meio-dia e na hora do recreio. Quando voltasse à cidade, não alcançaria sua classe.
E tudo por causa de Clarence, que poderia fazer que Ruby e Tommy se comportassem, se quisesse. Era o irmão mais velho. Podia aprender as lições, porque era muito mais inteligente que Marta e Carlos. Ah, como desejava ser bastante grande para dar a Clarence os açoites que merecia!
A semana arrastava-se, a mais longa e triste que Laura até então conhecera.
Quinta-feira, quando Laura disse: "Terceira classe de Aritmética, levante-se!" Clarence pôs-se de pé, rápido, e Carlos principiou a erguer-se com indolência, mas Marta levantou-.se a meio grito " Ai!" e sentou-se, como se tivesse recebido um puxão.
Clarence havia atravessado o canivete na sua trança, prendendo-a à carteira. E o tinha feito tão de leve que Marta só o percebeu quando tentou erguer-se.
— Clarence! — exclamou Laura. Mas ele não parou de rir. Tommy ria e Ruby dava risadinhas. Até Carlos mostrou os dentes. Marta, sentada, corava e tinha os olhos cheios de lágrimas.
Laura desesperou. Estavam todos contra ela; não conseguia discipliná-los. Como podiam ser tão maus! Por um instante, lembrou-se da Senhorita Wilder, que não conseguira ser professora na cidade. Era assim que ela se sentia, pensou Laura.
Então, de repente, ficou furiosa. Arrancou o canivete e o fechou na mão. E não se sentiu pequena a encarar Clarence:
— Que vergonha! — disse.
E ele parou de rir. Ficaram todos quietos.
Laura voltou à sua mesa e bateu nela com a régua:
— Terceira classe de Aritmética, levante-se e venha para a frente!
Não souberam a lição, nem conseguiram resolver os problemas, mas pelo menos fingiram tentar. Laura sentia-se alta e terrível e todos obedeciam documente. Por fim disse:
— Repitam esta lição amanhã. A aula está terminada. Doía-lhe a cabeça, ao se dirigir para a detestável casa da Sra. Brewster. Não poderia estar sempre zangada e a disciplina nada valeria se os alunos não estudassem as lições. Ruby e Tommy estavam muito atrasados em Ortografia, Marta não sabia analisar uma oração composta, nem somar frações e Clarence não aprendia História. Laura procurou convencer-se de que o dia seguinte seria melhor.
A sexta-feira foi tranqüila. Todos se mostravam lerdos e desatentos. Esperavam apenas que a semana findasse. E ela também esperava. Os ponteiros do relógio nunca pareceram tão vagarosos.
à tarde, as nuvens começaram a abrir-se e o dia tornou-se mais claro. Quase às quatro horas, a luz pálida do sol derramou-se para o oriente, sobre a terra nevada. E Laura ouviu guizos de trenó que soavam fracamente.
— Podem guardar os livros — disse. A triste semana findava. Nada mais poderia acontecer agora. E acrescentou: — A aula está terminada.
A música dos guizos aproximava-se, sempre mais forte e mais distinta. Laura abotoou o casaco e prendeu o capuz, quando Príncipe e Lady passaram em frente à janela e os guizos tilintaram. Laura tomou rapidamente os livros e a merendeira. Então, o pior aconteceu.
Clarence abriu a porta, enfiou a cabeça para dentro e gritou:
— O namorado da professora chegou!
Almanzo Wilder deveria ter ouvido. Não poderia ter deixado de ouvir. Laura não sabia como encará-lo. Que diria? Como explicar-lhe que não dera a Clarence motivo nenhum para dizer aquilo?
Almanzo esperava, ao vento frio, e os cavalos não estavam cobertos. Laura tinha que sair. Pareceu-lhe que ele sorria, mas mal pôde olhá-lo. Aconchegou a manta à volta dela e disse:
— Bem agasalhada?
— Sim, obrigada — respondeu. Os cavalos partiram velozes, as fieiras de guizos a cantar alegremente. Era melhor não falar em Clarence, decidiu Laura. Como dizia Ma: "Quanto menos se fala, melhor."
Pa tocou violino, aquela noite, em casa, e Laura sentiu-se muito melhor. Duas semanas haviam passado, pensou: faltavam apenas mais seis. Era só continuar insistindo. A música parou e o pai indagou:
— Que há, Laura? Por que não nos conta tudo? Não queria preocupá-lo. Pretendia contar só as coisas alegres. Mas de repente exclamou:
— Oh, Pa, não sei o que fazer!
E lhe contou tudo sobre aquela semana tão triste na escola.
— Que farei? — perguntou. — Tenho de fazer alguma coisa. Não posso fracassar. Mas estou fracassando. Se ao menos fosse bastante grande para açoitar Clarence... É do que precisa. Mas não posso.
— Pode pedir ao Sr. Brewster — sugeriu Carrie. — Ele poderia fazer que Clarence se comportasse.
— Mas, Carrie — protestou Laura — como poderei dizer à direção da escola que não tenho jeito para ensinar?
— Aí está, Laura! — disse o pai. — Está tudo nesta palavra: jeito. Você não conseguiria muito de Clarence, mesmo que fosse bastante grande para castigá-lo como merece. A força não consegue muito. Todos nascem livres, bem sabe, como está na Declaração de Independência. Podemos levar um cavalo à água, mas não podemos forçá-lo a beber. Bem ou mal, ninguém, senão Clarence, pode mandar em Clarence. É melhor proceder com jeito.
— Bem sei, Pa — disse Laura — mas como?
— Antes de tudo, tenha paciência. Procure ver as coisas à maneira dele, até onde puder. Será melhor não querer obrigá-lo a fazer as coisas, pois não o conseguirá. Não me parece que seja realmente um mau rapaz.
— De fato, não é — concordou Laura. — Mas acho que não sei controlá-lo.
— Se eu estivesse no seu lugar — começou mansamente Ma, e Laura lembrou-se de que ela fora professora — daria liberdade a Clarence e não lhe prestaria atenção. O que ele quer é chamar atenção. Por isso, faz essas coisas. Seja amável e boa, mas concentre seu interesse nos outros e corrija-os. Clarence tomará jeito.
— É isso, Laura, ouça sua mãe — disse Pa. — Prudente como uma serpente e mansa como uma pomba, diz o provérbio.
— Charles! — exclamou Ma.
Papai tomou o violino e começou a tocar, provocando-a:
"Sabe ela fazer torta de cereja, Billy?
Sabe ela fazer torta de cereja, Billy?"
Domingo à tarde, no trenó, Laura deslizava velozmente sobre a neve ensolarada, quando Almanzo Wilder disse:
— Vejo que se alegra de passar o domingo em casa. Creio que é bem triste morar com os Brewster.
— E a primeira vez que leciono e nunca havia saído de casa antes — respondeu Laura. — Tenho saudades. Fico-lhe muito grata por me vir buscar tão longe.
— É um prazer — respondeu.
Era delicado de sua parte dizê-lo, mas Laura pensou que não seriam agradáveis essas longas e frias viagens. Pouco falaram em caminho, por causa do frio e ela sentia que, de qualquer modo, não saberia ser amável. Nunca lhe ocorriam coisas interessantes de dizer.
Os cavalos estavam tão aquecidos do trote que não deveriam ficar parados ao vento frio. Assim, à porta dos Brewster, Almanzo os freou o suficiente para que Laura saltasse rápido. E, quando partiram, tocou o gorro de peles com a mão enluvada e gritou, em meio à música dos guizos do trenó:
— Adeus, até sexta-feira!
Laura sentia-se culpada. Não contava que ele fizesse essa longa caminhada todas as semanas. Nem que pensasse que ela assim esperava. Certamente, não estaria ele pensando... ou estaria?... em ser o seu namorado.
Acostumara-se quase à horrível casa da Sra. Brewster. Tinha apenas de esquecê-la, tanto quanto pudesse, de estudar até a hora de dormir e, de manhã, fazer a cama direitinho, engolir o almoço, enxugar os pratos e ir à escola. Agora, restavam apenas seis semanas.
Segunda-feira pela manhã, a aula começou tão triste como findara na sexta-feira. Mas Laura decidira fazer uma mudança e começou logo. Quando Tommy acabou de tartamudear a lição de leitura, sorriu-lhe e disse:
— A sua leitura está melhorando, Tommy. Merece uma recompensa. Gostaria de copiar no quadro-negro a lição de ortografia?
Tommy sorriu e ela lhe deu o livro e um novo pedaço de giz. E, depois que ele copiou a lição, elogiou-lhe a escrita e disse que poderia estudar no quadro a lição de ortografia. E deu o livro a Ruby.
— Sua lição de leitura também foi muito boa — disse a Ruby.. — Amanhã gostaria de copiar no quadro-negro a lição de ortografia?
— Sim, senhora — respondeu prontamente Ruby. E Laura pensou: Bem, o jeito está dando bom resultado.
Clarence agitava-se, deixava cair os livros e puxava o cabelo de Marta, mas Laura recordou o conselho de Ma e não lhe deu atenção. A pobre Marta não soube a lição de gramática. Confundiu tanto as sentenças complexas e compostas que não se esforçou mais por entendê-las. E respondeu:
— Não sei, não sei.
— Deverá estudar de novo a lição, Marta — teve que dizer Laura. Sentiu uma inspiração e prosseguiu: — Eu mesma gostaria de estudá-la outra vez. Estou tentando acompanhar a minha classe na cidade e gramática é difícil. Se quiser, estudaremos juntas a lição durante o intervalo do meio-dia. Gostaria?
— Sim, gostaria — respondeu Marta.
Assim, ao meio-dia, depois que almoçaram, Laura tomou a sua gramática e disse:
— Está pronta, Marta?
Marta respondeu com um sorriso. Clarence perguntou:
— Por isso é que a senhora estuda o tempo todo? É para acompanhar a classe na cidade?
— Sim. Estudo à noite, mas tenho que estudar aqui também — respondeu Laura, ao passar por ele em direção ao quadro-negro. Clarence assobiou baixinho: Fiiiu... Mas Laura não deu atenção.
No quadro-negro, estudou com Marta até que esta pôde fazer sozinha um diagrama de uma sentença composta. Marta disse:
— Agora sim, estou entendendo! Já não terei tanto medo da lição de gramática.
Então era isso, pensou Laura. Marta tinha tanto medo de gramática que não conseguia aprendê-la.
— Não tenha medo das lições — disse. — Terei sempre prazer em estudar com você, se quiser.
Os olhos castanhos de Marta sorriram, quase como os de Ida, e disse:
— Bem que queria, às vezes. Agradecida.
Laura teve vontade de não ser professora. Ela e Marta eram da mesma idade e poderiam ter sido amigas.
Já decidira o que faria quanto às lições de História de Clarence, que se achava bastante mais atrasado que Carlos e Marta, mas não lhe fez perguntas que não soubesse responder e, ao marcar a lição do dia seguinte, disse:
— Isto não é para você, Clarence; sua lição seria demasiado grande. Vejamos quantas páginas está atrasado.
Ele mostrou e ela disse:
— Quantas acha que pode estudar? Três serão muito?
— Não — respondeu. Não tinha mais o que alegar, nenhuma desculpa a apresentar.
— Então a aula está terminada.
Gostaria de saber o que faria Clarence. Até aqui o conselho de Pa e Ma estava dando certo. Mas daria com Clarence?
No dia seguinte, não lhe fez muitas perguntas, mas ele parecia saber as três páginas perfeitamente. Carlos e Marta achavam-se agora nove páginas à sua frente. Laura marcou-lhe mais sete páginas e disse a Clarence:
— Mais três páginas seriam demais? Poderá estudá-las, se quiser.
— Vou estudar — afirmou Clarence e desta vez olhou Laura com um sorriso amistoso.
Ficou tão surpresa que quase sorriu também. Mas logo atalhou:
— Pode estudar menos páginas, se acha muito.
— Vou estudar — repetiu Clarence.
— Muito bem. A aula está terminada.
Acostumava-se à rotina dos dias. Uma refeição silenciosa na fria manhã; uma caminhada tiritante até a escola; depois, a costumeira série de recitações, os recreios e o intervalo do meio-dia, dividindo-a em quatro partes iguais. E o frio caminho de volta à casa dos Brewster para o triste jantar, o estudo à noite e o sono no sofá estreito. A Sra. Brewster continuava mal-humorada e calada. E agora só raramente censurava o marido.
A semana passou e veio outra vez sexta-feira. Quando a classe de História avançou para recitar, Clarence disse:
— Posso recitar até onde Marta e Carlos estão. Consegui alcançá-los.
Laura admirou-se:
— Como o conseguiu, Clarence?
— Se a senhora pode estudar de noite, eu também posso — respondeu Clarence.
Laura quase sorriu, outra vez. Gostaria muito dele, se não fosse professora. Seus olhos escuros tinham um brilho semelhante ao dos olhos azuis de Pa. Era, porém, a professora...
— Muito bem — disse. — Agora os três podem prosseguir juntos.
Com as quatro horas, veio a música dos guizos do trenó e Clarence segredou alto:
— O namorado da professora!
As faces de Laura arderam, mas disse com tranqüilidade:
— Podem guardar seus livros. A aula está terminada. Temia que Clarence gritasse como da vez passada; ele porém não o fez. Já estava longe, a caminho de casa, com Tommy e Ruby, quando Laura fechou a porta da escola atrás de si e Almanzo a aconchegou no trenó.
A terceira semana passou, depois a quarta. Agora, faltavam apenas quatro semanas mais. Embora, cada manhã, Laura se preocupasse com o dia de aula que a esperava, este não era tão mau, contudo, como a casa dos Brewsters. E toda tarde, às quatro horas, suspirava aliviada. Mais um dia transcorrera bem.
Ainda não havia nevasca, mas fevereiro foi muito frio. O vento cortava como uma faca. Às sextas-feiras e domingos, Almanzo fazia o longo e frio caminho, levando-a a sua casa e trazendo-a. Laura não sabia como enfrentar a semana sem pensar no sábado em casa. Mas inquietava-se por Almanzo, que fazia as longas viagens a troco de nada.
Por mais que desejasse estar em casa ao fim da semana, não lhe agradava dever essa obrigação a ninguém. Ela o acompanhava apenas porque queria estar em casa, mas Almanzo ignorava. Talvez esperasse sua companhia em passeios, depois que estivesse definitivamente em casa. Não queria sentir-se obrigada a aceitar seus convites, nem ser indelicada ou enganá-lo. Julgava dever-lhe uma explicação e não sabia como fazer.
Em casa, Ma preocupava-se, achando-a mais magra.
— Tem certeza de que come o suficiente, em casa dos Brewsters? — perguntava. E Laura respondia:
— Oh, sim, muito, mas não tem o mesmo sabor que a comida de casa.
E Pa:
— Você sabe, Laura, que não é obrigada a terminar seu período. Se qualquer coisa a desagradar mais, pode logo voltar.
— Ora, Pa, não posso abandonar o lugar. Não obteria outro certificado. E depois, são só três semanas mais.
— Creio que está estudando demais — disse Ma. — Parece que não dorme o suficiente.
— Deito-me todas as noites às oito horas — assegurou Laura.
— Bem, como diz, são só mais três semanas. Ninguém suspeitava quanto temia voltar à casa da Sra. Brewster. Nem conviria dizer-lhes. Estar em casa aos sábados levantava-lhe o moral e lhe dava coragem para mais outra semana. Ainda assim, não lhe parecia correto devê-lo a Almanzo Wilder.
Naquela tarde de domingo, ele a conduzia à casa dos Brewsters. Pouco falavam durante aquelas longas viagens; fazia muito frio para conversarem. O tilintar dos guizos soava gelado no frio ofuscante e o trenó corria tanto que o vento do norte, que os seguia, não soprava tão forte às suas costas. Ele, porém, teria de enfrentar o vento no regresso à cidade.
A casa dos Brewsters não estava a grande distância quando Laura pensou: Nada de indecisões! E falou:
— Aceito os seus convites somente porque gosto de estar em casa. Quando voltar para ficar, não os aceitarei mais. Assim, já fica sabendo e, se quiser, pode evitar estas longas viagens ao frio.
As palavras lhe soaram horríveis, ao proferi-las. Eram bruscas, rudes e detestáveis. Ao mesmo tempo, percebeu aterrada o que isso significaria se Almanzo não viesse mais buscá-la. Teria que passar os sábados e domingos com a Sra. Brewster.
Após um momento de sobressalto, Almanzo respondeu devagar:
— Compreendo.
Não houve tempo para dizer mais. Estavam à porta da Sra. Brewster e os cavalos não podiam esperar porque gelariam. Rápida, Laura saltou e disse:
— Obrigada.
Almanzo tocou o gorro com a mão e o trenó partiu veloz.
São apenas mais três semanas, disse Laura consigo, mas não pôde evitar o desânimo.
Durante toda a semana, o tempo foi-se fazendo mais frio. Quinta-feira, ao despertar, viu que a manta estava congelada em torno de seu nariz. Tinha os dedos tão entorpecidos que a custo se vestiu. No outro compartimento, as tampas do fogão mostravam-se rubras de calor, mas este não penetrava o frio em volta.
Laura estendeu as mãos sobre o fogão para aquecê-las. De súbito, o Sr. Brewster entrou, arrancou as botas e começou a esfregar os pés com força. A Sra. Brewster correu para o marido:
— Oh, Lewis, que foi? — perguntou tão ansiosa que Laura se surpreendeu.
— Meus pés — respondeu o Sr. Brewster. — Vim correndo da escola, mas estão insensíveis.
— Deixe-me ajudar — disse a mulher. Tomou-lhe os pés no regaço e ajudou a esfregá-los. Estava tão preocupada e amável que parecia outra.
— Oh, Lewis que lugar terrível! — disse. — Estou magoando?
— Continue — resmungou o Sr. Brewster.—Parece que o sangue está voltando.
Depois que salvaram os seus pés meio congelados, o Sr. Brewster disse a Laura que não fosse à aula naquele dia. Ficaria gelada, explicou.
Ela protestou:
— Mas as crianças vão e eu devo estar lá.
— Não creio que vão — disse ele. — Fiz um bom fogo e, se forem, poderão aquecer-se e voltar para suas casas. Hoje não haverá aula — disse, categórico.
Estava decidida a questão, pois a professora deve obedecer ao chefe da junta diretora da escola.
Foi um dia longo e triste. A Sra. Brewster, embrulhada em sua manta, ao pé do fogão, cismava sombriamente. Os pés do Sr. Brewster doíam e Johnny agitava-se, resfriado e febril. Laura lavou a louça, fez sua cama, no frio enregelante, e estudou em seus livros. Quando tentou conversar, sentiu algo ameaçador no silêncio da Sra. Brewster.
Afinal, chegou a hora de dormir. Laura desejava desesperadamente poder ir à escola na manhã seguinte. Até lá, poderia refugiar-se no sono. O frio do quarto tirava-lhe o fôlego e lhe endurecia as mãos, e com dificuldade se despiu. Por muito tempo ficou deitada, sentindo demasiado frio para poder dormir mas, aos poucos, começou a aquecer.
Um grito lancinante despertou-a. A Sra. Brewster gritou:
— Você me deu um pontapé!
— Eu não! — respondeu o Sr. Brewster. — Mas darei, se não largar essa faca.
Laura sentou-se direita. O luar entrava pela janela e banhava sua cama. A Sra. Brewster gritou outra vez. Era um uivo selvagem e sem palavras que arrepiou o cabelo de Laura.
— Guarde a faca na cozinha — disse o Sr. Brewster.
Laura espreitou pela fenda entre as cortinas. O luar coava-se pelo tecido, fazendo menos densas as trevas, e Laura viu a Sra. Brewster de pé. Sua longa camisola de dormir de flanela branca arrastava-se pelo chão e o cabelo negro caía-lhe solto pelos ombros. Na mão erguida empunhava a faca. Laura nunca se assustara tão terrivelmente.
— Se não puder ir para casa de um jeito, irei de outro — disse a Sra. Brewster.
— Guarde essa faca — disse o marido, que continuava deitado, imóvel, mas pronto para saltar.
— Quer ou não? — perguntou ela.
— Vai morrer de frio — disse o marido. — Não vamos recomeçar, a esta hora da noite. Preciso sustentar você e Johnny e nada tenho no mundo que não este sítio. Guarde a faca e venha deitar-se, antes que fique gelada.
A faca parou de tremer e o punho da mulher fechou-se sobre seu cabo.
— Vá guardá-la na cozinha! — ordenou o Sr. Brewster.
Após um instante, a Sra. Brewster voltou-se e dirigiu-se à cozinha. Somente depois que veio e deitou-se, Laura soltou as cortinas. Puxou as cobertas devagar sobre si e ficou deitada a olhar as cortinas. Estava tremendamente assustada. Não ousava dormir. Se acordasse e visse a Sra. Brewster, de pé, a seu lado, com aquela faca? A Sra. Brewster não a estimava.
Que fazer? A casa mais próxima distava quase dois quilômetros. Gelaria, se tentasse alcançá-la. Inteiramente desperta, olhava as cortinas e escutava. Não ouvia outro ruído que não o do vento. A lua desapareceu e Laura ficou a olhar as trevas, até surgir a luz cinzenta do dia de inverno. Depois que ouviu o Sr. Brewster fazer fogo e a mulher principiar a trabalhar no fogão, levantou-se e vestiu-se.
Não houve qualquer mudança. A refeição foi silenciosa como de costume. Laura saiu para a escola logo que pôde. Sentiu-se salva ali, aquele dia. Era sexta-feira.
O vento soprava com fúria. Felizmente, não era vento de nevasca, mas arrancava porções de neve dura das goteiras geladas e as arremessava pelas frestas das paredes das faces norte e oeste da casinha. O frio entrava de todos os lados. A grande estufa de carvão parecia não aquecer.
Laura deu início aos trabalhos escolares. E, embora se achasse próxima da estufa, tinha os pés entorpecidos e os dedos não podiam segurar o lápis. Sabia que nas carteiras o frio era mais intenso.
— É melhor que vistam de novo os casacos — disse — e venham todos para junto do fogo. Podem revezar-se no banco da frente e de pé junto à estufa, para se aquecerem. Estudem como lhes pareça melhor.
A neve voou todo o dia através da campina e entrou pelas paredes da sala. Espessa camada de gelo formou-se no balde de água. Ao meio-dia, puseram as merendeiras sobre a estufa para derreter os alimentos congelados antes que pudessem comê-los. O vento soprava cada vez mais frio.
Laura alegrou-se de ver como os alunos se portavam bem. Nenhum se valeu da desordem para vadiar ou desobedecer. Nenhum deles cochichou. Ficaram de pé, junto ao fogão, estudando e virando-se para aquecer as costas e as recitações foram boas. Carlos e Clarence revezavam-se para ir buscar carvão lá fora ao vento e alimentar a estufa.
Laura temia o fim do dia. Receava ter de voltar àquela casa. Tinha sono. Sabia que iria dormir e tinha medo de adormecer em casa da Sra. Brewster. O dia seguinte e domingo, deveria passá-los, inteiros, naquela casa, com a Sra. Brewster, e uma boa parte do tempo o Sr. Brewster estaria no estábulo.
Sabia que não deveria ter medo. Pa dizia sempre que nunca deveria ter medo. Certamente nada aconteceria. Não tinha bem medo da Sra. Brewster, pois sabia que era ágil e forte como um cavalinho francês. Isto é, quando estava acordada. Mas nunca desejara tanto ir para casa.
Tinha sido bom dizer a verdade a Almanzo; todavia, gostaria de não o ter feito tão cedo. De qualquer modo, ele não necessitaria vir tão longe, em um dia tão terrivelmente frio. A cada instante o vento soprava mais forte e mais gelado.
Às três e meia, sentiam tanto frio que ela pensou encerrar a aula mais cedo. Inquietavam-na os quase dois quilômetros que Marta e Carlos teriam de caminhar. De outro lado, não queria reduzir a oportunidade que os alunos tinham de aprender. E não era uma nevasca.
De repente, ouviu os guizos do trenó. Estavam chegando! Logo estavam à porta. Príncipe e Lady passaram em frente à janela e Clarence exclamou:
— Esse Wilder é mais louco do que eu pensava, para vir com este tempo!
— Podem guardar seus livros — disse Laura. Fazia muito frio para que os cavalos ficassem parados lá fora. — Está esfriando sempre e quanto mais cedo chegarem a suas casas, melhor — disse. — A aula está terminada.
Uma viagem fria
— Cuidado com a lanterna — foi tudo que Almanzo disse, ajudando-a a entrar no trenó. Várias mantas de cavalo estavam estendidas e, nas suas extremidades, sob as cobertas de pele de búfalo, uma lanterna ardia, aquecendo o lugar onde Laura deveria pôr os pés.
Quando entrou em casa, o Sr. Brewster disse:
— Não me diga que está pensando em ir com este frio!
— Sim — respondeu.
Não perdeu tempo. No quarto, abotoou a outra saia de flanela e calçou sobre os sapatos um par de meias de lã. Dobrou o véu grosso de lã negra e o passou duas vezes sobre o rosto e o capuz, enrolando as compridas pontas em volta do pescoço. Por cima, pôs o abafo, cruzando as extremidades sobre o peito, e abotoou o casaco por cima de tudo. E saiu correndo para o trenó.
O Sr. Brewster estava lá, protestando:
— Estão cometendo uma tolice — falou. — Não é seguro. Estou dizendo que ele deve dormir aqui — explicou a Laura.
— Acha que é melhor não arriscar? — Almanzo indagou de Laura.
— Vai voltar? — perguntou ela.
— Sim, tenho de cuidar do gado — respondeu.
— Então, também irei.
Príncipe e Lady partiram, rápidos. O vento entrava pelas pregas da lã e tirava o fôlego de Laura, que curvava a cabeça, mas sentia-o correr, como água gelada, pelas faces e pelo peito. Apertou os dentes, para que não batessem.
Os cavalos mostravam-se ansiosos por correr. Trotando, suas patas batiam tambor sobre a neve dura e os guizos soavam alegremente. Laura era grata à velocidade, que lhe daria em breve abrigo do frio. E lamentou quando começaram a trotar mais devagar. Passaram a caminhar e ela imaginou que Almanzo diminuíra a marcha para lhes dar descanso. Provavelmente, os cavalos não deveriam ser muito forçados, com um tempo tão frio.
Surpreendeu-se quando ele os fez parar e desceu do trenó. Confusamente, através do véu negro, viu-o aproximar-se de suas cabeças pendentes e ouviu-o dizer:
— Um instante, Lady — enquanto pousava as mãos, enfiadas em mitenes, no focinho de Príncipe. Um momento após, retirou as mãos, como quem raspa, e Príncipe lançou a cabeça para o alto, fazendo soar os guizos. Rápido, Almanzo fez o mesmo ao focinho de Lady, que também lançou a cabeça para cima. Almanzo agasalhou-se no trenó e partiram.
O véu de Laura era uma placa de geada sobre sua boca e tornava desagradável falar, de modo que nada disse, mas admirava-se. O gorro de pele, de Almanzo, descia-lhe até as sobrancelhas e o abafo cobria-lhe o rosto até os olhos. A respiração condensava-se branca sobre o pêlo e a borda do abafo. Guiava com uma das mãos, conservando a outra sob as cobertas e com freqüência as trocava para que não gelassem.
Os cavalos começaram de novo a trotar devagar e de novo Almanzo saltou e foi colocar as mãos sobre seus focinhos. Quando voltou, Laura perguntou:
— Que é?
— A respiração gela nos focinhos e lhes tira o fôlego. É preciso derretê-la — explicou.
Não falaram mais. Laura lembrou-se do gado arrastado pela nevasca de outubro, quando começou o Longo Inverno; a respiração os sufocava e teriam morrido se Pa não tivesse quebrado o gelo de seus focinhos.
O frio atravessava as mantas de pele de búfalo, insinuava-se pelo casaco, pelo vestido de lã, pelas saias de flanela e pelos dois pares de meias de lã. Apesar do calor da lanterna, Laura sentia que seus pés e pernas esfriavam. O queixo contraído fazia-a sofrer e uma dorzinha aguda começou a fazer-se sentir nas têmporas.
Almanzo curvou-se e puxou as cobertas para cima, apertando-as por baixo dos cotovelos de Laura.
— Sente frio? — perguntou.
— Não — respondeu Laura com força. Era tudo que podia dizer sem bater os dentes. Não era verdade, mas ele sabia que ela queria dizer que não estava tão frio que não pudesse suportar. Nada havia a fazer senão avançar e sabia que ele também sentia frio.
Ainda uma vez, parou os cavalos e saltou, ao vento, para derreter o gelo de seus focinhos. Ainda uma vez, os guizos tilintaram alegres. O som parecia tão cruel agora como o vento impiedoso. Embora o véu escurecesse, ela podia ver que o sol brilhava sobre a campina branca.
Almanzo voltou ao trenó.
— Tudo bem? — perguntou.
— Sim — respondeu.
— Tenho de parar a cada três quilômetros. Não podem andar mais — explicou.
Laura sentiu um aperto no coração. Então haviam percorrido só nove quilômetros. Ainda teriam de vencer outros sete. Avançavam contra um vento cortante e seguiam velozmente. A despeito de tudo que pudesse fazer, Laura tremia toda. E, embora apertasse os pés um contra o outro, não conseguia impedir que tremessem. A lanterna, sob os agasalhos de pele, parecia não aquecer. A dor penetrava-lhe as têmporas e sentia que a dor lhe dava como que um nó no meio do corpo.
Um intervalo aparentemente mais longo decorreu antes que os cavalos outra vez diminuíssem a marcha e outra vez Almanzo os fizesse parar. Os guizos soaram, primeiro os de Príncipe e depois os de Lady. Almanzo, movendo-se com dificuldade, voltou ao trenó.
— Está bem? — perguntou.
— Sim — respondeu ela.
Ia-se acostumando ao frio. Já não incomodava tanto. Só a dor no meio do corpo persistia, embora menos intensa. Os sons do vento, dos guizos e dos patins do trenó fundiam-se em um só, monótono e agradável. Percebeu quando Almanzo, outra vez, saltou do trenó para derreter o gelo dos focinhos dos cavalos, mas era como um sonho.
— Tudo bem? — perguntou ele. Ela disse que sim com a cabeça. Falar exigia muito esforço.
— Laura! — exclamou Almanzo, tomando-lhe o ombro e sacudindo-a um pouco. A sacudidela doeu; fez que sentisse frio de novo. — Está com sono?
— Um pouco — respondeu.
— Não durma. Está ouvindo?
— Não dormirei — replicou. Sabia o que ele queria dizer. Se dormisse, num frio daqueles, morreria gelada.
Os cavalos pararam de novo. Almanzo indagou:
— Está suportando bem?
— Sim — respondeu. Ele foi tirar o gelo do focinho dos cavalos. Quando voltou, disse:
— Não estamos longe agora.
Sabia que ele queria ouvi-la responder, e disse:
— Está bem.
A sonolência continuava a invadi-la em ondas prolongadas e tépidas, embora mantivesse os olhos abertos. Sacudiu a cabeça e engoliu porções de ar que queimavam, lutando por manter-se desperta, mas outra onda de sono vinha e ainda outra. Às vezes, quando se sentia demasiado cansada para lutar mais, a voz de Almanzo ajudava. Ouviu-o perguntar:
— Tudo bem?
— Sim — dizia e por um instante acordava; ouvia claramente os guizos e sentia o vento soprar. Então, outra onda vinha.
— Chegamos! — ouviu dizer.
— Sim — respondeu. E de repente percebeu que estava à porta traseira de sua casa. O vento não era tão forte ali; sua força era quebrada pela construção do lado oposto da Rua Segunda. Almanzo levantou as cobertas e ela tentou saltar do trenó, mas estava muito entorpecida; não podia ficar de pé.
A porta abriu-se num relâmpago e Ma segurou-a, exclamando:
— Meu Deus, está gelada?
— Receio que esteja bem gelada — disse Almanzo.
— Leve os cavalos para o abrigo, antes que gelem — disse Pa. — Cuidaremos dela.
Os guizos do trenó precipitaram-se, afastando-se. Pa e Ma seguraram-na pelos braços e Laura cambaleou para dentro da cozinha.
— Tire-lhe os sapatos, Carrie — disse Ma, desenrolando o véu de Laura e o capuz de lã tricotada. A geada de sua respiração colara o véu ao capuz e saíram juntos.
— Seu rosto está corado — disse Ma, aliviada. — Graças a Deus, não está branco e gelado.
— Estou só um pouco entorpecida — disse Laura. Os pés também não estavam gelados, embora mal sentisse as mãos do pai esfregá-los. Então, na sala aquecida, começou a tiritar da cabeça aos pés e os dentes lhe batiam. Sentou-se ao lado do fogão e tomou o chá quente que Ma preparara, mas não conseguia esquentar.
Estivera exposta ao frio muito tempo, desde que saíra da cama de manhã. Na fria cozinha dos Brewsters, seu lugar à mesa era o mais afastado do fogão e próximo da janela. Depois, foi a longa caminhada na neve até a escola, com o vento a soprar-lhe na face e a agitar-lhe as saias; o dia longo e frio na escola e, depois, a longa viagem para casa. Mas não tinha de que se queixar, porque agora estava em casa.
— Arriscou muito, Laura — disse o pai, sério. — Quando soube que Wilder ia buscá-la, ele já havia partido. E fiquei certo de que pernoitaria em casa de Brewster. Fazia quarenta graus abaixo de zero quando esse maluco partiu e o termômetro congelou depois. E tem continuado a esfriar. Não se sabe o frio que faz agora.
— Tudo é bom quando acaba bem, Pa — respondeu Laura com um sorriso trêmulo.
Parecia-lhe que jamais se aqueceria. Mas era maravilhoso tomar a ceia naquela cozinha feliz e depois dormir sossegada em sua própria cama.
Quando acordou, o tempo melhorara. Ã refeição, o pai disse que o frio era agora de cerca de vinte graus abaixo de zero. A onda fria passara.
Na igreja, naquele domingo, Laura pensou em como tinha sido tola por se sentir tão infeliz e assustada. Faltavam só duas semanas e voltaria para casa para ficar.
Quando Almanzo a levou para a casa dos Brewsters, de tarde, agradeceu-lhe por tê-la ido buscar naquela semana.
— Não tem de que agradecer — respondeu. — Você sabia que eu viria buscá-la.
— Oh, não, não sabia — respondeu Laura sinceramente.
— Por quem me toma? — perguntou ele. — Acha que seria capaz de deixá-la com os Brewsters quando sente tantas saudades de casa, só porque não há nada para mim?
— Oh, eu... — Laura parou. A verdade era que nunca pensara muito sobre que espécie de pessoa ele era. Era muito mais velho; era um fazendeiro.
— Para lhe dizer a verdade — disse ele — eu estava indeciso quanto a arriscar aquela viagem. Toda a semana pensei que iria buscá-la, mas quando olhei o termômetro, quase desisti.
— Por que não desistiu? — quis saber Laura.
— Bem, saí no trenó e parei em frente da casa de Fuller, para observar o termômetro. O mercúrio estava todo na ampola, abaixo de quarenta graus, e o vento soprava cada vez mais frio. Foi quando Cap Garland passou. Viu-me ali, pronto para ir buscá-la em casa de Brewster e a olhar o termômetro. Também olhou. Sabe como ele mostra os dentes? Bem, ao entrar na loja, disse-me por cima do ombro:
— Deus detesta os covardes.
— Então veio para não fugir ao desafio?
— Não, não foi um desafio — disse Almanzo. — Apenas achei que ele estava com a razão.
Tenho que suportar só um dia de cada vez, pensou Laura ao entrar na casa. Tudo permanecia ainda na mesa. A Sra. Brewster não falava; Johnny sempre irritado; e o Sr. Brewster conservava-se à mesa tanto tempo quanto podia. Naquela noite, quando estudava, Laura fez quatro marcas em seu caderno de notas, para segunda, terça, quarta e quinta-feira. Riscaria uma marca cada noite. Quando não houvesse mais marcas, restaria apenas mais uma semana.
Dia após dia, o tempo esfriava novamente; mas ainda não havia nevasca. As noites passavam calmas, embora Laura só dormitasse e despertasse com freqüência. Cada noite, riscava uma marca. Parecia que o tempo passava mais depressa quando esperava para riscar mais um dia.
Toda a quarta-feira, ouviu o vento uivar e a neve bater na janela. Temia não poder dar aula no dia seguinte. Mas de manhã o sol brilhava, embora sem calor. O vento áspero rolava a neve pela campina. Laura de boa vontade o enfrentou, abrindo caminho de novo para a escola.
A neve entrava pelas fendas. E ainda daquela vez permitiu que os alunos estudassem de pé junto ao fogão que pouco a pouco, aquecido ao rubro, encheu de calor a sala. E Laura já não via mais o seu hálito quando, no intervalo, respirava por cima do banco de Clarence, ao fundo. Ao reiniciar a aula, disse:
— A sala está mais quente agora. Podem ir para seus lugares.
Mal se haviam sentado, bateram com força à porta. Quem seria?, pensou. A caminho da porta, olhou pela janela, mas nada via. À porta, estava o Sr. Williams, superintendente das escolas da região. Amarrara a sua parelha, coberta, a um lado do prédio da escola. A neve branda abafara o ruído de sua chegada. E não havia guizos.
Era a prova de Laura como professora. E ficou muito contente por estarem os alunos em seus lugares. O Sr. Williams sorriu afavelmente, quando ela lhe cedeu sua cadeira junto à estufa ardente. Os alunos inclinaram-se aplicadamente sobre as lições, mas Laura podia sentir que permaneciam atentos e retesados. Estava tão nervosa que lhe era difícil manter a voz baixa e firme.
Encorajou-se por ver que todos se esforçavam o máximo por sua causa. Até Carlos fez um esforço e se sobrepujou. O Sr. Williams escutava lição após lição e o vento soprava, ora grave, ora agudo, enquanto a neve escorria pelas frestas das paredes.
Carlos ergueu a mão e perguntou:
— Posso aquecer-me ao pé do fogo? — Laura disse que sim e, sem pensar em pedir permissão, Marta seguiu-o. Estudavam no mesmo livro. Depois de aquecerem as mãos, voltaram quietos para seus lugares, mas sem pedir licença. Isso não era favorável à disciplina de Laura.
Pouco antes do meio-dia, o Sr. Williams disse que precisava partir. Então Laura perguntou se queria falar à classe.
— Sim, vou falar — respondeu sério, erguendo-se em toda a altura de seus quase dois metros. O coração de Laura parou. Desesperadamente, procurou descobrir o que havia feito de errado. Com a cabeça quase tocando o teto, ele se conservou calado por um instante, para dar ênfase ao que pretendia dizer. E então falou: — Façam o que fizerem, tratem de conservar os pés quentes.
Sorriu para todos e para Laura e, depois de lhe ter apertado efusivamente a mão, saiu.
Ao meio-dia, Clarence despejou a cesta de carvão na estufa e saiu para enchê-la de novo no depósito. Quando voltou, disse:
— Vamos precisar de mais carvão no fogo antes que anoiteça. Está esfriando depressa.
Reuniram-se todos ao pé da estufa e comeram as merendas frias. Quando Laura reiniciou a aula, disse-lhes que viessem com seus livros para perto do fogo.
— Podem ficar de pé junto do fogão ou andar em volta, como quiserem, contanto que se conservem quietos e aprendam as lições. Esta será regra, enquanto durar este tempo frio.
O plano deu bom resultado. As lições foram melhores e a sala conservou-se sossegada enquanto estudavam e aqueciam os pés.
Naquele sábado, em casa, Ma inquietou-se por causa de Laura.
— Está sentindo alguma coisa? — indagou. — Não é hábito seu deixar-se estar sentada, cochilando.
— Estou um pouco cansada. Mas não é nada, Ma — disse Laura.
Pa ergueu os olhos do jornal.
— Isso é coisa do Clarence, outra vez?
— Oh, não, Pa!
Ele se portara esplendidamente. E todos tinham sido muito bons. Não estava propriamente mentindo, mas não poderia falar da Sra. Brewster e da sua faca. Se soubessem, não a deixariam voltar e precisava concluir seu período escolar. Uma professora não poderia ir-se e deixar o período por terminar. Se deixasse, não obteria outro certificado e nenhuma direção de escola a contrataria.
De modo que fez um grande esforço para lhes ocultar a sua sonolência e o seu terror de voltar à casa da Sra. Brewster. Restava apenas uma semana.
Domingo de tarde, o tempo melhorou. A temperatura era só de quinze graus abaixo de zero, quando Laura e Almanzo partiram. Quase não ventava e o sol brilhava intensamente.
Depois de uma pausa, Laura disse:
— Só mais uma semana. E como ficarei contente quando tiver terminado!
— Talvez sinta falta das viagens de trenó — insinuou Almanzo.
— Esta está sendo agradável — disse Laura. — Mas em geral faz muito frio. Acho que ficará satisfeito por não ter mais de ir tão longe. Não sei por que tem feito estas viagens tão longas. Não precisava fazê-las para chegar a sua casa, como eu preciso.
— Às vezes, fico cansado de estar sempre em casa — replicou Almanzo. — Dois solteirões aborrecem-se muito juntos.
— Ora! Há muita gente na cidade. Nem você, nem seu irmão precisam estar sempre em casa — disse Laura.
— Não tem havido nada na cidade, desde a exposição escolar — objetou Almanzo. — O que se pode fazer é andar pelas salas de bilhar, ou ficar em uma loja, vendo os jogadores de damas. Às vezes, prefiro sair guiando em melhor companhia, mesmo que faça frio.
Laura nunca se julgara boa companhia. Se era o que ele queria, pensou, faria um esforço para ser mais agradável. Mas não conseguiu pensar em nada interessante para dizer. Tentou descobrir alguma coisa, enquanto via trotar velozmente os cavalos castanhos e lustrosos.
Suas patas batiam com elegância a neve, em ritmo perfeito, e as suas sombras azuis voavam sobre a neve ao lado. Eram garbosos, sacudindo as cabeças e fazendo soar os guizos, esticando as orelhas para a frente e para trás, erguendo os focinhos à brisa provocada por sua marcha e que fazia ondular as crinas negras. Laura respirou fundo e exclamou:
— Como são lindos!
— Que acha lindos? — perguntou Almanzo.
— Os cavalos. Veja! — respondeu Laura. Naquele instante, Príncipe e Lady tocavam os focinhos como se segredassem entre si e depois, juntos, tentaram arrancar numa carreira.
Depois que Almanzo, devagar mas com firmeza, fê-los trotar novamente, perguntou:
— Gostaria de guiá-los?
— Oh! — exclamou Laura, mas teve de acrescentar com franqueza: — Pa não me deixa guiar seus cavalos. Diz que sou muito pequena e me feriria.
— Príncipe e Lady não fazem mal a ninguém — disse Almanzo. — Eu mesmo os criei. Se os acha lindos, gostaria que tivesse visto o primeiro cavalo que criei: Estrela. Dei-lhe esse nome por causa da mancha branca, ou estrela, que tinha na testa.
Seu pai lhe dera Estrela ainda pequeno, lá no Estado de Nova York, quando era um menino de nove anos. E contou como amansara Estrela e o domara e como era belo. Estrela fora trazido para o Oeste, para Minnesota, e quando Almanzo veio pela primeira vez para as campinas do Oeste, viera montando Estrela. Tinha nove anos quando Almanzo o cavalgou de volta a Marshall, Minnesota, cento e cinco milhas em um dia, e Estrela chegou tão descansado que tentou vencer na corrida um outro cavalo, quase ao fim da viagem.
— Onde está ele agora? — indagou Laura.
— Em uma pastagem, na fazenda de meu pai, lá em Minnesota — contou-lhe Almanzo. —Já não é tão novo. E eu precisava de uma parelha aqui, de modo que o devolvi a meu pai.
O tempo passava tão depressa que Laura se surpreendeu de ver-se à frente da casa dos Brewsters. Esforçou-se por conservar a coragem, mas o coração lhe faltou.
— Por que ficou tão calada de repente? — perguntou Almanzo.
— Gostaria que estivéssemos indo em sentido oposto
— disse Laura.
— Assim será, sexta-feira que vem. — Diminuiu a marcha dos cavalos. — Podemos demorar mais um pouco
— disse, e Laura sentiu que, de algum modo, ele percebia o seu medo de entrar naquela casa.
— Até sexta-feira então — sorriu, encorajando-a, e partiu.
Dia a dia, noite a noite, a semana foi passando, até restar apenas uma noite a suportar. O dia seguinte seria sexta-feira, o último dia de aula. Quando aquela noite e aquele dia tivessem passado, voltaria para casa para ficar.
E como temia que acontecesse alguma coisa, naquela última noite! Acordou muitas vezes, sobressaltada, mas tudo estava quieto e seu coração, aos poucos, deixava de pular.
As lições de sexta-feira foram muito bem sabidas e todos os alunos se portaram cuidadosamente bem.
Quando terminou o intervalo do meio-dia, Laura reiniciou a aula e disse que seria a última. Os alunos sairiam cedo porque era o último dia de escola.
Sentiu que deveria dizer algumas palavras de encerramento e louvou-os todos pelo esforço que haviam realizado.
— Aproveitaram bem a oportunidade que tiveram de vir à escola — disse-lhes. — Espero que possam continuar seus estudos, mas se não puderem, estudem em casa, como fez Lincoln. A educação é uma coisa pela qual vale a pena lutar e, se não obtiverem muita ajuda, devem procurar alcançá-la por si mesmos.
Deu a Ruby um de seus cartões de visita cor-de-rosa pálido, com um ramo de rosas e centáureas em curva sobre o seu nome impresso. Nas costas, escreveu: “A Ruby Brewster, de sua professora, com estima. Escola Brewster, fevereiro de 1883.”
O segundo foi Tommy e depois Marta, Carlos e Clarence. Ficaram todos muito contentes. Laura deixou-os admirar por um instante os lindos cartões e guardá-los com cuidado em seus livros. Disse-lhes então que arrumassem os livros, lousas e lápis para levá-los para casa. As aulas haviam terminado.
Mas nunca se sentiu tão surpresa porque, em vez de vestirem os agasalhos, dirigiram-se todos à sua mesa. Marta deu-lhe uma maçã vermelha. Ruby, envergonhada, apresentou-lhe um pequeno bolo que sua mãe preparara para seu presente. E Tommy, Carlos e Clarence lhe deram, cada um, um lápis que haviam cuidadosamente aparado.
Mal sabia como lhes agradecer, mas Marta disse:
— É nós... quero dizer, somos nós que lhe agradecemos, Senhorita Ingalls. Obrigada por me ter ajudado a estudar gramática.
— Obrigada, Senhorita Ingalls — disse Ruby. — Seria bom que o bolo tivesse açúcar por cima.
Os rapazes nada disseram, mas depois que todos se haviam despedido e saído, Clarence voltou.
De pé, junto à mesa de Laura, encostando-se a ela, baixou os olhos para o gorro que tinha entre as mãos e murmurou:
— Peço desculpas de ter sido tão mau.
— Oh, Clarence! Foi tudo muito bem! — exclamou Laura. — E você se saiu bem em suas lições. Estou contente com você.
Ele a encarou com o seu velho ar provocante, saiu correndo da sala e bateu a porta, abalando a casa.
Laura limpou o quadro-negro e varreu o chão. Empilhou seus livros e papéis e fechou os respiradouros da estufa. Depois, colocou o capuz, vestiu o casaco e ficou à janela esperando até que surgiram os guizos do trenó a tilintar e Príncipe e Lady pararam à porta.
Acabara a escola. É agora estaria sempre em casa! Sentiu o coração tão leve que teve vontade de cantar, acompanhando o soar dos guizos. E, por mais velozes que trotassem, os cavalos lhe pareciam vagarosos.
— Não adianta empurrar, porque não chegará mais depressa — disse Almanzo, e ela riu alto ao verificar que estava empurrando os pés contra a travessa do trenó. Entretanto, não falaram muito. Era bastante estar de volta.
Só depois que lhe agradeceu delicadamente e lhe disse boa noite e começou a tirar os agasalhos, na sala, foi que Laura se lembrou de que ele não dissera: Até domingo à tarde, como dizia sempre. Dissera: Adeus.
É claro, pensou. Era mesmo adeus. Tinha sido a última viagem de trenó.
Som de guizos
O despertar na manhã seguinte foi mais feliz que no Natal. Oh, estou em casa!, pensou Laura. E disse:
— Bom dia, Carrie! Acorde, dorminhoca!
Quase riu de contente ao se enfiar, tiritante, no vestido e saltar escada abaixo para abotoar os sapatos e pentear-se na cozinha quente onde Ma preparava a refeição.
— Bom dia, Ma — disse.
— Bom dia — sorriu Ma. — Você já tem melhor aspecto.
— É bom estar em casa — disse Laura. — Agora, que vou fazer primeiro?
Esteve ocupada toda a manhã, ajudando nas tarefas de sábado. E, embora não gostasse da secura da farinha sobre as mãos, agora lhe agradava amassar o pão, pensando contente que estaria em casa para comer os pães quentes e tostados. Seu coração e seus lábios cantavam; não voltaria mais à casa dos Brewsters.
Era um belo dia de sol e naquela tarde, quando o serviço terminou, Laura esperou que Mary Power viesse visitá-la, para fazerem crochê juntas. Ma balançava-se devagar, tricotando, junto à janela ensolarada. Carrie armava sua colcha de quadrados, mas Laura não podia estar quieta. Mary não veio e Laura acabara de decidir que poria seus agasalhos e iria ver Mary quando ouviu guizos de trenó.
Por alguma razão, seu coração saltou. Mas os guizos soaram fracos, de passagem. Havia apenas alguns guizos. Não eram as ricas fieiras de guizos que Príncipe e Lady usavam. Sua música não havia cessado, quando outros guizos de trenó passaram tilintando. E, em toda a rua, a quietude vibrou com o ressoar dos guizos.
Laura pôs-se à janela. Viu Minnie Johnson e Fred Gilbert passarem num relâmpago; depois foi Arthur Johnson e uma moça que Laura não conhecia. A música cheia de duplas fieiras de guizos passou rápida e Mary Power e Cap Garland precipitaram-se, voando, em um trenó. Então era isso que Mary estava fazendo. Cap Garland também tinha um trenó e fieiras cheias de guizos. Outros pares, rindo, subiam e desciam a rua, em trenós, passando e tornando a passar pela janela de Laura.
Por fim, sentou-se séria a fazer o seu crochê. A sala estava arrumada e quieta. Ninguém veio ver Laura. Estivera ausente tanto tempo que provavelmente não pensavam mais nela. Toda aquela tarde, os guizos dos trenós passaram. Rua acima, rua abaixo, suas colegas de escola passavam rindo, no frio ensolarado, divertindo-se a valer. Mary e Cap passaram e repassaram velozmente em um trenó de dois lugares.
Bem, pensou Laura, no dia seguinte iria ver Ida na escola dominical. Mas Ida não foi à igreja naquele domingo. A Sra. Brown disse que ela apanhara um forte resfriado.
Na tarde daquele domingo, o tempo fez-se ainda mais belo. E os guizos dos trenós de novo cantaram e os risos voaram ao vento. Mary Power e Cap passaram outra vez e Minnie e Fred; e Frank Harthorn e Mary Bird; e todos os recém-chegados que Laura mal conhecia. Dois a dois, passavam alegres, rindo e cantando com os guizos tilitantes. Ninguém se lembrou de Laura. Estivera ausente tanto tempo que. todos a tinham esquecido.
Séria, tentou ler os poemas de Tennyson. Procurava não se importar de ter sido esquecida e deixada de parte. Esforçava-se por não ouvir os guizos dos trenós e os risos, mas sentia cada vez mais que não poderia.
De repente, guizos chocalhantes pararam à porta! Antes que o pai pudesse erguer os olhos do jornal, Laura abrira a porta e lá estavam Príncipe e Lady e o pequeno trenó e, junto dele, de pé, Almanzo sorria.
— Gostaria de dar uma volta no trenó? — perguntou.
— Oh, sim — respondeu Laura. — Um instante; vou pôr os agasalhos.
Rápida, enfiou o casaco, pôs o capuz branco e calçou as mitenes. Almanzo aconchegou-a no trenó e partiram velozes.
— Não havia reparado que seus olhos eram tão azuis — disse Almanzo.
— É o efeito do meu capuz branco — explicou Laura. — Sempre usei o capuz escuro em casa dos Brewsters.
Tomou fôlego e riu alto.
— Que acha tão divertido? — indagou Almanzo, sorrindo.
— Estou rindo de mim mesma — disse Laura. — Não pretendia sair mais com você, mas esqueci. Por que veio?
— Pensei que mudasse de idéia depois de ver tanta gente passar — respondeu Almanzo. E riram.
Seu trenó era um dos muitos de uma fila. Corriam ligeiros pela Rua Principal, giravam em círculo na campina ao sul e disparavam pela Rua Principal acima. Ao norte, giravam e voltavam. E assim sempre e sempre. Ao longe e ao largo, a luz do sol brilhava sobre o chão nevado e o vento soprava frio em suas faces. Os guizos tilintavam, os patins dos trenós rangiam na neve dura e Laura sentiu-se tão feliz que começou a cantar:
"Soam guizos, soam guizos,
Em todo o caminho!
Como é bom num trenó estar
E o cavalo a puxar."
Ao longo da fila, outras vozes repetiam o estribilho. Iam até a campina aberta e voltavam rua acima; saíam de novo na campina e outra vez voltavam. Os guizos tilintavam e as vozes cantavam, no ar úmido:
"Soam guizos, soam guizos,
Em todo o caminho!"
Estavam a salvo das nevascas porque não se afastavam muito da cidade. O vento soprava, não porém com muita força, e todos se sentiam felizes e alegres, porque o frio era apenas de vinte graus abaixo de zero e o sol brilhava.
Em casa
Alegremente, Laura partiu para a escola em companhia de Carrie, segunda-feira de manhã. Escolhendo caminho entre os sulcos gelados feitos pelos carros na rua, Carrie disse com um suspiro feliz:
— Como é bom irmos juntas para a escola, de novo! Senti sempre sua falta.
— Eu também — respondeu Laura.
Quando chegaram à escola, Ida exclamou, prazenteira:
— Oh, professora! — e todas deixaram a estufa para cercarem Laura.
— Que lhe parece estar de volta à escola? — indagou Ida, com o nariz inchado e rubro de frio e com os olhos brejeiros de sempre.
— Parece bom — disse Laura, apertando a mão de Ida, ao receber as boas-vindas das outras. Até Nellie Oleson se esforçou por ser agradável.
— Andou algumas vezes de trenó — disse Nellie. — Agora que está de volta, certamente levará alguma de nós também.
Laura apenas replicou:
— Talvez.
Pensou no que estaria Nellie planejando. O Sr. Owen deixou sua mesa e veio cumprimentar Laura:
— Estamos contentes de tê-la de novo conosco — disse. — Soube que se saiu bem em sua escola.
— Obrigada — respondeu. — Estou contente de ter voltado.
Teve vontade de perguntar quem lhe falara de seu trabalho de professora, mas é claro que não perguntou.
A manhã começou um pouco ansiosamente, pois Laura receava estar atrasada em relação à sua classe. Verificou, todavia, que se achava mais que em dia. As lições foram todas revisões das lições que estudara nas tristes noites em casa dos Brewsters. Sabia-as perfeitamente. Continuava "navegando" à frente da classe, de bandeira desfraldada, e sentiu-se confiante e feliz até o intervalo da manhã.
Então, as meninas começaram a falar de suas composições e Laura verificou que o Sr. Owen havia dito à classe de Gramática que escrevesse, para a lição daquele dia, uma composição sobre a "Ambição".
A classe de Gramática seria chamada logo depois do intervalo. Laura ficou em pânico. Nunca escrevera uma composição e agora deveria fazer, em poucos minutos, o que as outras vinham preparando desde a véspera. Haviam escrito suas composições em casa e a Sra. Brown ajudara Ida a fazer a sua. A Sra. Brown escrevia nos jornais da igreja, de modo que a composição de Ida deveria ser boa.
Laura não tinha a menor idéia de como principiar. Nada sabia sobre a ambição. Seu único pensamento era de que iria fracassar em uma classe na qual fora sempre a primeira. E não queria fracassar. Mas como se escreve uma composição? Restavam só cinco minutos.
Viu-se a olhar a encadernação de couro amarelo do dicionário, em sua estante ao lado da mesa do Sr. Owen. Talvez, pensou, pudesse ter uma idéia pela leitura da definição de ambição. Tinha os dedos gelados quando apressadamente voltou as páginas da letra A, mas a definição era interessante. De volta à sua carteira, escreveu tão depressa quanto pôde e continuou a escrever desesperadamente quando a aula recomeçou. Sentiu angustiada que sua composição não era boa, mas não havia tempo para escrevê-la novamente ou para acrescentar qualquer coisa. O Sr. Owen chamou a classe de Gramática.
Uma a uma, à proporção que ele as chamava, lia sua composição, enquanto o coração de Laura se apertava. Todas pareciam melhores que a sua. Por fim, o Sr. Owen disse:
— Laura Ingalls! — e todas a olharam, expectantes.
Laura ergueu-se e, fazendo um esforço sobre si mesma, leu em voz alta o que escrevera. Foi o melhor que conseguira:
A AMBIÇÃO
A ambição é necessária para que se realize alguma coisa. Sem a ambição para nos levar a algum objetivo, nada seria feito. Sem a ambição de sobrepujar os outros e a si próprio, não haveria merecimento elevado. Para realizarmos alguma coisa, devemos ter a ambição de o conseguir.
A ambição é boa serva, porém má senhora. E boa enquanto a podemos dominar, mas se corremos o risco de ser por ela dominados, então eu diria, com Shakespeare:
— Cromwell, eu te ordeno: livra-te da ambição. Por este pecado caíram os anjos.
Era só. Laura permaneceu de pé, esperando o comentário do Sr. Owen, que lhe lançou um olhar penetrante e disse:
— Já havia escrito alguma composição?
— Não, senhor — respondeu Laura. — Esta é a primeira.
— Bem, se tivesse escrito outras, eu não acreditaria que alguém se saísse tão bem da primeira vez — disse-lhe o Sr. Owen.
Laura balbuciou, atônita:
— É tão curta... É quase toda tirada do dicionário...
— Não está muito parecida com o dicionário — disse o Sr. Owen. — Não tem emendas. Grau cem. A aula está terminada.
Não poderia ter tido nota mais alta. Laura continuava no primeiro lugar da classe. Sentia-se confiante agora de que, com perseverança, conservaria seu primeiro lugar e preparou-se com satisfação para escrever novas composições.
O tempo já não se arrastava. Aquela semana passou num instante e, na sexta-feira, quando Laura e Carrie voltaram para o jantar, o pai disse:
— Tenho uma coisa para você, Laura.
Seus olhos piscavam quando tirou a carteira do bolso. Uma a uma, pôs-lhe na mão quatro notas de dez dólares.
— Estive com Brewster hoje de manhã — explicou Pa. — Deu-me isso para você e disse que você foi uma boa professora. Gostariam de tê-la novamente no próximo inverno. Falei-lhe que você não se afastaria tanto de casa no tempo frio. Sei que não foi agradável a permanência com os Brewsters, embora você não se queixasse. Estou orgulhoso da sua força de vontade, Laura.
— Ora, Pa! Valeu a pena — exclamou Laura, sem fôlego. — Quarenta dólares!
Sabia que iria ganhar quarenta dólares, mas as notas em sua mão faziam agora que o fato parecesse real. Contemplou-as e custava-lhe crer, mesmo agora. Quatro notas de dez dólares, quarenta dólares!
Estendeu a mão ao pai:
— Tome-os, Pa. Receba-os e guarde-os para Mary. São o suficiente para que venha passar as férias em casa este verão, não são?
— São e ainda sobram alguns — respondeu o pai, dobrando as notas outra vez na carteira.
— Laura, não vai ficar com alguma coisa pelo seu trabalho como professora? — exclamou Carrie.
— Vamos ter Mary em casa este verão — respondeu Laura, feliz. — Fui ser professora somente por causa de Mary.
Era uma sensação maravilhosa a de saber que havia ajudado tanto. Quarenta dólares. Saboreando o gostoso jantar na boa cozinha de casa, disse:
— Gostaria de ganhar mais um pouco.
— Poderá ganhar, se quiser — disse Ma de repente.
— A Sra. McKee disse esta manhã que gostaria que você a ajudasse aos sábados. Recebe mais encomendas de vestidos do que pode fazer sozinha e lhe dará cinqüenta centavos e jantar.
— Que bom! — falou Laura. — Disse-lhe que aceito, Ma?
— Disse que você poderia ajudá-la, se quisesse — respondeu a mãe, sorrindo.
— Quando? Amanhã? — perguntou Laura, ansiosa.
— Amanhã de manhã, às oito horas — disse a mãe.
— A Sra. McKee não estaria pronta para recebê-la antes. Somente das oito às seis — disse ela — a menos que haja muito serviço. E lhe dará ceia, se ficar para terminar alguma coisa à noite.
A Sra. McKee era a costureira da cidade. Os McKees eram recém-chegados e moravam em uma casa nova, entre a loja de fazendas e roupas de Clancy e o novo prédio de escritórios na esquina da Rua Principal com a Rua Segunda. Laura conhecera a Sra. McKee na igreja e gostara dela.
Era alta e magra, tinha olhos azuis e sorriso amável. Usava o cabelo castanho-claro em coque atrás da cabeça.
O tempo de Laura estava, pois, todo ocupado agradavelmente. Os atarefados dias de aula passavam rápidos e durante a semana Laura aguardava o dia de costurar ativamente na sala de estar da Sra. McKee, sempre em tão impecável ordem que Laura mal reparava no fogão de cozinha a um canto.
Domingo de manhã, havia a escola dominical e a igreja e nas divertidas tardes domingueiras os passeios de trenó. Príncipe e Lady desciam a rua, com suas longas fieiras de guizos harmoniosos, e paravam à porta de Laura, que saía com Almanzo no pequeno trenó puxado pelos mais belos e velozes cavalos da cidade.
Mas o melhor de tudo eram as manhãs e as noites em casa. Laura sentiu que nunca as apreciaria tanto como agora. Não havia silêncios hostis, nem querelas que se arrastavam, nem explosões de ira.
Em lugar disso, havia trabalho e boa conversa, pequenos e divertidos gracejos e noites de confortável estudo e leitura e a música do violino do pai. Como era bom ouvir as velhas canções familiares, executadas ao violino, na sala quente e iluminada! Laura, com freqüência, pensava como era feliz. Nada, em lugar nenhum, poderia ser melhor que estar em casa, com a gente de casa. Tinha certeza.
Primavera
Numa sexta-feira de abril, Laura, Ida e Mary Power voltavam vagarosamente da escola. O ar era suave e úmido, os beirais gotejavam e a neve escorregava sob os pés.
— A primavera está quase de volta — disse Ida. — Restam só três semanas de aulas.
— É verdade. E nós nos mudaremos de novo para a concessão — disse Mary. — Você também, não é Laura?
— Penso que sim — respondeu Laura. — Parece que o inverno mal começa e logo está terminando.
— Se o tempo se mantiver quente, amanhã já quase não haverá neve — disse Mary. Isso queria dizer que não haveria mais passeios de trenó.
— E bom estar-se na concessão — disse Laura. Pensou nos bezerrinhos e pintinhos e no cultivo da horta, nas alfaces, rabanetes e cebolas da primavera e nas violetas e rosas silvestres em junho e na volta,de Mary do colégio.
Atravessou com Carrie a rua lamacenta e entrou em casa. O pai e a mãe encontravam-se na sala de estar e na cadeira de balanço de Mary sentava-se um desconhecido. Como Laura e Carrie se detivessem hesitantes à porta, ele se ergueu e lhes sorriu.
— Não me conhece, Laura? — perguntou.
Então Laura o reconheceu. Lembrou-se do seu sorriso, tão parecido com o de Ma.
— Oh! Tio Tom. É o Tio Tom! — exclamou. O pai riu.
— Bem lhe disse que ela o reconheceria. Tom.
E a mãe sorriu, enquanto ele apertava as mãos de Laura e Carrie.
Carrie não se lembrava. Era muito pequenina, na Grande Floresta do Wisconsin. Mas Laura tinha cinco anos quando foram à dança-do-açúcar na casa da Avó e Tio Tom estava lá. Conservara-se tão calado que mal pensou nele depois, mas agora recordava as notícias que dele dera Tia Docia, quando esteve na casa do Riacho das Ameixeiras, em Minnesota.
Era um homenzinho sossegado, com um sorriso amável. Observando-o, do outro lado da mesa de jantar, Laura dificilmente podia crer que durante anos fora capataz de turmas de mateiros, levando os troncos das árvores abatidas da Grande Floresta até os rios. Embora fosse tão pequeno e falasse tão mansamente, havia chefiado homens rudes e dirigido com coragem o perigoso transporte dos troncos. Laura lembrou-se de ouvir Tia Docia contar como ele mergulhara entre os troncos flutuantes e, segurando-se neles, salvara um homem ferido que caíra ao rio. E fizera isso embora não soubesse nadar.
Agora, tinha muito que contar a Pa, Ma e Laura. Falou de sua mulher, Tia Lily, e de sua filhinha Helen. Deu notícias da família de Tio Henrique, de Tia Polly, Charley e Albert.
Afinal de contas, depois que deixaram a Lagoa Prateada, não tinham ido para Montana. Haviam ficado nas Colinas Negras. Estavam todos lá, mesmo Luísa, a prima.
Esta casara e fora para Montana. Quanto a Tia Elisa e Tio Pedro, ainda moravam no leste do Minnesota, mas Alice e Ella e o primo Pedro viviam para as bandas do Território de Dakota.
Carrie e Grace arregalavam os olhos. Carrie não lembrava nada de toda essa gente e Carrie jamais vira a Grande Floresta, nem uma dança-do-açúcar, nem conhecera os dias de Natal em que Tio Pedro e Tia Elisa vieram visitar os primos Alice, Ella e Pedro. Laura lamentava que sua irmãzinha houvesse perdido tudo isso.
O jantar passou rapidamente e quando acenderam o candeeiro e a família se reuniu em volta de Tio Tom, na sala de estar, Pa continuou a fazê-lo falar dos campos de madeira e do transporte de troncos, dos rios que rugiam e dos homens rudes e turbulentos dos campos de madeira. Falava neles simplesmente, com voz tão mansa como a de Ma e sorrindo com o seu sorriso tranqüilo.
— Então esta é a sua primeira viagem ao Oeste? Tio Tom respondeu sossegadamente:
— Oh, não! Estive entre os primeiros homens brancos que puseram os olhos nas Colinas Negras.
Pa e Ma ficaram espantados. Depois Ma perguntou:
— Que estava fazendo lá, Tom?
— À procura de ouro — respondeu Tio Tom.
— Pena que não tivesse descoberto algumas minas de ouro — gracejou Pa.
— Oh, nós descobrimos — respondeu Tio Tom. — Mas não nos trouxe nenhum benefício.
— Valha-nos Deus! — exclamou Ma, baixinho. — Conte-nos tudo a respeito.
— Bem, vejamos. Partimos de Sioux City faz oito anos — começou Tio Tom. — Em outubro de 74. Vinte e seis homens e um deles levou consigo sua mulher e o filho de nove anos.
Viajaram em carroças cobertas, puxadas por juntas de bois, e em alguns cavalos de sela. Cada homem tinha uma Winchester e pequenas armas e munição para oito meses. Levavam suprimentos de farinha, toucinho, feijão e café nas carroças e, quanto à carne, dependiam principalmente da caça. A caça era boa e abateram muitos alces, antílopes e veados. O maior problema era o da falta de água na campina aberta. Felizmente, era no começo do inverno. Havia bastante neve, que derretiam à noite para encher os barris de água.
As tempestades atrasaram-nos um pouco. Durante as nevascas, ficavam em acampamentos. Entre as tormentas, a neve tornava difícil o avanço e, para diminuir a carga das carroças, seguiam a pé. Até a mulher caminhou boa parte da viagem.
Assim penetraram a terra desconhecida, vendo apenas a planície gelada e as tempestades e, vez por outra, uns poucos índios ao longe, até que chegaram a uma estranha depressão de terreno que lhes barrava o caminho e que se estendia de ambos os lados até onde a vista podia alcançar. Parecia impossível fazer descer as carroças até lá, mas não havia outra alternativa senão atravessá-las e assim, com extraordinário esforço, conseguiram descer as carroças até a planície enterrada.
Do chão, estranhas formações de terra nua subiam, em torno deles, a alguns milhares de metros de altura. Seus flancos eram escarpados e às vezes salientes, cortados e afiados pelos ventos que sopravam permanentemente. Nenhuma vegetação crescia sobre ela, nenhuma árvore, moita ou folha de erva. Sua superfície parecia lama cozida e seca, menos nos lugares onde havia manchas de cores diversas e brilhantes. Pelo chão dessa terra afundada, espalhavam-se profusamente conchas petrificadas, crânios e ossos.
Era um lugar infernal, dizia Tio Tom. As rodas das carroças rangiam sobre os ossos e as altas formações pareciam voltar-se ao passar da gente, algumas delas semelhantes a faces e a ídolos exóticos. As carroças tinham de passar entre elas, seguindo os desfiladeiros ou vales. Perdiam-se dando voltas àquelas estranhas coisas. Passaram três dias antes que pudessem achar a saída daquele lugar e gastaram um dia de duro trabalho para fazer subir as carroças até a sua borda.
Olhando para trás, um velho garimpeiro disse a Tio Tom que deveriam ser as Terras Más de que ouvira os índios falarem. E ajuntou:
— Acho que quando Deus fez o mundo, jogou todo o lixo que sobrou naquele buraco.
Depois disso, prosseguiram pela campina até chegarem às Colinas Negras. Ali encontraram abrigo dos furiosos ventos da campina, mas a jornada foi dura porque os vales estavam cheios de neve e as colinas eram íngremes.
Viajaram setenta e oito dias até seu último acampamento em French Creek. Ali cortaram troncos de pinheiros das colinas e levantaram uma estacada de vinte e quatro metros quadrados. Cortaram troncos de quatro metros de comprimento e os puseram de pé, unidos uns contra os outros, enterrando-os um metro no chão. A escavação foi difícil porque o solo estava gelado. Na parte interior da estacada, os interstícios foram cobertos com troncos menores, presos a cada fresta entre os troncos maiores com pesadas cavilhas de madeira.
Em cada canto dessa estacada quadrangular ergueram sólidos bastiões de troncos, salientes, de modo a permitirem fogos cruzados ao longo do exterior dos muros. Nesses bastiões e também ao longo dos muros, abriram vigias. A única entrada da estacada era uma cancela dupla, de três metros e meio de largura, feita de troncos solidamente pregados entre si com cravos de madeira. Depois de pronta, ficou uma boa estacada.
No interior, levantaram sete pequenas cabanas de troncos e ali viveram durante o inverno. Caçavam para obter carne e faziam armadilhas para conseguir peles. O inverno foi extremamente frio, mas conseguiram atravessá-lo e no começo da primavera encontraram ouro, em pequenas pepitas, e ricas areias auríferas no cascalho gelado e sob o gelo nos leitos dos rios. Mais ou menos ao mesmo tempo, os índios os atacaram. Mas puderam repeli-los, daquela estacada. O problema estava em que morreriam de fome, se não pudessem sair para caçar. Os índios permaneciam nos arredores, não combatendo muito, mas fazendo recuar os grupos que se aventuravam a sair, esperando que morressem de fome. Tiveram de reduzir as rações e apertar os cintos, para sobreviver o mais longo tempo possível, antes que se vissem forçados a sacrificar suas juntas de bois.
Então, uma manhã, ouviram ao longe uma cometa!
Quando Tio Tom contou isso, Laura lembrou-se do som, fazia muito tempo, ecoando na Grande Floresta, quando Tio Jorge tocava sua cometa militar. E exclamou:
— Soldados?
— Sim — disse Tio Tom.
Sabiam que estavam salvos. Os soldados chegavam. As sentinelas bradaram e todos se juntaram nos bastiões para ver. Ouviram de novo a cometa. Logo escutaram os pífaros e o tambor e viram a bandeira desfraldada ao vento e a tropa que a seguia.
Abriram a cancela e correram para fora todos, tão depressa quanto podiam, ao encontro dos soldados. Mas os soldados prenderam todos, ali onde estavam, e ali ficaram, enquanto parte da força avançava e punha fogo à estacada, com tudo que havia dentro. Queimaram as cabanas e as carroças, as peles e mataram os bois.
— Oh, Tom! — exclamou Ma, como se não pudesse acreditar.
— Eram terras dos índios — disse Tio Tom calmamente. — Na verdade, não tínhamos direito de estar lá.
— Não lhe sobrou nada, depois de tanto trabalho e perigo? —lamentou Ma.
— Perdi tudo que tinha quando comecei, menos o meu rifle — disse Tio Tom. — Os soldados deixaram-nos ficar com as nossas armas. Fizeram-nos marchar como prisioneiros.
Pa andava de um lado para outro, na sala.
— Macacos me mordam se eu agüentava isso! — exclamou. — Eu reagiria.
— Não poderíamos lutar contra todo o Exército dos Estados Unidos — disse Tio Tom sensatamente. — Mas como me doeu ver a estacada desfazer-se em fumaça!
— Compreendo — disse Ma. — Até hoje penso na casa que tivemos de deixar no Território de Indiana, justamente quando Charles lhe havia colocado janelas de vidraças.
Laura pensou: Tudo isso aconteceu a Tio Tom enquanto morávamos no Riacho das Ameixeiras.
Por algum tempo, ninguém falou, até que o velho relógio fez o seu rangido de advertência e lenta e solenemente bateu apenas uma vez.
— Meu Deus! Como é tarde! — exclamou Ma. — Francamente, Tom, você nos enfeitiçou. Não admira que Grace esteja dormindo. Vão para a cama, meninas, e levem-na com vocês. Laura, tire o colchão de penas da minha cama e as mantas, que farei aqui uma cama para Tom.
— Não tire as coisas de sua cama, Carolina — protestou Tio Tom. — Posso dormir no chão, com uma coberta. Já tenho dormido muitas vezes.
— Acho que Charles e eu podemos dormir sobre um colchão de palha uma vez — disse Ma. — Quando penso como você dormiu ao frio e sem conforto, tantas noites, naquela viagem!
O frio inverno da narrativa de Tio Tom ficou no pensamento de Laura tão fortemente que, na manhã seguinte, lhe parecia estranho ouvir o chinuque soprar suavemente e os beirais gotejarem e saber que era primavera e que estava em segurança na cidade. Durante o dia, enquanto cosia com a Sra. McKee, o pai e a mãe faziam visitas com Tio Tom e, no dia seguinte, apenas Laura, Carrie e Grace foram à escola dominical e à igreja. Pa e Ma ficaram em casa para não perderem um momento da curta visita de Tio Tom, que partiria cedo na manhã de segunda-feira para sua casa no Wisconsin.
Apenas algumas porções de neve restavam no chão lamacento. Não haveria mais passeios de trenó, Laura sabia e lamentava.
Pa, Ma e Tio Tom conversavam sobre pessoas que ela não conhecia, sentados à mesa depois de um almoço tardio de domingo, quando uma sombra passou pela janela. Laura reconheceu as pancadas à porta e apressou-se em abri-la, admirada da visita de Almanzo.
— Gostaria de tomar parte no primeiro passeio de carrinho da primavera? — perguntou. — Com Cap, Mary Power e comigo?
— Oh, sim — replicou. — Não quer entrar, enquanto ponho o chapéu e o casaco?
— Não, obrigado — respondeu — esperarei cá fora.
Quando saiu, viu que Mary e Cap estavam sentados no banco traseiro do carrinho de dois assentos de Cap. Almanzo ajudou-a a subir ao assento dianteiro e tomou as rédeas de Cap, sentando-se a seu lado. Então Príncipe e Lady trotaram rua acima e pela estrada da campina, na direção leste.
Ninguém mais estava guiando carros, de modo que não era um desfile, mas Laura, Mary e Cap mostravam-se risonhos e felizes. A estrada estava lamacenta. Água e bocados de neve salpicavam os cavalos e o carrinho e as cobertas de linho sobre seus joelhos. Mas o vento da primavera soprava brando sobre suas faces e o sol aquecia.
Almanzo não participava da tagarelice. Guiava sempre, sem um sorriso ou uma palavra, até que Laura lhe perguntou o que havia.
— Nada — respondeu, e logo perguntou: — Quem é aquele rapaz?
Ninguém estava à vista, em parte alguma. Laura exclamou :
— Que rapaz?
— Aquele com que falava quando cheguei — disse ele. Laura espantou-se. Mary deu uma gargalhada: — Ora, não tenha ciúmes do tio de Laura!
— Ah, refere-se a ele? É o Tio Tom, irmão de minha mãe — explicou Laura. Mary Power ria tanto que Laura se voltou ainda em tempo de Ver Cap furtar um grampo do coque de Mary.
— Dê-me um pouco de atenção! — disse Cap a Mary.
— Ai! pare com isso! Dê-me de volta — gritava Mary, tentando reaver o grampo que Cap mantinha fora de seu alcance, enquanto lhe tirava outro.
— Não faça isso, Cap, não faça isso! — implorava Mary, pondo as mãos sobre o coque, atrás da cabeça. — Laura, ajude-me!
Laura percebeu que a situação era desesperada, pois só ela sabia que Mary usava um coque postiço. Cap deveria ser impedido, porque se Mary perdesse mais alguns grampos, seu lindo coque cairia.
Exatamente nesse instante, um torrão de neve arremessado pelas patas de Príncipe caiu no colo de Laura. O ombro de Cap estava voltado para ela, ao lutar com Mary. Laura prendeu entre os dedos o bocado de neve e deixou-o cair bem dentro do colarinho de Cap, junto à nuca.
— Aiii! — uivou Cap. — Venha socorrer seu amigo, Wilder. Duas contra mim é demais!
— Estou ocupado com as rédeas — respondeu Almanzo, e todos deram boas gargalhadas. É muito fácil rir na primavera.
Conservando uma concessão
Tio Tom seguiu para o Leste no trem da manhã seguinte. Quando Laura voltou da escola, ao meio-dia, já havia partido.
— Logo que ele saiu — disse Ma — a Sra. McKee chegou. Está em grandes dificuldades, Laura, e me perguntou se você desejaria ajudá-la.
— Ora, sem dúvida — disse Laura. — De que se trata?
Ma explicou que, embora a Sra. McKee tivesse costurado muito todo o inverno, os McKees ainda não se achavam em condições de se mudarem para a sua concessão. O Sr. McKee precisava continuar no seu emprego no depósito de madeiras até que tivessem economizado dinheiro suficiente para comprar ferramentas e cabeças de gado. E queria que a Sra. McKee fosse, com a filhinha Mattie, morar na concessão naquele verão, para não perder o direito de conservá-la. A Sra. McKee disse que não moraria tão longe, na campina, sozinha, sem mais ninguém exceto Mattie; preferia que perdessem a concessão.
— Não sei por que está tão assustada — disse Ma — mas o fato é que está. Parece que receia ficar inteiramente só, a muitos quilômetros de qualquer outra pessoa. De modo que, segundo me contou, o Sr. McKee disse que iria abrir mão da concessão. Depois que ele saiu para o trabalho, ela ficou pensando no assunto e veio dizer que, se você a acompanhasse, concordaria em ir, para conservar a concessão. Disse-me que lhe daria um dólar por semana, somente para lhe fazer companhia, como uma pessoa da família.
— Onde é a concessão? — indagou Pa.
— Um pouco ao norte de Manchester — disse Ma. Manchester era uma cidadezinha nova, a oeste de De Smet.
— Bem, quer ir, Laura? — perguntou o pai.
— Acho que sim — disse Laura. — Terei de faltar ao resto das aulas, mas poderei dar um jeito e gostaria de continuar a ganhar alguma coisa.
— Os McKees são boa gente e seria uma solução para o seu problema, de modo que você poderá ir, se quiser — decidiu o pai.
— Seria uma pena não estar aqui quando da visita de Mary — preocupou-se Ma.
— Se eu conseguir que a Sra. McKee se instale na concessão e se acostume a ela, talvez possa voltar a tempo de ver Mary — ponderou Laura.
— Bem, se quer, será melhor ir — disse Ma. — Não temos de atravessar a ponte antes de chegar a ela. De qualquer modo, é possível que tudo corra bem.
Assim, na manhã seguinte, Laura embarcou com a Sra. McKee no trem de Manchester. Já viajara em ferrovia uma vez, quando veio para o Oeste, de modo que se sentia como um viajante experimentado ao acompanhar o guarda-freios, com a sua sacola, pelo corredor dos carros, até achar lugar. Não era como se ignorasse tudo sobre trens.
Era uma viagem de onze quilômetros até Manchester. Ali, os carregadores retiraram a mobília da Sra. McKee do carro de bagagens, à frente do carro de passageiros, e um cocheiro a levou para sua carroça. Antes que terminasse, o hoteleiro fez soar seu triângulo de ferro, chamando para o almoço. A Sra. McKee, Laura e Mattie almoçaram no hotel.
Logo depois, o cocheiro trouxe a carroça carregada até a porta e ajudou-as a subir e sentar-se sobre a bagagem, entre os rolos de colchões, o fogão, a mesa, as cadeiras, a mala e as caixas de mantimentos. A Sra. McKee viajou na boléia, ao lado do cocheiro.
Sentadas, os pés pendentes ao lado da carroça, Laura e Mattie seguravam-se uma à outra e às cordas que prendiam a bagagem, enquanto a parelha puxava, aos trancos, pela campina. Não havia estrada. As rodas do carro afundavam na terra relvosa, nos lugares onde a neve derretida a tornara mole, e o veículo e a bagagem pendiam para um lado e para outro. Mas tudo foi bem até chegarem ao charco. Aí, onde o chão era'mais baixo, a água formava poças entre as ervas ásperas.
— Não conheço isso — disse o cocheiro, olhando em frente. — Parece bem mau, mas não há outro caminho por onde se possa dar a volta. Temos de tentar. Talvez, se atravessarmos depressa, o carro não tenha tempo de afundar.
Quando chegaram junto ao lamaçal, disse:
— Segurem-se!
Levantou o chicote e gritou para os cavalos. Foram seguindo, cada vez mais rápidos, até que, incitados pelos gritos e pelo chicote, começaram a correr. A água subia, formando asas aos lados das rodas da carroça e Laura se agarrava às cordas e a Mattie com todas as suas forças.
De repente, tudo ficou quieto. Em segurança, do outro lado do charco, o cocheiro parou os cavalos para um descanso.
— Bem, conseguimos — disse. As rodas não ficavam no mesmo lugar o tempo bastante para afundar na lama. — Se alguém ficar preso aqui, ficará de verdade.
Não admirava que parecesse aliviado, pois Laura, olhando "para o charco que ficara atrás, não viu as marcas das rodas. Estavam cobertas pela água.
Avançaram pela campina e chegaram, por fim, a uma pequena cabana, nova e solitária. Cerca de dois quilômetros a oeste, havia outra e, bem longe, para leste, mal podiam divisar uma terceira.
— É aqui, dona! — disse o cocheiro. — Vou descarregar e apanhar uma porção de feno, para fazer fogo, naquele sítio a oeste. O sujeito que a ocupou no último verão, desistiu e voltou para o Leste, mas estou vendo que deixou alguns montes de feno.
Uma parede dividia a casa em dois minúsculos compartimentos. A Sra. McKee e Laura armaram uma cama na sala onde se achava o fogão e a outra no quarto contíguo. Mobiliaram a pequena habitação com a mesa, quatro cadeirinhas de madeira e a mala.
— Foi bom não termos trazido mais nada — disse a Sra. McKee.
— Sim, como diz Ma, o suficiente é tão bom quanto um banquete — concordou Laura.
O cocheiro voltou com uma carga de feno e depois partiu para Manchester. Agora havia os dois colchões de palha para encher de feno e os pratos para desempacotar. Laura formava feixes, torcendo o feno que retirava do pequeno monte, atrás da choupana, e Mattie levava-os para dentro, para alimentar o fogo, enquanto a Sra. McKee cozinhava o jantar. A Sra. McKee não sabia torcer o feno, mas Laura aprendera durante o Longo Inverno.
Quando o crepúsculo desceu sobre a campina, os coiotes começaram a uivar e a Sra. McKee trancou a porta e verificou se as janelas estavam fechadas.
— Não sei por que a lei nos obriga a isto — disse.— Que vantagem pode haver em forçar uma mulher a permanecer o verão todo numa concessão?
— É uma aposta, como diz meu pai — respondeu Laura. — O governo aposta com um homem um quarto de terra em como ele não é capaz de ocupá-lo cinco anos sem morrer de fome.
— Ninguém pode — disse a Sra. McKee. — Quem faz essas leis deveria saber que um homem que consegue dinheiro bastante para explorar um sítio tem o suficiente para comprar uma propriedade. Se não conseguiu, deve ganhá-lo. Por que fazer uma lei que o obriga a permanecer em uma concessão, quando não pode? O que acontece é que a mulher e a família têm de ocupá-la, sem fazer nada, durante sete meses do ano. Eu poderia estar ganhando alguma coisa, cosendo, para ajudar a comprar ferramentas e sementes, se não fosse obrigada a estar aqui. Francamente, às vezes acredito nos direitos da mulher. Se as mulheres votassem e fizessem leis, acho que teriam mais tino. São lobos?
— Não — disse Laura. — São apenas coiotes e não fazem mal a ninguém.
Estavam tão cansadas que não acenderam o candeeiro, mas foram deitar-se, Laura e Mattie na cozinha e a Sra. McKee no quarto da frente. Quando estavam quietas, a solidão pareceu entrar na choupana. Laura não tinha medo, mas nunca estivera antes num lugar tão solitário, sem o pai e a mãe e suas irmãs. Os coiotes estavam cada vez mais longe. Depois sumiram. E o atoleiro ficava tão distante que não se ouviam os sapos. Nenhum ruído, exceto o sussurrar do vento da campina, quebrava o silêncio.
O sol que brilhava sobre o rosto de Laura despertou-a para um dia vazio. As pequenas tarefas foram logo feitas. Nada mais restava a fazer, nenhum livro para estudar, nenhuma pessoa para ver. Toda aquela semana, Laura, a Sra. McKee e Mattie não fizeram mais do que comer e dormir, estarem sentadas, conversando ou caladas. O sol nascia e se punha, o vento soprava, a campina conservava-se vazia de tudo, menos de pássaros e sombras de nuvens.
Sábado à tarde, puseram seus vestidos de cidade e caminharam os três quilômetros até Manchester, para encontrar o Sr. McKee e voltar em sua companhia para casa. Demorou-se até domingo à tarde, quando foram todos à cidade outra vez e o Sr. McKee tomou o trem de regresso a De Smet e ao seu trabalho. A Sra. McKee, Laura e Mattie tornaram à concessão por mais uma semana.
Ficaram contentes quando chegou o sábado, mas de certo modo foi um alívio quando o Sr. McKee partiu, porque era um presbiteriano tão rigoroso que, no domingo, não admitia que ninguém risse ou mesmo sorrisse. Podiam apenas ler a Bíblia e o catecismo e falar gravemente de assuntos religiosos. Ainda assim, Laura o estimava, pois era verdadeiramente bom e amável e nunca dizia uma palavra má.
Esse foi o modelo das semanas que passaram, uma após outra, todas iguais, até que abril e maio se foram.
O tempo tornara-se mais quente e, nos passeios à cidade, ouviam o canto das calhandras-do-prado, ao lado da estrada, onde as flores da primavera desabrochavam, Numa cálida tarde de domingo, a volta de Manchester pareceu mais longa e cansativa que de costume e, como se demorassem um pouco a caminho, a Sra. McKee disse:
— Seria mais agradável para você estar passeando no carrinho de Wilder.
— Provavelmente não o farei mais — observou Laura. — Outra estará em meu lugar, antes que eu volte.
Pensava em Nellie Oleson. A concessão dos Olesons não era longe da de Almanzo.
— Não se preocupe — disse-lhe a Sra. McKee. — Um solteirão não dá muita atenção a uma moça, a menos que suas intenções sejam sérias. Você ainda se casará com ele.
— Oh, não! — disse Laura. — Francamente, acho que não. Não deixarei minha casa para casar com ninguém.
De repente, percebeu que estava com saudades do seu lar. Desejaria estar de novo lá. E o desejava tanto que mal podia suportar esse sentimento. Toda aquela semana, lutou contra essa saudade, ocultando-a da Sra. McKee e, no sábado, quando foi de novo a Manchester, havia uma carta à sua espera.
Ma escrevia-lhe que Mary estava para chegar e Laura deveria vir, se a Sra. McKee encontrasse alguma outra pessoa que lhe fizesse companhia. Ma esperava que fosse possível, pois Laura deveria estar em casa quando Mary viesse.
Teve receio de abordar o assunto com a Sra. McKee e nada lhe disse até que, à mesa do jantar, a Sra. McKee lhe perguntou o que a preocupava. Laura referiu o que Ma escrevera.
— Sim, sem dúvida, você deve ir — disse logo o Sr. McKee. — Encontrarei alguém que fique aqui.
A Sra. McKee ficou calada algum tempo e depois disse:
— Não quero mais ninguém a não ser Laura, para morar conosco. Prefiro que fiquemos sós. Estamos acostumadas a este sítio e nada acontecerá. Laura irá à sua casa e Mattie e eu podemos bem ficar sós.
O Sr. McKee levou a sacola de Laura na caminhada de domingo à tarde a Manchester e ela se despediu da Sra. McKee e de Mattie e embarcou com ele, de volta a casa.
Durante toda a viagem, pensou nelas, de pé, sozinhas, na estação e depois andando os três quilômetros, até à choupana solitária onde deveriam ficar, nada fazendo exceto comer e dormir e escutar o vento, mais cinco meses. Era um duro modo de ganhar um pedaço de terra, mas não havia outro, já que essa era a lei.
A visita de Mary
Laura sentiu-se muito contente por se achar de novo na concessão do pai. Era bom tirar leite da vaca e beber quanto quisesse, espalhar a manteiga no pão e comer outra vez o bom queijo feito pela mãe. Havia também folhas de alface a colher na horta e pequenos rabanetes vermelhos. Não sentira antes como gostava de comer essas boas coisas. A Sra. McKee e Mattie não poderiam tê-las, é claro, enquanto estivessem guardando a sua concessão.
Agora, em casa, havia ovos, pois a criação de Ma ia bem. Laura ajudava Carrie a descobrir os ninhos que as galinhas escondiam no feno do estábulo e no capim alto dos arredores.
Grace achou uma ninhada de gatinhos ocultos na manjedoura. Eram netos da gata que o pai comprara por cinqüenta centavos. E a gata sentia-se cônscia de sua responsabilidade. Achava que devia caçar para eles como para seus próprios gatinhos. Trazia-lhes mais ratinhos do que poderiam comer e todos os dias juntava os que sobravam à porta de casa, para Ma.
— Francamente — disse esta — nunca me senti tão embaraçada pela generosidade de um gato.
Chegou o dia em que Mary deveria vir para casa. Pa e Ma foram de carro à cidade esperá-la e até o trem parecia especial, naquela tarde, deitando rolos de fumaça que se desfaziam em uma linha baixa no céu. Da elevação do terreno por trás do estábulo e da horta, viram o jato de vapor branco que subia da locomotiva e ouviram seu apito. O rumor distante cessara e sabiam que o trem parará na cidade e que Mary deveria estar lá.
Que satisfação quando o carro afinal passou pelo atoleiro, com Mary sentada no banco, entre Pa e Ma. Laura e Carrie falavam ao mesmo tempo e Mary também tentava falar às duas. Grace atropelava todo o mundo, de cabelos ao vento e olhos azuis arregalados. Kitty saiu correndo porta afora, eriçando os pêlos da cauda como uma escova. Não gostava de desconhecidos e esquecera Mary.
— Não teve medo de vir sozinha no trem? — indagou Carrie.
— Não — sorriu Mary. — Não houve nada. Aprendemos a fazer as coisas nós mesmas, no colégio. Faz parte de nossa educação.
Parecia muito mais segura de si e movia-se com facilidade pela casa, em vez de ficar sentada quieta em sua cadeira. Pa trouxe sua mala, à qual ela se dirigiu, ajoelhou-se, abriu a fechadura e ergueu a tampa como se a estivesse vendo. Tirou então, um após outro, os presentes que trouxera.
Para Ma trouxe uma esteira para colocar sob o candeeiro, tendo em volta uma franja de contas multicores presas a um fio grosso.
— É lindo! — exclamou Ma, encantada.
O presente de Laura foi um bracelete de contas azuis e brancas, presas em um fio e entrelaçadas, e o de Carrie foi um anel de contas cor-de-rosa e brancas, entretecidas.
— Que bonito! Que bonito! — dizia Carrie. — E cabe direitinho no meu dedo!
Para Grace havia uma cadeira de boneca, de contas vermelhas e brancas enfiadas em arame. Grace ficou tão dominada pela emoção, quando a segurou cuidadosamente, que quase não teve palavras para agradecer.
— Isto é para o senhor, Pa — disse Mary, entregando-lhe um lenço de seda azul. — Não foi feito por mim, mas fui eu quem o escolhi. Blanche e eu... Blanche é a minha companheira de quarto. Fomos à cidade procurar alguma coisa para o senhor. Ela pode ver as cores, quando são vivas, mas o caixeiro não sabia. Achamos divertido enganá-lo. Blanche fazia-me sinal e ele ficou pensando que nós conhecíamos as cores pelo tato. Senti com os dedos que era boa seda. Ah! Como enganamos o caixeiro! — E Mary riu ao recordar-se do fato.
Mary costumava sorrir, mas havia muito tempo que não ria como era seu costume quando pequenina. Tudo que custara mandar Mary para o colégio estava mais que compensado por vê-la tão alegre e confiante.
— Aposto que era o mais bonito lenço de Vinton de Iowa — disse o pai.
— Não sei como pôde colocar as cores certas nos seus trabalhos de contas — disse Laura, fazendo girar o bracelete no pulso. — Cada conta deste lindo bracelete está no lugar próprio. Você não pôde fazer isso da mesma forma como enganou o caixeiro.
— Uma pessoa vidente põe as diversas cores em caixas separadas — explicou Mary. — Só temos de nos lembrar onde estão.
— Para você é fácil — concordou Laura — porque nunca se esquece das coisas. Nunca pude recitar tantos versículos da Bíblia quantos você recitava.
— Minha professora da escola dominical surpreende-se de ver quantos sei — disse Mary. — Isso me valeu muito, Ma. Posso lê-los tão facilmente com os dedos na escrita em relevo e em Braille que aprendi a ler mais depressa que as outras da minha classe.
— Estou contente por saber, Mary — foi tudo que Ma disse, mas parecia mais feliz do que quando Mary lhe dera a bela esteira para o candeeiro.
— Esta é a minha lousa Braille — disse Mary, tirando-a da mala. Era um retângulo de aço delgado em uma moldura de aço, do tamanho de uma lousa escolar, com uma fita estreita de aço atravessada. A fita estava cortada em várias fileiras de quadrados abertos e podia deslizar para cima e para baixo ou fixar-se em qualquer ponto. Presa à moldura por um cordel, havia uma peça de aço de feitio de um lápis, que Mary disse ser um estilete.
— Como a usa? — quis saber Pa.
— Olhe, vou-lhe mostrar — disse Mary.
Todos olhavam quando colocou uma folha de papel grosso cor de creme sobre a lousa, por baixo da fita deslizante. Moveu a fita para o alto da moldura, prendendo-a ali. A seguir, com a ponta do estilete, apertava rapidamente aqui é ali, nos cantos dos quadrados abertos.
— Pronto! — disse, retirando a folha de papel e virando. Onde o estilete fora apertado, havia uma pequena saliência que poderia ser facilmente sentida com os dedos. As saliências formavam diferentes desenhos, do tamanho dos quadrados, e eram as letras do alfabeto Braille.
— Estou escrevendo a Blanche para lhe dizer que passo bem em casa — disse Mary. — Preciso escrever também à minha professora. — Virou o papel, colocou-o de novo na moldura e puxou a fita móvel para baixo, pronta para escrever no espaço não utilizado. — Vou terminá-la mais tarde.
— É maravilhoso que possa escrever às suas amigas e que elas leiam suas cartas — disse Ma. — Custa-me acreditar que você esteja recebendo no colégio a educação que sempre lhe quisemos dar.
Laura, de tão contente, também sentiu vontade de chorar.
— Bem, bem — interrompeu Pa. — Aqui estamos tagarelando e Mary deve ter fome e é hora de trabalhar. Vamos às nossas tarefas agora e depois teremos muito tempo para conversar.
— Tem razão, Charles — concordou logo a mãe. — O jantar ficará pronto quando tiverem acabado.
Pa foi cuidar dos cavalos, Laura apressou-se a tirar o leite e Carrie fez um fogo rápido para cozer os biscoitos, enquanto Ma misturava a massa.
O jantar estava pronto quando Pa voltou do estábulo e Laura acabou de coar o leite.
Era uma família feliz,'reunida de novo, comendo as batatas picadas e coradas, os ovos escalfados e os deliciosos biscoitos com a boa manteiga de Ma. Pa e Ma tomaram seu aromático chá, mas Mary tomou leite com as outras meninas.
— É uma delícia, no colégio não temos leite tão bom — disse.
Havia tanto que perguntar e contar que quase não acabavam o que diziam, mas no dia seguinte haveria mais tempo de estarem com Mary. Era de novo como nos velhos tempos, quando Laura e Mary foram deitar-se como costumavam na cama em que Laura dormira só tanto tempo.
— O tempo está quente — disse Mary — e não porei meus pés frios em cima de você, como costumava fazer.
— Estou tão contente com a sua companhia que não me queixarei — respondeu Laura. — Seria um prazer.
Verão
Foi tão bom ter Mary em casa que os dias de verão não foram bastante longos para tantas alegrias. O tempo passava rápido, ouvindo-se Mary contar episódios de sua vida no colégio, lendo-se alto para que ela ouvisse, fazendo planos e cosendo para pôr suas roupas em ordem, além dos longos passeios em sua companhia ao cair da tarde.
Certo sábado, de manhã, Laura foi à cidade à procura de coisas para o melhor vestido de Mary, do último inverno, pondo-lhe gola e punhos novos. Encontrou exatamente o que queria numa loja de armarinho e vestidos e, enquanto a Senhorita Bell embrulhava o pequeno pacote, disse a Laura:
— Ouvi dizer que você é uma boa costureira. Gostaria que me viesse ajudar. Eu lhe pagarei cinqüenta centavos por dia, das sete às cinco, se trouxer seu almoço.
Laura olhou a loja, nova ê agradável, com os bonitos chapéus nas duas vitrinas, rolos de fita num mostruário de vidro e sedas e veludos nas prateleiras por trás dele. Havia uma máquina de costura com um vestido inacabado posto de través e um outro sobre uma cadeira próxima.
— Veja que há mais trabalho aqui do que posso fazer — disse a Senhorita Bell, com sua voz discreta. A Senhorita Bell era jovem e Laura achou-a formosa em sua elevada estatura, com olhos e cabelos escuros. Pensou que seria agradável trabalhar ali.
— Virei, se minha mãe concordar — prometeu.
— Venha segunda-feira de manhã, se puder — disse a Senhorita Bell.
Laura deixou a loja e subiu a rua até a agência do correio, para enviar uma carta de Mary. Ali encontrou Mary Power, que ia a recado até o pátio de madeiras. Não se viam desde o passeio de carrinho, no começo da primavera, e havia tanto que conversar que Mary pediu a Laura que a acompanhasse.
— Está bem, irei — disse Laura — pois gostaria de perguntar ao Sr. McKee como vão a Sra. McKee e Mattie.
Foram andando devagar, conversando todo o caminho rua acima, atravessando as linhas férreas, cheias de cinza, e a rua poeirenta, até a esquina do pátio de madeiras. E aí se detiveram palestrando.
Uma junta de bois vinha lentamente para a cidade, pela estrada do norte, puxando uma carroça de lenha. Um homem caminhava ao lado do boi que se achava mais afastado e Laura, despreocupada, o viu levantar um longo chicote. Os bois foram, devagar, até quase junto da esquina, quando saltaram de súbito para a frente.
Laura e Mary recuaram. O homem gritou:
— Ooo-aaa! — Mas os bois não viraram à esquerda. Voltaram-se para a direita, dobrando a esquina.
— Eia! Vão aonde quiserem! — gritou o condutor, impaciente mas jocoso. E olhou as moças, que exclamaram ao mesmo tempo:
— Almanzo Wilder.
Ele lhes tirou o chapéu, com um meneio, e se apressou pela rua, atrás dos bois.
— Não o reconheci sem os cavalos — riu Laura.
— E como estava vestido! — comentou desfavoravelmente Mary. — Que roupas grosseiras e que horríveis sapatões!
— Por certo está trabalhando a terra e por isso trouxe os bois. Não usaria Príncipe e Lady num trabalho tão pesado — explicou Laura mais a si mesma do que a Mary Power.
— Todos estão trabalhando — observou Mary. — Ninguém se diverte no verão. Mas Nellie Oleson ainda passeará num carro puxado por aqueles cavalos, se puder. Você sabe que a concessão dos Olesons fica um pouco a leste das concessões dos Wilders.
— Você a tem visto ultimamente?
— Nunca vejo ninguém — respondeu Mary. — Todas as moças estão fora, nas concessões de seus pais, e Cap está sempre guiando sua parelha. Ben Woodworth trabalha no depósito e ninguém arranca uma palavra de Frank Harthorn. Está sempre no armazém, desde que o pai o fez seu sócio. Minnie e Arthur estão fora com sua gente, na sua propriedade, e aqui não tenho visto você desde o princípio de abril.
— Não se importe; vamos estar juntas no próximo inverno. Além disso, irei trabalhar na cidade, se Ma estiver de acordo. — E Laura contou a Mary que pretendia coser para a Senhorita Bell.
De repente, percebeu que o sol estava quase a pino. Deteve-se apenas um instante no escritório do pátio de madeiras, para ouvir do Sr. McKee que a Sra. McKee e Mattie passavam bem, embora sentissem sua falta. Já havia demorado muito na cidade. Mas,' apesar de andar tão depressa que quase corria, o almoço já estava pronto quando chegou a casa.
— Lamento haver demorado tanto, mas muita coisa aconteceu — desculpou-se.
— Sim? — indagou Ma, e Carrie perguntou:
— Que aconteceu?
Laura contou seu encontro com Mary Power e disse ter estado com o Sr. McKee.
— Conversei muito com Mary Power — confessou. — O tempo passou tão depressa que não percebi que era tão tarde.
E contou o resto:
— A Senhorita Bell quer que eu trabalhe para ela, na loja. Posso, Ma?
— Que, Laura! Francamente, não sei — exclamou Ma. — Você acaba de voltar para casa.
— Ela me pagará cinqüenta centavos por dia, das sete às cinco, desde que leve meu almoço — explicou-lhe Laura.
— Assim está bem — disse Pa. — Leve o almoço, mas deve sair uma hora mais cedo.
— Mas você voltou para casa para ficar com Mary — objetou Ma.
— Eu sei, Ma, mas estarei com ela todas as noites e manhãs e todo o dia de domingo — argumentou Laura. — Não sei por que, mas sinto que deveria ganhar alguma coisa.
— É sempre assim, desde que se começa a ganhar — disse Pa,
— Ganharei três dólares por semana — disse Laura. — E verei Mary também. Teremos muito tempo para fazer coisas juntas, não é, Mary?
— Sim. Farei suas tarefas caseiras quando você estiver fora — ofereceu Mary. — E aos domingos daremos nossos passeios.
— Isto me faz lembrar que a nova igreja está concluída — disse Pa. — Devemos ir todos à igreja amanhã de manhã.
— Que bom que eu veja a nova igreja! Custa-me crer que haja uma — disse Mary.
— Lá está ela, sem dúvida — assegurou o pai. — Nós a veremos amanhã.
— E depois de amanhã? — perguntou Laura.
— Sim, pode ir trabalhar com a Senhorita Bell. De qualquer modo, pode experimentar por algum tempo — disse Ma.
Domingo de manhã, Pa atrelou os cavalos ao carro e foram todos à igreja. Era grande e nova, com bancos compridos e cômodos. Mary gostou muito, depois da pequena capela do colégio, mas conheceu pouca gente. Na volta, disse:
— Havia tantos desconhecidos...
— Eles vêm e vão — disse-lhe o pai. — Logo que faço conhecimento com algum recém-chegado, ele vende o direito à sua concessão e vai para o Oeste; ou então a família não pode suportar isto aqui e ele a vende e volta para o Leste. Os poucos que ficam estão tão ocupados que não temos tempo de travar conhecimento.
— Não importa — disse Mary. — Logo voltarei ao colégio e lá conheço todos.
Depois do almoço, terminada a limpeza, Carrie sentou-se a ler o Youth's Companions, Grace foi brincar com os gatinhos na relva limpa, junto à porta. Ma foi descansar na cadeira de balanço, ao lado da janela aberta, e Pa deitou-se para o seu cochilo domingueiro. Então Laura disse:
— Venha, Mary, vamos fazer o nosso passeio. Andaram pela campina, para as bandas do sul e, pelo caminho, as roseiras silvestres mostravam-se floridas. Laura colheu-as até encher os braços de Mary.
— Como é bom! — repetia Mary. — Senti falta das violetas da primavera, mas nada é mais suave que as rosas da campina. É bom estar novamente em casa, Laura, mesmo que não possa ficar muito tempo.
— Temos até meados de agosto — disse Laura. — Mas as rosas não durarão tanto.
— "Colham rosas enquanto puderem" — começou Mary e recitou a poesia para Laura. Então, caminhando juntas ao vento tépido que cheirava a rosas, falou de seus estudos de literatura. — Pretendo escrever um livro, um dia — confidenciou. Depois riu. — Mas eu também pretendia ser professora e você está sendo, por mim. Assim, talvez você escreva o livro.
— Eu escrever um livro? — protestou Laura e disse alegremente: — Serei uma professora solteirona, como a Senhorita Wilder. Escreva você o livro. Vai escrever sobre quê?
Mas Mary alheara-se do assunto de livros. Indagou:
— Onde está esse jovem Wilder, a respeito de quem Ma me escreveu? Parece que andou por aqui algum tempo.
— Penso que anda muito ocupado na sua concessão. Todo mundo anda ocupado — respondeu Laura. Não disse que o vira na cidade. Por algum motivo, que não sabia explicar, evitava falar nisso. Ela e Mary voltaram e se encaminharam, quase sem falar, para casa, levando consigo a fragrância das rosas que sobraçavam.
O verão passou rápido. Nos dias de semana, Laura ia à cidade de manhã cedo, levando sua merendeira. Com freqüência Pa a acompanhava, porque estava trabalhando de carpinteiro nas novas construções que os recém-chegados levantavam. Laura podia ouvir os martelos e serras enquanto cosia continuamente todo o dia, fazendo uma pausa apenas para comer o seu almoço frio ao meio-dia. E voltava muitas vezes com o pai. De quando em quando, sentia uma dor entre os ombros de se curvar sobre o trabalho e que sempre desaparecia durante o caminho. E então vinha a noite feliz em casa.
Ao jantar, contava tudo que vira e ouvira na loja da Senhorita Bell, o pai relatava as notícias que soubera e todos falavam do que acontecia na concessão e em casa: como iam as plantações, como ia Ma com a costura de Mary, quantos ovos Grace descobrira e como a velha galinha pintada escondera o ninho e aparecera com vinte pintos.
Foi à mesa do jantar que Ma lembrou que o dia seguinte seria Quatro de Julho.
— Que vamos fazer a respeito?
— Não sei nada que possamos fazer, Carolina. Não há meio de impedir que amanhã seja Quatro de Julho — gracejou Pa.
— Ora, Charles! — censurou Ma, sorrindo. — Vamos à comemoração?
Houve silêncio em volta da mesa.
— Não posso ouvir quando falam todos ao mesmo tempo — provocou Ma por sua vez. — Se vamos à festa, temos de pensar nisso hoje. Estou tão contente que Mary se ache aqui que esqueci o Quatro de Julho e não há nada preparado para a comemoração.
— Todas as minhas férias são uma festa e isso me parece bastante — disse Mary sossegadamente.
— Tenho ido sempre à cidade e seria uma grande coisa para mim deixar de ir um dia — disse Laura. — Mas há Carrie e Grace.
Pa descansou a faca e o garfo:
— Vou dizer o que devemos fazer, Carolina. Você e as meninas vão preparar um bom almoço. Irei à cidade de manhã e arranjarei alguns doces e fogos de artifício. Faremos o nosso Quatro de Julho aqui mesmo em casa. Que acham?
— Traga muitos doces, Pa! — implorou Grace, e Carrie ajuntou:
— E muitos fogos!
Divertiram-se tanto no dia seguinte que concordaram em que era muito melhor assim do que ir à cidade. Uma vez ou duas, Laura pensou se Almanzo Wilder estaria na cidade com os cavalos castanhos, e a imagem de Nellie Oleson passou-lhe pela mente. Mas, se Almanzo quisesse vê-la de novo, saberia onde ela estava. Não lhe cabia tomar qualquer iniciativa e não pretendia tomá-la.
Cedo demais, o verão acabou. Na última semana de agosto, Mary voltou ao colégio, deixando um vazio em casa. Agora o pai ceifava a aveia e o trigo com sua velha segadeira manual, porque os campos eram ainda tão pequenos que não valeria a pena ter um ceifador. Quando o grão ficou maduro, ele o cortou e reuniu em montes no campo. Estava magro e cansado do pesado trabalho que fizera na cidade e nos campos e inquieto porque a região vinha sendo densamente colonizada.
— Gostaria de ir para o Oeste — disse ele a Ma um dia. — Não há mais espaço para respirar aqui.
— Oh, Charles! Não há espaço com toda essa vasta campina à sua volta? — disse Ma. — Estou cansada de correr ceca e meca... E pensava que estávamos estabelecidos aqui.
— Bem, penso que estamos, Carolina. Não se aflija. São meus pés errantes que estão comichando, penso. De qualquer modo, ainda não ganhei a aposta com o Tio Sam e aqui ficaremos até ganhá-la, para que eu tenha direito a esta concessão.
Laura sabia como ele se sentia, pois via como, da porta aberta onde ele estava, seus olhos azuis contemplavam a campina que se desenrolava para oeste. Deveria permanecer numa região povoada para o bem de todos, do mesmo modo que ela deveria ensinar de novo, embora detestasse ficar encerrada em uma sala de aula.
Amansando os potros
Outubro chegara e os gansos bravos voavam para o sul, quando uma vez mais Pa colocou a mobília no carro e voltaram todos à cidade. Outras pessoas vinham do campo e as carteiras no colégio iam sendo ocupadas.
A maioria dos rapazes não tornaria mais às aulas. Alguns permaneceriam nas concessões. Ben Woodworth trabalhava no depósito, Frank Harthorn no armazém e Cap Garland trabalhava com a sua parelha, carregando feno, carvão ou qualquer outra coisa que lhe pagassem para levar à cidade ou ao campo. Todavia, os bancos escolares não eram suficientes, porque a região se enchia de recém-chegados, que mandavam seus filhos à escola. Os alunos menores aglomeravam-se em um mesmo banco e era certo agora que uma nova escola teria de ser construída antes do próximo inverno.
Um dia, quando Laura e Carrie voltaram da escola, encontraram Ma acompanhada, na sala da frente. O homem era desconhecido, mas Laura pensou lembrar-se da moça que a olhava séria. Ma sorriu e nada disse, por um instante, enquanto Laura e a jovem se miravam.
Então a moça sorriu e Laura a reconheceu. Era a prima Alice que, com Ella e Pedro, haviam passado o Natal na casa de troncos na Grande Floresta. Alice e Mary já eram crescidas e Ella fora a companheira de folguedos de Laura. Agora, dando um beijo de boas-vindas em Alice, perguntou:
— Ella também veio?
— Não. Ella e o marido não puderam vir — explicou Alice. — Mas aqui está um primo que você ainda não conhece, meu marido Arthur Whiting.
Arthur era alto e tinha cabelos e olhos escuros e maneiras agradáveis e Laura o achou simpático, mas embora se houvessem demorado uma semana, ele sempre pareceu um estranho. Alice era tão parecida com Mary que era como se fosse da família e Laura e Carrie vinham correndo da escola para encontrar Alice sentada na ensolarada sala da frente com Ma.
De noite, faziam pipocas e puxa-puxa, ouviam o violino de Pa e tagarelavam interminavelmente sobre os velhos tempos e os planos para o futuro.
O irmão de Arthur, Lee, era o marido de Ella e haviam ocupado concessões vizinhas apenas a 65 quilômetros dali. Pedro viria na primavera.
— Faz muito tempo desde que estivemos juntos na Grande Floresta, mas agora vamo-nos reunindo aqui na campina — disse Alice numa noite.
— Seria bom se sua mãe e seu pai viessem — disse Ma, pensativa.
— Acho que ficarão no leste do Minnesota — explicou Alice. — Só vieram até ali e parecem satisfeitos.
— É curioso — observou Pa — que estejam todos vindo para o Oeste. Isto aqui é como a crista de uma onda, quando o rio está enchendo. Eles vêm e vão, para frente e para trás, mas a maior parte vem sempre para o Oeste.
Alice e Arthur demoraram-se apenas uma semana. Sábado de manhã bem cedo, agasalhados, com ferros de passar aquecidos a seus pés e batatas assadas nos bolsos, partiram, na viagem de 65 quilômetros até sua casa.
— Abrace Ella por mim — disse Laura, despedindo-se de Alice com um outro beijo.
O tempo era magnífico para os passeios de trenó, límpido e abaixo de zero, com neve espessa e sem sinais de nevasca. Mas nesse inverno não houve mais passeios de trenó. Talvez porque os rapazes fizessem trabalhar muito os cavalos toda a semana. Vez por outra, Laura via Almanzo e Cap de longe. Estavam amansando uma parelha de potros de tiro e pareciam muito ocupados.
Um domingo à tarde, Laura viu-os passar várias vezes. Ora Almanzo, ora Cap estavam atados ao trenó, segurando as rédeas com todas as suas forças, enquanto os potros bravos tentavam soltar-se e escapar. Pa ergueu os olhos do jornal, uma vez, e disse:
— Um desses rapazes ainda acaba partindo o pescoço Não há ninguém na cidade que queira amansar essa pare-lha.
Laura escrevia uma carta a Mary. Fez uma pausa e pensou como fora bom que, no Longo Inverno, Almanzo e Cap tivessem enfrentado situações que ninguém mais enfrentara, quando haviam obtido trigo para a população faminta.
Terminou a carta e a dobrava quando bateram à porta. Laura abriu-a e viu Cap Garland que, com um riso a iluminar-lhe todo o rosto, perguntou:
— Gostaria de dar um passeio no trenó puxado pelos potros?
Laura sentiu um aperto no coração. Gostava de Cap, não porém que a convidasse para um passeio de trenó e logo pensou em Mary Power e Almanzo e não soube o que dizer.
Mas Cap continuou:
— Wilder pediu-me que a convidasse porque os potros não podem estar quietos. Virá apanhá-la em um minuto, se quiser.
— Sim, quero! — exclamou Laura. — Estarei pronta. Quer entrar?
— Não, obrigado, vou dizer a ele — replicou Cap.
Laura apressou-se, mas já os potros cabriolavam e batiam as patas, impacientes, quando chegou. Almanzo conteve-os com ambas as mãos e disse, enquanto Laura subia.
— Desculpe se não a posso ajudar.
Logo que ela se sentou, partiram como uma flecha rua abaixo.
Ninguém mais guiava e a rua achava-se livre quando os potros tentaram escapar das rédeas de Almanzo. E lá se foram em disparada até bem longe, pela estrada ao sul da cidade.
Laura, quieta, observava os cascos que voavam e as orelhas deitadas para trás. Era divertido! Lembrava-lhe, fazia muito tempo, quando ela e a prima Lena deixaram que os pôneis negros corressem pela campina. O vento soprava forte e frio em seu rosto e porções de neve saltavam sobre as cobertas. Por fim, os potros agitaram as cabeças, ergueram as orelhas e deixaram que Almanzo guiasse seus passos vivos rumo à cidade.
Olhou-a curioso e indagou:
— Sabe que não há um homem na cidade, exceto Cap Garland, que queira guiar estes potros?
— Meu pai já o disse — replicou Laura.
— Então, por que veio? — quis saber Almanzo.
— Bem, sabia que você poderia guiá-los — disse Laura, surpresa, e perguntou por sua vez:
— Por que não tem guiado Príncipe e Lady?
— Pretendo vender estes potros, mas antes tenho de amansá-los para que puxem carros — explicou Almanzo.
Laura calou-se e os potros de novo tentaram correr. Estavam no rumo de casa e queriam chegar logo. Almanzo teve de usar de toda a sua perícia e força para mantê-los num trote rápido e inquieto. A Rua Principal passou em relâmpago indistinto e, na campina ao norte, Almanzo sossegou os potros e os fez girar e voltar. Laura riu:
— Se isto é amansar, estou satisfeita de ajudar! Pouco mais disseram até que uma hora passou e o sol
começou a descer. Então, prendendo os cavalos para que Laura saltasse ligeira à porta do pai, Almanzo disse:
— Virei buscá-la domingo.
Os potros saltaram e partiram velozes, antes que Laura pudesse responder.
— Tenho receio de deixá-la andar no trenó puxado por aqueles cavalos — disse Ma quando Laura entrou.
Pa ergueu os olhos de seu jornal:
— Parece que Wilder quer vê-la morta. Dir-se-ia que você gostou, pelo modo como seus olhos brilham.
Depois, Almanzo vinha sempre, nas tardes de domingo, buscá-la para passear de trenó. Mas antes, ele e Cap guiavam os potros mais da metade do tempo, para acalmá-los, e nada do que Laura dissesse podia convencer Almanzo a deixá-la embarcar antes que os potros estivessem um pouco cansados.
Houve uma árvore de Natal, aquele ano, na igreja nova. Laura e Carrie lembravam-se de uma árvore de Natal, fazia muito tempo, em Minnesota, mas Grace nunca vira nenhuma. Laura achava que o melhor do Natal era ver o rosto maravilhado de Grace, quando contemplava a árvore de Natal com suas velas brilhando acesas, os saquinhos de filo de cores vivas, cheios de confeitos, e os presentes pendurados em seus ramos.
Mas, enquanto esperava que a boneca de Natal de Grace fosse retirada da árvore, Laura recebeu um embrulho que a surpreendeu tanto que pensou haver engano. Era um pequeno estojo de couro forrado de seda azul. Sobre o encantador azul, luziam, muito brancos, uma escova e um pente de marfim. Laura tornou a olhar o papel do embrulho. Seu nome estava ali claramente escrito, mas não conheceu a letra.
— Quem me teria enviado este presente, Ma? — perguntou.
Pa inclinou-se também para admirá-lo e seus olhos piscaram:
— Não poderia jurar quem o enviou — disse. — Mas uma coisa posso dizer. Vi Almanzo Wilder comprar um estojo igual a este na loja de Bradley.
E sorriu do espanto de Laura.
A Escola Perry
Os primeiros ventos de março sopravam fortes na quinta-feira seguinte, quando Laura voltou da escola. Estava sem fôlego, não de lutar com o vento, mas pela notícia que trazia. Antes que pudesse contá-la, Pa falou:
— Você pode estar pronta para ir para a concessão esta semana?
— Esta semana? — disse Ma, surpresa.
— O distrito de ensino vai construir uma escola na concessão de Perry, ao sul de nossa divisa — disse Pa. — Todos os vizinhos vão ajudar no trabalho, mas querem-me contratar para dirigir o serviço. Devemos estar mudados antes do início das obras e, se formos esta semana, haverá bastante tempo para terminar a escola antes de 1 de abril.
— Podemos ir no dia que você quiser — respondeu Ma.
— Então será depois de amanhã — falou Pa. — E há mais. Perry disse que a direção da escola gostaria que Laura fosse a professora. Que acha, Laura? Terá de obter um novo certificado.
— Ah, como gostaria de ter uma escola tão perto de casa! — disse Laura. E contou a novidade:
— Os exames para professor serão amanhã. O Sr. Owen avisou hoje. Serão na escola, de modo que não haverá aulas amanhã. Espero obter um certificado de segundo grau. —
— E claro que vai obter — encorajou-a decididamente Carrie. — Você sabe sempre as lições.
Laura sentia-se um tanto em dúvida.
— Não terei tempo de rever e estudar. Se passar, será com o que já sei.
— É a melhor maneira — explicou Ma. — Se tentasse estudar às pressas, ficaria confusa. Se obtiver o segundo grau, ficaremos contentes e, se for apenas o terceiro, também ficaremos.
— Vou-me esforçar — foi tudo que Laura pôde prometer.
Na manhã seguinte, partiu só e nervosa para o exame de professor na escola. A sala pareceu estranha e apenas alguns desconhecidos sentavam-se aqui e ali, entre as carteiras vazias. O Sr. Williams estava à mesa, em lugar do Sr. Owen.
As listas de perguntas já se achavam escritas no quadro-negro. O silêncio durou toda a manhã, interrompido somente pelo arranhar das penas e o roçar dos papéis. O Sr. Williams recolhia as provas ao fim de cada hora, estivessem ou não concluídas, e lhes dava as notas na sua mesa.
Laura terminou todas as provas a tempo e naquela tarde, sorrindo, o Sr. Williams lhe entregou um certificado. O seu sorriso lhe revelou, mesmo antes que lesse rapidamente as palavras, que ele escrevera: "Segundo Grau"
Voltou para casa, na realidade, dançando, correndo, rindo, gritando de contentamento. Sem nada dizer, entregou o certificado a Ma e viu que um sorriso lhe iluminou o rosto.
— Bem que eu previra! Eu disse que você obteria— exclamou Carrie com admiração.
— Estava certa de que passaria — elogiou Ma — se não ficasse perturbada no seu primeiro exame público, entre desconhecidos.
— Agora, contarei o resto das boas notícias — disse Pa, sorrindo. — Preferi guardá-las como prêmio para depois do exame. Perry informou que a direção da escola lhe pagará vinte e cinco dólares mensais, por um período de três meses — abril, maio e junho.
Laura quase perdeu a fala. Exclamou apenas:
— Oh! Não esperava... Oh, Pa... será pouco mais de um dólar por dia.
Os olhos azuis de Grace fizeram-se perfeitamente redondos e, com espanto solene, disse:
— Laura vai ficar rica.
Riram todos com tanto gosto que Grace teve de acompanhá-los, sem saber por quê. Quando terminaram, Pa disse:
— Agora, vamos mudar-nos para a concessão e construir a escola.
Assim, nas últimas semanas de março, Laura e Carrie tornaram a ir ã escola, vindas da concessão. O tempo mostrava-se primaveril, a despeito dos ventos de março, e todas as noites, ao voltarem para casa, viam que havia mais trabalho feito na pequena escola que surgia da campina, um pouco ao sul.
Nos últimos dias daquele mês, os Perrys caiaram-na de branco. Nunca se vira uma escolazinha mais linda.
Erguia-se, branca como a neve, sobre o campo verde e as filas de janelas brilhavam ao sol matutino, quando Laura chegou pisando a relva nova e baixa.
O pequeno Clyde Perry, de sete anos, brincava à porta, onde depositara cuidadosamente seu Primeiro Livro. Pôs a chave nova da porta na mão de Laura e disse, solene:
— Meu pai manda-lhe isto.
Internamente, o prédio também era alegre e claro. As paredes de madeira nova estavam limpas e tinham cheiro vivo. O sol entrava pelas janelas que davam para o oriente Cobrindo toda uma parede, havia um quadro-negro, limpo e novo. Ã sua frente achava-se a mesa da professora, envernizada e lisa. Brilhava, cor de mel, à luz do sol, e sobre ela havia um dicionário Webster, tamanho grande.
Em frente à mesa, alinhavam-se três filas de carteiras novas. Seu verniz, cor de mel, combinava com o da mesa da professora. As extremidades das filas externas iam até as paredes. Entre elas, havia espaço para a terceira fila e as duas passagens. Cada fila tinha quatro carteiras.
Laura demorou-se um instante à porta, olhando a sala nova, clara e de bom gosto. Depois foi até sua mesa, pôs a merendeira no chão, por baixo dela, e pendurou o seu gorro de verão em um gancho à parede.
Um pequeno relógio batia ao lado do dicionário e os ponteiros marcavam nove horas. Deveriam ter-lhe dado corda na véspera à noite, pensou Laura. Nada poderia ser mais completo e perfeito que aquela linda escolazinha.
Ouviu vozes de crianças à porta e foi chamar os alunos para a aula.
Além de Clyde, havia dois outros, um menino e uma menina que disseram pertencer à família Johnson. Estavam ambos no Segundo Livro. Eram esses os alunos da escola. No restante do período, não vieram mais crianças.
Laura achava que não estava merecendo os vinte e cinco dólares por mês, ensinando apenas a três crianças. Mas quando o disse em casa, o pai respondeu que essas três tinham tanto direito à escola quanto teria uma dúzia e que ela deveria receber pelo tempo que gastava ensinando.
— Mas, Pa — protestou. — Vinte e cinco dólares por mês!
— Não se preocupe — respondeu-lhe. — Estão satisfeitos de a terem a esse preço. As escolas maiores pagam trinta dólares.
Deveria estar certo, desde que Pa o dizia. Laura contentava-se procurando dar a cada pequeno aluno o melhor ensino de que era capaz. Aprendiam com facilidade. Além de leitura e ortografia, ensinava a escrever palavras e números e a somar e subtrair. Orgulhava-se do seu progresso.
Nunca se sentira tão feliz como naquela primavera. Nas manhãs doces e frescas, caminhava até a escola, passando pela pequena depressão de terreno cheia de violetas azuis que perfumavam o ar. Os alunos também se mostravam felizes, bons como ouro, desejosos e prontos em aprender. Tinham tanto cuidado quanto ela em não afetar ou manchar a limpeza de sua escola, nova e luzente.
Laura levava seus próprios livros e, enquanto os pequenos alunos estudavam em suas carteiras, entre a tomada das lições, ela se aplicava ao estudo, à sua mesa, com a ajuda do dicionário grande. No recreio e no intervalo maior do meio-dia, fazia renda enquanto as crianças brincavam. E percebia sempre as sombras das nuvens, seguindo-se umas às outras lá fora onde as cotovias e os geômis saltavam rápidos à cata de alimento.
Ao fim de mais um dia feliz, caminhava de volta a casa, passando pela pequena depressão onde as violetas vicejavam, espalhando sua fragrância pela atmosfera.
Às vezes, nos domingos, Laura caminhava para o poente, atravessando a campina, até a casa do Reverendo Brown, na sua concessão. Eram uns bons dois quilômetros e ela e Ida sempre os tornavam mais longos, indo até o ponto mais alto da elevação do terreno, além da casa. De lá, avistavam as colinas Wessington, a quase cem quilômetros, como uma nuvem azul no horizonte.
— São tão lindas que tenho vontade de ir até lá — disse Laura uma vez.
— Não sei — replicou Ida. — Quando chegar lá, verá que são apenas colinas, cobertas de erva-de-búfalo comum, como esta.
E deu um pontapé num molho de capim em que o verde da primavera surgia entre as folhas mortas do ano anterior.
De certo modo, era verdade; mas, de outro não era. Laura não sabia dizer o que sentia. Todavia, parecia-lhe que as colinas Wessington eram mais que elevações cobertas de erva. Seu contorno esmaecido atraía-a com o apelo dos lugares distantes. Eram a essência do seu sonho.
Voltando a casa, no fim da tarde, Laura ainda pensava nas colinas Wessington e em como era misteriosa sua sombra vaga sobre o céu azul, lá longe, além de quilômetros e quilômetros de campina verde e ondulante. Gostaria de caminhar sempre e sempre todos esses quilômetros e ver o que estaria além.
Era assim que o pai se sentia quanto ao Oeste, Laura bem sabia. Sabia também que, como ele, deveria contentar-se de ficar onde estava, ajudando em casa e ensinando na escola.
Naquela noite, o pai lhe perguntou o que pretendia fazer com seu ordenado de professora, quando o recebesse.
— Ora — disse Laura — será para o senhor e Ma.
— Bem, vou dizer o que tenho pensado — falou o pai. — Compraremos um órgão, para que Mary o toque quando estiver em casa e não esqueça a música que está aprendendo no colégio. E também serviria para vocês, meninas. Uma família, na cidade, está vendendo suas coisas para voltar ao Leste. E também vende um órgão. Poderei obtê-lo por cem dólares. É um bom órgão. Experimentei-o para saber. Se você der o seu dinheiro da escola, poderei conseguir os outros vinte e cinco dólares. Vou construir mais um compartimento nesta casa e teremos lugar para colocá-lo.
— Ajudarei com prazer a comprar o órgão — disse Laura. — Mas só receberei os setenta e cinco dólares quando terminar meu período escolar.
— Laura — interrompeu a mãe — você deve pensar em ter alguma roupa. Os seus vestidos de algodão estão muito bons para a escola, mas precisa de um vestido novo para o verão. O seu vestido de linho do ano atrasado não pode mais ter a bainha arriada.
— Bem sei, Ma, mas pense no órgão — disse Laura. — E acho que poderei trabalhar ainda para a Senhorita Bell e ganhar com que comprar algumas roupas. O pior é que ainda não recebi o dinheiro da escola.
— Mas é certo que vai receber — disse Pa. — Quer mesmo comprar um órgão com ele?
— Oh, sim! — disse-lhe Laura. — É o que mais desejo: um órgão que Mary possa tocar quando vier.
— Então está decidido — disse o pai, feliz. — Pagarei os vinte e cinco dólares adiantados e essa família me abrirá crédito pelo restante, até que você receba. Já estou com vontade de comemorar! Traga meu violino, Canarinho, e teremos um pouco de música, mesmo sem o órgão.
E, sentados todos ao doce crepúsculo da primavera, Pa tocou e cantou jovialmente.
A obscuridade crescia. A terra achatava-se nas trevas e no ar transparente as estrelas brilhavam grandes e baixas, enquanto o violino cantava sozinho uma canção extravagante.
Então o pai disse:
— Esta é para vocês, meninas.
E docemente cantou, com o violino:
"Os anos dourados passam,
Dourados anos, felizes.
Nas asas do tempo passam,
Dourados anos, felizes.
Agarre-os enquanto passam,
Na lembrança tão felizes,
São tão belos quando passam,
Dourados anos, felizes!"
Laura estava emocionada, e a música, como que flutuando, perdia-se na noite primaveril, sob as estrelas.
O vestido de popelina marrom
Agora que Ma falara de suas roupas, Laura viu que tinha de cuidar delas. E sábado de manhã cedo foi à cidade procurar a Senhorita Bell.
— De fato, gostaria de ter a sua ajuda — disse a Senhorita Bell. — Tenho estado em dificuldades para manter-me em dia com o serviço, porque agora há muita gente nova na cidade. Pensei que estivesse ensinando na escola.
— Menos aos sábados — riu Laura. — A partir de julho, poderei trabalhar a semana toda, se quiser.
E assim, aos sábados, cosia o dia inteiro para a Senhorita Bell. Antes que o seu período escolar terminasse, pôde comprar dez metros de um belo pano de popelina marrom que a Senhorita Bell encomendara em Chicago. E todas as noites, em casa, havia sempre algo novo a ver, pois Ma costurava o seu vestido de popelina marrom e Pa construía a nova sala para o órgão.
Construía-a do lado leste da casa, com uma porta que abria para o norte, em direção à cidade, e janelas nas paredes leste e sul. Sob a janela sul, fez um assento baixo, bastante largo para que uma pessoa pudesse dormir ali, o que permitiria que também fosse usado como uma cama a mais.
Uma noite, quando Lauta chegou, a nova sala estava pronta. Pa trouxera o órgão, que ficara junto à parede norte, ao lado da porta. Era um belo órgão de nogueira polida e a parte traseira era mais elevada. Seu dossel saliente, de madeira lustrosa, quase chegava ao teto. Abaixo dele, três pequenos espelhos de vidro grosso encaixavam na rica nogueira e de cada lado da estante para as músicas havia uma sólida prateleira para os candeeiros. A estante de músicas era inclinada e aberta em volutas e coberta de pano vermelho. Erguia-se sobre dobradiças, mostrando por trás um compartimento para guardar músicas. Abaixo, a tampa comprida e lisa dobrava-se, encaixando-se no móvel, ou então desdobrava-se e descia, cobrindo a fileira de teclas negras e brancas. Acima delas estava uma série de chaves marcadas com as palavras "tremolo", "forte" e outras, que mudavam o som do órgão quando puxadas. Sob o teclado havia duas alavancas que se dobravam sobre o móvel ou se abriam, de modo que os joelhos do executante pudessem manobrá-las. Empurradas para fora, tornavam a música mais forte. E junto do chão havia dois pedais inclinados e almofadados, que os pés do executante deveriam apertar para baixo e deixar subir, fazendo entrar ar no órgão.
Havia ainda um tamborete de nogueira, com um assento redondo sobre quatro pés curvos. Grace entusiasmou-se tanto com o banco que Laura mal podia olhar o órgão.
— Veja, Laura, veja! — dizia Grace e sentava-se sobre o banco e rodava. O assento do banco girava sobre um parafuso e subia e descia quando Grace rodava.
— Não devemos mais dizer que esta é uma cabana de concessão — disse a mãe. — Agora é uma casa de verdade, com quatro compartimentos.
Prendera às janelas cortinas de musselina branca com bainhas de renda branca. A cômoda preta estava no canto ao lado da janela sul e a prateleira de madeira entalhada, com a pasto ra de porcelana, estava presa à parede leste. As duas confortáveis cadeiras de balanço ficaram aos lados da janela leste e almofadas de retalhos de cores vivas achavam-se espalhadas no assento de madeira sob a janela sul.
— Que lugar agradável para se costurar! — disse Ma, contemplando a nova sala de estar com um sorriso feliz. — Agora, apressarei seu vestido, Laura. Talvez possa terminá-lo domingo.
— Não há pressa — falou Laura. — Não pretendo usá-lo enquanto não tiver meu chapéu novo. A Senhorita Bell está fazendo o chapéu tal como eu queria, mas terei de trabalhar mais dois sábados para pagá-lo.
— Então, que acha do seu órgão, Laura? — perguntou Pa, ao chegar da estrebaria. No outro compartimento, que agora era só a cozinha, Carrie passava o leite.
— Valha-me Deus, Grace! — exclamou Ma, quando Grace e o banco do órgão caíram ao chão com estrondo. Grace sentou-se, muito assustada para falar, e até Laura ficou horrorizada, pois o banco se desfizera em duas partes. O pai riu.
— Não faz mal, Grace — disse ele. — Você desaparafusou o assento. Mas agora — continuou severo — deixe o banco em paz.
— Sim, Pa — prometeu ela, tentando pôr-se de pé. Ainda estava tonta. Laura ergueu-a e a manteve firme e procurou dizer ao pai quanto lhe agradara o órgão. Era-lhe difícil esperar até que Mary chegasse para tocá-lo, enquanto o pai tocava o seu violino.
Ao jantar, Ma repetiu que aquela não era mais uma cabana de concessão. A cozinha tornara-se muito espaçosa, tendo apenas o fogão, o armário, a mesa e as cadeiras.
— E isto também não será uma concessão, daqui a dois anos — lembrou o pai. — Mais dezoito meses e poderei ter o título. A terra será nossa.
— Não esqueci, Charles — esclareceu Ma. — Sentir-me-ei orgulhosa quando recebermos a patente do governo. Mais razão para dizer, de ora em diante, que isto é uma casa.
— E no ano que vem, se tudo correr bem, vou revesti-la e pintá-la — prometeu o pai a si mesmo.
Quando Laura voltou para casa no sábado seguinte, trouxe o seu chapéu novo, afinal. Trazia-o com cuidado, bem envolvido em papel para protegê-lo da poeira.
— A Senhorita Bell disse que era melhor que eu o trouxesse, antes que alguém o visse e desejasse — explicou. — Disse que poderei trabalhar depois para pagá-lo.
— Pode usá-lo quando for à igreja amanhã — disse-lhe Ma. —Já terminei seu vestido.
O vestido de popelina marrom estava estendido sobre a cama de Laura, bem passado e à vista, para que ela o admirasse.
— Deixe ver o chapéu também — pediu Carrie, depois que se encantaram com o vestido, mas Laura não o quis desembrulhar.
— Agora, não — recusou. — Não quero que o vejam enquanto não o puser, com o vestido.
Na manhã seguinte, estavam todos cedo de pé, para terem tempo de se prepararem para a igreja. A manhã estava fresca e clara. As cotovias cantavam e a luz do sol absorvia o orvalho da relva. Já pronta, no seu vestido domingueiro de cambraia engomada e com as fitas no cabelo, Carrie, sentada com cuidado à sua cama, observava Laura que se vestia.
— Que lindo cabelo tem você, Laura — disse.
— Não é dourado como o de Mary — respondeu Laura. Mas era belo quando o escovava à luz do sol. Era fino, mas muito abundante e tão longo que se desdobrava, rebrilhando em tons castanhos até abaixo dos joelhos. Com a escova, alisou-o para trás, macio como cetim, enrolou-o e prendeu com grampos as trancas. Depois, tirou os frisadores de suas franjas e ajeitou com cuidado a massa anelada. Calçou as meias de renda branca e abotoou os sapatos pretos, altos e bem engraxados.
Então, cautelosamente, sobre as saias de baixo, colocou as anquinhas. Gostava dessas anquinhas novas. Eram a última moda no Leste e as primeiras que a Senhorita Bell recebera. Em vez de arames, tinham cadarços largos cruzando a parte dianteira, quase até os joelhos, sustentando as saias, de modo que o vestido caísse liso. Os cadarços mantinham no lugar, na parte traseira, a armação de arame, que era ajustável. Curtos pedaços de cadarço estavam presos de cada lado, unidos por uma fivela, sob a armação, para fazê-la mais ou menos saliente. Também podiam ser reunidos na frente, baixando a armação, nas costas, para que o vestido descesse em curva suave. Laura não gostava de armação grande e prendeu os cadarços na frente.
A seguir, com cuidado, abotoou sobre as outras a sua melhor saia de baixo e, por cima de todas as saias engomadas, vestiu a saia do seu vestido novo. Era de cambraia marrom e nesgada de forma a abrir-se gradualmente sobre as anquinhas. Embaixo, quase junto ao chão, havia um debrum de trinta centímetros de largura, de popelina marrom, preso por uma tira de seda marrom, lisa de uns três centímetros de largura. A popelina não era lisa, mas entremeada de renda de seda.
Sobre essa saia e o corpinho de seda branca engomada, Laura vestiu a polonaise. As mangas longas e lisas ajustavam-se perfeitamente a seus braços até os punhos, onde uma bainha de seda lisa as terminava. A gola era alta, com uma bainha de seda lisa em volta do pescoço. A polonaise era justa e abotoava pela frente, com pequenos botões redondos, cobertos de seda lisa. Abaixo das cadeiras, alargava-se e caía em pregas, indo até o debrum da saia, onde terminava por uma bainha de seda lisa.
Em volta da gola de seda marrom, Laura enrolou a echarpe de cinco centímetros de largura, prendendo-a à frente com o broche de pérolas que Ma lhe dera. As pontas da echarpe caíam até a cintura.
Então, Laura desembrulhou o chapéu. Carrie suspirou deleitada quando o viu.
Era de palha rústica, verde-cinza, do feitio de um boné, com a pala projetada para a frente. Cobria inteiramente a cabeça de Laura e cercava-lhe o rosto uma aba que se abria como a boca de um sino. Era forrado de seda azul, franzida. Fitas largas de seda da mesma cor uniam-se por um laço sob a orelha esquerda e mantinham firmemente o chapéu em sua posição à cabeça.
O azul do forro e a echarpe azul casavam-se perfeitamente com o azul dos olhos de Laura.
Pa, Ma e Grace estavam prontos para a igreja quando ela saiu do quarto, seguida por Carrie. Pa olhou-a do alto da cabeça ao debrum da saia, onde as biqueiras pretas espreitavam, e falou:
— Dizem que belas penas fazem belos pássaros, mas eu digo que foi um belo pássaro que criou essas penas.
Laura ficou tão contente que não pôde falar.
— Você está muito bem — elogiou a mãe — mas lembre-se de que parece bem quem se porta bem.
— Sim, Ma — respondeu Laura.
— Que chapéu engraçado! — exclamou Grace.
— Não é um chapéu, é um boné — explicou Laura. Então Carrie disse:
— Quando eu for moça, vou ganhar dinheiro para poder ter um vestido igualzinho a esse.
— Decerto terá um mais bonito — respondeu Laura. Mas surpreendeu-se. Não havia pensado que já era uma moça. E é claro que já era, com o seu penteado e a saia que quase tocava o chão. Não sabia bem se gostava de ser uma moça.
— Vamos — disse o pai — a parelha está à espera e chegaremos atrasados à igreja, se não nos apressarmos.
O dia estava tão agradável e luminoso que Laura detestou estar na igreja, sentada, e o longo sermão do Reverendo Brown pareceu ainda mais insípido que de costume. A relva da campina mostrava-se verde pelas janelas abertas e o vento brando atraía-a, acariciando-lhe suavemente as faces. Parecia que deveria haver mais alguma coisa em um dia como aquele do que ir à igreja e voltar para casa.
Ma, Carrie e Grace puseram logo os vestidos comuns mas Laura não o quis fazer. Pediu:
— Posso ficar com o meu vestido de domingo, Ma? Porei o avental grande e terei muito cuidado.
— Pode, se quer — permitiu Ma. — Nada acontecerá ao seu vestido, se tiver cuidado.
Depois do almoço e de lavar a louça, Laura vagueou inquieta fora de casa. O céu mostrava-se intensamente azul, as nuvens acumulavam-se, cor de pérola, e a terra estendia-se, verde, em todos os sentidos. Em volta da casa, os alamos novos cresciam em fila; os pequenos renovos que Pa plantara tinham agora o dobro da altura de Laura, espraiando os ramos delgados e as folhas sussurrantes. Lançavam uma sombra movediça a que Laura se acolhia, contemplando a leste, ao sul e a oeste o dia encantador e vazio.
Olhava na direção da cidade e, enquanto olhava, um carrinho passou correndo pelo canto da cavalariça de aluguel de Pearson e avançou pela estrada para o Grande Pântano. O carrinho era novo, pois o sol cintilava e rebrilhava de suas rodas e de sua coberta. Os cavalos eram castanhos e trotavam com passo regular. Seriam os potros que ela ajudara a amansar? Certo que eram. E quando se voltaram na sua direção e atravessaram o atoleiro, viu que eram guiados por Almanzo. Vieram trotando e o carrinho parou a seu lado.
— Gostaria de dar uma volta? — perguntou Almanzo. E, quando o pai apareceu à porta, Laura respondeu da forma costumeira:
— Oh, sim! Estarei pronta em um minuto.
Atou o boné e disse à mãe que iria dar uma volta no carrinho. Os olhos de Carrie brilharam ao fazer Laura parar para lhe segredar, nas pontas dos pés:
— Está contente de não ter mudado o vestido?
— Estou, sim — segredou Laura em resposta. E estava. Sentia-se satisfeita por que o vestido e o chapéu fossem tão bonitos. Cuidadosamente, Almanzo estendeu a cobertura de linho e ela a prendeu bem sob o debrum da saia, para proteger da poeira a popelina marrom. E partiram, ao sol da tarde, na direção do sul, dos lagos Henry e Thompson.
— Gosta do novo carrinho? — indagou Almanzo. Era bonito, preto e luzente e os raios das rodas eram
vermelhos e brilhantes. O assento era largo e, aos lados, lustrosos suportes pretos inclinavam-se para trás com a coberta dobrada. O assento tinha ainda um encosto almofadado. Laura nunca andara antes em uma carruagem tão luxuosa.
— É lindo! — disse Laura, recostando-se comodamente na almofada de couro. — Ainda não tinha andado em um carro com encosto almofadado. O encosto não é tão alto quanto os de madeira, não é?
— Talvez assim seja melhor — disse Almanzo, estendendo o braço sobre a parte superior do encosto. Não estava propriamente abraçando Laura, mas o braço estava junto de seus ombros. Ela os encolheu, mas o braço não se afastou. Então ela se inclinou para a frente e agitou o chicote, sem tirá-lo do seu suporte, junto ao painel. Os potros arrancaram em disparada.
— Oh, diabinho! — exclamou Almanzo, segurando as rédeas com ambas as mãos e firmando os pés. Precisou das duas mãos para conter os potros.
Após algum tempo, os potros mostraram-se mais calmos e sossegados e voltaram a trotar.
— Imagine se tivessem tomado o freio nos dentes? — perguntou Almanzo, indignado.
— Teriam muito aonde correr, antes de chegar ao fim da campina — disse Laura — e não há nenhum obstáculo até lá.
— Assim mesmo! — começou Almanzo, e acrescentou: — Você é independente, não é?
— Sou — disse Laura.
Foram longe aquela tarde, até o lago Henry e deram-lhe a volta. Apenas uma estreita língua de terra o separava do lago Thompson. Entre os dois lençóis d'água, havia largura somente para uma trilha de carroça. Choupos novos e cerejeiras bravas surgiam, delgados, de cada lado, sobre um emaranhado de videiras silvestres. Era fresco ali. O vento soprava sobre a água e, por entre as árvores, podiam ver-se pequenas ondas que se quebravam contra as margens de cada lado.
Almanzo guiava devagar, falando a Laura dos oitenta acres de campos de trigo que ceifara e dos trinta acres de aveia.
— Você sabe, tenho de trabalhar na minha propriedade e na minha concessão de árvores — disse. — Além disso, Cap e eu temos transportado madeira a longas distâncias, nos arredores da cidade, para construir casas e escolas em toda a região. Tive de arranjar um sócio para conseguir dinheiro para este carrinho novo.
— Por que não usa o que tinha? — quis saber sensatamente Laura.
— Troquei-o pelos potros, no último outono — explicou ele. — Sabia que poderia amansá-los com o trenó, no inverno, mas quando chegou a primavera precisei de um carrinho. Se já tivesse, teria vindo vê-la antes.
Conversando, dirigiu o carrinho para fora da língua de terra, dando a volta ao lago Henry e, depois, através da campina, para o norte. Aqui e ali, viam uma nova cabana de concessão. Algumas tinham um estábulo e uma extensão de terra arada nas proximidades.
— Esta região está sendo colonizada depressa — disse Almanzo, quando viraram para oeste, à margem da Lagoa Prateada, rumo à concessão do pai de Laura. — Andamos só sessenta quilômetros e devemos ter visto umas seis casas.
O sol descia no ocidente quando ele a ajudou a saltar do carrinho, à porta de casa.
— Se gosta de passear de carro tanto quanto de trenó, voltarei domingo — disse ele.
— Sim, gosto de andar de carro — respondeu Laura. E de repente, acanhada, correu para casa.
Nellie Oleson
Francamente — dizia Ma — ou tudo ou nada! Por estranha coincidência, na noite de terça-feira, um rapaz que morava em uma concessão vizinha veio convidar Laura para um passeio de carro no domingo seguinte. Quinta-feira à noite, outro rapaz da vizinhança convidou-a para um passeio de carro no mesmo domingo. E quando caminhava de volta a casa, na noite de sábado, um terceiro jovem alcançou-a e a trouxe para casa na sua carroça, convidando-a para andarem a cavalo no dia seguinte.
Naquele domingo, Almanzo e Laura foram no carrinho para o norte, até o lago dos Espíritos, passando pelas duas concessões de Almanzo. Havia uma pequena casa na herdade e na concessão de árvores não havia construções, mas as árvores novas cresciam bem. Plantara-as com cuidado e deveria cultivá-las e tratá-las durante cinco anos, findos os quais poderia fazer prova e tornar-se o dono da terra. As árvores iam muito melhor do que esperara de início, pois, dizia, se elas vingassem nessas campinas, deveriam ter crescido naturalmente ali em tempos passados.
— Os técnicos do governo já planejaram tudo—explicou. — Vão cobrir de árvores estas campinas, desde o Canadá até o Território de Indiana. Está tudo nos mapas, na repartição de terras, onde devem ficar as árvores, e só se obtém concessão desses lotes para plantar árvores. Devem estar certos num ponto: se metade dessas árvores sobreviver, semearão toda a região e a converterão numa floresta, como as do Leste.
— Acha possível? — perguntou Laura, admirada. Não conseguia imaginar aquelas campinas transformadas em florestas, como no Wisconsin.
— Bem, o tempo dirá — respondeu ele. — De qualquer modo, estou fazendo minha parte. Conservarei vivas essas árvores se for possível.
O lago dos Espíritos era belo e selvagem. Almanzo guiou o carrinho até uma praia rochosa onde a água era profunda e as ondas avançavam espumando, impelidas pelo vento, e se erguiam e precipitavam sobre as pedras. Havia ainda uma elevação índia junto do lago dos Espíritos. Diziam que era um cemitério, embora ninguém soubesse o que continha. Altos choupos cresciam e cerejeiras silvestres eram sufocadas pelas videiras-bravas.
De volta, foram à cidade, passando pela concessão de Oleson. Era na divisa, a uns dois quilômetros a leste da herdade de Almanzo. Laura nunca vira antes a casa de Nellie Oleson e teve-lhe um pouco de pena. A casinha era muito pequena, em meio à relva e ao vento. O Sr. Oleson não tinha cavalos, mas apenas uma junta de bois e o sítio não tinha sido melhorado como o de seu pai. Mas Laura mal lhe deitou um rápido olhar, pois não queria estragar o lindo dia, mesmo que fosse só de pensar em Nellie Oleson.
— Adeus, então, até domingo — disse Almanzo, deixando-a à porta de casa. A região toda parecia diferente a Laura, agora que tinha visto os lagos Henry, Thompson e dos Espíritos, com a sua estranha elevação índia. Pensava no que veria no domingo seguinte.
Domingo de tarde, olhando o carrinho que chegava pelo Grande Pântano, viu surpresa que alguém acompanhava Almanzo. E procurou descobrir quem poderia ser ou se talvez ele não pretendesse passear naquele dia.
Quando os cavalos pararam à porta, viu que era Nellie Oleson. Sem esperar que ele falasse, Nellie gritou:
— Venha, Laura! Venha dar uma volta conosco!
— Quer auxílio, Wilder? — perguntou Pa, aproximando-se das cabeças dos potros, e Almanzo lhe agradeceu. De modo que o pai segurou as rédeas, enquanto Almanzo ajudava Laura a subir, estupefacta e surpresa. Nellie afastou-se para dar lugar a Laura e ajudou-a a prender a manta em volta do vestido de popelina marrom.
Quando partiram, Nellie começou a falar. Admirava o carrinho; deixava escapar exclamações sobre os potros; elogiava o modo de guiar de Almanzo; e se excedeu quanto às roupas de Laura.
— Oh! — exclamou. — Laura, seu chapeuzinho é simplesmente notável.
E não esperou resposta. Desejava tanto ver os lagos Henry e Thompson; ouvira falar muito deles; achava que o tempo estava simplesmente notável e que a região era linda; naturalmente sem igualar o Estado de Nova York, mas não se poderia esperar tanto no Oeste, não era verdade?
— Por que está tão calada, Laura? — perguntou e sem parar prosseguiu, rindo muito: — Minha língua não foi feita para estar quieta, foi feita para tagarelar!
Laura sentia dor de cabeça; seus ouvidos vibravam com o contínuo falatório e estava furiosa. Almanzo parecia apreciar o passeio. Pelo menos, parecia divertido.
Foram até os lagos Henry e Thompson. Passaram a estreita língua de terra que os separava. Nellie achava que os lagos eram simplesmente notáveis; gostava de lagos; gostava da água; gostava das árvores e trepadeiras e simplesmente adorava andar de carro nas tardes de domingo; achava que era positivamente notável.
O sói estava baixo quando voltaram e, como a casa de Laura era a mais próxima, pararam ali primeiro.
— Voltarei domingo — disse Almanzo, ajudando-a a descer, e antes que Laura pudesse responder, Nellie chilreou:
— Oh, sim! Viremos buscá-la. Não foi tão bom? Como foi divertido! Até domingo, então. Não esqueça, estaremos aqui. Adeus, Laura, adeus!
Almanzo e Nellie seguiram no carrinho para a cidade.
Toda aquela semana, Laura debateu consigo mesma se iria ou não. Não lhe agradava passear em companhia de Nellie. Por outro lado, se recusasse, Nellie ficaria muito satisfeita; era o que ela queria. Certamente acharia um meio de passear com Almanzo aos domingos.
Laura decidiu acompanhá-los.
No domingo seguinte, o passeio começou quase como o anterior. A língua de Nellie não parava. Estava muito alegre, tagarelando e rindo para Almanzo e quase ignorando Laura. Estava certa de triunfar; sabia que Laura não suportaria muito tempo aquela situação.
— Oh, Manzinho, como você soube amansar tão bem estes potros ariscos! Como os guia maravilhosamente! — repetia, encostando-se ao braço de Almanzo.
Laura curvou-se para prender melhor o guarda-pó a seus pés e, quando se ergueu de novo, descuidadamente deixou que a ponta do guarda-pó flutuasse ao vento forte da campina. Os potros saltaram de um golpe e dispararam.
Nellie pôs-se a gritar, segura ao braço de Almanzo, que precisava muito tê-lo livre naquele instante. Laura calmamente prendeu a ponta do guarda-pó e sentou-se sobre ela. E, quando ela deixou de se agitar atrás deles, os potros logo se acalmaram e voltaram ao trote bem treinado.
— Oh, nunca me assustei tanto, nunca me assustei tanto em minha vida — repetia Nellie, que perdia o fôlego. — Que animais terríveis, os cavalos! — Oh, Manzinho, por que fizeram isso? Não permita mais.
Almanzo olhou Laura de soslaio e nada disse.
— Os cavalos não são perigosos se soubermos entendê-los — observou Laura. — Mas parece que estes não são como os de Nova York.
— Oh, nunca entenderei estes cavalos do Oeste. Os de Nova York são mansos — disse Nellie. E começou a falar de Nova York. Falava como se conhecesse bem. Laura não conhecia o Estado de Nova York, mas sabia que Nellie também não conhecia e que Almanzo conhecia.
Perto da curva que levava a casa, Laura disse:
— Estamos muito próximos do Boasts. Não seria amável fazer-lhes uma visita?
— Se quer... — disse Almanzo, e em vez de virar para oeste, seguiu em frente, para o norte, cruzando a via férrea e a campina além, até a concessão do Sr. Boast. O Sr. e a Sra. Boast vieram até o carrinho.
— Bem, bem, então o carrinho dá para três — disse o Sr. Boast, provocante, enquanto seus olhos negros piscavam. — O assento é mais largo que o do trenó, que foi feito só para dois.
— Os carros são diferentes — explicou Laura.
— Parecem... — começou o Sr. Boast, mas a Sra. Boast interveio:
— Ora, Rob, seria melhor perguntar se não querem saltar e demorar-se um pouco.
— Não podemos demorar — disse Laura. — Paramos apenas um minuto.
— Estamos só dando uma volta — explicou Almanzo.
— E voltaremos daqui — disse Nellie, com autoridade.
Laura disse logo:
— Vamos um pouco além Nunca andei por esta estrada. Há tempo para avançarmos um pouco, Almanzo?
— A estrada é boa e vai direta para o norte — disse o Sr. Boast, rindo com os olhos para Laura. Estava certa de que ele sabia o que se passava em seu pensamento e seus olhos riram para ele em resposta, quando Almanzo fez partir os cavalos e rumaram para o norte. Além da concessão do Sr. Boast, cruzaram um extremo do Pântano que ia da Lagoa Prateada para nordeste. Ali, uma estrada seguia para a cidade, mas estava molhada e lamacenta, como Laura esperava, de modo que continuaram seguindo para o norte.
— Isso é tolo, não tem graça nenhuma. Chamam a isso uma boa estrada — impacientou-se Nellie.
— Até aqui, é boa — disse Laura, tranqüilamente.
— Bem, não viremos por este caminho outra vez — exclamou Nellie bruscamente. Mas logo recobrou sua alegre vivacidade, contando a Almanzo como gostava de passear de carro, para qualquer lugar, com um guia tão bom e uma parelha tão boa.
Uma outra estrada partia para oeste e Almanzo virou a parelha, seguindo-a. A casa de Nellie estava a pouca distância. Quando Almanzo a ajudou a descer à sua porta, ela lhe segurou a mão por um instante e disse-lhe que havia apreciado muito o passeio.
— Iremos por outros lugares domingo que vem, não é, Manzinho?
— Desculpe-me por haver sugerido esse caminho, Nellie, se você não gostou — disse Laura. E Almanzo disse apenas:
— Adeus! — e voltou ao seu lugar, ao lado de Laura.
Estiveram calados algum tempo, enquanto o carrinho rumava para a cidade. Depois, Laura disse:
— Receio tê-lo atrasado para suas tarefas, fazendo-o tomar aquela estrada.
— Não importa — assegurou-lhe ele em resposta. — Os dias e as noites são longos, como de costume, e não tenho vaca para cuidar.
Calaram-se novamente. Laura sentia-se uma companheira insípida, depois do vivo tagarelar de Nellie, mas estava decidida a fazer que Almanzo escolhesse. Não tentaria prendê-lo, mas nenhuma outra a iria afastando pouco a pouco sem que ele percebesse.
Em casa, de volta, os dois de pé, junto do carrinho, Almanzo perguntou:
— Faremos outro passeio domingo?
— Não todos — respondeu Laura. — Se quiser levar Nellie, pode, mas não me venha buscar. Boa-noite.
Entrou mansamente em casa e fechou a porta.
Às vezes, quando ia para a escola, passando pela depressão do terreno, cada vez mais verde com as folhas das violetas e depois azul com seus botões, Laura cismava se Almanzo viria domingo. Às vezes, enquanto os três pequenos alunos estudavam com aplicação, erguia os olhos de seu próprio estudo e via, pelas janelas, as sombras das nuvens que se moviam sobre a relva iluminada e meditava. Se não viesse, não viria. Era só. Restava-lhe apenas aguardar até domingo.
Sábado, foi à cidade e costurou todo o dia para a Senhorita Bell. O pai, em casa, abria o solo coberto de relva, para aumentar o campo de trigo, e coube a Laura passar na agência do correio para saber se havia alguma correspondência. E lá estava uma carta de Mary! Mal pôde esperar até chegar a casa, para que a mãe a lesse, pois diria quando Mary deveria chegar.
Ninguém escrevera a Mary sobre a nova sala de estar e o órgão que a esperava ali. Nunca ninguém tivera uma surpresa como seria a desse órgão para Mary.
— Ma, Ma, uma carta de Mary! — exclamou, entrando precipitadamente.
— Acabarei de fazer o jantar, Ma, leia a carta — disse Carrie. Ma tirou um grampo do cabelo e, abrindo cuidadosamente o envelope, sentou-se para ler a carta. Desdobrou a folha è começou a leitura. E foi como se tudo houvesse escurecido.
Carrie lançou um olhar assustado a Laura que, após um momento, perguntou em voz baixa:
— Que é, Ma?
— Mary não quer vir — disse Ma. E acrescentou logo: — Não é bem isso. Pergunta se pode passar as férias na casa de Blanche. Mexa as batatas, Carrie, para que não assem demais.
Durante todo o jantar, falaram nisso. Ma leu a carta em voz alta. Mary dizia que a casa de Blanche não era longe de Vinton e Blanche insistia em que Mary a visitasse. Sua mãe iria escrever a Ma, convidando Mary, que gostaria de ir, se Pa e Ma concordassem.
— Penso que deve ir — disse Ma. — Será uma novidade e lhe fará bem.
Pa disse:
— Está bem.
E assim ficou decidido. Mary não viria aquele ano.
Mais tarde, Ma disse a Laura que Mary viria para casa, para ficar, quando concluísse o colégio, e talvez não tivesse outra oportunidade de viajar. Era bom que tivesse uma temporada agradável e fizesse muitas amigas novas enquanto fosse moça.
— Terá boas recordações — disse Ma.
Mas, naquele sábado, de noite, Laura sentiu que nada seria mais como antes. Na manhã seguinte, embora o sol brilhasse e as cotovias cantassem, não tinham mais significação. E quando foi à igreja, de carroça, disse a si mesma que andaria de carroça o resto de sua vida. Estava certa, agora, de que Almanzo levaria Nellie Oleson a passear no carrinho, naquele dia.
No entanto, de volta a casa, não tirou o vestido de popelina marrom, pondo sobre ele o avental grande, como fizera antes. O tempo passou devagar, mas finalmente eram duas horas e, olhando à janela, Laura viu os potros que corriam pela estrada, vindos da cidade. Vieram trotando e pararam à porta.
— Gostaria de dar um passeio no carrinho? — indagou Almanzo a Laura, que estava de pé à porta.
— Oh, sim — respondeu. — Estarei pronta em um minuto.
Viu-se ao espelho, rosada e sorridente, ao atar a fita azul sob a orelha esquerda. No carrinho, perguntou:
— Nellie não quis vir?
— Não sei — respondeu Almanzo. Depois de uma pausa, acrescentou, aborrecido: — Ela tem medo de cavalos.
Laura calou-se e ele continuou:
— Da primeira vez, não pretendia trazê-la, mas passei por ela, que caminhava na estrada. Ia a pé até a cidade, visitar alguém, mas disse que preferia passear conosco. Os domingos, em sua casa, são longos e solitários. Tive pena e ela pareceu gostar muito do passeio. Não sabia que vocês não se estimavam.
Laura espantou-se de que um homem que sabia tanto de fazendas e de cavalos soubesse tão pouco de uma moça como Nellie. Mas disse apenas:
— Não, você não sabe porque não esteve na escola conosco. Vou dizer-lhe do que gostaria. Gostaria de convidar Ida a passear.
— Podemos convidá-la um outro dia — concordou Almanzo. — Mas hoje está tão lindo! Seria melhor passearmos nós dois.
Era uma bela tarde. O sol aquecia um pouco forte e Almanzo explicou que os potros estavam tão bem amansados que poderiam até erguer a coberta do carro. Assim, juntos, cada um com uma das mãos, levantaram-na e apertaram as dobradiças dos suportes, para que se conservasse aberta. E seguiram à sua sombra, enquanto o vento entrava brandamente pelos lados abertos.
Depois daquele dia, nada mais se disse sobre o domingo seguinte, mas sempre às duas horas Almanzo chegava pelo canto da estrebaria de aluguel de Pearson e Laura estava pronta quando ele parava à porta. Pa erguia os olhos do jornal, cumprimentava-o com um aceno de cabeça e voltava à sua leitura. E Ma dizia:
— Não fique até muito tarde lá fora, Laura.
Junho chegou e as rosas-silvestres floresciam na campina. Laura e Almanzo colhiam-nas à beira da estrada e enchiam o carrinho de flores cheirosas.
Então, num domingo, às duas horas, não apareceu ninguém no canto da estrebaria de Pearson. Laura não podia imaginar o que teria acontecido, quando subitamente os potros pararam à porta e Ida surgiu no carrinho, rindo alegremente.
Almanzo passara pela casa do Reverendo Brown e persuadira Ida a vir. E, para fazer surpresa, atravessara o Grande Pântano a oeste da estrada da cidade, o que os trouxe às terras do pai de Laura um pouco ao sul da casa. Enquanto Laura olhava para o norte, eles chegavam da direção oposta.
Foram naquele dia até o lago Henry, no mais divertido dos passeios. Os potros conduziram-se lindamente. E se mantiveram quietos quando Ida e Laura encheram os braços de rosas-silvestres, e voltaram ao carrinho. Os cavalos mordiscavam as moitas do caminho, enquanto Almanzo e as moças contemplavam as pequenas ondas que corriam pelas margens dos lagos, de um e de outro lado.
O caminho era tão estreito e baixo que Laura disse:
— Penso que às vezes a água cobre a estrada.
— Não, pelo menos desde que a conheço — respondeu Almanzo. — Mas talvez, há muitos e muitos anos, os dois lagos fossem um só.
Por algum tempo, estiveram sentados quietos e Laura imaginava como deveria ser belo quando os dois lagos eram um só, quando os búfalos e antílopes vagavam pela campina, em torno do grande lago, no qual vinham beber; quando os lobos, os coiotes e as raposas viviam em suas margens e os gansos, cisnes, garças, grous, patos e gaivotas faziam seus ninhos, pescavam e voavam ali, em números incontáveis.
— Por que suspira? — perguntou Almanzo.
— Quem, eu? — admirou-se Laura. — Estava pensando por que os animais selvagens emigram quando os homens chegam. Gostaria que ficassem.
— Muitas pessoas os matam — disse ele.
— Bem sei — respondeu Laura. — Não posso compreender por quê.
— É belo aqui! — disse Ida. — Mas estamos muito longe da casa e prometi a Elmer que o acompanharia à igreja hoje à noite.
Almanzo retesou as rédeas e falou aos potros, e Laura perguntou:
— Quem é Elmer?
— É um rapaz que tem uma concessão perto da nossa e come lá em casa — explicou Ida. — Queria que fosse passear esta tarde, mas preferi acompanhar vocês esta vez. Você ainda não conhece Elmer... McConnell — acrescentou a tempo.
— Há muita gente nova aqui e não posso lembrar-me de todos, mesmo dos que conheço — disse Laura.
— Mary Power está namorando o novo caixeiro do Banco Ruth — contou Ida.
— Mas, Cap! — exclamou Laura. — Que houve com Cap Garland?
— Cap está gostando de uma moça que mora no lado oeste da cidade — explicou Almanzo.
— É pena que não nos reunamos mais — lamentou Laura. — Como eram divertidos os passeios de trenó! Agora, cada um tem seu par.
— Bem — disse Ida — na primavera, os rapazes só pensam em namorar.
— É verdade, é assim — e Laura cantou:
"Oh, assobie que eu virei, rapaz,
Oh, assobie que eu virei, rapaz,
E papai e mamãe não terão paz,
Oh, assobie que eu virei, rapaz."
— Você viria? — perguntou Almanzo.
— Claro que não — respondeu Laura. — É só na canção.
— Será melhor assobiar a Nellie, que virá — provocou Ida, que acrescentou séria: — Mas tem medo destes cavalos. Diz que são perigosos.
Laura riu com vontade:
— Eram um pouco ariscos quando ela passeou conosco.
— Mas não compreendo, são tão mansos! — insistiu Ida.
Laura apenas sorriu e apertou o guarda-pó. E viu que Almanzo a olhava de soslaio, por trás da cabeça de Ida, e então lhe piscou os olhos. Não se importava que ele soubesse que havia assustado os potros de propósito, para afugentar Nellie.
Conversaram e cantaram durante todo o caminho de volta, até chegarem à casa de Laura, e esta, quando os deixou, perguntou:
— Não virá conosco domingo, Ida? Corando, Ida respondeu:
— Gostaria de vir, mas... acho que vou sair com Elmer.
Barnum e Skip
Junho passara e a escola de Laura acabara. O órgão estava pago. Laura aprendeu a tocar alguns acordes, acompanhando o violino de Pa, mas preferia escutar só o violino e, além disso, o órgão era para distrair Mary quando viesse. Uma noite, Pa disse:
— Amanhã é Quatro de Julho. Vocês, meninas, querem ir às festas na cidade?
— Oh, não, vamos fazer como no ano passado — disse Carrie. — Não quero estar na multidão, onde soltam fogos de artifício. Prefiro os nossos fogos, em casa.
— Quero muitos confeitos em casa — votou Grace.
— Wilder virá, com a parelha e o carro, Laura? — indagou Pa.
— Não me disse nada a esse respeito — respondeu Laura. — Mas, de qualquer modo, não tenho vontade de ir às festas.
— A decisão é unânime, Carolina? — quis saber Pa.
— Sim, se você concordar com as meninas — disse Ma, sorrindo a todos. — Prepararei um almoço comemorativo e elas me ajudarão a cozinhá-lo.
Toda a manhã seguinte, estiveram muito ocupadas. Assaram ao forno o pão fresco, um empadão e um bolo de dois ovos. Laura foi à horta e cavou com cuidado os canteiros, com os dedos, para encontrar batatas novas. Conseguiu-as em quantidade suficiente para o almoço, sem estragar as raízes das plantas. Depois, colheu as melhores ervilhas, retirando apenas as vagens mais cheias.
Ma acabou de frigir um franguinho, enquanto cozia as batatas novas, e as ervilhas foram preparadas com creme. O almoço do Quatro de Julho acabara de ficar pronto, faltando somente fazer o chá, quando o pai chegou da cidade. Trouxe limões para os refrescos da tarde e confeitos para o dia todo, depois do almoço.
Entregou os embrulhos a Ma e disse a Laura:
— Vi Almanzo Wilder na cidade, com Cap Garland, atrelando uma nova parelha que comprou. O rapaz errou a vocação; deveria ser domador de leões. Aqueles cavalos são mais bravos que gaviões. Mal podiam controlá-los. Disse que, se você quiser dar uma volta de carro esta tarde, deverá estar pronta para entrar no carrinho logo que ele chegar, porque ele não poderá descer para ajudá-la. Pediu-me que lhe avisasse que há uma outra parelha para amansar.
— Acho que ele quer que você parta o pescoço — disse Ma — mas espero que parta o dele primeiro.
Seu modo era tão diferente do costumeiro que todos a olharam.
— Wilder controlará os cavalos, Carolina. Não se preocupe — disse Pa, confiante. — É um cavaleiro nato.
— Acha mesmo que posso ir? — perguntou Laura.
— Você deve usar seu próprio discernimento, Laura — replicou Ma. — Se seu pai disse que não há perigo, assim deve ser.
Depois de saborearem vagarosamente o delicioso almoço, Ma disse a Laura que deixasse a louça e pusesse seu vestido de popelina, se pretendia ir no carro.
— Farei o serviço — disse Ma.
— Mas a senhora trabalhou toda a manhã — objetou Laura. — Posso lavar a louça e ainda terei tempo de me vestir.
— Nenhuma das duas precisa preocupar-se com os pratos — falou Carrie. — Eu os lavarei e Grace os enxugará. Venha, Grace. Você e eu somos mais velhas que Mary e Laura quando faziam esse serviço.
Laura estava pronta e esperando à porta quando Almanzo chegou. Não vira os cavalos antes. Um era um baio alto, de crinas e cauda negras. O outro era um grande cavalo castanho, com pintas brancas; num dos lados do pescoço, havia uma mancha branca semelhante a um galo. Uma faixa branca na crina castanha lembrava a cauda dessa ave.
Almanzo deteve a sua estranha parelha e Laura caminhou para o carrinho, mas o cavalo castanho empinou-se sobre as patas traseiras e, com as dianteiras, agitava o ar, ao passo que o cavalo baio saltou para a frente. Almanzo afrouxou as rédeas e, quando os cavalos correram, gritou:
— Volto já.
Laura esperou que desse a volta à casa. Quando freou os cavalos, de novo, subiu rápida, mas recuou quando o cavalo pintado empinou-se e o baio saltou.
Pa e Ma estavam junto de Laura. Carrie, de pé à porta, apertava nas mãos o pano de enxugar a louça e Grace olhava, a seu lado. Todos esperaram que Almanzo, outra vez, desse a volta à casa.
Ma falou:
— Seria melhor que você não fosse, Laura. Pa, porém, lhe disse:
— Carolina, não há perigo, Wilder sabe contê-los. Desta vez, quando Almanzo parou os cavalos, manteve-os um pouco de lado, forçando o carrinho para que Laura pudesse ficar entre as rodas.
— Depressa! — disse ele.
Anquinhas e tudo, Laura subiu rapidamente. Com a mão direita segurou os suportes arriados da coberta do carrinho e seu pé direito tocou o estribo e, quando o cavalo pintado empinou e o cavalo baio saltou, pôs o pé esquerdo dentro do carrinho e caiu sobre o assento.
— Estas anquinhas! — resmungou, ajeitando-as dentro do carrinho que corria, e cobriu o vestido de popelina marrom com o guarda-pó.
— Não toque a coberta do carro — disse Almanzo. E ficaram calados. Estava todo ocupado em controlar os cavalos e Laura se fazia pequena a seu lado para não perturbar os movimentos de seus braços, que se contraíram tentando reduzir a marcha dos cavalos.
Foram para o norte, porque os cavalos corriam nesse rumo. Precipitaram-se através da cidade e Laura mal pôde ver uma multidão que se apressou em lhes abrir caminho e o riso de Cap Garland que lhe dava adeus com a mão.
Os cavalos diminuíram a corrida para um trote rápido e Almanzo observou:
— Diziam na cidade que você não viria e Cap garantiu que sim.
— Ele apostou que eu viria? — indagou Laura.
— Eu não apostei, se é isso que você queria saber — respondeu Almanzo. — Não faço apostas sobre uma moça. De qualquer modo, não estava seguro de que você gostaria deste circo que estou dirigindo.
— Onde estão os potros? — inquiriu Laura.
— Vendi-os.
— Mas, Príncipe e Lady... — disse Laura, hesitante. — Não estou criticando estes cavalos. Apenas gostaria de saber o que houve com Príncipe e Lady.
— Nada de mais. Lady teve uma cria e Príncipe não puxa tão bem sem Lady. Recebi uma oferta de trezentos dólares pelos potros, que formam uma boa parelha, bem amansada, e valem seu preço, mas não se está sempre seguro de encontrar um bom preço. Esta parelha custou-me apenas duzentos dólares. É um lucro líquido de cem dólares e creio que poderei vendê-los por mais do que me custaram, quando estiverem amansados. É divertido amansá-los, não acha?
— Sim — respondeu Laura — podemos ensiná-los a serem dóceis.
— Foi o que pensei. A propósito, o pintado chama-se Barnum e o baio é Skip. Não passaremos onde estão fazendo piqueniques. Os fogos de artifício poderiam assustá-los — disse Almanzo.
Os cavalos avançavam quilômetro após quilômetro, em trote rápido, pela estrada que cruzava a campina ampla. Chovera na noite precedente e a água formava poças nas depressões da estrada, mas Barnum e Skip evitavam molhar as patas e saltavam sobre as poças, fazendo o carrinho voar, e nem um pingo caía sobre o chapéu de Laura.
O Quatro de Julho estava quente e Laura se perguntava por que Almanzo não sugeria levantarem a coberta do carrinho, quando ele disse:
— Se levantássemos a coberta, os cavalos se assustariam. Não sei se poderia contê-los. Cap e eu não conseguimos atrelá-los enquanto não baixamos a coberta.
Andaram ao sol e ao vento da campina e nuvens brancas flutuavam no céu azul, acima de suas cabeças. Foram até o lago dos Espíritos, deram-lhe a volta, passaram pela sua extremidade mais afastada e foram além. Depois, por um caminho diferente, voltaram para casa.
— Andamos quase cem quilômetros — disse Almanzo quando se aproximavam. — Penso que os cavalos pararão para que você possa saltar. Não descerei para ajudá-la porque serão capazes de me abandonar.
— Posso saltar sozinha — disse Laura. — Não deixe que os cavalos disparem. Não quer ficar para jantar?
— Gostaria, mas tenho de levar os cavalos à cidade para que Cap me ajude a desatrelá-los. Chegamos. Desça por entre as rodas e não sacuda o carrinho.
Assim tentou fazer Laura, mas não pôde evitar que ele se agitasse um pouco. Barnum empinou, Skip saltou e lá se foram.
Quando Almanzo veio, no domingo seguinte, Laura já sabia como proceder e saltou rápida para o carrinho, da primeira vez que os cavalos pararam.
Estavam no rumo leste e correram nessa direção. Após algum tempo, marcharam mais sossegados e Almanzo guiou-os por um caminho longo até os lagos gêmeos. Velozes, mas sem empinar ou saltar, cruzaram o estreito caminho entre os lagos e trotaram em frente, pela estrada que levava a casa.
— Tenho-os guiado bastante esta semana e penso que estão começando a compreender que será melhor comportarem-se — observou Almanzo.
— Mas não são tão divertidos quando se comportam — queixou-se Laura.
— Acha que não? Bem, então vamos mostrar-lhes para que serve uma coberta de carro. Segure-se!
Mal tendo tempo para fazer a sua parte, Laura segurou a haste dianteira, do seu lado da coberta, ergueu-a, enquanto Almanzo levantava o seu lado. Rápida, empurrou a dobradiça do meio da haste, prendendo-a, como fez Almanzo. A coberta estava erguida e firmemente mantida em seu lugar, exatamente a tempo.
Skip pulou e Laura prendeu a respiração, enquanto Barnum se empinava, subindo cada vez mais e agitando o ar com as patas dianteiras, ao passo que seu dorso enorme recuava, subindo junto do painel do carrinho. Estava cada vez mais próximo e, num outro instante, se abateria sobre o veículo. Então, em um grande salto, Barnum foi descer, muito adiante, pondo-se a correr com Skip. A coberta agitava-se com a rapidez da carreira e o medo fazia-os co rer ainda mais.
Os braços de Almanzo conservavam-se rígidos, segurando as rédeas tensas e retas como fios de arame. Laura encolheu-se em seu canto do assento, prendeu a respiração e fez votos para que não tomassem o freio nos dentes.
Por fim, os animais cansaram e diminuíram a marcha. Almanzo exalou um profundo suspiro e relaxou um pouco:
— Melhor? — sorriu para Laura. Laura riu, trêmula:
— Muito melhor, contanto que os arreios agüentem
— Agüentarão. Mandei-os fazer de encomenda na selaria de Schaub. Todas as correias são de bom couro, com cravos duplos e cosidas com linha encerada. Com o tempo estes cavalos aprenderão a diferença entre correr e fugir — disse, confiante. — Eles eram fujões, bem sabe.
— Eram? — disse Laura, cujo riso ainda era pouco firme.
— Sim e por isso comprei-os tão barato. Podem correr, mas não poderão fugir. Depois de algum tempo, saberão que. não o poderão; deixarão de tentar e serão uma boa parelha.
— A coberta ainda está levantada e ainda os assusta. Como vamos arriá-la?
— Não precisamos arriá-la. Apenas tenha o cuidado de não sacudi-la quando saltar e eu a deixarei levantada.
O momento perigoso, quando subia ou descia do carro, era aquele em que ela ficava entre as rodas. Tinha que ser mais rápida que os cavalos e passar entre as rodas sem se deixar colher por elas.
Quando Almanzo freou os cavalos à sua porta, Laura inclinou-se com muito cuidado sob as hastes da coberta do carrinho, sem tocá-las, e num momento saltou. Suas saias farfalharam e os cavalos saltaram e partiram.
Admirou-se, ao entrar em casa, de sentir os joelhos fracos. Pa voltou-se e olhou-a.
— Finalmente, está a salvo em casa outra vez — disse.
— Não há perigo algum — explicou Laura.
— Não, claro que não, mas mesmo assim eu me sentirei melhor quando os cavalos estiverem mais mansos. Estou supondo que vai sair de novo domingo que vem.
— Creio que sim — respondeu Laura.
No domingo seguinte, os cavalos estavam muito mais dóceis. E esperaram parados que Laura subisse ao carrinho. Mas partiram logo em trote veloz. Os quilômetros passavam fugidos e o pêlo dos cavalos se escurecia de suor.
Almanzo, aos poucos, tentou reduzir-lhes a marcha.
— Mais devagar é melhor, rapazes; não esquentarão tanto — disse-lhes, mas eles se recusaram a diminuir a velocidade. — Ah, bem, se querem correr, não lhes fará mal — acrescentou.
— O calor está terrível — disse Laura, erguendo a franjinha da testa para receber um pouco de ar. O ardor do sol era intenso e singularmente sufocante.
— Podemos levantar a coberta — disse Almanzo, hesitante.
— Não! Não é preciso' — objetou Laura. — Esses pobres animais já estão bastante aquecidos, mesmo sem disparar... quero dizer... sem correr.
— Está quente o suficiente para excitá-los muito — concordou Almanzo. — Não lhes faria mal, mas prefiro não arriscar, se não se importa com o sol.
Com o passar do tempo, os cavalos trotaram mais devagar. Contudo, não caminhavam, mas trotavam com firmeza em frente, até que Laura sugeriu voltarem mais cedo, devido aos prenúncios de mau tempo.
Ventava de todos os quadrantes, em rajadas curtas e quentes, e nuvens de trovoada surgiam a oeste. Almanzo assentiu:
— Parece que vamos ter chuva.
No rumo de casa, os cavalos trotaram mais depressa, mas havia um extenso caminho a percorrer. Redemoinhos fantasmas corriam invisíveis pela campina, levando a relva em pequenos círculos, como se fosse torcida por dedos invisíveis.
— São os demônios da poeira — comentou Almanzo. — Só que não há poeira, apenas relva. Dizem que é sinal certo de ciclones.
As nuvens de trovoada acumulavam-se no ocidente; todo o céu anunciava tormenta. O sol dardejava furiosos raios de luz vermelha através das nuvens escuras, quando Laura chegou a casa. Almanzo apressou-se em chegar à sua concessão e arrumar as coisas antes que a chuva caísse.
Mas a tormenta não veio. A noite desceu, escura e opressiva, mas sem chuva, e Laura dormiu mal. De súbito, despertou ao clarão de um relâmpago. Ma estava de pé, ao lado de sua cama, segurando um candeeiro. Sacudiu o ombro de Laura.
— Depressa, Laura! — disse. — Levante-se, ajude Carrie a apanhar suas roupas e venha! Seu pai diz que não tarda um forte temporal.
Laura e Carrie apanharam suas roupas e seguiram Ma, que segurava Grace, suas roupas e um cobertor e se precipitava para o alçapão da adega, que estava aberto.
— Desçam, meninas, depressa!
Desceram, apressadas, à pequena adega por baixo da cozinha.
— Onde está Pa? — perguntou Laura. Ma soprou o candeeiro.
— Está lá fora, observando a nuvem. Poderá vir num instante, agora que já estamos aqui e não o atrapalhamos.
— Por que soprou o candeeiro, Ma? — perguntou Grace. quase choramingando.
— Vistam as roupas como puderem — disse Ma. — Não precisamos de luz, Grace. Não devemos correr o risco de um incêndio.
Podiam ouvir o rugir do vento, com um som estranho e selvagem. Clarões de relâmpagos cortavam as trevas. A cozinha, lá em cima, iluminava-se por um instante e logo a escuridão se tornava mais negra e parecia comprimir os olhos.
Ma vestiu Grace, enquanto Laura e Carrie, de qualquer jeito, puseram suas roupas. Sentaram-se todas no chão de terra, encostadas à parede de terra, e esperaram.
Laura sabia que estavam mais seguras na adega, mas custava-lhe sofrer a sensação de confinamento subterrâneo. Preferia estar lá fora, ao vento, com o pai, observando a tormenta. O vento rugia. Os raios fustigavam-lhe os olhos bem abertos com golpes de luz e trevas. Em cima, na cozinha, o relógio, pateticamente ignorante da tempestade, bateu uma hora.
Pareceu que muito tempo passara quando a voz de Pa chegou na escuridão:
— Pode subir agora, Carolina. O temporal passou a oeste, entre a nossa casa e as colinas Wessington.
— Oh, Pa, não passou tão perto que atingisse a casa do Reverendo Brown, não foi? — perguntou Laura.
— Não. Duvido que nossa casa agüentasse, se tivesse chegado tão perto — respondeu o pai.
Entorpecidas e geladas por haverem permanecido tanto tempo incomodamente sentadas na adega fria, arrastaram-se cansadas para suas camas.
Durante todo o mês de agosto, o tempo manteve-se quente e houve muitas trovoadas. Várias vezes Ma despertou Laura e Carrie em meio à noite para que se refugiassem na adega, com ela e Grace, enquanto o pai vigiava as nuvens de tormenta. O vento soprava com força terrível, mas sempre em linha reta e o pior passava a oeste.
Embora tivesse medo, nessas terríveis noites, Laura sentia um estranho prazer na força selvagem do vento, na horrível beleza dos raios e no estalar dos trovões.
Mas, de manhã, sentiam-se todos fatigados e de olhos pesados. Pa disse:
— Parece que vamos ter muitas tempestades elétricas. Quando não se transformam em nevascas, no inverno, vêm como ciclones e trovoadas, no verão.
— Nada podemos fazer; portanto, devemos ter a paciência de suportá-las — disse Ma.
Pa ergueu-se da mesa, espreguiçou-se e bocejou:
— Bem, poderei recuperar o sono quando a estação dos ciclones tiver passado. Agora, tenho de ceifar a aveia.
E saiu para seu trabalho.
Estava, uma vez mais, cortando a aveia e o trigo com a sua velha ceifadeira. Uma ceifadeira mecânica custaria mais dinheiro do que poderia pagar e não queria fazer dívidas para comprá-la.
— Fazer uma hipoteca sobre tudo o que se tem, comprar uma máquina de duzentos dólares e ainda pagar dez por cento de juros sobre a dívida arruína um homem — dizia ele. — Esses rapazes imprudentes que se endividem comprando máquinas e retalhando suas terras. Continuarei a deixar que o capim cresça e criarei gado.
Depois que vendera o bezerro grande de Ellen para mandar Mary ao colégio, comprara uma outra vaca. O bezerrinho de Ellen crescera, outros bezerros se criaram e agora tinha seis vacas e novilhas, além dos bezerros daquele ano, de modo que precisava de grande quantidade de capim e feno.
No último domingo de agosto, Almanzo chegou guiando apenas Barnum. O cavalo empinou-se, mas Laura foi rápida e, quando as patas do animal tocaram o chão de novo, ela já se achava segura no assento do carrinho.
Quando Barnum ia quase entrando na cidade e se aquietou a trotar, Almanzo explicou:
— Quero ensiná-lo a puxar sozinho. É tão grande, forte e bem parecido que valerá mais puxando só do que em parelha. Mas precisa perder o costume de saltar.
— É uma beleza — concordou Laura — e acho que é realmente manso. Deixe-me guiá-lo; gostaria de ver se sei.
Almanzo, embora hesitante, entregou-lhe as rédeas.
— Conserve as rédeas tesas — disse. — Não deixe que ele tome a iniciativa.
Laura nunca percebera, antes, que tinha mãos tão pequenas. Sentia-as minúsculas ao segurar as tiras de couro, mas era robusta. Guiou em volta do canto da estrebaria de Pearson e todo o caminho até a Rua Principal, Barnum trotando tão rápido quanto podia.
— Viu que paravam e olhavam? — perguntou Almanzo. — Nunca esperaram ver uma mulher dirigindo este cavalo.
Laura só via Barnum. Cruzando a via férrea e avançando por Poverty Fiat, a parte nova da cidade, foi guiando. Mas sentiu os braços cansados e um pouco além da cidade devolveu as rédeas a Almanzo.
— Depois que descansar os braços, quero guiar novamente — disse-lhe.
— Está bem — prometeu ele. — Pode guiar quanto quiser. Também descansarei meus braços.
Na próxima vez que tomou as rédeas, estas pareciam mais vivas. Sentia, por elas, os movimentos da boca de Barnum. Uma espécie de vibração subia pelas correias até suas mãos.
— Acho que Barnum sabe que estou guiando — disse, surpresa.
— Claro que sabe. E também não puxa com tanta força. Observe-o!
Almanzo tomou as rédeas. Logo ficaram mais tesas e pareciam até esticar.
— Quando sou eu, ele se encosta sobre o freio. Abruptamente, mudou de assunto.
— Sabe que o seu antigo professor, Clewett, vai abrir uma escola de canto?
Laura não sabia. Almanzo acrescentou:
— Gostaria que fosse comigo, se quisesse,
— Gostaria muito — respondeu ela.
— Está combinado. Sexta-feira à noite. Virei buscá-la às sete. — E continuou: — Ele tem de aprender a andar a passo, quando está atrelado. Acho que pensa que, se correr bastante, poderá fugir do carro.
— Dê-me as rédeas de novo — disse Laura. Gostava da sensação do focinho de Barnum que lhe chegava pelas rédeas. Era verdade que não puxava com tanta força quando ela dirigia.
— Ele é realmente manso — repetiu, embora soubesse que fora sempre arisco.
Toda aquela tarde, revezou-se com Almanzo na direção e, antes que parasse para deixá-la descer à porta de casa, ele relembrou:
— Sexta-feira à noite, às sete. Virei guiando só Barnum e esteja pronta porque ele pode querer exibir-se.
Escola de canto
As aulas começaram no dia seguinte, no novo prédio de tijolos da Rua Três, na cidade. Era uma casa de dois andares e havia dois professores. As crianças menores ficavam na sala do andar térreo e as mais crescidas no de cima.
Laura e Carrie estavam na sala do andar superior. Parecia singularmente grande e vazia, sem as crianças mais novas. Todavia, quase todas as carteiras se achavam ocupadas por rapazes e moças que elas não conheciam. Apenas alguns assentos traseiros ficaram vagos e estes seriam ocupados quando o tempo se fizesse mais frio para o trabalho nas fazendas e os rapazes maiores viessem à escola.
No intervalo, Ida e Laura deixaram-se estar de pé junto a uma das janelas, olhando as crianças que brincavam ao ar livre e conversando com Mary Power e Minnie Johnson. Ida e Elmer viriam à escola de canto sexta-feira à noite e também viriam Minnie e seu irmão, Arthur, e Mary Power com o seu novo namorado, Ed.
— Não sei por que Nellie Oleson não vem à escola! — quis saber Laura, e Ida contou:
— Você não sabe? Ela voltou para Nova York.
— Oh, não!
— Sim, voltou para ficar morando com alguns parentes. Sabe o que eu apostaria? Apostaria que vai tagarelar o tempo todo sobre como é maravilhoso aqui no Oeste! — riu Ida. E todas riram.
Sozinha, entre as carteiras vazias, uma das moças permanecia sentada. Era muito loura, alta e esbelta e parecia triste. De repente, Laura imaginou como se deveria sentir. As demais estavam-se divertindo bastante e ela ali se conservava, abandonada e só, tímida e envergonhada, como Laura já se sentira.
— Aquela menina nova parece boa e está só — disse Laura em voz baixa. — Vou falar-lhe.
O nome da desconhecida era Florence Wilkins. Seu pai tinha uma concessão a noroeste da cidade e ela pretendia ser professora. Laura sentou-se a seu lado e conversara apenas um pouco quando as outras vieram da janela e se reuniram à sua volta. Florence não viria à escola de canto porque morava muito longe.
Sexta-feira à noite, Laura ficou pronta exatamente às sete, em seu vestido de popelina marrom e em seu chapéu de veludo marrom, e exatamente às sete Almanzo chegou. Barnum parou e Laura pulou para dentro do carrinho tão rapidamente que Almanzo fez partir o cavalo antes que tivesse tempo de se empinar.
— É a primeira vez — disse Almanzo. —Já não empina tão depressa. Acabará por esquecer.
— Talvez — disse Laura em dúvida. E lembrou: — Abelhas de maio não voam em setembro.
A escola de canto deveria funcionar na igreja e, quando entraram na cidade, Almanzo disse que seria melhor voltarem um pouco mais cedo, antes que os outros saíssem, porque Barnum ficaria excitado com muita gente à volta. Laura replicou:
— Quando achar que é tempo, pode sair e sairei em seguida.
Almanzo prendeu Barnum a um dos postes a isso destinados e se dirigiram à igreja iluminada. Pagou matrícula para dois e comprou um livro de canto. Os demais já se encontravam lá e o Sr. Clewett distribuía os lugares. Fez sentar os baixos em um grupo, os tenores em outro, reunindo também em grupos separados os sopranos e contraltos.
Em seguida, ensinou-lhes os nomes e os valores das notas, as notas sustentadas, as modulações e as pausas e as claves de baixo, tenor e soprano. Depois, deu-lhes um pequeno intervalo e baixos, contraltos, tenores e sopranos se misturaram, falando e rindo, até que o Sr. Clewett recomeçou a aula.
Praticaram escalas, cantando. O Sr. Clewett, a todo instante, dava o tom com o diapasão. Quando todos puderam produzir aproximadamente a mesma nota, começaram a subir e descer a escala, cantando dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó. Cansadas de chegar tão alto, as vozes de bom grado desciam outra vez: dó, si, lá, sol, fá, mi, ré, dó!
Subiam e desciam, subiam e desciam cantando, às vezes destacando as notas, outras vezes não, mas sempre com entusiasmo. Laura sentara-se na ponta de um banco e esperava o sinal de Almanzo. Quando, sem rumor, ele se dirigiu à porta, ela escapuliu e seguiu-o.
Caminhando apressados para o carrinho, ele disse:
— Vou ajudá-la a subir antes de desamarrá-lo. Provavelmente, empinará logo que estiver desamarrado, mas não antes, se você não esticar as rédeas. Segure-as bem, mas não se mova até que ele salte. Tentarei subir antes que tenha acabado de dar o salto mas, se não puder, você deve guiá-lo. Deixe-o correr, mas não o deixe tomar o freio. Guie-o em volta da igreja e passe por mim de novo. Não tenha medo. Você pode guiá-lo. Tem de guiá-lo, bem sabe.
Nunca o dirigira na hora de partir, pensou Laura, mas nada disse. Subindo rapidamente ao carrinho, segurou as rédeas onde estavam, atravessadas no painel. Agarrou-as com firmeza, mas sem movê-las.
Junto do poste, Almanzo desatou Barnum. Logo que sentiu livre a cabeça, Barnum empinou-se, cada vez subindo mais, sobre as patas traseiras, e logo voltou novamente ao chão e disparou, antes que Laura pudesse tomar fôlego. As rodas do carrinho saltaram e bateram no chão, com um arranco.
Laura segurou com firmeza as rédeas. Barnum corria para a campina, além da igreja. Foi puxando continuamente, cada vez com mais força no braço direito que no esquerdo, e para alegria sua Barnum virou para o lado direito. Deu a volta velozmente, em um belo círculo. A igreja girava no centro e, à medida que os lados do prédio se apresentavam, Laura passou a puxar ambas as rédeas igualmente. Mas Barnum não parou. Passaram como um raio por Almanzo, ainda de pé junto do poste.
Com o primeiro salto de Barnum, o coração de Laura também saltou para a sua garganta, quase a sufocando. Agora estavam outra vez na campina. Puxou firmemente a rédea da mão direita e, de novo, Barnum voltou. Velozmente, o lado oposto da igreja voltava-se para ela e Laura puxou ambas as rédeas. Barnum quase parou mas, empinando-se e atirando-se para a frente, disparou novamente.
Desta vez, o coração de Laura não saiu do lugar. Puxou o braço direito e Barnum fez um círculo pronunciado. Passaram em volta da igreja e Laura levantou-se um pouco no assento, puxou com todo o seu peso e Barnum parou. Empinou-se logo, saltou e partiu.
Muito bem, pode correr, pensou Laura. Dominava-o com firmeza. Guiou-o em círculo até a campina e de novo firmou os pés e puxou com toda a força. Desta vez, Almanzo subiu ao carro. Ao fazê-lo, a porta da igreja abriu-se.
Todos os alunos da escola de canto saíram e alguém bradou:
— Precisa de ajuda?
Barnum ergueu-se de pé, desceu e partiu correndo.
As mãos de Almanzo fecharam-se sobre as rédeas, à frente das de Laura e deslizaram para trás, enquanto ela as largava. Ficou contente de as entregar.
— No momento exato — disse ele. — Não conseguiríamos sair se aquela multidão nos cercasse. Foi muito difícil?
Laura tremia. As mãos estavam entorpecidas e custava-lhe impedir que os dentes batessem, de modo que apenas respondeu:
— Oh, não!
Por um segundo ou dois, Almanzo falou a Barnum, que logo começou a trotar. Então Laura disse:
— Barnum não se portou mal. Estava só cansado de ficar parado tanto tempo.
— Estava completamente louco — disse Almanzo. — Da próxima vez, sairemos no intervalo da aula. Vamos agora pelo caminho mais longo; a noite está boa para um passeio.
Dirigiu Barnum para a estrada que cruzava a extremidade oeste do Grande Pântano. O vento soprava brandamente a relva da campina e sobre a terra escura brilhavam miríades de estrelas, grandes e trêmulas.
Barnum trotava sempre, docemente agora, como se também apreciasse o sossego da noite e o brilho das estrelas.
Almanzo disse em voz baixa:
— Nunca vi as estrelas brilharem tanto. E Laura principiou a cantar baixinho:
"Sob a luz dessas estrelas,
Livres vamos vaguear;
Ao sol não há coisas belas
Como estrelas a brilhar."
Barnum parou à porta e ficou quieto enquanto Laura saltava. Almanzo disse:
— Virei domingo à tarde.
— Estarei pronta — respondeu Laura e entrou.
Pa e Ma estavam de pé à sua espera. Ma deu um suspiro de alívio e Pa perguntou:
— Aquele diabo de cavalo do Wilder portou-se bem hoje?
— É realmente um cavalo manso — disse Laura. — E parou para que eu saltasse. Gosto dele.
Ma ficou satisfeita, mas Pa olhou-a fixamente. Não era mentira. Falara a verdade e não poderia dizer-lhes que guiara Barnum. Ficariam preocupados e talvez a proibissem de guiá-lo outra vez. Pretendia dirigir Barnum. Quando ela e Barnum se acostumassem um ao outro, talvez — oh, apenas talvez — pudesse fazê-lo portar-se bem.
No domingo seguinte, Barnum portou-se mal como sempre. Recusou-se a parar e Laura teve de esperar a terceira vez para poder entrar no carrinho. Empinou-se e tentou disparar, puxando com tanta força que, após algum tempo, Almanzo queixou-se:
— Ele está puxando o carro pelo freio e por meus braços.
— Deixe-me experimentar — ofereceu Laura. — Descansará os braços.
— Está bem — concordou Almanzo. — Um minuto só, mas terá de segurar firme.
Soltou as rédeas depois que ela se segurou bem, logo atrás de suas mãos. Os braços de Laura sustentaram a força do puxão de Barnum. A força subia pelas rédeas, com a vibração que ela já sentira antes. Oh, Barnum!, implorou silenciosamente, por favor, não puxe com tanta força, quero tanto guiá-lo.
Barnum sentiu a mudança de condutor e esticou o pescoço um pouco mais, tateando o freio. E começou a trotar mais devagar. Deu a volta à estrebaria de Pearson e começou a andar a passo.
Barnum estava caminhando! Almanzo conservou-se calado e Laura mal respirava. Muito devagar, foi afrouxando as rédeas. Barnum continuou a passo. O cavalo selvagem, o fujão, que nunca fora visto andar a passo quando atrelado a um carro, andou a passo toda a extensão da Rua Principal. Esticou a cabeça duas vezes, apalpando o freio com os dentes e, achando-o a seu gosto, arqueou o pescoço e marchou em frente, a passo, orgulhoso.
Almanzo falou em voz baixa:
— É melhor esticar um pouco as rédeas, para que ele não salte de repente.
— Não — respondeu Laura. — Vou deixar que leve o freio à vontade. Acho que ele gosta assim.
Ao longo da rua, todos paravam e admiravam. Laura não gostava de estar em tanta evidência, mas sentiu que não deveria ficar nervosa; deveria conservar a calma e manter Barnum a passo.
— Gostaria que não olhassem — quase murmurou, olhando sempre em frente as orelhas plácidas de Barnum.
Em voz baixa, Almanzo explicou:
— Esperavam que ele disparasse conosco. Será melhor não aguardar que comece a trotar por conta própria. Retese as rédeas e faça-o trotar. Compreenderá que deve trotar quando você quiser.
— Tome conta dele — ofereceu Laura. Sentia-se um pouco tonta da excitação.
Almanzo tomou as rédeas e, por ordem sua, Barnum passou a trotar.
— Bem, francamente, como conseguiu? — perguntou então. — Tenho procurado fazê-lo andar a passo desde que o comprei. Que fez você?
— Não fiz nada — respondeu Laura. — Ele é mesmo manso.
Durante o resto da tarde, Barnum andou ou trotou conforme lhe mandavam e Almanzo disse:
— Depois disto, será manso como um cordeiro.
Enganava-se. Na noite de sexta-feira, Barnum novamente se recusou a parar, e quando, por fim, Laura entrou no carro, Almanzo lembrou-lhe que deveriam sair da escola de canto no intervalo. Mas, embora Barnum não tivesse permanecido amarrado tanto tempo quanto anteriormente, mostrou-se tão indócil que Laura teve de dar várias voltas à igreja e só conseguiram partir no momento exato em que terminava a aula.
Laura gostava da escola de canto. Começavam cantando as escalas para amaciar a voz. A seguir, o Sr. Clewett lhes ensinou um exercício simples, o primeiro do livro. Deu-lhes repetidamente o tom com o diapasão, até que todas as vozes estivessem em uníssono. Então cantaram:
"Alegre vai nosso barco
Sobre o mar azul brilhante."
Quando souberam cantá-la muito bem, aprenderam outra. Era a canção da relva:
"Em volta da porta aberta,
Sorrindo aos ricos e aos pobres,
Aqui venho, aqui venho,
Crescendo por toda parte."
Depois cantaram rondós:
"Três ratinhos cegos perseguiam
A mulher do fazendeiro
Que cortou os rabinhos
Co'a faca da cozinha
Aos três levados ratinhos."
Os baixos seguiam os tenores, que seguiam os contraltos, que seguiam os sopranos, muitas e muitas vezes, até ficarem tontos e exaustos de tanto rir. Era tão divertido! Laura demorava mais tempo que os outros porque Pa lhe havia ensinado e a Carrie e a Grace a cantar Os Três Ratinhos Cegos havia muito tempo.
Barnum tornou-se tão manso que Laura e Almanzo podiam permanecer até o fim da aula e, no intervalo, ele e outros rapazes tiravam do bolso do casaco sacos de papel listrado contendo confeitos e os ofereciam às moças. Havia balas de hortelã-pimenta com listras cor-de-rosa e brancas e bastões de limão e hortelã e marroio. E, de volta a casa, Laura cantava:
"Que prazer o da criança
Que, traquinas, se balança,
Enchendo a boca de bolo,
Do equador ao pólo,
Mas gosta da disciplina
Que a escola de canto ensina."
— Foi por isso que pensei que você haveria de gostar — disse Almanzo. — Está sempre cantando.
Cada noite, na escola de canto, a classe ia aprendendo novas lições do livro. Na última noite, cantaram a antífona do fim do livro, página cento e quarenta e quatro: Os Céus Proclamam a Glória.
E a escola de canto terminou. Não haveria mais noites tão alegres.
Barnum já não se empinava, nem saltava. Partia rápido, com um pequeno salto, em um trote regular. O ar gelava à aproximação do inverno. As estrelas brilhavam intensamente e pendiam baixas no ar glacial. Contemplando-as, Laura repetiu a antífona:
"Os céus proclamam a glória de Deus,
O firmamento atesta a Sua obra,
Dia após dia a Ele fala,
Noite após noite mostra o Seu saber.
Não há palavras e não há língua
Nas quais a Sua voz não seja ouvida."
Não havia outro ruído, além do ploque-ploque das patas de Barnum, marchando pela estrada ervosa da campina.
— Cante Sob a Luz Dessas Estrelas — pediu Almanzo, e Laura cantou outra vez, suavemente:
"Sob a luz dessas estrelas,
Morre o dia na amplidão,
E o rouxinol canta ao vê-las
À rosa a sua canção.
Na clara noite calmosa,
A brisa ligeira a soprar,
Da nossa casa faustosa
Vamos de leve escapar.
Do mar as ondas tão belas
Vêm junto à costa espumar.
Sob a luz dessas estrelas.
Livres vamos vaguear."
Voltou o silêncio sem que nada o quebrasse e Barnum, por conta própria, tomou o rumo norte, em direção a casa. E Laura disse:
— Cantei para você. Agora, gostaria de saber... em que está pensando?
— Estava pensando... — e Almanzo fez uma pausa. Depois, segurou a mão de Laura, branca à luz das estrelas, e a fechou brandamente em sua mão queimada de sol. Nunca o fizera antes. — Sua mão é tão pequena! — disse ele.
Outra pausa. E, rápido:
— Estava pensando se você gostaria de um anel de noivado.
— Depende de quem o oferecer — explicou Laura.
— Se eu o oferecer? — perguntou Almanzo.
— Dependeria do anel — respondeu Laura e retirou a mão.
Era mais tarde que de costume, quando Almanzo chegou no domingo seguinte.
— Peço desculpas por estar tão atrasado — disse ele, depois que Laura se sentou e o carro partiu.
— Podemos fazer um passeio mais curto.
— Mas devemos ir até o lago Henry. É quase a nossa última oportunidade de colher uvas silvestres, porque o frio chegou — disse Almanzo.
Era uma tarde de sol, quente para a estação. De cada lado do estreito caminho entre os lagos gêmeos, amadureciam uvas silvestres, pendentes das vinhas presas às árvores. Almanzo guiava devagar e, do carrinho, ele e Laura colhiam os cachos de uvas. Saboreavam sua doçura picante, contemplando a água que ondulava ao sol e escutando o sussurrar das pequenas ondas que lambiam as margens.
Quando voltaram, o sol descia incendiando o céu no ocidente. O crepúsculo estendia-se sobre a campina e a brisa vespertina soprava docemente sobre o carrinho.
Guiando com uma das mãos, Almanzo, com a outra, ergueu a de Laura, que sentiu algo frio escorregar pelo seu dedinho, enquanto Almanzo lembrava:
— Você disse que dependeria do anel. Que acha deste?
Laura ergueu a mão à primeira luz da lua nova. O ouro do anel e o seu ornato oval brilhavam à débil radiação lunar. Três pequenas pedras, encastoadas no oval de ouro, tremeluziam.
— A guarnição é uma granada, com uma pérola de cada lado — explicou Almanzo.
— É muito bonito — disse Laura. — Acho que gostaria de tê-lo.
— Então, deixe-o no dedo. É seu. E no próximo verão construirei uma casinha no bosque da concessão de árvores. Terá de ser pequena. Importa-lhe?
— Morei sempre em casas pequenas. Gosto delas — respondeu Laura.
Estavam quase em casa. A luz dos candeeiros saía pelas janelas e Pa tocava violino. Laura conhecia a canção; era uma que ele com freqüência cantava para Ma. Sua voz subia com a música e ele cantava:
"Lindo castelo mandei levantar
Longe, na terra dos sonhos,
E lá, querida, vamos nós morar,
Alegres e risonhos.
Lá seremos tão felizes,
Sim, sempre e sempre felizes.
Do nosso amor o tempo vai marcar,
Pulsando, nossos corações felizes."
Barnum estava quieto e Laura e Almanzo se conservaram de pé, junto do carrinho, enquanto Pa terminava a canção. Laura ergueu o rosto ao tênue luar.
— Pode dar-me um beijo de despedida — disse.
E depois do seu primeiro beijo entrou em casa e Almanzo partiu.
Pa guardava o violino quando Laura entrou. Olhou-lhe a mão onde o anel cintilava à luz do candeeiro.
— Vejo que está decidido — disse. — Almanzo falou-me ontem e acho que está bem.
—— Está certa, Laura? — indagou Ma, mansamente. — Às vezes penso que gosta mais do cavalo que do dono.
— Não poderia obter um sem o outro — respondeu Laura com voz trêmula.
Ma sorriu-lhe, Pa pigarreou sério e Laura sabia que eles compreendiam o que sua timidez impedia de lhes dizer.
Mesmo em casa, Laura sentiu que seu anel chamava a atenção. Envolvia suavemente o seu dedinho e a granada e as pérolas cintilavam sempre à luz. Diversas vezes, a caminho da escola, na manhã seguinte, quase o tirou e prendeu no lenço, por segurança. Mas afinal estava noiva e isso não poderia ficar sempre em segredo.
Não se importou de chegar um pouco atrasada à; escola, naquela manhã. Mal teve tempo de se sentar no seu lugar junto de Ida, quando o Sr. Owen deu o sinal da aula, e logo abriu um livro para assim ocultar a mão direita. Mas, ao começar a estudar, uma cintilação lhe feriu os olhos. A mão direita de Ida descansava sobre a carteira e Laura viu um anel largo, de ouro, no seu dedo. Ergueu os olhos do anel para Ida, que ria, corava e desviava os olhos. E, desobedecendo a uma norma escolar, indagou em voz baixa:
— Elmer? — Ida corou ainda mais e concordou com a cabeça. Então, por baixo do tampo da carteira, Laura mostrou-lhe sua mão direita.
Mary Power, Florence e Minnie mal puderam esperar o intervalo para se aproximarem e admirarem os anéis.
— Mas é pena — disse Mary — porque certamente vocês deixarão a escola, agora.
— Eu não — negou Ida. — De qualquer modo, freqüentarei a escola este inverno.
— Também eu — disse Laura. — Pretendo obter outro certificado na primavera.
— Vão ensinar no verão? — indagou Florence.
— Sim, se conseguir uma escola — replicou Laura.
— Conseguirei uma escola no nosso distrito, se alcançar o certificado — explicou Florence — mas tenho receio dos exames.
— Certamente passará — encorajou-a Laura. — Não é muito difícil, desde que não fique perturbada e esqueça o que sabe.
— Bem, não estou noiva nem pretendo ensinar — falou Mary Power. — E você, Ida? Vai ensinar algum tempo?
Ida riu-se.
— Não, realmente! Nunca desejei ensinar. Prefiro ser dona-de-casa. Para que acham que ganhei este anel?
Todas riram e Minnie perguntou:
— E você, Laura, para que conseguiu o seu? Não quer ser dona-de-casa?
— Sim — respondeu Laura. — Mas Almanzo tem de construí-la primeiro.
O grande sino novo soou na cúpula e o intervalo terminou.
Não havia mais escola de canto, de modo que Laura não esperava ver Almanzo antes de domingo. E ficou surpresa quando o pai lhe perguntou, quarta-feira à noite, se o tinha visto.
— Encontrei-o na oficina cio ferreiro. E ele me disse que iria ver você depois da aula, se pudesse e, caso contrário, pediu para lhe dizer que não teve tempo. Parece que ele e Royal partem domingo para Minnesota. Aconteceu alguma coisa e Royal tem de partir antes do que esperava.
Laura sentiu-se chocada. Sabia que Almanzo e o irmão planejavam passar o inverno com a família, em Minnesota, mas não pretendia partir tão cedo. Era chocante que a rotina dos dias pudesse mudar tão subitamente. Não haveria mais passeios aos domingos.
— Talvez seja melhor assim — disse. — Chegarão a Minnesota antes que a neve caia.
— Sim, provavelmente terão bom tempo na viagem — concordou o pai. — Eu lhe disse que guardaria Lady enquanto estivessem fora. Vai deixar o carrinho aqui e disse que você pode dirigir Lady sempre que quiser, Laura.
— Oh, Laura, você me levara a passear de carro? — pediu Carrie, e Grace exclamou:
— Eu também, Laura, eu também!
Laura prometeu que sim, mas o resto da semana pareceu singularmente vazio. Não percebera, antes, o quanto, no correr da semana, esperava pelos passeios dos domingos.
Cedo, no domingo seguinte, Almanzo e o irmão, Royal, chegaram. Royal guiava sua própria parelha, atrelada à sua carreta. Almanzo dirigia Lady, atrelada sozinha ao seu luzente carrinho de assento com encosto. Pa veio da cavalariça ao seu encontro e Almanzo levou o carrinho para baixo da cobertura de feno. Lá, desatrelou Lady e a levou para a baia.
Depois, deixando Pa e Royal a conversar, dirigiu-se à
porta da cozinha. Não poderia demorar-se — disse a Ma — mas gostaria de ver Laura por um instante.
Ma disse-lhe que fosse à sala de estar e, quando Laura se voltou, depois de ajeitar as almofadas no assento da janela, o anel em sua mão brilhou à luz matinal.
Almanzo sorriu:
— Seu anel novo fica bem em sua mão.
Laura fez girar a mão à luz do sol. O ouro do anel faiscou, a granada luziu com calor no centro da guarnição chata e oval e, de cada lado, as pérolas emitiram seu brilho trêmulo.
— É bonito — disse ela.
— E a mão também é — replicou Almanzo. — E então? Creio que seu pai lhe disse que Royal e eu vamos a nossa casa mais cedo do que esperávamos. Royal decidiu seguir por Iowa, de modo que partiremos agora. Trouxe Lady e o carrinho para cá, para que você os use sempre que quiser.
— Onde está Príncipe? — perguntou Laura.
— Um dos meus vizinhos vai guardá-lo, junto com o potro de Lady, e Cap guardará Barnum e Skip. Precisarei de todos quatro na primavera. — Ouviu-se um assobio agudo que vinha de fora. — Royal está chamando. Dê-me um beijo de despedida — concluiu Almanzo.
Beijaram-se rapidamente e Laura acompanhou-o à porta e ficou a vê-lo partir com Royal, na carreta. Sentia-se abandonada e infeliz. Mas Carrie, a seu lado, perguntou:
— Vai sentir-se solitária? — Carrie falou tão seriamente que Laura sorriu.
— Não, não me sentirei solitária — respondeu com coragem. — Depois do almoço, vamos atrelar Lady e dar um passeio.
Pa entrou e dirigiu-se ao fogão.
— O tempo está ficando tão frio que o fogo faz bem — disse. — Carolina, que acha de permanecermos aqui todo o inverno, em vez de irmos para a cidade? Tenho pensado nisso. Creio que poderei alugar a casa da cidade, este inverno, e se o conseguir, forrarei e revestirei esta casa. Talvez possa pintá-la.
— Seria vantajoso, Charles — disse logo Ma.
— E outra coisa — continuou Pa. — Temos tantas cabeças de gado agora que seria muito penoso o transporte de feno e de forragem. Com esta casa revestida por fora e um bom papel grosso por dentro, ficaremos confortável -mente aqui. Podemos levar o aquecedor de carvão para a sala de estar e armazenar suprimento de carvão para o inverno. A horta dá para encher a adega. Temos morangas e abóboras do nosso campo. Mesmo que o inverno seja mau, poderei ir com freqüência à cidade. Não nos preocuparemos com os alimentos ou com o frio.
— É verdade. Mas, Charles, as meninas têm de ir à escola e será uma caminhada muito longa, no inverno. Se cair uma nevasca...
— Poderei levá-las e trazê-las de carro — prometeu Pa. — São apenas dois quilômetros e seria uma brincadeira, com o trenó sem carga.
— Muito bem — concordou Ma. — Se quer alugar a casa da cidade, ficarei contente aqui. É bom que não tenhamos de mudar.
Assim, antes que a neve caísse, tudo estava confortável na casa da concessão. Com o revestimento novo, a casinha era realmente uma casa e não mais uma cabana. Dentro, papel grosso e cinzento de construção cobria as tábuas de pinho. Haviam-se tornado tão escuras com o tempo que o papel claro alegrava os cômodos. E as cortinas de musselina, brancas e passadas de novo, lhes davam um ar vivo.
Quando chegaram as primeiras neves pesadas, Pa pôs a caixa da carroça sobre os patins do trenó e encheu-a a meio de feno. E, nos dias de aula, Laura e Carrie, com Grace aconchegada entre elas, sentavam-se num cobertor posto sobre o feno, com outros cobertores presos à volta e por cima delas, e o pai guiava o trenó para a escola, de manhã, e de volta, à noite, para a casa aquecida e acolhedora.
Todas as tardes, a caminho da escola, parava na agência do correio e uma ou duas vezes por semana havia lá uma carta para Laura, de Almanzo, que chegara à casa de seu pai, em Minnesota, e estaria de volta na primavera.
Na véspera de Natal, havia novamente uma árvore de Natal na igreja da cidade. Em tempo, a caixa de Natal havia sido enviada a Mary e a casa estava cheia de mistérios, as meninas escondendo umas das outras, para embrulhar, os presentes da árvore. Mas, às dez horas, naquela manhã, a neve começou a cair.
Todavia, ainda parecia possível ir ver a árvore de Natal. Durante toda a tarde, Grace ficou a observar da janela e uma vez ou duas o vento moderou. Na hora do jantar, contudo, o vento uivava nos beirais e o ar enchia-se da neve que voava.
— É muito perigoso arriscar — disse o pai.
Era um vento que soprava em linha reta e continuamente, mas poderia transformar-se numa nevasca quando estivessem na igreja.
Não tinham feito planos para a véspera de Natal em casa, de modo que estavam todas muito atarefadas. Na cozinha, Laura fazia pipocas no caldeirão de ferro posto sobre uma abertura do fogão, da qual tirara a tampa. Colocou uma mancheia de sal no caldeirão e, quando aqueceu, derramou outra mancheia de milho de pipoca, mexendo com uma concha de cabo comprido e, com a outra mão, firmava a tampa do caldeirão, para impedir que os grãos de milho saltassem fora ao estalarem. Quando paravam de estalar, deixava cair outra mancheia de milho e continuava mexendo, mas já não precisava segurar a tampa porque os núcleos brancos ficavam por cima e impediam que os grãos que estalavam saltassem fora.
A mãe fervia melaço em uma caçarola. Quando o caldeirão de Laura se encheu de pipocas, Ma deitou algumas em uma panela grande, despejou sobre elas um fiozinho de melaço e, untando as mãos de manteiga, habilmente comprimiu mancheias delas, fazendo bolas. Laura continuava a estalar pipocas, que a mãe convertia em bolas, até que a panela grande ficou cheia delas, tostadas e doces.
Na sala de estar, Carrie e Grace faziam saquinhos cor-de-rosa da rede de mosquitos que sobrou da tela da porta, no último verão. E enchiam os saquinhos de confeitos de Natal que o pai trouxera da cidade naquela semana.
— Foi bom eu ter calculado que precisaríamos de mais confeitos do que os que colocaríamos na árvore de Natal — disse o pai, valorizando-se.
— Oh! — descobriu Carrie. — Fizemos um saquinho a mais. Grace errou na conta.
— Eu não! — protestou Grace.
— Grace! — disse Ma.
— Não estou desmentindo — choramingou Grace.
— Grace — disse o pai. Grace engoliu em seco.
— Pa — disse ela — não contei errado. Acho que sei contar até cinco! Havia confeitos para mais e ficam bonitos no saquinho cor-de-rosa.
— De fato, é bom haver um de mais. Nem sempre temos esta sorte — disse-lhe o pai.
Laura lembrou-se do Natal no rio Verdigris, no Território de Indiana, quando o Sr. Eduardo caminhara 130 quilômetros para trazer um bastão de cândi para ela e outro para Mary. Onde quer que ele estivesse naquela noite, desejava-lhe tanta felicidade quanta ele lhes trouxera. Lembrou-se da véspera de Natal no Riacho das Ameixeiras, em Minnesota, quando o pai se perdeu na nevasca e temiam que não mais voltasse. Ele comeu as balas de Natal debaixo de um abrigo, onde permaneceu deitado três dias, junto ao barranco. Agora, estavam ali, na casa confortável e aquecida, com muitas balas e outras coisas boas.
Todavia, agora ela desejava que Mary estivesse ali e esforçava-se por não pensar em Almanzo. Logo que ele partira, recebera cartas suas com freqüência; vinham regularmente. Mas havia três semanas que não chegava nenhuma. Ele deveria estar em casa, pensou Laura, revendo os velhos amigos e as moças que conhecia. A primavera demoraria quatro meses. Poderia esquecê-la ou arrepender-se de lhe ter dado o anel que brilhava em seu dedo.
Pa interrompeu-lhe os pensamentos.
— Traga-me o violino, Laura. Vamos tocar um pouco, antes de saborear estas coisas gostosas.
Trouxe-lhe a caixa do violino e ele afinou o instrumento e passou resina no arco.
— Que devo tocar?
— Toque a canção de Mary, primeiro — respondeu Laura. — Talvez ela esteja pensando em nós.
O pai passou o arco pelas cordas e tocou e cantou:
“Ó montes e regatos que cereais
O castelo de Montgomery,
De verdes bosques e gentis florinhas,
Que tuas águas nunca soem tristes.
Ali o verão primeiro o manto estende
E ali mais se demora,
Que ali por fim, por fim eu disse adeus
à minha doce Mary."
Uma canção escocesa fazia Pa lembrar outra e, acompanhando-se ao violino, cantou:
"Minha alma sofre, ah! tanto e tanto!
Minha alma pena por alguém.
Minha alma é negra como a noite
E sofre por amor de alguém."
Ma estava sentada na cadeira de balanço, ao lado da estufa, e Carrie e Grace aconchegavam-se no assento da janela, mas Laura movia-se inquieta pela sala.
O violino, só, cantou uma canção que lembrava as rosas silvestres de junho. E passou a uma outra melodia, fundindo sua voz com a do pai:
"Quando no céu luzem brilhantes
As estrelas em seu esplendor,
Só uma, dentre as cintilantes,
Cativa o olhar do pescador.
Guia de luz que num momento
O meu sofrer cessar já faz
Conduz-me em meio ao sofrimento,
Seguro, a um porto de paz.
Agora, a salvo do perigo,
Eu canto, eu canto todo o bem
Do teu brilhar, brilhar amigo,
Ó estrela de Belém!"
Grace disse baixinho:
— A Estrela de Natal.
O violino, outra vez, seguiu sozinho e Pa inclinou a cabeça, escutando.
— O vento está aumentando — disse. — Foi bom termos ficado em casa.
E o violino como que ria e a voz do pai ria e cantava:
"Por que demoras tanto, tanto?
Por que, tão tímido, não entras?
Todos escutam, ó João,
Enquanto vêm e vão,
E não sabemos o que pensam.
Estranhas coisas já disseram.
E se queres conversar.
Entra logo e fecha a porta,
Oh, entra! Entra! Entra!"
Laura, espantada, olhava o pai que cantava com muita força, olhando para a porta:
— Oh, entre! Entre! Entre!
Alguém bateu à porta. Pa fez sinal a Laura, com a cabeça, para abri-la, enquanto terminava a música:
— Oh, entre! Entre! Entre!
Um pé de vento encheu a sala de neve, quando Laura abriu a porta. Ficou cega por um momento e quando pôde ver novamente, mal acreditava no que via. O vento jogava neve em turbilhões à volta de Almanzo e ela, sem fala, mantinha a porta aberta.
— Oh, entre! Entre! Entre! — chamou o pai. Tiritando, guardou o violino na caixa e pôs mais carvão no fogo.
— Este vento sopra o frio nos ossos da gente — disse.
— Onde está o seu cavalo?
— Levei Príncipe até a baia e o deixei ao lado de Lady — respondeu Almanzo, sacudindo a neve do sobretudo e pendurando-o, com o gorro, nos chifres de búfalo, envernizados, presos à parede, ao pé da porta. Ma levantou-se para recebê-lo.
Laura retirara-se para o outro extremo da sala, ao lado de Carrie e Grace. Quando Almanzo as olhou, Grace disse:
— Fiz um saquinho de balas.
— E eu trouxe algumas laranjas — respondeu Almanzo, tirando um saco de papel do bolso do sobretudo. — Tenho um outro com o seu nome, Laura, mas não vem falar-me?
— Não posso crer que seja você — murmurou Laura. — Disse que demoraria lá todo o inverno.
— Decidi não demorar tanto. E quando vier falar-me, receberá seu presente de Natal.
— Venha, Charles, guarde o violino — disse Ma. — Carrie e Grace, ajudem-me a trazer as bolas de pipocas.
Laura abriu o pequeno embrulho que Almanzo lhe dera. Desdobrou o papel branco e viu uma caixa branca. Ergueu-lhe a tampa e, num ninho de algodão macio, brilhava uma barrete de ouro. Sobre sua superfície lisa estava gravada uma casinha e, à sua frente, ao longo da barrete, um pequeno lago e um ramo de relva e folhas.
— Como é lindo! — murmurou. — Muito agradecida.
— Não sabe agradecer de outra maneira? — perguntou ele e a abraçou, enquanto Laura o beijava e murmurava:
— Estou contente com a sua volta.
Pa veio da cozinha, trazendo uma porção de carvão, e Ma acompanhava-o. Carrie veio com a panela de pipocas e Grace entregou um saco de confeitos a cada um.
Saboreando os confeitos, Almanzo contou sua viagem, o dia inteiro, ao vento frio, e o acampamento em plena campina, sem casas ou abrigos nas redondezas. Disse-lhe das belas construções em Omaha; das estradas lamacentas quando viraram para leste, em Iowa, onde os agricultores estavam queimando o grão como combustível, porque não podiam vender nem por vinte e cinco centavos o bushel. Disse ter visto Des Moines, a capital do Estado de Iowa; falou dos rios cheios que atravessaram em Iowa e Missouri até que, chegados ao rio Missouri, viraram para o norte de novo.
Com essa interessante narrativa, a noite passou rápida e o velho relógio bateu meia-noite.
— Feliz Natal! — disse Ma, erguendo-se da cadeira, e todos responderam:
— Feliz Natal!
Almanzo vestiu o sobretudo, pôs o gorro e as luvas, deu boa noite e saiu para a tormenta. Os guizos do trenó chocalharam debilmente quando passou em frente à porta, em seu caminho para casa.
— Já os ouvira antes? — Laura perguntou ao pai.
— Sim e ninguém foi convidado a entrar mais vezes do que ele — disse o pai. — Creio que, devido ao vento, não me ouviu.
— Venham, venham, meninas. Se não dormirem logo, Papai Noel não poderá encher suas meias.
De manhã, encontrariam muitas surpresas nas meias e ao meio-dia haveria um banquete especial, com uma galinha bem gorda, assada e recheada, com bastante molho. E Almanzo viria, pois Ma o convidara. O vento soprava forte, mas sem os guinchos e uivos do vento de nevasca, de modo que provavelmente ele poderia vir no dia seguinte.
— Laura! — disse Carrie, quando Laura soprou o candeeiro, no quarto. — Este não é o melhor Natal? Será que o Natal vai sempre ficando melhor?
— Sim — disse Laura — fica.
Em meio a um temporal de neve, no mês de março, Laura seguiu com o pai para a cidade, no trenó, a fim de se submeter ao exame para professora. Não havia aulas nesse dia e Carrie e Grace ficaram em casa. O inverno fora agradável na concessão, mas Laura alegrava-se com a próxima chegada da primavera. Vagamente, agasalhada nos cobertores postos sobre o feno, pensava nos divertidos domingos de inverno, passados com a família e Almanzo na confortável sala de estar, e esperava, de novo, os longos passeios ao sol e ao vento do verão. E gostaria de saber se Barnum ainda estaria manso depois do longo inverno na baia.
Quando se aproximaram da escola, o pai perguntou se estava nervosa com o exame.
— Não — respondeu através do véu coberto de geada. — Estou certa de que passarei. Gostaria de obter uma escola de que eu gostasse.
— Pode ter outra vez a Escola Perry — disse o pai.
— Gostaria de conseguir outra maior, com ordenado mais alto — explicou Laura.
— Bem — disse o pai jovialmente, quando pararam em frente à escola. — A primeira dificuldade é a do exame e aqui estamos. Há muito tempo para vencermos o próximo obstáculo, quando chegarmos a ele.
Laura impacientou-se com a timidez que sentiu ao entrar na sala cheia de desconhecidos. Quase todas as carteiras estavam ocupadas e a única pessoa que conhecia era Florence Wilkins. Ao tomar-lhe a mão, assustou-se; sentiu-a gelada. E os lábios de Florence mostravam-se descorados de nervosismo. Deu-lhe tanta pena que esqueceu a própria timidez.
— Estou alarmada — disse Florence em voz baixa e trêmula. — Todas as outras já ensinaram e o exame será difícil. Sei que não poderei passar.
— Ora! Aposto que também estão alarmadas — disse Laura. — Não se preocupe; você passará. Não fique assustada, pois tem sido sempre aprovada em seus exames.
A campainha tocou e Laura olhou a lista de questões. Florence tinha razão; eram difíceis. Respondendo-as laboriosamente, Laura sentiu-se cansada ao chegar o intervalo. Ao meio-dia, sentiu que a coragem lhe faltava; começou a temer que não obtivesse o certificado. Mas continuou a prova com obstinação até o fim. Sua última folha foi recolhida juntamente com as outras. E o pai chegou para levá-la de volta.
— Não sei, Pa — disse, respondendo à sua pergunta. — Foi mais difícil do que esperava, mas fiz o melhor que podia.
— Ninguém pode fazer melhor do que isso — assegurou-lhe o pai.
Em casa, Ma disse que sem dúvida tudo terminaria bem.
— Agora, não se preocupe. Esqueça tudo até saber o resultado do exame.
Os conselhos de Ma eram sempre bons, mas Laura teve que repetir esse último todos os dias e quase todas as horas. Foi dormir dizendo a si mesma: Não se preocupe. E acordava-pensando aterrorizada: O resultado pode chegar hoje.
Na escola, Florence não tinha esperança por nenhuma das duas.
— Foi muito difícil — disse. — Estou certa de que somente algumas das professoras mais antigas serão aprovadas.
Decorreu uma semana sem qualquer notícia. Laura não estava segura de que Almanzo viria domingo, porque Royal se achava doente de gripe. Almanzo não veio. E não chegou notícia segunda-feira. Nem terça-feira.
O vento tépido derretera a neve e o sol brilhava, de modo que, quarta-feira, o pai não foi buscar Laura, que voltou a pé para casa, com Carrie e Grace. A carta estava lá. Pa a recebera aquela manhã.
— Que diz ela, Ma? — gritou Laura, deixando cair o casaco e cruzando a sala para apanhar a carta.
— Laura! — exclamou Ma, admirada. — Bem sabe que eu preferiria roubar a ler uma carta dirigida a uma outra pessoa.
Laura, com os dedos trêmulos, rasgou o envelope e retirou um certificado de professora. Era de segundo grau.
— É melhor do que eu esperava — explicou à mãe. — O mais que eu esperava era um de terceiro grau. Agora, se eu tivesse a boa sorte de conseguir a escola que desejo...
— Cada pessoa faz a sua própria sorte, boa ou má — disse a mãe com placidez. — Não tenha dúvida de que obterá tanto quanto merece.
Laura estava certa de que conseguiria uma escola tão boa quanto pudesse alcançar, mas não sabia como obter a boa sorte para ter a que desejava. Não pensou em outra coisa naquela noite e, na manhã seguinte, continuava a pensar, quando Florence chegou à sala de aula e se dirigiu diretamente a ela:
— Passou, Laura? — perguntou.
— Sim, obtive um certificado de segundo grau — respondeu Laura.
— Não obtive nenhum. Não poderei ensinar na nossa escola — disse Florence, triste. — Mas quero-lhe dizer o seguinte. Você procurou ajudar-me e eu gostaria que ensinasse na nossa escola, de preferência a qualquer outra. Se quiser, meu pai diz que você poderá obtê-la. É uma escola de três meses, começando a 1? de abril, e o ordenado é de trinta dólares por mês.
Laura mal teve força para responder:
— Sim, quero.
— Meu pai disse que, se você quiser, pode procurá-lo e a direção assinará o contrato.
— Estarei lá amanhã de tarde — disse Laura. — Obrigada, Florence, muito, muito obrigada!
— Você sempre foi boa para mim e eu fico contente de ter uma oportunidade de retribuir — explicou Florence.
Laura lembrou-se do que a mãe dissera sobre a sorte e pensou consigo mesma: Creio que conseguimos a nossa sorte sem saber como.
Ao fim do último dia de aulas, em março, Laura juntou seus livros e os arrumou sobre a lousa. Olhou em volta da sala pela última vez. Não voltaria mais. Segunda-feira, começaria a ensinar na Escola Wilkins e, mais tarde, no outono seguinte, ela e Almanzo se casariam.
Carrie e Grace esperavam embaixo, mas Laura demorou-se à sua carteira, experimentando uma estranha tristeza. Ida, Mary Power e Florence estariam ali na outra semana. Não acompanharia mais Carrie e Grace à escola.
Além do Sr. Owen, à sua mesa, ninguém mais se encontrava na sala agora. Laura tinha de sair. Recolheu os livros e dirigiu-se à porta. Junto à mesa do Sr. Owen, parou e disse:
— Devo-lhe dizer adeus, pois não virei mais.
— Ouvi que vai ensinar novamente — falou o Sr. Owen. — Sentiremos sua ausência, mas esperamos que volte no outono.
— É o que lhe desejo dizer. É realmente uma despedida — repetiu Laura. — Vou-me casar e não voltarei mais.
O Sr. Owen pôs-se subitamente de pé e caminhou nervoso pela plataforma, de um lado para outro.
— Lamento. Não porque se vá casar, mas por não a ter diplomado nesta primavera. Conservei-a aqui por... por uma vaidade tola; queria diplomar toda a classe ao mesmo tempo e algumas não estavam preparadas. Não foi bom para você. Lamento.
— Não faz mal — disse Laura. — Fico contente de saber que poderia ter sido diplomada.
Apertaram-se as mãos e o Sr. Owen lhe deu adeus e desejou boa sorte em todos os seus empreendimentos.
Ao descer as escadas, pensou: A última vez sempre parece triste, mas realmente não o é. O fim de uma coisa é sempre o princípio de outra.
Depois do jantar, em casa, domingo à noite, Almanzo e Laura foram no carrinho, pela cidade, para o norte, para a concessão de Wilkins. Era a 6 quilômetros da cidade e Barnum ia a passo. O crepúsculo fazia-se noite. As estrelas surgiram na imensidão do céu e a campina desenrolava-se imprecisa e misteriosa até bem longe. As rodas do carrinho giravam suavemente sobre a estrada relvosa.
Na quietude, Laura começou a cantar:
"Estrelas giram lá no céu,
Cá embaixo a terra gira,
A roda gira a chocalhar,
Enquanto andamos, gira.
Andai, andai, ó meus rapazes!
Fazei o eixo voar,
Que as rodas também rodam, rodam,
Como astros lá no ar."
Almanzo riu alto.
— Suas canções são como as de seu pai! Têm sempre cabimento.
— Isto é da Velha Canção do Moinho de Pé — explicou Laura. — Mas parecia estar de acordo com as estrelas e com as rodas do carrinho.
— Há apenas uma palavra errada nela — concordou Almanzo. — As rodas do meu carrinho nunca chocalham. Tenho-as sempre ajustadas e azeitadas. Mas não importa. Quando as rodas tiverem girado nesta direção mais três meses, você terá deixado de ensinar, para sempre!
— Penso que quer dizer: para melhor ou para pior — falou Laura, séria. — Mas é bom que seja para melhor.
— Será — disse Almanzo.
O chapéu creme
A nova escola erguia-se a um canto da concessão do Sr. Wilkins, não muito longe de sua casa. Quando Laura abriu a porta, segunda-feira de manhã, viu que era uma cópia exata da Escola Perry, até mesmo com o dicionário sobre a mesa e o gancho à parede para o seu gorrinho.
Era um bom sinal, pensou; e foi mesmo. Todos os seus dias naquela escola foram agradáveis. Sentia-se agora uma professora competente e resolvia tão bem as pequenas dificuldades que nenhuma durou até o dia seguinte. Os alunos eram cordiais e obedientes e os menores se mostravam muitas vezes divertidos, embora ela não deixasse transparecer o seu sorriso.
Hospedou-se em casa dos Wilkins e eram todos amáveis com Laura e entre eles. Florence continuava a freqüentar sua escola e à noite contava a Laura todos os acontecimentos do dia. Laura partilhava do quarto de Florence e passavam as noites confortavelmente com seus livros.
Na última sexta-feira de abril o Sr. Wilkins pagou a Laura vinte e dois dólares, correspondentes ao seu primeiro mês de ordenado, menos dois dólares por semana de hospedagem. Almanzo levou-a para casa no seu carrinho, aquela noite, e no dia seguinte ela foi com Ma à cidade comprar material. Compraram chita alvejada para roupas de baixo, camisas e calças, saias e camisas de dormir; duas de cada.
— Estas e mais as que já tem serão suficientes — disse Ma.
Compraram chita alvejada mais encorpada para dois pares de lençóis e dois pares de fronhas.
Para o vestido de verão de Laura, compraram dez metros de cambraia cor-de-rosa delicada com pequenas flores e folhas verde-claras espalhadas. Depois foram à loja da Senhorita Bell procurar um chapéu que combinasse com o vestido.
Viram vários chapéus bonitos, mas Laura descobriu logo aquele que desejava. Era de palha fina, cor de creme, com aba estreita, mais curva aos lados. Em frente, a aba descia até o meio da testa de Laura. Em volta da copa, havia uma fita de cetim um pouco mais escura que a palha e três plumas verticais do lado esquerdo da copa. Eram matizadas.do creme-claro da palha ao ligeiramente mais escuro da fita de cetim. O chapéu mantinha-se na cabeça por um fino elástico de seda que mal aparecia, encaixado sob a massa de cabelos trançados de Laura.
Caminhando rua acima, depois de terem comprado o chapéu, Laura pediu a Ma que separasse cinco dólares e comprasse coisas para ela mesma.
— Não, Laura — recusou a mãe. — Agradeço você ter pensado nisso, mas não preciso de nada.
Voltaram à carroça que as esperava em frente à loja de ferragens de Fuller. Algo volumoso aparecia na caixa da carroça, coberto com uma manta de cavalo. Laura gostaria de saber o que seria, mas não teve tempo de olhar porque Pa desatou os cavalos rapidamente e foram todos para casa.
— Que tem você aí atrás, Charles? — indagou a mãe.
— Não posso mostrar agora, Carolina. Espere até chegarmos a casa — respondeu Pa.
Em casa, parou a carroça junto à porta.
— Agora, meninas — disse ele — tirem seus embrulhos para dentro e deixem-me só até que guarde os cavalos. Nem espreitem por baixo da manta.
Desatrelou os cavalos e os fez caminhar.
— Que será aquilo? — perguntou a mãe a Laura. Esperaram. Logo que pôde, o pai voltou apressado. Ergueu a manta e surgiu uma máquina de costura nova e lustrosa.
— Oh, Charles! — balbuciou Ma.
— Sim, Carolina, é sua — disse Pa com orgulho. — Haverá muito o que coser, com a vinda de Mary e o casamento de Laura, e achei que você precisaria de ajuda.
— Mas, como pôde? — perguntou Ma, passando os dedos sobre o ferro negro dos pés da máquina.
— De qualquer modo, eu teria que vender uma vaca, Carolina; não haveria mais lugar no estábulo no próximo inverno se não vendesse. Bem, se me ajudarem a descê-la, tirarei a tampa para que vejam o que lhes parece.
Laura lembrou-se de que, fazia muito tempo, um certo tom na voz da mãe, quando falou de uma máquina de costura, lhe havia feito pensar que desejava possuir uma. E o pai não esquecera.
Retirou a porta traseira da carroça e com Ma e Laura ergueram cuidadosamente a máquina de costura, levando-a até a sala de estar, enquanto Carrie e Grace saltavam em volta animadamente. Depois, o pai levantou a tampa da máquina e ali se deixaram ficar em silenciosa admiração.
— É linda — disse Ma por fim. — E que ajuda me dará! Mal posso esperar para usá-la.
Mas era no fim da tarde de sábado e a máquina de costura deveria ficar parada até segunda-feira.
Na semana seguinte, Ma estudou o livro de instruções e aprendeu a manejar a máquina e, no sábado, ela e Laura começaram a trabalhar no vestido de cambraia. Era tão crespa e nova e de cores tão delicadas que Laura teve receio de cortá-lo, porque poderia errar, mas Ma já fizera tantos vestidos que não hesitou. Tirou as medidas de Laura e, com um cartão de costureira, fez o molde da cintura e, sem medo, cortou a cambraia.
Fizeram a cintura justa, com duas filas de pregas descendo nas costas e duas na frente. Na frente, ao centro, entre as pregas, pequenos botões de madrepérola abotoavam a cintura. A gola era uma dobra reta, erguida, da cambraia. As mangas compridas, amplas nos ombros, tornavam-se justas nos punhos, arrematadas com uma bainha da largura das pregas.
A saia era bem franzida em volta da cintura, sobre uma tira estreita, abotoando por baixo, para evitar que abrisse. Na parte inferior da saia, pregas lhe davam a volta, separadas por pedaços iguais, e sob a última prega havia uma outra bem franzida, de dez centímetros de largura, que descia até as pontas dos pés.
O vestido estava pronto quando Almanzo trouxe Lau-ra para casa, na última sexta-feira de maio.
— Como é lindo Ma! — exclamou Laura ao vê-lo. — Estas pregas são tão iguais e tão bem debruadas!...
— Francamente — disse Ma — não sei como pudemos passar até agora sem esta máquina de costura. Faz o trabalho com grande facilidade. Preguear não é problema. E que lindo debrum. A mais hábil costureira não teria feito melhor, à mão.
Laura conservou-se calada um instante, contemplando o vestido novo debruado à máquina. Depois disse:
— O Sr. Wilkins pagou-me o segundo mês de ordenado hoje e, na verdade, não preciso dele. Ainda tenho quinze dólares do mês de abril. Vou precisar de um vestido novo para o próximo outono...
— Sim e precisará de um belo vestido de casamento
— interrompeu a mãe.
— Quinze dólares devem bastar para comprar os dois
— considerou Laura. — E, com os que já tenho, serão suficientes por muito tempo. Além disso, receberei mais vinte e dois dólares o mês que vem. Gostaria que a senhora e Pa recebessem estes quinze dólares. Por favor, Ma, use-os para as despesas quando Mary vier visitar-nos ou para comprar as roupas de que ela necessita.
— Podemo-nos arranjar sem o dinheiro do seu último período escolar — disse a mãe tranqüilamente.
— Sei que podem, mas há muitas despesas que a senhora e Pa terão de fazer. Gostaria de ajudar de novo, só esta vez. Eu me sentirei melhor quando me casar e não puder ajudar mais, levando estes lindos vestidos comigo — insistiu Laura... A mãe cedeu.
— Se lhe agrada, dê o dinheiro a seu pai, que empregou o dinheiro da venda da vaca na máquina de costura, e sei que ficará contente de recebê-lo.
Pa surpreendeu-se e objetou que Laura iria precisar de dinheiro. Mas, depois que ela explicou e insistiu novamente, aceitou de bom grado.
— Vai-me ajudar a sair de um aperto — admitiu. — Mas é o último. De agora em diante, acho que as coisas vão melhorar. A cidade cresce tão depressa que terei muito trabalho de carpintaria. O gado também cresce rapidamente. Não se sabe como se multiplicam tanto, vivendo longe de casa. O ano que vem, ganharei minha aposta com Tio Sam. Você não precisa mais preocupar-se em me auxiliar, Canarinho. Já fez mais que a sua parte.
Quando saiu no carrinho, com Almanzo, domingo de tarde, o coração de Laura transbordava de contentamento. Mas parecia restar sempre algum desejo por satisfazer. Agora lamentava não se achar em casa quando Mary viesse. Mary viria naquela semana e Laura estaria ensinando uma das classes da Escola Wilkins.
Sexta-feira à tarde, Almanzo guiava Príncipe e Lady, que trotavam rápido na volta. Perto da porta de casa, Laura ouviu a música do órgão. Antes que Almanzo pudesse parar os cavalos, já havia saltado e corria para dentro.
— Até domingo — gritou-lhe ele e, em resposta, ela agitou a mão ornada com o anel. E logo deu um grande abraço em Mary, que não pôde erguer-se do banco do órgão. E a primeira coisa que Mary disse foi:
— Que grande surpresa, Laura, achar este órgão esperando por mim!
— Tivemos de guardar o segredo muito tempo — replicou Laura. — Mas não houve mal nisso, não é verdade? Deixe-me olhá-la, Mary. Como parece bem!
Mary estava mais bela que nunca. E Laura não se cansava de admirá-la. Havia tanto que contar uma à outra que estavam sempre falando. Domingo de tarde, caminharam uma vez mais até o alto da pequena colina, além da estrebaria, e Laura colheu rosas-silvestres e com elas encheu os braços de Mary.
— Laura — perguntou Mary, séria — você quer mesmo deixar-nos e casar com esse Wilder?
Laura também ficou séria.
— Ele não é mais "esse Wilder", Mary. É Almanzo. Você não o conhece, não é? Ou pouco o conhece, desde o Longo Inverno.
— Lembro-me de que foi buscar trigo, sem dúvida. Mas por que nos quer deixar e casar com ele? — insistiu Mary.
— Penso que é porque parece que nascemos um para o outro — disse Laura. — Além disso, praticamente já saí de casa, pois estou sempre fora. Não estarei mais longe que na casa dos Wilkins.
— Bem, creio que tem de ser assim. Saí para o colégio e agora você é que sai. Isto é crescer, penso.
— É curioso imaginar — disse Laura. — Carrie e Gra-ce são mais velhas agora do que éramos então. Estão crescendo também. Todavia, mais curioso seria se permanecêssemos sempre como éramos, não seria?
— Ele está chegando — disse Mary.
Ouvira o carrinho e as patas de Príncipe e Lady e ninguém suspeitaria de que fosse cega ao contemplar seus formosos olhos azuis, voltados para eles como se os visse.
— Pouco a vi — disse ela — e já tem de ir.
— Só depois do jantar. Voltarei sexta-feira e, além disso, passaremos juntas julho e a maior parte de agosto — lembrou Laura.
Às quatro horas, na última sexta-feira de junho, Almanzo guiou Barnum e Skip até a porta de Wilkins para ir levar Laura de volta a casa. E, avançando pela estrada familiar, disse:
— E assim uma outra escola terminou: a última
— Está certo? — replicou Laura, pensativa.
— Não estamos? — perguntou ele. — No correr de setembro, você estará frigindo as panquecas para meu almoço.
— Talvez um pouco mais tarde — ponderou Laura. Ele já começara a construir a casa, na concessão de árvores.
— Até lá, que pensa do Quatro de Julho? Quer ir às comemorações?
— Prefiro um passeio de carro — respondeu Laura.
— Eu também — concordou ele. — Esta parelha está ficando de novo muito travessa. Tenho trabalhado na casa e eles'gozaram uns dias de folga. É tempo de lhes tirar a petulância com alguns desses compridos passeios.
— Quando quiser. Estou livre agora.
Laura alegrou-se. Sentia-se como um pássaro fora da gaiola.
— Então, no Quatro de Julho, faremos nosso primeiro passeio longo — disse Almanzo.
Assim, no Quatro de Julho, logo depois do almoço, Laura pôs pela primeira vez o vestido novo de cambraia e, pela primeira vez, usou o chapéu de palha creme com as plumas de avestruz matizadas. Achava-se pronta quando Almanzo chegou.
Barnum e Skip pararam para que ela entrasse no carrinho, mas mostravam-se nervosos e ansiosos por partir.
— Excitaram-se à vista da aglomeração, quando passamos pela cidade — explicou Almanzo. — Iremos só até o fim da Rua Principal, onde poderá ver as bandeiras, e depois viraremos para o sul, para longe do ruído.
A estrada para o sul, em direção à casa de Brewster, estava tão diferente que não parecia a mesma que haviam percorrido tantas vezes, durante o primeiro período de Laura como professora. Novas casinhas de concessão e algumas casas espalhavam-se pela campina e havia muitos campos de cereais. Reses e cavalos pastavam à beira do caminho.
E em vez de estar branca com a neve que soprava, a campina exibia agora muitos matizes de verde suave, mas o vento perdurava incessante. Vinha do sul e era tépido. Corria sobre a relva azulada e os cereais dos campos. Soprava as crinas dos cavalos e suas caudas que ondulavam, soprava as franjas da manta bem ajustada para proteger o delicado vestido de cambraia de Laura. E soprava nas encantadoras plumas de avestruz, cor de creme, do seu chapéu.
Mal pôde agarrá-las com as pontinhas dos dedos, ao serem arrebatadas pelo vento.
— Oh! oh! — exclamou, contrariada. — Não deveriam estar bem cosidas.
— A Senhorita Bell não vive no Oeste há bastante tempo — disse Almanzo. — Não está acostumada ao vento da campina. Será melhor que eu guarde as plumas no bolso, antes que as perca.
Era hora de jantar quando voltaram e Almanzo ficou para ajudar a comer os restos frios do almoço de Quatro de julho. Havia bastante galinha fria e empada e um bolo e um jarro de limonada preparada com água fresca do poço.
Ao jantar, Almanzo propôs que Carrie fosse com ele e Laura ver os fogos de artifício na cidade.
— Os cavalos andaram tanto que penso que se portarão bem — disse.
Mas Ma respondeu:
— Laura irá se quiser, sem dúvida; está acostumada a cavalos de circo; será melhor, entretanto, que Carrie não vá.
Assim, Laura e Almanzo foram sós.
Conservaram os cavalos bem longe da aglomeração, de modo que ninguém fosse atropelado ou pisado. Em um espaço aberto, a uma distância segura, ficaram sentados no carrinho e esperaram até que a uma linha de fogo subiu na escuridão, acima da gente, e explodiu, abrindo-se numa estrela.
Ao primeiro clarão, Barnum empinou-se e Skip saltou. Baixaram e dispararam, arrastando o carrinho. Almanzo fê-los descrever um largo círculo e os trouxe de frente para os fogos de artifício, no momento em que estourava uma outra estrela.
— Não se preocupe com os cavalos — disse a Laura. — Saberei contê-los. Procure ver os fogos.
Assim fez Laura. Após cada explosão de beleza contra o céu negro, Almanzo guiava em círculo, sempre trazendo Barnum e Skip de volta para o próximo subir e desabrochar de luz. Somente depois que se extinguiu o último chuveiro de fagulhas, Almanzo e Laura voltaram.
Então Laura disse:
— Foi bom realmente que você tivesse ficado com as plumas no bolso. Se estivessem no meu chapéu, enquanto via os fogos, teriam sido arrancadas pelas voltas rápidas que demos.
— Ainda estão no meu bolso? — exclamou Almanzo, surpreso.
— Assim espero — disse Laura. — Se estiverem, poderei cosê-las novamente ao meu chapéu.
Ainda se achavam no seu bolso e quando as devolveu, em casa, disse:
— Virei domingo. Estes cavalos estão precisando muito de exercício.
Tormenta de verão
O calor foi intenso naquela semana e, na igreja, domingo de manhã, Laura sentiu que lhe faltava o ar. Ondas de calor subiam trêmulas fora das janelas e a brisa era abafada e intermitente.
O serviço religioso terminou e Almanzo esperava do lado de fora para levar Laura de volta. Ajudando-a a subii ao carrinho, disse:
— Sua mãe convidou-me para o almoço e depois iremos exercitar de novo os cavalos. Fará calor esta tarde, mas dirigir será mais agradável que ficarmos em casa sentados, se não vier temporal.
— Minhas plumas estão bem seguras — riu Laura. — Pode ventar à vontade.
Logo após o bom almoço de Ma, partiram no rumo sul, pela campina ondulante e infinda. O sol queimava e mesmo à sombra do carrinho em disparada o calor era excessivo. Em lugar de soprar suave e fresca, a brisa vinha em lufadas.
As ondas trêmulas de calor surgiam prateadas e fugiam, como água, pela estrada em frente e ventos fantasmas brincavam com a relva, torcendo-a freneticamente, avançando e perdendo-se.
Após algum tempo, nuvens escuras principiaram a se acumular a noroeste e o calor se fez ainda mais intenso.
— A tarde parece estranha. Acho melhor voltarmos — disse Almanzo.
— Sim e depressa — urgiu Laura. — Não estou gostando do aspecto do tempo.
A negra massa de nuvens avançava veloz quando Almanzo virou os cavalos no rumo de casa. Fê-los parar e deu as rédeas a Laura.
— Segure-as enquanto prendo as cortinas. Vai chover.
Rapidamente, por trás do carro, desabo toou as correias que mantinham enrolada a cortina traseira da coberta. Deixou-a cair e abotoou-a aos lados e embaixo, fechando bem o fundo do carrinho. Então, de sob o assento, tirou as duas cortinas laterais e abotoou-as pelas partes superiores e laterais da cobertura, fechando-as por dentro.
De novo em seu lugar, desenrolou a cobertura de borracha para mau tempo e deitou a sua dobra inferior sobre o painel, onde se ajustou facilmente.
Laura admirou a perícia com que fora feita a coberta de mau tempo. Havia uma abertura que se adaptava ao suporte do chicote e uma fenda pela qual Almanzo passou as rédeas. Poderia tê-las nas mãos, sob a coberta, e uma aba que caía sobre a fenda impedia que entrasse a água da chuva. A coberta era tão larga que descia até a caixa do carro, de cada lado, e abotoava aos lados da cobertura.
Tudo isso foi feito num instante. E um momento depois Laura e Almanzo estavam comodamente abrigados dentro de uma caixa de cortinas de borracha. A chuva não entraria pela coberta, pelas cortinas ou pela cobertura do carrinho. E por cima da beira da coberta de mau tempo, que lhe subia até o queixo, podiam olhar em torno.
Almanzo tomou as rédeas de Laura, deu partida aos cavalos e disse:
— Agora pode chover!
— Sim — concordou Laura — se tiver de chover, mas talvez cheguemos a casa antes do temporal.
Já Almanzo incitava os cavalos. Partiram velozmente, mas ainda mais velozmente a nuvem negra se aproximava, rolando e ribombando pelo céu. Laura e Almanzo observavam calados. A terra toda parecia muda e imóvel de terror. O bater dos cascos dos cavalos em trote rápido e o estalar do carrinho à toda soavam insignificantes em meio ao silêncio.
A grande massa de nuvens crescia, torcia-se e debatia-se em furiosa agonia. Raios golpeavam-nas com seus rubros lampejos. E o ar quedava-se imóvel e silente. O calor crescia. As franjas de Laura, úmidas de suor, colavam-se lisas à sua testa e bagas lhe desciam pelas faces e pelo pescoço. Almanzo apressava os cavalos.
Agora quase acima de suas cabeças, as nuvens se chocavam e giravam, passando do negro a um apavorante verde-púrpura. Pareciam arrastar-se umas às outras e um prolongamento em forma de dedo projetou-se tateante e se alongou, tentando alcançar a terra. Tocou-a e contraiu-se e novamente a tocou.
— A que distância estará? — perguntou Laura.
— A uns dez quilômetros, calculo — respondeu Almanzo.
Aproximava-se, do noroeste, enquanto eles corriam para nordeste. Nenhum cavalo, por mais veloz, poderia correr mais que aquelas nuvens. De cor verde-púrpura, rolavam pelo céu, acima da campina desabrigada, e pareciam divertir-se em alcançá-la, como as garras de um gato atormentando um ratinho.
Um segundo prolongamento veio descendo, tateante atrás do primeiro. E logo um outro. Todos três desceram à terra, encolheram-se e tornaram a descer das nuvens que se contorcem.
Então, giraram todas um pouco para o sul. Um após outro, rápidos, os três prolongamentos tocaram a terra, sob a massa de nuvens, avançando velozes com elas. Passaram por trás do carrinho, no rumo oeste, e foram para o sul. Um vento terrível soprou de repente, tão forte que o carrinho balançava, mas o temporal havia passado além. Laura tomou um longo e nervoso alento.
— Se estivéssemos em casa, Pa nos teria mandado para a adega — disse — e eu teria ido de boa vontade.
— Precisaríamos de uma adega, se o temporal nos tivesse alcançado. Nunca corri para uma adega contra ciclones, mas se algum dia encontrar uma nuvem como aquela, tratarei de correr — admitiu Almanzo.
O vento mudou abruptamente. Passou a soprar de sudoeste, trazendo um frio súbito.
— Granizo — disse Almanzo.
— Sim — concordou Laura.
Em algum lugar, caíra granizo daquela nuvem.
Em casa, todos se alegraram ao vê-los. Laura nunca achara a mãe tão pálida nem tão agradecida. Pa declarou que tinham demonstrado juízo ao voltarem de onde o fizeram.
— Esse temporal vai trazer graves danos — disse.
— É uma boa idéia, nesta região, ter uma adega — disse Almanzo. Perguntou se Pa julgava conveniente saírem no carrinho pela zona batida da tormenta, a ver se alguém precisava de ajuda. De modo que Laura ficou em casa e Pa e Almanzo saíram.
Embora a tormenta tivesse passado e o céu se mostrasse limpo agora, ainda assim sentiam-se inquietas.
A tarde findava, Laura vestira suas roupas de semana e, auxiliada por Carrie, terminava as tarefas caseiras quando o pai e Almanzo voltaram. Ma serviu um jantar frio e, enquanto comiam, contaram o que tinham visto no caminho do temporal.
Um colono, não muito longe ao sul da cidade, acabara de debulhar sua colheita de trigo de uma centena de acres. Fora uma esplêndida safra e daria para pagar todas as suas dívidas e guardar dinheiro no banco. Havia trabalhado com os batedores para terminar a tarefa naquele dia e se achava no monte de feno quando percebeu que o temporal se aproximava. Enviara justamente seus dois filhos a devolver uma carroça que tomara de empréstimo a um vizinho para ajudar na debulha. Mal teve tempo de entrar na ade-ga contra ciclones. O temporal carregou todo o seu grão, montes de palha e máquinas, carroças, estrebarias e a casa, tudo. Só restou o chão nu.
Os dois meninos e as mulas que montavam haviam desaparecido inteiramente. Mas pouco antes de Pa e Almanzo alcançarem o sítio, o filho mais velho chegara, inteiramente despido. Tinha nove anos. Contou que ele e seu irmão montavam as mulas, de volta, correndo, quando a tormenta os alcançou. Ergueu-os do solo e os arrastou em círculo, no ar, arreios e tudo, lado a lado. Foram levantados cada vez mais alto e mais depressa, sempre girando, até que começou a sentir-se tonto e gritou para o irmão menor que se agarrasse bem à mula. Mas o ar encheu-se de palha que turbilhonava e escureceu tanto que não viu mais nada. Sentiu o arranco da sela que se partia e então deveria ter desmaiado, pois a próxima coisa que viu foi que estava só e no ar claro.
Podia ver o chão abaixo. Estava sendo levado em círculo, descendo sempre um pouco até tocar quase em terra. Tentou saltar, firmar os pés, até que bateu no solo, correndo, correu um pouco mais e caiu. Depois de estar deitado alguns instantes para descansar, ergueu-se e pôs-se a caminho de casa.
Voltara ao chão a pouco mais de um quilômetro da concessão de seu pai, sem um farrapo de roupa sobre o corpo; até as botas, altas e atadas haviam desaparecido. Mas não sofrerá qualquer ferimento. Era um mistério como as botas lhe tinham sido arrancadas dos pés sem sequer magoá-los.
Os vizinhos procuravam até bem longe o outro menino e as mulas, sem lhes descobrir vestígios. Não havia maiores esperanças de que estivessem vivos.
— Todavia, se a porta voltou... — disse Almanzo.
— Que porta? — quis saber Carrie.
Fora a coisa mais estranha que o pai e Almanzo tinham visto naquele dia. Ocorrera na concessão de um outro colono, mais para o sul. Também ali tudo fora arrancado de seus lugares. Quando aquele homem e sua família subiram da adega, dois espaços vazios eram o que restava do estábulo e da casa. Bois, carroça, ferramenta, galinhas, tudo desaparecera. Ficaram apenas com a roupa do corpo e um cobertor que sua mulher apanhara às pressas para enrolar a filhinha, na adega.
E o homem disse a Pa que fora muito feliz por não ter uma colheita para perder. Mudara-se para a concessão, com a família, somente naquela primavera e apenas plantara algumas batatas.
Naquela tarde, ao pôr-do-sol, quando Pa e Almanzo voltaram de sua busca ao menino desaparecido, pararam algum tempo naquele sítio. O colono e a família reuniam tábuas e pedaços de madeira que a tormenta arrojara, a ver se conseguiria alguma coisa para levantar uma espécie de abrigo.
E enquanto se detinham a pensar nisso, uma das crianças notou um pequeno ponto escuro no céu limpo, acima de suas cabeças. Não parecia um pássaro e aumentava de tamanho. Todos o observaram. Durante algum tempo, foi caindo devagar, aproximando-se, e viram que era uma porta. Passou mansamente e pousou à sua frente. Era a porta dianteira da casa desaparecida. Achava-se em perfeitas condições, sem qualquer dano, sem um arranhão. O mistério estava em saber onde permanecera todas aquelas horas e como descera tão devagar do céu limpo, exatamente sobre o lugar onde estivera a casinha.
— Nunca vi um homem mais feliz do que ele — disse Pa. — Agora não precisará comprar uma porta nova. Voltou até com as dobradiças.
Mostravam-se profundamente espantados. Em sua vida, nunca tinham ouvido coisa mais estranha que essa da volta da porta. Era maravilhoso imaginar até que distância ou que altura deveria ter ido, naquelas horas todas.
— É uma reunião estranha, esta aqui — disse Pa. — Acontecem coisas tão misteriosas!
— Sim — disse Ma. — E dou graças a Deus que até agora não tenham acontecido conosco.
Na outra semana, o pai ouviu na cidade que os corpos do menino perdido e das mulas haviam sido encontrados no dia seguinte. Tinham todos os ossos partidos. A roupa fora arrancada do menino e os arreios arrebatados das mulas. E jamais se acharam vestígios do vestuário e dos arreios.
Pôr-do-sol na colina
Um domingo, Laura não passeou no carrinho por ser o último dia que Mary passaria em casa. Voltaria ao colégio no outro.
O tempo estava tão quente que, à refeição da manhã, Ma disse que achava que não iria à igreja. Carrie e Grace ficariam em casa para lhe fazer companhia. Laura e Mary foram com o pai na carroça.
Pa esperava-as, quando saíram, prontas. Laura usava, uma vez mais, o vestido de cambraia cor-de-rosa claro com raminhos e o chapéu novo com plumas de avestruz, agora bem presas.
O vestido de Mary era de cambraia azul, com florinhas brancas espalhadas. E seu chapéu à marinheira, de palha branca, tinha uma fita azul. Sob a aba, atrás da cabeça, o cabelo trançado formava uma grande massa de ouro e franjas douradas enrolavam-se em anéis, acima de seus olhos, tão azuis quanto a fita.
Pa contemplou-as por um instante, seus olhos brilharam e lhe transparecia na voz uma ponta de orgulho quando exclamou, com fingido desapontamento:
— Carolina! Não sou tão elegante que possa servir de cavalheiro, até a igreja, a duas jovens tão encantadoras!
Também ele parecia bem, de terno preto, com gola de veludo no casaco, camisa branca e gravata azul-marinho.
A carroça esperava. Antes de se vestir, Pa penteara e escovara os dois cavalos do sítio e estendera uma manta limpa sobre o assento da carroça. A parelha dormitava quando Pa com cuidado ajudou Mary a subir pela roda da carroça e depois deu a mão a Laura. Abriram o leve guarda-pó sobre os joelhos e, com precaução, Laura prendeu-lhe bem a beira em volta da saia de cambraia.
A igreja estava tão cheia naquela manhã que não puderam achar três lugares juntos. Pa foi sentar-se à frente, junto dos mais idosos, e Laura e Mary sentaram-se lado a lado, no centro da igreja.
O Reverendo Brown pregava com fervor e Laura fez votos por que, com tanta sinceridade, dissesse algo interessante, quando viu um nédio gatinho a errar nave acima. Descuidada, via-o saltar e brincar até chegar à plataforma, onde ficou a arquear o dorso e a esfregá-lo ao lado do púlpito. E, quando fixou os olhos redondos nos fiéis, Laura pensou ouvi-lo ronronar.
Foi quando, do lado em que ela se achava, um cãozinho passou em trote vivo. Era um pequeno fox-terrier, negro e pardo, de pernas delgadas e cauda curta e o seu trotar ligeiro e ativo era-lhe natural. Não procurava ninguém, nem ia a parte alguma, apenas perambulava pela igreja, até que descobriu o gatinho. Por um instante, o cãozinho se retesou e logo saltou, numa explosão de latidos agudos que pareciam o crepitar de fogos de artifício. O gatinho arqueou o dorso, inchou a cauda e, num relâmpago, desapareceu da vista de Laura.
O estranho foi que sumiu inteiramente. Não houve perseguição e o cãozinho sossegou. O Reverendo Brown continuou o sermão e Laura não teve tempo de se surpreender quando sentiu um leve balançar de suas anquinhas e, olhando para baixo, viu a ponta da cauda do gatinho esconder-se sob a bainha da cambraia cor-de-rosa. O gatinho refugiara-se sob as anquinhas e agora começava a subir por dentro delas, firmando as unhas nos arames. Laura teve vontade de rir, mas conteve-se, solene como um magistrado. Logo o cãozinho passou inquieto, espreitando e farejando em busca do gatinho, e uma súbita visão do que aconteceria se o descobrisse agitou Laura da cabeça aos pés, num esforço por não rir. Sentia as costelas comprimindo o espartilho, as bochegas incharam e a garganta sufocara. Mary ignorava o que tanto a divertia, mas percebeu que ria e tocou-lhe de leve com o cotovelo, sussurrando:
— Comporte-se!
Laura agitava-se cada vez mais e sentia-se corar. As anquinhas continuavam a balançar por baixo das saias, enquanto o gatinho descia cautelosamente. Surgiram primeiro o pequeno focinho e os bigodes e depois seus olhos espreitaram por baixo do debrum cor-de-rosa e, não vendo mais o cão, saltou e disparou pela nave, para a porta. Laura escutou, mas não ouviu latidos e compreendeu que o gatinho escapulira.
De volta a casa, Mary falou:
— Laura, você me surpreendeu. Nunca saberá comportar-se na igreja?
— Laura riu até chorar e Mary a censurou. Pa quis saber de que se tratava.
— Não, Mary, nunca saberei — respondeu Laura, por fim, enxugando os olhos. — Acho que me pode considerar um caso perdido.
Contou-lhe o que acontecera e até Mary teve de sorrir.
O almoço e a tarde de domingo decorreram tranqüilos em uma conversa em família e, quando o sol descia, Mary e Laura saíram juntas para seu último passeio ao lado da pequena colina, para ver o pôr-do-sol.
— Nunca vejo bem com o auxílio de outra pessoa que não você — disse Mary. — E quando eu voltar outra vez, você não estará mais aqui.
— Não, mas você me irá ver onde eu estiver — respondeu Laura. — Terá duas casas para visitar.
— Mas estes crepúsculos... — principiou Mary e Laura interrompeu:
— O sol também se põe no sítio de Almanzo, assim espero — ponderou. — Não haverá colina lá, mas há dez acres só de pequenas árvores. Caminharemos entre elas e você as verá. Há choupos, é claro, e também buxos, bordos e salgueiros. Se crescerem, formarão um lindo bosque e não apenas um anteparo para o vento, em volta da casa, como o de Pa, mas um bosquezinho de verdade.
— Será estranho ver estas campinas cobertas de árvores — disse Mary.
— Tudo muda — falou Laura.
— Sim.
Permaneceram caladas algum tempo. Depois, Mary disse:
— Gostaria de estar presente às suas bodas. Não quer adiá-las até junho?
Laura respondeu devagar:
— Não, Mary. Tenho dezoito anos e já lecionei três períodos, mais um do que Ma lecionou. Não quero mais lecionar. Pretendo estar, este inverno, em nossa própria casa. Haverá apenas a cerimônia religiosa. Pa não poderia arcar com os gastos de uma festa e eu não gostaria que os outros tivessem despesas. Quando você vier, no outro verão, minha casa estará pronta para recebê-la.
— Laura — disse Mary — lamento ter feito o órgão esperar. Se soubesse... mas desejava ver a casa de Blanche e poupar a Pa o preço da passagem de trem. Não imaginava que nada pudesse mudar aqui em casa.
— E assim é, realmente, Mary — assegurou Laura. — Não se preocupe com o órgão. Lembre-se apenas do bom tempo que passou em casa de Blanche. Estou contente de que tivesse ido, estou realmente, e Ma também. Foi o que ela disse naquela ocasião.
— Disse? — O rosto de Mary iluminou-se. Então Laura contou que Ma tinha dito que estava contente por Mary distrair-se enquanto era moça, para que pudesse recordar.
O sol desaparecia e Laura descreveu como o seu esplendor carmesim e ouro flamejava no céu e esmaecia em matizes róseos e cinzentos.
— Agora, voltemos para casa — disse Mary. — Estou pressentindo mudança de tempo.
Deixaram-se estar de pé um instante mais, apertando-se as mãos, voltadas para o poente. Então, vagarosamente, desceram a colina, passando pela estrebaria.
— O tempo corre agora — disse Mary. — Lembra-se quando o inverno era tão comprido que parecia que o verão não voltaria mais? E no verão, parecia que o inverno fora havia tanto tempo que quase esquecíamos como era?
— Sim e que bom quando éramos pequenas! — respondeu Laura. — Mas talvez o tempo que está por vir seja ainda melhor. Nunca se sabe.
Planos de casamento
Como sempre, a partida de Mary deixou uma sensação de vazio em casa. Na manhã seguinte, Ma disse com vivacidade:
— Agora, vamos tratar da sua costura, Laura. Mãos ocupadas ajudam-nos a ser alegres.
Laura foi buscar as musselinas. Ma cortou-as e a areja-da sala de estar encheu-se do zumbido da máquina de costura e da ativa jovialidade de Ma e Laura, costurando.
— Tenho uma idéia de como fazer os lençóis — disse Laura. — Não vou coser essas compridas bainhas a partir do meio, alinhavando-as à mão. Se eu dobrar ao meio o pano, sobrepondo as beiras, e costurar à máquina a partir do centro, creio que ficarão lisas e durarão mais.
— Pode ser — disse Ma. — Nossas avós se mexeriam nas sepulturas, se ouvissem, mas afinal os tempos mudam.
Toda a roupa branca foi rapidamente cosida à máquina. Laura foi buscar as dúzias de jardas de renda branca que havia tricotado e, como por encanto, a faiscante agulha da máquina ia prendendo às margens das rendas às extremidades abertas das fronhas, às altas golas e aos punhos das compridas mangas das camisas de dormir, às golas e aberturas dos braços das camisas e às bainhas das calças
Trabalhando ativamente na roupa branca, Ma e Laura conversavam sobre os vestidos.
— As rendas do meu vestido de popelina marrom estão como novas — disse Laura. — E o meu vestido de cambraia de raminhos está novo. De que mais preciso?
— Precisa de um vestido preto — respondeu Ma, resoluta. — Penso que toda mulher deve ter um bom vestido preto. Será melhor irmos à cidade sábado comprar o material. Casimira, penso. Casimira dura bastante e é sempre própria para todas as ocasiões, menos os dias mais quentes de verão. Depois que estiver pronto, você terá de pensar em alguma coisa bem bonita para suas bodas.
— Há muito tempo — disse Laura.
Ocupado com as tarefas do verão, sobrava pouco tempo a Almanzo para trabalhar na casa. Levara Ma e Laura, um domingo, para ver o seu arcabouço de ripas, que se erguia ao lado de pilhas de tábuas, além da estrada, por trás do bosque de árvores novas.
Teria três compartimentos: a sala grande, um quarto e uma despensa e ainda um telheiro sobre a porta dos fundos. Mas depois de ter visto como estavam dispostas, Almanzo não a levara de novo a ver a casa.
— Deixe por minha conta — disse ele. — Farei a cobertura antes que caia a neve.
Aos domingos, faziam seus longos passeios de carro aos lagos gêmeos ou ao lago dos Espíritos e mais além.
Segunda-feira de manhã, Ma desdobrou o pano de negra casimira fosca e dispôs cuidadosamente os moldes de papel sobre o tecido, para não perder nenhum pano, e cortou confiante com a sua tesoura grande. Cortou e uniu com alfinetes todas as nesgas da saia, os panos do corpete e as mangas. Depois do almoço, a máquina, enfiada com linha preta, começou a trabalhar.
E zumbia alegremente, naquele fim de tarde. Laura alinhavava os panos do forro de cambraia aos panos de casimira, quando ergueu os olhos do trabalho e viu Almanzo que se aproximava, no carrinho. Ficou certa de que algo acontecera pois, do contrário, não teria vindo segunda-feira. Correu à porta e ouviu-o dizer:
— Venha dar uma volta. Preciso falar-lhe. Laura pôs o chapéu e acompanhou-o.
— Que é que há? — indagou, quando Barnum e Skip partiram.
— É o seguinte — disse Almanzo, preocupado: — Quer um grande casamento?
Encarou-o, admirada de que tivesse vindo só para lhe fazer essa pergunta, quando poderia fazê-la no domingo seguinte.
— Por quê?
— Se não quer, concordaria e estaria em condições de casar no último dia desta semana ou no primeiro da próxima? — perguntou ele, ainda mais preocupado. — Não responda antes que eu lhe diga por quê. Quando estive em Minnesota, no inverno passado, minha irmã Elisa começou a planejar um grande casamento religioso para nós. Disse-lhe que não o desejávamos e que desistisse da idéia. Hoje de manhã, recebi uma carta. Não mudou de idéia. E virá, com minha mãe, cuidar do nosso casamento.
— Oh, não! — exclamou Laura.
— Você conhece Elisa — disse Almanzo. — É teimosa e sempre gostou de mandar. Eu poderia dar um jeito, se fosse apenas Elisa. Mamãe é diferente. É mais como sua mãe; você a estimará. Mas Elisa convenceu mamãe de que deveria haver uma grande cerimônia religiosa e, se chegarem antes de casarmos, não sei como poderei dizer não à mamãe. Não desejo essa espécie de casamento e não poderia pagá-lo. Que acha?
Houve um pequeno silêncio, enquanto Laura pensava. Depois disse com calma:
— Meu pai também não pode pagar um casamento assim. Gostaria de ter um pouco mais de tempo para preparar minhas coisas. Se casarmos já, não terei vestido de noiva.
— Use o que está vestindo. É lindo — insistiu Almanzo.
Laura não pôde deixar de rir.
— É um vestido de chita, para o trabalho. Não seria possível! — Ficou séria: — Mas Ma e eu estamos cosendo um que eu poderia usar.
— Então concorda? Será no último dia desta semana? Laura calou de novo. Reuniu toda a sua coragem e disse:
— Almanzo, preciso pedir-lhe uma coisa. Quer que eu prometa obedecer-lhe?
Sério, ele respondeu:
— Não, é claro. Sei que se promete isso na cerimônia do casamento, mas é só uma coisa que as mulheres dizem. Não conheço nenhuma que obedecesse, nem nenhum homem digno que exigisse.
— Bem, não direi que lhe vou obedecer — falou Laura.
— É defensora dos direitos da mulher, como Elisa? — perguntou Almanzo, surpreso.
— Não — replicou Laura — não desejo votar. Mas não farei uma promessa que não poderei cumprir e, Almanzo, mesmo que tentasse, creio que não poderia obedecer contra o meu modo de pensar.
— Nunca esperei que q fizesse — explicou ele. — E não haverá dificuldades quanto à cerimônia, porque o Reverendo Brown não acredita na palavra "obedecer".
— Não diga! Tem certeza? — Laura nunca ficara tão surpresa e tão aliviada ao mesmo tempo.
— Tem opinião firme a respeito — disse Almanzo. —Já o ouvi discutir várias horas e citar os textos da Bíblia, contra São Paulo, a esse respeito. Bem sabe que o Reverendo é primo de John Brown, do Kansas, e se parece muito com ele. Está bem então? O último dia desta semana ou o primeiro da outra.
— Sim, se for o único meio de fugir de um grande casamento — disse Laura. — Estarei pronta no último dia desta semana ou no primeiro da próxima, como você preferir.
— Se eu conseguir terminar a casa, poderá ser o último dia desta semana — ponderou Almanzo. — Caso contrário, será na semana que vem. Podemos combinar que, quando a casa estiver pronta, iremos de carro à casa do Reverendo Brown e casaremos discretamente, sem qualquer rebuliço. Vou levá-la agora de volta e ainda terei tempo de fazer alguma coisa na casa esta noite.
De volta, Laura hesitou em falar no projeto. Sentia que Ma haveria de considerar imprópria a pressa. Poderia dizer: — Quem casa depressa, arrepende-se devagar. Entretanto, não ia casar realmente depressa. Já se conheciam havia três anos.
Foi somente à hora do jantar que Laura encontrou coragem para dizer que ela e Almanzo haviam planejado casar tão cedo.
— Não haverá possibilidade de concluirmos seu vestido de casamento — objetou a mãe.
— Podemos terminar o de casimira preta e eu o usarei — respondeu Laura.
— Não me agrada que você se case de preto — disse Ma. — Conhece o ditado: quem casa de preto, volta direto.
— Será um vestido novo. Porei o meu velho chapéu verde-claro, a senhora me emprestará o seu broche quadrado, de ouro, com um morango. Usarei alguma coisa velha e alguma coisa nova, alguma coisa emprestada e alguma coisa azul — disse Laura jovialmente.
— Bem, creio que não são verdadeiros esses ditados antigos — advertiu Ma.
Pa disse:
— Penso que é sensato. Você e Almanzo mostram juízo.
Mas Ma ainda não estava inteiramente satisfeita.
— O Reverendo Brown pode vir até cá. Vocês podem casar aqui, Laura. Faremos uma festinha íntima.
— Não, Ma, não poderíamos dar uma festinha sem esperar pela mãe de Almanzo — objetou Laura.
— Laura tem razão e você também pensa assim, Carolina — disse o pai.
— Realmente penso — admitiu Ma.
Carrie e Grace ofereceram-se logo para fazer o serviço de casa e assim Ma e Laura puderam terminar o vestido de casimira, cosendo tão rapidamente quanto podiam durante todos os dias daquela semana.
Fizeram uma basquine justa, terminando em ponta na parte inferior, atrás e à frente, forrada de cambraia negra e suportada por barbatanas em cada costura. Tinha uma gola alta de casimira. As mangas eram igualmente forradas, compridas e lisas, e caíam bem, um pouco amplas no alto e justas nos punhos. Um franzido em volta de cada cava de braço, à frente, ampliava graciosamente o busto e continuava em pregas que desciam verticalmente. Botões pretos, pequenos e redondos, fechavam a basquine pelo meio da parte dianteira.
A roda da saia mal tocava o chão e se ajustava lisa no alto, abrindo-se por nesgas triangulares para baixo. Era inteiramente forrada de cambraia, com uma entretela de crinolina até as pontas dos pés de Laura. A barra da saia e o forro dobravam-se para cima e a orla do tecido era coberta de galões, de modo a que os pontos não aparecessem na face superior.
Não houve passeio de carro naquele domingo. Almanzo veio por um instante em roupas de trabalho dizer que não estava observando o Dia do Senhor por ter de concluir a casa. Estaria pronta quarta-feira, disse, e poderiam casar-se na quinta-feira. Viria buscar Laura às dez horas, quinta de manhã, porque o Reverendo Brown sairia da cidade no trem das onze.
— Então será melhor trazer a carroça quarta-feira, se possível, para apanhar as coisas de Laura — lembrou Pa. Almanzo disse que viria e assim ficou decidido e, com um sorriso para Laura, partiu rápido.
Terça-feira de manhã Pa foi à cidade e ao meio-dia voltou trazendo de presente a Laura uma mala nova.
— Será melhor guardar aí as suas coisas hoje — disse. Com a ajuda de Ma, Laura encheu a mala, naquela tarde. Colocou bem no fundo sua velha boneca de trapo, Carlota, com suas roupas cuidadosamente guardadas em uma caixa de papelão. As roupas de inverno de Laura foram postas junto e, depois, os lençóis, as fronhas e toalhas, as novas roupas brancas, os vestidos de chita e o de popelina marrom. O de cambraia cor-de-rosa foi estendido por cima, com cautela, para não amarrotar. Na chapeleira da mala, Laura ajeitou o chapéu novo com plumas de avestruz e na prateleira rasa arrumou as agulhas de tricô e crochê e os novelos de lã.
Carrie trouxe da cômoda o porta-copos de Laura e disse:
— Vai precisar dele. Laura tomou-o, indecisa.
— Não queria separá-lo do de Mary. Não deveriam separar-se — disse pensativa.
— Veja. Coloquei o meu porta-copos mais perto do de Mary — mostrou Carrie. — Não ficará só.
E Laura guardou o seu, com cuidado, na prateleira da mala, entre os macios novelos de lã, para que não quebrasse.
A mala estava cheia e Laura fechou a tampa. Então Ma abriu um lençol velho e limpo sobre a cama.
— Vai precisar de sua colcha — disse.
Laura apanhou sua colcha "rola-na-janela" que havia feito quando era pequena, enquanto Mary fazia uma colcha de retalhos de nove peças. Havia permanecido guardada todos aqueles anos. Ma abriu-a, dobrou-a sobre o lençol e, por cima, colocou dois travesseiros gorduchos.
— Quero que os leve, Laura — disse. — Você me ajudou a juntar as penas dos gansos que Pa caçava na Lagoa Prateada. Estão novos. Guardei-os para você. Esta toalha de mesa de quadrados brancos e vermelhos é igual às que sempre usei; acho que fará sua nova casa mais acolhedora, se a puser na mesa.
E Ma pôs a toalha, ainda em seu envoltório de papel, sobre os travesseiros. Juntou as pontas do lençol velho por cima de tudo e as amarrou com firmeza.
— Pronto, isso não deixará entrar poeira — disse. Almanzo veio na manhã seguinte, na carroça puxada por Barnum e Skip e, ajudado por Pa, carregou-a com a mala e o amarrado de travesseiros. Depois Pa falou:
— Espere um pouco, não parta já; voltarei.
E entrou em casa. Por algum tempo todos o aguardaram de pé, junto à carroça, conversando e esperando que voltasse pela porta. Mas ele surgiu do outro lado da casa, trazendo a vaquinha predileta de Laura. Era inteiramente ruiva e muito mansa. Pa, devagar, atou-a à traseira da carroça e lançou para dentro dela a corda de prender a vaquinha à estaca, dizendo:
— Essa corda vai com ela.
— Oh, Pa! — exclamou Laura. — Posso mesmo levá-la?
— É justamente o que desejo. Seria pena que não tivesse um bezerrinho, depois de todos os que você ajudou a criar.
Laura não pôde falar, mas lançou a Pa um olhar de agradecimento.
— Acha seguro prendê-la atrás desses cavalos? — perguntou Ma e Almanzo assegurou-lhe que sim e agradeceu a Pa o presente da vaca. E, voltando-se para Laura, disse:
— Virei amanhã às dez horas.
— Estarei pronta — prometeu Laura, mas vendo Almanzo que partia, não podia acreditar que no dia seguinte deixaria aquela casa. Por mais que procurasse, não conseguia pensar em partir sem voltar depois como voltava dos passeios com Almanzo.
Naquela tarde, terminaram o vestido de casimira preta, que foi caprichosamente passado a ferro, e Ma preparou um bolo grande e branco. Laura ajudou a bater, com um garfo, as claras dos ovos, numa travessa, até que Ma achou que já estavam bastante duras.
— Meu braço está ainda mais duro — lamentou Laura, rindo e esfregando o braço que doía.
— Este bolo precisa ficar bom — insistiu Ma. — Se você não vai ter uma festa de casamento, pelo menos teia um almoço de núpcias em casa e um bolo nupcial.
Depois do jantar, naquela noite, Laura trouxe o violino de Pa e pediu:
— Por favor, Pa, toque um pouco.
Pa tirou o violino da caixa. Demorou-se bastante a afiná-lo. Passou cuidadosamente a resina no arco. Por fim, descansando-o sobre as cordas, pigarreou e perguntou:
— Bem, Laura, que vai ser?
— Primeiro toque para Mary — respondeu Laura — e depois toque todas as velhas canções, uma após outra, enquanto puder.
Sentou-se à soleira da porta e dentro, bem junto dela, Pa e Ma contemplavam a campina. Pa tocou Mary das Terras Altas. O sol descia e ele ia tocando todas as velhas melodias que Laura conhecia desde quando podia recordar. O sol desaparecia, arrastando flâmulas dardejantes. As cores desmaiavam, a terra escurecia e a primeira estrela começou a brilhar. Devagar, Carrie e Grace vieram encostar-se a Ma. E o violino cantava ao crepúsculo. Cantou as canções que Laura conhecera na Grande Floresta do Wisconsin e as melodias que Pa tocara ao pé das fogueiras dos acampamentos nas planuras do Kansas. Repetiu o canto do rouxinol ao luar nas margens do rio Verdigris. E depois lembrou os dias passados na caverna à beira do Riacho das Ameixeiras e as noites de inverno na casa nova que o pai construíra lá. Cantou o Natal na Lagoa Prateada e a primavera depois do Longo Inverno. Depois, o violino lançou uma nota mais doce e a voz grave de Pa acompanhou-o:
"Certo dia, no tempo que passou,
Quando a neblina sobre o chão baixou,
Uma história de amor ao coração,
Ao coração cantou uma canção.
Somente uma canção crepuscular,
Entre as sombras incertas vem pairar.
E embora triste esteja o coração,
A consolá-lo vem esta canção
De amor doce canção.
Ainda hoje ouvimos este canto
Que em nossos olhos faz cessar o pranto.
Incerta e longa seja a nossa via,
Sempre ouviremos ao findar do dia,
Até o extremo fim de nossa vida,
Esta canção de amor, doce e sentida."
Laura estava pronta quando Almanzo chegou. Usava seu vestido novo de casimira preta e o seu chapéu verde-claro de forro azul e fita azul, atada sob a orelha esquerda Quando andava, as pontas dos sapatos pretos mal apareciam sob a saia rodada.
Ma, em pessoa, prendera o broche de ouro, com o morango encastoado, ao pescoço de Laura, sobre a ponta de renda que terminava a gola do vestido.
— Pronto! — disse Ma. — Apesar de ser preto o seu vestido, você está linda.
Pa resmungou:
— Você se sairá bem, Canarinho.
Carrie trouxe um belo lenço de bainha rendada que combinava com a gola de Laura.
— Fiz para você — disse. — Fica bem em sua mão, sobre o vestido preto.
Grace admirava, de perto. Almanzo chegou e todos vieram à porta enquanto Laura e Almanzo partiam no carrinho.
Laura falou, uma vez:
— O Reverendo Brown espera por nós? Almanzo respondeu:
— Falei-lhe, no caminho. Não usará a palavra "obedecer".
A Senhora Brown abriu a porta da sala. Disse nervosamente que iria chamar o Senhor Brown e pediu-lhes que sentassem. Dirigiu-se para o quarto e fechou a porta.
Laura e Almanzo, sentados, esperaram. Ao centro da sala havia uma mesa com tampo de mármore, sobre um tapete de retalhos de crochê. À parede pendia uma estampa colorida, representando uma mulher abraçada a uma cruz branca erguida sobre uma rocha. Acima de sua cabeça, um raio cortava o céu e vagas imensas subiam em volta.
A porta do outro quarto abriu-se e Ida entrou sem fazer ruído e sentou-se na cadeira próxima da porta. Sorriu a Laura, com um sorriso assustado, torceu o lenço nas mãos e ficou a olhá-lo.
Abriu-se a porta da cozinha e um rapaz alto e magro esgueirou-se sobre uma cadeira. Laura imaginou que fosse Elmer, mas não pôde vê-lo porque o Reverendo Brown saiu pela outra porta, ainda enfiando os braços nas mangas do casaco. Ajeitou ao pescoço a gola do casaco e pediu a Laura e Almanzo que ficassem de pé à sua frente.
E assim foram casados.
O Reverendo Brown, a Senhora Brown e Elmer apertaram-lhe as mãos e Almanzo discretamente entregou ao Reverendo Brown uma nota dobrada. Este abriu-a e a princípio não percebeu que o dinheiro era todo seu. Ida apertou a mão de Laura e tentou falar, mas não conseguiu. Rápida, beijou-a, empurrou-lhe na mão um pequeno embrulho e saiu correndo da sala.
Laura e Almanzo saíram ao sol e ao vento. Ele a ajudou a subir ao carrinho é desatou os cavalos. Voltaram pela cidade. O almoço estava pronto quando chegaram. Ma e as meninas haviam levado a mesa para a sala de estar, entre a porta e as janelas abertas. Cobriram-na com a melhor toalha branca e puseram sobre ela os pratos mais bonitos. As colheres de prata, no seu suporte, brilhavam ao centro e as facas de aço e os garfos reluziam de tão polidos.
Como Laura hesitasse, tímida, à porta, Carrie perguntou:
— Que é isso em sua mão?
Laura baixou os olhos. Segurava, com o lenço de Carrie, o embrulho mole que Ida lhe dera. Respondeu:
— Não sei. Foi presente de Ida.
Abriu o pacotinho de papel crespo e desdobrou o mais belo trabalho de renda que já vira. Era um fichu triangular, de renda de seda, com um desenho de encantadoras flores e folhas.
— Durará a vida inteira, Laura — disse Ma, e Laura sentiu que guardaria como um tesouro aquela lembrança adorável que Ida lhe dera.
Almanzo chegou, depois de recolher os cavalos, e todos se sentaram à mesa.
Foi um dos deliciosos almoços de Ma, mas todos os pratos tinham o mesmo sabor para Laura. Até o bolo de casamento parecia seco como serragem na sua boca, pois finalmente compreendera que estava deixando a casa de seus pais, que nunca mais ali voltaria para ficar. Demoraram-se à mesa, porque sabiam que depois do almoço seria a despedida. Por fim, Almanzo disse que era bom partir.
Laura pôs novamente o chapéu e caminhou para o carrinho que Almanzo trouxera até a porta. Houve beijos de despedida e votos de muita felicidade, enquanto ele esperava para ajudá-la a subir no veículo. Mas Pa lhe tomou a mão.
— Você lhe dará a mão de ora em diante, meu rapaz — disse a Almanzo — mas esta vez eu darei.
E Pa ajudou-a a subir ao carrinho.
Ma trouxe um cesto coberto com um pano branco.
— Aqui tem alguma coisa para o jantar — disse com lábios trêmulos. — Venha ver-nos logo, Laura.
Quando Almanzo ergueu as rédeas, Grace veio correndo com o velho chapéu de sol:
— Você esqueceu! — gritou, levantando-o. Almanzo freou os cavalos e Laura apanhou-o. E quando tornaram a partir, Grace exclamou, ansiosa:
— Lembre-se, Laura. Ma diz que, se você não usar o chapéu, ficará escura como um índio!
E todos riam quando Laura e Almanzo partiram.
Foram pela estrada que tantas vezes haviam percorrido, pela garganta do Grande Pântano passaram pela estrebaria de aluguel, subiram a Rua Principal e cruzaram os trilhos da via férrea, tomando depois a estrada que levava à casa nova na concessão de árvores de Almanzo.
Foi uma viagem silenciosa quase até o fim, quando, pela primeira vez naquele dia, Laura reparou nos cavalos. E exclamou:
— Quê! Está guiando Príncipe e Lady!
— Príncipe e Lady começaram isto — disse Almanzo. — Então pensei que gostariam de nos trazer para casa. Eis-nos chegados.
Os sulcos deixados pelas rodas da carroça e do carrinho descreviam um perfeito círculo em direção ao bosquete de árvores novas, em frente à casa. E ali estava ela, bem acabada, revestida e pintada de cinza-claro. Sobre o degrau da porta estava deitado um grande cão pastor, que se ergueu e educadamente agitou a cauda para Laura quando o carrinho parou.
— Olá, Shep! — chamou Almanzo. Ajudou Laura a descer e abrir a porta.
— Entre, enquanto recolho os cavalos — disse.
— Entrou, parou junto à porta e olhou. Era o cômodo maior. As paredes estavam cuidadosamente rebocadas de branco suave. No extremo oposto, achava-se uma mesa de tampo de descer, coberta com a toalha de quadrados de Ma e uma cadeira se ostentava de cada lado. Ao fundo, viu uma porta fechada.
Ao meio da parede comprida, à esquerda de Laura, uma ampla janela abria para o sul, deixando entrar a luz do sol. Dos lados, sociavelmente, duas cadeiras de balanço se defrontavam. Junto da mais próxima de Laura, havia uma mesinha redonda e acima dela um lampião pendia do teto. Alguém poderia sentar-se ali à noite e ler um jornal. E, na outra cadeira, alguém poderia fazer tricô. A janela ao lado da porta dianteira deixava entrar mais luz na agradável sala.
Na outra parede comprida, duas portas estavam fechadas. Laura abriu a mais próxima e viu o quarto. Sua colcha "rola-na-janela" cobria o amplo leito e os dois travesseiros de penas reclinavam-se gorduchos à cabeceira. Aos pés da cama, em toda a largura da parede, estendia-se uma larga prateleira, mais alta que a cabeça de Laura, e da sua beira caía até o chão uma cortina de chita com lindas flori-nhas estampadas, formando um perfeito armário para roupas. Junto à parede, sob a janela dianteira, achava-se a mala de Laura.
Vira tudo isso num relance. Tirou o chapéu e o colocou sobre a prateleira. Abriu a mala e tirou de lá o vestido de chita e o avental. Despiu o vestido de casimira preta e pendurou-o com cuidado no armário sob a cortina, enfiou-se no vestido de chita azul e atou o avental cor-de-rosa com pregas crespas. Voltou à sala da frente quando Almanzo entrava pela porta ao lado da mesa de tampo de descer.
— Está pronta para o trabalho, ao que vejo! — exclamou com jovialidade, depondo o cesto de Ma sobre a cadeira próxima. — Será melhor que eu me prepare também para o trabalho. Voltou-se à porta do quarto e acrescentou: — Sua mãe me disse que abrisse o embrulho e arrumasse as suas coisas.
— Foi bom assim — respondeu Laura.
E olhou pela porta junto à mesa. Ali estava o telheiro O fogão de Almanzo quando solteiro achava-se ali e panelas e uma frigideira estavam penduradas às paredes. Havia uma janela e uma porta traseira, de onde se avistava a co-cheira, além de algumas arvorezinhas.
Laura voltou à sala. Apanhou o cesto de Ma e abriu a última porta. Sabia que era a da despensa, mas parou surpresa e deliciada ao vê-la. Toda uma parede estava coberta de prateleiras e gavetas e havia uma vasta prateleira sob uma ampla janela no extremo oposto da despensa.
Laura pôs o cesto de Ma sobre aquela prateleira e abriu-o. Deparou com um gostoso pão feito por ela, uma porção de manteiga e o resto do bolo de casamento. Deixou tudo sobre a prateleira, enquanto examinava a despensa.
Uma parede maior mostrava-se coberta de prateleiras, oesde o teto até meia altura. As prateleiras superiores estavam vazias, mas na mais baixa havia um lampião de vidro, os pratos usados por Almanzo quando solteiro e duas vasilhas de leite, com panelas vazias perto. No extremo, por cima da prateleira da janela, no canto, via-se uma fila de latas de temperos. Por baixo dessa prateleira, encontrou muitas gavetas de tamanhos diversos. Logo embaixo dos temperos e acima da prateleira da janela, encontravam-se duas gavetas um tanto estreitas. Laura descobriu que uma estava quase inteiramente cheia de açúcar branco e outra de açúcar mascavo. Que jeitoso!
A seguir, uma gaveta funda estava cheia de farinha e outras menores continham farinha integral e fécula de milho. Em frente da janela, podia-se preparar qualquer coisa sem arredar pé. Lá fora, pela janela, via o grande céu azul e as arvorezinhas cheias de folhas.
Outra gaveta funda estava cheia de toalhas e toalhas de chá. Uma outra continha duas toalhas de mesa e alguns guardanapos. Uma gaveta rasa guardava as facas, os garfos e as colheres.
Por baixo de todas essas gavetas, havia espaço para um alto batedor de manteiga, de pedra, e lugar para outras coisas que fossem surgindo.
Em uma gaveta mais larga, da fileira inferior, encontrou apenas uma côdea de pão e meia torta. Aí Laura guardou o pão de Ma e o bolo de casamento. Cortou um naco da porção de manteiga e o pôs em uma pequena bandeja, ao lado do pão. E fechou a gaveta.
Pela argola de ferro presa ao chão da despensa, percebeu que havia um alçapão. Levantou a argola e puxou. A tampa subiu e descansou na parede oposta às prateleiras. Embaixo desciam os degraus da adega.
Cobrindo cuidadosamente a porção de manteiga, Laura desceu a escada da fresca e escura adega e a colocou em uma prateleira que pendia do teto. Ouviu passos em cima e, quando subiu a escada, escutou Almanzo que a chamava.
— Pensei que estivesse perdida nesta casa tão grande! — disse ele.
— Estava levando a manteiga para a adega, para conservá-la fresca — explicou Laura.
— Gostou da despensa? — indagou. E ela pensou quantas horas ele deveria ter trabalhado para colocar todas aquelas prateleiras e ajustar tantas gavetas.
— Sim — concordou.
— Agora, vamos ver o potro grande de Lady. Quero que veja os cavalos nas baias e o lugar que preparei para a sua vaca. Prendi-a na estaca para pastar, fora do alcance das árvores novas — Almanzo mostrou o caminho pelo telheiro até lá fora.
Percorreram a comprida estrebaria e o pátio além. Almanzo mostrou-lhe os novos montes de feno, ao norte, para proteger o pátio e a estrebaria quando viessem os ventos de inverno. Laura afagou os cavalos e o potro e também Shep ao seu lado. Viram os pequenos bordos, buxos salgueiros e choupos.
A tarde passou depressa. Era hora de cuidar do serviço e do jantar.
— Não faça fogo — disse Almanzo. — Prepare o pão com manteiga que sua mãe nos deu. Vou tirar leite da vaca e teremos pão e leite fresco para o jantar.
— E bolo — lembrou Laura.
Depois de terem comido e lavado a pouca louça, sentaram-se à soleira da porta, enquanto anoitecia. Ouviram Príncipe resfolegar: Uuuuf! ao se deitar sobre a cama de feno limpo, na baia. Viram o vulto impreciso da vaca sobre a relva onde se deitara, ruminando e descansando. Shep, a seus pés, já era quase o cão de Laura.
Seu coração transbordava de felicidade. Sentiu que não teria saudades do antigo lar. Era tão próximo que poderia visitá-lo quando quisesse, enquanto ela e Almanzo faziam um lar na sua casinha nova.
Tudo lhes pertencia: os cavalos, a vaca, a concessão. As folhas das pequenas árvores sussurravam docemente à brisa mansa.
O crepúsculo desmaiava, as estrelas pequeninas cintilavam e a lua subia e pairava nas alturas, derramando sua luz prateada pelo céu e pela campina. Os ventos, que haviam soprado, murmurantes, todo aquele dia de verão, agora dormiam e a quietude cobria a terra banhada de luar.
— A noite está maravilhosa — disse Almanzo.
— O mundo é belo — respondeu Laura, e na lembrança ouvia o violino de Pa e o eco de uma canção:
Os anos dourados passam,
Dourados anos felizes.
Laura Ingalls Wilder
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