Estava há tanto tempo só, que já não podia mais. Mas de repente encontrou uma luz em meio ao desespero, uma alma gêmea, uma mulher que lhe deu uma razão para viver, para existir, para continuar.
História curta sobre como se conheceram Vlad Dracul e Elizabetha.
Vivi sozinho durante tantos séculos que já não podia mais, por isso naquela noite decidi acabar com tudo e rezei aos deuses que pudessem existir, suplicando-lhes que não existisse a imortalidade da alma ou, que se fosse assim, eu tivesse perdido a minha há muito tempo. Não desejava continuar de nenhuma das maneiras.
Ironicamente, dentro de mim seguia batendo o coração de um romântico, a alma de um poeta que não compunha, só sentia. Assim, era lógico que tentasse que meus últimos minutos neste mundo merecessem a pena. Assim foi que acabei deitado no frio chão daquele precipício que emanava uma cascata, nas horas mais escuras daquela longínqua noite.
Fiquei ali, escutando o rugir da água e saboreando a bruma que deixava no ar. Olhei o céu sem lua, cheio de estrelas que pareciam diamantes e esperei ver o primeiro amanhecer depois de muitos séculos. Perguntei-me até onde subiria a ardente esfera antes que meu corpo se consumisse; quanto tempo me permitiria observá-lo antes que o fogo devorasse minha carne e meus ossos.
Sabia que doeria que resultaria insuportavelmente doloroso para uma criatura tão sensível como podia ser um vampiro centenário. Não vou dizer que não temesse a dor… claro que a temia. Esperava apavorado. E, entretanto, aceitá-la-ia porque tinha a esperança de que com ela chegaria o doce nada que me aguardava no outro lado.
Tinha tido uma vida longa e cheia de acontecimentos. Mas não feliz. A imortalidade tinha sido um desperdício para um homem como eu.
Ali estava, esperando ao sol e, com ele, a morte, com as costas apoiada na fria pedra que formava o chão, o rosto e a roupa encharcados pela água da cascata e os olhos cravados nas estrelas que foram desaparecendo em um céu que ia passando do índigo à púrpura. Já não faltava muito. Uma hora, ou duas no máximo.
O ruído da água estava acompanhado pelo canto dos pássaros que se levantavam antes do amanhecer e que tinham começado sua tarefa diária de despertar ao sol. Escutei aquele canto como nunca antes o tinha feito; sempre tinha sido para mim uma espécie de aviso, agora me resultava fúnebre, meu próprio réquiem. Fechei os olhos e saboreei a sinfonia enquanto esperava a chegada da morte.
Então, outro som interrompeu o canto, era um ruído discordante, uma nota amarga que não sintonizava com a harmonia dos pássaros e que ia mudando tudo. Acredito que soube, inclusive então. Era o som de uma mulher, chorando.
Abri os olhos, incomodado pela interrupção. Minha formosa e poética marcha deste mundo tinha ficado destroçada. Sentei-me e procurei a origem de dito pranto enquanto pensava que a intrusa teria sorte se não decidisse levá-la comigo em minha última viagem. Quando por fim a vi, coloquei-me em pé, meu corpo parecia ter vontade própria.
Inclusive de longe, pude ver que era uma mulher formosa. Disso não havia nenhuma dúvida, não para uns olhos de poder sobrenatural como meus. Estava de pé na borda da cascata, olhando para baixo. Imediatamente soube que ia saltar.
Queria morrer. Igual a mim.
Desde o momento em que meus olhos pousaram sobre ela, desapareceu de minha mente a consciência de minha própria desgraça e só pude pensar em sua tristeza. Seu comprido cabelo dourado se movia com o vento que se levantava da água. Pedi a sua mente que se abrisse à minha. Não me foi difícil saber o que lhe ocorria… as emoções a transbordavam. Havia nela dor e tristeza, uma tristeza a esmagava.
Perguntei-me por que. O que podia causar tanto dor a alguém tão jovem?
De repente soube que não tinha tempo de aprofundar em sua mente em busca de respostas porque se aproximou mais da borda do precipício, os dedos dos pés apareciam já no vazio, e com a cabeça bem alta, levantou os braços como se fosse uma preciosa ave secando as asas ao sol.
Gritei com todo o poder de minha voz, algo incrível em um vampiro tão velho:
–Não! Pare!
Ela estremeceu, seu olhar se cravou no meu do outro lado da sima, mas não mostrou o menor temor ante a força de minha ordem, embora sem dúvida deva ter-se dado conta de que aquela voz não podia pertencer a nenhum homem normal. Seguiu me olhando uns segundos, até que abriu os olhos de par em par ao me reconhecer.
Eu levantei uma mão para lhe dar a entender sem necessidade de palavras que ficasse onde estava. Ela me conhecia… eu pertencia à realeza, por isso tinha que me obedecer.
E, entretanto, não o fez. Inclinou-se para diante e, mais que saltar, caiu no vazio. Não me tinha deixado outra opção, assim que me lancei atrás dela com pouco mais que a força de minha vontade e a sabedoria de meu instinto.
Ela caía devagar, com as pernas e os braços estendidos. Eu ia como uma flecha que apontava para baixo com os braços, meu corpo cortava o ar como uma faca enquanto com o poder da mente tratava retardar sua queda e acelerar a minha.
Eu não dominava a arte de voar, embora muitos de minha espécie sim o fizéssemos. Podia trocar de forma, mas necessitava certo tempo para fazê-lo e isso era algo do que não dispunha. Portanto escolhi, se podia dizer-se que tinha escolha alguma, interromper sua queda com meu próprio corpo.
Tinha a sensação de que tudo estivesse passando a uma velocidade mais lenta da habitual. Atravessei a bruma que parecia protegê-la até que por fim consegui que meu corpo se chocasse com o seu. Tentei suavizar o impacto envolvendo seu corpo magro com minhas pernas e me colocando debaixo dela, de maneira que o primeiro que tocasse a terra fossem as minhas costas.
Durante um instante seus olhos, de um brilho negro tão intenso como o do ônix, cravaram-se em meus com uma força que eu jamais havia sentido.
– Por quê? –sussurrou.
A dor que empapava aquelas duas palavras ia além do que eu conseguia compreender. Procurei uma resposta com todas as minhas forças, mas não soube por que.
A dor estalou dentro de mim naquele momento, quando as afiadas rochas do rio puseram fim de repente a nossa queda. A água gelada me rodeou, encheu-me o nariz, a boca e os pulmões. Meus ossos se quebraram sob a pele e tudo ficou escuro.
Até no momento de sucumbir em dita escuridão soube que não era o negrume da morte. Era uma pausa temporária, como o tinha sido muitas outras vezes antes. Aquela era a escuridão de minha prisão, de minha vida.
Despertou com o aroma de fogo. Ramos de coníferas, o chispar das chamas era inconfundível para meus aguçados sentidos. A dor invadia meu corpo. Supus que ainda seria de noite. Não podia ficar muito tempo inconsciente, embora estivesse claro que tinha passado algum tempo.
Encontrava-me em uma cova, detrás da cascata, ali vi um túnel que entrava na montanha, afastando da água. Devia ser o caminho que tínhamos utilizado para chegar ali. O fogo crepitava e dançava a pouca distância de mim e lentamente me secava a roupa que ainda levava usando. Ela estava sentada no outro lado da fogueira, me olhando através das chamas.
– Acreditei que tinha morrido – disse. Sua voz era como o mel, mas ainda havia um pouco de tensão na profundidade de suas palavras, certa aspereza –. Alegro-me de que não seja assim.
– Mas não te alegra tanto de não você ter morrido.
Ela piscou várias vezes e olhou para outro lado.
– Não, disso não me alegro tanto.
– Por quê?
Baixou a cabeça e afundou também os ombros. Levava um singelo vestido marrom de pescoço redondo e tecido já gasto.
– Toda minha família morreu – respondeu em um sussurro –. Não vejo razão alguma para não me reunir com eles. Aqui já não fica nada.
Eu assenti.
– Compreendo.
Ela me olhou.
– Não vais discutir comigo? Não vais dizer-me que ainda ficam muitas coisas por viver, que uma moça de dezessete anos tem toda a vida por diante, como me disse todo mundo?
– Por que teria que estar contra procurar o consolo da morte se eu estava ali com a intenção de encontrar esse mesmo consolo?
Voltou a piscar, claramente surpreendida ante tal revelação.
– Mas você… você é o príncipe.
– E sei muito bem o que é sofrer. Sangro igual a você. Não, não vou discutir contigo, bela moça. Nem sequer sei por que me ocorreu interferir em seus planos. A não ser que…
– A não ser que o que? –perguntou ela.
Encolhi os ombros.
–A não ser que fosse porque sua beleza me impactasse tanto, que não pude me conter. Tenho-o feito por puro egoísmo. Durante um instante, quando te olhei do outro lado do precipício, acreditei ver… – respirei fundo e me lancei a falar. Que mais dava se falava com sinceridade ou não? Do que serviria guardar as aparências ou proteger o orgulho? –. Acreditei ver uma razão para viver ao menos uma noite mais.
– Essa razão era… salvar-me?
–Não – me apressei a responder –. Não só te salvar. Conhecer-te. Falar contigo. Compartilhar minha dor com alguém que pudesse compreendê-la – baixei a cabeça –. Já te disse que tinha sido um ato completamente egoísta. Sinto muito se tiver prolongado seu sofrimento com minha desconsideração.
Ela me observou durante um bom momento e finalmente baixou o olhar e disse brandamente:
– Suponho que amanhã me resultará tão fácil me matar como me pareceu isso hoje. Fale-me de sua dor.
Olhei-a fixamente. As chamas crepitavam e faziam com que saltassem faíscas. De repente me ouvi dizer:
– Pede que o faça, mas antes devo te dizer que o que vou contar-te nesta cova não o ouviu nenhum outro ser. Não pode sair deste lugar.
Ela encolheu os ombros.
– Não tenho intenção de sair daqui nunca mais, meu príncipe. Levarei seus segredos à tumba.
– Diga-me – sussurrou ela –. Como é possível que sua voz possa ser mais forte que a água da cascata? E como pôde voar entre a bruma para me salvar como um falcão que se lançasse a apanhar a uma serpente que anda pelo prado?
– Você o que crê? – perguntei-lhe –. Dá-me a sensação de que tem certa idéia. Escutaste o que o povo fala de mim?
Ela sorriu, não com alegria, mas com amargura.
– Não se pode viver entre rumores sem ouvir o que contam. Dizem que vendeu sua alma ao diabo para ser imortal. Dizem que o rei nem sequer é seu verdadeiro pai, mas um longínquo descendente teu que te tem feito passar por seu filho para encobrir seu segredo – fixou a vista em minha boca –. Dizem que bebe sangue de mulheres virgens para te manter sempre jovem.
Pela primeira vez vi um brilho em seus olhos, um brilho de emoção, de perigo. Aquela mulher era muito imprudente, uma temerária.
– E você o que crê? – perguntei-lhe.
Ela encolheu os ombros.
– Acredito que se isso fosse verdade, por que quereria morrer? Se fosse verdade, não estaria aí, retorcido de dor.
– É certo, sinto dor. Mas passarei as horas de luz dormindo e quando despertar com o pôr-do-sol, estará completamente curado.
Olhou-o com os olhos muito abertos.
– Poderia me curar muito mais rápido – continuou dizendo –. Agora mesmo, em apenas beber um sorvo de seu sangue de virgem.
O sorriso desapareceu de seu rosto.
– Tenta me assustar. Sei que não pode fazer isso, mas se quiser, toma meu sangue. Tire-me isso toda e deixe morrer. Não me importa.
– Jamais te deixaria morrer, bela moça. Possivelmente te deixaria ofegante de prazer e possivelmente já não tão virginal.
Olhou-me com olhos escuros e acesos ao tempo que ficava em pé, rodeava o fogo e se ajoelhava frente a mim. Rasgou a gola do vestido, deixando à vista seu pescoço e seus seios.
– Não me tome por parva – disse ela –. Se o que quer é minha virgindade, não faz falta que recorra a histórias de medo. Assim alcançarei a morte tendo conhecido um homem.
Eu a olhei. Seus seios, redondos, firmes e cheios de juventude. Sua beleza e sua vitalidade me afligiam e o desejo que me atormentava noite atrás de noite despertou dentro de mim como uma besta em busca de alimento.
Incorporei-me muito devagar, o desejo era mais forte que a dor que me provocava o movimento. Pus a mão na sua nuca e a atraí para mim. Percorri com os lábios o caminho que ia desde seu pescoço até seus seios, centrando neles toda minha atenção, até que a moça começou a ofegar de prazer e arqueou as costas para trás.
Depois voltei a subir por seu pescoço, salgado e delicioso. Abri os lábios e chupei sua pele, podia sentir o batimento do coração acelerado de seu coração na jugular com a mesma claridade com que sentia o ruído da água no exterior.
Agarrando-lhe a cabeça, mordi-lhe o pescoço. Quando minhas presas perfuraram a veia e seu sangue começou a correr por minha língua, pude sentir tudo o que sentia ela, inclusive o clímax que estremeceu seu corpo.
Aquele pequeno sorvo de seu sangue me golpeou como o teria feito um raio. Tão feroz foi seu impacto, que deixei cair à moça e me joguei para trás, caí no chão, atônito e sem fôlego. Demorei uns segundos em me dar conta de que ela seguia ali, tombada na fria pedra, com o cabelo esparramado como um atoleiro de seda dourada.
Coloquei-me em pé, os nervos ainda alterados pelo poder misterioso que continha seu sangue, voltaram junto a ela, ajoelhei a seu lado e a levantei do chão. Seu cabelo caiu como uma cortina, mas não vi rastro algum de sangue, nem nenhuma ferida.
– Acorda preciosa. Acorda.
Primeiro franziu o cenho antes que seus olhos se abrissem só um pouco e me olhasse como se fosse uma luz que fizesse mal à sua vista. Mas a única luz que havia na cova procedia do fogo.
– O que… passou?
– Não sabe?
Voltou a franzir o cenho, mas dessa vez em um gesto de concentração, depois assentiu.
– Ah, sim. Tentaste me assustar com estúpidas histórias de medo e depois me beijaste – acrescentou levando a mão ao pescoço, onde sem dúvida a pele seguia estando sensível.
– Desmaias-te de medo? Ou de desejo? –perguntei enquanto me questionava se ela também havia sentido o poder que tinha irradiado da união de nossos sangues. O teria esquecido ao desmaiar, ou simplesmente estava negando algo que não conseguia compreender?
– Desmaio ante qualquer superabundância de emoção – disse, baixando a cabeça –. Antes era forte. Muito forte. Corria e subia melhor que a maioria dos meninos do povoado. Também podia vencê-los em qualquer briga.
Não pude evitar sorrir.
– Não duvido.
–Pois deveria. Agora sou fraca como uma anciã.
Era uma lástima. Entretanto, eu começava a compreender por que me havia sentido obrigado a salvá-la, apesar de saber que ao fazê-lo estaria frustrando meus próprios planos, e ao provar o incrível poder de seu sangue.
Tinha que sabê-lo com certeza.
– Está doente? – perguntei-lhe –. Disse que toda sua família tinha morrido. Sofre a mesma enfermidade que levou a eles?
– Sim, estou doente. Mas não se trata da peste que matou a minha família tão repentinamente, com uma ferocidade que não se parece com nada que eu tenha visto em toda minha vida.
Eu assenti. Tinha visto os estragos da peste nos povoados próximos. Suas vítimas sofriam muito altas febres e uma tosse que parecia lhes rasgar os pulmões. Em só uns dias melhoravam ou morriam. Era uma enfermidade rápida e desumana.
– Primeiro levou a minha mãe, me deixando a mim só para cuidar dos outros quando caíram doentes. Meu pai. Meus irmãos. Minha irmãzinha. Só tinha dois anos.
Eu baixei a cabeça, afligido por sua dor. Sentia sua dor e sentia ela mais do que a havia sentido antes. Entre nós havia uma conexão especial; então soube. E esse pequeno sorvo de seu sangue não tinha feito mais que fortalecer a feliz conexão.
Ela era como eu. Era uma de Os Escolhidos.
Poderia lhe dizer quem era? Devia fazê-lo?
Deus sabia que aquilo era algo que ninguém se incomodou em contar a mim. E eu tinha lamentado que fosse assim. Tinha-o lamentado durante séculos.
– Ninguém sabe o que me ocorre – seguiu dizendo aquela formosa criatura –. Só sei que cada ano está um pouco mais débil e estou farta de ser uma moça apanhada em um corpo de anciã. Seja o que seja, matar-me-á cedo ou tarde. Decidi que prefiro que seja o antes possível. Quero acabar com isso de uma vez.
– Compreendo-a.
– É impossível que compreenda.
Pus a mão no queixo e lhe levantei a cara para que me olhasse.
– Pois assim é. Durante o dia te encontra cansada, dorme muito. Só quando o sol se põe tem um pouco de energia. Quando te corta, sangra muito. E…
O modo em que abriu a boca me fez calar. Seus olhos me olharam com surpresa.
– Como pode saber essas coisas?
– Porque é o mesmo que sofri eu. Faz muito, muito tempo.
– Mas segue com vida – sussurrou –. E é forte. Como te curou? Diga-me isso.
– Dir-lhe-ei isso, se antes me disser você outra coisa.
– O que seja – prometeu ela.
Assenti e me sentei em uma posição mais cômoda junto ao fogo, ainda me doíam os ossos que tinha quebrado.
– Que desejas saber, meu príncipe?
– Algo muito singelo – lhe disse –. Só seu nome.
– Meu nome? – disse baixando a cabeça.
Vi o alívio em seus olhos. Tinha esperado algo mais difícil.
– Elisabeta.
– Muito bonito – disse eu–. Tanto como você.
– Freqüentemente me dizem que tenho um aspecto estranho, jamais ninguém me disse que sou bonita.
– Pois é. O cabelo loiro e os olhos da cor de ônix. É uma estranha combinação.
– Estranho é estranho.
– Também é pouco comum, precioso. Como os diamantes.
Voltou a baixar a cabeça e vi como se ruborizavam suas bochechas.
– Dir-me-á agora o que sabe de minha enfermidade?
Olhei para a entrada da cova, onde se podia ver o céu mais claro que antes. A cor púrpura se transformou em violeta no alto e em cinza um pouco mais abaixo.
– Está saindo o sol. Sente-o? Sente como a luz do dia afeta os seus sentidos e te impulsiona a descansar?
– Sim – sussurrou ela –. Claro que sinto. Pensei que era que era a única que podia sentir como se aproxima o amanhecer.
– Sentem-no todos os que são como nós. Quando tomar a cura, não só te chamará Elisabeta, fará que obedeça. Eu devo dormir durante o dia. Não posso evitar por muito que tente.
Levantou a cara para mim.
– Inclusive agora está querendo dormido, verdade? Mas eu quero saber… preciso saber se for me pôr bem.
– Estará tão bem como o estou eu agora. Eu te direi como consegui-lo, preciosa. Fique aqui comigo, dorme tranqüila em meus braços e quando voltar a cair a noite, despertaremos e te contarei todos os meus segredos. Secretos que ninguém mais sabe.
Tombei-me sobre a pedra, longe da entrada e a uma distância prudente do fogo. Não fez falta que eu lhe dissesse nada, ela veio para mim livremente e se encolheu entre meus braços.
– Esses segredos que vou compartilhar contigo poderiam me custar tudo o que tenho. Inclusive a vida – lhe disse –. Exige um preço muito alto, Elisabeta.
– Eu sou pobre. Não tenho nada que oferecer a um príncipe – sussurrou.
– Tem muito que me oferecer, minha menina. Em troca de meus segredos, deve te comprometer a ficar comigo… para sempre.
– O preço da cura é… minha companhia?
– Não é em troca da cura, mas sim do conhecimento – me pesavam as pálpebras e o corpo inteiro –. Se não quer tomar a cura…
– Por que não teria que querer?
Fechei os olhos.
– Até um momento atrás não queria continuar vivendo.
Ela assentiu.
– Agüentei o sofrimento por minha família. A debilidade, o enjôo, as náuseas… tudo. Mas agora que eles não estão não vejo motivo para seguir sofrendo, se ao final só me espera a morte. Mas se posso estar bem, se pudesse me curar e… e se pudesse estar contigo… – assentiu com firmeza –. Quereria tomar essa cura.
– Poderá fazê-lo – assegurei –. Mas isso será mais tarde. Depois, se rechaças a cura, Beta, terá que ficar comigo até que chegue ao fim sua vida mortal. E se a tomar, ficará comigo para sempre, porque viverá para sempre.
Levantou o olhar para mim, pude ver em seus olhos que não acreditava completamente.
– Quer isso dizer que decidiste não acabar com sua vida? – perguntou-me retirando uma mecha da minha testa com mão tremente.
– Pode ser que mereça a pena seguir com vida se posso compartilhá-la contigo, Elisabeta.
Encheram-lhe os olhos de lágrimas.
– Faz poucas horas que te conheço, meu príncipe, e não consigo compreender por que um homem tão capitalista como você teria que querer que uma camponesa como eu fizesse tal promessa. Mas posso te dizer que a farei. Ficarei contigo o resto de meus dias, sejam poucos ou muitos. E faço essa promessa sem necessidade de que compartilhe comigo seus segredos. Prometo-o livremente. Não me deve nada em troca, nem curas nem segredos. É uma promessa que não pode comprar.
Senti que meu coração crescia dentro do peito. Sei que não tinha nenhum sentido, logo que conhecia essa moça e, entretanto, pela primeira vez em minha vida, senti que algo quente enchia meu corpo além do sangue de um ser vivo. Possivelmente fosse a esperança. Ou possivelmente… amor.
– Te direi como te curar, Elisabeta. Quando despertar.
– Então dorme meu príncipe. Dorme e eu farei o mesmo.
Dormi e acredito que ela também o fez. Senti-me em paz e mais satisfeito do que nunca. Mas no fundo me preocupava em como seria sua reação quando lhe contasse a verdade. Quando lhe dissesse que para seguir com vida teria que aceitar o escuro dom que me tinha imposto um demônio que queria um escravo imortal no amanhecer da história.
O que faria quando lhe dissesse quem era eu? Acreditar-me-ia? Fugiria de mim, horrorizada? Ou seguiria ao meu lado?
Dormi. Dormi como os mortos e, entretanto permaneci consciente de algum modo e pude saber o que ocorria a meu redor. Soube que alguém, um homem, entrou na cova e pronunciou seu nome com impaciência.
– Elisabeta! O que crê que está fazendo? Por todos os Deuses, menina! Quem é esse homem?
Senti que minha amada se separava de meus braços.
– Não é o que crê tio. Eu… estive a ponto de cair do precipício e o príncipe me salvou a vida. Mas ficou ferido e eu só queria…
– O príncipe? – a voz do homem estava carregada de surpresa e de temor –. Afaste-te. Deixa que o veja.
Senti no rosto a respiração do homem, sua mão áspera em meu peito, procurando um sinal de vida.
– Pediu-me que ficasse com ele até que despertasse.
– Não vai despertar menina. Está morto. O príncipe está morto, que Deus nos ajude.
Elisabeta se pôs a chorar. Sentia sua dor e podia ouvir que suas lágrimas, uma a uma, caíam no chão de pedra e sobre mim.
– Não pode estar morto – soluçou –. Não pode ser.
– Para. Não te comporte desse modo. Pelo amor de Deus, o que vão disser as pessoas do povoado?
– Não me importa! – gritou ela –. Não me importa!
Deus, por que tinha tido que vir esse estúpido? Elisabeta teria ficado a meu lado até que eu despertasse ao anoitecer. Teria estado bem. Mas agora…
– A onde vai, menina? O que crê que está fazendo?
Ela respondeu de longe.
– Se ele se foi, irei com ele. Não quero viver!
Se esse cretino permitisse que se lançasse do precipício, jurei em um silêncio que me enchia de impotência e de fúria, matá-lo-ia assim que despertasse. Matá-lo-ia!
Ouvi os passados do homem e logo não ouvi nada mais. Sem Elisabeta o meu lado, o sonho diurno se apoderou desse vestígio de consciência que me tinha obstinado. Não soube nada mais até a queda da noite, quando voltaram para mim a energia e a vida igual ao que me acontecia com cada pôr-do-sol. O sangue voltou a correr por minhas veias, minha pele recuperou a sensibilidade, meus pulmões se encheram com a primeira baforada de ar depois de muitas horas e meus olhos se abriram.
Ela estava tombada o meu lado, chorando.
– Por quê? Cruel destino, por que me deu esperança para voltar a me arrebatar isso tão rapidamente? Por que me deu um senhor para depois substituí-lo com a dor mais profunda que jamais senti? Por quê?
Tinha a camisa molhada de seu pranto. Senti seu calor no peito. Foi então quando me dava conta de que já não estávamos na cova. Estávamos na capela de meu suposto pai. Eu jazia em uma urna funerária rodeada de velas. Não havia ataúde, nem flores, ainda não. Se o rei tivesse sido informado de minha situação, sem dúvida me teriam levado os meus aposentos, onde teria esperado tranqüilamente que chegasse minha ressurreição, ele já me tinha visto antes naquele estado de morte aparente e teria sabido que voltaria. Ignoro que explicação se dava a si mesmo para compreendê-lo. Só sei que me queria como um filho e que confiava em mim.
Mas, posto que estivesse ali e não em meu dormitório, o rei devia seguir fora, na misteriosa viagem que tinha empreendido no dia anterior.
Entretanto ela sim estava ali. Minha amada Elisabeta. Não suportava vê-la chorar. Levantei a mão e lhe acariciei o cabelo.
Ela se levantou de repente de onde tinha estado apoiada em meu peito e me olhou com uns olhos tão grandes como a lua cheia.
– Príncipe? Meu príncipe?
– Não chore minha menina. Não estou morto só… só dormia.
– Mas estava gelado!
Assenti ao tempo que me incorporava.
– Não tema, Elisabeta. Isto… faz parte do segredo que prometi te contar – baixei a cabeça, amaldiçoando a mim mesmo. Realmente ia confiar toda minha vida a uma completa desconhecida? Sim. Ia fazer porque, então soube, ela já não era nenhuma desconhecida –. Durante o dia descanso e, durante esse descanso, pareço um morto. Mas não estou.
– Então… o que é o que é?
– Um homem. Um homem que viverá eternamente. Um príncipe sem princesa, Elisabeta. Sou imortal. Sou…
– Um morto em vida – acrescentou ela em um sussurro.
O horror que invadiu seus olhos se cravou em meu coração como uma adaga enquanto ela se afastava, afastava-se de mim. Tinha uma mão no peito, mas então a levou ao pescoço, no mesmo lugar em que tinha estado minha boca.
– Você… você…
– Sou o mesmo homem que conheceu ontem à noite. Não tem nada que temer de mim, Elisabeta.
– Como pode dizer isso? – seguiu afastando-se de mim com o olhar cravado no chão. Seus pés, que na noite anterior tinham estado descalços, agora estavam calçados com uns velhos sapatos. O vestido que levava também era diferente ao da noite anterior, um objeto de uma cor púrpura escura que levava sob uma capa negra com capuz –. É um demônio. Um monstro.
Por muito que me dissesse que não devia deixar que aquelas palavras me ferissem, o certo é que me estremeci ao ouvi-las. Sabia que Elisabeta tinha medo, que não podia compreender.
– Não sou nenhum monstro. Sou um homem – tirei as pernas do caixão –. Vais deixar-me que lhe explique isso? Escutar-me-á?
Ela levantou o olhar e cravou seus brilhantes olhos negros nos meus.
– Disse-me que conhecia a cura do mal que está me matando. O que poderia haver mais monstruoso do que me mentir sobre minha vida... Sobre minha morte?
– Ontem à noite não temia à morte, Elisabeta. O que mudou?
– Que me deu falsas esperanças. Isso mudou.
Deu meia volta para sair correndo da pequena capela de pedra, mas eu tinha recuperado a força por fim e, curado de todas as feridas da noite anterior, lancei-me atrás dela.
Movi-me com mais rapidez do que teria podido seguir sua vista. Para ela foi como se de repente tivesse aparecido na porta da capela, lhe impedindo de escapar. Tentou deter-se em seco, mas acabou caindo sobre mim, contra meu peito. Agarrei-a pelos ombros.
– Me solte! – gritou retorcendo-se.
– Não eram falsas esperanças. Posso te ajudar. Posso te salvar – a sacudi brandamente –. Ouve-me? Posso te salvar!
Deixou de lutar e me olhou com os olhos muito abertos; por fim parecia me escutar. Estava pálida e assustada, certamente a beira do desmaio, mas me olhou atentamente antes de falar.
– Como?
– Então está disposta a me escutar?
Piscou várias vezes e finalmente assentiu.
– Escutar-te-ei. Suponho que se tinha intenção de me matar, poderia tê-lo feito ontem à noite.
– Claro que poderia tê-lo feito, mas jamais teria privado o mundo de ti – olhei a meu redor –. Alguém sabe que está aqui?
– Não, eu… – mordeu o lábio como se lamentasse admiti-lo, mas ao ver que não havia necessidade de fingir, continuou falando –:Entrei porque… queria te ver. Disseram-me que estava morto.
– Agora já sabe que só dormia, eu devo fazê-lo durante o dia. De noite, tenho uma energia ilimitada.
Olhou-me franzindo o cenho.
– Me ocorre algo parecido… minha energia não é ilimitada, mas é muito maior de noite.
– Ai, Elisabeta, somos mais parecidos do que imagina. Vêem, vamos a algum lugar onde possamos falar mais comodamente – a agarrei pelo braço e, ao ver que resistia, olhei-a nos olhos –. Ontem à noite sentiu algo por mim, Beta. Agora só sente medo. Qual das duas coisas te parece mais real? Em qual desses dois sentimentos confia?
Não respondeu a minha pergunta, mas caminhou junto a mim para uma pequena porta que havia no outro extremo da capela.
– O que tem que os serventes que lhe trouxeram aqui? – perguntou-me –. O que passará quando vierem e descubram que já não está?
– Não virão. Ouviram muitos rumores. Têm medo de mim.
Saímos dali em silêncio e chegamos a um prado onde meu cavalo pastava sozinho.
– Pasta de noite, enquanto os outros cavalos estão nos estábulos?
– Se eu vivo de noite, é lógico que também o faça meu cavalo.
– Isso não faz mais que levantar mais rumores – disse ela.
– Minha simples existência levanta rumores – respondi com um suspiro –. Deveria ir deste lugar.
– Por que não o tem feito?
Mandei um pensamento a meu cavalo para que atendesse.
– Vêem Soare – sussurrei.
O animal girou a cabeça, meneou a juba e cruzou o prado a galope até deter-se em frente a mim. Subi a sua garupa e depois estendi uma mão a Elisabeta.
– Soare – repetiu ela –. Sol. Estranho nome para um cavalo negro como a noite.
– Não me parece tão estranho – ela agarrou a mão para que eu pudesse subi-la ao cavalo, diante de mim.
– Suponho que não é mais estranho que o fato de que não leve cadeira nem rédeas.
– Não as necessito para guiá-lo.
– Parece como se lesse seus pensamentos.
– Isso é o que faz. E você também pode fazê-lo – a olhe e pensei, “É muito formosa, Elisabeta”.
Ela me olhou boquiaberta.
– Vê? Não é tão mau ser como eu.
– Então é certo. Realmente é o que dizem que é? Um morto em vida? Um vampiro?
– Assim é como chamam alguns, mas isso não explica o que sou realmente, Beta. Não te diz nada de mim – disse levando uma mão ao peito.
– Então me diga isso você. Fale-me de ti, meu príncipe. Diga-me por que fica aqui se é tão infeliz, se a gente do povoado tem tanto medo de você.
Assenti e dirigi Soare com meus pensamentos para que nos levasse pelo atalho que atravessava o bosque.
– Vim aqui porque em outro tempo este foi meu lar. Realmente sou o príncipe deste lugar, mas há algo no que os rumores não se equivocam. O rei não é meu pai; em realidade eu sou seu antepassado.
– É incrível.
Assenti porque sabia que o era para muitos.
– Utilizei meu poder e minha força para convencer o rei de que era seu filho, quando o certo é que seu filho morreu em uma batalha vários anos antes de minha chegada.
– Como pôde convencer o rei para que acreditasse em tal coisa?
Seu corpo apoiado sobre mim me transmitia uma cálida sensação que poucas vezes tinha experimentado. Não tinha medo. Ao menos no momento.
– Eu… posso controlar a mente e os pensamentos de muita gente.
– Também os meus?
– Não tenho intenção de tentá-lo sequer, Beta. Não tema.
A resposta a fez sorrir.
– Segue.
– Verá, há uma mulher, imortal como eu, que tem certos dons como o da profecia. A necromancia, a adivinhação.
– Como se chama?
– Rhianikki. Ao menos esse era seu nome até recentemente, mas o troca constantemente. Era uma princesa e sacerdotisa do Egito que aceitou o dom quando eu o ofereci.
– Então está aqui por uma mulher.
– Por isso ela me disse, por isso viu em meu futuro. Disse-me que aqui encontraria a meu verdadeiro amor, a minha alma gêmea. Por isso permaneci neste lugar, mas tinha perdido a esperança até que te vi ontem à noite no precipício.
Elisabeta se voltou para me olhar com uma expressão petrificada no rosto.
– Quer dizer que… crê que sou eu?
– Deixarei que você decida quando tiver escutado toda minha história.
Pedi a Soare que se detivera. Estávamos em uma clareira infestada de flores, rodeada de árvores por três lados e pelo rio no quarto. Perto de nós, um cervo comia erva tranqüilamente, sem medo. Desmontei do cavalo e ajudei Elisabeta a descer também.
– Eu estava doente como você está agora, cada vez mais débil. Tinha trinta anos. De repente uma noite me levantou da cama um homem com a força de trinta. Levou-me a sua casa, um velho castelo em ruínas e ali… converteu-me no que era ele.
Elisabeta me olhou, ainda com as mãos em meus ombros.
– Como?
– Não quero te assustar com…
– Como? – insistiu.
Sim. Devia saber tudo.
– Afundou os dentes em meu pescoço, justos aqui – toquei o lugar exato –. Não doeu, como você bem sabe. Mas ele não se limitou a saborear meu sangue com paixão como eu fiz ontem à noite contigo. Ele bebeu de mim até que quase não ficou nada e depois me fez beber dele.
Sua única reação consistiu em abrir a boca e seguir me olhando sem piscar.
– Depois, dormi como se estivesse morto. Acreditei morrer ao me afundar naquele sonho profundo como nenhum outro que eu tivesse experimentado. Quando despertei… algo tinha mudado. Eu tinha mudado.
A via muito pálida na escuridão. Parecia assustado e ao mesmo tempo ansioso por escutar tudo o que eu tivesse que lhe contar.
– De que maneira tinha mudado? Sentia-se diferente? Seu aspecto era diferente?
Assenti.
– Meus sentidos parecia que se intensificaram de tal modo que a princípio me era insuportável. Tudo sentia mil vezes mais, algo que não faz mais que aumentar com cada ano que passa. Seja dor… ou prazer.
– Continue.
– Meu ouvido era muito fino, tinha a vista de uma águia e a debilidade tinha deixado caminho a uma fortaleza que nenhum ser humano jamais conheceu. Posso correr tão rápido que os olhos dos mortais não me vêem, posso saltar por cima desta árvore se o desejar e sou capaz de escutar os pensamentos dos humanos e de outros imortais, e também falar com eles… mas há muito mais, Beta. Sou imortal, sempre jovem, sempre forte.
Elisabeta assentiu lentamente ao tempo que dava a volta para dar vários passos, afastando-se de mim. Depois se sentou na grama, entre as flores e eu fui sentar me junto a ela.
– Faz com que pareça maravilhoso.
– E é… ou, poderia sê-lo.
– Então por que ontem à noite decidiu acabar com sua vida?
Olhei-a fixamente.
– É muito perspicaz para mim – admiti –. Mas tem razão, esta vida tem certos… inconvenientes. Nunca mais poderei ver o sol porque me queimaria até me converter em cinzas.
– Então… sim pode morrer.
– Tudo acaba morrendo cedo ou tarde. Eu posso morrer sob o sol ou queimado pelo fogo. Uma chama descontrolada é algo muito perigoso para mim. Se me fizer um corte, por pequeno que seja, posso morrer sangrado. E qualquer dor me é… insuportável.
– Compreendo.
– Mas o pior de tudo é a solidão. Quando a gente vive tanto tempo, Elisabeta vê como tudo o que conhece vai morrendo. Os reinos desaparecem, os costumes vão extinguindo-se e civilizações inteiras deixam de existir. Entretanto eu sigo aqui.
– Procurando alguém com quem compartilhar – sussurrou ela.
– Exato.
– Quantos anos tem? – perguntou-me.
– Mais de quatro mil.
Elisabeta piscou várias vezes e depois assentiu.
– E isso que dizem de ti… isso de que tem que beber o sangue de uma mulher virgem para sobreviver?
Olhei-a nos olhos sorrindo levemente.
– Tenho que beber sangue de um ser vivo, dá igual seja uma mulher virgem ou uma ovelha. Não tenho que matar para me alimentar, querida Beta. Já viu que ontem à noite provei seu sangue, só um sorvo, e ainda segue com vida.
Ela afastou a vista de mim.
– Foi algo… uma sensação que nunca…
– Sei. Eu também senti – passou a mão pelo cabelo. Ao recordar, senti como se esquentasse o sangue em minhas veias e crescia o desejo dentro de mim.
– É sempre assim?
– Não. No princípio não compreendi por que me senti assim ao beber seu sangue, mas acredito que agora sei.
– Então me explique isso.
– A maioria dos humanos não podem converter-se no que eu sou só uns poucos escolhidos. Tem algo haver com o sangue, os escolhidos têm algo diferente, algo único que os converte nisso, em Os Escolhidos. Podemos senti-los, sentimo-nos atraídos para eles de um modo inexplicável e irresistível. Existe uma forte atração entre os Mortos em Vida e Os Escolhidos.
– É algo mútuo?
– Sim – sussurrei enquanto lhe acariciava a bochecha.
– E o que tem que minha enfermidade? Isso também temos em comum?
Assenti.
– Os Escolhidos vão ficando mais e mais débeis e sempre morrem jovens a não ser que alguém os converta. Em seu caso, a morte demorará poucos meses, possivelmente inclusive semanas, para chegar. Mas eu não quero que te leve.
– Não sei – sussurrou ela –. Não sei se poderei suportar essa vida que me descreve. Não sei…
– Me deixe que te mostre como poderia ser tudo entre você e eu. Deixe-me que lhe ensine isso, Elisabeta. Só então poderá decidir.
– Eu… – levantou o olhar até meus olhos, assustada, e entretanto intrigada por algo que não compreendia.
– Me deixe fazer amor com você, Beta.
– Eu também o desejo. Mas… não me converterá?
– Prometo-lhe isso. Não te converterei.
– Então sim, meu príncipe. Sim.
Não esperei mais para beijá-la. Apertei minha boca contra a sua e saboreei seus lábios com deleite antes de deslizar a língua entre eles e entrar na umidade de sua boca. Elisabeta estava rígida, tensa. Levantei a cabeça para olhá-la.
– Posso fazer que seja mais fácil para você – lhe disse.
– Como?
– Posso fazer que o medo e as inibições desapareçam de sua mente com apenas uma ordem. Quer que o faça, Elisabeta?
Piscou com surpresa.
– Quer que me entregue a ti por completo? Que te entregue até minha mente?
– Sim. Entregue-me sua mente, seu corpo, sua alma – baixei a mão pelas costas lentamente e fui deitando ela até tombá-la na erva –. Diga-me que sim, Elisabeta. Confia em mim. Deixe-me que te possua, mas só durante um momento.
– Confio em ti.
–Então – me pus em pé deixando-a ali tombada. Entrei em sua mente com o poder da minha e tomei o que lhe tinha pedido que me desse –. Já não me teme, Elisabeta porque sabe que nunca te farei o menor dano. Agora confia em mim plenamente.
– Sim – sussurrou ela e o medo e a dúvida desapareceram de seu olhar e de sua mente.
Abri o broche da capa e, quando caiu de seus ombros, comecei lentamente a abrir o cordão que fechava o vestido. Seus seios estavam apertados contra o tecido, até que eu os liberei, despindo-os sob o céu noturno, ante meus olhos, ao alcance de minha mão.
Eu não controlava sua mente, queria que se entregasse para mim livremente. Mas sim fiz com que perdesse todo tipo de temores e de acanhamento. Tranqüilizei-a sussurrando a sua alma que podia confiar em mim plenamente. E era certo, podia confiar em mim sem nenhum medo.
Meus lábios percorreram seu pescoço e fui descendo pelo peito até chegar a seus seios, uns seios que tomei em minha boca e chupei ansiosamente, primeiro um e logo o outro. As mãos de minha dama se aferravam para mim enquanto ela arqueava as costas e sua mente me deixou experimentar as deliciosas sensações que percorriam seu corpo. Percebia todos seus pensamentos, todos seus desejos. Quando ela quis que minha língua percorresse seus mamilos, fiz-o e quando quis sentir o toque de meus lábios, dava gostoso.
Enquanto, meu próprio desejo não fazia mais que crescer. Apertei-me contra sua coxa para demonstrar-lhe e para me aliviar, mas foi em vão porque só serviu para me excitar ainda mais. Quando levantei suas saias, voltou a ficar tensa.
“Não, meu amor”, sussurrei a sua mente. “Não tem medo. Sabe que deseja. Desejas sentir minhas carícias. Aqui…”.
Ao mesmo tempo que lhe transmitia aqueles pensamentos, levei a mão ao centro de seu corpo e arranquei de seu corpo um gemido de prazer. Quando entrei nela, recebeu-me uma cálida umidade.
Desejava-a mais do que nunca tinha desejado nada. Explorei as profundidades de seu ser para logo me concentrar no centro de seu desejo, na diminuta semente que a fazia desfazer-se de prazer quando eu o apertava.
Seus gemidos eram cada vez mais fortes mais primitivos e livres enquanto minha mão explorava o núcleo de seu corpo e minha boca seus seios. Meus movimentos eram cada vez mais intensos e ela parecia desfrutá-lo.
Quando já não pude controlar mais o anseio e a impaciência que sentia, abri o vestido por completo para poder vê-la. Nua e exposta ante mim, seu primeiro impulso foi cobrir seu corpo.
– Não, Elisabeta – disse –. É minha, em corpo e alma. Quer te entregar a mim e saciar todos meus desejos. Não é certo?
– Sim.
– Então, diga-me isso.
– Sou tua – gemeu –. E você é meu, meu príncipe.
Despojei-me da roupa que me cobria em um frenesi de desejo, depois me tombei sobre ela, separei-lhe as coxas brandamente enquanto me aproximava do centro de seu corpo e, sem titubear, mergulhei-me nela.
Ela abriu a boca e me cravou as unhas nas costas.
– Te abra para mim – sussurrei ao sentir que suas coxas se esticavam.
E o fez; abriu-se para que eu pudesse me inundar no mais profundo de seu corpo como se entrasse em um maravilhoso remanso de paz que não desejava abandonar jamais. Retirei-me só um segundo para depois voltar para ela e fazê-la gemer de prazer.
Com uma mão joguei sua cabeça de lado e retirei o cabelo do pescoço, onde pude ver como pulsava o pulso sob a pele enquanto eu tomava seu corpo e me dispunha a tomar também seu sangue.
Afundei os dentes em sua garganta, arrancando de seus lábios um grito que não expressava dor, a não ser o prazer mais delicioso que nunca tinha experimentado.
O orgasmo estremeceu seu corpo enquanto eu me alimentava um orgasmo que teve seu fiel reflexo no meu até que me obriguei mesmo a lhe soltar o pescoço e me tombar a seu lado. Abracei-a com ternura até que acabaram os espasmos do prazer. Aquilo era algo mais que uma liberação, algo mais que uma sensação sobrenatural. Algo mais que algo que eu tivesse conhecido e, sem dúvida, muito mais que nada que ela tivesse imaginado.
Uns segundos depois, ela falou, virtualmente sem fôlego:
– Nunca pensei que fosse… que pudesse ser…
– Não é Beta. Não seria assim com nenhuma outra pessoa. Nunca foi para mim.
Ela levantou o olhar para mim, com sincera surpresa.
– De verdade?
– Eu estou tão aniquilado como você – lhe disse –. Embora possivelmente não tão surpreso. Haviam-me dito que compartilhar isto com um de Os Escolhidos era uma experiência incrível.
– Foi – confirmou ela, deitando-se entre meus braços –. É maravilhosa. Mas…
– Mas? –senti a mão fria do pânico me roçando o coração. Sentia que aquele ato, ter feito o amor com Elisabeta e ter bebido seu sangue, tinha-a unido a mim. Acreditava havê-la feito minha do mesmo modo que ela me tinha feito dela. Não me tinha passado pela cabeça que ela pudesse não sentir o mesmo –. Segue tendo dúvidas?
– Eu… – parecia ter que procurar as palavras adequadas para expressar-se –. Fazer o amor contigo é maravilhoso, muito mais que isso… Mas não me diz nada de como será viver… como você tem que viver e ser como você é. Pensei que seria suficiente.
Eu baixei a cabeça, com o coração encolhido. Imediatamente, ela me pôs a mão na bochecha e me olhou com infinita doçura.
– Pode ser que seja, meu príncipe. Meu amor. Mas ainda não estou às portas da morte. Não pode me dar um pouco de tempo para saber algo mais? Depois de tudo, é uma decisão importante que me afetará para sempre.
– O que poderia aprender que não já saiba?
– Poderia estar contigo, viver contigo, igual ao faz você.
Estava impaciente, zangado possivelmente, mas não sabia muito bem por que. Suponho que esperava que tivesse aceitado sem rodeios, em lugar dessa falta de compromisso.
– Meu amor – disse brandamente –. Disse-me que uma vez que conhecesse seus segredos, estaria unida a ti para o resto de meus dias, fossem muitos ou poucos. Não tenho intenção de mudar isso. Desejo estar contigo a partir de agora em adiante. Isso sei. Não duvido de ti, mas sim de mim mesma. Preciso decidir se esses dias que vou passar contigo, serão os de minha vida como mortal, ou os da eternidade. Por isso necessito de mais tempo – me deu um rápido beijo nos lábios –. Entende o que sinto amor?
Traguei saliva antes de responder.
– Entendo-o, mas eu não gosto de esperar. Poderia passar algo, Beta. Enquanto seja mortal, seguirá sendo frágil. Qualquer acidente, qualquer enfermidade poderia te arrancar de meu lado sem que eu pudesse fazer nada para impedir. Por Deus, Beta, recorda que toda sua família pereceu com a peste.
– Mas eu não. Faz semanas disso e eu não estou doente. Ao menos não sofro a peste.
Suspirei ao mesmo tempo em que a estreitava com força contra meu corpo.
– Não acredito que pudesse te deixar partir, Beta.
– Me dê só uns dias, meu amor. O suficiente para me fazer à idéia, para compreender e aceitar tudo isto. Por favor…
Olhei-a durante um comprido momento, observei a sinceridade que havia em seus olhos e finalmente disse:
– Sim. Dar-te-ei o tempo que me pede se você me der algo em troca.
– O que você queira – respondeu ela imediatamente –. Mas acredito que já te dei tudo o que tinha de valor.
– O que me deste tem um valor incalculável, o mesmo o que agora te peço. Dê-me sua mão, Elisabeta. Seja minha esposa. Case comigo esta mesma noite.
– Que me case contigo? E… esta noite? – seus olhos negros pareciam não ter fim, havia neles certa incredulidade –. Como pode me pedir que seja sua esposa se apenas me conhecer? Só faz umas horas que nos vimos pela primeira vez.
– Pensa Beta. Se não nos tivéssemos conhecido, nenhum dos dois seguiria vivo. Antes de te conhecer não desejava seguir vivendo, você tampouco. É tão difícil de entender que estamos destinados a estar juntos?
– Isso é o que crê?
– Sim – lhe disse, e era certo. Isso era o que acreditava. E sigo acreditando –. Não temos que dar explicações a ninguém, Beta. Podemos fazê-lo se desejamos. Eu sou o príncipe e faço o que me agrada. E você não tem família que vá pôr objeções.
Olhou-me sorrindo de um modo que fez com que me encolhesse a garganta.
– O certo é que acredito que te amo, meu príncipe. Sim. Seja qual for minha decisão a respeito de como passar o resto de minha vida contigo, casar-me-ei contigo.
Estreitei-a em meus braços, levantei-a do chão e juntos demos mil voltas. Depois a baixei lentamente para que nossos lábios se unissem, também o fizeram nossos corpos. Acredito que essa foi a noite mais feliz de minha existência. Certamente, após não houve outra melhor.
Voltamos juntos ao povoado que se estendia à sombra do castelo e ali fomos diretos à casa do sacerdote. Tiramo-lo da cama, abriu a porta com cara de surpresa.
– O que ocorre? – perguntou. Então se fixou em mim e abriu os olhos de par em par –. Alteza! Haviam-me dito que tinha morrido!
– Temo que os serventes do castelo são uns inúteis. Tombaram-me na capela de meu pai, à espera de sua visita, que sem dúvida não se teria feito esperar – acrescentei arqueando uma sobrancelha com ironia.
– É obvio que não, meu senhor! Só esperava que se fizesse de dia para acudir.
Parecia que os rumores tinham conseguido que inclusive um homem de Deus me temesse. Não importava. Possivelmente devesse me haver zangado, mas era muito feliz para permitir que aquele detalhe me preocupasse.
– Só foi um golpe na cabeça que me fez perder os sentidos durante umas horas. Mas, como pode ver, já estou bem.
– Certamente. Mas entrem. Tenho o fogo aceso e, se o desejarem, posso lhes oferecer pão e vinho.
– Esta noite só desejamos uma coisa, padre – lhe disse olhando o rosto de minha amada –. Que nos case.
Tínhamo-lo seguido ao interior da casa, mas a porta permanecia ainda aberta.
– Esta noite?
– Agora mesmo, se fosse possível.
– Mas não se anunciou o compromisso, nem se têm lido os…
– Nem vai se fazer – falei baixando a voz ligeiramente.
O sacerdote me olhou, depois a Elisabeta e logo franziu o cenho.
– Esta moça ainda está de luto por sua família.
– Casaremo-nos esta mesma noite, a menos que queira acabar nas masmorras do castelo – lhe disse.
Notei como Beta ficava tensa e me apertava o braço com a mão ao tempo que em seu rosto aparecia uma expressão de desaprovação.
O sacerdote respirou fundo e Beta me olhou nos olhos, negando com a cabeça.
– Assim não, meu amor – disse antes de dirigir-se ao sacerdote –. Casando-nos ou não, não sofrerá nenhum dano se decidir não fazê-lo. Limitaremos-nos a dar meia volta e procurar a outro que o faça.
O sacerdote aceitou nos casar, não pelas palavras de Elisabeta, mas sim pelo temor que sentia de mim. Sabia que eu jamais fazia uma ameaça que não pensasse cumprir e não confiava que aquela jovem tivesse o poder de aplacar meus ânimos.
– Vê-los-ei dentro de uma hora na capela do castelo. Parece-lhe bem?
– Sim – respondi e, com minha amada rodeada pela cintura, saí da casa.
Dali fomos a cavalo ao castelo, onde despertamos todos os serventes, amigos, familiares e convidados do rei, que ainda não tinha retornado de sua viagem, o qual me preocupava. O rei me considerava seu filho embora não o fosse realmente e não estava acostumado a me ocultar nada.
Em qualquer caso, encarreguei-me de dar as ordens e o fiz de um modo que certamente surpreendeu a todo mundo, pois estava acostumado a me encerrar em meus aposentos sem falar nem pedir nada a ninguém, sempre e quando se respeitasse minha privacidade. Mas essa noite era diferente. Em mim não havia mau humor e em meu rosto luzia um sorriso que adoçavam minhas ordens.
Quando chegou à hora fixada pelo sacerdote os serventes tinham encontrado um vestido para a noiva, de uma preciosa cor nata, tinham colhido umas flores para seu buquê e inclusive lhe haviam posto algumas no cabelo, umas flores tão delicados como a mesma Beta. Tinham despertado aos trovadores e à cozinheira para lhes avisar da iminente celebração.
– Está preciosa – disse a minha amada quando se colocou junto a mim em frente ao sacerdote –. Estou convencido de que isto não é mais que um maravilhoso sonho e que voltarei a despertar em solidão, como antes.
– É um sonho – me disse ela brandamente –. Um sonho feito realidade.
A pequena capela de pedra estava cheia de gente, desconhecidos, serventes e gente que me temia. Todos eles presenciaram quando a noiva e eu nos ajoelhamos em frente ao altar, momento em que ela prometeu ser minha para sempre e eu prometi cuidá-la durante o resto de meus dias. Pouco suspeitavam que aquelas promessas tinham mais significado que nunca, tratando-se de um homem cujos dias não terminariam jamais.
No final, tomei-a entre meus braços e selei nossa união com um beijo. Acreditava que, por uma vez, o destino me sorria. Pela primeira vez em muitos séculos, alegrava-me estar vivo. Dava graças aos céus por ser imortal, porque acreditava que Beta aceitaria que compartilhasse com ela aquele escuro dom. Que a convertesse no que era eu. Que queria estar comigo eternamente.
Seguro que faria.
Apesar da ansiedade que estava em chegar ao dormitório, sabia que minha esposa merecia uma celebração a altura. Porque, embora fosse uma camponesa, Elisabeta era muito mais que isso. Sem dúvida descendia da realeza e isso era o que pensava dizer ao mundo inteiro e ninguém teria motivos para duvidar que fosse certo.
Porque, como poderia uma família trazer para o mundo uma moça como ela sem que houvesse sangue real em sua linhagem? Uma mulher tão perfeita, com cara de anjo, o cabelo dourado como o sol e uns olhos negros que cativavam em apenas te olhar.
Quanto a amava. Quanto amava a minha jóia. Minha princesa.
Os músicos começaram a tocar a lira e a flauta ao nos ver entrar no salão principal do castelo. Os serventes encheram as mesas de comida que tinham conseguido preparar em tão pouco tempo e o aroma da carne que ainda estava assando fez com que todos os pressente sentissem água na boca. A cerveja e o vinho corriam a torrentes, eu dancei com minha esposa e vi como se ruborizavam suas bochechas enquanto empalideciam as dos outros.
– Está cansada? – perguntei-lhe franzindo o cenho.
– Um pouco, meu amor. Mas não quero que esta noite acabe.
– Deve acabar igual a todas. Mas nós não, Beta. Nós podemos seguir sempre.
Elisabeta sorriu e apoiou a cabeça em meu peito.
– Sei.
Antes que pudesse lhe perguntar o que queria dizer com isso, as portas do salão se abriram de repente e se fez um silêncio ensurdecedor. Os músicos emudeceram. Todo mundo deixou de comer e de falar. Ao me voltar para olhar vi meu suposto pai, o rei, de pé na soleira da porta, flanqueado por soldados armados.
Ele também me olhou do outro lado do salão, disse algo a seus homens e começou a caminhar para mim.
– Parece que interrompi uma celebração – disse –. Meu mal-humorado filho com um sorriso no rosto e uma formosa dama nos braços? Acaso…
– É minha esposa, pai – lhe disse –. Elisabeta. Seu pai e seu rei.
Senti-a tremer ao tempo que se ajoelhava em frente ao rei e inclinava a cabeça.
– Levanta filha. Levanta – lhe disse o rei, agarrando-a pelo braço para ajudá-la a ficar em pé –. Agora é uma princesa, muito importante e formosa para te inclinar ante um velho – lhe beijou ambas as bochechas com um enorme sorriso nos lábios e logo se dirigiu para mim, ainda com as mãos da Beta nas suas –. Por que tudo tão repentino?
– Só tive que olhá-la uma vez para saber que era feita para mim – falei, com um sentimentalismo muito pouco habitual em mim –. Não podia esperar, nem sequer que você chegasse pai.
– Não teria feito atrasar as bodas, meu filho, pois vejo que encontraste um verdadeiro tesouro. Só espero não atrapalhar a celebração com minhas más notícias.
Franzi o cenho ao ouvir aquilo.
– Empreendeu uma misteriosa viagem e vejo que levou alguns soldados – disse assinalando os que ainda continuavam na porta –. E não parecem muito dispostos a unir-se à festa.
O rei segurou um servente que passava por ali e lhe disse:
– Diga a meus homens que podem comer, mas que não bebam vinho nem cerveja. E os recorde que devem permanecer alerta.
Aquelas palavras fizeram com que me preocupasse ainda mais.
– O que ocorre, meu rei?
– Fui comprovar se eram certos os rumores que afirmavam que havia tropas inimigas na fronteira norte. Não vi necessidade de te incomodar com o que então não era mais que um rumor. Mas descobri que é verdade. Estão nos invadindo, filho. Estamos… em guerra.
– Temos que obrigá-los a retirar-se antes que cruzem o rio. Meu filho necessitamos de todos os homens disponíveis, ou nosso reino cairá.
Devia muito a aquele homem. A vida, para começar. Se ele não me tivesse aceitado, nunca teria encontrado a minha maravilhosa esposa. Não podia lhe negar minha ajuda. Além disso, sabia algo que ele ignorava que eu era seu guerreiro mais poderoso. Voltei-me a olhar Elisabeta.
Ela me olhou também, em seus olhos havia amor e medo.
– Não quero que vá – sussurrou.
– Oxalá não tivesse que fazê-lo. Venha. – a levei comigo enquanto meu pai punha fim à celebração. Subimos à escada de pedra que conduzia a meus aposentos… a nossos aposentos.
A janela estava coberta com capas e capas de tecido negro, para me proteger durante o dia, enquanto dormia. A cama era grande e cômoda, rodeada também por cortinas negras que ofereciam um amparo maior contra o sol. A porta podia fechar-se por dentro com uma tranca de ferro. Fui até a janela e retirei o tecido.
– Minha esposa seguirá vendo o sol todo o tempo que possa – lhe disse.
– Volta a por! – disse lançando-se a meus braços –. Já tomei uma decisão – anunciou então –. Serei como você, quero ser. Quero estar sempre contigo, mas, por favor, não vá. Não vá à guerra, meu amor.
Abracei-a com força e lhe beijei o cabelo e o rosto.
– Não tema por mim, minha formosa Beta. Sou imortal.
– Mas pode morrer. Você mesmo me disse isso! O sol poderia te matar… e se lhe fizerem um corte com uma espada ou lhe cravam uma flecha? Poderia te sangrar.
– Prometo-te que não morrerei. Voltarei para seu lado e então, se ainda o desejar, receberá o espírito que habita dentro de mim. O espírito da vida eterna.
– Faz-o agora.
Retirei-lhe o cabelo da cara e neguei com a cabeça.
– Tenho que estar contigo depois, tenho que te ajudar a compreender tudo o que sinta e te abraçar enquanto experimenta sensações completamente novas. É como morrer, Elisabeta. Como morrer e voltar a nascer. Não pode passar por isso sozinha. Não o permitirei.
– Então fique. Fica comigo e faz tudo isso que disse. Fica comigo para sempre como prometeu ante o sacerdote.
Baixei a cabeça com um profundo pesar que me encolhia o coração.
– Não posso. Não posso fazer isso.
Elisabeta pôs-se a chorar, eu a beijei uma e mil vezes, lhe secando as lágrimas com meus lábios.
– Amo-te, Beta. Jamais teria pensado que um homem pudesse apaixonar-se tão de repente. Conquistaste meu coração com a velocidade do raio. Nada poderia te afastar de mi. Nem agora nem nunca.
– Deixa que vá contigo – sussurrou.
Eu fechei os olhos, em doce agonia. Era tentador pensar em tê-la a meu lado… mas sabia que não podia ser.
– Não tem as forças necessárias. Deve conservar a energia que tem descansar, assim estará bem quando eu voltar. A batalha será dura, por isso espero que tenha acabado em um dia, ou dois no máximo.
– E se não for assim? – perguntou-me –. E se tiver que ficar mais tempo e morro em sua ausência?
– Se dura mais de dois dias, voltarei para ti. Ainda ficam semanas, possivelmente meses, Beta. Prometo-lhe isso.
– Amo-te.
– É a princesa deste castelo – lhe disse –. Não há rainha. Algo que deseje, só tem que pedir. Os serventes já te adoram.
Ouvi como os soldados preparavam os cavalos no exterior.
– Tenho que ir.
– Amo-te – repetiu e me beijou desesperadamente –. Amo-te com todo meu coração!
– E eu a ti – afastei os braços com profundo pesar, mas devia me vestir para a batalha.
Depois, acompanhou-me ao pátio do castelo e eu a louvei por isso. Quando nos reunimos com outros, Elisabeta tinha os olhos secos e a cabeça bem alta. Como uma rainha. Uma rainha maravilhosa.
Beijei-a uma vez mais antes de montar Soare e senti seu olhar sobre mim enquanto me afastava dela, rumo à batalha.
O combate foi atroz. Lutamos durante três dias sem parar e a única coisa que me impediu não voltar para seu lado depois do segundo como tinha prometido foi à certeza de que acabaria no dia seguinte. Estávamos a ponto de conseguir a vitória e se eu tivesse me retirado, teria suposto a derrota de meus. Assim rompi a promessa que tinha feito a minha esposa.
Quando voltei, encontrei as portas da capela totalmente abertas e dentro estavam todos aqueles que não tinham ido à batalha; serventes, camponeses… Todos choravam e gemiam com profunda dor. O caminho que conduzia até a capela estava coberto de pétalas de flor.
Desci do cavalo e pus-me a correr, perguntando o que ocorria a todos aqueles com que me encontrava. Estavam celebrando um serviço pelos mortos na batalha? Não podia ser, pois acabávamos de retornar com os corpos.
Todos a que perguntava se limitavam a me olhar, assustados, e depois se retiravam murmurando alguma prece.
Abri caminho entre a multidão e ao chegar ao altar, senti que morria por dentro. Ali estava ela.
Minha adorada Elisabeta jazia na mesma caixa de madeira sobre a qual tinha chorado por mim só quatro noites antes. Seu cabelo dourado se estendia a seu redor e o vestido mais formoso que jamais tinha tido cobria seu corpo.
Um grito de animal ferido saiu de minha alma me rompendo por dentro quando a tomei em meus braços e senti que não havia vida dentro dela. Estava fria. Rígida.
–Não! Não! – gritei –. Por todos os deuses, não pode ser.
– Vêem meu filho…
Era o sacerdote, que me tinha posto uma mão no ombro, mas eu me separei dele, olhei todos os pressente e pedi que se fossem, que me deixassem sozinho em minha dor. Todos obedeceram, todos menos uma mulher que ficou nas sombras, em silêncio, a uma boa distância de mim. Esteve ali durante horas, enquanto eu chorava com o corpo de Elisabeta em meus braços e amaldiçoava os deuses, o destino por me dar tanta felicidade e depois arrancar-me das mãos desse modo.
A ira foi suavizando-se e então soube o que devia fazer. Se minha amada partia deste mundo, eu iria com ela. Não desejava seguir vivendo sem ela. Possivelmente, de algum modo, pudéssemos voltar a estar juntos do outro lado.
Com tal determinação, dispus-me a me dirigir ao precipício onde, depois de tudo, poria fim a minha vida.
– Não demorará em amanhecer – disse uma voz de mulher –. Se ficar chorando sobre seu corpo um pouco mais, arderá com o sol.
Deixei o corpo de Elisabeta brandamente e me voltei para a mulher que tinha falado.
Conhecia-a. Tinha-lhe dado o Escuro Dom fazia muito tempo, quando ela era princesa do Egito e tinha sido rechaçada por seu pai, o faraó, que a tinha enviado ao templo para que a criassem as sacerdotisas de Isis.
– Rhianikki – disse.
– Agora sou Rhiannon – saiu das sombras. O cabelo negro como a noite lhe chegava até a cintura e um vestido dourado a cobria dos ombros aos pés. Assinalou um lugar a minhas costas –. A semelhança é espetacular, não te parece? Esteve o pintor trabalhando dia e noite desde que foi. Devia ser um presente de bodas para quando voltasse.
A dor que sentia era tão intensa, que logo que podia levantar a cabeça.
– O que a aconteceu? – perguntei-lhe.
– Disseram-lhe que tinha morrido na batalha. Acredito que foi esse tio dela. Ela não acreditou até que o segundo dia acabou sem que chegassem notícias tuas. Faz só doze horas, ao amanhecer do terceiro dia, que se atirou da torre para reunir-se contigo, meu príncipe. Um servente a ouviu gritar que se tivesse estado vivo, teria voltado para junto dela. Tinha fechado a porta de dentro, por isso ninguém pôde chegar a tempo de salvá-la.
Aquilo era mais do que podia suportar. Caí de joelhos.
– Então foi minha culpa. Eu a matei ao romper a promessa que lhe fiz – falei meneando a cabeça desesperadamente –. Por que me disse que a encontraria aqui se ia abandonar-me tão logo, Rhiannon?
Ela respirou fundo e baixou a cabeça.
– Não deveria ter ocorrido assim. Não foi isto o que eu vi meu amigo.
– Já não importa. Logo me reunirei com ela.
Rhiannon se aproximou de mim e pôs a mão no ombro.
– Sempre tiveste tão mau caráter. Sempre se lamentando de sua solidão e de sua imortalidade. Não há nada tão aborrecido como um vampiro incapaz de aceitar sua natureza. Ao menos agora tem um motivo para sofrer de tal melancolia.
Levantei a cabeça, sabia que tratava de me fazer ver por que devia seguir vivendo.
– Não vou continuar sem ela – disse com a esperança de que isso bastasse para pôr fim à discussão.
– Sim que vais continuar – assegurou –. Quer que te diga por quê?
Assenti ao mesmo tempo em que me punha em pé apesar de que estava intumescido pela dor.
– Suponho que não tenho outra opção, assim adiante, me diga por que teria que aceitar viver no inferno que é o mundo sem ela.
– Tive uma visão – começou a dizer –. Já não estou acostumada a ter, cada vez menos à medida que fico velha. Mas esta foi muito intensa. E não te atreva a duvidar de sua veracidade.
– Ninguém se atreve a pôr em duvida a imortal princesa do Nilo, não é? – a amargura empapava minhas palavras –. Adiante. Ainda tenho que seguir sofrendo uma hora mais até que amanheça. Assim me conte essa visão.
– Elisabeta voltará para ti.
Levantei o olhar para ela, com o coração a ponto de escapar do peito.
– Não será fácil – se apressou a acrescentar –. Primeiro tem que te assegurar de permanecer com vida até que volte e não posso te assegurar que vais voltar a encontrá-la. Assim, já vê, não pode sair ao sol. Deve seguir vivendo apesar da dor. Deve fazê-lo por ela.
Neguei com a cabeça.
– Farei algo por ela. Mas, quanto tempo terei que esperar?
Nem sequer a vampira mais insensível de todos os tempos pôde manter o olhar enquanto pronunciava a resposta.
– Uns quinhentos anos. Mais ou menos.
Senti que me fraquejavam as pernas. Ela me agarrou e impediu que caísse ao chão.
– Encontrá-la-á em um lugar chamado New Hampshire, em um povoado chamado Endover. É ali onde ela voltará para ti dentro de cinco séculos. Se puder suportá-lo.
Olhei-a nos olhos fixamente.
– Nunca ouvi falar desse lugar.
– Isso é porque ainda não existe.
– Está segura? – insisti sem afastar o olhar dela.
– Completamente.
Com um suspiro, voltei para junto da minha amada, junto ao corpo que a tinha hospedado, inclinei-me sobre ela e beijei seus lábios frios.
–Tentarei meu amor. Prometo-te que tentarei. Embora viver todo esse tempo sem ti acabe comigo. Mas tentarei agüentar, por ti – fechei os olhos às lágrimas que emanavam do mais profundo de meu ser e solucei–. Volta para mim, Elisabeta.
De algum lugar além dos muros da capela, juro que ouvi uma voz que dizia:
– Voltarei.
Maggie Shayne
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