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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ANÚNCIO / Alves Redol
ANÚNCIO / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

AS nove e trinta e um, pelo relógio da dactilógrafa, que o acertava todas as manhãs com o sinal horário da Emissora, o sócio gerente entrou no escritório como um rabo de tempestade e foi meter-se no gabinete. Logo pelo escarafunchar da chave na fechadura, o pessoal compreendeu que haveria "manhã de tourada", no dizer do Abreu, ribatejano de Alhandra, um gabarola de valentias taurinas, mas todo tremeliques se o Sr. Lourenço lhe falava sem o encarar.
Daí por uns segundos, a campainha vibrava num alarme de sirene de bombeiros. Era a habitual chamada do praticante para lhe abrir a janela e tomar conta do chapéu, ao mesmo tempo que indagava do rapaz as primeiras informações do trabalho. Queria fazer dele um homem, era o que lhe dizia sempre que o praticante hesitava nas respostas. "Se te portares com juízo serás o guarda-livros da firma."
Naquela manhã, porém, chegara mais cedo do que o costume e mal o encarara. Tossia com estrépito, arrastando a cadeira de braços, que já aproximara e afastara da secretária por duas vezes. Olhou o calendário: dia 15 de Maio, isto agora até os dias andam trocados, um diabo leve este tempo, gastei um dinheirão nas termas, e afinal fiquei pior.
Quando o chefe de escritório se anunciou à porta para ir cumprimentá-lo, respondeu-lhe primeiro entre dentes e logo depois num grito quando viu que o outro não entrava de pronto.
- O pessoal todo já chegou? - disse logo que o outro lhe estendeu a mão.
E, antes de arranjar pretexto para azedar a conversa, explicou sem rodeios o que resolvera durante a noite:

 


 


- Arranje um livro de ponto, se faz favor, tome nota, e às nove e meia em ponto fecha-o e comunica-me quem chegou depois da hora...
Percebeu na expressão do chefe de escritório que a ordem não lhe agradava:
- Bem sei no que está a pensar: nos dez minutos de tolerância. Mas sei perfeitamente que todos julgam que os dez minutos lhes pertencem e acaba-se com isso. A tolerância resolvo-a eu quando achar que os empregados a merecem ... O senhor é bom homem e eles abusam de si...
- Mas ...
-O senhor é a capa de misericórdia de muito malandreco. Desculpe que lhe fale assim, mas o senhor sabe que não exagero ...
O Mendes pensava no Caixa, nesse biltre que andava sempre a intrigar este mundo e o outro.
- O trabalho faz-se a tempo, Sr. Loureiro ...
- Não falo da sua competência; todos sabem a opinião que formo a seu respeito. Mas o pior é a disciplina ...
Mal a porta envidraçada se abriu de novo, todos os seus empregados ergueram a cabeça numa intenogação. O praticante olhou para trás, encolheu os ombros e fez gesto de que Ele vinha de "rosca moída". Encostou-se à secretária do ajudante, mexendo numa nota de lançamento que lhe ficara à mão, e bichanou-lhe, enquanto os companheiros apuravam o ouvido. A dactilógrafa parou os dedos no teclado e debruçou-se na máquina para perguntar ao arquivista se havia alguma novidade.
- Temo-lo à perna. Naturalmente a "boneca" fez-lhe mais alguma e agora a gente apanha por carambola. Traz uma cara ...
Muito inquieto, olhando o rapaz e a porta envidraçada, o Caixa recomendou silêncio entre dentes; com um sinal de cabeça, mandou-o sentar. Foi até ao cofre, agarrou em dois livros, passou os dedos pelas folhas e pô-los novamente no seu lugar; prolongava tudo isto com gestos lentos e longas meditações. O que lhe interessava era ouvir o que ocorria no gabinete, para depois transmitir ao conta-correntista, acrescentando pormenores da sua imaginação. Sabia alguma coisa da vida de toda a gente, farejava as conversas dos colegas e
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aproveitava-as depois quando levava documentos à assinatura do gerente. Todos conheciam o seu papel de delator. Por isso mesmo só o empregado das contas-correntes lhe prestava atenção, mais por receio das suas informações do que por astima ou camaradagem. Procurava ganhar a confiança da gerência, numa tentativa de ascender à chefia do escritório, chamando a atenção para qualquer lapso dos outros serviços com o mesmo sorriso submisso que usava nas conversas com o chefe.
"-O Sr. Mendes é muito frouxo. Deixa o pessoal à vontade e depois vem a indisciplina."
O gerente escutava-o sem levantar os olhos dos papéis:
"-Mais alguma coisa? ..."
E o Caixa, com aquela despedida habitual pegava nos documentos, fazia uma vénia rasgada e retirava-se, indo para a sua secretária mastigar insultos. Mas nisso nem desabafava com o conta-correntista, porque tomava os outros por si próprio.
O gerente agradecia-lhe no íntimo aquela solicitude. Não conseguia vencer, porém, a aversão que sentia por todos os tesoureiros, depois que o Pinto da Rocha fizera um desfalque de dez contos, deixando-o em embaraços com os outros sócios da firma. Já lá iam quatro anos; de hora para hora, o amargo daquele ressentimento azedava-o mais. Dispusesse de tempo para se encarregar do cofre, e nem um só dedo estranho tocaria no dinheiro da sociedade; vivia agora em sobressaltos constantes apesar das repetidas conferências e dos balancetes semanais.
Se nunca tivesse visto o Pinto da Rocha... Acabaria por se esquecer do desfalque, porque, no fundo, não era bem pelos dez contos -a sociedade estava próspera-, mas pelo abuso de confiança cometido, tanto mais que eram companheiros de noitadas no Arcádia. Isso, afinal, servira de pretexto ao Pinto da Rocha, o malandro; a família acabara por saber que perdia as noites, não a trabalhar, como dizia, mas na galderice com raparigas.
Desde esse acontecimento gravíssimo da sua vida - a, mulher nunca mais o deixara com apartes e gracinhas venenosas-, entendera que não devia mostrar os dentes a subalternos, e muito menos aos que mexessem em dinheiro. Sempre que ouvia ou lia aquela palavra,
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batia-lhe uma martelada no peito e ficava enervado por momentos, moendo, remoendo todos os pormenores dessa tarde de Dezembro em que o guarda-livros lhe comunicara a falta. O outro quisera dar-lhe explicações, inventara à falsa fé uma história do filho doente, ainda o vira chorar quando contara que a criança precisava de ares da serra.
"- Que tenho eu com isso, Pinto da Rocha? Arranje o dinheiro e abandone o lugar. Roubou-me o dinheiro e a confiança que tinha em si."
Mal apanhara a oportunidade de o guarda-livros sair do gabinete, o outro pusera-se a tratá-lo por tu, lembrando-lhe as noites de bródio e os tempos de liceu. Que descontaria todos os meses um tanto no ordenado, até perfazer os dez contos; poupasse-lhe a vergonha e a desgraça daquela infelicidade. Pegara-lhe nas mãos, chorara, prometera-lhe este mundo e o outro.
"-Pago-te juros do dinheiro, se for preciso. Lembra-te da nossa velha amizade. Que vai ser dos meus sem o ordenado? ... E o meu filho? ..."
Para se ver livre daquela pedinchice que lhe amaciava a indignação, acabara por lhe dizer que levaria o assunto à reunião dos sócios, dispondo-se, contudo, a tratar das coisas com benevolência. Mas na noite em que o assunto fora debatido no gabinete, descarregara todo o seu ódio, como se estivesse a defender o futuro da sociedade. Era preciso dar exemplos de firmeza, pois os desfalques sucediam-se, como um temporal desabando sobre a vida comercial do país.
"-Temos de acabar com protecções tolas de que ninguém beneficia. Nem os próprios ... Talvez esta lhe sirva de emenda ...
"-É um empregado antigo, Loureiro. Foi admitido como seu amigo ...
"-Por isso mesmo, por isso mesmo. Ponho-os à vontade nesse aspecto, porque não posso reconhecer como amigo nem proteger os que se mostram incapazes de levar uma carreira honrada. Por mim ..."
E logo o Santos, principal sócio e dono de uma casa de penhores no Bairro Alto, aproveitara a ocasião para entender que se deveria apresentar queixa na polícia, se o tesoureiro não entrasse com os dez contos no prazo de vinte e quatro horas. Elogiara o Loureiro pela sua firmeza e propusera à assembleia uma gratificação
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de gerência, pois a sua isenção era prova evidente de que os destinos da firma estavam em mãos seguras.
O Pinto da Rocha não conseguiu o dinheiro e foi preso. No dia do julgamento moveram-se pedidos para lhe aliviar a carga, mas o caso estava entregue à justiça e nada se podia fazer. Foram dois prejuízos - o do dinheiro e o da reputação do gerente, pois o advogado pusera tudo em pratos limpos, sem hesitar nos pormenores mais escabrosos. Ali se soube que patrão e empregado se embriagavam juntos, conheciam as mesmas mulheres e se tapavam um ao outro das consortes. O cúmulo de tudo, porém, e isso ainda mais indignava o Loureiro, é que se ficou conhecendo o seu nome de intimidade com uma bailarina, a Império de Granada, uma malícia no género frívolo. bonequito lhe chamava a moça, que era mais do Palladium que de Espanha. E todo o tribunal rira, olhando o corpo miúdo do gerente queixoso, desengonçado de indignação e olhos redondos de espanto, como dois bugalhos espetados na sua cara chupada.
"bonequito! bonequito!", dizia-se entre gargalhadas que abafavam o dlim-dlim nervoso da campainha do juiz, a querer lembrar que não estavam num teatro do Parque a assistir a revista apimentada ou comédia brejeira.
Dali em diante, o julgamento tomou um ar de galhofa - até o juiz ficar com um sorriso pregado no rosto maciço de gravidade. No final, o Pinto da Rocha apanhou quatro anos de cadeia, mas ninguém reparou nesse acidente. Todos falavam no bonequito, como se o julgado tivesse sido o Loureiro, acorrentado àquele nome em pena perpétua.
Os conflitos estalavam por qualquer pretexto no seu lar sossegado. Se saía com a mulher e passavam por montras de brinquedos, era passeio estragado em pouco tempo; se o filho brincava junto deles, logo um olhar lhe lembrava a afronta.
Era contra esta obsessão que o tesoureiro tinha de lutar. E agora, que o Pinto da Rocha andava em liberdade e se cruzava com o amigo do Arcádia, não havia informações que o salvassem daquela hostilidade firme.
"O malandro já está cá fora. E eu hei-de ficar bonequito para sempre." Era um azedume eterno, a
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menos que abalasse para longe dali, onde ninguém pudesse sonhar aquele caso. E, mesmo assim ...
Naquele dia tinham-se encontrado mesmo de frente. O Pinto da Rocha passara por ele, fingindo que o não vira, em conversa e risada com outro tipo - algum tratante como ele! - e metera-se num café. "Afinal", pensara consigo, "diz-se para aí que o mundo apodrece, não se lembrando ninguém deste e de outros casos semelhantes. Um ladrão cumpre pena de meia dúzia de dias, o que até o favorece, pois, entretanto, todos se esquecem dele, e volta para a liberdade sem um distintivo, uma farda, uma marca, qualquer coisa, enfim, que o distinga da gente de bem. Acotovelam-se todos, sentam-se nas mesmas cadeiras, andam nos mesmos eléctricos, bebem e comem nos mesmos lugares, e depois querem que o mundo se endireite."
A indignação dificultava-lhe o respirar e enrijava-lhe os membros, pesando-lhe o corpo como se a lembrança desses momentos o carregasse com um grande fardo. Tinha muito que dizer ao chefe do escritório, mas não sabia como começar; remexia nos papéis ao acaso, mudava o lugar das canetas e do mata-borrão. O outro continuava à sua frente, levemente curvado, de braços caídos ao longo do corpo e as pernas fincadas para vencer as tremuras que o abalavam.
No escritório todos se moviam, mas ninguém trabalhava. A dactilógrafa já metera duas folhas à máquina e em ambas se enganara na mesma palavra. Via a minuta à frente, na letra bem desenhada do guarda-livros, mas parecia-lhe que o papel lhe fora entregue em branco para ela conceber a resposta a uma carta de que não conhecia o assunto nem o remetente. O namorado instava para que deixasse o escritório, sempre roído de ciúmes por causa deste e daquele - um porque era simpático, outro porque tinha cara de femeeiro-, e esquecia-se que o ordenado fazia falta em casa. Ainda não pressentira que o gerente se derriçava em cortesias, sempre a sorrir-lhe quando assinava o correio; mandava-a colocar por detrás dele para passar as cartas e enxugar a tinta dos rabiscos do nome. Já lhe dissera que gostava muito do seu perfume e da cor dos cabelos. A despropósito, contara-lhe uma aventura passada em França. As raparigas em Paris são muito amáveis para os portugueses ...
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No fim do ano chamara-a ao gabinete, com os olhos muito pregados nos seus, e entregara-lhe um sobrescrito com a gratificação; depois pedira-lhe que não dissesse a ninguém, apertando-lhe os dedos quando ela estendera a mão num agradecimento. Começava a compreender também por que motivo lhe aumentara o ordenado, enquanto o Pereira dos ficheiros o pedia há mais de um ano. No fundo, sabia-lhe bem aquele namoro, vagamente cinematográfico, só traído pela figura do gerente, bonequito como a espanhola lhe chamara, e incapaz, portanto, de dar um bom tipo de galã. Se não fora isso... seria até um bom título de filme ou de romance cor-de-rosa: O Gerente e a Dactilógrafa.
Esse tropel de pensamentos já a fizera enganar-se por duas vezes, enervando-a; julgava que o mau humor do Sr. Loureiro advinha da resposta que lhe dera na véspera, quando ele lhe contara que tinha visto, numa montra da Baixa, certo vestido azul-marinho: "Deve-lhe ficar um primor." Aquele "primor" saíra com tal intenção que não pudera esconder uma expressão indignada. O gerente corara, ela também, e depois disso ainda não voltara ao gabinete - já haviam passado' quase vinte e quatro horas. Pressentia que ele arranjaria um pé qualquer, insignificante que fosse, para lhe dizer que procurasse emprego: "Os seus serviços não convêm por mais tempo..."
Por isso lhe parecia que a minuta estava em branco, trocadas as teclas da máquina e preso o rolo de meter o papel. Só a campainha tocava; e tocava com frenesi, num sinal de alarme prolongado.
O tesoureiro levantara-se mais três vezes, e outras tantas se sentara com o mesmo livro na mão, desejando que todo o corpo fosse um ouvido enorme para escutar o que se passava no gabinete. Tirara os óculos, fora espreitar à portinhola dos pagamentos e, distraído com aquela preocupação, levara um fósforo à boca, julgando fumar um cigarro.
- O Sr. Cunha tem aí a folha dos pagamentos?
Todos os olhos se levantaram para ele, como a repreendê-lo pelo tom de voz com que fizera a pergunta. No silêncio dos outros, abanou os ombros, voltou a pegar no livro e foi com ele de secretária em secretária, como se o preocupasse a tal folha de pagamentos que ninguém vira.
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O Pereira dos ficheiros acaçapara-se por detrás do conta-correntista e somava o inventário dos armazéns de Santos, não atinando com o resultado, embora tivesse dividido a coluna em três partes. Mal mexia os lábios, como se pudesse evitar que o gerente se lembrasse da sua existência. Na semana anterior chamaram-no ao gabinete; quando julgava que lhe iam falar na carta em que pedira aumento, o Loureiro repreendera-o por causa do fato coçado.
"-Assim não pode ser, Pereira. Já reparou como anda?"
A mulher bem lhe passajava os fundilhos das calças com a perícia de uma bordadora chinesa. Obrigava-o a meter-se cedo na cama, agora que as noites estavam serenas e abafadas, quando lhe apetecia dar uma volta até ao Jardim dos Anjos, aproveitar os bancos livres e dali ver passar os eléctricos e o vaivém da gente que ia pela avenida. O ordenado não comportava uma ida ao cinema. Tinha de contentar-se com um passeio à porta do Lys para ver os cartazes e os quadros das fitas.
O fato estava na última, bem o sabia. Mas ele, a mulher e os três filhos gastavam o ordenado só na comida, valendo-lhes para a casa uma renda antiga e o quarto alugado - o quarto da frente, com duas janelas, onde dormira doze anos. Casara naquela casa e nesse mesmo quarto possuirá o grande anseio de oito anos de namoro. Mantinha a mobília de madeira, barata embora, com guarda-fato de espelho, toilette com tampo de pedra, uma cama e mesas-de-cabeceira. Aí vivera os melhores anos da sua vida, enquanto estivera no Morais & Pires, com comissões e consignações na Rua de S. Nicolau. Depois os negócios começaram a correr mal e fora dispensado com uma carta elogiosa que trazia sempre na carteira; lia-a muitas vezes, como para se convencer de um próximo futuro mais sossegado.
Passara a dormir com a mulher num quarto interior, colchão estendido no sobrado, enquanto o filho mais novo ficava no berço que já embalara os outros dois que começavam agora a criar-lhe um novo problema, pois iam crescendo e não podia deitá-los na mesma cama. A filha já ia nos onze anos e o rapaz nos dez. E as crianças de agora, mal começavam a andar, aprendiam tanta pouca-vergonha que devia separá-los quanto mais depressa melhor. Mas era mais uma
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cama ou, pelo menos, um colchão, mais lençóis e cobertores. E o Sr. Loureiro chamara-o por causa do fato, sem aludir sequer à sua carta com pedido de aumento.
Talvez fosse melhor não ter falado naquilo ... Porque se sentia incapaz de defender a necessidade de outro ordenado, tantas eram as coisas por invocar e tão contrafeito ficava quando o outro o mandava ir ao gabinete. Muitas vezes entrava disposto a dizer-lhe quanto ruminava, noites inteiras, na escuridão do quarto interior. Dispunha as palavras uma a uma, compunha frases inteiras, emendava-as, mudando-lhes os termos, até que se dava por satisfeito e ficava a repeti-las, tempo sem conta, como se fosse um doce que lhe oferecessem para saborear. Todo o dia no escritório compunha o discurso de ponta a ponta, gozando o efeito daquelas passagens estudadas na cama. Quando saía do lugar e ia até à porta do gabinete, sentia-se capaz de lhe dizer tudo aquilo, e muito mais ainda. Verdadeiras torrentes de palavras que se atropelavam no cérebro e nasciam nas longas meditações de muitas horas-se ficava em casa à espera que a companheira lhe desse uma revisão no fato ou se gastava a hora do almoço a passear depois de comer o pão com queijo, seu único alimento desde o café da manhã à hora do jantar.
Mas assim que deitava a mão à maçaneta da porta, caíam-lhe aos pés pensamentos, palavras e indignações. Ficava uma pedra. Era um peso que se despenhava de dentro de si e o entontecia depois, amarrando-o àquela submissão que o confrangia. E daí até à frente da secretária do patrão surgia outra vez o Pereira dos ficheiros, conhecido por todos os colegas pelo seu temor, as palavras gaguejadas, os arrepios de frio e os sorrisos sem significado.
- O Sr. Loureiro manda ...
O outro conhecia-lhe a fraqueza e gozava com o acanhamento, os modos servis e a expressão apavorada do seu rosto lívido de medo. Sentia-se então perante um juiz que o fosse condenar.
Culpado de ter escrito, culpado de precisar de aumento ... E enquanto ele sacudia o corpo magro em tiques nervosos, o Loureiro fazia apostas mentalmente, como se teimasse com algum parceiro. "Vai pedir ou não? ... O melhor para ele é não dizer nada. Tenho a
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resposta aqui mesmo: empregados como você, Pereira, não me faltam, felizmente."
Algumas vezes, raras, o Pereira sentia coragem de lhe falar, quando o via bem disposto, a perguntar-lhe pelos filhos ou a dizer-lhe que no domingo estivera um lindo dia; no Estoril parecia um sonho, a água muito boa, um Sol que só nós temos em Portugal...
Mas as palavras pareciam andar dispersas pelo gabinete; empoleiravam-se nas janelas, saltitavam no globo branco da luz eléctrica, corriam à sua volta num rodopio branco de luz e numa surriada infantil.
Incitava-se -que diabo, ele não me vai dar açoites! -, torcia as mãos, curvava-se um pouco mais para que o pedido não ferisse tanto, mas acabava por ficar calado, à espera que o outro lhe atirasse nova pergunta. Pressentia, porém, que, se a conversa mudasse para a carta, não seria capaz de aguentar a expressão carregada e a voz cortante do gerente.
"Recebi a sua carta, sim, e depois!? ... Que tem mais a dizer? ..."
E não se encontraria outra resposta que não fosse um encolher de ombros, o mesmo sorriso sem cor e as palavras de sempre, quando o outro lhe falava mais alto e fazia cinco rugas na testa - e logo cinco, que era número de azar na sua vida.
"Desculpe, Sr. Loureiro. A carta... Aquilo foi... Não tem importância, sabe. Coisas... Ora, pois! Ora essa! ..."
Acabava depois por abreviar a saída. Mal passava a porta, respirava fundo, fincava os maxilares e não olhava mais para os colegas, nem mesmo para a dactilógrafa, que tinha sempre um sorriso carinhoso para lhe oferecer. Sentado na cadeira, descompunha-se com os piores nomes, amarfanhava as mãos, davam-lhe ganas de partir os aparos e entornar os tinteiros. Ouvia as queixas da mulher, o choro do filho mais pequeno e os protestos dos outros dois.
"O pai nunca mais compra a bola que prometeu ... Anda sempre a dizer que compra e não compra... Nunca mais compra..."
Recuperava o seu prestígio paterno com um puxão de orelhas.
Recompunha no escritório todo o discurso ensaiado, palavra aqui e além substituída por outra ainda
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mais forte, decisiva e audaz. "Sr. Loureiro! A vida está como Vossa Excelência sabe. Seiscentos mil réis em 1943 para cinco pessoas, é uma trampa! Peço-lhe que reveja a minha situação..." E naquele momento sentia-se capaz de dizer "exijo", de lhe falar com a cabeça levantada, descrevendo-lhe sem desvios as faltas de casa, as coisas que se vira forçado a empenhar para despesas urgentes. "Quando me casei, deram-me um bule e meia dúzia de chávenas... Foram-se agora no leilão..." Entusiasmava-se e já não era ele que declamava o desfiar sem fim das queixas da família. Saíam-lhe em jactos, como se vomitasse os pensamentos de quatro anos, guardados pela sua cobardia no fundo da consciência.
Quando dava por si, o praticante olhava-o de soslaio e escondia o riso entre os dedos, fazendo sinais para o conta-correntista, sempre de carinha n'água com comentários de compadre de revista. Achava-se de braço no ar e recolhia o gesto; debruçava-se na secretária, passando com alvoroço as guias de entradas e saídas, e sentia-se corar tanto que julgava terem-no mergulhado num caldeirão de tinta vermelha, como a que empregava nas fichas para apuramento da coluna de existências.
Depois que o gerente o chamara por causa do fato, quase esquecera as suas razões para se lembrar dessa nova imposição.
"-O Pereira vem para o escritório incapaz de se apresentar. Lamento que tenha de lhe dizer isto mesmo. Mas os senhores perdem o respeito pela decência e eu não posso permitir que a minha casa tome o aspecto de um albergue de pedintes.
"-Mas ...
"-Não tente explicar-se, Pereira, porque não há desculpas para esse desleixo. Se não me condoesse de si, só havia um caminho a indicar-lhe ..."
Ficara especado, sem poder articular uma palavra ou esboçar um gesto. Nunca lhe apetecera tanto pespegar quatro manguitos nas ventas do malandro. Toda a revolta lhe subira de repente para a cabeça, procurando abrir-lhe a boca para as palavras saírem e gritarem tudo quanto guardava para dizer. Era bem ^um delírio, como se tivesse enlouquecido - calado, de lábios cerrados e palavras a gritarem-lhe aos ouvidos, a ressoarem-lhe na cabeça, a correrem-lhe no sangue. Pareciam
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capazes de lhe estoirar a pele. Todo ele gritava pensamentos de rebeldia e precisava de aparentar no rosto aquela mesma humildade de quatro anos no serviço dos ficheiros, pondo o olhar no chão e deixando cair os braços impotentes para uma atitude de desafronta.
Desde esse dia nunca mais conseguira um momento de sossego. Esquecera tudo o mais, para só viver o novo problema. "Um fato- oitocentos escudos, um preçozinho em conta, mas só com dinheiro adiantado. Quer que tome nota? Tiramos já as medidas."
"Eu depois passo por cá. Boa tarde e desculpe."
O alfaiate viera vê-lo à porta, sorrindo-se, por certo, do seu passo cambaleante de tímido, da cara chupada, do fato lustroso ... Fizera o caminho de regresso parando nas montras a ver o preço dos cortes e a fazer contas - "Não vendemos a metro" -, remoendo na desanda que daria ao alfaiate se não fosse o mesmo receio de sempre de provocar zaragatas e depois não aguentar dois murros puxados. Passara a vida a conceber desafrontas por isto e mais aquilo, e só em casa era capaz de ralhar com os filhos, prometendo-lhes tabefes que raramente dava - havia sempre alguma coisa dentro dele a amaciar-lhe a ira.
Fazia mau conceito de si. "Vim ao mundo para cão manso ou para tapete. Pior do que tapete." E admirava todos os homens que cometiam actos violentos, suicidas ou criminosos, ladrões ou déspotas. Às escondidas, lia a propaganda fascista e batia-se pela vitória alemã.
O guarda-livros mandara-lhe somar o inventário dos armazéns e não havia maneira de vencer as colunas de números apertados. Fumara três cigarros de onça e a boca escaldava-lhe. Apetecia-lhe uma ginja com elas. Há quanto tempo não bebia uma ginja nas Portas de Santo Antão?
- Sr. Pereira ... Essa soma? - insistia o outro. - Preciso hoje de conhecer a posição nos armazéns.
Respondia entre dentes, inundava-se-lhe o corpo de suor e mergulhava a cabeça na secretária, procurando arrastar no bico do lápis aquela barafunda de algarismos.
"Sete e dois nove, nove e cinco catorze, catorze e oito... oito... oito..." E o oito lembrava-lhe oitocentos, recordava-lhe o fato, e o fato ...
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"Só com dinheiro adiantado; não vendemos a prestações ..."
Sempre que encontrava um oito, embaraçava-se, repetia as puxadas e distraía-se a pensar. Conhecera, em África, o Silva, o Silva Gimbolo - alcunha posta por um criado negro porque comia muito pão. O Silva tinha a mania de embirrar com o número cinco, talvez porque para lá tivesse embarcado nesse dia. O destino dera-lhe cinco filhos. E na sua obsessão, amarfanhado por aquela birra tola, nunca dizia quantos filhos tinha. Se o forçavam, respondia irritado, meneando a cabeça de máscara carnavalesca: "Quatro grandes e um pequenino." Riam-se do Silva Gimbolo. Mas agora compreendia que há números ... Também já embirrava com o cinco e com o oito. O treze para ele era um algarismo de sorte.
- Sr. Pereira! Essa soma?
- Está quase.
"Sete e nove dezasseis, dezasseis e cinco, vinte e um, vinte e um ..." Depois era um oito que lhe aparecia, a transformar-se em oitocentos, a aludir ao fato... O guarda-livros entrara para o gabinete e o gerente chegara de má catadura. E naturalmente falariam dele, queixando-se o chefe daquela soma que nunca mais entregava.
--É um pedaço de palha' Também só temos daquela gente. É um pobre diabo! . .
Cada um dos outros pensava que no gabinete se falava a seu respeito; e inquietavam-se nas secretárias, como a dactilógrafa que baralhava as letras no teclado e já escrevera bolas por molas.
- Bolas! - deixou escapar com enfado. "Quando voltará o Loureiro com a marmelada da conversa?" No fundo, envaidecia-se com o rodeio.
Só o conta-correntista mostrava o seu ar galhofeiro, sorrindo para a criada do segundo andar defronte, para a qual fazia sinais malandros com a caneta. Nunca se lhe alterava o feitio folgazão, quer a contar anedotas à socapa, quer a descrever aventuras com as raparigas dos clubes onde tocava. Os companheiros nunca o tinham ouvido, mas consideravam-no o melhor violinista de orquestras de baile. Agora, mais do que nunca, a sua alegria irradiava: conseguira contrato para um bar de
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fama onde havia bailarinas estrangeiras e frequência de gente de alta-roda.
"Essa Amparito... É uma mulher de assombro... Cada "pato" que cai, quinhentos palhaços."
Dizia aquilo com um modo tal que todos se convenciam haver entre eles um grande romance de luxúria. Os companheiros viam o retrato da Amparito no jornal, seminua e de olhar picante, e invejavam a sorte do conta-correntista. Alguns mais imaginosos sonhavam-se a tocar violino, tendo a envolvê-los os braços morenos da bailarina.
- Aí o Pimenta é que a leva direita...
- Ora!
Aquele modo despreocupado, soberano de simplicidade, fazia acreditar nas aventuras mais espantosas.
O Pimenta era um modelo de figurino - impecável nos seus fatos sarapintados, gravatas berrantes e sapatos de alto preço, cabelo passado- a brilhantina, como se usasse rede, e unhas tratadas pela manicura de um Palácio qualquer. De estatura mediana, parecia alto; magro, os casacos emprestavam-lhe ombros de atleta. Muito descorado, de uma lividez mate, que lhe dava um tom moreno, diziam as raparigas dos clubes que tinha uns olhos ... Um olhar mórbido, cansado das noites perdidas e dos ambientes empestados. Disputavam-no entre si, oferecendo-lhe cigarros caros e gravatas, as horas livres e o amor que não davam aos outros de quem se mantinham.
Era o cicerone da vida nocturna de Lisboa. Falava de tudo, como se de noite nada se passasse sem a sua permissão. Conhecia todos os recantos onde se toma chá, se ouve música ou se alugam mulheres. E à hora do almoço, se ficava no escritório, os colegas iam para a sua secretária, escutando embevecidos as suas aventuras extraordinárias.
- Aquela bailarina alemã que esteve no Imperial... Esqueciam o ordenado, as tragédias individuais
e o desprezo do Sr. Loureiro, para se entregarem por inteiro ao embalo da voz do conta-correntista.
- Era um bocado de mulher ... Loiraça alta ... Um pancadão! Rebentou com dois "patos" de coroas que não a largavam. Bebia champanhe como tu bebes água.
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E a boca dos companheiros movia-se, engolindo saliva, despertado o gosto pelo pique da bebida cara que nos bares e dancings custava o ordenado de um mês.
-• Engraçou contigo? - perguntava-lhe um, desejoso de que o Pimenta levasse a conversa para esse lado, pois assim era como se a aventura lhe pertencesse. Bem adaptado, o sucesso do Pimenta podia servir noutras histórias. Depois, à força de pensarem nas bailarinas, de conceberem cenas e aumentarem pormenores, já ninguém sabia se o caso se passara com o Pimenta ou com qualquer deles.
Naquela manhã, quando o telefone tocou, todos ficaram alarmados, como se a campainha desse o alarme de alguma tragédia que viesse cair sobre cada um deles. O rapaz não estava e eles pareciam pregados às secretárias. Foi o Pimenta que pulou do seu lugar, indiferente aos pensamentos dos colegas. Os outros olhavam-no como se vissem um herói defrontar qualquer perigo de morte.
- Está lá?! Sim...
As canetas suspenderam-se, a máquina deixou de matraquear, enquanto a campainha retinia ainda, angustiosa e agoirenta. (O Loureiro dera ordem para não atenderem chamadas particulares.)
- O Sr. Pereira? vou chamar... Um momento, faça favor.
Do seu lugar, o outro fazia sinais, esquecendo-se de que ele estava de costas, debruçado na secretária do chefe. O Pimenta, em ar de graça, dissera uma vez que o Loureiro receava que lhe gastassem o bocal com conversas. Só em bocais gastavam uma fortuna ...
Os olhares passaram do telefone para o Pereira, embaraçado a remexer na relação do inventário e a fulminar com o pensamento quem lhe vinha falar àquela hora. O conta-correntista lembrou-lhe de novo que o chamavam.
- ó homem ...
--Porque não disseste que eu não estava? É uma coisa que me enerva ... Sabes perfeitamente ...
- Se estás com medo do gerente, ainda é pior, homem. Ele assim dá por isso ...
- Medo? ... Ora, medo! ... Nunca tive medo...
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Um suor estranho molhava-lhe a testa; a boca secava-lhe, como se a língua se pusesse num calhau. Depois pensou que o telefone continuava abandonado. O Pimenta tinha razão: se o Loureiro precisasse de fazer uma chamada, daria com a marosca e desabaria sobre ele toda a ira que trouxera de casa.
Saiu do lugar com passos de veludo. Media-os pela junta de cada duas tábuas do soalho, e mesmo assim supunha que ia a cambalear - andava agora cheio de tonturas, devia ser da tensão.
Mesmo ao lado da secretária do chefe ficava a porta do gabinete da gerência. Parecia-lhe agora que a parede caíra; lá ao fundo, espreitava-o o olhar duro do Loureiro, a fulminá-lo com recriminações violentas. Logo o corpo do boneco do gerente lhe apareceu no lugar do telefone e era como se o forçassem a pegar-lhe num dos braços e levá-lo ao ouvido, falando ao Loureiro de boca com boca.
- Está lá? - perguntou por fim. - Sociedade Exportadora, sim senhor. Avie-se, homem. O Sr. Pereira não está. Não está, palavra d'honra! Enganaram-no. Brincadeira, não. Isso não! Palavra d'honra que não! Conheceu-me a voz? ... Qual voz nem meia voz ... Eu não sou o Pereira; não senhor, não sou o Pereira. Não quero nada com esse tipo. Ha?!... Mas falar à gerência porquê? Não está! ... Também não está ... Estou sozinho. O outro era eu ...
Voltou-se para os colegas, a gesticular com um braço e a mover os ombros, como a pedir-lhes que o viessem salvar. Mas nenhuma cara lhe lembrava qualquer saída para aquela armadilha. Só o Pimenta lhe sorria lá do fundo, com o mesmo ar canalha com que falava de mulheres e fazia sinais às vizinhas dos prédios.
- Já disse que o Sr. Gerente não está ...
Nesse instante a porta abriu-se, passando por ela, como um rabo de vento do nordeste, o corpo miúdo e nervoso do Loureiro.
- Estou aqui, Sr. Pereira. O senhor não me vê?! ... E emproava-se para que o outro o visse bem, pondo-se em bicos de pés e levantando a cabeça.
- O senhor sabia que eu estava. Esta ultrapassa tudo, tudo... Se contar, ninguém me acredita. O senhor nega a minha existência?
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- É que a chamada é para mim, senhor... - É agora o gerente? ... Não sabia! Quem o nomeou? - brincava com a angústia do empregado, perplexo e encolhido.
Arrancou-lhe depois o telefone das mãos e ficou-se a fulminá-lo com o olhar irado. O Pereira agachou-se - se pudesse desaparecer, Santo Deus! - e foi para o lugar, quase numa corrida balhelhas. Estava perdido. Já nada lhe valia. Ia falar-lhe do fato com certeza; em todas as coisas que lhe viessem à cabeça. E àquela cabeça nunca vinham ideias a seu favor.
- Brincar? ... Eu não brinco, meu caro senhor. Sou o gerente, sim. Muito bem ... Diga ... diga ... sim, senhor...
O rosto animava-se como se lhe estivessem a dar uma grande novidade, enquanto o corpo se ia movendo, inquieto de gozo.
- Pois não ... Disponha sempre, meu caro senhor. Fique certo de que chamarei a atenção desse cavalheiro. É o meu dever de comerciante. Devemos solidariedade uns aos outros. Aqui é uma casa de gente de bem E desculpe. Às suas ordens.
O Pereira quis voltar à soma das folhas, mas esquecera até o significado daqueles rabiscos que se alinhavam em filas compactas e que devia somar na ponta do lápis. Apetecia-lhe passar-se por detrás das secretárias e abalar escada abaixo, sem dar satisfações da sua atitude. Sentia-se vexado, contrafeito, procurando sumir-se na cadeira. Que bom seria se pudesse enfiar-se numa das gavetas onde guardava documentos! Mas o Loureiro já avançava para ele e crescia, crescia sempre, o maldito! Galgara o tecto, passara ao outro andar e ao outro, destelhava o prédio e levava jeitos de tocar o céu com a sua careca luzidia. E lá do alto, severo como um deus, mandava-lhe a maldição suprema num olhar cintilante de raiva.
- Eu dou-lhe o recado. Sr. Pereira. Já agora, sou moço de recados.
Falava em voz alta para que todos o ouvissem bem; já agora, aproveitava a oportunidade para lhes fazer uma prelecção. Meteu os polegares nas cavas do colete; um sorriso de gozo babava-lhe a boca:
- O seu merceeiro... Não conhece? Pois o seu merceeiro manda perguntar quando é que o senhor
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tenciona liquidar-lhe a conta. Diz que está farto de ser enganado com promessas ...
O Pereira acenava-lhe a cabeça; sentia vontade de chorar ou de dormir sobre o inventário, onde agora só havia oitos de alto a baixo. Oito... oitocentos... um fato... Cada oito um fato. Talvez por isso o oito parecesse um homem sem pernas e braços.
- O seu merceeiro pediu-me que lhe descontasse qualquer coisa todos os meses. Não será legal, mas também não é legal comprar o que lhe dá no apetite e fazer contas de não pagar. (Alteou a voz.) Nós, comerciantes, temos de ser solidários, entende? com os que vivem assim do alheio, não admira que haja concordatas e falências... E os senhores gozam com isso! O Sr. Pereira vai por mau caminho ...
O Pereira lembrou-se da divisa da mercearia: "Por bom caminho e segue". Lixado estava ele. Recordou-se da casa, dos filhos ...
- Pago quando tiver dinheiro ... O Loureiro enfureceu-se:
-Ora aí está um desabafo! Ora aí está uma bonita resposta! Quando tiver dinheiro ... Que faz o senhor ... sim, que faz o senhor ao ordenado?
- Gasto-o.
- Mas gasta-o como?
Farejou pelas secretárias, deu ordens em cada uma e voltou para o gabinete, sem ouvir a explicação do outro.
Mal a porta se fechou, todos olharam para o Pereira. Debruçado novamente na relação, queria ignorar os companheiros, nem sabia o que lhe atravancava os papéis emaçados à sua frente. "No bairro já não havia loja que lhe fiasse. Contas pequenas, era certo; outros havia que deviam aos contos de réis e recebiam sempre tratamento de Vossa Excelência. com ele havia sempre histórias ... Precisava de alugar outro quarto. Venderia o resto dos tarecos da casa de jantar e passaria a comer na cozinha, que remédio! Comeria na companhia do cheiro concentrado de todas as comidas ali preparadas durante anos e anos, capaz de tirar o apetite ao mais glutão. E de que lhe servia o apetite?! Sentir-se-ia ainda mais enjeitado na sua própria casa. "Não faças barulho, Justino, por causa do hóspede. Não assobies, Justino! Tem cuidado quando entras; não batas a porta." Passaria
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a ter mais recomendações, como se vivesse por favor na casa que estava em seu nome. Os filhos viveriam aperreados também, não podendo brincar no corredor, sem permissão para uma gargalhada ou uma corrida metidos pelos cantos, tristes e bisonhos, como animais escorraçados. E se o novo hóspede tivesse um feitio diferente do Sr. Malaquias? Seria pelos aliados ou pelos alemães? ... Se começassem de embirração um com o outro, abalariam os dois. Lá se ia o dinheiro da renda e metade do ordenado ficaria cativo com a despesa certa. O gerente queria um fato novo. Qualquer dia, se lhe desse na cabeça, exigia casaca, luvas brancas e chapéu alto. "Sr. Pereira! Deve usar perfumes franceses. Rigaud, por exemplo." Acabaria como o cavalo do inglês ou teria de comer as abas da casaca e pôr o chapéu alto de molho para o comer com batatas. E mesmo batatas... Não, agora não há batatas. As que havia apodreceram em Trás-os-Montes ...
Enleado naqueles pensamentos, não ouviu o chefe de escritório chegar à porta do gabinete.
- O senhor...
Todos os outros ficaram indecisos com aquela voz que rompia as interrogações de cada um.
- Sr. Pimenta. O nosso gerente precisa de lhe falar.
Saltarino, o conta-correntista levantou-se desembaraçado, compôs o nó da gravata e atravessou a sala com passos firmes. O chefe atirara-lhe uma expressão de "tenha paciência" que era de confranger; mas ele não a notou.
- V. Ex.a chamou por mim? - perguntou em voz guizalhante.
- Sim. Entre e feche a porta.
O Loureiro respondera sem erguer os olhos dos papéis que fingia arrumar. Depois levantou-se da cadeira de braços, tamborilou com os dedos o tampo de cristal da secretária e foi até à janela; mostrava-se interessado pelo movimento da rua. Depois disparou a interrogação:
- Em que orquestra toca?
- Na Moderna - disse o Pimenta com galas.
- Posso saber o quê? ...
- com certeza. Toco violino... Sou o único violino da orquestra. (Pensou que o gerente precisava dele para alguma festa.)
- E nada mais?!
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O conta-correntista meneava a cabeça, sem compreender o sentido da pergunta.
- Sim, e mais nada?! Seja sincero!
- Ah, sim ... Canto. Sou o vocalista da orquestra. Canto boleros ...
-O que canta não m'interessa. Só não percebo é porque não mo disse imediatamente ...
- V. Ex.a perguntou ... o que eu tocava: toco violino.
- Desculpas ao resto. (Voltou até junto da janela.) Sabe que aprecio as pessoas sinceras? Principalmente aos meus empregados é qualidade que exijo. Sabia?
- Pelo que V. Ex.a acaba de dizer ...
- Pois bem. Tem de acabar com essa história de ser cantor ... É ridículo ... Fica-lhe mal...
- É o meu modo de vida, Sr. Loureiro.
- E o seu emprego aqui? Não será também o seu modo de vida mais estável? ...
- As coisas vão como V. Ex.a sabe ... - respondeu, humilhado.
-'Não aceito a desculpa. Não aceito de maneira nenhuma... A hora é de sacrifícios, Sr. Pimenta. Eu também os faço, e não são pequenos. Só Deus e eu o sabemos ...
Como o outro mostrasse espanto no olhar, fulminou-o com o seu, indo até à secretária para ficarem bem de frente.
- Sacrifícios, sim senhor - acentuou. -• Não lhe parece sacrifício ter empregados caloteiros como o Pereira que desprestigiam a casa? Dirão que lhe não pago o conveniente. O senhor cantando pelos clubes nocturnos ... Outros, eu sei lá ... Não lhe parece tudo isto um sacrifício? ... Parece que duvida!
- De maneira alguma.
- Sei interpretar as expressões , Sr. Pimenta. Deixo aqui a minha saúde, o meu sossego, pode acreditar, só para que aos senhores não falte o pão de cada dia. Para mim já me basta o que tenho. Se queimo aqui a saúde é para que não fiquem todos desempregados. Mas os senhores não compreendem, infelizmente, e começo a cansar-me com as vossas desconsiderações ... Estou farto disto!
O eco das suas palavras ficou no gabinete e encheu o escritório.
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** -Somos três pessoas em casa e só eu trabalho - explicou o Pimenta, numa tentativa de apaziguamento.
- Arranje-se como entender; não me cabe resolver tais assuntos. Regularize a sua vida no sentido de evitar essas cantigas tolas. Violinista, enfim. Já me basta que venha para aqui ensonado, prejudicando o serviço. Mas um empregado meu ... andar pelos bares cantando coisas obscenas, não, isso nunca! No outro dia veio aí um cliente importante, muito importante, que o reconheceu. Esta casa desfruta dum grande prestígio. O senhor não o pode, não o deve prejudicar.
O Pimenta via-se com a farda da orquestra, envolvido pela luz dos projectores, embalando com a sua voz macia os pares que dançavam e os fregueses espalhados pelas mesas.
íf< Quiero,
-' Quiero amarte, mi vida ...

oK. - Eu não consinto que o prejudique. Um empregado nosso não pode ser um cómico. Isto, ou entra tudo nos eixos, ou eu faço uma reforma completa do pessoal. E com menos dinheiro. A quinhentos escudos, é quantos quiser.
- Mas eu não posso prescindir, Sr. Loureiro ... Desprenderam-se-lhe os nervos tensos pelo prolongamento do diálogo e gritou, destemperado:
- Então, prescinda do escritório! Não acho outro conselho para lhe dar! ... Acabou-se!
Caiu um penedo de silêncio entre eles, como se ambos quisessem escutar bem o eco das últimas palavras. Lá de dentro chegava-lhes o bater rápido dos dedos da dactilógrafa, disparando-se no cantar de uma metralhadora ligeira.
Já sereno, o Pimenta perguntou num tom irónico:
- Posso receber já o mês que me compete?
O gerente rubricava uns documentos. Quando respondeu, tentou falar com serenidade:
- Não senhor. Fica avisado com a antecedência legal. - E só então levantou os olhos da secretária.
O vocalista aproximou-se com desdém - sentia-se capaz de arrancar o bonequito da cadeira de braços e ir sacudir-lhe o pó à janela do terceiro andar. Mas sussurrou-lhe na intimidade do gabinete:
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- E durante esse mês não temes, meu safado, que as minhas cantigas te mijem no prestígio?!
- Rua! - gritou o Loureiro, como se pedisse socorro.
Pusera-se lívido, tremelicavam-lhe as mãos. Assustados, o chefe de escritório e o Caixa entraram de roldão no gabinete. Quando os viu, o gerente sentou-se, com os dedos a premirem o lado esquerdo do peito, e só disse:
- Façam contas a este senhor... Paguem-lhe o mês da lei... Não o quero ver aqui dentro nem mais cinco minutos. Saia! Saia depressa!-gritou.
Quis gritar, mas ficara rouco. O Pimenta sorria. Tirou a manga de alpaca, enrolou-a bem na mão e foi deitá-la no cesto dos papéis. Só depois saiu, logo seguido dos dois colegas.
Quando a porta do gabinete bateu, os outros empregados ergueram o olhar ansioso.
O Pimenta tomou o seu lugar e começou a escrever o recibo de quitação. Evitou comentários para não deixar testemunhas do que pensava. Meticuloso, para disfarçar, o embaraço do momento, o Abreu soprava as facturas de fornecedores que lhe tinham confiado para conferência, sacudia-as uma a uma e vi-as à transparência.
Depois a voz do guarda-livros ressoou:
- Esse inventário, Sr. Pereira?
Pereirinha saltou de dentro do seu temor e respondeu com uma pedra na mão:
- Falta pouco ... Agora falta pouco.
Aí vinha uma enfiada de oitos. Reparou que os oitos têm o feitio de algemas. Eram símbolos. Agarrados ao fato, juntava-se o desconto para o merceeiro ... "Se todos os credores souberem, acabo por dormir debaixo da chaminé", pensou com ironia amarga. "Debaixo da chaminé e por esmola... Ou como o gato. Isso mesmo: como o gato maltês que tocava piano e falava francês..."
RESPOSTA AO NÚMERO 272

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VAI num pé e vem no outro. Vê se ainda consegues que saia no jornal de amanhã. Se for preciso, vai mesmo lá acima à sede.
O rapaz ficou por instantes a ler o texto. Leu e ficou a pensar.
Quando reparou nele, o chefe de escritório insurgiu-se:
- Anda, mexe-te! Que estás aí à espera? . .
Tomando de súbito afã, o paquete galgou as escadas a dois e dois com a ajuda do corrimão. Nas curvas dos patamares guinchava sempre como um automóvel a derrapar. Tinha a paixão dos carros de corrida.
Naquela tarde levava, porém, outro pensamento consigo O contacto do papel dactilografado dava-lhe um conforto que não conseguia explicar inteiramente. Quase sabia de cor as palavras do anúncio, com vírgulas e pontos finais. A saída do Pimenta, que admirava como um ídolo, lembrava-lhe que talvez pudesse ganhar um lugar de carteira dentro do escritório. O Sr. Loureiro gostava dele, costumava dar-lhe as camisas e os fatos que já não vestia, tudo coisas boas, principalmente as camisas, que faziam sucesso entre a rapaziada do seu bairro. Alguns chamavam-lhe o filho do Ford.
Andava no segundo ano do curso comercial da Ferreira Borges, às vezes era uma chatice, pá, apetecia-lhe ir ao cinema ou dar uma curva com a malta, e todas as noites, pá, toca de se enfiar nas aulas sem vontade nenhuma, pá ...
Se ainda hoje lhe perguntassem o que queria ser, não levaria dois segundos a dar a resposta: embarcadiço, oficial de máquinas num grande paquete, deve ser uma vida gira, pá. Recordava-se do que ouvira contar ao avô, que fazia parte do pessoal de fogo dos barcos
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da carreira de África. Mas a mãe tinha a mania de lhe dar um emprego limpo, gostava de tê-lo ao pé, e vá de matriculá-lo no curso nocturno depois de conseguir o emprego no escritório do Loureiro. Que remédio...! Toca de aguentar e cara alegre. Mandarete de recados, aprendia a gramar os caprichos dos outros. A não ser o Pimenta, que lhe dava tabaco e lhe oferecera uma colecção de postais com mulheres nuas - era cada traço, pá! -, os outros irritavam-no, principalmente o Abreu, um acagaçado por causa dos micróbios; andava sempre a pegar com ele porque a secretária tinha pó, não queria que lhe trouxesse os papéis na mão, refilava sempre que lhos não entregava no cesto, e fazia questão por causa do tabaco "ó pá! Esta onça não vem cheia... Não sabes apalpá-la?..."
Vendo bem, devia pisgar-se dali logo que acabasse o curso. Sem conhecimento da mãe, havia de estar alerta com os anúncios dos jornais, responder aos que lhe parecessem de maior futuro, e um dia cavava dali para fora, meus senhores, muito boa tarde, arranjei um lugar na contabilidade duma companhia, se precisarem dalguma coisa aqui têm o meu cartão... Pois, não, brincas: cartão de visita e profissão, menos a morada; enquanto vivesse no mesmo beco, não diria a ninguém onde vivia.
O Loureiro, quando soubesse, talvez lhe falasse no futuro. Negara-lhe aumento por duas vezes, mas compensava tudo com o futuro. Parecia que era ele o dono do futuro, aludindo ao exemplo daquele milionário americano que principiara a vida a engraxar sapatos e hoje possuía uma frota de petroleiros, jazigos de petróleo e o mais que se acrescenta com o tempo e os negócios.
Nessa história de tolos não embarcava ele. Sabia-a de cor. Conhecia-a melhor do que ao anúncio que levava na mão. De paquete não o passariam de boa vontade para as contas-correntes, quanto mais para guarda-livros. De milionário só teria as camisas enjeitadas pelo Loureiro.
Lembrou-se de passar à loja da miúda de quem gostava. Apetecia-lhe vê-la naquela tarde, não sabia exactamente porquê.
Ela devia ter a sua idade, mas não o olhava com interesse do namoro. Percebia-se logo. As raparigas novas querem sempre homens mais velhos - parece que
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têm vontade de envelhecer depressa. Quando vão para velhas é que não largam os rapazes.
Um dia apanhara-a à porta da loja e conseguira ter coragem para lhe dizer: "Olá, pequerrucha!"
Ela achara graça ao seu dito e daí a pouco vinha espreitá-lo com outra colega, uma altarrona, muito morena. Mas a pequerrucha valia num dedo a outra toda: cabelo ruivo, disposto em caracóis na testa, boca grossa sem pintura, parecia pedir beijos a quem passava, e até os sinais das sardas a faziam mais engraçada e brejeira. Ah! E o corpo miúdo muito apertado na bata preta, todo em curvas! ...
Quando chegasse a altura de falarem a sério, havia de convidá-la para irem ao cinema ou à praia, domingo de manhã, num passeio até à Caparica... Aí poderia falar à vontade, não faltam sítios para as pessoas estarem a conversar ou a fazer outras coisas que lhes agradem ...
Viria outro para o seu lugar no escritório do Loureiro. Deixaria a farda de cotim com botões amarelos e passaria à saída de fato cinzento e gravata azul; talvez fosse mania, mas o primeiro fato comprado por ele havia de ser cinzento com riscas.
Espreitou à montra e descobriu-a por detrás do balcão do lado esquerdo. Acenou-lhe com a mão, fez-lhe uma careta e ela continuou distraída a atender uma cliente que devia entreter-se com o desarrumar da loja. À sua volta, as peças de tecido empilhavam-se - não, não era bem aquilo, vira num figurino francês, era verde-garrafa com uma espécie de flores miúdas, talvez não fossem exactamente flores, mas uma espécie de guarnição em grinaldas, isso mesmo, de grinaldas ...
E enquanto a admirava, sem que ela suspeitasse, o rapaz encostou-se à montra, puxou de um cigarro e ficou à espera que passasse alguém para lhe dar lume. Se a sua beiçudinha pudesse vir à porta ...
"-bom dia, pequerrucha, bom dia!
"-bom dia!
"-Passei aqui para te ver... Saí hoje mais cedo. Estava chateado e disse ao chefe: - Preciso de sair, vou tratar dos papéis do casamento ...
"-E quem é a noiva? ... Ou é segredo?! ...
"-Segredo, não, não é. Ainda não a arranjei, mas posso arranjá-la agora mesmo ...
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"-Aquela? ...
"-Sabes bem quem é a minha pequerrucha... Gostava de te levar ao cinema: vai um bom filme do Clark Gable. Queres vir esta noite? ...
"-Nunca saio sozinha à noite ...
"-Ora! Nunca sais à noite. Uma rapariga de Lisboa não sai à noite sozinha... Isso já não se usa..."
Uma voz desagradável interrompeu-lhe o diálogo imaginário:
- ó rapazinho! Queres alguma coisa daqui? Se não queres, toca a andar. A montra não é para encosto de mandriões ...
Afastou-se a gingar, olhando o outro de revés; de repente baixou-se, fez menção de agarrar numa pedra e atirar-lha. O homem levantou os braços para se defender; ele então começou a rir, numa galhofa raivosa:
- Se calhar a rua pertence-lhe ... Ou o manequim que está na montra é a sua mulher? ... Leve-a para casa e guarde-a bem por causa das moscas. Ora o gajóias! ...
Quando o relógio do Carmo bateu as cinco horas, lembrou-se do anúncio e deitou a correr para o Rossio.
Havia uma pessoa à sua frente.
O pior é que tinha conversa para cinco. Queria saber se mandavam muitas respostas, se poderia vir logo de manhã, se seria possível meter o seu anúncio logo no princípio. Explicava que o quarto dava para uma rua muito sossegada, que não havia mais hóspedes e que fornecia primeiro almoço e tratamento de roupas se a pessoa quisesse; convinha-lhe assim uma pessoa fina, de bom trato, se fosse doutor ainda melhor... O meu marido, que Deus tem, também era doutor, tinha uma bonita figura. Depois que fiquei viúva não me faltaram casamentos, mas nunca quis.
Quando a senhora de chapéu com flores desistiu de continuar, o empregado soprou de tédio e disse:
- O marido deve ter morrido por causa dela ...
- Talvez o marido fosse surdo - interveio o rapaz a sorrir.
O empregado olhou para ele, tirou-lhe o papel da mão e começou a contar as palavras. Depois conferiu-as
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e escreveu no talão o número correspondente ao anúncio: resposta ao número 272.
- Para o jornal de amanhã. É tarde?
- Não.
- Quanto?
- Vinte e dois escudos.
Lá fora, no passeio, a multidão agitava-se a devorar as últimas notícias. Uns apertavam as mãos, sorridentes, deslumbrados com o caminho das suas esperanças; outros olhavam as letras de soslaio e seguiam cabisbaixos, enervados com o decorrer dos acontecimentos. Um polícia vigiava a linha imaginária de separação, aconselhando recuos.
- Agora, sim. O Churchill vai rebentar com eles ...
- Mas o Hitler ... Ainda não disse a última palavra. As armas secretas vão entrar na baila...
-Isso é um crime!
- E os bombardeamentos de terror?
- É a guerra! Guerra é guerra. Os aliados vão "varsovia" Berlim.
O empregado deu-lhe o troco e mostrou o anúncio ao colega. O outro leu-o e olhou-o sem compreender.
- Que tem?
- O lugar deste anúncio era lá fora junto dos comunicados de guerra; deviam publicá-lo na primeira página do jornal, envolvido em tarjas vermelhas.
O outro encolheu os ombros e voltou aos papéis, sem compreender o sentido das palavras do companheiro.
O estafeta deixou os anúncios na secretária do empregado que os selecciona, e ficou esquecido, por momentos, a olhar a fila de máquinas, onde as lâmpadas vivas são gritos de luz. Um dos linotipistas tossiu, com os pulmões tocados pelos vapores da caldeira do metal em fusão. Aquele ruído igual e monótono que já se apoderou dos ouvidos dos homens da composição deixa o estafeta ainda um pouco tonto, parecendo roubar-lhe o entendimento.
- Desanda! Se te vêem aí a olhar para ontem, apanhas algum desconto em cima - recomenda-lhe alguém.
O empregado prepara as doses de anúncios, onde o chefe há-de marcar o número do operário e as horas
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para verificação do tempo - ali nada se desperdiça; nem mesmo a tosse do homem com os pulmões doentes.
Hoje a máquina não funciona bem. Quase a desconhece. Ou será ele que tem ainda o olhar turvado pela hemoptise da semana passada?
Nas costas derreadas pela posição vêm espetar-se cutiladas de cansaço. Mantém-se ali acabrunhado, sempre à espera que um ataque de tosse lhe traga outra golfada. Talvez seja o começo do fim de tudo. Parece-lhe fácil, mas amarga-lhe. A vida anuncia grandes coisas para amanhã; ele gostava de poder compartilhar dessa alegria, já que lhe dera tudo quanto possuía. Falhara algumas vezes, mas agira sempre na certeza de cumprir bem. E quem não se desvia? Qual o homem que não falha? Agora a doença brincava com ele, querendo negar-lhe o futuro que seria diferente de quanto já passara - fome, receios e clausuras.
Botando sobre todos os infortúnios, uma enorme esperança: AMANHÃ! E o amanhã fugia dele, como se não passasse de um gafado que o futuro rejeitava. Parecia-lhe que, se estendesse a mão, poderia tocá-lo; mas até para esse gesto se achava agora incapaz.
Tocava sem alma as teclas das letras e a barra dos espaços, como se fosse uma daquelas máquinas velhas, lá do canto, aproveitadas em aperto de serviço, mas já próximas do monte da sucata. Ele não passava também de uma máquina e devia cumprir um fim igual a todas as coisas que se cansam e não oferecem mais ganhos. O amanhã, porém, viveria também do seu sangue. Dera-lho com generosidade - cumprira o seu dever. Nunca traíra a sua gente. Orgulhava-se disso, não se arrependia, mas gostava de vê-lo realizado, talvez para o confrontar com o seu sonho de tantos anos ...
- Já acabaste?
-~~"sim.
- Compõe esta dose.
Quando passou à máquina cinco, debruçou-se sobre o camarada e segredou-lhe. O outro deixou de bater as teclas, ergueu a cabeça e quis oferecer-lhe um sorriso.
- Estás doido. O meu "cavalo" também não puxa bem. São dias...
- Os dias somos nós.
- E os outros.
- Sim ... Também os outros.
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Dirigiu-se à sua máquina, relanceando o olhar pela sala, como se quisesse absorver todas as imagens que se repetiam há longos anos e nos últimos dias lhe pareciam diferentes. Sentia-se incapaz de viver ali por muito tempo. Os pulmões desfaziam-se e ele não o ignorava. O peito recusava-se a receber o ar, como se o metessem na prensa das estereotipias, de maneira a gritar ao mundo os anseios de quem se esgotou à espera do dia seguinte. E esse dia caminhava para ele, afagava-lhe o rosto, balbuciava-lhe aos ouvidos, enchia-lhe os olhos, mas já não chegaria aos seus braços cansados.
Pôs a dose dos anúncios na prancheta do lado direito, mudou a medida da máquina e correu os olhos pelo teclado de três cores - as pretas à esquerda, depois as azuis e as brancas. Leu a primeira linha do original e começou a tarefa. Por cada tecla que ia batendo, caía da caixa do alto da máquina uma matriz com a forma da letra, juntando-se todas num componedor. Logo que a linha se completou, o elevador transportou-a à roda-molde, onde o metal em fusão se despejou para se injectar nas matrizes.
Os dedos do homem não paravam; no cristal que ficava por cima da sua cabeça, não cessavam de cair as letras da caixa.
Feita a fundição, a linha saiu empurrada pelo expulsador para o aconchego do galeão, enquanto do alto da máquina, hirto e aparentemente incansável, um braço mecânico veio agarrar as matrizes e levá-las para cima, colocando-as num sem-fim, que as foi distribuindo pelos canais do armazém, sem um fracasso de memória ou um momento de distracção.
Quando acabou de compor aquele anúncio, deteve-se uns instantes a raciocinar, esquecido um pouco da sua obsessão. O jornal era um mercado de homens e coisas da primeira à última página. Leiloados uns e outros ao sabor de uma oportunidade que mudava a cada instante. Aos homens falavam muitas vezes em lugares de futuro. Ele tinha do amanhã um conceito diferente. E já não chegaria...
Voltava-lhe a dúvida.
As teclas domadas pelos seus dedos traziam as matrizes do armazém para o componedor. A fila de lâmpadas sobre os companheiros debruçados abria clareiras vivas na sala.
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Noite alta, os homens da estereotipia trabalham. Sobre os mármores da outra sala alinham-se os graneis já paginados; com as emendas feitas, permanecem colocados nas ramas, já prontos para passarem à outra secção.
- Vamos lá com isso.
- Não pares, homem, não olhes. Tens tempo de conversar.
O servente atira um olhar vesgo para o outro e resolve-se à tarefa, a mastigar palavras torpes. A rama com a página entra na prensa da calandra; estendem sobre ela uma folha de cartão especial, onde, depois de aberta a pressão da máquina que as frisas amaciam, se gravam todos os relevos pormenorizados da página. O chefe pega na matriz e observa-a. Os outros homens esperam ordens, enrolando cigarros.
- O trabalho está atrasado. Daqui a pouco começam as piadas da impressão.
- Podes levantar.
Enquanto aquela rama é posta de parte e a seguinte entra na caixa da calandra, a matriz de cartão vai à estufa para secar. Já na máquina da fundição se pôs tudo a postos. Depois a matriz aplica-se à forma do cliché numa curvatura; um jacto de metal líquido banha todos os relevos do cartão, fixando a página num semicírculo onde ficam desenhados todos os caracteres e gravuras.
Na sala ninguém pára. Na composição, as máquinas matraqueiam ainda os originais que chegam pelos torpedos da redacção. O chefe distribui-os, anotando números e horas. Ali nada se desperdiça - nem os vapores da caldeira que os pulmões absorvem.
Nos escareadores, os semicilindros já solidificados passam pelos desbastes necessários. Na máquina de fundir, o trabalho continua; na prensa, as formas aconchegam-se aos cartões para novas matrizes.
- Está pronta?
- Chega essa!
- Tu, anda. Essa rama para o mármore.
Os dois serventes agarram no cliché metálico e mergulham-no num tanque de água. Uma nuvem de vapor eleva-se e fere-lhes os olhos. Da rua chegam brados de alguns rapazes que já esperam a saída do jornal.
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- -Aqueles vêm cedo - diz um operário a bocejar.
- Se hão-de dormir num banco, dormem aqui. Já estão perto.
Metidos os clichés no elevador, descem-nos à casa da impressão. A máquina é um gigante sobre o qual os homens de fato de ganga se debruçam.
- Afina!
As bobinas de papel ficam à mão, para serem metidas nos seus encaixes. Fixam-se os cilindros, enquanto outros preparam os tinteiros. A máquina está impassível, ignorando o esforço dos homens de que o jornal não dará a notícia. Em todo o edifício se trabalha para a máquina. Os telefones retinem ainda. O último torpedo chega pelo tubo à composição, onde os operários mal se movem de cansaço. A manhã ainda vem longe. Nos portais, os rapazes aconchegam-se uns aos outros, contando as fitas dos cinemas do Loreto ou da Mouraria. Alguns dormitam. Desgarrado, passa um homem. Depois uma rapariga sobe a rua à procura de quarto
- a noite correu-lhe mal. Um polícia vigia; o guarda-nocturno matraqueia as chaves fazendo o seu giro.
E quando o maquinista move a alavanca, a máquina desperta, engolindo por entre os cilindros e sai impressa dos dois lados; deixou de ser aquela passadeira alva e inocente que os caminhões trouxeram da fábrica. Leva com ela mensagens de todo o mundo. Infinitas desgraças e múltiplas esperanças. Interesses ocultos e maninhos, disfarçados em adjectivos pomposos. Um homem assassinado preenche duas colunas - uma cidade devastada cabe numa linha. Morreu um banqueiro, e o jornal chama-lhe "ilustre homem de bem". O operário que ficou soterrado numa exploração de volfrâmio deixou três filhos -e nada mais saberemos dele. Talvez não valha a pena! ...
E a máquina gigantesca galopa, corta, dobra e conta os jornais. Um elevador leva-os de pronto à casa da distribuição.
Os rapazes apinham-se às portas, bulhando por um lugar destacado. As camionetas partem carregadas de maços. A manhã aproxima-se, anunciada por uma claridade mansa que surge por cima dos telhados. Campainham os primeiros eléctricos e acordam os últimos vagabundos para outro dia sem destino. Raparigas recolhem aos seus bairros com as bocas sem carmim.
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Bêbedos encontram companhia nas árvores e nos candeeiros para monólogos sem fim. Passam automóveis a ganharem minutos de noites perdidas. Mulheres chinelam para os mercados e para a lota do peixe; à esquina do jornal um velho estende a mão.
E a máquina ainda não parou de tragar a tira branca, manchando-a de tinta e de acontecimentos.
BOMBAS DE DEZ TONELADAS - a vitória é nossa porque Deus abençoa as nossas armas. - A Providência olha por nós.- UMA CATEDRAL DESTRUÍDA. -AS ELEIÇÕES NO BRASIL ...
Um poeta publicou um livro e fala de uma paixão comparando-a ao mar. Uma senhora da nossa primeira sociedade ofereceu um chá às suas amigas e aos seus amigos mais íntimos. A notícia ocupa vinte colunas de nomes. Os 100 000 homens que morreram em todas as frentes de batalha cabem em três linhas - uma para o Pacífico, outra para o Leste e ainda outra para o Ocidente.
O jornal luta com falta de espaço. Se houvesse uma única frente, os 100 000 homens caberiam numa única linha. Os generais deveriam pensar nestes pormenores.
ENQUANTO HOUVER TIRANIA NO MUNDO...
As grandes potências batem-se por zonas de influência.
Depois da guerra haverá alguns milhões de desempregados.
O linotipista doente ainda não conseguiu adormecer na sua cama. Pensa que o amanhã não chegará aos seus braços - quando a maior parte da sua vida o trouxe no coração. Sorri e tosse. Precisava de um longo repouso ...
Ainda frescos de tinta, os jornais saem sob o braço dos rapazes e levam consigo mensagens de todo o mundo. De outras ruas descem mais rapazes para fazerem trocas. Correm e apregoam, como um jacto de vida na matriz passiva da cidade.
- Século! Notícias!
- O Comércio!
Pelas esquinas, nos passeios e nos eléctricos lêem-se as últimas notícias. Ali se procuram respostas a quantas interrogações se levantaram em milhares de espíritos. Outros nem interrogações conseguem fazer. O campeonato
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de futebol vai a meio, a luta continua renhida e aí cada qual pode discutir o grupo que quiser.
A paz vem sempre em letra minúscula - perdida no meio dos comunicados e nos títulos de sensação. Para alguns, o jornal vale principalmente pelas últimas páginas de anúncios.
É ali que há-de vir a solução para o seu caso.
VACA
Vende-se, sangue holandês, cheia de sete para oito meses, terceira barriga. Travessa da Rabicha, n.° 73, Campolide.
FOGÃO DE GÁS
com forno, compra-se em bom estado. Resposta C. S. R. Almeida Brandão,
21, 1."
SENHORA
25 anos, apresentável, educada, pede qualquer emprego. Carta Rossio, 11, ao n." 1934.
VENDE-SE
Por retirada, 5 fatos e dois sobretudos, tudo completamente novo. Rua dos Douradores, 79, 4.°-esq.
ESCRITÓRIO
Admite empregado de contas-correntes, com boa caligrafia e prática. Lugar de futuro. Fiador. Carta com idade, referências e ordenado que pretende ao Rossio, 11, ao n." 272.
MOTOR
DOU 5000$00
A quem arranje colocação a rapaz de
25 anos. Rés. ao Rossio, 11, ao n.º 1920.
CASAMENTO
DESEJA-O
Cav. de meia-idade, educ., activo, c/ fortuna mas pobre de afectos, c/ senhora em igual situação, até 36 anos e, sendo viúva ou div., q. n. tenha sido feliz. Assunto sério e discreto. Ind. s. telef. p. carta ao Rossio, 11, ao n.º
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Buscam e rebuscam. "Talvez este. Sim, é possível. Escrevo imediatamente e vou levar a resposta. Chegando primeiro ... E chegar primeiro para quê? Sempre adianto alguma coisa."
Dobram o jornal e seguem o seu caminho afagando aquela promessa de melhor vida. O fresco da manhã e a esperança despertam-nos. Sorriem e assobiam.
- Só me interessam os anúncios.
- E a mim os comunicados.
- Ora! Que ganhas tu com a guerra?
- É aí que virá o meu anúncio. E o teu também. E o dos outros todos ...
Os rapazes correm a apregoar. Saltam aos estribos dos carros, galgam escadas, despenham-se por calçadas e rampas.
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- Notícias! Século! "''** Há os que lêem o jornal na cama depois de a
criada lhes servir o primeiro almoço. Alguns sentem-se inquietos, já devorados pelas saudades do calor brando dos cobertores Amargam-lhes as novidades da "última Hora". Têm sobressaltos e pensam. Depois atiram para o lado, num impulso de ódio, e escondem a cabeça para dormir. Mas o sono nunca mais chega.
- Comércio! Século!
Os vagabundos não precisam de saber notícias. O seu jornal é o fato que levam vestido, o almoço por que anseiam e a cama com que sonharam. Recebem o sol com um sorriso e nasce-lhes uma esperança na alma. Embriagados por essa luz, caminham para ela um nadinha tontos.
Alguém perguntará, indignado: "Porque dão vinho a estes homens? ..."
A CHAVE DO MUNDO
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DESDE o primeiro ano da escola que todos me tratam por Fomenicas. Sou magro e a minha cara parece de cera, mas nunca passei um dia inteiro sem comer. Sim, tenho cara de fome e os ossos cobrem-se quase só de pele; nisso saio ao meu tio Alfredo, que num dia, ao almoço, foi capaz de comer dois quilos de bacalhau e quatro de batatas com dois litros de vinho e um pão de quilo. Todo o mundo julgou que ele iria rebentar com uma pancada daquelas.
bom, o que quero explicar é que a minha magreza não tem nada a ver com a fome. Apetite não me falta. Como todos os dias ao almoço dois pratos de sopa com pão e ao jantar mais dois e mais pão. Para a escola, a minha mãe arranjava-me sempre um papo-seco com linguiça ou com omeleta, não julgassem os outros que a gente passava mal em minha casa.
Pois, mesmo assim, puseram-me a alcunha de Fomenicas. Depois dessa arranjaram-me outras como Guita, Chalé dos Ossos e Magriço, mas cada uma não resistiu à força da primeira.
Não me lembro quem ma pôs, nem agora isso interessa para o caso. Tenho a certeza que devo à alcunha o tornar-me alvo das brincadeiras da escola. A malta fazia luxo em meter-se comigo, dar-me chulipas e inventar castigos para mim se eu refilava ou mostrava má cara. Acabei por me habituar e fingir que também entrava na paródia. Mas só eu sei o que sentia cá por dentro...
Durante o curso inteiro arranjei um amigo. Um único amigo. A gente tratava-o por Ronha e era ele quem formava os grupos de futebol para os desafios da escola. De princípio, eu pedia-lhe para jogar; ele respondia^me sem olhar para mim: "Trazes lanche?" E eu
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dizia: "Trago." E ele perguntava-me o quê, e eu respondia: "Pão com ovo, ou pão com linguiça." Ao fim de um tempo já não precisava de lhe pedir; bastava entregar-lhe o lanche e ele apontava-me o lugar que eu preferia- defesa direito.
Os outros deviam ficar danados com aquilo, pois mal o desafio começava os do outro lado punham-se à minha caça. Escolhia-me para os deixar com a bola, metia o pé a medo se os via mais longe, mas ao fim de pouco tempo um deles avançava para mim com a bola nos pés, eu percebia-lhe a marosca e desatava a fugir até à parede. Então os do meu lado começavam a gritar comigo e a ameaçarem-me com a expulsão. Eu enchia-me de vontade, voltava para o meu lugar, e a história repetia-se. Repetia-se e acabava depressa, porque o Ranhocas, quase sempre ele, largava a bola e metia-me a bota cardada ao peito ou a uma perna e baldeava comigo pelo chão fora. Uma vez em que eu ia a fugir para a parede, ele meteu-me uma rasteira, e ainda foi pior-fiquei que nem um Cristo, com os joelhos rasgados pelas pedras miúdas do campo do recreio.
Quando me viam no chão, amarrotado pela queda e pelo medo, mandavam entrar outro para o meu lugar e obrigavam-me a sair do campo aos encontrões. Das primeiras vezes ainda protestei.
"-O Ronha trocou o meu lanche pela ordem para eu jogar; ele é que manda ..."
Como se receasse os outros, o Ronha encolhia os ombros e o jogo seguia sem mim.
Logo a seguir eu pensava que nunca mais fazia combinações com ele, mas a vontade de entrar na brincadeira e a esperança de que um dia me deixassem jogar até ao fim podiam mais do que a minha vontade.
Nunca fui capaz de perceber a razão daquele ódio por mim. ódio não seria, porque eles faziam aquilo a rir, mas ia dar sempre no mesmo. Se sentia sede, obrigavam-se a esperar que mais ninguém estivesse ao pé da torneira; doutro modo, havia sempre um piparote, um soco de verruma na espinha, uma carolada ou um cachação. E eu desforrava-me deitando-lhes a língua de fora. Durante cinco anos vivi neste inferno de humilhações. E porquê? Convenço-me de que nem eles o saberiam explicar, pois algumas vezes ouvi dizerem:
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- Não sei que diabo é isto. Sempre que vejo o Fomenicas, dá-me vontade de lhe bater.
Hoje ainda ninguém me fez mal, apesar de estarem vinte e dois rapazes no corredor da secretária. Vejo-os nervosos, conversando uns com os outros à procura de qualquer pretexto para gracejarem. Mas hoje nem eu lhes sirvo. Os seus sorrisos são mais amarelos do que a minha cara; alguns já vieram falar comigo, esquecidos das habituais hostilidades.
Tenho a certeza de que vivo hoje o meu último dia de escola Preparei-me para o exame final com todas as minhas forças, na certeza de que uma vida nova vai começar para mim; quanto melhor for a nota do diploma, mais facilmente poderei alcançar o meu sonho destes anos.
Prestei as melhores provas de todo o curso, não tendo uma hesitação nem uma falha de memória. Os livros pareciam abertos à minha frente e havia vozes que me sopravam toda a matéria das disciplinas. Tirei a minha grande desforra; estou certo de que nenhum outro me passará à frente.
É possível que ainda encontre algum deles na minha carreira de empregado de escritório, e esse há-de arrepender-se de todo o mal que me fez ou aplaudiu. Sinto que vou vencer todas as batalhas da minha profissão. À minha volta as coisas já começam a modificar-se; não me lembro agora da roupa velha de que tanto me envergonhava. Hoje estreei o fato que o meu pai comprou ao cigano. O sol entra pela janela grande que dá para a rua e vem aquecer-me, numa carícia que me lembra os afagos da minha mãe, quando eu, desesperado, chorava sobre os livros.
As noites que passei já não voltam. Não quero que voltem. Recordo-me da última em que preparava o exame de escrituração: o meu pai, na casa de entrada, batia a sola para um conserto que devia entregar pela manhã. Não podia suplicar-lhe que adiasse o trabalho, pois não havia dinheiro em casa e ele ganhava para o nosso almoço. Minha mãe andava arrastada de reumático, sem poder dar um passo, e obrigara-se a deixar as casas onde fazia uns dias como lavadeira. Faltava-nos a sua achega e o meu pai não tinha um descanso enquanto houvesse calçado para arranjar.
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Encafuara-me no quarto com uma vela a iluminar-me, procurando alhear-me de todos os ruídos, de olhos bem atentos às páginas do livro e de mãos encostadas aos ouvidos para que nada pudesse distrair-me. Mas o bater do martelo na sola andava decorado pelo meu sangue. Acompanhava-me sempre, como a grande certeza do meu viver ou um estigma marcando o meu corpo, e não sei se a minha vida.
"-Fomenicas, põe aqui meias solas!"
Repetia-se no quarto aquele desafio e outras frases iguais, relembradas pelo baque surdo do tirapé e do martelo. Passara mais de meia hora -o relógio já mo lembrara- e não havia meio de conseguir juntar ideias na recapitulação da parte dos balanços das sociedades por quotas. As palavras confundiam-se no livro; as letras, se as distinguia, punham-se a correr à minha frente e iam queimar-se na chama incerta da vela, requebrando a sua luz na parede branca, onde havia um retrato antigo de meu pai-no tempo em que ele sentia alegria para tirar retratos.
Apertava os dedos na cabeça, como a querer esmagar aquela alucinação, agitava-me na cadeira, passava páginas e páginas, e a maldita batidela não deixava de me perseguir. Como se o meu pai me desse com o martelo no cérebro, procurando estirá-lo para pôr meias solas nos sapatos do Sr. Henrique do quinto andar.
Levantei-me por duas vezes para lhe pedir que parasse, e outras tantas me sentei, incapaz de dar um passo a caminho da porta - para além dela havia uma maldição para me fulminar. Aquele taquetaque penetrava tudo; parecia até que estilhaçava as letras baralhadas das páginas do livro e fazia a luz mover-se. Arregalei os olhos, para com eles absorver tudo o que devia ainda estudar; fingi esquecer quanto me rodeava, mas não consegui pôr o pensamento em acção. Não passava de um pedaço de pedra posto à frente de um livro.
Sentindo-me impotente para vencer aquela obsessão, deixei cair a cabeça sobre o livro, e as lágrimas romperam, como se semelhante movimento as tivesse entornado dos meus olhos.
Depois adormeci e sonhei com o exame, vendo os outros rirem-se do meu estenderete em escrituração, enquanto o professor me acenava a cabeça numa atitude agressiva. Na mão, em lugar do ponteiro, segurava
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um martelo, quase um malho, que ele, por certo, não poderia erguer. E então o Carolas, o professor magro como eu, que arrastava no nariz uns óculos grandes como vigias de navio, atirava-me a rasteira:
"- Balanços das sociedades por quotas ... Diga-me tudo o que sabe da matéria."
E, como eu não lhe respondesse, deitara a mão ao malho e descarregara-o no meu ombro, obrigando-me a ajoelhar a seus pés.
Acordei com os carinhos da minha mãe. Essas carícias que me aquietaram, dando-me coragem para ficar ali o resto da noite, eram quentes como esta chapada de sol que vem anunciar agora grandes transformações na minha vida.
Passeio ao longo do corredor e sou o único que se sente tranquilo com o resultado do exame. Dá-me desejos de forçar a porta da secretaria, exigir o meu diploma e abalar, só porque reconheço que me tornarei outra pessoa logo que o tenha em meu poder. Evito, porém, mostrar-me nervoso, pois perto de mim estão os outros: o Ronha, que me comia o almoço para me deixar correr atrás da bola alguns minutos; o Malquiças, grande como uma estátua e loiro como um nórdico, que se desfazia em gargalhadas quando os outros me hostilizavam; o Manguço, mulato e leve como um pássaro para galgar as ruas à frente dos polícias; o Fadista, bamboleando os ombros e fazendo ameaças com os dedos; e tantos, tantos outros, alguns mais velhos na escola, mas com quem prestei provas finais e que vejo inquietos, embora se esforcem por mostrar boa disposição. -ó pá, anda para aqui!
- Eu? ...
-Sim, tu.
- Deixa lá o urso. Tem medo que se lhe pegue alguma raposa.
A porta da secretaria abriu-se, cortando o seguimento à conversa. O Lingrinhas, chefe dos contínuos, passa imponente de mapa na mão e vai afixá-lo na vitrina dos avisos. Vamos-lhe todos no encalço, a farejar-lhe as botas, sem um gracejo ou uma partida.
Naquele papel vai marcado o destino de cada um. O Lingrinhas, grave e solene como sempre, não deixa transparecer um raio de esperança na sua carita de criança. Os seus gestos fazem-se mais lentos do que
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nunca, a gozar o espectáculo da nossa ansiedade. Finge que não nos vê, repuxa com os beiços amarelos uma ponta de cigarro da mesma cor e empertiga-se como um juiz. Abre a porta de vidro com todas as precauções, dá duas voltas ao mapa, enrola-o de novo, mete-o debaixo do braço e pede quatro percevejos a um dos outros contínuos.
- Deixe ver, Seu Rodrigues - ensaia o Malquiças, a meter conversa.
- Muito chumbo? - acrescenta o Alverca.
-Se houver chumbo, é bom para vocês. Agora deixa muito. Vendam-no para fora. O chumbo na guerra dá massa à farta.
Diz aquilo sem sorrir, porque a cara do Lingrinhas é expressiva como um pedaço de pau. Mais ninguém adianta palavra; só os olhos querem forçá-lo a andar mais depressa. Ele, porém, continua imperturbável; assobia entre dentes e faz girar nas mãos o rolo que marca o nosso futuro. O outro vem e não traz mais pressa, parecendo até que por cada passo em frente faz dois à retaguarda.
Os minutos decorridos cansam-nos os nervos. Eu próprio já não sinto a mesma calma. Vamos apertando o círculo de ansiedade à volta do Lingrinhas, e o facto emproa-o cada vez mais, tolhendo-lhe os movimentos, tão lentos que nós julgamos que ele continua parado a brincar com o mapa dos resultados. Solícito e afectado para os professores, sempre apavorado se o director o chama, repara essa servidão com orgulhosa indiferença pelos alunos, tratando-nos com altivez, muito convencido da sua farda de cotim com letras douradas na gola.
- Quase não me posso mexer! ... Então?
E volta-se para o grupo, de braços cruzados, para logo acrescentar que só fixará as folhas se nos afastarmos dali. Hesitamos ainda, dispostos a fazer frente àquela exigência. Depois, a um e um, vamos todos para o fundo do corredor; só então reparo que, ao contrário das outras vezes, sou o último a sair dali. Aquela atitude impensada dá-me uma força estranha e poderosa, arrastando-me sem precauções para junto dos outros, esquecido de que sou o Fomenicas, filho do sapateiro que se embebeda e faz cenas nas ruas com quem calha.
- Dá-me vontade de derreter aquele tipo a pontapés- protesta o Fadista.
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Sou o único do grupo que faz coro com ele. Não digo ainda o que sinto, temo alguma sogada para o desembaraço que nasceu em mim, mas julgo-me capaz de defrontar o Lingrinhas, derrubando-o com um soco. Um murro no meio dos olhos, bem medido, igual aos que se vêem no cinema e fazem dar saltos nas cadeiras.
com o mesmo requinte, o contínuo dá a tarefa por terminada. Fecha a vidraça com o ar inchado de quem acaba de dar sentença ao mundo. Corremos todos para ele e atropelamo-nos no caminho, cada qual desejoso de chegar primeiro para saber os resultados. Embora me tenham dado alguns puxões, consigo adiantar-me com o Manguço e fico à frente do mapa.
Incapaz de me mover, permaneço ali especado. Saltam-me gritos no peito, correm-me calafrios pelo corpo. Engulo em seco, quero rir e chorar; dá-me ganas de pegar na vitrina e levá-la em triunfo por essas ruas fora no alto das minhas mãos. Tão alto, tão alto que ninguém lhe toque, até entregá-la à minha mãe para em seguida lhe ler o meu nome.
Ela havia de acariciar-me muito mais do que o sol projectado no canto do corredor, tenho a certeza. E ali mesmo choraríamos os dois, não digo o futuro, porque esse seguro-o ali, certo e rendido, mas o passado já distante- tão distante que não me lembro bem daquelas noites trágicas em que os seus suspiros, o bater do martelo na sola e a minha inquietação marcavam os minutos longos dessas horas sem fim.
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É um grande número que toma o corredor de alto a baixo. Cinco anos de sacrifícios e de queixas sem conta, de tudo e de todos. Mas quando se sofre por alguma coisa e se chega a conquistá-la, as amarguras sabem bem. Adoçam-se, parece que sempre foram doces.
Agora sei bem o que isso é. Nunca mais pão escasso, Invernos sem agasalho e livros pedidos à caridade dos leitores de qualquer jornal. As camisas e os fatos que vestir são meus, talhados para o meu corpo e à minha escolha. A minha mãe não mendigará pelas casas onde trabalha as coisas velhas que os outros não querem.
Tenho ali a certeza à minha frente, já não me pode fugir por mais que alguém ma queira negar. Aquele
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número vaza-me os olhos, tapando-os para tudo o mais, queima-me o corpo, como se o metesse numa forja onde irá temperar-se um homem diferente do Fomenicas. Se pudesse ver-me agora no vidro da vitrina, assistiria por certo à transformação do rosto magro e descorado do 35, em que todos queriam bater, num outro do Sr. Fernando Lopes Silva, empregado de contabilidade de uma firma qualquer, talvez guarda-livros, um dia gerente ...
Os meus companheiros dão-me cachações, agridem-me com chulipas, gritam-me aos ouvidos o seu despeito, mas não sabem a transformação que acabo de sofrer. Não me encolho, suplicando-lhes: "Não me batas, pá!" Antes me parece que as suas pancadas são malhos a moldarem a nova forma da minha vida. Cansados da minha indiferença, abandonam-me ali; vejo-os cochicharem qualquer plano entre eles, mas nada me confrange nem me atemoriza, porque conquistei, pelo meu esforço, um lugar lá fora. Quando transpuser a porta da escola, todo o passado morrerá - morrerá calcado a meus pés, como o dragão aos pés de S. Jorge naquele quadro da casa de entrada onde o meu pai trabalha.
Compreendo agora o motivo da minha predilecção por esse papel colorido: adivinhava nele, inconscientemente, o anúncio do meu destino - de cabeça levantada e braços em arco, peito entumecido de confiança, ali mesmo dominava a incerteza gerada no ventre da minha mãe e a miséria com que queriam marcar-me para sempre.
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Repito o número sem falar, porque todo o meu corpo fala e nem preciso de abrir a boca para o dizer. Todos os sons que me envolvem o repetem também, nas horas batidas pelo relógio da secretaria ou no cantar festivo dos sinos de uma igreja qualquer. Há pregões na rua e eu traduzo-os na mesma palavra com que escuto passos que ressoam no corredor lajeado. As campainhas dos eléctricos vão alegres, anunciando à cidade aquela nova.
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> Só agora recordo que me esqueci de correr a casa para dizer aos meus pais o resultado do exame. Perdi ali não sei quanto tempo, e guardo, afinal, uma grande alegria para lhes oferecer. Eles julgam, se calhar, que só amanhã me dirão os resultados. Devem estar nalguma caturrice, por causa disto ou daquilo - dessas coisas aparentemente insignificantes que fazem parte da vida dos pobres.
Deito um último olhar ao mapa e ponho-me a correr pelo corredor, sem me lembrar das ordens do director. Mas agora só ali voltarei para receber o diploma de cartolina, despedir-me dos contínuos e dar-lhes o meu cartão de visita como quem puxa de um cheque para pagar afrontas.
Pela porta da rua entra o clarão do sol luminoso como nunca; e corro mais ainda para me banhar na sua luz.
Ao fundo da escadaria descubro os meus companheiros a olharem-me com ares misteriosos. Fixo-me no grupo, dou uns passos em frente até ficar na ponta do primeiro degrau; reparo pela primeira vez que fico mais alto do que todos eles. Julgo-me no cimo de um altar, como S. Jorge esmagando a hidra, intangível como as nuvens brancas, ora estendendo-se, ora enovelando-se, no céu azul desta tarde radiosa. Sorrio sem saber de quê, desço os degraus devagar, um a um, conto-os mentalmente, enquanto procuro desvendar as intenções do Ranhocas e dos outros A minha nota esmaga-os, bem o sei.
Agora traduzo o meu sorriso como um sintoma de cobardia, como um resto desse antigo temor, meu companheiro de cinco anos já vencidos. Quero caminhar para os outros, oferecendo-lhes o meu braço de camarada, mas os passos desviam-se pouco a pouco, e eles começam a ficar à minha direita, envolvidos numa cortina cinzenta que os afasta de mim.
- Ouve lá, ó Fomenicas.
Finjo não escutar aquela voz; continuo o meu caminho, embora vá receoso de qualquer acontecimento que pressinto no silêncio do grupo. Na cabeça cai-me um punhado de terra, depois outro e outro. Vaiam-me e assobiam-me; prossigo de coração despedaçado, mas piso com firmeza a areia do jardim. As pernas querem fugir, abalar numa corrida para os sentir longe de mim.
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Reprimo-as, porém, firmando os pés no chão, como se pretendesse marcá-los para uma recordação eterna.
Adivinho ao mesmo tempo que a resposta deles não se fará esperar. Mas agora não cedo, não cederei. Tremo, mas consigo vencer esse abalo; não o deixo atingir as mãos, porque as meto nos bolsos, não permito que me contamine as pernas, porque as levo quase hirtas.
- Quem és tu, ó Fomenicas?
- É um par de sapatos de defunto! - responde outra voz.
Dão-me um cachação, ao mesmo tempo que me puxam um braço, enquanto atrás de mim se levanta um alarido de gargalhadas e apupos.
- Fomenicas! Fomenicas...! Eh, Fomenicas!
- Vende a pele ao teu pai para fazer sapatos! Quando me volto, atiram-me um empurrão que me
faz cambalear. Sinto umas mãos agarrarem-me e sacudirem-me.
- Olha para mim, Fomenicas. Vamos dar-te agora a despedida.
Não sei quem me puxa o nariz, dizendo aquelas palavras que provocam mais assobios e risos entre o grupo. Decidido, agarro o que está à minha frente e luto com ele. Os braços fraquejam-me, estrebucho, finco os dentes e atiro-me para a frente com toda a gana. Sinto-me voar, arrastando alguém na minha queda; quando abro os olhos e vejo o Ranhocas, lembro-me de cinco anos de opressão e de espancamentos.
Nesta altura, parece-me que agarrei todos debaixo de mim, para que me desforre das humilhações sofridas. É a minha vez. Fecho os punhos e descarrego-os à doida na cara dele, que já não deve ter o mesmo sorriso de troça e de maldade. Debaixo de mim, o seu corpo fraqueja.
Os outros não nos separam, porque confiam na manha do Ranhocas. Mas eu sei que não posso deixá-lo levantar-se antes de mim. As suas mãos agatanham-me, ferem-me, ele está agora a lutar com as unhas como fazem as mulheres. O mal é dele. Eu só vivo nesta altura para a vingança: tenho a certeza de que conquistei a chave do mundo.
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Preciso de justificar a nota final do meu curso. Bati-os a todos pela inteligência e hei-de vencer agora também pela força. Alguns deles virão a ser meus subalternos, porque o meu diploma tem a nota mais alta do curso.
- Larga-me! Larga-me, Fomenicas!
O Ranhocas pede tréguas. Nos seus olhos esbugalhados começo a descobrir o sinal do medo. Não vou deixar passar a minha oportunidade. Preciso de recuperar os anos perdidos, e o momento chegou. As oportunidades não se repetem quando queremos.
Bato-lhe ainda mais, puxo-lhe o nariz como ele me fez há pouco, por troça, e apetece-me rir também. Rir é que não consigo.
Só me sinto com forças para lhe amassar o rosto com os meus socos, devolvendo-lhe os apupos e as chulipas que me ridicularizaram aos olhos dos outros. Gostaria que a escola inteira se juntasse ali para assistir à nossa luta; todos ficariam a saber que o Ranhocas tornbara debaixo do Fomenicas e que pedira paz depois de arranhar como as mulheres. O Ranhocas é mulher!
- Olha o chui, pá! -grita uma voz.
Nem esse aviso, que me apavorava noutros tempos, basta agora para me convencer. Quero que se fale deste grande acontecimento da minha vida por todo o bairro. Quando passarmos para a esquadra, os comentários anunciarão o meu triunfo.
Só é pena que não façam como nos combates de boxe, quando os pugilistas são apresentados ao público para receberem as ovações e saírem em ombros. Não se diria somente que venci o Ranhocas. O director da escola e o polícia poderiam anunciar ao mundo a minha dupla vitória.
-'Fernando Lopes da Silva; Dezasseis valores! - diria o director.
E a vida cessaria para escutar a voz seca e fanhosa do director da escola, de sobrecasaca, calça de fantasia e colarinhos "à raios te partam".
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- Fernando Lopes da Silva venceu por K. O. ... - anunciaria o polícia.
Não o Ranhocas, não, isso já não me interessa muito. Anunciem que venci a vida. Que passei meia fome desde menino, mas que, mesmo assim, ou por isso mesmo, consegui chegar ao cimo das minhas ambições, conquistando a chave do mundo. Que nunca mais passarei as noites com as mãos a apertar a cabeça, enquanto o meu pai batia sola para ganhar a sopa do outro dia. Quase sempre sopa durante uma vida inteira.
Acabou-se! Acabou-se tudo! Hei-de oferecer ao meu pai uma loja com grandes montras -montras, sim, porque serão duas ou três- de frentes metidas a mármore, com cromados largos e jorros de luz em tubos e reflectores. No alto da fachada, um dístico de letras vermelhas a acender e a apagar como numa negaça à curiosidade da multidão:
SAPATARIA SILVA - Dernier cri.
O último grito de quem sofreu humilhações e acabou por conquistar a vida. A chave do mundo ficou na secretaria da escola, mas amanhã ou depois virá para a minha mão.
- Então que é isto?
O polícia sacode-me e tira-me de cima do Ranhocas, olhando-me com modos autoritários. Como o guarda está enganado! Dentro de pouco tempo serei o guarda-livros de qualquer grande empresa e ele há-de tratar-me por Vossa Excelência quando quiser falar comigo. Pois então! Um contabilista não se trata aos puxões e com voz arrogante. Agora mais devagar, senhor guarda! Posso arranjar-lhe um grande sarilho, e depois não se queixe.
- Não sabem que na via pública não se pode zaragatear?
- Foi ele, senhor guarda ... - titubeou o Ranhocas. - Provocou-me à saída ...
Podia agora contar ao polícia como tudo se passara, mas não estou interessado em perder tempo com ninharias. O Ranhocas que invente o que lhe vier à cabeça; a mentira pertence aos fracos e aos cobardes.
Vamos ambos agarrados pelo polícia e começa a juntar-se gente. O Ranhocas descontrola-se, começa a choramingar; eu sorrio para todos, com o ar confiante de quem. conhece o caminho do triunfo.
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*" - Acabámos o exame, senhor guarda - meu adversário, com a cara marcada ao pé, dos olhos
Atrás de nós segue um grande grupo, onde Vejo o Manguço, o Fadista e muitos outros que pedem clemência:
- Deixe-os lá, senhor guarda.
- Foi com a alegria de acabarem o curso.
- Boa alegria, sim senhor! - comentou o polícia.
- O meu pai, se sabe, dá-me uma tareia, culpe! -carpiu o Ranhocas.
Só eu vou calado, com vontade de cantarolar entre dentes. Dói-me todo o corpo, não posso com os braços, esgotados pelo esforço a que os obriguei, e sinto o olho esquerdo aos puxões, a contrair-se como a luz de um farol.
Mas que importa? Noutros tempos, corria para casa a acolher-me no regaço da minha mãe, para que os seus carinhos me dessem o refúgio que todos os outros me negavam. Agora nem disso preciso: ganhei confiança em mim, sei perfeitamente para onde quero ir e até onde poderei chegar. Sou eu que levo para casa o futuro dos meus.
O meu pai possuirá loja e não será mais o Silva sapateiro, tratado com desdém quando leva no saquitel branco as botas e os sapatos dos fregueses. Ficará por detrás do balcão envidraçado, vendendo os últimos modelos que a moda impõe; passará a ser o Senhor Silva, tratado nas cartas dos grandes armazéns por Amigo e Senhor Atento Venerador e Obrigado. A minha mãe deixará de andar a dias, cansada e trôpega; ficará em casa, tendo no Inverno com que se agasalhar, comida certa e quente, talvez uma criada para a servir...
A vida que ela vai ter agora! ... Bem a merece! Do pouco que havia sempre guardou o melhor para mim. Ralada com a minha magreza, angustiada se me ouvia tossir, dava-me gemadas às escondidas para que eu pudesse continuar nos estudos. O que sou agora devo-o à sua confiança. Nunca o esquecerei.
"-Mete-se o rapaz aqui ao meu lado e dispenso o aprendiz - dizia o meu pai.
"-O professor disse-me ontem que ele é tão esperto...
"-Já sabe mais do que me ensinaram a mim. O segundo grau já lhe chega bem. Faz-me as contas para os fregueses e aprende aqui o ganha-pão.
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"-Não me importo de trabalhar mais, mas o Fernando há-de ir para a escola. "-Ora!
"-E depois, quando o vires todo aperaltado, aí num escritório ...
"-Envergonha-se de nós.
"-Mesmo que isso aconteça, ficamos de bem com a gente. Fazemos a nossa obrigação. Mas não há-de acontecer assim, graças a Deus, diz-me o coração. Ele é tão bom ... É mesmo o retrato vivo do meu pai!
"-Logo vi. Tudo o que ele tem de bom sai ao teu lado. Se sair bêbado, é do meu, não?
"-Lá estás tu, homem."
Não me esquecerei do seu empenho por uma carreira mais limpa. Hei-de dar-lhe tudo o que puder. E se um dia ganhar para automóvel, hei-de passeá-los pelas ruas de Lisboa, orgulhosos um do outro, como dois noivos ... Quando casar, saberei escolher uma mulher bonita. A Mila é uma bonita rapariga. Hei-de escrever-lhe quando estiver empregado e o pai dela souber que já pouco tenho a ver com o filho do sapateiro borracho. Se o meu pai não deixar de beber, vai ser o diabo!
O guarda sacode-nos e faz uma prelecção; ameaça com dois dias no calabouço se nos encontrar novamente em zaragata, na rua. Pede-me que lhe prometa que não volto àquilo, enquanto o Ranhocas me pisca o olho, já esquecido dos meus murros.
Preferia ir para a esquadra, mas dois dias é muito. Lembro-me de que podem averbar-me a prisão no bilhete de identidade; lá sou capaz de ficar com a carreira comprometida.
Só essa ideia me faz tremer. Fico arrependido de tudo quanto fiz, alarmado com a inconsciência de ainda não ter previsto esse desastre que desfaria o meu sonho - ninguém tomaria um empregado que andasse pela rua em desacatos e brigas.
- Prometo, sim, Sr. Guarda.
Mal o polícia nos larga, o Ranhocas põe-se ao meu lado, sorri-me e oferece-me um cigarro.
- Desculpa! Tens razão. Havemos sempre de ser amigos.
Pego no cigarro - um cigarro inteiro! - e aperto-lhe a mão. Até o Ranhocas compreende que a vida se abriu para mim. Agora somos iguais. E sou eu
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que autorizo essa liberdade, porque passei com dezasseis e ele com dez - mesmo à rasa.
- Queres beber uma ginja?
- Não, obrigado.
Apetece-me aceitar, mas não devo deixar-me subjugar pelo seu dinheiro. Quando estiver empregado, hei-de convidá-lo, e então virá uma rodada à conta de cada um.
- vou para casa. Adeus ...
- Fernando. Eu sou Fernando Lopes da Silva.
- E eu João Matos da Cruz.
- Adeus, Silva.
- Adeus, Cruz.
E cada um abala para o seu lado.
Alargo o passo para recuperar o tempo perdido. Os meus pais hão-de estar à espera, enervados com a minha ausência, espreitando à porta de casa que eu apareça no começo da calçada. Apetece-me gritar a nota final para fazer vir à janela as raparigas da minha rua, pois agora posso oferecer o meu futuro à mais bonita, à Mila, à mais inteligente de todas elas. Ficarão com inveja as que eu desprezar, mas não posso dar o meu destino a todas. Se soubessem que sou um barra em matemática, francês e inglês ...
Ainda me parece um sonho!
Esqueço-me de que dentro de algum tempo entrarei para guarda-livros de uma grande empresa ou de um banco, e deito a correr pela rua, como nos dias em que os meus companheiros me vaiavam. É uma alucinação de alegria que me provoca os desejos mais estranhos; preciso de anunciar às pessoas indiferentes que terminei o curso com a nota mais alta.
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Acotovelo pessoas, empurro, furo pelos grupos que estão nos passeios e corro cada vez mais. Do fundo da calçada vejo a minha mãe à porta e aceno-lhe com o braço. Ela não me responde, Lembro-me de que vê pouco, tão cansados estão os seus olhos de passar noites inteiras a consertar as nossas roupas. Para a semana já terá uns óculos e poderá ver-me no fundo da calçada, quando eu voltar do escritório. Corro mais ainda.
- Mãe! Mãezinha!
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Quando lhe caio nos braços, choramos ambos e beijamos as nossas lágrimas, sorrindo-nos um para o outro.
- Dezasseis, mãe! Tive dezasseis!
- Que é isso, filho?
- Dezasseis é o maior prémio da escola. Fui o melhor. O melhor de todos.
O meu pai larga o tirapé e vem abraçar-me. Ficamos assim os três por largo tempo, olhando-nos sem palavras, porque a alegria e a esperança nos enchem o peito e nada mais sabemos encontrar naquele momento.
- Ai o meu Fernando ...
- Tenho aqui o jornal d'hoje, filho. Agora já te podes empregar. Vi aqui um anúncio que talvez te sirva - diz o meu pai, maravilhado comigo.
E passa-me o diário para as mãos trémulas, espreitando por cima do meu ombro, enquanto a minha mãe corre à mercearia a fazer compras para melhorar o nosso jantar de festa.
Aquela preocupação do meu pai dá-me um choque desagradável. Sinto que abala os sonhos bonitos das minhas horas tristes. Amarga-me a ideia de arranjar emprego por anúncio. Possuo a minha carta do curso comercial, gostaria que me dessem um lugar sem recorrer àquele meio pouco limpo ... Talvez seja mania!
As letras do jornal amalgamam-se, fundem-se e toldam-me os olhos com uma venda de luto, recordando-me que não conheço alguém que possa arranjar-me emprego.
- Que tal? Deve ser bom ...
- Ainda não vi.
Aponta-me o anúncio e tudo continua confuso; o coração aperta-se-me de angústia.
ESCRITÓRIO - admite empregado de contas-correntes ...
- Mas eu sou guarda-livros, pai! - explico com veemência.
- E poderás ser logo guarda-livros antes de outra coisa?
- Tirei dezasseis, pai. Foi a maior nota da escola. Se tivesse visto os exames que fiz... Em escrituração, não falhei um lançamento. O professor deu-me dezoito
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e disse para o presidente do júri que os vinte ficavam para ele. Isso quer dizer que sei quase tanto como o professor.
Conto-lhe aquilo, não por vaidade, mas para que não desfaça os meus sonhos mais queridos. Começo a perceber que ele talvez tenha razão. Mesmo assim, quero demovê-lo das suas dúvidas, embora elas passem para mim, amargurando-me esta hora.
Da rua chega a voz da minha mãe gritando para a vizinha de cima a grande novidade. A outra dá parabéns e diz-lhe que me deseja tantas felicidades como as que quer para o filho. Torno a ler o anúncio entre dentes, remoendo as palavras, e sinto que pouco a pouco me volta a confiança.
Pedem um empregado com prática, mas gozo já com a cara do patrão quando souber que arranquei a melhor classificação do curso. Talvez até se sinta envergonhado da altivez com que me receberá nos primeiros momentos. Na carta que fizer não lhe direi a nota final, para que depois lha possa atirar como oferta.
-'Dezasseis, ha?
E sorriremos um para o outro, já amigos, enquanto ele me estenderá a mão num sinal de confiança e amizade.
"-Logo que o guarda-livros saia, o lugar é para si. E pouco tempo demorará. Não estou satisfeito com ele. Pensava dar quatrocentos escudos, mas pode contar com seiscentos. E no fim do ano... Venha amanhã, se puder. É um favor que me faz."
Meu pai bate-me no ombro, dizendo que os sacrifícios acabaram e passaremos a ter melhor vida. Não me agrada ouvir-lhe aquelas alusões as suas noites de trabalho, e estou tentado a lembrar-lhe que por sua vontade ficaria em aprendiz de sapateiro. Mas reservo essa conversa para mais tarde, quando lhe oferecer a loja com frente de mármores e cromados, reclamo luminoso e últimos modelos nas duas montras grandes.
- Queres responder já?
- Sim, pode ser.
E enquanto o meu pai corre à capelista para comprar a carta, entretenho-me a compor o futuro, sem o deslumbramento que trazia da escola, mas convencido de que o diploma será em breve a chave que vai abrir-me as portas do mundo. Passeio pela casa, sentindo
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os meus passos firmes, capazes de empreenderem todas as jornadas que a vida me oferecer, mesmo as mais incertas.
Quando a minha mãe entra com o cesto na mão, vou abraçá-la e beijo-a.
- Como tudo será diferente, mãe!
- Diferente?
- Sim, mãe. Nunca mais andarás a dias pelas casas de uns e outros. Nunca mais esquecerei aquela noite em que convenceste o pai a deixar-me estudar. Ouviste?
- Ouvi, sim. Mas não lhe queiras mal por isso. As coisas iam tão ruins ... Passámos tanto! Se soubesses ...
A CARTA

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CALEM-SE!
^ A voz ficou a vibrar dentro de si como uma vara de metal desprendida. Os filhos calaram-se lá dentro, na varanda, mas continuaram a falar baixo. O Raul, o mais velho, talvez dissesse para o outro que "o pai estava maluco".
- Calem-se, já disse!
A mulher apareceu ao fundo do corredor, enxugando as mãos no avental e de olhar espantado.
- As crianças estão quietas, homem (
- Estão ainda a rosnar. Que disse o Raul?
- Valha-me Deus, homem. Sossega, anda. O médico disse para não te enfrenesiares. Deita-te.
- Quero responder ao anúncio. Estou farto de receber esmolas do meu irmão. Não quero mais. Quando ele vier, não o recebas. Porque vem ele cá a casa tanta vez?
- Saber de ti...
- Mas não vem aqui ao quarto. Prefere ficar contigo lá dentro. Que fazem vocês lá dentro sozinhos?
- Acalma-te, homem!
Quando ela se aproximou, pegou-lhe no braço e apertou-lho com raiva.
- Julgas que não sei? Ele foi sempre um irmão falso. E tu gostaste sempre mais dele do que de mim. Eu roubei-te, mas ele vinga-se agora. Mas serei eu, podes ter a certeza, o último a rir. Tenho suportado tudo isto para me poder vingar também. Não acreditas que me vingarei? ... Vocês enganam-se comigo.
- Mas isso já passou; foram coisas da mocidade. Eu agora só vivo para ti.
- Não me iludas, mulher. Eu sei bem o que ele vem cá fazer. Ou o que pensa fazer... Mas não quero
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mais um centavo da sua mão. Entendido? Isto fica definitivamente entendido entre os dois ...
- Sim, pois sim.
- Dá-me a chave da porta. Vá, depressa!
- Para quê?
- Dá-me a chave.
Ela estendeu-lha com as mãos trémulas. Aquele sorriso do marido arrepiou-a.
- Ficamos suspensos desta carta. Se não vier resposta, acabou-se tudo. Ouviste bem?
- Ouvi.
- Não se abre a porta a mais ninguém. E tu, se quiseres sair, sai pela janela. Como é um quinto andar!... Deixo-te essa liberdade. Mas aqui não entra mais um centavo que não seja ganho por mim. Eu sou o chefe da família. E, ou sou capaz de ter família, ou a família acaba. Saiam pela janela os que quiserem abandonar a casa. Mete os rapazes na cozinha. Eu depois vou fechar a porta. Porque estás a fugir de mim? ...
- Não estou a fugir.
^-Já sabes que não meto medo. Nunca meti medo. Vocês até pensam que sou parvo. Não deixes os rapazes fazer barulho. vou escrever a carta. É um lugar insignificante: conta-correntista. Mas hoje não vem outro, e é preciso começarmos vida nova. Se o médico vier, diz-lhe que já estou bom. Que mande a conta! Ouviste?
- Ouvi.
Fechou-lhe a porta e sentou-se à secretária, acariciando a folha de papel. Molhou a caneta duas vezes e ficou a observar a tinta que escorria. Gostava mais de escrever com tinta verde.
Ex. e Ilustríssimo Senhor: o Empregado...
"Deve ter um acento no a. Empregado. Empregado."
- Para que se habituem a escrever correctamente. Corja de analfabetos!
Empregado ex-Agente da C. P. donde tem
um curso e um concurso ...

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- Urso... línguas de animais. Curso e concurso. Como é que tudo isto não há-de andar assim! bom, adiante ...
...e um atestado de bom comportamento; tendo sido Administrador de Concelho (proposto) e tendo estado nos serviços do estado, donde espera reforma, mas onde lhe não pagam...
- Malandros dos republicanos! Mas também se amolaram. Olá! ... Hão-de pagar.
Começou a reler o que escrevera, entre dentes, rufando com a ponta da caneta na secretária. "Lá de dentro não vinham ruídos. Ainda bem. Começava a haver respeito naquela casa. Julgavam que não sabia dos entendimentos entre ela e o irmão. Rira-se deles. Gozara com a ideia de o suporem doido. Os rapazes estavam calados como ratos. Se quisessem sair ... quinto andar!" Retomou a escrita, depois de ler em voz alta o que escrevera.
"... ... mas onde lhe não pagam. Há vinte e quatro
anos que presta serviços (judiciais, administrativos, fiscalização, técnicos e outros da maior
importância e responsabilidade). Sabe contabilidade, todo o serviço de escritório, facturas,
contas-correntes, correspondência, cobrança,
etc.... podendo mesmo habituar-se a escrever
à máquina.
• •, - Cedo neste ponto. Abomino as máquinas. O mundo estragou-se com as máquinas. i
... Tem boa caligrafia e escreve com desembaraço e correcção. Pensa mesmo apresentar à Real Academia ...
- Para mim é e será sempre Real Academia.
... um projecto de reforma ortográfica. Sabe fiscalizar todo o serviço de construção de prédios, obras de arte, etc.
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- Há-de acabar-se com esta ideia de pôr o c depois do t. Ect é que é.
... Grande tarefas ou empreitadas, dirigir o pessoal, pagamentos, sem o risco do seu nome vir no jornal como ladrão - fazer cumprir os cadernos de encargos - medições, desenhos e
outros serviços de importância. Sabe administração de bens de propriedades rústicas: ou urbanas. Conhece os serviços no Foro...
Orgulhoso de si, recostou-se na cadeira, balouçando-a depois com os pés fincados na parede, e pôs-se a recordar os seus tempos de estudante; via-se de capa e batina a responder aos professores, a acamaradar com os colegas em púrrias e serenatas. As suas esperanças de então cresciam para o curso de Medicina. Resignara-se ao
5.º ano do Liceu.
Tudo isso ficava longe e ainda lhe trazia amarguras. Pôs-se a amachucar a ponta de um charuto que o irmão lhe trouxera, como se triturasse nos dentes o sonho do passado. "vou agora recomeçar vida", pensou.
com uma carta daquelas, respondiam-lhe por força. Estava cansado de dar respostas simples e nem sequer o chamavam para um exame. O reclamo agora era tudo. Tinha de se andar de campainha na mão como os aldrabões das praças públicas. Males do tempo!
- Mas vamos a isto.
... No Foro judicial, policial e criminal;
todos os serviços junto das Companhias dos
Caminhos de Ferro, Alfândegas ou trapiches,
ect. - repartições do estado, pagamento de décimas, arrendamentos, foros, legados, ou outros,
41, tendo prática da própria feitura desses mesmos
documentos. Não é político ...
- Não, não digo que sou monárquico. Num escritório sou um empregado, e nada mais. É bom ressalvar esta dúvida. Se um dia fosse patrão, só admitiria empregados sem política e de saúde rija, confirmada por análises oficiais. > u
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requerente Não é político militante, não sofre de
doenças venéreas ou sifilíticas ou contagiosas, tendo boa saúde, graças a Deus; física e moral. Possui educação literária, técnica e judiciária, boa apresentação e boa educação. com exemplar comportamento moral, religioso, militar,
civil, policial e criminal. Não tem compromissos secretos, políticos ou outros; não tem nem está
"-{ resolvido a ter - em algum tempo entendimentos "sobressivos" com quem quer que seja - fossem de que natureza fossem - prova também a sua identidade como homem de bem que sempre foi, como bom cidadão que é, e como funcionário zeloso e cumpridor de todos os serviços onde esteve.
Ficou-se a meditar com enlevo:
"Se tenho seguido outra carreira ... a facilidade com que escrevo. As palavras saem-me da ponta da caneta como se o aparo as pensasse. Enchi as quatro páginas da folha de papel e ainda tinha outro tanto para dizer." Por delicadeza, deixara em branco as linhas de cima, mas devia aproveitá-las agora
- Talvez assim.
... Pede vénia para escrever neste espaço, relembrando: competência em todos os serviços; não ter doenças venéreas ou ideias "sobressivas"; ser o que sempre foi e o que sempre será (um homem de bem). Deve estar nas condições do
seu anúncio, podendo dirigir-se, por isso que só se fala com pessoa de respeito, à direcção abaixo indicada.
Respirou fundo e abriu os braços de fadiga, levantando-os depois acima da cabeça. com preceito o seu nome, sem esquecer e os pontinhos. Leu a carta, compôs dobrou-a com cuidado, não fosse as incertas. "Precisava que lha fosse entregue rapidamente. A rapidez, nos dias de hoje, factor da vitória."
- Maria!
para expulsar a cabeça. Assinou os dois rabiscos a pontuação e prontificcara-se a levar imediatamente. era o primeiro
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O eco da sua voz ressoou na casa e ficou sem resposta.
- Maria!
"Assim também era sossego demasiado. Respeito, sim, mas ... tanto..."
Abriu a porta do corredor, apurou o ouvido e nenhum ruído chegou até ele. Uma mulher cantava longe, a esganiçar-se num fado carpido.
- Maria! Não ouves, Maria? Diz ao menos que não ouves!
Riu-se do gracejo, recordando o Pires, o Piranga, como lhe chamavam na repartição; tinha sempre aquele desabafo quando o servente não corria logo a atendê-lo. "bom colega e bons tempos! Mas não me dão a reforma. Hão-de dá-la um dia, doa a quem doer, e todo o sacrifício de agora será então compensado. Tudo junto vai quase a dois centos de contos. Comprarei uma casa de campo com horta e capoeiras..."
- Maria! Onde é que diabo se meteu esta maldita megera? i
E correu a casa toda à procura da mulher e dos filhos.
Na mesa da cozinha, a faca abandonada junto das batatas por descascar; ao lume, a panela a ferver deixava escapar um penacho de vapor. Não havia outros sinais de que ali vivera gente.
"Teria ido queixar-se ao meu irmão por causa do meu desabafo? Talvez." Confirmavam-se as dúvidas. Aqueles sorrisos bem lho diziam. Seria um bom fundamento - abandono do lar. E no momento em que ele ia resolver a sua vida, era um caso de premeditação. Tudo ficava simplificado. Começava a sentir-se com sorte.
Do quintal do prédio chegaram-lhe pedaços de conversas de muitas vozes. Apurou o ouvido e percebeu a voz da mulher, a choramingar, enquanto as vizinhas faziam um coro de exclamações e comentários. Sentou-se no chão para ouvir melhor, sem que o pudessem descobrir.
- Pediu-me a chave e disse que quem quisesse sair o fizesse pela janela. Está doido! Aquela neurastenia de se ver sem trabalho ...
- Porque não chama a polícia?
- O melhor será telefonar para Rilhafoles ... Um homem assim pode ter alguma fúria ...
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-Se vissem a cara dele, santo nome de Deus! Proibiu-me de receber o irmão, que tem sido um santo para a gente. Vivemos às sopas dele. Que seria de nós sem a ajuda desse homem bom! ...
Lá se punha ela na mesma história. "Quer que eu ponha a cara onde o meu irmão põe os pés." Sorriu-se, esfregando as mãos, e só então reparou que amarrotara a carta. "E se estou doido? Ha?! Não passou de um simples ataque de ira branda. Que diabo, também posso ter o direito de me zangar! ... com aquele barulho dos filhos, quem é que poderia escrever? Se calhar, exagerei! Estarei doido? Não, não com certeza. A carta desmente bem a insinuação dela. Correcta, bem notada ... se tenho continuado o curso, nada disto sofreria. E agora, ainda por cima, o vexame de me julgarem maluco."
Levantou-se e foi à varanda. Cá de baixo ninguém reparou nele; entretinham-se a discorrer acerca da sua doença e do calvário da mulher. Os filhos, indiferentes, acamaradavam com os rapazes da vizinhança, atirando pedras a uma árvore. Tossiu com força, sorrindo-se do burburinho. "Mas estarei doido?"
- Maria! - gritou.
Responderam-lhe gritos e olhares espantados de terror, enquanto a mulher caía nos braços da Dona Cremilda, da porca da Cremilda, e sacudir-se num ataque de nervos e de teatro.
- ó vizinho, acalme-se!-pediu-lhe a mulher do bombeiro, de mãos postas, depois de se benzer.
- Calma tenho eu. Não tenho é quem me vá levar esta carta ao Rossio. Estou aqui sozinho. Já estive para sair pela janela. Não é assim que se abandona uma casa...
Um polícia apareceu e olhou para cima. Depois encolheu os ombros, dando explicações:
- Não há vaga. Que querem que eu faça?
Ele respondeu-lhe cá de cima, movendo os braços para chamar melhor a atenção:
- Se quiser ...
- Quê?
- Tenho três vagas cá em cima. O Sr. Guarda pode vir já, se quiser... Dou-lhe o quarto dos dois meninos.
E voltou para a casa de jantar a escrever o envelope, depois de fechar a porta que dava para a varanda.
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CAMINHO

/COMEÇAVA a fatigar-se daquela vida. Estranhava até ^ que só agora o sentisse. E fora preciso ela desabafar para compreender melhor a sua situação. Se o pai voltasse ao mundo ... Que diria o pai? Tinha posto nele grandes esperanças, dando-lhe um curso.
"-'Nada mais te deixo, filho. Mas ficas com essa enxada. Já tens mais do que me deram. E se fores um homem honrado ..."
Quisera ser um homem honrado. E ainda o era, talvez. E talvez o não fosse já. Faltara-lhe o arrimo da mãe, os conselhos e as reprimendas que o aborreciam, e só agora percebera que carecia de tudo isso.
"-Não venhas tarde, filho. Assim cansas-te ... Não és forte e esta noite ouvi-te tossir. Não te sentes mal? Tem cuidado. Não devias sair daqui depois de jantar. Sim, não saias.
"-Tenho um amigo à espera.
"- Telefona-lhe.
"-É um encontro que pode proporcionar-me um trabalho extraordinário. Ganho tão pouco..."
Mas enganava-a. Punha mais brilhantina no cabelo, dava uma passagem à barba, compunha a gravata e saía para se ir meter no café onde as raparigas apareciam tarde. Gostava daquele canto. Nos primeiros dias, era a atracção de se aproximar de um desejo que acarinhara por largo tempo, já farto de casas de mulheres, do relaxamento dos gestos e das conversas. Ali, parecia outra coisa. Um dia entrara, quando ainda estudante, e metera-se naquele canto, depois de ter contado bem o dinheiro que levava. Ensaiara no passeio umas tantas tentativas, até que se resolvera. Sentira-se oscilar, perturbado pelas luzes e pela presença das raparigas espalhadas pelas mesas. Não fora capaz, com aquele
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embaraço, de fixar uma qualquer; não podia dizer a cor dos olhos ou do vestido de uma delas. Caíra num turbilhão de cores, de rostos, de gargalhadas e de desejos. Vira aquela mesa, e correra para lá, como se uns braços se estendessem para o tirarem da indecisão que o deslumbrava e oprimia.
- Alguma coisa?
Olhara o criado, muito solene no fato preto de bandas reluzentes.
- Alguma coisa?
- Sim, nem sei. Um café ... Traga-me um café bem quente. Em chávena ...
E repetira o pedido em voz mais forte, já satisfeito por ter sabido escolher. Puxara de um cigarro e acendera-o. Lembrara-se dos galãs nos filmes americanos enovelando o fumo como se com ele desenhassem no espaço desenhos requintados. Não fora capaz, mas começara a a descobrir o ambiente, já refeito da emoção dos primeiros instantes.
Aquela rapariga, sim ... bonita. Bonita, sem dúvida. Olhos negros, profundos ... Já ouvira falar em olhos negros e profundos. Onde? Talvez... Sim, na letra de um tango.
Pusera-se a cantarolar entre dentes, esquecido da chávena de café.
Uma boca rasgada, mas deliciosa e fresca. Bem penteada, um vestido de seda, casaco, luvas ... Era o que pensava. Sentia-se farto da Ivone, da Eva, da Leonor... Desbocadas e atrevidas, sem aquela compostura de senhoras, incapazes de uma conversa sem palavrões, saias levantadas e risos cansados que amargavam. Era bem o que pensava. Não se enganara com a descrição do Felisberto. Aquela mais além ... Se possível, parece ainda mais formosa. Um casaco de peles de estalo! Muitos contos nos ombros! Mulher de pancada alta! Sorri-se com uma graça discreta, mas parece iluminar o café.
Ilumina, pelo menos, aquele canto onde ele está, maravilhado como uma criança descalça numa loja de brinquedos. E revê-se no espelho. É bonita, sim, sem dúvida. "Não olhe para o espelho. Prefira antes olhar para mim, que lhe direi tudo quanto penso a seu respeito."
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A rapariga correra o olhar pelo café, até fixar o seu, sentia-se corar. Teria percebido o seu piropo? Desviara os olhos e fora cair numa outra que pegava nas mãos de um homem e lhe falava baixo com um modo triste ... "Porque está triste? com esse encanto de expressão, não precisa de entristecer. Se esse a aborrece, volte-se para outro. Há por aí tantos homens que a queiram! ..."
Esquecera-se do jantar, fixando-se em todas as raparigas que via do seu canto. Parecia que tinham sido moldadas pelas suas mãos, durante os sonhos do quarto sombrio. Mal poisavam o chão, leves como pássaros, airosos e desenvoltas, com um ar feliz que as outras não tinham.
"Porque está triste? Não chore. Deixe essa mesa e venha para a minha. Tantas coisas para lhe dizer! Tenho um fato coçado, sim. Mas logo que entre para o Banco, irei escolher fazenda consigo e já não terá vergonha de estar ao meu lado. Um café! ... É quanto posso oferecer-lhe."
Reparara, alarmado, no relógio.
Já chegara a hora de jantar e ainda precisava de fazer todo o caminho a pé - Avenida, Rua do Salitre acima, Rato... Vinte minutos, pelo menos. E o pai que queria sempre jantar à mesma hora! Se pudesse falar-lhe nas raparigas, talvez não lhe ralhasse. Mas não poderia apreciá-las, voltando cansado da oficina. Tinha de sair. E agora para sair?
Batera as palmas para o criado e ele não viera. Se ainda nem bebera o café! ...
- Faça favor. Quanto é?
- Oito tostões. : Ainda sobejavam dois. Há lá coisa mais barata!
A moça triste vai levantar-se ...
- Deseja troco?
- Não.
- Obrigado.
Fizera má figura, espetando a mão para o empregado, talvez a gozar com o seu fato ordinário o velho. Voltaria depois... Depois, quando fosse bancário e se pudesse medir com qualquer dos homens que ali permaneciam. Precisava de sair. E o caminho até à porta? Do canto até lá parecia cheio de precipícios e obstáculos. Eram mesas, cadeiras e olhares de mulheres. Olha o
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fato, pá! Fizera mal em vir. Mas, se não viesse, como poderia falar na escola acerca da rapariga triste e da outra de olhos negros e profundos?
Começara a andar, esgueirando-se pela parte menos concorrida, como se quisesse safar-se dos olhares desdenhosos e dos comentários. Mas ia tão embaraçado que esbarrara com uma rapariga de vestido preto e olhos azuis, raposas ao ombro e um sorriso tão gaiato ...
- Perdão!
- De nada.
Gorara e galgara a distância até à porta, vencendo os receios que lhe tolhiam os passos. Levava consigo a harmonia daquela voz fresca e cantante. "De nada." Se fosse a Eva ou a Leonor, quantos palavrões? Fariam uma barulheira de ensurdecer, viriam outros para a discussão e tudo acabaria como das outras vezes, quando ia fazer sala até lá. No fim chamar-lhe-iam pendura. Mal estivesse no Banco! ... Nunca mais lhe poriam a vista em cima!
Galgara a Avenida, pensando no pai e no jantar, acompanhado sempre pela voz da rapariga de olhos azuis. Preferia as morenas. Mas agora começava a hesitar. Afinal, as loiras tinham os seus encantos. Pareciam mais puras. Se todas tivessem aquela voz...
O pai ralhara-lhe, num longo sermão, gritando que não permitia faltas de respeito. Encafuara-se no quarto, a remorder vinganças para quando estivesse no Banco.
- Vem jantar. "." - Não vou.
-Olha o teu pai.
- É por isso mesmo. Não tenho vontade. Já não sou nenhuma criança para ouvir repreensões. Qualquer dia, dá-me açoites.
A mãe viera afagá-lo, procurando convencê-lo. -Ele é teu amigo. Sabes bem que gosta de jantar na tua companhia. E isso não me parece pecado.
- Pois sim; mas entretive-me, e também não é caso para disparatar daquela maneira.
Ficara no quarto sem se resolver a pegar nos livros da escola, como fazia em grande parte das noites, ou a dar uma volta pela janela da Beatriz, que o esperava até às dez horas, espreitando a esquina por onde ele devia aparecer, embora depois dissesse que ficara ali a gozar o fresco da noite e a ver o luar. A imaginação,
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porém, ia para as raparigas do café, com as quais concebia cenas e diálogos, indeciso em escolher qual seria a sua companheira daquela noite. Quando passava a porta envidraçada, todas lhe faziam acenos, prometendo-lhe, nos sorrisos e no olhar, os carinhos que nenhuma lhe oferecera naquela tarde. Ele andava de mesa em mesa, esquivo às que o queriam prender por mais tempo, tonto da intimidade que lhe reservavam, deixando aqui um aperto de mão e um dito, mais além uma carícia e uma promessa.
"-Sim, Carmen.
"-Não me faltas esta noite? Promete! ...
"-'Não sei se será possível."
Todas tinham vindo rodeá-lo e desejar que se desse por inteiro a uma delas. Inventavam mil artifícios para o tentar: envolviam-lhe o pescoço com os braços quentes, ofereciam-lhe o peito aos anseios da sua boca, enroscavam-se-lhe no corpo como serpentes que o quisessem enlaçar. "Onde lera já serpente comparada a uma mulher?" Esquivo que nem o vento, ele fugia-lhes, para depois as excitar com um sorriso.
"- Não faltas esta noite, meu amor?"
Fumou cigarros sem conta, vendo-se no café, não no canto onde estivera, mas no meio da casa, como se fosse o pretexto para que as luzes se acendessem, as mulheres chegassem apressadas e os criados andassem de mesa em mesa num corrupio, servindo bebidas caras para festejarem a sua permanência ali.
Era uma volúpia de rostos que lhe rogavam um olhar, de braços que se lhe estendiam, de corpos que lhe solicitavam um afago. E vinham numa torrente, como um caudal que se acolhesse na sua cama para lhe aquecer os membros inquietos. Até a rapariga triste apareceu de lágrimas nos olhos, para que ele a consolasse de angústias e lhe prometesse aparecer numa noite qualquer.
Adormeceu tarde e sonhou. Passaram-lhe todas pelos seus braços, mas só a loira de olhos azuis e vestido preto o pôde convencer, porque o cantar daquela voz se tornara mais sedutor do que quantas tentações as outras lhe ofereciam. Cansado, repousara depois no seu colo; e volvia-lhe o olhar de vez em quando, como para se assegurar de que era uma mulher que estava ali com ele.
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- Meu amor ...
Pela primeira vez, compreendia como se faziam estupendos aqueles momentos que dias antes só lhe mereciam o desdém ...
Levantou-se, nervoso e fatigado, quando queria chegar mais cedo à escola, antes da aula do Pipas, desejoso de poder contar aos companheiros a sua ida ao café. A demora da mãe destemperou-o e saiu sem comer, só porque a mesa ainda não estava posta. "Ah, quando fosse para o Banco! ..."
Junto dos outros, sentiu que não valia a pena contar o que de facto se passara. "O Felisberto já lá fora e fizera o mesmo." Precisava, porém, de desabafar aquele deslumbramento, confundindo os companheiros; e descreveu-lhes os seus sonhos com pormenores mariolas, piscares de olho e muitas reticências que os outros preencheram ao sabor da imaginação. O Felisberto propusera-se acompanhá-lo, prometendo pagar a despesa, só para que pudesse gozar também a intimidade das raparigas.
- Às vezes pode ser que se engate ... Têm sempre uns bons que andam e elas gostam de malta nova.
- Podem não gostar que vá acompanhado. Sabes que ... E, depois, cada um governa-se.
Tornou-se o centro da turma durante aquela semana, abordado por cada um dos companheiros que o procurava à saída para ir com ele. Só o Felisberto se pusera de má catadura, não voltando a oferecer-lhe cigarros. Podia bem com aquilo. Quando fosse para o Banco lhe faria sentir a vingança. Não sabia bem como, mas havia de experimentá-la.
- Foste de encontro a ela, e depois? - perguntava-lhe um dos rapazes.
- Perdão! De nada, respondeu a gaja. Olhámo-nos bem de frente e sorrimos. Deseja um café? Só costumo tomar champanhe. Mas ... mas consigo ...
As mulheres eram a grande preocupação de todos eles. Viviam a desejá-las, parecendo-lhes que o curso não passava de um sacrifício imposto para que depois pudessem possuir quantas quisessem.
Voltara ainda duas vezes ao café. Num dos dias, o canto estava tomado e não fora capaz de procurar outra mesa. Olhara da porta e voltara para a rua, encostando-se à ombreira, a espreitar de vez em quando
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lá para dentro. As raparigas iam e vinham, deixando-lhe um olhar esquivo e o aroma dos perfumes. Em grupos, pelos passeios, os homens cumprimentavam-nas e dirigiam-lhes gracejos, ou iam com elas pela Avenida abaixo, numa intimidade que o confrangia. Lembrou-se, por fim, do seu fato reles e coçado, e saiu dali.
Quando se empregasse, havia de voltar. Um fato castanho que vira na montra de um alfaiate, gravata garrida e gabardina clara. Seria como os outros, a puxar cigarreira de prata e carteira de cabedal com notas grandes dentro. Os clubes, os bares ... E todas elas a desejarem a sua companhia, descendo a Avenida ou entrando num café, orgulhosas de o levarem a seu lado.
Depois fora um corrupio de acontecimentos. Numa tarde, levaram-lhe a notícia de que o pai entrara para o hospital- um desastre na oficina com a correia do motor. Correra a S. José, alucinado, e só pudera vê-lo estendido na mesa de pedra daquela casa fria. Tinha a cabeça apertada com ligaduras e o rosto desfigurado por uma contracção dolorosa que parecia ir fazê-lo gritar. As mãos, sujas de óleo e sangue, permaneciam quietas e cruzadas no peito.
"- Nada mais te deixo, filho. E se fores um homem honrado..."
Aproximou-se mais, para lhe jurar que nunca o envergonharia, amparando a mãe para o resto da vida. Toldaram-se-lhe os olhos de lágrimas; sentira na garganta uma convulsão vencida, mas que o não deixava falar.
- É melhor sair. O enterro será amanhã. Evite trazer a sua mãe. Já nada remedeia...
Estendera a mão para lhe apertar as suas, numa despedida, mas traspassara-o aquele contacto gelado como um choque violento que o ferisse. Cambaleou e caiu de joelhos, a chorar convulsivamente. Apertara a mão que parecia também contaminada pela morte e que já não pertencia ao seu corpo.
- Então! Vamos! ...
Quando agora pensava naquele momento, supunha que a crise de choro viera mais pelo seu futuro do que pela perda do pai. Quisera ser um homem honrado. Prometera-lho. E ainda o era. Talvez. E talvez não o fosse já.
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Até ao dia do exame passara mal. Esquecera-se do Banco para pegar no primeiro emprego que lhe aparecera. A lembrança do pai reanimava-o. Fora sempre um homem honrado. Vivera para a mãe e para o trabalho; esmerara-se no serviço e conseguira uma conduta irrepreensível . Passava à noite pela janela da Beatriz, que continuava a dizer-lhe que se pusera ali porque o luar a chamava. Gostava de sabê-la à sua espera, mas não se julgara capaz de lho confessar. E a Beatriz cansou-se. Uma noite achou o lugar tomado; nunca mais lhe falou.
Lembrara-se novamente do café quando o guarda-livros lhe comunicou que passava para o lugar do facturista, com maior ordenado. Voltaram-lhe então as preocupações de outros tempos.
Sentiu-se bem naquele canto, assistindo ao desfilar de mulheres. Decorou o nome de muitas delas, as suas predilecções e fraquezas, mas nunca as viu iguais às raparigas da casa onde lhe chamavam pendura. Escondeu à mãe que o tinham aumentado, para poder guardar mais dinheiro e manter melhor a sua permanência no café. Ela continuava a tratar das roupas dos mesmos patrões e a fazer recados, sempre preocupada com a tosse que lhe ouvia durante a noite e com a palidez suspeita do seu rosto magro.
- Tem cuidado, filho.
- Não é nada. Sinto-me forte.
- Não te enganes, que a mim não me enganas tu.
- Lá tinha que casar consigo. E era o diabo!
Fechava as conversas com palavras equívocas e gestos desabridos de impaciência, achando assim pretexto para não jantar algumas vezes na sua companhia. Metia-se no café, pedia um galão e bolos, e disfarçava a fome. Lá em cima, na galeria, o traquinar dos pratos ressoava-lhe no estômago, deixando-lhe uma dor profunda por largo tempo.
Uma vez, o café estava cheio e uma das raparigas que vinha ali todas as noites andava por entre as mesas à espera de lugar ou de companheiro. Procurara-lhe o olhar e sorrira-lhe, fazendo um gesto de convite.
- Dá-me muito prazer.
Ela sentara-se à sua frente, abrira a mala e revira-se no espelho, a retocar o penteado e a pintura dos lábios grossos. Quis encetar conversa, chamando a si todos os diálogos que idealizara, mas ficou confundido e nervoso,
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sem encontrar ponta de pretexto. Sorrira-lhe de novo quando ela o fixara e acendera um cigarro para esconder embaraços.
-Que tabaco tem?
- Desculpe não lhe ter oferecido.
- Quando não há outro ... Riram-se ambos.
- Um café?
-Talvez um porto.
- Como quiser. Psst... Um porto!
Era uma daquelas raparigas que começava o giro da vida nocturna. Fumava mal, sem requintes, e não trazia ainda casaco de peles. Tinha um ar humilde e contrafeito, como se a comprometesse o vestido modesto.
- Vem aqui muitas vezes?
- Algumas ...
- Nunca reparei em si.
- Sinal de que não nasci para as mulheres me verem. Sou, talvez, insignificante.
- Não acho. Tem um tipo distinto. Sabe que gosto dos homens magros?
Quisera fazer graça para lhe dar a entender que já era batido naqueles encontros.
- Tem mau gosto. Prefere os ossos?
- Nos homens fica bem. Magros e altos ... Há pessoas que parecem magras, e não o são. Eu, por exemplo...
Tomara-lhe a mão para levá-la às ancas.
- Vê? Não pareço, pois não? Ninguém diria.
-Fico com as minhas dúvidas. Preferia vê-la ao
natural. É difícil?
-Acho que não. Mas ...
- Mas quê?
- Como o fim do mês ainda está longe, não sei se ... Sim, percebe.
-Não percebo bem.
- Quer dizer ... Não sei se poderá.
-Certamente que posso.
Apetecera-lhe corrê-la da mesa sem a deixar beber o porto.
O caso é que não estava abonado. Mas não ia ficar mal com a primeira mulher que se sentava à sua mesa. Não era bem o tipo que preferia, embora não fosse inteiramente de desprezar. Tinha uns olhos bonitos.
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- Sabe que tem uns lindos olhos?
- Já mo disseram.
- Preferia que fosse o primeiro.
- Já vem tarde.
- Muito tarde?
- Sim. Mas não fique triste por isso.
- Eu, triste? Por quem me toma? Julga-me algum lavrador alentejano ou volframista?
- Não. Você não se confunde; é bem um rapaz de Lisboa.
- Vocês preferem os volframistas.
--Não tanto como se julga. Mas se não fossem eles ... nem sequer podíamos gostar de outros. -Tem algum homem de quem goste?
- Talvez...
E pegara-lhe na mão, pondo o olhar no seu, num gesto significativo. Saíram. Desceram a Avenida. Um chuvisco muito miúdo caía sorrateiro, polindo os passeios e fustigando as pessoas, que pareciam apressadas.
Depois daquela, outra e mais outra ... Esperou o fim do mês e foi a um clube. Encontrou-as por lá, enchendo os corredores e espreitando as mesas, à procura de companhia para o resto da noite. Dançou com algumas, bebeu muito e saiu pela madrugada. A mãe esperava-o com um copo de leite e uma reprimenda no olhar.
- Ainda?
- Ainda digo eu. Porque não cuidas de ti, filho?
- Acha que sou de colo?
- És pior do que isso. Se o fosses... dava-te dois açoites e metia-te na cama. Não te vês ao espelho?
- Vejo. E depois? ...
- Vais mal.
- Foi para me dizer isso que não se deitou? Perdeu o seu tempo. Já não sou o seu menino de colo...
Começou a achar-se mais à vontade com mulheres e tornou-se um bom companheiro-'achavam graça aos seus ditos, preferiam-no para dançar e sabiam-no capaz de se bater por elas, depois que numa madrugada desafiara para a rua um tipo qualquer que ninguém conhecia e entendera andar de mesa em mesa a mordiscar as orelhas das raparigas.
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Estava com a Ivette. O seu nome era outro, sabia-o agora, mas todos a tratavam assim. O gerente viera pedir-lhe que desculpasse o atrevimento do homem - um bom freguês que já mandara servir três garrafas de champanhe. Desculpara-o, é claro. Ainda bem, porque se arrependera logo depois de lhe ter agarrado as bandas do casaco. Apesar disso, ganhou fama entre as raparigas. À saída, a Ivette convidou-o para ir a sua casa, mostrando-se indignada quando ele disse que não podia.
- Mas quem te falou em dinheiro? Até me parece mal, sabes? Não acreditas que possa gostar de ti?
- Acredito.
Passaram a encontrar-se todas as tardes no café, quando ele saía do escritório, para combinarem encontros à noite. Faltou em casa dias seguidos, e a mãe teve de procurá-lo, muito preocupada com a ausência. Pedira-lhe que voltasse e lembrara-lhe as palavras do pai.
- Vivo com uma rapariga.-
porque não mo disseste? Alguma colega tua?
- Não. Uma rapariga ...
- Mas vais deixar a nossa casa? Porque não vais viver com ela para lá?
- Não, mãe.
- Eu não me importo. Dou-te o meu quarto. A casa chega bem para os três.
- Não pode ser.
- Se é por não estares casado ... Gostava que vocês se recebessem, mas, se tu não quiseres, que havemos de fazer? Vem para a nossa casa. Custa-me tanto viver sem ti. Deixa-me falar com ela, sim?
- Não, mãe.
- Vais ver como a convenço. Comigo toda a gente se dá bem. Não gostas de estar ao pé de mim?
- Gosto, sim, mas... Eu logo vou para casa.
A Ivette não o deixava, ia esperá-lo à porta do escritório ou telefonava-lhe, se a demora era maior. Fazia-se aborrecido junto dos colegas, mas gostava que o chamassem ao telefone.
- Quem é?
- Ora, quem há-de ser. Uma mulher ... Mostrava-se sóbrio nas conversas com ela, respondendo-lhe por meias palavras, embora no íntimo lhe agradecesse a comunicação que o destacava aos olhos
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dos outros. O seu sonho da escola realizara-se totalmente; essa certeza arrastava-o e levava-o a esquecer-se da mãe e das palavras que o pai lhe deixara.
A Ivette não era bonita nem usava ainda casaco de peles. Estava há pouco tempo naquela vida e parecia andar estranha, talvez temendo que se deixasse prender para sempre na rede que enleava as outras. Fora costureira de alfaiate e tivera os seus namoros, até que lhe aparecera um homem do volfrâmio a prometer-lhe uma vida sem trabalho nem dificuldades. Começara a aparecer com ele nos cafés e nos clubes. O 'ruído, as luzes e a música entonteciam-na, confirmando-lhe o que diziam as outras raparigas que a tinham incitado a aceitar a proposta. Nunca se tornara exigente. Bastavam-lhe o quarto pago, a comida certa, os divertimentos e algum vestido. Talvez por isso o homem do volfrâmio a abandonara sem um pretexto.
Já se esquecera, porém, da costura, e tivera de continuar na mesma vida, recorrendo aos penhoristas para se manter. Até que um dia saíra com um homem, depois com outro... Muitos outros. Era uma história igual à de tantas mais. Nunca se habituara, contudo, a perder o ar humilde de quem andava ali por engano. E dedicara-se àquele rapaz que começava a aparecer nos cafés e nos clubes, decidido a bater-se por ela com o tal matulão que seria capaz de esfrangalhá-lo. Todas as outras raparigas tinham o seu homem a quem davam o seu afecto que não podiam oferecer aos que as procuravam por desfastio ou necessidade. Ela também precisava de desabafar com alguém, de ter carinhos e de se sacrificar.
- Trago-te hoje uma lembrança.
- Uma lembrança?
- Sim. Talvez não gostes. Havia lá mais bonitos, mas não lhes podia chegar.
Dera-lhe um anel com uma grande pedra vermelha.
- É uma imitação. Gostas?
- Gosto, mas ...
- Mas o quê?
- Não devo aceitar. Compreendes que isso me põe numa situação desagradável. Podem chamar-me algum nome que não me gruda.
- Mas nunca me pediste dinheiro! E se mo pedisses, não era pecado nenhum. Podia ser o contrário. Tu,
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se o tivesses, não mo negarias com certeza. Aceita, é uma prenda de amiga ...
Chorara encostada ao seu peito, amimando-lhe as mãos com beijos e lágrimas. Ele achara graça àquela paixão e tinha passado a usar o anel. Voltou a faltar em casa alguns dias e a cena com a mãe repetiu-se.
- vou lá quando puder. Fique descansada; não deixará de pagar a renda.
- Não é por isso, filho. Mas viver assim só... Leva-a contigo para lá.
- Não pode ser, mãe.
Estivera para lhe confessar tudo, mas logo se arrependera, e arranjara um pretexto qualquer para iludi-la. Perdeu noites com maior frequência; o trabalho no escritório começou a aborrecê-lo. Ensonado, metia-se na retrete a dormir uns minutos, para que lhe saísse da cabeça aquela pesada bola de sono que trazia encaixada na testa e o impedia de fazer o serviço. Andava mais magro e a tosse agarrava-se-lhe ao peito. A Ivette dava-lhe gemadas de manhã, trazia-lhe acepipes e guloseimas.
Depois ele levantava-se para chegar a horas ao escritório e ela metia-se na cama até à tarde.
- Não vás hoje trabalhar. Eu telefono a dizer que estás doente.
Negara-se algumas vezes, até que um dia aceitou a ideia - achou-a natural. Àquele dia sucedeu outro. O chefe chamou-o e repreendeu-o. "Que assim ia mal e que, afinal, não confirmava a boa impressão dos primeiros meses. Que tivesse cuidado."
Desabafara com a Ivette e achou-se a inventar em voz alta a resposta que não se sentira capaz de dar ao outro. Ela prendeu-o nos seus braços e arrastou-o para a cama.
- E se viesses viver comigo?
- Mas eu vivo contigo!
- Se deixasses o escritório ...
Ameaçou-a de sair, para nunca mais voltar, indignado com a proposta.
-<Mas quem julgas que sou eu? Pensas-me capaz de viver à tua custa? Isso não! Isso nunca! Volto para casa da minha mãe, donde, afinal, nunca devia ter saído.
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- Não faças isso. Falei-te assim porque te vi contrariado. Arranjavas outro emprego. Não era para eu te sustentar. E como estás doente ...
Fizeram as pazes. Nos primeiros dias, evitou perder noites, mas não fora capaz de dormir. "Que fará a Ivette sem mim? Não é por gostar dela, mas posso arranjar má fama." Seriam ciúmes? Não, não eram ciúmes; era o desejo de se não ver troçado pelos outros. E aquelas horas torturavam-no, até que ela chegava e lhe fazia perguntas sem conta. "com quem estiveste? Dançaste muito? Ainda foste à Chie? Que entusiasmo pelo bailarino! Estás apaixonada, não? Gabo-te o gosto. Esses gajos são quase todos invertidos."
Voltou à mesma vida. Um dia adormeceu na retrete e só o chefe foi capaz de acordá-lo.
- Prepare a sua vida. No fim do mês sairá. Gostaria de lhe dar uns conselhos ... O senhor é ainda um rapaz...
- Guarde-os para si.
- Muito bem. Já esperava essa resposta. Fazemos já as contas. Prefiro pagar-lhe para que não insubordine os outros.
- Como entender.
Só depois de receber o dinheiro e de se achar na rua mediu bem a gravidade da situação. "Viver com a Ivette, era cair na vida de tantos outros. Ir para casa da mãe, seria sujeitar-se a ralhos e conselhos. E depois não tinha o direito de sacrificá-la. Seria indigno. Antes aceitar o auxílio da Ivette e depois pagar-lhe tudo largamente quando arranjasse emprego."
Procurou o jornal nessa tarde e respondeu, no café, a quatro anúncios. Só recebeu uma resposta: exigiam fiador e ofereciam trezentos escudos. "Que os comessem! Era o que faltava! Corja de malandros! Chulos!"
Ficou dias inteiros na cama e foi sabendo melhor da vida da Ivette. Chama-se Maria, tinha pai e mãe e dois irmãos, que não lhe falavam. Assim de dia, sem pintura, era insignificante. Uma pileca. com a confiança, falava-lhe em calão como as raparigas das casas suspeitas. Algumas vezes lembrava-se das palavras do pai:
"-E se fores um homem honrado..."
Seria ainda um homem honrado? Talvez não o fosse. Reagia e voltava ao jornal a procurar anúncios que pedissem empregado. À noite saía para o café e lia as
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respostas; a Ivette chegava do giro e passava-lhe dinheiro para pagar a despesa. Mandou-lhe fazer um fato e comprou-lhe um chapéu - andava agora mais alta, porque um industrial lhe achava graça e alargava a bolsa com ela.
Entre as raparigas dos clubes passaram a conhecê-lo pelo homem da Coco. Havia momentos em que isso o orgulhava, sabendo que, se quisesse, poderia trocá-la por qualquer outra. Davam-se despiques constantes entre elas por causa dos amantes, em que se provocavam com ciúmes e com o apuro em que eles andavam.
--Ao meu, graças a Deus, nada falta. Gasto com ele mais de quinhentos mil réis. E ainda ontem lhe comprei um relógio de pulso.
- Pois come-o. O meu lá vai como eu posso. E olha que para chegar ao teu não é preciso muito. Anda com uns sapatos ...
Quando se lembrava do pai, aquela situação confrangia-o. "É claro que havia de arranjar emprego e tudo seria pago a dobrar. Precisava de sair daquele atoleiro e voltar para casa da mãe. Mas agora não podia, tanto mais que lhe dissera ter arranjado um emprego de noite. Acreditara-o, coitada. O que não acreditam as mães!"
Enervava-se, porém, quando se detinha a olhar para a sua vida. Tratava a rapariga com maus modos e repelia-a, se ela vinha com meiguices que lhe cheiravam a pó de arroz e a quarto de pouca permanência. Não lhe dava palavra, passeando, agitado, a fumar cigarros. "Seria ainda um homem honrado? Não, não era. O pai, se voltasse, cuspir-lhe-ia na cara com desprezo. Mas, logo que arranjasse emprego, nunca mais entraria ali. Estava farto daquilo."
- Que tens?
- Estou farto.
Ela já se deitara. A manhã rompia. A luz da madrugada entrava pela janela, que dava para um saguão sombrio, donde subiam cantigas e conversas. Na rua, começava o coro dos pregões.
-Mas que mal te fiz eu para me tratares assim?
- Cala-te lá. Porque me quiseste? Tu é que tens a culpa de tudo isto!
- Que queres que te dê mais?
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- Sossego. Estou farto desta mentira. Vieste com palavras mansas e arrastaste-me a esta situação.
- Ainda por cima? Tudo o que arranjo tem sido para ti.
Parecia que esperava aquele pretexto para desabafar toda a ira que retinha. Foi direito à cama e espancou-a, sem ver onde batia, enquanto ela se preocupava em esconder o rosto.
- Não me marques na cara, peço-te. Apanhou-lhe um braço e torceu-o, como se estivesse
a esmagar a vida que levava. Quis puxá-la para fora da cama e depois moe-la com pontapés. Ela soluçava em silêncio, escondendo sempre o rosto entre as mãos. Quando se cansou de lhe bater, sentou-se na cama, a arfar, apertando a cabeça com os dedos. "Precisava de tomar uma resolução qualquer. Aquilo era infame. E infame, porquê? Não tinha razões de sobra para lhe fazer aquilo? O pai que falasse com os mortos. Honrado! ... Que era ser honrado neste mundo?"
- Deita-te, anda. Estarás doente? -Não.
- És capaz de não me compreender. Se o fosses ... eu dizia-te.
- Quê?! ...
- Porque te pedi que viesses. Os outros não pensam assim como tu.
- Já to disseram?
- Não, mas... vejo-os sempre tão satisfeitos. Precisas de mais alguma coisa?
- Não.
- Dá-me um beijo.
Ofereceu-lhe a boca num desfastio para que ela se calasse.
- Sabes porque precisamos de vocês? Andamos cansadas dos carinhos que os outros nos pagam. E precisamos de um homem pago por nós. Que nos queira de uma maneira diferente, talvez pior, mas que é diferente. Pelo direito de termos alguma coisa que seja nossa... E a nós só pode pertencer o que compramos. Nenhum nos quer sem isso. Mesmo nós não acreditamos nos que vêm sem exigir dinheiro. Estamos já tão mortas de sentimentos que não sabemos distinguir. Para nós, só existem duas espécies de homens: os que nos pagam e os que pagamos.
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- Eu sou então dos que se pagam.
- Não te ofendas. Foi um desabafo. Não calculas os dias que passei à procura destas palavras ... Ignorava o que ia dentro de mim e das outras como eu. Foi uma pergunta que me apareceu e que quis perceber. Talvez não devesse desabafar contigo. Perdoas-me?
-'Não sei. Deixaste-me também um problema para resolver. Sabes que tive fé na vida e hoje já ignoro o que isso seja?
- Acredito. Também já fui capaz de senti-la. Mas deixemos de pensar... Já reparaste que assim nos apartamos?
- Talvez seja melhor para os dois. Desconheci-te quando começaste a falar. Mas agora peço-te que continues. És uma mulher diferente. Aprecio-te mais do que... Custa-me repeti-lo. É talvez estranho. Sim, tudo isto é estranho.
- Deita-te, anda. Estamos hoje tão diferentes...
- Melhores ...
- Não creio. Repara que a vida não nos pode dar outra coisa. Seremos ainda mais desgraçados se nos quisermos salvar. Já não nos podemos salvar isolados.
- E se eu lutar?
- Como vais fazê-lo?
Vestiu o casaco e desapareceu. Ouviu ainda os seus gritos a chamá-lo, mas não se sentiu reprimido naquele ímpeto. Desceu as escadas a correr e achou-se deslumbrado pela carícia do sol.
"Há quanto tempo não via o sol? Seria ainda um homem honrado? Talvez pudesse redimir-se. Trabalhar... E o trabalho? Voltaria a casa, para junto da mãe. Não seria mais um chulo - ou um "Júlio", como as raparigas diziam por gracejo. Passaria de novo à janela da Beatriz e, se não estivesse acompanhada, dir-lhe-ia o que antes nunca quisera confessar-lhe. Saberia ainda falar com mulheres como ela? Parecia-lhe que não. Seria até capaz de atirá-la para a vida da Ivette e das outras. Era uma doença. Sim, uma doença! Estava já gafado por ela. Já não conseguiria submeter-se à disciplina do escritório - horas certas para entrar, escrever nos livros e ouvir reprimendas dos chefes.
"E o canto do café? Ainda não o deixara, e já sentia saudades daquela vadiagem nocturna. As raparigas... E se lutasse? Como iria fazê-lo? Como? Responder a
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anúncios e esperar respostas? E como viveria naqueles dias? À custa da mãe? Tinha de se desforrar da Ivette arranjando um emprego, desse lá por onde desse. Não podia continuar a ser um homem pago. Um dia, a polícia podia saber e seria preso. Depois a voz pachorrenta e grave do pai visitá-lo-ia a todas as horas, perguntando-lhe se era aquele o caminho que aprendera com o seu exemplo."
Um rapaz passou por ele a apregoar os jornais da manhã. Chamou-o e comprou-lhe o que trazia mais anúncios. Aquela cara risonha e expressiva comunicou-lhe uma esperança.
- Tu confias na vida?
- Ha? ... Sei lá o que isso quer dizer ...
E abalou pelo passeio abaixo, gritando os títulos dos jornais. Depois, como se tivesse deixado alguma dúvida atrás de si, o rapaz voltou-se lá ao longe, apontando a cabeça desgrenhada:
-Tás liru, pá! Vai para a casa amarela, senão qualquer dia julgas que és rei. Eu conheci um gajo que vendia pentes e um dia apareceu na rua a gritar que era o Camões... Tem cuidado contigo!
"Talvez estivesse doido. E aquela obsessão de se fazer um homem honrado não assinalava já um primeiro sintoma? Não, com certeza que não. Tinha de se ver livre da Ivette. Aí é que precisava de fazer força. Entre as respostas que desse, havia que lhe aparecer alguma coisa com jeito.
" Procurá-la-ia à noite para lhe dizer que ia buscar a mala com a roupa. Deixaria o anel de pedra vermelha e o alfinete de gravata. Faria contas ao fato e ao chapéu e mandar-lhe-ia um bilhete a comunicar que todos os meses lhe enviaria um tanto por conta.
" Mas mandar o quê? Quanto iria ganhar? Entrada às dez e saída às seis. Uma hora de almoço e pontualidade. Seria doloroso, mas precisava de conseguir o emprego. Falaria à Beatriz. - Olha, meu amor. - E depois, sim, depois, como poderia casar com a Beatriz? Talvez acabasse por atirá-la para o café, dando-lhe um destino igual ao das outras. Na vida das raparigas há sempre um homem. Mas seria, de facto, o homem ou qualquer outra coisa de que ele era apenas o instrumento? Uma cadeia de vícios ... De qualquer modo, precisava de arranjar um emprego."
98

Voltou-se como se lhe tivessem falado por detrás.
"Não estava ninguém, mas ele ouvira. Talvez fosse razoável. E se em lugar do emprego arranjasse outra rapariga para substituir a Ivette?
99

CATACUMBAS

Nas águas do Tejo, a cidade despeja os seus esgotos. Para as muralhas dos cais, a vida despeja muitos dos homens que enjeita. Vêm para ali voluntários no serviço das descargas e estivas, mas alguns outros procuram esconder, na beira do rio, um passado diferente. Envolve-os sempre um certo mistério - mistério que os homens do mar plasmam em fantasias sem limites. São sempre taciturnos aqueles que chegam ao trabalho dos cais atirados pelo infortúnio. Andam ali como fantasmas, impenetráveis à camaradagem dos outros, fazendo vida à parte, alheios para tudo, menos para o rio, com o qual desabafam em silêncio as penas que trazem consigo e não contam a alguém.
- Doutor!
- Que é?! ...
- Já viste aqueles pássaros?
- Ali, homem.
O "Doutor" traja agora fato de ganga, como os demais homens da beira-rio. Chegou ali um dia, conseguiu trabalho e não escondeu o passado, como os outros que só trazem mistérios. Acamaradou, e todos ficaram sabendo que viera, de tombo em tombo, até aos cais do Tejo, impossibilitado de voltar para os escritórios onde gastara alguns anos. Educado num asilo e sem família, não pudera refazer a sua vida, depois que a alucinação de se ver longe da clausura do internato o levara por caminhos incertos. Quando acordara daquele torvelinho em que se tinha afundado, encontrou-se orgulhoso, incapaz de solicitar a esmola de um fato decente para recomeçar.
E entrara na fila do conto como praticante de estivador. Todas as madrugadas ia com os outros para os passeios do Cais do Sodré, à espera que os encarregados
103
o escolhessem para prestar serviço nos porões dos navios. Afeito a uma vida calma, sem grandes esforços físicos, estranhara a dureza das fainas de bordo. Quisera desistir, abalado por um cansaço que lhe arrancava todas as energias. A incerteza do dia seguinte impossibilitou-o, de tomar uma decisão.
Continuou, e habituou-se. Arranjou quarto em Alfama, e os seus passos iam dali ao Cais do Sodré e às docas do Tejo, não ultrapassando aquela linha imaginária que traçara para a sua existência, como se o tivessem condenado a um cativeiro cujas fronteiras não ultrapassassem as vizinhanças do rio. Era um prisioneiro na sua cidade.
Os outros homens gostavam daquela companhia, porque ele lhes explicava certos factos da vida. Por isso, o tratavam por "Doutor".
- Sabes muita coisa. Como aprendeste?
- Na escola, onde havia de ser? - retorquia um. Ele emendava sempre:
- Enganas-te. O melhor do que eu sei, aprendi-o com vocês. Só as escolas não chegam. Chamam-me "Doutor", julgando que me elogiam, mas há coisas que esses nunca podem compreender. É uma fatalidade da própria condição. É mais fácil um marinheiro norueguês perceber o que tu queres do que um doutor da nossa língua.
- Também é verdade ...
E os companheiros procuravam mais o seu contacto; junto dele sentiam-se fortalecidos nas esperanças que guardavam. Aquele parecia diferente de todos os outros que a vida expulsara para ali.
- Já viste aqueles pássaros?
- Ali, homem.
E apontavam-lhe um grupo no meio do largo, olhando o enfiamento da Rua de S. Pedro, donde desembocavam varinas e homens do rio. Um dos senhores voltara-se para o pórtico, ladeado por duas colunas jónicas, e desfiava, por certo, a sua sabedoria acerca do bairro. Bandos de crianças descalças iam e vinham em correrias, atroando o ar com gritos, cuja origem não era decifrável - angústia ou alegria? À porta das tabernas, os homens que não tinham sido contados conversavam com operários sem trabalho e marinheiros de navios atracados às muralhas. Raparigas enchiam
104 cântaros no chafariz ou gracejavam com carroceiros que esperavam vez para o gado beber no tanque. com uma barraca de fantoches sobre um dos ombros, um homem passou seguido da mulher, uma fêmea baixa e gorda, de olhar espantado, como se viesse fugida de alguma montaria. O rapazio desviou a sua atenção para eles e foi-lhes na peugada, esperançados em espectáculo gratuito.
O sol, naquela tarde, chapava-se nas frontarias dos prédios do largo e desvendava melhor as manchas dos rebocos e as mazelas das tintas comidas pelo tempo. As casas encavalitadas pareciam capazes de ganhar o céu. Das janelas dependuravam-se festões de roupa e no seu quadrado surgia, de vez em quando, a cabeça de uma mulher a farejar alcovitice.
Um dos senhores do grupo assestou uma máquina fotográfica para o ângulo da rua, depois de esbracejar muito para os outros, que sorriam.
- Vão dizer que Alfama é uma maravilha.
- Se cá morassem ...
- Se um dia aqui pudesse chegar a picareta...
- Isso não, homem. E que seria destes e de tantos outros, que suspiram, com o luar nos pátios e nos arcos? Isso é egoísmo! Não há o direito de negar a quem quer que seja o seu direito as coisas belas. Os arqueólogos ...
- Quê?
-Uns tipos que tratam por tu todas as velharias do mundo. Esses e os turistas viriam morar para cá, rebolados de gozo, encharcando-se em fedor e bacilos. Estes becos são maravilhosos para isso. E ainda, para que ninguém viesse interromper-lhes o deslumbramento, punha-se uma grade à volta de todo o bairro, e só aos domingos...
Os outros sorriam, adivinhando o rumo da conversa.
-... só aos domingos se podia visitar, com a condição de ninguém mexer nos objectos expostos.
- E a gente a vender bilhetes aos portões - ajuntou outro de mãos afundadas nos bolsos das calças de ganga.
- Como no Jardim Zoológico.
- Como nas feiras. É entrar, meus senhores! Aqui, noutros tempos, viveu gente. Agora só habitam animais de estimação. É entrar! Quem não tem cabeça não paga nada!
105
O Nhacas largou-se a rir, naquelas gargalhadas ruidosas que todo o bairro lhe conhecia. E os homens que estavam com ele encostados ao quiosque, e todos os outros que moíam o tempo à porta das tabernas, foram contaminados e riram também. Dobrado, como se uma dor no ventre o fizesse contorcer, o Nhacas pedia-lhe que não falasse mais; bastava a sua imaginação para as gargalhadas aumentarem e irem-se desdobrando pelos grupos do largo.
Os senhores voltaram-se para eles e um disse que "lês portugais sont toujours gais". Depois encafuaram-se pela Rua de S. Pedro com o ar curioso de visitantes de um museu.
Quando o riso afrouxou, ainda com o Nhacas a limpar as lágrimas à manga do casaco, o "Doutor" voltou a ler as notícias da guerra.
- Cerca de doze milhões de mortos! Quase duas vezes a população de Portugal!
- Dizem que há gente a mais no mundo ... E que a fome é por isso. Morrem uns para bens dos outros.
- Não é verdade. A terra pode ainda alimentar mais gente. Na distribuição é que está o mal.
- E nas máquinas ...
- Não digas baboseiras. Ainda são precisas muitas mais. A sua aplicação é que não é justa.
- Doze milhões!
- E o dinheiro que se tem gasto...
- Para a guerra, há sempre dinheiro. É como o luxo numa família que não tem para comer. Empenha-se a própria consciência.
- Volta para os anúncios.
- Queres arranjar casamento?
-'Sim, e então? Dessas lontras com cinquenta anos e com meios de fortuna que pedem cavalheiro distinto. Olha pr'a m'isto. Queres melhor?
Puxando à frente o casaco curto de ganga, o Vidraça saracoteava-se diante dos companheiros, todo esticado e de cabeça erguida, dando uns passos em bicos de pés.
- Ninguém te levava, pá!
- Olha, pois não! ... O "Doutor" ensinava-me aquelas palavras puxadas à sustância e elas caíam como passarinhos.
-O pior é que no meio arriavas bota.
- Qual coisa! Calão até é fino.
106
- Vem aqui um pra mim.
- Casamento?
- Emprego... Um escritório que precisa de empregado.
-'Vais responder?
- Não.
- Sempre é melhor que andar na estiva. Porque é que não deixas isto?
- Porque só agora sinto que não nasci para viver amarrado a uma secretária a sujar livros, como os miúdos fazem rabiscos no papel.
- Costas direitas ...
- Pelo contrário; costas tortas. Isso foi noutros tempos, quando o empregado de escritório era uma espécie de tampão entre eles e a gente. Agora... são muitos. Baixaram de categoria depois que à porta dos escritórios começaram a aparecer homens que se oferecem por todo o preço com fatos no fio e gravatas coçadas. Ganham tanto como qualquer de nós. Às vezes, ainda menos. Mas não os admitem sem fatos de fazenda, camisas limpas e sapatos com lustro. Têm que andar como as galdérias, com fome no estômago e casacos de peles nos ombros.
- Já lá vai o tempo ...
- É o que te parece. Ainda há muitos por lá que têm esperanças, é bem verdade. Mas vão perdê-las. Há agora outros processos de nos aguentar. Os tampões são diferentes. E a vida extrema-se. Afinal, assim fica tudo certo. Eles livram-se do que têm a mais e encontramo-nos todos.
- Se os vires passar na rua, olham para ti com um ar de quem se suja.
- São restos dos outros tempos em que o empregado de escritório se tornara num objecto de luxo que distinguia os comerciantes e os industriais do mesmo modo que uma mulher de teatro por conta ou um Verão passado em qualquer praia francesa. Era uma coisa a mais e eles desvelam-se por manter futilidades. Mas logo que os negócios se complicaram com a abertura de novos mercados e com a concorrência se viram na necessidade de um laboratório para números, tudo se transformou.
- Forraram bons ordenados ...
107
- Pois não! Hoje há doutores para os números. O bico de obra apareceu quando as escolas despejaram homens aos centos com esse estímulo, e a perspectiva fez crescer a oferta. O empregado de escritório deixou de ser um animal de luxo. Agora andam para aí como a gente sabe. Mas enganar-me, para quê? Serão eles que têm de descer mais até junto de nós. É o destino certo dos que têm trabalho para oferecer.
- Eu trocava.
- Tu trocavas ... O caminho é só um. E se já estás nele, que interesse tens em voltar para trás?
Um barqueiro passou a balouçar, levando enfunada a camisa como as velas da sua fragata.
- Trazes um carrego!-gritou o Nhacas. - Olha que o Poço do Bispo é para cima, pá! Vais enganado!
O outro parou no meio do largo e ficou a remorder entre dentes.
- Cambada de langões!
DECLIVE

Numa
sala de jantar, por hipótese, de uma casa de gente remediada, vêem-se três pessoas sentadas à volta da mesa.
Nenhuma delas diz exactamente o que pensa.
Podemos todos aceitar sem esforço que conversam sobre o tablado de um teatro Os melhores actores ficam quase sempre fora do palco - para eles a vida é todo um palco onde se movem, gesticulam, silenciam e agem.
Cada um de nós, em certos momentos, representa um papel que não será bem o seu - ou que pertencerá a um dos nossos vários eus, ocultos e prisioneiros pelo convencional, e que um dia irromperá na pele de quem os guardou, perante o sobressalto dos que julgaram conhecer tudo da personagem.
Cada homem trás consigo um mistério
O destas três personagens não parece impenetrável no momento em que os encontramos na sua sala de jantar com mobília de tremidos e retremidos, flamingos rosados num quadro e os donos da casa num outro que recorda o dia do seu casamento
PAI
DEVERIAS mostrar mais respeito pelos nossos sacrifícios. Os códigos em que aprendeste falam de
justiça...
FILHO
Mas é com a ajuda deles que a injustiça quase sempre se comete. Os códigos não servem para muito...
PAI
Principalmente para os pais que julgam com os seus sacrifícios evitar os dos filhos.
"* FILHO
**!* f
A quem os fazem sentir com demaseada frequência.
111
talvez...
PAI
Averiguar o que cada um deles cogita no silêncio serio, descobrir o jogo de falsidades e de purezas que guardam nas suas caixas mágicas de prestidigitadores
FILHO
Não penses que te não compreendo: quando aludes a sacrifícios, não queres dizer com isso que mós lembras só para que eu te agradeça. Não me interrompas... Mas talvez seja pior ainda: pretendes obrigar-me a que eu aceite o teu sonho errado e o faça também meu.
PAI

Acusas-me, portanto, de te ter dado um curso.
FILHO

Não é bem assim. Acuso-te de pertenceres a uma classe (pensou: medíocre) que vive em permanente alerta para chegar ao topo da hierarquia social onde o financeiro é rei. Quando um de vocês obtém consentimento para dar os bons-dias a um banqueiro, toda a família fala nisso durante uma vida: é um brasão. Para chegarem até aí, vocês jogam tudo: dinheiro, dignidade ... e filhos.
Continua ...
PAI
FILHO


Não era isso exactamente o que querias dizer.
'PAI
Talvez não... Mas as minhas palavras para ti tornaram-se objecto da tua permanente hostilidade. O prestígio dos pais é um mito do passado. Vocês agora vivem à sombra de outros mitos ...
112
FILHO
Preferimos a lucidez ...
PAI
Outro mito com que quebram o encanto de muita coisa bela de que os homens se orgulhavam . . .
FILHO

E que os homens temiam, mas com as quais pactuavam por hipocrisia ou por medo. Nós desejamos chegar ao fundo da alienação ... Queremos encarar sem receio a realidade real sem o manto da fantasia de que falou

PAI
Depois disso, que ficará? ...
FILHO
Só então se tornará possível dar ao homem o sentido exacto do seu caminho na terra dos homens. Reconstruí-lo ... Esquecer todo o passado e começar de novo sem memória de qualquer dever ou de qualquer direito.
E as palavras? ...
112
PAI
FILHO
Deveríamos esquecer também o sentido equívoco que vocês deram a muitas delas. Há palavras que o mau uso encheu de vilezas, de falsidades e de absurdos.
PAI
O vosso homem lúcido necessitará de outras palavras, porque essas guardam memória das sensações, dos sentimentos e das necessidades que exprimem.
113
FILHO
Não chegaremos tão longe... *>
PAI
Começam mal, começam a ceder... Vocês devem ter a coragem de chegar ao fim de tudo ... Às raízes e às fezes de quanto é património do homem falhado e aviltado que sou eu e os outros ... Já que de nada se sentem culpados nem solidários, nada vos pertence, nada vos caberá também ... Tenham a coragem de começar pelo nada!
MÃE
Não te exaltes ... Vocês não podem negar que são pai e filho. Quem os ouvir sem o saber, há-de julgá-los inimigos . . .
PAI
Prefiro o teu filho como inimigo ...

Encaram-se ambos por instantes. Tanto um como o outro evitam prolongar o contacto dessa interrogação.
FILHO
Desta guerra sairá um mundo diferente.
PAI
Que mundo diferente?! ... Na outra, na de 14, já se falava nisso também. Não o creias. Para se baterem, os homens precisam de promessas ...
FILHO
Desta vez não nos deixaremos enganar, acredita. Para nós, não basta o mito das palavras absurdas. Queremos factos ... Temos o direito de exigi-los, e vamos exigi-los.
114
PAI
Ainda bem que se deixam sempre os melhores regimentos de reserva para no fim das guerras se ganhar com eles a paz interna . . .
MÃE
Graças a Deus que ficámos de fora . . . Graças bem porque ganhamos com ela uma vida melhor . . . ?/*
FILHO
A nossa vez chegará, acredita. Talvez já tenha começado há muito, sem a maioria se aperceber.
Voltas ao mesmo?!
PAI
FILHO

Sim, continuo a pensar que existem factos bélicos quando um jovem como eu termina o seu curso e não encontra onde aplicar o que estudou. Quanto custa um curso? . . . Terás tanto dinheiro que possas deitar fora mais de uma centena de contos? Faz a conta a quantos somos e encontrarás quanta riqueza se perde anualmente nessa segregação.
PAI
Voltas a acusar-me? ...
FILHO

Não, pai. No fundo, não quero nem devo acusar-te. Se tu fizesses a vida . . . Mas não a fazes, na verdade. Tentaste o que podias para que ela fosse para mim, pelo menos, o berço doirado dos teus sonhos.
PAI
83 Os pais.

MÃE

Nem todos.
Esses outros não o são. Mas repara como a realidade te traiu. Vê bem. Abre os olhos por momentos e nota como o Direito, o sublime Direito, se tornou torto e vesgo...
pai
Ainda não perdi as esperanças ...
FILHO
De me veres casado com uma rapariga que seja mais um doutor na família?
Não blasfemes contra ti próprio.
FILHO "

se Dispões, porventura, de mais uns centos de contos para me abrires consultório na Baixa e ficares à espera comigo que os clientes me procurem?

MÃE
Sabes bem que não. Se os tivesse, não tos negaria ...
FILHO
Então, irei acabar como manga-de-alpaca, como chefe de mangas-de-alpaca numa repartição qualquer. Ou como notário! ... Triste coisa para o que sonhámos ambos ... Notário!
PAI
Ganharás a tua vida ... Dei-te o curso como a enxada que o teu avô manejava no seu casal,
116
FILHO
Começas a ceder. Sonhaste-me num tribunal a amparar os fracos; foi o que te ouvi. Eu far-me-ia a voz da própria justiça ...
PAI
Sim, é verdade.

FILHO
Mas repara como isso se põe em desacordo com o que me dizes agora e com a própria realidade. Que vês tu?! ... A justiça avassalada, o meu curso sem préstimo, a minha voz sem eco...
pai
Talvez esperando ...
FILHO * "
Não vale a pena esperar. Preciso de ir ao encontro dos acontecimentos.

PAI
Sairás esmagado do encontro... .
mãe
Deus nos livre!
FILHO. É possível, mas nada se perde, pá. Nada se perde! fé na
vida . . .
Pensas, portanto, responder ainda a esse anúncio para empregado de contas-correntes . . .
117
FILHO
Não, que ideia! Só quis ouvir-te... Desejava saber se me preferias útil a trabalhar em qualquer ocupação que me tirasse da vadiagem intelectual...
Filho!
MÃE
FILHO
Ou se continuarás disposto a mantê-la até eu entrar na carreira política, na direcção de qualquer organismo de boas intenções ou no noivado próximo com uma jovem rica de sentimentos e com bens de fortuna, como encontrarás aí pelo jornal, algures em qualquer anúncio do jornal, talvez perto daquele a que eu me propunha responder e que tanto os indignou ...
PAI
Parece-me mau exemplo abandonares tão depressa a carreira para que estudaste.
FILHO }
Talvez a começasse, e só então, se me dispusesse a aprender no código da vida o que nela há para meditar e experimentar... Mas não receies. Se a ordem vive no caos, com as aptidões baralhadas e os técnicos em gabinetes e criarem mais burocracia, não acredites que pretendo endireitar o mundo. Nasci cansado...
Ainda bem . .
mãe
Deus te oiça!

118
FILHO
O meu niilismo de há pouco não passa de uma vaga doutrina que exporei em revista adequada para que dêem por mim.
PAI
Podes correr riscos ...
FILHO
Disso cabe-te a culpa por inteiro, meu velho. Tens** força para me impores como director de qualquer coisa? Sim ou não?! ...
PAI
Não. Desculpa, mas não... não tenho...
FILHO
Vocês por que razão me atacavam há pouco? ... Obrigas-me a correr riscos. Obrigas-me a atravessar a pista do circo em cima de uma corda bamba.
MÃE
Podes cair... A queda será muito grande?! ...
FILHO
Não, mãe. Nunca será muito grande, se faço o caminho com premeditação. Se ficar à espera, conformado, é que acabarei como terceiro-oficial de uma secção bizarra onde se procure, por exemplo, conhecer exactamente o número de botões de colarinho que se usam entre nós ...
PAI
Voltas a delirar...
FILHO
Queres dizer que volto a ser lúcido Obrigado pelo elogio!

Se estivéssemos num teatro, chegaria o momento de banhar a cena com luz verde, muito verde, da cor da erva dos prados em terra farta de água
Simbolismo da luz o Filho vai longe
E AGORA?!
"ENCAFUARA-SE no escritório do sogro, para avaliar *-* melhor a situação que a novidade lhe criava.
"-Vamos ter um filho.
"- Um filho?! ..."
Parecia-lhe uma notícia tão extravagante como se lhe dissessem que o Sol se havia metido na gaveta do guarda-prata e roído o queijo. Nunca pensara nessa hipótese depois que ficara sem emprego. Concebera-a antes como o melhor prémio da sua vida, pormenorizando até o futuro do pequeno, que seria lindo como a mãe e inteligente como ele. Talvez parecesse vaidade, mas era inteligente, sem dúvida. Era, não, fora ... Porque, se ainda o fosse, nunca aceitaria a situação que arranjara com a vinda para casa do sogro. Nem teria casado, talvez. Mas também a mulher não continuaria disposta a esperar mais tempo, acabando por aceitar a corte de qualquer pretendente que a rondasse com apego.
"E agora?! ... Só se o filho não nascesse ... Mas quem convenceria a sogra, sempre a atirar-lhe piadas ao mais pequeno pretexto por não ter ainda um neto?"
"- Deus lá sabe porque não lhe deu essa faculdade.
"-ó mãe ...
"-Também gostava de saber para que é que o senhor serve!"
E naquilo havia um remoque ao seu desemprego, à falta de habilidade em consertar a cadeira que se escangalhara e ao molho de nabiças que se oferecera para comprar e não pudera ser aproveitado para o almoço.
"E se falasse com a mulher? ..."
A sogra viria depois armar escândalo, toda encrespada num discurso que duraria o resto da semana, pelo menos.
123
- "O senhor fez um filho por engano e agora quer enjeitá-lo? Mas não o enjeita, porque eu não deixo, ouviu? Quer desfazer-se da mulher e do filho, e não sabe como. Pois vá-se embora e deixe-nos em paz. Se lhe ficasse alguma vergonha, já o teria feito há mais tempo... Qual mas, nem meio mas... O senhor veio à gosma da nossa fortuna, e lá porque houve o azar de perdermos tudo ... Quem sabe se foi o senhor que nos trouxe o enguiço? Não me admira nada. Nunca foi por minha vontade que este casamento se fez. Mas a menina morria de amores! ... Olha que lhe gabo o bom gosto, coitada! Antes a queria ver estendida num caixão ... Ao menos já lhe sabia o destino. Agora, assim? Sei lá para que está guardada?"
E depois faria a caramunha, chorosa e suspiradeira, se não lhe desse para desabafar no patamar com as vizinhas, pondo-lhe a nu as pequenas manias e os defeitos. Era o costume. Começava a sentir vergonha de encontrar gente na escada. Cumprimentavam-no, mas ele adivinhava o pensamento dos outros.
"-Lá vai o gosma! Coitados dos pobres senhores! ... A sustentarem um lanzudo destes! Ainda se se dissesse que é um homem bonito!"
Não podia falar à mulher no seu plano de desviar a gravidez. Já teria certamente contado à mãe, e o destino ficara lançado. Mesmo que o segredo continuasse entre ambos, também ela lhe perdera o respeito; não acatava já as sugestões dele, ainda que acompanhadas de carícias e palavras de súplica.
Como a vida se transformara!
Fora o centro daquela casa quando se resolvera a aceitar a ideia do casamento. Ao princípio, andara com as suas dúvidas, mas vira tão boa vontade, tantas facilidades, a promessa de um ambiente diferente do que suportava na casa de hóspedes ... Acedera por fim. A sogra tratara-o por filho, acarinhando-o muito, o sogro convidara-o para o jantar e abrira uma garrafa de espumoso. Agora chamavam-lhe "senhor" e já aludiam a alguns maridos que quando ficam desempregados limpam a louça e ajudam as mulheres noutros trabalhos de casa.
Ah, não! Isso é que nunca! Como a sua vida se transformara...
Precisava de desabafar e só dispunha do diário;
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onde contava as suas mágoas e alegrias. Depois, porém, de ter ficado desempregado, não podia anotar mais do que breves apontamentos, sem o perigo de a sogra vir espreitá-lo e tirar-lho das mãos. E havia passagens que ela tinha de ignorar, com o risco de se comprometer para sempre. Gostava de lê-lo algumas vezes para se afeiçoar à ideia de que poderia voltar a repetir o passado, embora triste, mas bem melhor do que o presente. Era um hábito que o pai lhe deixara. Antes de sair, ele metia-se no escritório e contava o que lhe ocorrera no dia anterior, não permitindo o mais leve ruído para se não distrair.
"-Para que queres isso, pai?
"-Habitua-te a escrever o teu, e verás depois como te sabe bem. É uma confissão que se faz todos os dias e que nos alivia para o trabalho e para a vida. Há momentos em que recordar conforta e a nossa memória não basta. Compraz-se até, algumas vezes, em nos esconder os melhores passos da vida..."
Começara também a escrever num caderno as suas primeiras recordações; depois continuara-as com regularidade. Se pudesse fazê-lo agora! ... Que tinha para contar? ... Um filho! Nos bons tempos de esperança diria por certo grandes coisas ao papel. "Farei dele um grande homem. Saberá querer, deslumbrará o mundo com a sua ciência ou com a sua arte ... Será mais do que eu fui. Realizarei com ele todos os sonhos que acalentei. Um filho? Mas agora?! Seria menos ainda. A vida comprazia-se em esfrangalhar-lhe todas as ambições. Um ofício? ... Uma mulher qualquer como companheira e ideias revolucionárias. A cadeia ... Como se desfazia uma família! Os pais em África, à procura de um destino que nunca mais encontrariam. Naquela idade já não se recomeça ... Viveriam do ordenado, com orçamento fixo e apertado. Que amargura o pai tivera quando se vira arruinado! Não pudera suportar a adversidade e abalara com a mãe, incapazes ambos de viverem na mesma rua onde os tinham visto usufruir uma pequena fortuna.
Via o pai com os seus colarinhos duros, a gravata sóbria e o alfinete de brilhante em forma de ferradura, o fato preto, a bengala... Andava sempre assim. Ele que adorava o fato preto, obrigado em África a vestir-se de branco, e empregado de escritório, com horas marcadas para tudo. Devia custar-lhe menos do que se morasse
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na mesma rua. Em Luanda, suportaria somente a sua angústia. Ninguém o olharia com interrogações. "Então como foi isso? Gastou-o ao jogo ou com amantes? Que diabo, homem! Que falta de juízo nessa idade! ..."
E alguns rir-se-iam deles, gozando com a mudança de situação, grosseirões como sempre: "Julgavas que a vida era só costas direitas? Pois aprende! Também nunca soubeste fazer nada ... Pensaste que as acções da companhia haviam de dar sempre para tudo. Aprende agora, anda. Já vais tarde, mas enfim ... Fica a saber o que nós passamos. Nunca mais dirás que o mundo está bem feito e que toda a vida foi assim. Que dizes agora? Achas bem? ..."
Fugira a isso tudo, resignado, indo esconder a sua vergonha lá para longe, ele que só abandonava Lisboa para passar a época de Verão em Paço de Arcos ou depois em Monfortinho. "Ainda faria o seu diário? Talvez até resolvesse rasgar as folhas do passado, porque só lhe dariam amargura, tornando mais triste aquele degredo. Ele ia na mesma. Que poderia escrever nas suas notas? Contar que dentro de meses nasceria o seu filho e que não sabia ainda o rumo a tomar na vida? Que pressentia o futuro mais negro ainda, espezinhado pela sogra e desdenhado pela mulher, ambas a testemunharem ao filho, quando ele tivesse entendimento, que o pai nunca fora capaz de lhe ganhar o pão?"
Nem ali no escritório podia dispor de si, porque dentro de minutos viriam recomendar-lhe que não mexesse nos livros nem nos papéis do sogro. Não passava de um intruso. Se tivesse forças para deixar aquilo tudo ... Que diriam depois? ... Agora vexavam-no por qualquer pretexto, qualquer coisa lhes servia para o humilhar, mas, se tomasse a resolução de desaparecer, achava-os capazes de inventar as maiores perfídias.
"-Sustentámo-lo, demos-lhe a nossa filha e faz uma maroteira destas; deve andar por aí com alguma galdéria."
Talvez até dissessem que ele levara roupas e pratas para o comprometerem ainda mais. Sabia-os, agora, capazes de tudo.
Escapou-se até à despensa, sem que o vissem, e tirou o seu diário de entre as revistas e papéis velhos em que ninguém mexia. Guardava-o ali, com receio
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de que um dia lho encontrassem e soubessem dos seus desabafos. Cairia Tróia!
Atento a todos os ruídos, meteu-o entre a camisa e a camisola; depois apertou-o com o braço esquerdo, como se receasse que os papéis lhe fugissem. Passou pelo quarto da mulher e despediu-se.
"-Até logo.
"-Aonde vais?
"-Ver se entrego no Rossio a resposta ao anúncio de hoje.
"-Passa por S. Domingos e reza. Tu não andas na graça de Deus.
"-Também acho. Nem na vossa, quanto mais na de Deus ...
"-Ainda por cima te queixas ... Que mais queres que te façam?
"- Já sei, já sei. Estou no asilo."
Abalou escada abaixo para evitar o temporal que adivinhara com os passos da sogra pelo corredor. Mas antes de bater a porta ouviu-lhe a despedida na mesma voz esganiçada:
"-Veja lá se se oferece para ir à praça."
Quando se achou na rua, levantou o peito para respirar fundo e agradeceu num sorriso a carícia do sol. A vizinha de fronte cumprimentou-o e devorava-o com o mesmo olhar glutão que deitava a todos os homens. Até aquelas oportunidades passavam. Se estivesse empregado, outro galo lhe cantaria... Mas nem dispunha de dinheiro para tabaco, quanto mais para lhe oferecer um chá. A recordação torturou-o; meteu a mão ao bolso do casaco para se certificar do que levava as pontas de cigarro do sogro. Nem um pó de tabaco lhe ofereciam, os somíticos. Fechavam os maços à chave, contados e recontados, sempre com receio de que ele os fumasse com os olhos.
Olhou para trás, e a vizinha sorriu-lhe de novo, encostada à janela num desafio. Era bonita. Bonita e fresca. Também ela precisava de suportar o marido mais velho, e ainda por cima ridículo. Devia viver talvez nas mesmas condições, ouvindo remoques pela fartura que gozava. Aquele desafio constante de olhares dizia-lhe que precisava de tirar uma desforra. Ela sabia, com certeza, a sua situação em casa dos sogros e avaliava-a por si. Quando voltasse, iria falar-lhe sob qualquer
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pretexto. Arrumaria as dúvidas sem hesitar nas consequências. Estava disposto a uma vingança escandalosa que desse alarido na rua. Não saberiam da sua vida mais do que já se falava.
Foi a pensar naquele projecto até ao jardim e procurou um banco isolado, à sombra de uma árvore qualquer, mas afastado do lago junto ao qual as crianças brincavam. Ali teria que se lembrar do filho. Qual seria o futuro do filho, educado por aquela gente? Ainda se pudesse ter voz activa para se impor! Mas não passava de um tolerado que precisava de pensar nos gestos, quanto mais nas palavras.
Abriu a camisa e tirou o diário. Por instantes, ficou com ele nas mãos, a pensar no futuro. O passado vivia ali numas folhas de papel amarrotadas e sujas. Valeria a pena escrever o dia de hoje? O quê?! ... Projectos? E realizá-los? ... Seria loucura pensar nisso. Desilusões? Sim, desilusões e pouco mais ...
De repente, ocorreu-lhe uma ideia; abriu a última página do caderno, puxou do lápis e apontou-o à primeira linha. Talvez assim:
A Irene disse-me que estava grávida. Um filho neste momento
Pensou no remate do apontamento - fá-lo-ia em letras grandes que tomassem o resto da folha. Seria um símbolo da sua angústia recalcada.
E AGORA?! ...
Maiores ainda, se fosse possível. Sim, talvez. E anotou ao canto da folha, numa chamada em letra direita: "Esta interrogação está escrita na minha alma com letras do tamanho do mundo."
E AGORA?! ...
Achara a solução. Um dia o filho poderia ler aquelas páginas. Ficava ali o seu passado. Se lhe pedissem para o contar, não saberia o começo. Todas as imagens se enlaçavam, confundidas umas com as outras, num jogo de escondidas para entontecer quem quisesse separá-las. Poderia dar uma síntese, e isso bastaria. De que valiam os pormenores, se só o conjunto contava? A verdade inteira residia no conjunto, embora o presente fosse a raiz do futuro. Que viria mais ainda? ... Se abdicasse, o filho tornar-se-ia na última e maior maldição da sua
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vida. Mas também seria, se ele porfiasse, o começo da libertação. Logo que arranjasse emprego, sairia da casa dos sogros. As rendas subiam todos os meses... Iria para uma parte de casa, estava resolvido. Faria sacrifícios pessoais para que o filho sentisse menos o abastardamento da vida. Talvez procurasse pequenas escritas para os serões. Seria explorado, sem dúvida, mas conseguiria outra possibilidade de gastos. Se a mulher não quisesse acompanhá-lo, abalaria sozinho com o filho, arranjando quem tomasse conta deles.
O plano seduzia-o; as dúvidas, porém, embaraçavam-no. E vinham as interrogações:
"- Julgas que terás força para tanto? Lembra-te dos tempos em que viveste numa casa de hóspedes. O teu filho não poderá brincar. Murchará como uma flor a que recusam o ar livre. Definhará de corpo e não terá nunca a alegria das crianças. Raquítico e enfezado, achará um dia que não vale a pena viver e procurará a morte como se fosse um herói."
"-'E se fores sozinho com ele, como resolverás o problema enquanto estiveres no escritório? Vais deixá-lo à dona da casa? ... Não quererá esse trabalho! Arranjas uma amante? E depois os outros filhos que vierem? ... O teu será escorraçado pelos outros e por ela. Odiar-te-á. Odiar-te-ão. Todos estarão de acordo em te hostilizar, abrindo conflitos permanentes na tua ausência.
" que vais resolver depois? Separá-los, mas como? Se não ganharás nunca para viverem em conjunto ... Tens lembranças de tolo. Sim, de tolo! O filho não te pertence. Há-de rir-se de ti, um dia, quando chegar à idade do entendimento. Achará que foste sempre um crápula, mesmo que o trates com carinho, ainda que só vivas para lhe dares bem-estar. Os teus sogros ensinar-lhe-ão tudo isso. Se saíres de casa, será a outra que o fará. Vais tornar-te num homem sem afectos. No dia em que aceitaste, deslumbrado, a situação que hoje sofres, perdeste-te para sempre. Falta-te a confiança. Não passarás sempre de um cobarde. A cobardia acaba por se tornar um hábito e o homem é um animal de pequenos hábitos. A cobardia também é sedutora. De começo, parece estratégia, mas vai minando, minando... até que se apossa do homem como se de uma paixão se tratasse."
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Apeteceu-lhe deitar fora o diário. Começava a temer a companhia daqueles papéis que lhe testemunhavam a carne viva da sua cobardia. Também lá houvera esperanças, mas a cobardia devorara tudo, como um monstro esfaimado que só se satisfizesse com abdicações. Passou a mão pelas páginas e sentiu curiosidade de revê-las em pormenor, como se tomasse contacto com outro homem diferente.
O papá veio hoje acabrunhado para casa. Meteu-se no escritório e fechou-se por dentro. Fui espreitá-lo e vi-o a soluçar sobre uns papéis que tirou do cofre. São as acções da Companhia, e lembro-me de que as afagava sempre que lhe mexia, dizendo que estava ali a nossa vida. Eu não acreditava, então. Parecia-me estranho que a vida de alguém pudesse depender de papéis. Mas eu era criança quando pensava assim. Agora aprendi na escola que aqueles papéis valem dinheiro -tambem papéis- e que dão um dividendo razoável. Já os conheço, porque pedi ao papá para mós mostrar. Porque chorará meu pai em cima daquilo que ele considerava a nossa vida?
Estamos perdidos. Li no jornal que a Companhia de que o papá tinha as acções abriu falência e foi absorvida por outra mais forte. O papá queixou-se hoje ao jantar de que o enganaram. A falência foi provocada pelos administradores, que passaram agora para a outra empresa, e ele não pode provar que o roubaram. Não sei como vamos viver sem o dinheiro da Companhia! Estou a acabar o curso, mas nunca pensei que teria de me servir dele para ganhar a vida. A ideia... Sei lá, francamente, se me agrada ou desagrada. vou ser independente, dispondo de mim sem os reparos da mamã, mas esta liberdade começa a confranger-me. O dinheiro das acções dava-me uma tranquilidade que já me falta, parecendo que é o próprio ar que me recusam. O papá tinha razão quando dizia que o dinheiro é o sangue dos homens.
Time is money, money is blood - tempo é dinheiro, dinheiro é sangue.
A afirmação do papá não é original, porque no meu livro de inglês vem isto mesmo. E os ingleses são homens práticos que não perdem tempo com palavras sem sentido.
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É um povo que sabe o que quer. O Sr. Freitas, que não gosta deles, aproveita todos os momentos para lhes ratar na pele. Fala da índia, da Guerra dos Boers, do ópio na China, e até de Portugal. Mas o Sr. Freitas é um mal-intencionado que se queixa de tudo e por tudo. Não sei até como o papá lhe admite certas liberdades, embora me recorde que algumas vezes nos disse que era preciso cuidado com a Companhia. No resto, porém ... É tão rabugento, que até pega no facto de os ingleses escreverem EU com letra maiúscula. Diz que é um sintoma.
Dinheiro é sangue - money is blood.
E como vamos viver sem esse sangue que todos os anos o papá ia receber de dividendo? Nunca vi o papá chorar, nem mesmo quando a avó morreu. Se ele chorou ontem, é porque a situação se tornou trágica. Nunca me vi metido numa tragédia; tenho a impressão de que não sirvo para uma coisa destas.
Fez um sorriso amargo, deixando cair o caderno na perna traçada. No jardim, só velhos e crianças. Uns pedindo o consolo do sol, outros entretidos com a brincadeira. Encontravam-se ali os dois pólos da vida, e ele era a transição, a ponte de passagem entre as duas gerações - ponte de passagem em ruínas. Pela idade, ficava mais perto das crianças e, pelo destino, mais junto dos velhos. Não servia para tragédias ... Fazem-se afirmações muito tolas! Que era, afinal, a sua vida? E os ingleses tinham razão. Sangue! O dinheiro era o sangue da vida, sem dúvida. com ele tudo se podia ter: amor, reputação, sossego... Até o ar e o sol, porque nem eles são iguais para todos. Um dia lera que, por enquanto, o sol e o ar não tinham dono. Agora, vendo bem, até isso se vendia:
"-Precisa de ar de pinheiros e repouso.
"-Mas como, doutor, se não posso ter um dia sem trabalho?"
O AR TAMBÉM ERA VENDIDO.
"-O sol de praia cura-lhe a criança.
"--Pois cura. E o dinheiro?"
O SOL TAMBÉM SE VENDIA.
Passou umas páginas do caderno e voltou à leitura. Uma mulher oferecia guloseimas, cantando o seu pregão.
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Ouvi-os discutir hoje pela primeira vez. A mamã, quando viu o papá entrar com os habituais embrulhos da pastelaria, fez-lhe reparo, lembrando que a Companhia abrira falência. Ele destemperou-se, pôs-se vermelho e disse palavrões que nunca lhe ouvira. O dinheiro até determina as palavras. Barafustou que não deixaria de fazer as mesmas compras.
- Julgas que estou disposto a vexames? Se visses o pasteleiro a sorrir, assim como um ar de quem goza a nossa situação! "Sr. Rebelo, tenho cá um queijo..." Entrei e comprei tudo isto. Lá as troças dessa gente é que eu não suporto. Nunca as suportarei. Prefiro... a morte. Julgas que a consideração que nos dispensam em toda a. rua continuará se não fizermos sempre a mesma vida?
A mamã objectou que não podíamos gastar num dia o dinheiro de que só dispúnhamos para uma semana.
- Pois que se coma só um dia, mas que se não dêem glórias aos outros. Ainda temos as duas quintas para vender. Aqueles ladrões! E não há ponta por onde a justiça lhes pegue. Parece até que foram eles que redigiram as leis. Súcia! Bandidos! O comércio de outros tempos e o de agora. Eu é que não quero, mas tudo se transforma. As palavras ficam as mesmas, porém as coisas são diferentes.
E o papá foi meter-se no quarto, não havendo quem o convencesse a jantar. Não provou o queijo nem os bolos que trouxera da pastelaria.
- Olha que se estragam, António.
- Pois que se estraguem. Não tenho alegria para comer doces, mas também não deixarei de os comprar. Se vocês os não quiserem, chamem as crianças da rua e dêem-lhos. Até é bom. Irão dizer para casa e ninguém desconfiará da nossa situação. Prefiro tudo, menos os sorrisos e as intimidades com essa gente. O pasteleiro de carinha n'água ... Nunca! Isso nunca! E os outros a dizerem, no olhar: "Então és cá dos nossos, ha! Que tal? ...É uma delícia, meu velho!"
Acho que o papá tem 'razão, na escola falarei de um grande negócio que vamos fazer. Ficarão mordidos de inveja. E esses tipos que nos julgam ricos, hão-de ficar fulos com as perspectivas de mais uns contos que ... não ganharemos.
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Cá em casa parece que morreu alguém. E morreu de facto. A mamã suspira e deve ter embranquecido muito nestes dias. Adivinho que chorou, pois os seus olhos pisados e tristes bem mo dizem; evitam encontrar-se com os meus, como se ela fosse a culpada de tudo o que aconteceu e ainda estará para vir. O papá fala sozinho no corredor, até voltar a meter-se no quarto, donde já não sai. A criada despediu-se. Deve ter desconfiado da nossa situação e receou que não lhe pagássemos. Foi dar à língua, com certeza. O caso complica-se. O papá falou-me num emprego logo que acabe o curso. Faltam oito dias para o ~exame e preciso de arrancar uma boa nota final. Talvez já seja tarde. Estudei pouco todo o ano; não desconfiava que precisaria do diploma. Ser cábula era a melhor recomendação para o dinheiro de meu pai. Todos os que têm de seu não estudam; nisso também mostramos superioridade sobre os outros que precisam de diploma para trabalhar. E os professores respeitam-nos a nós, embora dêem aos outros as notas mais altas. Os professores sabem que o nosso w vale mais do que o 20 para os outros.
Agora tudo mudou. Se faço um bom exame - e como vou fazê-lo? - os meus companheiros acham-me diminuído. Se têm dúvidas, confirmam-nas. Mas o caso é que preciso de ganhar a vida e sei pouco da matéria. E se fizesse rebentar um grande escândalo respondendo disparates?
- Qual é o livro-mestre da escrituração?
- O livro de cheques com cobertura.
Todos ririam da resposta e eu ficaria célebre na escola.
Deixou de ler, reconsiderando no diálogo que concebera na intenção de vexar os professores. Afinal, era uma resposta justa. De que serve a Razão e a outra livralhada, se o livro de cheques não apresentar saldo no talão? Há verdades aparentes que se repetem por séculos, sem o raciocínio das pessoas. Um dia aparece um louco a afirmar o contrário; depois dos primeiros desdéns e insultos, vem a constatar-se que o doido era o único homem lúcido. Tal qual a história do rei que vai nu ou a blague de que as guerras são necessárias à humanidade. Criam-se mitos para que os homens se deixem matar ... Estacou o raciocínio, desconfiado da
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clareza do seu pensamento. Voltou ao caderno de apontamentos, mas o fio daquelas considerações ficou a enlear-se nas outras palavras e a embaraçar-lhe o sentido.
Creio que o papá não tem continuado a escrever as suas memórias. Desabafa agora com as paredes do corredor e do escritório, incapaz, talvez ainda, de acreditar que este presente lhe pertence. Há momentos dolorosos que queremos repelir de nós, como se receássemos a própria sombra. Se alguma vez puder ler os cadernos do pai, tenho a certeza de que vou achar estes dias em branco, ou só palavras que ninguém será capaz de compreender totalmente. "Trevas. Que vou fazer? Sei só que isto não pode continuar." E eu tenho a certeza de que tudo ficará na mesma, ou ainda pior. Se os seus monólogos fossem capazes de se gravarem nas paredes, como num disco, eu ficaria conhecendo a expressão da sua angústia. Vejo-o tão abatido que receio levantar-me uma manhã com os gritos de minha mãe a dizer-me que ele se matou. E se ficar de vela toda a noite, atento aos ruídos para evitar esse desenlace? O suicídio será cobardia ou heroicidade?
As notas desse dia acabavam com aquela interrogação: "Será cobardia ou heroicidade?" Se as escrevesse agora, teria mais alguma coisa para dizer. Sabia melhor da vida para avaliar que o suicídio congrega ambas as coisas. À renúncia pelos outros poderá chamar-se cobardia; renunciar, porém, por si próprio, será decerto heroicidade - ou egoísmo? O mesmo acto do soldado que vê caminhar o tanque e pensa barrar-lhe o caminho com o corpo. Quando o homem abdica de si, agindo, não é cobarde. A cobardia faz recuar ou tolhe. Mas...
Talvez seja melhor deixar a interrogação em suspenso. Ainda não se sabe bem o que define o herói. A expressão não terá, possivelmente, um único sentido: honrosa para uns, humilhante para outros... Herói será uma daquelas palavras que nasceram nos dicionários para resolver embaraços.
Poucos reflectem no seu conteúdo. Existirão heróis reflectidos? O homem deve ficar sempre presente, mesmo que mais nada espere de si; talvez que na própria renúncia já haja nascido o gérmen de nova reacção
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que o capacite para prosseguir. O segredo concretiza-se no vencer certos momentos de total ruína interior. Saber esperar... Não barrar com o corpo o caminho do tanque, mas saber deixá-lo passar, para vencê-lo de outro modo. O heroísmo estará por certo com o primeiro... O outro não passará de um estratega. Afinal, que é cobardia e que é heroicidade? E se ambas se confundissem?
Passou umas páginas para fugir ao emaranhado das dúvidas. Vagueou, indeciso, o olhar pelo jardim. Amparado a uma bengala, um velho cumprimentou-o de longe.
É uma solução, mas eu fico. Já tenho o diploma - um 10 muito escasso - e sou novo. Talvez queira ficar por vingança ao infortúnio de meu pai. Não sei, neste momento, porquê, mas entendo que o meu lugar é aqui. Embarcam amanhã para África e tenho a certeza de que o fazem para que os não vejam sofrer. Arranjaram um emprego para o papá e ele ficou infantil de contentamento. Diz que ainda vai voltar com um grande pecúlio e nunca mais se fará accionista das companhias. Percebo, contudo, por debaixo desta convicção que ele vai exilar-se só para que o não atormentem os sorrisos dos que gozam com o seu declínio. A mamã está mais triste, certamente porque eu fico. Nunca concebeu separar-se de mim, e agora, que as horas se aproximam, só se sente bem a afagar-me. Parece que quer levar-me nos dedos. Sinto que esta renúncia de ambos é igual à morte colectiva adoptada pelos japoneses, e admiro-os por serem ainda capazes de reagir, querendo salvar um conceito de dignidade que umas vezes compreendo e outras acho absurdo.
Esta ideia de ficar só deslumbra-me, embora também me traga medo. Viverei independente, sem suportar o calvário de conselhos que os pais sempre têm para os filhos, preocupados em furtá-los à experiência da vida. Irei viver para um quarto... Os jornais trazem anúncios que segredam intimidades deliciosas. "Senhora só, nova e distinta, aluga quarto a cavalheiro nas mesmas condições." Será até isto um dos motivos por que fico. Agora que o escrevi, julgo-o mais poderoso que o desejo de vingar a situação do papá. De hoje em diante, começarei a tratá-lo por pai. Parece-me menos
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artificioso e mais independente. Papá soa-me a pedido de licença para ir ao cinema, ao baile e para entrar em casa às onze horas. Fico ainda o resto do mês na nossa casa, mas depois liberto-me. Vendo o resto da mobília, guardo para mim o quarto onde durmo há muitos anos, e começarei vida nova. É possível que antes disso arranje uma aventura, trazendo-a aqui, numa intimidade que tenho sonhado e nunca pude realizar. Mas isso são projectos para depois. Preciso somente de me lembrar agora de que ficarei só... Não significará canalhice este desejo de me libertar da opressão carinhosa dos dois?
Acho que sim. Começo a julgar-me cúmplice do caso das acções; pareço o inspirador do destroçar do sossego da nossa casa.
Ouço a mamã soluçar. Quero compreender o seu desgosto de sentir que se vão quebrando todos os fios que a ligam à minha existência, mas confesso que ... Não será pecado confessar? Quem vai ler estas palavras senão eu? Sim, é verdade. Apetece-me abrir a janela do quarto, respirar fundo, erguer a cabeça e gritar para o mundo que vou ficar só. Só! ... Até a vizinha de cima, que me parece dócil
- coitado do marido! - será capaz de se voltar para mim,, vindo aqui passar algumas horas.
Penso como um canalha, não há dúvida. A mamã continua a chorar e eu gozo em ultrajar a sua dor. Como gostaria de poder compreendê-la e de saber acalentá-la, afagando-a no meu peito, tal qual ela fazia para os meus desgostos! Talvez consiga, sim. E se eu rasgasse esta página indigna?
Os pais estavam vingados agora. se eles soubessem o que pensara e o que sofria! ... As cartas que lhes mandava ocultavam-lhes tudo. Mas nalguns momentos, se não se tratasse de pais, eles seriam capazes, com certeza, de descobrir que lhes mentia. E agora ia nascer-lhe um filho ... com ele, talvez a vingança se tornasse mais cruel. Quanto mais se lhe dedicasse, maiores seriam os pesares que receberia em troca. É a lei fatal de pais e de filhos.
Apetecia-lhe abandonar a leitura, ao mesmo tempo que um desejo de se castigar o forçava a prosseguir.
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O barco abalou e sei agora que não sou tão canalha como pensava. Corri do cais para casa, e aqui estou, sozinho, apavorado com o silêncio, com os quartos desertos, onde até os meus pensamentos parecem ecoar. Um gesto repercute-se, um olhar vibra. É um silêncio de morte que me arrepia, que me confrange e volta a encher-me os olhos de lágrimas. Tal como no cais, toldam-me a vista. Não via o vapor, e também não vejo o futuro. Um cais cheio de angústia e o meu lenço a acenar - e o lenço deles a dar-me ainda conselhos, como dois sinais de paz num momento de tragédia. Tragédia para eles.
Para mim... Não sei, ao certo, se se trata de receio ou de outra coisa menos humana. Já não penso nos anúncios nem na vizinha de cima - penso neles. E em tudo o que perdi... Não estou bom, com certeza. Já não sou um bebé para ter estas preocupações. A sua partida, porém, liga-se a uma ideia triste - a de que estou órfão. Sei agora que eles não voltam. O barco recusava-se a tomar rumo, tão de manso se afastava do cais. Era como o braço de minha mãe a desprender-se do meu ombro, enquanto a sereia chorava alto os pesares que abafávamos nos lábios franzidos e nas lágrimas silenciosas. Vi-os ainda durante algum tempo. O seu olhar puxava-os para mim, mas o barco afastava-se mais depressa, como se quisesse furtar-se à emoção dos que ficavam. Estou doido, certamente.
O barco tem lá sensibilidade para compreeender estes pequenos dramas! Estou a fazer literatura. Eu, que embirro com os literatos - e porquê? - a cair nos mesmos vícios piegas de querer dar vida a um monstro cinzento, feito de ferro. O barco percebe lá estas coisas da vida dos homens! O silêncio da casa é que tem vibração para me entender. Andam por aqui todos os passos da minha existência ... Fiquei sozinho com os meus fantasmas.
Deixa-me escrever ainda que depois os não vi mais. Só a baleeira que lhes ficava por cima me servia de ponto de referência. A multidão despegou-se dali, a pouco e pouco, movendo-se a custo. E eu que queria ficar só, liberto de ordens e de conselhos, tolhi-me de angústia por não ter mais ninguém comigo. Que contradições nos homens! Desgraçado por estar só, infeliz por ter conquistado um sonho tão apetecido ...
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Sim, esta casa sabe todos os passos da minha existência. Mas a casa também não sente, tal qual o barco. Talvez ... Sim, talvez! É capaz de não ser literatura. O corredor lembra-se, com certeza, dos meus primeiros gatinhares e do meu pairar. Viu-me depois correr atrás da bola, ter as minhas birras e levantar os abafos que pendiam do cabide - foi a mamã que me contou, e ela esqueceria tudo menos os primeiros anos da minha vida. Não é este silêncio que mos recorda. É ainda a mamã que me conta as alegrias que lhe dei. O silêncio, porém, compraz-se em fazer-se mais silencioso, para que eu sinta tudo isso mais profundamente! Como eu gostaria de ouvir barulho até me entontecer de ruídos! Nem os filhos da vizinha correm lá em cima. A tarde cai e tenho de ir jantar. Sair de casa para comer... Todos os dias assim.
Estou só, sim, estou só. Porque me deixaste sozinho, mamã?!
Naquela página viam-se ainda vestígios das suas lágrimas. Lembrava-se de que chorava convulsivamente, abafando os soluços com o lenço para que ninguém soubesse da sua fraqueza. Acabara por adormecer, incapaz de sair do quarto, como se as casas vazias o amedrontassem e voltasse aos tempos de criança, com medo dos papões.
Só acordara de madrugada, esquecido do que se passara, a recear até que o entendimento se tornasse claro e o fizesse voltar à realidade. Ouvira o relógio e o caruncho - como se um quisesse apressar a destruição que o outro realizava. E o caruncho ia devastando a sua vida, refastelado de gozo por sabê-lo vencido.
Quisera deixar a secretária, mas logo raciocinara que não eram horas de sair. Andara pelo quarto a fumar cigarros e a pretender levantar projectos naquele terreno chão em que se tornara o seu pensamento. Nada ficava de pé - tudo o desiludia. Forçara até essa descrença, vendo-se desempregado por muito tempo, esfarrapado depois, faminto de pão e de carinhos, a correr a cidade de portal em portal, sempre amaldiçoado por todos que não sabiam dele senão aquele presente doloroso. Parecia que essa fatalidade o consolava. Gostava de levar as desgraças até ao absurdo. Reagira depois de se deitar e caíra num sono profundo.
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Quando saíra, correra a uma pensão qualquer para matar a fome. A que o pai escolhera ficava longe e temia qualquer coisa que ainda hoje não sabia explicar. Procurara o amigo da família que lhe prometera emprego e voltara com esperanças.
"-Compra-me um sabonete?"
Aquela pergunta pareceu-lhe intempestiva e o olhar que deitou ao outro foi de ódio. Soube, porém, calar as palavras, lembrando-se de si. "Talvez um dia ... E porque não?..." •
"- Não, não quero.
"-É para o almoço dos miúdos.
"-Não posso.
"-Está desempregado? >
"-Estou.
"-Então, desculpe."
O outro partiu a encolher os ombros e a falar baixo, dirigindo-se ao banco seguinte. Dali saiu sem lhe comprarem nada e cresceu-lhe a curiosidade, acompanhando o outro pelo jardim. - Compra-me um sabonete? - "Sabonetes neste tempo! Se se pudesse vender moralidade... E quem a queria? Nem de graça, com certeza. E que é a moralidade? ..."
Zsío, afinal, não é tão mau como pensava Já tenho quarto e emprego. Deixei ontem a minha casa e sinto-me melhor. A vizinha de cima nem no último dia se resolveu. Não se deve ter impressionado com a minha juventude - até talvez lhe metesse medo, quem sabe?
Este quarto não é mau. Deita para um saguão, mas confronta com outros prédios, onde ha muitas raparigas que não me parecem desajeitadas. Já assobiei a uma delas e respondeu-me com um sorriso. Se a encontrar na rua, hei-de convidá-la para irmos ao cinema e não me deixarei embaraçar com os vizinhos do lado. As ocasiões não se repetem - é, pelo menos, o que diz o Saraiva lá no escritório, Invejo-lhe a vida. Deve gozá-la como poucos, embora ande com meio tostão no bolso. Nada o impressiona; arranja sempre saída para as situações mais difíceis. Tem contas em todo o lado, mas não se atrapalha quando lhe exigem o pagamento. Não se recusa, promete sempre e nunca paga Sorri com a habilidade de um prestidigitador.
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Quem viu o Saraiva, e quem o vê hoje! Sócio de uma casa de penhores e bem casado. Parecia estar ainda a ouvi-lo:
"-Eu só lhes peço que me subsidiem enquanto não me encosto. Agora só um casamento me poderá salvar. Prefiro filhas de penhoristas, porque tenciono cobrar todos os juros que me têm esfolado. É uma mania..."
E levara a sua avante. Devia ser um bom balcão, impermeável ao namoro de caloteiros. Não se admirava se o visse ainda como motorista fardado e com meio mundo na mão. A prática de si mesmo devia servir-lhe bem para avaliar os outros, evitando cair nas armadilhas mais sabidas.
Hoje, no escritório, tive uma pega com o Ribeiro por causa de uma caneta. Serviu-se da minha, e não posso tolerar um abuso desses. O guarda-livros dá os aparos por conta, tendo sempre uma recomendação a fazer quando lhe pedimos algum, e o Ribeiro quando escreve parece que está a lavrar. Ouço na minha secretária o ruído que o aparo faz no papel e não estou disposto a servir-lhe de capa. É um tipo ordinário! Fala sempre em calão e desafiou-me para a rua. É sócio do Benfica, ainda por cima, e gente de águia na lapela não me convence. É um fanfarrão malcriado que me repugna. A saída deu-me dois estalos e prometeu repetir a façanha. Se tiver esse descaramento, vai arrepender-se, com certeza.
Do fundo do jardim cresceu o barulho dos rapazes: gritavam troças a um homem que parava de vez em quando no seu caminho para declamar em gestos largos. Os velhos que estavam ao sol vieram até à ponta do passeio para verem melhor e comentarem o acontecimento, recordando outros pregadores de rua. O homem veio andando até parar junto do banco onde ele se sentara. Mediu-o com um olhar de piedade e fez-lhe um cumprimento rasgado com o chapéu de coco. Uma gargalhada estrondosa rebentou no grupo de rapazes que o seguiam à distância.
"-Para que pensas? Não penses, cidadão, não vale a pena. Deixa o pensamento às aves e às pedras, às flores e aos peixes. Eles, sim, é que podem e devem pensar.
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Não mostres essa cara acabrunhada, cidadão, porque no Dia de Juízo terás de responder pelo crime de ter pensado. O homem usurpou esse direito aos outros animais e às coisas passivas da Natureza. Arrepende-te do teu pecado! Bate no peito o sinal de contrição ..."
Um punhado de areia bateu-lhe no rosto, mas o homem nem se moveu.
"-Vês?! Isto sucede a quem, como eu, anda no mundo para avisar os outros de que a hora pertence às vítimas do homem. Tudo se vai transformar. As aves passarão a andar à caça e os peixes à pesca. É a hora de pensar, e nós sofremos as consequências do que fizemos desde a origem do mundo. A flor é que virá cheirar-te; se lhe apetecer, arrancar-te-á os cabelos como se fossem pétalas. A pedra sentar-se-á em ti, se vier cansada de alguma viagem, e marcará no teu corpo algum nome ou data, se a quiser ver lembrada para os séculos sem fim. Não penses! Aí te deixo o aviso solene da vontade divina. Eu sou o último homem que ainda pode pensar, porque aceitei o sacrifício de espancamentos e ultrajes, não receando a ira dos que me não acreditam e me perseguem. Aqueles serão homens um dia e entenderão as minhas palavras como o testamento legado a uma geração condenada. Fui eu que pedi a Deus para que deixasse os homens renunciar ao seu destino. Não faças essas expressões de desalento! Resigna-te a sorrir! Porque nunca mais morreremos nos campos de batalha nem lutaremos nas ruas das cidades em ruínas. Abdicamos desse direito, como um grande fardo que nos tiram de cima. Já não teremos que inventar máquinas como estímulo desta disputa em que as gerações se consomem. Deixa isso às flores e aos peixes, às aves e às pedras. Abençoa este momento! Adeus! ... Adeus, irmão homem! Eu cá vou no meu calvário, só para que tu não sofras o pecado de pensar."
E continuou o seu caminho, seguido pelo cortejo de risos e vaias do rapazio, enquanto as mulheres o lamentavam e os velhos iam de novo para o encosto da parede para saborearem o sol que lhes faltava no sangue.
Remexeu as páginas do caderno, raciocinando nas palavras do louco: "Talvez fosse uma felicidade, se tal concessão pudesse ser feita. Ele ficaria ali, sem necessidade de voltar a casa para escutar os remoques dos pais da mulher. E ela não falaria do filho que ia nascer, nem
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o atormentaria com lamentações. Já não precisaria de emprego. Ficaria fechado às recordações do que passara, não tendo também que duvidar do futuro. Para que queria o pensamento? Os loucos fazem afirmações justas, e os outros, afinal, não sabem entendê-los. A continuar assim, acabaria também por andar nos jardins preleccionando aos rapazes, para que eles se rissem e para que as mulheres o chorassem."
"Para que servia o seu diário? Era um estado agudo da mania dos pensamentos. Já lhe juntara o último capítulo. - E AGORA? ... - E nada mais tinha para escrever. Queimá-lo-ia, talvez, ou, se pensasse em chamar a morte, levá-lo-ia consigo. Seria como que o atestado a provar que tinha direito a morrer. Já agora, passaria os olhos pelas páginas da sua odisseia, para recordar antecedentes que o haviam deslumbrado e traziam consigo o princípio da própria destruição."
Procurou no caderno - a data ainda não lhe esquecera. A letra tornara-se mais nervosa, cheia de inquietação e também de sonho. Pressentimentos, talvez, do que ia acontecer; a interpretação seria outra - receio, pavor e tragédia. Também exagerava. Tragédia! ... Era uma classificação.
O meu namoro com a Irene vai progredindo. Depois do baile de ontem, em que andámos enlaçados, a nossa conversa tomou outra intimidade. Temos de namorar mais perto, porque não suportamos o sacrifício da distância. E, demais, uma distância vertical, da rua para o terceiro andar. Só ontem lhe dei um beijo na orelha quando dançávamos um tango. É muito pouco para os desejos de ambos. Falou-me de uma amiga que tem para o Campo de Santana e não se importa que eu vá lá a casa. Mas precisamos que a mãe nem sonhe essa liberdade. Se um dia puder casar, esta mamã antipática não me arrancará a hipótese de um sorriso.
Ganho uma miséria e não vejo grandes possibilidades de subir no escritório. O guarda-livros é novo e está de pedra e cal; não parece disposto a abandonar a posição conquistada. Não é mau tipo. Permite-me falar-lhe em cinema e já desabafou comigo num dia em que se aborreceu com o patrão. Aproveitei o momento para medir as suas intenções, dizendo-lhe que em qualquer outro lado arranjaria melhor remuneração. Disse-me que
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sim, deu pormenores das suas possibilidades, mas acabou por afirmar que <tinha amor à casa". Não passa de um parlapatão como os outros.
Amor à casa! Em português corrente, isto quer dizer que não abandonará o osso e que eu terei de procurar a minha vida por outro lado. Os empregos, porém, andam tão escassos que só por bambúrrio arranjarei outro lugar. E continuarei o namoro para o terceiro andar, embora em palavras tenhamos intimidades de alcova. Agora, por exemplo, estou febril com a ideia do encontro em casa da amiga do Campo de Santana; apetece-me até escrever tudo o que concebo para satisfação desta ânsia de a possuir. Mas já sei como isto acaba e não vale o trabalho da imaginação. Chamarei a criada que cheira a cebola e a suor, a pretexto de lavar os pés, e ela virá ter comigo ao quarto depois de passar pelos braços do Meireles e do Pinto. Repugna-me esta intimidade. Será parvoíce minha, mania de menino amimado ou qualquer coisa semelhante. Não posso suportá-la, mas não tenho outra solução efectiva para os meus exaltamentos de palavras com a Irene. Sinto que a rebaixo, pensando nela com a Aurora ao meu lado. É de facto uma grande porcaria. Contudo, a promessa que hoje trago já me anima. Ela irá a casa da amiga e encontrar-nos-emos sozinhos na sala.
- Meu amor!...
E não haverá orquestra a tocar tangos para que eu lhe dê um beijo na orelha, nem haverá distâncias verticais que nos separem. E se eu pregasse uma partida à mãe? ...
Estou farto da casa de hóspedes. Pago a mensalidade e nada me pertence. O Pinto saiu para a casa de uma francesa na Rua Luciano Cordeiro e para o seu quarto veio um casal. A mulher é airozinha e magra, mas gentil, olheirenta e comprometedora. Vem de robe para o corredor depois de o marido sair; à tarde, sai a tomar chá na Baixa. A Aurora é que me contou, despeitada, que o Meireles que já não lava os pés há uma semana e anda a fazer a corte à rapariga magra. Eu preferia que o Pinto continuasse no quarto, pois evitava escutar certos ruídos que me incomodam e diálogos de mau humor e ciumeira.
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O marido pede-lhe que não olhe para nós e ouvi ela responder-lhe que não havia perigo com tais engorados. Os engorados sou eu e o Meireles. Talvez falte um dia ao escritório para ver o que se passa e ferrar-lhe a partida, se me der ocasião. Depois serei eu a rir, quando lhe lembrar a classificação que usou para me definir. Mas de que vale a desforra? Dirá que, no fundo, já me desejava e que empregara a expressão para aquietar o marido. Nestas coisas elas são mais hábeis do que nós. A Irene também será assim?! ... Pouco sabida, talvez. O certo é que concebeu o plano de se encontrar comigo na casa da amiga enganando os pais ... Sou um disparatado! Complico todas as coisas em que me ponho a pensar.
A franzina cumprimentou-me esta manhã e disse-me que estava frio. Respondi-lhe que não tinha muito de que se queixar porque dormia acompanhada. Sorriu-se de uma maneira provocante e encafuou-se na casa de banho. Fiquei no corredor a escutar o ruído da água, os seus passos ... eu sei lá! Concebi cenas de entontecer. A saída voltou a sorrir e tive a impressão de que ela não desdenharia um beijo roubado. Mas agora, depois que vi o marido chegar e as explosões de ternura com que o recebeu, acho que me enganei. E ainda lhe devo um respeito igual àquele que eu queria que todos usassem para a Irene. Talvez não passe de uma preocupação tola. Parece-me mais um rebate de consciência ou um sacrifício pelo futuro.
Quem sabe se um dia viverei com a Irene numa casa de hóspedes? O Meireles é que não teme estas complicações porque não namora - alguma desilusão! As mulheres servem-lhe por pouco tempo; dispõe sempre de um rol de aventuras para contar. Já gostei de o ouvir, mas agora tenho receio de ser amigo do Meireles, uma vez que posso casar com a Irene e a sua intimidade não me convém. Incomoda-me até a sua companhia na rua e o desembaraço com que se dirige às mulheres que passam. É bem certo, porém, que elas não o evitam, até parecem agradecer-lhe a gentileza dos piropos, continuando mais requebradas, como a pedirem que lhes aprecie melhor a pureza das linhas. O Meireles parece que às vezes tem razão quando escabreia, se eu lhe falo em casar, a pretexto da sopa queimada ou de qualquer
outra falta no serviço. Diz que prefere tudo a contrair obrigações prolongadas, tanto mais que não confia em nenhuma mulher. Há ali qualquer queixa grave, com certeza. Não tenho, porém, que averiguar intimidades que me não são confiadas. Algumas vezes há que o julgo com razão.
Ainda ao almoço vi a Aurora derriçada com um polícia e não pude esconder a minha indignação. vou deixar de lhe pedir água quente à noite. Que a dê ao polícia, ao Meireles e a quantos mais quiser.
O ordenado que ganho vai-se tornando confrangedor. Por mais que aperte as despesas, não consigo comprar os sapatos de que preciso; agora que vou aos domingos à missa com a Irene, sinto-me contrafeito. Tenho sempre a impressão de que ela me olha para os pés com um ar de desdém muito embaraçador, dizendo-me que já é tempo de substituir aqueles gloriosos sapatos que conseguem aguentar dois anos de caminhadas para o emprego e ainda alguns bailaricos de estafar.
Passei a fumar menos. Só eu sei os tormentos que suporto quando vejo o Ribeiro sempre a fumegar ao pé de mim com o aspecto provocador de quem goza com, o mal alheio. De vez em quando peço um cigarro a qualquer colega, inventando o pretexto de o meu tabaco estar muito seco. Mas um deles já me disse, a sorrir, que eu estava a "tornar-me crava", e não devo continuar nesse encosto que só agora reparo não me ficar nada bem. Fazendo as contas, não é o tabaco que me embaraça; o ordenado é que é escasso.
Já falei ao guarda-livros em aumento e ele torceu a cara, explicando que o patrão não anda satisfeito com os serviços. Não sei, afinal, o que preciso de fazer mais para lhe agradar. Quero esquecer-me das preocupações das contas, dando-me inteiramente ao serviço, mas há momentos em que não posso ser-lhe superior. Quatrocentos e cinquenta escudos, com descontos vários; só em comida, quarto e banho vão trezentos e noventa. Fico com cerca de cinquenta escudos para as outras despesas e em mês de meias solas afundo-me todo. Já devo dinheiro ao guarda-livros já pedi um empréstimo ao Pinto. E o par de sapatos? E quando se acabarem os fatos do tempo de meu pai?
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Não me fica bem pedir-lhe auxílio e nem sei se ele pode prestar-mo. Pelas cartas que me escreve, não deve andar em grande desafogo, e mesmo não compreenderia que com o ordenado que inventei necessite ainda das suas achegas. Tenho de tomar uma decisão qualquer. Na missa, enquanto a Irene se roja pelos altares, a desabafar orações, peço a Deus que me proteja neste transe difícil. Mas agora sinto-me envergonhado em pensar que Deus possa ter preocupações com os meus sapatos, tanto mais que o sapateiro é ateu, e com essa gente Deus nada decide. Quem poderá servir-me de empenho para o sapateiro?
Finalmente Deus ouviu a minha prece. Obrigado! Obrigadíssimo! A Irene veio hoje dizer-me... Preciso de acalmar os nervos antes de escrever todas as emoções que me perturbam.
A Irene, a Reninha, andava a falar-me em casamento depois que fomos a casa da amiga do Campo de Santana. Eu inventava, com minúcia, as esperanças de aumento; cheguei até a falar na saída do guarda-livros e na hipótese de o lugar me ser entregue. Repeti-lho tanta vez que eu próprio cheguei a convencer-me disso. Porém, o tempo passava e a situação era sempre a mesma, agravada ainda com a necessidade de comprar uns sapatos. Na pensão, ainda por cima, procuraram-me no fim do mês para me comunicarem que tinha de pagar mais. Depois de muita conversa, arredondaram-me a conta para os quatrocentos, dizendo que tomavam em consideração o meu tempo de hospedagem.
Hoje, porém, a Irene comunicou^me que vamos casar. Como é natural, fiquei embaraçado com a intimação, tanto mais que as nossas relações não passam de beijos e promessas. Disse-lhe que era preciso esperar, ter confiança no futuro, fé em Deus, no Destino, na Providência ...
- O papá falou comigo. Disse-me que podíamos casar...
- Mas eu ganho quinhentos escudos, meu amor.
- Ele sabe. Pagarás trezentos escudos por mês e viveremos juntos.
Se não fosse aquela horrível distância vertical, tê-la-ia beijado como nunca. Saiu-me hoje a sorte grande! Deus ouviu-me! Por trezentos escudos, vou ter casa minha. Deixarei de suportar este maldito ambiente de
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pensão, misto de cadeia e de quartel. Terei mulher exclusiva, posso prescindir dos carinhos da Aurora e ainda ganho dinheiro na diferença. com o aumento que me deram, ficam-me quase duzentos escudos, e ainda arranjo novo pretexto para falar ao patrão. Mesmo que me dê só cinquenta escudos, abona-me o dinheiro para o cinema. A Irene gosta de filmes musicais e eu também não desdenho um bom divertimento.
Haverá quem me afague nas noites de Inverno, trazendo-me botija e reforçando os cobertores da cama. Deixarei a amizade com o Meireles, os sorrisos da franzina e nunca mais terei necessidade de pedir tabaco no escritório. Um homem casado! Trezentos escudos com direito a comida, cama, banho e mulher. O Diabo não está sempre atrás da porta. vou sair para beber um cálice de porto na pastelaria. Depois talvez dê um giro para arranjar companheira. Faço hoje a minha despedida de solteiro, porque amanhã vou falar com o pai da Irene e passo a ir lá a casa. É preciso resolver tudo depressa. Estou a perder tempo e dinheiro - time is money, money is blood. Chama-se a isto sangue ao quadrado. Preciso de casar imediatamente. Se as coisas se complicarem, ferro a partida à Irene e tudo se resolverá.
Adeus, Aurora! Adeus, franzina! Adeus, Meireles! Adeus, vida ingrata!
Amanhã de madrugada escreverei para África a dar a notícia. Digo que fui aumentado, que já sou chefe de escritório, que tenho uma vida de abastança e de felicidade. A mamã vai chorar de alegria, e o papá... Que sentirá o meu pai? Orgulho, talvez. Sim, orgulho. Precisamos de ter fé, esperança... ia também a escrever caridade. A caridade pertence à Irene. Nunca lhe darei um desgosto. Podem as outras mulheres provocar-me que a infidelidade não encontrará guarida na minha alma. Hei-de dizer-lhe esta frase logo que surja a oportunidade.
Desviou os olhos do caderno de memórias com ganas de rasgá-lo. Se adivinhasse tudo o mais que viria depois! As ilusões que acarinhara! ... Antes continuar com malabarismos no fim do mês, sem dinheiro para os sapatos e para o tabaco. Se pudesse voltar a trás ...
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Procurou no caderno o começo da tragédia, como se assim pudesse vingar os sonhos que acalentara. No começo das páginas, as palavras recordavam-lhe todo o caminho incerto da sua vida.
Casei! ... Hoje fomos ao cinema ... Sou feliz ... Comecei a tratar a minha sogra por mãe... O meu sogro ofereceu-me dois bilhetes para a tourada ... Recebi carta de África ...
Coitados! Como poderão eles acreditar em mim?
Hoje comecei a sentir ...
Dobrou o caderno naquela página, enrolou um cigarro e acendeu-o para ganhar tempo.
Hoje comecei a sentir que fui enganado. A casa, afinal, não é minha. Continuo a ser um hóspede, ainda com a agravante de não poder ameaçá-los com a minha saída. Tenho de ficar. Fui aumentado cinquenta escudos, com os desejos de muitas felicidades. Se as felicidades se pudessem comprar com dinheiro tão reles.
A vida da Irene deve ser um inferno. Adora-me e sofre com os reparos da mãe. Quis ir ao escritório, e foram recomendar-me que o meu sogro não gosta que eu vá para lá. Só então comecei a ligar os factos. Na casa de jantar, já sei que sou indesejável, e não tenho ambiente no quarto. Fica-me a cozinha e a casa de banho. Até na casa de banho há recomendações especiais para não sacudir a cinza do cigarro para o chão. Sinto que me tolhem os movimentos e o Meireles faz-me falta para desabafar. Preciso de alguém para meu confidente. Aqui todos estão contra mim - até o gato. Eu, não suporto gatos, sou obrigado a andar com este ao colo só para que a minha sogra não tenha algum ataque de nervos. Se me demoro na rua, ralham-me. Se venho para casa mal saio do escritório, acham que lhes dificulto a lida. Se saio cedo, é porque tenho entrevista; se abalo tarde, é porque estou confiado neles e não me importo de ser despedido.
Já não vou com a Irene à missa. A minha sogra chamou-me um nome que me fez corar dos pés à cabeça. E disse-o tão alto que na rua ouviram-no, com certeza.
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É capaz . . . Estas coisas dispersas só agora ganham relevo no meu entendimento. Andava obtuso, perdido, sem
carinhos da Irene. Se lhe digo tudo isto, ela chóra e desaba o temporal que ainda não rebentou, mas que está prestes.
Os negócios do meu sogro vão mal, e queriam que eu adivinhasse. Parece que o sócio lhe impõe a saída ou a compra da quota - foi a novidade que a Irene me trouxe para a cama. O meu sogro não pode adquirir a parte do outro e tem de abandonar a sociedade. A minha.^ sogra mandou comunicar-me que passarei a fazer a entrega do ordenado por inteiro. Se não acreditasse ainda na sinceridade da Irene, suporia que me lançaram o anzol com o isco dos trezentos escudos e agora me querem despojar de tudo.
Acabou-se o cinema. Se quiser fumar, tenho de lhes pedir dinheiro. Se precisar de ir à Baixa, ou vou a pé ou mendigo dez tostões. Fico numa situação de interdito e de miserável. Só havia uma solução, mas eu não quero magoar a Irene - arranjar uma amante rica que me desse dinheiro para as despesas pessoais. Não posso, não devo adoptá-la. Mas assim é impossível viver.
A Irene desapareceu hoje entre mim e os outros. Acabou-se um resto de respeito que ainda me guardavam e falámos cara a cara. O meu sogro disse-me coisas inconcebíveis. Só havia a solução de lhe bater e abandonar a casa. Mas que se diria de mim? Propus à Irene irmos viver para uma pensão. Recusou-se e chorou. E só eu, lá porque sou homem, segundo dizem, não posso chorar e ter caprichos. Isto vai acabar mal. A criada pressente a minha situação e olha-me sem respeito. Pedi-lhe um copo de água e respondeu-me que tinha muito trabalho - que fosse buscá-lo.
Acabou-se tudo, não há dúvida. Já nada resta por salvar - nem a honra, nem o dinheiro. Aproxima-se o fim do mês e vou ser o portador do ordenado que ganhei, passando-o das mãos do patrão para as da minha sogra. Talvez por isso estou a fumar mais do que nunca. E não me conformo. Não posso conformar-me.
Fiz disparate. Agarrei no dinheiro, fui jantar fora e meti-me num clube. Quando apareci de manhã em
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casa, só trazia trezentos escudos. A Irene não dormiu toda a noite, angustiada com a minha ausência, e obrigou o pai a telefonar para os hospitais e para as esquadras a perguntar por mim. Só fui bom enquanto me julgaram morto.
A Irene parecia um fantasma a penar pela casa em diálogos imaginários, cortados por crises de choro e convulsões gritadas. Confessou-me depois ter julgado que eu fora suicidar-me. Sentira-se viúva -pobre Irene! - enquanto eu me embalava em valsas e tangos ou tinha ataques epilépticos em swings alucinantes nos braços das "borboletas" do clube. Estou arrependido - pela Irene, é claro.
Os meus sogros, quando me viram entrar, ainda correram ansiantes para mim; pensavam talvez que eu era um morto provisório, vindo a casa para fazer despedidas; mas, logo que sentiram o bafo do álcool da minha boca e o ar folgazão com que lhes atirei os bons-dias, caíram sobre mim num despropósito de insultos. - Que eu queria matar-lhes a filha, que era um pedaço de malandro... (O meu sogro ainda fés esta concessão, porque a mulher afirmou, sem rebuço, que era um malandro completo.) Que vivia à custa deles e preferiam ver a filha morta a sabê-la obrigada a suportar-me o resto da vida.
Quis tomar uma atitude soberana e só me apetecia cantar, tomando a minha sogra nos braços para uma conga ou um slow. Esfrangalhá-la, talvez, mas larachando e rindo, como se ainda estivesse no clube, de carapuço na cabeça e balão no dedo.
Fui dormir. Antes que o sono me chegasse, a Irene fez coro com eles perfilhando os seus insultos. Naquele momento não a tomei a sério. Agora, porém, sinto que tudo acabou. Entreguei-lhes os trezentos escudos e jurei dar-lhes os duzentos quando voltasse do escritório. Acabo de lhos dar. No escritório ninguém mos emprestou nem o caixa me fés o abono. Também não sei como iria resolver esse problema no fim do mês. Só agora compreendo como se fazem disparates quando se está perdido. Fui empenhar o relógio e a corrente que o papá me deu no dia em que passei no meu segundo ano da escola. Se ele o adivinhasse!... Estou a vê-lo cofiar o bigode e ajeitar as lunetas, antes de me fazer o discurso da entrega solene daquela lembrança, em que se referiu à
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necessidade que havia de me tornar um homem para sua honra e da nossa família.
Agora...
Deveria fazer a mala e abandonar esta casa, onde não sou mais do que um hóspede, sem direito a protestos nem a críticas, mesmo veladas. Tenho saudades da Aurora, da franzina e do Meireles. Recordo com emoção o meu quarto de solteiro, os meus desesperos pelas demoras do banho e o salão de cinquenta escudos que me sobejava todos os meses. Agora nada me sobeja - nem esperança. Nem sequer força de vontade para defrontar a única atitude digna que deveria tomar. Tenho medo da rua; de me ver só com a mala de viagem e não ter quem me acolha. A única viagem que podia empreender, arrepia-me - o comboio. ^Estender-me nos carris como se fosse dormir, e esperar o silvo, fixando o olho luminoso que avança, e deixar que tudo acabasse. Não haveria outra solução. Há esta outra de ficar e não ter vergonha da certeza definitiva de me saber cobarde.
Serei um cobarde. Aquela vida fácil que tive até ao dia em que roubaram o meu pai relaxou-me a personalidade, a confiança na luta e a condição humana que todos os homens trazem do ventre das mães. Fico contra os três. Contra, não é bem. Já não tenho personalidade para estar contra qualquer coisa. Estou só. E assim ficarei até um dia ...Se alguma vez eu pudesse escrever um R e um E à frente desta palavra! SOBRE! É ainda e sempre o meu destino. Sobre, sobra, sobejo. É tão fácil pôr um acento em cima do o... Mas tenho agora a certeza de que nunca serei capaz de fazer uma coisa tão simples na minha vida.
Fiquei um sobejo, um resto, qualquer coisa que anda a mais pelo mundo.
Há dois dias que não escrevo uma linha nestas folhas de papel. E que havia de escrever? Tenho vindo de abdicação em abdicação e envergonho-me de me confessar incapaz de tomar uma atitude honesta. É uma confissão que custa ... Podem os outros julgar-nos o pior possível, que nós ficamos ainda com capacidade para nos iludirmos. E eu já de nada disponho que possa justificar-me. Concordo com os outros, e isso é a última abdicação.
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Pensei deixar de comer, e não fui capaz. Idealizei sair de casa, deitar-me nos bancos de jardim e cair faminto na rua - tudo isto me pareceu romântico. Não sei corresponder às carícias da Irene, que se sente arrependida com o que me disse. As suas palavras, porém, não me esquecem mais. Preciso de fazer qualquer coisa - um disparate, certamente. Sinto-me incapaz de me controlar. Não tenho um amigo que me aconselhe ou um carinho onde me acolha para sarar estas feridas.
Se eles não tivessem ido para África!... Julguei-me livre com a sua partida, e fiquei mais preso do que nunca. Só me ficou um resto de dignidade para lhes esconder a minha situação. Não é dignidade, afinal. Não passa de orgulho idiota para as únicas pessoas que me compreenderiam.
Já agora, fico com este orgulho para guardar alguma coisa de meu e ter a vaga noção de que vivo ainda. Que vou fazer? ...
Vivo ainda. Quero ficar frente a frente com estes três inimigos que prometeram amesquinhar-me. Provoquei um conflito no escritório e fui despedido - esperem agora pelos meus quinhentos escudos. Disse-lhes hoje ao almoço, e não sou capaz de descrever os seus gestos destrambelhados, as expressões de ódio e sofrimento, as palavras de acusação que me atiraram. Comi com um apetite devorador; há muito tempo que não almoçava com tanta vontade. Ainda vivo! ...
Fiquei vingado. A situação financeira do meu sogro complicou-se. Andam todos a chorar pelos cantos e só eu estou aqui no quarto, a escrever e a assobiar. Nunca assobiei com tamanho entusiasmo. vou procurar emprego; se tiver sorte, ainda os auxiliarei. Então chegará o momento da minha tirania. É talvez mesquinho, sim, mas a educação que me deram só permite duas alternativas: ou cobarde ou tirano. Já fiz o primeiro papel, o mais difícil. Resta-me agora o outro. Chorem os três, enquanto eu assobio e preparo a desforra. Talvez acarinhe a Irene para a humilhar. Não tinham outras intenções as carícias que me dispensou durante a crise que sofri. Vão acabar os chás de sexta-feira com as do Pimentel, as vaidades dos concertos e a criada. Se ela não
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fizesse escândalo, ia esta noite ao quarto da Lucinda. Era mais um ultraje.
A vingança não me parece fácil. Fui hoje ao terceiro escritório donde se dignaram chamar-me, depois de ter respondido a dezenas de anúncios. Após a prestação de provas, fui à presença do gerente. Tinha tipo de gladiador, com cara de leão. Olhou-me de soslaio, como se tivesse receio de se sujar na minha humildade, e interrogou-me à frente da dactilógrafa - talvez para vexar a minha mocidade.
- Traz cartas das casas onde prestou serviço?
- Só conheci um patrão.
-Tem pouca prática, portanto.
- Seis anos ...
" -É POUCO.
<" -Depende da aplicação.
- -Dispenso orientações ao meu critério de escolha. Ficou um grande silêncio entre os dois. A dactilógrafa sorriu e eu corei. Um empregado qualquer entrou com um papel na mão e foi recambiado com gritaria.
- Tem alguma carta da casa onde esteve?
- Não, senhor. -< -Porque saiu?
- Um conflito ...
- com algum colega ou qualquer falta de outra espécie? ... Percebi a insinuação.
Não sei se no olhar que lhe atirei pus alguma intenção especial. O certo é que me convidou a sair, desatando aos berros quando não atendi prontamente à sua intimação.
- A fortuna de V. Ex.a foi feita em conflitos com cofres? - perguntei-lhe.
- Saia!
- Antes de sair, gostava que me explicasse.
- SAIA!
A dactilógrafa deixou de sorrir e olhou-me com espanto. Comecei talvez a fase de tirano.
- Sairei, evidentemente, meu caro senhor - disse-lhe com calma aparente.
Preferiria dizer-lhe "meu caro pulha".
- SAIA!
Tocou a campainha, houve balbúrdia no corredor, mas deixei o seu gabinete com uma lentidão de movimentos
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de autómato a que a corda começasse a faltar. Fiquei satisfeito comigo. Parece-me que o desespero, o último degrau da vida, leva o homem a grandes transformações.
Volto a desiludir-me. O emprego não chega mais. Confrange-me ver a Irene abandonada, sem preocupações de se embelezar, suspirando pelos cantos, olheirenta e triste. A minha sogra continua altiva para mim, olhando-me com um ódio que não deixa dúvidas. Já o marido, tornou-se mais conciliador, depois de que teve de aceitar uma situação precária. Chamou-me ao seu escritório e conversámos acerca do meu caso. Concordou no interesse que tenho posto na procura de emprego e contou-me as suas mágoas - chorou. Lembrei-me de meu pai e comovi-me. Sou um afectivo complicado, que me arrebato interiormente mas que receio as minhas atitudes, agora que dei um balanço à vida sinto que quase sempre me enganei.
Apavora-me o dia de amanhã. Quero prosseguir e atemoriza-me a ideia de que posso falhar. Falta-me um estímulo. Já não me basta a decadência do pai da Irene, porque a realidade sufocou-me a esperança. Algumas vezes entretenho-me a sonhar, mas os sonhos amargam - sinto que não tenho capacidade para a sua realização. Deste modo, os sonhos tornam-se-me pesadelos.
Só eu ainda estou de pé. Esgueirei-me para o escritório, e aqui me entretenho a escrever, enquanto os outros sossegam. Talvez não sosseguem também. Penso na minha sogra - é capaz de ter razão. Deve ter concebido para a filha um futuro deslumbrante e tortura-a esta realidade que eu lhe trouxe. Eu represento a realidade crua. A culpa deve ser minha. E não será de qualquer outra coisa? Mas de quê?! ...
A propósito de não me apetecer o almoço, tivemos hoje nova discussão, mais violenta do que as anteriores. Eu disse coisas inconcebíveis e ouvi acusações tremendas. Devia sair de casa. Compreendo-o, escrevo-o, mas sei que continuo. E talvez seja o mais difícil, afinal. Cobardia, é sem dúvida. Reparo que a cobardia é semelhante a um acto heróico, embora pareça um oposto. Nem todos são capazes de ser cobardes. É necessário
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recalcar-se tudo, amarfanhar ímpetos, esmagar sentimentos e degolar aspirações.
Mas como gostaria de não ser cobarde!
No seu banco foi sentar-se uma mulher com uma criança ao colo. Fechou o caderno num impulso, como se ambas pudessem ler as notas que escrevera. A criança pairou para ele e quis saltar-lhe para os braços. Fingiu ignorar o gesto e voltou-lhe as costas
"Daqui por alguns meses seria pai: Iam surgir novas preocupações na sua vida, e nem tinha poder para defrontar as actuais. A Irene quereria arranjar um enxoval que os não envergonhasse e ele não poderia satisfazer-lhe essa aspiração."
A criança continuava a insistir, porque se lhe pendurara no ombro, como a pedir-lhe para que se voltasse.
--Deixa o senhor.
- Não faz mal. É seu filho?
- É. sim. Ele julga ver o pai em todos os homens.
-Não tem pai?
- Tem, mas... É um doido. Deixou-me com a Criança. Acho que foi para a América.
- A passagem é muito cara.
- Foi clandestinamente.
-Ah!...
E se fosse para a América? Mas... E se os sogros desaparecessem? Viria a mulher com o filho nos braços para aquele jardim, ou outro qualquer, contar a quem calhasse que o pai fugira. Passariam fome ... Não podia partir. Precisava de um emprego, fosse qual fosse. Ainda hoje respondera a um anúncio e esperaria mais uma resposta. Depois havia que se decidir por qualquer trabalho. Era novo, tinha forças ... Só lhe faltava a força para se dominar.
"-Boa tarde. Se tivesse alguma coisinha ..." Rebuscou nos bolsos e achou uma moeda, que deu à mulher.
"-Deus Nosso Senhor o abençoe. "•-Adeus. Tenha sorte com o miúdo." Poderia anotar aquele encontro nas suas memórias. E para quê? O que escrevera era o ponto final de tudo. Ou encontrava caminho para sair daquela situação, ou ... nada. Um novo problema, e para o resolver só contava com o mesmo espírito minado pela dúvida.
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O jardim animava-se com o bulício de outras crianças que corriam por entre os canteiros e saltavam os bancos. Criaditas de avental branco derriçavam com soldados folgazões e atrevidos. Os velhos tinham mudado de sítio, arrastados pelo rodar do Sol, continuavam, por certo, nas suas caturrices.
Se a Irene quisesse ... Não quer, com certeza, e eu não posso impor-lhe a minha vontade. Não tenho o direito de lhe fazer imposições. Só posso conceder. Um filho... E agora? ...
Estugou o passo para fugir a interrogações, mas elas não o largavam.
E agora? ... E agora?.
Procurou as ruas ruidosas, para que a multidão esmagasse aquela certeza, e não conseguiu esquecê-la. Antes lhe pareceu que toda a gente fazia a mesma pergunta, abrindo alas para o ver passar e sorrir da sua cobardia.
E AGORA? ...
Não podia correr sem que o tomassem por um louco, e tinha de suportar a insistência do interrogatório. Por entre duas filas de casas, o rio azul acenou-lhe lá de baixo, manchado pela presença de um navio que fumegava.
E a América? .. E a África? ... Os pais ... Esses tinham abalado, e a situação não seria, por certo, tão desesperada como a sua. Se pudesse arranjar forças para um suicídio! ... Mas o filho... E agora?! ...
UMA PEGA DE CARAS
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como a mulher lhe chama numa ternura palonça, acorda com a boca a saber-lhe a oito séculos de historia. É assim que ele define as bebedeiras de vinho tinto, bacalhau na brasa, bem assadinho com tiras de toucinho metidas no meio das lascas, e fado castiço com marialvas e galdérias. Abomina o fado revisteiro. Acha-o delinquente e insosso.
Foi empregado de escritório, pegador de toiros num afamado grupo amador e já empandeirou para os Prazeres, com o Alfa da velhinha, um Alfa vermelho granãsport que ela lhe ofereceu numa viagem a Madrid dois peões destemidos e suicidas que ousaram sair do passeio quando, na Avenida da República, ele lhe abriu as goelas para ver quanto dava: cento e oitenta em pouco mais de cem metros, pá, aquilo é um bólide, uma seta, pá. Deu cento e oitenta, dois mortos e um prejuízo danado à companhia de seguros, que pagou sem grande banzé com ele, embora discutisse à finca com a família das vítimas a indemnização exigida pelo advogado.
(Esta gente pindérica julga-se com a sorte grande quando alguém do mesmo sangue fica esmagado debaixo de um automóvel de grand-sport. Se morrem num desastre de trabalho, aguentam-se com dois ou três centos de mil réis por mês, e viva o seguro social! São uns malandrecos! Não passam de uns malandrecos sem classe para patifes ...)
Quando se sente ao volante do Alfa-Romeo, Miguço lembra-se dos toiraços que pegou no seu tempo de forcado e desmanda-se em fúrias taurinas, não se percebe se por vingança de duas costelas e uma clavícula partidas em hora de mau embarbelamento nos cornos de dois malessos. A verdade é que se desvanece a espantar peões, embora dos toiros lhe tenham vindo honras e proveitos.
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A segunda colhida trouxe-lhe a velha.
Corrida de gala, coches na praça com os cavaleiros, capinhas à moda antiga e forcados a conduzirem a azémola das farpas. Todo ancho e pamparreta, Zé Reis passou o olhar ladino e sabichão pelos lugares da barreira de sombra e deu com Dona Antónia Mazagão e Pavia a abanicar-se, derriçada, entre gente de ares. E logo aí mesmo a imaginação lhe atirou um pincho:-O primeiro toiro que se pegue de caras é para mim - intimou para o cabo do grupo. - Preciso de me casar...
Bem dito, bem feito.
Depois de corrido e farpeado, ficou na praça um toirão borralho com toda a barba. Quinhentos quilos, córnea aberta, morrilho em bossa e uma alegria vibrante para cada vulto que lhe passasse ao alcance da vista frouxa. Parecia o bicho que nem levara castigo de sete bicos de garrocha.
E aí se abre o clarim da direcção da toirada no toque para a unha. A praça em peso cinde-se num sussurro de espanto e logo se fecha em silêncio de ansiedade.
Os homens do forcado saltam à arena.
Zé Reis vai numa corrida ligeira até defronte de Dona Antónia, desbarreta-se e oferece-lhe a pega, bichanando qualquer saudação que ninguém ouve. Os amigos da fidalga aplaudem-na e o forcado atira-lhe para as mãos, ao jeito de espadachim, o barrete vermelho e verde. Junto à trincheira da sombra-sol um capinha dá duas trapadas à fera, obrigando-a a fixar-se nas tábuas, que corre com o focinho atento.
Já com os companheiros em fila, Zé Reis agarra uma mãozada de areia, que esfrega nos dedos, e olha para o Sol com bravata. Sorri depois com o lábio inferior a tremelicar.
E a toda a largura da praça, de cabeça bem levantada, braços arqueados e mãos à altura da anca fina, desafia o toiro borralho.
- Eh toiro real! ...
Avança três passos em bicos de pés, puxa a jaqueta de ramagens à camisa alva e grita com timbre de barítono:
- Eh toiro bonito! ... Toiro! Eh toiro real! ...
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O bicho sacode a cabeça possante e revolve-se. Ficam ambos de frente, Zé Reis vai ainda a menos de meia praça.
E daí empina o corpo, balouça-o com galhardia e pranta as mãos entre as ancas e as coxas: - Eh toiro! ... Eh toiro bonito! ... Atira-se pimpão para dois passos com o busto para trás, pára-se e bate as palmas. O toiraço estremece o morrilho e rompe carreira pela arena doirada, de hastes em riste e olhos vivos para o vulto que o espera no centro da praça, nem mais um passo, ali mesmo, no sítio dos valentes.
Zé Reis benze-se por dentro e estremece por fora. Cresce o toiro que nem um prédio de casas, onde o filho da mãe tinha a cabeça, o forcado cede-lhe terreno curto, não entende depois o que se passa, embarbela-se, vai de abalada não sabe para onde, se o toiro enfiou com ele pelo chão dentro e quer pô-lo lá nos infernos do ventre da Terra, ou se o borralho ganhou asas e anda a sobrevoar Lisboa como um avejão. Só percebe que o sacode, que procura desfeiteá-lo, embora Zé Reis quase beba o sangue que o toiro leva no morrilho retalhado pela farparia.
Logo depois um alarido ao longe, uma pancada nas costas e um ruído de terramoto, por onde ele se esvai, sem gritar por socorro.
O resto, contaram-lhe depois os companheiros. Na enfermaria, quando deu por si, o médico falou de clavícula partida. Desmaiada na barreira, Dona Antónia foi levada a casa com o coração negrinho de dor, enquanto a praça assobiava o inteligente por ter mandado pegar um "comboio".
Mal se achou melhor, Dona Antónia correu à casa de saúde para saber do moço bonito e galhardo que lhe dedicara a pega mais emocionante de toda a sua vida de aficionada. Zé Reis tinha unhas, conversa e uma grande vontade de ser rico.
Dona Antónia Mazagão e Pavia não se assustou com a biografia que os amigos lhe fizeram do forçado e tomou-o por esposo numa igreja de Lisboa, sem fastos nem lágrimas.
Dentro de semanas, Zé Reis passou a Miguço. E a cabeça do toiro que o desfeiteou, e lhe deu quase quatrocentos hectares de terra de pão e cortiça, pende,
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embalsamada, na parede principal da sala nobre dos Pavias, ainda com as hastes agudas levemente voltadas para o sofá que o dono da casa prefere nas horas de descanso.
Azedo, Zé Reis acordou há minutos com a boca a saber-lhe a oito séculos de história e o coração do tamanho de um bago de milhete. Preferia dormir agora durante quinze dias. Uma das raparigas que se estampou com ele esta madrugada, a antropófaga, a que chorava para irem tomar banho em pêlo no Guincho, é, sem tirar nem pôr, a filha de um gajo muito chegado ao governo. O raio da garota já sabia mais do que ele lhe ensinara, mas podem acusá-lo de desviar menores, ensarilhando-o ainda na morte dos dois homens atropelados. Felizmente que no carro ia a outra, a incógnita, e essa prontificou-se a tratar do- caso na redacção dos jornais, onde o marido dispõe de influência suficiente para se dizer que os três regressavam da reunião preparatória de uma canasta de caridade. Miguço não perde o sentido do humor: pensa que a canasta de caridade reverte a favor dos maridos cegos e surdos. - E ri-se.
Toca campainha para a criada, manda vir o primeiro almoço e os jornais da manhã. Entretanto, cogita na explicação que há-de dar à Dona Antónia por causa do carro. Deixou-o numa miséria na Avenida da índia, parece um harmónio fechado; nem sabe como saíram vivos lá de dentro. A garota teimava em regressar, queria à força meter-se de molho, e atirara-lhe uma guinada ao volante; aí se enfiaram por um tapume.
Como vai dizer isto à mulher?! ... Medo dela não tem, nada disso. Só receia enervar-se com a conversa e atirar-lhe alguma palmada que a moleste. Não gosta de ouvir mulheres a atravessarem a conversa; parece que a vertigem das palavras as faz meterem-se por caminhos donde saem com um olho negro.
Dona Antónia é fraca, vai nos sessenta, sofre do coração e ele nunca lhe pôs um dedo em cima, quanto mais a mão com o braço agarrado, o que dói mais do que tudo e Zé Reis é o Alfa. Sem carro, não se acha gente; o automóvel faz parte do seu corpo, só dentro dele se sente capaz de pensar. E a mulher jurou-lhe que não comprará outro antes do fim da guerra. Quando acabarão os alemães com os aliados? ...
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Mal a criada entra no quarto, pede-lhe os jornais e abre o Notícias nas páginas da "Cidade". - Sim, quer leite, uma chávena de leite sem mais nada. - Corre as duas colunas por três vezes, não lhe passe o desastre, e respira o ar de meia altitude; depois apressa-se em saber se os outros mantêm o mesmo silêncio e vasculha-os com frenesi. Quando percebe que por ali não há novidade, atira os jornais para cima da alcatifa e cerra os olhos em calma plena, como se chegasse ao cume de uma montanha. Lembra-se do ar das montanhas suíças- um ar fino e saboroso que retempera; tem-no ali naquela manhã lisboeta, às dez horas e um quarto, servido pela discrição de jornalistas compreensivos. Ainda bem. A ideia de se embaraçar com políticos por causa da miúda começara a apavorá-lo.
- A senhora já saiu do quarto? - perguntou com aparência de distraído.
Num sorriso de galanteio, a criada informou-o de que a Sr.a Dona Antónia dera ordens para não receber quem quer que fosse. Nem mesmo o senhor...
Zé Reis pressente tempestade. Manda cerrar as janelas, também ele tomará as refeições no quarto; se alguém telefonar, diga que saiu para o Alentejo, conta demorar-se talvez duas semanas.
Resolve castigar-se no aljube do quarto Dona Maria II.
Mas ainda a criada não passara a porta, já ele a chamava com alvoroço.
Salta da cama, veste o roupão e procura papel na escrivaninha.
- Olha, Maria da Luz... vou escrever umas cartas e preciso que tu mesma as venhas aqui buscar.
Procura na carteira uma nota de vinte escudos, só encontra uma de cinquenta e arrepela-se por dentro com o preço do serviço. Mete a nota na mão da serva e deixa-lhe uma carícia nos dedos.
- Quando te entregar as cartas, arranja maneira de entrares no quarto da Sr.a Dona Antónia. Diz-lhe que tens de mandar o chauffeur ao Rossio. Confio na tua malícia... A Sr.a Dona Antónia não deve suspeitar deste encargo que te dou ...
Abre as páginas dos anúncios, passa-as com atenção e assinala dois. Pensa nesta altura que precisa de fazer mais uma pega de caras, mas a um toiro de oito cornos.
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Depois acende uma cigarrilha, que antes descascara da primeira capa, e começa a escrever:
Excelentíssimo Senhor
Lê e hesita. Amarfanha o papel nos dedos, puxa de outra folha e recomeça:
Ex.mo Senhor
Acabo de ler o seu anúncio no jornal maz hoje e gostaria de falar pessoalmente com V. Ex.a sobre o assunto do mesmo, pois tenho longa prática de escritório, de cujo serviço me afastei por razões particulares, de que darei a V. Ex.a conhecimento sob reserva de palavra de honra.
Zé Reis, o Migudo, sorri com o ardil. Pensa que vai ter um carro novo antes de a guerra terminar. A cigarrilha sabe-lhe bem.
Não faço questão de ordenado. Basta-me uma remuneração simbólica para os meus gastos particulares. (Lembra-se de que derrete todos os meses mais de dez contos e assobia o fado menor.) Acabo de sofrer um grave desgosto e necessito de fazer uma cura pelo trabalho. Garanto pontualidade. Não me preocupo com a humildade do serviço, pois considero que a humildade é uma virtude a cultivar por todos nós, principalmente quando a consciência nos dói. (Em que sítio ficará exactamente a consciência?) Dou todas as referências pessoais e bancárias que V. Ex.a exigir.
Escreve o fecho da praxe, com as considerações e as estimas, os veneradores e os atentos do costume, relê a prosa com cuidado e assina. Quando mete a carta no sobrescrito, pensa que resolvera escrever outra, mas sente-se invadido por uma grande moleza, uma preguiça esquisita, com dores nos braços e nas pernas. Devem ser os sinais da traulitada. Como estará a antropófaga?! ...
- Maria da Luz! ... Luz! ...
Mal a criada entra, entrega-lhe a carta e despede-a com um piscar de olho.
- Se a Sr.a Dona Antónia perguntar por mim ...
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- Digo-lhe que o senhor não quis tomar o pequeno-almoço e que está muito abatido ...
- Como sabes?!
- Tenho um dedo que adivinha... O Senhor está com muito mau parecer.
- Arranja-me uma limonada ...
E com a criada já no corredor, despe o roupão e vai a espreguiçar-se até junto da janela. Aí espreita pela cortina, entretendo-se por momentos a olhar o jardineiro na azáfama da manhã.
Sente a língua grossa.
Sorrateiro, vai meter-se de mansinho entre os lençóis ainda quentes. Um arroto revolve-lhe o estômago dilatado.
-Eh sua besta! ... - sussurra num gracejo.
E, num sorriso de paz, cerra os olhos ralaços.
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Era a sua primeira tarefa de todos os dias - levantar-se cedo e correr à mercearia para ler o jornal da manhã, vasculhando as páginas de anúncios para tirar os apontamentos dos que pediam empregado. Respondera a dezenas deles, calcorreara ruas, subira escadas, esperara horas sem conta que fosse recebido, para no fim ficar sempre com a mesma incerteza daqueles quatro meses, depois que fechara o escritório da firma onde passara parte da sua vida.
Desistira alguns dias de procurar, já vencido pela descrença, rmas tinha sempre de recomeçar o mesmo calvário' tomar notas, escrever cartas e ficar à espera de que o chamassem. E as semanas decorriam sempre iguais, metido no quarto que alugara para poupar os sapatos e a última farpela que lhe restava, pois os outros e a gabardina estavam depositados na casa de penhores, a troco de avaliações baixas que o salvaram de apuros no fim do mês.
Acabara por montar uma escrita dos anúncios a que respondia, depois que o chamaram a um escritório e ficara embaraçado sem saber de que se tratava.
"-V. Ex.as pediam
"- Não se lembra?"
Corara de vergonha, ele que podia ser pai do rapaz que o interrogava, balbuciando desculpas, encolhendo os ombros, cada vez mais contrafeito do seu ridículo, mas incapaz de se recompor, como se dentro dele houvesse um outro homem que o quisesse comprometer e afogar-lhe a personalidade em gestos de pobre diabo. Enervara-se de tal modo que não conseguira fazer a prova que lhe apresentaram para um lugar subalterno, ele que fora guarda-livros de boas firmas em Lisboa e em África. A mão tremera-lhe, incapaz de desenhar
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o seu cursivo inglês, o cérebro baralhara-se sem poder assimilar os números alinhados para uma soma, confundindo-o a ele, que era uma máquina de calcular com vinte e cinco anos de prática em escritórios de vários ramos.
Pedira licença para fumar um cigarro, na esperança de ganhar calma, mas não pudera recompor-se, esmagado pelos olhares dos outros que o miravam de soslaio, sorrindo-se talvez da sua calva e do nariz vermelho que lhe dava um ar de bêbedo, quando não bebia há muito um gole de vinho, por causa da doença de fígado que contraíra em África.
Lembrara-se dos seus tempos de chefe de escritório, tão respeitado por patrões e temido por subalternos. Estivera ali para servir de gáudio a rapazolas que talvez não se entendessem com um simples registo auxiliar, quanto mais terem capacidade para se medirem com ele em aberturas e fechos de escritas comerciais ou agrícolas, industriais ou bancárias. Quisera recalcar a afronta, esquecendo os sorrisos e os olhares, para só ficar aquele papelucho insignificante que estava à sua frente e seria um "figo", como ele dizia nos bons tempos em que usava colarinhos de goma, tinha casa sua e dominava dezenas de empregados.
Antes, porém, de ganhar domínio sobre os nervos, um dos rapazolas viera avisá-lo de que não valia a pena continuar.
"-Já terminou o tempo fixado para a prestação da sua prova. O Sr. Guarda-Livros pede-lhe que se retire, pois há mais concorrentes à espera."
Se pudesse naquele momento evaporar-se e sair pela janela como o fumo do cigarro, teria evitado a cena que o esmagara durante muitos dias e ainda agora o embaraçava, pondo-o trémulo sempre que era chamado a prestar provas de admissão. Chegava algumas vezes a desejar que o esquecessem, deixando-lhe somente aquele pretexto de dar respostas a anúncios para que se pudesse iludir.
O aviso causara-lhe o efeito de uma chicotada. Sentira-se balouçar na cadeira, como se uma força poderosa quisesse atirá-lo para debaixo da secretária e escondê-lo dos olhares dos outros. Mas reagira de pronto; pusera-se de pé com a vista toldada de sangue, capaz de naquele
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momento estrangular o rapazote que viera muito solícito comunicar-lhe a decisão do chefe.
"-Fui guarda-livros de organizações poderosas, saibam os senhores todos. Só não fiz esta prova porque a julgo reles de mais para os meus recursos."
Na sala ficou um grande silêncio. Todos os olhos se fixaram nele; o chefe, que podia ser seu filho, levantou-se, ofendido, e pôs-se a caminhar para o fundo da sala, talvez na esperança de atemorizá-lo com os seus passos decididos.
"-Não temos tempo para atender pessoas no seu estado - disse, com desprezo.
"-No meu estado?
"-Exactamente. O senhor... está bêbedo, e não dispomos de paciência para lhe servirmos de soda ou de amoníaco.
"-Bêbedo, eu? Eu, bêbedo?"
E todos se riram dele. Primeiro à socapa, depois de rosto descoberto, até ao coro de gargalhadas que submergira o que dissera em resposta.
Imaginou-se de repente envolvido por um carrocel de faces vermelhas, olhos lacrimosos e bocas abertas. E ele no meio, como um faz-tudo de circo, vergastado pelo riso histérico dos empregados; depois as gargalhadas saíram para o corredor e acabaram por contaminar os que estavam à espera de prestar provas. Rodeavam-no centenas de rostos descompostos pela hilaridade e de dedos que o apontavam para depois se converterem em bocas que riam e lhe gritavam também:
"-Bêbedo! Bêbedo! Bêbedo! Eh pá, vais com uma perua! Que grande grossura!"
Num acesso de ira, amarrotara o papel da prova e atirara-o ao guarda-livros - quisera transformá-lo numa bola de ferro que lhe fendesse a cabeça, fazendo-a abrir como castanha no fogo. Se o tivesse conseguido, todos se calariam, por certo. Mas a bola caíra no chão, aumentando ainda as gargalhadas daquele povoléu imaginário que o envolvia e dançava à sua volta, de mãos dadas, num coro infernal de apupos e graçolas.
Quisera abalar pela escada abaixo, num último recurso. A roda infernal fechara-se porém sobre ele e não o deixara passar, por muito que tentasse encontrar uma aberta para fugir.
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No meio de todos, de parceria com ele, o guarda-livros que podia ser seu filho repisava as palavras, o malandro, e levantava as mãos numa ameaça:
"- Pois se o senhor nem sabia a que anúncio vinha responder... com essa idade, bem podia ter juízo. Vá-se lá embora, ande! Desapareça da minha vista! ..."
Lembrou-se daquele maldito nariz vermelho de bebedolas que o traíra; recordou-se do tempo em que um gracejo seu fazia delirar os subalternos sempre à espera de lhe agradarem ao pretexto mais pífio.
"-Saia! Lembre-se de que tem mulher - insistiu o guarda-livros.
"-Já não tenho mulher - gritou-lhe, numa ira queixosa.
"-Ainda bem, coitada."
O riso voltou a crescer. Então, num desespero para não chorar, sentira que devia fazer alguma coisa. O quê?! ...
O silêncio só voltou quando o tinteiro que tinha à mão se quebrou na parede e encheu de tinta a cara do guarda-livros. Nesse momento todos se levantaram para lhe caírem em cima. Abanaram-no, socando-o deram-lhe empurrões, enquanto o rapazola que viera fazer-lhe a comunicação o agarrava pelas bandas do casaco e o puxava para a escada.
"-'Entrega-se à polícia
"-Malandro!
"-Bêbedo!
"-Precisava que o desfizessem a murro."
Quisera pedir-lhes clemência, repeso daquele acesso de dignidade, mas compreendera que ainda se humilharia mais, completando aquele intervalo cómico que acabaria, como no Coliseu, com a choradeira guinchada do faz-tudo careca e de nariz vermelho. E só gargalhadas responderiam aos seus rogos, pois ninguém tomaria a sério um homem do seu tamanho e com cara de cómico.
"- Fui guarda-livros. Durante vinte e cinco anos dirigi escritórios de grandes firmas e tive sob a minha direcção centenas de empregados como os senhores."
Pensara fazer-lhes um discurso que começasse assim. Logo lhe ocorrera, porém, que algum deles se poderia lembrar de quantos homens haviam sido despedidos por sua culpa.
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Tivera sempre o preconceito do zelo. Vivera para a ânsia de se mostrar defensor abnegado dos interesses dos patrões, na esperança da gratificação anual ou ainda numa oferta de sociedade, que bem merecera a vida inteira e nunca alcançara.
Perdeu nesse momento a noção do seu caso para só lhe ficar o arrependimento.
Vinham todos esses, um por um, contar ali as suas queixas, relembrando pormenores que nunca o tinham embaraçado. O Pinto, o Gouveia, a Dulce, aquela rapariguita loira que lhe recusara um beijo e fora despedida por incompetente; a outra, a Manuela, que acedera as suas promessas e que mais tarde, quando o gerente soube daquela ligação, também abandonara o lugar. Meses depois, viu-a a sair da Taberna e passear na Baixa enquanto ele continuava como chefe de serviços na mesma firma, sem alarmes na consciência. O Silveira começara a tossir e a emagrecer, e um dia acometera-o uma hemoptise no corredor; lívido de receio e de angústia, pedira aosMiompanheiros que nada lhe dissessem, pois era o único amparo da mãe doente.
Solícito, ele fora ao gabinete da direcção falar do perigo que corriam.
"-Podemos todos ser contaminados, Sr. Godinho. Eu compreendo que é doloroso..."
Sentira depois que aquela expressão não correspondia aos seus sentimentos. Tomara essa atitude para que o director o julgasse capaz de se comover com a sorte de alguém, embora no fundo só vivesse para o escritório, defendendo-lhe a continuidade e o progresso dos negócios.
"-São estes os males do mundo que não podemos remediar. Não devemos, contudo, esquecer os outros, nós próprios e a nossa família. V. Ex.a corre o mesmo perigo, e é até possível que esteja disposto a suportá-lo por humanidade. Mas lembre-se dos filhos de V. Ex.a...
"-Tem razão, tem razão ...
"--Talvez se consiga uma cunha para o Hospital do Rego. Coitado do Silveira! O pior são as crianças de V. Ex.a e as dos outros empregados. Nós podemos esquecer tudo, menos as crianças, que são a certeza da perpetuidade da vida."
Dissera "perpetuidade" batendo bem as sílabas, num deslumbramento pela facilidade com que sabia
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improvisar. Sonhara com a banca da advocacia. Nunca perdera o gosto pelo buril da frase bem semeada de petardos verbais.
"-Amargura-me a sorte do Silveira. Mas talvez ele seja o culpado desta situação dolorosa. Esta gente de hoje quer esgotar a vida com alucinação. São os bailes, as mulheres, as noitadas ... E se Deus nos proporciona tudo isso, também não pode perdoar os que se perdem pela sua má conduta. O livre-arbítrio..."
E quando percebera o embasbacamento do Godinho, todos aplausos nos olhos para a sua eloquência, esquecera-se do Silveira, da tosse e da hemoptise, para desfiar a sua sabedoria em assuntos filosóficos. Depois do escritório, a filosofia tomava-lhe o tempo de que dispunha.
"- Deus confia-nos tudo. Até o pecado. Mas o arrependimento é a sua mais sublime concessão. Sem essa faculdade, haveria menos mártires e menos santos. E a existência perderia o sentido de um período transitório em que o homem caminha para as altas regiões, onde Deus o espera.
"-Mas o caso do Silveira ..."
Que lhe importava o Silveira?
"- Está no período do arrependimento. Veja V. Ex.a como tudo o que eu disse tem a sua aplicação. Para ele, resta-lhe a expiação dos seus pecados. É doloroso, talvez, mas faz parte da própria essência da vida material que Deus nos concedeu. Para nós, resta-nos a caridade. Talvez possamos fazer qualquer coisa nesse sentido. Eu estava a compreender o embaraço de V. Ex.a que, afinal, corresponde à sublimidade da sua consciência. Mas na obra da Criação nada esqueceu. A caridade lima injustiças aparentes. Pela minha parte, poderei... durante uns meses, é claro, dispor de dez escudos para o Silveira. Reuniremos aqui a comparticipação de cada um e mandar-lha-emos a casa no dia trinta de cada mês. V. Ex.a dirá..."
E o Silveira ficara sem emprego. E o Coelho da Costa, o Sepúlveda... Esse, porque se recusara a fazer umas horas extraordinárias com o pretexto de que andava com pontadas na pleura. Quando a boa razão - ele sabia-o de sobejo - era a mania de se revoltar contra as ordens que podiam conter qualquer proveito para a fábrica de sabões. Lá porque as horas extraordinárias
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não eram pagas, vá de inventar males de pleura. Fora despedido, sem remissão, a pretexto... nem se lembrava.
Mas tudo lhe ocorria naquele momento em que o polícia o acompanhava para dar conta na esquadra do tinteiro arremessado ao guarda-livros. E as gargalhadas que levava nos ouvidos pertenciam a todos esses que haviam conhecido a sua soberania de chefe, vindo por vingança até ele, para lhe lembrarem que "o arrependimento é a mais sublime concessão de Deus".
Quando se vira no calabouço, tivera um acesso de revolta; tentara desfazer as grades nas suas mãos frágeis, só habituadas ao contacto da caneta, do papel e da raspadeira. E mesmo da raspadeira ... Sabia do seu ofício e pouco precisava dessa ajuda.
"-É uma injustiça, Sr. Chefe. /"-Cale-se, homem. Não fale em injustiça. Não fale nisso porque ainda se enterra mais - lembrara-lhe o guarda, condoído.
/ "-E não falo porquê? Apoucaram-me como se fosse um garoto qualquer, a mim ...
"-O senhor deve ter cuidado com a bebida. É uma vergonha ..."
Percebera finalmente que devia esperar, voltando à filosofia. Porém os princípios eternos baralhavam-se com o Silveira, a Dulce, a Manuela ... Eram tantos! ... E até o Pereira, que fizera um desfalque, viera lembrar-lhe também que "a cadeia se fez para os que se esquecem da sua condição de homens de bem". Repetia-lhe o seu último comentário quando o outro lhe pedira clemência. O Pereira estava ainda na Penitenciária a cumprir o resto da pena, esmagado pela sua acusação, como principal testemunha do processo. "Seriam agora companheiros de cadeia", pensou.
(E se levassem aquilo para um crime social? Podiam, se o quisessem. Seria marcado com um número na farda de cotim. E debaixo de forma, por corredores que pareciam desaguar no cabo do mundo, ele e o Pereira, lado a lado, olhando-se de soslaio, sem trocarem palavra. No rosto do outro o sorriso da vitória, como a dizer-lhe que estava vingado. O ruído dos passos no corredor, os gritos dos que estavam inocentes ou haviam enlouquecido, o ranger das portas gradeadas, o tilintar das chaves ...)
"É uma injustiça, Sr. Chefe.
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"-Você está a arranjá-la boa. Cale-se aí, seu homem!"
E regressava ao canto do calabouço, atormentado, apertando a cabeça, que parecia deflagrar com tantas recordações. No dia seguinte, os jornais talvez trouxessem a notícia e o seu retrato sob o título de "Crime Social".
Nunca mais arranjaria emprego. Seria apontado nas ruas como elemento perigoso, cuja presença põe em perigo uma cidade inteira ou uma civilização. O Pereira, a seu lado, vigiando-lhe os gestos, raposa batida da cadeia, iria contando o seu caso aos outros, que o julgariam novamente pela justiça da prisão. Talvez não encontrasse um amigo ou um companheiro.
"-Fora daqui, Tinta-Azul."
Tornar-se-ia conhecido pelo Tinta Azul entre criminosos de toda a espécie. Aprenderia a roubar... Gatuno de cofres ou de mosco, carteirista ou quadrilheiro. "O Pereira, afinal, coitado, talvez falasse verdade quando lhe dissera que os dois contos tinham ido num pagamento e depois tentara ganhá-los na roleta para os repor, receoso de que não o acreditassem. E tinha perdido dez contos. E se escrevesse ao Pereira?"
Puseram mais dois homens com ele, rotos e de cara sinistra. "Que é uma cara sinistra? Noites sem cama, barba crescida e fome. Era isso, e nada mais. O patrão Rodrigues, quando partira para África, de saquita as costas, tinha com certeza uma cara assim. Depois metera-se pelo mato a comerciar com pretos, abrira casa em qualquer povoado mais populoso e começara a negociar com Benguela. Como nesse tempo não havia camionetas nem comboios, as mercadorias iam às costas de carregadores, acompanhados por um branco de tipóia. Depois o branco desaparecia e as mercadorias também.
" (- As demoras nas entregas prejudicam-me - mandava dizer à casa de Benguela.- Já seguiram há dois meses. - Não recebi.) E nova remessa era enviada ao dorso de outros carregadores.
" Assim fizera a base da fortuna, alargando o seu domínio até ao litoral, às fazendas de café, ao algodão e à borracha. E hoje o patrão Rodrigues não tinha cara sinistra. Trazia o retrato nos jornais, com adjectivos pomposos, dava entrevistas e fazia discursos quando os governadores chegavam.
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Aqueles dois homens que entraram para o mesmo calabouço húmido e sem luz poderiam ser como o patrão Rodrigues, se não fossem uns pobres diabos. Preferiam andar pelos eléctricos a roubar malas de senhora e a arrombar portas, sujeitos à perseguição da polícia e ao julgamento dos tribunais."
"- Também é cá do ofício? - perguntara um deles.
"-Não, sou guarda-livros.
"-Ganhava mais se fosse guarda-costas.
"-Algum desviozito, não?
"-Nada disso. Sou um homem honrado.
"-Também nós o somos. Abra-se lá, homem. Honrado quê? Não somos da polícia. Todos os que entram aqui estão inocentes, por força. É sempre o mesmo mote e a mesma cantiga ...
/"-Tropeçou no cofre, não?"
/ E riram ambos com grande alarido, como se lhes
/acabasse de contar alguma história brejeira. Depois um
deles, para passar o tempo, arranjara um a-propósito.
"-O Mão-Morta - lembras-te?- chupou vinte e oito anos por ter esfaqueado um galego no Chafariz de Dentro. Pois nunca ninguém lhe ouviu uma palavra de culpa. Parece que estou a escutá-lo: "Estava eu entretido por ali a assobiar; encostara-me ao quiosque a limpar as unhas com um canivetezito. Aborrecido com a porca da vida. E vem aquele diabo... Isto há horas dum raio! Pega não pega, aos tombos, com uma grande torta, e vem espetar-se, o malvado, no canivete. Andava farto da vida, ó quê, e fez-me uma daquelas. E eu a empurrá-lo, e ele cada vez a espetar-se mais. Arranjou-me este par de botas. Fosse lá eu convencer o juiz."
Voltaram a rir, batendo-se nos ombros, como se estivessem num jogo caricato.
"Vossemecê está como eu; e só se fosse trouxa é que não se governava. Então, aquele dinheirinho, ali, no cofre vivinho como carapau do alto, e um homem teso... Dê cá a sua mão ..."
Quisera poder fugir àquelas companhias que lhe anunciavam o caminho da Penitenciária, para junto do Pereira. Mas o guarda passava indiferente e não trazia a chave da porta.
"-Quando vem o chefe para me ouvir?
"-Daqui a bocado."

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Um dos homens aproximou-se também das grades e cochichou-lhe ao ouvido:
"- Isso é do grupo. O chefe nunca mais chega. Eles dizem isso prà gente meter a viola no saco. Vê-se mesmo que és anjinho nisto. Depois, com o tempo, habituas-te. Vê lá s'a gente pergunta!"
A noite viera, e com ela mais três homens. Todos os outros tinham acamarado a contarem a sua vida, de mistura com anedotas picantes; só lamentavam que não houvesse luz para jogarem à pedida ou à chapa. Só ele ficara àquele canto, de rosto metido num dos quadrados da porta de ferro para escutar as conversas dos guardas e os ruídos da rua, na ânsia de se ausentar dos cinco companheiros. Fazia-lhe bem ouvir o ruído dos passos dos que iam lá fora, as vozes e as gargalhadas, os pregões dos rapazes dos jornais e o som estridente das campainhas dos eléctricos. Era a vida que lhe comunicava a sua certeza.
- O chefe não virá? - perguntava de vez em quando.
E os outros riam-se daquela esperança que o queria reanimar. As horas passavam. Os ruídos da rua esmaeciam e os companheiros já ressonavam, dormindo na tarimba e no chão. Baralhavam-se-lhe lembranças no cérebro!
Se a mulher fosse viva... Ainda bem que Deus a levara. E Deus? Esse bem sabia que ele estava inocente. Mas não vinha ajudá-lo... Teria algum pecado para pagar? ... Talvez o Pereira... a Dulce... a Manuela... Estaria Deus pelo Pereira? Não, não podia estar. E se lhe escrevesse? "Pereira amigo: Compreendo, finalmente, o teu caso. Sei agora estares inocente ..."
Mas outras ideias vinham interferir no rascunho da carta: "E, mesmo que não estejas inocente, fizeste bem o teu dever. Que merecem eles, que passam a vida a guardar o nosso esforço no cofre? Eu é que o sei bem. Era o guarda-livros que acompanhava os negócios da firma."
Passou a mão pela testa e premiu os temporais, como para esmagar esse novo rumo do pensamento.
(Era já a influência do meio. Nunca pensara assim e não poderia nem queria fazê-lo. Fora sempre cumpridor, submisso para os patrões e disciplinador para os
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subalternos. Mas se o chefe não viesse depressa... talvez não pudesse responsabilizar-se.
A culpa cabia toda ao chefe de escritório... Ia por mau caminho. Os chefes têm sempre razão. Ele excedera-se, sem dúvida, enervado por ver os outros rir e por não saber a que anúncio respondia. E os donos da casa , onde tinha o quarto? Que pensariam da sua ausência? ^Os jornais do outro dia falariam de si. Ah! Os jornais! ... Os jornais! ... Os jornais! ... E como se satisfaziam quando gracejavam de algum caso como o seu "O Senhor Fulano foi prestar provas e entornou a tinta na cara do chefe dos serviços." E toda a gente riria quando lesse a notícia e visse o seu retrato, fixando-lhe as feições. Quando saísse, seria apontado. Olha, o Tinta-Azul! E se desaparecesse? A mulher já lá estava na terra da verdade... A família que ainda lhe restava, mal se lembrava dele. Não fazia falta a ninguém. Nem mesmo a si próprio. Era fácil, afinal... com a gravata passaria uma ponta por uma das grades de cima, um nó no pescoço e depois ... Era fácil.)
Sem saber porquê, rompera a chorar. As lágrimas faziam-lhe bem.
(Mas o suicídio é cobardia. Sim, é cobardia. E morrer assim deve ser desagradável. E depois, se não morresse, como arranjaria outra gravata? Tinha de desistir de procurar emprego. Seria julgado pela justiça dos homens. E Deus também não gostaria que dispusesse da vida que Lhe pertencia. Só a Ele competia resolver o seu destino. Deus escreve direito por linhas tortas. Por linhas tortas, não havia dúvida.)
A manhã viera encontrá-lo na mesma abstracção, enregelado, a tiritar de frio, com as mãos enclavinhadas nas barras de ferro da porta. Um guarda trouxe-lhe a vassoura para varrer o calabouço.
"-Mas ...
"-Foi o primeiro. "-E o senhor chefe, quando vem?
"-Não tarda. Está melhor?
"-Melhor, eu?
"-Sim, da... da piela.
"-Ah!"
(Talvez lhe dessem uma boa desculpa. Nem se lembrava disso. Como bêbedo, o nome não viria nos jornais e seria mais fácil defender-se. Pusera-se com. evasivas
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quando os outros lhe ofereciam o melhor pretexto para sair. Era vergonhoso. Mas enfim ... De vergonha era agora a sua vida, e não lhe arranjava remédio. Também nunca pensara varrer casas, e ali andava, de vassoura em punho, a ouvir os gracejos dos cinco mariolas. Ah! Mas se se voltasse ao tempo dos jurados e o nomeassem novamente, saberia tirar a vingança! E por vinganças que ninguém o quisesse levar. Muitos poderiam atestar a sua têmpera: o Teotónio ... o Mascarenhas ...)
Quando os outros abandonaram a tarimba aproveitou para se deitar um bocado. Lá conseguira adormecer, cansado de pensar. Mas daí a instantes chamaram-no:
"-ó velhadas, vamos embora!"
Abanavam-no como no escritório depois de atirar com o tinteiro ao outro malandro. Ficara de olhos esbugalhados, sem se lembrar donde adormecera.
"-Vá, depressa! O nosso chefe está à espera."
Nunca ouvira um som tão mavioso como o da chave na fechadura da porta. "Nem a valsa do Danúbio Azul, de que ele tanto gostava", pensou com saudades.
Do fundo do corredor vinha um clarão de luz, como se o Sol nascesse à porta da esquadra. Sacudiu os ombros, distendeu os braços e espreguiçou-se depois. Mal entrou no gabinete, o chefe perguntou-lhe:
"-Que foi aquilo ontem?
"-Coisas, Sr. Chefe. V. Ex.a...
"- Sim, vinho. Parece impossível que uma pessoa da sua categoria ...
"-Pode dizê-lo. Se desejar, terei muito gosto em mostrar-lhe as cartas das firmas que servi. Ontem, perdi a cabeça. Vivo só ...
"-Teve sorte, sabe? O queixoso desistiu da parte.
"-Muito obrigado.
"-Deve agradecer-lhe. E peço-lhe que não torne ... Beba com conta, se não tem mão nos seus impulsos. Podia trazer-lhe graves consequências, sabe?
"-Sim, sei. Mas prometo nunca mais beber um decilitro que seja.
"- Como quiser. Tem aqui quatro senhas para pagar...
"-Muito gosto."
(Era mesmo à conta. Ainda tivera que vasculhar a algibeira para encontrar os cinco tostões que faltavam.)
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"-Muito obrigado a V. Ex.a pela amabilidade. E disponha sempre... do meu fraco préstimo. Agradecido a V. ExA Muito grato a V. Ex.a"
O sol na rua, as pessoas na rua.
A rua! ...
Nunca a rua lhe parecera tão bela! Os automóveis, o gentio a acotovelar-se, os gritos... Tudo o que lhe desagradava noutras ocasiões vinha saudá-lo e lembrar-lhe que era livre.
Correra ao quarto, como se receasse que lho tivessem tirado. Só descansou quando se viu metido dentro dos lençóis e com a manta cinzenta com riscas azuis e brancas bem presa nas mãos trémulas de emoção.
"- Deseja alguma coisa? - interrogou a voz da hospedeira.
"-Não, minha senhora, muito obrigado - respondeu, comovido.
"-As noitadas já não são para si. Tenha cuidado. com este frio, pode arranjar alguma carrapata...
"-Quis festejar o meu aniversário e a esperança de um emprego. Parece que desta vez se acaba o enguiço.
"-Então, parabéns. Parabéns. E nós em cuidados ...
"-Muito agradecido, minha senhora."
Ficara-lhe de emenda. Montara escrita para as respostas que dava, escriturando tudo numa folha de trinta e cinco linhas, com um riscado que fizera a lápis para cinco colunas: Firma, Morada, Lugar Anunciado, Data e Resolução. Mas na coluna "Resolução" era sempre o mesmo averbamento. Levantava-se todas as manhãs, lia o jornal do merceeiro, tomava notas, comprava pão e queijo para todo o dia e ia encafuar-se no quarto para poupar os sapatos e a farpela.
Hoje só vinha um anúncio que lhe interessava - CONTA-CORRENTISTA. A mesma ratoeira de todos os outros. Era sabido. Indicar ordenado e referências para o n.º 272.
- Que ordenado havia de pedir?
Mais uma carta e outro passeio forçado até ao Rossio. Ainda se houvesse uma agência ali nos Anjos, gastaria menos os sapatos. Três tostões da carta e três tostões do calçado. Já fizera a média dos gastos em solas por dia, e dava aproximadamente três tostões. Paciência! ... Também não podia arranjar emprego por outro processo ...
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CINQUENTA E TRÊS DESTINOS


NO escritório mantinha-se o ambiente soturno da véspera.
Nem o Abreu, que desfrutava da amizade do guarda-livros, deixara de ouvir uma ensaboadela naquela manhã por causa das remiradelas dos documentos à transparência e das sopradelas cuidadas por mor dos micróbios: "-Ó Abreu! Deixe lá os micróbios em paz!"
À tarde, o paquete trouxera do Rossio um enorme maço de cartas. Todos pensaram no ordenado pedido por cada pretendente.
O guarda-livros chamou.
- Eu?
- Sim, senhor - respondeu o guarda-livros, enfadado.
Fez depois um aceno com a mão para que o outro se aproximasse e ficou a bater com a praga de respostas no tampo da secretária.
- Não tenho tempo para isto. Repare no dilúvio. Sempre que se põe um anúncio, é isto! E eu não posso. com a escrita de dois meses para fechar e o Sr. Loureiro inquieto por ler os balancetes. E agora, ainda por cima, esta xaropada.
- Muito trabalho.
- Um horror!
O guarda-livros puxou de um cigarro, bateu-o na tampa da caixa de fósforos e levou-o aos lábios, correndo os dedos nos sobrescritos empilhados.
-Vai fazer-me este serviço . .
O coração dera-lhe um pequeno baque de contentamento- sentira-se corar com a preferência do chefe. O tesoureiro iria morder-se de inveja, pois não, ficando a rosnar toda a tarde, impaciente por entrar no gabinete da gerência para se queixar dele ou de outro como desforra.
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- O rapaz ajuda-o. Dê uma leitura rápida as cartas e classifique-as. Os que não servem, a um lado, os prováveis, a outro, e os mais capazes no primeiro maço. Compreende?
- Sim, senhor.
- Pode levar. A sua melhor atenção, ha? É uma prova de confiança que lhe dou.
Atravessou a sala, seguido do rapaz, que levava as respostas no cesto do expediente do chefe. Ufano, achava-se incapaz de fixar os olhos dos colegas. Adivinhava-os confundidos com a honra daquele serviço, que representava mais um degrau na sua ascensão.
"Durante as férias do guarda-livros, talvez o destacassem para dirigir o escritório. Gratificação no fim do ano, pela certa. Poderia talvez casar com a Milena, tirando-a dos armazéns onde arranjara colocação. A secretária do Pimenta estava vazia e competia-lhe agora dicidir a entrada do novo empregado. Era uma honra ..."
- Vamos abrir. Os sobrescritos podem ser inutilizados. Põe aqui as cartas umas sobre as outras.
Sabia-lhe bem o ruído do rasgar do papel. Metia a ponta da faca ao canto do envelope e desventrava-o, mirando a letra do concorrente quando desdobrava a folha. "A caligrafia era um elemento a considerar. Organizaria a informação de molde a mostrar que a escolha do chefe fora acertada. Rejeitados a um lado, ordenados exigidos, caligrafia, habilitações e redacção. Não era qualquer que poderia decidir a admissão de um empregado. Espírito de justiça acima de tudo."
- Um dia hei-de responder a um anúncio - disse-lhe o rapaz.-Logo que acabe o curso... Estou no segundo ano. Vejo-me à rasca com a matemática. Não acha difícil?
- Assim, assim ...
A máquina de escrever cantava nas mãos nervosas da dactilógrafa.
- É um tal abrir de cartas. Muitos desempregados.
- Alguns ...
- -Quando acabar o curso, vou ter dificuldades.
- Se fores hábil...
- E como é que isso se sabe?
- Pelas respostas.
- Este não indicou a direcção -assinalou o paquete, a pensar na "pequerrucha".
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- Põe de lado. Já não dá mais trabalho.
- E pode ser o mais sabedor... Ou o que mais precisa.
- Sintoma de pouca atenção.
- Ou de muitas ralações. O meu pai é muito distraído porque se rala muito comigo e com os meus irmãos, diz ele.
-De qualquer maneira, esse invalidou a resposta.
- É pena!
- Porquê?!
Interrompeu o seguimento do diálogo, lembrando-se de que não podia exceder-se em confiança. Tomou um modo autoritário, franziu o sobrolho e pegou na última carta.
- Porque ...
- Deixe-se de comentários. Quantas?
- Conto?
- Evidentemente.
Recostando-se na cadeira, traçou a perna e tirou uma longa fumaça do cigarro.
Estou ainda colocado numa casa de serviços de transportes de camionagem, mas como ameaça, a presente crise, paralisar esses serviços ...
"Redacção muito deficiente." Correu os olhos até abaixo para ver o ordenado pedido: 500$00. Sorriu-se. "Não ganhava mal. E depois empregado... Até que a casa fechasse ainda se poderia aguentar."
- Cinquenta e duas.
- E esta cinquenta e três.
Como o paquete continuasse encostado à secretária, fez-lhe sinal que se retirasse.
- Cinquenta e três.
Pegou nas cartas como se fosse distribuí-las para uma partida de jogo. Reparou no gesto e compreendeu que se jogava ali o destino de cinquenta e três homens.
"Era uma missão de confiança. Cinquenta e três famílias! Duas pessoas de média... talvez três. Mais de cento e cinquenta pessoas esperavam a sua decisão. Todas teriam agora a vida suspensa de um gesto seu. Uma espécie de deus de cento e cinquenta seres que respiravam e sofriam como ele. Quando a Milena soubesse ... Era uma prova de confiança, sem dúvida.
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Talvez não exagerasse se fosse deitando as vistas para uma casa. Mais um ano e casariam."
Pôs a primeira carta junto da outra que não trazia endereço. Arrancou uma folha do bloco e escreveu-lhe ao alto: "Resposta ao anúncio n.º 272." Sublinhou o título com um traço e anotou mais abaixo o número de concorrentes. "Faria uma informação minuciosa e justa. O empregado que entrasse seria o seu orgulho. Diligente e sabedor, respeitando os chefes ... Em seu entender, deveria conduzir as provas de admissão até ao fim.
"Ver-lhes a cara, falar-lhes ... V. Ex.a... Tratá-lo-iam com deferência. Se visse o guarda-livros bem disposto com a sua exposição, havia de oferecer-se para completar o serviço. A Milena rejubilaria quando lhe contasse. Iriam à noite ao cinema para festejar o acontecimento."
Levantou os olhos dos papéis, passeando-os pelas secretárias dos colegas, um tanto guloso em adivinhar expressões de despeito na cara dos de mais. Mas ninguém olhava para ele. O Pereira dos ficheiros, magro como um pássaro depenado, escriturava o movimento do armazém, suspirando a espaços. Todos os outros, entregues ao serviço, não agarraram o seu olhar.
Junto ao balcão, o tesoureiro atendia um cliente qualquer, a quem respondia por monossílabos. "Devia estar furioso. Se lhe chegassem um fósforo, lá atiravam com o escritório ao ar. Danado que nem uma bomba!"
Empregado ex-Agente da C. P. donde tem um curso e concurso, e um atestado de bom comportamento ...
"Este é louco ou imbecil."
Abriu a folha e continuou a leitura, sorrindo-se dos argumentos invocados. Apetecia-lhe chamar os companheiros e ler-lhes a carta em voz alta para que todos se rissem dos termos da redacção farfalhuda. Seria um intervalo cómico.
Não é político militante, não sofre de doenças venéreas ou sifilíticas ou contagiosas ...
Escapou-se-lhe uma gargalhada e todos os olhares caíram sobre ele.
- Que foi? - perguntou o Abreu, desconfiado. "*
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- Nada.
- Algum disparate, não?
- Um pouco.
-A fome obriga a fazer disparates.
"A fome ... Sim, talvez. Entre aquelas cinquenta e três cartas, algumas exprimiriam fome, com certeza", pensou, preocupado. "Mais de cento e cinquenta pessoas ... Precisava de ser justo. Mas para fazer justiça completa deveria andar de casa em casa a inquirir da situação de cada um. E isso tornava-se impossível. A ele, de resto, não cabia qualquer culpa no que lhes acontecia."
Sentiu um amargo na consciência quando voltou a reparar na pilha de respostas à sua frente. Lembrou-se de que todos aqueles homens ... Homens como ele. Respirando e vivendo, conhecendo alegrias e penas, com esperanças ... E todos à espera. Falariam do anúncio como num país de sede se fala na água que nunca chega. Alguns já teriam feito promessas para quando estivessem empregados.
- Havemos de ir ao teatro.
- Desempenharemos o teu vestido e os meus sapatos.
- Depois levaremos a menina ao médico.
Continuava a complicar os acontecimentos sem necessidade. A Milena chamar-lhe-ia maluco, e com razão. Talvez traísse com aqueles melindres a missão de que o chefe o incumbira. Não podia pensar no caso de cada homem sem trabalho. E nada tinha com isso. Talvez tivesse, mas não possuía os meios de evitá-lo. Nem ninguém. Nem mesmo Deus.
Ele transformara-se no deus de cento e cinquenta pessoas - o destino daquele e de todos os outros que haviam pegado na caneta com a esperança de que o jornal dessa manhã lhes trouxesse a solução. Alguns teriam cantado... E era possível que alguns escrevessem de lágrimas nos olhos. Rira-se daquela carta, e quem sabia a tragédia que ocultava? O pobre homem recorria a todos os argumentos - não sou político militante nem sifilítico... Era bem um homem que se oferecia de campainha na mão, mostrando-se inteiramente para que todos o vissem bem e o alugassem. Como as prostitutas ou um automóvel caro.
Quantas cartas simples já teria feito? E de nenhuma obtivera resposta. Agora dizia tudo o que podia fazer,
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o estado de saúde, a ideologia ... Tal qual um cigano a comerciar o próprio corpo. Era a fome. Talvez a fome ou ...
E se se tratasse de um gracioso que quisesse passar o tempo? Ficaria a rir-se do efeito da carta, gozando de antemão com o acabrunhamento que produziria a quem lesse. Impunha-se fazer uma selecção rigorosa, insensível a pequenos detalhes. Não podia abonar a admissão de um homem doido que viesse para o escritório pintar bonecos nas paredes, atirar os livros ao ar e julgar-se o Mussolini, por exemplo. Não podia, evidentemente. E se um dia lhe desse uma fúria, talvez esganasse o gerente no gabinete, arrastando-o para a polícia como seu cúmplice.
Pegou num cigarro e acendeu-o. Recostou-se na cadeira para dominar a emoção causada pelas interrogações da tarefa.
- Rapaz! Traz um copo de água.
Pôs a carta de lado, junto das outras duas rejeitadas, mas hesitou.
"Poderia abrir uma classificação para os duvidosos. Depois voltaria a pegar-lhes para solução final. Receio ... consciência, talvez."
Tendo sido empregado num escritório durante quarenta anos, do qual dou para informações, e estando actualmente desempregado, tomo a liberdade de responder ao anúncio de V. Ex.a
"Quarenta anos empregado... Não servia. Para o lugar exigia-se um rapaz de trinta anos, o máximo. Aquele teria cerca de sessenta ... Boa letra, ordenado ao critério de V. Ex.a..."
O paquete estendeu-lhe o copo com água, em posição de ler as cartas que estavam à sua frente.
- bom pessoal?
- Nem por isso. ^
- Um dia, quando eu responder a um anúncio.." O senhor há-de explicar-me, se fizer favor. >
- O quê?
- Os termos que mais lhe agradam. É um treino para mim. Habituo-me ...
- Talvez cá fiques.
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-Julga possível? Não tenho fezada nenhuma. Santos de casa não fazem milagres, dizia minha avó. Quem me vê andar nos recados, não me aceita como colega Não lhe parece?
- Talvez ... Talvez tenhas razão.
E devolveu-lhe o copo. Depois voltou à escolha, embora não lesse uma só linha. Queria ver-se livre daquela presença que o incomodava.
"Também já fora assim. E respondera a anúncios. Esquecera-se disso. Lembrava-se agora de tudo o que passara para conseguir colocação. A alegria com que fizera as primeiras cartas, os embaraços seguintes quando ficara sem resposta. O apuro da letra, os rascunhos da redacção, os ordenados ... Usavam todos o mesmo processo - queira indicar ordenado e referências... E travava-se a luta pelo preço. Seiscentos, quinhentos, quatrocentos... De anúncio para anúncio, baixara o salário... Como aquele outro, e outros tantos que iria encontrar no monte de respostas.

... Ordenado ao critério de V, Ex."
"Tinha de rejeitar os que vinham por qualquer preço, porque comprometiam o lugar dos que já estavam colocados. O gerente, quando soubesse... - Por trezentos escudos tenho quantos empregados quiser. Mantenho-os por... compaixão. Talvez quisesse dizer dó. Ele e os outros mereciam dó. Rejeitados. Ainda não pusera uma carta para os prováveis. Queria ser justo... " Mas há homens justos? Ele era o dono de cinquenta e três destinos. Mas também tinha o seu. Precisava de casar-se. Tirar a Milena do armazém, furtando-a aos rodeios dos fregueses e colegas. Era uma bonita moça. Andava um pouco arredia... Alguma proposta que lhe tinham feito com casa, automóvel e criadas. Efeitos do volfrâmio. Acabaria mal: Iriam à noite ao cinema para lhe contar que o guarda-livros tivera aquela deferência e isso indicava que brevemente iria passar de categoria. Precisava de animá-la. Algumas vezes crescia-lhe uma vontade de a deixar, quebrando compromissos; mas logo perdia a iniciativa quando pensava que a encontraria na rua com outro qualquer. Um colega qualquer ... Tinha quase a certeza de que
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já algum deles a rodeava com promessas. Malditas cartas! Se pudesse rejeitar o serviço ...
tenho de garantir o sustento da minha família e recorro a todos os meios para obstar de cair nessa infeliz situação.
" Infeliz situação! O pior era o obstar. Devia ser pessoa bem falante, talvez competente, capaz de conquistar a posição que se esboçava a seu favor. E ele ficaria sempre no mesmo lugar como o Pereira, que precisava de um fato, o tesoureiro, a dactilógrafa... Este, porém, falava na família. Infeliz situação! Obstar ... Descuidava-se um pouco com o português. Devia estudar à noite para poder empregar aquelas palavras e outras que o firmassem junto do gerente. Ultrapassaria o guarda-livros, e então... Ah, Milena! Esperá-la à saída do armazém, e dar-lhe a novidade. - Sou guarda-livros, meu amor. Vida nova! Despedes-te já este mês, é evidente. Mas ... A Milena talvez pudesse ficar como sua amante. Se a Milena soubesse!"
Tenho vinte e quatro anos, sou solteiro e isento do serviço militar.
Comentou entre dentes: "Daqui a pouco aparece-me um que anuncia ter um dente cariado."
Deixou escapar uma gargalhada seca, que tentou abafar com uma tosse fingida. A dactilógrafa veio junto dele, a pretexto de lhe perguntar pela borracha.
- Algumas engraçadas, não?
- Nenhuma mais engraçada do que você.
- Palavra?
-Palavra!
- E a Milena?
- Ora, a Milena... Se você quisesse ...
- Mas como não quero ...
- Pense nisso e escreva-me logo.
Despachou-a ao recordar-se de que a Milena também andava sujeita aos gracejos dos colegas. "Para ele havia aquele incrível monte de cartas - um monte de destinos.
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"Se fossem só cartas! ... Mas eram homens. Cinquenta e três homens, mais de cento e cinquenta pessoas à espera da decisão. Alguns já desiludidos...
"Voltava a complicação. O melhor seria tirar sete ou oito cartas ao acaso e apresentá-las ao guarda-livros. Aquilo, afinal, era um jogo. A vida mesmo é uma espécie de roleta... Onde lera aquilo? Qual roleta! Desembaraçava-se daquelas preocupações e voltava aos seus papéis. Traía, porém, a confiança que depositavam nele. O guarda-livros podia dar uma vista de olhos pelas respostas e encontrá-lo em falta. Podia ser o desemprego, e depois as cartas, os anseios, as amarguras... E se todos fizessem como ele? A vida é uma roleta? Sete ou oito cartas ao acaso, e talvez nunca mais chegasse a sua vez. Precisava de parecer justo. Haviam-no nomeado para deus de mais de cento e cinquenta pessoas. Mas só resolveria, no máximo, o caso de três. E os outros? Sim, ficavam os outros."
- Sr. Pereira ...
- Chamou?
-Mudou de nome?
-Não percebi, desculpe.
- Chamei o Sr. Pereira.
O empregado dos ficheiros levantou-se, trémulo; tapava o passajado dos cotovelos, receoso de que lhe falassem no fato que ainda não comprara.
Não discuto ordenado. Aceito até um lugar pela comida ...
"Rejeitado! São tipos como este que emporcalham a profissão. Empregado de escritório como mulher a dias. Todos sofrem as consequências das misérias destes falhados que se dão por qualquer preço."
Hesitou um instante.
"E se na semana seguinte o jornal trouxesse que um desastre de comboio ... Aquele homem podia matar-se. E ele seria o causador de tudo. De tudo, talvez não; mas... cúmplice, pelo menos. A carta assemelhava-se a uma súplica. Via-o de joelhos, a rojar-se à sua volta, de dignidade esfrangalhada."
- Ajude-me, salve-me!
"Agarrava-se-lhe às pernas com as mãos trémulas, a enxugar as lágrimas nas suas calças. Contaria toda
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a sua vida desde criança. Era uma graça que muitos diziam e que começava agora a compreender. Aqueles homens que se aproximavam de alguém por necessidade de desabafo, à espera de uma palavra de consolo. - Salve-me! Não discuto ordenado! -Mas aqueles homens ... com o tempo, os empregados de escritório seriam como os marçanos de outras épocas."
O telefone retiniu - parecia uma campainha de alarme. A máquina de escrever, nas mãos da dactilógrafa, abria rajadas que cortavam o homem suplicante.
"-Não me abandone! Já não tenho forças para mais!-Mas a letra era incerta. Tinha até erros de ortografia. Queria ser justo... Havia, porém, duas justiças: a justiça da escolha do serviço do escritório e a justiça para o homem que mais precisasse do seu amparo. Qual delas iria servir? ... A que lhe pagava ou a outra? E quem necessitava mais do seu auxílio? Aquele?! ... O louco?! ... O que trabalhara quarenta anos?! ... Eram cinquenta e três! E se o mais desgraçado fosse aquele que não indicara o endereço? O anónimo... O homem que simbolizava todos os outros. Cansado de sofrer, nem se lembrara de dizer onde morava. Invalidava-se já a si próprio. E talvez não tivesse casa! Um banco qualquer... Escrevendo cartas só para se iludir ... Ou para iludir alguém. A mulher ... talvez os filhos."
Procurou a sua resposta entre as outras e reparou mais uma vez que amontoara mais rejeitadas do que prováveis.
"Que era ser justo? Como decidiria as informações, se hesitava em tudo? Nunca chegaria a chefe! A Milena... Uma tarde, quando fosse esperá-la, dir-lhe-iam que ela abandonara o armazém com qualquer tipo que lhe acenara um futuro. Precisava de ser frio, indiferente a rogos e a sugestões que viviam mais na sua cabeça do que na realidade."
- Já apurou alguma coisa?
-Muitas respostas. •>.
- Quantas?
- Cinquenta e três.
- Desbaste isso. Mais de trinta e cinco anos, para fora. Má caligrafia, o mesmo. Apure aí uns quatro para exame. Não estou para mais. Cinco, no máximo.
- Mas...
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- encontrando quatro ou cinco que pareçam razoáveis ... Basta ir à indicação dos para seleccionar.
- Há os que nada dizem.
- Ponha de parte. Espere. Deixam isso à minha consciência?
- Sim, senhor.
-'Podem servir. Arrume como entender. Confio em si.
"Confirmava. Tinha de servir a justiça dos que lhe pagavam."
Acabaram-se-lhe os rodeios e começou a passar as cartas, distribuindo-as em três pilhas, apressado, como se a solução do anúncio fosse também a sua própria.
Sei o que faço e por isso não posso trabalhar por menos de oitocentos escudos.
*-, "Presunção e água benta..."
Tenho sessenta e seis anos, mas sou válido e dou informações...
"Asilo! Deve ter um desembaraço notável. Que espera este homem? Um com quarenta anos de serviço, outro com sessenta e seis de idade. Mas se um dia... Nada de complicações. O destino é assim mesmo - cego como a justiça."
Sou guarda-livros há longos anos ...
"Rejeitado. Não podemos admitir empregados que se lamentem. Histórias já sobejam. Quando eu era guarda-livros..."

Quinhentos escudos ... à vossa consciência ...
Quatrocentos e cinquenta ... i
Quarenta e dois anos ...
"É ainda um homem válido. Talvez não seja muito justo... Quando tivesse essa idade e se visse sem trabalho, ficaria perdido se todos adoptassem aquele critério. Mas agora só obedecia. Era como uma separadora
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mecânica, uma máquina, uma máquina qualquer de um grande conjunto inconsciente que agia por mãos invisíveis. O conjunto era consciente, obedecia a um plano ... O guarda-livros confiava. Na vida há lobos e cordeiros, e entre lobos ... E entre cordeiros? ... Vivia no meio do fragor da batalha e precisava decidir-se. Lobos a um lado, cordeiros a outro... O de que necessitava naquele momento, e em primeiro lugar, era de resolver os concorrentes para exame. O critério pertencia ao chefe. Já não possuía opinião, uma vez que lhe marcara os limites de julgamento. Ainda bem ..."
Ao vosso critério ...
"Homens sem vontade que deixam a vida ao arbítrio alheio. - Dê-me o que quiser, uma migalha que seja. - Embirrava com esses. Pertenciam ao grupo dos tais que amesquinham a profissão fazendo dos empregados de escritório uma classe em ruína. Uma gente que vivia para as gravatas e os fatos, como as mulheres elegantes para as últimas modas e os perfumes.
"Menos considerações e maior precisão, meu amigo. As separadoras mecânicas não discutem planos e não se fornecem com olhos. Sempre adiante! Vamos! Faltam meia dúzia de cartas. Que se amolem os outros. Tem esperanças? Que as comam ao almoço. Para o jantar, lágrimas. Ou, se preferem, que façam o contrário. Nisso têm direito de opção. Os velhos! ... Já fizeram a sua época. Os casados?... Não fossem estúpidos. As máquinas não se casam."
Tenho o Curso Superior de Comércio ...
"É sabichão para o lugar. Empregados humildes é do que precisamos. E depois açambarca-me a posição e lá vai a Milena. Que coma a carta de curso! A cartolina deve ter óptimas qualidades alimentares."
Doía-lhe a cabeça. Sentia umas tonturas acabrunhantes, como se o tivessem obrigado a um rodopio, num jogo de roda em que lhe dessem as mãos todos os cinquenta e três homens que esperavam um postal.
"E o anónimo?... Do lado dos prováveis havia quinze cartas; dos que renunciavam a marcar o preço do seu trabalho, a pilha crescera mais. Os rejeitados, mais do que outro tanto. Deus ... Chegara a altura de
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fazer nova escolha. Mas fora justo pelo menos? Justo! Que significa ser justo?
"Se há duas justiças, qual a mais justa? ... A dos lobos, por ser mais forte. Justiça de lobo igual a carnificina. Para um lobo, a carnificina torna-se num direito à vida. Mais de cento e cinquenta pessoas à espera de decisão. Nada tinha com isso! Não as fizera, não podiam culpá-lo de que vivessem. E ele? ..."
Imaginou que no escritório entravam de roldão as cento e cinquenta pessoas que aguardavam a sua escolha. Absurdo! Mas a realidade também vive do absurdo. Toda aquela gentalha uivava como lobos. Mas não passavam de cordeiros.
"- Onde está ele? - perguntou um.
"-Ele quem?
"-O dono dos nossos destinos. * •""""*
"-Não sou eu, não, não sou, palavra d'honra! Estas cartas também não são das que julgam. Estou aqui entretido a fazer paciências. São cartas de jogar, sim! A vida é um jogo! Um jogo, é claro.
"-Mas se eu tenho sessenta e seis anos, preciso da sua solidariedade. Nega-ma?
"-Não.
"-E eu trago aqui o diploma. Acha que devo comê-lo?
"-Talvez. Experimente tirar-lhe primeiro as letras e os números, passe-as por pão ralado e frite-as. Da cartolina faça uma sopa ...
"-Os meus filhos têm culpa dos meus quarenta e três anos?
"-Sei lá.
"-Não sabe? ... Daqui por dez anos terá a mesma opinião?
"-Não tenho, com certeza. Mas até lá vou ver se me safo. Ao menos que se safem os safados.
"- Há então mais do que uma verdade. A dos vinte, a dos trinta, a dos quarenta...
"-Isso não é comigo. É com aquele. Eu aqui sou uma separadora ...
"-Consigo?!
"-Não. com o gerente...
"-Consigo?!
"-Eu sou mandado pelos sócios.
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"-E os sócios?
"-Pediram dinheiro ao Banco.
"-E o Banco?
"-Pediu dinheiro a todos nós.
"-Então somos nós. Nós...
"-Tens lá algum dinheiro?
"-Tenho. Duzentos escudos!
"-E eu quinhentos...
"-Eu, nada!
"-Nada!
"-Cinquenta e cinco!
"-O Banco somos nós. Mas nós não mandamos no Banco...
"-Que é um Banco?
"-Um objecto que uns fazem e onde outros se sentam...
"-Não falo desses bancos...
"-Dá no mesmo. Nós fazemo-los e os outros voltam-se com o nosso dinheiro contra a gente.
"-Acreditas em bruxas?
"-Dá no mesmo. Nós fazemo-los e os outros mãos em fogo. Uma velha trazia o marido escarranchado nos ombros e entretinha-se a comer-lhe os dedos dos pés como se fossem perceves.
"-Deixem-me contar-lhes a minha vida - suplicou, atormentado. - Eu não passo de uma simples peça dessa máquina.
"-De rolo compressor?...
"-Sim.
"-E quem move o rolo?
"-Tu... eu... aquele...
"-E se o rolo parar? ...
"-Não pára. Há mais aquele ... Mais aqueloutro ... Há sempre alguém que o mova.
"-Tu és capaz de te recusares a dispor do nosso destino?
"-Não! Porque dispõem do meu!
"- E tu?
"-O mesmo.
"-E tu?
"-Aspas.
"- Se vocês fizerem uma subscrição para um fato ... Vão despedir-me se não arranjar outro.
"-óptimo! Ficam duas vagas.
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Sou o " " " "
queres " "

 

Mas são cinquenta e três propostas.
Cinquenta e duas.
Cinquenta e três, disse bem. Eu também vim. anónimo. Lá por não ter casa . . . Esqueci-me.
Se hoje não se decidir a minha vida, mato-me.
Óptimo! Mais uma hipótese.
Eu também.
E tu? Faz o mesmo. com essa idade... Que fazer com essa velhice às costas? Tens cada uma!
Noutros tempos matavam os velhos.
É uma liberdade que nos concedem? ...
Sim. E não te sabe bem? ... Agradece-a. Custou sangue. *
A liberdade custou sangue! E dispor dela também custa. Não te vais embora? Não. Tenho esperança. '*
Em quê?...
Na esperança.
Sabes o que isso é?
- Ouvi dizer.
O guarda-livros levantou-se e veio até junto dele. a - Então?! ...
- -Não tenho culpa.
-De quê?
- Ah... desculpe!
- O senhor embaraça-se com pouco. Deixe cá ver isso. Acabo sempre por fazer tudo, não há dúvida. Sou o guarda-livros, e afinal não passo do burro que puxa por meia dúzia de cangalhos velhos. E confiei eu no senhor ... Enganei-me! Mas já não me engano outra vez, pode ter a certeza.
- Eu dividi . . .
- O senhor não dividiu coisa nenhuma. Cantigas! Como está essa salsada?
- Aqui, os rejeitados ... Os que marcam ordenado ...
- Quanto?
- De seiscentos para baixo.
- Claro, seiscentos! Para quê? Se todos se oferecem por ordenado mais baixo, para quê os de seiscentos? Tem medo de que lhe tirem o lugar? Olhe que não era uma decisão infeliz.
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Abalou como viera -- sacudindo os ombros, nervoso e parecendo querer levar o escritório consigo.
"E a Milena? ... Já não podia falar-lhe naquele cargo de confiança. Uma tarde qualquer... Nunca chegaria a chefe de escritório! Se não imaginasse aquela gente a entrar-lhe pela porta dentro ... Viram-no fraco. Começaram... Lembrara-se de si. Afinal, continuava cordeiro. O pior eram os rejeitados. Esses estavam perdidos. A esta hora talvez esfregassem as mãos, confiando na boa estrela. A boa estrela perdera-se, e por sua culpa. O destino daquele fora jogado por ele. E talvez precisassem mais do seu amparo. Os velhos ... Os bem habilitados ... Fora egoísta! Um dia seria velho e um outro homem mais moço rejeitá-lo-ia também. É a lei da vida. E quem faz as leis da vida? ... Os que lhe encontram conveniências. E mais ainda os que as aceitam. É o caso dos Bancos. E a Milena?"
- Fica agora a mirar-se no bom serviço que fez, não?
- Estou com o balancete.
- Vê-se mesmo. Sabe que não gosto de atitudes de rebeldia?
Pôs os olhos no guarda-livros e não foi capaz de lhe responder.
- Porque olha para mim? E o Sr. Pereira? ... E a menina? ...
Ficou um grande silêncio na sala. Depois a máquina começou a matraquear, como se varresse as secretárias com rajadas de fogo.
Seis e sete treze ... treze e sete ... vinte ... >
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor... ^
Atento Venerador e Obrigado.
A campainha do telefone retiniu. O paquete foi atender e chamou-o.
- Eu? ... Diga que não estou cá.
- O telefone não é para brincadeiras. Atenda!
- Mas ...
- Sabe se é um cliente?
- Não, senhor.
- E se for? ... Deixe ver Alo ... Sim... Ah! ... É uma senhora.
Fez menção de se levantar.
200
- Deixe. Não está. Sim ... Diz que está, mas que não atende.
Ficou pálido, engolindo em seco, com ganas de se levantar e exigir desculpas ao chefe para exemplo de todos os que se submetiam.
"Era a Milena, com certeza Dera-lhe um pretexto para acabar; aquele gajo oferecera-lhe a liberdade que ela de há muito desejava. Acabara-se a última esperança."
Meio galhofeiro, perguntou para o Abreu:
- Sabes o que é a esperança?
- Sei. Vai-se para lá com um bilhete de cinco tostões.
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Corredores

QUANDO a porta se abriu, o homem, depois de se benzer três vezes e ter o cuidado de passar para dentro com o pé direito, julgou entrar numa gruta com fantasmas.
- Boa tarde - disse, com desenvoltura fabricada.
- Que deseja?
- Venho por causa do anúncio.
- Espere aqui, faça favor.
- Obrigado.
Depois de o rapaz lhe dar passagem, vagueou o olhar pelo corredor sombrio e ficou indeciso. Em voz baixa, quase assustado, fez a pergunta que o minava.
- Já veio alguém?
- Não, senhor. É o primeiro.
- Graças!
- Se quiser sentar-se ... Eles não gostam de ver pessoas de pé no corredor.
- Obrigado. Sabe se vêm muitos?
- Mais quatro. Fui eu que deitei os postais no correio.
- Então temos prova.
- Acho que sim. É costume. Depois tem de falar com o Sr. Loureiro, o gerente ... Ele gosta sempre de ver os empregados. É mania ...
- Em toda a parte se passa o mesmo...
Respondera-lhe assim, porque talvez o rapaz recebesse o encargo de meter conversa com os concorrentes para lhes conhecer o espírito de disciplina. Dali não levaria nada. Estava muito coçado ...
- O Sr. Loureiro é exigente.
-Faz bem. Se paga, exige.
- - Já o conhece? !
205
- Pessoalmente, não, mas é muito conhecido em todo o país. Só tenho ouvido boas referências. Dizem-no um homem muito recto.
As situações mudaram num momento.
- Ah, pois é. Aquilo que eu disse há bocado foi brincadeira. Para ver o que o senhor dizia. Espero que não faça uso ...
- Fique descansado.
Não se enganara. É preciso ter um olho em cada poro para não cair em armadilhas daquelas. Se não viesse prevenido, já ficava arrumado. "Aquele dos óculos disse mal do senhor..." E adeus exame; um fedelho a prejudicar a vidinha de quem precisa de ganhá-la. Não era ele o culpado, não
- Pode sentar-se. Até já.
- Até já.
Pôs-se a passear no corredor para aquietar os nervos, mas receou as rangedeiras dos sapatos. Experimentou sentar-se, e o cérebro parou-lhe como se os movimentos dos pés o accionassem. Precisava de dar uma revisão rápida a toda a matéria de escrituração, não fosse aparecer-lhe qualquer pergunta que o embaraçasse. Mas, ali sentado, o pensamento fechava-se; dispersos, os sentidos eram atraídos para os pormenores mais insignificantes do corredor.
Havia um candeeiro de bola no corredor, lá ao fundo. Parecia um astro na escuridão. Estava apagado, e mesmo assim brilhava como um farol a anunciar qualquer perigo. Não era fantasia. Ele viera para ali como um barco perdido nas trevas e a que faltasse a bússola; não havia meio de encontrar o norte. Andava por seis meses que subia escadas, esperava em corredores, conhecia novas caras, prestava provas e ficava à espera do postal. "Vamos resolver. Depois escrevemos."
E vivia dias de emoção, ficando em casa a desejar a hora do correio. Quando o carteiro chegava, desesperava-se de ter pensado naquilo, arrependido dos projectos que concebera, ou vociferava contra os serviços de distribuição, capazes de perderem um comboio, se lho entregassem, quanto mais um simples postal. Achava-os até muito competentes de lho rasgarem, só para se pouparem ao trabalho de subirem à água-furtada. Desvanecida aquela ilusão, aparecia-lhe outra. Sentia-se cansado. Precisava de rever a matéria. Fantasias ao
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largo e decisão no embate. Era o que lhe faltava - decisão.
Ensaiou uns passos. No silêncio do corredor, os sapatos chiaram como carros de bois. Se pudesse descalçar-se! Pensou depois que na sala não o podia ouvir, e iniciou o passeio. Logo ficou contrariado quando contou os passos, de ponta a ponta do corredor, e lhe deu número ímpar.
Alargara muito as pernas. Número ímpar dá azar. E ainda por cima fora o primeiro a aparecer. Dois ímpares era mau sinal. A soma do balancete de Devedores e Credores tem de ser igual...
A campainha da porta soou com frenesi. Sem saber porquê, dirigiu-se ao homem que entrava.
- Venho prestar a prova.
E estendeu-lhe o postal com um ar distraído.
- Não sou empregado.
* -Ah!
O rapaz apareceu, abelhudo, e meteu-se entre ambos depois de o empurrar. Badameco! Dois murros ainda era pouco!
- Faz favor de esperar.
- O senhor ...
- Também venho fazer exame.
O outro puxou de um cigarro, acendeu-o e tomou o corredor com um passeio pausado, muito hirto e solene. Não achou outra atitude senão a de se sentar no banco comprido.
Sentara-se no banco do réu. O outro era o juiz. Fora assim toda a vida. Chegava primeiro e os outros tomavam-lhe o lugar sem repararem nele. E, demais, gordo. Talvez por isso mesmo. Assim bolachudo e a deitar para o redondo, ficava com cara de pobre diabo; esses acabaram sempre em tapetes dos outros. Não sabia como explicar aquele mistério de comer pouco e engordar. Tinha até a mania de que não o admitiriam com receio de que o ordenado fosse pequeno para um corpo daqueles. Os patrões gostavam de pessoal aprumado, bem vestido... Como é que os fatos poderiam ficar-lhe bem com um corpo assim? E ainda por cima com uns óculos que nem dois faróis de camião. Metia medo.
- Chegou há muito tempo? " - Não.
- Sabe se temos exame?
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- Acho que sim.
- Recuso-me. Não digo nada, mas vou fazer fita. Não admito que me examinem. Tenho um curso superior e não me vexo perante qualquer manga-de-alpaca.
- Porque veio?
- Para justificar à família que penso em conseguir trabalho. Não lhe parece um motivo forte?
- Acho que sim.
Mal o outro se sentou a seu lado, levantou-se à pressa para conquistar o corredor. Os sapatos, porém, rangeram mais, como se apostassem em comprometê-lo.
Era a primeira modificação a fazer na sua vida, logo que conseguisse trabalho. Outros sapatos. A estes até os queimava. Malditos!
- Incomodo?
- Não, senhor... Ora essa! Estou farto de banco.
- Julguei... Precisa de trabalhar, não?
- Todos precisamos.
- Nem todos.
- Sim.
- Não se aflija comigo, que não fico com certeza. vou refilar. Até, se quiser ...
- O quê?!
-vou primeiro e depois passo-lhe a prova.
- Obrigado.
- Não precisa? Assim não se governa.
Mais outro para comprometê-lo. Apostava dobrado contra singelo em como viera para ali a mandado do patrão. Tinha os concursos bem organizados, não há dúvida. Primeiro, o rapaz agora aquele... Vai morrer longe, menino!
- Tenho feito isso muitas vezes - continuou o presumido. - Tomo nota dos pontos e passo-os a outros que precisam mais do que eu. A solução da minha vida não se confina a um emprego. A minha família é que vê assim, mas pensa mal. A minha sorte está num casamento.
- Acha?
- Sem dúvida. Já me falharam dois, mas ao terceiro ... ganhei prática com os antecedentes. A primeira que vier à rede não escapa. Arrumo-a logo, e a família, ainda por cima, há-de andar à corda. Meu amigo... A sorte não passa muitas vezes à nossa porta. Precisamos de lhe deitar a mão logo que a vemos.
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- E como se vê?
- Calcula-se. É preferível um engano a um falhanço. - Para si, talvez um casamento. Agora para mim ...
- E porque não?
- Já reparou bem? Esta gordura ...
- Há mulheres para tudo. Até para casarem com homens honrados.
- Mas mulheres com dinheiro ...
- Dessas, evidentemente. As outras não são mulheres. Procure as igrejas, os cemitérios... Para si, o género viúva dá muito bem.
- Não seria capaz de ouvir o resto da vida a cegarrega das virtudes do defunto.
- Por ciúme?
- Talvez ...
- ó homem! ... Você parece um faraó. Quem fala hoje em ciúmes? O que é preciso, antes de tudo, é comer. E você, então, deve ser de alimento.
- Engana-se.
A campainha voltou a ouvir-se e entrou um homem baixo e seco, desengonçando-se em gestos.
- Anúncio?
- Pois claro. Muita concorrência? ...
- Alguma.
- óptimo! Gosto das grandes emoções.
- Boa tarde!
- Boa tarde!
- São...
- Somos.
Estendeu a mão aos dois e sentou-se a sorrir. -Já começou a função?
- Quando começar, vai ouvir. Venho disposto a rebentar. Se quiser ...
- O quê?
- Passo-lhe a prova. Não me decido a ficar por aqui. Tenho ambições.
- Aceito. Basta dar-me os resultados, e é exame concluído.
-Combinado!
- Lá fora beberemos uma cerveja à nossa saúde. você é um unhaca. Também passa aqui a este colega?
-Não quer.
--Ah! ... Escrúpulos! Assim nunca mais se coloca.
209

- Fico com a minha consciência. A grande arma dos homens virtuosos.
- Isso é bom. Principalmente para deitar solas em sapatos sem conserto.
- Já lhe disse que é um faraó. E é capaz de não acreditar. Há pessoas de reacções muito lentas.
- Fico com a minha.
- Procure sempre ficar também com a dos outros; fica com mais alguma coisa. Nunca se perde em acumular ... experiência e dinheiro. Ambos servem em ocasiões apertadas.
O paquete voltou junto deles para os avisar de que ia iniciar-se a prova. Na secretária já tinham colocado a folha do questionário e o material para trabalhar.
- O senhor é o primeiro. -• Se pudesse ir depois ...
- Acho que não. Os homens de consciência devem ir à frente.
Levantou-se do banco sem lhes dar resposta e voltou ao passeio. Como se viessem a perseguir-se, entraram dois homens esbaforidos e a consultar o relógio.
- Já começou?
- Ainda não.
- O senhor também ...
-'Sim, eu também. Parece-me que já o conheço. Não foi a um escritório da Rua da Prata, há aqui três semanas?
- Julgo que sim. Tenho ido a tanto lado! Já devo ter feito três voltas completas a Lisboa. E com o êxito que vê. Devíamos recusar-nos a estes exames.
- E que fazíamos?
com aquela gralhada, não tinha possibilidades de dar uma revisão à matéria. "A uma entrada de caixa corresponde..." Daqui a pouco, pela certa, vinha um remoque do escritório. Inconvenientes! Parecia que estavam num café a discutir futebol ou toiradas. Só o último é que tinha boa cara. Olhava para ele com um modo assustado, apertando as mãos, talvez para abafar o nervosismo que o devorava. Tossia com receio, tapava a boca e piscava muito os olhos.
Aproximou-se do outro e sorriu-lhe. Nas sombras da escuridão, aquele sorriso pareceu-lhe sinistro. Os outros três confraternizavam, discutindo acerca da
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justiça ou injustiça dos exames. "Seria bom para que os ouvissem, correndo-os dali para fora. Malcriados!"
- Sou o último. E ainda bem ...
- E eu o primeiro. Calhou assim!
- Não tem receio?
- Algum ... Apesar do hábito ... Talvez até por isso mesmo. Começamos a duvidar de nós. Não lhe sucede o mesmo?
- Esta é a última oportunidade. Não tenho capacidade para mais. Estou esgotado. Já reparou na minha tosse?
- Ainda não.
- Tenho uma tosse horrível. Acho que estou tuberculoso. Na minha família, todos têm morrido do mesmo mal. E agora, que não me alimento muito bem, é impossível aguentar-me por muito tempo. Devia comer ovos, bifes em sangue e geleia de mão de vaca.
- Não lhe acho mau parecer.
Um acesso de tosse, logo dominado, abalou-lhe o peito. Os outros três voltaram-se para ele, mas logo retomaram a conversa.
- Vê?
- Isso é natural.
- Em mim, é um sintoma trágico. Morreram todos assim. O último foi o meu tio Pedro. Parecido comigo. Quando me vejo ao espelho, lembro-me sempre dele. É um fantasma que me persegue. Mais do que isso: uma voz que me chama. Tenho a certeza de que já vou no mesmo caminho. Se hoje não ficar... É a minha última tentativa.
Arfava, cansado pelo esforço do diálogo. Piscava os olhitos negros e abanava a cabeça.
- Não vou até ao fim, esperançado como eles. Não me iludo. Tenho receio da morte, mas não me apavora. Irei ao encontro dela.
- O primeiro senhor ...
A voz do rapaz ressoou grave como a de um funcionário de tribunal. As caretas que fez depois desmentiram-no.
- Faça favor.
- Eu?
- Não foi o primeiro? >'
- Sim, fui. ~*
- Até já.
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O outro apertou-lhe a mão e sentiu-o febril. À socapa, limpou-a nas calças, receoso do contágio.
- Boa sorte!
A chapada de luz do sol bateu-lhe no rosto e impressionou-o.
Faziam de propósito. Parecia um reflector de automóvel para caçar coelhos. Ouvia chamar, mas não sabia ir ao encontro da voz.
- Aquele senhor ...
Fez uma vénia rasgada e tossicou. Compondo os óculos, passou o olhar pelas secretárias.
- A prova está aí em cima. Devo avisá-lo de que tomamos em consideração o factor tempo.
- O factor...
- Tempo. Só admitimos pessoal desembaraçado. Mas não esqueça a caligrafia.
- Muito obrigado.
- Faça favor.
Viu-o olhar o relógio e tomar nota da hora. Confrontou com o seu - três e um quarto. Arrependeu-se de não ter aceitado a oferta do imponente. Agora era tarde. Aproveitaria o palhaço pequeno que entrara depois. Esses entendiam-se bem. Nada de pensamentos fúteis! Vamos a isto!
"-Uma soma..."
Compôs os óculos e os números baralharam-se. Pôs os olhos mais perto da prova e atirou-se à tarefa.
"- Dois e oito ... dez."
Sentia-se nervoso. Raios partam os nervos! O pior era a letra. Tinha a certeza de que, por muito tempo que se apurasse, não conseguiria vencer o tremor da mão. Não poderia desenhar a letra com grossos e finos que o Costa lhe ensinada nos "Cadernos Godinho. Eles querem os livros bonitos.
- Trinta e sete e sete ... quarenta e três, não, não, quarenta e quatro."
Apetecia-lhe contar pelos dedos. Coisa infernal! Ele que era um ás em contas, atrapalhado com uma simples soma. E depois a máquina de escrever a complicar tudo naquela estúpida lengalenga do costume. Haviam passado dois minutos.
"-E vão onze ..."
Lançou-se à outra coluna com maior desembaraço, e os números corriam-lhe para o aparo mais apressados
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do que desejava. Juntava-os inconscientemente, unía-os uns nos outros, sem capacidade de mecanismo do cérebro. Apeteceu-lhe fumar um cigarro^ mas conteve-se. Sentiu que um suor estranho lhe inundava a testa e ressumava das mãos. Lembrou-se do tuberculoso - e da última oportunidade. "Não me apavora a morte."
"-Cento e vinte e sete e oito..."
Chegara a meio das colunas. A caligrafia deixava-o mal. com aparos de "libra cinco" fora sempre um barra. Agora a mão tremelicava-lhe assustada e um suor esquisito corria nela. O tuberculoso apertara-lhe com gana. Os dedos dele pareciam garras. Ainda lhes sentia a pressão, como se vivesse já o último estertor. Devia ser assim o adeus dos homens que morrem.
Os números galopavam para ele, entontecendo-o. Havia alguns que queriam escapar-se, e para os reter tinha de suspender a soma, fincando o aparo no papel, e esperar depois que se compusessem na coluna. Não sabia bem o que estava a fazer, mas não podia hesitar. "Tomamos em consideração o factor tempo."
"- E vão treze ... Treze e quatro dezassete ... vinte e dois ... vinte e cinco ... trinta ... trinta e três ... - Diga lá trinta e três. Temos fita!-Trinta e três... quarenta ... quarenta e nove ..."
- Some em voz baixa.
- Sim, senhor.
A soma perdera-o. Talvez não lhe valesse a pena continuar. A mão tremia-lhe. Sentia-se incapaz do mais simples raciocínio. Só se levasse os resultados para o tuberculoso. E ele? Já agora, mais um arranco; faltava-lhe a última coluna.
"- Cento e vinte e sete . . cento e trinta e cinco ... cento e trinta e oito ... cento e quarenta e sete ... sete ... cento e cinquenta e dois."
Escreveu os três números e passou ao resto. Depois tiraria a prova. Era simples, afinal. Pela soma da Razão.
"-Bolas!"
Deu-lhe ganas de amachucar o papel nos dedos e atirá-lo pela janela. Caíra-lhe um borrão na prova. Procurou o enxugador, e não o encontrou.
Não havia direito! Miseráveis! Recusarem um mata-borrão a quem escreve! ",** -> -,* ^
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- Empresta-me o seu enxugador?
- com certeza. Às suas ordens. > Aquele pareceu-lhe simpático.
Já não livrava a mazela. Julgariam que era porco, quando se podiam ver os registos que lhe saíam da mão. Nunca mais faria exame. Não se dispunha mais a fantochadas. Não tinha nervos para aquilo. Preferia trabalhar um mês sem remuneração a prestar-se àquelas comédias. Sabia-se lá assim quem era competente! Os seus dois melhores atributos postos em xeque. Caligrafia e limpeza. E mesmo a soma. Era de um santo perder a cabeça.
"-A soma do balancete do Razão é igual à soma do Diário."
Perguntas de três ao vintém e uma caligrafia daquelas! E ainda por cima um borrão!
- Está pronto?
- Sim, senhor. Já não podia conferir a soma. Faltava-lhe a última
resposta e a assinatura.
"-Por um estorno." **
Levantou-se para entregar a prova e o soalho parecia dançar debaixo dos seus pés. Sentia-se como um barco
acossado pelo temporal.
- Convém indicar o seu endereço.
- Dá-me licença?
- Faça favor.
- Desculpe o borrão, mas foi um incidente desagradável. Tudo o que faço é muito limpo. Estou disposto a confirmá-lo numa experiência sem remuneração.
- Tomarei nota.
- Obrigado.
- Depois se dirá por postal se deve comparecer.
- Muitos dias?
- Os que julgarmos convenientes.
- Muito obrigado.
Cumprimentou numa vénia respeitosa e fez o mesmo para as outras secretárias. A dactilógrafa sorria-se. O raio que a parta! Tem olhos de galdéria!
O rapaz foi acompanhá-lo ao corredor. Mal chegou, os outros envolveram-no em perguntas:
- Então?
- Fácil... Mas tive azar.
214
Olhou o tuberculoso com ódio. Piscava ainda mais os olhos, tentando esmagar nas mãos os acessos de tosse.
- Uma soma e três perguntas. Coisas de nada. Aquilo é lá um exame!
- Não lhe disse? Devíamo-nos recusar a estas larachas. As nossas cartas de curso servem de penhor.
- E os que as não têm?
- Que arranjem outra profissão.
- E se não encontrarem?
- Enforquem-se. Andam a mais no mundo. O que falta é unidade entre a gente da mesma profissão.
- Eu faço hoje a última tentativa.
- A última? ...
- Quem segue? ... - A voz do paquete vibrou no corredor.
- Eu. - E num aparte para os outros, depois de puxar do monóculo, que colocou: -Vão ver a cena. Eu vou ensiná-los.
- Não esqueça os apontamentos, ha? Bebemos uma cerveja lá fora.
- Fique descansado. E desapareceu.
Os quatro ficaram de ouvido à escuta. O matraquear seco da máquina ouvia-se como uma metralhadora a cantar no silêncio.
- Está nervoso?
- Estou. é a última.
-Não se atrapalhe. Pense que tudo vai ser fácil. --Pois é, mas ... Eu vinha com sangue-frio, e agora que se aproxima a minha vez... Se fosse sozinho!
- Casado?
- E com três filhos. Aí é que está o problema.
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EXPEDITO, o guarda-livros entrou no gabinete da gerência e não esperou que o Sr. Loureiro lhe perguntasse ao que ia. O dinamismo habitual arrastava-o para o prazer guloso da conversa. Exultava com a saída do Pimenta.
- Recebemos cinquenta e três respostas, como dei conhecimento, e escolhi quatro concorrentes. Julgo que vamos ficar bem servidos. Um empregado de boa caligrafia, rápido, de olhar inteligente ...
- Desconfio das pessoas muito inteligentes.
- Não me parece demasiado. Um homem sóbrio e muito correcto. Ordenado ao nosso critério ... Penso oferecer-lhe quinhentos escudos.
O telefone deu sinal. Loureiro fez uma careta, mas logo se recompôs num sorriso doce, virando as costas ao guarda-livros. Este percebeu e escapou-se despeitado.
- Muito trabalho, Clarinha, um inferno de trabalho. Sim, esta noite apareço-te um bocadinho... Pois sim, Clarinha, iremos dar um passeio... Assente! E que mais?! ... Venha esse pedido... O quê? Um primo teu? Nunca me falaste desse primo ... Claro que podes ter primos. Tens todo o direito a família, é evidente. Não pretendo de qualquer forma matar-te a família... Não te zangues por tão pouco... Vá, diz lá o que queres.
Loureiro enerva-se, mas procura dominar a voz.
- Sim, Clarinha; pois sim, Clarinha. Tu mandas . . Pronto, combinado. Amanhã mesmo, às nove e meia... Então depois de amanhã. Até logo, minha filha. Não, agora não. Estou acompanhado. Sim, às nove e meia ... Está bem, às nove... Adeus, Clarinha! ...
Atira com o telefone, num repelão, preme depois o botão da campainha, que só abandona quando o guarda-
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-livros surge à porta. com um sinal, manda-o entrar depressa e depois recosta-se na cadeira, a testa apoiada na mão. _.
- Trago aqui o postal.para o senhor assinar ...
- Assinar o quê?!
- O postal para o novo empregado ... --Ah!
Loureiro pega-lhe, lê com1 atenção aparente e depois atira-o para cima do tampo. da secretária.
- O postal não segue ...'
Espantado, o guarda-livros recolhe o sorriso maneirinho.
- Acabo de receber um pedido de pessoa grada do Banco, a quem não posso recusar.
- Escusávamos tanto trabalho ...
- Mas os senhores não vem cá senão para trabalhar no que for necessário ... Mais alguma coisa ...
- Não ...
Vexado, um tanto trémulo, o chefe de escritório prepara-se para sair. Loureiro puxa da cigarreira e estende-lha.
- Não, muito obrigado - recusa o guarda-livros com gentileza.
- Deixe-se disso, homem. Fume lá um cigarro; não me diga que um cigarro lhe faz mal à úlcera.
Acende-lho e chega lume ao seu.
- O rapaz entra depois de amanhã ... Pode ser que este pedido do Banco nos sirva na primeira altura ...
- Espero que sirva, ao menos.
- Se for fraco, puxe por ele; não há outro remédio. - E, ante o pasmo do chefe de escritório: - Ou acha que posso dizer à pessoa que o rapaz é incompetente?

 

 

                                                                  Alves Redol

 

 

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