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AO CHAT QUI PELOTE / Honoré de Balzac
AO CHAT QUI PELOTE / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

No meio da rue Saint-Denis, quase na esquina da rue du Petit-Lion, existia outrora uma dessas preciosas casas que facilitam aos historiadores a reconstrução, por analogia, da antiga Paris. Os muros ameaçadores daquele pardieiro pareciam pintalgados de hieróglifos. Que outro nome poderia dar o transeunte aos xx e vv traçados na fachada pelos caibros transversais ou diagonais delineados no reboco por pequenas rachas paralelas? Evidentemente cada carro ao passar fazia que aquelas vigas dançassem nas suas mortagens. O venerável edifício tinha um telhado triangular, cujo modelo em breve não mais se verá em Paris. Abaulado pelas intempéries do clima parisiense, esse telhado sobressaía, mais ou menos, três pés sobre a rua, tanto para proteger da chuva a soleira da porta como para abrigar a parede das águas-furtadas e seu olho-de-boi sem rebordo. Esse último andar era construído com tábuas pregadas umas sobre as outras, como ardósias, decerto para não sobrecarregar aquele frágil edifício.

 


 


Por uma manhã chuvosa do mês de março, um rapaz, cuidadosamente envolto na sua capa, estava sob o telheiro da loja fronteira àquela velha habitação e parecia examiná-la com o entusiasmo de um arqueólogo. Realmente, aquele remanescente da burguesia do século XVI podia oferecer a um observador mais de um problema para resolver. Cada andar apresentava sua singularidade. No primeiro, quatro janelas altas, estreitas, próximas umas das outras, tinham painéis de madeira na parte inferior, a fim de condicionar essa luz dúbia, graças à qual um hábil negociante empresta aos tecidos a cor desejada pelo freguês. O rapaz aparentava completo desdém por essa parte essencial da casa; seus olhos nem uma vez nela se detiveram. As janelas do segundo andar, cujos postigos abertos deixavam ver através dos grandes cristais de Boêmia das vidraças pequenas cortinas de musselina ruça, tampouco o interessavam. Sua atenção dirigia-se particularmente ao terceiro andar, a humildes janelas, cujo madeiramento, grosseiramente trabalhado, teria merecido um lugar no Conservatório de Artes e Ofícios, a fim de mostrar os primeiros esforços da carpintaria francesa. Essas janelas tinham pequenas vidraças de coloração tão verde que, se não fosse a sua excelente vista, o rapaz não poderia vislumbrar as cortinas de xadrez azul que ocultavam os mistérios daquele apartamento aos olhares dos profanos. Por vezes, aquele observador, contrariado com a sua contemplação sem resultado ou com o silêncio em que a casa estava mergulhada, assim como todo o bairro, baixava os olhos para as regiões inferiores. Esboçava-se então em seus lábios um sorriso involuntário, quando tornava a ver a loja onde, de fato, se encontravam coisas bastante risíveis. Uma formidável viga de madeira, horizontalmente apoiada sobre quatro pilares, que pareciam curvados ao peso daquela casa decrépita, tinha sido realçada com tantas camadas de pintura, como de ruge as faces de uma velha duquesa. No meio dessa larga viga pretensiosamente esculpida via-se um antigo quadro que representava um gato jogando pelota. Essa tela provocava a hilaridade do rapaz. Mas é preciso dizer que o mais espirituoso dos pintores modernos não seria capaz de idear uma caricatura tão cômica. O animal segurava com uma das patas dianteiras uma raquete tão grande quanto ele e erguia-se sobre as patas traseiras a fim de aparar uma enorme bola que lhe atirava um gentil-homem agaloado de ouro. Desenho, cores, acessórios, tudo fora executado de modo a fazer crer que o artista pretendera divertir-se à custa do negociante e dos transeuntes. A ação do tempo, alterando a ingênua pintura, tornara-a ainda mais grotesca por algumas dubiedades que deviam inquietar os passantes conscienciosos. Por exemplo, a cauda mosqueada do gato ficara recortada de tal forma que se podia tomá-la por um espectador, tão grande e basta era a cauda dos gatos de nossos antepassados. À direita do quadro, sobre um campo celeste que mal encobria a podridão da madeira, os transeuntes liam: guillaume; e à esquerda: successeur du sieur chevrel. Sol e chuva tinham roído a maior parte do pó dourado parcimoniosamente aplicado sobre as letras daquela inscrição, na qual os uu substituíam os vv, e reciprocamente, segundo as regras da nossa antiga ortografia. Para abater o orgulho de quantos pensam que o mundo se torna de dia para dia mais espirituoso e que o moderno charlatanismo sobrepassa tudo, convém aqui observar que essas insígnias, cuja etimologia parece estranha a mais de um negociante parisiense, são os quadros mortos de quadros vivos com auxílio dos quais nossos espertos antepassados haviam conseguido atrair freguesia para as suas casas. Assim a Porca que Fia, o Macaco Verde etc. foram animais engaiolados cuja habilidade maravilhava os passantes e cuja educação provava a paciência do industrial do século XV. Semelhantes curiosidades enriqueciam mais depressa seus felizes proprietários do que a Providência, a Boa-Fé, a Graça-de-Deus e o Degolamento de são João Baptista, que ainda se veem na rue Saint-Denis. Entretanto, o desconhecido não permanecia ali, certamente, para admirar aquele gato, que um momento de atenção bastava para gravar na memória. Aquele rapaz tinha também as sua singularidades. Sua capa, traçada ao gosto das figuras antigas, deixava ver que ele usava um elegante calçado, tanto mais notável no meio da lama parisiense quanto trazia meias de seda branca, cujas manchas lhe atestavam a impaciência. Tinha saído, sem dúvida nenhuma, de alguma festa ou de um baile, pois a essa hora matinal segurava na mão um par de luvas brancas, e as mechas de seus cabelos negros desfrisados, esparsos sobre os ombros, revelavam um penteado à Caracala, posto em moda tanto pela escola de David (Caracala: imperador romano (188-227). David: Pierre-Jean David d’Angers (1788-1856), escultor, autor, entre outras obras, de um busto de Balzac.) como por esse entusiasmo pelas formas gregas e romanas que assinalou os primeiros anos do século. Apesar do barulho que faziam alguns verdureiros atrasados ao passar a galope para o mercado central, aquela rua tão agitada estava então numa quietude cuja magia só é conhecida por aqueles que vagaram por Paris deserta, nas horas em que seu ruído, um momento acalmado, renasce, e se ouve ao longe como a grande voz do mar. Aquele estranho jovem devia despertar a curiosidade dos comerciantes do “Chat-qui-pelote”, tanto quanto o “Chat-qui-pelote” despertava a dele. Uma gravata de alvura deslumbrante fazia-lhe o rosto atormentado mais pálido ainda do que realmente era. O fulgor, ora sombrio, ora cintilante, que lançavam seus olhos negros, harmonizava-se-lhe com o contorno estranho do rosto, com a boca larga e sinuosa, que ao sorrir se contraía. A fronte, enrugada por violenta contrariedade, tinha algo de fatal. Não é a fronte o que há de mais profético no homem? Quando a do desconhecido exprimia a paixão, as rugas que nela se formavam chegavam a assustar, tal a força com que se pronunciavam; mas ao readquirir a calma, que tão facilmente perdia, espalhava-se nela uma graça luminosa que tornava atraente aquele semblante, ao qual a alegria, a dor, o amor, a cólera, o desdém afloravam de modo tão comunicativo que o homem mais frio devia ficar impressionado. Aquele desconhecido estava tão enfadado no instante em que precipitadamente abriram a trapeira da água-furtada que não viu aparecerem três risonhas faces rechonchudas, claras, rosadas, mas tão comuns como as imagens do comércio esculpidas em certos monumentos. Aquelas três faces, enquadradas pela lucarna, lembravam as cabeças de anjos gorduchos, semeados nas nuvens que cercam o Padre Eterno. Os aprendizes respiraram as emanações da rua com uma avidez que demonstrava o quanto estava quente e mefítica a atmosfera do sótão. Depois de ter atentado àquela estranha sentinela, o caixeiro que parecia ser o mais jovial dos três sumiu e voltou em seguida, trazendo na mão um instrumento, cujo metal rígido fora recentemente substituído por um couro flexível; depois, todos tiveram uma expressão maliciosa ao olhar o basbaque, que borrifaram com um chuvisco fino e esbranquiçado, cujo perfume demonstrava que os três queixos acabavam de ser barbeados. Esticados na ponta dos pés e refugiados no fundo do sótão para gozar da cólera de sua vítima, os caixeiros deixaram de rir ao ver o despreocupado desdém com que o rapaz sacudiu a capa e o desprezo profundo que se desenhou em seu rosto quando ergueu os olhos para a trapeira vazia. Naquele momento, uma mão alva e delicada levantou a parte inferior de uma das grosseiras janelas do terceiro andar, por meio de uma dessas corrediças cujo torniquete deixa cair, muitas vezes, imprevistamente, as pesadas vidraças que deveria sustentar. O rapaz foi então recompensado da sua longa espera. Surgiu a figura de uma moça, viçosa como uma dessas alvas corolas que florescem no seio das águas, toucada com uma capota de musselina franzida, que lhe dava à cabeça um admirável ar de inocência. Embora recobertos por uma fazenda escura, entreviam-se-lhe o pescoço e os ombros, graças ao desarranjo produzido pelos movimentos que fizera durante o sono. Nenhuma expressão de constrangimento alterava a ingenuidade daquele semblante nem a calma daqueles olhos imortalizados por antecipação nas sublimes composições de Rafael: era a mesma graça, a mesma tranquilidade daquelas virgens que se tornaram proverbiais. Havia um contraste encantador entre a mocidade das faces daquele rosto sobre o qual o sono como que pusera em relevo uma superabundância de vida e a velhice daquela janela maciça, de contornos grosseiros e de parapeito negro. Tal como essa flores diurnas que pela manhã ainda não expandiram sua túnica enrolada pelos frios da noite, a moça, apenas despertada, deixou vagar os olhos azuis por sobre os telhados vizinhos e olhou o céu; depois, por uma espécie de hábito, baixou-os para as sombrias regiões da rua, onde encontraram logo os do seu adorador. O coquetismo fê-la sem dúvida sofrer por se deixar ver naquele desalinho; recuou da janela, o torniquete gasto girou, e a vidraça desceu com a rapidez que, nos nossos dias, inspirou um nome odioso (Um nome odioso: “janela de guilhotina”.) para aquela ingênua invenção de nossos antepassados. A visão desapareceu. Ao rapaz afigurou-se-lhe que a mais brilhante estrela da manhã fora subitamente encoberta por uma nuvem.

Enquanto sucediam esses pequenos acontecimentos, os pesados postigos interiores que defendiam os frágeis vidros da loja do “Chat-qui-pelote” haviam sido retirados como por magia. A velha porta de batentes foi dobrada contra a parede interior da casa, por um criado verossimilmente contemporâneo da tabuleta, o qual, com mão trêmula, prendeu naquela o pedaço de pano quadrado em que se via, bordado a seda amarela, o nome de Guillaume, successeur de Chevrel. Bem difícil seria para muitos transeuntes adivinhar a natureza do comércio do sr. Guillaume. Através dos grossos barrotes de ferro que protegiam exteriormente o seu negócio, podiam-se apenas ver pacotes envoltos em tela escura, tão numerosos como arenques quando atravessam o oceano. Não obstante a aparente simplicidade daquela fachada gótica, o sr. Guillaume era, de todos os negociantes de fazendas de Paris, aquele cujos depósitos estavam mais bem sortidos, cujas relações eram mais vastas e cuja probidade comercial era mais impecável. Se alguns de seus confrades tinham fechado negócio com o governo, sem ter a referida quantidade de fazenda, ele sempre se prontificava a ceder-lhes a de que precisassem para satisfazer os compromissos, por mais considerável que fosse o número de peças pedidas. O ardiloso negociante conhecia mil modos de auferir a maior parte dos lucros sem se ver obrigado, como os outros, a correr à casa dos protetores para fazer baixezas ou ricos presentes. Se os colegas só lhe podiam pagar com excelentes letras a longo prazo, ele lhes indicava seu tabelião, como um homem conciliador, e sabia, graças a esse expediente, tirar ainda um segundo proveito, o que fazia que os comerciantes da rue Saint-Denis dissessem proverbialmente: “Deus o livre do tabelião do sr. Guillaume!”—para designar um desconto oneroso. Como por milagre, o velho negociante surgiu de pé à porta da loja no momento em que o criado se retirou. O sr. Guillaume contemplou a rue Saint-Denis, as lojas vizinhas e o tempo, da mesma forma pela qual um homem que desembarca no Havre e revê a França, depois de uma longa viagem. Convencido de que não houvera mudanças durante seu sono, viu então o passante em sentinela, o qual, por sua vez, observava o patriarca das fazendas por atacado, como Humboldt (Humboldt: Alexander von Humboldt (1769-1850), sábio naturalista alemão, autor de Kosmos, ou descrição física do mundo. Gimnoto: peixe elétrico teleósteo, de água doce.) deve ter examinado o primeiro gimnoto elétrico que viu na América. O sr. Guillaume vestia calções largos de veludo preto, meias multicores e sapatos de bico quadrado com fivelas de prata. Sua casaca de abas quadradas, de lapelas quadradas, de gola quadrada, envolvia-lhe o corpo, levemente encurvado, de uma fazenda esverdeada, guarnecida de botões de metal prateado, mas enferrujados pelo uso. Seus cabelos grisalhos estavam tão perfeitamente alisados e penteados sobre o crânio amarelo que o faziam assemelhar-se a um campo lavrado. Seus pequenos olhos verdes, que pareciam ter sido feitos com uma verruma, chamejavam sob dois arcos assinalados por uma leve marca avermelhada, na falta das sobrancelhas. As preocupações lhe haviam traçado sobre a testa sulcos horizontais tão numerosos quanto as pregas do seu casaco. Aquele semblante lívido revelava paciência, tino comercial e a espécie de cupidez ardilosa exigida pelos negócios. Naquela época, se viam menos raramente do que hoje essas velhas famílias nas quais se conservavam, como tradições preciosas, os hábitos e usos característicos de suas profissões, e que ficaram no meio da nova civilização como esses fósseis antediluvianos que Cuvier descobriu em suas escavações. O chefe da família Guillaume era um desses notáveis guardiães dos antigos costumes: surpreendiam-no a lamentar a falta do preboste dos mercadores (Preboste dos mercadores: antigamente, o primeiro magistrado municipal de Paris, chefe dos comerciantes.), e nunca falava de um julgamento do Tribunal do Comércio sem chamá-lo sentença dos cônsules. Era sem dúvida em virtude desses hábitos que, sendo o primeiro a levantar-se em casa, esperava a pé firme a chegada dos três caixeiros para passar-lhes um carão no caso de virem atrasados. Aqueles jovens discípulos de Mercúrio (Mercúrio: na mitologia antiga, deus do comércio.) não conheciam nada tão atemorizante como a atividade silenciosa com que o patrão lhes escrutava o semblante e os movimentos, na segunda-feira de manhã, para ver se encontrava neles provas ou vestígios de pândegas. Naquele momento, porém, o velho negociante de fazendas não prestou nenhuma atenção aos seus aprendizes. Estava entretido em procurar o motivo pelo qual o rapaz das meias de seda e da capa dirigia alternativamente os olhos ora para a sua tabuleta, ora para as profundidades da loja. O dia, que se tornara mais luminoso, permitia divisar o escritório gradeado, cercado de reposteiros de velha seda verde, onde repousavam os enormes livros, mudos oráculos da casa. Aquele desconhecido excessivamente curioso parecia cobiçar esse pequeno recinto, esquadrinhando a sala de jantar lateral, iluminada por uma claraboia, e de onde a família reunida devia ver, facilmente, durante as refeições, os mais insignificantes acontecimentos que se produzissem na entrada da loja. Tão grande interesse pela sua habitação parecia suspeito para um negociante que suportara o regime do Maximum (Maximum: tabelamento dos gêneros. Aqui o autor alude especialmente ao decreto de tabelamento publicado durante a Revolução Francesa. Sua publicação e revogação ocasionaram grandes desordens, em particular manifestações contra os industriais e os atacadistas.). O sr. Guillaume pensava, pois, muito naturalmente, que aquela figura sinistra tinha o olho na caixa do “Chat-qui-pelote”. Depois de ter gozado discretamente com o duelo mudo que se estava realizando entre o patrão e o desconhecido, o mais velho dos caixeiros arriscou-se a tomar lugar na calçada, onde se mantinha o sr. Guillaume para ver o rapaz contemplar de soslaio a janela do terceiro andar. Deu dois passos na rua, levantou a cabeça e julgou ter visto a srta. Augustina Guillaume, a qual recuou precipitadamente. Pouco satisfeito com a perspicácia de seu primeiro caixeiro, o negociante atirou-lhe um olhar atravessado; mas, de repente, acalmaram-se os temores mútuos que a presença daquele desconhecido suscitava na alma do comerciante e na do apaixonado caixeiro. O desconhecido chamou um fiacre que se dirigia para uma praça vizinha e nele subiu rapidamente, fingindo uma enganosa indiferença. Essa partida teve o efeito de um bálsamo no coração dos outros caixeiros, que estavam bastante inquietos por terem tornado a encontrar a vítima de sua brincadeira de mau gosto.

— Então, senhores, que têm para estar aí de braços cruzados?—disse o sr. Guillaume aos seus três neófitos.—Antigamente, com os diabos, quando trabalhava com sieur Chevrel, a estas horas já eu tinha examinado duas peças de fazenda!

— É que então amanhecia mais cedo—disse o segundo caixeiro, a quem incumbia essa tarefa.

O velho negociante não pôde deixar de sorrir. Conquanto dois daqueles três rapazes, confiados a seus cuidados pelos pais, ricos manufatureiros em Louviers e Sedan, não tivessem mais do que pedir cem mil francos e obtê-los quando estivessem com idade de se estabelecer, Guillaume julgava de seu dever mantê-los sob a férula de antigo despotismo, desconhecido em nossos dias nos elegantes estabelecimentos modernos, cujos caixeiros querem ser ricos aos trinta anos. Fazia-os trabalhar como negros. Entre os três, aqueles caixeiros bastavam para realizar um trabalho que teria esfalfado dez desses empregados, cujo sibaritismo avoluma hoje as colunas do orçamento. Nenhum ruído perturbava a paz daquela casa solene, cujos gonzos pareciam estar sempre azeitados, e cujo móvel mais insignificante tinha esse asseio respeitável que denota uma ordem e uma economia severas. Muitas vezes o mais brincalhão dos caixeiros divertira-se em escrever no queijo de Gruyère, que lhes entregava ao almoço e que eles se compraziam em respeitar a data de sua recepção primitiva. Essa malícia e algumas outras do mesmo quilate faziam sorrir a mais moça das duas filhas de Guillaume, a linda virgem que acabava de se mostrar ao desconhecido encantado. Embora cada um dos aprendizes, e até o mais antigo, pagasse uma forte pensão, nenhum deles teria ousadia bastante para ficar na mesa do patrão no momento em que serviam a sobremesa. Quando a sra. Guillaume falava em temperar a salada, os pobres rapazes tremiam ao pensar na parcimônia com que sua prudente mão sabia dosar o azeite. Que nem por sonhos se lembrassem de passar uma noite fora, sem ter, muito tempo antes, dado um pretexto plausível para essa irregularidade. Cada domingo, e alternadamente, dois caixeiros escoltavam a família Guillaume à missa de Saint-Leu e às vésperas. As srtas. Virgínia e Augustina, modestamente vestidas de chita, tomavam cada uma o braço de um dos caixeiros e caminhavam na frente, sob o olhar observador da mãe, que fechava esse pequeno cortejo doméstico com o marido, a quem acostumara a carregar dois volumosos livros de horas, encadernados de marroquim negro. O segundo caixeiro não tinha ordenado. Quanto àquele que doze anos de perseverança e discrição tinham iniciado nos segredos da casa, recebia oitocentos francos em recompensa de seus trabalhos. Em certas festas da família, gratificavam-no com presentes, cujo valor provinha unicamente de terem passado pelas mãos secas e enrugadas da sra. Guillaume: bolsas de crochê, que ela tinha o cuidado de encher de algodão para realçar o desenho das malhas; suspensórios reforçados ou pares de meias de seda bem pesados. Algumas vezes, mas isso raramente, esse primeiro-ministro era admitido a partilhar dos prazeres da família, ou quando esta ia para o campo, ou quando, após meses de espera, se decidia a usar do seu direito de assistir, comprando um camarote, a uma peça na qual Paris já não pensava mais. Em relação aos dois outros caixeiros, a barreira de respeito que separava antigamente um senhor negociante de fazendas dos seus aprendizes estava tão solidamente assentada entre eles e o patrão que mais fácil lhes seria roubar uma peça de pano do que infringir aquela augusta etiqueta. Hoje, isso pode parecer ridículo. Não obstante, essas velhas casas eram escolas de bons costumes e de probidade. Os patrões adotavam seus aprendizes. A roupa deles era cuidada, consertada e algumas vezes renovada pela dona da casa. Se um caixeiro adoecia, tornava-se objeto de cuidados verdadeiramente maternais. Em caso de perigo, o patrão prodigalizava seu dinheiro para chamar os mais célebres médicos, pois não eram responsáveis somente pelos costumes e pelo saber daqueles jovens perante os respectivos pais. Se um deles, respeitável pelo caráter, sofria qualquer desastre, aqueles velhos negociantes sabiam apreciar a inteligência que eles próprios haviam desenvolvido e não hesitavam em confiar a felicidade de suas filhas àqueles a quem durante anos haviam confiado suas fortunas. Guillaume era um desses homens antigos e, se lhes tinha os ridículos, tinha-lhes também todas as qualidades. Por isso José Lebas, seu primeiro caixeiro, órfão e sem fortuna, era, no seu pensamento, o futuro esposo de Virgínia, sua filha mais velha. José, porém, não partilhava os pensamentos simétricos do patrão, o qual nem a troco de um império teria consentido em casar sua segunda filha antes da primeira. O infeliz caixeiro estava apaixonado pela filha mais moça, srta. Augustina. Para justificar essa paixão que crescera secretamente, é necessário penetrar mais fundo na engrenagem do governo absoluto que regia a casa do velho negociante de fazendas.

Guillaume tinha duas filhas. A mais velha, srta. Virgínia, era em tudo o retrato da mãe. A sra. Guillaume, filha de sieur Chevrel, mantinha-se tão ereta no banco da caixa que por mais de uma vez ouvira graciosos apostarem que ela estava ali empalada. Sua figura magra e alta atraía uma devoção desmedida. Sem graças e sem maneiras amáveis, a sra. Guillaume enfeitava habitualmente a cabeça, quase sexagenária, com uma touca, cuja forma era invariável e guarnecida de fitas pendentes, como as de uma viúva. Toda a vizinhança chamava-a de irmã porteira. Tinha a palavra breve, e havia em seus gestos qualquer coisa dos movimentos entrecortados de um aparelho telegráfico (Os movimentos entrecortados de um aparelho telegráfico. Para compreender o trecho é preciso lembrar-se de que se trata do telégrafo Chappe, que durante cinquenta anos funcionou na França e foi adotado em outros países. Segundo amável informação de Antônio Gil (A. P. Carvalho), o aparelho constava de uma prancheta de 4 metros, firmada pelo centro na ponta de um mastro e tendo nas extremidades duas outras réguas de 1 metro. Todo o sistema era articulado, e por meio de cordas e polias, manejadas dentro da torre onde era fincado o mastro, tomavam as pranchetas várias posições, cada qual representando determinado sinal de um código. Tais pranchetas e seus movimentos, efetuados com grande rapidez pelo operador, eram vistos a grandes distâncias através de óculos de alcance. A mensagem expedida por um posto era imediatamente repetida no posto seguinte à medida que ia sendo articulada.). Seus olhos, claros como os de um gato, pareciam ter rancor contra todos pelo fato de ela ser feia. A srta. Virgínia, educada, assim como a irmã mais nova, sob as leis despóticas da mãe, alcançara a idade dos vinte e oito anos. A mocidade atenuava o ar desgracioso que a semelhança com a mãe dava por vezes à sua fisionomia, mas o rigor materno dotara-a de duas grandes qualidades que podiam contrabalançar tudo: era meiga e paciente. A srta. Augustina, com dezoito anos apenas, em nada se parecia ao pai nem à mãe. Era dessas raparigas que, pela ausência de qualquer laço físico com os pais, fazem crer no ditado devoto: “Deus é quem dá os filhos”. Augustina era pequena, ou, para melhor descrevê-la, mimosa. Graciosa e cheia de candor, um homem da alta sociedade nada poderia censurar a essa encantadora criatura, a não ser gestos acanhados ou certas atitudes vulgares e, por vezes, constrangimento. Seu semblante mudo e imóvel respirava essa melancolia passageira que se apodera de todas as raparigas demasiado fracas para ousar resistir à vontade de uma mãe. Sempre modestamente vestidas, as duas irmãs não podiam satisfazer a faceirice inata na mulher senão por um luxo de asseio que lhes assentava às mil maravilhas e punha-as em harmonia com aqueles balcões lustrosos e aquelas prateleiras sobre as quais o velho criado não consentia um grão de pó, e, numa palavra, com a simplicidade antiga de tudo que as cercava. Obrigadas pelo seu gênero de vida a procurar elementos de felicidade em trabalhos obstinados, Augustina e Virgínia até então só haviam dado motivos de contentamento a sua mãe, que, secretamente, se felicitava pela perfeição do caráter das filhas. É fácil imaginar os resultados da educação que as duas haviam recebido. Educadas para o comércio, habituadas a só ouvir raciocínios e cálculos tristemente mercantis, não tendo estudado mais do que gramática, escrituração, um pouco de história judaica, a história da França em Le Ragois (Le Ragois: trata-se do abade Claude Le Ragois, diretor de consciência de mme. de Maintenon, autor da Introdução sobre a história da França e a história romana (1684), obra muitas vezes reeditada, apesar de medíocre.) e lendo somente os autores cuja leitura lhes era permitida pela mãe, suas ideias não tinham adquirido grande descortino; conheciam perfeitamente os arranjos domésticos, sabiam o preço das coisas, avaliavam as dificuldades que há em juntar dinheiro, eram econômicas e tinham grande respeito às qualidades do negociante. Apesar da fortuna do pai, eram tão hábeis em cerzir como em remendar: seguidamente a mãe falava em ensinar-lhes a cozinhar, a fim de que soubessem determinar um jantar e repreender a cozinheira com conhecimento de causa. Ignorando os prazeres sociais e vendo como se escoava a vida exemplar dos pais, bem raramente deixavam ir o olhar além do recinto da velha casa patrimonial, que para a mãe delas era todo o universo. As reuniões motivadas pelas solenidades de família constituíam todo o futuro de suas alegrias terrenas. Quando o grande salão, situado no segundo andar, se abria para receber a sra. Roguin—uma srta. Chevrel, mais moça quinze anos do que a prima e que usava diamantes; o jovem Rabourdin, subchefe das Finanças; o sr. César Birotteau, rico perfumista, e sua mulher, a quem chamavam sra. César; o sr. Camusot, o mais rico comerciante de sedas da rue des Bourdonnais, e seu sogro, o sr. Cardot; dois ou três velhos banqueiros e mulheres irrepreensíveis -, os aprestos devidos ao modo como eram empacotados a prataria, as porcelanas de Saxe, as velas, os cristais, traziam uma variante à vida monótona daquelas três mulheres que iam e vinham, movimentando-se tanto quanto religiosas para a recepção de um bispo. Depois, quando, à noite, cansadas as três de terem limpado, esfregado, desempacotado, posto no lugar os ornamentos da festa, as duas filhas ajudavam a mãe a deitar-se, a sra. Guillaume dizia-lhes:

— Nada fizemos hoje, minhas filhas!

Quando, nessas assembleias solenes, a irmã porteira permitia que dançassem, removendo as partidas de bóston, de uíste e de gamão para o seu quarto de dormir, essa concessão era classificada entre as felicidades mais inesperadas e causava uma ventura igual à de ir a dois ou três grandes bailes, aonde Guillaume levava as filhas na época do Carnaval. Enfim, uma vez por ano, o honesto negociante dava uma festa, para a qual nada era poupado. Por mais ricas e elegantes que fossem as pessoas convidadas, ninguém se lembrava de faltar, pois as mais importantes casas da praça recorriam ao imenso crédito, à fortuna ou à velha experiência do sr. Guillaume. Mas as duas filhas desse digno negociante não aproveitavam tanto como se poderia supor das lições que a sociedade oferece às almas jovens. Apresentavam-se nessas reuniões, aliás inscritas na lista dos vencimentos de letras da casa, com vestidos e adornos cuja mesquinhez as fazia corar. O modo como dançavam nada tinha de notável, e a vigilância materna não lhes permitia manter uma conversação mais do que por meio de “sim” e de “não” com os seus pares. Demais, a lei da velha tabuleta do “Chat-qui-pelote” ordenava-lhes estar de volta às onze horas, momento em que bailes e festas começavam a animar-se. Assim é que os seus prazeres, aparentemente de acordo com a riqueza do pai, se tornavam muitas vezes insípidos por circunstâncias decorrentes dos hábitos e princípios da família. Quanto à sua vida habitual, uma única observação bastará para completar a pintura. A sra. Guillaume exigia que as duas filhas estivessem vestidas muito cedo, que descessem todos os dias à mesma hora e submetia suas ocupações a uma regularidade monástica. Entretanto, Augustina recebera do acaso uma alma bastante elevada para que não sentisse o vazio dessa existência. Seus olhos azuis por vezes se erguiam como para interrogar as profundezas daquela escada sombria e daquela loja úmida. Depois de haver sondado aquele silêncio de claustro, ela parecia ouvir ao longe confusas revelações dessa vida de paixões que dá maior valor aos sentimentos do que às coisas; em tais momentos, seu rosto criava cor, suas mãos inativas deixavam a branca musselina cair sobre o carvalho polido do balcão, e logo sua mãe lhe dizia com uma voz que se conservava sempre desagradável, mesmo nos tons mais suaves:

— Augustina! Em que estás pensando, minha joia?

É possível que Hipólito, conde de Douglas e o Conde de Comminges (Romances sentimentais, respectivamente da sra. d’Aulnoy e da sra. de Tencin.), dois romances achados por Augustina no armário de uma cozinheira recentemente despedida pela sra. Guillaume, tivessem contribuído para desenvolver as ideias da rapariga, que os devorara furtivamente durante as longas noites do inverno anterior. As expressões de vago desejo, a voz suave, a pele de jasmim e os olhos azuis de Augustina tinham, pois, acendido na alma do pobre Lebas um amor tão violento quanto respeitoso. Por um capricho fácil de ser compreendido, Augustina não sentia nenhuma inclinação pelo órfão: talvez por não saber que era amada. Em compensação, as pernas compridas, os cabelos castanhos, as mãos grandes e a aparência vigorosa do primeiro caixeiro tinham causado uma secreta admiração à srta. Virgínia, a qual, não obstante seus cinquenta mil escudos de dote, não fora pedida em casamento por ninguém. Nada mais natural do que essas duas paixões desencontradas, nascidas no silêncio daqueles obscuros escritórios, como florescem violetas na profundeza de um bosque. A muda e constante contemplação que reunia os olhos dessa gente moça por uma necessidade de distrações, em meio a trabalhos obstinados e uma paz religiosa, tinha de, cedo ou tarde, excitar sentimentos de amor. O hábito de ver constantemente uma pessoa faz descobrir nela, insensivelmente, as qualidades da alma e acaba por fazer desaparecer os defeitos.

“Do jeito por que vai este homem, nossas filhas não tardarão a pôr-se de joelhos ante um pretendente!”, disse consigo o sr. Guillaume, ao ler o primeiro decreto pelo qual Napoleão antecipava a idade para o recrutamento.

Desde esse dia, desesperado por ver a filha mais velha emurchecer, o velho negociante recordou-se de ter casado com a srta. Chevrel pouco mais ou menos nas mesmas condições em que se achavam José Lebas e Virgínia. Que bom negócio casar a filha e saldar uma dívida sagrada, prestando a um órfão o benefício que em outros tempos recebera de seu predecessor nas mesmas circunstâncias! Com trinta e três anos de idade, José Lebas pensava nos obstáculos que quinze anos de diferença punham entre Augustina e ele. Demasiado perspicaz para não perceber as intenções do sr. Guillaume, conhecia-lhe muito bem os princípios inexoráveis para saber que a mais moça jamais casaria antes da primogênita. O pobre caixeiro, cujo coração era tão bem formado quanto suas pernas eram compridas e seu busto atarracado, sofria, pois, em silêncio.

Assim estavam as coisas naquela pequena república, que, no meio da rue Saint-Denis, se assemelhava bastante a uma sucursal da Trappe (A Trappe: abadia fundada em 1140, reformada pelo abade do Rancé em 1662, e cujos religiosos observavam um regulamento de extremo rigor.). Mas para dar uma ideia exata dos acontecimentos exteriores, como dos sentimentos, é necessário retornar a alguns meses antes da cena pela qual começa esta história. Ao anoitecer, um rapaz, ao passar pela obscura loja do “Chat-qui-pelote”, ficara um momento a contemplar o aspecto de um quadro que teria feito parar todos os pintores do mundo. A loja, não estando ainda iluminada, formava um plano escuro, no fundo da qual se via a sala de jantar do negociante. Uma lâmpada astral esparzia ali a luz amarela que dá tanta graça às telas da escola holandesa. As toalhas alvas, a prataria, os cristais formavam acessórios brilhantes mais embelezados ainda pelos contrastes de luz e sombra. A figura do pai de família e a de sua mulher, o semblante dos caixeiros e as formas puras de Augustina, a dois passos da qual se achava uma pesada rapariga bochechuda, compunham um grupo de tal modo curioso, as cabeças eram tão originais, e cada caráter tinha uma expressão tão franca, adivinhava-se tão bem a paz, o silêncio e a vida modesta daquela família que, para um artista acostumado a exprimir a natureza, havia qualquer coisa de desesperador em querer reproduzir essa cena fortuita. O transeunte era um jovem pintor que, sete anos antes, tinha conquistado o grande prêmio de pintura. Voltava de Roma. Sua alma nutrida de poesia, seus olhos saturados de Rafael e de Michelangelo tinham sede da verdadeira natureza, depois de uma longa permanência no país pomposo onde a arte lançara por tudo a sua grandiosidade. Falso ou justo, tal era o seu sentimento pessoal. Entregue por muito tempo à fuga das paixões italianas, seu coração suspirava por uma dessas virgens modestas e sonhadoras que, infelizmente, só pudera encontrar em pintura, em Roma. Do entusiasmo impresso em sua alma, exaltada pelo quadro natural que estava contemplando, passou suavemente a uma profunda admiração à figura principal: Augustina parecia pensativa e não comia; por uma disposição da lâmpada, cuja luz lhe caía em cheio no rosto, seu busto parecia mover-se num círculo de fogo que lhe destacava mais nitidamente os contornos da cabeça e a iluminava de um modo quase sobrenatural. O artista comparou-a involuntariamente a um anjo exilado, com a nostalgia do céu. Uma sensação quase desconhecida, um amor límpido e fervente inundou-lhe o coração. Depois de ter ficado durante um momento como que esmagado sob o peso de suas ideias, arrancou-se à sua felicidade, voltou para casa, não comeu, não dormiu. No dia seguinte entrou no seu ateliê e dele só saiu depois de ter lançado numa tela a magia daquela cena que de algum modo o tinha fanatizado. Enquanto não possuiu um fiel retrato do seu ídolo, sua felicidade não foi completa. Passou várias vezes pela frente da casa do “Chat-qui-pelote”: atreveu-se mesmo a entrar uma ou duas vezes, sob um disfarce, a fim de ver de mais perto a encantadora criatura que a sra. Guillaume cobria com a sua asa. Durante oito meses inteiros, entregue ao seu amor e aos seus pincéis, permaneceu invisível para os amigos, até os mais íntimos, esquecendo as rodas sociais, a poesia, o teatro, a música e seus hábitos mais queridos. Girodet (Girodet: Anne-Louis Girodet de Roussy (1767-1824), pessoa real, pintor famoso na época, autor, entre outros quadros, do Sonho de Endimião. O trecho dá um bom exemplo de como Balzac introduz pessoas reais entre suas criaturas de ficção.), certa manhã, forçou todas essas ordens que os artistas conhecem e sabem fraudar, conseguindo chegar junto a ele, e acordando-o com esta pergunta:

- Que vais expor no Salão?

O artista toma da mão do amigo, leva-o ao seu ateliê, descobre um pequeno quadro de cavalete e um retrato. Depois de lenta e ávida contemplação das duas obras-primas, Girodet salta ao pescoço do seu camarada e beija-o sem achar o que lhe dizer. Suas emoções não podiam ser expressas, a não ser como ele as sentia, de alma para alma.

— Estás apaixonado?—indagou Girodet.

Ambos sabiam que os mais belos retratos de Ticiano, de Rafael e de Leonardo da Vinci eram devidos a sentimentos exaltados, que, sob múltiplas condições, engendram, aliás, todas as obras-primas. Como única resposta, o jovem artista curvou a cabeça.

— Que sorte tens tu de poder estar apaixonado aqui, de volta da Itália! Não te aconselho a expor obras como essas no Salão—acrescentou o grande pintor.—Olha, esses dois quadros não seriam ali compreendidos. Essas cores verdadeiras, esse trabalho prodigioso ainda não podem ser apreciados; o público não está mais acostumado a tanta profundeza. Os quadros que nós pintamos, meu amigo, são painéis, são biombos. É preferível fazermos versos, traduzir os antigos! Há mais glória a esperar desse trabalho do que das nossas infelizes telas.

Não obstante esse caridoso conselho, as duas telas foram expostas. A cena do interior fez uma revolução na pintura. Deu origem a esses quadros de estilo, cuja prodigiosa abundância, levada a todas as nossas exposições, poderia fazer crer que são obtidos por processos puramente mecânicos. Quanto ao retrato, são poucos os artistas que não conservam a recordação dessa tela viva, à qual o público, algumas vezes justo em conjunto, atribuiu os louros com que o próprio Girodet a coroou. Os dois quadros viram-se cercados por uma multidão imensa. Esses espectadores, como dizem as mulheres, matavam-se para vê-los. Especuladores, grão-senhores, cobriram-nas de duplos napoleões, mas o artista recusou-se, obstinadamente, a vendê-las e também a fazer cópias.

Ofereceram-lhe uma quantia enorme para fazê-los gravar, mas os negociantes não foram mais felizes do que os amadores. Conquanto essa aventura fizesse ruído na sociedade, não era de molde a chegar ao fundo da pequena Tebaida (Tebaida: antigo nome do Alto Egito, para cujos desertos se retiraram os primeiros eremitas cristãos; eremitério.) da rue Saint-Denis. Não obstante, ao vir fazer uma visita à sra. Guillaume, a mulher do notário falou na exposição diante de Augustina, a quem muito queria, e explicou-lhe as suas finalidades. A tagarelice da sra. Roguin inspirou naturalmente a Augustina o desejo de ver os quadros e a temeridade de pedir secretamente à prima que a acompanhasse ao Louvre. A prima foi feliz nas negociações que entabulou junto à sra. Guillaume para obter a autorização de arrancar a priminha a seus tristes trabalhos por cerca de duas horas. A moça penetrou, pois, através da multidão, até o quadro coroado. Um frêmito fê-la estremecer, como uma folha de bétula, quando se reconheceu. Teve medo e olhou em volta para se reunir à sra. Roguin, da qual se vira separada por uma onda de gente. Em tal momento seus olhos cheios de susto toparam com o semblante inflamado do jovem pintor. Lembrou-se de súbito da fisionomia de um passeante que, curiosa, notara muitas vezes, julgando ser algum novo vizinho.

— Está vendo o que o amor me fez fazer?—sussurrou o artista ao ouvido da tímida criatura, que ficou apavorada com essas palavras.

Ela armou-se de uma coragem sobrenatural para fender a multidão e conseguir chegar junto à prima, que ainda se esforçava por atravessar a massa de povo que a impedia de chegar perto do quadro.

— A senhora ficaria asfixiada—exclamou Augustina.—Vamos embora.

Mas há no Salão certos momentos durante os quais duas mulheres nem sempre têm liberdade de se movimentar como querem nas galerias. A srta. Guillaume e sua prima foram empurradas até a alguns passos do segundo quadro, em consequência dos movimentos irregulares que a multidão lhes imprimia.

Quis o acaso que elas tivessem a facilidade de se aproximar, juntas, da tela ilustrada pela moda, dessa vez conforme com o talento. A mulher do notário soltou uma exclamação de surpresa que se perdeu no burburinho e tumulto da multidão, mas Augustina chorou involuntariamente, ante o aspecto daquela cena maravilhosa. Depois, por um sentimento quase inexplicável, pôs um dedo sobre os lábios ao avistar a dois passos a figura extática do jovem artista. O desconhecido respondeu-lhe com um aceno de cabeça, designando a sra. Roguin como um desmancha-prazeres, a fim de mostrar a Augustina que a compreendera. Essa pantomima acendeu como que um braseiro no corpo da pobre rapariga, que se sentia criminosa por imaginar que acabava de se estabelecer um pacto entre ela e o jovem artista. Um calor abafante, o contínuo aspecto de brilhantes toilettes e o atordoamento que produzia em Augustina a verdade das cores, a multidão das figuras vivas ou pintadas, a profusão das molduras de ouro, fizeram-na experimentar uma espécie de embriaguez que redobrou seus temores. Teria, talvez, desmaiado se, apesar daquele caos de sensações, não lhe houvesse surgido no fundo do coração um gozo desconhecido, que lhe vivificou todo o ser. Não obstante, julgou-se sob o poder desse demônio, cujas terríveis armadilhas lhe eram preditas pela voz trovejante dos pregadores. Aquele momento foi para ela como uma aura de loucura. Viu-se acompanhada até o carro da prima por aquele rapaz, resplandecente de amor e felicidade. Presa de uma irritação inteiramente nova, de uma embriaguez que, de algum modo, a entregava à natureza, Augustina atendeu à voz eloquente de seu coração e olhou por várias vezes para o jovem pintor, deixando que transparecesse o enleio que dela se apoderara. Nunca o rubor de suas faces formara mais vigoroso contraste com a alvura de sua tez. O artista pôde ver então aquela beleza em todo o seu viço, aquele pudor em toda a sua glória. Augustina sentiu uma espécie de alegria, mesclada de terror, ao pensar que sua presença causava a felicidade daquele cujo nome estava em todas as bocas, cujo talento dava imortalidade a imagens passageiras. Era amada! Impossível duvidar! Quando não viu mais o artista, ouvia ainda ecoar-lhe no coração aquelas palavras simples: “Está vendo o que o amor me fez fazer?”. E as palpitações, tornadas mais intensas, davam-lhe a impressão de dor, porque seu sangue, mais ardente, lhe despertara no corpo potências ignoradas. Fingiu estar com uma forte dor de cabeça para evitar responder às perguntas da prima a propósito dos quadros; mas na volta a sra. Roguin não se conteve e contou à sra. Guillaume da celebridade alcançada pelo “Chat-qui-pelote”, e Augustina ficou toda a tremer ao ouvir a mãe dizer que iria ao Salão para lá ver sua casa. A moça tornou a insistir sobre a sua dor de cabeça e teve licença para se ir deitar.

— Aí está o que se ganha com todos esses espetáculos—resmungou o sr. Guillaume: dores de cabeça. Que gosto se pode achar em ver em pintura aquilo que a gente vê todos os dias na nossa rua! Não me falem nesses artistas que são, como esses tais escritores, uns mortos de fome. Que necessidade têm eles de pegar a minha casa para vilipendiá-la em seus quadros?

— Isso poderá fazer com que vendamos algumas varas de fazenda a mais—disse José Lebas.

Essa observação, contudo, não impediu que as artes e o pensamento fossem mais uma vez condenados no Tribunal dos Negócios. Como bem se podia imaginar, tais palavras não deram grandes esperanças a Augustina, que se entregou durante toda a noite à primeira meditação do amor. Os acontecimentos daquele dia foram como um sonho, que ela se comprazeu em reproduzir em pensamento. Iniciou-se nos temores, nas esperanças, nos remorsos, em todas essas ondulações de sentimento que deviam embalar um coração simples e tímido como o dela. Que vazio reconheceu naquela casa escura e que tesouro encontrou em sua alma! Ser a mulher de um homem de talento e partilhar-lhe a glória! Que devastações esse pensamento não deveria ocasionar no coração de uma criança, educada no seio daquela família! Que esperança não deveria despertar numa jovem criatura que, nutrida até então de princípios vulgares, aspirava a uma vida elegante! Em sua prisão penetrara um raio de sol. Augustina amou, de súbito. Tantos sentimentos tinham sido, simultaneamente, lisonjeados nela, que sucumbiu sem nada calcular. Aos dezoito anos, o amor não atira seu prisma entre o mundo e os olhos de uma rapariga? Incapaz de adivinhar os rudes embates que resultam da união de uma mulher amorosa com um homem de imaginação, acreditou ter sido chamada para fazer a felicidade deste, sem dar pelas disparidades existentes entre ambos. Para ela o presente foi todo o futuro. Quando no dia seguinte seus pais voltaram do Salão, suas fisionomias tristonhas anunciavam certo desapontamento. Em primeiro lugar, os dois quadros tinham sido retirados pelo pintor; depois, a sra. Guillaume perdera seu xale de cachemira. Saber que os quadros acabavam de desaparecer depois de sua visita ao Salão foi para Augustina a revelação de uma delicadeza de sentimento que as mulheres sabem apreciar, mesmo instintivamente.

Na manhã em que, ao voltar de um baile, Teodoro de Sommervieux—tal foi o nome que a fama trouxera ao coração de Augustina—fora aspergido pelos caixeiros do “Chat-qui-pelote”, enquanto esperava o aparecimento de sua inocente amiga, que, indiscutivelmente, não o sabia ali, os dois namorados viam-se apenas pela quarta vez desde a cena do Salão. Os obstáculos que o regime da casa Guillaume opunha ao temperamento fogoso do artista davam à sua paixão por Augustina uma violência fácil de se conceber. Como abordar uma jovem sentada num escritório, entre duas mulheres tais como a srta. Virgínia e a sra. Guillaume? Como corresponder-se com ela, uma vez que a mãe não a deixava nunca? Com a habilidade própria dos amantes em imaginar desgraças, Teodoro criava um rival num dos empregados da casa e punha os outros no interesse daquele. Se escapasse a tantos Argos, via-se naufragando sob o olhar severo do velho negociante ou da sra. Guillaume. Por toda parte barreiras, por toda parte o desespero! A própria violência da paixão impedia o jovem pintor de achar esses engenhosos expedientes que, quer entre os prisioneiros, quer entre os amantes, parecem ser o último esforço da razão exaltada por uma necessidade selvagem de liberdade ou pelo fogo do amor. Teodoro perambulava pelo bairro com a atividade de um louco, como se o movimento lhe pudesse sugerir alguns ardis. Depois de muito torturar a imaginação, inventou peitar a gorducha criada. Trocaram-se, pois, de longe em longe, algumas cartas, durante a quinzena que se seguiu à desastrada manhã em que o sr. Guillaume e Teodoro tão atentamente se haviam examinado.

Nesse período, os dois jovens tinham combinado ver-se a certa hora do dia e nos domingos, em Saint-Leu, durante a missa e às vésperas. Augustina mandara ao seu querido Teodoro a lista dos parentes e amigos da família, em casa dos quais o jovem pintor procurou ter entrada, a fim de fazer interessar nas suas amorosas aspirações, se possível, uma daquelas almas ocupadas com assuntos de dinheiro, de comércio, e para as quais uma paixão verdadeira deveria ser a mais monstruosa especulação, uma especulação inaudita. Aliás, nenhuma mudança houve nos hábitos do “Chat-qui-pelote”. Se Augustina se mostrou distraída, se, contra todos os preceitos de obediência às leis orgânicas da casa, ela subia até seu quarto para ir, por meio de um vaso de flores, preparar sinais; se suspirou, se pensou, ninguém, nem a própria mãe, o percebeu. Essa circunstância causará alguma surpresa aos que tiverem compreendido o espírito daquela casa, na qual um pensamento eivado de poesia devia produzir contraste com os seres e com as coisas, e onde ninguém podia permitir-se nem um gesto nem um olhar que não fossem vistos e analisados. Entretanto, nada mais natural: o barco tão tranquilo que navegava no mar tormentoso da praça de Paris, sob o pavilhão do “Chat-qui-pelote”, era presa de uma dessas tempestades a que poderíamos chamar equinociais, em razão dos seus ciclos periódicos. Fazia quinze dias, os cinco homens da equipagem, a sra. Guillaume e a srta. Virgínia estavam entregues a esse trabalho excessivo designado pelo nome de balanço. Mexiam em todos os fardos e mediam as peças de fazenda para verificar o valor exato do que ficava. Examinavam cuidadosamente a etiqueta apensa ao pacote para verificar a data em que o pano fora comprado. Fixavam-lhe o preço atual. Sempre de pé, com a medida na mão e a caneta atrás da orelha, o sr. Guillaume assemelhava-se a um capitão dirigindo a manobra. Sua voz aguda, ao passar por um postigo para interrogar a profundeza das escotilhas do armazém, fazia ouvir as bárbaras locuções do comércio, que só se exprime por enigmas: “Quanto H-N-Z?”; “Esgotado.”; “Que resta de Q-X?”; “Duas varas.”; “Que preço?”; “Cinco-cinco-três.” Outras mil frases, todas tão inteligíveis como aquelas, roncavam através dos escritórios como versos da poesia moderna que românticos citassem entre si a fim de manter o entusiasmo por um de seus poetas. À noite, Guillaume, encerrado com o primeiro caixeiro e a mulher, verificava contas, debitava outras, escrevia aos retardatários e redigia faturas. Os três preparavam esse imenso trabalho cujo resultado cabia num quadrado de papel almaço e provava à casa Guillaume que existia tanto em dinheiro, tanto em mercadorias, tanto em cheques e letras; que ela não devia um vintém, que lhe deviam cem ou duzentos mil francos; que o capital tinha aumentado; que as granjas, as casas, os rendimentos iam ser arredondados, ou consertados, ou duplicados. Daí resultava a necessidade de se começar com mais ardor do que nunca a recolher novos escudos, sem que ocorresse àquelas corajosas formigas perguntar a si mesmas: “Para quê?”.

Graças àquele tumulto anual, a feliz Augustina ia escapando à investigação daqueles Argos. Finalmente, num sábado à noite, deu-se o encerramento do balanço. As cifras do total ativo apresentavam suficientes zeros para que nessa circunstância o sr. Guillaume levantasse a proibição severa que reinava durante todo o ano, no momento da sobremesa. O manhoso negociante esfregou as mãos e permitiu que os caixeiros ficassem à mesa. No momento em que os homens da equipagem acabavam de tomar seu cálice de licor caseiro, ouviu-se o rodar de uma carruagem. A família foi ver A Borralheira (A Borralheira: vaudeville de Désaugiers e de Gentil, representado em 1810.) no Teatro das Variedades, enquanto os dois últimos caixeiros receberam um escudo de seis francos cada um e a permissão de ir aonde bem lhes parecesse, contanto que estivessem de volta à meia-noite. Apesar dessa estroinice, no domingo de manhã o velho negociante fez a barba às seis horas, enfarpelou-se no seu traje cor de castanha, cujos reflexos soberbos lhe causavam sempre o mesmo contentamento, prendeu os pendentes de ouro nas presilhas de seus amplos calções de seda; depois, cerca das sete horas, enquanto na casa todos ainda dormiam, dirigiu-se ao pequeno gabinete contíguo à sua loja do primeiro andar. A luz vinha de uma janela defendida por grossas barras de ferro e que dava para um pequeno pátio quadrado formado por muros tão escuros que o faziam assemelhar-se a um poço. O próprio negociante abriu aquelas gelosias guarnecidas de lata que ele tão bem conhecia e levantou a metade da vidraça, fazendo-a subir no seu encaixe. O ar gelado do pátio veio refrescar a atmosfera quente daquele gabinete, que exalava o cheiro particular dos escritórios. O negociante permaneceu de pé, com a mão descansando sobre o braço sebento de uma poltrona de vime, forrada de marroquim, cuja cor primitiva desaparecera, e parecia hesitar em assentar-se nela. Olhou com ar enternecido a escrivaninha de duas estantes, na qual o lugar de sua mulher estava reservado, do lado oposto ao dele, por uma pequena arcada aberta na parede. Contemplou os cartões numerados, os barbantes, os utensílios, os ferros para marcar o pano, a caixa, objetos de origem imemorial, e julgou rever-se ante a evocação da sombra de sieur Chevrel. Chegou a puxar a banqueta na qual se sentara outrora em presença do falecido patrão. Essa banqueta, forrada de couro negro e cuja crina escapava, fazia muito, pelos cantos, mas sem se perder, ele colocou-a com mão trêmula no mesmo lugar em que seu predecessor a pusera; depois, numa agitação difícil de descrever, puxou a campainha que correspondia à cabeceira da cama de José Lebas. Depois de ter dado esse golpe decisivo, o ancião, para quem essas recordações foram sem dúvida muito pesadas, pegou três ou quatro letras de câmbio que lhe haviam sido apresentadas e olhou-as sem as ver, no momento em que José Lebas apareceu subitamente.

— Sente-se ali—disse-lhe Guillaume indicando-lhe a banqueta.

Como nunca o velho comerciante o fizera sentar-se diante dele, José Lebas estremeceu.

— Que pensa destas letras?—perguntou Guillaume.

— Não serão pagas.

— Como?

— Eu soube que anteontem Etienne e companhia fizeram seus pagamentos em ouro.

— Oh! Oh!—exclamou o negociante.—É preciso estar bem doente para deixar ver o que se tem no bestunto. Mas falemos de outra coisa. José, está terminado o balanço?

— Sim, senhor, e o dividendo é um dos mais belos que o senhor já teve.

— Por favor, não empregue esses termos novos. Diga “o produto”, José. Sabe, meu rapaz, que é um pouco a você que devemos esse resultado? Por isso não quero mais que você tenha ordenado. A senhora Guillaume sugeriu-me a ideia de lhe oferecer interesses na casa. Que diz, José? Guillaume e Lebas, não acha que esses dois nomes assentariam bem para uma razão social? Poder-se-ia acrescentar e Companhia, para arredondar a assinatura.

Os olhos de José Lebas arrasaram-se de lágrimas, procurando ele escondê-las.

— Ah! Sr. Guillaume, como pude eu merecer tantas bondades? Não faço mais do que o meu dever. Já era muito que o senhor se interessasse por um pobre órf...

Escovava o punho da manga esquerda com a direita e não se animava a olhar o velho, que sorria, ao pensar que aquele modesto rapaz precisava sem dúvida, como ele em outros tempos, ser encorajado para completar a explicação.

— Entretanto—continuou o pai de Virgínia -, você não merece muito esse favor, José! Você não deposita em mim a mesma confiança que eu deposito em você. (O caixeiro ergueu repentinamente a cabeça.)—Você tem o segredo do cofre. Faz dois anos que eu o mantenho ao corrente de quase todos os meus negócios. Eu o fiz viajar, ir às fábricas. Enfim, para você não tenho segredos. Mas e você! Sei que tem uma inclinação por alguém e nunca me disse nada. (José Lebas corou.)—Ah! Ah!—exclamou Guillaume.—Pensava enganar uma velha raposa como eu? Eu, a quem você viu adivinhar a falência de Lecoq!

— Como, senhor?—disse José Lebas, examinando o patrão com a mesma atenção com que este o examinava.—Como o senhor saberá a quem eu amo?

— Sei tudo, seu patife—disse-lhe o respeitável e manhoso negociante, puxando-lhe a ponta da orelha.—E perdoo, porque também fiz o mesmo.

— E consentirá no casamento?

— Sim, com cinquenta mil escudos, e te legarei outro tanto. Além disso, entraremos em novas despesas com nova razão social. Faremos grandes negócios, meu rapaz!—exclamou o velho, exaltando-se, pondo-se de pé e agitando os braços.—Vês, meu genro, não há nada como o comércio! Os que perguntam que prazer achamos nisso são uns imbecis. Estar na pista dos negócios, saber orientar-se na praça, esperar com ansiedade, como no jogo, se os Etienne e companhia abrirão falência, ver um regimento da guarda imperial passar com uniformes feitos com a nossa fazenda, dar uma rasteira no vizinho, lealmente, já se vê! Fabricar mais barato do que os outros; acompanhar as várias fases de um negócio que delineamos, que começa, cresce, cambaleia e vence; conhecer como um chefe de polícia todas as molas das casas de comércio, para não dar um passo em falso; manter-se de pé diante dos naufrágios; ter amigos por correspondência em todas as cidades manufatureiras. Não é isso um jogo perpétuo, José? Mas isso é viver! Morrerei nessa barafunda, como o velho Chevrel, mas só aguentando o que me convier.

No calor do seu improviso, o velho Guillaume quase não olhara para o seu caixeiro, o qual chorava a bom chorar.

— Então que é isso, meu rapaz, que tens, José?

— Ah! Senhor Guillaume, eu a amo tanto, tanto, que o coração quase quer parar, creio...

— Pois bem, rapaz—disse o negociante, enternecido -, és mais feliz do que pensas, com os diabos, porque ela te ama. Isso sei eu.

E piscou os dois olhinhos verdes, ao fitar o empregado.

— Senhorita Augustina, senhorita Augustina!—exclamou José no seu entusiasmo.

Ia precipitar-se para fora do gabinete, quando se sentiu deter por um braço de ferro, e o patrão estupefato puxou-o vigorosamente para si.

— Que tem Augustina que ver com este negócio?—perguntou Guillaume, cuja voz enregelou instantaneamente o infeliz José Lebas.

— Não é ela... que... que eu amo?—disse o caixeiro, balbuciando.

Desconcertado por sua falta de perspicácia, Guillaume tornou a sentar-se e agarrou com as duas mãos a cabeça bicuda para refletir sobre a situação singular em que se achava. José Lebas, envergonhado e em pleno desespero, ficou de pé.

— José—disse o negociante com fria dignidade -, eu lhe estava falando de Virgínia. O amor não é coisa que se ordene, sei disso. Conheço a sua discrição; esqueceremos disso. Jamais casarei Augustina antes de Virgínia. Seu interesse será de dez por cento.

O caixeiro, no qual o amor insuflara não sei que grau de coragem e de eloquência, juntou as mãos, tomou a palavra, falou a Guillaume durante um quarto de hora com tanto calor e sensibilidade que a situação se modificou. Se se tratasse de um negócio comercial, o velho negociante teria tido regras fixas para tomar uma resolução; mas atirado a mil léguas do comércio, sobre o mar dos sentimentos e sem bússola, flutuou irresoluto diante de um acontecimento tão original, pensou ele.

Levado por sua natural bondade, disse umas coisas sem nexo.

— Que diabo, José, não ignoras que tive minhas duas filhas com dez anos de intervalo! A senhorita Chevrel não era bonita, e não obstante não tem razão de queixa contra mim. Faze como eu. Enfim, deixa de chorar, não sejas tolo. Que queres? Talvez as coisas se possam arrumar, veremos. Sempre há meio de sairmos de um embrulho. Nós, homens, não somos sempre Céladons (Céladon: personagem de L’Astrée, famoso romance de d’Urfé (1568-1626). Este nome se emprega como sinônimo de amante constante, tímido e langoroso.) para as nossas mulheres. Estás ouvindo? A senhora Guillaume é devota e... Vamos, com os diabos, meu filho, podes dar hoje o braço a Augustina para ir à missa.

Tais foram as frases proferidas, ao acaso, por Guillaume. A conclusão que as rematava encantou o apaixonado caixeiro. Já pensava em um de seus amigos para Virgínia, quando saiu do gabinete enfumaçado, depois de haver apertado a mão do futuro sogro e de lhe ter dito com um arzinho de cumplicidade que tudo se resolveria do melhor modo.

— Que irá pensar a senhora Guillaume?—Essa ideia atormentou prodigiosamente o honrado negociante, quando se viu só.

Depois do almoço, a sra. Guillaume e Virgínia, às quais o negociante deixara provisoriamente na ignorância de seu desapontamento, olharam com malícia para José Lebas, o qual com isso se sentiu profundamente embaraçado. O pudor do caixeiro conciliou-lhe a amizade da sogra. A matrona tornou-se tão alegre que olhou sorrindo para Guillaume e se permitiu alguns leves gracejos de uso imemorial naquelas inocentes famílias. Fez uma alusão às estaturas de José e de Virgínia, para pedir-lhes que se medissem. Essas ninharias preparatórias atraíram algumas nuvens sobre a fronte do chefe da família, e este exibiu mesmo tal amor ao decoro que deu ordem a Augustina para tomar o braço do primeiro caixeiro quando fossem à missa em Saint-Leu. A sra. Guillaume, espantada com essa delicadeza masculina, honrou o marido com um gesto aprovativo. O cortejo saiu da casa, pois, numa ordem que não podia sugerir nenhuma interpretação maliciosa dos vizinhos.

— Não lhe parece, senhorita Augustina—dizia o caixeiro a tremer -, que a esposa de um negociante que tem bom crédito, como o senhor Guillaume, por exemplo, poderia divertir-se um pouco mais do que a senhora sua mãe, usar diamantes, sair de carruagem? Oh! No que me diz respeito, se eu me casasse, me encarregaria de todo o trabalho e quereria ver minha mulher feliz. Não a meteria no meu escritório. Porque, veja, senhorita, no comércio de fazendas, as mulheres hoje não são mais tão necessárias como antigamente. O sr. Guillaume teve razão de proceder como procedeu, e, aliás, era o gosto da esposa. Mas acho que basta uma mulher saber dar uma ajudazinha na contabilidade, na correspondência, no varejo, nas encomendas, nos arranjos domésticos, e só, a fim de não ficar sem fazer nada. Às sete horas, quando a loja fechasse, eu me divertiria, iria ao espetáculo ou a reuniões mundanas. Mas vejo que não me está ouvindo.

— Como não, senhor José! Que diz o senhor da pintura? É uma bela profissão, não acha?

— Sim, conheço um pintor de casas, o sr. Lourdois, que tem dinheiro.

Assim, discreteando, a família chegou à igreja de Saint-Leu. Aí a sra. Guillaume reivindicou seus direitos e fez, pela primeira vez, Augustina sentar-se a seu lado. Virgínia sentou-se na quarta cadeira, ao lado de Lebas. Durante o sermão tudo correu bem entre Augustina e Teodoro, o qual, de pé, por trás de um pilar, orava à sua madona com fervor; mas, na elevação, a sra. Guillaume descobriu, um pouco tarde, que o livro de Horas de Augustina estava de pernas para o ar. Já se dispunha a ralhar severamente com ela quando, tendo baixado o véu, interrompeu sua leitura e pôs-se a olhar na direção preferida pelos olhos da filha. Com o auxílio dos óculos, viu o jovem artista, cuja elegância mundana anunciava mais qualquer capitão de cavalaria em licença do que um negociante do bairro. É difícil imaginar o estado de violenta irritação em que ficou a sra. Guillaume, que se lisonjeava de ter educado perfeitamente as filhas, ao verificar a existência, no coração de Augustina, de um amor clandestino, cujo perigo foi exagerado por sua extrema reserva e ignorância. Julgou a filha gangrenada até o coração.

— Antes de mais nada, senhorita, segure direito o livro—disse ela em voz baixa, mas tremendo de raiva.

Puxou iradamente as Horas acusadoras e colocou-as de modo que as letras ficassem no sentido natural.

— Não tenha a infelicidade de pôr os olhos em outro lugar que não nas suas orações, senão terá de avir-se comigo. Depois da missa eu e seu pai teremos de falar-lhe.

Essas palavras produziram na pobre Augustina o efeito de um raio. Sentiu-se desfalecer; mas, atormentada pela dor que sentia e pelo temor de dar um escândalo na igreja, teve a coragem de ocultar suas angústias. Não obstante, era fácil adivinhar o violento estado de alma, ao ver suas Horas tremer nas mãos e as lágrimas cair em cada página que virava. Pelo olhar enfurecido que lhe lançou a sra. Guillaume, o artista viu o perigo que ameaçava seus amores e saiu enraivecido e decidido a tudo ousar.

— Vá para o seu quarto, senhorita!—disse a sra. Guillaume à filha quando chegaram à casa.—Mandaremos chamá-la, e, sobretudo, lembre-se de não sair.

A conferência que os dois esposos tiveram entre si foi tão secreta que a princípio nada transpirou. Entretanto, Virgínia, que animara a irmã por mil argumentos esperançosos, levou a complacência a ponto de esgueirar-se até a porta do quarto de dormir da mãe, onde se estava processando a discussão, a fim de colher algumas palavras. Na primeira viagem que fez, do terceiro ao segundo andar, ouviu o pai exclamar:

— Senhora, quer matar sua filha?

— Minha pobre querida—disse Virgínia à irmã desolada -, papai está tomando a tua defesa.

— E que querem eles fazer com Teodoro?—perguntou a inocente criatura.

A curiosa Virgínia tornou a descer; mas dessa vez ficou mais tempo a ouvir; veio assim a saber que Lebas amava Augustina. Estava escrito que, naquele dia memorável, uma casa habitualmente tão calma se transformaria num inferno. O sr. Guillaume levou o desespero ao coração de José Lebas ao confiar-lhe a notícia do amor de Augustina a um estranho. Lebas, que aconselhara um amigo a que pedisse a mão da srta. Virgínia, viu por terra as suas esperanças. A srta. Virgínia, acabrunhada por saber que José, de qualquer modo, a tinha recusado, foi presa de forte enxaqueca. A discórdia semeada entre marido e mulher pela explicação que o sr. e a sra. Guillaume tiveram e na qual, pela terceira vez na vida, ficaram em desacordo, manifestou-se de modo terrível. Enfim, às quatro horas da tarde, Augustina, pálida, trêmula, com os olhos vermelhos, compareceu ante os pais. A pobre criança contou ingenuamente a brevíssima história dos seus amores. Tranquilizada pelo exórdio com que o pai iniciara a conferência, no qual lhe prometia ouvi-la em silêncio, armou-se de certa coragem, pronunciando diante dos pais o nome do seu querido Teodoro de Sommervieux, fazendo maliciosamente soar a partícula aristocrática. Entregando-se ao prazer, novo para ela, de falar de seus sentimentos, teve bastante ousadia para declarar com inocente firmeza que amava o senhor de Sommervieux, que lhe escrevera, e acrescentou com lágrimas nos olhos:

— Seria fazer a minha desgraça se me sacrificassem a outro.

— Mas, Augustina, então você não sabe o que é um pintor?—exclamou a mãe, horrorizada.

— Sra. Guillaume!—disse o velho pai imperativamente, impondo silêncio à mulher.—Augustina—continuou -, os artistas em geral são uns pobres-diabos que não têm vintém. São muito gastadores para não serem sempre uns peraltas. Fui fornecedor do falecido sr. José Vernet, do falecido sr. Lekain e do falecido sr. Noverre (Todas pessoas reais em evidência: Claude-Joseph Vernet (1714-1794), pintor; Lekain (1721-1800), ator trágico; Jean-Georges Noverre (1729-1810), coreógrafo.). Ah! Se soubesses como esse sr. Noverre, o senhor cavalheiro de Saint-Georges, e sobretudo o senhor Philidor (Também pessoas reais: Cav. Saint-Georges (1745-1794); Philidor (1726-1795), músico e enxadrista.) pregaram peças ao pobre velho Chevrel! São uns tipos esquisitos, sei perfeitamente. Todos têm muita lábia, boas maneiras... Ah! Nunca o teu sr. Sumer... Somm...

— De Sommervieux, meu pai!

— Seja, de Sommervieux, como dizes! Nunca ele terá sido tão amável contigo como o senhor cavalheiro de Saint-Georges o foi comigo, no dia em que eu obtive sentença dos cônsules contra ele. Também antigamente eram gente de qualidade.

— Mas, papai, o senhor Teodoro é nobre e me escreveu dizendo que era rico. O pai dele se chamava cavalheiro de Sommervieux, antes da Revolução.

A essas palavras, o sr. Guillaume olhou para a sua terrível cara-metade, que, como mulher contrariada, batia no soalho com a ponta do pé, conservando-se num silêncio sombrio. Evitava até dirigir os olhos enfurecidos para Augustina, parecia deixar ao sr. Guillaume toda a responsabilidade de um assunto tão grave, uma vez que suas opiniões não eram ouvidas. Mas, apesar de sua aparente fleuma, quando viu o marido resignar-se tão calmamente a uma catástrofe que nada tinha de comercial, exclamou:

— Na verdade, senhor... É de uma fraqueza com as suas filhas!... Mas...

O ruído de um carro que se detinha à porta interrompeu repentinamente o sermão que o velho negociante temia. Num instante a sra. Roguin apresentou-se no meio do quarto e, olhando os três atores daquela cena doméstica, disse com ar protetor:

— Sei de tudo, minha prima.

A sra. Roguin tinha um defeito, o de acreditar que a mulher de um notário de Paris podia sempre representar o papel de uma coquete.

— Sei de tudo—repetiu—e venho na arca de Noé, como a pomba, trazendo o ramo de oliveira. Li essa alegoria em O gênio do cristianismo (O gênio do cristianismo: obra célebre de Chateaubriand (1802).)—disse, virando-se para a sra. Guillaume.—A comparação deve agradar-lhe, prima. Sabe—acrescentou sorrindo para Augustina—que esse sr. de Sommervieux é um homem encantador? Deu-me esta manhã meu retrato feito com mão de mestre. Vale pelo menos seis mil francos.

A essas palavras bateu de leve no braço do sr. Guillaume. O velho negociante não pôde deixar de fazer com os lábios um forte trejeito que lhe era habitual.

- Conheço muito o sr. de Sommervieux—continuou a pomba.—Faz uns quinze dias que ele comparece às minhas recepções, das quais se constitui a atração. Contou-me todos os seus pesares e me tomou como advogada. Sei, desde hoje de manhã, que ele adora Augustina, e ele a terá. Ah!, prima, não sacuda assim a cabeça em sinal de recusa. Saiba que ele vai ser feito barão e que acaba de ser nomeado cavalheiro da Legião de Honra, pelo próprio imperador, no Salão. Roguin é agora seu tabelião e conhece-lhe todos os negócios. Pois bem! O sr. de Sommervieux possui em belos bens imóveis doze mil libras de renda. Sabe o senhor que o sogro de um homem como ele pode vir a ser alguém, subprefeito, da sua circunscrição, por exemplo? Não viu o sr. Dupont (Dupont: Jean Dupont (1735-1819), antigo banqueiro, maire (subprefeito) de um distrito de Paris; chegou, sob o Império, a administrador da Caixa Econômica.) ser feito conde do Império e senador por ter ido, na qualidade de prefeito, cumprimentar o imperador por sua entrada em Viena? Oh! Este casamento se fará. Adoro esse rapaz. Seu procedimento com Augustina é desses que só se veem nos romances. Acalma-te, querida, serás feliz, e todos quereriam estar no teu lugar. A duquesa de Carigliano, que tem loucura por Sommervieux, frequenta agora minhas recepções. Há línguas maldizentes que afirmam que ela só vai à minha casa por causa dele, como se uma duquesa de ontem estivesse deslocada em casa de uma Chevrel, cuja família tem cem anos de boa burguesia.

— Augustina—continuou a sra. Roguin depois de pequena pausa -, sabes que vi o retrato? Santo Deus! Como é belo! Sabes que o imperador quis vê-lo? Disse rindo ao vice-condestável que, se houvesse muitas mulheres como aquela na sua corte, enquanto está cheia de reis, ele se comprometeria a manter sempre a paz na Europa. Não é lisonjeiro, isso?

As tormentas pelas quais se iniciara aquele dia deviam assemelhar-se às da natureza, trazendo um tempo calmo e sereno. A sra. Roguin desenvolveu tanta sedução nos seus discursos, soube fazer vibrar tantas cordas ao mesmo tempo nos corações secos do sr. e da sra. Guillaume que acabou por encontrar uma da qual pôde tirar partido. Naquela época singular, o comércio e as finanças tinham mais do que nunca a tresloucada mania de aliar-se a grandes senhores, e os generais do Império aproveitaram-se muito bem dessas disposições. O sr. Guillaume erguia-se com veemência contra essa deplorável paixão. Seus axiomas favoritos eram que uma mulher para ser feliz devia casar-se com um homem de sua classe; cedo ou tarde a gente era castigada por ter querido elevar-se demasiado alto; o amor resistia tão pouco aos atritos domésticos que para ser feliz era preciso encontrar num e noutro qualidades bastante sólidas; era preciso que um dos cônjuges não soubesse mais do que o outro, porque antes de mais nada devia haver compreensão mútua. Inventara essa espécie de provérbio de que um marido que falasse grego e a mulher latim corriam o risco de morrer de fome. Comparava esses casamentos aos antigos panos de seda e de lã, nos quais a seda acaba sempre por cortar a lã. Todavia, há tanta vaidade no fundo do coração humano que a prudência do piloto que tão bem governava o “Chat-qui-pelote” sucumbiu sob a agressiva facúndia da sra. Roguin. A severa sra. Guillaume, antes de mais ninguém, encontrou na inclinação amorosa da filha motivos para derrogar esses princípios e consentir em receber em casa o sr. de Sommervieux, prometendo a si mesma submetê-lo a um exame rigoroso.

O velho negociante foi em busca de José Lebas e o pôs a par dos acontecimentos. Às seis e meia, a sala de jantar, honrada pela presença do pintor, reuniu sob sua claraboia de vidro o sr. e a sra. Roguin, o jovem pintor e sua encantadora Augustina, José Lebas, que suportava pacientemente sua desgraça, e a srta. Virgínia, cuja enxaqueca passara. O sr. e a sra. Guillaume viram em perspectiva as filhas instaladas na vida e os destinos do “Chat-qui-pelote” confiados a mãos hábeis. Sua alegria chegou ao cúmulo quando, à sobremesa, Teodoro presenteou-os com o admirável quadro que não tinham podido ver e que representava o interior daquela velha loja, à qual tanta felicidade se devia.

— Que gentileza!—exclamou Guillaume.—E dizer que queriam dar trinta mil francos por isto!

— Mas é que aí estão as minhas fitas—disse a sra. Guillaume.

— E essas fazendas desdobradas—acrescentou Lebas -, a gente é capaz de agarrá-las com a mão.

— Fazenda sempre se presta muito—respondeu o pintor.—Nós, artistas modernos, nos sentiríamos felicíssimos se chegássemos à perfeição do antigo panejamento.

- Pelo que vejo, gosta do negócio de fazendas—exclamou o velho Guillaume.—Pois então, com os diabos, aperte aqui estes ossos, meu jovem amigo. Uma vez que aprecia o comércio, nós nos entenderemos. E, afinal, por que deveria ele ser desprezado? O mundo começou por aí, pois Adão vendeu o paraíso por uma maçã. Valha a verdade, não foi um alto negócio.

E o velho negociante expandiu-se numa franca e gostosa risada, excitada pelo champanhe que ele fazia circular generosamente. A venda que cobria os olhos do jovem artista era tão espessa que ele achou os futuros parentes amáveis. Chegou até a diverti-los com alguns ditos de bom gosto. Em suma, agradou a todos. À noite, quando o salão mobiliado de coisas opulentas, para nos servirmos da expressão de Guillaume, ficou deserto, enquanto a sra. Guillaume ia da mesa à lareira, do candelabro ao castiçal, apagando precipitadamente as velas, o honrado negociante, que sabia ver claro, assim que se tratava de negócios ou de dinheiro, atraiu Augustina para junto de si e, depois de a ter sentado nos joelhos, fez-lhe o seguinte discurso:

— Minha querida filha, tu te casarás com o teu Sommervieux, já que assim o queres; tens o direito de arriscar teu capital de felicidade. Mas eu não me deixo prender por esses trinta mil francos que se ganham estragando boas telas. O dinheiro que vem tão depressa, depressa se vai. Não é que esse jovem desmiolado disse hoje que, se o dinheiro era redondo, era para rolar? Se para os pródigos ele é redondo, é chato para as pessoas econômicas, que o empilham e acumulam. Ora, pois, minha filha, esse belo rapaz falou em dar-te carruagens e diamantes, não é? Ele tem dinheiro, que o gaste contigo, bene sit (Bene sit: frase latina que significa “assim seja”, “pois bem”.). Nada tenho a ver com isso. Mas, no que diz respeito ao que eu te dou, não quero que escudos tão penosamente ganhos se vão em carruagens e bugigangas. Quem muito gasta nunca enriquece. Com os cem mil escudos do dote não se pode comprar toda Paris. Embora tenhas de receber um dia algumas centenas de mil francos, tenho a esperança, com os diabos!, de que seja o mais tarde possível. Assim é que levei o teu pretendente para um canto, e um homem que superintendeu a falência Lecoq não teve grande dificuldade em fazer que um artista consentisse em casar com separação de bens. Estarás de olho aberto no contrato, para que sejam bem estipuladas as doações que ele te pretende fazer. Vamos, minha filha, tenho a esperança de ser avô, com os diabos!, e desde já quero ocupar-me da sorte de meus netos: assim, pois, jura-me agora que nunca assinarás coisa alguma em questão de dinheiro, senão a conselho meu, e, se eu tiver de ir encontrar-me mais cedo do que desejo com o velho Chevrel, jura-me consultar o jovem Lebas, teu cunhado. Prometes?

— Sim, meu pai, juro.

Ditas essas palavras com voz meiga, o velho beijou a filha nas duas faces. Nessa noite, todos os amantes dormiram quase tão serenamente quanto o sr. e a sra. Guillaume.

Poucos meses depois desse domingo memorável, o altar-mor de Saint-Leu presenciou dois casamentos bem diversos. Augustina e Teodoro apresentaram-se com todo o brilho da felicidade, com os olhos cheios de amor, trajando vestes elegantes, servidos por brilhante equipagem. Vindos num carro de aluguel, Virgínia, dando o braço ao pai, seguia a irmã humildemente, vestida com a máxima modéstia, como uma sombra necessária à harmonia daquele quadro.

O sr. Guillaume empenhara-se exaustivamente em obter da igreja que Virgínia casasse antes de Augustina, mas teve a dor de ver o alto e o baixo clero dirigir-se em todas as circunstâncias à mais elegante das noivas. Ouviu alguns vizinhos seus aprovar calorosamente o bom-senso da srta. Virgínia, a qual, segundo diziam, fazia o casamento mais sólido e conservava-se fiel ao bairro, ao passo que atiraram algumas farpas—fruto da inveja—sobre Augustina, que desposava um artista, um nobre. Acrescentaram, com uma espécie de pavor, que, se os Guillaume tinham ambições, o negócio deles estava perdido. Tendo um velho negociante de leques afirmado que aquele come-tudo em breve o deixaria na miséria, o velho Guillaume aplaudiu-se in petto (In petto: expressão italiana que significa “no peito”, isto é, “intimamente”.) pela prudência que empregara na redação das convenções matrimoniais. À noite a família separou-se, depois de suntuoso baile, seguido de uma dessas ceias copiosas, cuja lembrança se vai perdendo na presente geração. O sr. e a sra. Guillaume ficaram no seu palacete da rue du Colombier, onde se realizara o casamento. O sr. e a sra. Lebas voltaram no seu carro de aluguel para a velha casa da rue Saint-Denis, a fim de ali dirigir a nau do Chat-qui-pelote. O artista, ébrio de felicidade, tomou nos braços a sua querida Augustina, carregou-a vivamente, quando o cupê chegou à rue des Trois-Frères, e levou-a ao seu elegante apartamento.

O ímpeto de paixão que dominava Teodoro fez que um ano, quase, decorresse para o casal sem que a mais leve nuvem viesse toldar a limpidez do azulado céu sob o qual viviam. Para eles a existência nada teve de pesada. Teodoro espalhava por sobre cada dia incríveis fioriture (Fioriture: palavra italiana que significa “adornos”, “requintes”.) de prazeres. Comprazia-se em variar os arrebatamentos da paixão, pela dolente languidez desses repousos em que as almas são projetadas tão alto no êxtase que parecem esquecer a união corporal. Incapaz de refletir, a ditosa Augustina prestava-se ao ritmo ondulante de sua felicidade. Achava não fazer ainda o bastante, entregando-se toda ao amor permitido e santo do casamento. Simples e ingênua, não conhecia nem o coquetismo das recusas nem o domínio que uma jovem de alta sociedade adquire sobre o marido por atilados caprichos. Amava demasiadamente para calcular o futuro e não imaginava que uma vida tão deliciosa pudesse um dia acabar. Feliz por constituir então todos os prazeres do marido, acreditou que aquele inextinguível amor seria sempre para ela o mais belo de todos os adornos, da mesma forma que sua dedicação e obediência seriam eterno atrativo. Enfim, a felicidade do amor tornara-se tão brilhante que sua beleza lhe inspirou orgulho e deu-lhe a consciência de poder reinar sempre sobre um homem tão fácil de inflamar como o sr. de Sommervieux. Assim é que sua qualidade de mulher não lhe trouxe outros ensinamentos mais do que os do amor. No seio daquela felicidade permaneceu ela, a ignorante menina que vivia obscuramente na rue Saint-Denis, e não se lembrou de adquirir os modos, a instrução, o tom da sociedade na qual devia viver. Suas palavras, sendo palavras de amor, nelas punha, é verdade, certa viveza de espírito e certa delicadeza de expressão; mas servia-se da linguagem comum a todas as mulheres quando se acham mergulhadas numa paixão que parece ser o seu elemento. Se, por acaso, uma ideia discordante das de Teodoro era expressa por Augustina, o jovem artista ria como a gente ri dos primeiros erros que comete um estrangeiro, mas que acabam por cansar se ele não se corrige.

Entretanto, ao expirar aquele ano, tão encantador quanto rápido, Sommervieux sentiu, certa manhã, a necessidade de recomeçar seus trabalhos e seus hábitos. Augustina estava grávida. Ele tornou a ver seus amigos. Durante os longos sofrimentos do ano, em que pela primeira vez uma mulher amamenta um filho, trabalhou, não há dúvida, com o máximo ardor, mas, por vezes, tornou a procurar distrações na alta sociedade. A casa aonde ia de preferência era a da duquesa de Carigliano, que tinha acabado por atrair aos seus salões o célebre artista. Quando Augustina se restabeleceu, quando seu filho deixou de exigir esses cuidados assíduos que vedam a uma mãe os prazeres sociais, Teodoro chegara ao ponto de desejar experimentar esse gozo de amor-próprio que a sociedade nos dá quando nos apresentamos com uma bonita mulher, objeto de inveja e de admiração. Percorrer os salões, aureolada pelo brilho de empréstimo da glória do marido, ver-se invejada por todas as mulheres foi para Augustina uma nova fonte de prazer, mas foi o último lampejo que devia lançar a sua felicidade conjugal. Começou por ferir a vaidade do marido quando, não obstante vãos esforços, deixou transparecer sua ignorância, a impropriedade de sua linguagem e a estreiteza de suas ideias. O caráter de Sommervieux, domado durante quase dois anos e meio pelos primeiros arroubos do amor, retomou, com a tranquilidade de uma posse já menos nova, as inclinações e os hábitos por um momento desviados de seu curso. A poesia, a pintura e os delicados gozos da imaginação possuem sobre os espíritos elevados direitos imprescritíveis. Essas necessidades de uma alma forte não tinham sido amortecidas em Teodoro durante aqueles dois anos, tinham apenas encontrado novo alimento. Depois de os campos do amor terem sido percorridos, depois de o artista, como as crianças, ter colhido rosas e centáureas com tal avidez que não via que suas mãos não podiam mais contê-las, a cena mudou. Se o pintor mostrava à mulher o esboço de suas mais belas composições, ouvia-a exclamar como o faria o velho Guillaume: “É bem bonito!”. Sua admiração sem entusiasmo provinha não de um sentimento consciente, mas da fé sob palavra, do amor. Augustina preferia um olhar ao mais belo quadro. O único sublime que ela conhecia era o do coração. Enfim, Teodoro não pôde negar a evidência de uma verdade cruel: sua mulher não era sensível à poesia, não vivia na esfera dele, não o acompanhava em todos os seus caprichos, nas suas improvisações, nas suas alegrias, nas suas dores. Ela marchava terra a terra na vida real, ao passo que ele tinha a cabeça nas nuvens. Os espíritos vulgares não podem avaliar os sofrimentos contínuos do ser que, unido a outro pelo mais íntimo de todos os sentimentos, é forçado a recalcar a todo instante as mais caras expansões de seu pensamento e a fazer voltar ao nada as imagens que uma potência mágica o obriga a criar. Para ele esse suplício é tanto mais cruel quanto o sentimento que ele tributa ao companheiro, ordena, como sua primeira lei, nunca dissimular coisa alguma um ao outro e mesclar as efusões do pensamento, da mesma forma que as expansões da alma. Não se enganam impunemente os imperativos da natureza: ela é inexorável como a Necessidade, a qual, certamente, é uma espécie de natureza social. Sommervieux refugiou-se na calma e no silêncio de sua oficina, na esperança de que o hábito de viver com artistas poderia formar sua mulher e nela desenvolver os germes entorpecidos de uma alta inteligência que alguns espíritos superiores julgam preexistentes em todos os seres; mas Augustina era muito sinceramente religiosa para que não se alarmasse com o tom dos artistas. No primeiro jantar que Teodoro deu, ela ouviu um jovem pintor dizer com essa infantil leviandade que ela não soube perceber e que absolve um gracejo de qualquer irreverência:

- Mas, minha senhora, seu paraíso não é mais bonito do que a Transfiguração de Rafael, não é? Pois bem, fiquei farto de olhá-la.

Augustina levou, pois, para aquela sociedade espiritual um estado de desconfiança que não escapava a ninguém. Tornou-se um constrangimento. Os artistas quando constrangidos são impiedosos, ou fogem, ou zombam. A sra. Guillaume tinha, entre outros ridículos, o de exagerar a dignidade, que lhe parecia o apanágio das mulheres casadas, e, conquanto Augustina inúmeras vezes tivesse zombado disso, não pôde furtar-se a uma leve imitação da excessiva reserva materna. Esse exagero do pudor, que nem sempre as mulheres virtuosas evitam, sugeriu alguns epigramas a crayon cuja graça inocente era de tão bom gosto que Sommervieux não se pôde zangar. Embora esses gracejos tivessem sido mais cruéis, não seriam afinal de contas senão represálias exercidas contra ele por seus amigos. Mas nada podia ser leve para uma alma que como a de Teodoro recebia tão facilmente impressões do exterior. Por isso foi ele insensivelmente invadido por uma frieza que só podia aumentar. Para chegar à felicidade conjugal é preciso escalar uma montanha, cujo estreito planalto está à beira de uma encosta tão íngreme quanto escorregadiça, e o amor do artista a Augustina descia. Achou a mulher incapaz de interpretar as considerações morais que justificavam, aos seus próprios olhos, a singularidade de seus modos para com ela e julgou-se completamente inocente por esconder-lhe pensamentos que ela não compreendia e desvios quase injustificáveis no tribunal de uma consciência burguesa. Augustina fechou-se numa dor sombria e silenciosa. Esses sentimentos secretos estenderam entre os dois esposos um véu que devia espessar-se dia a dia. Sem que o marido fosse desatencioso para com ela, Augustina não podia deixar de tremer ao verificar que ele reservava para a sociedade os tesouros de graça e de espírito que em outros tempos lhe vinha depor aos pés. Em breve, ela interpretou fatalmente os ditos espirituosos proferidos nos salões sobre a inconstância dos homens. Não se lamentou, mas sua atitude equivalia a uma censura. Três anos após o casamento, aquela jovem e bonita mulher, que passava tão brilhante na sua brilhante carruagem, que vivia num ambiente de glória e de riqueza, invejada por tanta gente despreocupada e incapaz de avaliar com exatidão as situações da vida, foi presa de violentos desgostos. Tornou-se pálida. Refletiu, comparou; depois a desgraça desenrolou os primeiros textos da experiência. Resolveu permanecer corajosamente no círculo de seus deveres, na esperança de que esse procedimento generoso lhe restituísse, mais cedo ou mais tarde, o amor do marido. Tal, porém, não aconteceu. Quando Sommervieux, cansado, saía do ateliê, por mais rapidamente que Augustina escondesse o seu trabalho o pintor via que ela estava cerzindo e remendando a roupa com a minúcia de uma boa dona de casa. Fornecia, generosamente, sem murmurar, o dinheiro necessário às prodigalidades do marido; mas, no desejo de conservar a fortuna de seu querido Teodoro, mostrava-se econômica fosse para com ela, fosse em certos pormenores da administração doméstica. Esse procedimento é incompatível com o deixa-estar dos artistas, os quais, no final da carreira, já gozaram tanto da vida que jamais indagam os motivos da sua ruína. Inútil assinalar cada uma das degradações de cor pelas quais o fulgurante colorido de sua lua de mel se extinguiu e os deixou em profunda escuridão. Uma tarde, a triste Augustina, que havia muito ouvia o marido falar com entusiasmo doentio da duquesa de Carigliano, recebeu de uma amiga alguns avisos maldosamente caridosos sobre a natureza da amizade que Sommervieux concebera por aquela célebre coquete, que dava o tom à corte imperial. Aos vinte e um anos, em todo o esplendor da mocidade e da beleza, Augustina viu-se traída por uma mulher de trinta e seis anos. Sentindo-se infeliz no meio da sociedade e de suas festas para ela desertas, a pobre pequena não mais compreendeu a admiração que inspirava nem a inveja que despertava. Seu semblante adquiriu nova expressão. A melancolia imprimiu-lhe nas feições a doçura da resignação e a palidez de um amor desdenhado. Não tardou em ser cortejada pelos homens mais sedutores, mas conservou-se solitária e virtuosa. Algumas palavras de desdém proferidas descuidadamente pelo marido causaram-lhe incrível desespero. Um clarão fatal lhe fez entrever as faltas de contato que, em consequência da mesquinhez de sua educação, impediam a união completa de sua alma com a de Teodoro: teve amor bastante para absolvê-lo e condenar-se a si própria. Chorou lágrimas de sangue e reconheceu demasiado tarde que há uniões desiguais de espíritos, da mesma forma como as há de costumes e posição social. Ao pensar nas delícias primaveris de sua união, compreendeu a extensão da felicidade passada e conveio consigo mesma que uma tão rica messe de amor era uma vida inteira que não se podia pagar senão com sofrimento. Entretanto, amava com excessiva sinceridade para que perdesse toda esperança. Por isso animou-se aos vinte e um anos a iniciar sua instrução e a tornar sua imaginação pelo menos digna daquele que admirava. “Se não sou poetisa”, dizia a si mesma, “pelo menos compreenderei a poesia.”

E, desenvolvendo então essa força de vontade, essa energia que todas as mulheres possuem quando amam, a sra. de Sommervieux tentou modificar seu caráter, seus costumes e seus hábitos; mas devorando volumes, aprendendo corajosamente, nada mais conseguiu do que se tornar menos ignorante. A leveza de espírito e a graça na conversação constituem dom da natureza ou fruto de uma educação iniciada no berço. Podia apreciar a música, gozar dela, mas não cantar com gosto. Compreendeu a literatura e as belezas da poesia, mas já era muito tarde para ornar sua memória rebelde. Ouvia com prazer as conversas nas rodas sociais, mas não fornecia nenhuma contribuição brilhante. Suas ideias religiosas e seus preconceitos de infância opunham-se à completa emancipação de sua inteligência. Finalmente insinuara-se contra Augustina, na alma de Teodoro, uma prevenção que ela não pôde vencer. O artista zombava dos que lhe gabavam a esposa, e seus gracejos tinham bastante fundamento: ele se impunha de tal forma àquela jovem e tocante criatura que, em sua presença, ou tête-à-tête, ela tremia. Embaraçada pelo seu excessivo desejo de agradar, sentia seu espírito e seus conhecimentos desvanecerem num sentimento único. A própria fidelidade de Augustina desagradava àquele infiel marido, que parecia induzi-la a cometer faltas, tachando sua virtude de insensibilidade. Debalde, Augustina se esforçou por abdicar de sua razão, por se curvar aos caprichos, às fantasias do marido e dedicar-se ao egoísmo de sua vaidade. Não recolheu os frutos de tal sacrifício. Talvez tivessem os dois deixado passar o momento em que as almas podem compreender-se. Um dia o coração extremamente sensível da jovem esposa recebeu um desses golpes que fazem tão fortemente vergar os laços do sentimento que se pode julgá-los rotos. Ela isolou-se. Mas em breve um pensamento fatal sugeriu-lhe que fosse procurar consolo e conselhos no seio de sua família.

Em vista disso, uma manhã ela se dirigiu à grotesca fachada da humilde e silenciosa casa onde passara a infância. Suspirou ao rever a janela de onde, um dia, enviara seu primeiro beijo àquele que hoje esparzia sobre sua vida tanto glória como infelicidade. Nada mudara no antro onde, contudo, se rejuvenescia o comércio de fazendas. A irmã de Augustina ocupava, no antigo escritório, o lugar da mãe. A jovem aflita encontrou o cunhado com a caneta atrás da orelha. Este a ouviu mal e mal, de tão sobrecarregado de trabalho que estava. Percebiam-se em torno dele os temíveis sinais de um balanço geral. Por esse motivo deixou-a, escusando-se por assim fazer. Foi recebida friamente pela irmã, que lhe manifestou algum rancor. Com efeito, Augustina brilhante, a descer de uma bela carruagem, nunca fora ver a irmã, a não ser de passagem. A esposa do prudente Lebas imaginou que o dinheiro era a causa primeira da matinal visita e tratou de se manter num tom reservado que fez Augustina sorrir por mais de uma vez. A mulher do pintor observou que, salvo as fitas da touca, sua mãe encontrara em Virgínia uma sucessora que mantinha as antigas tradições do “Chat-qui-pelote”. Ao almoço, viu, no regime da casa, certas modificações que faziam honra ao bom-senso de José Lebas: os caixeiros não se levantaram à sobremesa, consentia-se que falassem, e a abundância na mesa revelava uma abastança sem luxo. A jovem elegante encontrou entradas para a Comédie-Française, onde se lembrou de ter visto a irmã uma vez ou outra. A sra. Lebas trazia nos ombros um xale de cachemira, cuja magnificência testemunhava a generosidade do marido. Enfim, os dois cônjuges marchavam com o seu século. Augustina não tardou em sentir-se enternecida ao verificar, durante os dois terços daquele dia, a felicidade estável, sem exaltação, é verdade, mas também sem tormentas, de que gozavam aqueles dois, evidentemente feitos um para o outro. Ambos haviam aceitado a vida como uma empresa comercial em que se tratava, antes de tudo, de fazer face aos compromissos. A mulher, não tendo encontrado no marido um amor excessivo, aplicara-se em fazê-lo nascer. Levado insensivelmente a estimar, a querer a Virgínia, o tempo empregado pela felicidade para desabrochar foi, para José Lebas e sua mulher, um penhor de duração. Por isso, quando a chorosa Augustina expôs seu doloroso estado, teve de suportar o dilúvio de lugares-comuns que a moral da rue Saint-Denis fornecia à irmã.

- O mal está feito, querida—disse Lebas.—Devemos procurar dar bons conselhos à nossa irmã.

Depois, o hábil negociante analisou ponderadamente os recursos que as leis e os costumes podiam oferecer a Augustina para sair daquela crise; numerou, por assim dizer, as considerações, classificou-as, segundo sua força, em categorias diversas, como se se tratasse de mercadorias de várias qualidades; depois levou-as à balança, pesou-as e concluiu por desenvolver a necessidade em que se achava a cunhada de tomar uma resolução violenta, a qual não satisfez absolutamente o amor que ela ainda sentia ao marido. Por isso, esse sentimento despertou em toda a sua pujança quando ela ouviu José Lebas falar de vias judiciárias. Agradeceu aos dois amigos e voltou para casa mais indecisa ainda do que antes de os consultar. Arriscou-se então a ir ao palacete da rue du Colombier, no intuito de confiar suas desditas aos pais. A pobre mulherzinha lembrava esses doentes que, tendo chegado a um estado desesperador, experimentam todos os remédios e vão ao extremo de entregar-se a curandeiras. Os dois velhos receberam-na com uma efusão de sentimento que a comoveu. Aquela visita lhes trazia uma distração que para eles valia um tesouro. Fazia quatro anos que iam pela vida como navegantes sem destino e sem bússola. Por isso, no canto de sua lareira, contavam um ao outro todos os desastres do Maximum, suas antigas compras de fazendas, o modo pelo qual haviam evitado as bancarrotas e, sobretudo, a célebre falência Lecoq, que era a batalha de Marengo do velho Guillaume. Depois de esgotarem os velhos processos, recapitulavam a soma de seus mais remuneradores balanços e comentavam ainda as velhas histórias da rue Saint-Denis. Às duas horas o velho Guillaume ia dar uma olhada no estabelecimento do “Chat-qui-pelote”. Ao voltar fazia escalas em todas as lojas, suas rivais de outros tempos, cujos jovens proprietários esperavam arrastar o velho negociante em alguma operação arriscada que ele, segundo seu hábito, nunca recusava positivamente. Dois possantes cavalos normandos morriam de excesso de gordura na estrebaria do palacete: a sra. Guillaume não os ocupava, a não ser para fazer-se conduzir, aos domingos, à missa solene da paróquia. Três vezes por semana esse respeitável casal oferecia mesa franca. Graças à influência de seu genro Sommervieux, o velho Guillaume fora nomeado membro do conselho consultivo sobre a indumentária da tropa. Desde que seu marido fora assim investido em tão altas funções administrativas, a sra. Guillaume tomara a decisão de manter as aparências. Seu apartamento estava atopetado de tanto enfeite de ouro e prata e de móveis sem gosto, mas de valor certo, que a mais simples peça da casa parecia um oratório. A economia e a prodigalidade pareciam competir em cada um dos acessórios do palacete. Dir-se-ia que o sr. Guillaume tinha tido em vista fazer um emprego de dinheiro até na aquisição de um castiçal. No meio daquele bazar, cuja riqueza revelava a ociosidade do casal, o célebre quadro de Sommervieux obtivera o lugar de honra. Era o consolo do sr. e da sra. Guillaume, que, vinte vezes por dia, dirigiam os olhos equipados de óculos para aquela imagem de sua antiga existência, tão ativa para eles e tão divertida. O aspecto daquele solar e daqueles apartamentos, onde tudo tinha um odor de velhice e de mediocridade, o espetáculo oferecido por aquelas duas criaturas que pareciam ter dado à costa num rochedo de ouro, longe do mundo e das ideias que fazem viver, surpreendeu Augustina. Naquele momento, ela contemplava a segunda parte do quadro cujo começo a impressionara em casa dos Lebas, o de uma vida agitada, conquanto sem movimento, espécie de existência mecânica e instintiva, semelhante à dos castores. Teve então não sei que orgulho de seus pesares, ao pensar que eles se originavam de uma felicidade de dezoito meses que, a seus olhos, valia por mil existências como aquela cujo vazio lhe causava horror. Entretanto, ocultou esse sentimento pouco caridoso e expandiu ante seus velhos pais os novos atrativos de seu espírito, as faceirices que o amor lhe tinha revelado, e os dispôs favoravelmente para ouvirem suas queixas matrimoniais. As pessoas velhas têm um fraco por essa espécie de confidências. A sra. Guillaume quis ser informada das menores particularidades daquela vida estranha, que para eles tinha qualquer coisa de fabuloso. As viagens do barão de La Hontan, que ela sempre começava sem jamais chegar ao fim, não lhe apresentavam nada tão inaudito sobre os selvagens do Canadá.

- Como é, minha filha, que teu marido se encerra com mulheres nuas e tens a ingenuidade de crer que é para desenhá-las?

Com essa exclamação, a velha senhora depôs os óculos em cima de uma pequena mesa de trabalho, sacudiu as saias e trançou as mãos sobre os joelhos elevados por estar com os pés em cima de um aquecedor, seu pedestal favorito.

- Mas, minha mãe, todos os pintores são obrigados a ter modelos.

- Ele teve o cuidado de não dizer nada disso quando te pediu em casamento. Se eu o tivesse sabido, nunca teria dado minha filha a um homem que exerce semelhante ofício. A religião proíbe esses horrores; não é moral. A que horas disseste que ele volta para casa?

- À uma ou às duas...

Os dois esposos olharam-se com profundo espanto.

- Então ele joga?—disse o sr. Guillaume.—No meu tempo só os jogadores voltavam tão tarde.

Augustina fez um trejeito que negava essa acusação.

- Deve fazer-te passar noites bem cruéis, a esperá-lo—comentou a sra. Guillaume.—Mas não, com certeza tu te deitas, não é? E quando perde, o monstro te acorda, não?

- Não, mamãe, pelo contrário, ele até às vezes fica muito alegre. Até, muitas vezes, quando o tempo está bom, ele me convida para levantar-me e irmos passear ao ar livre.

- Fora de casa, a tais horas? Quer dizer que o teu apartamento é tão pequeno que não lhe bastam o quarto e as salas, e ele precisa correr assim para... Mas é para te resfriar que esse celerado te propõe esses passeios. Quer ver-se livre de ti. Quando é que se viu um homem estabelecido, que tem uma casa de negócio sossegada, sair por esse mundo afora como um lobisomem?

— Mas, minha mãe, a senhora não compreende que para desenvolver seu talento ele precisa de exaltação. Ele gosta muito das cenas que...

- Ah! Cenas é o que lhe vou fazer—exclamou a sra. Guillaume interrompendo a filha.—Como podes ter contemplações com um homem desses? Primeiro que tudo, não me agrada que ele só beba água. Não é bom para a saúde. Por que se mostra ele repugnado quando vê as mulheres comendo? Que mania estranha! Mas é um louco! Tudo isso que nos contaste é impossível. Um homem não pode sair de casa sem nada dizer e só voltar dez dias depois. Ele te disse que esteve em Dieppe para pintar o mar. Quem é que pinta o mar? Ele te impinge patranhas incríveis.

Augustina abriu a boca para defender o marido, mas a sra. Guillaume impôs-lhe silêncio com um gesto de mão, ao qual, por força do hábito, ela obedeceu, e a velha exclamou num tom seco:

— Por favor, não me fales nesse homem! Ele nunca pôs os pés numa igreja senão para te ver e casar contigo. Gente sem religião é capaz de tudo. Quando é que Guillaume se teria lembrado de me esconder qualquer coisa, de ficar três dias sem me dizer patavina e em seguida pôr-se a falar como uma gralha louca?

- Minha querida mãe, a senhora julga com demasiada severidade as pessoas superiores. Se elas tivessem ideias semelhantes às dos outros, não seriam mais criaturas de talento.

— Pois então que as pessoas de talento fiquem na sua casa e não se casem. Como! Um homem de talento fará uma mulher infeliz, e porque ele tem talento, está certo? Talento, talento! Não vejo tanto talento em dizer, como ele, branco e preto a toda hora, a interromper a gente, a mandar e desmandar em casa, a nos fazer andar num pé só, a obrigar uma mulher a não achar graça enquanto seu senhorio não está alegre, a ficar triste quando ele está triste.

— Mas, minha mãe, a razão dessas ideias...

— Que ideias são essas?—retrucou a sra. Guillaume, tornando a interromper a filha.—Frescas ideias, as dele! Que espécie de homem é esse que, sem consultar um médico, mete na cabeça só comer verduras? Ainda se fosse por motivo de religião, essa dieta podia servir-lhe para alguma coisa; mas religião é coisa que ele tem tanta como um huguenote. Onde é que se viu um homem como ele, que gosta mais de cavalos do que do próximo, que manda frisar os cabelos como um pagão, cobrir estátuas com musselina, fechar as janelas de dia para trabalhar à luz de uma lâmpada? Olha, se ele não fosse tão grosseiramente imoral, era o caso de botá-lo no hospício. Consulta o sr. Loraux, o vigário de Saint-Sulpice, pergunta a opinião dele sobre tudo isso, e ele te dirá que teu marido não procede como um cristão...

— Oh! minha mãe, como pode crer...

— Como não! Creio, sim, senhora! Tu gostaste dele, não vês nenhuma dessas coisas. Mas eu, nos primeiros tempos do teu casamento, lembro-me perfeitamente de o ter encontrado nos Champs-Élysées. Estava a cavalo. Pois bem! Às vezes ele saía galopando a toda a brida, depois parava, e ia passo a passo. Foi quando eu pensei com os meus botões: “Aí está um homem que não regula bem”.

— Ah!—exclamou o sr. Guillaume, esfregando as mãos.—Como andei acertado em te haver casado com esse original com separação de bens!

Quando Augustina cometeu a imprudência de referir as verdadeiras queixas que tinha para apresentar contra o marido, os dois velhos ficaram mudos de indignação. Não tardou que a palavra “divórcio” fosse proferida pela sra. Guillaume. A tal palavra, o inativo negociante foi como que despertado. Estimulado pelo amor que tributava à filha, e também pela agitação que um processo ia trazer à sua vida rotineira, o velho Guillaume tomou a palavra. Pôs-se à frente do pedido de divórcio, dirigiu-o, quase o pleiteou; ofereceu-se à filha para fazer todas as despesas, falar com os juízes, os notários, os advogados, remover céu e terra. A sra. de Sommervieux, assustada, recusou os serviços do pai, disse que não queria separar-se do marido, mesmo que tivesse de ser dez vezes mais infeliz, e não tocou mais nos seus aborrecimentos. Depois de ter sido cercada pelos pais de todas essas pequenas atenções mudas e consoladoras, pelas quais os dois velhos tentaram compensá-la, mas em vão, dos seus pesares, Augustina retirou-se, sentindo a impossibilidade de fazer que os espíritos fracos julgassem com justiça os homens superiores. Aprendeu então que uma mulher devia ocultar a todos, até a seus pais, as desgraças para as quais tão dificilmente se encontram simpatias. As dores e as tormentas das esferas superiores não podem ser avaliadas senão pelos nobres espíritos que nelas vivem. Em tudo, não podemos ser julgados, a não ser por nossos iguais.

A pobre Augustina viu-se portanto, novamente, na fria atmosfera de seu lar, entregue ao horror de suas meditações. O estudo nada mais significava para ela, porque não lhe restituíra o coração do marido. Iniciada no segredo dessas almas de fogo, mas não dispondo de seus recursos, participava intensamente dos seus pesares, sem partilhar de seus prazeres. Enojara-se da sociedade, que lhe parecia mesquinha e pequena ante os incidentes das paixões. Enfim, sua vida falhara. Uma tarde ocorreu-lhe um pensamento que veio iluminar seus tenebrosos desgostos como um raio de sol. Essa ideia só podia sorrir a um coração tão puro e tão virtuoso como o seu. Resolveu ir à casa da duquesa de Carigliano, não para lhe pedir que lhe restituísse o coração do marido, mas para aprender os artifícios que lhe haviam roubado; para interessar aquela orgulhosa dama da alta sociedade pela mãe dos filhos de seu amigo; para comovê-la e torná-la cúmplice de sua felicidade futura do mesmo modo que fora o instrumento de sua desdita passada.

Um dia, pois, a tímida Augustina, armando-se de coragem sobrenatural, tomou a carruagem, às duas horas da tarde, para tentar penetrar na alcova da célebre coquete, que nunca era visível antes dessa hora. A sra. de Sommervieux ainda não conhecia os veneráveis e suntuosos palácios do faubourg Saint-Germain. Quando percorreu aqueles vestíbulos majestosos, aquelas régias escadarias, os imensos salões enfeitados de flores, não obstante os rigores do inverno, e decorados com o gosto próprio das mulheres nascidas na opulência ou com os hábitos distintos da aristocracia, Augustina sentiu horrível aperto de coração. Invejou os segredos daquela elegância, da qual jamais suspeitara. Respirou uma atmosfera de grandeza que lhe explicou a atração que aquele solar exercia sobre o marido. Quando chegou aos pequenos aposentos da duquesa, sentiu ciúme e uma espécie de desespero, ao admirar a voluptuosa disposição dos móveis, das tapeçarias e dos estofos das paredes. Ali a desordem era graciosa, o luxo afetava uma espécie de desdém pela riqueza. Os perfumes espalhados por aquela suave atmosfera deliciavam o olfato, sem ofendê-lo. Os acessórios do apartamento harmonizavam-se com a vista proporcionada, através de finas vidraças, pelos gramados de um jardim plantado de árvores verdes. Tudo era sedução, e não se sentia o cálculo. O espírito da dona da casa evidenciava-se todo no salão onde Augustina esperava. Procurou adivinhar o caráter da rival pelo aspecto dos objetos esparsos; mas havia ali algo de impenetrável na desordem, tanto como na simetria, e para a simplicidade de Augustina aquilo foi como um livro fechado. Tudo o que pôde ver foi que a duquesa, como mulher, era uma mulher superior. Teve então um pensamento doloroso. “Ai de mim! será verdade”, pensou, “que um coração amante e simples não baste para um artista e que para equilibrar o peso dessas almas fortes seja preciso uni-las às almas femininas cuja potencialidade se equipare à sua? Se eu tivesse sido educada como essa sereia, pelo menos nossas almas, no momento da luta, teriam sido iguais.”

- Mas eu não estou em casa!

Essas palavras secas e cortantes, conquanto pronunciadas em voz baixa na alcova contígua, foram ouvidas por Augustina, cujo coração palpitou.

- Essa senhora está aqui—replicou a criada de quarto.

- Você está louca, mande entrar!—respondeu a duquesa, cuja voz, que se tornara suave, tinha tomado a inflexão afetuosa da polidez.

Era evidente que agora queria ser ouvida.

Augustina adiantou-se, tímida. No fundo daquela alcova elegante viu a duquesa voluptuosamente recostada numa otomana de veludo verde, colocada numa espécie de semicírculo desenhado pelas pregas macias de uma musselina estendida sobre um fundo amarelo. Ornamentos de bronze dourado, dispostos com refinado gosto, realçavam ainda mais a espécie de dossel sob o qual a duquesa estava pousada como uma estátua antiga. A cor escura do veludo não lhe deixava perder nenhum dos seus meios de sedução. Uma penumbra, amiga de sua beleza, parecia antes um reflexo que uma luz. Algumas flores raras erguiam suas corolas embalsamadas por sobre riquíssimos vasos de Sèvres. No momento em que esse quadro se ofereceu aos olhos de Augustina, admirada, esta caminhara tão suavemente que pôde surpreender um olhar da feiticeira. Esse olhar parecia dizer a alguém que a mulher do pintor não pôde ver de chegada: “Fique, vai ver uma linda mulher e tornará esta visita menos aborrecida”.

Ao ver Augustina, a duquesa levantou-se e fê-la sentar a seu lado.

— A que devo o prazer desta visita, senhora?—disse com o mais gracioso sorriso.

“Por que tanta falsidade?”, pensou Augustina, que respondeu apenas com uma inclinação de cabeça.

Esse silêncio era imposto. A jovem senhora via diante de si uma testemunha a mais para aquela cena. Essa personagem era o mais jovem de todos os coronéis do exército, bem como o mais elegante e o mais benfeito de corpo. O traje semiburguês ressaltava-lhe as seduções do físico. O semblante, cheio de vida, de mocidade, e já muito expressivo, era ainda animado por um pequeno bigode erguido nas pontas e negro como azeviche, por uma pera basta e suíças cuidadosamente penteadas, além de uma floresta de cabelos negros, bastante revoltos. Brincava com uma fina bengala flexível, demonstrando um desembaraço e uma despreocupação que muito assentavam ao ar satisfeito de sua fisionomia, assim como ao requinte de seu vestuário. As fitas presas à lapela estavam amarradas desleixadamente, e mostrava mais vaidade do seu lindo porte que da sua coragem. Augustina fitou a duquesa de Carigliano, indicando-lhe o coronel com um olhar que encerrava todas as súplicas.

— Pois bem! Sr. d’Aiglemont, adeus. Tornaremos a ver-nos no Bois de Boulogne.

Essas palavras foram proferidas pela sereia como se fossem o resultado de um convênio anterior à chegada de Augustina; acompanhou-as de um olhar ameaçador, que o oficial talvez merecesse pela admiração que manifestara ao contemplar a modesta flor que tanto contrastava com a orgulhosa duquesa. O jovem fátuo inclinou-se em silêncio, girou sobre os tacões e lançou-se graciosamente para fora da alcova. Nesse momento, Augustina, observando a rival, que parecia seguir o brilhante oficial com os olhos, surpreendeu naquele olhar um sentimento cujas fugitivas expressões são conhecidas por todas as mulheres. Compreendeu com a mais profunda dor que sua visita ia ser inútil; aquela artificiosa duquesa era demasiadamente ávida de homenagens para não ter o coração impiedoso.

- Senhora—disse Augustina com voz embargada -, o passo que estou dando, neste momento, junto à senhora, vai parecer-lhe bastante singular, mas o desespero tem sua loucura e deve fazer desculpar tudo. Explico-me agora perfeitamente bem por que Teodoro prefere esta casa a qualquer outra, e por que o seu espírito exerce tão grande domínio sobre ele. Ai de mim! Basta recolher-me para achar razões mais do que suficientes. Mas adoro meu marido, senhora. Dois anos de lágrimas não bastaram para apagar sua imagem do meu coração, embora o dele eu tenha perdido. Em minha loucura atrevi-me a conceber a ideia de lutar contra a senhora, e venho vê-la para pedir-lhe que me ensine por que meios poderei triunfar. Oh! Senhora—exclamou a moça, segurando ardorosamente a mão da rival, que a abandonou -, jamais pedirei a Deus por minha própria felicidade com tanto fervor como o implorarei pela sua, se a senhora me auxiliar a reconquistar, não direi o amor, mas a ternura de Sommervieux! Não tenho mais esperança, a não ser na senhora. Ah! Diga-me como lhe pôde agradar e fazer que ele esquecesse os primeiros dias de...

A estas palavras, Augustina, sufocada por soluços mal contidos, foi obrigada a deter-se. Envergonhada de sua fraqueza, escondeu o rosto num lenço, que empapou de lágrimas.

— Como é criança, minha linda menina!—disse a duquesa, que, seduzida pela novidade da cena e enternecida, contra a vontade, ao receber a homenagem que lhe prestava a mais perfeita virtude que talvez existisse em Paris, tomou o lenço da jovem dama e pôs-se ela mesma a enxugar-lhe os olhos, confortando-a com alguns monossílabos murmurados com graciosa piedade.

Depois de um momento de silêncio, a coquete, apertando as lindas mãos da pobre Augustina nas suas, que tinham raras características de nobre beleza e de poder, disse-lhe com voz meiga e afetuosa:

— Em primeiro lugar, aconselho-a que não chore assim, porque as lágrimas enfeiam. É preciso saber conformar-se com as tristezas; essas fazem adoecer, e o amor não fica muito tempo junto a um leito de dor. A melancolia dá, é verdade, no começo, um certo encanto que agrada, mas acaba por desmerecer as feições e emurchecer o rosto mais sedutor. Além disso, nossos tiranos têm o amor-próprio de querer que suas escravas estejam sempre alegres.

— Ah! Senhora, não depende de mim não sentir! Como é possível, sem sofrer mil mortes, ver alheado, descorado, indiferente, um semblante que em outros tempos irradiava amor e alegria? Não sei dominar meu coração.

— Tanto pior, minha bela; mas creio que já sei toda a sua história. Antes de mais nada, saiba que, se seu marido lhe foi infiel, não sou cúmplice dele. Se desejei tê-lo em meus salões, foi, confesso-o, por amor-próprio; ele era célebre e não ia a parte alguma. Já a estimo demasiado para que lhe diga todas as loucuras que ele fez por mim. Só lhe revelarei uma, porque, talvez, ela nos sirva para que ele volte para a senhora e também para puni-lo da audácia que ele emprega no seu procedimento para comigo. Acabaria por comprometer-me. Conheço demais a sociedade, querida, para querer pôr-me à discrição de um homem muito superior. Saiba que é preciso deixar-se cortejar por eles, mas desposá-los é um erro! Nós, mulheres, devemos admirar os homens de gênio, gozá-los como um espetáculo, mas viver com eles, nunca! Deus nos livre! Seria o mesmo que preferir ver as máquinas da ópera, em vez de ficar num camarote e aí saborear suas brilhantes ilusões. Mas consigo, minha pobre filha, o mal já está feito, não é? Pois bem, é preciso armar-se contra a tirania.

— Ah! Senhora, antes de entrar aqui, ao vê-la, já percebi alguns artifícios de que eu não suspeitava.

- Pois bem! Venha ver-me algumas vezes e não demorará muito a adquirir a ciência dessas ninharias, aliás muito importantes. As coisas exteriores são, para os tolos, metade da vida; e, para isso, mais de um homem de talento não passa de um tolo, apesar de todo o seu espírito. Mas sou capaz de apostar que nunca recusou coisa nenhuma a Teodoro.

— Como é possível, senhora, recusar qualquer coisa ao homem a quem amamos?

— Pobre inocente! Eu a adoraria pela sua ingenuidade. Saiba, pois, que, quanto mais amamos, menos devemos deixar que o homem perceba, principalmente o marido, a extensão de nossa paixão. Aquele que mais ama é o mais tiranizado e, o que é pior, é abandonado mais dia, menos dia. Quem quiser reinar, deve...

- Como, senhora! Será preciso então dissimular, calcular, tornar-se falsa, forjar um caráter artificial, e para sempre? Oh! Como é possível viver assim? Pode a senhora....

Hesitou; a duquesa sorriu.

— Minha querida—disse a grande dama com voz grave -, a felicidade conjugal foi sempre uma especulação, um assunto que exige atenção particular. Se continua a falar em paixão quando lhe falo em casamento, em breve não nos entenderemos mais. Ouça-me—continuou, tomando um tom de confidência:—Tive oportunidade de ver alguns homens superiores de nossa época. Os que se casaram, com poucas exceções, desposaram mulheres nulas. Pois bem! Essas mulheres os governavam como o imperador nos governa e eram, se não amadas, pelo menos respeitadas por eles. Gosto bastante de segredos, sobretudo dos que nos dizem respeito, razão pela qual me diverti procurando a chave do enigma. Pois bem, meu anjo! Essas boas mulheres tinham o talento de analisar o caráter do marido. Sem se apavorarem, como a senhora, das suas superioridades, tinham habilmente notado as qualidades que a eles faltavam. Ou fosse porque essas mulheres possuíssem tais qualidades, ou por fingirem tê-las, achavam meios de fazer tamanha exibição das mesmas aos olhos dos maridos, que acabavam por se impor. Enfim, saiba ainda que essas almas que parecem tão grandes têm, todas elas, um grão de loucura que deveremos saber explorar. Tomando a firme resolução de dominá-los, nunca se afastando desse objetivo, referindo a ele todas as nossas ações, nossas ideias, nossas faceirices, subjugamos esses espíritos eminentemente caprichosos que, pela própria mobilidade de seus pensamentos, nos fornecem os meios para influenciá-los.

- Céus!—exclamou a jovem senhora, apavorada.—E é isso a vida! Um combate...

- No qual sempre é preciso ameaçar—replicou a duquesa, a rir.—Nosso poder é inteiramente factício. Por isso não nos devemos deixar jamais desprezar por um homem; de semelhante queda não nos podemos levantar senão por manobras odiosas. Venha—acrescentou.—Vou dar-lhe um meio de acorrentar seu marido.

Levantou-se para guiar, sorrindo, a jovem e inocente aprendiz das manhas matrimoniais, através do dédalo de seu pequeno palácio. Chegaram as duas a uma escada disfarçada que comunicava com os salões de recepção. Quando a duquesa moveu o segredo da porta, deteve-se e olhou para Augustina com um ar de uma graciosidade e sutileza inimitáveis:

— Veja, o duque de Carigliano adora-me; pois bem! Ele não se atreve a entrar por esta porta sem minha licença. E é um homem habituado a comandar milhares de soldados. Sabe afrontar baterias, mas diante de mim tem medo!

Augustina suspirou. Chegaram a uma suntuosa galeria, aonde a mulher do pintor foi levada pela duquesa diante do retrato que Teodoro fizera da srta. Guillaume. Vendo-o, Augustina deu um grito.

— Eu sabia que ele não estava mais em minha casa, mas... aqui!

— Querida, só o exigi para ver que grau de tolice pode atingir um homem de gênio. Cedo ou tarde, ele lhe teria sido restituído por mim; mas eu não esperava ter o prazer de ver aqui o original ante a cópia. Enquanto acabamos nossa conversa, eu o mandarei levar ao seu carro. Se, armada com esse talismã, não se tornar senhora de seu marido durante cem anos, é que não é uma mulher e merecerá sua sorte!

Augustina beijou a mão da duquesa, que a estreitou ao coração e a beijou com uma ternura tanto mais intensa quanto devia ser esquecida no dia seguinte. Essa cena teria talvez arruinado para sempre o candor e a pureza de uma mulher menos virtuosa do que Augustina, a quem os segredos revelados pela duquesa podiam ser igualmente salutares ou funestos. A política astuciosa das altas esferas sociais não convinha mais a Augustina do que a estreita razão de José Lebas, ou a tola moral da sra. Guillaume. Estranho efeito das falsas posições em que nos lançam os menores contrassensos cometidos na vida! Augustina assemelhava-se então a um pastor dos Alpes surpreendido por uma avalancha: se hesita ou se quer ouvir os gritos dos companheiros, muitas vezes perece. Nessas grandes crises, o coração ou se esfacela ou enrijece.

A sra. de Sommervieux voltou para casa numa agitação que seria difícil descrever. A conversa com a duquesa de Carigliano despertava-lhe no espírito uma multidão de ideias contraditórias. Como os carneiros da fábula, estava cheia de coragem durante a ausência do lobo. Fazia preleções a si mesma e traçava para seu uso admiráveis planos de ação; imaginava mil estratagemas de coqueteria; chegava a falar ao marido, achando, longe deste, todos os recursos dessa verdadeira eloquência que as mulheres nunca perdem; depois, ao pensar no claro e fixo olhar de Teodoro, começava a tremer. Quando perguntou se o senhor estava nos seus aposentos, faltou-lhe a voz. Ao saber que ele não viria jantar, sentiu uma alegria inexplicável. Tal como ao criminoso que interpõe apelação da sentença de morte, um prazo, por pequeno que fosse, lhe parecia toda uma vida. Colocou o retrato no quarto e esperou o marido, entregando-se a todas as angústias da esperança. Pressentia perfeitamente que aquela tentativa ia decidir de todo o seu futuro, motivo pelo qual estremecia a qualquer ruído, até ao murmúrio do seu relógio, que parecia agravar seus terrores, medindo-os. Procurou matar o tempo por meio de mil artifícios. Lembrou-se de se vestir de modo que ficasse igual em tudo ao retrato. Depois, como conhecia o temperamento inquieto do marido, fez iluminar seu aposento de maneira desusada, na certeza de que a curiosidade, quando ele chegasse, o faria dirigir-se aonde ela estava. Deu meia-noite quando, ao grito do criado, a porta do palacete se abriu. O carro do pintor rodou silenciosamente sobre as lajes do pátio.

— Que significa esta iluminação?—perguntou Teodoro com voz alegre, ao entrar no quarto da mulher.

Augustina, aproveitando habilmente uma oportunidade tão favorável, enlaçou-se ao pescoço do marido e mostrou-lhe o retrato. O artista quedou-se imóvel como um rochedo. Seus olhos iam alternadamente do semblante de Augustina à sua tela acusadora. A tímida esposa, semimorta, perscrutava a fronte mutável, a fronte terrível do marido. Viu nela as rugas expressivas acumularem-se gradativamente, como nuvens; depois teve a impressão de que o sangue se lhe gelava nas veias, quando, com um olhar chamejante e uma voz profundamente surda, ele a interrogou:

— Onde achou esse quadro?

— A duquesa de Carigliano me restituiu.

— Você pediu a ela?

— Não sabia que estava em casa dela.

A doçura, ou melhor dito, a melodia encantadora da voz daquele anjo, teria enternecido um canibal, mas não um artista tomado das torturas da vaidade ferida.

— Isto é bem digno dela—exclamou ele com voz atroadora.—Hei de vingar-me!—disse, caminhando pela peça a largos passos.—Ela morrerá de vergonha. Vou pintá-la, sim! Mas a representarei sob as feições de Messalina, saindo à noite do palácio de Cláudio.

— Teodoro!—disse uma voz expirante.

— Matá-la-ei!

— Meu amigo!

— Ela ama aquele coronelzinho de cavalaria, porque ele sabe montar bem a cavalo.

— Teodoro!

— Deixa-me—disse o pintor à esposa, com uma voz que mais parecia um rugido.

Seria odioso descrever toda a cena, no fim da qual a embriaguez da cólera sugeriu ao artista palavras e atos que uma mulher menos jovem do que Augustina teria atribuído à demência.

Às oito horas da manhã do dia seguinte, a sra. Guillaume surpreendeu a filha pálida, com os olhos vermelhos, o penteado desfeito, segurando um lenço embebido de pranto, a contemplar por terra os fragmentos esparsos de uma tela rasgada e uma grande moldura dourada feita em pedaços. Augustina, a quem a dor tornara quase insensível, mostrou aqueles restos com um gesto cheio de desespero.

— Eis aí talvez uma grande perda—exclamou a velha gerente do “Chat-qui-pelote”.—Não há dúvida de que era parecido; mas eu soube que há no bulevar um sujeito que faz retratos encantadores por cinquenta escudos.

— Ah! Minha mãe!

— Pobrezinha, tens muita razão!—disse a sra. Guillaume, que não compreendeu a expressão do olhar da filha.—Sim, minha filha, a gente nunca é tão ternamente amada como pela própria mãe. Adivinho tudo, minha mimosa. Mas mesmo assim vem confiar-me tuas penas, que eu te consolarei. Eu já não te disse que esse homem era um louco? Tua criada de quarto contou-me boas coisas... Mas é um verdadeiro monstro!

Augustina pôs um dedo sobre os lábios pálidos, como para implorar à mãe um momento de silêncio. Durante aquela terrível noite, a desgraça fizera com que ela encontrasse a paciente resignação que, nas mães e nas mulheres que amam, sobrepuja, em seus efeitos, a energia humana e revela, talvez, no coração das mulheres, a existência de certas cordas que Deus recusou aos homens.

Uma inscrição gravada em um cipo do cemitério Montmartre dizia que a sra. de Sommervieux morrera aos vinte e sete anos. Um poeta, amigo daquela tímida criatura, via nas singelas linhas de seu epitáfio a última cena do drama. Todos os anos, no solene dia 2 de novembro, nunca passava por aquele recente mármore sem perguntar a si mesmo se não eram necessárias mulheres mais fortes do que Augustina para os poderosos amplexos do gênio.

“As humildes e modestas flores, desabrochadas nos vales, morrem talvez”, dizia ele de si para si, “quando são transplantadas para muito perto do céu, na região onde se formam as tormentas, onde o sol é escaldante.”

Maffliers, outubro de 1829

 

 

                                                                  Honoré de Balzac

 

 

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