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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AO CONTRÁRIO DAS ONDAS / Urbano Tavares
AO CONTRÁRIO DAS ONDAS / Urbano Tavares

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AO CONTRÁRIO DAS ONDAS

 

                         O HORTO ABANDONADO

 

Hoje a Primavera está a acabar e as orquídeas abriram num dos vasos que, na sala do seu desconsolo, recebem da janela o sol possível.

Receia um Verão muito quente, desses que lhe roubam agora toda a energia.

Há muitos anos que nem por um olhar ou uma palavra in­tencional ela e António Pedro recordam um ao outro a relação que durante quase dois anos mantiveram e de certo modo a im­pediu de secar completamente como mulher. Nunca ele deixou de vir a sua casa depois de terem posto ponto final nessa intimi­dade que (ele também o sabia) jamais fora total no plano da confidência, dessa confidência a que poderia chamar, por comodidade de expressão, a sua entrega absoluta, embora lhe repugnem essas definições superlativas. Terminaram, de comum acordo, tentaram voltar ao antes, como se nada tivesse suce­dido. E não se tinham dado mal com essa tentativa para restau­rar o convívio dos três e especialmente a amizade de António Pedro com o Lívio, que andara sempre a leste do que se passava entre eles e se mortificava com tantas ausências do seu compa­nheiro de sempre.

Era inevitável. António Pedro dera-lhe um pouco do que ela precisava, talvez muito, nunca haviam pronunciado a palavra amor, jamais tinham fingido o quer que fosse e, se de alguma coisa se tinham defendido, ou haviam dissimulado, fora apenas o crescer de algum excesso nos seus mútuos sentimentos.

Só podia ser assim. Sabina queria preservar o que restava do seu casamento, não escondia de si própria que continuara sempre (e ainda continua) a gostar do Lívio, mesmo reduzida por ele à condição de móvel da casa. António Pedro fazia ques­tão de manter, em meio do adultério, a fraternidade, bem com­plicada fraternidade, que havia entre os dois homens.

E tinham continuado e continuavam a viver esta comédia de máscaras, que era afinal a vida.

Sabina não falava já muito com ele. Tinham-se desabituado. Mas quando falavam era sem acrimónia, às vezes riam. O riso é saudável, desdramatiza (ajuda a desdramatizar) o que há afinal de embuste um pouco sórdido e ao mesmo tempo necessário em todas as existências. Sempre se recusara à mentira, mas per­guntava-se se o silêncio e a omissão, em que era especialista, não seriam formas passivas de colaborar nessa grande farsa que eram as suas vidas. Quando o Lívio era radical, ou quase radi­cal, para ser mais exacta, no seu envolvimento com a oposição e até com a clandestinidade, ainda no tempo do fascismo, todos à sua volta respeitavam a sua verticalidade, que o impedira nessa altura de conquistar posições de prestígio, lugares bem pagos. Dotado como era para planear, para dirigir, para empreender, estava, quanto a essa forma de realização, a desperdiçar a juventude. E ela aplaudia-o então em tudo. Queria ser a sua sombra e o seu conforto.

Dizia-lhe muitas vezes: «Orgulho-me de ti e da tua lisura, da tua honestidade, és incapaz de contemporizar, de mentir.» E nem ele afinal o era. Mas já o fora realmente, ou andara muito perto disso. O facto é que o acompanhara em tanta coisa. E Lívio mudara mais do que ela.

Actualmente havia muitas zonas da sua interioridade que lhe eram alheias. Já não o via de pantufas. Já não lhe escutava confidências. E quantas vezes as suas confidências a haviam enternecido e os aproximavam, mesmo quando a feriam.

A última vez que Lívio se abrira desse modo com ela fora em Delhi, durante a viagem à índia, já ele era nessa altura ministro.

Estavam num parque lindíssimo, os jardins de Lodi, até a brisa ali era verde, um Inverno cheio de sol, havia muita gente deitada na relva, a maioria vestida à europeia, uns castanheiros enormes e aqueles túmulos fabulosos, a ponte sobre o riacho perto deles, que se tinham sentado num banco, calados, olhando a luz que doirava aquelas grandes massas de pedra e de tempo, escutando os insectos à sua volta, espreitando as lagartixas que saíam das pedras seculares. Do outro lado do gradeamento mendigos comiam as sobras das ofertas aos deuses do templo que eles tinham visitado. Fora pelo menos o que ela tinha pensado.

«Nesse momento é que ele disse que tinha uma confissão a fazer-me. E depois tornou a calar-se. Até que principiou, em voz quase baixa, a contar-me que tinha um filho, já grande, de uma ligação sem importância, de que nunca me falara, para me poupar a esse desgosto. E se agora o fazia era sobretudo porque tinha de vez em quando uns desmaios esquisitos, sem causa aparente, "não, não te preocupes, é só um excesso de precau­ção minha", tinha decidido revelar-me esse segredo, não fosse o rapaz cruzar-se um dia com a nossa filha, sabes, tudo pode acontecer.

- E como se chama ele?

- Herberto Augusto. Herberto Augusto Madureira.

- Não tem o teu nome?

- Não. Nem sequer sabe que é meu filho. Usa o apelido do homem que ele supõe ser o seu pai.

Fiquei um longo espaço de tempo em silêncio, digerindo aquela desilusão. Um homem que jamais mente, como ele sem­pre afirma. Pois disfarçava bem, nunca eu suspeitaria de nada. Não é que me magoasse muito, a nossa vida erótica era já ine­xistente, mas a hipocrisia (ou talvez a piedade de mim) que aquela história calada durante anos deixava supor, desgostava--me.»

Não olhara para ele, reprimia qualquer censura, fingindo in­teressar-se pelos saltos e furtas dos esquilos, que ali rivalizavam em vitalidade e alegria com os pássaros e com as borboletas de todas as cores. E esse espectáculo acabou por reconfortá-la.

Há quem diga que o mundo é uma invenção. Maravilhosa invenção. Não fosse o que nesse momento ela sentia, a presença de toda aquela vida à sua volta, até mesmo a folhagem a beber água na margem do lago cheio de nenúfares, talvez ela tivesse desabado de tristeza, logo ali naquele banco.

Sorriu, com algum esforço, o Lívio a observá-la, também cabisbaixo, e acabou por lhe responder:

- Fizeste bem em me contar. Nem te censuro. Já não sei censurar. É como se tudo me passasse ao lado.

E remeteu-se ao silêncio.

Ele abanou a cabeça, a repelir talvez o mutismo de Sabina, sem comentar. Disse apenas:

- Obrigado.

As águas mortas do lago, os corvos muito pretos, que torna­vam menos escuros dois catraios, quase nus sob os seus andra­jos ensolarados, que teimavam em perseguir os pavões sempre presentes entre o gramado, os tufos de flores e as ruínas imó­veis, tudo em derredor lhe sorria, a consolava:

«Não sofras, não vale a pena. Afinal, morremos todos e tudo morre em nós, tudo vai morrendo, amores, remorsos, orgu­lhos.» Lembra-se de que aspirou a paz daquele momento em que nem sequer as víboras se atreviam a sair das pedras sob as quais se escondiam. E as víboras estão sempre por ali, invisí­veis, no meio de toda aquela beleza serena, como nos trilhos da existência de Sabina, em Lisboa. Pobres víboras, afinal, sem outro destino que não seja o de morder, envenenar.

- Hã?

- Que dizes, Sabina? Anda, vamos sair daqui. Não vês os miúdos já a espojarem-se na água suja? Se não te levantas, sal­picam-te toda.

Nunca Sabina procurara saber mais nada sobre essa mulher ou sobre o miúdo, que devia ser agora ura homem. Tiveram em Delhi essa conversa e sobre tais palavras caíra um silêncio de anos.

Lívio apenas aludira de novo ao assunto em Paris, da vez em que Sabina lhe propusera separarem-se definitivamente.

Ele tinha de ir a Estrasburgo, em missão, aproveitava a oca­sião para passar uma semana de férias em Paris; e inesperada­mente convidava-a a acompanhá-lo.

Tinham ficado no Bairro Latino, num hotel pequeno, de três estrelas, discreto, que ele conhecia bem, do tempo em que ali estivera exilado, para fugir à guerra colonial.

O quarto, com as duas camas que ele pedira (o grande leito conjugal é que corresponde ao modelo francês tradicional) era mesmo exíguo, entrava-se e ficava-se logo ao pé da janela. E ti­nha excesso de aquecimento, mesmo para Dezembro.

Já haviam estado em Paris várias vezes no princípio do casa­mento, mas noutros cenários, mais faustosos, no Seizième ou perto da Étoile e até ao pé da Igreja da Madeleine, com lojas ele­gantes nas vizinhanças, de modo que ela sempre dava um pas­seio pela Avenue Montaigne ou pelo Faubourg Saint-Honoré e ia espreitar as exposições do Petit Palais ou do Quai d'Orfèvres.

Sempre gostara particularmente da nobreza da Place de la Concorde e das vibrações do sol no Jardim das Tulherias, da­quele lume brando que em certos dias de inverno se derrama sobre a brancura das estátuas. Sobretudo do silêncio transpa­rente das horas vazias de domingo quando as formas robustas dessas esculturas ganham uma patine quase rosa e as flores, raras, são flores totais, sob o cristal, também frio, do céu de Dezembro.

Ela era feliz nessa altura. «O amor», diz o Vicente Aleixandre, «é esquecer a vida.» E chegou a esquecer a vida, a sua per­manente corrosão, a progressão para o nada, ou seja, para o seu nada, tudo que não fosse o Lívio.

À sua volta cantavam pássaros de felicidade, tanto nas ruas e travessas da Lapa, onde já então moravam, como nas visitas a Paris.

«O meu horizonte eram os limites do seu corpo e do seu pensamento.»

Desta vez desagradara-lhe o Bairro Latino, que aliás conhe­cia mal. Desiludira-a especialmente pelo contraste com tudo o que o Lívio sempre lhe descrevera: a juventude, a liberdade, o arrojo, o cosmopolitismo. Ora Sabina só via agora lojas feíssimas, com saldos, restaurantes onde se comia mesmo mal e que ele suportava com paciência, quase com carinho, porque aquele fora o espaço (e ainda era) dos seus anos mais generosos, quando se acomodava mesmo ao pior e todas as coisas tinham o brilho da aventura e da esperança.

Para agravar a reacção negativa de Sabina vieram nuvens prenhes de tempestade que os impediram de sair sem guarda--chuva; e mesmo assim ela constipou-se.

Mas acabou por aderir ao encanto da Rue de Seine: as flores, os legumes, algumas vozes portuguesas entre os vendedores, e as galerias de arte, os quadros de risco, com naves interiores, abstracções.

Entraram numa delas. Impressionou-a um óleo de neve sonolenta. Lembrou-lhe outras vindas a França, essas felizes, quando vira pela primeira vez o Bois de Boulogne e escutara de muito perto os soluços de Novembro, reparara nas folhas mor­tas, ouvindo dentro de si a canção. Lívio chamou-lhe a atenção para o respirar da grande cidade, que parecia o mar, e mostrou--lhe os jovens que distribuíam panfletos na rua, convocando greves e manifestações; levou-a até à sede do Partido Comu­nista, para ela ver a arquitectura do Niemeyer.

Até comprou o Humanité, embora costumasse ler o Nouvel Observateur, quando o conseguia encontrar.

Sentaram-se num bistrot, diante de dois cafés quentes e en­tão é que ela lhe disse. Contraditoriamente, foram o tom afec­tuoso como ele se lhe dirigia, e também o facto de a ajudar a atravessar as ruas quase com carinho, foram essas marcas exte­riores de estima e de respeito que a empurraram para a fran­queza total. Afinal podiam ficar amigos, talvez até mais próxi­mos, separando-se.

- Lívio - enchi-me de brio -, eu sou apenas uma coisa sem valor, digo bem: uma coisa desprezada, lá em casa. Quero sepa­rar-me de ti, ir para outro lado.

- ... Estás a exagerar, Sabina. Pensa bem. Eu gosto mesmo muito de ti. Tu é que me hostilizas com os teus silêncios... Mas se queres mesmo afastar-te... pois sim, pronto. Faça-se a tua vontade.

Tinham ficado hirtos, sem se olharem, dolorosamente quie­tos, com uma ventania perversa, que mentia, a esbofetear as vidraças do café.

Depois ele disse:

- Mas ficas tu com a nossa casa, a menos que estejas farta dela. Facilita-te a vida. Eu até já tenho pensado em comprar um apartamento nas Amoreiras, não para este fim, mas é a ocasião de o fazer. Vou eu para lá. O que é que decides?

- Não sei. A casa da Lapa é tão grande. Mas creio que tens razão. Estava com a ideia de alugar um T2 em qualquer parte. Compatível com o meu ordenado.

- Nem pensar. Tens todo o direito...

- Já não penso em direitos, nem em deveres. Só quero iso­lar-me, fugir de ti. E de mim. Do que foi a vida que me deste. Quero afastar-me de tudo o que recalquei, deixar sair essas nuvens. Desculpa. Não tinha a intenção de te fazer uma cena. Pelo contrário.

Lívio ficou com um rosto amargo, fechado. Até que pôs termo à questão.

- Tens tempo de decidir até Lisboa. E agora não me fales mais nisso. Estás de acordo?

- Sim, sim.

A tarde ainda piorou. Um vento metálico, gelado, apagava da face dos namorados o clarão de festa que traziam dos seus encontros.

Tentaram em vão apanhar um táxi. Só falavam de banalida­des, coisas neutras. E o vento a torvelinhar no chão, a arrastar papéis, a revirar saias, a ofender mais a desgraça dos pobres, das criaturas lançadas à margem da vida, que começavam a aumentar em Paris, com o avanço do neoliberalismo.

Eles cada vez mais tristes. Mas tinha de ser. Mais tarde, quando chegaram ao hotel, Sabina lembrou-se de António Pedro, do único amigo em quem ela sentia compreensão, mesmo sem lhe ter feito ainda confidências. Pensava nele sem qualquer projecto. No entanto, o ar húmido da noite parecia ter agora lábios para beijar.

Talvez nunca Sabina tenha conversado tanto com alguém como com António Pedro. Sabia ouvi-la, puxava por ela. Tinha o dom do humor e Sabina descobria inclusive em si, nesses mo­mentos, uma graça, uma ironia e uma capacidade nova para falar de arte, de literatura, de teatro, da vida, que ou estava reprimida ou desabrochava quando ele tocava com dedos de mago na sua escondida veia crítica e caricatural.

O Lívio era tão naturalmente brilhante (sem se tornar ver­boso, sem querer chamar as atenções) que Sabina se apagava sempre ao lado dele... E isso tornara-se um hábito, uma forma de mutilação social.

Com António Pedro a sós, ou com pouca gente à volta, vol­tou a gostar também de dar opiniões, de discutir ideias, de rir um pouco à custa da parolice nacional, que reapareceu, pas­sada a grande onda inovadora do 25 de Abril, e agora está cada vez pior.

É impressionante como numa cidade com uma oferta cultu­ral tão rica como Lisboa (música da melhor, algum cinema bom e o ballet renovado, as grandes exposições) há tão pouca procura e se mantém no galarim esta gente bacoca, espertalhona e pobre de espírito que ostenta uns três automóveis de luxo e tem duas casas de veraneio e quantas vezes mistura negócios sujos com o seu peso político. Gente com ódio à liber­dade e com desdém pelo povo, excepto quando fazem discur­sos eleitorais.

«E agora o Lívio está no meio deles, e ele é tão diferente, não percebo. Ou não quero perceber. Quero crer que no fundo o Lívio que eu tanto amei não mudou essencialmente.»

António Pedro sabia fazer falar os outros, até porque real­mente se interessava pelos outros, nunca discursava e com Sabina pelo menos não desconversava, e era tão hábil a dar a réplica e a escolher as palavras, a brincar com elas, sem exagerar nesse jogo.

«Quando vieste pela primeira vez cá a casa fiquei atónita pe­rante o teu tacto e a extensão de tudo o que sabes e não exibes. Para um notário tranquilo, quase sem história e sem ambições, nem sequer tão viajado como o Lívio, era assombroso ver-te tocar todas as teclas do conhecimento, dos livros à arquitectura, à informática, ao marxismo, à história das religiões.

O Lívio apresentava-te como um dos barras em Direito Ci­vil do vosso tempo de Faculdade e foste dos primeiros a evi­denciarem-se nas lutas académicas, em teu prejuízo. E depois de Abril não beneficiaste de nada disso, não quiseste cargos nem sequer uma condecoração, apesar de a mereceres tanto como os mais.»

Recordava-se de ele lhe ter dito uma vez, com um sorriso entre divertido e melancólico: «Nunca quis ser um político, houve uma altura em que me julguei um revolucionário, mas nem isso fui de modo consistente. Sou decididamente um notá­rio, ganho para viver e para me rir. Como se ria o Quevedo.»

Ela nem conhecia então esse grande poeta do século de ouro espanhol. Mas fora lê-lo e percebera o sentido da frase.

Às vezes perguntava-se se não teria acabado por ir para a cama com António Pedro para ter o gosto de o ouvir e de se ouvir a si própria, tão encafuada estava no seu semi-silêncio.

«Nunca soube muito bem se foste feliz comigo naqueles en­contros em tua casa, devo ser desajeitada nas coisas do amor e ainda mais com certeza nas palavras. Hesito aliás em chamar amor ao que nos aconteceu. Foi?, não foi?. Vi muitas vezes afecto, muito afecto nos teus olhos. E mais do que isso, vi por vezes uma espécie de súplica de qualquer coisa mais, que eu não sou talvez capaz de dar.»

Agora aqueles passeios, às vezes ao fim da tarde ou mesmo já de noite, quando o Lívio estava fora de Lisboa, isso é que ela realmente adorava. Era então que experimentava o espasmo de viver, com o sol a encandeá-la, a brisa na cara, a Costa dos Es-toris ficando para trás, Cascais e os seus barcos flutuando sobre as luzes da baía e aquele mistério das águas longínquas, fundas. Torrentes de estrelas invadindo o azul nocturno, pinhais dan­çando para lá da estrada, a impaciência do vento, hotéis convi­dativos na orla do mar que inventavam. A mão de Sabina den­tro da dele, a ilusão de relâmpagos nas curvas apertadas. E depois, no regresso, mais devagar, podia ser um beijo inespe­rado, já perto do renascer das vivendas e dos jardins sem sono.

«Gostaria de explicar-te agora, António Pedro, a verdadeira razão pela qual, após dois anos de uma relação sem sobressaltos nem imensas alegrias, que já nada punha em risco na minha existência, preferi deixar-te. Durante meses, anos, nem eu pró­pria percebi completamente porque o fiz. Tínhamos atingido uma fase de suaves rotinas banais, mas tudo continuava a ser reconfortante, eu nunca pretendi tomar a carruagem do abso­luto.»

Uma tarde, ela que raramente fazia compras, andava pelas Amoreiras à procura de um casaco para o Inverno, o menos espalhafatoso possível, nos tons da sua preferência, verde ou cinza, e, de repente, vê-o com uma ruiva esplendorosa, de olhos negros um pouco esbogalhados, os seios muito à vista, de uma brancura estridente.

Nem sabe bem o que sentiu: despeito?, raiva? Vontade de se sumir, vergonha de si sem razão?...

Ocultou-se com os vultos que, junto ao balcão, tentavam ser atendidos. Todo o seu corpo ficara frio, repentinamente doíam-lhe as articulações, tinha puas cravadas nos pés. Ao que­rer andar, para retirar-se, teve tonturas.

Por tão pouco, afinal. Podia continuar calmamente a sua ligação com António Pedro, já que essa ligação trazia claridade aos seus dias, ignorando, desvalorizando aquilo.

Mas como António Pedro olhava para ela!

Foi brio?, foi orgulho absurdo, vexame?

O entendimento entre eles era tão pouco do domínio sexual. E, contudo, cortara, menos de uma semana depois, sem uma explicação, à sua maneira. Apenas lhe disse que estava cansada. «Não de ti ou de mim, de mim ao teu lado.»

Ele não entendia ou não queria entender. Paciência. Iam caminhando lado a lado, sem destino, o ideal para uma ruptura que nem sequer foi ruptura, tão-só ponto final.

Esteve António Pedro quase um mês sem voltar lá a casa; depois tornou, sorridente, afectuoso, como ela desejaria, e pouco a pouco restabeleceu-se entre eles o clima cordial e inocente­mente maldizente das conversas anteriores àquele parênteses.

Hoje, fazendo o balanço do vivido, Sabina recorda que pre­cisamente na manhã desse dia em que viu António Pedro com a ruiva, sem darem por ela, tinha pensado que o afecto cúmplice que os unia, sem juras nem protestos, era preferível ao amor atormentado que se arrastava - e ainda existe - nos seus con­tactos com Lívio.

Mas ficou entre eles tanta coisa boa, apesar do silêncio que puseram em cima daqueles anos.

Tornara a encontrá-lo, algum tempo depois, com aquela mesma criatura, numa exposição de pintura, no Salão das Belas Artes. Lembra-se de que estava uma tarde bonita. Inverno de diamante, luminoso e gelado.

Tinha ido ao Algarve, a pedido da filha, que andava ansiosa por tornar a ver a aleluia das amendoeiras em Fevereiro. Foram só três dias, mas o bastante para Sabina sentir qualquer coisa como uma luz desconhecida a crescer-lhe dentro do peito. Depois voltou a indiferença, essa baça ferida de viver, pulsando devagar dentro dela.

Ia, agora se recorda, a descer a Barata Salgueiro e apeteceu--lhe entrar e dar uma olhadela aos quadros do Nery, do Jorge Pinheiro, do Armando Alves...

Vira-os logo ao dar os primeiros passos na direcção de um Julião Sarmento. Ela estava de costas, super-ruiva, todo o corpo abrasado em seda vermelha, com um casaco de peles no braço, entre António Pedro, muito sóbrio de atitudes, e o Lívio, que parecia comentar as telas, explicar algum pormenor.

A primeira reacção de Sabina foi ir-se embora, mas achou que não devia ceder a esse impulso, como se fosse culpada, isto é, como se eles tivessem o direito de a julgar pelo quer que fosse. E começou calmamente a olhar os grandes óleos, sem no entanto perder de vista o grupo.

Quem, curiosamente, lhe pareceu comprometido, fingindo não dar pela sua presença, foi o Lívio, o que não fazia sentido. António Pedro reconheceu-a logo, hesitou e acabou até por fazer-lhe um aceno, com um sorriso ambíguo, meio envergo­nhado, que talvez quisesse ser afectuoso.

Não tardou que a situação a incomodasse. Assim Sabina voltou costas e veio para casa, pensando que o Lívio, como amigo íntimo de António Pedro, devia estar ao corrente.

Aliás, António Pedro nem tinha nada que esconder neste caso: era solteiro, por vocação ou por medo da vida. «Só não te gabo o gosto, deve ser pesado carregar por toda a parte com essa fêmea excessiva.»

A única pessoa que poderá ter pressentido que houve algu­ma coisa entre Sabina e António Pedro é a filha dela, que tinha então uns treze anos, mas era muito precoce - e não tardariam a descobrir até que ponto.

Tinham ido passar um fim-de-semana em família na mar­gem do Zêzere. Sabina e a Mito, António Pedro, que prati­camente fazia parte da família, e naturalmente o Lívio. Este até manifestara o desejo de ter ali uma casa para descansar da cidade; afinal veio a comprar, mas só muito mais tarde - já era então ministro - essa segunda habitação, que é agora um «monte», ou quase, no litoral alentejano.

Era ao fim da tarde, depois de terem nadado numa piscina e no próprio rio e de terem comido ali mesmo amoras e queijo de cabra. Parecia que estavam todos felizes, o perfume verde dos choupos, à beira de água, chegava até ali; numa clareira, por­ventura no meio do pinhal, havia corvos a crocitar; tinham ainda nos pés um pouco de lama e pó, apesar de os esfregarem tei­mosamente com as toalhas; e uma muito lenta bruma começava a mover-se na floresta, onde já estremeciam as asas da noite.

Uma sensação que se assemelhava à paz veio até Sabina da última margem do seu ser.

Terá dito qualquer coisa como isto:

- O que a vida nunca me deu plenamente, e que eu ambi­cionava mais do que qualquer outra coisa, é a paz, a verdadeira paz.

António Pedro olhou-a nesse momento com uma escanda­losa doçura e a Mito, que não perdia uma palavra da conversa, surpreendeu essa expressão e teve um sorriso malicioso, que afligiu a mãe.

Não tardaria muito, dois anos se tanto, que a Mito se envol­vesse na sua primeira loucura, com um homem casado, de trinta e sete anos estouvadíssimos. E os trabalhos que essa história deu à família!

Sabina não sabe a quem saiu esta rapariga, tem os caprichos mais absurdos; quis um carro aos dezoito anos e o pai deu-lho; espatifou-o logo meses depois e recebeu outro, este em segunda mão, como «castigo»; o Lívio fazia-lhe todas as vontades, estra­gou-a com fantasias; até já a levou a ver a Semana Santa e tou­ros de morte em Sevilha. Quando Sabina telefonou, para saber dela, tinha desaparecido do hotel. Fez uns conhecimentos, quando visitavam o Bairro de Santa Cruz e - soube-se depois -andou com eles de noite por todas as bodegas e discotecas da cidade. «Os outros julgam conhecê-la um pouco, não imaginam do que é capaz. Não tira coisas de casa, como o irmão, mas saca do pai, com carinhos, tudo o que quer. E arranja uns ami­gos! Não é que eu tenha preconceitos contra os cabelos compri­dos, contra as barbas nem contra a forma de estar de cada um. Mas estes ou são "góticos", namorados da morte, com sobre­tudos a rojar pelo chão, ou então andam sempre sem meias, até cheiram mal dos pés.»

O segundo namorado que ela teve, esse, pelo contrário, era um betinho, como ela mesma dizia, oferecia-lhe flores, bijute­rias de bom gosto, levava-a a jantar às docas. Engravidou-a. Mas, quando Sabina julgava que iam casar, disse-lhe a Mito, que só muito raramente lhe faz confidências:

- Aturar um tipo destes permanentemente, livra!

Abortou, sem avisar de nada, e Sabina é que teve depois que a desenrascar, o estado dela pôs-se tão feio, com febre alta, dores, uma infecção, e tão mal encarada que a assustou de ver­dade. Arranjaram-lhe o Nobre Diniz, que era então conside­rado um dos grandes obstetras, e salvou-se por um fio.

«Não sei de todo em todo o que ela pensa de mim, como me vê por dentro. Quando falamos um pouco mais a sério, está sempre a jogar à defesa ou então foge para a ironia.

A sua visão do mundo é bastante confusa. Quando o pai era de esquerda, ela atacava sistematicamente os comunistas, e pas­sou a troçar dos socialistas quando ele mudou, se é que mudou assim tanto, às vezes duvido. A Mito, na altura em que o pai aceitou de repente a pasta da Justiça de um governo de direita ficou desconcertada, e então é que dizia mesmo mal dos polí­ticos, são todos iguais, etecétera, tá-tá-tá. E por fim deu-lhe para ali, tornou-se fã do Bloco, e antes isso. Sei lá!»

Até já dera escândalo no bairro com um aprendiz de marce­neiro (não tem complexos de classe, isso já está passando de moda). As outras raparigas espiavam o par exótico que eles fa­ziam, metidos no automóvel dela ou saindo juntos à noite, ela a dar pontapés nas pedras, ele a morigerá-la. Parecia o Antonito Camborio do poema-canção do Lorca, com a mesma macera­ção de azeitona e jasmim na sua palidez de artesão encerrado o dia inteiro numa oficina.

É dessa Lapa que Sabina gosta mais, a do povo acolhedor que já a conhece de viverem lado a lado e a uma infinita dis­tância.

Gosta das noites quentes de Verão, com esta gente toda desabotoada e contente, quase deitada na rua à porta de casa, coscuvilhando, bebendo, tecendo projectos, maldizendo, acusando-os, a Eles, os responsáveis, os todo-poderosos, que se enchem, que deixam os manhosos roubar, pôr isto tudo a sa­que, apetecendo a volta de um qualquer Encoberto, misto de rei Sebastião, Salazar e Fidel Castro ou mesmo, para alguns irreverentes, do Bin Laden.

Lembra-se das conversas que escutou com o Lívio, em noi­tes estreladas, daquele terraço da casa, quando as vozes subiam, indiscretas, lá de baixo como uma banda sonora de um filme do Vasco Santana, adaptada aos dias de hoje.

Esquecendo os transistors, o concerto dos telemóveis e pouco mais, parecia que estavam cinquenta anos atrás, ou setenta.

Até a música pimba de hoje se parece com a das antigas festas dos Santos Populares.

Ao fim e ao cabo Sabina não sabe se tem amor ou raiva a este continuum temporal.

Às vezes protesta, enerva-se perante a apatia, a inércia deste povo a que também pertence, desanima por completo do futuro, da possibilidade de o País mudar, de alcançar o desenvolvimento da Europa.

«Tu, António Pedro, é que sabes, sempre soubeste, afagar essa minha melancolia. Sem muitos sermões, como eram os do Livio ainda há dez, quinze anos, vais explicando que o atraso se deve em boa parte à paralisação, ao retrocesso dos anos do fascismo e que também não se pode pedir muito àqueles que são e se sabem explorados; o entusiasmo para o trabalho nasce da esperança no futuro, da consciência de se ser sujeito da his­tória, dono do próprio destino.

São frases gastas, é certo, mas tu sabes dizê-las com tanta veemência, no teu tom pausado, com o teu sorriso de gaiato imune à velhice que já te rói, e a todos nós. Aliás, tu consegues, melhor do que ninguém, distrair-me do desconsolo de viver que sempre me habitou, embora só se tenha manifestado assim duramente quando o Lívio se afastou mais de mim.

Que eu nunca acusei o Lívio perante ninguém, nem a ti ver­dadeiramente me queixei, tu é que soubeste adivinhar tudo.»

A segunda e última percepção que a Mito veio a ter do que havia entre a mãe e António Pedro ocorreu numa tarde em que haviam estado a discutir à mesa o fim, já longínquo, do V Governo.

- Talvez não pudesse ser de outro modo - disse Sabina, que adorava o Vasco Gonçalves, como todos eles nessa altura, mas receava uma guerra civil.

- Que disparate! - atalhou o Lívio, cortando-lhe o discurso com a autoridade da sua visão dos factos.

Ela ficara triste, por tão pouco, e, embora tentasse disfarçar, não deu praticamente mais um pio até ao fim do jantar.

Quando António Pedro se despediu, cedo, porque ainda ia ao teatro (representava-se uma peça do Santareno), acompa­nhou-o até à porta e ele, sem dizer nada, acariciou-lhe a mão. Vinha a Mito a sair da casa de banho nesse instante e dessa vez fixou a mãe com uma espécie de curiosidade perversa.

Não era prova de coisa nenhuma, mas a atitude dela inquie­tou-a profundamente.

Nunca Sabina se preocupou muito com as aparências nem com o julgamento dos outros, ao que julga, mas desejava pre­servar a imagem que a filha tinha dela.

Fala às vezes da Mito com um falso desprendimento, é uma maneira de reagir, mas no fundo está muito ligada à filha. Não consegue impedi-la de destruir a própria vida e a dos que lhe querem bem, mas tem tentado.

Não terá sido uma mãe exemplar, segundo o modelo tradicio­nal, talvez por excesso de outros interesses, a leitura, o cinema, sabe lá quantos, e sobretudo por causa da sua dedicação ao Lívio, que era absorvente. Mas nunca lhe faltou com apoio, ela é que lhe fugiu, sempre, mesmo nos estudos, onde Sabina gostaria de a ter auxiliado. Quanto a confidências, é verdade que não consegue provocá-las, mas ela também nunca foi inclinada a abrir-se.

«É assim: sou uma esposa falhada E mãe falhada. Esposa: detesto esta palavra, que já então tinha para mim um peso so­ciológico negativo.»

«A vida corre ao meu lado como água muito lisa e que não molha. Vejo as outras, os outros a receberem as prendas do destino, boas e más, eu vou secando, quase sozinha, planta es­quecida até pelo vento.»

As notícias que lhe dão do Manuel Joaquim são péssimas. Ultimamente decidiu ir para a casa do pai e parece que está a envenenar-lhe a existência. Faz dívidas enormes, tira-lhe notas da carteira, vai pedir dinheiro emprestado aos amigos dele. Tudo para a droga e para o álcool. Namoradas, ninguém lhas conhece. Está a tornar-se um marginal. Pior: um farrapo. Per­deu toda a vergonha.

Lembra-se de como ele era diferente, do que dele espe­ravam, por volta dos seus quinze anos. Quando começou a pintar. Até fazia poemas. Embora não fosse grande aluno na escola secundária, ia passando... Depois, foi o que se sabe: a mesada que o pai lhe dava, gastava-a em erva, em heroína, e deu em roubar coisas lá de casa, chegou a empenhar as jóias da mãe, desapareciam quadros, faianças, peças raras de mobiliário.

Agora é ainda pior, parece que surripiou o cartão dourado do pai e falsificou várias vezes a sua assinatura, fez compras mi­lionárias, para vender tudo ao desbarato e gastar o produto em droga. Com Sabina não fala. Excepto uma vez em que se abriu e lhe contou tudo, os furtos, a ausência de interesses, o desgosto de viver, uma espécie de rancor pelo mundo. Andava magrís­simo, quase não comia, deitava-se num sofá e adormecia, baba­va-se, fazia dó e causava asco.

Ajudara-o, levara-o a um médico. Iniciou então uma cura de desintoxicação, melhorou muito, fisicamente. Depois tornou ao mesmo. E estas cenas repetiram-se, provocando na mãe um grande cansaço e até desalento, até desinteresse, vontade de se ver livre dele.

«E agora - como somos contraditórios! - lamento que tenha trocado a minha casa pela do pai, fora da minha protecção receio vir a encontrá-lo qualquer dia por aí, caído na rua, imun­do, inerte, à espera da morte ou - o que vem a dar no mesmo -de esmolas para a droga.

Ainda por cima tive uma noite destas um sonho horroroso. Fui dar com ele numa praia do Tejo, no meio de uma ranchada de rapazes e raparigas. Uma lua quase negra, queimada de an­gústia, entornava alguma claridade, tíbia, sobre o mar. Três pa­res dançavam, parecia um ritual, em volta de uma fogueira feita ali mesmo, na areia, com gravetos e papéis de jornal. Eram sombras evasivas, doentes, mas esboçavam por vezes passos de bailado clássico, de uma acentuada decadência.

O Manuel Joaquim falava, ele que ultimamente quase não abre a boca, parecia-me que estava falando de mim, dos meus discursos "moralistas" e até imitava, com escárnio, aquele sor­riso de martírio, ao mesmo tempo irónico, que me atribuem.

Tudo tremia diante dos meus olhos: os corpos iluminados de sangue ao pé da fogueira, a esteira trémula do luar, o riso quase obsceno do meu filho.»

Acordara a suar muito, com agulhadas que a atravessavam do peito até às costas; não conseguia respirar. Pensou então no que o Livio devia estar a suportar e certamente a sofrer.

Disseram-lhe no dia seguinte que efectivamente o Livio an­dava muito por baixo, pálido, como alheado de tudo; e teve o impulso de ir vê-lo, ouvi-lo, cuidar dele, se fosse preciso. Mas ocorreu-lhe a tempo que isso podia levá-la a ficar lá outra vez, sem exigências, sem planos, sem futuro.

A Mito continua a estragar casamentos e a acumular desas­tres eróticos. Mas tem agora um duplex minúsculo que o pai amorosamente lhe comprou. Resolveu estudar filosofia, que sem­pre a interessou loucamente, segundo afirma. O curso que tirou de comunicação social numa universidade privada nunca lhe serviu de nada, o mercado está saturado de jornalistas. Nem com cunhas. O Lívio é contra isso em princípio, mas para a sua filha querida...

É claro que, se a Mito conseguir acabar esta nova licencia­tura, vai permanecer desempregada, isto é, a viver da genero­sidade paterna, o que, bem no fundo, ela prefere.

Sabina esteve com ela anteontem numa passagem de mode­los, espectáculo a que nunca tinha assistido, a não ser no cine­ma. Não gostou, sobretudo do público, tanta celebridade e tanta juventude repintada, berrante, exageradamente «estás-me a ver?». Gente bonita sim, mas...

Do que gostou foi de tomar um café com a filha defronte do Tejo numa esplanada, antes do regresso. O rio estava cheio de barcos e de brilhos, o Verão azul e a água agitada a derrama­rem-se no seu coração negativo, que já nada de nada deseja e principia, receia ela, a não aceitar o novo.

A Mito riu-se com a mãe do desfile. Já está menos «gótica», mas ainda tem lá dentro o bichinho.

- Também vim só por curiosidade. E, olha, não me arre­pendo de conhecer este jardim zoológico do consumismo.

O que é paradoxal é que ela é também terrivelmente consumista, de outra maneira, no seu género. Talvez não se aperceba disso. Sabina ri-se com ela e, sem ela o notar, das suas contradi­ções. Mas com algum carinho.

Às vezes pergunta-se porque lhe quer tanto bem se têm tão pouca coisa em comum. A única hipótese das conversas entre elas é a risada, são as pequenas maledicências ou a auto--ironia.

Há muito, quando ela crescia, sonhara vir a ter uma compa­nheira, uma ternura constante ao seu lado.

Deve também ter falhado na sua educação, reconhece-o.

As repetidas infidelidades do Lívio foram-na desgostando. Queixou-se, protestou, perdoou, reconciliaram-se ternamente, mas continuou tudo na mesma; abriu, por acaso, cartas que não devia abrir, surpreendeu diálogos telefónicos; começou de­pois a fingir que não percebia, não via, não ouvia, adoptou a máscara da indiferença; e doía tanto, ficou a assistir à sua vida, como se conseguisse desdobrar-se, e a misturar por dentro o riso e as lágrimas.

Deixou de o censurar, a não ser em ocasiões raras.

E sobreviveu. Abriu a António Pedro a porta dessa existên­cia doente e ele ficou o tempo suficiente para lhe trazer a luz que ela era capaz de receber. E até isso acabou.

«Regresso, António Pedro, a esta espécie de diálogo metafó­rico em que apenas eu falo, embora ouça às vezes a tua voz dentro de mim. Sim, adivinho os teus comentários a muito do que me acontece descobrir de mim para mim própria. Até te vejo sorrir. Sempre me disseste que te parecias com toda a gente e, contudo, eu acho que tens um sorriso inconfundível, sempre prestes a acender no teu rosto uma dúvida inteligente, a querer espreitar para lá das aparências.»

Tentou ir ver um filme iraniano, que está quase a sair do Ávila. Mas o Ávila fica longe. Ainda chegou a pentear-se, a mu­dar de sapatos. E desistiu. A vida dos reformados como ela é muitas vezes assim. Hesita-se, há que mobilar dias baços e compridos. E sempre que põem de lado um desejo, que nem chega a ser bem um desejo, um modo de iludir a morte lenta que anda no ar, cresce neles o fastio.

Chorou. Sem qualquer razão. Foram apenas três ou quatro lágrimas silenciosas. Sobre ela mesma.

Lembrou-se também mais uma vez do Lívio. Nunca esquece certas conversas com ele. Ficaram gravadas dentro de si. Quando o Lívio aceitou ser ministro da Justiça, como inde­pendente, nesse governo de Direita onde ela só conseguia ver gente com ideias opostas a todos os valores em que tinham sempre acreditado, não lhe saía uma palavra de apoio, era impossível.

Parecia-lhe há pouco estar a escutá-lo de novo. Que ia dina­mizar a lentidão dos processos, dar vida nova a um sistema ve­lho, apodrecido. Era para se iludir, para se enganar a si mesmo? Chocou-a sobretudo (e muito) ouvi-lo dizer que era preciso al­terar as regras de uma justiça de classe. Mas se todos ou quase todos nesse governo, nesse partido, o que pretendem é preci­samente eternizar, manter na sociedade esses privilégios de classe... Incomodavam-na os seus argumentos, tentando disso­ciar a ideologia e a acção.

Nem discutiu. Ficou, passiva e triste, a olhá-lo. Mas, como ele, em dado momento, suspeitou da sua desaprovação, do seu desgosto, pôs termo à conversa.

Sentia-o muito inquieto e inseguro, ao contrário do seu temperamento, das suas reacções habituais.

António Pedro lidara também, como amigo, com os confli­tos interiores que ele teve nessa altura e até com a agressividade com que se defendia.

Tinham-no visto afinal recalcar muita coisa e compor a máscara exterior da satisfação.

Nunca Sabina quis aceitar que o Lívio se vendeu. Também nunca aderiu àqueles argumentos tendenciosos de que esquerda e direita são conceitos ultrapassados, etc, etc.

Repisa mentalmente esse período que sempre lhe doeu. Hoje é para ela dia de mastigar o passado, evitando cuspi-lo.

Terá sido o Lívio vulnerável ao apetite do poder? Nunca antes lho conhecera. Pelo contrário, parecia detestar hierar­quias, prebendas, gloríolas e sobretudo abusos de autoridade. Nunca tolerou nenhum ditador, nunca suportou os mandões, os impantes, os carrascos de decreto ou de secretária, até os maridos machistas, os vingadores da sua honra.

António Pedro conhecia-o tão bem como ela e também se calava. Até como advogado, Lívio até então evitara colocar-se do lado da força, do prestígio, do dinheiro. E de repente...

Houve um dia em que Sabina passou em revista os actos do marido e encontrou naturalmente contradições, somos todos hu­manos, mas a sua linha de conduta era a de um rebelde. De um re­belde relativamente prudente. Definia-o assim porque na prática ele sempre evitou, isso é verdade, pisar a linha do último confronto.

«Estarei a ser justa neste retrato para com o meu Lívio da mocidade, já nesse tempo um pouco contraditório? Mas não o seremos todos nós, contraditórios? Afinal é sempre possível, quando esmiuçamos o nosso vivido, achar alguma debilidade ou alguma discrepância entre as palavras e o actos.»

Reconhecia que ele se furtara umas quantas vezes a pisar o risco da entrega absoluta aos seus combates. Evitara ligar-se decisivamente aos comunistas, quando estivera mesmo à beira de o fazer, mas havia boas razões para isso. E ele invocava-as com firmeza.

Preferiu o exílio a envolver-se numa guerra que ele conde­nava. Aí não transigiu.

Tão-pouco o vira manobrar para conseguir altos cargos, em­bora lhe tenham dado alguns na comunicação social, durante o caluniado PREC. E nem aqueceu esses lugares. Assumiu-os - ele o dizia - como deveres. E cumpriu. E deixou-os sem saudade.

Escuta ainda nela o eco das suas palavras.

Uma tarde, estava Lívio a estrear-se como membro do go­verno, Sabina desmaiara, sem motivo, como se diz, numa ses­são cheia de aclamações. Nesse período, tão ingrato para ela (embora nunca tenha censurado Lívio abertamente), ouvia com frequência os novos amigos elogiarem a sua ascensão a ministro «independente» da Justiça. Uma categoria que o tinha acompanhado pela vida fora: independente.

Noutra ocasião, era também Verão, saíram de casa só para tomar um expresso num snack vizinho e sobretudo para com­prarem jornais que noticiavam mais desenvolvidamente a re­modelação ministerial. O ar não se movia e o excesso de sol provocava aquele êxtase quase branco do bairro, que desce assimetricamente para o Tejo. Apenas o palácio dos marqueses de Abrantes, a sua capela rebrilhando, e algumas casas nobres com jardins e grandes árvores se destacavam, pelo volume e pelo acidentado do recorte, daquela alvura rosada, que parecia arder aqui e além.

De repente um doido muito alto, que por ali aparece às vezes, de grenha eriçada e com braços de avejão a negrejarem, começa a espinotear diante deles, fixando Lívio, gritando-lhe junto ao rosto uma torrente de necessidades.

Lívio repeliu-o, mas sem violência, porque o tonto desequi­libra-se facilmente. E lá ficou, sentado no chão, pícaro trágico, a esvurmar ódio.

Nada tinha aquilo a ver com o comportamento de Lívio, que o louco com certeza devia ignorar, mas as injúrias haviam acertado no alvo, porque nunca ela vira o rosto do marido tão descomposto, tão vencido, como se aquelas obscenidades o com­prometessem perante os três ou quatro espectadores da cena grotesca.

Compraram os jornais e voltaram logo para casa, ele já nem quis tomar café.

Os quentes amarelos das lojas, o calor seco da hora, as va­randas com os seus vasos esculpidos em fogo, um círculo cris­talino a desenhar-se no céu após a acrobacia de um avião a jacto (ou estaria ela já delirando?), tudo a atingia agora por ricochete.

Ia tropeçando nuns gatinhos da rua que saíram do buraco de um muro; quase os pisou. Acabou por ser o Lívio a ampará-la no regresso.

Também por essa altura encontrou-se com a Mito. Foi ela que a convidou para um lanche, coisa que só acontecia uma vez por ano, se tanto.

A Mito mora desde há um ano nas Avenidas Novas. Ven­deu o andar que o pai lhe oferecera e comprou um «estúdio» ao seu gosto naquela zona de Lisboa que se tornou agora muito cobiçada por causa dos cinemas e centros comerciais, um ror deles, o Monumental, o Saldanha Residence, o Imaviz, o Picoas Plaza, o City, o Corte Inglês. Um lugar infernal para o gosto de Sabina. E onde iria a Mito levá-la! A comer caracóis num restaurantezinho minúsculo e escuro, mas com esplanada, o chão juncado de cascas de tremoços e de beatas, um nojo.

- Mãe, o que é que aconteceu ao pai, que anda por aí com um discurso todo engomado? A mim não me chateia ele os cor­nos com esse palavreado, mas confesso-te que me deixa zonza.

Depois, sem se abrir, foi-o criticando. Os filhos nunca perdoam aos pais quando lhes roubam a imagem que deles tinham.

Por fim - a Mito é sempre desconcertante -, acabou por perguntar à mãe se sabia quanto ele ia ganhar. E a verdade é que Sabina nem

A Mito sim, calcula aproximadamente quanto, uma barba­ridade.

Mas acabou por concluir:

- Os ministros, quando se vão embora é que ficam mesmo bem e de que maneira!...

Tudo aquilo incomodava Sabina: o tom da Mito, o facto de o Lívio dar aso àqueles comentários, àquelas chufas. Tentou defendê-lo. Mito encrespou-se:

- Não o desculpes, mãe. Se alguém o conhece bem, és tu.

- Talvez, Mito. Mas tu não tens razões de queixa dele. Sempre te fez todas as vontades. Até te estragava com presen­tes a todo o momento.

- Precisamente, não foi pai. A sério.

- O quê? Então tu é que dizes isso?!

Ela abriu muito os olhos para a mãe, riu-se, encolheu os ombros.

Após os caracóis, ainda comeu com voracidade uma tosta mista, seu alimento predilecto e constante. E conserva-se ma­gríssima, apesar desta alimentação disparatada.

Sabina sentiu de repente o seu cheiro de menina nua quan­do lhe dava banho. Fez-lhe uma festa tonta, que ela não espe­rava.

Em cima dum prato, numa mesa vizinha, viu não uma mosca mas o que lhe pareceu uma larva de borboleta, muito pior. Ai, Mito! Ela reparou no nojo da mãe, seguiu-lhe o olhar. As suas enormes pestanas bateram, ou comovidas ou trocistas.

No tecto do mundo, em viagem, já Sabina contemplara acepipes mais repugnantes, mas até achou graça. As paisagens, as casas exóticas, os templos, era tudo tão deslumbrante que esses acessórios culinários entravam no rol do pitoresco.

Agora, sozinha, cautelosa com os gastos, ex-funcionária pública que era e recusando do Lívio tudo o que não fosse alguma pequena oferta quando se viam, estava longe da pobreza que descobria por todo o lado à sua roda, mas também não cami­nhava para uma velhice de veludo.

Passava muito tempo em casa, era cada vez mais o seu es­paço. Gostava de olhar para o quintal das traseiras, que não lhe pertence, mas onde dormem, debaixo das flores, sonhos seus antigos e onde há ninhos de pássaros nas ramadas da grande magnólia. Para lá estende-se uma espécie de lixeira, bem menos agradável à vista, que resultou da demolição de um prédio. Dói-lhe todo o seu ser quando vê implodir uma destas casas antigas, mesmo que não sejam património nacional.

Há muito tempo, muito, de uma das janelas desse edifício que já não existe jorrava música de dança constantemente. Havia lá por certo bailes improvisados e as canções pop-rock, os gritos dos rapazes e das raparigas que se chegavam às varandas, o fumo, o reflexo de luzes azuis e alaranjadas enchiam a noite de festa e de vida jovem, palpitante.

Ao fim da tarde, quando o sol fica mais macio, costumava muitas vezes sair e ir por aí ao acaso, por essas ruas da sua ha­bituação. Cansava-se depressa. Do que via (e a confrontava) e do seu próprio andar. Estava farta do seu corpo, que já fora arena de justas e palco de desastres, mas também (tão pouco) fonte de prazer e até dera fruto, esses filhos a que irracional­mente ficara tão presa e que às vezes não reconhecia como seus.

Hoje deserto de amor, campo de lamentações que ela so­freia, cheio de ecos - da ternura que deu e recebeu e até da que não teve e desejava.

Há pouco, ia Sabina medindo os seus passos, à beira do passeio, a fugir de si e das suas amarguras, da sua inutilidade.

A envelhecer, tão lúcida. O movimento dos automóveis a decrescer. Gente a sair ainda do minimercado, que faz concorrência às lojas tradicionais onde ainda se dão dois dedos de conversa aos comerciantes que gostam de nos ouvir e de dar a sua sentença.

Um cão vadio veio lamber-lhe a mão.

 

                           O JARDIM SELVAGEM

 

Ouviu ontem, na Embaixada de Itália, uma dama despei­tada chamar-lhe pelas costas «a pantera cor de laranja». Tanto se lhe dão as cores políticas como o que esta gentinha pensa dela. Garras, tem-nas de facto, mas bem escondidas, só para as grandes ocasiões.

É para o Lívio, bem o sabe, o corpo que ele idolatra, isso acima de tudo, quase um fetiche. Aliás diz-lhe palavras de amor e há instantes em que talvez até acredite nelas.

O afecto, o grande afecto - não se ilude - será sempre para a Sabina, mesmo depois de se separarem. Não é só a mãe dos filhos, é ela própria, com a sua falta de viço, a sua tristeza calada, a sua neurose ora mansa ora agreste. É a rapariga de outrora que ele conheceu ainda em sorrisos, no seu regresso do exílio, e partilhou com ele as horas capitosas do triunfo, a novidade da Revolução, e depois o acompanhou no bom e no mau, durante os primeiros anos do país novo. Até que nele acordou o preda­dor e voltou a caçar mulheres, como em Paris, ou a cuidar que o fazia, manejado como todos os homens, cego aos ardis mais evidentes, arrastado para aqui e para ali pelo capricho das suas presas.

Tal e qual como sucede com ela. Quase nem se apercebe de que pouco a pouco vai governando quase totalmente a vida dele, empurrando-o para onde quer, onde ele possa sacar mais riqueza. Tem de dosear, é certo, os elogios e os pedidos, porque rapidamente ele desconfia e se volta contra ela e então sente-se mísera como o pó e em risco de perder tudo.

Fora do quarto, sente-o, apesar de tudo, precavido.

«Não me dás, Lívio, mas nunca, esse carinho que lhe davas a ela. O carinho e o respeito que ela te merecia. Tudo isso me dizem os outros, dizem as vossas fotografias, dizem por meias palavras os teus filhos.

Queres-me para ti, só para ti, e na cama sou a tua rainha, a tua deusa, o teu brinquedo, a tua cálida amante, o sexo ávido como a boca, toda a pele em chamas.

Nem tu sonhas, Lívio, que eu tenho o orgasmo difícil e para o conseguir ao teu lado, por baixo ou por cima e às vezes longe de ti em pensamento, imagino-me com estranhos, homens e mulheres, caras conhecidas ou simples corpos, bronzeados e violentos, que me submetem a todas as vergonhas, até eu con­seguir as ansiadas contracções. E nesse momento apetece-me expulsar-te de mim e ficar sozinha a prolongar ainda o prazer. Mas retenho-te, pelo contrário, e tu agradeces essa prisão e en­ches-me de beijos loucos.

Sei levar-te, meu senhor. Poupo-te ao ridículo em que seria fácil fazer-te deslizar, mas manipulo-te como quero e quando quero.»

Aliás, reflecte Mafalda, quando se entregou ao melhor amigo do Lívio, atónito e hesitante, quase o forçando, foi decerto para o ter ainda mais debaixo dos pés, mais dela.

Se ele soubesse isto e muito mais, não a olharia com aqueles olhos de carneiro mal morto que outras mulheres consideram sedutores e imperiosos.

É certo que Lívio foi um homem muito atraente, as pessoas garantem que ainda o é, mas ela nunca gostou de homens boni­tos. Verdade verdade, nada lhe diz o exterior das pessoas e me­nos ainda a nudez dos homens, especialmente quando é agres­siva como a dele, com tantos sinais exteriores de virilidade.

Gosta, sim, de que a acariciem e de que o façam pelo menos tão bem como ela própria.

Egoísta, sim, é. Assume-o orgulhosamente a sós consigo. E ambiciosa também.

«Só temos o que conquistamos e eu sinto-me fadada para tudo alcançar, se souber querê-lo com muita, muita força.

Nunca me conheceste, Lívio, tal como sou. Tu, aliás, sendo tão inteligente, não entendes bem os outros, não lhes prevês as reacções, não lhes adivinhas os intentos secretos. Confias demasiado no que dizem, projectas neles muito de ti. Supões-te cercado de amigos quando afinal apenas precisam de ti e inve­jam, cobiçam as tuas posições, o teu prestígio.»

Tem consciência de que também ele é capaz de premeditar, de louvar, de conviver com quem não ama nem admira. No en­tanto, raramente se presta a esses jogos e fá-lo a contragosto.

Por isso ultimamente o vê por vezes tão descontente con­sigo, como que triturado pelo seu próprio êxito.

E, que diabo, até se sente solidária com ele, nesse descon­forto, nesse remorso, nessa náusea. Até podia ser a companheira meiga (seria mesmo?) de que ele precisa nesses momentos de crise ou, como se diz agora muito, de conflito contestatário. «Serves o País? Serves-te a ti? Queres convencer-te de que te superas e já receias estar a desagregar-te.»

Mas ela finge que não percebe. Quando ele se divorciou da Sabina, por vontade dela, sempre julgou que iriam casar ou, pelo menos, viver juntos. E Lívio estabeleceu outras regras, escudou-se no argumento absurdo de que estava escaldado; para casamento bastava-lhe uma experiência, um fracasso. Pois, pois, cada um em sua casa é muito bonito teoricamente, mas nem aos nossos olhos nem aos olhos do mundo é uma verdadeira união.

Assim o quis, assim o tem. Porque Mafalda poderia ser ou­tra para ele. Traçou até o destino dela a compasso e esquadro. Só que Mafalda subverte toda essa mascarada. E quando lhe apetece, por desforra, queima à partida os planos que Lívio in­venta para ela, como o apêndice que ela tem de ser ao seu lado, na altura própria, e sempre na cama à hora que lhe agrada ou quando se lhe mete na cabeça que ela precisa de rega.

«Pobre Lívio, tão cego que andas e, pior ainda, sempre pre­so, cavalheirescamente, àquela criatura sem vontade de viver a quem deixaste a casa maravilhosa onde vivias, que podia e devia ser minha, e por quem sempre tiveste, privada e publicamente, a consideração de que pareces não me achar digna.»

Naquela noite de Outono de há uns doze anos, em que o Lívio perdeu as eleições para bastonário da Ordem dos Advo­gados (e bem se esforçou, viu-o ela com os seus olhos e até o desconhecia nessa incrível azáfama), abraçou-se a Mafalda como um náufrago e levou tempo a recuperar, já ela tinha des­coberto que o António Pedro se punha na Sabina. Mas nunca os denunciou. E principiava a estudar a forma de lhe deitar, a ele, a sua rede. Já agora formavam um quadrado. E o que ela gozara com essa situação, tentando tirar nabos da púcara. Mas o Antó­nio Pedro nunca lhe fez autênticas revelações, só se descosia em ínfimos pormenores.

Uma vez, sim a única, estivera a jantar com os dois para lá de Cascais, na Boca do Inferno, fora uma ideia de última hora, um acaso, e o António Pedro torcia-se na cadeira, nervoso, doíam-lhe os pés, tinha estreado uns sapatos, e depois queixou--se de picadas no peito, respirava mal, parecia que era sincero.

O mar, ali ao lado, bramia e afogava-se em risos estridentes no interior da gruta. As gaivotas desnorteadas quase que batiam nas vidraças do restaurante, depois fugiam em bando para o céu turbulento, onde se perdiam.

Quando saíram, Mafalda, deliciada com o mal-estar do António Pedro e a elegância magestosa do Lívio, que a ignorara durante a refeição, revia-se nos redemoinhos do vento.

Sentia-se bem em meio daquela tempestade, escarnecida pela vida, mas altiva, segura de si, senhora de mil astúcias e se­gredos. Podia amarfanhá-los ali mesmo, se quisesse.

Começou a rir, sem razão aparente.

- Que é que tu tens? - perguntou o Lívio.

E não é que os trovões vieram então juntar-se à festa! Re­lâmpagos, areia dançando no ar salgado, o estoiro das ondas, insectos eléctricos por entre o desvario das árvores, do outro lado da estrada.

- Adoro as trovoadas - disse ela.

O tempo sem fundo aumentava a extensão da noite nos pinhais.

- Pois que te faça bom proveito - disse o Lívio, já a defen­der-se da chuva que começava a cair e que ela quis provar, abrindo a boca para o céu.

- Estás louca?

Mas logo a agasalhou com a gabardine de cabedal, antes de entrarem para o carro.

A Sabina - pensou Mafalda, no decurso da viagem - era um túmulo de silêncios, de repressão, de projectos abortados, de não vida.

Na quinta da sua infância havia um juncal ondulante, ao pé de um grande barranco, que só nos invernos mais rigorosos tinha alguma água. E no prado que ia desse barranco até à casa dos avós estavam quase sempre cismando e pastando umas ovelhas brancas.

Mafalda nunca foi contemplativa, mas gostava de as ver ali, tão tranquilas, sempre que lá iam passar férias, três irmãs e três irmãos. Quantas vezes pensou que os pais eram tudo o que ela não era. Burgueses, quase ricos e previdentes, empurraram-na para a Faculdade onde fez o curso de Letras sem nunca ali se reconhecer.

Agradece aos seus pais conciliadores o não terem tentado empurrá-la para o ensino secundário, como seria do seu agrado. Aceitaram até relativamente bem a sua entrada para as relações públicas da FIAT, que viria a ser afinal naquela altura apenas um degrau para a sua estreia absolutamente fortuita na política, pois foi lá que o Teles Arganil a descobriu e quase miraculosa­mente a tornou sua secretária.

Havia de voltar à FIAT.

Não se arrepende da existência, afinal escolhida por ela, de mulher independente, que (costuma afirmá-lo) recusou e recusa o contrato do casamento e outras comédias sociais.

«Sempre lutei com os homens de igual para igual. Às vezes magoam-me. E também eu os magoo. Pago-lhes na mesma moeda. Adapto-me às situações, mas, bem dentro de mim, onde não há regras a cumprir, revejo os locais onde trabalhei, minis­térios, institutos culturais, companhias estrangeiras, como faces múltiplas de um circo onde todos representam, se esforçam por ser o patrão e se atropelam à porta do êxito. Despertei durante muito tempo ódios e ciúmes. E eu própria os experimentei. Tinha dez anos quando veio o 25 de Abril, cresci depressa e já ouvi bater de rancor o coração da terra.»

Quando o Lívio lhe apresentou o António Pedro começou a aperceber-se logo de que esse «amigo exemplar» evitava por sistema falar a sério, refugiando-se nos trocadilhos, nos chistes e na ironia; teve mesmo a impressão de estar perante um ho­mem com medo da vida ou com má consciência.

Mas curiosamente apeteceu-lhe decifrar esse bom rapaz já cinquentão, sempre a fugir-lhe como uma enguia pelo meio dos sorrisos.

Na tarde em que o Lívio foi falar sobre A Blogosfera e a Li­berdade à Fundação Luso-Americana, ficou sentada quase no fundo da sala ao lado do António Pedro, que, para não variar, troçava da assistência. Perguntou-lhe de repente o que pensava dela.

Riu-se e disse que ela era uma leoa domesticada.

- Domesticada! Ora essa, só se for na aparência. Olhe que eu tenho garras.

- Muito aparadas.

- É assim que me vê?

Ele mudou de atitude, mas sempre com aquele riso de quem está a desvalorizar o que diz:

- Vejo-a como você é, com esse perfil grego e o sinal da vitória estampado na face direita.

- Acha que sim? De que flor é que eu gosto?, diga lá.

- Pelo que conheço de si, Mafalda, acho que não pode gos­tar de açucenas nem de amores-perfeitos. Só de rosas. A rosa é a flor do segredo e da glória, vai bem consigo.

Nunca Mafalda saberá o que a impeliu a pegar-lhe na mão.

António Pedro não retirou a dele. Ficou a observá-la com um olhar indecifrável.

Mafalda começou a tremer, pressentindo um fracasso, mas ele então acariciou-lhe o braço. Levaram muito tempo ainda até fazerem amor em casa dele, numa tarde em que por sinal os sinos da igreja vizinha se fartaram de tocar, completamente roucos.

Ele não falou muito, nem antes nem depois. Estava em dieta de piadas. Quis ir com Mafalda para a varanda e contaram as estrelas do Céu. Depois comeram do que havia no frigorífico e ele gabou as sandes de tomate com mozarella. Reparou também nos quadros da sala, teve logo a intuição de que tinha sido ela a pintá-los.

De um deles, mais abstracto do que figurativo, disse-lhe:

- São os garranos da alvorada a saudarem a tua chegada.

- E onde é que eu estou?

- Aqui nesta noite rosada a parir a cabeça do dia.

- Eu nem quero ter filhos.

- Bem sei.

- Então?

- É o teu inconsciente. E aqui, vês, pintaste o sudário do tempo.

- Como assim?

- Ou alguém o pintou por ti. A outra que tu és. E não deste por nada.

Não sabia Mafalda se António Pedro vibrava com a sua pintura ou se estava a devanear. Ela continuava a sorrir da mes­ma maneira.

Só na altura dos grandes incêndios de há dois anos é que o viu completamente transtornado com as imagens das florestas a arderem. Nem parecia ele.

Já então se tinha afastado dela, sem qualquer razão. Nunca descobriu o verdadeiro motivo dessa fuga. António Pedro ape­nas lhe disse que tudo o que era bom tinha um fim. Mafalda zangou-se, mas ele sorriu e fez-lhe adeus com a mão, um adeus que afinal foi até breve, porque uma semana depois encontra­ram-se os três em São Carlos; António Pedro e o Lívio abra­çaram-se e ela acabou por cumprimentá-lo cordialmente.

Teve a arte e o descaramento de lhe dizer uma gracinha sobre «os olhos fantásticos que Deus lhe deu».

Depois de ter visto na televisão aquele horror dos incêndios e os pobres a chorarem pelas suas casas destruídas, os bombei­ros exaustos, lutando com o fogo, desgraça sem nome, aconte-ceu-lhe ir com o Lívio a Castelo Branco, de carro, e viu então de perto os troncos secos, enegrecidos, nos montes e, à beira da estrada, ravinas que tinham ainda qualquer coisa de infernal. Estremeceu toda por dentro, apesar de se considerar uma mulher forte.

Fica de vez em quando com o Lívio na casa das Amoreiras. O desejo dele não diminuiu, mas Mafalda sente-o mudado.

Dantes tinha com ela infinitos cuidados e atenções. E essa ternura está a evaporar-se. Como é muito bem educado, dis­farça a impaciência nessas noites, que já se vão tornando lon­gas. Embora a aperte e a morda e a lambuse toda com a mesma sofreguidão, a magia desapareceu.

Sente-se desagradavelmente reduzida a um objecto erótico, uma espécie de ídolo confinado ao espaço do sexo e logo a se­guir esquecido, mesmo quando permanece ao seu lado, no seu quarto ou à sua mesa.

Para agravar ainda esta situação, que lhe está a desagradar, na relação com o Lívio, o filho dele evita dirigir-lhe a palavra, nem a olha de frente.

Aqui há uns tempos era até um rapaz bonito, ainda que muito estranho. Mas tem-se deformado. Aos trinta e poucos anos, sem fazer nada, a não ser vadiar e dormir de dia, já tem quase uma corcova, os dentes estragados, lívido, magro, e está a ficar com um focinho de lobo.

Ora foge dela ora lhe surge, furtivo, no corredor, ou o descobre por detrás de uma porta, aqueles olhos amarelos de fera a desviarem-se logo dela.

Desapareceram-lhe roupas, que depois foi encontrar, nou­tro lado, inesperadamente sujas, com óleo ou com goma elás­tica, como a que ele costuma mascar. Ainda não protestou, não tem a certeza.

Não há muito, Mafalda levantou-se uma noite para beber água, estava a casa muito quente, por avaria do ar condicio­nado, e abriu uma janela, ficou um instante a ver a lua sentada num prédio fronteiro e alguns gatos negros na rua, bichos de­sencantados a saírem de baixo do rodado dos automóveis ou a vasculharem entre alimentos mortos e bocados de vidro lumi­nosos.

Não se demorou, mas ao fechar a janela deu com ele a es­preitá-la, com um ódio fixo que a rasgou toda por dentro.

É raro encontrarem-se à hora das refeições quando ela lá fica, mas o Joaquim chega a privar-se de um prato para evitar pedir-lho, se por acaso Mafalda se esquece de lho passar. Uma aversão quase intolerável.

A última que lhe fez consistiu (está quase segura de que foi ele) em meter-lhe um ratinho dentro da mala de mão. Um pa­ranóico!

Não diz nada ao Lívio. Para quê? Para envenenarem tam­bém a relação que os une? Ultimamente vê menos o Joaquim e nem sabe como falar-lhe, ao pé dela mostra-se nervoso, preo­cupado, às vezes quase brusco.

Antes de ser ministro, o Lívio trazia muitas vezes para casa a pasta com documentos e não eram poucos os serões em que, depois de irem para a cama, ele se sentava ainda na secretária dela e, quase sem transição, punha-se a escrever as alegações para um processo ou inclusive aqueles célebres pareceres que lhe valiam fortunas. Que surpresa teve quando Lívio lhe ofereceu há anos aquele casaco de astracã que parecia água negra petrificada! Teimou com ele, não queria mesmo aceitar, apesar de o achar lindo, não estava sequer a fazer fita, mas no fim fi­cou feliz, a pele era mesmo soberba. E o que aquele gesto signi­ficava! Dar presentes não era nada o género do Lívio.

Já o passou à sua sobrinha Lila. Cansa-se depressa, mesmo das coisas que mais a encantam. O Lívio não a censura, apenas se ri. «Eras capaz de comprar o Louvre, se pudesses, e vendia--lo (ou emprestava-lo) três meses depois.» Sabina era o contrá­rio dela, segundo depreendia, e ele próprio conservava os fatos durante anos e anos, até alguém o avisar de que estavam com-pletamente fora de moda.

O que o Lívio deplora no feitio dela é o que chama as suas superstições: o ela ter medo do número treze, não querer passar debaixo de escadas, não admitir um guarda-chuva em cima da cama nem talheres cruzados. Nem lhe confessa - e provavel­mente nunca lhe confessará - que tem comércio, como se dizia dantes, com fantasmas. Não se trata dos seus fantasmas se­xuais, aqueles que ela identifica, que já fazem parte da sua roti­na, mas dos outros, os que nascem do silêncio e do escuro, do medo da morte e do nada, ou a vêm acompanhando, em pesa­delos e premonições, desde as crenças e pavores da sua infân­cia. Não se lembra já quando, estava sentada a ver uma novela na televisão (são banais e alienantes, o Lívio tem razão nisso, mas a verdade é que a distraem), e eis que vê passar junto de si o espectro do pai. Não era nem um esqueleto nem uma luz, uma imagem fosforescente, era ele próprio, sem se deter, dei­tando-lhe um olhar de infinita dor e reprovação.

Estendeu os braços para o vazio, já ele se tinha desvanecido, atravessado uma parede, entrado noutra dimensão.

Acredita?, não acredita? Nem ela sabe. Os sonhos são tão reais e tão absurdos. Esgotam-na.

Já viu o pai debruçado do alto de uma varanda sem suporte, caindo de si mesmo sobre o corpo dela. Mas não a atinge, dis­solve-se na sombra ou na luz, no segredo de um não ser que é outro ser.

Nem lhe passa pela cabeça contar isto ao Lívio. E menos ainda a dança dos mortos a que já assistiu numa grande sala com dourados. Depois levaram-nos para um jardim onde a brisa vinha do chão. E um deles, de cabeleira empoada, disse-lhe que aquele era o lugar do eterno presente. E abria para ela um riso desdentado, com gengivas muito vermelhas, que não condizia nada com a seda e o tafetá das suas vestes.

São sempre criaturas de modos suaves que a interpelam, uma delas de beiços negros e com uns brincos muito pesados, que lhe chamaram a atenção pela originalidade da prata lavra­da. Pareciam hieróglifos. Dizem-lhe frases misteriosas, que nada têm de tétrico, mas fazem pensar.

Só uma vez ficou aterrada, porque julgou ver uma mulher, que dançava lentamente, transformar-se em borboleta. E era lindo, embora assustador.

Às vezes, de dia, durante uma viagem de metro demorada ou quando está no banco, à espera de ser atendida, essas figuras vêm ter com ela. Mas é apenas um segundo. Vê-as e logo desa­parecem.

Uma só vez confessou ao António Pedro estas suas alucina­ções, se é que o são.

Ele disse que eram visitas do nosso imaginário, resíduos de lembranças, de coisas vistas algures, lidas ou de facto sonhadas, ou até memória genética.

A explicação não a satisfez.

Uma falsa amiga disse-lhe há dias, em conversa envenena­da, que o Lívio agora aparece em todo o lado, vemo-lo na tele­visão, ouvimo-lo na rádio, está em todos os jornais. E que devia sentir-se feliz porque sempre tinha aspirado ao sucesso, à noto­riedade, ao bem-estar, o que afinal até era legítimo.

Era tão transparente a crítica e tão corrosiva, por detrás do tom melífluo, que lhe respondeu que não era nada assim, que ele sempre se tinha norteado pelos seus ideais e pouco se im­portava com triunfos. A sua preocupação agora era ser útil, fazer coisas que lhe pareciam importantes.

- Ninguém diz o contrário - comentou a outra, satisfeitíssi­ma com a sua reacção ingénua. - Claro que ele é um cidadão ir­repreensível.

«O que também me pareceu hipócrita ou sarcástico e me ir­ritou ainda mais. Se o Lívio mudou foi certamente porque amadureceu. As pessoas têm o direito de evoluir e ele, no es­sencial, é efectivamente um cidadão impecável, hoje mais prag­mático do que ontem.»

Que ele não era religioso e agora até anda muito nas igrejas, insinuam outras línguas perversas. Não é bem assim, esta gente confunde educação com bajulação. E bajulador é que ele nunca foi nem será.

Mafalda nem discute com ele estes assuntos. A política diz--lhe afinal tão pouco.

Não é religiosa, mas teve educação católica, respeita os que vão à igreja e, no fundo, acredita no além e até em prémio e castigo pelo que uns e outros fomos e fazemos, embora, é claro, se tenha distanciado daquelas ideias básicas do céu e do in­ferno. Lembrou-se de Deus recentemente e até, como fazia em criança nos momentos de aflição, lhe implorou que a salvasse. Aconteceu isso no dia em que foram andar de barco na baía de Cascais. E também pensou no absurdo da vida e na ausência de Deus quando o Arlindo se matou daquela maneira atroz.

Gostou do Arlindo logo que o conheceu, numa reunião de amigos em casa do Lívio. Tão sereno e tão discreto, tão cortês, mesmo afável, ninguém poderia imaginar, ao vê-lo falar pausa­damente, que na juventude tinha sido trotsquista e tinha publi­cado um livro de poemas explosivo. Era talvez o menos bem sucedido na vida dos companheiros do Lívio nesses verdes anos já distantes. Tinha - explicou-lhe o Lívio - uma avença com um sindicato e, fora disso, quase podia fechar o escritório de advogado, porque os clientes eram tão raros como as visitas do Pai Natal. Mas sabia viver com pouco, sempre risonho, até porque não queria aborrecer os outros com as suas chatices.

A mulher, italiana, vira-a apenas duas vezes, era linda e ti­nha uma casa, ou uma quinta pequena, na Sicília, onde a famí­lia toda (porque havia ainda dois filhos, um rapaz e uma rapari­ga) ia de quando em quando passar férias de sol, alegria e silêncio, às vezes com gesticulação estridente à volta.

Chegara a conversar com o Arlindo sobre os romances do Elio Vittorini, os templos de Siracusa e as igrejas de Messina. Eles viajavam pouco, mas aproveitavam bem essas oportunida­des e Mafalda, mesmo sem saber muito de literatura e de arte, adorava ouvi-lo falar da Itália e de toda a beleza das igrejas e das ruínas de Sicília, das praias cor-de-rosa que o Vittorini des­crevia e das luminosas paisagens de mar e montanha.

Foi tal o seu choque quando soube que ele se tinha inespe­radamente suicidado, abatendo primeiro a mulher e os filhos, que se recusava a acreditar. E nunca alguém veio a saber a ra­zão dessa monstruosa carnificina. Parece que o cenário era de total devastação, crâneos esfacelados, sangue por toda a parte, o pavor e a demência na face dos cadáveres. Para cúmulo o Arlindo, que queria pôr termo à vida sem margem de erro, não disparou sobre si próprio, cortou depois as carótidas com uma navalha de barba.

Tudo isso a deitou abaixo e teve pesadelos bem piores do que os que já a visitam com frequência.

Chorou e, a matutar em tudo aquilo, procurando um qual­quer motivo, que parecia não existir, andou uns dias absorta, quase não comia.

Lívio disse-lhe que o Arlindo tinha algumas vezes atitudes estranhas e que, no ano em que o livro dele saiu, houve quem o apelidasse de esquizóide. De toda a maneira, será para sempre um mistério.

Foi nessa altura que se lembrou de Deus, mas para o con­testar, quase indignada. Como poderia o responsável pelo uni­verso, a entidade ou a força que o governa, desejar aquilo?, consentir?.

É certo que Auschwitz foi pior. Mas o suicídio e os crimes selvagens deste seu amigo tão pacato, tão atencioso, deixaram--na atordoada, incerta sobre tudo e todos.

«Que me lembre, nestes últimos tempos, só voltei a pensar em Deus no dia do passeio de barco, quando veio a tempestade.»

Foi o Lívio que teve a peregrina ideia de alugar o iate e o respectivo timoneiro, para passarem uma tarde no alto mar, com o objectivo de a distrair daquela grande comoção, que pa­recia não o abalar a ele... Nada deu certo, apesar de o oceano estar belíssimo, ao largo dos Estoris, um imenso ventre de luz verde, quase sem balanço, ondas mansas, pouco cavadas, can­tando desde longe. Gostou muito de nadar entre as cintilações e as espumas desse mar, que então parecia reconciliado com eles, sem braveza. Do que francamente não gostou foi da compa­nhia que o António Pedro trouxe, uma actriz de quem Mafalda nunca tinha ouvido falar, conhecida provavelmente lá na rua dela, que se dava grandes ares. Era descaradíssima a tirar o sou­tien, a exibir o minúsculo calção de banho com fio dental.

O António Pedro dissera-lhe há tempos que ela não tolerava bem a presença de outra mulher bonita, ao seu lado, mas enga­na-se, o que ela não tolera realmente são as presumidas deste jaez. Uma tonta, a escolher as posições mais provocantes para impressionar o Lívio e ele a dar-lhe troco e a falar-lhe de Arthur Miller, de Tenessee Williams, de Thomas Bernhard, de mais dra­maturgos que a outra deve conhecer tanto como ela ou até menos.

Começou a ficar levemente agressiva e a actriz notou-o com certeza quando, fazendo-se de parva, Mafalda a interrompeu várias vezes com perguntas descabidas.

Sentiu-se no ar aquela hostilidade crescente e tanto Lívio como o António Pedro tentavam calá-la às boas e aliviar a atmosfera.

Venceram, Mafalda engoliu a vontade de a humilhar; nou­tro contexto tê-la-ia provocado muito mais.

Por fim amuou, foi ostensivamente para a sombra com o li­vro que trazia no saco de praia e, enquanto não lhe bateu na cara aquele vento cheio de sol, quando o tempo bruscamente mu­dou, esteve com o Arlindo. O seu livro de poemas chamava-se precisamente Tormenta e o que nele logo a atraiu foram os afo­rismos. Dizem-lhe que literariamente não é nada de excepcio­nal, mas que tem um valor de época, de geração. Ela não sabe avaliar, mas ficou presa a frases como estas:

«No teu corpo oficiei uma missa de sangue. O louco amor tudo exige, se dá em troca o coração em chamas»

«À cama da nossa guerra e da nossa paz chega a manhã rosada com seus frutos de luz e de perdão»

«A verdade, para além do rumor das rochas e do azul, é o sacrifício do sol incandescente.»

Estes versos, ou lá o que são, mexem com ela. Lê-os e relê--os e depois fica quieta no seu canto, ela que é uma extrover­tida, agora guardando para si o que sente, a pensar e repensar no Arlindo. Mas não se lembra de lhe ter escutado nunca pensa­mentos e palavras como estas.

«Como se em cada um de nós houvesse uma zona secreta, uns gavetões interiores onde escondemos muito do que somos e não queremos dar a ver. É claro que os escritores, esses, falam destas coisas que nós guardamos para nós.»

A tarde estava entretanto a transformar-se. O vento tinha aumentado e parecia vir, como as ondas, que eram já vagas, em várias direcções. Até o sol esfriara e a costa, com as suas viven­das rococó e a linha febril dos automóveis regressando velozes a Lisboa, parecia ter ficado mais longe.

Havia remoinhos no mar, altas espumas em leque entrecho­cando-se, e o iate bailava ora no cimo das vagas ora nos vales escuros que elas subitamente formavam. Tão grande e lustroso há pouco, parecia agora um mísero batel a soçobrar em ruínas de água, dando a impressão de poder desfazer-se de um mo­mento para o outro.

Ficou positivamente a tremer de medo e foi então que ape­lou para Deus, isto é, para o Jesus do tempo da catequese e de ela ir à igreja, o Jesus que então sentia ao mesmo tempo huma­níssimo e poderoso, capaz de lhe perdoar milhões de imperfei­ções e erros e de lhe dar a mão no transe que estava vivendo.

Já passada a aflição, quando o vento amainou e chegaram todos a terra encharcados e sem vontade de mais navegações, Mafalda viu que deviam a salvação apenas a causas naturais, mas não deixou de sentir em si, sem pôr em causa a sua con­duta, uma reconfortante cumplicidade com o Cristo.

Raramente discute com Lívio mas, quando isso acontece, vêm ao de cima todas as queixas e acusações acumuladas durante meses ou anos de contenção.

Foram ao Minho passar um fim-de-semana agradável numa região muito verde, quase um paraíso. Descanso total para os sentidos, e de noite amor quente.

Mafalda aprecia o turismo rural, desde que os anfitriões os deixem tranquilos; e o Lívio é demasiado conhecido para que não venham apoquentá-los com pequenas atenções, explica­ções desnecessárias ou pedidos para assinar o livro de honra da casa e outras gentilezas. Enfim...

O solar todo branco, com portas e cunhais de alvenaria e pedra de armas, beirais revirados, é do fim do século XVIII. Nem lhe faltam a capela privativa e uma maravilhosa fonte no pátio, agora transformado em parque para os automóveis, cheio de luz. Tudo calmo e acolhedor, como logo o classificou o Lívio.

Depois do jantar, voltaram ao pátio, então vestido de som­bras e de águas murmurantes.

Lamentou, mas sem azedume, que o Lívio ontem não a ti­vesse apresentado a um colega do seu ministério, que ele cum­primentou cordialmente, bem como à mulher.

- Até parece que tens vergonha de mim.

- Que disparate! Só quis evitar mais convívio. Estragavam--nos completamente o fim-de-semana.

Fingiu aceitar o argumento mas, como estava ferida, pouco depois, ao voltarem para o quarto, tornou ao ataque e veio então à baila a desigualdade do comportamento de Lívio com ela e com a Sabina.

- Com ela viveste na mesma casa, comigo não. O que é que eu tenho de menos que ela? O que eu aguentei! Estava-me nas tintas para os outros, andei contigo por toda a parte, inclusive em hotéis muito concorridos.

- Tenho-te apresentado a toda a gente com quem me dou.

- Nem sempre. E, sobretudo, recusas-te a partilhar comigo a tua casa, a vivermos como marido e mulher.

- Nada disso. Eu só quero tornear os inconvenientes da coabitação, justamente porque tenho uma má experiência.

- Tretas! Deixa-te disso, Lívio, a verdade é que nunca amaste outra mulher senão ela. Confessa!

- Deixa-te tu de tolices, por favor. Queres estragar comple-tamente a nossa estadia neste lugar que eu escolhi para ti com tanto carinho?

Acabaram por fazer amor, não sem relutância de começo, e não foi tão compensador como costumava ser.

E, de noite, enquanto o Lívio dormia, com o quarto fresco a cheirar a estevas e a maçã, ela continuou a remoer no estatuto que fora o dela quando Lívio ainda vivia com Sabina e que, de certo modo, persiste.

A insónia fê-la ouvir, ou imaginar, lá fora morcegos esvoa­çando-se contra o tecto do eirado e tornou a viajar, triste, pelos prados amarelos do pôr do Sol, sob o sinuoso errar das nuvens, que iam, elas, aquietar-se para adormecer.

Na sala de jantar algumas pessoas olharam para Lívio com insistência (conhecem-no da televisão), só havia duas mesas ocupadas e logo haviam de ser mulheres.

O Lívio continua o mesmo femeeiro. Tem envelhecido, mas parece não se dar conta disso, e aos sessenta e quatro anos ainda é, dizem, um homem bonito e sobretudo másculo. Ela suspeita com frequência dos telefonemas que lhe fazem para o telemóvel e até já conhece as expressões do rosto que nele denunciam o constrangimento e a culpabilidade.

Está segura de si, e sente-o bem agarrado aos seus hábitos eróticos e não só, em suma, à sua pessoa. Mas fica mesmo agastada com tanta galderice. Vai-lhe à carteira e à agenda, não resiste. Encontra por lá sinalefas e abreviaturas sem conta, o telefone da Lili e da Lau e locais e horas de presumíveis encon­tros. Mas há um nome que aparece de vez em quando na agenda, associado a um restaurante, e que a intrigou, o de uma tal Maria da Luz. Teve a teimosia de ir lá confirmar. Ficou à porta a fazer perguntas a um empregado e a observá-los ao mesmo tempo. Não deram pela sua presença. A mulher era muito alta e estava vestida de preto, toda ela austera. Tinha feições finas, olhos claros e um modo severo de lhe falar, de o fixar. Não era de certeza um engate, mas a curiosidade (chegou a imaginar uma chantagem qualquer) levou-a a interrogar o Lívio, dizen­do-lhe que os vira por acaso. E, como tem sempre muitas infide-lidades a assacar-lhe, a conversa logo degenerou numa cena de ciúmes, tão assanhada que ele, sem se defender, começou a descoser-se e assim Mafalda veio a saber que aquela criatura, com menos vinte anos do que ele, sua antiga secretária num es­critório de advogados, era nada mais nada menos do que a mãe de um filho ilegítimo do Lívio, do qual ela lhe dava periodica­mente notícias. E veio assim toda a história. Conheceram-se lá no escritório ainda nos anos 70, quando ambos se identifica­vam com a Revolução, ela já casada, como ele. E a criança veio ao mundo sem ser chamada. A mulher, essa tal Maria da Luz, divorciou-se pouco depois, mas o Lívio nunca deixou a Sabina. O rapaz, hoje crescido, está a terminar o curso de Economia e não sonha que o Lívio é que é o pai dele, e não o outro, que lhe deu o nome.

Parece que o moço, que é da JCP, até detesta o senhor ministro da Justiça, no qual vê um oportunista, mais do que um defensor do sistema, o que contrista e humilha o Lívio, impe­dindo-o de se aproximar do filho, como gostaria de fazer.

Mafalda penitencia-se perante si própria, como pessoa civi­lizada que se considera, por ser tão ciosa e levar tão longe as suas desconfianças e a sua vontade de esclarecer todas estas embrulhadas. Também se acusa (e se desculpa) de haver uma vez, em casa do António Pedro, forçado uma gaveta fechada, que lhe fazia espécie. Lá encontrou dois bilhetes e um retrato da Sabina, confirmando a ligação que ele mantinha com a san­tinha de pau carunchoso. Lívio não pôde negar.

Mas - e mal sabe porquê - nunca lhe falou nisso nem ten­ciona fazê-lo. Não é solidariedade feminina, que jamais experi­mentou, é qualquer coisa que a ultrapassa. Entrou pela porta errada na vida de Sabina e julga que a fez sofrer, não quer aumentar ainda um peso que já tem na consciência...

Lá no Minho o que lhes ia estragando o fim-de-semana foi a insistência com que, no dia seguinte ao da chegada, uma turista brasileira muito agitada começou a fixar o Lívio e chegou à fala com o casal, explicando (o que só piorou a situação) que ele se parecia com o seu primeiro grande amor, um zoólogo de fama que fazia prodigiosas expedições na selva amazónica e tinha o mesmo olhar do Lívio, inteligente e cheio de doçura.

«Não me dei por achada. Disse-lhe logo que o Lívio tinha também viajado pelas florestas de Angola e que até seduzira uma rainha africana.»

A outra desconfiou de que ela não falava a sério e saiu de cena rapidamente. O Lívio não gostou da graça, mas calou-se. Evita gastar energias em discussões irrisórias. E está já habi­tuado a outras saídas de Mafalda deste quilate.

Na FIAT fizeram-lhe uma minifesta de aniversário. Mafalda já lhes deu cinco anos dos quarenta que acaba de cumprir. Dizem-lhe que não mudou nada de então para cá. Bem se esforça, mas o espelho revela-lhe, se revela, algumas alterações no pescoço e na cintura, de que os outros mal se apercebem.

Ainda se recorda da recepção na embaixada de Itália em que conheceu o seu director, já tinha entrado para a FIAT por concurso. O italiano de Mafalda, aprendido na Faculdade e numas férias em Florença, e também, valha a verdade, a sua presença impressionaram-no tanto que depressa foi chamada para secretária da direcção. E pode gabar-se de que hoje poucos empregados superiores conhecem tão bem por dentro os negó­cios da FIAT como ela.

Foi lá que o Lívio passou a comprar todos os seus carros e nas melhores condições.

Quando pensa na vida que levam as suas colegas da Facul­dade, nas escolas onde estão colocadas, no que lhe contam das aulas e dos alunos, tem uma sensação de imenso alívio. Como poderia ela lidar com aquelas meninas indiferentes a tudo o que lhes ensinam, sempre a pensarem na discoteca de sábado, e outras com rostos hostis, outras com amabilidades interesseiras. A Milu Ortega tentou ler numa aula um conto de Oscar Wilde, mas era tanto o barulho que teve de calar-se e mandar fazer uma retro versão. Outra professora desistiu de lhes dar a conhe­cer a Virgínia Woolf. Há alguns alunos que se interessam e até pedem bibliografia, mas são tão raros. No décimo segundo dizem-lhe que muitos vão à Internet, mas, como não sabem se­leccionar a informação, depois chovem erros monumentais nas provas de exame. Tudo o que lhes ensinam os enfada, querem é televisão, rock e beijos de telenovela nos corredores das esco­las. Safa!

A Milu Ortega emprestou-lhe um romance do D. H. Lawrence, de quem ela só leu na Faculdade os poemas e os Sons and Lovers. Vai levá-lo para Mil Fontes, onde o Lívio quer ir passar o próximo feriado. O «monte» é quente, mas tem ar condicionado. Fica apenas a quinze quilómetros do mar e, contu­do, o Agosto lá ainda é pesado. A meio da tarde nem mexem as folhas das ervinhas.

Vai pedir à Silvana, que lhes toma conta da casa na ausência deles, ou seja, quase sempre, que lhes faça para a chegada uns camarões, se conseguir arranjá-los, com uma grande salada de alface, muito tomate e cebola e bocados de maçã. O ideal seria pôr também abacate ou papaia, mas talvez não se encontrem lá facilmente.

Da última vez que lá estiveram, andou a passear pelo campo com o Lívio, pelo meio dos chaparros e dos pinheiros mansos, a observar tudo, mesmo os carreiros de formigas (até apanhou uma para lhe ver bem as tenazes), as ovelhas derreadas de calor, as correrias dos cães de volta cheirando qualquer coisa num valado, para logo voltarem até à porta do «monte»: e o sono das pedras aquecidas pelo sol. Se as pedras tivessem coração, pensou Mafalda, haviam de gostar dela, que é igualmente rija quando teima.

O Lívio perde-se a escutar no silêncio os grilos e as cigarras, a desencantar gafanhotos e a mirar aquele azul imperial do fir­mamento, a ver o sol pousar, quando declina, no tanque de lavar a roupa. Lívio é um nome frio, mas o homem que o usa é, pelo contrário, afectuoso, embora egoísta.

Mafalda contou-lhe da sua festa de aniversário e não resistiu a dizer-lhe que na FIAT quase todos a admiram pela sua leal­dade e eficiência.

Ele riu-se, disse a brincar:

- De presunção e água benta cada um toma a que quer.

Não resiste a estas piadinhas, mas Mafalda sabe que ele lhe dá o devido valor. Quase à noitinha apareceu no «monte» um cego a tocar na gaita de beiços músicas que há tempo não ou­viam, a Kalinka e a Cumparsita. Tinha uns olhos completamente vazios e o cabelo grisalho parecia calcinado, tudo era patético naquele velho triste que interpretava a alegria.

Não sendo sentimentalista, Mafalda comoveu-se.

Depois do jantar, já tarde, sentaram-se no terreiro a sabo­rear o fresco e a noite clara espraiava-se sobre a planície, sobre as árvores e os brejos distantes, o luar amaciava a terra e tintim lava na aresta das pedras. Adivinhava-se longe a água assustada do mar, onde no dia seguinte queriam velejar.

Era a noite profunda do Sul, que o Lívio adora e ela tem aprendido a amar.

Ali estão longe da avidez generalizada das pessoas da cidade. E ela sabe que também está contaminada.

Sempre julgou que não era mulher para escutar a sinfonia do silêncio. Sempre desejou acção, mais acção e até o triunfo, sim. «Sou firme e ambiciosa e disso me orgulho; mas há uma espécie de transfusões osmóticas entre pessoas que se querem bem e, ao conviver tanto com o Lívio, não só me tornei mais maleável, quando as circunstâncias o exigem, como pouco a pouco fui descobrindo o encanto da natureza. Dantes era quase incapaz de ver estas coisas. Havia para mim a cidade e a paisa­gem rural não me dizia nada.»

O Lívio não gosta do quarto dela. Teve disso a prova hoje. Aliás, foi um dia para esquecer.

Nunca lhe tinha feito qualquer crítica ao estilo rocaille do mobiliário nem aos tons de rosa da decoração e da cama, da colcha, tudo muito vaporoso, muito doce. E ontem, de repen­te, tinham feito amor, estava Mafalda a repousar nos braços dele, numa posição cinematográfica, saboreando aquele can­saço ainda voluptuoso, e o Lívio (só decorreram uns instan­tes), como se nada se tivesse passado e nada sentisse, pergun­ta-lhe:

- Quem é que te deu a ideia de decorar assim esta alcova... tão mimosa?

Soou-lhe como se ele dissesse: «Isto parece um quarto de puta.»

- São gostos, Lívio. Eu gosto, tu não gostas, pronto.

- Não é que não goste, mas prefiro decorações mais sóbrias.

- Achas Kitsch?

- Talvez. O Kitsch também tem o seu encanto. Mas não condiz com a tua personalidade.

- Tens a certeza? Às vezes penso que não me conheces, apesar de tantos anos de convívio.

Estava já quase abespinhada. Ele mudou de tom:

- Pode ser que tenhas razão.

Resolveu castigá-lo com um silêncio magoado.

O Lívio preferia a primeira casa que ela teve na Graça, que ficava numa rua do género provinciano, lojas pequeninas, retrosarias, ferragens, artigos eléctricos, uma barbearia inverosí­mil, com espelhos dourados, cheios de sujidade, inclusive de moscas (mas achavam-na digna de ser filmada como relíquia) e até vivendas, que eram de vez em quando assaltadas. É certo que tinha vistas cheias de luz sobre a encosta da cidade antiga, de um lado até ao Hospital de São José e ao vale do Rossio, cin­tilante na estátua e nas mansardas, e do outro lado as ruínas do Carmo. Muitas noites iam para a varanda e olhavam os reflexos nas janelas, a harmonia pombalina da Baixa.

Mas cansou-se das escadas (era um terceiro andar) e dos mexericos da vizinhança. Mudou-se para um prédio moderno com elevador. Só que fica para cá, entre a Graça e Sapadores. Sente-se bem ali, não se pode ter tudo.

Queria fazer as pazes com o Lívio (deviam poupar-se a estes choques), mas notou-lhe no rosto uma dureza desacos­tumada, que a picou. Em todo o caso, disse-lhe, ainda com brandura.

- Tu já não me aprecias, não me valorizas. Estás sempre a comparar-me com ela, com a querida, a incomparável Sabina.

- Voltas-me com isso? Sabes muito bem que não é assim. Eu não endeuso ninguém e vejo até a Sabina com muito rea­lismo. Mas dá-te para aí, que hei-de eu fazer?!

- Ela é que era discreta, elegante, serena. E não te fazia cenas, não te amortalhava como eu. Gostas do meu corpo, dou-te prazer e precisas de mim só para isso. E a ela tem-la num altar.

- Qual altar! - Abanou a cabeça, enervado. É absurdo tudo o que estás a dizer.

- Sim. Não mintas. Ela é que tinha todas as virtudes. Nega lá.

- Então é. Se tu queres que assim seja.

- Eu não quero, mas sinto-o, leio-o em ti, nas tuas expres­sões, nos teus gostos.

- Merda!

Depois, passada a borrasca, pediu-lhe perdão da grosseria. E ela está a aprender que não se pode esticar demasiado a cor­da, nem querer saber de mais. Para quê esmiuçar tanto o que cada um sente, esconde, na sua fantasia, se só nos traz sofrimento e dissabores?!

Raramente Mafalda põe os pés na Assembleia da Repú­blica. Foi lá uma vez com o Lívio, à Caixa Geral de Depósitos, onde ele tem as suas contas, desde que foi deputado indepen­dente pelo MDP, já há muito, e aproveitou para lhe mostrar o edifício, que é imponente no seu estilo neoclássico, com tanto mármore e espaços solenes, salas e salas, sem falar no plenário, um deslumbramento. Era de manhã, em tempo de férias, e Mafalda ia reparando no vazio dos espelhos frente a frente e na solidão faustosa que ali reinava, semelhante à dos museus quando não há visitantes.

O Lívio está a ser alvo de ataques da oposição porque pro­meteu uma infinidade de coisas e ainda não fez quase nada. Mas pedem-lhe constantes entrevistas, mesmo na televisão, ele fala, fala e depois os inimigos arrasam-no.

Tem-o apoiado como pode. O governo vai em breve res­ponder a perguntas e ela receia que o Lívio não se saia bem dessa prova. Podem desenterrar artigos dele contra os conser­vadores, a muitos dos quais chegou a chamar fascistas.

No sábado, quando se despediu do António Pedro, depois de jantarem com ele no Gambrinus, deu-lhe na face um beijo de tristeza, ou de ressentimento. São tão confusas as suas emo­ções. Sem nunca ter falado com a Sabina, consegue vê-la por fora e por dentro, a partir do muito que sobre ela já ouviu nos círculos em que vivem; e, se é certo que não pode deixar de a olhar como uma rival, também lhe acontece sentir compaixão pela mulher doente, orgulhosa e solitária que hoje ela é. Calcula que a Sabina lhe atirava à cara com essa compaixão, se sou­besse. Mas é assim.

O Lívio ontem telefonou-lhe para ir ter com ele ao Ministé­rio, ao fim da tarde, e arrancaram logo para lá do Guincho. Gostou da ternura dele, cada vez mais rara, e sentiu que parti­lhavam algumas coisas que ela dantes não via: a alegria das ro­chas, áspera e luminosa, depois a grandeza nostálgica do mar; e experimentaram uma certa angústia sem palavras perante a morte do sol.

No regresso falaram pouco, sobre os dossiers que ele está es­tudando. Mafalda ficou a olhar os faróis e a escuridão e a ver nela a sua vida toda, com seus altos e baixos, suas crises e seus afectos, e um futuro muito turvo.

 

                       O LABIRINTO

 

Lívio tem na sua frente o tempo. Livros de há dez, vinte, trinta anos e mais, alguns amarelecidos, gastos e cujo pó, às ve­zes, de manhã o faz espirrar.

O tecido esfarrapado da sua existência ali se projecta, nos velhos móveis de estilo, nos quadros de Malangatana e de Ber-tina Lopes, da época da guerra colonial, que eles lhe deram em Paris. Nos seus coloridos ardentes, no seu dramatismo carre­gado de desejos e dores, de pesadelos e raiva, está também sim­bolizada essa guerra que ele teve a coragem de não fazer e que, no entanto, ainda sente como uma chaga, uma ausência em fogo.

Incomoda-o hoje a quietude angustiante das coisas à sua volta. Empalideceu o recosto do sofá vermelho onde ele costuma reclinar a cabeça quando dá por si exausto de viver. É como se estivesse a olhar os seus próprios escombros nesta cadeira onde está habituado a ler e escrever.

A um canto interpela-o o espelho antigo, com dourados, onde tantas máscaras suas perpassaram.

Vai até à janela e contempla, sem o ver lá fora, o céu impo­luto, do qual os seus olhos há muito se perderam.

«Ninguém sabe quantas vezes ao longo da vida fui assaltado por imundos desejos, como o de querer a morte do meu supe­rior hierárquico (para poder ocupar rapidamente o seu lugar) ou ansiar o desaparecimento de um parente rico e idoso, que talvez me tornasse milionário de um dia para o outro - fulgura­ções instantâneas e logo repelidas, em desacordo com a ideia que os outros têm do meu carácter e que eu próprio, vamos lá, também tenho, em comparação com a maioria, sabendo-me embora sujeito a visitas do monstro que a todos nos habita.

Nem tudo na minha vida foi liso, digno e altruísta, para em­pregar termos que já têm sido usados nos panegíricos políticos que me fazem, ou fizeram.

E é especialmente sobre essas imperceptíveis manchas do meu passado, zonas de intransparência quantas vezes opacas mesmo para mim, é sobre essas vergonhas que pretendo falar com este caderno em branco, agora já a cobrir-se de letra miúda, inclinada para trás.

Apetece-me pôr neste túmulo de papel toda a verdade ou o que sinto como tal, toda a dúvida, toda a pesquisa dos meus fundões e dos meus actos recalcados, tal como fez o Rousseau nas suas Confissões, mas descendo ainda mais baixo do que ele, sem autodesprezo, apenas com rigor e teimosia. Não para pu­blicar, é claro.

Ia escrever «só para mim». Mas será esse o objectivo? O que espero eu, que não sou escritor, desta torrente suja de palavras? A quem as destino? A um futuro cujo julgamento já não me afecta? Aos que me conheceram ou julgaram conhecer-me? Nem sequer penso nisso. E, no entanto, aflige-me a ideia de deitar isto tudo ao lixo ou ao fogo depois de redigida a última frase.

Será que de facto a expressão, este tipo de expressão, a pa­lavra escrita ou o desenho, a pintura, tudo o que dê testemunho da vida ou seja procura de mais vida, mesmo a música, e essa talvez ainda mais intensamente, será que tudo isso é consubs­tancial ao homem, pelo menos, a certos homens?

O que me parece absurdo, neste momento, e contudo me move tão fortemente, estará ligado a uma lei universal da pobre humanidade que aspira irremediavelmente ao infinito?

Seja como for, vou escrevendo. Continuarei. Não que me dê exactamente prazer, até me abala os nervos e de algum modo me incomoda: é uma exigência que dir-se-ia vir dos arcanos do meu ser.

Ah!, se o meu pai, que via em mim um modelo de ética e olhava com carinho, apesar de mos censurar, os meus descami­nhos políticos da primeira juventude, se ele agora pudesse olhar isto que escrevo sem saber bem porquê, que espanto não havia de lhe descompor o rosto tão habituado à cortesia.

E tanto ficou em mim (agora que deito contas ao passado é que melhor me apercebo) dos cerimoniais burgueses que então eu combatia.

Creio bem que ao substituir as escalas de valores (e os ritos correspondentes), em cada etapa da minha vida, soterrando tudo o que passava de moda num compartimento de íntimas arrecadações, permaneci contudo fiel ao meu eu profundo, à minha herança genética. Quero crer que desdenho de tudo quanto rejeitei nessas sucessivas limpezas, mas uma voz secreta diz-me que não é verdade.

Muda-se de pele, isto é, de postura, de sorriso, de convic­ções, de amigos, de interesses, mas dentro de cada um de nós há um arquivo selvagem que guarda teimosamente crenças e vícios inimagináveis, até quando fingimos odiar ou chegamos mesmo a odiar o que antes dizíamos amar ou queríamos amar. Porque o teatro, exterior ou interior, deixa-nos marcas terríveis por debaixo da máscara ou das máscaras que se tornaram rosto. São de tinta indelével, não saem de dentro de nós.

O próprio camaleão adoece um dia de vergonha, ou de nos­talgia de não se sabe o quê.

Quer isto dizer que somos hoje todos (ou quase todos) uns biltres neste «reino» da acomodação às técnicas do êxito? Não direi tanto. Mas admito para comigo que não sou, na minha linha de conduta, nem melhor nem pior do que a esmagadora maioria. Sou mais trabalhado e mais lúcido. Por isso mesmo, em certo sentido, mais sujo. E falho de humor. Porque o humor podia salvar-me até perante mim.

A minha família conservadora, mornamente católica, que reprovava, aliás com pouca convicção, o ateísmo inconvicto dos meus catorze, quinze anos, tão típicos portugueses éramos, ficaria de cabelos em pé se lesse o que estou a escrever.

Em sonhos rememoro hoje muito do vivido, mas de tal modo alterado que mais parece um rio de imagens absurdas a invadi­rem-me, torrente acusatória e tão perversa, superlativa no dis­parate. Se eu acreditasse nalguma justiça transcendente, veria mesmo nalguns desses sonhos como que um patamar para o inferno, quando afinal é outro o inferno, não o das metáforas cristãs, apenas uma vingança de mim contra mim próprio. Por­que o remorso nestes sonhos torna-se bem real, oh se torna! E é de noite que me fere, sobretudo nas suas escuras cavernas, quando só aparentemente durmo e poderia ainda enxotá-lo.

Vou dizendo a mim mesmo, sob esta luz terrível da escrita, as palavras abomináveis e afinal tão comezinhas que em vão tenho tentado apagar.

Quando andava perdido de desejo pela Mafalda, então na soberba carnal dos seus trinta anos, e tentando arrancá-la ao companheiro, o que finalmente consegui, estava com ela quase de dia e de noite e muitas vezes a revolver-lhe o ventre naquele exaspero da união dos nossos corpos a que eu então chamava amor. Para justificar perante a Sabina (que ainda gostava de mim) a minha falta de assiduidade sexual, simulei doenças, in-capacidades e até incompatibilidades, truques (e egoísmo mal escondido) que feriram de morte a nossa relação.

Foi nessa fase que a ternura dela esfriou. Devo tê-la dilace­rado, no seu orgulho, na sua carne ainda confiante. Receio que a partir daí a minha imagem dentro dela e o que nela era sensa­ção começaram a apodrecer. Foi perdendo a auto-estima. Criminoso que eu fui!

O que isso hoje me dói. Mesmo estando nós separados, a Sabina continua a viver dentro de mim, como um filme antigo que o tempo não corrói, jovem clarividente, até por de mais, com medo da vida e algum humor negativo. O seu corpo recu­sou-se-me desde que percebeu o que comigo estava acontecen­do. Sentiu-se rejeitada e isso foi definitivo. Talvez continuasse a amar-me mesmo assim. Não mudou muito de atitude exterior, ela que nunca foi exuberante. Só ficou ainda mais retraída.

Muitas vezes me detesto pelo que então lhe fiz e fiz a mim próprio.

Já por duas vezes na vida atingi o que eu julgava então ser uma realização. A primeira foi depois do 25 de Abril quando todos me procuravam, como independente de esquerda, para dirigir um jornal ou chefiar um serviço da RTP e choviam os entrevistadores à minha volta.

Fora até então um homem coerente, sempre na oposição ao regime, dava-me bem com intelectuais e cientistas, com quem convivi no exílio e até com os resistentes mais radicais, que me conheciam também da luta comum. Nunca passei pelas prisões, mas assinei muitos papéis, o que, valha a verdade, até pode­ria custar-me caro. Forjei nessas lutas sólidas relações com os futuros socialistas e até com aqueles que se adivinhava serem os comunistas: estive com eles nessa madrugada da democra­cia que depois veio a opor uns aos outros esses companheiros de antes. Nunca me comprometi, não por cálculo de vida, mas por vocação apartidária. Seria? Pendi primeiro para o lado da CDE, mas sem adesão decisiva. E aproveitei com isso alguma coisa.

Subitamente ganhei muito prestígio. Era quase unanime­mente respeitado, de começo até me espantava tanta considera­ção. Assistia, espectador de mim próprio, ao triunfo de um ho­mem de modestas ambições. Falava-se muito na minha lisura, na minha honorabilidade, na minha ausência de ganância. Hesitava em reconhecer-me nesse retrato, mas fui-me adaptando. O António Pedro animava-me, mas valha a verdade, tinha às vezes um risinho quase trocista.

Tive então tudo o que queria, sem me comprometer com qualquer partido. Justificava-me com a minha irresistível paixão pela liberdade, uma liberdade absoluta, sem constrangimentos. Hoje duvido dessa liberdade e de tudo.

Arranjei novos argumentos, até perante mim próprio, para aceitar a pasta da Justiça neste governo de que faço agora parte, e dia a dia me confronto comigo; chegam-me aos ouvidos as críticas dos antigos companheiros, às vezes bem severas e que me arranham fundo; mas deito essa verrina para trás das costas, isto é, julgo fazê-lo, porque afinal fico moído. O desconforto é cada vez maior. Será que aprecio os encómios, os apertos de mão ou até os abraços que vêm do lado onde agora me encon­tro? Sim, aprecio esse aplauso e até as prebendas. Mas deslizam por mim. São consolações fugazes.

Poder, dinheiro, promessas, sim, tudo isso vem a rodos e não vou esconder que me reconforta, que por vezes até me em­briaga, mas muitos desses prémios e sucessos e inesperados afectos acabam por resvalar para o poço do nojo que trago es­condido em mim.

Tenho-me arrependido do passo que dei? Sim e não. Não se me vê na cara, nem nos discursos, nem nas conversas que tenho com os outros ministros e secretários ou com os meus bem poucos amigos, com a Mafalda, com o António Pedro ou com a Sabina quando a vejo, ou seja, raramente.

Não: isto é entre mim e mim, esta onda escura e ácida de íntimas secreções, ia quase dizer este vómito.»

Um dia destes Lívio passou pela sua casa da Lapa, que é hoje a de Sabina. Não foi exactamente por ter de fazer aquele trajecto. Tivera uma reunião ali perto, na rua onde morara um grande mestre da sua geração. Depois, foi só um pequeno des­vio, a pé. Deixou o carro no largo da Estrela, dizendo ao moto­rista que ia tomar ar.

E as flores da varanda de Sabina cumprimentaram-no. Es­preitou por cima do muro, que não é alto, e viu no quintal que fora seu as peónias a resistirem bem ao calor. Mas alguém des­pejara lixívia por cima dos seus cravos. O cão ladrou. Tê-lo-á reconhecido? Talvez. Cerrou os dentes contra uma ameaça de comoção.

Estavam muito quietos os tordos na nespereira. Tentou subir a pulso por um jorro de luz que vinha da janela do seu quarto, mas caiu logo em si, o seu olhar extraviado regressou ao irremediável: perdera-a.

Tinha vontade de lhe contar uma conversa aflitiva que tivera com o Manuel Joaquim, depois de este lhe ter rebentado a fechadura do cofre (apanhou-o a tempo com as mãos na massa), agora acusa-o.

Chamou-o a contas, frente a frente, na sala de estar. Ele as­sentou os cotovelos na mesa, as mãos comprimindo as faces, a afuinhar ainda mais o rosto.

- Pai - disse-lhe, eu sei que não tenho moral nenhuma, que sou capaz de tudo pela razão que tu bem conheces, mas a ver­dade é que te esqueceste sempre de mim. Vivias fora de casa, o teu trabalho absorvia-te, os teus processos, a política...

- A resistência!

- Sim, eu sei, e também os teus «casos», os teus amores. Mas podias arranjar ao menos uma tarde, uma noite para mim. E nunca dispunhas desses minutos, dessa hora preciosa. Ou en­tão, se a arranjavas, era para a minha irmã, que te entendia, que tu sempre preferiste. Nunca me interrogavas, nem à mesa nem quando fazíamos praia e tu raramente vinhas à mesma hora. Nem sequer me censuravas, ignoravas-me.

Não sabia o que responder-lhe, estava esmagado.

- Quando me voltei para a pintura - prosseguiu ele - , ten­taste alguma vez ver a sério os meus pobres desenhos e discuti--los comigo? Sempre esperei, nessa altura, que um dia me dis­sesses: «Continua, meu filho, tens qualquer coisa dentro de ti que vale a pena atirar cá para fora, mesmo que seja a pintares esses monstros.»

Desejava ter-lhe dito: «Perdoa, Joaquim, perdoa-me essa de­satenção. Nem sei como é que isso aconteceu.» Mas não foi capaz. Apenas respondeu:

- Tinha tantas preocupações. E porque não voltas a pin­tar?

- Já não me apetece. Já não gosto de coisa nenhuma e de ninguém.

Tentara pôr-lhe a mão no ombro, aproximar-se dele. Mas furtou o corpo e foi-se embora.

Se Sabina soubesse quantas vezes Lívio pensa nela. A pro­pósito disto e daquilo ouve a sua voz, vê-a sorrir abertamente, ou por detrás da atenção cortês a que se obriga, vê-a tal como era antes de o seu riso murchar.

De noite então, vê-a em todas as insónias e ela repreende-o, no seu jeito descrente de tudo (já nada se remedeia) ou então fala-lhe de si, dessa solidão que a ninguém confessa.

Tem dela uma infinita e dolorosa saudade. Andou cego por algum tempo, queria conservá-la e ao mesmo tempo satisfazer com outras, às quais por vezes se prendia, a sua inesgotável sensualidade.

Perdera-a de vez, querida Sabina, e ninguém pode calcular quanto a sua ausência lhe dói. Certas noites morosas, em que está a esvair-se numa hemorragia de reminiscências, vê fulgurar nesse magma de vida já morta a felicidade que não foi capaz de reter. Sobretudo a felicidade que não soube dar-lhe quando ela merecia tudo.

É possível que magnifique agora a sua maneira de ser. É verdade que num casal alguém tem sempre de se sacrifi­car, quer dizer, de sacrificar uma parte de si. E ele não quis sacrificar nada. Isto é, não se deu conta de que podia perdê-la. De tudo o que perdia.

Chegaram a discutir. Nunca ele lhe levantou a voz, nunca. Mas tem de reconhecer que a feriu, mentindo. Ignorou, ou quis ignorar, as suas limitações naturais, que ele devia respeitar.

Crucifica-se hoje a dizer-se que não soube amá-la como ela queria. Serenamente. Era-lhe difícil, porque ele é movimento e acção, ela é (ou era) lisura, tranquilidade, afecto, sorriso. E pro­vavelmente cepticismo, dúvida. Muita coisa eles têm em comum, é certo, nessas oposições. Ou não se teriam aproxi­mado um do outro.

Houve entre eles momentos, até períodos, de vida estável, de harmonia tão suave.

Mesmo na última fase, já com o amor em ruínas, durante a viagem à índia, ainda Lívio recorda instantes de magia, como diante do Taj Mahal. Pegou-lhe na mão, ela já não gostava de lha dar, mas deixou-a ficar entre as suas.

O grande túmulo de mármore todo branco, com um friso de pedras preciosas, fundidas na mesma luz, tornava-se, à pas­sagem muito leve de uma nuvem, brandamente cor-de-rosa.

Cresciam olhos na turba de turistas, que avançou uns pas­sos. Andavam contra o sol, embriagados pela intensa claridade. Aquele eurítmico monumento, que encerra memórias de amor e violência e como nenhum outro aspira à paz, à eternidade, derramava sobre eles um feitiço.

O guia indiano, pressuroso, conduzia-os de modo a evita­rem os pequenos espelhos de água e tinha nos olhos a imagem de um tigre. Foi nesse momento que ele a abraçou pela cintura (a última vez) e Sabina estremeceu. Era quase como se dançassem, unidos, no meio da multidão, onde os turbantes se desta­cavam por entre sombrinhas vistosas e cabelos loiros de gente do Norte.

Calçaram sobre os sapatos umas enormes pantufas e pene­traram na frescura do túmulo. Levavam nos olhos a transbordante beleza daquele cenário e Sabina sorria, por uma vez contente.

No espaço diáfano do mausoléu muçulmano desabrocha­ram flores de luz.

Lívio jantou ontem com o António Pedro num minúsculo, mas castiço, restaurante alentejano em Campo de Ourique. É a primeira vez que lhe fala dos seus dissabores nesta experiência de ministro que está fazendo nem ele sabe por quanto tempo mais.

António Pedro ouviu-o como sempre amigavelmente; anuía, sorria, mexia a cabeça, mas via-se que não queria dar opinião, como se lhe dissesse: «Tu é que te foste meter com essa gente, avém-te agora com eles.»

Contou-lhe tudo o que o oprime de há um tempo a esta parte e lhe põe na cara este descontentamento mal escondido.

Com falinhas mansas e muita consideração têm-lhe rejei­tado, ou então sabotado, quase todas as iniciativas que ele trazia na cabeça, desde a abolição do sigilo bancário (em palavras sim, mas em letra de lei é que não) até à reconsideração da despenalização do aborto, que diabo, já é a altura de reconhecerem a evidência, a vergonha destes julgamentos de pobres mulheres que ainda se verificam e embaraçam os próprios juizes.

Quanto ao projecto, que anda também no ar, da publicação de dados pessoais, devassando comportamentos secretos das pessoas, eles próprios estão divididos e nem Lívio nessa matéria tem certezas sobre o que se deve fazer. Só na questão da prisão preventiva é que houve consenso e o primeiro-ministro até lhe deu apoio.

A verdade é que ele saiu dessas reuniões de conselho depri­mido, agreste e revoltado, sobretudo consigo. Noutras alturas, quando as suas sugestões não parecem viáveis a ninguém, sen­te-se a mais, como um objecto decorativo que deve comer e calar e sentir-se feliz por estar ali. Quiseram o seu nome, a sua reputação de democrata e lutador. Mas que ele levante ondas, isso não aceitam. Porra!

António Pedro a ouvi-lo, já incomodado possivelmente com a emoção que o ia ganhando, apenas comentou, solidário:

- Pois é. Meteste-te em boa...

Não lhe fez uma única crítica. Sabe que ele se teria magoado. Então agora.

Desde a escola secundária, o que dantes chamavam liceu, foi sempre o amigo dilecto, aquele a quem se conta tudo, ou quase tudo. Tímido, com borbulhas, magrinho, escondido no fundo da sala, nunca brilhava, mas tirava quase sem esforço boas notas. E, quando ninguém esperava, saía-se com ditos satíricos sempre a propósito. Não sendo belicoso (evitando mesmo o conflito), respondia no entanto com coragem se algum colega claramente o afrontava. E gostava de andar sem­pre com ele, de o aturar. Foi o seu primeiro e único confidente da adolescência, tempo de sonhos e de miragens, de basófias também e de aprendizagem erótica, do gosto de se porem à prova.

António Pedro era desastrado com as raparigas ou, pior um pouco, incapaz de as abordar. Lívío é que o empurrava para a frente e, já caloiros de Direito, lhe arranjava mesmo os engates.

Passaram férias juntos, no estrangeiro, de sacola às costas, calcorreando a Europa, e em 1962 estiveram lado a lado na maré alta da greve universitária.

Havia quem considerasse António Pedro como uma espécie de sombra sua. Nada disso, ele tinha a sua personalidade e até uma cultura literária talvez superior, um espírito crítico ace­rado, mas nada desejava, nada deseja intensamente, está sempre pronto a abdicar de um projecto, de um concurso, de uma po­sição na vida. E, contudo, Lívio viu-o fazer coisas pelos outros, trabalhar na associação académica, na campanha de 1969, ba­ter-se por ideais. É certo que depois larga tudo isso, não perse­vera, mas é constante nas suas convicções.

Mudar não é defeito, é fruto da nossa evolução. Mas Antó­nio Pedro não muda. Também não é intolerante. Nem uma palavra de censura Lívio lhe ouviu quando se decidiu a aceitar este ministério, o que aliás era já a consequência do seu afastamento da esquerda, ou seja, da sua descrença sobre o futuro do mundo, sobre a possibilidade de transformar a sociedade.

Não tem que dar contas a ninguém, congratula-se até com a sua lucidez.

Pergunta-se às vezes porque não casou o António Pedro como todos os outros casaram e até se descasaram. Nunca o viu verdadeiramente apaixonado por mulher alguma, nem por aquelas com quem andou.

Deve ser assim mesmo. Uma ocasião, na Holanda, Lívio «caçou» duas estudantes, que não desejavam, presume ele, ou­tra coisa e, à míngua de melhor espaço, ficaram no quartinho de uma delas. Sentiu-o constrangido, mas portou-se à altura.

O que lhe falta é o fogo da vida, a vontade, há nele uma espécie de preguiça interior, incapacidade de amar, de querer, de segurar as pessoas e as coisas.

Assim como António Pedro desistiu da advocacia, terá de­sistido do amor, que é a própria chama da vida. Impossível ar­rancar-lhe uma palavra sobre assuntos dessa natureza, mete-se logo em copas ou inventa trocadilhos e sentenças esquisitas, sai-se com ironias, a desviar a conversa.

Foi sempre muito inseguro, reticente. Mas, algumas deci­sões no plano político, viu-o Lívio levá-las a sério e ir até ao fim. É tão contraditório, na sua amabilidade meio indiferente, na sua maneira de desconversar, de recusar a violência da vida, e ao mesmo tempo tão recto, tão pouco interesseiro em tudo.

Lívio não sabe verdadeiramente o que António Pedro pensa dele, e de tudo isto, desta farsa, deste governo que o nosso des­graçado país não merecia e onde ele, Lívio, desempenha um papel de palhaço.

A Mito desconfia já, receia Lívio, de que nem tudo lhe corre bem nesta zona de turbulência que ele próprio criou.

Quando foi deputado pelo MDP, tudo lhe servia para falar e às vezes até para invectivar, mas com elegância, e sobretudo para abordar questões a fundo.

A Mito, sempre contundente, dizia que ele era cor-de-rosa, vermelho desmaiado, e nem sequer era bem assim.

Agora faz-lhe vénias e troça dos ridículos de alguns minis­tros, imitando-lhes a voz e a pompa tribunícia. Num deles vê o Acácio ressurrecto, noutros descobre semelhanças, que Lívio nunca tinha notado, com galos ou com suínos.

- Tu, ao menos, sabes rir e não te atrapalhas nem abusas da palavra diante das câmaras. Com alguma boa vontade, ainda podias ser o galã da companhia.

Que há-de ele fazer senão beijá-la. Mas a Mito não é nada de carinhos.

Parece um pouco mais sossegada. Mas sempre excêntrica. Como quase só a vê aos domingos, aproveita bem esses instan­tes. Ela é que escolheu o local do almoço, um pátio interior no primeiro piso de um centro comercial, com muitas plantas e arbustos transparentes, uma luz ocelada e janelas falsas. Bonito, mesmo radioso, levemente desconcertante. Sentaram-se em ca­deiras de jardim, de ferro, à volta de uma mesa redonda. Os ou­tros clientes davam a impressão de se conhecerem uns aos outros, como se pertencessem a uma seita. A empregada, brasi­leira, tratava a Mito por tu e, embora ninguém os olhasse osten­sivamente, Lívio sentiu-se estranho, estava quase inquieto.

Teve a sensação de que havia qualquer coisa que circulava entre as mesas, com excepção da deles, papéis e frases segreda­das, talvez ele estivesse a imaginar mais do que via e ouvia.

O almoço decorreu cordialmente, mas a Mito afigurou-se--lhe algumas vezes ansiosa, até que se decidiu:

- Tenho uma coisa importante a dizer-te, pai: estou grá­vida. E gostava que fosse um menino. Vais ter um continuador, porque o Joaquim...

- E quem é o pai?

- É o Miklos, um húngaro, trabalha na Embaixada. Julgo que é ele.

- Não tens a certeza?

- Absoluta, não. Mas ele assume. É claro que não pensamos casar.

- Não te agrada mesmo casar com ele?

- Podia ser uma experiência interessante. É um tipo giro. Mas deve ser melhor assim.

- Vão viver juntos?

- Ainda não decidimos. Creio que não. Tentou beijá-la, cuidava adivinhar nela uma sombra de mágoa.

- Nada de sentimentalismos - disse ela cedendo, mas repe­lindo-o logo.

Após um curto silêncio, fez-lhe uma festa na mão.

- Sempre gostei dessas tuas veias salientes.

«Há tantos homens diferentes dentro de mim. Não me refiro aos lances inesperados em que fui talvez herói nem aos mo­mentos em que terei sido cobarde, isso acontece provavelmente com a maioria dos homens. Não. Estou pensando nos seres que me habitam desde sempre e que se manifestaram com maior ou menor evidência neste e naquele período do meu percurso. Não me vou comparar aos heterónimos do Pessoa, obviamente, nem aos contrários da "dispersão" de Sá-Carneiro, o lord e o lacaio, o diletante perverso ao gosto decadente e o enfermo deitado na sua preguiça nirvânica, que a "Caranguejola" tão bem nos apresenta.

Bem mais modestamente, estou revertendo ao jovem puta-nheiro, afogado em meninas bonitas nos seus verdes anos, sem mãos a medir, entre egoísta e idealista, pertinaz nos estudos e nas "conquistas", mas deixando-se arrastar para as greves, mesmo em época de exames, já prestes a tornar-se coleccionador de prémios universitários e de êxitos eróticos. Exactamente nesse tempo, havia nesse D. Juan um duplo, capaz por vezes de despir as roupas e a própria pele para tudo dar a quem o como­vesse e de lutar até ao raiar da aurora pela liberdade e todos os seus sentidos.

E fui depois o exilado, leitor de obras jurídicas e dos livros de Marx e até de Mao, espectador entusiástico, participante à flor da onda no Maio de 68, o cinéfilo refinado e ao mesmo tempo o cínico, o encantador de doces rebanhos de escandina­vas, tão sabidas quanto ingénuas na sua desenvoltura. O cons­pirador de café, que falava em pegar em armas sem saber dis­parar uma pistola e que já anunciava o calculista em certas manobras de aproximação aos líderes do futuro.

Mas, vejamos, apesar de haver no meu passado fases bem demarcadas em que predomina a generosidade e outras, ainda nebulosas, dominadas pela vontade de poder, encontro sempre em mim, ao radiografar-me, o mesmo homem.

Até agora, tendo por vezes o sentimento de me haver ven­dido (à glória e ao conforto), acabo por dar comigo a carpir-me e a insultar-me e logo após a convencer-me do contrário, de que o importante é ser lúcido e frio, como os donos do mundo do século XXI, que apostam só nas próximas décadas.

Tenho um pé aqui e outro ali. É uma situação de perma­nente angústia e desacordo comigo. Provavelmente sem remé­dio.

A Mafalda, que vive quase ao meu lado (não quero abrir--lhe a porta da minha intimidade total), apercebe-se de alguma coisa desta tormenta que vai em mim; aceita-me, de resto, tal como me vê e me concebe. Mesmo a Sabina não me reprovava.

Ninguém jamais mergulhou no fundo dela, nem eu; mas sabia-a solidária, inclusive no desacordo.

A Mafalda é um problema. Quer-me por inteiro. Não é bem assim, quer o estatuto e o proveito de dona da minha casa e também a mim, por hábito e, vá lá, por desejo. Ou pela ordem inversa. Quer-se instalar a sério comigo na sociedade permis­siva de hoje e, se possível, com documentos.

Está a tornar-se ciumenta, o que é desagradável. Mas conti­nua a crescer em mim a vontade de devorá-la toda com beijos--ventosas quando os meus olhos a descobrem quase nua, a des­pir-se ou já sobre o fresco dos lençóis, chamando-me.»

A Mafalda é lume na cama, quando solta os cabelos e aquela vaga de ouro ruivo lhe roça pelos ombros, pelo peito, no calor da luta, enquanto Lívio vê (e sente) acelerar-se o movimento das suas ancas lascivas, tão reais que se tornam irreais; e por fim quando os seus gemidos sufocados, as suas contracções o excitam e o encaminham, louco e envaidecido, até à praia da total entrega.

Arrefecido o corpo, porém, não é que a ternura se evapore por completo, mas vai-se ausentando progressivamente. Nada que se pareça com a doce cumplicidade que, nos primeiros anos do casamento, ele experimentava junto da Sabina, após a fusão dos sexos, abraçado a ela como à trémula árvore da vida.

A Mafalda é alegre e vibrante e isso torna-se agora impor­tante para ele, mas tem em cima uma carga de frivolidade e por vezes até uma vontade de exibição, de dizer «aqui estou eu», que às vezes o satura. É certo que faz muito para lhe agradar e se mostra solidária com ele em questões decisivas, mas quando lhe dá para a asneira...

Soube pela empregada, uma pobre de espírito, que Mafalda foi recentemente consultar um bruxo.

Que não, trata-se de um astrólogo, diplomado, e tem até o curso de psicologia.

- Então, Mafalda, tu acreditas numa coisa dessas? Esse doutor da mula ruça é de certeza tão psicólogo como eu, ou menos, porque eu até li o Freud.

- Estás enganado. Precisas de ir comigo ao consultório dele.

- E o que é que ele te revelou de sensacional? Fez-te um exame de consciência?, deitou cartas?, leu-te o futuro na bola de cristal?

- Nada disso. Reconfortou-me muito. E, se te disser, não acreditas.

- Diz lá.

- Garantiu-me que um dia destes, quando eu já estiver a perder a esperança, tu hás-de ver-me bem como eu sou, porque tu não me vês, e... casas comigo.

- E vamos ser muito felizes e ter muitos meninos.

- Convém-te desviar a conversa.

- Se tivesses juízo, não te metias com bruxos.

Foi uma tarde estragada. Lívio esteve a ler dossiers do minis­tério até à hora do jantar e então convidou-a para irem a Sesim­bra comer mariscos, dar o passeio obrigatório pela rua da praia e olharem as gaivotas a debicar o luar. Porque ela adora gai­votas.

Mas nem isso a aliviou. Doía-lhe a cabeça, não queria jan­tar. Pediu-lhe que a levasse a casa. Mas à despedida encheu-lhe o rosto de beijos.

Morreu o Lima. Doença súbita, diz o jornal, mas tudo leva a crer que se suicidou e os semanários e a televisão estão já a explorar o caso, à procura de um escândalo.

No suicídio Lívio acredita. Há muito que não o via, o Lima estava de mal com o mundo. Colegas desde o liceu, ainda o conheceu fascista, com o uniforme da MP quando já ninguém o punha. E bruscamente, na Faculdade, converte-se ao comunis­mo, ingurgita tudo o que consegue encontrar, em livros ou em folhas policopiadas, de Plekhanov e de Lefèvre, um exemplar do Capital trazido de Praga clandestinamente por um estudante brasileiro. E começa a escrever nas poucas revistas de esquerda consentidas.

Está a vê-lo: atarracado, negrusco, truculento. Foram ad­versários, depois amigos e os acasos da vida separaram-nos, o Lima fez a guerra, mas numa secretaria de Luanda, e, de volta, defendendo causas difíceis, ganhou fama de génio na barra dos tribunais, aderiu ao PCP, com todo o seu ímpeto, mas poucos anos depois, solicitado por grandes empresas, cansado de se pri­var de tudo, descrente talvez, tornou-se o advogado do grande capital, renegou segunda vez o passado e escudou-se, inteli­gente como era, na sua verve, no saber jurídico, e, se preciso, na grande retórica, carregada de sarcasmos.

Só de longe a longe Lívio deparava com ele nos tribunais ou nos lugares da elite, sempre apressado, com o mesmo timbre de voz estentóreo.

Dava-lhe a impressão de um homem infeliz, sob a risada teatral, desgostoso do mundo ou de si.

E agora suicida-se, quando Lívio precisamente defronta problemas de algum modo aparentados aos dele. A ideia do suicídio, por um instante, fulgura na sua mente como a solução ideal para quem cada dia se estima menos, ainda que a si pró­prio queira mentir. Um homem sem saída.

«Exagero. Terei mesmo, por um segundo, apetecido o suicí­dio? Claro que sim. Desaparecer de repente, fugir a esta merda de falso poder que nem sei como me atraiu. Fugir ao desprezo que começo a sentir por mim.

Romper com tudo, tudo. Ponto final. Sair. Um grande salto no vazio.

E o seguro que fiz para os meus filhos de modo a não se desvalorizar e que durante tantos anos fui pagando para lhes assegurar uma existência decente? Sobretudo ao desgraçado do Joaquim, porque a Mito vai-se governando, tem outro estofo e não deita fora o que possui, apesar dos seus delírios e provoca­ções.»

Dois dias depois o António Pedro veio jantar lá a casa e fez o epitáfio do Lima, que era exactamente o seu antípoda:

- Apaixonou-se ao longo do tempo pelas suas causas e nem se pode dizer que tenha traído, mudava de pele.

Lívio sente nesse momento que o Lima, que chegou a cau­sar-lhe repugnância e outras vezes a despertar a sua amizade, parecendo em tantos aspectos o seu oposto, era também seu parente. "Não exactamente: passámos pelo mesmo processo. E só eu sei que ainda não mudei de pele."»

Ontem Mafalda teve uma crise de nervos. A modista da boutique do Bairro Alto onde ela comprou um vestido novo para os restos deste verão estragou-lho completamente ao fazer umas pequenas emendas. A Mafalda ia pô-lo quanto muito duas ou três vezes à noite, Lívio só a tem visto nesta última semana de t-shirt e calças de linho. E que desgosto que ela teve, só visto! Como pode uma mulher inteligente como ela viver tão dramaticamente estas ninharias?! Bom, uma ninharia que custou mil euros.

Mas não é isso que a rala.

Deixou-a em lágrimas para ir fazer uma coisa quase inacre­ditável: espreitar o seu filho Herberto.

De jornal na mão, para poder descobri-lo na altura própria e não chamar demasiado as atenções, Lívio postou-se no Campo Grande, próximo do cafezito sobre o lago, onde ele estava a tomar uma bica com uns amigos. Já não o via há uns sete anos. E mudou tanto. Bem o avisou disso a Maria da Luz, que quer a todo o custo evitar o seu convívio com ele, no receio de que o rapaz venha a descobrir que Lívio é o seu verdadeiro pai.

Não houve ainda, em todo o mês de Agosto, manhã tão hú­mida e quente. Uma névoa reverberante parecia flutuar, atrás do Caleidoscópio, por entre as altas árvores, ulmeiros, tílias, pi­nheiros. Um dia de quebranto. Algumas senhoras com crianças nos bancos e, vagueando à toa por ali, um louco de andar fre­nético, a vociferar contra ninguém.

Nas clareiras a luz, muito turva, a arder de repente nalgum galho, descobre um pássaro calado. Do outro lado do parque vem o buzinar de carros e vê-se a massa das edificações escola­res. Ressalta do quadro uma buganvília roxa, vermelha, azul, onde o tempo se demora.

São cinco jovens sentados em duas mesas de ferro no terraço do café, sobre o lago, onde o sulco de um barco altera o verde da água, perturba o mistério das folhas esquecidas, dos insectos mortos, suspeitas de podridão.

O Herberto cresceu, nestes últimos anos cresceu tão depres­sa que está quase da altura de Lívio e tem os mesmos olhos azuis do avô e o cabelo rebelde ao pente. Fala animadamente com os outros, trocam papéis, um deles entrega aos outros epês para a Festa do Avante! Está tão perto que Lívio até os ouve, de vez em quando.

Uns bebem cerveja, outros sumo de laranja. Há no grupo uma rapariga que se parece com a Michèle Morgan de um fil­me que Lívio viu há muito em Paris, na Cinemateca.

Capta subitamente o olhar do seu filho. Deve ter estranhado a insistência com que ele o observava.

E nesse olhar azul-metálico Lívio vê interrogação, logo após qualquer coisa que pode interpretar-se como uma simpatia es­pontânea.

A voz do sangue? Nunca acreditou muito nisso, mas os olhos do rapaz ou julgam reconhecer nele alguém ou exprimem pelo menos cordialidade.

Seja como for, Lívio volta à falsa leitura do jornal e pouco depois levanta-se, vai-se afastando.

Pelas veredas da manhã já o sol ia esfugentando a névoa.

Lívio encontrou casualmente Sabina no Corte Inglês. Tinha lá ido para comprar espargos do campo, beldroegas e queijos franceses, produtos de que só ali se abastece com facilidade. Cumpria esse ritual de humor sombrio, porque de manhã só tinha ouvido no Ministério intrigas e banalidades palavrosas. Se ao menos tivesse podido escolher a sua equipa. Mas só o seu secretário é de sua total confiança e tem cabeça para pensar.

Quem havia ele de encontrar quase já à saída entre carri­nhos cheios de provisões e mamãs com crianças pela mão?! Sa­bina vinha de um dos cinemas, mais magra e olheirenta, com um luar triste nos grandes olhos.

Poucas palavras trocaram. Ia acompanhá-la até ao carro, mas ela disse-lhe:

- Deixei de guiar. Costumo andar de metro, ainda é o meio de transporte mais rápido. E muitas vezes vou a pé para qual­quer lado. Até gosto. Habituei-me. Mas estou cansada. Tomo um táxi.

- Eu ajudo-te a apanhá-lo. A não ser que me deixes levar-te a casa.

- Não vale a pena.

- Mas eu até gostava.

- Então está bem.

Perguntou-lhe como passava o tempo, embora já soubesse que ela está quase sempre metida em casa a ler e a ouvir mú­sica.

- Agora habituei-me a ler mais revistas e livros de história ou biografias do que romances. É da idade. E à noite vou às ve­zes fumar para a varanda e olhar o redil das estrelas, como dizia o Torga.

Sorri. Sabina sempre idolatrou o Torga e Lívio de repente lembrou-se dela em Moscovo, diante dos bulbos verdes e ouro da igreja de São Basílio, na Praça Vermelha, com um gorro de astracã na cabeça, a aconchegar-se toda no casacão de camurça forrado e a recitar poemas do Orfeu Rebelde ao guia-intérprete, que estava a aprender, na Universidade, Literatura Portuguesa.

Queria saber se ela se lembrava.

- Vagamente - disse Sabina, com alguma melancolia.

Era ele então deputado. A rua Gorki, a casa do Tolstoi ti­nham-nos fascinado, bem como o Kremlin, e para fazer compras tinha-lhes valido um conhecimento do Hotel Rússia, médico marroquino que era também membro do Comité Central do Partido Comunista na sua terra e podia, com o respectivo car­tão, comprar o que quisesse. Assim adquiriram um samovar.

Sabina recordava-se bem desse pormenor, mas tinha do po­lítico marroquino uma ideia esfumada. Lívio é que contactara mais com ele.

Não ousaram falar dos seus recíprocos sentimentos mas, quando Lívio parou o carro diante da casa que tinha sido dos dois e tão amada por ele, decorada por ambos com extremos de entusiasmo, pegou-lhe nas mãos e beijou-as. Depois deu-lhe também na face o beijo clássico, já ela ia a fugir-lhe.

Leu-lhe nos olhos amargura.

Uma lá do Ministério, menina bem, espevitada, meteu-se com ele num corredor:

- O senhor ministro não sabe que eu o conheço há muito tempo. Passei a minha adolescência na Lapa, morei perto de si. E, quando o víamos passar, todas as raparigas ficavam a olhá-lo. O senhor ministro nesse tempo tinha fama de conquistador... e de revolucionário.

- Revolucionário nunca fui - disse-lhe ele, desconfiando de uma insinuação. - Democrata sim, democrata activo, e ainda continuo a sê-lo.

Ela pareceu surpreendida com a vivacidade, quase implicativa, da sua resposta.

Anda assim, vê alusões à sua mudança política até em frases inocentes, até nos elogios, que agora detesta.

Este nervosismo, geralmente contido, faz com que lhe ape­teça mais passear, distrair-se de si. Mas as obsessões, pois começam a sê-lo, acompanham-no por toda a parte.

No fim-de-semana passado lembrou-se de dar uma volta por Sintra, uma das poucas serras que os incêndios deste verão não devastaram.

Ainda convidou a Mito a ir com ele, mas a filha declinou sem subterfúgios, tinha uma saída com amigos, é a chamada ordem natural das coisas.

Foi sem motorista e deixou o carro no grande largo frente ao Palácio de lenda que em tempos o fascinava completamente. Agora nada o entusiasma.

Encosta acima, trilhando caminhos já recorridos, o vento a agitar as ramas verdes, falavam com ele os castanheiros. Rouxi­nóis, pardais, pintassilgos, todas as aves a dizerem-lhe o que não quer ouvir. Os pinheiros, as sequóias e as araucárias vergavam-se mais ao vento norte. Cantava um galo numa quinta, detrás de um muro alto, pelo qual rastejavam trepadeiras. E chegavam até Lívio ecos de outras vozes, talvez de parzinhos enamorados, dos que buscam a sombra e o segredo das matas, a frescura de uma fonte. Por estas encostas da serra também ele vagueou com a Sabina, pouco dada ao exercício físico, cansan­do-se logo e não muito sensível ao clima romântico-barroco do fabuloso Palácio da Pena.

Nesse cotovelo da estrada depara Lívio com um estrangeiro de meia-idade, grisalho, em calções, que lhe pergunta o cami­nho para as ruínas do castelo dos Mouros. Isto num francês de Marselha arrastado e cheio de sol.

Indicou-lhe o melhor percurso, mas preveniu-o:

- Olhe que fica ainda muito longe.

- Não se preocupe, eu tenho pernas para trepar.

Fez-lhe companhia ainda um bom bocado, antes de retro­ceder.

O outro gabou-lhe Lisboa e a beleza quase teatral da Serra, natureza disciplinada, com oásis preciosos, como Galamares. Lívio disse-lhe, pelo seu lado, que a França era a sua segunda Pátria, que lá estivera exilado e lá deixara inúmeros amigos.

Mas há duas Franças, acrescentou o marselhês, e a dele, a nossa, era a de 89, a da Comuna de Paris e da Resistência aos nazis, a das lutas operárias.

Era um trotsquista inflamado, muito culto, sobretudo politi­camente, e sabia mais do Portugal de hoje do que Lívio poderia calcular.

- Vocês têm é que correr com esta canalha deste governo reaccionário e pré-fascista, de joelhos perante o Bush.

A realidade portuguesa, que Lívio julga conhecer melhor do que ele, é bem mais complexa e matizada, mas foi como se levasse um soco no estômago. Ficou sem voz e foi incapaz de o contradizer.

Então, confraternizando com Lívio, o outro espraiou-se sobre a situação mundial e as formas de luta possíveis e impres­cindíveis.

Sentia-se Lívio um farsante a ter de o aprovar com a cabeça ou com monossílabos concordantes, a tal ponto que deu por findo o seu passeio e bateu em retirada, pretextando outros afa­zeres.

Veio de Sintra confuso, atormentado, muito mal na sua pele.

Desapareceu-lhe de casa um quadro valiosíssimo e que, aci­ma de tudo, o transportava a um outro tempo, quase a uma outra vida, era um Pomar da primeira fase, ainda neo-realista, uma raridade. Foi certamente o Joaquim que o roubou.

Chegou a casa à meia-noite e deu logo pela falta. O filho ainda não tinha voltado. Na sala de jantar, em vez dos Ceifeiros do Pomar, estava uma tela com o mesmo formato aproximada­mente, do Cipriano Dourado, que, por falta de espaço apropriado, se encontrava encostada à parede num quarto de arru­mações.

Enervado, percorreu todas as divisões do apartamento. É claro que em parte nenhuma havia qualquer rasto do óleo do Pomar. E assim continuou, sem se sentar, a andar daqui para ali. Por fim começou a trovejar e Lívio foi até à varanda. Do seu vigésimo andar domina-se a zona do Marquês de Pombal, onde se via o céu todo riscado de fogo até aos confins da noite, e quase toda a Avenida da Liberdade estremecia, desaguando num corredor profundo onde, depois dos Restauradores, a luz dos relâmpagos parecia incendiar a Baixa. O negro destino das trevas suspendia-se ali. Lisboa inteira, ou seja, tudo o que dela Lívio via, rendia-se ao sorrir cruel da trovoada. Alguns clarões mais esmaiados eram os cílios da noite a bater, na iminência de uma catástrofe.

Faltava-lhe o ar, mas as descargas eléctricas espaçavam-se, havia iluminados silêncios, angustiantes, entre os trovões.

Por fim começou a chover. Grossas, muito grossas gotas de água. Recolheu-se para dentro de casa mas, pelas janelas abertas, pôde ir olhando a tempestade, o delírio das águas caindo.

Ainda tinha nas pupilas o fulgor dos raios. Fogo de castigo?, ou fogo de perdão?

Quando o Joaquim entrou, levou-o pela mão para o local do quadro roubado. O olhar fugidio dele denunciava-o, mas obsti­nou-se em negar. Jurava pela sua vida e pela de todos os seus entes supostamente queridos.

Lívio apertou-lhe os braços até ele quase chorar.

- Onde está o quadro?

- Que sei eu?

- Confessa, Joaquim, é melhor para ti. Silêncio.

- Empenhaste-o?

- Vendi-o. -A quem? Hesitou:

- Entreguei-o a um amigo. Ele é que sabe vender quadros.

- E quem é esse amigo?

- Ele matava-me se eu lhe dissesse.

- Vamos lá com a polícia. Isso resolve-se.

- Não adianta, pai. São traficantes, ciganos. Cedo ou tarde, matavam-me.

Larguei-o.

Tremia, pálido, envelhecido, desdentado. É um arbusto sem folhas, um dejecto. O meu filho!

Hoje, sábado, 24 de Agosto, dia do seu aniversário, Lívio acordou com péssimo humor. Fruto do seu desacordo actual com a vida e também do facto de ter atingido o limiar da tercei­ra idade que a lei consagra. «Daqui em diante só não passo a ser um idoso, um sexagenário (epítetos que tresandam a diminui­ção e desconsideração, o mundo hoje é dos jovens) porque as minhas funções me libertam do estigma da velhice. Essas mes­mas funções que são a causa real do meu desgosto de mim.»

O que atenuou, embora por pouco tempo, a sua má disposi­ção foi a chegada (anunciada por um enérgico toque de cam­painha) de um colossal ramo de flores, desses que se vêem nas grandes recepções ou em hotéis em festa. O mais colorido e re­quintado de que se lembra. Notou logo o sol das estrelícias e o vermelho vibrante dos antúrios, misturados com lírios raros, suavíssimos, e outras flores.

Foi ler o bilhete que acompanhava o ramo e era da Mafalda. Só ela para estes arranjos e para se lembrar de todos os aniver­sários, neste caso do dele, que lhe mereceu especial apuro.

Até tem um livrinho com a data dos dias de anos dos ami­gos comuns. Se alguém se esquece do seu aniversário perde logo muito da sua estima. Nem Lívio julgava que isso pudesse ser tão importante para certas pessoas até a conhecer.

E, quanto a flores, é mestra na matéria. Com ela aprendeu Lívio a identificar as clematites e as hidrângeas, as viúvas, os golfos, uma infinidade de espécies, e mais, a distinguir com rigor as pétalas e as sépalas, o pedúnculo, o carpelo, o pestilo, os estames.

Sensibilizou-o a oferta (até lhe telefonou logo) tanto mais que nos últimos dias tem andado um pouco desconfiado: por detrás de qualquer vénia ridícula, de um «vossa excelência se­nhor ministro», de uma lisonja parva ou de uma frase minimamente ambígua, adivinha críticas, remoques, acusações – o membro do governo que nada faz, o cérebro inexistente, a sua carência de ideias, de acções concretas, de remodelações, isso tudo e mais e mais.

Mas o pior não é sequer essa atmosfera de descrédito, é a repulsa que noutras pessoas congemina pela sua falta de coluna vertebral. Já devia ter-se demitido.

Mais forte, aliás, do que todas essas razões, efectivas ou imaginárias, do que nele começa a ser mania, ou depressão, é o que vê aumentar à sua volta, adensar-se já não só na teoria mas na prática, a privatização progressiva do sistema judiciário.

É qualquer coisa que Lívio não pode consentir sem dar dois coices. Mas quem é ele para travar esta manobra?! Se já privatizaram, em grande parte, a saúde e prosseguem nessa via... Quem é ele, de mãos e pés atados?!

Hão-de injuriá-lo por ficar quieto, por consentir. Apruma--se dentro de si e diz «não». Mas depois vai-se abaixo. Poria em risco todo o seu universo (para onde se deixou arrastar!), até o bem-estar dos seus.

Claro que não será bem assim, mas a ameaça existe, até nos risos, até nos abraços deles. Ou estará a criar ele próprio o pesa­delo?

 

                             A IRRISÃO DA VIDA

 

Querida Sabina, esta longa carta que vou escrever-te des­tina-se mesmo a ser lida por ti, mas não sei ainda quando ta enviarei, talvez só no momento em que me convencer de que é já tão inútil como um poema, despojada de qualquer intenção.

Somos ambos incapazes de paixões, demasiado atentos ao ridículo de todo o excesso, receosos de desafinar ou de elevar­mos a voz, no teatro da vida em que outros se investem total­mente.

Conhecemo-nos já com o curso das nossas existências muito definido. O que logo me atraiu em ti foi seres como és, parecida comigo, e seres a mulher do Lívio.

Inicialmente, o afecto em que nos íamos enredando ainda me aproximava mais do único grande amigo que tive e tenho, permitia-me conhecê-lo bem fundo, no melhor e no pior.

E fui descobrindo em ti os meus segredos, sonhos, ínfimos desejos e as minhas recusas de contacto com os outros para lá de uma superficialidade risonha e cómoda.

Essa terna e ainda precavida convivência, que tinha muito de um jogo em que os trunfos eram os grotescos do mundo e de nós próprios, transformou-se em qualquer coisa semelhante ao negregado amor quando me dei conta de que o teu corpo adormecido envelhecia só, em vias de estiolar. Isso me como­veu, em meio de tanta coisa capaz de me fazer rir de tristeza, e por isso te quis também sensualmente um pouco, só um pouco, para mim.

Receio, de resto, não saber desejar mais do que isso.

Fui o teu parceiro de ver o circo humano, teu meigo amante entre duas conversas, teu ouvinte enlevado e paciente. Mais es­pírito do que carne? Que querem estas palavras exactamente dizer? Foi um amor muito especial e sempre crescente, até nesta tua actual semi-ausência.

Vou ainda revelar-te alguns segredos. Quem fala pouco, como eu, tem os olhos e os ouvidos mais abertos. Mas essen­cialmente esta carta que te vou escrevendo aos poucos, mista de diário e confissão (já to disse e vou certamente repeti-lo) é um acto de amor, desse amor talvez um pouco pálido mas tão ade­rente, como um filtro atípico que em mim não cabe, porque, como vês, destas folhas extravasa.

Há poucos dias - e isso pesou na decisão de te escrever -telefonaste-me e essa tua súbita necessidade de comunicar comigo provinha de teres enfim descoberto (santa cegueira) a relação do Lívio e da Mafalda.

Jamais alguém te tocara no assunto. Até se percebe. Aliás, não era assim tão importante, tinha havido antes tantas outras. O que o Lívio desperdiçou!

Deves ter notado o meu constrangimento ao confirmar. Tinha boas razões para ficar perturbado. Serei tudo menos denunciante e, ainda por cima, há nessa história uma certa pro­miscuidade que provavelmente te choca. É caso para isso.

Como amigo do Lívio, o maior amigo, seria natural que eu não me envolvesse nem contigo nem com ela. Estranhamente toda essa partilha me aproximou ainda mais do Lívio, como se ficasse a conhecê-lo, tanto quanto possível, ainda melhor na sua intimidade.

Na altura em que os factos ocorreram, reflecti muito sobre a ambiguidade, a dissimulação ou o desaforo desse meu compor­tamento. Mas, à margem das regras e bons costumes, tudo aquilo acontecia e se aprofundava, se justificava na zona claro--escura dos afectos. Depois deixei de me acusar, de me inquie­tar, de me perdoar. Habituei-me às situações. E tive muita pena de perder-te.

Nunca senti que de algum modo pudéssemos vexar o Lívio, ele que foi desde sempre o meu ídolo, aquele que na escola era o mais brilhante, o mais bonito, o mais audaz, que foi meu con­selheiro sem grande êxito em tantos domínios, sempre a empurrar-me para a competição e para a batalha, para a conquista, a mim que sou por natureza avesso a essas artes de força, de manha ou de sedução.

Sei que tu me entendes, sei que temos muito a ver um com o outro em diversos domínios. E que é o teu oposto que tu amas. E compreendo-te perfeitamente.

Também é certo que com frequência me rio de toda esta agitação e mais ainda dos que se levam totalmente a sério, como a Mafalda e por vezes o Lívio. Tu nisto és como eu; mesmo quando sofremos, temos uma forma de escape, a íntima ironia.

Encontrei ontem o Lívio e a Mafalda a saírem do carro do Ministério frente à loja da Armani, onde iam fazer compras.

Vão fazer uma viagem de pouco dias à Sardenha e ela que­ria abastecer-se de toilettes estivais.

Comunicou-me que tencionam inclusivamente visitar Eboli, a terra onde Cristo parou.

- Mas a miséria já não é tanta como no tempo de Carlo Levi -garantiu o Lívio.

- O turismo faz milagres - acrescentou ela.

- À superfície - disse eu.

- Sempre a borrares a pintura...

- Sou assim. Que queres.

Fala-me afectuosamente, mas guardou um ressentimento contra mim. Não tem razão, nunca lhe prometi nada, nem ela afinal queria nada de mim, a não ser diversão, paleio, o sabor de uma infracção, imagino eu.

Quando acabámos tudo, que era bem pouca coisa, ainda me fez umas cenas, à saída da conservatória, para «compreen­der os motivos da minha atitude, nada mais», assegurava ela. Mas eu desarmava-a com duas gracinhas, forçava-a a rir e se-parávamo-nos em clima de relativa paz.

A Mafalda, que não é parva e tem até certo gosto para a pintura, nalgumas coisas descarrila por completo, especialmente quando tem auditório e se empenha em mostrar que viajou muito e sabe falar muitas línguas. Ora no italiano é ela de facto exímia como no inglês, mas acaba aí, porque o seu francês é apenas elementar, dá erros crassos em cada frase, e quanto ao espanhol, a verdade é que apenas arranha mal o portunhol, abre muito as vogais e muda o ão para on, em suma, produz um efeito absolutamente grotesco.

E é assim noutras coisas; quando lhe dá para se exibir, perde a noção do ridículo.

Nunca tive muita convivência com ela, raros encontros a sós, algumas saídas com ela e com o Lívio, mas o suficiente para me confranger com esses assomos de presunção.

De uma vez trocou o nome de Darwin pelo de Swift, a quem atribuiu a evolução das espécies. Foi mais um lapso do que propriamente ignorância, até acabou por se dar conta de que estava a calinar, ao ver-nos sorrir, e ainda se corrigiu, mas, de tão nervosa que ficou, meteu os pés pelas mãos e foi ainda pior. Um desastre.

Com a sua beleza espampanante, encanta o português padrão, amante das carnes copiosas e cabelos de fogo, como os dela.

Mas porque continuo eu a falar-te da Mafalda?

Só se for pelo meu medo de entrar no domínio quase sagrado do que tu és para mim, mais ainda hoje do que ontem.

Há, no entanto, nesta mulher relativamente frívola, embora muito eficaz no seu trabalho, um lado cativante. Se procurar­mos conhecer bem as pessoas, quase toda a gente tem um in­significante compartimento do seu ser onde se aninha uma virtude, irrisória que seja, uma forma qualquer de afectividade, um interesse inesperado por uma manifestação de arte ou por alguma forma de vida.

No caso da Mafalda, há já a inclinação para a pintura. É certo que não produz obras de arte, mas é um modo de expres­são das suas pulsões profundas através de cores gritantes, de ritmos e forças que ela liberta. Mas o aspecto talvez mais curioso da sua personalidade é o autêntico amor pelos animais. Gosta, creio, que de todos os bichos e indigna-se contra os maus tratos de que são constantemente objecto.

Não tem em casa nenhum animal, segundo diz porque lhe morreu um cão que ela adorava, mas dá dinheiro para a União Zoófila e lê revistas da especialidade.

Dizia-me um dia que, embora a sua posição social e até o seu temperamento não lhe permitissem actos terroristas, admi­rava muito a Frente de Libertação dos Animais, esses militantes vegetarianos que de vez em quando partem vidros de lojas e se indignam publicamente contra a extinção dos golfinhos, dos caraculos, etc.

- Mas tu até tens um casaco de peles e usa-lo no inverno.

- É verdade.

- E uma saia de camurça, pelo menos.

- Mas gostaria de me privar dessas peças de roupa. E de deixar de comer carne, até ovos, até leite. Um dia destes resol­vo-me e suprimo tudo isso.

- Mas até lá...

- Pois é... Faz o que eu digo, não faças o que eu faço. Falo-te disto, Sabina, nem sei porquê. Afinal a Mafalda teve

importância nas nossas vidas. Foi ela que te afastou de mim, sem ter culpa disso. Apareceu na minha frente e era uma exten­são do Lívio, primeiro intocável, depois... Numa contagem real, se fosse possivel fazê-la, inclinar-se-ia provavelmente o prato do mal na balança com o peso dos meus actos. Também se cometem crimes por indiferença, por apatia. Mas entre o mal e o bem há tantas semelhanças...

Falo, falo, Sabina, para tocar-te com a minha voz, só que desvio-me sempre do essencial, que é o próprio mistério do nosso relacionamento, da nossa condição. Amo-te e não sabe­ria viver contigo, como não sei sequer viver comigo, nada agarro nem quero provavelmente agarrar, autocondenado que sou a uma solidão calafetada com risos e pilhérias e discursos estéreis.

Vou mergulhar num livro sobre a China de hoje, é a grande incógnita do futuro, e não retomarei esta escrita enquanto não resistir ao impulso de partilhar contigo outras errâncias e bana­lidades, outras coisas irrisórias, por detrás das quais está o meu simples desejo de te falar, de te falar amorosamente.

Já te deste bem conta, Sabina, do nojo de mundo em que estamos vivendo, onde os que dizem defender a paz são os grandes fornecedores de armas? Onde a tão incensada competiti­vidade, apostada em produzir riqueza, gera a miséria de milhões de crianças, famintas e patéticas? Onde a preocupação, verda­deira ou falsa, com a segurança das populações leva à progres­siva restrição de todas as liberdades? Já pensaste que este mundo que à nossa volta se espelha está cada dia pior e que nós nada fazemos? Como é que as pessoas não se revoltam?

E quem te diz isto sou eu, Sabina, hoje paralisado mas que já fui, ou me senti, cidadão de uma pátria generosa. Eu que pu­nha tudo em causa e que hoje estou completamente à margem da vida, que ainda reflicto e critico, mas já nada tenciono mu­dar, no meio das minhas procurações, doações, contratos, tes­tamentos, certidões...

Nunca me orgulhei de mim e agora menos do que nunca. Sobrevivo. Neste fim de Agosto engordurado de calor.

Mas amanhã há-de haver uma brisa, o céu estará um pouco mais azul e eu propor-te-ei tomarmos aquele chá de jasmim que em tempo saboreámos juntos, duas ou três vezes, no Pavi­lhão Chinês.

A linguagem universal da morte que se levanta dos cemité­rios e veste de negro nos enterros, de que eu já fujo, está a en­cher as páginas dos jornais, a ressoar tetricamente na televisão e na rádio mais do que nunca. Ou sou eu que não aguento este excesso de horror frio. Os americanos arrasam cidades inteiras no Iraque, caçam (e torturam) criaturas da sua mesma espécie - a desvairada espécie humana - como se caçassem feras, que digo eu, pobres bichos acuados, que rangem os dentes.

Gastam-se em material de guerra no mundo biliões de dólares para isto, para as chacinas de África, para as perseguições no Afeganistão, os atentados na índia. Se houvesse uma possibili­dade de as pessoas, as pessoas ainda sensatas, falarem umas com as outras, questionarem-se, entenderem-se. Mas não há. O que está em causa, mais uma vez na história, é o domínio do mundo.

E isso parece-me tão absurdo, tão revoltante. Com este di­nheiro desperdiçado em armas, em mortos, dava-se comida aos famintos que há por toda a parte.

Sabina, querida Sabina, que horrível é a gente que manda em nós, lá longe nos centros de decisão e aqui, entre nós, os que os servem e os imitam. Que desconsolo, Sabina, que raiva, que desgosto!

Fui sozinho à Gulbenkian, ouvir um concerto de jazz clás­sico.

Tu dantes gostavas de lá ir nestas noites de Agosto, mas desta vez houve até quem levasse mantas, porque começou a refrescar logo ao fim da tarde. Depois veio um luar frio, glo­rioso, e entre o silêncio e os solos de saxofone, a pedra do anfiteatro ardia de emoção. Reviver o passado é exaltante, sobre­tudo quando o clarinete e o piano ali acordam os frutos ocultos do jardim e as estátuas, o lago, e as plantas têm reflexos de seda e de metal. Ritmos de celebração da liberdade.

Estava eu ouvindo a música, com a minha incurável tendên­cia para investigar ao mesmo tempo as verrugas nos rostos mais poéticos ou descobrir as moscas que pousavam em severas ca­recas, quando avisto a uns três metros do meu lugar a tua Mito com um rapagão alto e sardento, nariz curto e achatado de pugilista, de fato azul-escuro um pouco estreito, a moldar-lhe o físico de gorila domesticado. Vi logo que tinha de ser o diplo­mata húngaro com quem ela vive, conforme me contou o Lívio.

Vieram cumprimentar-me no intervalo.

- Não sabia que gostavas tanto de jazz.

- O António Pedro já não me conhece. Eu até vim ouvir o inverno passado A Paixão segundo São João, de Bach. E reco­nheci-o de longe, muito pensativo.

- Não te estava nada a ver entusiasta de Bach.

- Mas não deixei de gostar de rock nem de funk. -Tanto melhor. Quanto mais ecléctico...

Estavam a chamar-nos para o recomeço do espectáculo. Ela deu-me a face a beijar.

- A sua bênção, tio António Pedro.

Tinha no olhar aquela luz maliciosa com que várias vezes me fitava anos atrás, como a querer dizer: sei mais do que tu pensas...

Agradava-me vê-la parar e ser feliz, mas pergunto-me se a rota dela não será precisamente esta, festa de encontros e de­sencontros e mesmo de encontrões da vida, jogadas perigosas que a excitam, a estimulam a continuar procurando e desafian­do. O húngaro dos músculos olhava alternadamente para ela e para mim como alguém que está fora do jogo, só de passagem.

Tive um sonho. Tu e o Lívio caminham com dificuldade por aquele cais a necessitar de obras porque o chão está enla­meado e há pedras traiçoeiras onde vocês escorregam.

Pelas fendas do silêncio ouve-se o marulhar das ondas.

Vou andando, paralelamente a vocês dois, sem que se aper­cebam da minha companhia.

O cais vai-se tornando inclinado, cada vez mais inclinado, na direcção do mar, e a neblina que vem da barra aumenta de tal modo que já não diviso bem onde acaba a terra e se encontra o vazio.

Alguém uiva à desgraça. Ou será o vento, na velha gare, abrindo portas, estilhaçando vidros?

Crepitam luzes na treva marinha. A orquestra do tempo quase se calou e a morrinha apaga todos os destinos.

Vejo então, Sabina, que te distancias, leve como um véu no mistério da noite, e o Lívio se apressa, corre, para não perder o contacto contigo.

Principias a deslizar pelo paredão de pedra que tomba a pique sobre a negra ondulação lá de baixo. Levanto-me então de mim, da dor dos meus ossos, do pânico de viver que me consome. Abro de repente as asas com que sempre sonhei para te amparar, te receber na tua queda.

Mas os teus grandes olhos cor de cinza dizem-me do meio da névoa que é tudo inútil, que já optaste pela serenidade dos abismos, a outra face do nada.

Que quer isto dizer, Sabina?

Sob outras formas, sempre diversas, este é um sonho meu recorrente.

Telefono-te logo à tarde para te contar uma conversa que tive com o teu filho em circunstâncias muito especiais. Não é fácil de dizer. Até por isso vou já deitar ao papel as impressões que a cena me deixou, para arrumar melhor o que tanto me chocou e me confrange, embora tudo isto seja (se é!) tristemente banal.

Ia a passar casualmente pela Praça da Figueira, vindo do Martinho da Arcada, quando julguei divisar a silhueta curva do Joaquim, num grupo que, apesar de tudo, não condizia muito com ele.

Em torno do sopé da estátua equestre, a meio do largo, ha­via quase uma concentração de jovens marginais, uns deitados no chão ou em cima dos sacos, outros fumando e picando-se descaradamente com seringas que iam de mão em mão. Pares abraçados, mas sem vislumbre de sensualidade, talvez carinho muito desbotado ou simples partilha da desistência, e numa das raparigas uma lividez de morte. Muitos deles estão já mortos em vida.

Seios à mostra, sem pudor nem orgulho. Uma garrafa de vinho circulando também por entre os vultos reunidos sobre o pedestal ou sentados em baixo. O tempo abolido... Uma ado­lescente mais agressiva, ou mais indiferente, de coxas muito abertas e os ténis rotos, fixou em mim o olhar húmido e vago, já o Joaquim havia dado pela minha presença. Desleixo?, deses­pero? Que idade poderá ter esta garota, a única que afinal se exibe, esbofeteando a minha curiosidade?

O mistério das vozes baças, a luz ensimesmada que os emoldura, os pombos habituados aos seus gestos, os cães à vol­ta deles, rosnando ao transeunte célere que os evita, tudo aquilo clama por mudança, não sei já bem qual nem se é possível, que provavelmente já não os salvaria, nem evitaria que uma huma­nidade assim continuasse a surgir, a nascer do erro, da incúria, do abandono, do egoísmo, da falta de esperança.

A ouvir-me falar assim por dentro, acho-me profeta e ridí­culo e também isso me paralisa, me tolhe o alerta que talvez de­vesse dar.

O Joaquim está em conciliábulo com um dos marginais, dos que ainda conservam aparentemente qualquer capacidade de decisão para o bem ou para o mal. É evidente que estão trafi­cando droga e não o é menos que aquele que ali vende a morte não é o outro, mas o teu Joaquim.

Observei-os insistentemente até perder todas as dúvidas.

Por fim, o Joaquim, sentindo-se alvo dessa atenção, em mim inusitada, deixou-o, a arrecadar nos bolsos qualquer coisa que não identifiquei, e veio direito a mim, com uma expressão torva.

- O que é que quer daqui? Agora anda a espionar-me?

- És parvo ou quê? Até aqui tinha piedade de ti. Agora vejo que nem isso tu mereces.

Ia voltar-lhe as costas, mas ele acompanhou-me em silêncio até à entrada do Rossio e, como eu o olhasse com comiseração e talvez até com um resto de afecto (vi-o crescer, como sabes), disse-me:

- Eu estou numa grande dependência dos traficantes, tenho de fazer tudo o que me mandam. E ainda por cima fiz uns exa­mes médicos e fiquei a saber que estou seropositivo. Valerá a pena continuar a viver?

- Depende do que quiseres fazer da tua vida. Ele troçou:

- A quem pode interessar a minha vida?

Não descubro o modo de te pôr ao corrente disto tudo. Mas tenho que fazê-lo. E daí... Creio que não sou capaz. Não, não sou.

Ainda guardo nos olhos a imagem de uma miúda de treze ou catorze anos com um bebé ao colo, como que inconsciente de tudo, que se achava entre eles. Indiferentes, mesmo ao calor, ao sol ou à chuva, creio que também a qualquer apelo ou pres­são interiores. Diria cegos de alma, se não achasse convencional a expressão.

Se precisares, Sabina, do meu apoio, multiplico-me em quatro, em cinco, eu apático, para te ajudar.

Há muito que não ia ao cabo Espichel, onde estivemos jun­tos uma tarde inesquecível, andava o Lívio viajando pelos lagos da Finlândia num congresso de juristas famosos.

Recordas-te? Uma maré de silêncio cobria os campos do poente, as casas brancas ou ocres, a velha estrada que rangia.

O último sopro de sol alourava incrivelmente as moradas da antiga albergaria.

Tudo era harmonioso e era quase irreal de tanta suavidade.

Lembro-me ainda do que tu dizias e do que eu calava sobre ânsia de eternidade. Lembro-me do santuário da capela e dos ex-votos, mãozinhas toscamente esculpidas, pernas, até um sexo envergonhado.

Lembro-me do lento sorrir dos teus olhos imensos, dos pro­jectos que não tecíamos e me doíam na garganta. Da minha sede de amor espelhada no mar. Da secura da palma das minhas mãos. Do sabor a nunca da mão que me entregaste e eu levei de vagar ao peito com tanto medo do ridículo. Do cheiro da terra, que ainda não queria anoitecer. Lembro-me do ponto final do teu olhar, depois de veres as horas, remetendo-me para a tris­teza do meu destino.

E lembro-me das crianças sujas e lindas que rodeavam o meu automóvel, pedindo moedas, ante os nossos gestos de par­tida.

Estranhei o Lívio ao encontrá-lo em casa do Acúrcio Men­des, que é o carola das nossas reuniões de curso e tinha convi­dado meia dúzia dos que ele considera mais imaginativos para gizarem um programa diferente do habitual. O Lívio, justa­mente por ser ministro, quis comparecer, não fossem tomá-lo por pavão. No fundo, bem o sei, estes encontros pouco lhe dizem. A vida modificou-nos tanto, criámos hábitos tão dife­rentes dos antigos, alguns até mudaram de ideias e de amigos. O certo é que o Lívio não faltou. E logo ao primeiro olhar, e de­pois durante toda a reunião, fiquei com receio daquilo que eu menos podia desejar, que alguma insinuação da Mafalda nele tivesse levantado suspeitas sobre a nossa relação.

Nunca me olhou a direito durante a reunião. E essa sua ati­tude, de repente, causou-me uma dor tão funda e inesperada. Jamais imaginei que isto pudesse acontecer. Que o Lívio algum dia me detestasse. Mas é lógico.

Tu, querida Sabina, ficas advertida.

A Mafalda é certamente um tanto calculista e bastante fútil, mas não a estou vendo a fazer intrigas. Tanto mais que nunca lhe prometi nada, ela é que tomou a iniciativa. Tudo foi cor­recto entre nós. É certo que te inveja, isso sim.

Mas pode ser que eu me tenha enganado. O Lívio anda aca­brunhado, esquisito.

No final da reunião, fiz-lhe perguntas sobre o Ministério e respondeu-me sem acrimónia, mas laconicamente, friamente.

Tornando à Mafalda, o pior é que ela é de comportamento inconstante. Já a vi ofender e depois balbuciar desculpas ou passar da blandícia à vertigem. Julgo que a minha saída pe­remptória, mas discreta, da sua existência não lhe fez grande mossa, apenas arranhou o seu brio de mulher.

Chamou-te uma vez diante de mim «santinha de pau carun­choso» e eu repliquei que ela é que era uma mártir barroca a carpir-se, o que a escandalizou.

Mas basta de Mafalda.

Perdoa-me, Sabina, importunar-te com estas ninharias. Mesmo a reacção do Lívio, não faças caso, pode ser resultado das minhas lentes de aumentar.

Eu sei o que ele continua a significar para ti.

Estou a olhar a Avenida da República de uma das janelas do meu apartamento, que faz esquina, permitindo-me observar também, do outro lado e mais de perto, a Elias Garcia.

Há janelas sem conta nestas casas cheias de frontões, de varandas e colunatas, de toda a espécie de ornatos barrocos.

Janelas cheias de olhos. A curiosidade da vizinhança é infi­nita.

Há noutro prédio uma rapariga que se veste e se despe inva­riavelmente de janela aberta para mostrar ao sol da rua a beleza do seu corpo.

Há também sombras mascaradas de alegria na esquina dos edifícios com grandes flores de pedra.

Nunca amei tanto a luz como nos dias em que vinhas estar comigo; todas as coisas tinham mais realidade do que aquela que o nome lhes confere.

Tu, serena e angustiada como és, curavas-me. Senti-me pela primeira vez eu e não uma coisa para aqui. Com um infi­nito pudor de te dizer esse milagre, que nem para mim ousava definir.

Tardes em que mordi a vida como quem morde um fruto agridoce e precário, com o sabor universal de que eu estava excluído.

Ríamos de tudo e de nada, maldizíamos ao de leve, brincá­vamos com as pessoas ausentes e com as palavras gastas, tro­cando-lhes os sentidos. Inventávamos para nós caricaturas efé­meras.

E naturalmente fazíamos amor, sem atribuir a isso uma grande importância. Na aparência.

Espantávamos a morte que vive em nós. Comentávamos os livros que emprestávamos um ao outro.

É possível que alguma vez te tenhas sentido extraviada nesta fuga ao silêncio e à dor que eu era para ti.

Quando adivinhava essa nuvem na tua fronte, tornava-me clown e inventava anedotas, xistes políticos ou fazia cantar algu­ma esperança remota através da minha voz. Fazia arder Lisboa, os seus farsantes solenes, os seus vícios recatados, suas men­tiras, numa fogueira de palavras.

Fazia luz da minha penumbra habitual.

E é em tudo isto que penso, Sabina, antes de fechar a janela sobre o cortejo dos automóveis e dos peões pobres de existência estafada, antes de volver à nudez do meu escritório e de me unir a esse silêncio.

Estou pensando em ti, Sabina, que és há muitos anos a ou­vinte privilegiada dos meus desconchavos cáusticos ou burles­cos e tão raramente de desgarradas confidências.

Hoje que vi na conservatória um catraio com um braço en­gessado recordei-me de um passeio ao campo citadino em que também eu parti um braço ao tentar subir por um pinheiro acima.

Nunca considerei a minha pessoa suficientemente impor­tante para te contar que não tive praticamente infância, a au­têntica infância dos que nasceram na aldeia, muito perto da na­tureza. Fui um menino de Lisboa, filho único e tardio de pequeno-burgueses de tradição republicana, que me resguarda­ram dos perigos da rua, tanto que cheguei à escola atrasado e indefeso, sem me assustar propriamente com a violência dos outros, mas espantado perante a sua agressividade, incapaz de reagir de início aos empurrões e às vociferações cruéis.

É claro que essa minha passividade atónita durou pouco. Aprendi de repente a dar socos, mas reservava-os (e eram duros) para as grandes ocasiões.

Vivia quase à margem da algazarra, até que tive de apren­der, por discrição, a fingir-me igual aos outros. Mas falava pouco, era - diziam - inexpressivo, metido comigo, fechado a cadeado. Infeliz, desacertado com a vida, com todos os ritmos da conquista do poder.

Foi preciso o Lívio aproximar-se de mim para eu concorrer com os outros e esporadicamente arranjar namoradas, tão pouco namoradas, e engates de ocasião.

Aderi, isso sim, com veemência às lutas estudantis e depois ao MDP, furtando-me sempre a qualquer liderança ou primei­ro plano. Fui sempre e sou, como vês, um homem voluntaria­mente apagado, sem vínculos fortes a coisa alguma.

Vendo a vida passar ao lado. Com alguma capacidade dis­cursiva, valha a verdade, e certo jeito para transgredir a língua.

Sobre mágoas e irrisória solidão, sobre o meu complexo de inferioridade nada acrescento. Acho que podes imaginar-me a rever o meu percurso adolescente diante da criança com o braço ao peito, que não chorou, como eu não chorei quando caí do pinheiro.

Mas estou para aqui a falar, a falar do pobre de mim e o meu objectivo era transitar rápido do solilóquio ao diálogo, para te comunicar - se calhar até já sabes - a última da Mito. A tua filha é muito acelerada e ultimamente tropeço nela a cada passo ou nos ecos que vai deixando.

Dir-te-ei apenas o que menos possa afligir-te. Ou tudo, consoante a tua reacção. Talvez amanhã ou depois. A Mito agora já vai nos ares, voando para Bogotá.

O caso é que deixou o seu diplomata atleta a contas com os negócios da Embaixada e com o direito comunitário, que ele já anda a estudar, para embarcar, mesmo grávida como está, para os céus da Colômbia. O eleito desta vez é um jornalista, pare­cido fisicamente com o Garcia Marquez, que se tornou aqui persona non grata e a quem uns atribuem cumplicidades com o narco-tráfico, outros simpatia pronunciada (e bem mais peri­gosa para ele) com as FARC.

Contaram-me os que a viram no Aeroporto que partiu feliz, como quem vai para uma festa, muito abraçada ao seu herói.

Aqui tens, Sabina (lerás isto um dia), o que te vou dizer amanhã, talvez depois, no todo ou em parte. E, como se fosse mesmo numa carta, recebe o meu beijo triste-alegre.

As notícias que me dão do Lívio são más. Discute com toda a gente, por questões sérias ou por dá cá aquela palha, anda de mal consigo e com o mundo. O contrário do intelectual olím­pico e sedutor que todos conhecemos.

Só não lhe telefono porque o pressinto voltado também contra mim e ponho-me a congeminar em azedos interrogató­rios, a que não sei como responder.

Saio da conservatória, onde sou cada vez mais uma presen­ça silenciosa (certos dias apenas dou instruções de serviço) e faço por apresentar um sorriso no rosto; e regresso a este silên­cio do meu conforto e dos livros, dos discos que me ajudam a viver.

Vou fazer amanhã sessenta e três anos, e tu, Sabina, não te lembrarás certamente dessa irrisória data (até eu quase a esque­ço)!

Às vezes o silêncio apodrece nos meus lábios. Sempre a olhar para dentro, já não tenho horizonte que não seja a tristeza mansa de viver. A pesada alma destas salas de pé alto, cheias de memórias, incomoda-me à noite. Desencantado desde sempre e velho antes de tempo, leio (nem sempre todos) os jornais es­trangeiros que ainda compro e onde se espraiam a miséria e a exclusão social criada pela globalização dos grandes capitais. Indigno-me, mas até o riso feroz se descompõe na minha face a apagar-se mais.

Pergunto-me se o Lívio, que decerto andou sempre adiante de mim, alguma vez acreditou profundamente nas ideias que melhor do que eu ele exprimia e que continuam a ser, apesar de muitos fracassos e desabamentos, as referências do meu pensamento, da minha vida.

Estou a ouvi-lo hoje e no passado e não quero pôr em causa a sua autenticidade. Será que o silêncio encurta as distâncias?

Incapaz de acção se não for estimulado, sinto mais ainda, agora que receio perdê-lo, a falta desse companheiro de ontem e de sempre, que chegou a ser a luz que me guiava.

Nunca vacilei por medo ou conveniência, apenas fiquei à margem por fadiga minha e imitação dos mais, que a jornada é custosa e a mudança parece vir longe.

Censuro-me por isso, mas sem energia, refugio-me no hu­mor, quando estou com os outros, em casa o riso cai e deixa--me mais só.

O País está de rastos e o governo a vender o resto do seu pa­trimónio, amanhã podemos ser uns párias, os mais ricos tornar--se-ão estrangeiros, de certo modo já o são. O modelo neo-liberal vai esgotar-se, mas até lá Portugal irá de mal a pior. A menos que... Nem sei.

Tudo isso me dói quando fecho a televisão ao ver aparecer certos políticos ligados a um triste passado evocarem beata­mente glórias de Portugal.

A vida são sonhos que vão morrendo. Alguns não morrem completamente.

Chuvas ainda mornas de Setembro. O clima mudou. Até isso nos roubam os senhores do mundo, insensíveis ao protocolo de Quioto, e os outros que os imitam, logicamente.

Um regresso ao caos. Lento, mas não tanto que nos poupe à antevisão das catástrofes. Até sabe bem a ideia de morrer antes.

Hoje haverá para as terras um alívio de águas caindo. Num vaso da minha varanda existe uma flor gelada, quase reduzida a sombra, sem lágrimas, minha parente. Nem sequer sorri à ténue luz da chuva.

Deixei há muito de ler trabalhos jurídicos. O Lívio empur­rava-me para o doutoramento, para a cátedra que ele visionava como o natural remate de uma carreira que não era a minha. Não me imagino a julgar, a sentenciar nem como magistrado nem como professor. Graças a ele, em boa parte, obtive o car­tório, onde me instalei numa rotina que não tem certamente o suave resplendor horaciano, apenas uma mediocridade obs­cura, mas aceitável.

Já soube muito de Direito, é verdade, e esqueci-o com al­gum prazer e desconforto ao mesmo tempo, à minha maneira.

Evito pensar no Lívio, mas a sua voz alta e clara, a sua ima­gem protectora, a sua mão estendida, com um dedo a apontar o futuro, vêm ter comigo. Não é remorso, consciência de um erro, que não lamento; é sim um intenso sentimento de perda, que faz transbordar outras mágoas, receios, frustrações, fantas­mas removidos para o porão onde escondo o mais turvo de mim.

Rememoro férias que passámos juntos no Algarve, ainda estudantes, na mesma casa. Convivia todo o dia com ele e com os pais. Estou a sentir a vibração das cigarras e o seu zangarreio no ar morno, o cântico do mar, a livre chama das ondas ao meio dia. E também os cheiros da terra, a doçura agoniante das alfarrobas, árvores carregadas de frutos e a doçura dos figos, o ouro das laranjas, os ralhos da mãe do Lívio quando ficávamos dentro de água até ao pôr do Sol.

O cricri dos grilos, à noite, tranquilizava-nos. E as artérias do vento batiam, quando o tempo mudava.

Foram umas férias divinamente azuis. Ia a dizer «de límpida felicidade». Mas límpida não. Eu, apesar de tudo, escondia sempre alguma coisa, alguma secreta enfermidade, de que nem me dava bem conta.

Sabina, o apelo irresistível que me levou para ti tem a ver não só contigo, a única capaz de me preencher, mas com algu­ma carência profunda que não consigo sondar.

Sempre te amei, Sabina, desde que te conheci. Ou melhor, queria-vos um imenso bem, a ti e ao Lívio, os amigos quase perfeitos a que o meu sentir aspirava. Depois aconteceu-me ver-te como mulher, só tu, em névoa tépida, como alvo do meu desejo, da minha complexa libido.

Quiseste terminar o nosso caso bem depressa e sem razão que na altura eu descortinasse. Voltaste ao silêncio, à suave in­diferença exterior, ao sossego magoado da tua existência.

E eu respeitei essa tua decisão, como respeitei todos os teus desejos e as tuas áreas proibidas.

Voltámos pouco depois à branca amizade sem mais, esque­cendo, tu pelo menos, esse período tão luminoso, semelhante ao fulgor das estrelas que se acendem e se apagam.

Apenas uma vez me deste um sinal bem nítido de te lembra­res quando, sem uma palavra, me meteste na mão um cartão escrito no computador, sem assinatura, que dizia:

«Não te culpabilizes nem me culpabilizes. Eu não tinha ou­tro caminho senão o da solidão absoluta.»

Ouço o zunir do vento lá fora e dentro de mim. Como era diferente das outras a tua carne surpresa e ferida, tão pouco afeita à mudança, ao gosto de outras carícias.

Sempre duvidei de estar à altura de ti. A tua elegância per­turbava-me, o teu olhar tantas vezes ausente comovia-me. Houve sempre uma distância, o que talvez até aumentasse o encantamento.

Agora já se entremostra lá fora um sol nublado. Detesto os sábados, com tantas perspectivas a imporem-me alguma coisa boa ou nova, que vou sucessivamente enjeitando. Há uma pali­dez dourada nas poças de água que se acumularam nas depres­sões dos passeios da Avenida da República, onde aparecem ainda retardatários rumo às suas férias. Folhas precocemente secas surgem já debaixo das árvores.

No coração da alegria nunca morei, mas conheci dias me­lhores, não é assim, Sabina?, às vezes o mundo renasce diferen­te (quando o será outra vez?) e então toda a luz fará ninho nos verdes ramos das árvores. Haverá torres de neve nas noites escuras, as vagas do oceano não assaltarão as margens, rolarão o segredo da ventura sobre areias que suspiram.

E o lodo torna-se prata. Se pudéssemos voltar atrás. Se vies­se outra vez Abril. Se tu voltasses para mim. Se o Lívio me sor­risse... Se os impossíveis se desfizessem... Ou repousar serena­mente.

Aconteceu, Sabina, aconteceu o inesperado. Para lá de to­das as previsões, para lá de tudo o que pudéssemos ambicionar. O Lívio estoirou com o governo. Já deves sabê-lo porque algu­mas televisões e rádios estão a repetir a notícia.

Calculo que rejubiles como eu. Demitindo-se como se de­mitiu, liquidou a estabilidade deste governo, que prestígio já pouco tinha.

Resta ver agora o que vai acontecer.

Na RTP, à hora do almoço, acusou frontalmente o primeiro--ministro de estar há muito a querer privatizar a justiça. E que o processo agora estava a acelerar-se, com a introdução da gestão privada em muitos tribunais e outros métodos capciosos de do­mínio do capital em todo o sistema judiciário e penal. Não con­segui apanhar tudo o que ele dizia, porque havia ao meu lado pessoas a falar alto, uns a favor outros contra.

Na SIC foi ainda mais violento, porque fez ataques gravíssi­mos ao governo, afirmando que havia entre os ministros em­presários e gestores que continuavam a zelar afanosamente pelo enriquecimento das suas empresas. E foi mesmo mais longe, referiu-se a planos para enfeudar na prática os tribunais ao grande poder financeiro. Haveria até quem quisesse sem demora legislar nesse sentido.

Eu já sabia disso, mas os jornais nunca tinham explorado o assunto desta maneira, com acusações gravíssimas, descendo ao rigor dos números e sugerindo nomes.

Que lhe terá dado para virar assim quase trezentos e sessen­ta graus... Tê-lo-ão ofendido? Arrependeu-se de repente? Porque muito do que ele disse era já do nosso conhecimento. Só que não vinha a público.

Parecia absolutamente seguro de tudo o que revelava, sem levantar a voz, a cabeça alta, o tom pausado, excepto no final, em que ganhou um certo calor ao afirmar que se demitia para poder dormir de consciência tranquila.

O discurso de um político ao ataque. Que deve ter um tre­mendo impacto. E foi preparado para isso.

Fiquei orgulhoso do nosso Lívio, Sabina. Era o mesmo de antes, até mais persuasivo, mais acutilante. O grande advogado quando se torna tribuno.

Imagina que estava a ouvi-lo, durante o almoço, num snack--bar, e alguns clientes pediram aos empregados para subir o som, ninguém ousou protestar, a sala inteira suspensa das pala­vras do Lívio. Se me orgulhei dele!

Mas não sei se o felicite, se me cale.

Ele não ignora que estamos com ele, todos os que vivemos ao seu lado, que o conhecemos como homem e cidadão, na ju­ventude, no exílio, na vida forense, no seu comportamento pe­rante os ataques à democracia. E a riqueza e a dignidade do País estão a ser vendidas em saldo.

Até já estou quase a usar as palavras que ele usa e não as minhas habituais, mais frias, mais distantes.

Isto é contágio, caramba.

Não é todos os dias que se vive um acontecimento assim.

Vou telefonar-te, Sabina, preciso de conhecer a tua reacção, as tuas emoções. É impossível que não saibas já.

O Lívio não me telefonou. Era a mim, aliás, que cumpria fazê-lo.

Vi-o de relance em condições totalmente novas. Houve an­teontem uma concentração de intelectuais no largo do Chiado contra mais ameaças de privatizações em vários domínios. For­mou-se uma pequena multidão. Afinal havia de tudo, bastantes operários também, não sei se convocados pelos partidos, e até reformados, bem reconhecíveis. Gritaram-se slogans. Eu não. A verdade é que só muito raramente, e noutros tempos, o fiz.

Descemos pela rua do Alecrim até ao Cais do Sodré e, avançando penosamente, em passos curtos, pela rua do Arse­nal, chegámos à Baixa, em direcção à Praça da Figueira. Foi aí, já próximo do palanque preparado para os discursos, que avis­tei o Lívio, na assistência, muito aprumado e sério.

Mas, quando me viu, ergueu um braço e os seus olhos en­cheram-se de luz num sorriso, que durou pouco, porque logo os desviou, como se caísse em si.

Eu tinha correspondido ao aceno e ao sorriso, preparava--me para lhe gritar a minha alegria, a minha gratidão, toda a so­lidariedade que nestes dias vibrou em mim.

Não chegámos pois a falar. É agora um facto consumado a separação das nossas vidas.

Estou neste momento no Algarve, em Cabanas de Tavira, por sinal muito perto da casa dos pais dele, já falecidos, onde passei aquelas férias grandes que nunca olvidei e onde tu, Sabina, vieste depois algumas vezes com ele.

Percorri os mesmos lugares e dei outros passeios, sempre a vê-lo e a ti, como fada do lugar que deves ter sido.

Atravessei a Ria Formosa num barco de pescadores e fui, pelo meio das dunas, semeadas de arbustos bravios, até à praia. Havia amanhecido há pouco aquele areal onde nenhuma nuvem apagava o sol. A glauca murmuração do mar, golpeado de branco pela brisa, estendia-se por uma superfície imensa.

Respirei a plenos pulmões o passado, essa amizade tão con­sistente, em que eu era o émulo do Lívio quando vencia a pre­guiça de viver. Essa preguiça que é agora dor.

- Não tens nada que me imitar - disse-me ele um dia, com boa intenção. - Tens que ser apenas tu, com muita força.

E quem sou eu?, pensei, sem dar resposta.

As gaivotas ainda são as mesmas, quer dizer, exactamente iguais nos seus voos, e os mosquitos da ria, a atenazarem-nos, tão-pouco se alteraram.

Há agora, sim, barracas às listas e guarda-sóis de colmo, que dão sombra morena, e até há instalações sanitárias no si­mulacro de recepção.

Uma tarde o Lívio e eu lutámos, porque ele queria pôr à prova a sua força, e depressa me encostou os ombros à areia.

Não me aviltou ser o vencido, nem sequer me desgostou, era tão natural. Ele ensinava-me golpes e defesas que nunca uti­lizei nos meus raros confrontos físicos. Longe estava de prever que mais tarde havia de envolver-me secretamente com a mu­lher que o Lívio amava, talvez, mas à distância, ele vadiando com outras, ela a trabalhar na sua repartição ou em casa à espera dele.

De tarde vou para o mar numa lancha a motor, o tempo azul e redondo ondula, o barco empina-se sobre as ondas, cai irregular a luz sobre os meus fantasmas e saudades, vislumbro entre duas águas o teu rosto, Sabina, a magreza tocante das tuas espáduas, os teus seios de ontem, pequenos e tímidos, em feitio de meias laranjas.

Tinha sempre a impressão de poder quebrar esse teu corpo frágil com gestos meus mais agressivos, como acabam por ser sempre os da união sexual.

Agora concluo que te amei totalmente, evitando jogar um jogo tão sensual como mental. Mas onde fica a linha divisória dessas categorias quando no jogo se investe afinal encoberta­mente todo o ser?

Como vês, penso em ti, Sabina, vagueando pelo nada destas dunas, onde por milagre encontro a doce tranquilidade de um aloendro, as suas flores roxas, que imagino em extinção.

O mundo foi sempre afinal dos mais poderosos, dos mais fortes, dos mais ricos. Mas Cristo e Francisco, Marx, Gandhi e Guevara vieram dizer-nos que não e apontar outro horizonte. Só posso continuar a sonhar, agora que aquelas nuvens precur­soras do Outono, nesta tarde ainda cálida, nos anunciam a con­tinuação da batalha perdida. Ou a noite branca dos cegos. Por­que olhar infinitamente, com olhos de ver, este espectáculo de torpes e curtas ambições e televisites da vaidade à nossa volta sempre e sempre, não aguento. Ao menos sonhar que intervenho, que esta pouca coisa que sou ao menos empurra nem que seja ao de leve os mecanismos da mudança.

Eternamente propenso a colocar a fasquia mais alta do que eu consigo saltar.

Cá vou, Sabina, palmilhando com as minhas sandálias este solo arenoso e traiçoeiro das dunas e da vida, de olhos postos no horizonte, para lá da Ria Formosa, e em ti, amada fria, que te distancias da tua margem, incrédula de todo o sonho, e ape­sar de tudo o vais seguindo, como nós.

Olha, uma garça irmã da luz esvoaça sobre as águas paludo­sas. É nossa amiga também, como diria o Zeca Afonso, e vai possivelmente, e sem o saber, levar o sopro da vida ou a sua ilu­são a outros seres iluminados, animais sedentos, folhas encharcadas de sol, bosques despenteados, insectos e outras formas da natureza que todos somos.

O ar mexido, o facto de pouco ter dormido e querer enxotar tristezas, a comoção de todas as coisas que estou vendo e sen­tindo empurram-me para ti, tão longe. Tu que nunca falas assim (e eu raramente), mas que avistas também a beleza (e tantas vezes a crueldade) desta absoluta união de todas as parcelas da vida.

 

                                                                                Urbano Tavares  

 

                      

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