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APAIXONADA PELO CHEFE / Cathy Williams
APAIXONADA PELO CHEFE / Cathy Williams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

APAIXONADA PELO CHEFE

 

Quando os negócios se misturam com o amor...

Alice era o braço direito de Victor em sua bem-sucedida agência de publicidade. Ele confiava nela, e evitava qualquer complicação amorosa com sua eficiente secretária, embora fosse solteiro e sozinho. Para ele, Alice era perfeita em seu escritório, mas nunca em sua cama! Durante uma viagem de negócios, porém, Victor percebeu que Alice era uma mulher encantadora, sensível e sensual. Segundo ela, apaixonar-se pelo chefe era falta de profissionalismo, até que um dia ele a beijou, e o relacionamento entre os dois tornou-se deliciosamente perigoso...

 

 

Alice empurrou a porta de vidro que dava acesso ao prédio de escritórios. Imediatamente expe­rimentou a confortável sensação de estar em casa. Ela retor­nava de uma quinzena de férias em Portugal, onde desfrutara de duas semanas de calor, mar calmo, céu azul e drinques em volta da piscina na companhia da garota com quem dividia o apartamento. No fim desse período, voltara para encontrar uma fria e cinzenta Inglaterra, que saía lentamente do rigoroso inverno para uma indecisa primavera.

Poderia ficar aqui para sempre — comentara sua amiga Vanessa a quatro dias da volta, odiando a idéia de que as férias estavam por terminar.

Você nem agüentaria olhar para a piscina depois de um mês — dissera Alice, espalhando um creme bronzeador pelo corpo, na esperança de adquirir pelo menos uma aparência saudável. Magra e de feições comuns, havia tempo que ela abandonara qualquer ambição de ser uma mulher glamourosa.

Está bem — replicara Vanessa. — Para sempre talvez seja exagero, mas duas semanas a mais seriam muito bem-vindas.

Alice concordara educadamente, porém aqueles quinze dias tinham sido suficientes para ela, que já ansiava por voltar a sua mesa de trabalho em Londres.

Agora, caminhando pelo saguão até os elevadores, ela pensava aliviada no escritório como um refugio para sua monótona vida pessoal. Tinha trinta e um anos, e não era preciso muita imagi­nação para ver a si mesma dentro de dez anos: uma solteirona reclusa em sua casa nos fins de semana, esperando a salvadora segunda-feira chegar. Não era uma perspectiva agradável.

Como sempre acontecia em momentos assim, Alice sepultou o pensamento no fundo de sua mente. Tinha havido uma época em que ela saía e se divertia com entusiasmo, quando fazia planos para o futuro e alimentava ingênuos sonhos de amor. Tudo parecia tão distante que ela mal se recordava da jovem feliz que tinha sido.

Ao abrir a porta do escritório, ouviu o som de um telefone sendo desligado com raiva. O ruído vinha da sala contígua, ocupada por seu chefe.

"Era disso que sentira tanta falta?"

Estava pendurando o casaco quando o chefe abriu a porta de ligação interna e encarou-a com os braços cruzados e uma expressão de fúria no rosto.

Alice olhou-o sem perder a calma, quase indiferente. Ao longo de um ano e meio, já se acostumara ao mau humor de Victor Temple. Apesar de seu temperamento agressivo, ela nun­ca se deixara intimidar. Talvez por isso mesmo fora contratada no emprego, após somente três semanas de experiência.

— Bem, acho que nem preciso perguntar se você se divertiu.

Ela caminhou até sua mesa e ligou o computador.

— Foi muito agradável, obrigada. — Alice olhou para Victor e impressionou-se, como sempre, com sua energia vital e im­ponente presença física.

Tudo nele chamava a atenção, mas isso ia muito além dos traços bonitos, dos cabelos castanhos, dos olhos cinzentos e da musculatura definida. A sedução de Victor vinha mais de sua segurança interior, da maneira como falava, do poder que emanava de sua figura.

No começo, Alice ficara espantada com as reações de pessoas estranhas à presença de Victor. Ele a levara para almoçar algumas vezes, na companhia de clientes, e ela percebera como Victor atraía a atenção de todos. Quando entrava em um restaurante, os olhares o seguiam, as mulheres se voltavam para observá-lo melhor.

— Passou os dias torrando-se ao sol? — ele indagou com óbvio exagero. Alice estava apenas discretamente bronzeada.

Ela pensou, não pela primeira vez, que graça havia em tra­balhar para um homem que simplesmente desconhecia o con­ceito de amabilidade.

— Foi bastante relaxante — ela disse, recusando-se a co­meçar uma discussão. Victor havia se posicionado bem em fren­te da mesa dela, e Alice, após um suspiro profundo, começou a trabalhar. Examinou rapidamente o pacote de correspondên­cia entregue pela recepcionista, e com inegável eficiência pinçou os envelopes que Victor gostaria de examinar pessoalmente.

Por mais carrancudo que fosse, Victor confiava nela. E a publicidade era um negócio baseado na confiança mútua, em­bora alguns clientes e colegas de trabalho fossem tão tempe­ramentais quanto o próprio Victor. Alice sabia que ele a con­siderava eficiente em lidar com egos tão sensíveis.

Em retribuição, recebia um bom salário. Melhor do que a média do mercado para secretárias executivas. Se deixasse a empresa, como manter seu nível de conforto? Férias no exterior, um bom apartamento, jantares em restaurante caros de vez em quando, e até mesmo roupas sob medida, se quisesse. Aliás, se fosse vaidosa, não abriria mão de figurinos especiais, pois as confecções prontas encontradas nas butiques e grandes ma­gazines geralmente exigiam grandes acertos para vestir bem seu corpo magro.

— Ao menos um de nós teve uma boa quinzena — Victor sentenciou com sua voz grave, sugerindo que a quinzena dele tinha sido um pesadelo.

— Muito movimento por aqui? — ela perguntou, desviando o olhar da tela do computador para o rosto contrito dele. — Como está a campanha da Finner? Assinaram o contrato?

— Há poucos dias. — Ele sentou-se no canto da mesa e manteve uma das pernas apoiada no piso. — Mas não por causa da substituta temporária que você arrumou. Cabecinha-de-vento. Foi um desastre.

— Isso me surpreende. Rebeca tinha boas recomendações da agência — protestou Alice. — Do contrário, não a teria escolhido.

Ela franziu a testa, olhando firme para Victor. Podia imaginar o que havia acontecido. Não teria sido a primeira vez que moças qualificadas se comportavam como adolescentes confusas diante das ordens que ele expedia como balas de uma metralhadora, enervando-as com seus sinais claros de impaciência.

— Essa agência de que você fala parece especializada em idiotas!

— Não exagere, Victor. Acha que eu escolheria alguém in­competente para me substituir? Ficaria tão preocupada que nem iria aproveitar minhas férias. Voltaria em dois dias! — Olhou rapidamente para a pilha de pastas no canto da mesa e teve de admitir que ali se concentrava o trabalho de duas semanas.

Victor seguiu-lhe o olhar e fez um ar triunfante.

— Aí está a prova. A garota mal sabia datilografar. Ficava fora de si quando eu queria ditar uma simples carta.

Alice visualizou a cena. Victor ditando, o telefone tocando sem parar, funcionários da agência interrompendo a todo ins­tante. Pobre garota. Da próxima vez, pensou Alice, escolheria alguém mais velha, que não perdesse a cabeça diante das ri­gorosas exigências de Victor Temple.

— Não precisa me olhar assim — ele disse com uma ponta de irritação.

— Assim como?

— Você parece me atribuir a culpa pelo mau desempenho da substituta. Eu me considero uma pessoa bastante razoável.

Alice reteve o riso ante a observação do chefe.

— Absolutamente. Está tudo bem — ela murmurou. — Posso trazer-lhe uma xícara de café?

— Leve-a para minha sala. Quero que me ajude a pôr em dia a correspondência. Acabamos de ganhar um novo cliente. Um tolo que quer uma campanha discreta para seu empreen­dimento imobiliário. Ele se recusa a ser atendido por outra pessoa que não eu.

— Empreendimento imobiliário?

— Porei você a par de tudo, não se preocupe.

Ele ergueu-se e arrumou os cabelos lisos com os dedos. Alice imaginou que estranho destino a colocara ao lado de um homem tão irresistivelmente atraente como Victor Temple. O rosto anguloso transmitia certa arrogância, mas também revelava uma clara sensualidade, que se expressava na boca bem delineada, nos olhos escuros e um tanto estreitos, na graça felina de seu corpo. Nunca fizera ginástica e provavelmente não reconheceria uma academia se entrasse em uma delas, mas os músculos eram naturalmente bem torneados. Podia-se adivinhar um cor­po esguio e atlético debaixo do terno elegante.

Seria por isso que trabalhavam tão bem em conjunto? Alice era capaz de reconhecer, de um modo quase clínico, que Victor era agressivamente bonito, mas isso não lhe causava nenhuma impressão especial. Homens altos, morenos e simpáticos estavam na lista de pessoas que ela instintivamente evitava. Já havia co­metido um engano nesse sentido, mas nunca mais repetiria o erro.

Em compensação, a simplicidade de Alice também não des­pertava o interesse masculino de Victor. Ele costumava sair com mulheres sensuais, mesmo que pouco dotadas intelectual­mente. Parecia satisfeito em trocar de companhia todo mês, mas tinha o bom senso de nunca namorar uma funcionária.

Sua última secretária, que deixara a firma seis meses antes de Alice ser contratada, ainda era lembrada pelas colegas como uma megera de meia-idade, que usava saia de lã xadrez e sapatos fechados mesmo no verão. Temperamental, desentendera-se com a totalidade das funcionárias, que exigiram sua demissão.

Alice tinha consciência de que Victor apreciava sua inteli­gência e sua falta de atrativos sensuais. Dependendo do ponto de vista, era algo elogioso ou frustrante. Mas ela aceitava a situação com alívio.

Quando Alice entrara na sala dele, Victor estava ao telefone, reclinado para trás na cadeira giratória. Indicou-lhe a cadeira para sentar, mantendo os olhos nela.

Alice sentiu-se perturbada, tomando súbita consciência de sua aparência simples. Não havia a mais leve sugestão de sensualidade no olhar dele, mas sem dúvida existia um ines­perado toque masculino de aprovação. Quase imperceptível, mas suficiente para ser captado por seu subconsciente. Talvez o discreto bronzeado que ganhara nas férias estivesse operando um pequeno milagre.

Ao sentar-se, Alice alisou a saia com a mão e contemplou pela janela o céu nublado e opressivo. Bronzeada ou não, ela não precisava de um espelho para saber o que lhe faltava. Seus cabelos lisos e compridos, caindo pelos ombros, eram real­mente bonitos, mas emolduravam um rosto pequeno, sem ossos salientes que lhe marcassem as feições. Faltavam-lhe curvas, mas isso não a incomodava exceto quando se comparava, oca­sionalmente, com uma ou outra publicitária de pernas grossas e saias curtas, respirando sexo por todos os poros. Não chegava a invejá-las, pois, desde o corpo até a roupa, aquele era um mundo fora de seu alcance.

— Ei! — Ela ouviu o timbre grave da voz de Victor e voltou a atenção para ele.

— Desculpe-me. Estava distraída.

— Com coisas desagradáveis, a julgar por sua expressão.

Alice corou e concentrou-se no bloco de anotações em seu colo. Algumas vezes se esquecia de como Victor Temple era perspicaz, a ponto de parecer ler os pensamentos dos outros, enquanto mantinha os seus sob sete chaves.

— Pensava nas compras que preciso fazer para abastecer meu apartamento — ela improvisou, sem propriamente dizer uma mentira.

— Perdão por tirá-la do supermercado e jogá-la nas bana­lidades de nosso escritório — ele brincou, cruzando os braços por trás da cabeça em uma atitude relaxada. — Posso imaginar como você mora em um lugar limpo e organizado.

— É uma bela confusão — declarou Alice com um pouco mais de cor nas faces. — Livros por toda parte, roupas espa­lhadas, pratos por lavar.

Dirigiu o olhar para baixo, a fim de disfarçar o brilho de rebeldia nos olhos. Por que Victor pensava que ela era sempre precisa e impecável? Por que acreditava que, sendo eficiente no trabalho, manteria sua casa em estado primoroso? Por que não poderia levar uma vida dupla, fazendo a ronda dos bares para solteiros no minuto em que deixasse o escritório?

— Estou impressionado — ele comentou com um tom di­vertido. — Vanessa não a ajuda na arrumação?

— Sim, mas ela também foi trabalhar. Mal tivemos tempo de desfazer as malas.

— Por que não contrata uma arrumadeira?

— É um luxo desnecessário.

— Estou lhe pagando mal?

— Mais que o suficiente — ela disse, imaginando aonde essa conversa iria terminar. Fitou Victor com insistência, ten­tando adivinhar o que pretendia, mas não obteve êxito. — Acontece que gosto de arrumar a casa — ela murmurou final­mente. — É relaxante.

— Você é a primeira mulher que ouço dizer isso.

Talvez Alice tivesse cometido um erro ao abordar aquele assunto. Não que Victor não apreciasse uma casa bem-arru­mada para viver, mas provavelmente fugiria correndo de uma mulher do tipo doméstico. Era algo que não tinha para ele qualquer apelo. Victor não queria passar noites aconchegantes no sofá da sala, vendo televisão, nem fazia questão de comer comida caseira, servida por uma esposa desgrenhada, de avental.

— Você disse que temos um novo cliente — ela lembrou-o, retomando a realidade do escritório.

— Tenho uma pasta por aqui... — Procurou nervosamente entre as pequenas e muitas pilhas de papéis que atulhavam sua mesa. — Onde será que eu a coloquei?

— Talvez Rebeca a tenha arquivado — disse Alice esperançosa.

Ele levantou-se e abriu o gavetão menos cheio do arquivo ao lado da mesa. Consultou rapidamente as etiquetas e fechou a gaveta com força e ruído.

— Ironia, Alice? — Ergueu as sobrancelhas. — Desde quando?

Alice ficou calada. Normalmente, ela reprimia o que pensava. Normalmente, mantinha maneiras cordiais e amistosas. Fazia seu trabalho e raramente se permitia o luxo de um impulso pessoal. Mas duas semanas de férias haviam estimulado algo diferente dentro dela. Tinha visto muitos casais em lua-de-mel, abraçados o tempo todo, alheios ao mundo exterior. Pela pri­meira vez havia tomado consciência de seu estado de solteira. Vanessa também era solteira, é verdade, mas homens interes­santes eram companhias constantes em suas noites e finais de semana. Possuía uma vivacidade que a tornava atraente.

Alice, admitiu com realismo, vivia uma situação bem diversa. . Não tinha namorado algum batendo-lhe à porta, embora alguns poucos amigos a convidassem ocasionalmente para sair e desfrutar um jantar ou um teatro.

Por estranho que parecesse, só agora sentia falta de um homem. Talvez, ela pensou, porque tivesse cruzado a barreira dos trinta anos e a vida começasse a passar mais depressa.

Ela sorriu para Victor, encontrando seu olhar especulativo, aparentemente repleto de incompreensão. Decidiu que toda aquela inquietação deveria ficar entre as quatro paredes de sua casa, ou pelo menos trancada em um compartimento obs­curo e inacessível de sua mente.

— O que você e sua colega de apartamento fizeram nas férias?

Victor parecia sinceramente curioso, mas ele adorava desa­fiar as pessoas, colocá-las em situações difíceis. Por um ano e meio, Alice ouvira perguntas educadas sobre sua vida fora do escritório, e as respostas eram sempre lacônicas. Victor per­cebera que as indagações não eram bem-vindas e logo perdera o interesse.

Agora, tolamente, ela concordara em falar, brindando-o com algo mais do que um polido sorriso.

— As coisas de sempre — falou Alice vagamente.

— Por exemplo? — ele insistiu.

— Muita piscina, boa comida, belos passeios. — A maioria dos homens, ela pensou, parecia jovem o bastante para serem seus filhos. Ou era ela que se sentia velha o suficiente para ser sua mãe? Um travo de insatisfação lhe amargou a boca. O que estava acontecendo com ela? Nunca fora inclinada à autopiedade, e esperava que tamanho desastre não lhe ocor­resse justamente agora.

— Vocês gastaram duas semanas fazendo só isso? — ele perguntou, curioso.

— Bem, também fomos à praia diversas vezes. — Alice que­ria encontrar logo a pasta do novo cliente para poder finalmente mudar de assunto e começar uma conversa profissional com o chefe. Mas ela o conhecia bem. Mais um minuto de curiosidade, e ele ficaria entediado com a tentativa de extrair informações sugestivas, e desistiria.

— Foram bons os banhos de mar?

— Água fria.

— E quanto às noites? Duas moças livres e solteiras...

Ele pigarreou para acentuar a malícia da observação, o que só a aborreceu ainda mais.

— Pensei que você soubesse a resposta para isso — falou Alice calmamente. — Afinal, quantos anúncios não fazemos com esse mesmo tema?

— Ah, sim. — Fitou-a com firmeza. — Bares, shows musicais. — Fez uma pausa. — Sexo. — Ele deixou a palavra cair entre os dois como o fruto proibido, divertindo-se com o rubor forte de Alice.

— Não sou tão jovem assim — foi tudo o que ela con­seguiu dizer.

— Para o quê? — ele insistiu. — Bares? Shows? Ou sexo?

Ela fechou com raiva o bloco de anotações e olhou para ele com ar de ofendida.

— O que faço em minhas férias só diz respeito a mim, Sr. Temple. Se está tão interessado em como suas funcionárias se divertem fora daqui, sugiro que as siga e descubra por si mes­mo. Garanto que encontrará muitas mulheres disponíveis. — Ela ouviu seu protesto com assombro e confusão, alarmada por reagir tão tempestuosamente à provocação do chefe. Parecia outra pessoa, diferente da secretária tão educada e prestativa que sempre se mostrara.

— Bem, bem. — Ele cruzou as mãos e a examinou longamente, de uma maneira que a desconcertou. Alice pôde sentir suas unhas raspando a capa do bloco em seu colo, totalmente embaraçada.

— Não imaginava que você fosse tão temperamental.

— Desculpe-me — a voz saiu rouca, e ela sentiu vontade de chorar, o que seria ridículo. Estava tirando conclusões exageradas das insinuações de Victor. Mostrar-se ofendida não ajudaria em nada, ela concluiu. — Podemos continuar o trabalho?

— Não tão depressa. Estou realmente intrigado, Alice. — Voltou a colocar as mãos atrás da cabeça e continuou a fitá-la com insistência. — Começava a pensar o que existia por trás de sua eficiência.

— Ah, obrigada — ela murmurou.

— Mas parece que eu a ofendi. — Ele não demonstrava ar­rependimento. Pelo contrário, a situação visivelmente o agradava.

O diabo, ela pensou, trabalha com mãos preguiçosas. Victor havia hibernado como um urso por duas semanas e agora des­pertava. O alívio que sentira pela volta de Alice tinha provocado a vontade de rir um pouco à custa dela.

— Não, de forma alguma — ela garantiu sem muita convicção.

— Você nunca me contou o que faz nas férias, mas com certeza voltou diferente. O que aconteceu? Conheceu algum homem? — Ele sorriu àquela idéia. — Como era ele? Já notou como sei pouco de sua vida particular? Considerando o tempo que já trabalha para mim...

— Sim, e gostaria de manter as coisas assim — disse timidamente.

— Só espero que não esteja pensando em me abandonar para casar-se e ter filhos.

Alice estremeceu. Nada podia estar mais distante da reali­dade. Casamento. Filhos. Havia desistido de pensar nisso havia muito tempo.

— O fato é que você nunca me pareceu uma garota deslum­brada que quer abraçar o mundo com as mãos. — Victor apa­rentava filosofar consigo mesmo, sem importar-se com a reação dela. E, na verdade, nada daquilo tinha muito a ver com Alice.

Ela conteve a respiração, sem saber se respondia ou mantinha silêncio, na esperança de que ele encerrasse aquele tormento. Foi salva daquela situação pelo toque insistente do telefone.

Victor conversou rapidamente sobre um projeto e logo des­ligou o telefone. Ele obviamente já esquecera tudo o que se referia a Alice e a sua vida privada. Abriu uma das pastas da mesa, e Alice suspirou de alívio.

Enquanto tomava nota das cartas que ele ditava, ela per­cebeu que não estava inteiramente concentrada como gostaria. Parte de sua mente vagava por outras paragens.

Alice estranhara aquele súbito interesse que Victor Temple demonstrara por ela, mesmo que houvesse tentado fazê-lo pas­sar por uma simples brincadeira. Ela já se acostumara ao bom entrosamento com o chefe e as suas relações impessoais. Agora o examinava com o canto dos olhos, desconfiada daquele ato impensado por parte dele.

Despertou desse devaneio ao ouvi-lo falar de seu último gran­de projeto.

— É uma mansão enorme. — Havia uma série de fotos na pasta, e ele as foi passando para ela. — Está com a mesma família há muitas gerações. Os jardins foram desenhados por um arquiteto famoso, e o interior da casa também é especial. Parece um palácio, e realmente foi freqüentado pela nobreza.

— Por que os proprietários vieram até você? — ela quis saber.

— Proprietário. Os custos de manutenção se tornaram proibitivos. O dinheiro da família acabou e agora o dono já deve aos bancos. Ele tem pouco mais do que o título de propriedade. E a história de sempre. Uma grande herança que vai minguando com o tempo, e agora só resta a casa. Nosso cliente acha que abrir a mansão ao público, cobrando ingresso, pode cobrir parte das despesas. Nosso trabalho é vender isso, discretamente.

— Ah, perfeito. — Alice estava com a mente ancorada na nova tarefa a realizar.

— O que achou das fotos?

Alice as examinou com vagar e sentiu um onda crescente de horror, que começou discretamente com um golpe no estô­mago e se espalhou por todo seu corpo. Sentiu-se paralisada, como se as pernas jamais fossem obedecer-lhe de novo. Com as mãos trêmulas, colocou as fotos na mesa.

— Que tipo de campanha você tem em mente? — perguntou Alice apenas para sentir-se alerta. Seu cérebro, temporaria­mente nublado, voltava a funcionar. Não havia razão, pensou, para que esse projeto interferisse em sua vida particular. Como secretária, também não havia necessidade de envolver-se di­retamente na campanha. Queria manter a calma e a prudência.

Os olhos de Victor se estreitaram.

— Que tal uma série de belos anúncios em revistas rurais ou de vida campestre? O dono quer abrir a propriedade para visitantes e, em um segundo momento, transformá-la em hotel de lazer.

— Entendo.

— O que está acontecendo com você nesta manhã, Alice? — enfureceu-se Victor. — Parece que estou falando com um fantasma. Aliás, você está pálida como assombração. Será que voltou com alguma indisposição?

— Não, estou bem. — Ela engoliu em seco e procurou algo inteligente para dizer. — É dispensável o excesso de texto nos anúncios, acho. As fotos falam por si mesmas.

— Certo. É o que pensei. — Ele detalhou algumas idéias iniciais, enquanto ela ouvia e concordava, meneando a cabeça. — Vou marcar uma visita no meio da semana. — Guardou a pasta. — É sempre bom vermos o local antes de iniciar qualquer campanha.

— Nós?

— Naturalmente. Quero que observe tudo com olhos femi­ninos e faça anotações. — Ele notou uma sombra na face dela.

— Algum problema?

— Não! — ela foi taxativa.

Não havia um problema em ir com ele à mansão. Havia milhões.

— Só não sei, Victor, quando vou encontrar tempo para isso. Rebeca deixou muito trabalho incompleto, inclusive os balancetes. — A voz quase desapareceu no fim da frase.

— Você é perfeitamente capaz de atualizar o trabalho em um ou dois dias. E Sam, o contador, pode vir ajudá-la com os relatórios. Alguma outra desculpa?

— Confesso que preferia não me envolver com esta campa­nha em particular, chefe. — Espantou-se com a própria coragem em admiti-lo, mas não fazia diferença. Uma luz de contrariedade brilhou nos olhos de Victor, e Alice sabia como ele era capaz de demolir qualquer justificativa, até conseguir o que queria. No caso, sua presença ao lado dele na visita à mansão.

— Por que não?

— Se não se importa, estou lhe pedindo para aceitar meu pedido.

— E eu lhe peço para aceitar o meu, se não se importa — ele ecoou com autoridade. — A não ser que me apresente boas razões.

Aquela era uma atitude típica dele, ela pensou com desespero. Qualquer um apenas lamentaria sua decisão e daria um sorriso de simpatia, confiando na validade de seus motivos. Mas não Victor Temple. Se ele visse um sinal de "Proibido", a reação seria retirar a placa e fingir que ela jamais existira. Simplesmente tomaria o caminho mais curto e usaria de todos os métodos dis­poníveis para chegar rápido. O homem era uma raposa.

Como isso poderia ter acontecido? Era incrível! O único ho­mem no mundo de quem queria distância, dono da única casa à qual jamais desejaria voltar, tinha escolhido a agência em que trabalhava para promover seus negócios!

Bem, não era tão incrível assim. Victor Temple gozava de excelente reputação, e sua firma era respeitada pelos êxitos consecutivos que conquistara.

No entanto, ela ponderou, ninguém a obrigava a divulgar seus problemas particulares para ele. Balançou a cabeça, derrotada.

— Está bem. Irei com você. Só gostaria de saber a data precisa, para anotar em minha agenda.

— Agenda! — ele ironizou. — No máximo em três dias. — E posso saber por que você mudou de idéia?

— Apenas repensei o assunto.

Os insinuantes olhos cinzentos de Victor a fitaram cuida­dosamente, como se a vissem pela primeira vez.

— Foi um dia de grandes revelações sobre você, não? — ele disse com acidez. — Primeiro, uma explosão de temperamento.

Agora, algum segredo profundo que você prefere esconder. Fico pensando que outras surpresas me aguardam.

— Não é um segredo profundo — Alice contou, pontuando sua mentira com um leve riso. — E também não guardo outras surpresas para você.

— Bem, vou esperar para ver. — Victor retribuiu o riso de Alice com uma gargalhada solta, mantendo nos olhos uma ex­pressão de curiosidade que, aparentemente, ali ficaria até que cumprissem a visita programada à Casa da Colina.

Cedo ou tarde o passado nos reencontra. Dizem mesmo que nunca podemos nos livrar totalmente dele.

Agora o passado de Alice se delineava, sombrio, no horizonte. Tudo o que ela podia fazer era assegurar-se de que ele não a sufocasse.

 

Naquela semana, o ritmo de trabalho na agên­cia foi frenético. Alice atendeu não só inúme­ros clientes, como também colegas em busca de informações para as novas campanhas. Victor a deixou impressionada com sua disposição. Quase não dormia. Mas ela sentiu os nervos fraquejarem dia após dia, reunião após reunião.

Portugal e as férias pareciam distantes. E em nada ajudava que a Casa da Colina pendesse sobre sua cabeça como uma nuvem espessa, trazendo promessa de tempestade.

Sua memória lhe causou espanto. Todos aqueles anos, e ela ainda se lembrava de conversas inteiras com James Claydon, como se houvessem decorrido no dia anterior. Parecia que cada hora que passava trazia mais uma peça ao seu tabuleiro de recordações, uma pequena e amarga lembrança de um passado que Alice vinha tentando esquecer havia quatro anos.

Na manhã combinada para a viagem, seus nervos a deixa­ram quase fisicamente doente. E foi assim, lívida e indisposta, que ela atendeu Victor na porta de sua casa.

Ele havia decidido dispensar o motorista e abriu pessoal­mente o carro para ela entrar. Alice estranhara o fato de Victor não estar vestido para trabalhar. Nada de terno e gravata. Em seu lugar, calças verdes de algodão, camisa listrada e uma jaqueta bege de lã. Victor percebeu a surpresa dela.

— Também tenho alguma roupa esporte — disse sarcasticamente, insistindo em tomar-lhe das mãos a maleta de viagem e ajeitá-la no banco de trás.

Alice não pôde deixar de admirar o carro de seu chefe, um Jaguar conversível que denotava sucesso e opulência.

— Pensando bem, não havia necessidade de terno — ele observou ao ligar o motor do carro.

— Sim, talvez você consiga descansar por três dias — co­mentou ela à falta de melhor observação.

— Bem, pretendo andar bastante pela casa e seus arredores, escolher os melhores quartos e os melhores ângulos para fo­tografar. Você ficará encarregada de me acompanhar e anotar tudo, naturalmente.

Alice olhou para Victor, em tácita concordância. Ela vestia uma curta saia azul e uma bonita malha branca de gola rolê, cobertas por uma capa comprida que ia até seus tornozelos. Era o tipo de roupa que faria qualquer mulher atraente parecer totalmente assexuada, mas ela a escolhera propositadamente. Supôs que, em algum momento, encontraria James Claydon na mansão, e quis passar a idéia de uma simples secretária em serviço.

Com alguma sorte, pensou, ele nem a reconheceria, embora isso fosse improvável. Havia mudado bastante nos últimos qua­tro anos. Emagrecera alguns quilos, usava agora cabelos curtos, mas as maiores transformações haviam ocorrido em seu inte­rior. A desilusão alterara sua personalidade para sempre, em­bora fisicamente ela se mantivesse quase a mesma pessoa.

Alice tentou imaginar a aparência dele, após todo aquele tempo, e simplesmente não conseguiu. Sua mente estava fe­chada para James Claydon.

— Espero que você tenha trazido alguma roupa mais infor­mal — disse-lhe Victor sem tirar os olhos da estrada. — Não quero intimidar nosso cliente. Por falar nisso, há uma pasta no banco de trás. Leia antes de chegarmos. Contém toda a informação de que vamos precisar.

Alice hesitou. Contava ou não a Victor que ela conhecera James? Como explicar ao chefe se ele a reconhecesse e saudasse com entusiasmo? Por outro lado, não desejava abrir nem sequer uma pequena fresta de seu mundo particular. Victor com cer­teza o invadiria antes que ela pudesse fechar a porta, sujei­tando-a a uma bateria de perguntas que não estava preparada a responder.

Por fim, Alice decidiu que manteria a premissa de que não conhecia o cliente, e se James se comportasse como um velho amigo ela apenas fingiria que havia esquecido tudo sobre ele. Afinal, muitos anos haviam se passado.

Anos, ela pensou com um contido suspiro, olhando a paisa­gem pela janela do carro e esquecendo-se completamente da pasta que Victor mencionara. Quatro anos para reconstruir a vida que James tinha feito em pedaços antes de abandoná-la. Quatro anos para esquecer o homem que lhe roubara a vir­gindade e toda a inocência que ela implicava, fazendo-a con­fundir luxúria com amor e levando-a a pensar que a ligação entre eles seria eterna.

Alice lembrava-se bem da primeira vez que colocara os olhos nele. Ela ficara no campo, trabalhando para o pai dele como bibliotecária por quase um mês. Mesmo assim, não chegara a conhecer toda a Casa da Colina, com sua absurda abun­dância de quartos, corredores e saguões. Henry Claydon, em cadeira de rodas, limitava-se geralmente à biblioteca e seu próprio quarto.

O serviço era agradável. Trabalhava na biblioteca, prepa­rando fichas e fazendo anotações, enquanto o velho senhor examinava pastas de documentos cuidadosamente amarradas, lançando de vez em quando um olhar triste e vazio para a vastidão da propriedade que se divisava além da janela. Tão diferente do sobradinho em que ela passara a maior parte da vida, antes do falecimento de sua mãe!

Os jardins da casa se ligavam aos campos verdejantes da região, formando uma vista para ela inédita e maravilhosa. Alice havia crescido em uma casa apertada entre outras, em um subúrbio de Londres, e era com uma sensação de claustrofobia que acompanhava as ruas cheias de movimen­to. Para ela, lembrava-se bem, a Casa da Colina era a própria visão do paraíso.

Apreciava também ouvir as histórias de Henry Claydon, sempre mais vibrantes e coloridas que as de sua família. O velho senhor apreciava interromper as anotações de Alice com suas lembranças do passado, pedindo-lhe que também as es­crevesse. A idéia era preparar um livro de memórias.

Certo dia, Alice trabalhava sozinha quando James Clay­don entrou pela porta. Apenas o abajur da mesa estava li­gado, e James se confundiu com um vulto vindo das sombras.

Esguio, roupas escuras, casaco preto. E ela se apaixonou à primeira vista.

— Pode responder a minha pergunta? — interveio Victor, tirando Alice de seu devaneio. — Ou vai passar toda a viagem com a cabeça entre as nuvens?

— O quê? Qual pergunta?

— Pelo amor de Deus! — ele lamentou-se. — Lembra-se de que estamos indo trabalhar? Não quero vê-la sonhando quando deveria estar fazendo anotações.

— Bem, eu pedi para ser dispensada desta tarefa em particular.

— Eu sei. Mas nunca me deu um motivo sério. É a mansão, por acaso? Você chegou a viver por aqui, não é mesmo?

Alice espantou-se ao perceber que Victor lembrava-se desse detalhe em seu formulário de inscrição para a vaga na agência. Havia se passado quase um ano e meio!

— Não muito longe — ela admitiu. Tinha sido seu primeiro emprego após a morte da mãe. No formulário, o nome de Henry Claydon constava como referência. Era estranho que Victor não se lembrasse disso também.

— Algum vilarejo próximo? — ele quis saber.

— Não — respondeu Alice em tom neutro. — Era uma cidade média do interior. Os londrinos têm a mania de achar que, a setenta quilômetros da capital, só há povoados minúsculos.

— E não é verdade? — Victor riu.

— Seu senso de humor está uma lástima hoje — ela comentou.

Alice moveu-se desconfortavelmente no banco do carro. Algo havia mudado entre eles, de modo quase imperceptível. O interesse de Victor por suas origens levava as relações até então estritamente profissionais para um campo perigo­samente pessoal.

— Então, conte-me como era sua cidade — ele pediu sua­vemente. — Pode ser útil para a campanha da Casa da Colina.

Alice relaxou um pouco. Tudo indicava que Victor ainda estava sendo um profissional antes de mais nada.

— Pitoresca. Tinha tudo o que se espera encontrar em uma boa cidade do interior. Até loja de departamentos.

— Há quanto tempo você saiu de lá?

— Cinco anos — ela informou vagamente.

— Algum lugar histórico por perto?

— Ruínas de um castelo. Deve ter sua história, mas não me pergunte porque não sei. Stratford-upon-Avon, a terra de Shakespeare, é relativamente perto.

— Isso parece bom. A mansão pode se beneficiar dessa atra­ção turística, digamos assim.

— Sim, tem razão. — Alice pensou pela primeira vez se sua cidade havia mudado muito, se o velho sobrado de sua mãe ainda permanecia de pé, se as vizinhas Gladys e Evelyn continuavam discutindo pelas janelas.

— Então, a Casa da Colina fica perto do centro da cidade... — Victor dirigia velozmente o Jaguar, como se tivesse pressa em chegar.

— Uns vinte minutos, talvez. Mas sem transporte público.

— Mas também em uma colina. Deve ter uma bonita vista.

— Sim — Alice concordou.

— Não havia um velho homem na mansão, o pai de James Claydon, se não me engano?

— É verdade. — Felizmente, Victor nada sabia de sua ligação com James, que só aparecia na casa ocasionalmente. Alice lembrou-se da ansiedade com que, mal saída da ado­lescência, esperava pela chegada dele, sempre trazendo flores ou chocolates. Era um cavalheiro, apesar de tudo. Então, passavam dias de louca paixão, seguidos por semanas de exasperante ausência.

— Já morreu. Não me recordo quando — informou Victor.

— Depois de minha estada por ali — replicou Alice rapida­mente. — Eu já havia me mudado para Londres.

— Bem, alguma coisa você deve saber sobre a Casa da Co­lina. O pai de James era viúvo?

— Sim, era.

Para alívio de Alice, Victor passou a conversar sobre outros assuntos. Clientes, teatro e música. Ela sentiu a tensão dimi­nuir progressivamente, à medida que se distanciavam de Lon­dres. Avaliou que Victor, conforme a ocasião, tanto podia deixar as pessoas à vontade como intimidá-las intensamente.

Ela descansou a cabeça no encosto do banco e não pensou mais na Casa da Colina nem em James Claydon.

— O que fez você trocar Londres pelo interior, quando ainda era tão jovem? — continuou Victor, fazendo Alice pensar na resposta.

— Era mais sossegado — disse ela cuidadosamente.

— Então, você desistiu da vida agitada da cidade grande. — Não era uma pergunta, e sim uma afirmação, embora car­regada de curiosidade. — É pouco usual. E o que fez antes de vir trabalhar comigo?

— Alguns trabalhos temporários — ela afirmou em um tom contrariado. Estava detestando toda aquelas perguntas, e seu olhar revelava quanto estava nervosa.

— E antes disso?

— Não trabalhei para firma alguma — declarou evasiva­mente. Na ficha de inscrição, Alice não havia declarado sua experiência profissional antes dos trabalhos temporários, pois estes lhe haviam valido ótimas referências.

— Ainda cursava secretariado?

— Não. — A resposta foi crua. — Trabalhei como autônoma. Na verdade, estava transcrevendo um livro. — Era verdade, embora ela preferisse esquecer aquele período.

— Ah, que interessante! — comentou Victor. — Chegou a ser publicado?

— Não faço idéia. — Ela realmente duvidada disso. Na época, Henry Claydon não demonstrara pressa alguma em terminar suas memórias. Era mais um passatempo, um trabalho de amor, do que uma atividade profissional solicitada por algum editor. Ele também não precisava de dinheiro. Não, era quase certo que o livro tivesse permanecido inacabado.

— Continuo achando estranho que você deixasse Londres seduzida por um trabalho desse tipo.

Alice não se importou com aquela insinuação. Sabia aonde ela iria levar, mas estava precavida. Victor era um mestre em conduzir as pessoas a revelar mais do que elas queriam.

— Não fiquei até a conclusão do livro — declarou à maneira de desculpa. — O pagamento não era dos melhores e o livro poderia levar anos para ser escrito. Simplesmente desisti. — O comentário não estava longe da verdade.

— Ele deve ter ficado desapontado.

— Ele?

— Ele ou ela, não sei. Quem quer que estivesse escrevendo esse misterioso livro. De qualquer modo, é um trabalho que leva a um relacionamento bastante próximo.

— Suponho que sim. — Uma ruga se formou entre os olhos de Alice. — Para ser honesta, avisei-o seis meses antes.

— Então, era ele. Um cavalheiro.

— Certo. — Ela podia sentir que Victor a testava, querendo extrair-lhe confidências. Reconheceu que havia lhe dado um tema irresistível: as sombras de um passado nebuloso. Também tinha sido um erro reagir tão negativamente às fotos da casa. O certo seria ter cancelado a viagem com Victor. Não faltavam secretárias na firma dispostas a um passeio pelo campo.

— Que tipo de livro era? — ele perguntou casualmente, e Alice teve certeza de que estava curioso de seus segredos pessoais.

Victor Temple pensava que ela havia tido uma espécie de namoro com Henry Claydon. Exceto por não saber que tipo de pessoa era Henry Claydon naquele tempo.

— Memórias de família — ela explicou, esperando que aquela informação encerrasse o interrogatório. Mas enganou-se.

— Muita pesquisa? — ele quis saber, enquanto apontava para o mapa rodoviário que estava no painel do carro, sinali­zando para que o abrisse.

— Bastante.

— Você não está sendo muito comunicativa — ele disse com indolência. — Tenho a impressão de que o emprego não era interessante para você. Quanto tempo ficou?

— Três anos.

— Três anos! Deus, então era um homem muito metódico. Três anos para um livro! E sem completá-lo na época em que você foi embora!

— Sim, era terrivelmente metódico. — Apesar das lembran­ças paralelas, Henry Claydon mantinha uma linha de trabalho que chegava a ser monótona. — Mas também não passava o tempo todo escrevendo. — Alice resolveu deixar no ar a idéia de que poderia ter tido um caso de amor com o misterioso escritor. Victor nunca se daria por satisfeito em sua curiosidade.

— Suponho que precisava trabalhar ocasionalmente. Para pagar as contas.

— Ele trabalhava, sim. — Sem dar detalhes, Alice manteve Victor curioso. — Posso dar uma olhada na pasta da Casa da Colina?

— Claro. Boa idéia. Depois me diga o que pensa.

Ela reclinou-se no banco e examinou folha por folha, grata pelo fato de que Victor, concentrado na direção do carro, não podia ver sua reação. As fotos a impressionaram. A mansão não havia mudado. Os gramados eram tão maravilhosos quanto se lembrava. Havia uma foto de James, de pé nos fundos da casa, elegantemente apoiado em seu Land Rover, e o coração de Alice deu um sobressalto ao reconhecê-lo. Era difícil definir a expressão de seu rosto, mas as feições pouco haviam mudado. Alguns quilos a mais, talvez, mas sem prejuízo de sua bela aparência. Estaria casado? Victor não mencionara nada que levasse a tal conclusão. Não se referira a nenhuma Sra. Clay­don. Com esses pensamentos, Alice dobrou a pasta e colocou-a novamente no banco de trás.

— Bem, o que acha? — inquiriu Victor.

— É um lugar bem amplo. Onde o proprietário pretende viver se quer abri-lo à visitação pública?

— Vai reservar uma pequena ala residencial para si mesmo e liberar o restante.

— Posso imaginar por que ele precisa dessa renda — falou Alice em um tom falsamente desinteressado. — Só os jardins devem necessitar de um batalhão de funcionários.

— Uma parte das terras foi vendida, incluindo alguns jardins e um pequeno pedaço do bosque.

Alice lembrava-se bem do bosque. Gostava de passear por ele todo fim de tarde, depois do trabalho. Na primavera, com as árvores florescendo, era um recanto muito bonito, repousante como um sonho, e em três anos ela chegara a conhecer cada palmo do terreno.

Mordiscou o lábio inferior e torceu para que James tivesse uma reação discreta ao revê-la. Não pretendia expor-se a Victor e esperaria que ele estivesse ocupado em algum outro lugar da casa para falar com James. Então, poderia pedir-lhe para manter sigilo a respeito do relacionamento de ambos, conser­vando o passado em seu devido lugar. Ele sempre tinha sido, ela pensou em retrospecto, uma pessoa decente.

Alice sentiu a amargura da humilhação, mesmo passados tantos anos, ao lembrar-se do espanto de James quando ela mencionara a idéia de casamento, de um compromisso a longo prazo, ouvindo em resposta que ele não estava pronto para estabelecer-se. Sim, ele gostava dela e era honesto o suficiente para não negar o que estava escrito em sua face: que um compromisso mais sério permanecia fora de cogitação.

Alice descansou a cabeça no encosto do banco e pôde sentir o coração descompassado. Não havia pensado naquela conversa traumática durante anos. A princípio, sentira-se incapaz de pensar em qualquer coisa. Cada palavra dele a ofendia, e ela achou que ficaria louca com aquelas lembranças, mas gradual­mente recuperou-se e guardou bem no fundo da alma a tentação de pensar em James.

Alice aprendera a encarar todo o episódio de uma maneira filosófica. Era a única maneira de superá-lo. Com isso, passara a evitar a aproximação de qualquer homem, trancara suas emoções a sete chaves e assim continuaria agindo, não fosse a intervenção do destino, sob o nome de Victor Temple.

— Olhe no mapa, Alice. Rápido! — Ele diminuiu a velocidade do carro. — Que desvio devemos seguir?

— Desculpe-me. — Ela estudou o mapa, procurando o ponto em que se encontravam, e, quando Victor a interpelou de novo, ela pôde indicar com precisão a estrada secundária que deveriam pegar.

A irritação dele pareceu passar. Ela jamais apreciara os repentes de nervosismo de seu chefe, sempre desmentidos por sua eficiência no trabalho. Naquele momento, porém, sua men­te estava emaranhada nos fios do passado.

— Veja — ele disse, depois de Alice apontar a estrada com um intenso esforço de concentração. — Não faço idéia do que aconteceu aqui com você, anos atrás, mas espero que já tenha superado o problema.

— Claro que sim — ela afirmou apressadamente. — Só estou um pouco nervosa por voltar à mansão depois de tanto tempo.

Acho que houve alguma coisa séria, para mantê-la longe de casa por três anos. Mas não precisa me contar. Não quero ser inconveniente.

Alice sentiu suas defesas se armarem. Conseguira manter sua privacidade por longo tempo e parecia desacostumada de fazer confidências. E, de qualquer modo, Victor Temple seria a última pessoa no mundo a quem contaria seus segredos.

Relanceou o olhar para ele e imaginou se ela também estaria ficando suscetível ao charme masculino de Victor, que tantas outras mulheres pareciam achar irresistível. Lembrou-se, com sensatez, que a experiência de vida havia lhe ensinado uma valiosa lição.

Rapidamente veio-lhe uma imagem perturbadora. A imagem de Victor na cama, fazendo amor com ela. Alice balançou a cabeça depressa, tirando da mente a cena delirante. Ainda bem que estava imune aos encantos dele, pensou. Se o rela­cionamento com James tinha sido um erro catastrófico, a in­timidade com Victor seria dez vezes pior. Ele habitava um outro mundo. Era o tipo de homem destinado a mulheres fúteis e exibicionistas.

Alice umedeceu os lábios com a língua e afastou as tolas conjeturas para o fundo de sua mente.

— Ele provavelmente não vive mais por aqui — ouviu Victor dizer.

— Quem?

— O homem para quem trabalhou e com quem teve um romance.

Ela preferiu ficar calada. Era melhor deixá-lo pensar da­quele modo.

— Não posso imaginar você vivendo um amor selvagem, apai­xonado — ele especulou lentamente, com um tom brincalhão.

Mais uma vez ela deixou passar a observação.

— Qual o cronograma desse projeto?

— Não foi hábil essa mudança de assunto, Alice.

Ela pôde perceber o riso contido na voz dele e ficou irritada com isso. Havia se apressado, sem dúvida, mas Victor já parecia tê-la carimbado com uma porção de rótulos. A mulher fracas­sada no amor. A candidata a solteirona. A idade nada tinha a ver com isso, ela pensou, mas, lendo nas entrelinhas, ele a desqualificava para o casamento, como uma pessoa desprovida de qualquer apelo sexual.

— Não pretendo comentar minha vida particular com você.

— E para alguém mais? Há outro homem em sua vida, agora?

— Não, e estou muito feliz com a situação.

— Realmente? — Victor estava gostando da conversa. — Pensei que toda mulher quisesse casar-se e ter filhos. Manter a lareira acesa, como dizem.

Alice teve novamente de disfarçar a irritação.

— De modo algum. Estamos praticamente no século vinte e um, caso você não tenha notado. Há cada vez mais mulheres que preferem viver sozinhas e dedicar-se a uma carreira profissional.

Alice nunca havia se dirigido ao chefe com tanta determi­nação, mas também as conversas com ele jamais tinham tocado o terreno pessoal. Não daquela maneira. Em uma ou outra sexta-feira, Victor poderia ter perguntado sobre seus planos para o fim de semana, e Alice nunca deixara de comentá-los ainda que rapidamente.

— Acho que isso é um mito — ele disse com firmeza. — Pessoalmente acho que a maioria absoluta das mulheres daria um braço por um relacionamento estável.

Alice não respondeu, sem ter certeza de poder manter-se educada.

— Você não concorda? — ele insistiu sorrindo, espicaçado pela decisão dela de não entrar em discussão.

Ela sabia que não devia dizer nada. Preferia guardar para si mesma os próprios conceitos a respeito daquela questão, considerando inócua qualquer argumentação com Victor.

— Há mulheres que preferem não ter compromissos — aca­bou dizendo, horrorizada consigo mesma.

— O que você quer dizer com isso? — ele provocou.

Ela sabia que iria arrepender-se de ter ido tão longe. Nada na voz de Victor denotava aborrecimento. Ele mantinha o tom cordial, deixando espaço para um diálogo civilizado, mas Alice lembrou-se de que Victor era seu chefe e de maneira alguma cabia-lhe falar sobre sua privacidade.

— Nada! — Ela quase gritou, na tentativa de recuperar o aprumo. — Não quis dizer nada!

— Ah, sim, você quis. Vá em frente. Explique-se. Você sabe que não vou forçá-la, se não quiser falar.

Alice o fitou, e ele pareceu bastante amistoso naquele momento.

— Eu... eu estava sendo sarcástica — ela declarou final­mente. — Não vem ao caso insistir nesse assunto.

— Antes que você se cale de novo, diga-me o que estava pensando. Estou interessado.

— Certo — ela disse com energia. — Você disse que a maioria das mulheres quer manter um compromisso. Então o que acon­tece quando você sai com elas e se recusa a um compromisso? Como se sente diante de tantos corações partidos?

Em definitivo, aquela não era uma conversa entre patrão e secretária. Não deveriam estar falando sobre aquilo, e sim da estrada, do tempo, até do trabalho, mas nunca de assuntos íntimos.

— Eu dou a elas o divertimento que esperam e querem.

Alice podia imaginar que tipo de divertimento Victor tinha em mente, e novas imagens eróticas, perturbadoras, flutuaram em seu pensamento.

— Bem, então está tudo certo. — Ela queria com desespero encerrar o diálogo.

— Seria mais correto eu pôr uma aliança no dedo delas?

— Não de sua parte, imagino.

— Nem da parte delas, necessariamente. O que a faz pensar que elas não se cansam de mim, antes de eu me cansar delas? — Ele a olhou com uma expressão neutra na face. — De qual­quer modo, tomo isso como um elogio.

A face de Alice cobriu-se de rubor, porque pôde perceber perfeitamente o que ele estava pensando. Que ele era o tipo de homem de que uma mulher dificilmente se cansaria. Con­fusa, ela procurou identificar o momento em que tinha come­çado a pensar assim.

— Estou reconhecendo onde estamos — ela disse, feliz por mudar o rumo da conversa. Fechou o mapa no colo. — Em quinze minutos, cruzaremos o vilarejo. A Casa da Colina fica exatamente do outro lado. É só seguir as placas.

Alice abriu a janela, examinou os arredores com atenção e confirmou para Victor a posição em que estavam. Passou a falar animadamente do povoado, dos lugares de que se lem­brava, sentindo um pouco o prazer do monólogo, enquanto o carro avançava lentamente pela pequena estrada.

Assim que cruzaram a cidade e retomaram a estrada do campo, ela começou mentalmente a reconstituir o que viria pela frente. Olhou para as vastas terras da Casa da Colina como uma matriarca que inspeciona suas propriedades.

— É impressionante, não? — ele murmurou, em reforço a seus sentimentos.

— Sim, é verdade — ela declarou emocionada, em um fio de voz.

— Pode ficar aliviada. Parece que, depois do povoado, não existem mais imagens do passado.

— Aliviada? — ela contestou. — Quem me dera!

 

Ocarro parou suavemente no magnífico pátio externo da Casa da Colina, e Alice, em uma reação infantil, deslizou pelo seu banco até ficar oculta pela porta do automóvel, de modo que não pudesse ser vista pelo vulto que se aproximava.

Não era James, notou com grande alívio, e sim uma jovem de quase vinte anos, vestida com jeans e malha estampada, e segurando um espanador. Alice abriu a porta do Jaguar e, com as mãos nos quadris, esperou que a equipe de serviçais apa­recesse. Pensou no que teria acontecido com eles, que sempre esperavam por Henry quando ele era vivo. Havia dois caseiros de meia-idade, que moravam no local, e três arrumadeiras que vinham trabalhar duas vezes por semana, somando-se aos jar­dineiros e à cozinheira.

Victor tinha saído do carro antes dela e já caminhava rumo à entrada da mansão, fazendo Alice praticamente correr atrás dele, segurando a barra da capa.

A jovem que os recepcionara também procurava alcançá-los.

— Viemos ver James Claydon — anunciou Victor com certa solenidade.

— Não está — disse a mocinha.

— Foi a algum lugar aqui perto? — perguntou ele friamente.

— Levou o cachorro ao veterinário.

— O figurão podia ter-nos avisado para vir outro dia — ele sussurrou para Alice em tom contrariado, sem se preocupar se a moça estava ouvindo ou não.

— Foi uma emergência — explicou a jovem, em um esforço para ser educada. — Ana, a cadela, feriu-se na cerca perto do estábulo, e o veterinário disse para levá-la imediatamente. O Sr. James estará de volta em quarenta minutos e me encarregou de mostrar-lhes seus aposentos.

A moça olhava para Alice com franca aprovação, mas após alguns segundos concentrou-se em um fascinado exame de Vic­tor, que havia colocado as mãos nos bolsos e assumira uma expressão carrancuda.

— Trouxeram bagagem? — a jovem indagou, e Alice sorriu para ela. Não era culpa sua que tivesse de receber aquela gente da cidade grande, aparentemente tão sofisticada.

— No carro — ela respondeu. — Devemos pegá-la?

— Sim, e eu lhes mostrarei o caminho. — Fitou Alice agora com mais simpatia do que a Victor. — Meu nome é Jen. Venho fazer a limpeza duas vezes por semana.

— É estranho — comentou Alice com Jen, enquanto Victor retirava as malas do carro. — Parece que não há mais fun­cionários fixos por aqui. O que aconteceu com eles?

— Agora só eu trabalho na mansão. E os jardineiros, é claro. Não é tão ruim. Parte da casa vive fechada, e o Sr. Claydon não é muito exigente. Além disso, viaja muito.

Jen entrou e conduziu os visitantes escada acima, falando sem parar e finalmente abrindo-lhes a porta dos quartos.

— Pode me chamar se precisar de alguma coisa — ela dirigiu-se especificamente a Alice. — Nesses dias vou estar sempre por aqui. Cozinhando... Cozinho melhor do que faço a limpeza.

Alice acompanhou com um sorriso a saída de Jen e, assim que se viu sozinha no quarto, sentou-se na cadeira ao lado da janela, contemplando a paisagem. A casa em nada mudara. Parecia que nem um simples enfeite fora trocado de lugar. Mas as lembranças da casa logo cederam às de James. Pre­tendia ficar ali, esperando o carro chegar, e então iria correndo ao encontro dele, antecipando-se a Victor e pedindo a James que omitisse o fato de que já se conheciam. Essa medida, pensou Alice, era essencial para salvaguardar uma parte de sua vida que não tinha a intenção de expor a ninguém.

Repetidas vezes ela ensaiou a conversa mentalmente, até que o jipe de James Claydon finalmente estacionou próximo à entrada principal. Sabia que pouco mais de meia hora havia se passado, mas para ela parecera uma eternidade.

Por alguns segundos ela espiou James descer do veículo e retirar o animal da caçamba. Então, correu escada abaixo até encontrá-lo no pátio, olhando para trás a fim de certificar-se de que não era observada por Victor.

Por quê, ela se perguntou, importava-se tanto se Victor co­nhecesse ou não seu passado? Na vida, todos têm alguma coisa a esconder. No entanto, por alguma razão, ela se importava. Era-lhe exasperante a idéia de que Victor descobrisse a exten­são de seu relacionamento anterior com James, mesmo que o tempo e a distância o houvessem desgastado. Ou não?

Alice quase atropelou James no saguão, onde ele sacudia o pó de sua jaqueta. Ele girou o corpo ao ouvir passos, esperando ver Jen, e foi tomado por um leve choque de surpresa. Ficaram olhando-se longamente, até que ele quebrou o opressivo silêncio.

— Meu Deus! Alice Cárter! O que você está fazendo aqui?

Enfrentando os próprios temores, Alice forçou-se a olhar para James como se fosse apenas uma pequena peça no que­bra-cabeças de seu passado. Suas lembranças lhe haviam dado um status que a realidade, agora, rapidamente dissipava. Ele era menos alto e bonito do que se recordava. Também parecia mais fraco, mais vulnerável. Nada do semideus que ela cons­truíra ha mente.

— Preciso dizer-lhe algo — ela falou com urgência, sentindo muito menos hesitação do que imaginara.

— Mas... o que veio fazer aqui? — Ele continuava perplexo.

— Na cozinha — pediu ela, conduzindo-o com firmeza pelo braço.

Esperava encontrar Jen, mas felizmente a cozinha estava deserta. Correu o olhar pelo aposento, dividida entre a fami­liaridade e a estranheza. As mesmas panelas de ágata pendu­radas em ganchos na parede, os mesmos armários sólidos de madeira, a mesma mesa grande de pinho. Nada fora do lugar, e ainda assim era estranho estar ali.

— Não acredito que seja você, Ali — ele disse, reconquistando o poder que tinha sobre ela. — Você mudou. Cabelos curtos. Que outras novidades você trouxe?

— Sente-se, James.

Ele obedeceu e continuou fitando-a com admiração. Alice quase riu da idéia que James fizera, de que ela pudesse ter cortado os cabelos uma única vez em quatro anos. A sensação de dominar a situação pareceu-lhe uma justa compensação pela agonia das lembranças que ele lhe despertava. Seu senso de praticidade as havia jogado para um cenário distante e, com certeza, menos doloroso.

— Você está muito bem — ele elogiou, tentando mostrar entusiasmo, mas parecendo mais infantil do que ela gostaria de reconhecer. Alice espantou-se por sentir-se imune a seu velho charme.

— Estou aqui com Victor Temple — ela informou, censu­rando qualquer tentativa de James de desenterrar os tempos antigos. — Ele é meu chefe.

— Ah, vieram ver a casa. — A face de James tornou-se sombria. — Que pena, Ah, que precisemos fazer isso. Papai não suportaria. Não tive sorte com alguns investimentos, sem falar que esta monstruosidade devora dinheiro feito água. — Ele fez uma careta, e Alice sentiu crescer sua irritação.

— Por favor, não me chame de Ali — ela pediu. — Prefiro Alice. E Victor não sabe nada de nossa antiga ligação. Gostaria de continuasse assim.

— Como ele não sabe nada? Você deve ter-lhe contado assim que soube que eu era um novo cliente da agência.

— Não, não contei.

— Por quê?

— Porque prefiro esquecer tudo sobre você, James.

— Puxa, que simpático!

— Você também prefere esquecer, que eu saiba.

— Eu lhe expliquei, na ocasião...

— Escute, James, nada mais importa. Quero deixar o pas­sado no passado.

— Então, qual a problema de seu chefe saber ou não? Vocês estão tendo um caso? Só se for isso. Fingiu que era virgem quando o encontrou?

— Não. Com certeza não estamos tendo um caso.

— Você realmente mudou, Ali... Alice. Você costumava ser muito mais...

— Flexível? Ingênua? Eram estas as palavras que procurava, James? Ou apenas e simplesmente idiota?

— Nem tanto — ele procurou redimir-se.

— A experiência de vida muda as pessoas. — Ela entendeu a agressão de James como resultado de um amargo ressenti­mento, por ela não cultuar o passado de amor com ele.

— Se é o que quer, guardarei segredo sobre nós, mas con­tinuo achando improvável que ele não descubra, mais cedo ou mais tarde.

— Como assim?

— A maneira como você se comporta dentro da casa. Fica claro que já a conhece.

— Bem, tomarei o máximo cuidado. — Ela fez uma pausa. — Quando seu pai...

— Alguns meses depois que você partiu.

— Lamento muito.

— Ele tinha saudade de você.

— E eu dele — disse Alice com um suspiro. Havia escrito a Henry Claydon diversas vezes, mas após alguns meses não recebia mais respostas. Ela não imaginou que estivesse doente, mas que se cansara da correspondência. Doía-lhe que não ti­vesse podido explicar-lhe as verdadeiras razões de sua partida.

Ela levantou-se da cadeira e fez menção de sair, quando ouviu passos, e a porta se abriu. Jen deu caminho a Victor, e ele os fitou com os olhos estreitos de surpresa. Então, aproxi­mou-se e estendeu a mão para James Claydon.

— Victor Temple. Vejo que já conheceu minha assistente.

— Sim. Alice, não é? Prazer em conhecê-lo. Por favor, Jen, pode nos servir um chá na biblioteca?

Jen murmurou algo inaudível e pareceu contrariada por ter de interromper suas outras tarefas.

Os três saíram, e James notou que Alice se esforçava por dar a impressão de pisar em terreno desconhecido. Sentaram-se na biblioteca, e os dois homens entabularam uma conversa educada. Anos atrás, pensou Alice ao observar James, ela o tomaria por uma perfeita combinação de charme, inteligência e poder de atração. Ao lado de Victor, no entanto, ele parecia vazio e artificial. Victor era claramente a personalidade domi­nante ali. Discutia as instalações da casa, fazia perguntas, registrava tudo o que seus olhos viam.

A biblioteca, que acabara sendo usada mais como sala de chá e de reuniões, tivera as paredes pintadas, e o sofá revestido de padrões florais se fora, dando lugar a um conjunto coordenado de poltronas com uma mesa central. As novas e claras cortinas também ajudavam a dar um ar renovado e agradável ao aposento.

— A maior parte da casa não sofreu mudanças desde... — James riu, mantendo as pernas elegantemente cruzadas — ...desde tempos imemoriais. Há uma galeria na parte oeste que abriga quadros impressionistas e alguns modernistas. O que está achando do que viu até agora?

A questão era dirigida a Victor, mas os olhos de James estavam pousados em Alice. Victor reclinou-se para trás na poltrona e fez uma sucinta e profissional apreciação dos aposentos que já co­nhecera. Uma questão que o preocupava era o tamanho real da casa e, se a abrissem ao público, onde James iria morar.

Alice ouviu em silêncio, a cabeça inclinada para um lado, mas sua mente estava distante dali. Nas trilhas da memória, viu James de mãos dadas com ela, sentiu a felicidade de estar apaixonada, vivendo em um mundo de sonhos e planejando um futuro que jamais iria materializar-se.

Com uma expressão de mágoa, afastou as lembranças do­lorosas. Se as deixasse dominá-la, sabia que a amargura em seu rosto chamaria a atenção de Victor. No mais íntimo de seu ser, guardava a ferida mais dolorida de todas, a triste constatação de que sua ingenuidade tinha sido responsável por seu sofrimento.

Teria sido bem mais fácil se James fosse um perfeito canalha, mas ele não era, embora Alice tivesse passado um bom tempo tentando identificar os aspectos odiosos de sua personalidade. Não, a verdade pura e simples era que ele não a quisera mais a seu lado.

Jen entrou empurrando um carrinho de bebidas, no qual se destacava o serviço de chá em porcelana chinesa. Ela tam­bém havia distribuído diversos tipos de biscoitos em travessas de prata e demorou um bom tempo transferindo tudo do car­rinho para a mesa.

— Obrigado, Jen. Pode ir. — Inclinou levemente a cabeça. — Eu mesmo sirvo.

Para preocupação de Alice, James serviu-lhe o chá com duas colheres de açúcar, como gostava de tomar, e ela desejou que Victor não notasse aquele toque de familiaridade.

— Vocês devem conhecer a cidade amanhã — ele dizia. — É bem agradável.

— Boa idéia — concordou Victor. — A menos que Alice já conheça o lugar.

Alice sentiu seu rosto corar e forçou um sorriso para James.

— Já morei por aqui — ela informou, tentando não parecer nervosa.

— Morou? — James sorriu abertamente e ergueu as so­brancelhas. — Estranho que nossos caminhos nunca tenham se cruzado.

Com sua perspicácia, Victor sentia que havia algo diferente na atmosfera, mas não soube definir o quê.

— Bem, vivemos em círculos sociais bem distintos — reforçou Alice, disposta a não deixar que James brincasse de gato-e-rato com ela. Ele tinha razão. Ela havia mudado. Tornara-se uma mulher firme e determinada, desde os tempos em que haviam se conhecido. Não era mais a mocinha impressionável que cos­tumava ser.

— Deve ser isso — confirmou James sem necessidade. — E eu estava fora a maior parte do tempo. Primeiro o colégio, depois a universidade.

— Como Victor diz, eu conheço a cidade, mas gostaria de revê-la após cinco anos. Deve haver mudado bastante.

— Um pouco, sim — disse James.

— Ficarei contente em acompanhar Victor — declarou ela.

— Ótimo — festejou James. — Deixarei um carro à disposição.

— Vim com meu carro. Não se preocupe — murmurou Victor, para em seguida retomar a conversa sobre a história da região e os pontos de atração turística que ajudariam a transformar a Casa da Colina em um hotel de lazer. — Acho que todos os castelos daqui deveriam ser abertos ao público, em vez de juntar teias de aranha.

— Pensa em transformar a Casa da Colina em um hotel? — Alice perguntou, consternada com a idéia, e Victor a olhou com desaprovação.

— Essa é a idéia mais viável — replicou James educada­mente, dando a Alice total atenção. — Claro, tudo precisará ser feito com bom gosto, mantendo intacta a beleza do lugar. Talvez tenhamos que conceder em alguns pontos, como cons­truir uma piscina.

— Uma piscina? — Alice indagou cáusticamente, ignorando Victor. — Talvez a prefeitura não aprove.

— Provavelmente não — comentou James. — Uma pena.

Só faltava construírem também uma discoteca, pensou Alice, embora reconhecesse que havia necessidade de atrativos para os jovens. Lugar não faltava. Henry sempre lhe dissera que a casa era grande demais, mas a paz e a privacidade que isso propor­cionava era altamente compensador. Agora, lá vinha o filho dele pensando em piscinas, discotecas e máquinas de fliperama.

— Nunca imaginei que você tivesse opiniões tão conserva­doras a respeito dos pequenos castelos do interior — disse Victor friamente, relembrando Alice de sua posição na hierar­quia das negociações.

— Não... — ela respondeu, corando. — Claro que não penso assim. — Notou o olhar deliberadamente brincalhão de James.

— Então, pode preparar um roteiro para nossas visitas de amanhã?

— Com certeza — ela disse débilmente, recolhendo-se ao silêncio enquanto a conversação prosseguia.

Se pudesse superar a visita à mansão, sem ceder às obser­vações provocativas de James, já seria uma vitória.

Tudo fora tão desgastante quanto ela havia antecipado. Ele a forçara a fazer observações perigosas, desde os tapetes no chão aos quadros na parede. Questionou-a sobre onde tinha vivido e não se cansava de afirmar como o mundo era pequeno. Ao fim de duas horas, Alice estava a ponto de explodir de nervosismo. Pensou em simplesmente deixar a mansão e partir, mesmo arriscando seu bom emprego com aquela atitude.

Ao entardecer, todos estavam reunidos na sala de estar. Alice achou que chegara a hora de devolver as provocações e encarou James firmemente nos olhos.

— Existe uma Sra. Claydon? Não me recordo de você ter mencionado se era casado ou não.

Uma sombria expressão de ira cobriu-lhe o rosto.

— Eu já fui casado — ele disse em um tom seco, enquanto Alice sorria com polidez, rememorando febrilmente sua última conversa com James, quatro anos atrás.

Que espécie de mulher ele haveria desposado?, ela pensava agora. Uma debutante afetada, boa conhecedora de cavalos de raça? Subitamente ela desejou não tê-lo atiçado a falar.

Victor consultou seu relógio e fez uma tentativa de acabar com a desconfortável situação. Mas James continuava a exi­bir-se, em um verdadeiro show de bonomia.

— Não durou muito, de qualquer forma, e não deixou saudade. Ele deu um curto e amargo riso.

Alice olhou na direção de Victor, como se pedisse socorro, mas à face dele mantinha-se sem expressão.

— No papel, um casamento perfeito. — James fitou Alice di­retamente. — Mas todos nós tiramos lições da experiência, não?

— Alguns mais do que os outros — observou ela com acidez.

— Preciso falar em particular com você, Alice — pediu Victor com a voz fria e furiosa, olhando de novo para o relógio.

— No fim, ela estava tão ansiosa por livrar-se de mim quanto eu dela. Mesmo assim, foi um divórcio atrapalhado. O casa­mento perfeito afinal não era tão perfeito. E agora, se podem me desculpar, vou descansar um pouco. O jantar será servido às oito, na sala ao lado.

James deu um discreto aceno de mão e retirou-se. Tão logo o viu afastar-se, Victor interpelou Alice agressivamente.

— Importa-se em me dizer o motivo de tudo isso?

— Não sei do que está falando — ela defendeu-se, sabendo muito bem ao que ele se referia, mas recusando o papel de vítima indefesa.

— Caso você tenha esquecido — ele deu à voz uma modulação de seda —, James Claydon é um cliente. Seu comportamento não está sendo profissional.

— Desculpe-me. — Ela ergueu o queixo e encontrou o olhar irado do chefe.

Victor aproximou-se lentamente, e Alice sentiu-se intimidada.

— Deveria demiti-la no ato.

— Bem, e por que não faz isso? — Com as faces rubras, ela tinha ido longe demais para poder voltar atrás. As feridas do passado estavam reabertas, e ela parecia agir por instinto, embora Victor não fizesse a menor idéia do que estava lhe acontecendo.

Alice ficara abatida quando soubera ter sido trocada por uma mulher no mínimo despreparada para o casamento. E se James tinha aprendido suas lições, não fora à custa dela? Sua inocência e ingenuidade eram agora apenas uma lembrança, mas ainda lhe doía pensar que tinha sido abandonada.

Naquele momento, ela piscou forte para reprimir as lágri­mas, mas continuou olhando para Victor, desafiando-o a des­pedi-la da agência.

— Vou lhe dar o benefício da dúvida — ele disse pausada­mente. — Mas cuidado com minha paciência. Espero que se comporte bem no jantar. Conversas, apenas impessoais, por favor. Estamos aqui a trabalho.

— Sim — ela concordou, infeliz, abaixando finalmente o olhar.

Em um gesto inesperado mas gentil, Victor segurou o rosto de Alice em suas mãos, fazendo-a quase perder o fôlego. Ele nunca a havia tocado. Não dessa maneira.

— Pode ficar tranqüilo — ela conseguiu dizer.

— Bom. — Victor soltou-a, e ela resistiu à tentação de cobrir a parte do rosto que seus dedos haviam tocado. Sentiu o corpo em brasa. — Nós nos veremos no jantar, então.

Mais tarde, ao vestir-se, Alice concluiu que estava passando por um desumano excesso de emoções. Primeiro o reencontro com James, com seu passado. Depois, o gesto carinhoso de Victor. Não era de admirar que tivesse perdido o autocontrole.

Manteve-se calada durante o jantar, falando apenas o ne­cessário e cuidando para que suas observações fossem o mais inócuas possível. Jen a surpreendera com uma refeição apeti­tosa, mas que parecia não ter fim. Eram mais de onze horas quando finalmente pôde recolher-se ao quarto.

Como não confiava em James, certificou-se de que a porta estava bem trancada. Haviam trocado alguns olhares no jantar, e Alice daria tudo para saber o que ele estava pensando. Cla­ramente, o momento dos dois já havia passado. O fim do re­lacionamento deles era um episódio menor na vida de James. Por isso mesmo, duvidava de que ele soubesse quanto aquele romance havia alterado o curso de sua vida.

Talvez ele também tivesse mudado. Quem poderia dizer? No passado, a despreocupação de James para com os outros, sua visão da vida como um mero período para diversão, faziam dele um irresponsável. Embora Victor também fosse do tipo conquistador, ela sabia por instinto que sua atitude com as mulheres era completamente diferente.

Isso fez Alice pensar em Victor de um modo como nunca tinha feito antes. Sentira seu olhar sobre ela durante todo o jantar, notara a atenção com que a ouvia e, por estranho que fosse, admitiu que se preocupara mais com Victor do que com James. Aquele breve toque no rosto, seus dedos quentes sobre a pele, pareciam ter-lhe tirado a racionalidade do pensamento.

Alice esperou que o episódio estivesse superado na manhã seguinte, quando iriam conhecer a cidade. Sob circunstâncias normais, ela estaria empolgada com o fato de explorar um lugar pitoresco, bem como passar aqueles dias na mansão, tro­cando idéias com Victor sobre a melhor maneira de aproveitar aquele espaço privilegiado.

Mas as circunstâncias não eram normais. Alice mal podia esperar que o trabalho terminasse e ela pudesse voltar para casa, sem mudanças radicais em sua vida.

 

Ela desceu para o café da manhã com um traje semelhante ao que havia usado na viagem. Soube que James já havia saído para resolver negócios em Warwick. Na cozinha, Victor estava sendo servido por Jen, cuja voz aguda podia ser ouvida do saguão.

Ele a fitou com interesse quando ela entrou.

— Você pôs uma roupa de trabalho para passear? — ele comentou sem demora.

— Infelizmente, é tudo o que trouxe — retrucou Alice, sen­tando-se para tomar seu café.

Ao contrário dela, Victor tinha trazido diversos trajes infor­mais. Curiosamente, ele parecia mais sexy em mangas de ca­misa do que com terno e gravata. Talvez porque a roupa im­plicasse uma atitude mais relaxada, com a qual Alice tinha dificuldade em lidar. Estava acostumada a ver Victor como seu chefe, não como companheiro de uma excursão. Confusa, ocupou-se em beber seu café puro, recusando o prato de ovos com bacon e torradas que Jen lhe oferecia.

— Sugiro que troque de sapatos, ao menos — Victor propôs. — Acho que vamos caminhar bastante.

— Estes são bastante confortáveis — retrucou ela, levemente contrariada.

— Sem dúvida. Para um escritório.

— Há uma boa loja de roupas e sapatos na rua principal — opinou Jen, sentindo-se autorizada a intervir depois das observações de Victor. — O patrão está certo. Seus pés vão doer com esses saltos altos.

Alice disfarçou o aborrecimento. Victor dera chance a uma pessoa estranha de opinar sobre suas roupas. Era óbvio que Jen, cansada de cozinhar e fazer a limpeza dia após dia, sem ter com quem falar, não perderia a oportunidade de introme­ter-se na vida dela.

— Naturalmente, não será preciso comprar muita coisa para apenas um dia de passeio — completou a moça.

— Concordo — disse Victor, levantando-se. — Talvez um traje esporte e mais um vestido para usar à noite.

Calada, Alice sentiu-se posta de lado e um pouco humilhada. Mais um pouco, e Jen estaria comentando sua maquilagem. Terminou o café antes que a moça ousasse fazer novos comen­tários e seguiu Victor para o saguão. Naquele momento, ela sentia-se pouco à vontade em suas roupas londrinas. Não en­tendia como, na noite anterior, com um simples gesto, ele a fizera redescobrir sua feminilidade.

— Pode me indicar como vamos à cidade? — ele perguntou um minuto depois, enquanto ligava o motor do carro. — Pa­rabéns, de qualquer modo.

— Parabéns por quê?

Victor mais uma vez a surpreendia. Alice tentou não parecer ressentida nem mal-humorada. Formulou o pensamento de que as assistentes não deviam ter sentimentos pessoais. Ou, pelo menos, nunca deviam expressá-los.

— Por ser uma secretária perfeita.

A surpresa aumentou porque, desde que haviam chegado à Casa da Colina, ela não se sentia como tal.

Mostrou a direção a seguir, e o curto trajeto tornou-se bizarro e opressivo a cada minuto que passava.

Comprar roupas com Victor Temple? Não lhe faltava mais nada!

 

O centro da cidade continuava sendo como Alice se lembrava. De fato, depois que o carro estacionou, e eles começaram a andar, a sensação de familiari­dade foi tal que ela sentiu-se de volta ao passado. De volta ao tempo em que era mais jovem e ia, de bicicleta, fazer compras para sua mãe. Um saco de pão, um pedaço de carne, alguns legumes e verduras na quitanda.

Alice quase precisava correr para andar passo a passo com Victor, que olhava tudo minuciosamente, com as mãos nos bol­sos. De repente, ele parou e voltou-se para ela.

— Você não tomou café direito. Vamos nos sentar e conversar em uma boa cafeteria, se é que existe alguma por perto.

Alice agradeceu pela idéia. Seus sapatos de salto alto, de fato, só serviam para pequenas caminhadas dentro do escritório, e ela já previa bolhas nos pés caso insistisse naquela caminhada.

— Há um bom café na loja de departamentos. Fica próximo daqui, basta virando a esquina.

Andaram rapidamente pela rua, e ela não entendia a pressa de Victor, que se desviava com agilidade dos pedestres que vinham em sentido contrário. Além de estreitas, as calçadas eram enfeitadas com floreiras, e, muitas vezes, Victor invadia a rua para não cruzar com grupos de passantes. Na primavera, ela imaginou, o lugar devia ficar lindo.

Chegaram à loja de departamentos com certo alívio. Alice notou que a loja estava diferente, mais moderna. Já havia uma escada rolante, e todas as vendedoras estavam uniformi­zadas com trajes alinhados e em cores claras.

— Só café, obrigada — ela disse a Victor ao chegarem à cafeteria. A loja era bem maior do que ela se lembrava, havia um bom sortimento de doces e rosquinhas.

Alice ocupou uma mesa, enquanto ele examinava a vitrina. Veio sentar-se pouco depois, com uma cesta cheia de roscas, pães doces e geléias.

— O café já vem — ele avisou. — Você olha essas guloseimas como se fosse proibido tocá-las. Não me diga que faz dieta.

Para desmenti-lo, Alice pegou uma enorme rosca açucarada e ainda espalhou geléia antes de comer. Limpou a boca com o guardanapo e sorriu.

— Não, eu não faço dieta.

— Mas também não come muito.

— Sentar-se à mesa para as refeições não é muito interes­sante quando se é solteira — ela ponderou. — Não para mim, pelo menos.

— Bom, o mesmo vale para quem é casado — ele contestou. — Acho que é uma questão de treinamento da vontade.

Alice evitou aquele assunto e começou a contar a Victor a história da cidade, o pouco que conhecia sobre os pontos de interesse que poderiam atrair o público para a Casa da Colina. Trocaram idéias sobre os diversos estilos que a campanha pu­blicitária poderia ter.

— James Claydon tem razão quando diz que transformar a mansão em um hotel de lazer seria um bom negócio — disse Victor, bebendo seu café. — A prefeitura daqui deve ter uma comissão de patrimônio histórico para analisar e aprovar as reformas. Mas por que você pareceu estar tão radicalmente contra a idéia?

— Apenas acho que é uma bela casa. Não gostaria de vê-la desfigurada.

— O dono da mansão passa a maior parte do tempo em Londres. Entendo que queira montar um negócio lucrativo, para aliviar seus gastos com a manutenção da casa.

Não tinha sido sempre assim? Nos três anos em que conhe­cera Claydon, ela pouco havia estado com ele. O campo não oferecia as luzes, o movimento, a vibração que pareciam atrair James para a capital. Seu pai apreciar a paz interior que en­contrara em meio à bela propriedade da família, mas o mesmo certamente não se aplicava ao filho.

— O que pensa dele? — Victor indagou intempestivamente.

— Por que pergunta? — Teria ele suspeitado de alguma coisa? Era preciso convir que pouco escapava a seus olhos ati­lados. Se ela tinha percebido os olhares lânguidos de James, Victor também o teria notado.

— Curiosidade apenas.

— Parece muito simpático — Alice falou cuidadosamente.

— Simpático é um adjetivo vago. Diz tudo e não diz nada ao mesmo tempo, não acha?

— Bem, James não me impressiona como o fidalgo capaz de ficar mostrando sua propriedade aos turistas.

— De fato. Ele terá de contratar alguém para fazer o papel de guia.

— E você, o que pensa dele? — Alice terminou de saborear sua rosquinha e esperou pela resposta.

— Penso que ele é uma pessoa agradável — disse Victor com seriedade —, mas bastante inclinado a usar o mundo in­teiro em seu beneficio.

— Não é parecido com todos que conhecemos?

— Em graus variados. Mas James Claydon parece colocar seu próprio prazer em primeiro lugar. Deve pensar que tem direitos adquiridos.

Anos atrás, Alice estaria disposta a defender James daquela caracterização.

— Não tinha pensado nisso — ela afirmou, brincando com a colher de sua xícara de café.

— Acho que o pai dele devia às vezes se desesperar com as atitudes do filho.

— Prefiro não especular a esse respeito — disse ela secamente.

— Por que não? — Victor ficou intrigado.

— Porque... — Ela não pôde encontrar uma resposta con­vincente. Mas Victor estava certo em seu julgamento de James, e concordar com ele apenas reforçava a lembrança de como ela tinha sido idiota e insensata no passado.

— Por que não está de acordo? — insistiu Victor, os olhos acesos de curiosidade.

— Bem, não o conheço o bastante para falar de seu caráter — mentiu ela. — De qualquer modo, ele é nosso cliente, como você mesmo me lembrou.

— Mais uma razão para saber exatamente que tipo de pessoa ele é. Isso vai ajudar a definir a campanha.

Victor tinha argumento para tudo, ela pensou. Dificilmente perdia uma discussão e, se quisesse, poderia convencer uma pedra.

— Pelo que você me disse, deduzo que James levou uma vida de playboy em Londres, talvez mesmo quando estava ca­sado. — A boca de Victor curvou-se em um sorriso desolado, e Alice pôde ver que ele desaprovava a cavalheiresca interpre­tação de James sobre o fim de seu casamento. — Ainda casado, ele continuava vivendo de acordo com as próprias regras. Sinto bastante por qualquer mulher que tenha convivido intimamen­te com James.

— Por quê? — Alguma coisa naquelas palavras a envolvia diretamente?

— Porque seria uma competição desigual com a vaidade dele.

— Parece que você tirou muitas conclusões em pouco tempo — observou Alice.

Anos atrás, ela pensou, James podia ter brincado desastro­samente com seus sentimentos, mas as opiniões de Victor cos­tumavam ser dramáticas em demasia. Havia tomado alguns fios da personalidade de James e os tecia de modo a apresen­tá-lo como o canalha amoral e inescrupuloso que Alice bem gostaria que ele fosse, porque assim reduziria sua auto-recriminação pelo romance fracassado.

— A primeira impressão é tudo — defendeu-se Victor, ter­minando seu café com a evidente intenção de apressá-la. — Aliás, pedi para nossos colegas MacKenzie e Bird virem até aqui para tratarem de detalhes comerciais com Claydon. Acho importante descobrir exatamente quais são as intenções dele.

Saindo da cafeteria à frente dela, Victor não notou a contra­riedade de Alice com aquela pequena desfeita profissional. Mas ele era o chefe, pensou, e devia saber o que fazia. Como ele qualificaria uma mulher ingênua o bastante para envolver-se com James? James estava longe de ser do tipo casamenteiro, mas o próprio Victor atraía olhares de mulheres vistosas que, obviamente, também não pensavam em compromisso duradouro.

Alheio à situação, ele esperou Alice alcançá-lo e a examinou de frente.

— Sugiro aproveitar nossa estada na cidade para comprar alguma roupa para você. Talvez um traje mais leve para o dia e um vestido menos austero para a noite.

— Já que você e Jen estão me pressionando, eu entrego os pontos — disse ela sem vontade de discutir. — Podemos nos encontrar na porta da loja, daqui a uma hora?

— Não gosto da idéia — ele afirmou, continuando a correr os olhos por seu corpo. — Posso ajudá-la a escolher as roupas?

— Não há necessidade.

— Suponho que não. — Ele a tomou pelo braço e passou a caminhar pelas lojas, descartando a maioria delas com um simples olhar para as vitrines.

Confusa, Alice tentava manter a compostura, e por uma ou duas vezes reprimiu a vontade de entrar em lojas que lhe pareceram apropriadas. Não queria que as coisas fossem assim. Nem mesmo queria comprar as roupas. E certamente abomi­nava a idéia de ser acompanhada por Victor, como se fosse a amante incapaz de escolher sozinha um par de meias.

— Aí estão os jeans — disse ele, apontando uma vitrina. — Que número você usa?

— Isso é completamente ridículo.

— Mas eu estou me divertindo...

"Com certeza", Alice pensou acidamente. Em seguida ele estaria pedindo para que ela rebolasse um pouco, a fim de conferir o ajuste da calça em seu corpo.

— Deixe-me olhar — ele pediu à porta da loja. — Não confio em seu senso de elegância. Tenho a impressão de que você vai preferir calças bem largas, próprias para ginástica. — Victor sorriu para amenizar a involuntária agressão que praticara.

No fim, ela experimentou seis calças, de diferentes cortes, e, após o embaraçoso desfile na frente de Victor e da vendedora, decidiu-se pela primeira escolha.

— Vai ter de confiar em mim — disse ela com as faces rubras e os olhos mortificados. Victor coçou o queixo, sem outra reação.

O embaraço continuou no caixa, onde ele insistiu em pagar a conta.

— Por favor, Victor. Minhas despesas, pago eu.

A vendedora olhava para os dois, sem entender. Parecia temer que desistissem da compra só porque ela estaria achando o preço alto demais.

— Não faz sentido você pagar. É despesa da firma — ar­gumentou ele, entregando seu cartão de crédito à vendedora antes que ela pudesse protestar.

O tormento continuou na loja de trajes para a noite. Victor gostou de um modelo curto que Alice jamais sonharia em usar. Ousado demais, deixava-a pouco à vontade.

— O que há de errado com esta roupa? Ficou muito bem em você. — Ele se tornava impaciente, embora mantivesse a polidez.

— Muito vermelho — afirmou ela, à falta de outro argu­mento. Mas também era muito curto e justo para seu gosto conservador.

— Como pode ser muito vermelho? — ele inquiriu. — A roupa que você está usando não seria muito azul?

— Não gosto de vermelho — ela defendeu-se. — Não combina comigo. — De fato, Alice nunca havia usado roupas vermelhas na vida adulta. Lembrava-se apenas de um casaco de lã em sua infância distante.

— Por que não experimenta para tirar a dúvida? — propôs ele.

Victor estava fazendo aquilo de propósito. Ela sabia. Dese­java provocar nela uma reação atípica e então divertir-se com a situação.

— Não me sentiria bem com um vestido assim. Isso não é motivo suficiente para você?

— Não. — Ele pegou o vestido vermelho no braço e prati­camente a empurrou para os provadores.

Mal-humorada, Alice fechou a porta do compartimento e evitou olhar para o grande espelho. Sabia por experiência pró­pria que espelhos de provadores reduziam as mais belas figuras a monstruosidades. Suas pernas pareciam finas demais, o corpo desengonçado, o busto inexistente. Colocou a roupa e olhou, preparada para o pior. Mas, para sua surpresa, o vestido ver­melho ficou-lhe bem. Tornava-a sensual e atraente como ne­nhum outro que possuía. O tecido, em jérsei de algodão, mar­cava-lhe as formas, e o decote um pouco ousado exibia-lhe o colo rosado e sugestivo. O comprimento, até os joelhos, deixava expostas as pernas um pouco finas, mas bem torneadas.

Ela sentiu-se mais sexy, mais feminina do que nunca, e talvez por isso relutou em comprar o vestido. Por fim, em um repente de ousadia, resolveu levá-lo, e convenceu-se efetiva­mente daquela compra ao recolocar suas roupas, o contraste fora devastador. Saiu do provador confirmando a Victor que ficaria com o vestido. Apenas evitou olhar para ele diretamente, sabendo que gritaria de raiva se notasse mais uma vez seu sorriso zombeteiro.

Na saída da loja, resolveram dirigir até Warwick, passando por um castelo, e depois continuar até Stratford. Alice lem­brou-se da infância, quando a mãe a levara a um festival com obras de Shakespeare. Fora seu primeiro contato com as peças do grande gênio da dramaturgia, e ela pouco entendia o texto, mas a beleza das montagens haviam marcado sua mente de criança de dez anos. Depois do teatro, ela ganhara um sorvete de casquinha e, considerando o pouco dinheiro que a mãe pos­suía, tinha sido uma boa vida. As peças de Shakespeare e o sorvete pareciam agora assombrosamente distantes no tempo, ela pensou com tristeza.

— Com fome? — perguntou Victor, e Alice assentiu. — Passamos por um restaurante há poucos minutos. Que tal voltarmos lá?

— Ótima idéia. — Olharam-se demoradamente, com mútua simpatia. Alice estava apreciando a companhia dele. Uma hora e meia atrás, no entanto, seria capaz de despejar toda a fúria do mundo sobre Victor, por causa de sua insistência em com­prar-lhe roupas que não desejava.

Alice lembrou a si mesma que ele cultivava como poucos o charme masculino. Era parte inerente de sua personalidade. Por isso, comportava-se como um velho amigo, e não como um chefe diante da secretária.

Seria importante, pensou ela, não se esquecer desse detalhe.

No pitoresco restaurante, fizeram uma refeição rápida. Mas, ao saírem do lugar, quando já estavam entrando no carro, Victor lhe fez uma proposta surpreendente:

— Vamos visitar sua velha casa?

— O quê?

— Não temos pressa em voltar à mansão, mas também não há tempo suficiente para fazermos um giro pela região. Seria uma pena vir até aqui e não procurar a casa onde você morou.

A sugestão foi tão inesperada que fez Alice hesitar.

— Bem, por que não? — ela indagou vacilante.

Após tantos anos de ausência, Alice demorou a encontrar o caminho certo, sobretudo porque as estreitas ruas eram todas iguais, sem marcos de referência. Finalmente estacionaram diante da casa onde vivera: um pequeno sobrado recuado, pin­tado em cores vivas, com uma pequena trilha de grama que levava à porta de entrada.

— Foi toda repintada! — ela exclamou, sem disfarçar a emoção que estava sentindo.

— Quanto tempo viveu aqui? — ele quis saber, adotando um tom gentil.

— Minha vida inteira. Depois que meu pai morreu, pensamos em nos mudar, mas mamãe sempre preferiu viver cercada de suas lembranças.

— Sua mãe parece ter sido uma mulher forte.

— Ela costumava dizer que eu era a perdição de sua vida, mas você tem razão.

Ficaram sentados no carro em silêncio. Não havia atividade aparente na casa, nada, pelo menos, que se pudesse ver ou ouvir. Alice gostaria de saber quem morava ali agora. Engoliu em seco ao imaginar a mãe na janela, mas reprimiu seus sen­timentos sem demora. A última coisa de que Victor Temple necessitava era uma secretária chorosa, de olhos vermelhos.

— Quer entrar um pouco? — ele perguntou. — Tenho certeza de que os donos não se importarão se explicarmos o motivo.

— Ah, não. — Alice deu um riso trêmulo. — Não preciso ver o lugar para me lembrar dele. Tudo está guardado aqui dentro. — Levou a mão ao coração e sentiu os olhos lacrime­jarem. — Podemos voltar.

— Quer visitar algum outro lugar? — indagou Victor.

Alice adivinhou o que ele estava pensando. O amante fictício de seu passado devia morar perto, na imaginação de Victor. Alice negou com um gesto de cabeça, e ele ligou o carro. Casualmente conversou sobre assuntos profissionais, respeitando o acúmulo de emoções dos últimos minutos. Alice entendeu e ficou agradecida.

Ao chegarem à Casa da Colina, James não estava lá, mas encontraram-se com David MacKenzie e Derek Bird, vice-di­retores de criação da agência, e o jantar necessariamente se confundiria com uma reunião de trabalho. Victor apresentaria a James suas primeiras idéias, que ainda deveriam ser desen­volvidas, e tudo indicava que, depois dessa conversa, começaria o trabalho para a realização da campanha.

Com alguma sorte, pensou Alice enquanto tomava um banho relaxante, ela voltaria a agir como a secretária eficiente, com seu bloco de anotações firmemente ancorado nas mãos.

Os últimos dias tinha vivido um redemoinho de emoções. Seria um alívio para ela retomar a rotina de trabalho. Sentiu uma ponta de receio apenas quando começou a arrumar-se para descer.

Havia lavado os cabelos e os secara cuidadosamente, de modo a conseguir mais volume em torno do rosto. Depois, usara alguma maquilagem. Em seguida, o vestido vermelho. Mal acre­ditou na versão acabada de mulher que vislumbrou no espelho.

Os homens estavam reunidos em torno da mesa quando Alice finalmente desceu a escada, segurando o fôlego. David rapidamente aproximou-se dela.

— Fabuloso! — ele exclamou. — Você é mesmo Alice Cárter?

— O que você acha, David? — Ela viu Victor no fundo da sala, de pé contra a janela, com um copo de bebida na mão, tentando apagar do rosto uma expressão assombrada.

— É uma flor que só viceja à noite — comentou Derek, despertando em Alice um sorriso amistoso. Ela gostava dos dois colegas, ambos chefes de família na faixa dos quarenta anos, e os tratava sempre de maneira cortês. Victor, natural­mente, era a exceção.

— Já pensou em trabalhar em publicidade? — brincou ele, aproximando-se. — Garanto que sou o chefe menos tempera­mental que você poderá conhecer.

— É preciso saber se essa é a qualidade que ela procura em um chefe — interveio James suavemente, adiantando-se para oferecer a ela uma taça de champanhe.

Seguiu-se um momento de silêncio, antes que todos voltas­sem a falar de negócios. Alice sentou-se, colocou sua taça na mesa e apanhou o bloco de anotações previamente deixado em frente a seu lugar. Fez um esforço mental para não olhar na direção de James. Não havia gostado da insistência de seus olhares na noite anterior e não queria que o sensual vestido vermelho parecesse um convite à aproximação. Ele a havia eliminado de sua vida sem a menor comiseração, e deveria estar completamente louco se pensasse na possibilidade de vol­tar a cortejá-la.

Durante o saboroso jantar e mesmo após a sobremesa, ser­vidos por Jen e duas colegas, Alice manteve o olhar proposi­tadamente longe de James, sentado a sua frente. Quando ele falava, ela desviava a cabeça para o lado e o ouvia, fixando a vista em um ponto qualquer da parede.

Por diversas vezes Alice reparou que Victor a olhava com interesse, atento às reações de James, e ela fez questão de sinalizar que não existia nenhum contato secreto entre os dois.

— Então — disse James depois que Jen tirou a mesa —, creio que chegou a hora de estudarmos os detalhes do negócio. — Ele exagerara no vinho, e Alice pensou que se demorassem muito a conversar a contribuição de James seria praticamente nula. Ninguém ali tinha bebido tanto, e, quando Alice captou o olhar de Victor, pôde deduzir pela expressão de sua face que ele pensava exatamente do mesmo modo.

— Precisamos de uma mesa mais funcional — sugeriu Victor, pondo-se de pé e recolhendo disfarçadamente a garrafa de vinho que restara, solitária, à frente de James.

— A biblioteca! — exclamou James um tom acima do normal. — Ficaremos bem instalados lá. As mesinhas de jogo poderão servir para reuniões paralelas.

Todos já estavam de pé e se encaminharam para o local sugerido. Alice levantou-se e recolheu seu bloco de anotações. Com isso, ficou por último e não estranhou que James, de propósito, esperasse por ela para oferecer-lhe o braço.

— Você está deliciosa, Ali — ele disse, arrastando vagamente as palavras.

Alice desvencilhou-se de sua mão e fitou-o com particular frieza.

— E você bebeu demais, James. Por que não vamos logo à biblioteca e terminamos com o trabalho?

— Você não costumava usar vestidos vermelhos e justos. — O elogio despertou em Alice um olhar de recriminação.

— Não estou aqui por minha vontade, James. Seria um favor se você mantivesse distância.

— Ora, ora. Onde você aprendeu a tratar assim os clientes?

Ela não respondeu e rumou decidida para a biblioteca, onde os outros já deviam estar estranhando sua demora.

— Houve um tempo em que nos dávamos muito bem — ele disse, apressando o passo para caminhar ao lado dela.

— Nem tanto assim, se bem me lembro — comentou ela.

— Casamento não é a solução para tudo — observou James com frieza na voz.

— Nunca pensei em casamento, pura e simplesmente — ela disse com amargura. Curioso, mas rever James tinha co­locado seu passado sob uma nova perspectiva. Vivera muitos anos lamentando que ele tivesse saído de sua vida. Agora tinha a certeza de que fora uma sorte.

— Você continua erguendo o passado contra mim, não é?

— Não contra você. Para ser honesta, tenho pena da mulher com quem se casou.

— Você não a conheceu! Ela transformou minha vida em um inferno!

— Então você o mereceu — Alice retrucou vigorosamente.

— Não sente mais nada, estando aqui nesta casa? Tivemos nossos bons momentos.

— Ah, sim. Vivíamos nos escondendo e tendo um romance secreto às costas de seu pai!

— Você nunca reclamou.

Ela ficou sem resposta. De fato, nunca havia reclamado. Acei­tara a patética explicação de que o velho possuía rígidos princípios morais e jamais aprovaria que Alice e James dormissem juntos debaixo de seu teto. Se descobrisse, isso o mataria.

— Escute, James. Fui uma tola, mas tudo já passou. Voltei aqui como secretária de Victor Temple, e ele nos espera na biblioteca. Não me atrase mais.

Alice não podia acreditar que precisasse fugir de James, depois de quatro anos. Não podia acreditar que tivesse supe­restimado a esse ponto a importância dele em sua vida.

— Sempre lamentei a maneira como nosso relacionamento acabou — insistiu ele. — Senti sua falta, Ali.

— Ora, por favor. Estão nos esperando.

— Agora passo boa parte do tempo em Londres — ele con­tinuou como se falasse sozinho. — Poderíamos nos encontrar e sair de vez em quando. Como amigos.

— Prefiro outro tipo de amizade — ela contrapôs.

— Qual o problema? — Ele parecia não ouvi-la. — Estou ficando mais velho, e as mocinhas de hoje estão ficando mais infantis. Elas me aborrecem. Preciso de uma mulher de verdade.

Ele a olhava de um modo tão patético que a fez suspirar.

— Está bem, James. Um almoço de vez em quando, se eu tiver tempo. Nada mais. — Alice achou que uma pequena men­tira ajudaria a encerrar a conversa.

— Certo, um almoço... — Ele sorriu de satisfação e ia dizer mais alguma coisa quando Victor surgiu, parecendo contrariado com a demora dos dois.

Olhou firme para eles e disse em uma voz áspera, sem ne­nhum traço de cortesia:

— Estamos esperando. Vocês se incomodam?

 

Victor estava de péssimo humor. Alice já havia notado na noite anterior, depois de mais de três horas de trabalho na biblioteca. Ele não deixara de ser o profis­sional de sempre, apresentando uma idéia após outra e trazendo James de volta ao mundo real quando suas propostas se tornavam fantasiosas demais. Mas o tom áspero com que Victor se dirigira a ela a fizera morder o lábio em várias ocasiões.

Naquela manhã, percorrendo os jardins, Alice examinava de relance o rosto de Victor, procurando adivinhar-lhe pequenas alterações no estado de espírito.

Derek e David haviam partido bem cedo para Londres, e James, depois de caminhar meia hora com eles, claramente aborrecido, resolvera levar a cadela Ana para uma nova visita ao veterinário.

— Belos jardins, não? — Alice perguntou, na intenção de provocar uma pequena conversa. Na verdade, os jardins esta­vam maltratados. Grama alta, galhos quebrados, flores mur­chas não eram conseqüência só do tempo que havia mudado, com chuva e ventos fortes, mas principalmente da falta de cuidado.

O corpo de Alice perdia-se dentro da jaqueta de náilon que James lhe emprestara, e seus pés deslizavam com desconforto nas botas de borracha igualmente emprestadas, mas alguns números maiores que o normal. Caía uma chuva fina, persis­tente, que lhe dava a nítida impressão de estar passando por dentro de uma nuvem.

— Não ligo muito para jardins — respondeu Victor em tom pouco amistoso.

Alice desistiu de conversar. Sabia por experiência própria que era melhor deixar a Victor a iniciativa de um diálogo.

— James terá que fazer alguma coisa com estes jardins — disse ele afinal, arrumando a gola de sua capa de chuva. — Se ele imagina que os turistas vão pagar para ver este cenário lamentável, terá uma grande surpresa.

— Não me parece tão ruim assim — ela falou docemente. — O tempo não está ajudando.

— Os jardins precisam ser impecáveis, senão nada feito. — O olhar de Victor fez Alice perceber que ela defendia o indefensável.

Ela o acompanhou, ficando alguns passos atrás, até o bosque de arbustos, imaginando o que o havia deixado tão irritado. Tudo correra bem na reunião da noite anterior, e o pagamento combinado pelo trabalho era significativo. Não que isso fizesse muita diferença para Victor, que jamais avaliava um trabalho pela conta bancária do cliente. Se o trabalho ou o cliente não lhe despertassem a simpatia, não havia dinheiro no mundo que pagasse seus serviços.

— Ao contrário dos jardins, a casa parece em perfeito estado, você não acha?

— Será preciso investir em algumas reformas — disse Victor, sem anuir nem discordar. — Jen e seu espanador definitiva­mente não combinam com o estilo da casa. E não esqueça que só uma parte da mansão está sendo usada atualmente.

— James concordou em contratar uma equipe profissional de limpeza.

Victor esperou Alice aproximar-se mais e voltou-se para ela com uma face de pedra.

— Claydon diz qualquer coisa para satisfazer às pessoas. Ele é generoso quando fala em aplicar dinheiro aqui, mas não me parece disposto a honrar suas promessas. Concorda com isso ou tem outra visão de nosso insinuante cliente?

Mais do que surpreendida, Alice ficou sobressaltada.

— Bem... — ela murmurou. — Suponho que não há razão para pensar...

— Não me diga que você acredita em tudo o que as pessoas afirmam, Alice.

— Não se trata disso — ela disse secamente, notando que a irritação de Victor já a estava contaminando. — Só estou dizendo que ele seria estúpido em arriscar seus últimos cen­tavos na reforma da mansão.

— Mas isso nos envolve, não? — ele respondeu pausada­mente. — Lançamos a campanha, asseguramos que ela seja boa o suficiente para atrair multidões de visitantes, e em se­guida entregamos tudo nas mãos do mestre James.

Era óbvio que, em algum momento, James tinha despertado a antipatia de Victor, e Alice podia imaginar por quê. Enquanto Victor era um homem do trabalho, James fazia o gênero playboy, preocupado apenas em gastar a fortuna da família na maior parte do tempo.

Mas James ainda era um cliente, capaz de reagir à franqueza de Victor com petulância. E Alice não confiaria nele para levar os negócios à frente, se Victor não estivesse por trás do projeto. Em todo caso, ela decidiu, seria melhor enfatizar as qualidades de James, se é que existia alguma, e desconsiderar sua frivo­lidade, se fosse possível. Isso garantiria um mínimo de har­monia nas negociações.

— Suponho que você queira acompanhar toda a campanha, como sempre faz — ela disse, sentindo-se tão exasperada que chegou a pensar rapidamente em novas férias em Portugal.

— Mas talvez possa abrir mão disso, desta vez.

Ele não respondeu. Haviam chegado ao bosque de arbustos, e Alice lembrou-se de como era bonito quando coberto por flocos de neve. Pequenas flores alvas, aqui e ali, ainda mantinham a beleza do lugar.

Outras lembranças lhe vieram com intensidade. Recordou-se de como fazia Henry Claydon percorrer com ela as trilhas de terra, até encontrarem um lugar para sentar. Então, ela estendia um tapete no chão, tirava uma almofada da sacola e ambos pas­savam um bom tempo ali, ora trabalhando no livro de Henry, ora distraindo-se com o aroma das flores e o canto dos pássaros.

— Este lugar fica completamente diferente com tempo úmido — ela disse sem pensar, balançando os pés para livrá-los da terra molhada. — Com sol, é muito mais bonito e acolhedor.

Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual Victor ficou con­templando Alice com ar interessado. Subitamente, ela pensou no que havia dito, e suas faces ganharam um indesejado rubor.

— Parece que você fala com conhecimento — ele comentou.

— Sério? — Ela soltou um riso envergonhado. — Estava apenas especulando. Qualquer arbusto ganha mais vida sob o sol.

— Não esteve aqui antes, Alice?

— Não seja tolo. — Ela gostaria de ter sido completamente honesta desde o princípio, em vez de proteger sua privacidade, e agora era tarde para mudar a situação.

Mais uma vez, Victor calou-se. Demoraram uns quinze mi­nutos passeando entre as árvores baixas, enquanto o céu nu­blado prometia chuva forte. Decidiram encerrar a visita, mas ainda tinham um longo caminho de volta até Londres, e por isso resolveram apressar-se.

Voltaram quase correndo para a casa e já estavam perto da entrada quando ouviram uma voz conhecida.

— Vocês se levantaram cedo ontem.

— Ontem? — Alice precisou de certo esforço para lembrar-se de que ela e Victor haviam ido à cidade, comprado roupas e passeado um pouco. — Por quê?

— Procurei por você. Precisava de ajuda para transcrever uma fita gravada.

— Ah, sinto muito. Se quiser me dar a fita, posso trabalhar em Londres e entregá-la em alguns dias.

James havia regressado e parecia embaraçado por encontrar Alice ao lado de Victor, obviamente retornando de um passeio no bosque. Ela suspirou discretamente de alívio por não ter de enfrentá-lo no jantar. Julgava-se incapaz de continuar su­portando seu assédio sem ter uma explosão de raiva. Princi­palmente com Victor por perto.

— Isso pode esperar. Que tal o passeio? — ele indagou com uma voz jovial, entrando na varanda junto com eles. Na soleira da porta, Alice se livrou da jaqueta emprestada e trocou as botas por seus sapatos.

— Não o fizemos — disse Victor para simplificar. — As nuvens anunciam uma chuva forte e decidimos voltar a Londres.

— Já? Esperem o chá da tarde. O trânsito deve ser menor à noite. — Olhou para Alice com solicitude. — Por que não deixa a dama decidir?

— Porque a dama é minha secretária, e ela deve me acom­panhar — respondeu Victor asperamente.

— Tenho bastante trabalho atrasado — reforçou Alice, sor­rindo para amenizar o confronto.

— Suponho que não vão diretamente para o escritório ao chegarem, vão? — James pareceu estranhar a idéia.

— Absolutamente — disse Alice, divertindo-se com o discreto antagonismo entre Victor e James. — Agora com licença, vou subir para fazer a mala.

— Se me permitir ajudá-la... — James moveu-se em direção a ela, e Alice desviou o olhar para ocultar a preocupação em sua face.

— Posso fazer isso sozinha, obrigada. — Esperava que ele a deixasse em paz, mas, apenas para o caso de que James insistisse, ela dirigiu um sorriso cúmplice a Victor e correu escada acima até refugiar-se na segurança de seu quarto.

Era estranho, mas quando Alice teve de voltar à Casa da Colina, ela pensou que seus sentimentos seriam de mágoa e amargura. Havia carregado aquele peso nos ombros até que eles se tornassem, de certa maneira, uma parte de sua perso­nalidade. Tinha tremido à idéia de reencontrar-se com James, porque não podia vê-lo sem que a sombra do passado a ani­quilasse. Agora percebia que a verdade era outra. Recordava-se da mansão com tristeza e alguma nostalgia, e James... Bem, James não valia seu sofrimento.

Assim, o fato de que ele continuasse a assediá-la não a assustava mais. Apenas a aborrecia. Não queria que sua vida fosse atrapalhada pela indesejável presença dele.

Alice desceu carregando sua pequena mala, meia hora depois. Victor a esperava no saguão com a própria maleta a seus pés. James observava os dois um tanto perplexo, como se não soubesse o que fazer. Ele comentou que estaria em Londres na semana seguinte, e que telefonaria para marcar um encontro. Antes que Victor pudesse responder, ele voltou-se para Alice.

— E nós também nos veremos, sem falta. — Tomou-lhe a mão e a beijou com cavalheirismo, forçando Alice a sorrir-lhe de maneira educada. James era o homem dos gestos grandi­loqüentes, ela pensou. Antes, ela se derreteria diante de sua demonstração de charme. Agora, apenas o considerava irritan­te. Com alívio, percebeu mais uma vez que já estava imune aos encantos de James.

— Vamos? — propôs Victor com impaciência, igualmente irritado com os meneios de seu cliente.

Rapidamente ele ajeitou as malas no carro e partiu. Quando a Casa da Colina já estava fora de visão, Victor disse algo que parecia incomodá-lo:

— James me dá náuseas.

— Por quê? — Mantenha a calma, Alice pediu a si mesma. O trabalho a obrigaria a ver James repetidas vezes no futuro próximo, e não convinha alimentar a irritação de Victor.

— O que você acha? — ele indagou com sarcasmo. — Ele teve de fazer um supremo esforço para concentrar-se na reunião de ontem à noite. Para mim é óbvio que qualquer tipo de trabalho o faz bocejar.

— Deve ser a educação que teve — disse ela com uma voz meiga. — Acho que está sendo difícil para James aceitar a perda de privilégios a que sempre esteve acostumado.

Mergulharam no silêncio enquanto o carro percorria a estrada. Victor teve de diminuir a marcha, pois começou a chover forte. Alice aproveitou para fazer o balanço dos últimos três dias e constatou, aliviada, que não tinham sido o caos que ela antecipara.

— O que achou da viagem, afinal? — Victor estava concen­trado no volante, e sua voz tinha um tom levemente ausente, como se falasse simplesmente para romper o silêncio.

— Como assim?

— Rever seu antigo lar, sua velha cidade.

— Tudo bem.

— Você não foi assaltada em momento algum por lembranças desagradáveis?

— Nada com que eu não pudesse lidar. — Não precisava mentir sobre isso. Estranhamente, voltar aos lugares da in­fância tinha sido a melhor coisa que lhe acontecera na viagem. Havia exterminado o monstro que durante anos ela alimentara dentro de si mesma.

— Confio em você — afirmou Victor enigmaticamente.

— Devo perguntar o que quer dizer com isso? — indagou Alice após uma pausa.

— Não estou sendo claro como imagino?

— Você sabe que não, exceto em alguns momentos.

O carro avançava devagar pela pista encharcada da rodovia. Era quase impossível ver mais de um metro à frente. O rádio ligado noticiou um acidente a cinco minutos dali. Naquelas condições, pensou Alice, levariam aproximadamente três horas até chegarem a Londres.

— Dizem — observou Victor sem olhar para ela — que uma boa secretária acaba conhecendo o chefe melhor que sua esposa.

— Fazer anotações e discutir relatórios não qualificam nin­guém a conhecer uma pessoa.

— E você acha que tudo o que discutimos está relacionado apenas com trabalho?

Alice o olhou com cautela. Victor também se tornava impertinente.

— Acho, sim, que é a melhor maneira de trabalhar. Manter tudo em um nível puramente profissional.

— Mas você nunca teve curiosidade sobre algum colega, algum chefe?

— Aonde está querendo chegar, Victor?

— Em Londres — ele riu, fingindo surpresa com a pergunta dela. — Temos mais duas horas de estrada, pelo menos, e estou tentando saber algo sobre você.

O que Victor não admitia, pensou Alice, era desconhecer as peculiaridades das pessoas com quem lidava. Por meses, ele a enxergava simplesmente como uma brilhante secretária. Ago­ra, sob chuva torrencial, imaginava arrancar-lhe revelações espetaculares, escondidas sob a placidez de seu rosto sereno.

— O que posso dizer? Gosto de meu trabalho, de ler, ir ao cinema e de jantar em um bom restaurante de vez em quando.

— Quantos anos tem? — ele perguntou, fazendo-a corar.

— Trinta e um. — Ela, inexplicavelmente, sentiu-se inade­quada a seus lazeres preferidos.

O tráfego estava virtualmente parado.

— Desse jeito nunca chegaremos a Londres — ela comentou exasperada.

— Faz diferença a hora em que chegarmos? Marcou algum encontro?

— Não — defendeu-se ela —, mas estou cansada e aparen­temente estamos presos aqui.

— É melhor você cancelar os meus compromissos para esta noite — disse Victor, passando-lhe o telefone celular e a agenda eletrônica.

Alice fez o que ele lhe pedira, e com isso passou-se meia hora. O carro quase não saíra do lugar.

— Sugiro sair da estrada no próximo entroncamento e tentar encontrar um hotel para passar a noite. Com esse tempo, cer­tamente o trânsito não vai estar melhor mesmo depois do ponto do acidente.

— Não acho uma boa idéia — comentou Alice rapidamente, assustada com o rumo dos acontecimentos. — A chuva já está cedendo mais para o sul. Não ouviu no rádio? — Consultou o relógio e surpreendeu-se ao ver que era muito mais tarde do que imaginava.

— Cinco e meia — ele antecipou-se ao pensamento dela. — Francamente, estou exausto para continuar dirigindo nestas condições.

Alice sentiu uma ponta de culpa. Gostaria de dizer-lhe que preferia continuar, mas sabia que permanecer ao volante, na­quela situação, era terrivelmente cansativo.

— Bem... sobre o hotel... não é tão má idéia assim — ela hesitou.

— Fico contente por concordar comigo. — O carro continuou se arrastando por mais alguns quilômetros, até que surgiu um entroncamento, e Victor desviou para a cidade mais próxima.

— Mantenha os olhos abertos — ele pediu. — Procure qual­quer placa que indique um hotel. Não deve ser difícil encontrar, pois ainda estamos em uma região turística.

A perversidade do destino os fez percorrer outros quarenta minutos, até finalmente encontrarem um hotel simples. Não era o ideal, mas os abrigaria da chuva em um lugar quente e proveria algum descanso e alimentação.

— Querem dois quartos? — O porteiro estranhou, comentando baixinho que essa era uma novidade para ele: um casal que pedia dois quartos em vez de dar sobrenome falso e ficar em um só. Abriu a porta dos aposentos, simpaticamente limpos, e informou ainda que, se quisessem, poderiam saborear uma carne caseira feita por sua mulher. — Nada de comida enlatada, devo dizer.

O porteiro parecia relutar em deixá-los a sós, mas finalmente se afastou.

— Bem, eu a encontrarei às oito horas no restaurante — disse Victor na soleira da porta, enquanto ela já abria sua mala sobre a cama.

— Ótimo. — O som da chuva a deixava sonolenta e, mesmo com fome, ela preferia ficar no quarto e deitar-se, mas consi­derou-se obrigada a fazer companhia a Victor.

Tomou um banho e ligou a televisão, em um volume sufi­cientemente alto para abafar o ruído da tempestade. Depois sentou-se à penteadeira, para escovar os cabelos em frente ao espelho, quando viu Victor parado à porta.

Alice gelou. Estava completamente nua.

Em uma manobra impossível, tentou cobrir o corpo com as mãos.

— Que está fazendo aqui? — ela gritou, rígida de susto.

— Bati mas não ouvi resposta. — Victor permanecia ali, de braços cruzados, olhando-a por inteiro sem parecer embaraçado.

— Vá embora!

Só então ele concentrou o olhar em seu rosto e mostrou-se desconcertado com a situação.

— Desculpe-me. Estarei no bar em cinco minutos.

Victor saiu, encostando a porta, e Alice continuou sentada diante do espelho, com o corpo tremendo violentamente.

Faltava-lhe experiência para lidar com a situação. Ficaria furiosa e humilhada se houvesse acontecido com qualquer outro homem. Mas tratava-se de Victor Temple, o que por si só já tornava as coisas piores.

Ela praguejou e começou a vestir-se apressadamente, e apli­cou um mínimo de maquilagem. Não conseguia pensar no que estava fazendo. Ainda via Victor de pé na porta, olhando para ela com ar lascivo, e admitiu para si mesma, horrorizada, que sentira um assustador toque de excitação.

Seria normal aquilo? Alice fechou os olhos e descansou a cabeça entre as mãos. Teria de pedir demissão, é claro. Não conseguiria continuar trabalhando para Victor. Sentia-se en­vergonhada e confusa em saber que um lado obscuro de seu ser sentira intensa atração por ele. Mas como culpar seu corpo pela reação instintiva à presença dele?

Passados alguns instantes, Alice se acalmou. Veio-lhe outro pensamento: se dissesse a Victor que queria deixar a empresa, estaria enganando a ele e a si mesma. Ele tomaria a decisão dela por uma reação histérica ao que tinha sido apenas um acidente. Ele só entrara no quarto quando ela estava nua. Não a havia tocado, nem tentado nada. Deveria estar rindo naquele momento, ao lembrar-se do pânico que ela manifestara.

Ela vacilou dezenas de vezes quanto a descer para o bar, mas finalmente decidiu enfrentar a situação. Quando viu Victor sentado à mesa de canto, mal iluminada, criou coragem e ocu­pou a cadeira a sua frente. Se ele mencionasse o episódio do quarto, ela simplesmente daria de ombros e agiria como a mulher madura que era.

Ele não estava rindo nem mesmo sorria. Não fez referência ao acontecimento e conduziu a conversa para assuntos fúteis, como a chuva que ainda caía, até que a comida foi finalmente servida.

— Esta carne está deliciosa — ela disse após uma longa pausa, sem saber sobre o que falar.

— Altos níveis de colesterol — ele comentou. O prato era acompanhado de legumes e de uma farta porção de batatas fritas.

Agora que reconhecera sua atração por Victor, Alice não conseguia tirar os olhos dele, de seu rosto anguloso, do corpo cheio de vigor. Havia nele uma aura de sensualidade, assus­tadora e hipnótica.

Mal podia esperar por voltar ao escritório em Londres e retomar a rotina diária de trabalho. A rotina lhe ajudaria a não mostrar-se tão vulnerável à presença dele.

A pedido de Victor, ela anotou seus compromissos para a semana seguinte.

— Quanto tempo acha que gastará para elaborar a campa­nha? — ela quis saber.

— Das fotografias ao folheto pronto, cerca de um mês. Disse a Claydon que estávamos muito ocupados e que a campanha dele seria encaixada entre nossos outros trabalhos.

— Você lhe disse isso?

— Não precisa me olhar assim — ele a censurou. — É a mais pura verdade. Estamos por aqui a trabalho! — Cruzou as mãos no alto da cabeça.

— Eu sei, mas Claydon é bastante temperamental e exclu­sivista. É estranho ter aceitado sem reclamar.

— Você parece ansiosa por se livrar logo dele — comentou Victor. — Mas vive estimulando seus brios masculinos.

Alice quase riu alto com aquela completa distorção dos fatos.

Para alguém considerado altamente perspicaz, Victor havia errado feio daquela vez.

— Ainda não estou convencido a aceitar a campanha dele — revelou Victor preguiçosamente, sem tirar os olhos de Alice. — Tenho a sensação de que esse homem vai nos trazer muitos aborrecimentos.

Alice ficou confusa. Victor já havia negociado com clientes mais difíceis e parecia apreciar um bom desafio.

— Que tipo de aborrecimento? — ela perguntou.

— Para começar, ele é impertinente. Caso você não tenha notado.

— Bem, acho que ele gosta de ter o controle das coisas. Confia pouco nos outros.

Ele ignorou a observação e tomou um gole de vinho.

— Para continuar, é óbvio que ele está cortejando você.

— Não percebi — ela mentiu, sentindo o sangue subir-lhe às faces.

— Você sabe que não aprovo relacionamentos pessoais entre meus clientes e minha equipe de trabalho.

— Obrigada por me prevenir, mas sei cuidar de mim mesma.

— Sabe mesmo? — Victor parecia disposto a começar um debate. — Você disse que não namora alguém há anos. De repente, surge James Claydon de braços abertos...

— Fique tranqüilo. Não há nada entre nós, nem haverá. Ele é mulherengo e infantil.

— Não sou cego, Alice. A maneira como ele olha para você... Não me diga que está tão desesperada que é capaz de envol­ver-se com um homem como ele.

— Absurdo, Victor. — Desesperada? Era como seu chefe a via? Precisou conter a raiva para não fazer algum comentário grosseiro.

— Preocupo-me com sua falta de experiência com homens, Alice.

— Não sou um bicho-do-mato recém-chegado à cidade — ela retrucou irada.

— Mas não teve romance algum em anos. O último terminou em lágrimas, você mesma me contou. Acho você vulnerável ao charme barato de James Claydon.

"Não sou mais vulnerável a ele", pensou Alice.

— Pensa que é sua obrigação preocupar-se com minha vida pessoal? — ela indagou.

— Na medida em que interfere no trabalho, sim. Como disse, não gostaria de vê-la dormindo com um cliente. Isso está claro?

— Completamente claro. — Ela apoiou as costas na cadeira e fitou-o com frieza. — Jamais pensaria em fazer isso.

Ele devolveu-lhe o olhar com uma expressão pensativa.

— Não sei se acredito.

— Você suspeita de tudo — criticou Alice com um sorriso forçado. Era melhor deixar Victor enredar em seus próprios pensamentos. Isso o distrairia da verdade: o interesse de Alice não era por James Claydon, e sim por Victor Temple.

 

Alice procurava entender os motivos de seu pro­fundo desânimo. Em parte, havia uma gripe que fazia doer sua cabeça e deixava sua garganta irritada como se houvesse engolido uma colher de areia. Mas também tinha consciência de que sua vida havia sofrido mudanças dra­máticas e indesejáveis.

Sem condições de trabalhar, ligou para o escritório às sete e meia da manhã, sabendo que encontraria Victor a postos. Naturalmente, falou-lhe apenas da gripe.

— Tudo bem, mas não deixe de ir ao médico. — Seu tom não era de todo acolhedor, ela percebeu. — Quanto tempo acha que vai ficar fora de ação? Temos muito trabalho por aqui.

Ela reclinou-se na cama, apoiada nos travesseiros, sentindo a mente descansada.

— Não faço idéia. Vou consultar meu vírus e ver se chegamos a um acordo. Está bem assim?

— Dispenso o sarcasmo, Alice. Mas, se você pretende faltar o resto da semana, precisarei providenciar uma substituta temporária.

— Tentarei voltar amanhã — ela disse, completamente rouca.

— Ótimo. Cuide-se, está bem? Avise-me se precisar de al­guma coisa.

Confie nele, ela pensou, e estará perdida. Abandonou-se na cama, sem energia para mais nada.

Quando reabriu os olhos, descobriu que era meio-dia, mas a inércia continuou até às sete horas, quando Vanessa, sua colega de apartamento, voltou do trabalho trazendo para ela uma refeição leve, que foi consumida no próprio quarto. Vanessa fez-lhe companhia, mas logo se afastou, temerosa, como se um exército de vírus estivesse pronto a atacá-la.

— Detesto ficar doente — desculpou-se ela. — E tenho um encontro importante hoje à noite.

— Steve? — Alice tentou adivinhar qual dos namorados de Vanessa estava escalado para aquele encontro.

— Já terminamos. — Ela esqueceu-se dos perigos do contágio e sentou-se na beirada da cama. — Sujeito maçante. Eu sempre querendo sair, e ele sempre querendo ficar em casa, comendo comida caseira e ouvindo música clássica.

— Coitado — Alice lamentou, mordendo um pedaço de queijo que para ela tinha sabor de borracha. — Você lhe falou que odeia cozinhar?

— Nem me lembro, mas também não foi preciso. Por que os homens chegam aos trinta e cinco anos achando que as danceterias ficaram inadequadas?

— Porque eles adquirem bom senso.

Vanessa riu, jogando a cabeça para trás e fazendo balançar seus longos cabelos ruivos. Ela era o oposto de Alice, e por isso se davam tão bem.

— Faltou ao trabalho hoje?

— Sim, mas irei amanhã — declarou Alice.

— Seu patrão é um tirano. — Levantou-se e correu os dedos nos cabelos, a fim de ajeitá-los. — Cuidado para ele não tirar-lhe um pedaço do cérebro.

Alice tentou comer a lasanha e ficou pensando como um prato de que gostava tanto podia tornar-se tão indigesto. Pôs a bandeja de lado e admitiu que não saberia cozinhar uma massa, enquanto Vanessa tinha excelente mão quando resolvia ir para o fogão.

— Deseje-me sorte — pediu a colega. — Ele é alto, loiro e bonito. Só falta ser pretensioso e maçante.

Qualquer coisa seria menos maçante, ponderou Alice mais tarde, do que passar o dia na cama, vendo velhos filmes policiais na televisão.

Ela despertou na manhã seguinte sentindo-se um pouco me­lhor, mas ainda sem condições de ir trabalhar. Previsivelmente, a reação de Victor ao telefone foi um pouco menos do que furiosa.

— O que está tentando me dizer? Que não virá?

Alice reprimiu a tentação de explicar que sua gripe ignorava os cronogramas de trabalho.

— Estou melhor — ela disse em voz baixa —, mas não posso ir ao escritório ainda.

— Nesse caso, o escritório irá até você — respondeu Victor após uma pausa para reflexão. — Ouça, tenho uma reunião daqui a pouco e não posso me demorar ao telefone. Vou até sua casa depois do expediente. Espere-me às sete e meia.

Aquela era uma atitude típica de Victor Temple. Ela passou o resto do dia tentando assumir um estado de espírito que lhe permitisse enfrentá-lo. Vanessa não estaria lá para lhe dar apoio moral, e Alice sentiu-se de antemão fraca e sem defesas diante do chefe.

— Você está péssima! — Victor comentou assim que entrou na casa de Alice e a viu sentada no sofá da sala. Ele trazia debaixo do braço um amontoado de pastas que colocou na me­sinha de centro. — Deveria estar na cama.

— Bem, eu estava na cama quando você disse que viria para cá. — Ela cruzou os braços e olhou para ele.

Com as mãos nos bolsos, ele continuava examinando-a in­sistentemente, sensível ao fato de que ela estava pálida e com os olhos vermelhos.

— Aceita um café? — ela ofereceu, levantando-se para ir à cozinha.

— Há alguma coisa para comer? — Ele a seguiu e, embora Alice se esforçasse por relaxar, podia sentir os olhos dele em suas costas, o que a deixava exasperada. Imaginou-o olhando para ela naquele quarto de hotel de estrada, experimentou um arrepio de arrebatamento e sem demora afastou a imagem de sua mente.

— Não fiz compras ultimamente — ela avisou, despejando água fervente em duas xícaras nas quais já pusera café instantâneo.

— Pão e queijo vão bem, se você tiver. E um pouco de mostarda e maionese.

— Algo mais? — Ela adotou um tom típico de garçonete.

— Não, só isso. — Ele franziu a testa ao perceber a ironia. — É bom ocupar-se com alguma coisa. Ficar muito tempo deitada só piora a situação.

— Obrigada pelo conselho médico — ela retrucou, prepa­rando sem vontade o sanduíche pedido e levando-o para a sala junto com o café. Precisou afastar as pastas da mesinha a fim de acomodar a bandeja.

Victor tirou o paletó e, bem à vontade, enrolou as mangas da camisa branca. Alice ficou observando as linhas fortes de seu peito.

— Obrigado. — Ele devorou o sanduíche com entusiasmo, como se não comesse nada havia dias.

Estava sentado na poltrona em frente ao sofá onde Alice se acomodara com as pernas sob o corpo.

— Não foi ao médico, ao que tudo indica — ele recriminou-a.

— Os médicos receitam qualquer coisa para gripe. É perda de tempo.

— Bem, realmente é melhor evitar os antibióticos. Da pró­xima vez, os vírus vão pensar duas vezes antes de atacar você.

Ele riu, divertido, e então começou a abrir algumas pastas. Inquiriu Alice sobre a situação de certos trabalhos e ditou algumas cartas que ela digitou no computador portátil que ele trouxera. Isso facilitaria bastante sua atividade no escritório, pois, na ma­nhã seguinte, bastaria imprimir as cartas e os relatórios.

— Estou indo depressa demais? — Victor indagou em tom conciliador, e Alice temeu que o ritmo dele continuasse frené­tico: em uma hora, havia passado trabalho para quase uma semana. — Você está um pouco abatida. Devia tomar uma ou duas aspirinas.

— Acho que sim — concordou Alice, esticando as pernas e espreguiçando-se de modo a estimular sua circulação. Para sua surpresa, sentiu-se melhor. Levantou-se para andar pela sala.

— Sente-se. Não faça esforço. Diga-me onde estão as aspi­rinas, e eu as pegarei.

— Tudo bem. Preciso de exercício.

— Absurdo! — Ele também ergueu-se da poltrona e apro­ximou-se dela, estudando-lhe o rosto. Alice informou que os comprimidos estavam em seu quarto, o segundo ao longo do corredor, ao lado da cama. Ele se apressou em buscá-los.

Alice ainda tinha alguma dificuldade em ajustar-se à pre­sença dominadora de Victor e desejou que Vanessa estivesse ali para oferecer-lhe um pouco de distração. Agora que tomara consciência do que sentia por ele, sua mente parecia atenta a cada comportamento dele, a cada modulação de voz, a cada maneirismo que certamente sempre existira mas que ela só agora notara. Tê-lo dentro de casa era motivo de exasperação. Apenas lhe acentuava o mal-estar. Mas tudo voltaria ao normal, ela pensou, assim que retomasse o trabalho no escritório.

Victor reapareceu com a cartela de comprimidos e um copo d'água.

— Tome dois — ele disse de um modo paternal. — Você tem febre?

— Não. — Ela engoliu as aspirinas que ele lhe colocou nas mãos trêmulas.

— Tem certeza? Está um pouco corada. — Victor adiantou-se e sentiu a temperatura dela com a mão espalmada na testa.

— Estou bem — ela apressou-se em dizer, afastando-se dele. Tudo o que queria era manter distância. Quando ele estava muito perto, ela quase não conseguia respirar.

— Você tem se alimentado direito? — Victor parecia estar gostando de brincar de médico.

— Nunca comi melhor. — Alice caprichou no sorriso que deu, com a esperança de que ele interrompesse o interrogatório.

— Bom. Agora diga-me se quer parar a sessão de trabalho. Acho que já exigi demais de você.

— Sinto-me cansada, mas posso continuar se for necessário.

— Então, só mais uma coisinha, e eu irei embora. Onde está sua colega de apartamento? — Ele caminhou de novo para a poltrona, e Alice acomodou-se novamente no sofá.

— Saiu para um compromisso. — Ela usou um lenço para assoar o nariz e procurou mostrar-se o mais exausta possível, o que não estava longe da verdade.

Victor ignorou a cena e abriu mais algumas pastas. Como sempre, Alice pensou, ele era o dono da situação.

— Não precisa vir ao escritório amanhã — anunciou meia hora depois, juntando algumas pastas para levar com ele. Com um relatório nas mãos, Alice desejou que Victor não tivesse a má idéia de deixar ainda mais trabalho para ela fazer.

— Posso terminar o relatório de manhã e levá-lo ao escritório no começo da tarde. Assim, ainda terá tempo de trabalhar com esses dados.

— Ah, não. Fique em casa. Passo por aqui e recolho o tra­balho no fim da tarde.

— Não precisa se incomodar. Vanessa trabalha lá perto e pode deixar um envelope na recepção.

Ele se encaminhou para a porta, e Alice o seguiu pressurosa, estremecendo ao pensamento de que Victor pudesse voltar a sua casa. Aquela visita fora bastante exaustiva.

— Sem problema. — Ele colocou a mão no trinco e manteve no rosto uma expressão solícita. — Vá com calma e cuide-se.

— Muito generoso de sua parte — Alice disse secamente, mas os olhares se encontraram com um lampejo de terna com­preensão. Se ela não conseguisse terminar o trabalho que ele deixara, então talvez a generosidade se apagasse rapidamente.

— Ah, quase me esqueço — Ele voltou-se na soleira da porta —, Claydon virá amanhã. Vou substituí-la na reunião, até que tudo se normalize. — Victor localizou seu carro na rua e caminhou em passos decididos. Não se voltou para fitar Alice.

Enquanto se preparava para deitar de novo, Alice entendeu por que Victor fora tão insistente quanto a ela ficar em casa no dia seguinte. Claydon iria ao escritório. Devia ter adivinha­do. Victor não tinha sido compassivo, apenas quisera assegu­rar-se de que ela e Claydon não se encontrassem. Acreditava que existia um interesse romântico entre os dois. Queria evitar complicações, em exclusivo beneficio dos negócios.

Perversamente, Alice pensou em se apresentar ao trabalho na manhã do dia seguinte, apenas para desfrutar a expressão de espanto e desolação no rosto de Victor. Mas aquele pensamento durou apenas alguns segundos. Não se sentia em condições de voltar ao escritório tão cedo, e também preferia evitar um encontro com James. Não queria nunca mais pôr os olhos nele, se pudesse, e a gripe consistia, naquele momento, em uma excelente desculpa.

A verdade é que Alice sentiu-se bem melhor na manhã se­guinte. Às nove horas, já havia lido o relatório e levou-o para a mesa da cozinha. Vanessa estava lá, fazendo café.

— Não acredito que você esteja trabalhando! — foram suas primeiras palavras, enquanto segurava a chaleira de água, ao mesmo tempo que bocejava.

— Já terminei. E seu encontro, como foi?

— Saí com um piloto profissional — Vanessa fez uma careta. — Imagine a conversa. Ele só faltou abrir os braços e voar.

— Ah! — Alice balançou a cabeça com exagerado desapon­tamento. — Outro de seus famosos fracassos! Prefiro trabalhar um pouco e não sair da rotina.

— Se não procurar, como vou achar minha outra metade na vida? — Vanessa bocejou de novo, enquanto colocava água em duas xícaras de café. — O problema é que atraio homens aparentemente interessantes, mas depois descubro que são uns bobos. Sabe por quê?

— Porque eles disfarçam muito bem — opinou Alice.

— Não, porque os homens interessantes estão todos com­prometidos. O que eu faço, Alice?

— Pobrezinha. Você só precisa escolher melhor suas companhias.

— Bem, o trabalho me chama, e já estou atrasada. Nem todas as secretárias podem ficar em casa fazendo relatórios entregues pessoalmente pelo seu chefe. — Vanessa disparou para seu quarto e, quinze minutos depois, passou pela cozinha, pronta para sair.

— Volto cedo — ela disse. — Só para variar.

Alice mergulhou no trabalho, desfrutando o fato de que tinha alguma coisa para fazer, em vez de ficar deitada. Só se lembrou de que Vanessa avisara que voltaria cedo quando a campainha da porta tocou às seis horas. Vanessa era famosa por esquecer a chave do apartamento. Assim, foi uma surpresa quando Alice abriu a porta e deparou com James Claydon. Ele tinha o mais pacífico dos olhares e trazia uma caixa nas mãos.

— Flores — ele disse, passando-lhe a caixa com um meneio que lembrava um número de mágica.

— O que está fazendo aqui? — Alice fitou-o friamente e ignorou o oferecimento das flores. Aquele homem estava men­talmente abalado se acreditava que podia aparecer em sua casa, sem anúncio nem convite, esperando que ela caísse a seus pés e aceitasse a volta da velha e cansativa rotina de flores, restaurantes e caixas de chocolates. Será que ela não fora clara o suficiente na Casa da Colina?

— Soube que está doente e vim vê-la — afirmou James, recitando o óbvio e adotando uma expressão compungida.

— Bem, já me viu. Agora pode ir.

— Você disse que poderíamos nos encontrar aqui em Londres!

— Eu menti. — Alice se mantinha na soleira da porta, blo­queando a entrada.

— Por que mentiu? E surpreendente em você.

— Era o modo mais fácil de dizer-lhe adeus. — Ela suspirou de frustração. — Escute, James, foi pura coincidência nós nos encontrarmos depois de todo esse tempo...

— Coincidência ou destino?

— Coincidência — ela insistiu. — Não o quero de volta na minha vida. Já me magoou o suficiente.

— Fui um tolo. — James se esforçava por demonstrar sin­ceridade. — Mas eu cresci, amadureci. Casamento, divórcio, mais idade, percebe? Vamos discutir o assunto aí dentro.

— Não há nada a discutir! — Alice mantinha-se firme em sua decisão.

— Bem, então só tomaremos um drinque e não discuti­remos nada.

Naquele momento chegava Vanessa que, com um rápido olhar, aprovou a aparência de James, obviamente encantada.

— O que foi mesmo que você disse sobre homens interes­santes, Alice?

Alice nada respondeu, mas mordiscou o lábio, contrariada. Por sua vez, James examinou Vanessa da cabeça aos pés, no­tando como ela era atraente em sua expressão ao mesmo tempo divertida e sensual.

— E você é... — James exibiu de novo a caixa de flores, sem dar a Vanessa tempo de se apresentar. — Pode não acre­ditar, mas tive a intuição de que me encontraria com uma bela ruiva e trouxe flores...

— Pois não acredito mesmo. — Vanessa deixou pender a cabeça para trás e riu alto. Mas antes que Alice pudesse conceber uma ginástica capaz de dar espaço para Vanessa entrar, mantendo James do lado de fora, os dois já estavam dentro da sala.

James ancorava seu charme na caixa de flores, e Vanessa reagia à altura. Ambos pareciam ter estabelecido um contato imediato, e sua conversa, mesmo não saindo do terreno das futilidades, era entrecortada de risos e exclamações de simpa­tia. Sentaram-se em poltronas distantes, mas qualquer pessoa perceberia, pela linguagem corporal de ambos, que estavam apreciando a companhia um do outro.

Ao fim de uma hora, Vanessa levantou-se bruscamente e anunciou que precisava partir.

— Vou passar o fim de semana fora — explicou vagamente, e James a seguiu com o olhar de um cachorrinho fiel.

— Alguma chance de eu ir junto? — perguntou ele, esperançoso.

— Nenhuma. Mas se você for o cavalheiro que imagino, poderá me convidar para jantar em um belo restaurante, na semana que vem. — Vanessa riu de novo de sua proposta, no que foi acompanhada por James.

— A partir de segunda-feira, qualquer dia — ele informou.

Os olhos de Vanessa brilhavam de satisfação, e Alice reparou que James respondia a sua agressiva sensualidade.

— Que tal quarta-feira? Posso apanhá-la aqui, às oito — ele propôs.

— Ótimo, mas não se atrase. Detesto homens que não cum­prem o combinado.

Depois que ela saiu, James contemplou Alice longamente e deixou escapar um assobio.

— Você divide o apartamento com uma deusa do sexo — ele disse com voz maliciosa.

— E eu aqui, pensando que suas flores e seu charme eram para mim! — No fundo, Alice estava tomada de alívio por essa verdadeira ameaça não ter-se concretizado.

— Bem... — Ele exibiu-lhe seu melhor olhar carente, à ma­neira de explicação.

— Gostaria de tomar um café antes de ir embora? — ela ofereceu.

James balançou a cabeça e seguiu Alice à cozinha, tentando arrancar-lhe informações sobre Vanessa. Onde trabalhava? Tinha namorado firme? Havia sido casada? Que tipo de mulher ela era?

Alice respondeu a tudo evasivamente, enquanto preparava café instantâneo para apressar a partida de James. Sentaram-se à mesa da cozinha compartilhando um espírito de compa­nheirismo que Alice jamais julgara possível.

Infantilidades à parte, não era dela que ele sempre havia gostado? Por que aquele interesse repentino por Vanessa? E ele vivia dizendo que havia mudado! Era um pensamento do­loroso, mas talvez ela não tivesse sabido cativá-lo. James podia ter pensado em transformar Alice em um tipo diferente, mas o que ele precisava mesmo era de uma pessoa diferente, tão diferente quanto Vanessa. Questões sem resposta, ela ponderou com profundo aborrecimento.

Quando ouviram a campainha da porta, levantaram-se com presteza. James disse alegremente que poderia ser Vanessa.

— Ela desistiu de passar o fim de semana sem mim — afirmou com a voz jocosa para disfarçar seu convencimento.

Era Victor. Alice se esquecera completamente de que ele viria recolher o trabalho. Não tinha a menor idéia de onde James se enfiara, mas permaneceu à porta, sem se mexer.

— Como tem passado? — ele perguntou, fitando-a intensa­mente e sentindo um inesperado fluxo de tensão masculina com relação a Alice.

— Bem melhor, obrigada.

— Não vai me deixar entrar? — ele estranhou.

— Não há necessidade de você ficar — devolveu ela sem demora, rezando para que James não se materializasse no meio da sala. — Se esperar um pouco, vou pegar o relatório. Estou contente por ter conseguido terminá-lo. Agora, basta atualizar os dados no computador.

Ela continuava sem mover-se. Inconscientemente, estreitou o vão da porta com o corpo.

— Isso pode esperar até segunda. — Fez uma pausa. — Estou com a impressão de que você não me quer em sua casa.

Alice deu um riso constrangido, que pareceu artificial a seus próprios ouvidos.

— É para poupar seu tempo. Você está sempre com pressa... Só preciso de um minuto para pegar a pasta. — Encostou a porta suavemente, deixando uma pequena fresta, e correu até a cozinha, onde havia deixado os papéis, olhando de passagem se James não se instalara em uma cadeira ou poltrona. Voltou para a porta e viu que Victor havia entrado na sala, olhando em torno de si como se procurasse um assaltante.

Alice passou-lhe a pasta, e ele a fitou estranhamente, ainda desconfiado.

— Você foi rápida. Diria que já melhorou bastante da...

Ele interrompeu-se no meio da frase, e Alice nem precisou olhar para saber que James tinha aparecido.

— Claydon!

Ele sorria para Victor, movimentando-se para estender-lhe a mão e parecendo em todos os detalhes um homem satisfeito com a vida.

— Não esperava que fossemos nos reencontrar tão cedo — ironizou Victor, olhando de soslaio para Alice.

— Esqueci de mencionar que você tem um belo apartamento — disse James diretamente para Alice, que não ousou olhar na direção de Victor. Mas, afinal, estava no território dela e podia fazer o que quisesse.

— Se atrapalhei alguma coisa... — declarou Victor fazendo menção de ir embora.

— De modo algum! — exclamou James alegremente. — Está­vamos conversando e tomando café. Na verdade, já estou de saída.

Isso a deixaria sozinha com Victor, o que também não era uma perspectiva agradável naquele momento.

— Não precisa ter pressa — ela disse a James, porque entre os dois ele levava uma ligeira vantagem. Pelo menos, Alice sabia que podia dominá-lo.

— Não se preocupe. — Ele deu um sorriso largo e fez uma pausa. — Vamos nos ver bastante daqui para a frente.

Ele continuou sorrindo quando Alice fechou a porta atrás dele.

— Não é o que você pensa — foi a primeira coisa que falou a Victor ao encontrar seu olhar tempestuoso.

"Por que estou fazendo isso?", ela recriminou-se. "Não devo explicação alguma a ninguém."

— E como sabe o que eu penso? — ele devolveu.

Alice dirigiu-se à sala, seguida por Victor, resignada com o fato de que ele não iria embora sem alguma espécie de justificativa. Ela sentiu-se acompanhada por um tigre feroz, pronto a atacá-la.

Sentou-se no sofá e esperou que ele se acomodasse na poltrona.

— Não sei como James conseguiu meu endereço, mas ele apareceu sem aviso.

— Que admirável seqüência de eventos! É uma surpresa, depois de suas antigas escapadas à Casa da Colina.

— Não entendi. — A voz e o coração estavam frios, tomados inexplicável medo.

— Quando andamos naquele pequeno bosque, eu poderia jurar que você tinha estado lá antes. Agora tenho a resposta.

— Você não é meu tutor, Victor. É meu chefe.

— Por isso mesmo. Devo preveni-la de novo de que relações pessoais com os clientes são contra as regras da firma.

Seria aquele um ultimato, precedendo a demissão sumária? Alice o sentiu como um soco no estômago, especialmente por estar baseado em uma falsa presunção. Ela fitou Victor, indefesa e confusa, e ele sustentou-lhe o olhar até que a face dela corasse.

— Então? — ele perguntou agressivamente.

— Obrigada por ser tão direto — falou Alice com um fio de voz. — Agora, se não incomoda em me deixar sozinha... Ainda estou bastante cansada por causa da gripe. — Ela ergueu-se e ficou esperando que ele se levantasse também, embora não se dirigisse imediatamente à porta para sair. Victor levantou-se mas sentiu-se incapaz de dar as costas a uma situação que ele mesmo havia criado.

— Escute, Alice...

— Entendi seu recado muito bem, chefe. Não há necessidade de repeti-lo.

— Talvez eu tenha sido um pouco rude...

— Nem pense nisso. — Ela manteve a frieza. — Compreendo sua posição e é justo que me alerte das conseqüências de um flerte com James Claydon. Coisa, aliás, bastante provável, levando em conta que sou uma mulher inexperiente e desesperada por encontrar um homem que me ame e me dê um pouco de atenção.

Alice não percebera que havia dado a sua fala o tom certo de ironia, mas a reação de Victor foi imediata.

— Nunca disse nada disso! Não seja injusta!

Ele ainda não tinha a exata dimensão do romance vivido no passado entre ela e James, mas de qualquer forma julgou-se insultada por Victor ter automaticamente pensado em uma ligação sexual entre os dois. A idéia de uma simples amizade não lhe passara pela cabeça e, claro, as palavras de despedida de James haviam jogado lenha na fogueira.

— Se já terminou, chefe... — Ela fez menção de caminhar até a porta.

— E não me chame de chefe, por favor.

— Você prefere "patrão"? — indagou Alice em um tom edu­cado. — É apenas uma maneira de deixar bem claras nossas relações.

— Nunca permiti que alguém me falasse dessa maneira.

— Então — ela disse, caminhando ao encontro dele, mãos na cintura —, mande-me embora.

— Você quer dizer, demiti-la? — Só naquele momento Alice percebeu quanto estava próxima de Victor. — Não é o que tenho em mente.

— O que você...

Victor não a deixou terminar. Abraçou-a e, inclinando a cabeça, apossou-se de seus lábios, sugando-os com desespero. Alice experimentou uma espécie de vertigem. Depois, ele abriu caminho entre os lábios dela e explorou-lhe a língua sensível, com uma urgência que provocou uma onda de excitação por todo o corpo.

Foi um contato intenso e arrebatado, mas breve. Quando ele a afastou, ela quase perdeu o equilíbrio.

— Não fique perto dele, Alice — ele murmurou. — Estou lhe pedindo.

Ela não respondeu. Não conseguia falar. Ficou como estava até ouvir a porta bater, fechando-se atrás dele. Só então de­sabou na poltrona, como uma boneca de trapo.

 

Alice espantou-se ao encontrar Vanessa toman­do café na cozinha, já completamente vestida e arrumada para sair, às sete horas da manhã.

— Você parece aborrecida — ela disse, tentando dar um tom de entusiasmo a sua voz.

— E você parece um trapo — retrucou Vanessa.

— Obrigada. — Deu um sorriso morno que se confundia com uma careta. — Nada que alguns anos de hibernação não resolvam.

— Ainda gripada?

— Não. Acho que já estou curada. — Olhou para a colega pensativamente. Impossível explicar por que se sentia tão infeliz.

No dia anterior, havia trabalhado um pouco com Victor, em uma atmosfera de educado silêncio. Conversaram apenas o suficiente para dar andamento ao serviço. Ele mal a olhava, enquanto Alice pensava em como se acostumara aos modos de Victor e como apreciava a companhia dele.

Será que ele se lembrava daquele beijo? Nunca perguntaria, claro, nem revelaria quanto ficara abalada. Na verdade, Alice não conseguira pensar em mais nada depois daquela noite. Sua mente reproduzia a cena dezenas de vezes, e ela amaldi­çoou sua fraqueza, mesmo lembrando-se sempre do êxtase ar­rebatador que sentira. Percebeu como estava carente e como Victor a atraía, mas ficou chocada em descobrir que o beijo, embora arrebatador, revelara-se suave demais para sua fome de amor.

— Tem alguns minutos antes de sair para trabalhar? — ela perguntou, e Vanessa concordou com um gesto de cabeça, sentando-se à mesa com sua xícara de café.

— Acho que é justo que saiba que James e eu tivemos um caso, muito tempo atrás.

— O quê? — Vanessa ficou honestamente assombrada.

— É isso. Nem sempre fui tão bem-comportada.

— Não se trata disso. Fiquei surpresa com a pessoa que você namorou. Como o conheceu? Estava cega?

— Trabalhei para o pai dele por uns tempos. Foi assim que começou. Só quero preveni-la. James pode ser muito char­moso, mas...

— Querida, minha experiência com homens me diz que ele é um completo canalha.

— Não... — Alice vacilou.

— O que aconteceu?

— Terminou mal, só isso. E realmente ele foi grosseiro e desumano. Do meu ponto de vista, é claro. Ele me abandonou porque não me achou suficientemente boa para ele. Só que logo depois casou-se com alguém que desconheço. — Fez uma pausa. — Pensando melhor, James me magoou porque eu me deixei magoar.

Alice havia tentado por anos a fio, e com sucesso, culpar James por tudo. Esquecera-se de como o havia pressionado por um casamento. Culpá-lo fazia com que aceitasse melhor sua própria dor. Agora ela olhava para Vanessa, seu oposto absoluto, e imaginava se o homem que tanto amara não pro­curava alguém diferente dela. Alguém como Vanessa.

— Deixe-me entender. Você está me dizendo que ele a aban­donou e agora está casado? — Vanessa gesticulava nervosa­mente com as mãos.

— Não está mais. O que estou tentando dizer é que você deve tomar cuidado. Não quero vê-la magoada.

— Obrigada pela boa intenção, Ali. — Ela franziu a testa. — Mas James Claydon é que deve tomar cuidado comigo. Não vou me deixar envolver pelo charme dele. A menos que exista alguma chance de dar certo.

— Tudo bem, então. — Alice deu de ombros. — Só quero que não se esqueça de que foi terrível para mim, e que mudei muito desde então. — Agora, ela pensou, estava apaixonada por um tipo bem mais perigoso do que James, e que poderia magoá-la muito mais. — O que pensa dele, afinal?

Vanessa levantou-se e enxaguou sua xícara na pia, colocan­do-a no aparador.

— Acho que James tem tendência a julgar-se irresistível. Deve ter sido educado assim. Parece correr atrás de qualquer mulher que lhe dê atenção, mas agora encontrou alguém capaz de enfrentá-lo. Estou aceitando o risco porque certamente ele é um desafio agradável, bem diferente de meus namorados habituais.

— Nesse caso — Alice sorriu —, não há por que me preo­cupar. Mas gostaria que me contasse tudo.

— Em todos os detalhes? — Vanessa riu alto antes de sair.

Vinte minutos depois, era Alice quem fechava a porta da casa para dirigir-se ao trabalho. Não encontrou Victor no es­critório, mas apenas um bilhete em sua mesa, avisando-a de que ele fora visitar um cliente em Wimbledon e que só estaria de volta no meio da tarde.

Ela deu um suspiro de alívio. Por algum tempo, estaria livre da tensão que Victor lhe transmitia, e talvez, quando ele voltasse, ela já teria produzido uma mudança de personalidade que lhe permitisse enfrentá-lo como se nada houvesse aconte­cido entre os dois. Uma perda de memória seletiva iria bem, ela pensou com um sorriso divertido. Seria o passaporte para uma nova liberdade. Se nada acontecesse, porém, tentaria agir como uma pessoa madura, fechando o coração às investidas de Victor. Não era exigir-se demais, era?

Trabalhou com afinco durante horas, até notar uma sombra pairando sobre sua escrivaninha. Era James, como sempre insis­tente e pouco afeito às conveniências. Ele a cumprimentou, e Alice reclinou-se na cadeira, soltando um suspiro de contrariedade.

— Que recepção calorosa! — ele comentou, como que des­provido de nervos, e sentou-se na ponta da mesa, retirando alguns papéis do lugar. Ajustou o nó da gravata com um gesto que parecia fazer parte de seu estilo de vida. — Vim para ver seu chefe.

— Ele não está no momento — avisou Alice —, mas deve voltar no começo da tarde. — Consultou a agenda. — Victor tem um horário livre entre quatro e quatro e meia.

— Homem ocupado.

— Todos aqui vivem ocupados. Mais do que você.

— Isso é bom. — Ele balançou a cabeça diante do sarcasmo de Alice. — O tempo soltou sua língua, querida — disse em voz baixa. — Acontece que eu também estou bastante ocupado. Trabalho, sabe?

— James! Você está trabalhando?

— Só alguns dias por semana, tratando dos negócios de meu pai.

Alice retirou da gaveta um embrulho em papel-alumínio, contendo um sanduíche reforçado. Desfez o pacote cuidadosa­mente sobre a mesa e fez menção de começar a comer.

— Posso dar-lhe detalhes durante o almoço — propôs James.

Alice meneou a cabeça negativamente, dizendo-lhe que aque­le era seu almoço, e que ela perderia o emprego se demorasse mais do que meia hora para lanchar. James ficou desapontado.

— Queria perguntar-lhe, Alice, há alguma coisa que eu precise saber sobre sua colega de apartamento. Vamos sair esta noite.

— Francamente, não estou preocupada com isso. Mas contei a Vanessa sobre nós.

— Você fez o quê?

Ela viu a expressão de James mudar do horror para a resig­nação, e daí para o otimismo. Alice admirou o autocontrole do homem que a havia seduzido e que agora iria enfrentar uma mulher de personalidade tão forte quanto a dele, sua colega Va­nessa. Mas não sentiu nada além do alívio de convencer-se de que o passado, para ela, estava definitivamente superado.

— Saia de minha mesa, James — ela disse, rindo.

Ele obedeceu e, quando Alice olhou para a porta, viu que não estavam mais sozinhos. Victor chegara e, intimidado por sua presença, James não fizera mais movimento algum, per­manecendo perfilado diante da mesa dela.

Victor fitou os dois com um só olhar, frio e desconfiado.

— Não o esperava tão cedo — falou Alice, quase levantando-se.

— Vim buscar um documento que esqueci — explicou Victor.

— E eu contei com minha sorte para encontrá-lo aqui — disse James, aproximando-se dele para demonstrar que não se tratava de uma visita social. — Tenho alguns detalhes a discutir.

Victor dobrou as mangas da camisa e consultou o relógio.

— Tenho vinte minutos, no máximo. Se precisa de mais tempo, marque uma hora com Alice.

— Ah, vinte minutos serão suficientes. — Passou à frente de Victor, dirigindo-se a sua sala e deixando Alice em confronto direto com o chefe.

— Acho que já lhe falei sobre condutas antiprofissionais. Isto aqui é um escritório, não um bar.

— Eu... eu lamento muito — declarou Alice, corada.

— Não entendo que tipo de jogo você mantém com James. — A voz era baixa e controlada como se estivessem discutindo questões de trabalho. — Chego aqui de surpresa e encontro James sentado em sua mesa, quase encostando o rosto no seu.

— É dispensável me dizer isso. James é assim mesmo. — Seria mais simples ter ficado calada, mas Alice quis defender-se sobretudo da desconfiança de Victor.

— Ainda não encerrei o assunto — ele a preveniu em um tom que não prometia uma conversa amistosa na hora do chá. — Mais tarde continuaremos. Por favor, espere-me aqui.

— Tem idéia de que hora será a conversa? — Ela espantou-se de que ainda pudesse falar, quando o sangue lhe fervia nas veias.

— Não faço idéia, mas também não a pago por hora. — Ele fez meia-volta e entrou em sua sala, fechando a porta atrás de si.

Sua atração por Victor, ela ponderou, era totalmente ilógica. Como uma pessoa, qualquer pessoa, poderia sentir algo por uma personalidade tão complexa? Ela ligou o computador, mas sua mente estava nas mulheres que eventualmente entravam na sala de Victor e que não aparentavam ser clientes. Ele não tinha o hábito de trazer sua vida pessoal para dentro do escritório. Podia ter uma ou mais amantes, mas Alice não fazia uma idéia precisa, pois fora dali a vida dele era um livro fechado.

Bem, talvez a resposta estivesse ali. As duas mulheres que ela vira de longe a impressionaram como tipos que Victor cor­tejaria feito um colegial apaixonado.

E ele provavelmente havia queimado etapas com elas, envolvendo-as em seu charme absoluto. Provavelmente, e seus dedos tremeram em um acesso de ciúme, elas nunca se sujei­tariam a suas maneiras rudes, sua língua afiada e sua predi­leção por passar sermões.

Resolveu descer para almoçar, não porque não estivesse sa­tisfeita com seu lanche, mas para espairecer e livrar a cabeça da proximidade perniciosa de Victor.

Passou a hora seguinte caminhando pelas ruas e admirando as lojas de Covent Garden, antes de entrar em uma delas. Comprou duas roupas moderninhas e curtas que, com certeza, iria odiar quando se acalmasse. Mas admitiu, apesar de tudo, que seu guarda-roupa era excessivamente conservador.

Sentiu-se muito melhor quando voltou a sentar-se em sua mesa, no escritório. O passeio havia ajudado bastante a espai­recer, assim como suas compras impulsivas. Victor já saíra novamente, e deixara um recado na mesa para lembrar que ele queria falar com ela quando retornasse, já no fim do ex­pediente. Alice leu e releu o bilhete, antes de amassá-lo e jogá-lo no cesto de lixo.

Às quatro e meia, ela havia terminado o trabalho do dia. As seis, ficou seriamente tentada a ignorar a ordem do chefe e ir para casa, mas teve a intuição de que, se não a encontrasse no escritório, ele bateria à porta da casa dela, a qualquer hora da noite, cheio de frustração e fúria.

Quando ele finalmente chegou, às seis e meia, ela estava tomada de raiva por sua falta de consideração.

— Ainda aqui? — ele perguntou sem piedade, o que a en­fureceu ainda mais.

— Cumprindo ordens. — Ela sorriu o mais placidamente possível naquelas condições.

— Bem, obrigado por esperar. — Victor parecia ter-se lem­brado de que tinha o comando.

Ele ficou observando a cadeira vazia perto dela e imaginando por que James tinha preferido equilibrar-se na mesa. Era des­concertante a atitude daqueles dois.

— Em vez de conversarmos aqui, por que não saímos? Tem algum compromisso para esta noite? Um jantar a dois, talvez.

— Não, apenas quero chegar logo em casa para esquentar uma lasanha no microondas.

— Quer dizer que você e James não vão sair juntos?

— Claro que não.

— Nesse caso, você poderia jantar comigo.

Era um convite ou uma ordem? Alice não sabia mais o que esperar de Victor.

— Queria discutir nosso trabalho, mas em um lugar mais agradável — ele insistiu.

O coração de Alice bateu mais apressado. Discutir trabalho? Seria uma maneira gentil de demiti-la?

— Está bem — ela concordou afinal, esforçando-se para manter a calma ao pegar seu casaco e vesti-lo.

Não perguntou para onde iriam. Enquanto Victor dirigia, o diálogo foi neutro, e Alice pensou em que ele poderia ter a dizer que não pudesse ser dito no escritório. Para avisar que estava dispensada não havia necessidade de irem a um lugar agradável...

Ela só percebeu que não se dirigiam a um restaurante quan­do ele estacionou e desceu do carro em frente a um belo sobrado, em uma das partes mais luxuosas de Londres.

— Onde estamos? — ela perguntou, procurando inutilmente por uma placa.

— Em frente a minha casa. Vamos jantar aqui.

— E como vou voltar depois?

— Chamarei um táxi. Mais alguma pergunta?

— Não — ela disse com relutância. Em outra situação, es­taria curiosa para saber como Victor morava, mas naquele momento sentia-se apenas exasperada, à beira do pânico.

Uns poucos passos os levaram para o meio do saguão, que não era grande, mas magnificente em seus móveis e adornos claros. O grosso carpete creme encorajava qualquer pessoa a tirar os sapatos e andar descalça. Um candelabro de extremo bom gosto pendia do teto, e as paredes eram cobertas por qua­dros modernos, vistosos exercícios de cubismo.

— Quer comer agora ou mais tarde? — ele a consultou.

— Agora. — Alice o seguiu até a cozinha, olhando tudo em volta em si. Os equipamentos da casa eram compactos, mas a decoração denunciava que o proprietário não tinha problemas de dinheiro.

Foi apenas quando entraram na cozinha que a intimidade da situação a assustou. Alice sentou-se à grande mesa de pinho e espalmou as mãos no tampo, como se quisesse verificar se elas não tremiam.

— O que gostaria de comer? — Victor abriu a geladeira e examinou as várias opções.

— Qualquer coisa que não dê trabalho. — Ela tamborilou os dedos na mesa.

— Está bem. — Ele retirou vários alimentos da geladeira, inclusive carne congelada e legumes frescos. Enrolou as mangas da camisa e deu as costas a Alice, cortando e fatiando os legumes na bancada. Era uma cena estranha, ainda mais que Victor havia jogado um pano de prato sobre o ombro.

— Posso ajudar? — ela perguntou após algum tempo.

— Você pode abrir uma garrafa de vinho. O abridor está naquela gaveta. — Ele apontou para a pia com um gesto de cabeça. Seguindo as indicações de Victor, ela apanhou duas taças no armário e, uma vez removida a rolha da garrafa, serviu o vinho com o cuidado de um mestre.

Entre os primeiros movimentos de Victor e o apito do mi­croondas, onde ele descongelou a carne assada, não se passaram mais de trinta minutos. A comida estava deliciosa.

— Meus cumprimentos — ela elogiou. — Nunca pensei que soubesse cozinhar.

— É um mero passatempo, mas, como vivo sozinho, às vezes dependo de algumas habilidades culinárias.

— E eu não consigo dominá-las — revelou Alice, ainda ad­mirada de como Victor transformara a carne, os legumes e um pouco de massa em uma refeição tão saborosa.

— Sua colega de apartamento cozinha bem? — ele perguntou.

— Pior do que eu. — Apanhou mais alguns nhoques com o garfo e banhou-os no molho que, sabiamente, era mantido à parte. — Mas já sabe operar a torradeira e o forno de microondas. Ela é fã incondicional de comida congelada. — Tomou um gole de vinho e decidiu que não passaria da primeira taça. Alice rara­mente bebia álcool e não queria de modo algum sentir-se em­briagada. Não ali, e com certeza não na companhia de Victor.

Terminaram de comer, e ela desejou que o assunto que ele tinha em mente não fosse muito complicado. Sua cabeça não estava preparada para conversas sérias.

— Aceita sobremesa? — ele indagou.

— Não me diga que em cinco minutos você é capaz de fazer maçãs flambadas com mel...

— Não me saio bem com as sobremesas. E nem mesmo tenho maçãs em casa.

Victor serviu um café forte e cremoso, preparado na ca­feteira expressa. A bebida resultara melhor do que qualquer sobremesa.

— Vamos tomá-lo na sala? É mais confortável.

Ele fez uma provisória arrumação dos pratos, empilhando-os na pia, e Alice tentou ajudar, embora suas pernas estivessem pesadas, e ela precisasse de concentração para não derrubar ou quebrar alguma coisa.

Estaria ele notando algo de errado com ela?, perguntou-se Alice. Victor não dava indicação de que ela se comportasse de forma estranha, o que significava que estava sóbria, embora sorridente demais para a ocasião.

— A sala é depois do saguão, segunda porta à direita. Já vou levar o café.

— Que inversão de valores! — ela comentou gratificada, tomando a direção indicada e examinando todos os detalhes da casa pelo caminho.

Minutos depois, Alice o viu entrar com duas xícaras de café fumegante na bandeja, além de dois cálices e, naturalmente, uma garrafa de vinho do Porto.

Enquanto tomavam o café, Victor a interrogou sobre dois ou três relatórios complicados nos quais ela estivera traba­lhando nos últimos dias.

Alice tentou sinceramente mostrar-se a par do assunto, mas sentiu a mente vagar sem metas definidas. Custou-lhe muito esforço voltar à realidade.

Victor abriu as cortinas, revelando uma varanda artistica­mente trabalhada no piso e nas colunas, e voltou para perto da bandeja.

— Porto?

— Não, realmente já bebi demais.

— Duas taças de vinho? Seguramente não é demais.

Sem convencer Victor, Alice teve de aceitar o cálice de Porto. A luz era suave no amplo ambiente, e ela sentiu-se à vontade para tirar os sapatos e dobrar as pernas sob o corpo.

— Acho que não trouxe papel algum onde possa fazer minhas anotações — ela disse.

— Não tem importância. Você não precisará anotar o que quero dizer.

Era chegado o momento crucial, e a atmosfera de tensão fez Alice estremecer.

— Está feliz trabalhando comigo? — ele quis saber, sentan­do-se de costas para a varanda.

— É um ótimo emprego — ela afirmou, confusa.

— Não foi o que perguntei.

— Bem... Sim, estou feliz. — Feliz demais, ela pensou, mes­mo sentindo-se acuada naquela entrevista fora de hora.

— Sei o que dizem no escritório sobre mim. Não sou a melhor pessoa do mundo com quem se pode trabalhar.

— Acho que já me acostumei. Não se preocupe.

Ele a fitava tão concentrado que ela se mexeu no sofá, in­quieta. Em um gesto nervoso, ajeitou os cabelos atrás das ore­lhas e constatou que as mãos tremiam, embora não soubesse definir se era efeito do vinho ou da presença de Victor.

— Quando foi a última vez que teve um aumento? — ele perguntou.

— Não me lembro. Acho que não tive nenhum desde que trabalho para você. Pelo menos, não um aumento formal.

— Você é boa funcionária, Alice. — Declarou isso com uma suavidade romântica que a fez corar. Ocasionalmente, Victor a havia elogiado por seu desempenho, mas muito sutilmente.

— Obrigada — ela murmurou.

— Bem, decidi subir seu salário. — Nomeou uma quantia que a espantou.

— Mas é quase o dobro do que estou recebendo! — exclamou ela, atrapalhada. — Por que essa decisão repentina?

Alice nunca duvidara da qualidade de seu trabalho na agên­cia. Mas uma promoção como aquela, depois de toda a confusão com James Claydon, era a última coisa que esperava. Como interpretar a atitude de Victor?

Ele dirigiu-lhe um olhar neutro.

— Você é a primeira pessoa que conheço a desconfiar de minhas intenções. Estou lhe dando o reajuste porque você real­mente se empenha muito em seu trabalho e tem me ajudado mais do que o normal. É um reconhecimento. Isso explica as coisas para você?

Victor parecia divertir-se com a reação dela, e também com o óbvio pensamento de que havia algo de suspeito naquela decisão.

— Suponho que sim — afirmou Alice com hesitação. Ainda estava certa de que existia mais do que generosidade na oferta de Victor.

— E também faz tempo que seu salário não é revisto — ele disse com descontração, como se lesse a mente de Alice. Ele caminhou até Alice com a garrafa de vinho na mão e ignorou seu protesto quando lhe serviu mais uma dose. Aquela notícia deveria ser comemorada, ou não?

— Era isso que queria me dizer? — perguntou ela, disfar­çando um soluço.

— Esperava alguma outra coisa? — Ele permaneceu deli­ciosamente perto dela, de tal modo que Alice não precisava mover a cabeça para fitá-lo direto nos olhos. O que era bom, dada a leve tontura que estava sentindo.

— Estou um pouco zonza — ela avisou. Diante do olhar insistente de Victor, fez questão de lembrar a si mesma que era apenas sua secretária, uma mulher adulta e não uma ado­lescente tola, e que o beijo que os unira dias antes fora apenas um impulso momentâneo. — Acho que devo ir para casa.

— Não quer mais um pouco de café?

— Não. Meu estômago não aceitaria mais nada hoje. — Mesmo na luz suave daquele ambiente, Alice podia perceber qualquer leve alteração nas feições de Victor. Seus olhos não conseguiam desviar-se do rosto dele.

— Está se sentindo bem? — ele se preocupou.

— Nunca me senti melhor. — O tremor na voz a desmentia.

— Não está acostumada a beber, não é?

— Realmente, bebo pouco álcool. Gosto de chocolate quente, enquanto vejo televisão.

— Noites solitárias... — ele comentou com desnecessária seriedade.

— Prefiro chocolate a uma garrafa de vinho barato — ela disse sem pensar.

— Não precisa ser necessariamente barato.

Por alguma razão, a frase a atingiu bem no fundo de seu ser.

— É verdade. Isso faz toda a diferença. Não tenho nada contra ficar em casa com uma garrafa de vinho caro como companhia.

— Ah, agora você acertou. — No silêncio que se seguiu, Alice quase podia ouvir a respiração de Victor. Estava muito perto dele. Fechou os olhos.

Dessa maneira, ela não viu quando ele se inclinou sobre o sofá e colheu sua boca em um beijo fremente, cheio de paixão e vontade, a língua insistente abrindo-lhe os lábios em uma carícia sublime.

Sem defesa, Alice suspirou e entregou-se àquele carinho.

 

Qual o problema? Esse foi o único pensamento que passou pela mente de Alice quando ela abraçou Victor e acomodou seu corpo ao dele sem deixar nem um momento de saborear sua boca insaciável. Mantinha os olhos fechados, absorta, embora sentisse os seios pulsantes na expectativa do toque.

Quanto tempo se passara, desde que namorara James! Na prática, já esquecera o que havia sentido com ele, e o contato íntimo com um homem lhe parecia uma novidade. Era como se o presente ficasse sobreposto ao passado, de tal modo que Alice não podia mais recordar-se do arrebatamento que James lhe pro­porcionara, e que depois havia apagado com a mágoa que causara.

O sofá era grande e largo como uma cama. Alice acomodou o próprio corpo na cabeceira e reclinou a cabeça em uma al­mofada. Manteve os olhos fechados temerosa de quebrar aquele encanto se os abrisse.

Sentiu que a pressão dos lábios de Victor se aliviava e que ele acariciava suas pernas sobre a roupa, com a cabeça a mi­límetros de seu ventre.

— Tem certeza de que quer ficar assim? — ele perguntou, e ela sorriu julgando que a questão era injusta. Haveria al­guma chance de sair dali, de recuar agora que haviam chegado àquele ponto?

— Qual é a alternativa? — ela quis saber.

— A alternativa é conhecer minha cama, lá em cima.

— Seu sofá é bastante confortável.

— Outra alternativa é ir para seu apartamento, beber uma xícara de chocolate quente e ver televisão.

Alice não respondeu. Ela o enlaçou, puxando-lhe a cabeça para junto de si, ao mesmo tempo que lhe prendia o corpo com as pernas. Pensou, com certa preocupação, que sua saia justa não se prestava a certas manobras.

Gemeu quando Victor recomeçou a beijá-la em um crescente frenesi: boca, rosto, pescoço e o lóbulo da orelha. Gentilmente empurrou a cabeça dela para trás, livrando o colo para os lábios, e Alice sentiu que seu corpo não obedecia mais a qual­quer raciocínio.

Enquanto a beijava, Victor habilmente desabotoou a blusa e livrou-lhe os seios da prisão do sutiã.

Alice lembrou-se de quando James a tocara pela primeira vez, e comentara que seus seios, embora firmes e bonitos, não eram grandes.

— Não sou exatamente uma vedete — ela falou em tom de desculpas, e Victor levantou o rosto para fitá-la.

— Por que acredita que eu gostaria de estar com uma vedete? — ele a tranqüilizou.

— Você não se incomoda?

— Você me ofende se insinua que eu seja um sujeito vazio e boçal. — Imediatamente ele prendeu um mamilo em seus lábios, acariciando-o depois com a língua em movimentos que pareciam não ter fim. A beira do êxtase, Alice suspirava e gemia.

Sentia-se como uma virgem. Cada toque, cada carícia de Victor parecia nova. No entanto, não havia timidez alguma em relação a ele. Desejava-o como nunca desejara alguém antes.

— Tire suas roupas — ele murmurou, erguendo-se afoita­mente para livrar-se de seus trajes.

Alice estava hipnotizada. Haviam trabalhado juntos tanto tempo sem nem ao menos desejá-lo, que vê-lo de pé a sua frente fora uma revelação.

Rapidamente Victor caminhou até o interruptor para apagar a luz principal e ligar dois suaves abajures. Alice acompanhou os graciosos movimentos de seu corpo, fascinada pelas linhas vigorosas.

A visão de sua virilidade provocou nela uma resposta tão intensa que quase a assustou. Tinha sido diferente com James, sempre o recebera com excitação, mas nunca ansiara por seu toque. Com James, o sexo costumava ser um detalhe apressado, uma tórrida explosão de desejo que terminava poucos segundos depois de começar.

Agora, não havia pressa. Victor acercou-se do sofá, de certo modo orgulhoso da admiração que percebera nos olhos dela. Alice despiu-se demoradamente experimentando um delicioso poder de sedução e envolvimento erótico.

Quando ela começou a tirar a calcinha, ele estendeu a mão e ajudou-a na tarefa, apertando os dedos sobre suas curvas mais íntimas. Embora trespassada de desejo, sentiu-se sóbria e consciente. A leve tontura do vinho havia passado, e sentia-se muito melhor. Necessidade, volúpia e curiosidade misturavam-se em uma sensação prazerosa sobre a qual ela não fazia ques­tão de manter o menor controle. Nos últimos anos, nenhum homem havia despertado nela nada igual.

Victor explorou todo seu corpo com a boca e com as mãos. Experimentou a curva dos seios, sugou-lhe os mamilos até fazê-la gemer. Ele controlava a própria urgência como um amante experiente, e, quando Alice fez um leve movimento com os quadris para acomodá-lo melhor, gemeu e perdeu-se em deli­ciosas sensações.

Sem pressa, Victor tomou-a para si. Agora eram um só. Seguiu-se uma dança sensual de corpos até que Alice demons­trou sua necessidade de satisfação, puxando-o contra si com braços e pernas. Ambos conheceram o paraíso.

Quanto tempo ficaram abraçados antes que um deles pro­nunciasse uma palavra? Parecia a duração de uma vida, mas também podia ser uma questão de minutos. O detalhe estranho, ali naquela sala, era que o tempo havia parado.

Quando ele se moveu, Alice deixou a cabeça cair para o lado, exausta.

— Quase adormeci, estou muito cansada! — ela afirmou.

— Espero que esse comentário não seja uma crítica ao que desfrutamos aqui — disse ele.

— É sobre o vinho que tomei. Deus sabe há quanto tempo eu não tinha tudo isso. — Ela bocejou satisfeita. — Acho que vou embora.

— Por quê?

— Que tipo estranho de pergunta. Tenho uma cama a minha espera, e muito trabalho amanhã.

Alice levantou-se e começou a recolher suas roupas, mas Victor a tomou pelas costas e a fez fitá-lo.

— Minha cama é bastante confortável — murmurou, pas­sando rapidamente os lábios por seu pescoço.

— Não! Pare! — Ela riu e empurrou Victor, que sentou-se para vestir a calça mas não afivelou o cinto, deixando as duas pontas soltas na cintura.

— Não faz sentido chamar um táxi e voltar, quando você pode perfeitamente ficar aqui.

Fazia sentido, sim. Em algum ponto obscuro de sua mente, a idéia de passar a noite ali com Victor sugeria algo que, para ela, ia além dos limites do contato físico. Sugeria uma intimidade que não havia entre eles. Sugeria um relacionamento sólido que não existia. Para ele, dormir em sua casa era apenas um pormenor de conforto, nada além de um arranjo conveniente.

Alice soube que não teria argumentos suficientes para con­vencer Victor da necessidade de partir no meio da noite. Sem demora foi ao telefone e chamou um táxi para dali a meia hora, esperando conseguir manter-se acordada durante a es­pera. Conhecendo quanto Victor podia ser persuasivo, terminou de vestir-se sem olhar para ele. Caminhou até a cozinha para fazer um café na cafeteira expressa e voltou com a xícara fu­megante nas mãos.

— Desculpe-me. Nem perguntei se você queria. — Bebeu nervosamente. — Tudo o que aconteceu foi pouco convencional, não? — Perguntou-se como deveria agir agora que já pensava com a razão, não com os instintos.

— Muito. — Ele caminhou até ela e abraçou-a. Uma nova onda de prazer e excitação perpassou pelos dois corpos. — Mas também agradável. Há tempos desejo tê-la em meus braços e em minha cama.

— Não acredito — declarou Alice. Aprendera com James que sempre deveria desconfiar do que diziam os homens, quan­do estavam excitados.

— Não seja cínica — ele retrucou.

— Estou velha para um romance.

— E eu também.

Alice dirigiu a Victor um longo e duro olhar.

— Podemos deixar tudo apenas no terreno do sexo — ela falou.

— Apenas sexo? Você fala como se o sexo fosse uma função orgânica, como assoar o nariz, por exemplo. — Ele riu da pró­pria comparação e aproveitou que ela terminara o café para dar-lhe um beijo rápido nos lábios.

Teria ela cedido facilmente demais? Victor quase não tivera de usar seu charme para conquistá-la, mas o resultado fora o mesmo. Dormir na cama dele seria, no entanto, ultrapassar os limites da rotina. O oferecimento não o tornava mais sincero do que James.

Não que estivesse procurando por algo além da atração fí­sica. Talvez não fosse tão velha para um romance, mas certa­mente sentia-se inadequada para flertes e namoros breves.

— O táxi deve estar chegando — ela falou em uma tentativa de desvencilhar-se do abraço de Victor.

Ele levantou as mãos para o alto e afastou-se dela, tentando acrescentar uma dose de bom humor a uma situação aflitiva.

— Vou continuar trabalhando com você? — Alice perguntou de forma direta.

— Só se quiser. Mas por que procurar outro emprego se acaba de ganhar um aumento? — Ele aproximou-se e delica­damente acariciou-lhe os seios, sobre a blusa.

— Victor, por favor.

— Estou feliz, não percebe?

Ele apertou e ondulou as mãos no colo dela até conseguir apanhar os mamilos entre dois dedos. A sensação prazerosa a impediu a pensar bem. Tentou manter-se atenta à realidade.

— Precisamos conversar... —Alice desvencilhou-se das mãos de Victor.

— Claro! — Ele estreitou o olhar. — Olhe bem para mim.

Ela arrumou a blusa e suspirou. Havia questões a perguntar. Ele a conquistara, e ela se deixara seduzir. A campainha da porta soou. Nada a lamentar. Mas, como iriam ver-se pratica­mente todos os dias, algum acordo de convivência se fazia ne­cessário. Pegou sua bolsa e caminhou em direção à porta.

— Espero que não haja mudanças no trabalho — ele disse com indolência, como se achasse dispensável o pedido.

Ela voltou alguns passos e deu-lhe um beijo no rosto.

Nada permaneceu igual. Na verdade, durante a quinzena seguinte, Alice sentiu-se fora da realidade, flutuando em uma nuvem de ilusão.

Na presença de Victor, o trabalho continuava tão eficiente quanto antes, mas agora havia uma atmosfera elétrica entre os dois. Ele a olhava com malícia. Quando se sentava à frente dele para tomar anotações, sua letra se alterava. A corrente de paixão era tão forte que um aperto de mão, um toque no braço, tudo se transformava em ensaios de carícias. E assim os dias decorreram em um clima de desgastante excitação, completados por noites maldormidas.

Como tudo acabaria? Alice não se arriscava a uma previsão, mas sabia instintivamente que precisava continuar. Sentada letárgicamente à frente da televisão, sentia falta de Victor.

Tinha saudade dele, e esse sentimento lhe ocupava a mente como um enxame de abelhas zunindo em torno de sua cabeça. Desligou a televisão e, mergulhada em silêncio, finalmente assimilou a verdade que vinha tentando esconder de si mesma por dias e semanas.

Estava apaixonada, ela compreendeu com aflição. Havia mantido as emoções sob controle durante tanto tempo, que não percebeu que a misteriosa porta de seu coração se abrira vagarosamente para Victor.

Quando isso acontecera? Quando se deixara levar pelo senti­mento e se rendera a Victor Temple? Era um fato pleno de im­plicações. Estar atraída por ele era uma coisa. Era compreensível. Ele era um homem inteligente, dinâmico e atraente. Talvez tivesse perdido a dimensão do relacionamento deles ao sucumbir aos lesejos que ele lhe provocava, mas tudo isso era apenas humano.

Sentir amor era diferente. O amor criava raízes, exigia com­promissos, e parecia óbvio que ele não a amava. Victor gostava de provocá-la, deitara-se com ela, mas não estava apaixonado. De fato, os lábios dele nunca verbalizaram a palavra amor, nem mesmo no momento supremo da paixão.

Alice caminhou, com passos perdidos, pela sala, os braços protetoramente cruzados ao peito. Forçou-se a relaxar. Não conseguiu. Sentia seu corpo quente e vibrante.

Nunca tinha sido assim com James Claydon. Na época, ela era jovem, estava vulnerável e apaixonara-se. Agora uma dor sutil pressionava o âmago de seu ser. Não queria estar envol­vida dessa maneira, não com Victor Temple. Mas estava, e precisava enfrentar as conseqüências da paixão. Deveria afas­tar-se, retirar-se mesmo fatalmente ferida, pois quanto mais adiasse uma solução, mais magoada ficaria.

Também podia, é claro, deixar tudo como estava e esperar que o tempo trabalhasse em seu favor. Nesse caso, Victor é quem desistiria, mas Alice reconhecia que aquela possibilidade era remota.

— Preciso fazer alguma coisa — disse para si mesma. Falar sozinha em voz alta tornara-se comum em seu dia-a-dia. Ainda bem que Vanessa quase sempre estava fora de casa. Não gos­taria que ela percebesse seus primeiros sinais de loucura.

Alice admitiu que a única coisa sensata a fazer seria deixar Victor, abandonar o trabalho e fugir. Não seria bastante ter­minar o relacionamento. Deveria distanciar-se do problema, sem deixar Victor suspeitar, nem por um instante, de que ela estava muito mais envolvida do que ele. Mas duvidava de que alguma mulher, até então, houvesse abandonado Victor, e ele poderia tomar essa atitude como um desafio a ser vencido.

Não, ela teria de ser demitida da agência, e o caminho para isso passava por James.

Aborrecia-a a idéia de que Victor a demitisse por causa da falsa idéia de que estivesse envolvida com James, um cliente. Mas o que mais poderia fazer? Não conseguira pensar em outra solução.

Alice esperou até onze e meia, quando James e Vanessa finalmente voltaram para casa.

— Ainda está acordada?! —Vanessa indagou, apressando-se em servir-se de uma bebida.

— Esperei vocês chegarem — ela justificou-se, bocejando.

Aquele namoro, pensou Alice, tinha tudo para terminar em casamento, e em pouco tempo. Era espantoso. Na aparência, James e Vanessa nada tinham em comum, mas Alice sabia que James precisava de alguém que o mimasse, e Vanessa era o tipo de mulher que o conquistaria com charme e bom humor. Pareciam duas almas à deriva, destinadas a se encontrarem e viverem juntas o resto da vida.

— Queria falar com vocês dois — ela disse cautelosamente. Sentia-se pouco à vontade, mas tinha de vencer seu constran­gimento, pois precisava da ajuda deles.

— Ah, que cansaço! — James desabou no sofá e esticou as pernas sobre a mesa de centro.

— Fora! — Vanessa bateu-lhe nos pés. — Ponha os pezinhos no chão.

Ele murmurou um protesto, mas olhou para Vanessa com adoração.

— Pode falar, Ali — pediu Vanessa, sentando-se na poltrona em frente a ela.

— Estou com um problema. — Fez uma pausa, esperando que os outros dois se interessassem mais claramente.

— É um homem — interveio Vanessa.

— Victor Temple — anunciou James, sem demonstrar surpresa. — Desde que vi os dois juntos, senti que havia alguma coisa.

— É verdade? — quis saber Vanessa. — Você está saindo com o patrão?

— Sim, mas preciso dar um basta nisso. — Alice levantou os olhos infelizes para a colega.

— Por quê? Se vocês se dão bem...

— Como podemos ajudar? — indagou James.

— Não conseguirei afastá-lo sem uma explicação. Vocês não conhecem Victor, mas ele não vai aceitar facilmente o fim do relacionamento. Ficará me procurando, insistindo...

— Então deixe a agência — propôs James. — Você não terá dificuldade em conseguir outro emprego. Ofereço-lhe um cargo em minhas empresas.

— O que devemos fazer? — impacientou-se Vanessa.

— Na verdade, preciso da ajuda efetiva de James. — Meses atrás, ela o havia tratado com mágoa e indiferença, agora pe­dia-lhe um favor. Era desconcertante tudo aquilo. — Quero que Victor nos veja juntos.

— E que sinta bastante ciúme — completou James.

Alice deu um riso curto e amargurado.

— São as voltas do destino. Quero ser demitida da agência, e ele fará isso se achar que estamos namorando. — Como ela esperava, James demorou a entender.

— Preciso da concordância de minha noivinha — ele disse, olhando para Vanessa.

Vanessa prontamente se dispôs a ajudar a amiga, mas ficou cismada com a expressão "noivinha" usada por James.

Uma hora depois, tudo estava planejado, e Alice revirava-se na cama, ciente de que estava eliminando qualquer perspectiva de felicidade em sua vida. Ficou meditando até convencer-se de que, se pretendia enganar Victor, aquela era a melhor maneira.

Pelo plano, Victor deveria flagrá-los acidentalmente em um abraço ou em um beijo, enfim em qualquer situação comprometedora.

Naquela semana, Victor levaria dois clientes que o estavam visitando para ver uma peça teatral no West End. Alice sabia o lugar onde se sentariam, pois havia se encarregado de re­servar os ingressos. Conseguiria duas poltronas perto de Victor, e James só teria de passar o braço em torno dela. A fértil imaginação do chefe, ela pensou, faria o resto.

— Pode ser um grande erro, sabia? — Vanessa a desafiou na manhã seguinte. — Você pode estar acabando com a melhor chance de sua vida.

— Resolvi correr o risco — declarou Alice tristemente. Sen­tia-se à beira das lágrimas. Havia tentando odiar Victor por ter entrado em sua vida, mas descobriu que não conseguia. Ao contrário, ainda o amava e experimentava, naquilo tudo, um gosto de sacrifício pessoal que transformaria por completo sua vida dali por diante.

Tentou agir da forma mais natural possível quando estava no escritório, mas era impossível esconder a ansiedade que a dominava.

— Bem — disse Victor às cinco e meia, fechando a porta de ligação entre as respectivas salas. — O que há de errado?

— Errado? — Alice sorriu inocentemente, enquanto conti­nuava a digitar um relatório no computador. — Vai ser uma bela noite.

— Não gosto muito de musicais, mas talvez meus clientes apreciem. Reservei mesa em um esplêndido restaurante para jantarmos depois do teatro. Lamento só não poder convidá-la. Sabe que trocaria uma fila de clientes por uma noite com você...

— Sei — afirmou Alice com um leve arrepio. — Mesmo assim... — Ela levantou-se, e eles caminharam juntos até o elevador, seguindo caminhos diferentes ao chegaram do lado de fora do edifício.

Alice tinha apenas duas horas para vestir-se e ir com James até o teatro a tempo de acomodar-se, antes que Victor chegasse. Não queria entrar depois dele, pois não só estaria escuro na platéia como as atenções do chefe estariam divididas entre a peça e seus clientes. Poderia até mesmo nem ser notada.

Vanessa a ajudou a escolher uma roupa apropriada, en­quanto repetia que o plano era uma idiotice. Por que boicotava a própria felicidade, Vanessa perguntou-lhe várias vezes.

— Você está apaixonada pelo sujeito — ela insistiu, sentada à beira da cama. — Aproveite enquanto podem estar juntos.

— Infelizmente, não penso assim — afirmou Alice, enfiando-se em um vestido preto e justo, suficientemente provocativo. — Do jeito que está, é uma tortura. Vivo esperando o machado cair sobre meu pescoço. E Victor não está apaixonado por mim. É apenas atração física. Não quero ser infeliz pelo resto da vida.

— Você está infeliz agora — disse Vanessa com sabedoria.

— Não quero ser mais infeliz, então — retrucou Alice. Calçou seus sapatos de salto alto, agradecendo aos céus que não tivesse de caminhar muito. Sentou-se à penteadeira e maquilou-se um pouco mais do que o habitual. Vanessa continuava a falar, mas Alice estava concentrada em antecipar qual seria a reação de Victor quando a visse com James.

Chegou ao teatro no horário marcado com James, que estava vestido em grande estilo, a rigor.

— Sei que é uma farsa, James, mas não precisava exagerar na roupa.

— Quero fazer tudo direitinho. Ele já chegou?

— Não, e é melhor que nos sentemos antes de Victor chegar. Quero que ele nos veja e tire suas conclusões, sem que preci­semos nos beijar.

James deu de ombros e abriu caminho entre a pequena multidão de espectadores no saguão. Sentaram-se em um dos melhores lugares da platéia.

Ao passar pelas três poltronas que havia reservado para Victor e seus clientes, arriscou um olhar rápido. Ele não estava lá. Era cedo demais, mas por um instante ela entrou em pânico, achando que a farsa poderia resultar em nada, por falta de testemunhas.

Quando as luzes do teatro se apagaram, e a cortina se abriu, Alice teve um sobressalto ao sentir o abraço de James.

— Pode encostar a cabeça em meu ombro se quiser — bal­buciou James pouco depois. — É mais confortável. E mais convincente.

Não se podia dizer que James ignorasse os detalhes da sedução.

Permaneceram sentados durante o intervalo, pois Alice receava encontrar-se frente a frente com Victor. Haveria de encará-lo, é óbvio, ao ir trabalhar na manhã seguinte, mas ao menos já teria cumprido seu plano e estaria preparada para a situação.

— Penso que devemos sair um pouco antes dos outros. Se sua idéia era exibir-se comigo, não devemos nos arriscar a não sermos vistos — murmurou James em seu ouvido, no número de encerramento.

— Certo — ela concordou, mas estava tão nervosa que, após levantar-se, andou trôpega pelo corredor rumo à saída. Apoiou-se em James, e olhou rapidamente para a fileira em que deveriam estar Victor e seus dois acompanhantes.

Alice não vira Victor em momento algum. Será que ele a tinha visto com James?

No saguão, Alice agradeceu James calorosamente, e ele, com embaraçosa sinceridade, disse esperar que o relacionamento entre ambos entrasse em uma nova fase, franca e transparente.

Nunca poderia ser franca e transparente com ele, pensou Alice, mas ainda assim o relacionamento entre eles estava melhor do que tinha sido no passado. E esse era um pequeno ponto positivo para aquela noite.

Ela tomou um táxi para casa e passou a noite insone, só conseguindo adormecer no começo da madrugada. Para seu horror, não ouviu o alarme do despertador.

Assim, quando chegou atrasada ao trabalho, estava confusa e apreensiva. E mais aflita ficou ao confrontar-se com o homem que a esperava em sua sala, encostado à mesa, com as mãos nos bolsos e um olhar glacial no rosto.

 

Desculpe-me pelo atraso. — Alice es­boçou um sorriso forçado, enquanto dependurava seu casaco. Sua mente estava longe dali. Era chegada a hora de descobrir se tinha sido uma boa atriz. Estava de costas para Victor, mas podia sentir-lhe os olhos cheios de expectativa. Não imaginava qual poderia ser a reação dele e, por um instante, desejou que tudo não passasse de um sonho, que tudo permanecesse igual e que, quando se voltasse para o chefe, ele simplesmente lhe passaria as obrigações do dia.

— Não ouvi o despertador tocar — ela justificou ao virar-se. — Devia estar mais exausta do que pensava.

Os olhos cinzentos de Victor a examinaram com perversa frieza.

— Pode vir a minha sala?

— Claro. — Ela o seguiu, apanhando no caminho uma caneta e o bloco de anotações, ligando o computador e tentando fazer com que tudo parecesse normal. O coração lhe batia apressado. E se tudo continuasse igual?

— Feche a porta — ele pediu assim que sentou-se à mesa. — E pode deixar o bloco de lado. Não será necessário.

Alice depositou o material de trabalho na mesa e sentou-se com as mãos cruzadas sobre o colo, constrangida. Então olhou para Victor. Ocorreu-lhe que podia estar vendo-o pela última vez, e esse pensamento deixou-a arrasada.

— Você me parece indisposto — ela comentou, apenas porque não seria natural comentar o óbvio. — Como foi a noite pas­sada? Os clientes aprovaram o esboço da campanha?

— A noite passada foi horrível. — Ele reclinou-se para trás na poltrona, com as mãos cruzadas na nuca. Alice sentiu-se na presença de um estranho, de alguém que escondia qualquer aspecto mais pessoal em seus contatos. — Onde você esteve ontem à noite?

— Onde eu estive? — Ela franziu a testa e tentou ganhar tempo antes de responder. — No teatro. Vi um péssimo musical. — Alice admitiu que a trama para enredar Victor era muito fraca, e desejou deitar a cabeça na mesa, sobre os braços, e dormir. Por um ano inteiro.

— Fui ao mesmo teatro que você. E não tente mentir para mim, porque a vi.

Ela preferiu manter-se calada para não comprometer-se ain­da mais.

— Perdeu a língua, Alice? — A desolação curvou os cantos da boca de Victor, enquanto ela sentia-lhe o esforço para manter sob controle a tempestade que se formava dentro dele.

O telefone tocou, e ele avisou o interlocutor que não receberia chamadas pela próxima meia hora. O tempo todo os olhos de Victor permaneceram fixos no rosto dela. Isso, de certo modo, deu-lhe coragem para continuar.

— Então, acho que me viu com James Claydon. — Pronto. Estava dito. Não precisaria esconder mais nada, nem evitar o rubor nas faces.

— O que está tramando? — ele a questionou.

— Não preciso explicar-lhe nada, Victor. — Sabia que era difícil argumentar com ele e tentou preservar seu espaço de privacidade, fingindo indignação com a intrusão dele em sua vida particular.

— Está errada, Alice — ele disse com um toque ameaçador na voz. — Você vai me explicar tudo, com detalhes.

— E se não o fizer, Victor? Não somos crianças. Você não pode me ameaçar.

— O que estava fazendo com aquele homem?

— Já lhe disse, fomos ao teatro. Não vi nada de errado em aceitar o convite de James. Você estava ocupado.

— Então, enquanto o gato está fora... E isso? — Ele não se incomodou que ela notasse o desdém em sua voz. — Respon­da-me! — quase gritou.

— Não somos donos um do outro. Não temos compromisso. — sua própria voz elevou-se, e ela sentiu-se estremecer. Tinha vontade de sair correndo do escritório.

— Por que razão acredita estar certa?

— Imagino que não goste de James, mas...

— Estou começando a entender. — Seu olhar continuava. pouco amistoso. — O que aconteceu, Alice? Você pensou que James talvez estivesse perdendo o interesse em você?

— O quê? — A falta de lógica era tão evidente que ela o olhou assombrada.

— Não precisa me olhar assim. Quando começou seu caso com James? Quando aconteceu de dormirem juntos pela pri­meira vez? Foi na Casa da Colina, não?

Era irônico, ela pensou. Ele estava absolutamente certo, mas de uma maneira que ela jamais poderia ter imaginado.

— Sim, tudo começou na Casa da Colina, há quatro, talvez cinco anos. — Quando Alice revelou o segredo de sua vida, o impacto não lhe pareceu tão intenso como sempre temera.

— Agora percebo.

— Não, não percebe. Se soubesse ver as coisas, saberia que estou perdidamente apaixonada por você, que você é o único homem para quem realmente entreguei meu coração.

— O que aconteceu, Alice? — Victor não pareceu sensibili­zado pela confissão dela. — James perdeu o interesse? — Não esperou pela resposta, e continuou: — Você decidiu me cortejar para deixá-lo com ciúme?

— Absurdo! — A sugestão era tão fora de propósito que ela mal acreditou que estivesse ouvindo aquilo.

— Chocada com a acusação, não é? — Ele inclinou-se na direção dela, acomodando os braços sobre a mesa, e Alice ins­tintivamente recuou na cadeira. Victor não estava longe de tornar-se agressivo.

Ela o fitou longamente. Para que desgastar-se tentando cor­rigir aquelas acusações?

— Ou talvez você esteja aborrecida por eu ter descoberto seu jogo. Um jogo sujo, feito por amadores. Você deve ter pen­sado que não poderia perder. Se Claydon decidisse afastar-se de você, sempre teria a mim para se entregar. Afinal, você está dormindo com dois homens. Pela lógica, um deles lhe seria fiel. — Bateu o punho na mesa, assustando Alice. — Poderia estrangular você!

— Por quê? Porque seu orgulho foi ferido? — Ela reprimiu as lágrimas que se formavam no canto de seus olhos. — Você pensa que eu o enganei?

— E pode negar isso?

— Você me usou da mesma maneira. Pareceu feliz em fazer amor comigo, mas foi apenas isso, não? Por que não admite sua própria verdade? Por que não admite que me descartaria assim que se cansasse de mim?

— Se você era a caçadora, Alice, quem era a caça? Eu ou James?

Ele a fitou, esperando a resposta, mas Alice não conseguiu sustentar-lhe o olhar. Victor deveria supor que ela estava roída de culpa diante daquelas verdades. Sentiu-se infeliz por não saber responder à altura, e seu único consolo era que aquela manhã, por longa que fosse, também terminaria.

— Sua intenção era de que eu a visse com James e fosse buscá-la? Você desejava saber quanto eu faria para tê-la só para mim?

— Você está enganado. — Se Victor fosse realmente tão perspicaz, veria a sinceridade no rosto de Alice. — Já posso ir?

— Ir? — O pedido lhe soou totalmente impróprio. — Há muito a conversar ainda. Não será dispensada antes de que tudo fique explicado. Também não vou dispensá-la, deixando trabalho inacabado em minhas mãos!

— Você não pode me obrigar a ficar! — protestou Alice, embora sem convicção em sua voz. Se Victor tivesse bom senso, ela pensou, proporia um acordo para sua demissão.

— Quero saber quando as mentiras terminam, e as verdades começam, Alice.

Bem, seria o caso de imaginar que ele estava sendo razoável. Falava agora em um tom amistoso, embora a expressão glacial de sua face negasse essa impressão.

Ela preferiu ficar calada.

— Sua mãe realmente morreu? — A calma dele era insultante. — A casa que visitamos era realmente a sua? Ou tudo isso faz parte do jogo?

— Acha que eu mentiria sobre isso?

Ele ignorou a questão.

— Ficou realmente intocada por muitos anos? Não dormiu com ninguém? Ou pensa que eu me sentiria mais atraído por causa desse detalhe?

— Não tenho de responder isso. — A muralha de insinuações deixava Alice exasperada na cadeira, terrificada pela perspec­tiva de deixar Victor para sempre. Se confessasse quanto o amava talvez pusesse um fim naquela horrível farsa, mas já confessara sua paixão, e ele não se comovera. Ele provavel­mente entenderia sua declaração de amor como mais uma ar­madilha desesperada para prender seu interesse. Havia des­truído as pontes de comunicação entre ambos, e não havia como refazê-las. Ela já estava além de qualquer salvação.

— Há uma coisa que absolutamente não suporto. Sabe qual é?

Nervosamente, ela ficou enrolando uma mecha de seus ca­belos, sem nem mesmo pensar em uma resposta.

— Mulheres ardilosas. Intrigantes. Que mentem e enga­nam. — Ele apanhou uma caneta para girá-la entre os dedos. — Não posso crer que eu tenha me envolvido com uma mu­lher assim.

— Sinto muito — disse Alice, desculpando-se por tudo, in­clusive pelo que não pudera contar a Victor.

— Está bem, então — ele falou friamente. — Isso faz-me sentir melhor.

— É o que mais o incomoda, não é? — ela provocou-o. — Não o fato de terminar comigo, mas de pensar que foi enganado.

— Pensar? Eu a vi de braço dado com James! E você admitiu ter dormido com ele.

— Não, acho que não — ela exprimiu-se com um suspiro de infelicidade.

— Parabéns, então. Fui um idiota em me julgar enganado por você. — A ironia era evidente e veio sem aviso algum. — Você sabe que está fora da empresa.

Alice meneou a cabeça. Pelo menos haviam chegado ao fim. Sentiria falta da agência. Pelo resto de sua vida se lembraria dessa conversa e de todos seus terríveis detalhes. Cada palavra, cada frase, cada olhar.

— Quer que eu prepare uma carta de demissão? — ela perguntou em um tom triste.

— Eu mesmo avisarei o Departamento de Pessoal. Basta empacotar suas coisas.

— Está bem. — Ela levantou-se e descobriu que as pernas mal suportavam seu peso. Olhou para Victor uma última vez. — Sei que não vai acreditar, mas preciso dizer que sinto muito.

Ela suspirou de novo e caminhou para a porta. Em uma cena de sonho, imaginou Victor impedindo-a de sair, abraçando-a e beijando-a. Tudo voltaria ao normal. Ela sentaria e faria seu trabalho como se nada houvesse acontecido.

Na verdade, ele poderia sentir falta dela por alguns dias, até substituí-la e começar a treinar uma nova secretária. Com o tempo, a lembrança dela estaria envolta em desgosto e amar­gura. O mesmo desgosto e amargura que a haviam dominado quando o caso dela com James havia chegado ao doloroso fim. Exceto que Victor nunca deixaria que esses pensamentos in­terferissem em sua vida.

Alice evitou falar com alguém. Sabia que a angústia estava estampada em sua face, para quem quisesse ver, mas não se importaria com os comentários sobre sua súbita partida. Poucos ligariam para sua demissão. Como secretária do chefe, tinha sido objeto de ciúme profissional por parte de numerosas co­legas, ansiosas por ocupar um cargo de confiança.

Passou o resto do dia agindo mecânica e automaticamente. O corpo a carregava, enquanto a mente tomava rumo diverso.

Achou que iria recuperar seu autocontrole quando James e Vanessa voltassem para casa, o que aconteceu pouco depois das dez horas da noite. Mas ela explodiu em lágrimas logo que James a olhou e perguntou como as coisas haviam se resolvido. Foi um choro convulsivo, entrecortado de soluços e suspiros, e quando Alice ergueu o rosto descobriu que James tinha partido, e Vanessa esperava pacientemente por ela, sen­tada no sofá, com uma caixa de lenços de papel.

— James foi embora? Estraguei a noite de vocês.

— Não estragou nada. Quer falar a respeito do que aconteceu?

— Foi um pesadelo. Ele me chamou à sala dele logo que cheguei.

— Mas você sabia disso. Era o mínimo que...

— Sim, eu sei, mas...

— Foi pior do que você imaginava?

— Muito pior, Vanessa. — Ela enxugou as lágrimas e assuou o nariz, indo sentar-se no sofá perto da amiga.

— Victor pensa que eu menti para ele o tempo todo. Disse que eu era oportunista, e manipuladora. O pior foi que não consegui convencê-lo da verdade, nem negar uma só palavra que ele disse.

— Agora está fora de seu alcance — disse Vanessa para consolá-la, oferecendo o ombro amigo para um novo e compul­sivo choro.

Por que o destino tinha lhe reservado dois horríveis romances?

— Tire umas férias — sugeriu Vanessa. — Você não tem mesmo de trabalhar.

— Seria como fugir da realidade — afirmou Alice.

— Será bom para ordenar seus pensamentos. Você voltará mais tranqüila.

— Vou ficar e encarar os fatos. — Ela enxugou as lágrimas de novo. — Amanhã irei até a agência para assinar os papéis da demissão, e então começarei a procurar emprego.

— Vai querer um drinque? Chá? Café?

— Não, obrigada. Vou para a cama.

— Uma bebida poderá ajudá-la a dormir.

— Quero estar bem lúcida amanhã. — E no dia seguinte, e depois também. Ficou de pé, sentindo-se melhor, pelo menos naquele momento.

— Obrigada por me ouvir — ela agradeceu a Vanessa.

— Meu contador lhe mandará a conta — a amiga brincou.

Alice riu e caminhou para seu quarto, mas muitas horas se passaram até que conseguisse dormir. Deveria ter aceitado alguns copos de vinho, mas o temor de uma ressaca na manhã seguinte a fizera evitar a bebida. Queria reconstituir suas lem­branças, achando que isso lhe traria finalmente a paz.

Enquanto isso, precisava achar uma maneira de preencher o tempo.

Alice gastou a semana seguinte atualizando seu currículo e levando-o a várias agências de emprego. Naturalmente, co­meçou pelas maiores e mais conceituadas. Foi chamada para três entrevistas. Recebeu proposta de trabalhos interessantes, mas ela ainda estava sob a impressão de que trabalhar para outra pessoa além de Victor era horrível. Aceitaria a quarta proposta, disse a si mesma, mesmo porque logo iria precisar de dinheiro. Possuía uma razoável poupança, mas o aluguel do apartamento e todas as despesas que ele implicava não permitiam excessiva folga.

Ela estava justamente saindo de casa para uma nova entrevista quando o telefone tocou. Ela se apressou em atender. Seu coração quase parou ao reconhecer a voz do outro lado da linha.

— O que você quer? — perguntou asperamente, sentando-se na cadeira ao lado do aparelho. Apenas ouvir Victor fazia sua mente zumbir. Respirou profundamente, decidida a encerrar a conversa quanto antes.

— A pasta de Cooper.

— Ah! — Levou alguns segundos para absorver o que ele dizia, e Alice não pôde evitar o desapontamento. O que espe­rava? Que ele iria ligar para saber como ela estava passando?

— Nós procuramos por toda parte e parece que sumiu...

— Nós?

Ela não quis perguntar, mas a questão de algum modo so­brepôs-se a sua vontade. Sabia que era um tormento idiota descobrir que já fora substituída.

— Sim, é isso. Pode dar alguma indicação sobre o paradeiro da pasta?

Alice sentiu os olhos ardendo. Victor não falaria nada sobre a nova secretária, e ela passaria o resto da semana, senão do mês, elaborando em sua mente a imagem da mulher. Alta, elegante, atraente? Espetacularmente eficiente?

— Doug Shewsbury pegou essa pasta, semanas atrás — ela informou.

— Que ele queria com ela?

— Algo deu errado com as contas, e ele queria checar os números.

— Certo. — Houve uma pausa opressiva. — Liguei cedo porque achei que você já tinha outro emprego.

— Ah, sim — ela mentiu, porque se sentiria uma lamentável perdedora se dissesse o contrário. — No West End. Trabalho agora para uma produtora de cinema. Incrivelmente estimulante.

— Qual produtora? — Victor quis saber. Devia conhecer todas.

— Prefiro não divulgar no momento. Comecei há poucos dias.

— Bem — ele disse com indiferença, e ela pôde imaginá-lo dando de ombros. A vida dela não era mais de sua conta.

— Como está você? — ela perguntou, mesmo detestando demonstrar interesse.

— Estou bem. — Ele fez uma pausa e completou com frieza: — Não liguei para conversarmos.

— Claro que não. — Ela sentiu o peso da humilhação e apreciou o fato de ele não estar presente para testemunhar sua reação. — Eu também estou com pressa.

— Então não se atrase. Obrigado pela informação.

— Se houver alguma coisa que... — Alice não completou a frase, pois o telefone já fora desligado. Ela permaneceu alguns segundos segurando o receptor na mão, reunindo forças para aceitar a dura realidade. Quando recolocou o fone no gancho, sentiu-se uma idiota em permitir que as más lembranças vol­tassem e guiassem sua vida.

Saiu para o dia ensolarado, embora frio, e sentiu-se revigo­rada. Repetiu várias vezes para si mesma que não deixaria Victor atrapalhar seus passos. Compareceu no horário para a quarta entrevista e precisou relevar o fato de que o escritório era velho e pequeno, e o diretor da firma, pouco estimulante. Fez uma série de perguntas inteligentes sobre autopeças, que era o ramo que lhe oferecia uma vaga, sem deixar de notar que o carpete necessitava de uma boa limpeza. A equipe inteira, que não era grande, parecia ser mais jovem do que ela, com exceção de duas senhoras que conversavam animadamente ao lado da máquina de fax.

— Então? — Geoff Anderson, o diretor, insistira em ser chamado pelo primeiro nome, e agora olhava para Alice, sen­tada diante dele em sua sala. — O que pensa do trabalho?

— Lugar pequeno e simpático — falou Alice com dor no coração. — E todos parecem muito alegres.

— Com certeza. Formamos uma família feliz. — O homem inclinou-se para ela. — Não preciso esconder-lhe que temos muitas candidatas, mas, se quiser, a vaga é sua.

— Oh! — exclamou Alice. — Estou lisonjeada e agradecida. Só preciso de um dia para pensar um pouco. Tenho mais uma entrevista hoje e então resolverei. — Levantou-se e estendeu a mão para o novo chefe em potencial.

— Certo. — Geoff tomou-lhe a mão entre as suas. — Vamos esperar que tudo dê certo.

Ele lembrava a ela um professor de escola secundária, magro e de óculos, com um terno fora de moda e o estranho hábito de rir de suas próprias ponderações, prolongando as frases com um riso nervoso. Sentiu um pouco de pena dele. E como poderia trabalhar para um homem de quem sentia pena?

A entrevista da tarde mostrou-se igualmente desastrosa. John Hope, diretor de uma manufatura de papéis, era exces­sivamente orgulhoso da própria voz de barítono. Praticamente respondia as perguntas que fazia a Alice, não a deixando falar, e segurou-lhe a mão por um intervalo longo demais para ser apenas uma gentileza. Comentara rapidamente que a empresa obtinha papel de seus fornecedores e não se preocupava com sua origem, não era problema deles se havia reflorestamento ou se estavam devastando alguma floresta tropical. Alice se sentiria mal trabalhando para uma firma sem ética.

Quando ela contou para Vanessa o resultado de suas visitas, a amiga a submeteu a um interrogatório prático.

— Aquele lugar em Marble Arch?

— Muito pequeno.

— Emprego número dois?

— Muito grande.

— Vaga número três?

— Ah, sim, a companhia de brinquedos. Não gostei.

— Número quatro e cinco estão igualmente excluídos. Você continua sem emprego, minha amiga.

Alice corou e ensaiou um protesto.

— Sei o que está pensando, mas você não tem razão. Não tenho culpa se os cinco empregos que arrumei são ruins.

— A maioria das pessoas ficaria grata por uma só vaga, imagine cinco!

— No último caso, não chegou a haver uma proposta clara.

De qualquer modo — Vanessa continuou pensativa­mente —, você não deve comparar as atuais propostas com seu emprego anterior.

— Não se trata de comparação — Alice negou. — Não quero aceitar um trabalho em uma firma na qual não vou me sentir bem. Quero dizer, não seria justo com o patrão, certo?

— Ah! Então é isso. — Vanessa meneou a cabeça. — Você pensa no patrão mais do que em você! Estou comovida com sua consideração, Alice. — Vanessa ainda ria quando se desviou de uma almofada atirada pela amiga e saiu carregando sua maleta de viagem.

Sozinha em casa, Alice fez uma salada e sentou-se à frente da televisão. Ficou irritada quando a campainha soou. Não tinha idéia de quem poderia ser, mas, quem quer que fosse, não era bem-vindo. Queria estar sozinha com seus pensamen­tos. Coisa errada, ela pensou, mas era tentador ser indulgente com sua própria infelicidade.

"Vou poupar o visitante de meu mau humor", ponderou Alice, e pensou em não atender. Mas, depois de mais três toques insistentes de campainha, ela levantou-se e abriu a porta.

Ele ainda vestia o terno, mas de algum modo parecia mais desleixado do que o normal. Talvez fosse a palidez, talvez a barba malfeita ou o nó da gravata solto sobre o colarinho aberto.

Alice o contemplou espantada. Era a última visita que poderia esperar. Bastava ter ouvido a voz de Victor ao telefone, pela manhã. Vê-lo agora a fez sentir-se subitamente sem forças para respirar.

— O que veio fazer aqui? — A mão de Alice segurava com força a maçaneta, e seu corpo barrava a entrada do apartamento.

— O que pensa que vim fazer? — Ele precipitou-se contra ela, tentando abrir passagem, mas parou. — Estava passando por perto e resolvi fazer uma visita de cortesia.

— Se veio perguntar-me sobre problemas do escritório, de­sista. Poderia ter ficado mais uma semana para treinar minha substituta, mas você insistiu para eu sair imediatamente. Ago­ra, qualquer pessoa que não entenda meu sistema de arquivo não servirá para a agência.

Alice achou que tinha falado demais. Ela sentia um ciúme natural de quem estava agora ocupando sua cadeira, sua mesa, seu computador, e tendo contato diário com o homem que ama­va. Ela os imaginava conversando, rindo juntos ocasionalmente, enquanto ela permanecia perdida em um mundo insensato, procurando empregos precários e afastada da vida de Victor. Simplesmente não era justo!

— Vai me deixar entrar? — Victor a olhou com tal inten­sidade que parecia querer hipnotizá-la. — Não posso conversar aqui, com a porta entreaberta.

— Talvez eu tenha companhia. Não pensou nisso? — Alice odiou Victor por deixá-la desconfortável como estava, e odiou a si mesma por ser incapaz de afugentá-lo para bem longe dali. Sentia-se fraca e patética.

— E tem? — ele indagou suavemente.

— Não.

— Bom, nesse caso peço licença para entrar. Precisamos ter uma longa conversa.

 

Alice estava confusa. Estava com tanta saudade de Victor que parecia uma mulher esfaimada, subitamente levada para um banquete, mas sabendo que cada porção de comida era envenenada.

Se ele viera para resolver assuntos de trabalho, era melhor que perguntasse logo e fosse embora, deixando-a sozinha com sua infelicidade.

— Onde está sua colega de apartamento? — ele indagou, sentando-se no sofá e fitando-a com mau humor explícito.

— Saiu. Ela mal pára aqui. — "Infelizmente", Alice pensou. Com Vanessa por perto, estaria protegida e poderia manter seu autocontrole com mais facilidade. — Posso lhe oferecer um drinque, mas sei que não quer se demorar. Você mesmo disse que esta não era uma visita social.

— Aceito uísque e soda, se você tiver.

— Lamento, mas não tenho. Pode ser um café? — O tom de voz dela e os braços cruzados à frente do peito enfatizavam a expressão de defensiva hostilidade.

— Sim, pode ser um café. — Ele cruzou as pernas displi­centemente e olhou para Alice com um ar sombrio.

Ela desapareceu na cozinha. Podia sentir o coração batendo forte e os músculos tensos.

Simplesmente não acreditava que Victor viera até sua casa para discutir trabalho. Para isso, teria usado o telefone. E certamente poderia contar com a ajuda da nova secretária para ajudá-lo. Então, para que tinha vindo? Para acusá-la de mais manobras enganadoras? Para ferir ainda mais seu amor-pró­prio? Que satisfação ele teria com isso? Os dias haviam passado, os ânimos estavam mais calmos, não havia motivo para ator­mentá-la. Alice preparou o café com as mãos trêmulas.

Passou a xícara a Victor e recuou para a poltrona em frente, sentando-se rigidamente, como se sentisse medo de ficar perto dele.

— Você está tremendo — ele observou.

— Não o esperava — afirmou ela. — Não pode me culpar por estar emocionada, depois de nosso último encontro em seu escritório. Você veio por causa de trabalho?

— Não. Na verdade, sua substituição ainda está em anda­mento, o processo de seleção não está concluído.

— Ah, bom. — Não sabia se devia alegrar-se com isso ou não. Sentiu um novo aperto no coração e ficou em silêncio.

— E seu novo emprego? Está satisfeita? — ele indagou.

— O quê?

— Aquele estimulante emprego na produtora de filmes. Como está indo?

— Ainda não acertei nada. Menti para você. — Alice con­fessara prontamente na tentativa de evitar novas confusões. — Mas isso não deve surpreendê-lo, já que me considera uma mentirosa nata.

Victor olhou por cima da xícara de café, que segurava com as duas mãos.

— Mas você realmente mentiu sobre seu envolvimento com Claydon.

— Não quero voltar ao assunto! — ela protestou com raiva. Não queria mais discutir com Victor, não queria assumir sua inabilidade em tramar situações ambíguas. Por que ele não a deixava em paz?

Victor colocou a xícara na mesa de centro e rechnou-se para trás no sofá. Parecia esgotado. Passou a mão pelo rosto e, quando a afastou, mostrou um olhar sem raiva, quase meigo. Aparentava ser uma criança a quem se houvesse negado um doce.

— Não consigo tirar isso de minha cabeça — ele disse acu­sadoramente. — Penso em você e James juntos na cama e não entendo, não aceito. — Levantou-se e começou a caminhar pela sala, as mãos nos bolsos em um gesto característico.

Alice sentiu um perverso prazer com o ciúme que ele de­monstrava. Ela devia, sim, ter significado algo de importante para ele. Talvez não tivesse sido amor, mas com certeza fora um sentimento igualmente avassalador. Ela sorriu de satisfa­ção, e ele percebeu.

— Não acho engraçado, Alice. Eu... bem... suponho que...

Ela jamais havia visto Victor tão inseguro e tentou recordar sua maneira normal de ser e agir. Vieram-lhe à mente as cenas da noite em que eles se amaram, e concluiu que aquelas lembranças poderiam alimentar anos e anos de sua vida.

— Como você pôde... — Ele não quis terminar a pergunta. A expressão severa e triste de seu rosto dizia tudo.

— Você não compreende...

— Não diga isso. — Ele parou de andar e depois caminhou para trás da poltrona dela, apoiando ambas as mãos no es­paldar. — Há pouco a compreender. Um homem e uma mulher se encontram e fazem sexo. O que falta entender? O que viu nele, Alice?

Ela manteve silêncio por alguns segundos, achando que ha­via boas razões para isso. Não queria provocar uma discussão.

— Por que está tão zangado, Victor? — perguntou suave­mente. — Não pode admitir que James e eu... Ou é porque se sente traído? É seu orgulho que o faz sofrer?

— E isso importa? — Aproximou-se dela e sentou-se no chão diante da poltrona. — Nunca pensei nesse detalhe. Apenas vejo vocês dois juntos na cama.

— Não devia. — Que motivos ela tinha para não contar-lhe tudo? Nem mesmo se lembrava deles. Apenas sabia que os últimos dias tinham sido um inferno e que seu mal-estar pio­rava a cada momento. — Eu não menti quando disse que James e eu tivemos um caso, mas essa não é toda a história. Tivemos um relacionamento muitos anos atrás.

— O quê? — Ele prestava atenção, ajeitando o corpo para melhor ouvi-la, e Alice ficou contente em poder falar de seu passado e eliminar da mente tantas meias-verdades.

— Deixe-me terminar, Victor. Depois que minha mãe morreu, fui trabalhar na Casa da Colina para o pai de James. Ele estava preparando suas memórias e precisava de uma assistente.

— E você me deixou pensar que tinha um namorado lá...

— Mas tinha. Era James. Eu o conheci pouco depois de começar a trabalhar naquela casa, e ele invadiu minha vida como uma avalanche. — Ela ergueu-se e continuou falando enquanto andava pela sala. — Eu era jovem e ingênua. Nunca havia encontrado alguém como ele antes, seguro e sofisticado. Apaixonei-me e me entreguei a esse amor de juventude. Alice deu um riso amargo.

— Ele me envolveu totalmente. Eu acreditava que haveria um futuro para nós.

Alice chegou à janela e olhou demoradamente através da vidraça fechada.

— Finalmente eu exigi alguma espécie de compromisso, e Ja­mes disse apenas que não estava pronto, que então era melhor terminar com nosso romance. Passei muito tempo me torturando, pensando que não o merecia e que ele era quase um aristocrata, enquanto eu... — Não havia amargura em sua voz quando disse isso. Estava apenas declarando um fato incontestável.

— Vá em frente. — A voz grave de Victor completava um olhar de simpatia. Ou era de piedade?

— Passei a odiar James. Ele havia roubado meus sonhos, além de três anos de minha vida. Então eu o vi mais uma vez e compreendi que realmente tudo havia acabado. Ele estava saindo com mulheres sofisticadas, provavelmente buscava a esposa ideal. Mas eu tinha feito parte de sua vida por três anos, não merecia o desprezo com que ele me tratou.

— Sinto muito.

— Isso aconteceu há muito tempo, Victor. — Ela o olhou. — Meu único arrependimento é ter permitido que esse caso de amor influenciasse minha vida mais do que o necessário. Mudei-me para Londres mas ainda me sentia assombrada por James. Por isso, quando você mencionou a Casa da Colina foi como voltar no tempo, diretamente para dentro de um pesadelo.

— Por que não me contou tudo, desde o início? — ele per­guntou, ainda tenso.

— Porque era uma parte de meu passado, e eu cresci acos­tumada a mantê-lo fechado sob sete chaves, como que para me proteger.

— O que aconteceu quando se reencontraram?

— Nada. Nada aconteceu. — Ela sentou-se e cruzou as per­nas sob o corpo, como gostava de fazer. Para manter as mãos ocupadas, apanhou a xícara de café e ficou girando-a entre as mãos, recebendo o pouco do calor que ela irradiava.

— Mas ele ainda a queria.

— James ficou surpreso em me ver — continuou Alice. — Estava divorciado. Acho que imaginou que eu seria tola o bas­tante para retomar o relacionamento com ele, uma vez que o destino nos havia reaproximado.

— E você não quis... — Victor fez essa observação como o reconhecimento de um fato, mas era claro que ele ainda tinha dúvidas sobre a história de Alice.

— Não, e sempre fui sincera com ele.

— Então por que ele a assediava?

— Ele não estava me assediando. Na verdade, ele e minha colega Vanessa parecem ter-se entendido bem desde que se co­nheceram. Começaram um romance apaixonado. Como James também tinha sofrido com uma mulher, depois de mim, parece que finalmente tornou-se mais compreensivo, mais humano.

— Não a incomoda que seu ex-amante namore sua melhor amiga?

— Nem um pouco. Estou contente por James namorar Vanessa.

Victor suspirou aliviado.

— Pensei que você ainda sentia algo por James. Ou por qualquer outro, além de mim.

— O que está tentando dizer? — murmurou Alice com uma voz quase inaudível. Havia desistido de controlar seus pensa­mentos, e agora sentindo-se perigosamente fora de controle, tinha sua respiração pesada e difícil.

— Há algo mais forte para beber? Não consigo conversar com apenas uma xícara de café.

Alice prazerosamente iria até a mercearia próxima para com­prar uma garrafa de uísque, se isso garantisse o prolongamento do diálogo. Sua cabeça girava e, pela primeira vez desde que deixara o escritório de Victor, sentia-se viva e alerta.

— Há um litro de vinho na geladeira.

— Posso tomar um barril — ele comentou.

Alice pegou o vinho e serviu um copo para cada um. Esteve a ponto de reconsiderar sua posição quando, ao passar o copo para Victor, ele segurou-lhe a mão com uma pressão suave mas maliciosa.

— Também não consigo conversar com você estando assim tão distante — ele se queixou.

Alice imediatamente sentou-se no sofá ao lado dele e pensou que poderia desmaiar ante a vigorosa proximidade de Victor.

— Qual o verdadeiro motivo de você ter vindo, Victor? — ela quis saber.

— Eu não queria vir. Lutei comigo e com minhas emoções. Mas precisava encerrar esse assunto. Já saí com mulheres antes, mas nenhuma como você...

Um arrepio de prazer percorreu-lhe todo o corpo. Sentiu-se à beira de perder o controle.

Alice começou a ter esperança no futuro.

— Eu desejo você. Não, mais do que isso. Preciso de você. Desde que me deixou, não paro de pensar em nós dois juntos, abraçados. Estou ficando maluco. — Apertou a cabeça entre as mãos espalmadas e então olhou para ela. — Pensou um pouco em mim?

— Claro que pensei. — Era uma declaração importante e perigosa, ela ponderou. — Mas...

— Mas...?

— Não estou procurando companhia para poucos meses...

— O que está procurando?

Alice queria dizer-lhe a verdade, mas teve receio de sofrer outra humilhante rejeição. Seria uma repetição do caso James Claydon. Victor falaria sobre a impossibilidade de um compro­misso a longo prazo, dizendo que sentia muito mas que só lhe podia oferecer uma ligação passageira. Ela fechou os olhos e vacilou, dividida entre a vontade de ser honesta e a necessidade de manter seu orgulho feminino.

No entanto, Alice já tinha tentado antes manter o orgulho, e o que ganhara com isso? Semanas de tristeza e desolação.

— Fui de propósito ao mesmo teatro que você — ela disse após tomar um demorado suspiro. — Sabia que estaria lá, pois eu mesma havia reservado os ingressos. Tinha certeza de que você me veria com James.

Victor passou a mão no queixo, esperando novas revelações.

— James apenas me fez um favor. Eu sabia que, se fosse vista com ele, seria demitida. Era o preço de sair com um cliente. Mas ele era também um amigo e se dispôs a fingir que tínhamos um caso.

— Entendo.

— Entende mesmo, Victor?

— Esse assunto não me interessa.

Inquieto, levantou-se fazendo menção de ir embora.

— Ainda não terminei — ela disse asperamente.

Por uma fração de segundo, ele a fitou com raiva, mas depois decidiu ouvir pacificamente.

— O que mais tem a dizer? Você quis sair de minha vida e escolheu o caminho mais fácil.

— Sim, eu queria sair de sua vida, Victor — ela confirmou, assumindo que era melhor ser sincera até o fim. — Talvez tenha escolhido o caminho mais fácil, mas eu estava com medo.

— Com medo de quê? — Ele sentou-se, mostrando-se complacente.

— Você foi meu primeiro homem depois de James — ela disse, determinada a contar tudo o que lhe pesava na alma. — Sempre o achei bonito, charmoso e mais que isso íntegro, mas não fiquei atraída por você. James tinha me deixado in­diferente a qualquer homem.

Alice esfregou as mãos, nervosa, e cruzou os dedos.

— Durante minhas férias em Portugal, senti sua falta. Es­tava me divertindo, mas quis voltar logo, voltar para você.

Ela ergueu os olhos para ele e notou que sua face estava séria.

— Pensei que nunca mais pudesse sentir-me atraída por você, nem por homem algum. Apenas quando revi James na Casa da Colina é que percebi como eu tinha superestimado o poder dele sobre mim. Minha memória o transformara em um tirano. Mas o que eu sentira por ele fora apenas uma paixão de juventude, nada mais. Uma ilusão. Então dormimos juntos e...

Victor fitou-a com seriedade, aguardando novas confissões.

Por alguns segundos, Alice permaneceu calada. Ela apro­veitou o silêncio para recuperar suas forças.

— E eu descobri o verdadeiro amor — ela afirmou simples­mente. — Apaixonei-me por você e quis me afastar porque tive medo de sofrer mais uma vez. — Trocaram um olhar in­tenso, repleto de compreensão. — Você queria a verdade, Victor. Isso é tudo o que tenho a dizer. Seu orgulho masculino está intacto, você realmente conseguiu me seduzir.

Ele reclinou-se para trás e observou Alice.

— Ainda não respondeu a minha pergunta — ele disse com suavidade.

— Qual pergunta?

— O que espera de mim?

— Abri meu coração para você. O que mais quer ouvir?

— Acho que você quer que eu a peça em casamento.

— Sério? E se eu quiser mesmo? — Alice jogou todas precauções pela janela.

— Então eu a pedirei em casamento — disse Victor com inesperada seriedade.

Alice o olhou com intenso espanto, imaginando se tinha ou­vido corretamente.

— Como foi você quem propôs — ele comentou —, terá de me conduzir pelá igreja adentro até o púlpito. O mundo pu­blicitário comparecerá como testemunha. — Victor sorriu de um modo tão envolvente que o coração dela aqueceu-se.

— Você quer mesmo se casar comigo? — ela ansiava por aquela confirmação.

— O mais cedo possível. — Ele venceu a distância que ot separava, e as faces ficaram próximas.

— Mas, por quê? — Alice ainda não acreditava.

— Porque, se ainda não percebeu, estou apaixonado por você. — Victor beijou-a e depois deixou que seus lábios dese­nhassem trilhas carinhosas sobre o rosto de Alice. — Quando você foi embora do escritório, senti que estava levando uma parte de mim. Não consegui mais trabalhar direito, nem comer, nem dormir. Não precisava telefonar a respeito daquela pasta. Foi só um pretexto ridículo. Queria ouvir sua voz, mas foi pior quando desliguei, porque você parecia tão normal, tão serena. Parecia que não precisava de mim como eu de você...

As mãos de Victor a tocaram, descendo da nuca para linha dos seios.

Alice acomodou-se melhor nas curvas do corpo másculo.

— Pensei que estava ficando louco. Você era a última imagem em minha mente quando eu conseguia dormir, a primeira quando eu acordava. Vim aqui decidido a trazê-la de voltar para minha vida. Sabia que iria pôr um anel em seu dedo mesmo se tivesse de forçá-la a isso.

Alice sentiu-se nas nuvens. Abraçada a Victor, desabotoou a blusa e abriu o fecho do sutiã. Gemeu de prazer quando ele a acariciou e, sem dizer palavra, a conduziu para o quarto. Sua pele quente encontrou os lençóis frios, aumentando o arrebatamento que a fazia suspirar com a urgência da entrega.

Cada toque de Victor acendia as chamas do desejo dela. Sua boca, ao explorar o corpo abrasado, enviava correntes elétricas que a lançavam em um redemoinho de êxtase. Como pudera imaginar viver um dia sem os carinhos de Victor? E, fato, ele a preparou para a posse com uma sabedoria que tornou o clímax inesquecível.

Apenas mais tarde, quando descansavam exaustos na cama, ela disse preguiçosamente:

— Ainda há uma última coisa que preciso lhe perguntar

— Não me deixe esperando. — A voz lânguida e quente de Victor não escondeu uma leve preocupação.

— Minha recolocação.

— Ah, sim, sua recolocação... Continue a procurar emprego. Infelizmente, não posso suportar a tentação de ter minha mulh­er a meu lado o dia inteiro. Eu não conseguiria trabalhar, isso poderia ser desastroso para os negócios.

— Mas como sua mulher não vou aprovar nenhuma secre­taria alta, loira e atraente, além de diabólicamente esperta.

— Então, estamos diante de um impasse. Vamos combinar o seguinte: você continuará no emprego da agência até encher­mos a casa de crianças.

— Nesse caso — ela murmurou — por que não continuamos praticando? 

 

                                                                                Cathy Williams  

 

                      

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