Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
APELO DAS ESTRELAS
Primeira Parte
Baía de Herendeen, península do Alasca 602 a. C.
Os ossos da velha protestaram contra o espaço exíguo em que ela estava deitada. A velha estremeceu e olhou para as peles de leão-marinho besuntadas de óleo que estavam esticadas um palmo acima do seu nariz. Conseguiu aproximar-se mais da proa, deslocando as ancas com a ajuda das mãos e dos calcanhares.
Os comerciantes não a tinham autorizado a acomodar-se em cobertores de pele de lebre e haviam lhe dado peles de foca. Disseram-lhe que a pele de foca era mais grossa e mais quente, e ela sabia que eles tinham razão, mas a verdade é que o seu nariz estranhava-a, e ela sentia a falta do bom cheiro a terra das peles de lebre.
”Julgas que conseguirias suportar o frio se os comerciantes te tivessem feito a vontade, velha?”, perguntou ela a si própria. E ficou aborrecida com a sua infantilidade, por ter permitido que os seus desejos lhe ofuscassem o discernimento.
Cruzou os braços e agarrou-se bem quando Yikaas subiu para o iqyax, atirando as pernas robustas uma para cada lado do seu corpo. Sentiu-o encostar o remo à margem e fazer força e ouviu o fundo do iqyax roçando no leito pedregoso e o solavanco da embarcação quando a terra os libertou.
Sentiu uma volta no estômago e arregalou os olhos, como se, ao abrir as pálpebras, pudesse ver o céu através da pele amarelada que revestia a carcaça de madeira vermelha do iqyax. Embora o corpo de Yikaas libertasse calor, vinha frio do mar, e começaram a doer-lhe os tornozelos, cruzados para caberem na extremidade da proa.
A velha lembrou-se da última vez em que viajara assim, como uma pedra de lastro, como um peso morto no iqyax de um homem. Nessa época, ainda o marido era vivo e ela era nova, embora se sentisse velha, com a barriga vazia quase há sete Invernos. O filho mais velho crescera e era caçador, e o mais novo já conseguia sobreviver a um Verão sem a ajuda dela. O marido resolvera levá-la à Praia dos Comerciantes, para ela ir visitar outros contadores de histórias, alguns de aldeias tão distantes como as ilhas dos Caçadores de Baleias.
Ela mostrara-se tímida e pouco falara, mas ouvira muito, e as histórias tinham lhe alargado a mente, e as palavras haviam-na transportado para mundos imensos, comparados com o seu.
Nos últimos Invernos, vira Yikaas fazendo-se homem. Tinha os ombros mais largos e até o seu pé de lontra aumentara de tamanho. As meninas deitavam-lhe olhares atrevidos, seduziam-no descaradamente, e ele ostentava os seus prazeres com o orgulho de um guerreiro que exibe as cicatrizes das suas batalhas.
Era dzuuggi, já conhecia os segredos do Povo, mas, como muitos jovens, tornara-se cheio de si demais. Restava à velha mostrar-lhe como eram grandes os limites da terra e como era pequeno o seu entendimento.
Yikaas encarara a viagem como uma aventura, viera de boa vontade, e agora a velha já perdera a conta aos dias de viagem que levavam. Todas as manhãs iam juntar-se aos comerciantes das aldeias do Povo Rio, e nos últimos dias até alguns Caçadores Marinhos viajavam com eles. Todas as manhãs a velha se censurava por ter caído na asneira de vir com Yikaas. Afinal, ele era jovem e forte. Podia viajar sozinho.
Ela ensinara ao rapaz as poucas palavras da língua dos Caçadores Marinhos que sabia, e agora chamava essas palavras à boca, retinha-as ali, entaladas na garganta, como se elas fossem um amuleto que a defendesse do poder do mar. Desde que iniciara esta viagem que, todos os dias, contava a si própria histórias dos Caçadores Marinhos de Chagak e Shuganan, de Kiin e Samiq, apelava a esses velhos para que dançassem sobre ela, e as suas silhuetas destacavam-se nas peles de foca como sombras projetadas numa tenda de pele de caribu por aqueles que lá viviam. Mas hoje, para ajudar a esquecer o medo e o desconforto, confiaria nas histórias de Chakliux, esse grande contador de histórias, e de sua mulher, Aqamdax.
Kuy’aa falou baixinho, encheu o iqyax de Yikaas de palavras ciciadas e, por volta do meio-dia, o movimento do remo e o efeito reconfortante das histórias tinham-na ajudado a adormecer. A velha mergulhou nos seus sonhos e ouviu a voz da mãe. Por instantes, voltou a ser menina, recém-chegada ao mundo em que nascera, atada a uma tábua de embalar, conhecedora do ritmo do corpo materno.
De súbito, o iqyax deu um solavanco, e o estômago da velha contraiu-se de medo. Regressou à velhice, e o reflexo levou-a a agarrar-se à carcaça do iqyax. Sentiu o choque de alguma coisa por baixo deles. ”É um animal”, pensou ela, sem se lembrar se tivera o cuidado de verificar os pés nessa manhã, antes de partirem. Os Caçadores Marinhos diziam que bastava um punhado de ervas presas entre os dedos dos pés para os animais marinhos se sentirem ofendidos. Então, furiosos, vinham das profundezas e abriam buracos nas paredes do iqyax.
A velha tinha os dedos dos pés dormentes, frios e rígidos como pedaços de madeira, mas julgou sentir algumas ervas compridas entre eles, fazendo-lhe cócegas na planta e arranhando-lhe as canelas.
Mais um solavanco, este tão forte que a carcaça do iqyax se inclinou e gemeu; os nós das juntas deslocaram-se e ergueram-se como os ossos de um esqueleto. A velha deu um grito e, ao fazê-lo, as palavras dos Caçadores Marinhos que retivera na garganta para lhe servirem de amuleto escaparam-se para o iqyax. De repente, o ar à sua volta tornou-se tão espesso que ela mal conseguia respirar.
Em seguida, ouviu a voz de Yikaas, como um pai acalmando um filho.
- Já estamos aqui, tia - disse ele. - Na Praia dos Comerciantes. A maré está baixa e encontramos algumas rochas. Se lhe custar muito a descer, eu espero na baía até que a maré suba.
A velha levou os dedos aos lábios, abriu caminho entre as palavras dos Caçadores Marinhos e respondeu:
- Entra agora, se fores capaz.
Puxou o tapete de pele de foca para a cara como se fosse uma coifa, cruzou os braços à volta do peito e tentou fazer-se pequena, para que Yikaas pudesse encaminhar o iqyax, não só com o remo como com os movimentos das pernas e das nádegas.
Por fim, o casco roçou na areia, e Yikaas desatou a saia de proteção. Uma corrente de ar frio invadiu o iqyax e libertou as histórias, as palavras e o medo. Depois, as mãos robustas de Yikaas agarraram-na pelas axilas e puxaram-na, afastando as camadas do cobertor de pele de foca. O jovem ajudou-a a levantar-se, e ela assentou bem os pés na terra para se equilibrar.
- Trouxeste a tua avó? - perguntou alguém, falando na língua do Povo Rio, mas com sotaque de um Caçador Marinho.
- Ela chama-se Kuy’aa - respondeu Yikaas. - Foi ela quem me trouxe. Somos contadores de histórias e viemos aprender com vocês.
Era uma resposta que ele poderia ter dado quando era pequeno, e Kuy’aa ficou satisfeita ao ouvir a humildade das suas palavras. Que espaço sobrava para as histórias, se um homem enchesse a sua mente e o seu coração de pensamentos que enaltecessem a sua própria importância? Pouco faltaria para que as pessoas de quem ele falava se diluíssem nele e o contador de histórias se transformasse num fanfarrão.
- Nós precisamos sempre de contadores de histórias, disse o Caçador Marinho. - Esta noite vamos ouvir histórias contadas por uma mulher que veio das ilhas dos Caçadores de Baleias.
”Aaa, então somos duas”, pensou Kuy’aa. ”Velhas como somos, avós, arriscamo-nos a morrer no mar para termos uma última oportunidade de contar e de ouvir histórias na Praia dos Comerciantes.”
Perdida nos seus pensamentos, a velha só percebeu que Yikaas estava falando quando já era tarde demais para o mandar calar-se.
- Eu esperava contar as minhas histórias esta noite, dizia ele.
A velha corou, envergonhada com o atrevimento dele. O comerciante sorriu e disse:
- Gostaremos muito de te ouvir, mas primeiro tens de descansar. Esta noite, tens que ouvir.
Kuy’aa empinou o queixo para o comerciante, fez um gesto de cabeça e percebeu que o homem compreendera a sua gratidão.
O homem deu uma palmada no ombro de Yikaas e soltou uma gargalhada sonora e prolongada, lembrando à velha a alegria com que os Caçadores Marinhos gozavam a vida.
- Por aqui há muita coisa para negociar. Vê lá se negocias bem e com tino - salientou o homem, apontando com o queixo para o topo da praia, onde se viam os cavaletes dos iqyax e o caminho que ia dar à aldeia dos Caçadores Marinhos.
A velha ajudou a descarregar o iqyax e depois levou um pesado fardo de comida e de objetos para trocar para o local em que a praia formava um declive. A promessa das histórias fora um bálsamo que apaziguara o terror dos dias passados no iqyax e que afastara o receio de que Yikaas, o dzuuggi que ela escolhera, ficasse aquém das suas expectativas.
O dzuuggi abriu caminho até o círculo de pessoas mais próximas do centro da tenda. Kuy’aa explicara-lhe que os Caçadores Marinhos chamavam ulax às tendas. Um ulax tinha o formato de um morro, com uma parte subterrânea, e era guarnecido de vigas de madeira flutuante e coberto de esteiras entrelaçadas, uma camada de terra e raízes e erva. As espessas paredes de terra pareciam abater-se sobre Yikaas, que teve de refrear o impulso de encolher os ombros para se defender da escuridão.
Não era difícil perceber que os Caçadores Marinhos pertenciam ao Povo Rio. Esses caçadores de mamíferos marinhos punham-se de cócoras e envolviam os joelhos com os braços. Yikaas resfolegou, com um ar escarninho, e sentou-se no caminho destinado aos homens. Mas, enquanto esperava que as histórias começassem, sentiu que a umidade vinda do chão de terra se infiltrava nas calças de pele de caribu, e de repente percebeu por que motivo é que eles não se sentavam. com o pé esquerdo revirado na ponta - um pé de lontra, como Kuy’aa lhe chamava, com os dedos unidos por uma membrana - concluiu que se sentiria mais confortável como estava, em vez de tentar equilibrar-se só num pé. Por isso, deixou-se ficar sentado, mas resolveu trazer a almofada de pele de foca do seu iqyax na sessão seguinte, para não se molhar.
Estava cansado, mas tão entusiasmado com as histórias que iria ouvir que conseguiu manter-se acordado. Quando os seus olhos se habituaram à semiobscuridade das lanternas de óleo de foca, virou a cabeça à procura de Kuy’aa. Por fim, viu-a sentada junto de várias velhas, na parte de trás da tenda. Apostava que ela fazia um esforço para manter os olhos abertos, porque a via cabeceando de vez em quando. Kuy’aa avisara-o de que as histórias poderiam durar uma noite inteira. As pessoas iam e vinham, ficavam ouvindo-as durante algum tempo, depois saíam e voltavam mais tarde.
No seio do Povo Rio, quando um grupo de contadores de histórias se reunia, até parecia que uma história engendrava a seguinte. Uma pessoa dava uma versão e depois outra contava a mesma história de maneira diferente. Quanto mais antiga era a história, maiores eram as variações. Quase todo mundo afirmava que as histórias antigas eram as melhores, mas Yikaas preferia as mais recentes. Pareciam ficar na sua mente muito depois de a sessão terminar, tão nítidas como se ele próprio as tivesse vivido.
Pouco depois, a tenda encheu-se de gente. As mulheres distribuíam bexigas de foca cheias de água e pilhas de ouriços-do-mar, uma guloseima rara para o Povo Rio. Yikaas serviu-se de duas mãos-cheias de conchas espinhosas e amontoou-as no meio das pernas cruzadas. Abriu uma com a lâmina achatada da sua faca de pedra e depois, com a unha do polegar, puxou para fora uma bolsa cheia de ovos cor de laranja e sorveu-a. Fechou os olhos, deliciado com aquele sabor gordo e salgado.
Por fim ouviu-se um murmúrio entre os contadores de histórias. Kuy’aa levantou-se, cambaleando, e foi sentar-se ao lado dele. Tocou-lhe com um dedo deformado e apontou com o queixo para um homem que estava de pé no meio da tenda. O homem era tão curvado, engelhado e magro que Yikaas não percebia como é que ele conseguia manter-se de pé. O velho começou a falar, e Yikaas percebeu que, apesar de os anos lhe terem derretido a carne, não lhe haviam tirado a voz. Falava a língua dos Caçadores Marinhos, mas com um sotaque e um ritmo diferentes. As suas palavras subiam e desciam como as ondas do mar, altas e baixas, tempestuosas e calmas.
- É um Caçador de Baleias - cochichou-lhe Kuy’aa, inclinando-se.
O jovem dzuuggi deitou-lhe um olhar sábio e fez um gesto de cabeça como se já soubesse. Ouviu atentamente o velho, percebeu a palavra ”mulher” e algumas referências ao mar e depois deu consigo pensando se todas as histórias seriam contadas nas línguas dos Caçadores Marinhos. Se assim fosse, tinha feito uma viagem inútil. De que lhe servia estar ali sentado ouvindo histórias que não entendia? Mas, em seguida, levantou-se também uma jovem. Seria filha do velho? Ou neta?
Estava vestida à maneira dos Caçadores Marinhos, com uma parka larga e sem capuz e o cabelo escuro enfiado na gola. A parka chegava-lhe quase aos tornozelos e as mangas eram tão compridas que lhe cobriam as mãos. Era preta, enfeitada com fileiras de conchas e costurada em quadrados que pareciam feitos de penas de corvo-marinho. A jovem usava o cabelo curto, com uma franja que lhe chegava quase às sobrancelhas, e uma fina agulha de marfim que lhe atravessava o septo do nariz. O seu rosto era delicado, com malares salientes encimados pelos olhos em amêndoa, e uma boca pequena. Yikaas percebeu que ficara sem fôlego ao olhar para ela. Tinha certeza de que ela o visitaria em sonhos.
A jovem ajudou o velho a sentar-se e depois inclinou-se para lhe dar um odre de água e para lhe abrir um ouriço-do-mar com a sua faca de mulher. Seria mulher dele? Yikaas sentiu-se desapontado. Mas a verdade é que se o velho fosse muito importante - como era um dzuuggi para os Caçadores Marinhos - adquirira o direito a uma mulher jovem e bela.
A jovem começou a falar, primeiro na língua dos Caçadores Marinhos e depois na língua do Povo Rio. Yikaas sorriu. Era uma tradutora, não era uma esposa, e falava melhor a língua do Povo Rio, com pouco sotaque.
Quando ela acabasse de traduzir as histórias, talvez quisesse passar uma noite na cama dele. O coração de Yikaas inchou de esperança. Sentou-se, muito direito, e levantou a cabeça. Vestia uma bela parka, uma das duas que a mãe lhe fizera de propósito para contar histórias. Era de pele de caribu, raspada e amolecida até ficar quase branca, e enfeitada nos ombros e nas mangas com fiadas de dentes de lobo e de pelo de caribu tingido. A mãe deixara-lhe franjas no peito, cada uma das quais atada a uma conta de jade.
Quando o olhar da tradutora, que se deteve por instantes em cada um dos contadores de histórias, chegou a ele, Yikaas sorriu-lhe, mas ela não deu sinais de reconhecimento e ignorou-o, como se ele não passasse de um menino, escravo de Kuy’aa.
Yikaas resfolegou, aborrecido. Talvez a escrava fosse ela. Se assim fosse, poderia tê-la na sua cama em troca de uma bugiganga.
Ficou à espera, impaciente, enquanto o velho continuava a mexer com os dedos deformados e inchados no ouriço-do-mar que a jovem lhe oferecera. Quando é que ele começava a contar as histórias? Mas, de repente, a jovem levantou os braços e falou com uma voz clara e forte. O velho olhou para ela, sorriu e concentrou-se de novo no ouriço-do-mar.
Seria ela a contadora de histórias? Uma jovem que mal tinha idade para ser esposa? Era assim que os Caçadores Marinhos recebiam o Povo Rio que viera de tão longe? Yikaas ia levantar-se, mas Kuy’aa pousou-lhe a mão no braço.
- Fica quieto e ouve - ordenou ela. - Eu ouvi esta mulher contar histórias quando ela era pequena e tu ainda andavas aprendendo e não estavas preparado para assistir a esta celebração.
Yikaas obedeceu, mas sentiu a raiva subindo do umbigo até às orelhas, tornando a voz da jovem quase inaudível. Ela falou primeiro na língua dos Caçadores Marinhos e depois na língua do Povo Rio. Começou por tecer alguns comentários amáveis, e Yikaas, percebendo que tinha que aprender as tradições ligadas às histórias dos Caçadores Marinhos, fez um esforço para ouvi-la. Ela disse como se chamava: Qumalix, uma palavra difícil de pronunciar para um homem do Povo Rio, porque vinha do fundo da garganta, mas o dzuuggi enrolou-a com a língua e deixou-a assentar na boca como se fosse um murmúrio, até sentir que a conseguia repetir sem gaguejar.
Qumalix explicou que o seu nome significava ”ser como a luz, iluminar”.
Yikaas ficou boquiaberto e, com a admiração, a raiva saiu-lhe do corpo, foi envolvida pelo fumo tênue que se libertava das lanternas de óleo de foca, elevou-se no ar e saiu pelo orifício quadrado aberto no cimo do ulax.
Qumalix, tão próximo em significado do seu próprio nome - Yikaas, ”luz”.
Olhou para Kuy’aa e viu a sabedoria no olhar da velha, como se ela conseguisse ler-lhe os pensamentos.
Então, Qumalix disse:
- Ah, meninos, esta é uma história muito antiga. Ouçam com atenção.
A sua voz era clara e forte, e ela falava com a naturalidade de uma mulher que confiava no seu próprio saber.
- O Povo do Deus-Urso saiu do mar como um tsunami... - disse ela.
O Povo do Deus-Urso?, pensou Yikaas. Era uma história que ele não conhecia. Afinal, talvez ficasse ali ouvindo-a, pelo menos durante algum tempo. Kuy’aa queria que ele ficasse, e convinha sempre agradar a um velho, não é verdade? Além disso, ele não podia esquecer que, apesar da força do seu nome, Qumalix não passava de uma menina, por sinal jovem demais para lhe concederem a honra de contar a primeira história...
Foz do atual rio Oi, baía de Suruga
Ilha de Honshu, Japão
6447 a. C.
História de Filha
Os guerreiros do Povo do Deus-Urso saíram do mar como um tsunami. As suas canoas toscas e azarentas estavam de tal maneira mergulhadas na água que, a princípio, o Povo Barco ficou na margem olhando, certo de que uma onda as levaria antes que os guerreiros conseguissem içá-las para a praia. Mas os deuses do mar estavam dormindo e não havia ondas. A água estava calma e cinzenta como a casca de um amieiro.
Cedro, a segunda esposa de Homem-da-Montanha-de-Fogo, estivera moendo umas sementes no almofariz de pedra que o pai lhe oferecera como presente de casamento. A filhinha, Quase-Dia, estava amarrada às suas costas, satisfeita, brincando com umas conchas de cores claras que uma tia furara e costurara à alça de pele de veado que a atava ao corpo da mãe.
Em criança, Cedro vivera noutra aldeia, muito mais para norte, perto da série de ilhotas habitadas pelo Povo do Deus-Urso. Embora a sua aldeia nunca tivesse sido atacada, ela conhecia as histórias do que eles faziam, aqueles seres cabeludos, que mais pareciam animais do que homens. Cedro falara ao povo desta aldeia dos guerreiros do Povo do Deus-Urso, explicara-lhes que o seu cabelo humano, preto, se tornara castanho e ondulado como o pelo de um urso, que os braços, as pernas e o peito também eram peludos como o urso que eles veneravam. Até os dentes eram afiados como os dos ursos. Também a língua deles consistia numa série de grunhidos e de roncos, como a fala dos ursos.
Tinham chegado há muito, muito tempo, disseram os contadores de histórias, vindos do Oeste e do Norte, com os seus costumes estranhos e o seu culto selvagem. Mantinham os ursos em cativeiro e, quando os animais morriam, o Povo do Deus-Urso conservava os crânios, que pendurava às portas das casas para que os espíritos daqueles animais protegessem a aldeia.
Era um povo terrestre e não sabia construir bons barcos, nem escavar os troncos mais fortes e mais retos dos amieiros com fogo e com a enxó para retirar a parte central e os homens caberem lá dentro. Nem sequer tinha arpões, exceto os que roubava nas aldeias que destruía.
Enquanto os outros ficaram olhando, observando e a interrogando-se, Cedro levantou a voz para avisar o povo do marido que aqueles eram guerreiros do Povo do Deus-Urso, que violavam as mulheres e ainda tratavam pior os homens, aprisionavam os rapazes para dar de comer aos seus ursos e partiam a cabeça dos bebês nas rochas para lhes extraírem os miolos.
Mas ficaram todos olhando para ela, embasbacados. Como é que seres humanos podiam cometer tais horrores? Com certeza que, se o Povo Barco os recebesse bem e lhes oferecesse comida, aqueles desconhecidos ficariam contentes e fariam uma parceria para negociar. Não vinham eles do Norte? Talvez trouxessem obsidiana, como os comerciantes de Hocaido.
O Povo Barco fez estalar os dedos na direção de Cedro, devolvendo-lhe as palavras para que a mensagem tresloucada da mulher não manchasse o seu acolhimento. Em seguida, Homem-da-Montanha-de-Fogo aproximou-se dela e, pegando-lhe pelo braço, levou-a para o fundo da praia e pediu-lhe que se mantivesse no seu lugar de segunda esposa, sete passos atrás dele e dois atrás da primeira esposa.
O coração de Cedro bateu como asas de pássaros no seu peito, até lhe doerem os pulmões e as costelas. Quase-Dia começou a choramingar e Primeira Esposa, com um gesto brusco, ordenou a Cedro que fosse embora e levasse a criança, para que os homens dos barcos não se sentissem insultados com o choro dela. Cedro desatou a correr, de cabeça baixa como se estivesse envergonhada, mas sentiu-se grata. Abandonou a praia e encaminhou-se às pressas para o iori do marido.
Toda a família de Homem-da-Montanha-de-Fogo vivia no iori - os tios, os irmãos e as mulheres e uma irmã viúva com os filhos. Era um local agradável e quente, mesmo no Inverno, com uma grande lareira ao centro e o chão escavado na terra, a três ou quatro mãos de profundidade. As paredes eram sustentadas por toras de castanheiro, forradas com a sua casca, e o colmo do telhado era substituído de vez em quando para que a chuva não entrasse. O iori não era tão grande como outros que havia na aldeia, mas o chão estava bem acondicionado e era varrido todos os dias com as vassouras de palha feitas pela própria Cedro. Ela tinha trazido os cabos de amieiro da sua aldeia, que eram um conforto para as suas mãos quando ela suspirava pelos ventos mais frescos do Norte.
No iori de Homem-da-Montanha-de-Fogo, cada mulher tinha um espaço reservado para ela e para os filhos. O de Cedro era o mais pequeno, mas era bom, sobretudo para uma mulher que só tinha um filho, ou melhor, uma filha.
Cedro entrou correndo e encheu uma panela de barro de bolos de castanha, carne de veado seca e peixe fumado. Pegou três cabaças cheias de água, uma faca de mulher, o amuleto de Quase-Dia, em dois cobertores de pele de veado e num cesto feito de junco entrelaçado. Atirou a faca, a panela, os cobertores e as cabaças e algumas peles macias para servirem de fralda a Quase-Dia para dentro do cesto e pôs o estranho fardo à cabeça. Deu a Quase-Dia uma tira de peixe seco para ela mastigar e saiu do iori, dirigindo-se às pressas para as colinas que rodeavam a aldeia. Passou pelas cabanas dos construtores e viu o barco mais recente do marido deitado na praia do estuário, já com o flutuador lateral montado e a parte principal, funda e oca, precisando apenas que os restos de carvão fossem removidos.
O marido construíra o barco para o filho mais velho de Primeira Esposa, um homem feito, empenhado em conquistar o respeito dos velhos da aldeia para poder reclamar uma mulher. Cedro sentiu um nó na garganta. O que aconteceria ao marido e a esse homem-criança? A toda a boa gente daquela aldeia? Era justo que o seu desejo de viver em paz acarretasse a perda das suas vidas? E o barco que custara tanto a construir ao marido? Feito como devia ser, daria boa sorte a quem o usasse, talvez até a um guerreiro do Povo do Deus-Urso que não soubesse bem como havia de venerar os deuses do mar.
Ao pensar nesses deuses, Cedro lembrou-se de repente das pequenas figuras esculpidas que o marido adorava acima de todas as coisas. Guardava-as junto da lareira, penduradas nas vigas com fitas entrançadas feitas de tendão de baleia. Tinham sido abençoadas por sacerdotes e eram dotadas de grandes poderes. Cedro não podia permitir que elas caíssem nas mãos dos guerreiros do Povo do Deus-Urso. Que chances teria o Povo Barco se aqueles homens do Povo do Deus-Urso lhes roubassem mais poder, mesmo que fosse o poder do mar?
Ouviu-se um grito na praia, um grito terrível que parecia um urro de um urso. Cedro ia desatar a correr, mas lembrou-se mais uma vez das estatuetas dos deuses do mar. Apressada, acomodou Quase-Dia no barco de Homem-da-Montanha-de-Fogo e colocou o cesto ao lado da criança.
- Fica calada, filha. Fica no barco até que eu te venha buscar - disse ela, sabendo que a menina, agora com três Verões, faria o que ela lhe mandasse.
Cedro puxou os cobertores e tapou Quase-Dia e o cesto. Em seguida, regressou correndo à aldeia, entrou engatinhando no iori do marido e, já lá dentro, puxou as estatuetas dos deuses do mar e agarrou-se a elas.
Quando Cabaça-de-Água envelheceu, tornou-se míope demais para manejar o arpão. Pouco depois, as mãos começaram a ficar nodosas, impedindo-o de construir barcos com a enxó, e as pernas tornaram-se fracas demais para correrem atrás dos veados que perambulavam pelos montes. Se a opção fosse sua, teria reclamado um lugar junto dos velhos, dando conselhos àqueles que ainda não tinham vivido o suficiente para serem sensatos. Mas a sensatez nunca fora um dos seus dotes e agora, na velhice, a única coisa que tinha para oferecer era a força dos seus ombros. Todos os dias, com as pernas trêmulas, fazia o percurso até à nascente de água doce que havia no sopé da segunda colina a contar da aldeia. Todos os dias transportava as cabaças vazias, enchia-as de água e voltava trazendo-as - recipientes bojudos, frescos e molhados que nasciam das extremidades do balancim de noz-moscada que ele talhara de propósito para o adaptar às curvas e às concavidades dos seus ombros de velho.
Outrora, chamara-se Falcão-das-Árvores, mas isso já fora há muito tempo, e agora chamavam-lhe Cabaça-de-Água, e só as pessoas mais velhas da aldeia é que sabiam quem ele era. Só os velhos é que se lembravam dele quando era jovem e forte, pai de quatro filhos, agora todos mortos. Na aldeia, quase todos o conheciam como o tio de Raiz-de-Flor, que era uma preguiçosa e não tinha grande préstimo.
Cabaça-de-Água encheu a última cabaça, pôs-lhe uma rolha de amieiro e atou-a ao balancim, junto das demais, cinco de cada lado, balançando e chocando-se umas com as outras como abelhas amarelas e gordas.
Às vezes, levava um rapaz com ele, para o ajudar a içar o balancim até aos ombros, mas nesse dia o rapaz ficara consertando as redes de pesca do pai e Cabaça-de-Água fora sozinho. Aquele rapaz era tonto e fraco como uma mulher, pensou Cabaça-de-Água. Contara ao rapaz algumas histórias da sua juventude - as pedras que levantara e que levara para o topo dos montes, para desenvolver os músculos dos braços e das pernas; qualquer homem que se desse ao trabalho de olhar para lá podia ver os montes de pedras que Cabaça-de-Água fizera. Ainda estavam lá, empilhadas, cobertas de ervas e de musgo, como testemunho da ambição e da força de Cabaça-de-Água.
Mas o rapaz parecia não ir buscar inspiração nas histórias de Cabaça-de-Água, e o velho desinteressara-se dele. Ainda bem que ficara na praia nesse dia; assim, Cabaça-de-Água não teria que aturá-lo.
Apoiou as extremidades do balancim em dois montes de pedras achatadas que fizera para o efeito e, agachando-se ao mesmo nível, passou a cabeça por baixo dele. Aconchegou-o ao pescoço, encolheu os ombros e depois, com esforço, endireitou os joelhos doloridos.
Se os deuses lhe permitissem viver mais um ano, talvez fosse obrigado a reduzir o número de cabaças para quatro em cada extremidade. Esse pensamento preocupava-o. Quatro nunca fora um número de sorte para ele. O nascimento do quarto filho matara-lhe a esposa favorita, e, quatro dias depois, a criança optara por ir atrás do espírito da mãe.
Ele próprio tivera quatro esposas. A quarta era tão má-língua que ele festejara a sua morte em vez de a chorar. Quatro cabaças não era uma boa idéia. Talvez ele conseguisse arranjar cabaças mais pequenas e continuar transportando cinco.
Andava devagar, e o sol aquecia-lhe o topo da cabeça até o suor lhe escorrer das pontas dos cabelos, abrindo uma estrada através dos regos e dos sulcos do seu rosto. As cabaças também transpiravam, como se lhes custasse estarem penduradas num balancim. Cabaça-de-Água nem olhava para elas; as gotas que se formavam na casca aumentavam-lhe sempre a secura da boca.
Apesar de o Verão ainda não ter chegado, as ervas de cada lado do caminho já estavam altas. Até chegar ao topo do primeiro monte, Cabaça-de-Água só via arbustos, mas levara algum tempo desbastando-os lá em cima, para poder sentir um sopro da brisa do mar, ao andar.
Parou, endireitou-se como pôde e olhou para o azul da água e do céu.
Ah, ele fora caçador noutros tempos! Ah, como os seus músculos inchavam debaixo da pele! Podia ter qualquer mulher como sua esposa; qualquer pai ficaria satisfeito por lhe chamar ”filho por casamento”; todas as mães desejavam que os netos tivessem nascido dele. Também comera bem. Baleia, lulax e ouriços-do-mar, carne de veado e todas as espécies de pássaros. Bolos de castanha, que as jovens faziam para ele, na esperança de conquistarem os seus favores. Ah, fora uma boa vida!
Suspirou, e as recordações cobriram-lhe os olhos de uma pequena camada de água, clareando-lhe suficientemente a vista para ele avistar a linha divisória entre o céu e o mar, e uma flotilha de pequenos barcos ao largo. Pestanejou, a fim de se certificar de que os seus olhos não estavam vendo disparates. Qual o homem do Povo Barco que construiria canoas tão fracas? Seria motivo de chacota. Cabaça-de-Água fez um esgar de troça. Até ele - com as mãos nodosas e vergado pela idade - conseguia fazer um barco melhor do que aqueles que estava vendo.
De repente, percebeu quem é que se encontrava naqueles barcos e quase caiu de joelhos. Agarrou-se ao balancim, como se isso o pudesse salvar, e seguiu o seu caminho. Tencionava passar pela nascente e ir até às grutas escondidas por baixo da crista do terceiro monte.
No entanto, apesar de estar habituado a subir a encosta com o peso do balancim, não conseguiu suportar as cabaças cheias de água. Escorregou, inclinou-se para trás e caiu devagar, como num sonho. Aterrou de costas, com os braços estendidos sobre o balancim, e não conseguiu endireitar-se, como se fosse uma tartaruga. Arrastou-se na erva até chegar ao sopé do primeiro monte, a pouca distância da aldeia. Por instantes, deixou-se ficar quieto para ganhar fôlego e depois libertou-se das cabaças e do balancim. Uma das cabaças partira-se e, para não perder o precioso líquido que ainda estava lá dentro, o velho pegou o caco maior e bebeu.
A água fria da nascente devolveu-lhe as forças. Deixando o balancim no chão, Cabaça-de-Água arrastou-se até a parede traseira de um iori e, encostou-se ao revestimento de casca de castanheiro.
Ouviu alguém resfolegando lá dentro e depois uma voz de mulher pairando e suplicando. Conhecia aquela voz. Pertencia a Cedro, a segunda esposa de Homem-da-Montanha-de-Fogo. Era jovem, essa mulher, e bonita. Tinha a pele clara e dentes pequeninos. Cabaça-de-Água espiou e tentou ver o que se passava lá dentro.
Um homenzarrão cabeludo estava de pé, sobre ela, com uma lança curta na mão.
- O Povo do Deus-Urso - proferiu Cabaça-de-Água em voz baixa, e estremeceu, lembrando-se das histórias que ouvira Cedro contar.
Tentou afastar-se engatinhando, mas depois lembrou-se do balancim. Se o deixasse ali, com as cabaças ainda molhadas, eles saberiam que ele andava perto. Se seguissem o caminho através da erva, não teriam dificuldade em encontrá-lo. Se ele fosse jovem, até agradecia uma oportunidade de lutar, de matar homens que atacavam uma aldeia pacífica, que violentavam as mulheres, como o homem do Povo do Deus-Urso violentava agora a esposa de Homem-da-Montanha-de-Fogo.
Mesmo com os seus velhos ouvidos, Cabaça-de-Água escutava os gemidos de dor. Pensou em voltar atrás para socorrê-la, mas de que serviria? O homem do Povo do Deus-Urso tinha uma lança, e Cabaça-de-Água não estava armado, exceto um canivete enfiado no cinto. Morreria, e o mais certo era não conseguir fazer nada para ajudar a mulher. Talvez o homem do Povo do Deus-Urso se servisse dela e depois a deixasse em paz. O mais provável, evidentemente, era que Cedro, depois de usada, preferisse pôr fim à vida, por vergonha, em vez de voltar para o marido.
Ah, para que havia ele de tentar ajudar uma mulher que já estava morta?
Cabaça-de-Água pegou o balancim, o pôs aos ombros e desapareceu no meio da vegetação, ora parando, ora recomeçando a andar, para que algum atacante que resolvesse seguir-lhe o rasto julgasse que ele era um animal e não um homem. No topo do monte, começou a descer pelo mesmo caminho. O ar assobiava-lhe na garganta e, já sem fôlego, Cabaça-de-Água foi obrigado a parar. Nunca conseguiria chegar às grutas se tentasse levar o balancim.
Resolveu deixar uma pista falsa, abandonar o balancim e depois regressar ao caminho. Se se apressasse, talvez conseguisse subir o segundo monte antes de ser visto. Abriu caminho entre as ervas e fez uma trilha em zigue-zague, como um animal que andasse caçando ou fugindo e conseguisse enganar o seu perseguidor.
Por fim, deixou cair o balancim e voltou para trás, em direção às grutas. Então, começou a imaginar-se lá dentro, a salvo, mas lentamente morrendo de sede, enquanto esperava que os guerreiros do Povo do Deus-Urso abandonassem a sua aldeia. Pensou no balancim e no seu carregamento de água doce armazenado nas barrigas gordas daquelas cabaças. Imaginava-as gozando dele em sonhos, aquelas cabaças, cheias de água e de limos.
Voltou para junto do balancim, soltou um dos conjuntos de cabaças e encostou-as ao estômago. Segurando-as com as duas mãos, desatou a correr para o caminho. As cabaças abrandavam-lhe um pouco a marcha, mas pelo menos, com a água, ele poderia ficar nas grutas durante uns dias sem se arriscar a ir à nascente.
Acocorou-se no meio das ervas e, do topo do segundo monte, olhou lá para baixo, para a aldeia, abafando os gemidos na garganta ao ver muitas cabanas em chamas. Estremeceu, desamparado, e agarrou-se ainda mais às cabaças. Em seguida, continuou o seu caminho para as grutas.
Ainda não dera meia dúzia de passos quando parou, horrorizado. À sua frente, no caminho, seguiam alguns guerreiros do Povo do Deus-Urso. O medo foi tanto que a bexiga do velho libertou a sua carga de água. Não se podia dar ao luxo de se sentir envergonhado, mas houve um pensamento que lhe assaltou a mente: admirou-se com o fato de ele, um velho que não pertencia a ninguém e de quem ninguém sentia a falta, estar tão agarrado à vida. Deu meia volta, encaminhou-se para a aldeia em chamas e parou a poucos metros do iori de Homem-da-Montanha-de-Fogo, que também estava queimando. Em seguida, desatou a correr pelo caminho que ia dar na praia dos construtores dos barcos, onde o rio Oi entrava no mar.
Enquanto corria, ouviu uma voz interior censurando-o: És um idiota! Porque vens por aqui? O Povo do Deus-Urso também virá por aqui. O melhor é lutares e conquistares algum respeito que te acompanhe quando morreres.
Contudo, ou porque a entrada do caminho estava coberta de cânhamo, ou porque os guerreiros do Povo do Deus-Urso já tinham passado por aquele local, quando Cabaça-de-Água chegou à primeira cabana, encontrou-a vazia. Sem fazer barulho, rastejou entre os troncos de cedro e de noz-moscada, uns ainda cheios, outros já com marcas de fogo, indicando que os artífices tinham começado a esvaziá-los e a dar-lhes forma. A fumaça que saía das cabanas queimava-lhe a garganta e fazia-o lacrimejar, e os gritos de medo e de raiva rasgavam-lhe a garganta como garras.
Cabaça-de-Água escondeu-se no canto mais escuro da cabana, o mais longe possível da abertura virada para o estuário. Os construtores dos barcos tinham colocado os troncos em que trabalhavam perto da entrada. Diziam que era bom aquelas árvores olharem para a água fria, enquanto o fogo as esventava. Depois, os barcos se afastariam da terra de bom grado, iriam para onde os remadores os levassem.
Cabaça-de-Água ouvira histórias de barcos que haviam ficado na praia durante uma noite e que tinham criado raízes que se agarravam de novo à terra, levando os remadores e os caçadores para tão longe das suas aldeias que as famílias nunca mais os viam. Os melhores construtores de barcos não só queimavam o coração da árvore como lhe proporcionavam uma visão de outras hipóteses. Qual o caçador que queria ser apanhado numa terra estranha devido ao capricho de uma árvore que não era bem um barco?
Cabaça-de-Água caiu de joelhos, sempre agarrado às cabaças. O peso delas fizera-lhe perder o equilíbrio, mas ele não queria que elas caíssem ao chão. Constituíam mais um muro de separação entre ele e o Povo do Deus-Urso e talvez tivessem mesmo o poder de o proteger. Se a água protegia qualquer pessoa, porque não o protegeria? O velho sempre venerara a nascente com a sua gratidão, com as mãos limpas e os pés bem esfregados na erva. Mas as cabaças tinham pouca água. A suficiente para manter um homem durante quatro, talvez cinco dias, mas não para apagar as chamas se o Povo do Deus-Urso resolvesse botar fogo naquela cabana.
De repente, Cabaça-de-Água sentiu a terra vibrar debaixo dos pés e percebeu que os homens se aproximavam. Enrolou-se como uma bola e, levando a água consigo, atravessou o colmo da parede traseira da cabana. Agarrado às cabaças como se fosse um escaravelho, atravessou o mato de rastos em direção ao estuário, que formava um ângulo com o mar, como um braço dobrado pelo cotovelo. Na costa, encontravam-se vários barcos, barcos novos, quase prontos, rebocados para experimentar o equilíbrio e o poder de flutuação naquelas águas calmas e pouco profundas. A maioria deles não tinha flutuadores laterais e estava virada ao contrário, exibindo a madeira oleada e reluzente. Mas havia um que tinha o flutuador lateral atado a estacas possantes e a proa junto da água, como se o seu construtor se preparasse para o lançar ao mar. Lá dentro encontravam-se um remo, uma camisa de linho de um trabalhador e dois cobertores de pele de veado, empilhados como se cobrissem mantimentos.
O velho atirou lá para dentro as suas cabaças e, usando toda a força dos braços, empurrou o barco para o estuário, rezando para que o construtor tivesse feito bem o seu trabalho. Cabaça-de-Água sabia nadar, mas porque se meteria com aqueles deuses marinhos que se divertiam agarrando os tornozelos das pessoas e arrastando-as para os abismos?
Quando a água lhe chegou aos joelhos, o velho subiu para o barco, pegou o remo e afastou-se dos baixios sem fazer barulho. O barco era firme e o flutuador, estável. Cabaça-de-Água voltou a dar um empurrão, mas por pouco não perdeu o remo quando a terra desapareceu e o estuário se tornou mais fundo. Chegou-se mais para a frente, enfiou os calcanhares debaixo das nádegas e afastou os joelhos para se equilibrar; todavia, à medida que remava, o barco começou a andar em círculo, sem se afastar verdadeiramente da costa. Cabaça-de-Água pensou que estaria a salvo se conseguisse afastar o barco do estuário e entrar no rio. As árvores, as trepadeiras e o musgo formavam uma barreira tão espessa e densa que ele poderia esconder-se debaixo dos ramos inclinados cujas folhas novas afloravam a água.
Quando era novo, manejava melhor o arpão do que o remo, mas mesmo assim sabia que, para navegar a reto, tinha que remar com igual força dos dois lados do barco. Arrastou-se para o outro lado e sentiu farpas enfiarem-se nos joelhos, mas ignorou a dor e remou duas vezes com força. Em seguida, mergulhou o remo do outro lado e manejou-o mais duas vezes. Andou de um lado para o outro até o sangue dos joelhos tingir de vermelho a madeira em bruto, mas finalmente o barco estava no meio do estuário. Virou-o, navegando contra a corrente, para subir o rio, mas sempre que se mudava de um lado para o outro perdia a distância que ganhara.
Tentou três braçadas e depois quatro, e descobriu que avançara, embora já não seguisse reto. Sempre que içava o remo, olhava para a margem, certo de que veria guerreiros do Povo do Deus-Urso observando-o, ou talvez até lançando à água um dos outros barcos para irem atrás dele, mas não viu ninguém e, por fim, quando a fumaça negra e espessa que vinha da aldeia em chamas se elevou no céu através das árvores e desceu em espiral até ao estuário, o barco de Cabaça-de-Água entrou no rio.
O velho fechou os olhos, cheio de gratidão, quando as sombras das árvores o acolheram. Depois, descobriu o galho submerso de um cedro cujas raízes tinham formado um círculo na terra. O seu peso comprimia de tal modo a margem que a árvore escorregara para a água. O velho manobrou o barco para o afastar do galho; em seguida virou-o e serviu-se do remo como um peixe se serve da cauda, deixando que a corrente o levasse e que o remo o encaminhasse até que a proa se enfiou nos interstícios da massa de raízes.
Então, Cabaça-de-Água espiou pelo túnel formado pelas árvores e limitou-se a esperar que a fumaça enchesse o estuário e o impedisse de ver o céu.
Em algum momento durante a noite, Cabaça-de-Água adormeceu. Foi um sono povoado de demônios, e, quando conseguiu acordar, ainda estava escuro, ainda era noite. A fumaça vinda da aldeia dissipara-se, e o velho avistou algumas estrelas naquele círculo de céu que enxergava do seu assento no barco de madeira de cedro.
A maré estava enchendo, e o nível do rio subira de tal maneira que a proa do barco não estava tão presa nas raízes da árvore derrubada. Os solavancos do barco - que ora se afastava ora se aproximava do molho de raízes - fizeram-no regressar dos seus sonhos aterradores. O vento soprava mais forte, e o velho ouvia as folhas agitarem-se sobre ele, contando as suas histórias umas às outras.
Contariam histórias de mulheres violadas, bebês chacinados e velhos torturados? Era muito provável que não. Porque se preocupariam com isso? com certeza as árvores odiavam o seu povo. Afinal, qual o cedro, qual a noz-moscada que preferia deixar a floresta verdejante e cerrada para ser esventada pelo fogo e pelas facas dos construtores de barcos? Talvez as árvores à sua volta celebrassem, como os guerreiros do Povo do Deus-Urso, rejubilando com as mortes do Povo Barco.
Como Cabaça-de-Água gostaria de não ouvir aquele barulho! Fechou os olhos e enroscou-se no meio do barco, agarrado às cabaças, que ainda estavam frias e úmidas. Embora a atmosfera noturna estivesse cálida, as névoas que vinham do rio cobriram-no até lhe atravessarem a pele e lhe chegarem às articulações, até a umidade lhe provocar dores, como se o Inverno tivesse chegado de repente, interrompendo a brandura da Primavera e esquecendo o ciclo das estações de uma forma súbita e inexplicável.
O barco balançou e depois deu um solavanco para a frente, voltou a balançar e recuou. O movimento provocou uma dor nos ouvidos de Cabaça-de-Água que lhe fez retesar os músculos. As feridas provocadas pelas farpas nos joelhos latejavam, e novos sonhos invadiram os seus olhos, monstros que eram meio demônios, meio ursos. Riam do seu medo, do seu lamento e, com o seu hálito fétido, reacendiam as fogueiras que tinham destruído a aldeia.
Depois, de súbito, o barco inclinou-se e rodopiou, como se uma mão o tivesse agarrado pela popa e afastado do círculo de raízes e o empurrasse violentamente rio acima.
Que gigante o capturara? O pânico levou Cabaça-de-Água a sentar-se muito direito e a agarrar-se às traves do barco. Depois, reparou que as árvores abanavam, apesar de não haver nenhuma tempestade. Sentia a terra inclinar-se, e de súbito o rio cuspiu-o para o estuário. O barco deu um solavanco tão rápido que ele quase caiu para trás. Ouviu um gemido débil e a princípio julgou que lhe saíra da própria boca. As águas voltaram a agitar-se e as ondas vindas das duas margens içaram o barco e atiraram-no para o mar. Cabaça-de-Água escutou de novo o gemido, mas dessa vez percebeu que não era dele próprio porque cerrou os dentes para não morder a língua.
Era o barco; tinha que ser. O tronco da árvore ainda não morrera completamente e ela, aterrada, chamava as outras árvores, suas irmãs, ao mesmo tempo que o empurrava para o mar.
- Isto vai salvar-te do fogo e do machado - gritou Cabaça-de-Água ao barco, tentando que a voz se sobrepusesse ao tumulto das ondas.
Se ele conseguisse convencer a árvore de que era preferível fugirem para o mar, talvez ela não contrariasse o seu esforço para regressar ao santuário do rio e da floresta. Pegou o remo. Talvez o barco o ajudasse; se visse que também ele queria ficar no rio. Cabaça-de-Água atirou o remo para a água e remou, remou, até conseguir virar o barco para o estuário. Uma onda apanhou-o e empurrou-o para diante, e ele mergulhou o remo, manejando-o com toda a força que tinha. Foi apanhado por uma segunda e uma terceira ondas, até que, por fim, sentiu que ia contra a corrente. Apesar de estar escuro, com os olhos da memória, viu a água esverdeada do rio misturando-se com o mar azul, rodopiando numa dança que só terminaria depois do estuário, no local em que os peixes se alimentavam da generosidade do rio.
Cabaça-de-Água remava, abençoando a força que lhe restava nos braços graças ao transporte da água e maldizendo os músculos que a velhice tornara alongados e fibrosos. Duas braçadas para ir contra a corrente do rio, mais duas para impelir o barco para a frente, e depois a mudança para o outro lado, para segurar o remo entre as traves do flutuador. Duas braçadas para endireitar a proa e mais duas para recuperar o que perdera ao mudar o remo para o outro lado. Contava as braçadas, como se cantarolasse baixinho, e quase chorou de alegria ao voltar a entrar no estuário.
Então, além dos sons do rio e do mar, da sua cantilena e do ruído do remo na água, ouviu vozes. O seu coração fechou-se como um punho, e por instantes Cabaça-de-Água nem teve forças para erguer o remo. Limitou-se a mantê-lo na água, com a pá colada à parte lateral da embarcação.
Guerreiros do Povo do Deus-Urso. Cabaça-de-Água viu as suas tochas bordejarem as margens do estuário, viu uma e depois outra acenderem-se até a sua luz formar longas estrias na superfície da água que chegavam ao barco. Os guerreiros ergueram as lanças e atiraram. Eram armas de arremesso, não muito apropriadas para grandes distâncias. Uma caiu no estuário, mas outra caiu com força dentro do barco e rasgou a coxa de Cabaça-de-Água, antes de a ponta se espetar na madeira.
Cabaça-de-Água percebeu então que não havia nada a fazer. Puxou o remo para dentro do barco e encostou a pá à barriga. Era preferível ser atingido e morrer de repente com uma lança espetada no peito ou na garganta do que ser ferido nas entranhas. Sentiu que a corrente do rio o empurrava para o mar, mas depois o barco virou-se para o lado e uma onda o fez recuar. Os homens do Povo do Deus-Urso continuavam atirando lanças, enquanto o mar e o rio brincavam com o seu barco, como crianças brincando com uma bexiga de porco. Uma das lanças foi embater no barco e outra aterrou na proa. com os dedos, Cabaça-de-Água comprimiu a ferida sanguinolenta que tinha na coxa. O golpe não era muito grande, era pouco profundo, com menos de um palmo de comprimento, mas doía-lhe.
De repente, a terra elevou-se outra vez. Primeiro, Cabaça-de-Água percebeu isso pelas chamas das tochas dos homens do Povo do Deus-Urso. A luz descreveu uns círculos estranhos e uma das tochas caiu à água e apagou-se. Era como se o rio estivesse engolindo o que encontrava, e de repente o barco foi sugado pelo estuário. Cabaça-de-Água fechou os olhos, tentou preparar-se para morrer, mas depois, também inesperadamente, o rio atirou o barco e Cabaça-de-Água para o mar, para lá das ondas que o trariam de volta e muito longe do alcance de qualquer lança.
As tochas pareciam pequenas agulhas no meio da noite e, aliviado, Cabaça-de-Água desatou a rir. Era preferível morrer afogado do que enfrentar as torturas que os homens do Povo do Deus-Urso lhe infligiriam. Pelo menos, ele podia atirar-se ao mar e acabar depressa com a vida.
Ou melhor, esperaria pela manhã, descansaria um pouco e depois viraria o barco para a aldeia mais próxima e avisaria os seus habitantes de que o Povo do Deus-Urso estava chegando. Talvez eles o considerassem um herói e, se conseguissem rechaçá-los, o recebessem na sua aldeia. Decerto gostariam que ele fosse juntar-se aos seus velhos sábios. Talvez ele ainda encontrasse uma mulher e conseguisse ter filhos, apesar da sua idade avançada. Não conseguira o seu avô pôr um filho na barriga de uma mulher jovem?
Cabaça-de-Água deitou-se de costas no barco, despiu a camisa de linho que o construtor deixara na popa e tapou a cabeça com ela. Tentou adormecer mas, como os sonhos voltaram, ele fez um esforço para acordar e sentou-se.
A Lua surgira no céu, distribuindo a sua luz pelas vagas. O vento soprava rente à água e, embora não fosse forte, era suficientemente frio para arrepiar a pele dos braços de Cabaça-de-Água. Os olhos caíram-lhe no fardo de mantimentos que estava na proa, e ele lembrou-se de que estavam cobertos com cobertores de pele de veado. Cabaça-de-Água avançou, engatinhando, mas subitamente o cobertor de cima começou a mexer-se, levantando-se como se estivesse vivo.
Uma vez, Cabaça-de-Água vira um veado que fora perseguido até o rio, e não se esquecera do modo como ele lutara para regressar à segurança da terra firme. Talvez aquele cobertor também quisesse encontrar o caminho para a margem. Cabaça-de-Água chegou mesmo a pensar em pegá-lo e atirá-lo à água, mas tinha frio. Era uma tolice jogar fora um cobertor só porque ainda havia nele um resto de vida do veado! Era preferível embrulhar-se nele e submeter-se ao fraco poder que o cobertor reivindicava.
Cabaça-de-Água agarrou o cobertor com uma mão e, com um movimento rápido, puxou-o e enrolou-o à volta das pernas.
O cobertor enroscou-se nele, quente e imóvel. Cabaça-de-Água fez um gesto de aprovação. Até um velho tinha mais poder do que um cobertor de pele de veado. Mas, de repente, o barco começou de novo a gemer, dessa vez mais alto, e Cabaça-de-Água perdeu a paciência.
- Queres voltar para trás e ser apanhado pelos homens do Povo do Deus-Urso? - gritou ele. - Eles não entendem nada de barcos. Não tomariam conta de ti. Te deixariam apodrecer.
Os gemidos continuaram, cada vez mais altos... Aquele não era um som que um barco-árvore fizesse. Foi então que os velhos ouvidos de Cabaça-de-Água se lembraram do choro dos filhos quando eram bebês. Inclinou-se para a frente, colocou as mãos debaixo do outro cobertor de pele de veado e apalpou até sentir carne - quente, macia e rechonchuda. Uma criança!
Cabaça-de-Água continuou a apalpar até encontrar a cabeça. Era um rapaz cabeludo, com a boca cheia de dentes pequenos e duros. O velho pôs as mãos debaixo dos ombros do bebê, levantou-o e puxou-o para o seu colo. A criança devia ter dois anos, talvez três, a avaliar pelo número de dentes. Agarrou-se a ele e encostou-se ao seu peito.
- Eu não sou uma mulher - disse Cabaça-de-Água. Não tenho leite.
O choro da criança tornou-se mais frenético. Cabaça-de-água enrolou um canto do cobertor e enfiou-o na boca do bebê. Este começou a chupá-lo e deixou de chorar. O velho deu-lhe uma palmadinha nas costas e resmungou, consternado. A mãe do menino devia tê-lo escondido no barco quando o Povo do Deus-Urso atacara. O bebê tirou o cobertor da boca e recomeçou a chorar.
Cabaça-de-Água suspirou, tirou a rolha de uma das cabaças e bebeu um gole de água. Bebeu um segundo gole, baixou a cabeça até se aproximar da boca do bebê, colou os seus lábios aos dele e deixou sair um jato de água. A princípio, a criança engasgou-se, mas depois bebeu, e Cabaça-de-Água riu da sua própria astúcia. Depois de beber vários goles, o bebê parecia satisfeito. Cabaça-de-Água inclinou-se para a frente e abriu o fardo dos mantimentos que estava no fundo do barco, no local em que a criança estivera deitada.
Havia uma panela pesada, do gênero daquelas em que as mulheres guardavam a comida, e também algumas pelicas com que as mães protegiam o traseiro dos filhos. Uma faca de mulher e três cabaças cheias. E um embrulho, talvez com um amuleto para dar sorte à criança. Era pequeno, mais pequeno do que aqueles que a maioria das mulheres usava.
De repente, o estômago de Cabaça-de-Água contraiu-se. O velho remexeu as peles que envolviam a criança até lhe sentir as nádegas macias e úmidas. Meteu um dedo entre as pernas do bebê e depois retirou a mão, com um gemido.
O que fizera ele para merecer todas as pragas que lhe caíam em cima? Recordou a sua vida, os filhos e as mulheres que não lhe tinham sobrevivido e a sobrinha preguiçosa de quem ele dependia para comer. E agora aquilo. O bebê era uma menina. Uma inútil menina!
Bem podia perder a esperança. Qual o animal marinho que lhes pouparia a vida? A um velho que já nem conseguia lançar o arpão e a um bebê que amaldiçoaria a própria madeira do barco com a sua urina?
Cabaça-de-Água afastou a criança de si e voltou a pô-la no ninho que a mãe lhe fizera no fundo do barco. Virou as costas e fez o possível por não pensar mais nela, enquanto olhava para além da proa, para leste, à espera do amanhecer.
O céu noturno encheu-se de nuvens que escureceram a Lua, e, apesar de Cabaça-de-Água estar resolvido a manter-se acordado, mergulhou num sono longo e profundo até o choro da criança lhe interromper os sonhos.
Confortou-a o melhor que pôde e, quando o Sol nasceu, deu-lhe um pouco de carne de veado e para beber, muita da água de uma das suas preciosas cabaças, mas ela continuava chorando, perguntando pela mãe, pelo pai, pela tia. O velho pensou em atirá-la ao mar, mas sabia agora que ela era filha de Homem-da-Montanha-de-Fogo. Homem-da-Montanha-de-Fogo sempre fora bom para ele, sempre se dispusera a partilhar com ele a sua carne e o seu peixe e, por isso, Cabaça-de-Água conteve-se. Lembrou-se dos gritos da mãe da menina quando estava sendo atacada, e, apesar de defender mentalmente as suas opções, também tinha que afastar os pensamentos que o acusavam de covardia.
Covardia? Não. Sabedoria. Se ele tivesse sido morto, quem avisaria a aldeia vizinha da presença dos guerreiros do Povo do Deus-Urso? com certeza os deuses do mar o tinham salvo por esse motivo. Também era possível, evidentemente, que eles quisessem apenas salvar a menina, apesar de ele não perceber porquê.
Por fim, concluiu que ela se sentia desconfortável devido ao trapo sujo que tinha entre as pernas. Sentiu-se humilhado ao pensar que estava se fazendo de ama-seca e limpou a criança. Mergulhou-a no mar até à cintura, deixando que a sujidade se diluísse, e em seguida envolveu-a num trapo limpo. Lavou o outro e estendeu-o no barco, para secar, pedindo desculpa à madeira pela indignidade do seu ato. Mas aparentemente o barco não se importou, não lhes pregou nenhuma partida, provando mais uma vez a Cabaça-de-Água que era graças à menina, e não tanto a ele próprio, que ele se encontrava a salvo e longe dos guerreiros do Povo do Deus-Urso.
Depois de comer, Cabaça-de-Água afastou-se propositadamente mais para o largo até avistar, com os olhos semicerrados, a linha sinuosa da costa, pairando como nuvens distantes no fio do horizonte.
Em seguida, remou para sul, até se certificar de que navegava paralelamente à aldeia mais próxima do Povo Barco. Esta aldeia não era tão forte como a sua fora, mas, se fossem avisados, os seus habitantes poderiam defender-se do Povo do Deus-Urso. Cabaça-de-Água conhecia muitos dos pescadores dessa aldeia e participara nas suas festas de Verão. Eles negociavam, aceitando peixe, peles de veado, conchas e arpões em troca das grandes panelas de barro que as suas mulheres faziam tão bem.
Quando Cabaça-de-Água se deu por satisfeito com a distância a que o barco se encontrava, deixou de remar e, para passar o tempo até o anoitecer, serviu-se da ponta da faca que usava no punho para extrair as lascas de madeira que tinha no joelho. De vez em quando, remava para manter o barco onde queria, mas concluiu que era mais seguro passar a tarde dormindo e, quando caísse a noite, virar o barco para terra e começar a remar. Se o Povo do Deus-Urso se tivesse apoderado da aldeia vizinha - o que ele saberia pela fumaça que se elevava das ruínas - ele se lançaria de novo ao mar antes que dessem pela sua presença e continuaria a navegar para sul até chegar à aldeia seguinte.
Deu água à criança, cantou-lhe o que recordava das canções da sua infância e disse-lhe que iriam dormir um pouco. Ela enfiou dois dedos na boca, lançou-lhe um olhar solene e fez um gesto afirmativo com a cabeça. Em seguida, puxou com determinação o cobertor que ele ainda tinha à volta das pernas. Ele deu-lhe a pele de veado mais pequena, mas ela não a aceitou. Então, o velho espetou um dedo, fazendo-lhe um sério aviso. Desde quando é que eram as crianças a dizer aos adultos o que estes deviam fazer?
A criança tirou os dedos da boca, mostrou-lhe os dentes e rosnou. Ainda bem que ele se lembrava de que ela era filha de Homem-da-Montanha-de-Fogo, caso contrário poderia julgar que ela era uma criança do Povo do Deus-Urso. E com certeza a teria atirado ao mar.
Cabaça-de-Água suspirou e voltou a maldizer a sua sorte. Depois, deu-lhe a pele maior. Ela enfiou de novo os dedos na boca e deitou-se a seu lado, agarrando-se a uma perna. Ele sorriu-lhe, mostrando os poucos dentes amarelos que lhe restavam - quatro à frente, em vez de oito. A criança fez beicinho e fechou os olhos, cobrindo o rostinho com a mão. Cabaça-de-Água pigarreou e cuspiu pela borda fora. Qual o homem que sofrera maior provação?
Começou a cantar e, apesar de se tratar de uma canção de caçadores, tentou cantar baixinho, acariciando a menina enquanto a embalava, até que finalmente adormeceram os dois.
Quando Cabaça-de-Água acordou ao lusco-fusco, já não avistou terra. Respirou fundo para encher o nariz de ar e tentou convencer-se de que continuava a sentir o cheiro da terra. A menina ainda dormia e, quando ele começou a remar, virando o barco para oeste, manteve um ritmo suave.
Depois de o céu escurecer por completo, a criança acordou. Os sonhos deviam tê-la assustado, porque de repente começou a chorar tão alto que Cabaça-de-Água foi obrigado a largar o remo e a pegar-lhe no colo. Deu-lhe água para beber e metade de um bolo de castanha e limpou-lhe os olhos e o nariz a uma ponta do cobertor. Não se lembrava como é que os pais lhe chamavam, e por isso resolveu acalmá-la chamando-lhe Filha. Voltou a mudar-lhe o trapo que ela tinha entre as pernas e pousou-a para poder remar.
Perscrutou o horizonte, procurando sinais de uma aldeia, tochas na praia, lareiras ou a fumaça da destruição -, mas, apesar de ter remado muito e de balbuciar orações ao barco e à terra, só havia mar. Por fim, tinha os braços tão pesados que já não conseguia levantá-los. Então, deixou-se ficar sentado, de vigia, até ao nascer do Sol, confortando-se com a certeza de que a luz da manhã traria sinais de terra. Aliás, se tivesse que esperar mais uma noite, que mal haveria nisso? Tinha água e comida.
Porém, quando amanheceu, o medo fez-lhe subir a bílis à garganta. Não se via nada no horizonte, e só pela posição do Sol no céu é que ele sabia em que direção se encontrava a terra. Filha parecia sentir-lhe o medo e começou a chorar, não com os gritos que acompanhavam os pesadelos ou as birras provocadas pelas queimaduras da urina, mas com um choro baixo e gutural, como uma velha chorando os seus mortos.
Cabaça-de-Água passou o dia remando e só parou quando avistou terra a ocidente. Teve tempo de comer e de alimentar Filha e depois seguiu o movimento do Sol até este se pôr. Quando a Lua apareceu no céu, a terra pareceu-lhe grande e escura, de um negro que contrastava com o tom purpúreo do mar.
Procurou os clarões das fogueiras noturnas, mas não viu nada. Os guerreiros do Povo do Deus-Urso já teriam destruído as aldeias todas? Não, pensou ele, para se sossegar. Se assim fosse, ele veria mais fumaça saindo das ruínas.
Talvez mais alguém da sua aldeia tivesse escapado e conseguido chegar junto daquelas pessoas que viviam a sul, e lhes tivesse dito que não acendessem fogueiras à noite para que os guerreiros do Povo do Deus-Urso não dessem pelas suas aldeias se passassem por ali na escuridão. Mas, sem fogueiras noturnas, Cabaça-de-Água tinha medo de acostar. Não sabia onde estava, e quando um homem não sabia onde se encontravam as rochas e os baixios, devia ter a prudência de se manter em águas profundas até que a luz da manhã revelasse o perigo. O velho mordeu o interior das bochechas para não se deixar dormir.
Por fim, o Sol apareceu no horizonte, e Cabaça-de-Água remou até chegar a uma enseada. A maré estava baixa, o que era bom se a praia fosse dada a correntes fortes, e mau se o mar mal cobrisse os recifes.
- Querem enganar-me? - gritou ele às águas calmas.
Filha levantou-se e espreitou pela borda fora.
- Ganar-me? - repetiu ela.
Cabaça-de-Água deixou escapar um sorriso, o primeiro desde que os guerreiros do Povo do Deus-Urso tinham atacado a sua aldeia. Puxou a menina para si, sentou-a entre os joelhos e remou com força para a costa. O barco deslocava-se sem dificuldade e, nos baixios, Cabaça-de-Água verificou que só havia areia e algas no fundo. Continuou a remar até a proa do barco subir para a praia. Em seguida, esticou devagarinho as suas velhas pernas e desceu. Filha estendeu-lhe os braços. Ele pegou-lhe ao colo, depositou-a na praia e fez-lhe sinal para que se afastasse do barco.
O barco era pesado e tornava-se quase impossível um velho arrastá-lo, mas ele içou-o, empurrou-o e aproveitou o impulso da ressaca até conseguir que a ré ficasse fora do alcance do mar. Sentou-se para recuperar as forças e depois, na companhia da menina, começou a explorar o terreno. Encontraram um regato de água doce onde se lavaram. Depois de voltar a encher as cabaças vazias, o velho deitou-se de barriga para baixo na margem do rio, estendeu um braço, mergulhou a mão na água e deixou-se ficar quieto e calado até que um peixe lhe ficou preso nos dedos. com um movimento hábil, Cabaça-de-Água atirou-o para a margem. Filha riu, deliciada. Apesar de ser um peixe de água doce, o velho não se deu ao trabalho de o cozinhar. Para que arriscar-se a fazer uma fogueira? Cortou-o em fatias finas e comeu-o cru. Deu os olhos a Filha e, melancólico, viu-a engoli-los, mas guardou as bochechas para si. Era um acordo justo, mais do que justo, concluiu.
Apanharam ouriços-do-mar em poças de água deixadas pela maré até encherem o cobertor de Filha e colheram algas - dulce, kelp filamentoso e nori.
Nessa noite, como não descobriram quaisquer vestígios de uma aldeia, nem mesmo um caminho ou uma trilha, regressaram ao barco. Cabaça-de-Água colocou no barco várias pedras do tamanho de um punho - algo terrestre que o mantivesse na costa, para que quaisquer saudades do mar que o assaltassem fossem contrariadas pela necessidade de as pedras ficarem em terra. Acondicionou as cabaças, atando-as junto da ré, e colocou os ouriços-do-mar e as algas na proa. Em seguida, fez uma cama para ele e para Filha no meio do barco e atapetou o fundo irregular com ervas da praia.
A tempestade surgiu de repente. O vento e a chuva arrancaram-nos dos seus sonhos. Cabaça-de-Água pensou em virar o barco com o bojo para cima, mas a tempestade atacava-os por todos os lados - a chuva vinha do norte, depois do sul e mudava outra vez. Por isso, mesmo que ele conseguisse virar o barco por completo - se tivesse força para fazer tal coisa - a água do mar podia subir e afogá-los.
Filha começou a chorar, e ele pegou-lhe no colo, sentindo-se confortado com o calor da criança. O bater dos dentes fazia-lhe doer a cabeça. De repente, o barco começou a balançar, e ele percebeu que a tempestade os levara. Inclinou-se sobre Filha, cobriu os ouriços-do-mar com o cobertor maior e pôs as pedras por cima. Procurou o recipiente da carne seca e o pôs debaixo das nádegas - preferia sentir-se desconfortável do que perder a comida. Partiu uma das cabaças e serviu-se dela para despejar a água do mar que tinha começado a entrar no barco.
Filha agarrou-se a ele, enrolando os braços em volta da cintura do velho. Cada vez que uma onda caía sobre eles, Cabaça-de-Água julgava que o barco afundaria, mas este continuava flutuando. Continuou a jogar a água fora até os braços lhe pesarem como pedras, até sentir uma dor no meio do peito, até não reconhecer senão a dor, o medo e a escuridão.
Quando amanheceu, o Sol estava coberto de nuvens, mas pelo menos Cabaça-de-Água via à sua volta. Agarrou-se aos lados do barco, jogou a água fora e, quando o vento amainou, abriu uns ouriços-do-mar para tirar as ovas. Eram suculentas e doces, e aqueceram-no por dentro, e até Filha as comeu com gosto quando ele lhe ofereceu algumas na unha do polegar.
Nunca passara tanto tempo pensando em crianças. Eram choramingonas e malcheirosas demais para terem importância. Mas deu consigo a embevecer-se com o rostinho perfeito da menina, com os olhos negros e brilhantes e com a pele clara e sem mácula. O nariz não passava de um inchaço, o espaço entre os olhos era totalmente plano e as orelhas pareciam conchas enroscadas ao lado da cabeça. A chuva alisara-lhe o cabelo e colara-lhe ao crânio. A menina agarrou-lhe o pulso com as duas mãos e lambeu-lhe a unha, e Cabaça-de-Água reparou que uma das unhas dela fora parcialmente arrancada e tinha um fio de sangue escuro assinalando o corte. Quando ela acabou de comer, ele deu-lhe mais, mas ela virou a cabeça. Então ele comeu as ovas, puxou a criança para debaixo das suas pernas, para a abrigar, e continuou a despejar a água.
A tempestade durou quatro dias, e Cabaça-de-Água passou a maior parte do tempo como que em sonhos, despejando água do barco e remando. Só parava para beber um pouco de água da chuva que apanhava com a sua cabaça, ou para comer um pouco de algas, bolos de castanha ou uma unha de ovas de ouriço. Em algum momento no terceiro dia, caiu num sono profundo. Ao acordar, sentiu-se mais forte, mais otimista e, ao olhar para cima, viu uma nesga de céu azul por entre as nuvens. O vento deslocara-se para sul e trazia uma aragem mais quente. A chuva parara. O velho tentou sorrir, mas uma fina camada de sal endurecido transformara o seu rosto numa máscara de medo. Ele cravou as unhas na pele e retirou a crosta.
Filha estava enroscada aos seus pés, imóvel. Ele abaixou-se e pegou-a devagar, como se a criança fosse uma velha atacada de artrite. A pôs no seu colo e fez uma careta ao ver como estava fria. Tinha o cabelo coberto de sal, duro como gelo. A criança esfregou os olhos com as mãos vermelhas e inflamadas, mas, ao olhar para ele, sorriu, e quando ele lhe ofereceu um ouriço-do-mar ela comeu-o sofregamente.
Cabaça-de-Água também comeu e depois pegou o remo que entalara entre a perna e a parte lateral do barco. O mar estava razoavelmente calmo e via-se o Sol através das nuvens. O velho tencionava remar para oeste, na direção da sua aldeia, e, mesmo que os ventos da tempestade voltassem a soprar, pelo menos ele teria recuperado uma parte da distância que perdera.
Fechou a mão e só quando repetiu o gesto é que reparou que o remo tinha desaparecido. Subiu à proa e Filha escorregou do seu colo, mas ele nem ouviu os seus gritos de protesto. Meteu as mãos na pilha de ouriços-do-mar, ignorando as suas cascas pontiagudas, e depois procurou na parte de trás do barco e até do lado de fora do rebordo, na pequena trave que os impedia de se virarem nas ondas.
O remo não estava no barco. Cabaça-de-Água levantou-se e olhou em todas as direções. Nem sequer o viu flutuando ali perto. O seu desespero era tal que admitiu a hipótese de se atirar ao mar. Para que continuar a lutar, se a tempestade lhe levara a melhor arma de que dispunha? Mas ao olhar para os abismos gelados, perdeu a coragem, ou melhor, recuperou-a. O mar podia levá-lo, mas ele não desistiria com facilidade.
Tirou o resto da cabaça de dentro da camisa de linho, encheu-a com a água que se encontrava no fundo do barco e bebeu. A água era salobra e tinha gosto de madeira queimada, escurecida pelos restos de carvão que não fora removido, mas não estava tão salgada como a água do mar - era chuva misturada com aquilo que as ondas tinham atirado para o interior do barco. Começou a despejá-la, depois de ter dado de beber a Filha.
Era como se aquela tarefa não tivesse fim. A tempestade durara três dias. Há quantos dias saíra ele da sua aldeia? Cinco? Seis?
Enquanto despejava a água, observou o céu e percebeu que o mar estava levando-os para norte. Mas depois o vento voltou a fustigá-los, dessa vez vindo de sul e de leste. Cabaça-de-Água enrolou-se, e à menina, num cobertor de pele de veado e continuou a despejar a água durante esse dia e o seguinte.
Na manhã do quinto dia, o céu abriu-se, as nuvens separaram-se como que por ação de uma faca, e Cabaça-de-Água percebeu que a tempestade se afastara. Ao meio-dia, o Sol brilhava.
O barco, o flutuador, os cobertores e até as cabaças de água estavam cobertos de gelo. A tempestade empurrara-os para norte, para muito longe da sua aldeia e de qualquer das aldeias do Povo Barco. Talvez ele e Filha estivessem condenados a não sobreviver, pois era quase certo que a borrasca os levara para as ilhotas do Norte, habitadas pelo Povo do Deus-Urso. Sem um remo, com um fornecimento de ouriços-do-mar que começava a diminuir. Só com a camada de gelo e a água que havia nas cabaças. O que podiam eles esperar?
À medida que os dias passavam, as mãos de Cabaça-de-Água habituavam-se aos movimentos que o mantinham e à criança vivos. Todas as manhãs, ele tinha o cuidado de retirar o gelo que cobria o barco e os cobertores, conservava-o na concha feita da cabaça, segurava-a entre as pernas e esperava que o gelo derretesse. Em seguida, partilhava a água com Filha, tendo o cuidado de a dividir em partes iguais. Todas as noites, ambos bebiam um gole de água das cabaças. Com a sede, o velho pensava muito mais em água. Governava a sua vida como aguadeiro, mas os primeiros dias transportando a água da nascente tinham-no enchido de rancor. Depois de tantos anos caçando e pescando, restava-lhe a desonra de fazer um trabalho de rapaz. A raiva apoderara-se dele de tal maneira que nem lhe sobrava espaço para engolir a sua própria saliva. Vira outros velhos assim, babando-se até ficarem com o queixo molhado e coberto de saliva. Não queria ser como eles, mas sentia o ódio a crescer dentro de si.
Odiava a água que transportava. Odiava as cabaças. Odiava o caminho sinuoso que ia dar na nascente, escorregadio no Inverno e cheio de ervas de pontas aguçadas que se lhe espetavam nas pernas no Verão. Era muito mais fácil odiar do que olhar honestamente para as suas pernas fracas e para os seus dedos tortos e nodosos. Mas agora, ali no barco, com a boca ressequida, sentia a falta daquelas cabaças, daquelas gotas de água nas suas conchas duras e lisas. Lembrou-se dos sorrisos que as mulheres lhe davam quando ele lhes enchia as panelas de água. Pensou nos pequenos presentes que recebia em troca - bolos de castanha, moluscos e ouriços-do-mar e raízes assadas nas pedras das lareiras.
Começou a perceber que o seu trabalho de aguadeiro não era desprovido de dignidade. Ele fazia aquilo de que era capaz, talvez, de certo modo, essa tarefa fosse mais respeitável do que pertencer ao grupo dos velhos da aldeia, que ficavam sentados conversando, à espera que os outros lhes levassem comida e água.
- Porque não percebi que a minha vida era boa? - perguntou ele a Filha.
A menina olhou para ele com um ar solene, talvez admirada por ele lhe ter dirigido a palavra. O mundo de ambos era feito essencialmente de silêncio. Ele cantarolava um pouco quando queria que ela adormecesse, mas a sua voz tornara-se rouca e dissonante com a idade. Umas vezes, ele ouvia-a cantar, com um som abafado pelos dedos que tinha sempre na boca; outras, a criança chorava, mas deixara de perguntar pela mãe.
Cabaça-de-Água desistira de contar os dias. Já lhes perdera a conta. Eram dias demais sem comida suficiente, sem fogo para se aquecerem, sem água boa.
A tempestade alagara a panela de barro de tal maneira que a carne e o peixe seco tinham apodrecido. Todos os dias, Cabaça-de-Água se reprimia um pouco, todos os dias tentava que Filha comesse alguma coisa, mas em geral ela não queria comer. Não podia afirmar que ficara triste quando a comida da panela desaparecera.
Além da carne estragada, dava a Filha um ouriço-do-mar por dia, e comia dois, mas por fim chegou o dia em que só restava um ouriço. Ele comeu as ovas e deu o resto a Filha.
Quando Cabaça-de-Água lambeu o resto das ovas que tinha na unha, começou a sentir comichão nos olhos. Fechou-os com força, depois esfregou as pálpebras com as mãos e ficou admirado ao ver que tinha a face cheia de lágrimas. ”Choro por Filha”, pensou ele. ”Porque teria pena de mim?” Vivera bem, tivera mulheres e filhos. Filha é que merecia ter uma vida mais longa. Cabaça-de-Água olhou para o rostinho da menina - para os olhos, antes tão brilhantes, e agora encovados e baços pela fome - e a tristeza queimou-lhe as entranhas.
”Ela é apenas uma menina”, recordou ele. A vida de uma menina não era fácil nem necessariamente boa. Como esposa, passaria os dias trabalhando arduamente e as noites servindo um marido que poderia não ser fácil de satisfazer.
Cabaça-de-Água pensou que fora bom para as suas mulheres. Quase sempre, pelo menos. Talvez quando era novo se tivesse mostrado mais impaciente do que devia para com a primeira esposa. Exigente. Mas melhorara com o tempo e pagara por isso com a quarta esposa, que era má e egocêntrica.
Talvez fosse bom que os ouriços-do-mar tivessem acabado, tanto para ele como para Filha. Talvez nenhum deles tivesse grandes razões para viver. Agora, poderia pensar a sério em morrer. Como é que um homem podia pensar na necessidade da morte quando ainda tinha comida?
Cabaça-de-Água pensou nas várias maneiras de morrer. A fome era certamente uma delas, outra era o afogamento, mas nenhuma lhe pareceu atraente. Cabaça-de-Água ainda tinha a sua faca. Podia cortar as veias, enroladas como vermes azulados debaixo da pele. Mas o sangue lembrou-lhe a carne sendo esquartejada, e Cabaça-de-Água passou a maior parte desse primeiro dia sem comida recordando os banquetes do passado, as ocasiões de festa.
Encheu a mente com a recordação dos ouriços-do-mar, partidos e prontos para comer, suculentos como a gordura de urso que escorria dos espetos nas fogueiras. Delicados bolos de castanha, frutos e tubérculos assados, ervas bem cortadas e misturadas com água, cozinhadas em pedras achatadas e enroladas numa pasta de peixe. Cabaça-de-Água fechou os olhos e entregou-se em pensamento a este repasto, terminando com flores, mascadas e sugadas para extrair o néctar.
E só quando o choro de Filha o arrancou ao seu festim e o devolveu ao casco frio e molhado do barco é que ele percebeu que, em vez de pensar na morte, passara a maior parte do dia meditando na vida.
Estava aborrecido consigo próprio. Se desperdiçara o seu tempo pensando em comer, como poderia esperar uma morte digna?
- Não há nada para comer - disse ele a Filha, desolado. A menina tirou os dedos da boca e fez beicinho.
- Peixe - disse ela.
- Não há peixe - respondeu ele.
Ela apontou para várias conchas vazias de ouriços-do-mar que se encontravam no fundo do barco.
- Peixe - disse ela outra vez, num tom mais exigente.
Ele inclinou-se, pegou uma concha e deu a ela. A criança lambeu-a por dentro e depois começou a brincar com ela, e só então ele percebeu que ela tinha necessidade de um brinquedo. Todas as crianças possuíam brinquedos, não é verdade? Lembrou-se de cortar uma ponta de um dos cobertores e de a atar de maneira a que parecesse uma boneca com braços, pernas e cabeça - mas depois percebeu a sua insensatez. Eles precisavam mais dos cobertores do que Filha de uma boneca. A criança contentava-se com a concha do ouriço, apesar de esta lhe picar os dedos.
Todavia, ao pensar em cortar uma ponta do cobertor, Cabaça-de-Água teve outra idéia. Talvez pudesse fazer uma espécie de linha com o cobertor ou, melhor ainda, com o tecido da camisa. Começou a examinar as pontas da camisa no local em que os pontos formavam uma espécie de ourela para impedir que o tecido desfiasse. Pegou o fio, sem perceber de que era feito. Vira as mulheres da aldeia triturando a casca das árvores, talvez para dela extraírem os fios com que costuravam. Às vezes, enrolavam tendões, mas qual o homem que prestava atenção a essas coisas? Naquela situação, era fácil atrair maldições. Para quê chamá-las para si, demonstrando um interesse absurdo pelo trabalho das mulheres?
Quando conseguiu desfazer os pontos, Cabaça-de-Água ficou com um fio tão comprido como os seus dois braços esticados. Talvez chegasse para apanhar um peixe, pensou o velho. Puxou-o com força e concluiu que era suficientemente forte. com a faca, cortou um pedaço de madeira da borda do barco, com um palmo de comprimento e dois dedos de largura. Amaciou a parte central e atou-lhe uma ponta do fio.
- Uma linha - explicou ele a Filha, que repetiu as suas palavras. - Para o peixe.
- Peixe - disse ela, agarrando-se à barriga e desatando a chorar. - Peixe. Eu quero peixe.
O velho deu-lhe para beber um pouco da água que acumulara, o que pareceu acalmá-la. Encostou a criança ao seu corpo quente e viu-a fechar os olhos, abri-los piscando e voltar a fechá-los. Por fim, adormeceu, e ele começou a pensar em como fazer um anzol.
Quando os homens do Povo do Deus-Urso o atacaram, duas das suas lanças tinham caído dentro do barco. Cabaça-de-Água quase as atirou ao mar, com receio de que trouxessem alguma maldição, mas depois resolvera conservá-las. O seu primeiro pensamento fora usá-las em terra para caçar animais de pequeno porte que ele e Filha pudessem encontrar, mas, agora que estavam no meio do mar e que o remo se perdera, como podia ele ter esperança de caçar?
Quando ainda tinham alguns ouriços-do-mar para comer, ele passara vários dias com uma das lanças pousada na borda do barco, pronto a atirá-la em qualquer peixe que se aproximasse, mas não avistara nenhum e por fim desistira. O que podia ele esperar?, perguntou a si próprio. Era uma lança do Povo do Deus-Urso, e o que entendiam eles do mar? Talvez os peixes tivessem ficado ofendidos com a lança e - quem sabe? - julgassem que ele era do Povo do Deus-Urso.
Cabaça-de-Água tentara fazer um remo, servindo-se de uma lança como cabo, mas não conseguira extrair um pedaço de madeira suficientemente largo para servir de pá. Além disso, como as lanças eram de arremesso, os cabos eram curtos demais para serem feitos de remos, a menos que ele se inclinasse muito sobre a borda do barco.
Antes que pudesse tomar uma decisão, o calor de Filha na barriga o fez adormecer. Em sonhos, era de novo um rapaz que, por qualquer motivo, não fazia nada e observava o homem que partia pedra na aldeia. Há muito que esse homem morrera e, mesmo em sonhos, Cabaça-de-Água levou algum tempo recordando-se do seu nome. Por fim, lembrou-se. Entalhador. Talvez não fosse este o seu verdadeiro nome, mas o tratassem assim devido ao seu trabalho, como o próprio Cabaça-de-Água.
Nesse tempo distante, Entalhador é que fazia a maior parte das lanças, das facas e dos utensílios para as pessoas da aldeia. Durante dois anos, Cabaça-de-Água trabalhara com ele como aprendiz, e aprendera a arte paciente de britar pedra, mas depois, com a insensatez que era própria da juventude, concluíra que preferia caçar ou pescar.
Mas nessa noite, no barco de madeira de cedro, Cabaça-de-Água reviu Entalhador em sonhos e percebeu que se recordava ainda de muita coisa. Lembrou-se da almofada de couro para proteger a mão esquerda que segurava na pedra, do furador de haste de veado e da pedra do tamanho de um punho que servia de martelo; furadores, brocas e instrumentos de corte para fazer pontas de seta de osso. Nessa noite, durante o sono, Cabaça-de-Água observou e aprendeu.
De manhã, desatou o tendão que enrolava a ponta da lança dos homens do Povo do Deus-Urso ao cabo. Falou com a pedra num tom apaziguador, para que ela não tivesse medo do que ele ia fazer. Não queria que ela se lhe partisse nas mãos.
Enrolou o tendão em volta do pulso e atou-o, para não o perder. Em seguida, fez um furador com o cabo de osso da faca que usava no pulso e um novo cabo com a lança dos homens do Povo do Deus-Urso. A faca não ficou tão bonita como era, mas servia. Escolheu uma pedra do lastro para fazer de martelo e protegeu a mão esquerda com uma ponta do cobertor de pele de veado mais pequeno. Pegou a ponta da lança e começou a trabalhá-la com todo o cuidado, estreitando e afilando a base da lâmina até conseguir extrair várias lascas de pedra compridas e esguias.
Cabaça-de-Água olhou para os dedos e para as articulações inchadas e ficou admirado com o que conseguira fazer. Era como se sentisse as mãos de Entalhador nas suas, orientando-o, ensinando-o, porque a verdade é que aquele trabalho não era só dele.
Transformou a extremidade mais estreita da lasca de pedra maior numa ponta e depois cortou outro pedaço de madeira do cabo da lança, abriu-lhe um buraco com a faca e enfiou nele a ponta cega de modo a que a ponta afiada formasse um ângulo com a madeira. Atou a ponta com um pedaço de tendão e serviu-se do resto para prender o anzol à linha que desfiara da camisa.
Passou quase um dia inteiro fazendo isto, porque de vez em quando tinha que interromper o trabalho para consolar Filha e lavar os farrapos sempre molhados que ela tinha entre as pernas. As nádegas e a pequena racha de mulher estavam ásperas e avermelhadas, inchadas e inflamadas, e ela mexia-se de vez em quando, puxando o farrapo, mas encontrava-se quase sempre deitada, cochilando. Cabaça-de-Água perguntou a si próprio se ela também estaria pensando na morte, preparando-se para que o seu espírito lhe saísse do corpo com facilidade.
Pensou no que fazer se ela morresse. O mais fácil seria lançá-la ao mar, mas seria uma atitude sensata? A carne dela devia ser doce e saborosa, embora ele não a comesse. Qual o homem que se atreveria a ser vítima de uma tal maldição? Mas se ele jogasse o corpo ao mar, seriam os peixes a comê-la. Então que mal havia em que ele a usasse como isca? Os peixes a comeriam de qualquer maneira, mas ele teria uma oportunidade de conseguir algum alimento.
Durante muito tempo ficou observando-a, e uma vez ela olhou para ele e sorriu, sem tirar os dedos da boca. O coração do velho contraiu-se. Furioso, Cabaça-de-Água afastou as lágrimas que de súbito lhe fizeram arder os olhos. Ah! Que disparate preocupar-se com uma criança tão pequena que mal sabia andar!
Talvez ele conseguisse apanhar um peixe antes de ela morrer e a carne lhe desse forças para viver mais algum tempo. Cabaça-de-Água sentou a criança no meio do barco, num local que não estava muito molhado. Com o que restava do cabo da lança começou a esgravatar no entulho que se acumulara na proa. Talvez encontrasse alguma coisa - uma barbatana endurecida do peixe fumado que viera na panela de Filha, uma ova de ouriço que ele pudesse esfregar no anzol...
Um farrapo de um dos cobertores de pele de veado podia atrair um peixe, mas um homem era amaldiçoado se enfiasse animais terrestres na barriga dos peixes. E o azar que o atingira já era suficiente. Não precisava de mais.
Levantou as pedras de lastro uma por uma, à procura do fardo de Filha. Por fim, descobriu metade de uma concha de ouriço. Não havia mais nada, nem sequer resíduos de um dos farrapos da menina. Era o que acontecia a um homem que não tinha mulher há muitos anos. Habituava-se a limpar tudo sozinho.
Por fim, pegou a concha, atou-a ao anzol e jogou a linha na água. Pensara em atar uma lasca de pedra para fazer peso na linha, mas o anzol foi suficiente para a empurrar para o fundo. Cabaça-de-Água debruçou-se sobre a borda e viu-o descer à medida que desenrolava a linha do cabo de madeira.
Durante muito tempo ficou olhando, mas não viu nenhum peixe. Quando lhe começaram a doer as costas, sentou-se e perscrutou o mar. Sempre que as ondas levantavam o barco, ele olhava para o horizonte. Às vezes, os olhos enganavam-no e levavam-no a pensar que avistara terra. Depois, o mar deixava cair o barco entre as vagas e só se via água. Então, o velho sentia-se maravilhado por terem sobrevivido e o mar não os ter engolido.
Nesse dia, com o anzol, a linha e a esperança de pescar um peixe, Cabaça-de-Água concluiu que o mar era mais seu amigo do que inimigo. Entoou uma canção de pescadores com a sua voz rouca de velho e depois disse a Filha que os muros de água que se erguiam, verdes e lisos, em volta deles, lhes trariam um peixe.
Baía de Herendeen, península do Alasca
602 a. C.
Alguém falou em voz alta, interrompendo a história de Qumalix. A mulher fechou os olhos por um momento e abanou a cabeça como se precisasse se lembrar onde estava. Na obscuridade do ulax, Yikaas viu que ela procurava a pessoa que gritara.
Um homem levantou-se. Cruzou os braços e, inspirando com força, encheu o peito de ar. Era um dos Primeiros Homens. Vestia um sax de pele de lontra e usava uns batoques de marfim que lhe furavam a pele nos cantos da boca. Kuy’aa explicara a Yikaas que os batoques de um homem assinalavam a linhagem da família e o lugar que ele ocupava na aldeia. Os deste homem eram círculos grandes e, de cada um, nascia um dente do tamanho da falange de um dedo da mão. Riscos verticais escureciam-lhe a pele e uma série de círculos e de manchas cobria-lhe a face. Não havia dúvida de que se tratava de um caçador pertencente a uma família poderosa. Porque não ostentava as tatuagens próprias de um caçador?
Mas, para surpresa de Yikaas, Kuy’aa inclinou-se para ele e disse em voz baixa:
- Eu conheço-o. Chama-se Chega-ao-Céu e é contador de histórias de uma aldeia dos Primeiros Homens que fica a um dia de caminho para leste desta Praia dos Comerciantes.
Chega-ao-Céu falou, e, embora Yikaas não tivesse percebido as suas palavras, sentiu o tom debochado da sua voz e teve um desejo súbito de proteger a menina que lhes contara uma história tão bela. Yikaas esperava que ela conseguisse traduzir as palavras de Chega-ao-Céu, mas tal não aconteceu. Ela respondeu-lhe com uma voz respeitosa, e a conversa prosseguiu, com os comentários ríspidos de Chega-ao-Céu e as respostas suaves da menina, até que vários comerciantes do Povo Rio que se encontravam no ulax começaram a protestar.
- O que é que ele quer? - perguntou um.
- Explica-nos o que ele está dizendo - pediu outro.
Por fim, Qumalix levantou uma mão, com a palma virada para fora, pedindo silêncio. Olhou para os comerciantes do Povo Rio e disse:
- Ele diz que gosta muito da minha história, mas que nunca ouviu falar do Povo Barco. Quer saber se eles são dos Primeiros Homens ou mesmo do Povo Rio e, se não são, pergunta porque é que eu falo deles em vez de contar histórias de pessoas que nós conhecemos, como Chakliux, K’os ou Aqamdax, pessoas cujas histórias muito antigas chegaram até nós.
Yikaas teve que admitir que fizera a mesma pergunta a si próprio. Como Qumalix era das ilhas dos Caçadores de Baleias, ele ficara à espera que ela contasse histórias dos Primeiros Homens e não do Povo Barco. Mas não quis cometer a indelicadeza de a interromper e de fazer a pergunta, como Chega-ao-Céu fizera.
- Se fores paciente, verás que as histórias de Filha e de Cabaça-de-Água se adaptam às de Chakliux e da sua família - respondeu Qumalix.
Chega-ao-Céu fez outra pergunta. Qumalix respondeu e depois explicou na língua do Povo Rio:
- Ele quer saber se os guerreiros do Povo do Deus-Urso pertencem ao Povo Rio.
Houve um murmúrio de assentimento vindo de outros Primeiros Homens, mas os comerciantes do Povo Rio ergueram a voz, ofendidos.
- Nós não somos como esses. Nós nunca atacaríamos uma aldeia pacífica. Talvez o Povo do Deus-Urso seja como os Primeiros Homens.
Então, um dos comerciantes dos Primeiros Homens exclamou:
- Ouvimos as tuas histórias sobre os povos de Rio Próximo e Rio Primo. Eles quase se mataram uns aos outros. Como podem vocês dizer que gostam da paz? Além disso, nós, os Primeiros Homens, sabemos construir bons barcos. Nunca faríamos barcos como aqueles que o Povo do Deus-Urso usava.
A discussão subiu de tom, e as palavras voavam. Os homens levantaram-se e começaram a gritar uns com os outros, e as mulheres insultavam-se. Yikaas deixou-se ficar onde estava, furioso com todos por terem interrompido uma história que ele queria ouvir e sobretudo com Chega-ao-Céu, que dera origem a todo aquele disparate.
Kuy’aa levantou-se e, mancando, dirigiu-se para o poste de saída. Yikaas suspirou e pôs-se de pé, disposto a ir atrás dela. A sessão de histórias prolongara-se e o Sol já devia ter se posto, apesar de as noites de Verão serem curtas. Além disso, não queria que Kuy’aa andasse pela aldeia sozinha, à procura do ulax onde iria pernoitar. Mas ficou perplexo quando ela, depois de subir vários degraus, se virou para a assistência e, enfiando dois dedos aos cantos da boca, produziu um assobio longo e estridente.
A discussão terminou, e as bocas abriram-se de espanto quando as pessoas perceberam que o assobio viera de uma velha do Povo Rio.
- Fiquem calados! - gritou ela.
Em seguida, empinou o queixo na direção de Qumalix. A menina ainda ocupava o lugar dos contadores de histórias, com as mãos tão enganchadas uma na outra que os nós dos dedos estavam brancos.
- Conta a tua história - disse Kuy’aa. - Quem não quiser ouvir, que vá embora.
Ouviu-se um sussurro de aquiescência entre os comerciantes do Povo Rio e algumas perguntas dos Primeiros Homens, até que alguém traduziu as palavras de Kuy’aa. Vários homens e uma mulher saíram do ulax, entre eles Chega-ao-Céu, mas os outros acalmaram-se e pediram à menina que continuasse.
Yikaas perguntou a si próprio se ela estaria disposta a continuar depois de toda aquela altercação e indelicadeza. A menina esfregou os olhos com os dedos, e ele viu-lhe o cansaço no rosto, mas ela começou a falar, a princípio tão baixinho que ele mal a ouvia. A voz tremia-lhe, e Yikaas baixou a cabeça, com vergonha de olhar para ela, mas à medida que ela falava as suas palavras ganhavam força.
Pouco depois, Yikaas ficou de novo preso à sua história. Era de novo Cabaça-de-Água, um velho que tentava enganar a morte, quando ele e Filha andavam à deriva num mar que parecia estender-se aos confins da Terra.
Pacífico Norte
6447 a. C.
História de Filha
Cabaça-de-Água passou dois dias pescando sem sentir uma única mordida no anzol. De manhã, um nevoeiro cinzento cobria o céu, e o Sol era pouco mais do que uma mancha luminosa que mal dava para afugentar a noite. Quando finalmente um peixe mordeu o seu anzol, Cabaça-de-Água tinha os dedos tão entorpecidos pelo frio que a princípio nem percebeu se sentira alguma coisa, mas inclinou-se rapidamente e depositou Filha no fundo do barco. A criança protestou ao ver-se afastada do calor do colo do velho, mas este fez-lhe sinal para que se calasse.
- Peixe - disse-lhe ele em voz baixa, e ela calou-se.
Nova mordida, e Cabaça-de-Água esticou os braços, pronto a puxar a linha e a pôr o anzol, sabendo que, se se mexesse depressa demais, poderia assustar o peixe e afastá-lo. Durante muito tempo, não sentiu nada, e o medo de ter feito algum movimento brusco demais instalou-se no estômago como se fosse uma pedra. De repente, sentiu-se atordoado. Há muito tempo que não comia, estava fraco demais, e perguntou a si próprio se teria forças para içar um peixe para dentro do barco se ele não engolisse o anzol.
Voltou a ser assaltado por pensamentos de morte e abanou a cabeça para os afastar. Qual o pescador que desistia depois de sentir um peixe morder o anzol? O velho sacudiu a linha, fazendo-a descer lentamente, depois puxou-a para cima e voltou a deixá-la cair. De repente, a linha foi puxada com tal força que quase se escapou dos dedos.
Cabaça-de-Água deu um grito e começou a entoar uma das cantilenas com que os pescadores costumavam atrair os peixes. Era uma canção para redes e não para linhas de pesca, mas pelo menos o peixe ouviria as palavras do Povo Barco e ficaria sabendo que ele era um homem que respeitava o mar e aqueles que lá viviam.
O peixe era robusto e, ao afastar-se do barco, começou a puxá-los. Cabaça-de-Água agarrou-se com força à pega de madeira e mediu a resistência da linha. Interrompeu a sua canção para falar com ela, pedindo-lhe que não se partisse, que se mantivesse forte.
- Forte - repetiu Filha do local onde se encontrava, no fundo do barco.
Depois, a criança olhou para Cabaça-de-Água e perguntou:
- Peixe?
- Peixe. Um peixe grande - respondeu Cabaça-de-Água.
Apareceu uma sombra no mar, uma sombra que se transformou num peixe, que nadou até se aproximar do barco. Cabaça-de-Água perdeu o fôlego e por pouco não sufocou. Era enorme, aquele peixe. Devia ser grande demais para que fosse possível apanhá-lo. O velho não sabia se devia esperar, usar as poucas forças que lhe restavam ou cortar a linha.
Tinha pedra e madeira para fazer outro anzol, mas de que lhe servia, se a linha era curta demais?
De repente, irritou-se. Não, não cortaria a linha! Se o peixe não se oferecesse para ele comer, então que os deixasse em paz, que os deixasse apanhar outro disposto a ser comido. com certeza reconhecera a sua canção, sabia que eles pertenciam ao Povo Barco e que Cabaça-de-Água deitaria as espinhas ao mar para que o peixe pudesse voltar a viver.
O animal puxou a linha por baixo do barco e veio à superfície junto do flutuador. Depois, voltou a mergulhar, arrastando a linha para tão longe que Cabaça-de-Água teve que estender os braços sobre as ondas. O peixe deu uma volta e subiu tão depressa, reduzindo a tensão da linha, que o velho caiu de costas no barco. O peixe deu um salto e Cabaça-de-Água viu-o, de focinho achatado, verde e preto, em contraste com o céu nublado, com a pele mosqueada brilhante como uma pedra molhada. Era um peixe que ele não conhecia, que nunca vira, quase do tamanho de um homem. Depois, quando o peixe caiu na água, contorcendo-se, a linha soltou-se de repente.
Cabaça-de-Água deu um grito, mas apressou-se a enrolar o resto da linha no cabo.
- Peixe? - perguntou Filha.
- Era muito grande - respondeu Cabaça-de-Água.
- Peixe - repetiu Filha, começando a chorar. - Peixe, peixe, peixe.
- Cala-te - disse ele.
Olhou para o céu cinzento e perguntou a si próprio se já teria morrido. A morte seria assim? Andar para sempre num barco que não ia para parte nenhuma? Sem comida, sem água, e ainda por cima vendo uma criança morrer? Ele fora assim tão mau para merecer aquela morte? Não respeitara os pequenos e os grandes deuses, os espíritos que viviam na erva, na terra e no mar?
Lembrou-se das ocasiões em que fora egoísta, em que exigira mais do que a sua parte de alimento ou de atenção. Quantas vezes pretendera que as suas mulheres fizessem mais do que o necessário? Lembrou-se de que as acordara de noite para satisfazer as suas necessidades, de comida, de sexo, depois de elas já terem se levantado várias vezes por causa dos bebês. Lembrou-se de que se queixara da preparação dos alimentos e da confecção do vestuário.
Mas não era para isso que as mulheres serviam? E os homens não trabalhavam tão arduamente como elas? Não arriscavam a vida para lhes dar comida, a elas e aos filhos? Como se podia comparar uns minutos no meio da noite com isso?
E Filha? O que fizera ela para merecer uma morte daquelas, com a boca seca e a barriga vazia, com feridas sangrando e lábios rachados?
Por fim, Cabaça-de-Água concluiu que não estavam mortos. Como poderiam ter morrido? Na morte, um homem via espíritos. Via outros que tinham morrido antes dele. Onde estavam Faz-Nós e Cabeça Comprida? Com certeza deviam estar ali nos seus barcos, porque também eles tinham se perdido no mar.
Ele estava vivo, e Filha também. O peixe levara um anzol. Pois bem, ele faria outro.
Na sua mente, uma voz disse baixinho: ”Precisas de isca.” Mais nada. Sem mais conselhos.
Cabaça-de-Água esquadrinhara o barco suficientemente bem para saber que não havia nada comestível escondido no meio das conchas e das pedras de lastro, mas voltou a procurar. Não havia nada, nem a mais pequena espinha de peixe, nem sequer um resto de ovas de ouriço-do-mar.
O velho olhou para os pés. Com certeza um homem não sentiria a falta de um dedinho do pé. E a dor de o cortar seria de curta duração. Cabaça-de-Água respirou fundo e expeliu o ar. Já tinha isca.
Antes de a noite cair e de as nuvens escurecerem a Lua, impedindo-o de ver as suas próprias mãos, o velho tinha feito outro anzol. Pegou a faca, assentou bem um pé descalço na madeira do barco e preparou-se para desferir o golpe.
Mas ouviu de novo aquela voz, dessa vez mais alto, que disse: ”O dedo da menina seria melhor. É mais pequeno e não dói tanto quando for cortado. Além disso, qualquer peixe virá mais depressa ao encontro da carne macia de um bebê que do dedo duro e calejado de um velho.”
Cabaça-de-Água ponderou o conselho e pensou que talvez fosse acertado, mas de qualquer modo, fosse o seu dedo ou o de Filha, resolveu esperar pela manhã. Não queria pescar de noite, porque não conseguia ver o que apanhava a linha, e era mais provável que um dedo fresco atraísse os peixes do que outro já coberto de sangue seco.
Seria de manhã, pensou Cabaça-de-Água. Talvez a sua mente estivesse mais desanuviada depois do sono, embora cada dia sem comida lhe confundisse ainda mais os pensamentos.
- Dormirei primeiro - disse ele à voz no interior da sua cabeça. - As decisões são sempre mais fáceis de tomar depois do sono.
De manhã, Cabaça-de-Água examinou os pezinhos rosados de Filha. A criança tinha a pele engelhada pela água salgada que se ia acumulando no fundo do barco, por mais que ele a despejasse. O dedo era tão pequeno que ele sabia que conseguiria cortá-lo depressa. Os seus pés eram duros e estavam cheios de calos. Nenhum dos seus dedos do pé, por mais pequeno que fosse, cederia facilmente à lâmina de uma faca.
Enfiou o dedo mindinho na boca e trincou. A dor não foi insuportável. Trincou com mais força até sentir o sal do seu próprio sangue. Continuava a não ser insuportável. Com certeza que conseguiria suportar a dor de perder um dedo do pé. E se a ferida libertasse espíritos de doença? Toda a gente sabia que os orifícios do corpo podiam deixar entrar os espíritos maus. As narinas, as orelhas, a boca, o ânus, o buraco na ponta do pênis de um homem e até os buraquinhos minúsculos ao canto dos olhos, por onde saíam as lágrimas. E, evidentemente, todos os cortes. Quantas vezes na sua vida é que ele vira uma pessoa adoecer, arder em febre e morrer, apenas de um pequeno corte no pé ou na mão?
Que proteção tinha ele naquele barco contra tais espíritos? Não podia queimar erva sagrada. Não tinha ali o ervanário para lhe preparar um remédio nem o homem que cantava para afugentar os espíritos. E, se ele morresse, Filha também morreria. Sem ele, ela não teria hipóteses de sobreviver.
Por outro lado, se cortasse o dedo pequeno do pé da Filha, poderia oferecer cânticos para receber proteção, e se Filha morresse, ele continuaria vivendo. Sem ela, a vida seria mais fácil para ele. Ela não o privaria da porção de água que ele conseguia derretendo o gelo, e ele ficaria com o seu corpo para servir de isca.
Atou o novo anzol à linha e em seguida agarrou o pé esquerdo da menina. Ela encaracolou os dedos, olhou para ele, sorriu, estendeu o braço e encostou-lhe a mão no rosto.
Seria rápido, pensou Cabaça-de-Água. Tirou a faca da bainha. Filha sorriu e aninhou-se no seu peito. Ele inclinou-se, assentou bem o pé no fundo do barco e cortou, com força.
A lâmina de pedra acertou no osso, e a dor fez eco na cabeça de Cabaça-de-Água. Ele deu um grito e mal conseguiu acabar de cortar. Filha olhou para ele, horrorizada, e começou a chorar. Cabaça-de-Água meteu a mão na poça de sangue que continuava a aumentar, encontrou o dedo, velho, torto e duro, e depois apertou a ferida com um monte de trapos.
- De qualquer modo, ele doía-me sempre que chovia, disse ele.
Em seguida, mexeu-se um pouco, tentando desviar o pensamento da dor. Olhou para os dois pezinhos perfeitos de Filha e ficou satisfeito.
Passaram-se dois dias. Cabaça-de-Água não apanhou nenhum peixe com o primeiro dedo nem com o segundo, apesar de os peixes morderem a linha e os dedos, até ficar apenas o osso. Por fim, quando se preparava para cortar mais um dedo, Filha estendeu o pezinho até chegar à cara dele. Estava muito fraca, e ele sabia que a iria perder dali a pouco tempo. Um bebê não conseguia viver tantos dias sem comer. A sua própria mente já quase desaparecera, perdida em sonhos tresloucados. O segundo dedo fizera-lhe perder muito sangue, e a água resultante do degelo não fora suficiente para aliviar a sede devastadora provocada pela hemorragia.
- Meu - disse a criança, com uma voz fraca e cansada. Pousou a mão na faca e abanou a cabeça. - Não teu. Meu. - Cabaça-de-Água ouvira as velhas dizendo em surdina que os bebês traziam inteligência do mundo dos espíritos. Talvez Filha soubesse mais do que ele julgava. Talvez a sua velha carne não prestasse para apanhar um peixe.
- Isso ia doer muito, Filha - disse ele.
- Meu - repetiu ela.
- Primeiro, dorme - disse ele, pensando que seria mais fácil se ela estivesse dormindo e talvez não sentisse tanto a dor.
Tentou cantar, mas a sua garganta ressequida partiu-se, espalhando as palavras e transformando-as em cacos absurdos. Mas por fim, quando as ondas do mar agitaram o barco, a criança adormeceu. Então, com as lágrimas quase impedindo-lhe a visão, Cabaça-de-Água pegou a faca e cortou o dedo mais pequeno do pé de Filha.
Com a dor, a menina abriu os olhos. O velho olhou para as suas profundezas castanhas e viu apenas compreensão. Filha chorou quando ele apertou a ferida para estancar o sangue, mas agarrou-se ainda mais a ele e, depois de Cabaça-de-Água atar o dedo à ponta de pedra do anzol, levantou o queixinho e disse:
- Meu.
Um peixe mordeu a isca pouco depois de ele ter lançado a linha à água. Cabaça-de-Água agitou o anzol e sentiu-o enterrar-se solidamente no corpo do animal. Durante algum tempo deixou que o peixe se debatesse até se cansar e depois puxou-o para a borda do barco. O peixe deu um esticão e imobilizou-se. Era uma abrótea, negra e prateada, tão comprida e grossa como o braço do velho. Cabaça-de-Água enfiou a mão trêmula na água, sustendo o fôlego até conseguir enfiar-lhe os dedos nas guelras.
- Agora - disse ele em surdina, tentando içar o peixe para o barco. Mas o peso do animal era superior às suas forças.
- Meu - disse Filha em voz baixa, espiando o peixe pela borda do barco e acariciando o pezinho embrulhado nos farrapos ensangüentados.
Cabaça-de-Água respirou fundo, puxou de novo, e dessa vez conseguiu içar a abrótea, embora não o suficiente para a fazer transpor a borda. Então, as mãozinhas de Filha agarraram-lhe o cotovelo e puxaram-lhe a manga do casaco.
- Agora! - disse ele outra vez.
Puxaram ambos, e o peixe caiu dentro do barco, a seus pés.
- Teu - disse-lhe Cabaça-de-Água e, com a loucura própria da velhice, desatou a chorar.
Cabaça-de-Água serviu-se das tripas da abrótea para apanhar mais peixe e, depois de uns dias com comida, ele e Filha recuperaram as forças. As correntes continuavam a empurrá-los para norte, e todas as noites a água congelava no fundo do barco.
Cabaça-de-Água começou a pensar que talvez o mar os estivesse levando para aquela região em que era sempre Inverno. Ouvira contar histórias sobre isso. Os comerciantes diziam que ficava a norte das ilhas do Povo do Deus-Urso, mas outros afirmavam que ela não existia. Como é que alguma coisa poderia viver numa terra em que era sempre Inverno?
O frio gélido da atmosfera parecia conviver bem com o nevoeiro, e Cabaça-de-Água raramente conseguia ver alguma coisa além da proa do barco. O nevoeiro não só lhe fazia inchar os olhos como parecia exercer-lhe uma pressão nos ouvidos, e às vezes ele convencia-se de que não podia suportar por mais tempo a falta do sol, do céu e do som. Mas, uma noite, o nevoeiro dissipou-se, as nuvens afastaram-se, e Cabaça-de-Água conseguiu ver as estrelas. Eram quase iguais às da sua aldeia, e isso confortou-o, mas a sua localização é que era um pouco diferente - mais do que a simples deslocação que acompanhava as estações. Seguiram-se vários dias de sol, e o velho começou a ter esperança de que o mar não os houvesse arrastado para as costas distantes da região do Inverno e que o Verão tivesse mesmo chegado. Embora Cabaça-de-Água e Filha se vissem obrigados a aconchegar-se um ao outro para se aquecer durante a noite, o sol, mesmo nos dias encobertos, aquecia-lhes os ossos e devolvia-os a vida, e os orvalhos matinais eram tão ralos que o velho mal conseguia reforçar a sua reserva de água.
Cabaça-de-Água perscrutava o horizonte em busca de terra, e essa observação provocava-lhe dores de cabeça e ardor nos olhos. A dor nos pés já quase desaparecera, e a pequena ferida de Filha sarara bem, mas os olhos de Cabaça-de-Água pioravam dia a dia. Retirou um pedaço de madeira do interior do barco, e talhou um par de óculos para se proteger do reflexo da luz do Sol na água. Muitas vezes, quando não estava pescando, ficava sentado de olhos fechados, desfiando histórias que por instantes o devolviam e a Filha à sua aldeia.
Filha também estava mudando. A sua pele delicada de bebê escurecera e as pernas adelgaçaram. O cabelo preto e liso, embora emaranhado e enredado pelo vento, chegava-lhe agora quase aos ombros. Aprendera mais palavras e, como passavam os dias juntos, começara a tratá-lo por avô. Ele gostava do som desta palavra na boca dela, de ouvir a sua vozinha se enrolando quando via alguma coisa de interesse, ou do seu resmungar de bebê quando estava cansada e tinha necessidade de dormir.
Embora sentisse falta da sua aldeia, dos velhos amigos e até da nascente de água doce, Cabaça-de-Água já não conseguia imaginar-se sem Filha: o rosto dela erguia-se para o seu, e as palavras balbuciadas e o riso gorgolejante da criança enchiam os seus dias.
Às vezes, em sonhos, via-se cortado e mutilado, irreconhecível, quando se desbastava para se transformar em isca. Dedos dos pés e das mãos, nariz e língua, grandes tiras de carne desaparecidas, devoradas por peixes vorazes demais e egoístas para serem apanhados.
Depois acordava, agradecido por poder esticar os dedos das mãos, tortos e deformados, mas inteiros. Nos pés, faltavam apenas os dedos mais pequenos, mas ainda tinha nariz e língua, e o seu corpo ostentava apenas os infortúnios de uma vida longa. E Filha também estava inteira, exceto aquele dedinho do pé.
Na manhã em que acordaram e viram que o barco estava rodeado de lontras-marinhas, Cabaça-de-Água começou a ter esperança de que se encontrassem próximos de terra. Restavam-lhes apenas três cabaças de água. Quantos dias conseguiriam sobreviver depois de ela se acabar?
As lontras espalhavam-se à volta do barco, no meio do nevoeiro, como um mar de cor acastanhada, umas saltando e brincando, outras deitadas de costas, amamentando as crias. Uma delas, de focinho cinzento, aproximou-se muito do barco, com uma pedra equilibrada no peito e um mexilhão agarrado às barbatanas. A lontra esmagou o mexilhão contra a pedra até conseguir partir a casca, depois retirou a carne e comeu-a ruidosamente.
Filha estendeu a mão à lontra e disse:
- Meu.
O animal afastou-se e desapareceu rapidamente na água, e várias lontras que se encontravam perto deles fizeram o mesmo. Filha olhou para Cabaça-de-Água, que levou um dedo à boca para a mandar calar.
Com muito cuidado, devagarinho, começou a deslocar-se para a lança dos homens do Povo do Deus-Urso que se encontrava no fundo do barco. Se conseguisse atar a linha à lança, talvez pudesse utilizá-la como arpão e matar uma lontra. Nem ele nem Filha estavam esfomeados, mas uma lontra tinha muita carne, já para não falar do sangue que eles podiam beber. E além disso havia a pele. com certeza que ele havia de conseguir raspar uma pele de modo a usá-la como cobertor durante a noite. Também havia os tendões, para fazer linha de pesca, e os ossos e os dentes para fazer anzóis.
Por fim, o velho conseguiu puxar a linha e a lança para o colo e, mais uma vez, fazendo sinal a Filha para que mantivesse o silêncio, atou a linha em volta da extremidade cega do cabo da lança. Era uma lança própria para golpear, e não para lançar, mas Cabaça-de-Água já fizera muitas lanças na sua vida e sabia compensar o defeito. Se falhasse, podia servir-se da linha para recuperar a lança.
A lontra de focinho cinzento regressou à superfície junto do barco, com outro mexilhão agarrado às barbatanas. Filha estava de joelhos no barco, olhando pela borda.
- Meu - disse ela em voz baixa, estendendo o braço para o mexilhão.
A lontra afastou-se, como se fosse uma criança, com o mexilhão no flanco. Mexendo-se lentamente, Cabaça-de-Água pousou a mão no ombro de Filha e tentou obrigá-la a sentar-se de novo no meio do barco, mas ela afastou-se sem olhar para ele. O velho reparou que ela tinha um pedaço de peixe na mão e que o oferecia à lontra. O animal levantou a cabeça, e de repente Cabaça-de-Água teve medo de que ele mordesse a criança. O velho esticou o corpo para a frente, mas antes que conseguisse chegar a Filha já a lontra levara o pedaço de peixe. A verdade é que Filha ficara com o mexilhão, escuro e molhado, na mão.
- Meu! - exclamou ela, quando a lontra mergulhou e se afastou nadando.
A criança levantou o braço para o velho ver o mexilhão. Cabaça-de-Água fechou os olhos, aliviado.
- Teu - reconheceu ele.
À medida que o dia avançava, Cabaça-de-Água observava as lontras, na esperança de que alguma se aproximasse o suficiente para ele a arpoar. Enquanto as observava, deu consigo pensando que poderia usar a omoplata de uma lontra como remo. O que restava da lança do Povo do Deus-Urso podia servir de cabo. Apesar de este ser muito curto e esguio para o mar alto, talvez lhe permitisse seguir as lontras até a costa.
Desde que ele e Filha tinham começado a sua estranha viagem, tentara várias vezes retirar um pedaço de madeira do interior do barco para fazer uma pá de remo, mas o cedro absorvera a água salgada e amolecera, e nenhum pedaço tinha o tamanho suficiente.
Depois, teve outra idéia. Se ele arpoasse uma lontra, um animal forte que não morresse com a ferida talvez ela fugisse para a segurança da terra. E ao nadar, ainda presa a eles pela linha de Cabaça-de-Água, talvez o medo lhe desse força para arrastar o barco.
Cabaça-de-Água ficou à espreita e esperou que o Sol, reduzido a um círculo amarelo sobre a neblina, começasse a declinar. As lontras afastaram-se e ele resolveu pôr de lado o arpão e rezar para que os animais voltassem a aproximar-se deles pela manhã. Foi então que avistou uma lontra grande junto do barco. Era forte, tinha um aspecto saudável e era quase tão comprida como um homem era alto. O animal mergulhou no mar, e Cabaça-de-Água ficou de vigia, inclinado na borda, acabando por perder o rasto da lontra. Mas, de repente, ela emergiu, com a pele brilhando, do outro lado do barco. Sacudiu a cauda e nadou lentamente para a proa.
Cabaça-de-Água atou a linha do arpão ao pulso e pegou a lança, cerrando os dentes ao sentir como estava desequilibrada. Precisava de uma pedra que compensasse o peso da ponta. Mas porque desejar o que não tinha? Esfregou o amuleto de caça que trazia ao pescoço desde criança.
Quando estava pronto para atirar, Filha pousou-lhe a mão na perna e olhou para ele. O velho julgou ver medo nos seus olhos, mas o que percebia de caça uma menina? Abanou a cabeça, aborrecido por ela o ter distraído. Nenhum animal se entregaria a um homem que não tivesse o respeito suficiente para se concentrar na caça.
Mentalmente, entoou um cântico, uma melodia lenta para ajudar a acalmar o coração, enquanto esperava pelo momento de arpoar. Abstraiu-se de Filha e do barco e concentrou-se no arpão e na lontra.
Atirou.
A lança atingiu o animal, que mergulhou.
A linha retesou-se, e Cabaça-de-Água agarrou o pulso direito com a mão esquerda, fincou os pés e sentiu que o barco começava a deslocar-se. As outras lontras mergulharam até não se avistar nenhuma na água.
Filha espetou um dedo.
- Meu! Meu! Meu! - gritou ela, fazendo beicinho.
Cabaça-de-Água descobriu a pega da linha de pesca e conseguiu enrolar a linha à volta dela, aliviando a pressão no pulso.
”É um disparate atares a linha ao pulso”, disse-lhe a voz importuna que tinha na cabeça. ”Devias tê-la atado às traves do barco. Agora vais perder a lança e a linha, e talvez a mão. O que farás depois?”
De súbito, a linha afrouxou e Cabaça-de-Água voltou a enrolá-la em volta da pega. Depois, esticou-se de novo, dessa vez para baixo, pela parte lateral do barco. Cabaça-de-Água debruçou-se e viu a lontra, grande e escura, distorcida nas profundezas. De repente, o animal disparou através da água, e nadava tão depressa que o velho só teve tempo de levantar as mãos e cobrir o rosto. A lontra veio à superfície, expelindo bolhas de ar pelo nariz achatado e mostrando uns dentes amarelos que contrastavam com o negro da boca. Atirou-se a ele, e Cabaça-de-Água, sem conseguir pensar nem raciocinar, fechou as mãos em volta do pelo espesso do animal. A lontra, contorcendo-se e rosnando, engoliu grandes lufadas de ar e encaracolou-se para se libertar da ponta de lança sangrenta espetada no flanco.
Filha começou a gritar, e Cabaça-de-Água sentiu a dor provocada pelos dentes da lontra quando esta lhe mordeu o braço, sucessivas vezes. O velho tentou deixar cair o animal ao mar, mas ele enterrou-lhe os dentes no braço e não o largou. Da ferida da lontra saíam gotas de sangue escuro. Por fim, Cabaça-de-Água conseguiu agarrar na sua faca.
Enterrou-a na garganta da lontra, mas esta levou muito tempo para morrer. Finalmente, o sangue do animal esgotou-se e o mesmo aconteceu às suas forças, e Cabaça-de-Água conseguiu servir-se da faca para libertar o braço das mandíbulas. Deixou cair a lontra no fundo do barco. O animal ficou ali, de dentes cerrados, debatendo-se, soltando lascas molhadas de madeira de cedro com as unhas afiadas.
- Afasta-te! - gritou Cabaça-de-Água a Filha.
A criança obedeceu, de olhos arregalados, enfiando um dedo na boca. Quando os espasmos da morte terminaram e o animal se imobilizou, a menina apontou para o braço de Cabaça-de-Água, para a pele retalhada que pendia como uma franja de uma ferida que ia do pulso ao cotovelo.
- Ela comeu-te - disse ela.
As pernas de Cabaça-de-Água cederam, e o velho deixou-se cair no fundo do barco. Uma ferida terrível como aquela iria atrair os espíritos da doença. A febre se apoderaria dele, e ele morreria. Mas Cabaça-de-Água olhou para Filha e disse em voz alta:
- Não, ela não me comeu. Nós é que vamos comê-la.
O casaco de fibra de linho de Cabaça-de-Água não tinha conserto. As costuras, forçadas por dias de espuma salgada e por noites sem a agulha de uma mulher, estavam esgaçadas e abertas. Os dentes da lontra tinham feito a manga em farrapos tão pequenos que não serviam para nada, a não ser para enrolar nos anzóis. Cabaça-de-Água enrolou o casaco em volta do corpo o melhor que pôde, servindo-se de tiras de pele de peixe.
O que era pior, muito pior, é que o seu braço estava quase tão retalhado quanto o casaco, com o músculo à vista e sangrando.
O velho lavou as feridas no mar, cerrando os dentes para abafar o grito que lhe subia na garganta ao sentir o ardor provocado pelo sal. Cobriu a ferida com a pele que conseguiu aproveitar e cortou a restante - feita em tiras minúsculas - com a faca, guardando-a junto da isca.
As marcas mais profundas dos dentes e as feridas continuavam sangrando, e, depois de Cabaça-de-Água ter feito tudo o que podia para as desinfetar, deixou-se ficar sentado por instantes, para recuperar o fôlego, olhando maquinalmente para as espirais que o sangue formava na água, no fundo do barco.
A maior parte era sangue da lontra, pensou ele para se acalmar. Apontou para o corpo do animal com a mão sã e repetiu as palavras a Filha.
Ela abanou a cabeça e disse, com uma voz apaziguadora, como se tivesse compreendido a necessidade de o velho acreditar no que lhe acabara de dizer:
- Lontra, sangue dela.
O velho deixou-se ficar sentado até o ritmo cardíaco abrandar, até sentir que uma sonolência começava a tomar conta dele. Os seus pensamentos mergulharam numa névoa confortável, que depois se desvaneceu, e ele percebeu que essa sonolência era uma armadilha, montada pelo choque e pela perda de sangue. Forçou-se mais uma vez a usar a faca. Dessa vez na lontra morta.
Estendeu o animal no fundo do barco. Estava cansado demais, ferido demais para se preocupar com o que a água ensangüentada faria à pele.
De repente, não se lembrou como se esquartejava uma lontra. Devia cortar-lhe a cabeça, como os caçadores faziam às focas, atando-a atrás dos barcos, até que os vermes que viviam nos intestinos do animal abandonassem o corpo arrefecido? Ou devia golpeá-la da boca até ao ânus, esfolá-la, esvaziar-lhe as entranhas e deitar o conteúdo das tripas ao mar? Por fim, escolheu a segunda hipótese. Se houvesse vermes, saberia lidar com eles quando os encontrasse.
Serviu-se dos pés e do braço saudável para tirar a pele, sem se importar com as patas, a cabeça ou a cauda. Cortou-as inteiras e pousou-as na borda do barco, recitando preces entrecortadas e confusas. Esperava que o espírito da lontra reconhecesse a sua gratidão, apesar do estado do seu braço, e que os pedaços voltassem a juntar-se e formassem um novo animal, que nadasse para o mar. Cortou os músculos em pequenas fatias, deu algumas a Filha e comeu outras.
A carne, gorda e com gosto de lodo, era tão salgada quanto a água do mar, mas quando lhe assentou no estômago, o velho sentiu que recuperava uma parte das suas forças. Estendeu a pele, com o couro virado para cima no seu colo, raspou a carne, os vasos sanguíneos e os restos de gordura, trabalhando devagar e parando de vez em quando para descansar. Filha observava-o, com os dedos na boca.
- Sangue dela - disse ela uma vez, tirando os dedos da boca e apontando para o fundo do barco.
De resto, manteve-se em silêncio, de testa franzida, olhando para as feridas purulentas de Cabaça-de-Água.
Ao cair da noite, Cabaça-de-Água já raspara a pele de modo a que esta servisse de cobertor. Escorreu a água e o sangue coagulado da pele, e enrolou-se nela com Filha, com o pelo virado para dentro. Pela primeira vez desde que tinham saído da terra do Povo Barco, Cabaça-de-Água estava suficientemente quente para dormir bem, e de manhã sentiu-se mais forte, apesar da rigidez do braço.
Esquartejou a lontra, cortou a carne em fatias finas e colocou-as sobre a borda do barco para apanharem o sal da espuma do mar. Esvaziou e limpou as vísceras, cortou algumas para servir de isca e pôs outras para secar. Guardou os tendões para fazer linha de pesca e as omoplatas, na esperança de as transformar em remos. Esqueceu-se de arrancar os dentes antes de atirar a cabeça da lontra ao mar. Que disparate! Eles dariam bons anzóis. Pelo menos, ficara com os ossos.
Cabaça-de-Água e Filha comeram outra vez. A carne não era boa, mas enchia e dava força e, como era de lontra, talvez ajudasse a encaminhá-los para terra. Talvez, por comerem sempre peixe, eles tivessem prolongado a viagem, contentes como os peixes por se manterem nas profundezas.
A ferida de Cabaça-de-Água continuava sangrando, mas começara a formar-se uma crosta dura, o que aliviava a dor no braço. O velho enfiou um pedaço de víscera da lontra num anzol, para servir de isca, e passou a maior parte do dia pescando. Não apanhou nada. Uma vez, ao olhar para o horizonte, julgou avistar terra, mas, com o nevoeiro que nascia da água, não teve certeza.
A brisa era suave, e Cabaça-de-Água tentou sentir-se grato por isso, embora pensasse que uma tempestade, desde que não afundasse o barco, poderia empurrá-los para alguma costa.
À noite, os seus pensamentos misturavam-se e formavam coisas estranhas, como se ele sonhasse de olhos abertos. Não sabia se dera comida a Filha. Sim, carne de lontra, lembrava-se agora.
E água? Tinham tão pouca! Abriu a cabaça que trazia pendurada à cintura e deu-lhe um gole; depois bebeu ele. Quando o Sol se pôs para dar lugar à curta noite, ele reparou que Filha estava tremendo. Era estranho, pensou Cabaça-de-Água. Ele estava tão quente! Embrulhou Filha na pele de lontra e sentiu-a descontrair-se no seu colo, quando o sono a reclamou.
Calculou que a sua mente se desanuviasse se ele conseguisse dormir, mas sentia o braço latejando e, apesar de ter soltado os atilhos que lhe aconchegavam o casaco esfarrapado ao corpo, ainda estava muito quente. Por fim, mudou-se para um dos lados do barco e debruçou-se para mergulhar o braço ferido na água do mar. O sal já não lhe provocava ardor e a água tirou-lhe o calor do corpo. Estremeceu e de repente sentiu-se muito frio, e por fim percebeu que a ferida tinha começado a atrair espíritos da doença. Pensou em deitar Filha na proa do barco, onde o mal que ele atraíra para si próprio não a atingiria, mas tremia demais para a largar.
Por fim, o seu tremor acordou a criança. Filha afastou-se dele e pôs-se de pé, com os pés bem assentes no chão. Libertou-se da pele e tentou cobri-lo com ela. Ele puxou-a para o seu colo, embrulhou-se na pele e finalmente conseguiu adormecer.
Nos seus sonhos, Cabaça-de-Água lutava de novo com a lontra, mas, quando ergueu a faca para matar o animal, este transformou-se de repente num guerreiro do Povo do Deus-Urso. O guerreiro atirou-se ao pescoço de Cabaça-de-Água, abrindo a boca de tal maneira que o velho viu que ela estava cheia de dentes de lontra. Acordou com os seus próprios gritos e percebeu que Filha também estava gritando e tremendo tanto quanto ele antes de adormecer. A princípio, receou que a sua doença também a tivesse atingido, mas, quando a acalmou com as suas palavras e lhe explicou que estivera apenas sonhando, a criança deixou de tremer. O velho embalou-a no seu colo até ela voltar a adormecer.
O céu ainda estava escuro, sem sinais de alvorada, e Cabaça-de-Água percebeu que só dormira um bocadinho. Quanto mais avançavam, mais curtas eram as noites. Se ele estivesse em casa, na sua aldeia, estaria aproximando-se a Festa do Dia Grande. Por instantes, os seus pensamentos perderam-se nas festas que se realizariam nas aldeias do Povo Barco, mas depois lembrou-se do Povo do Deus-Urso. Não haveria festa na sua aldeia, e quem podia adivinhar o que os homens do Povo do Deus-Urso tinham feito às outras aldeias do Povo Barco?
E se não houvesse festa nenhuma? O que poderia acontecer?
Talvez o Sol, sentindo-se insultado pela negligência do povo, não aparecesse no ano seguinte. Então, o Inverno voltaria depressa, e as pessoas teriam fome.
Os homens do Povo do Deus-Urso eram bárbaros e insensatos. Quem poderia esperar que eles compreendessem que todas as coisas na terra tinham de estar equilibradas, uma estação com a outra, uma aldeia com a outra?
A raiva de Cabaça-de-Água aumentou, e o velho gemeu, sentindo-se desamparado. Talvez fosse o único homem do Povo Barco vivo na terra, o único que conhecia as cerimônias e os caminhos certos da vida, e ali estava ele naquele barco, destinado a ir para onde a corrente o levasse, e agora à mercê da febre e da doença.
Voltou a mergulhar o braço no mar. O cotovelo estava inchado, e ele não conseguia endireitá-lo. Tinha a pele cheia de estrias vermelhas até ao ombro. A água fria ajudou a amortecer a dor. Passou o braço saudável em volta de Filha e rezou para que o barco estivesse coberto de uma espessa camada de geada quando amanhecesse, que fosse suficiente para ajudar a encher as cabaças. Tinha tanta sede!
As suas preces foram atendidas. Cabaça-de-Água e Filha acordaram com o ruído do granizo, com o manto agressivo de pequenas bolas de gelo.
Cabaça-de-Água, atormentado pela dor no braço - tão grande que parecia engolir-lhe o corpo todo - despertou do seu sono torturado pelos sonhos e começou a retirar mãos-cheias de gelo, enchendo a boca várias vezes até se lembrar de que tinha que partilhá-lo com Filha e apanhar o suficiente para derreter e voltar a encher as cabaças. Levantou a cabeça e abriu a boca, depois apontou e fez gestos para Filha perceber que devia fazer o mesmo. A criança fechou os olhos para se proteger do granizo, mas manteve a boca aberta.
”Como um passarinho”, pensou Cabaça-de-Água, tentando lembrar-se de uma prece com a qual pudesse agradecer o que ela significava para ele. Mas só se lembrou de uma canção que os homens cantavam quando o sumo dos frutos e dos cereais fermentados os inebriava. Essa canção falava mais de mulheres que de gratidão.
O gelo derreteu-se no fundo do barco. O velho apanhou-o até os dedos da sua mão direita ficarem dormentes e curvos como garras. Encontrou o resto da cabaça e serviu-se dela; depois, com uma pedra de lastro partiu o gelo na borda do barco. Quando acabou de encher as cabaças todas, começou a atirar pedaços de gelo para a proa mas, com receio de que o peso os afundasse, resolveu lançá-los ao mar.
O trabalho deixou-o sem forças. Só conseguiu aconchegar Filha debaixo da pele de lontra e tapar a cabeça de ambos com um cobertor de pele de veado.
- Basta! - berrou ele, assustando Filha, que desatou a chorar. - Faltou-nos a água doce, suplicamos-te que a mandasses até ficarmos com a boca seca e estalada, e agora dás-nos tanta que afundas o nosso barco? Que raio de presente é esse?
Um trovão ribombou, saindo das nuvens, e Cabaça-de-Água encolheu-se, assustado. Como fora insensato ao acusar o céu! Deviam ter sido os espíritos da dor falando em seu lugar, porque ele era um homem que sabia o que era o respeito.
Os trovões sucederam-se. Seguiu-se um estalido e um relâmpago, um clarão tão rápido que Cabaça-de-Água não se atreveu a acreditar no que os seus olhos tinham visto uma montanha ao longe.
- Estou sonhando - disse ele, encolhendo-se debaixo do pelo escuro da pele da lontra.
A ferida do braço abrira e estava soltando pus. Cabaça-de-Água mantinha-o quase sempre mergulhado no mar, e uma vez, no meio de um sonho, pensara em cortá-lo e deixá-lo afastar-se, flutuando. Talvez ele levasse consigo os espíritos maus da doença, mas o pensamento nunca passou disso, de uma idéia que ele não teve coragem de pôr em prática. Se Filha fosse mais crescida, talvez ele lhe tivesse pedido ajuda para cortar o braço e libertá-lo da agonia da putrefação, à qual ele preferia a dor mais limpa provocada pela faca. Os pensamentos das facas e dos cortes tornaram-se tão vivos que conseguiram afastar todos os outros sonhos e, sempre que acordava, Cabaça-de-Água ficava admirado ao ver que ainda tinha o braço, deformado e sem cor, pelado como a carcaça de um animal.
Três dias depois da tempestade de granizo, o velho já não conseguia engolir a comida. A febre atacou-lhe a mente, e ele começou a odiar o sol que atravessava o nevoeiro e lhe fazia arder os olhos. Receava a noite, quando a escuridão o confundia e o atormentava com imagens de morte.
O rostinho de Filha, crispado de preocupação, flutuava à sua frente, e às vezes ele sentia as mãos frias da criança na sua pele. Mas, outras vezes, era como se não a visse há vários dias e receasse que ela tivesse caído ao mar. Saberia ela que devia manter-se afastada da borda do barco? As crianças não andavam sempre caindo... na água, nas pedras da praia, nas lareiras?
Depois, voltava a vê-la e, confortado com a sua presença, sentia que podia adormecer.
Filha agachou-se em frente do avô. Não entendia muito de doenças, mas estava assustada, com medo. Umas vezes, o avô ficava tão quente que a pele dele quase lhe queimava as mãos quando ela lhe tocava; outras, estava tão frio que agitava o barco com o seu tremor.
Tirou um pedaço de carne de lontra da borda do barco e começou a mordiscá-lo. Quase todas as tiras de carne que o avô pusera ali tinham se colado à madeira durante a tempestade de granizo e, por fim, quando o gelo se transformou em água, a carne ficou ali, dura e colada, como se se tivesse misturado com o barco. Tinha gosto ruim - era dura, amarga - e às vezes Filha ficava com dores de estômago depois de comê-las.
Ainda havia peixe, sem tripas e atado às traves do flutuador, mas Filha era muito pequena e não chegava lá. As gaivotas tinham começado a rondar e a debicar, lutando umas com as outras por cada pedaço. Irritavam-na, aqueles pássaros, roubavam-lhe a comida.
O que faria o avô quando acordasse e visse que os seus peixes tinham desaparecido? Julgaria que ela fora tão gulosa que os comera todos sem deixar nada para ele?
Filha descobriu uma cabaça de água e bebeu vários goles. Depois estendeu-a ao avô para que ele a visse, mas o velho não acordou. Puxou uma ponta da pele em que ele se embrulhara mas, apesar de ele ter dito algo entre dentes, não abriu os olhos. A criança pousou a cabaça no fundo do barco, trepou para o colo do avô e puxou uma ponta da pele para cima do corpo.
Esquecera-se das feições da mãe, mas lembrava-se do seu cheiro e do bom leite que lhe saía do peito, quente, espesso e doce. Os avôs não tinham leite; pelo menos, este não tinha. Se tinha, nunca lhe dera, mas estava quente e era bom pescando.
Filha olhou para o seu pé esquerdo, para a cicatriz avermelhada que tinha no local antes ocupado pelo dedo mais pequeno. Doera-lhe quando o avô lhe cortara, mas agora não doía. Ela achara que ele voltaria a crescer, mas até agora não voltara. Lembrou-se do peixe que o avô apanhara com o seu dedo. O estômago resmungou quando ela pensou nesse belo peixe, na sua gordura, na sua pele oleosa.
Estava cansada, mas fez um esforço para manter os olhos abertos. Não queria estar dormindo quando o avô acordasse. Precisava lhe dizer para apanhar mais peixe. Aproximou o pé mutilado da cara dele e não se mexeu enquanto pôde, esperando que, se ele acordasse e o visse, se lembrasse de pescar. Mas, por fim, também começou a sentir-se sonolenta.
Fechou os olhos e, em sonhos, a mãe foi falar com ela, ofereceu-lhe um mamilo castanho e macio e, quando Filha começou a mamar, tinha gosto de peixe.
A voz do avô acordou-a. A princípio, Filha julgou que ele estava chorando. O velho começou a debater-se como se quisesse desembaraçar-se da pele da lontra. Levantou o braço são e depois deixou-o cair com força. Com o cotovelo, atingiu o lado da cabeça de Filha. A pancada deixou-a atordoada, e a criança deu um grito, transformando-se numa bola e escorregando do colo do velho. Era de noite, mas a lua estava cheia, e Filha via o suficiente para perceber que o avô lutava com o que estava fora do barco. Afastou-se dele recuando, meteu o dedo na boca e ficou espiando.
Algo lhe agarrara o braço, o braço ferido, aquele que ele tinha dentro de água. Filha queria ver o que era, mas tinha medo. E se fosse um peixe tão grande que conseguisse puxá-lo para o mar? O que faria ela depois? Não tinha força para manter o avô dentro do barco. Começou a chorar, mas por fim avançou, engatinhando, e agarrou um dos tornozelos do avô. Se o peixe não fosse muito grande, talvez ela tivesse força para o manter lá dentro.
Olhou para a cara do avô e, admirada, viu que ele tinha os olhos fechados.
- Abre os olhos! Abre os olhos! - gritou ela.
Os olhos do velho abriram-se e fixaram-se nela, mas, mesmo assim, era como se ele continuasse dormindo.
- Puxa! - disse ela. - Puxa com força! Ele abanou a cabeça e pestanejou.
- Puxa! - repetiu Filha.
Ele abriu a boca e soltou um ronco tão medonho que Filha lhe largou o tornozelo e ficou sentada na água fria que se acumulara no fundo do barco.
Porém, ao roncar, o velho tirou o braço do mar. Este saiu pingando, misturado com uns filamentos acastanhados. A princípio, Filha julgou que era carne podre. Cobriu o rosto com as mãos, mas afastou os dedos para ver. O avô pousara o braço no colo e desenrolava os filamentos. ”Estará comendo-os?”, pensou Filha, aos vômitos.
Foi então que o avô cantarolou:
- É kelp! São algas, Filha!
Filha destapou os olhos, devagarinho, e olhou para o que ele tinha no colo. Sim, era kelp. E aquelas algas cresciam junto das praias. A criança lembrou-se da mãe descascando os talos e a cortando-os em pedacinhos para ela comer. Lembrou-se como eram salgados. Afastou-se das pedras de lastro e estendeu uma mão ao avô. Ele deu-lhe uma folha molhada, viscosa e dura, um pouco dura demais para comer, mas Filha deu-lhe uma dentada, mastigou e engoliu.
Não era tão saborosa como o peixe, mas era melhor do que lontra. A criança sentou-se ao lado do avô e observou como ele se usava a faca para cortar mais kelp e descascar os talos. Ao espiar pela borda, viu que estavam rodeados de algas. O mar parecia estar besuntado. Até aos confins da terra, onde vivia o nevoeiro, havia kelp.
O avô deu-lhe mais, e ela comeu até ficar com a barriga cheia. Em seguida, tal como ele lhe indicou, dispôs os grandes caules descascados ao longo do barco e as pontas carnudas na proa.
Quando o barco estava cheio, o velho deixou de cortar, e Filha pôs-lhe a mão na face, com todo o cuidado. O rosto de Cabaça-de-Água ainda estava quente e o braço tinha um aspecto horrível, mas os olhos mostravam-se límpidos. O velho comeu mais algas e depois mergulhou de novo o braço no mar. Filha não queria que ele fizesse tal coisa. Queria que ele se sentasse direito, para ela poder dormir no seu colo. Puxou-o, mas ele afastou-a.
- Senta-te - disse ele. - Não me toques.
Filha deixou-se ficar a seu lado, de pé, e fez beicinho. Ele já não lhe contava histórias. Não queria pegar-lhe ao colo.
Ela embrulhara-se no cobertor de pele de veado, mas este estava molhado e frio. O avô ficara com a pele da lontra. A criança pôs-se de quatro e aproximou-se lentamente até se encostar a ele e se aquecer com o calor que se libertava do corpo do avô.
Deixou-se ficar muito quieta, quase sem respirar, e o avô não a repudiou nem ralhou com ela. Filha meteu os dedos na boca, começou a chupá-los e cantarolou baixinho uma canção que a mãe lhe cantava quando ela estava cansada.
Seguiu com o olhar os longos filamentos das algas, que jaziam como cordas a todo o comprimento do barco e na proa. Depois, perscrutou o céu, enevoado e sem estrelas, e no qual a Lua era uma mancha prateada. Mesmo durante o dia, era raro o céu estar limpo; estava quase sempre coberto de nuvens cinzentas ou de nevoeiro. A criança não sabia onde se escondia o Sol naquele mundo formado pelo barco e pelo mar, tão diferente da aldeia onde viviam a mãe e o pai. Queria voltar para junto deles. Tentara dizer isso ao avô, mas ele parecia não a entender, apesar de uma vez ter perdido a paciência com ela e ter gritado:
- Não há remo! Vê, não há remo!
Então, na sua mente, revira os pescadores da sua aldeia a levarem os barcos para o mar, esforçando as costas e os braços, mergulhando e levantando os remos. Pela primeira vez, percebera que eram os remos que faziam andar os barcos na água. Um pouco admirada, olhara à sua volta no barco, e até se pusera na ponta dos pés para examinar o flutuador, e vira que era verdade o que o avô lhe dissera. Não tinham um remo.
Então o barco levava-os para onde queria, e quem sabia para onde? Filha desejou que ele voltasse para trás e os deixasse regressar à aldeia, para junto da mãe e do pai, para o sol, que lá brilhava quase sempre. Ela pedira ao barco que o fizesse. Pedira-lhe muitas vezes, mas o barco ficara no meio do nevoeiro, no frio, longe da terra. Era um barco que gostava muito do mar, um barco egoísta que não se importava com Filha nem com o avô.
Filha estremeceu na atmosfera noturna e encostou-se mais ao avô. Só dormiu um pouquinho, e quando os primeiros raios de luz apareceram no céu, a sudeste, ela fez uma concha com as mãos, encheu-as com a água estagnada que havia no fundo do barco e bebeu. Era uma mistura de sal, sangue e gelo derretido, mas ela já se habituara àquele sabor.
Todos os dias olhava para cima à procura do Sol, e por fim avistou uma claridade no meio das nuvens. Concluiu que o Sol estava ali, embora não percebesse por que motivo é que ele se escondia. Talvez o avô soubesse porquê, mas ele ainda estava dormindo, de boca aberta e olhos fechados.
Filha suspirou e, nesse momento, as nuvens afastaram-se e um feixe de luz caiu no mar, que passou de cinzento a azul. As nuvens deslocavam-se depressa, correndo pelo céu e tropeçando, como meninos brincando. Filha perguntou a si própria se o Sol seria a mãe e as nuvens seriam os filhos, tão grandes que a escondiam, como as avozinhas da sua aldeia, tão pequenas aos pés dos filhos, feitos homens, altos e fortes.
Os olhos de Filha seguiram outra fenda aberta nas nuvens e ficaram à espera que ela se aproximasse do Sol, para deixar passar mais luz. Mas, nessa fenda, ela avistou o topo de uma montanha.
- Avô! - gritou ela, agarrando no braço são do velho e tentando acordá-lo. - Avô! Olha!
Mas o avô limitou-se a afastá-la, resmungando. Filha encaminhou-se para a proa, agachou-se em cima das pedras de lastro e começou a falar com o barco.
- Olha, vai para ali, para a montanha - disse ela baixinho. Apontou para o cume que atravessava as nuvens e parecia flutuar sobre o mar como se fosse uma ilha no céu. Olha! Olha! Estás vendo?
Como ela gostaria que o avô acordasse! Ele saberia para onde o barco estava olhando!
Ilha de Yunaska, arquipélago das Aleútes
- Velha! - gritou Tira-Olhos. - Não voltes de mãos vazias! O nosso marido não precisa de uma mulher preguiçosa.
Velha virou-lhe as costas, como se não tivesse ouvido estas palavras, mas fez figas, numa maldição silenciosa contra a sua esposa-irmã. Em seguida, agachou-se junto de uma pequena planta que voltava a nascer depois do Inverno, uma daquelas plantas da praia que ela nunca vira. Por agora, a deixaria ficar e a veria crescer para aprender a reconhecê-la em todas as estações.
Era esse o problema em viver numa nova aldeia, com aqueles Primeiros Homens. Havia tanta coisa para aprender! Mas com certeza uma das avós saberia se a planta prestava para alguma coisa ou se era nociva. As plantas venenosas eram perigosas demais e tinham que ser reconhecidas, e as pessoas que viviam há muito tempo no mesmo local sabiam quais eram aquelas que podiam matar ou provocar doenças.
Velha ainda estava examinando-a - retendo na sua mente o modo como os caules se ramificavam, o formato das folhas, o seu aroma - quando ouviu o choro débil saído do nevoeiro.
A princípio, a voz não lhe interrompeu os pensamentos. Era uma voz de criança, bem audível e cheia de lágrimas.
Velha não gostava de crianças. Como gostar se a sua própria família se virara contra ela? Podia ser uma avó respeitada, que fizesse os trabalhos leves do ulax, alimentasse as lareiras, contasse histórias, mas era uma esposa de segunda categoria, que ia buscar lenha numa terra estranha em que nem cresciam árvores, em que os animais maiores que havia eram as lontras e as focas que apareciam nas praias, vindas do mar. Não, Velha não precisava que uma criança choramingona fosse interromper o seu trabalho.
Procurou pontos de referência para conseguir localizar de novo a planta e depois continuou a descer a praia de areia cinzenta, apanhando a madeira flutuante que ia encontrando. Quando tivesse os braços cheios, pendurava o saco de pele de foca nos ombros, enchia-o com a madeira que apanhara e ficava ainda mais vergada ao peso do seu trabalho. Um saco cheio não era suficiente. Tira-Olhos lhe diria que fosse buscar mais, mas Velha era perita em empilhar a madeira devagar para poder gozar o calor do ulax, antes de voltar a sair e se embrenhar no nevoeiro úmido do dia.
Contornou uma estreita saliência da praia, uma pequena língua rochosa que protegia uma enseada onde as ondas eram generosas. Estava debruçada sobre um molho de ramos quando ouviu de novo a voz da criança, agora com mais nitidez.
Estranho, pensou ela, endireitando-se e vergando os ombros ao peso da madeira que levava às costas. A voz não vinha do lado da aldeia nem dos montes. Teria alguma das crianças que brincava no barco de pesca da mãe sido arrastada para o mar?
Velha podia não gostar de crianças, mas se salvasse alguma - ou pelo menos fosse em seu auxílio - ganharia os favores da aldeia. Desatou a lenha que trazia às costas e pousou o saco na praia. Protegeu os olhos com uma mão e procurou no meio do nevoeiro, piscando. A princípio, não viu nada de anormal, mas depois uma mancha escura que parecia ser apenas um ponto no nevoeiro aumentou de tamanho.
Velha vestia um sax de pele de papagaio-do-mar. A parka sem capuz cobria-lhe os joelhos. Não usava perneiras nem botas. Arregaçou o sax, segurou-o com uma das mãos e entrou na água. O frio entorpeceu-a e fez lhe doerem os ossos dos pés. Gritou na direção do barco, mas não obteve resposta. Foi então que viu um pequeno rosto pálido espiando pela proa.
A criança estendeu a mão a Velha, que se esqueceu do sax e o deixou cair na água. Virou-se de lado para agüentar mais facilmente a força das ondas e esperou que o mar trouxesse o barco até ela. Colocou a mão na borda e começou a rebocá-lo para a costa.
A criança, uma menina, tocou no ombro de Velha, que abanou a cabeça ao ver as feridas que lhe cobriam o corpo. A criança vestia apenas o que restava de uma parka sem capuz e que parecia ser feita de erva entrelaçada. Estava nua da cintura para baixo, tinha mais osso do que carne, e as pernas e os pés estavam roxos devido a várias feridas infectadas.
Parecia uma criança dos Primeiros Homens, com o rosto redondo e o nariz pequeno e o cabelo escuro e liso, mas quando falou, erguendo as mãos como se pedisse que a tirassem do barco, Velha não entendeu o que ela dizia. Não eram palavras dos Primeiros Homens, nem dos Morsas, nem sequer a língua do Povo Rio.
Velha abanou a cabeça, levantou a palma da mão e agarrou-se outra vez ao barco, tentando arrastá-lo para terra. Havia uma ressaca ao longo da enseada que lhe fez perder o pé várias vezes, mas a mulher conseguiu endireitar-se.
O barco era estranho. Não era uma jangada nem um iqyax’, era feito de dois troncos, o mais largo escavado como as canoas usadas por alguns elementos do Povo Rio, e o outro, muito mais pequeno, inteiro mas afiado nas duas pontas. Os troncos encontravam-se a vários palmos de distância um do outro, mas estavam ligados por quatro pesadas varas atadas a eles por cordas fortes.
Velha lembrou-se de que os caçadores dos Primeiros Homens, quando eram apanhados por tempestades no mar, atavam os remos aos iqyax, para tornarem as embarcações mais resistentes e menos suscetíveis de se virarem. O homem que construíra aquele barco não era nenhum tolo, mas percebia-se que a embarcação fora muito maltratada.
Cheirava a peixe podre e a coisas piores. Na borda, viam-se fatias de carne espalhadas, muitas das quais tinham apodrecido e infiltrado na madeira, transmitindo-lhe o cheiro desagradável. Longas tiras de algas estendiam-se da proa à ré. Estavam frescas e, pelas manchas que a criança tinha na cara, parecia que se alimentara das suas folhas, embora, a avaliar pelo mau cheiro que exalava, fosse provável que tivesse comido também carne podre. Na parte de trás do barco, via-se um fardo coberto por uma pele de lontra e por um cobertor de pelo que parecia ser de caribu. O cheiro que se libertava da pele da lontra indicava que esta fora mal raspada, e a mulher reparou que ela começava a largar tufos de pelo.
O fundo do barco embateu no declive da praia, e Velha teve que esperar que as ondas erguessem o peso da madeira ensopada em água. Aproveitou o impulso das ondas para empurrar um pouco mais o barco até se certificar de que o mar não o levaria de novo.
A menina estendeu-lhe os braços outra vez, e Velha tirou-a do barco. A criança era quase tão leve como o novo bebê de Tira-Olhos, embora o comprimento das pernas levasse Velha a calcular que ela tinha pelo menos três Verões.
- Como é que conseguiste entrar no barco? - perguntou-lhe Velha.
A menina balbuciou qualquer coisa, e as suas palavras pareciam ter o mesmo ritmo da língua dos Primeiros Homens. Velha repetiu a pergunta, falando mais devagar na língua dos Primeiros Homens e depois na dos Morsas. A criança cobriu o rosto com as mãos, numa atitude que parecia ser de desespero, mas por fim, com um suspiro trêmulo, baixou as mãos e virou-se para o local em que se encontrava o volume debaixo da pele da lontra.
Velha não estava disposta a ver o que ele poderia revelar. O cheiro era penetrante demais, mas a menina desatou a chorar, e a mulher levou-a até a ré. Com dois dedos, afastou a pele da lontra e perdeu o fôlego ao ver o homem.
A princípio, julgou que ele estava morto, tal era a sua palidez e o aspecto dos olhos. Tinha o braço esquerdo pousado na borda do barco, e a pele rasgada do pulso até ao cotovelo.
A criança apontou para ele e disse qualquer coisa. Um nome, adivinhou Velha. O peito do homem mexeu-se, denunciando uma respiração débil, como que em resposta ao som da voz da menina. Velha repetiu a palavra e pôs uma mão no peito da criança. Esta fez uma careta, como se se sentisse ofendida, e pronunciou uma palavra diferente. Velha repetiu-a, afagou a cabeça da criança e depois bateu ao de leve no próprio peito.
- Chamam-me Velha, embora este não seja o meu verdadeiro nome - disse ela. - K’os.
A menina fitou K’os e apontou com um dedinho para o rosto da mulher.
- K’os - repetiu ela com um ar solene.
Baía de Herendeen, península do Alasca
602 a. C.
- K’os! - disse Yikaas em surdina.
Kuy’aa mandou-o calar, mas o nome ressoou na cabana de terra. Qumalix interrompeu a sua história e olhou para ele, arqueando as sobrancelhas com um ar interrogador. Yikaas virou a cabeça e fingiu-se interessado em alguma coisa que estava junto das alcovas protegidas por cortinas na parte lateral da cabana, mas a menina não se intimidou e gritou:
- Porque me interrompes?
Yikaas irritou-se. Nunca teriam ensinado àquela mulher como devia dirigir-se a um dzuuggi? Ela devia ter dito: ”Está aqui alguém que deseja falar.” Ou, melhor ainda: ”Está aqui sentado, junto de nós, um grande contador de histórias, bem conhecido do Povo Rio e dos Caçadores Marinhos. Queres dizer alguma coisa?”
A menina tratara-o como se ele fosse uma criança. Yikaas fez uma pausa para organizar os seus pensamentos e levantou-se, dominando a raiva que o instigava a mostrar-se indelicado para com ela.
- Ilustre contadora de histórias dos Caçadores Marinhos, tens certeza de que não queres falar comigo? - inquiriu ele.
- Sim, quero. - Não havia respeito nas palavras dela.
Nós não somos Caçadores Marinhos nem tampouco Caçadores de Baleias, como o Povo Rio nos chama. Somos Primeiros Homens, os primeiros a chegar a esta terra e a viver nestas praias.
Há muito que tal honra era reivindicada pelo Povo Rio, e era óbvio que a menina tinha conhecimento disso. Yikaas ouviu um murmúrio de protesto vindo dos comerciantes do Povo Rio que se encontravam na tenda, e depois um rumor surdo, a resposta dos Primeiros Homens. Sem perceber, com a sua energia, a menina desencadeara nele uma torrente de júbilo. Ele podia levar todas as pessoas do Povo Rio a saírem da tenda. Elas iriam atrás dele. Yikaas ia levantar-se, mas Kuy’aa deu-lhe uma cotovelada e disse:
- Um dzuuggi defende a paz, não a discórdia.
Ele suspirou e voltou a sentar-se, e sentiu que todos os presentes suspiravam de alívio.
- As minhas desculpas - disse ele à menina, com uma voz tensa de raiva.
Ela sorriu e inclinou a cabeça como se estivesse fazendo um favor.
Yikaas sentiu que lhe vinham à boca palavras rudes, mas calou-se e engoliu em seco. Pareciam facas no seu estômago.
- Ouviste falar de K’os? - perguntou a menina.
- Era uma mulher do Povo Rio que viveu há muito tempo, embora nós, o Povo Rio, não tenhamos orgulho em considerá-la um dos nossos - respondeu Yikaas.
- As nossas histórias de K’os começam com Filha, a menina a quem K’os passou a chamar Uutuk - disse Qumalix. - Podes falar-nos de K’os?
Qumalix abandonara o tom de desafio, e parecia interessada no que ele tinha a dizer.
Yikaas suspirou. Porquê K’os? Havia tantas histórias a respeito de pessoas respeitáveis...
- Há histórias melhores - disse ele.
- Mas K’os parece pertencer tanto ao teu povo como ao meu.
- É verdade - reconheceu ele, satisfeito por ela reivindicar aquela mulher.
Respirou fundo e depois acrescentou:
- As primeiras histórias que sabemos de K’os falam de três caçadores do Povo Rio que a atacaram. Violentaram-na de tal maneira que ela nunca conseguiu ter filhos. De acordo com essas histórias, ela passou a vida tentando vingar-se.
Qumalix fez um sinal afirmativo.
- Eu ouvi contar essas histórias. A mulher respeitável que está sentada ao teu lado contou-as uma vez, quando nos reunimos na aldeia dos Caçadores de Morsas.
Qumalix empinou o queixo na direção de Kuy’aa, e a velha disse em surdina qualquer coisa na língua dos Primeiros Homens que Yikaas não entendeu.
- Também ouvi as histórias de Chakliux, a criança que K’os adotou como filho. Soubemos das lutas travadas entre a aldeia do Povo Rio de K’os e outra aldeia próxima, e que Chakliux, que nessa época já era um homem e um dzuuggi, tentou fazer a paz, mas K’os enganou as pessoas e arrastou-as para a guerra. Também ouvimos contar que K’os traiu a sua própria aldeia, e que Chakliux conseguiu salvar muitas das pessoas dessa aldeia, mesmo depois da derrota. Sabemos da existência de uma mulher chamada Aqamdax. Era uma das nossas, uma grande contadora de histórias dos Primeiros Homens. Amava Chakliux e tornou-se sua mulher, apesar de ter sido escrava do Povo Rio.
Qumalix pronunciou esta última frase com desdém, como se aquilo que acontecera há muito tempo ainda fosse um insulto. ”Para quê abordar tal coisa?” perguntou Yikaas a si próprio. Os contadores de histórias dos Primeiros Homens não tinham também o dever de fazer a paz?
- Também nós respeitamos a mulher chamada Aqamdax - retorquiu ele, com cautela. - As suas histórias têm sido transmitidas de uns contadores de histórias para os outros no seio do Povo Rio, e portanto nunca nos esqueceremos do que é o perdão.
Ao dizer isto, Yikaas jogou um olhar de desafio a Qumalix e, surpreendido, reparou que ela corara.
Qumalix desviou o olhar, acariciou as penas da sua parka e pôs-se de cócoras, com os pés bem assentes no chão e os braços agarrados aos joelhos. Empinou o queixo, como se o encorajasse a levantar-se, e disse:
- Tal como o Povo Rio, também nós costumamos contar as nossas histórias sentados, mas há muita gente nesta cabana que não nos ouviria. Porque não nos falas mais de K’os?
Yikaas ficou tão admirado com o pedido dela que se virou para Kuy’aa e perguntou o que fazer. Pelo canto do olho, viu Qumalix sorrindo, e sentiu que o sangue lhe subia à face. Ele era alguma criança para ter que pedir licença? Para esconder o embaraço, inclinou-se para a velha, esfregou a sua face na dela e perguntou em voz baixa:
- Insultarei alguém se fizer isto?
Ela sorriu, mostrando uns dentes que não eram mais do que nós enterrados nas gengivas.
- Conta a tua história - disse ela.
Yikaas aproximou-se da menina e, com toda a delicadeza, pediu-lhe que traduzisse as suas palavras. Ela levantou-se com relutância, mas Yikaas começou a contar a sua história sem pedir desculpa. Ela é que lhe pedira para falar, e não ele.
- A minha história começa uns anos antes da história de Filha e, evidentemente, começa com K’os - disse Yikaas. Falou com a voz própria de um contador de histórias, uma voz grave que fosse ouvida por todos aqueles que se encontravam na cabana. - O mal estava em K’os há tanto tempo que se infiltrara no seu espírito e apodrecera - disse ele. - Tal como a carne de lontra no barco de Filha, ele misturara-se com a sua própria carne.
Um assobio de apreço vindo do Povo Rio fez sorrir Yikaas, que se calou por instantes. Qumalix falou, traduzindo as palavras dele para a língua do seu povo. Os Primeiros Homens fizeram um gesto de cabeça para exprimir o seu interesse, manifestaram a sua aprovação em surdina, e a história continuou, com as palavras dos Primeiros Homens e do Povo Rio enrolando-se umas nas outras, entrelaçando-se como os fios de um belo cesto de erva.
Aldeia do Povo Rio, perto do lago Iliamna, Alasca Início da Primavera,
6452 a. C.
História de K’os
De pé, em frente do conselho dos velhos, K’os disfarçou tão bem o seu tremor que conseguiu sorrir apesar da sua raiva.
- Ela tem sido uma boa escrava para ti? - perguntou Chakliux a Bico-de-Gaivota.
Bico-de-Gaivota encolheu os ombros.
- Ela ensinou-me muita coisa sobre plantas, mas... A velha calou-se.
Na opinião de K’os, com o tempo, Bico-de-Gaivota parecia-se cada vez mais com um pássaro, com aqueles olhinhos semicerrados e um nariz que lhe chegava quase até o queixo. As costas tinham mirrado e nascera-lhe uma corcunda, e os braços e as pernas, sempre grandes demais para o seu corpo, davam-lhe um aspecto grotesco.
- Mas? - perguntou Chakliux.
- Mas às vezes é assustador vermos que uma escrava sabe mais do que nós.
Ele apontou para as mãos de K’os. Estavam deformadas, com as articulações inchadas e os dedos curvos como garras.
- Ela ainda é capaz de costurar? - perguntou ele.
- É. Faz umas parkas maravilhosas.
K’os não tirava os olhos da cara de Chakliux. Em algum momento durante aquela discussão, ele olharia para ela. A mulher forçou as lágrimas para lhe suavizarem o olhar.
- Não condeno a escravatura - disse Chakliux. - Mas acho que é melhor para nós que não tenhamos escravos.
Ouviu-se um murmúrio de protesto vindo dos velhos, nomeadamente de Bico-de-Gaivota e do gago Chama-o-Sol.
Cabeça-de-Lobo levantou-se. Era alto, e a sua espessa cabeleira grisalha quase tocou no teto abaulado de pele de caribu.
- Vocês seriam capazes de a libertar? - perguntou ele. - Não podem confiar nela. Lembram-se do que ela fez àquele jovem a quem eu chamava filho? Levou-o a aceitá-la como esposa e depois obrigou-o a roubar tudo da minha despensa. Agora ele está morto, quando era ela que devia estar.
K’os abriu a boca para protestar. Era culpa dela que os homens a desejassem? Quem podia adivinhar que o rapaz iria roubar ao pai o que queria pagar por ela? Quem podia adivinhar que alguém o mataria pouco depois de ele se tornar marido dela?
- Sei tanto sobre esta mulher como outra pessoa qualquer - disse Chakliux. - Sei o mal que ela fez. A minha própria mulher foi escrava dela, mas há uma coisa que não posso esquecer. Sem ela, eu teria morrido, teria sido enviado para o mundo dos espíritos quando era bebê, devido ao meu pé. Devo-lhe a vida.
- Chakliux - disse K’os em voz baixa. Estendeu as mãos num gesto de súplica e pestanejou de tal maneira que as lágrimas que acumulara nos olhos começaram a cair. Que mãe gostaria mais de um filho do que eu gosto de ti?
- Não lhe dês ouvidos, irmão - exclamou o homem chamado Sok. - Ela só tem ódio no coração.
Sok e Chakliux eram irmãos de sangue, mas não eram parecidos. A face de Sok era larga, grosseira, enquanto que a de Chakliux era esguia, requintada. Os olhos escuros de Sok eram descaídos nas pontas e os de Chakliux viravam-se para cima. Só de vez em quando, na maneira como inclinavam a cabeça ou como riam, é que K’os via neles uma certa semelhança. Por instantes, os pensamentos da mulher recuaram até àquele dia em que ela matara o pai de ambos. Satisfeita, lembrou-se da faca entrando-lhe no coração, da surpresa no olhar do homem. Mas essa morte não fora suficiente para pagar o que ele e os amigos lhe tinham feito, o que lhe tinham tirado.
Era um homem grande, e Sok era ainda mais corpulento, muito mais do que Chakliux, largo de ombros e mais forte que qualquer dos homens que K’os conhecera. Mas Chakliux também era forte, e a sua força era a do espírito, algo que K’os, apesar de o ter criado, não conseguira destruir. Matara-lhe a primeira mulher e o bebê de ambos, e rejubilara ao saber da morte da segunda mulher. Agora, ele tinha aquela mulher dos Caçadores Marinhos, chamada Aqamdax. Tinham feito um filho - um rapaz belo e saudável - e, apesar de K’os amaldiçoar os três todos os dias, existia um poder mais forte que parecia protegê-los.
- Tu não me conheces bem, Sok - disse K’os. - Ouviste dizer dos outros que eu sou má, mas não sou. Como disse Chakliux, eu salvei-lhe a vida. A mãe dele, a tua mãe, não o quis. Ele teria morrido no Rochedo do Avô, onde ela o foi deixar quando ele era bebê, se eu não tivesse resolvido aceitá-lo como meu filho.
Parece que não dás ouvidos ao teu próprio irmão. Ouve então as pessoas desta aldeia que beneficiaram das minhas mezinhas. Uma mulher má curaria pessoas que a mantinham como escrava?
- Fica calada - disse Chakliux, sem brandura na voz.
Mais uma vez, K’os tentou forçar as lágrimas, mas a raiva secara-lhe os olhos, e ela viu-se obrigada a cerrar os dentes para evitar que lhe saíssem da boca algumas pragas de que poderia vir a arrepender-se.
- Nem eu nem a minha mulher queremos viver na mesma aldeia de K’os - disse Sok.
Um murmúrio percorreu o círculo dos velhos.
Sok tinha mais poder do que merecia, pensou K’os. Agora que ele e Chakliux haviam resolvido regressar àquela aldeia, Sok seria considerado o chefe dos caçadores, apesar de muitos dos homens de Rio Próximo cobiçarem tal honra. O povo de Rio Próximo passara muitos Invernos de fome depois da luta. Apesar de ter vencido o povo de Rio Primo, muitos dos seus jovens tinham morrido, e não havia caçadores suficientes para alimentar todo mundo.
Quando era escrava, K’os temia o frio cortante no meio do Inverno. Tinha que pescar para encher a barriga, mas o peixe nunca era suficiente para impedir que o frio consumisse os ossos de uma mulher. À noite, K’os mal conseguia dormir com o tremor do corpo e, se os sonhos chegavam, estavam impregnados do sabor da carne de caribu, pingando gordura.
Quando Sok, Chakliux e os homens de Rio Primo foram visitar a aldeia de Rio Próximo no fim do Inverno, aparentemente trouxeram a sorte com eles. Era a época do ano em que escasseavam os alimentos, mas os caçadores trouxeram caribus, ursos e até um alce. Depois, as pessoas deixaram que a barriga pensasse por elas e pediram a Chakliux e à sua gente que ficassem vivendo na aldeia. Começaram a chamar chefe dos caçadores a Sok e a respeitá-lo ainda mais do que aos seus próprios homens.
Quem queria viver com um povo tão tolo que não sabia pensar além de uma despensa cheia e de uma panela de carne?
- Libertem-me, que eu vou-me embora - disse ela aos velhos. - Nunca mais voltarão a ver-me.
Sok abanou a cabeça e Chakliux estendeu a mão na direção de K’os, em jeito de aviso.
- Eu disse-te para ficares calada - lembrou ele. Então, Bico-de-Gaivota pigarreou e disse:
- Sou uma velha, uma viúva sem marido. Como posso sobreviver sem a minha escrava que me ajuda a pescar e a apanhar lenha?
Durante muito tempo, Sok e Chakliux estiveram cochichando, e, apesar de K’os ter ouvido algumas das palavras de Sok, não as compreendeu. Parecia que estava falando na mulher. Que disparate! Como se ele devesse pensar numa jovem durante um conselho dos velhos.
Por fim, Sok levantou a cabeça e fez um sinal a Bico-de-Gaivota.
- Muita gente me disse que trabalhas muito. Dizem que não existe preguiça em ti. Como sabes, a minha mulher é jovem, e eu tenho três filhos, um deles já crescido e pronto a aceitar uma mulher, mas os outros dois... - Sok calou-se e sorriu. - Quem, ao passar pela minha cabana, não ouve Leva-Muito queixar-se do trabalho que tem que fazer? Quem não ouve o nosso bebê chorar durante quase todo o dia? Admites ser a minha segunda esposa?
O choque provocado pela pergunta foi visível no brilho dos olhos de Bico-de-Gaivota, mas não lhe prendeu a língua.
- Posso ficar com a minha tenda? - perguntou ela.
- Se estiveres disposta a costurar para mim - disse Sok, olhando para a parka que trazia vestida. As peles de caribu estavam bem raspadas e moles, mas o trabalho de costura não tinha beleza. - A minha mulher tem muitos dotes, mas ainda tem alguma coisa a aprender no que diz respeito à costura.
Bico-de-Gaivota sorriu. Era o sorriso de uma mulher que de súbito valia alguma coisa. A bílis subiu à garganta de K’os e não a engasgou por pouco. Quem naquela aldeia é que era melhor do que ela a manejar a agulha e o furador? Nem as belas parkas de Bico-de-Gaivota podiam comparar-se às que K’os sabia fazer, e todo mundo o sabia.
Como se lhe tivesse ouvido os pensamentos amargos, Chakliux fitou-a até a obrigar a baixar os olhos.
- Então, não há motivo para esperarmos - disse ele. Quanto mais depressa resolvermos isto, mais cedo poderemos deixar a aldeia de Inverno e partir para os nossos acampamentos de pesca.
Quando o povo de Rio Primo aceitara ir viver na aldeia de Rio Próximo, tinha exigido e reparado as tendas vazias ou coabitado com famílias de Rio Próximo até construir as suas próprias habitações. Haviam chegado com os trenós carregados de gordura de caribu e carne de alce, peixe seco e pássaros inteiros conservados em banha. Até os cães estavam gordos, e o rosto das crianças era redondo e luzidio. As pessoas de Rio Próximo receberam-nos nas suas tendas quentes e bem construídas, e as despensas da aldeia voltaram a encher-se.
Porém, chegada a Primavera, as pessoas tinham resolvido manter as suas próprias tradições e regressar aos seus acampamentos de pesca, embora K’os tivesse ouvido os velhos convencendo os homens a visitarem-se uns aos outros, para que as amizades forjadas no Inverno não morressem.
K’os abanou a cabeça, pensando no prodígio que Chakliux conseguira ao juntar as duas aldeias. Onde fora ele buscar aquele poder, o seu filho Chakliux? Não fora no inútil do pai, nem à sonsa da mulher que o dera à luz, nem tampouco no homem que o criara, o seu falecido marido Bate-no-Chão. Bate-no-Chão valorizava a paz, mas fora um covarde. Talvez Chakliux tivesse ido buscar o seu poder em K’os, e também a sua coragem, e a necessidade de paz em Bate-no-Chão. Porque não? A maior parte das crianças conservava uma parte dos pais no seu rosto - os olhos da mãe, o sorriso do pai... E porque não havia de conservar uma parcela dos espíritos daqueles que os tinham criado?
Chakliux saiu do lugar que ocupava no círculo dos velhos e afastou a aba da porta, mas Sok foi atrás dele e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. K’os escondeu a mão direita com a esquerda e fez figas contra a língua de Sok.
Chakliux pegou o braço de Sok, como que para o sossegar, e chamou alguém que estava lá fora. O jovem, Chora-Alto, entrou. Se ele fosse outro, K’os poderia ter esperança que eles tivessem resolvido arranjar-lhe um marido, mas Chora-Alto era filho de Sok.
- O meu filho e os amigos levam-te à aldeia dos Caçadores de Morsas e vendem-te como escrava - disse-lhe Sok.
- Os Morsas? - perguntou K’os com um ar estúpido, e gaguejou ao pronunciar este nome, como se a voz incerta de Chama-o-Sol se lhe tivesse instalado na garganta.
- Se eles não te quiserem, podem entregar-te aos Caçadores Marinhos - disse ele.
O conteúdo do estômago de K’os veio-lhe à boca. Ouvira contar histórias desses Caçadores Marinhos, que as mulheres e as escravas passavam dias - meses! - enfiadas em barcos cobertos de pele até chegarem às suas aldeias. Como é que ela podia ficar enclausurada num barco com paredes de pele de foca, agitada pelas ondas e - quem sabe? - assustada com os animais marinhos? O que aconteceria ao seu espírito se ela morresse afogada? Viveria para sempre no mar, sem nunca encontrar o caminho de regresso ao Povo Rio?
O medo arrastou a raiva, mas foi então que ela ouviu uma vozinha que lhe recordou histórias ouvidas há anos. Acontecera alguma coisa com os Caçadores de Morsas... Sok roubara... Não, matara... O que era? De repente, vindo da chaminé, o vento encheu a cabana e trouxe consigo a dádiva da memória. K’os ouviu de novo a história de Aqamdax. Vinha do passado, de um dia em que Aqamdax desfiara histórias numa festa qualquer.
Ela contara às pessoas que Sok e Chakliux tinham passado pela aldeia dos Caçadores de Morsas e que, enquanto lá estavam, o grande xamã Yehl tinha morrido. O povo acusara Sok e Aqamdax, mas Chakliux recorrera às suas artimanhas para os levar em segurança para a aldeia do Povo Rio.
Se os Morsas descobrissem que Chora-Alto era filho de Sok... O riso agitou a garganta de K’os. Ah, mas porque Sok saberia da bela arma que ela levaria consigo nesta viagem de negócios? K’os baixou a cabeça, estremeceu e em seguida vomitou insultos mas com cuidado, misturando a raiva com a astúcia.
Yaa sentou-se junto da tenda de Aqamdax, ao abrigo do vento, e tentou concentrar-se na linha que estava fazendo com os tendões, mas, a cada gesto da mão, a barriga também dava uma volta, a ponto de ela não conseguir fazer mais nada senão ficar olhando para a tenda dos velhos, à espera que Chora-Alto saísse. Sabia o que Chakliux planejara. Durante a noite, ouvira-o falar em voz baixa com Aqamdax. Em geral, Yaa não escutava as conversas noturnas do casal, aquelas palavras sussurradas que muitas vezes os levavam a agitar-se e a contorcer-se alegremente debaixo da roupa, pois era raro Aqamdax dormir do lado das mulheres na tenda.
Ghaden, o irmão de Yaa, agora com onze Verões, também dormia do lado dos homens com o seu velho cão, Mordedor. Yaa e Angax dormiam do lado das mulheres, mas Yaa não se importava. Angax era uma criança bondosa, com o rosto arredondado de Aqamdax e os olhos, o nariz e a boca de Chakliux. Tinham-lhe dado o mesmo nome do primeiro bebê de Aqamdax, o filho que fora gerado e afogado por Homem Noturno. O menino tinha cinco Verões e estava cheio de palavras; todas as noites falava com Yaa durante o sono. Mas na noite anterior à reunião dos velhos, Angax adormecera depressa. Em seguida, Yaa ouvira Chakliux falando com Aqamdax. Não havia insistência na voz dele, e, apesar de Yaa lhes ter virado as costas e de ter tapado os ouvidos com a roupa, ouvira alguma coisa. Quando escutara o nome de Chora-Alto, tivera o descaramento de afastar a camisa de noite para escutar o que Chakliux estava dizendo.
Ela e Chora-Alto estavam prometidos um ao outro, e no último Outono, no fim da caça ao caribu, já tinham peles suficientes para o telhado de uma tenda. Todos os dias, durante o longo Inverno, quando terminava o seu trabalho, Yaa raspava e limpava aquelas peles. No Verão seguinte, quando não estivesse arranjando nem cortando peixe, Yaa iria costurar aquelas peles umas às outras para fazer uma cobertura para a tenda, de modo que, quando ela e Chora-Alto regressassem do acampamento de pesca, pudessem viver juntos como marido e mulher.
Chora-Alto queria oferecer-lhe um presente de casamento, apesar de o hábito de pagar e de presentear a noiva ter desaparecido há muito da aldeia de Rio Primo, ainda antes de o povo de Rio Primo ir viver com o de Rio Próximo. Com a destruição da aldeia, quase todas as cabanas queimadas e mais mulheres do que homens, qual o pai que exigiria que lhe pagassem a filha? Já ficaria satisfeito se encontrasse um caçador disposto a aceitar mais uma mulher para alimentar.
Na aldeia, já os consideravam marido e mulher, porque às vezes Chora-Alto passava a noite na tenda de Aqamdax e dormia na cama de Yaa, embora nem por isso dormissem muito. Mas ainda não tinham oferecido um banquete para festejar a sua união. Seria um disparate fazer tal coisa na Primavera. Para que gastar tudo o que ainda havia nas despensas num dia e numa noite? Era preferível racionarem a comida com cuidado para que os homens tivessem a força de que precisavam para caçar.
Já bastava que, quando ela e Chora-Alto estavam juntos, ele não conseguisse deixar de lhe tocar, sempre levantando a mão para lhe acariciar o cabelo, para lhe pegar o queixo, para lhe apertar um seio. Mais do que uma vez, tinham suportado o escárnio de um grupo de crianças que os apanhara abraçados, ou o riso silencioso de uma velha que os encontrara numa moita de salgueiros.
Mas Chakliux resolvera que Chora-Alto seria um dos jovens que iriam levar K’os aos Caçadores de Morsas, para a trocarem pelo que conseguissem arranjar.
Nessa noite, deitada na sua cama, Yaa desejava que Chora-Alto a abraçasse, que lhe garantisse que, fossem quais fossem os desejos de Chakliux, ele ficaria na aldeia. Quem podia confiar em K’os? Mesmo sendo escrava, podia fazer estragos. Há poucas luas, tinham estado com os de Rio Próximo, e Ligige’, a velha tia de Chora-Alto, já parecia muito mais fraca, e Caule Torto, aquela velha de língua afiada, morrera, embora tivesse um aspecto saudável e forte para a sua idade.
Yaa não pôde deixar de perguntar a si própria se fora K’os quem lhe causara a morte, com as suas plantas venenosas ou as suas pragas. Aparentemente, havia outras pessoas que sentiam o mesmo, porque os velhos tinham decidido que K’os fosse embora. Mas porque Chora-Alto seria um daqueles que ia levá-la?
De manhã, antes de os velhos se reunirem, Yaa encontrou Chakliux com os seus cães. Possuía os melhores cães da aldeia. Quase todos tinham os olhos dourados - aqueles cães inteligentes há muito cobiçados pelos homens do Povo Rio - e eram quase todos filhos ou netos de Falcão da Neve, morta há dois Verões.
- Irmão - disse ela baixinho.
Chakliux, acocorado junto de um dos seus cães, sobressaltara-se.
- Não sabia que tinhas saído da tenda - disse ele, olhando para ela.
Ela atirou a cabeça para trás, numa atitude insolente isenta de palavras. Empurrara o capuz da parka para trás das orelhas, e o vento soltara-lhe uma madeixa de cabelo.
- Preciso falar contigo.
- Aqui? - perguntou Chakliux, virando-se para ela e esfregando uma mancha de lama que a pata de um cão lhe fizera nas calças de pele de caribu.
- Aqui está bom - respondeu ela. - Sei que tens que ir ao conselho dos velhos.
Os olhos dele eram castanho-claros, e, quando ela o fitava, era como se visse a bondade da alma de Chakliux.
- O conselho é sobre K’os, não é? - perguntou ela.
- É, sobretudo sobre isso - respondeu ele.
- Eles vão matá-la?
- Devo-lhe a vida, bem sabes - disse Chakliux. Ela foi uma mãe para mim quando mais ninguém seria, mas creio que todos reconhecemos que ela não pode ficar mais tempo nesta aldeia.
- Então, vais vendê-la.
- Talvez.
- Onde?
- Não a ninguém do Povo Rio.
- Aos Morsas. Ontem à noite, te ouvi falar com Aqamdax - admitiu Yaa, cabisbaixa.
Yaa fitou-o para ver o que ele diria, mas a ternura não abandonou o olhar de Chakliux.
- Não deixes Chora-Alto ir - disse ela. - K’os tentará fazer-lhe alguma coisa para vos atingir, a ti e a Sok.
- Chora-Alto é mais forte do que tu julgas, Yaa - disse ele. - Não podes ser uma boa esposa para ele se tentares ser também sua mãe. Deixa que seja ele a decidir. Não o obrigarei a ir.
Chakliux disse-lhe que ia dar comida aos cães e deixou-a ali. Mais tarde, Yaa pegou um pedaço de tendão de caribu e agachou-se junto da tenda, fazendo linha. Quando Chora-Alto foi chamado à tenda dos velhos, ela estava à espreita.
A espera pareceu-lhe interminável, mas por fim a aba da porta da tenda dos velhos abriu-se e Chora-Alto saiu. Yaa levantou-se, e o movimento chamou a atenção do jovem. Fez-lhe sinal e ela correu para ele.
Saíram da aldeia e encaminharam-se para as árvores que ficavam junto das tendas de Inverno. Chora-Alto era um homem alto, tão grande como Sok. Quando Yaa pensava na mãe dele, Folha Vermelha, é que via como Chora-Alto era parecido com ela. O rosto de Folha Vermelha, de traços bem vincados, mais parecia o de um homem do que o de uma mulher. Ela era tão hábil manejando a agulha e o furador que as pessoas diziam que as suas parkas podiam dar comida a uma aldeia durante um Inverno, que eram boas para negociar. Mas, enquanto que o coração de Folha Vermelha era duro e mau, ao ponto de matar não ser nada para ela, Chora-Alto era mais parecido com o pai, que, embora brusco e às vezes insensato, era um homem bom e justo.
Chora-Alto descobriu um pedaço de solo seco, atapetado de agulhas de abeto de cor alaranjada, e puxou-a para que ela se sentasse a seu lado.
- Mulher, tenho que te dizer uma coisa - disse ele.
- Tencionas ir levar K’os à aldeia dos Caçadores de Morsas - respondeu ela, arrastando as palavras. - Ouvi Chakliux falar com Aqamdax sobre isso. Vais só tu com K’os?
- Não. Esquilo, Pau Preto e Cabeça-de-Lobo vão conosco.
Quando Yaa ouviu falar em Cabeça-de-Lobo, o seu medo diminuiu. Esquilo e Pau Preto eram pouco mais do que crianças, mas Cabeça-de-Lobo era mais velho e estava na força da meia-idade. Teria mais tato ao lidar com uma pessoa como K’os. Talvez, para vingar a morte do filho, Dança-no-Gelo, ele até fosse capaz de matar K’os antes de chegar à aldeia dos Caçadores de Morsas, e assim a viagem ficaria reduzida aos negócios.
- Sempre quis ir à aldeia dos Morsas - disse Chora-Alto.
Não olhou para ela, mas para a floresta, como se conseguisse ver além das árvores até a praia distante onde viviam os Caçadores de Morsas.
- K’os vai tentar enganar-te, ou fazer qualquer coisa terrível - disse Yaa. - Lembras-te das pragas que ela rogou a todos nós quando Chakliux a obrigou a sair do acampamento dos caribus?
- Tenho amuletos para me proteger, e as minhas armas.
- Não comas nada que ela te dê - disse Yaa.
- Eu não sou burro.
As palavras de Chora-Alto denotavam irritação, como se ele fosse um garoto e estivesse falando com a mãe, e Yaa lembrou-se do que Chakliux lhe dissera. Baixou a cabeça, irritada consigo própria. Chora-Alto aproximou-se dela, enfiou-lhe as mãos debaixo da parka e procurou-lhe os seios. Estava impaciente por fazer amor, e Yaa falara com Aqamdax sobre isso, explicando que as mãos dele eram bruscas demais e se mexiam depressa demais para que ela tivesse prazer, e que, depois de entrar nela, ele se preocupava apenas com a sua satisfação pessoal.
- Diz-lhe o que pretendes - aconselhou-a Aqamdax, como se estivesse admirada por Yaa não ter pensado nisso.
Porém, quando Chora-Alto a deitou de costas no chão, quando ele lhe puxou o atilho das calças, Yaa concluiu que não era aquele o momento indicado para falar com ele. Nesse dia, já fora suficientemente maternal.
Sok quis dar a notícia assim que se aproximou da tenda, e a sua voz elevou-se acima do choro do bebê:
- Trouxe outra mulher.
Dii, com o bebê aos gritos nos braços, estava discutindo com o filho de Sok, Leva-Muito, sobre a comida dos cães. Virou as costas a Leva-Muito e fitou Sok.
- Sem falares comigo primeiro? - perguntou ela, com uma voz tão baixa e controlada que a princípio Sok nem percebeu que ela estava zangada.
Em criança, fora ensinada a ser educada, a fechar a boca antes de dar respostas apressadas ou de usar palavras contundentes. E agora, como geralmente acontecia quando ela estava aborrecida, as lágrimas queimavam-lhe os olhos, e Dii engoliu mais uma vez a sua raiva. Que disparate! Porque deixava sempre que as lágrimas a impedissem de dizer o que era necessário?
- Quem é? - perguntou Leva-Muito, de braços cruzados e pernas afastadas, imitando o pai.
De repente, fez-se silêncio no interior da tenda; até o bebê se calou, como se esperasse ouvir o nome da mulher que o pai escolhera. Na lareira, o fogo crepitou e libertou uma nuvem de fagulhas que subiram em direção à chaminé. Sok descalçou as luvas de pele de alce, avançou para o canto onde guardava as suas armas e tirou uma lança e várias pontas de seta, de costas para Dii e para Leva-Muito, como se não tivesse ouvido a pergunta.
- O teu filho te fez uma pergunta - disse Dii, com uma voz firme.
- Bico-de-Gaivota - respondeu Sok, sempre de costas para eles.
Voltou a pôr dois cabos de lança no mesmo local, mas ficou com os outros nas mãos. Virou-se para Dii e repetiu:
- Bico-de-Gaivota.
- Bico-de-Gaivota? - repetiu Dii estupidamente. A sua raiva desvaneceu-se tão depressa como surgira.
- Quem é Bico-de-Gaivota? - perguntou Leva-Muito.
- É a velha que vive no extremo da aldeia, perto do rio respondeu Dii, levando a mão à cara e explicando por gestos o formato do nariz de Bico-de-Gaivota.
Leva-Muito soltou uma gargalhada, mas depois deu uma olhadela ao pai, calou-se e em seguida disse, com um ar solene:
- É uma boa mulher para esposa.
O cumprimento, em geral dado a uma jovem por um velho, parecia estranho saído da boca de um rapaz, e Dii teve vontade de rir. Mas, com receio de ofender Sok, não o fez. Uma coisa ela sabia - Sok devia ter uma boa razão para fazer de Bico-de-Gaivota sua esposa. Podia ser um marido austero, pouco dado a brincadeiras ou a insistências, mas não era tolo.
- É uma costureira dotada - acrescentou Dii, rindo da parka que o marido vestia. Era quente, mas grosseira no corte e nas costuras, com os amuletos aplicados às três pancadas.
- Ela vai-te fazer uma parka nova? Para mim, também, e para o Chora-Alto? - perguntou Leva-Muito, sempre preocupado com o irmão mais velho.
- Vai - respondeu Sok, num tom rude. - Deste comida aos cães? Eles estão latindo.
- Ele ia agora mesmo fazer isso - adiantou-se Dii, erguendo as sobrancelhas ao rapaz.
Leva-Muito limpou um pé nas esteiras, deu um suspiro exagerado e calçou as botas. O bebê recomeçara a chorar e Dii levantou a camisa de pele de caribu, pegou um seio e enfiou-lhe o mamilo na boca. Depois, sentou-se junto da lareira e afastou a fumaça que fora empurrada para ela quando Leva-Muito abriu a aba da porta.
- Dá mais um peixe à fêmea branca! - gritou Sok ao filho.
Depois, explicou a Dii:
- Ela está grávida outra vez.
Dii já sabia, mas fingiu-se surpreendida.
- Talvez ela te dê mais cães de olhos dourados - disse ela.
Sok encolheu os ombros.
- Os filhotes dela costumam ser fortes e saudáveis disse ele. - Há homens que os querem, seja qual for a cor dos olhos.
Dii empinou o queixo e cerrou os lábios com determinação. Queria que ele percebesse que ela não ficara totalmente satisfeita, que pelo menos ele lhe devia uma explicação.
- Porquê? - perguntou ela. - Além das parkas.
- Eu não quero outra esposa - disse-lhe Sok. Acocorou-se, largou as setas e acariciou-lhe a face. Dii virou a cabeça para o lado, tentando afastar-se dele, e viu-o franzir a testa.
- Eu não tinha alternativa - disse ele. - Chakliux quer K’os fora da aldeia.
- Seria melhor para todos nós que ela morresse.
- E qual o homem que a mataria? - perguntou Sok, em voz alta.
Dii baixou a cabeça. Era uma pergunta à qual ninguém podia responder. Quem duvidava que K’os, mesmo depois de morta, podia continuar a ser uma ameaça? O espírito dela vingaria a sua morte e destruiria aqueles que a tivessem destruído. Talvez eles fossem obrigados a ir buscar o xamã de outra aldeia, para entoar cânticos de proteção, ou mesmo para retalhar-lhe o corpo no local das articulações, para que o seu espírito ficasse na sepultura, mas, má como era K’os, quem sabia ao certo se tudo isto seria suficiente?
- Chakliux quer levá-la para a aldeia dos Morsas e vendê-la como escrava.
- Tu também vais? - perguntou ela, sustendo o fôlego até ele responder que não.
- O único problema é Bico-de-Gaivota - disse Sok. Ela precisa de alguém que pesque para ela, que vá buscar lenha. Bem sabes quem era o marido dela e como fez pouco pelas suas mulheres. Nem sequer conseguiu dar-lhes filhos.
Por instantes, o olhar de Sok deteve-se no bebê que Dii tinha ao peito.
- Há maridos que são melhores nisso - disse Dii, sorrindo.
Não lamentava que Raposa-Que-Ladra - o marido que em tempos ela partilhara com Bico-de-Gaivota - não lhe tivesse deixado um bebê. E se a criança saísse ao pai, preguiçosa e cruel? Mas ela sabia que Bico-de-Gaivota passara a vida lamentando-se por não ter tido um filho nem uma filha. Que alegria de viver podia ter uma velha sem filhos nem netos?
- Ela não queria que K’os fosse vendida? - perguntou Dii.
- Não. Por isso, eu fiz o que havia a fazer. Bico-de-Gaivota fica na nossa cabana; ela costura, e em troca eu caço para ela, assim como os nossos filhos, e damos-lhe lenha e peixe. Ela ainda sabe montar uma armadilha. Já nem a Ligige’ o faz.
- E não será demais, teres que caçar para duas velhas? - perguntou Dii.
Chakliux e Sok abasteciam de carne não só as suas próprias famílias, como também a tia de ambos, Ligige’.
- Não vai ser fácil, mas Chora-Alto já é um homem, e Leva-Muito já tem seis Verões. A sua força vai aumentando à medida que a de Bico-de-Gaivota for diminuindo. E até ele começará a caçar em breve - disse Sok, sorrindo e apontando com o queixo para o bebê. - Talvez depois eu te dê uma filha para te ajudar nas tuas tarefas.
- Eu gostaria muito de ter uma filha - disse Dii.
- Eu também.
Sok inclinou-se, esfregou a sua face na de Dii, acariciou a cabecinha escura do bebê e depois pegou as setas.
- Chakliux também vai? - perguntou ela, quando ele se dirigia para a porta que dava para o túnel de entrada.
- Aonde?
- Com K’os, à aldeia dos Caçadores de Morsas.
- Não, Chakliux não vai - respondeu Sok.
Houve alguma coisa na voz de Sok que deixou Dii preocupada.
- Chakliux não vai - repetiu ela em surdina.
A aba da porta fechou-se atrás de Sok, deixando entrar uma lufada de ar fresco na tenda. Dii apertou o bebê contra o peito com uma mão e foi atrás de Sok, aos tropeções. Afastou a aba interior e chamou-o precisamente quando ele ia saindo.
- Quem é que vai? - perguntou ela, sempre atrás dele. À saída da tenda, exposta à neve e à lama, Dii levantou-se e cobriu o bebê com a camisa de pele de caribu, desnudando a parte lateral do corpo e a barriga.
- Quem, Sok? - gritou ela, com uma insistência que o obrigou a virar-se para trás.
- Esquilo, o irmão, Pau Preto, e Cabeça-de-Lobo respondeu ele.
Sok calou-se, e ela perguntou outra vez:
- Quem mais?
Mas Dii já sabia a resposta antes de a ouvir da boca do marido.
- Já sabes? - perguntou Yaa, entrando na cabana de Aqamdax.
O estado da parka de Yaa revelou a Aqamdax o que ela e Chora-Alto tinham estado fazendo.
- Sobre K’os e Chora-Alto? - disse Aqamdax, respondendo à pergunta com outra pergunta. - Soube ontem à noite. Vira-te. Tens as costas da parka cheias de agulhas de abeto.
Yaa virou-se e esperou que Aqamdax retirasse as agulhas e as lançasse no fogo.
- Por que deixaste que Chakliux escolhesse Chora-Alto? - perguntou Yaa.
- Achas que Chora-Alto não tem força suficiente para fazer frente a K’os?
Yaa não respondeu.
Aqamdax agarrou Yaa pelos braços e fitou-a. Em seguida, falou-lhe como se ela ainda fosse uma criança.
- Um homem não se entrega verdadeiramente a uma mulher se ela não estiver preparada para o deixar ser um homem. Chakliux não obrigou Chora-Alto a ir levar K’os. Deu-lhe a escolha. Respeita essa decisão, Yaa.
Yaa abriu a boca para falar, mas desatou a chorar.
- Ele nunca se sentirá satisfeito nesta aldeia - disse ela, com as palavras entrecortadas pelos soluços. - Ele sempre procurará a mãe. É por isso que ele quer ir à aldeia dos Morsas. Ele julga que ela ainda está viva.
- Então reza para que ele a encontre e para que, se isso acontecer, ele tenha o bom senso de perceber o tipo de mulher que ela é - disse Aqamdax.
- Ela é a mãe dele. Ele não vê mais nada do que isso. Nunca verá.
Aqamdax instalou-se numa almofada de peles de raposa e pegou a esteira que estava fazendo.
- Espero que Chora-Alto te encha rapidamente a barriga com um filho, Yaa - disse ela, debruçada sobre o seu trabalho. - É tempo de deixares de ser mãe do teu marido.
Durante dois dias, a chuva e o granizo os obrigaram a esperar. Na manhã do terceiro dia, o novo sol primaveril voltou a brilhar através da neblina, afastando o frio da terra em grandes nuvens. Então, eles fizeram-se a caminho, quatro homens, quatro cães e K’os.
Por volta do meio-dia, tinham saído das florestas de abetos que lhes eram familiares e entrado nos densos matagais de amieiros. Os ramos enfiavam-se nos fardos dos cães e nas parkas e arranhavam-lhes o rosto, até que Cabeça-de-Lobo os encaminhou para a beira do rio, para uma trilho lamacenta aberta pelo gelo e pelo entulho próprio do começo da Primavera.
À noite, tinham chegado à faixa de tundra que separava as praias do mar do Norte das florestas. Sentiram os dentes do Inverno no vento que vinha do mar e avistaram montanhas de gelo ao longe, picos brancos formados pelo vento e pelas ondas, que agora diminuíam dia a dia com o sol primaveril.
Cabeça-de-Lobo não parecia muito preocupado com K’os. Afinal, ela estava velha. Que mal poderia fazer uma velha? K’os mantinha um sorriso oculto na face, alimentando esta opinião. Parava muitas vezes e queixava-se dos pés, das costas e da carga que a obrigavam a levar.
Não tinha nada contra os irmãos Esquilo e Pau Preto. Esquilo tinha um nome apropriado. Era pequeno e magro, com uns olhos redondos e escuros e uma madeixa de cabelo preto que lhe caía sobre um dos lados da testa. Falava alto, ou melhor, tagarelava, e em geral era ignorado pelo irmão. Tal como Esquilo, também Pau Preto era baixo, mas largo de ossos, com uma constituição física que despertava em K’os desejos de partilhar com ele a sua cama.
Chora-Alto, porém, merecia mais que a indiferença dos devaneios de K’os. O filho de Sok. O sobrinho de Chakliux. Intitulava-se marido da rapariga, Yaa, embora ainda não tivessem festejado o casamento. Não devia conseguir grande coisa de Yaa durante a noite, orgulhosa como ela era, uma velha num corpo de menina. Talvez, por tudo o que Sok lhe fizera, K’os ensinasse a Chora-Alto a alegria de possuir uma mulher que o apreciasse.
Quando acamparam, Cabeça-de-Lobo disse a K’os que prendesse os cães e lhes desse comida. Em seguida, mandou-a apanhar lenha para a fogueira, o que não era uma tarefa fácil na orla da tundra. Apesar do seu esforço, K’os trouxe apenas alguns gravetos de salgueiro e de amieiro, que ardiam lentamente, faziam uma fumaça acre e davam pouco calor e ainda menos luz. Talvez a mandassem apanhar urze no dia seguinte e salgueiros da tundra. De outro modo, como poderiam fazer uma fogueira? Ela trouxera o molho de lenha para o acampamento e vira que os homens tinham construído dois abrigos, virados um para o outro. Deixou cair a lenha e acendeu uma fogueira entre os abrigos, servindo-se de um lança-fogo e de palha de junco para ateá-la.
Agachou-se junto da fogueira para se aquecer, até que Esquilo a mandou ir buscar mais lenha, antes do cair da curta noite primaveril. Ela soprou-lhe e ficou onde estava, com as mãos em concha em volta da pequena chama. Chora-Alto aproximou-se dela, agarrou-a pelos ombros e obrigou-a a levantar-se.
- Ou vais agora ou marco-te com o meu cajado - disse ele.
Ela levou uma mão à face, encolhendo-se como se tivesse medo dele, e afastou-se do calor do fogo. Depois de apanhar mais um braçado de gravetos, voltou ao acampamento e reparou que Chora-Alto ficara junto de um dos abrigos vendo-a trabalhar.
- Precisas de uma mulher esta noite, tigangiyaanen! perguntou-lhe ela, em voz baixa para os outros não ouvirem.
Ele riu-se.
- Sim, da minha mulher.
K’os resfolegou.
- Ela é uma criança. O que entende ela de agradar a um homem? Quando a levas para a cama, quanto tempo é que isso dura para ti? - K’os fez estalar os dedos. - Isto?
Passou por ele, despejou a lenha e, sem que lhe dissessem mais nada, voltou a embrenhar-se nas moitas para ir apanhar mais. Pelo menos, havia uma boa quantidade de caules partidos pelo gelo no solo, limpos pelos ventos secos e frios do Inverno e portanto não tão verdes como poderiam estar. Trouxe mais três braçadas, o suficiente para a noite, e de cada vez deitava um olhar atrevido a Chora-Alto, e, se falava com ele, chamava-lhe tigangiyaanen.
Por fim, quando ela trouxe o terceiro braçado, Cabeça-de-Lobo disse-lhe que se sentasse e comesse um pedaço da carne seca que Bico-de-Gaivota lhe dera para a viagem. Ela optou por se sentar ao lado de Chora-Alto e, enquanto comia, falou com ele com atrevimento, como se não fosse uma escrava.
Ele ignorou-a e tentou iniciar uma conversa com Esquilo ou com Pau Preto, mas eles estavam cansados e responderam-lhe com roncos. Chora-Alto fez algumas perguntas a Cabeça-de-Lobo sobre os Caçadores de Morsas, e Cabeça-de-Lobo respondeu-lhe uma ou duas vezes. K’os também as ouviu. Ainda não resolvera se ficaria com os Morsas. Pelo menos, junto deles, seria menos provável que a matassem, caso ela fugisse. Era uma velha. Quem se importaria com a sua partida? Era menos uma pessoa para comer.
Mas se tentasse sair da aldeia de Rio Próximo, Cabeça-de-Lobo iria atrás dela, a mataria para vingar a perda do filho. Era preferível estar viva e ser escrava do que morrer esfaqueada por Cabeça-de-Lobo.
Pelo que Cabeça-de-Lobo dissera deles, os Morsas pareciam ser boa gente, risonhos e bem-dispostos. Se assim fosse, K’os não se daria ao trabalho de lhes dizer que Chora-Alto era filho de Sok. Para quê arranjar problemas, se ela resolvera ficar com eles? Trataria de passar de escrava a esposa e de esposa a curandeira. Depois de ser curandeira, não haveria limites para os seus atos. Ao mandá-la embora, Chakliux dera-lhe mais do que imaginava.
A fogueira, apesar de fazer muita fumaça, aqueceu-a, e a comida confortou-lhe o estômago. Começou a sentir-se descontraída e até se permitiu sonhar com as armas que poderia utilizar para matar quem fosse preciso. Perdida nos seus sonhos, nem ouviu bem a pergunta de Chora-Alto.
- Desculpa - disse ela. - Eu não estava ouvindo. O que disseste?
- Porque me chamas tigangiyaanen?
- Agora és um homem - respondeu ela. - Devias desfazer-te do teu nome de criança. Quem, melhor do que tu, merece ser tratado como um grande caçador, um forte guerreiro? Esquilo?
K’os cobriu a boca com a mão, mas afastou os dedos para ele ver que ela estava rindo.
Chora-Alto esboçou um sorriso afetado. Havia nele uma inocência que agradava a K’os mas, na boca, era muito parecido com Sok.
- Pensa nisso. Um nome novo é sempre uma boa coisa. K’os deu outra dentada no peixe seco, que lhe encheu a boca do sabor de fumaça de lenha de uma tenda.
- Não - respondeu Chora-Alto. - Ficarei com o nome que tenho. Foi a minha mãe quem me deu.
- E tu a respeita? Ela que matou o teu avô? - K’os resfolegou. - Há quem mereça respeito e quem não o mereça.
Ele fitou-a, e de repente ela sentiu-se incomodada com aquele olhar.
- Talvez tenhas razão, mas preciso que seja uma pessoa de respeito a dar-me esse nome. Vou perguntar a Chakliux.
K’os cerrou os dentes e virou-se para a fogueira.
- O melhor é seres tu a escolhê-lo - disse ela. E enquanto pensas num nome, pensa também nesta adivinha.
K’os olhou para ele por cima do ombro e percebeu que ele estava interessado. As adivinhas eram um passatempo muito usado pelas pessoas que tinham vivido na aldeia de Rio Primo. Mais do que um jogo, uma adivinha podia ensinar alguma coisa, mas também era uma forma de as mulheres dizerem o que tinham a dizer quando a teimosia dos homens fazia com que eles não as ouvissem.
- Olha, que vejo eu? - perguntou ela. - Cai no Outono, levada pelo vento, mas a árvore continua a viver.
- Uma folha - disse Esquilo, interrompendo a conversa.
- Essa é simples - disse Pau Preto, com um sorriso trocista.
- Tens razão - disse K’os, sem tirar os olhos de Chora-Alto. - O vento é sempre simples, não é? E nós percebemos sempre de onde ele vem e para onde vai.
Por um momento, Chora-Alto esbugalhou os olhos, mas depois fingiu indiferença. Percebera ele que a adivinha era sobre a mãe dele, Folha Vermelha? K’os não tinha certeza. Mas ainda estavam pelo menos a dois dias de caminho da aldeia dos Morsas, ou mais.
Talvez entretanto ela lhe contasse que, noutros tempos, a mãe vivera na aldeia dos Quatro Rios e que fora mulher do comerciante Cen. Talvez não lhe dissesse que Folha Vermelha morrera, mas talvez não lhe escondesse que ele tinha lá uma irmã, filha de Sok. A menina devia ter agora cinco ou seis Verões. Se Chora-Alto soubesse da existência dela, era provável que resolvesse ir visitá-la na aldeia dos Quatro Rios. Que maravilha se Sok descobrisse que Cen aceitara Folha Vermelha como sua mulher depois de ele a ter abandonado à sua sorte. Como se sentiria Sok se soubesse que Cen adotara a filha dele como se fosse sua? E o que faria Cen se soubesse que Folha Vermelha era a mulher de Rio Próximo que matara Daes, a mulher que ele amara mais do que qualquer outra? K’os sorriu ao pensar que Cen estava criando a filha de Folha Vermelha como se fosse dele, a menina a quem tinham dado o nome de Daes. com certeza esse nome não tinha descanso, já que fora posto na filha de Folha Vermelha. Que pena Folha Vermelha estar morta! Ela merecia a agonia provocada pela ira de Cen quando este viesse a saber a verdade.
K’os engoliu o sorriso e gritou a Cabeça-de-Lobo: - Qual é o meu abrigo?
- Tu dormes aqui comigo - respondeu ele.
Ela não discutiu, embora preferisse passar a noite com Esquilo ou com Pau Preto. Era fácil conquistar os rapazes com novos prazeres.
Engatinhando, dirigiu-se para a parte de trás do abrigo de Cabeça-de-Lobo e disse-lhe:
- A menos que me queiras à frente para alimentar a fogueira.
- Eu tomo conta da fogueira - respondeu ele.
- E dormes mais perto do calor - resmungou ela entre dentes.
- Por hoje já me chegam as tuas queixas, mulher. Por culpa tua é que tivemos de sair do calor das nossas tendas para te levarmos aos Morsas.
Cabeça-de-Lobo tirou uma corda do seu fardo, ligou os tornozelos de K’os a um palmo de distância um do outro e atou a outra ponta da corda ao seu pulso esquerdo. Depois de se deitarem, ela, descarada, acariciou-lhe as virilhas. Admirada, verificou que o pênis de Cabeça-de-Lobo estava cheio e duro. Ele afastou-lhe a mão e disse:
- Há coisas que um homem não consegue controlar, mas há sempre alternativas.
- Que mal tem? - perguntou ela. - com certeza, já ouviste dizer que eu sei dar prazer aos homens.
- Ouvi contar algumas histórias. Quem não ouviu? Mas tu foste esposa do meu filho. Há tabus.
- Há muito tempo, disseste-me que não tinhas nenhum filho.
- Uma vez, há muito tempo, eu enganei-me - respondeu ele.
A aldeia dos Morsas ficava à beira-mar, e, no último dia de viagem, Cabeça-de-Lobo orientou-os na travessia da grande planície lodosa. Estava macia e molhada debaixo dos pés, cheia de regatos ocultos, de água fria do gelo que fora empurrado para a costa durante o Inverno, placas grossas, azul-acinzentadas, que se empinavam e formavam montes e montanhas, agora apodrecendo ao sol.
O lodo tinha segredos, nascentes borbulhantes e poços onde eles ficavam enterrados de repente até aos joelhos, que os sugavam até eles não conseguirem sair. Os cães ganiam em surdina, e K’os desejou que um vento frio vindo do Norte gelasse o solo. Mas o vento soprava de oeste e, a meio da manhã, trouxe chuva. Então, os desejos de K’os abandonaram os pensamentos de solo firme e concentraram-se numa das belas parkas impermeáveis de Aqamdax, feitas de vísceras. Quando Aqamdax fora sua escrava, K’os tivera várias.
Como as vidas de ambas tinham se modificado desde então, pensou K’os. Agora era ela a escrava, e Aqamdax era esposa, e o marido, chefe dos velhos. A aldeia deles era forte graças à superioridade dos homens de Rio Próximo na caça e à sabedoria do povo de Rio Primo. Quem senão Chakliux teria conseguido convencer as duas aldeias, que quase tinham se destruído uma à outra, a unirem-se como se fossem uma só e a viverem em paz?
Então, ao formular os seus desejos, K’os percebeu que um se sobrepunha aos outros: regressar àquele dia longínquo em que ela encontrara Chakliux quando ele era bebê, abandonado no Rochedo do Avô, entregue ao vento devido ao seu pé torto de lontra.
Se ela soubesse o que viria a ser a sua vida, o teria deixado morrer.
Enterrou o pé direito na lama, perdeu o equilíbrio e caiu de quatro. Os homens não se ofereceram para ajudá-la e ela teve dificuldade em endireitar-se devido ao peso do fardo. Quando se pôs de pé, cerrou os lábios e enrolou a língua nas pragas que não se atreveu a dizer em voz alta, entregando-se de novo aos seus pensamentos.
Ouvira contar histórias de xamãs que conseguiam ir visitar a Lua e matavam pessoas só com palavras, mas nunca ouvira falar de ninguém que tivesse conseguido regressar ao tempo já vivido. Por conseguinte, não havia esperança de alterar o que acontecera com Chakliux. Talvez o que ela desejava verdadeiramente fosse ter outra oportunidade de o criar, dessa vez com o que aprendera durante a sua longa vida.
Limpou a face e afastou a água da chuva. Havia nevoeiro no horizonte. K’os piscou e voltou a olhar. Era nevoeiro ou fumaça? Estariam assim tão próximos da aldeia dos Morsas?
Apertou o passo até alcançar Pau Preto. Este caminhava de cabeça baixa, com o capuz protegendo-o da chuva.
- Os meus olhos estão velhos - disse ela. - O que vejo é fumaça ou apenas nevoeiro?
Ele levantou a cabeça e parou pouco depois. Franziu a testa e em seguida gritou ao irmão:
- Esquilo, aquilo é fumaça?
- É a aldeia. Estamos quase chegando - respondeu Cabeça-de-Lobo.
Então K’os começou a tremer. Os dentes dela batiam tanto que as pragas que ela rogara em silêncio começaram a sair-lhe pelos cantos da boca. A nuvem do seu bafo escureceu com o ódio ciciado, e as suas palavras rodopiaram ao vento até chegarem aos ouvidos de Cabeça-de-Lobo.
Cabeça-de-Lobo voltou para trás, cerrou o punho e aproximou-o da cara de K’os, dizendo:
- Se as tuas pragas continuarem, mato-te imediatamente, sem me importar com a vontade de Chakliux.
Fez um sinal de proteção e depois passou para trás dela.
K’os levou a mão enluvada aos lábios e cerrou os dentes até conseguir engolir as pragas. Em seguida, para combater o mal-estar, concentrou-se nas chances que se abririam numa nova aldeia.
As cabanas dos Morsas eram de pedra e de pele, assentes de costas para o mar, em escarpas muito acima do nível da praia, longe do alcance das ondas. Cabeça-de-Lobo disse aos outros que esperassem enquanto ele continuava sozinho. O coração de K’os agitou-se, como se estivesse prisioneiro no seu peito. Ela convencera-se de que conseguiria atrair um dos rapazes para a sua cama durante a viagem e captar a sua lealdade, o que lhe daria uma chance de fugir se fosse necessário. Mas Cabeça-de-Lobo fora cauteloso e atara-a todas as noites.
Os três rapazes ficaram juntos, na chuva, agarrados às suas lanças. K’os aninhou-se atrás deles, abrigada pelos seus corpos, tentando impedir que os cães se atirassem aos pescoços uns dos outros. Reparou que Chora-Alto e Pau Preto já tinham aspecto de homens, enquanto que Esquilo ainda tinha os ombros estreitos e as pernas descarnadas. Esquilo e Pau Preto agarraram-se às suas lanças, mas Chora-Alto conservou a arma a seu lado, como se se dirigisse com freqüência a outras aldeias e não tivesse medo, pronto para a amizade ou para o confronto.
Pau Preto executou uma dança nervosa, apoiando-se ora num pé ora no outro, e Esquilo lamuriou-se com uma voz esganiçada que não era ainda a de um homem.
K’os aproximou-se de Chora-Alto e perguntou:
- Descobriste a minha adivinha?
- A tua adivinha? - perguntou ele, deixando transparecer uma certa irritação. - Não tenho tempo para adivinhas.
Virou-lhe as costas. Depois suspirou e acrescentou:
- É sobre a minha mãe.
- Não queres que eu te diga para onde é que ela foi quando saiu da aldeia de Rio Primo?
- Agora tenho uma esposa. Não preciso da minha mãe.
- E de uma irmã? - perguntou ela. - É sempre bom um homem ter uma irmã.
- A minha irmã está viva? - perguntou ele.
- Que eu saiba, sim - respondeu K’os. - Um homem que vive na aldeia dos Quatro Rios adotou-a como filha. Talvez te lembres dele. Chama-se Cen. É comerciante.
- Cen?
K’os deu uma gargalhada.
- Estás admirado? A tua mãe não era burra. Tinhas muito a aprender com ela. Era astuta como um lobo. Não percebes como é que eu sei? Quando Chakliux me expulsou do vosso acampamento de caça, eu fui para a aldeia mais próxima. Pensa um pouco. Que aldeia seria?
- A aldeia dos Quatro Rios - respondeu ele em voz baixa.
- Não lhe dês ouvidos, Chora-Alto - disse Esquilo. Ela está mentindo. Tudo o que ela diz é mentira.
Chora-Alto ia a abrir a boca para responder, mas não disse nada, e por fim virou-lhe as costas e pôs-se a observar a aldeia.
K’os falou tão perto do capuz dele que Esquilo e Pau Preto nem ouviram o que ela disse.
- Lembras-te de Cen? - perguntou ela em surdina. Chora-Alto deu meia volta e, pela sua expressão, K’os percebeu que ele estava irritado.
- Não acredito em ti. Porque Cen a aceitaria como esposa? Ela matou Daes, a mulher que ele amava, e tentou matar o filho dele, Ghaden.
- Cen é comerciante - disse K’os. - Pensa nas muitas mulheres que ele vê, nas muitas aldeias que ele visita. Porque ele se lembraria do rosto de Folha Vermelha? Da última vez que ele a viu na aldeia de Rio Próximo, ninguém sabia que era ela a assassina. Ele não tinha motivos para se lembrar do rosto da tua mãe.
- Mas lembrava-se do nome.
K’os riu.
- Na aldeia dos Quatro Rios chamam-lhe Gheli.
- Então ela não está morta... - disse Chora-Alto em voz baixa.
Apesar de K’os saber que ele estava falando consigo mesmo, respondeu:
- Ela não foi morta.
A raiva no olhar de Chora-Alto deu lugar ao terror, e de súbito ele calou-se.
- Ela morreu - disse K’os, sentindo-se satisfeita com a dor que via no rosto de Chora-Alto. - Ela morreu quando eu ainda vivia na aldeia.
- Como? - perguntou ele.
Ela ia dizer-lhe. As palavras - ”uma doença da barriga e das entranhas” - já lhe tinham subido à garganta. Mas K’os defendeu-se, engoliu-as. Chora-Alto poderia pensar que a mãe fora envenenada e culpá-la por isso. Assim, K’os respondeu-lhe:
- De parto.
- O parto da minha irmã? - perguntou ele.
K’os disfarçou um sorriso. Era bom em adivinhas, aquele rapaz. bom nas armadilhas. Devia ser uma velha. Era hábil a apanhar e a estrangular.
- A tua irmã nasceu antes de eu encontrar o caminho para a aldeia dos Quatro Rios - esclareceu ela. - Cen pôs outro bebê na barriga da tua mãe pouco depois de a tua irmã nascer. Mas o que mais esperarias de um homem que mede a vida por aquilo que tem? A tua mãe morreu e o bebê também, um rapaz.
K’os viu a tristeza no rosto de Chora-Alto e acrescentou, em voz baixa e compungida:
- Desculpa. A perda de uma mãe não é uma coisa fácil. Talvez ao saberes que tens uma irmã te sintas um pouco aliviado.
Ele virou-lhe as costas, e K’os pôs-se de quatro e ficou à espera que Cabeça-de-Lobo voltasse.
Yehl escutou com toda a paciência o homem do Povo Rio que disse chamar-se Cabeça-de-Lobo. O homem era um guerreiro, mas começara a envelhecer e havia um cansaço no seu olhar que falava de perda.
Yehl sabia compreender esse sofrimento. Ainda não acabara de chorar o seu pai, um xamã, tão forte na mente quanto no espírito.
Em todos os anos de vida do velho, só uma vez é que o seu juízo falhara. Yehl inclinou-se para Cabeça-de-Lobo como se estivesse escutando-o, mas os seus olhos viam o tempo em que o pai ainda era vivo. Nessa época, os homens traziam morsas suficientes para alimentar a todos da aldeia, e focas suficientes para óleo e peles. As suas crianças eram saudáveis e fortes e as suas mulheres, ávidas de agradar. Mas tudo mudou quando o pai recebeu um grupo de comerciantes do Povo Rio na aldeia.
Yehl raramente se entregava a tais pensamentos. Com uma mulher tão poderosa como Aqamdax - sem dúvida uma feiticeira que trazia o mal com a mesma facilidade com que outras mulheres traziam amuletos - com certeza que as suas maldições voltariam a cair sobre eles, se Yehl a deixasse viver nos seus pensamentos.
Há um ano que chorava a morte do pai. Há um ano que se mantinha longe das mulheres, que cortara a sua carne e sangrara na lareira da sua cabana. Cortara o cabelo e rasgara as parkas. Quando esse ano terminou, ele adotou o nome do pai, Yehl, e ocupou igualmente o seu lugar como xamã. Que melhor maneira havia de manter vivo o espírito do velho naquela aldeia?
Ainda agora, ao falar com Cabeça-de-Lobo, ele sentia o pai pairando sobre eles, e a força do velho deu-lhe confiança. Afinal, que mal podia esta gente do Povo Rio fazer à sua aldeia? Eram apenas comerciantes, que procuravam algumas bugigangas. Também havia uma escrava, segundo Cabeça-de-Lobo lhe dissera, uma mulher para lhes levar os fardos, uma mulher boa na cama de um homem. Que mal fazia se eles lá ficassem um ou dois dias? Não eram os Caçadores de Morsas conhecidos pela sua hospitalidade?
- O chefe dos caçadores autorizou-nos a entrar na aldeia e a negociar - disse Cabeça-de-Lobo.
Esquilo soltou uma gargalhada sonora.
- E o que trouxemos nós para negociar além desta velha?
- Eu disse-te que trouxesses alguma coisa para negociar, não disse? - respondeu Cabeça-de-Lobo. - Tens cães Para transportarem os teus fardos.
- Os rapazes têm que poupar as suas peles de caribu para comprarem as noivas - disse Pau Preto.
- Essa foi a tua escolha. Não me venhas com lamúrias, respondeu Cabeça-de-Lobo.
Pau Preto fez um ar carrancudo. Cabeça-de-Lobo empinou o queixo para K’os, fez-lhe sinal para que o seguisse e depois disse a Chora-Alto:
- Vocês os três façam o que quiserem. Fiquem aqui ou venham. Não arrumem confusão com os caçadores deles.
Cabeça-de-Lobo foi à frente, seguido por K’os com os cães, Chora-Alto, Esquilo e Pau Preto, todos eles empunhando as suas armas e de olhar atento a alguém que se aproximasse.
A tenda ficava perto do centro da aldeia e, quando a viu, K’os sentiu falta do calor de uma fogueira. Tentou acompanhar Cabeça-de-Lobo até ao túnel de entrada, mas ele empurrou-a para trás e obrigou-a a esperar que os rapazes passassem para a frente. Por fim, depois de ter prendido os cães e de lhes ter dado comida, foi autorizada a entrar com os fardos. Esquilo abriu a aba interior enquanto ela se inclinava para passar com a sua carga.
Os joelhos de K’os rangeram quando ela entrou na tenda, e uma cãibra apanhou-lhe os ombros quando se endireitou com os fardos às costas. Mas o calor era maravilhoso, uma carícia no seu rosto depois de tantos dias atravessando a tundra.
Cabeça-de-Lobo falou com os Morsas na língua deles. Falou devagar e com muitas pausas, mas K’os entendeu apenas aquelas palavras que aprendera quando era nova e recebera um comerciante dos Morsas na sua cama, palavras diferentes das que os homens usavam para negociar.
O chefe dos Morsas usava muitos colares e tinha o cabelo salpicado de contas e penas. Apresentou-se muito direito e rígido, mas K’os julgou ver uma espécie de medo nos seus olhos. Era alto e entroncado. O nariz, esguio como o bico de uma gaivota, já sofrera uma fratura. O homem falava com os olhos semicerrados, como se fizesse um grande esforço.
Disse chamar-se Yehl. K’os sabia que já ouvira falar naquele nome. Não houvera um xamã do Povo Morsa que também usara aquele nome? Mas isso fora há anos. Talvez este novo chefe fosse filho ou neto do velho xamã e o poder do nome desse homem tivesse enevoado os olhos das pessoas, ao ponto de elas não perceberem que este novo Yehl era inferior ao que julgavam.
K’os estava tão distraída observando-o que quase não percebeu o sinal de Cabeça-de-Lobo. Ele queria-a a seu lado. Ela tentou deslocar-se com graciosidade apesar do peso do fardo e, quando a luz vinda da chaminé lhe iluminou o rosto, fez um sorriso. Cabeça-de-Lobo ordenou-lhe em voz baixa que mostrasse a Yehl uma das parkas feitas por ela. K’os agachou-se, desatou o fardo e tirou uma parka de pele de esquilo, quente e macia.
Observou Yehl enquanto este a desenrolava e cerrou os dentes de triunfo ao ver o desejo nos seus olhos. Pela primeira vez, ele olhou para ela. K’os fez um sorriso próprio de uma escrava, tímido e humilde, e perguntou a si própria até que ponto o seu rosto envelhecido conservava ainda traços da beleza da juventude. Até o cabelo começara a denunciá-la com algumas madeixas brancas, e as mãos deformavam-se de ano para ano.
Yehl fez uma pergunta a que Cabeça-de-Lobo respondeu com um grunhido, fazendo sinal a K’os.
- Ele pergunta se já foste esposa de alguém - disse ele. Em voz baixa, K’os respondeu:
- Tive dois bons maridos antes de passar a ser escrava. Um era chefe dos caçadores da aldeia de Rio Primo. Talvez tenhas ouvido falar dessa gente.
Cabeça-de-Lobo traduziu as suas palavras, e Yehl respondeu alguma coisa.
- Ele conhece a aldeia - explicou Cabeça-de-Lobo.
- Então, talvez ele tenha ouvido falar do meu marido, Bate-no-Chão.
Quando Cabeça-de-Lobo reproduziu a pergunta, Yehl inclinou a cabeça, ficou pensando e depois levantou dois dedos, o que na linguagem dos comerciantes queria dizer não.
Cabeça-de-Lobo falou e depois explicou:
- Eu disse-lhe que Bate-no-Chão era um homem bom.
- Obrigada - disse K’os, sabendo que ele pensava apenas em si próprio. Quanto mais conseguisse para ela, melhor seria para ele, melhor seria para a aldeia do Povo Rio.
Yehl perguntou alguma coisa e Cabeça-de-Lobo disse:
- Ele quer saber o que aconteceu aos teus maridos.
Era uma pergunta perigosa. Uma mulher viúva podia trazer alguma maldição do falecido marido a um novo marido, e K’os enviuvara duas vezes, três vezes, contando com Dança-no-Gelo, mas para quê falar num jovem que partilhara a sua cama apenas algumas noites? K’os falou devagar, com cautela.
- O meu primeiro marido foi-me dado quando eu era pequena. O meu pai escolheu-o por ele ser um velho respeitado. Era muito idoso, mas ainda viveu muito tempo depois de casarmos e morreu dormindo, cheio de anos e de respeito.
K’os esperou que Cabeça-de-Lobo traduzisse as suas palavras e depois continuou:
- Como eu te disse, o meu segundo marido, Bate-no-Chão, era chefe dos caçadores da nossa aldeia. Tinha ido negociar em outra aldeia. Enquanto lá esteve, ficou com uma velha na sua tenda. Ela não tinha cuidado nenhum com o fogo e, durante a noite, a tenda incendiou-se, matando o meu marido, a velha e o marido dela.
Pouco depois, a minha aldeia, a aldeia de Rio Primo, foi destruída pelos homens de Rio Próximo. Eu fui feita escrava, e assim continuo até agora.
K’os fez de novo uma pausa e esperou por Cabeça-de-Lobo. Yehl fez um sinal afirmativo e deu a entender ao comerciante que ouvira falar das lutas entre as aldeias de Rio Primo e Rio Próximo. Quem não ouvira?
K’os encolheu os ombros.
- Muitas de nós foram feitas escravas, embora as aldeias vivam agora em paz, e, na sua maioria, as escravas foram adotadas e aceitas como esposas. Mas quem é que pode confiar em mim na aldeia de Rio Próximo? Eu era esposa do chefe dos caçadores. Eles receiam que eu procure vingar-me. É por isso que continuo sendo escrava.
Cabeça-de-Lobo levantou uma mão para a mandar calar. Dessa vez, ao dirigir-se a Yehl, falou durante muito tempo, e K’os ficou pensando se ele traduzira apenas o que ela dissera ou se inventara alguma história.
O coração batia-lhe com força no peito e pulsava-lhe nos pulsos e nas têmporas. K’os estava furiosa com o seu medo. Aquele Yehl devia ser fácil de controlar. Porque se preocupar? Cabeça-de-Lobo não queria matá-la para não se arriscar a ser amaldiçoado. A deixaria ali. O coração de K’os serenou, e ela quase sorriu. ”Não. Tem calma, fica calada”, disse ela a si própria. ”Os teus medos eram sem fundamento, mas não provoques Cabeça-de-Lobo com um sorriso.”
Yehl observava a escrava enquanto o homem do Povo Rio falava. Cabeça-de-Lobo pronunciava mal as palavras, e o seu sotaque era estranho. Yehl teve que lhe pedir mais do que uma vez que repetisse o que dissera. Yehl queria a mulher, mas tentou afastar todas as provas desse desejo do seu olhar. Ela era velha, e talvez já tivesse ultrapassado a idade de gerar filhos, mas qualquer homem via que conservava ainda a beleza da sua juventude. Tinha o cabelo espesso e a pele macia. Enfiara as mãos nas mangas da parka, mas, uma ou duas vezes, quando ela falara e as usara para dar ênfase às suas palavras, ele reparara que estavam deformadas, inchadas nas articulações, com os dedos tortos. A maior parte dos homens se sentiria repelido por aquelas mãos, mas a mãe de Yehl também tinha os dedos assim, nodosos, curvos e às vezes doloridos, mesmo quando era nova. Ainda conseguia costurar e fazer tudo aquilo que uma mulher tinha que fazer.
Se aquela mulher soubesse costurar, se era verdade que fora ela que fez a parka, como Cabeça-de-Lobo insistia, então poderia ser preciosa, como escrava ou como esposa. Parecia não haver nada de preocupante quanto aos seus maridos. O outro era chefe dos caçadores da sua aldeia. Talvez ela lhe tivesse levado azar, mas o mais provável era que o azar tivesse vindo com a velha cuja tenda ardera.
Por fim, Yehl interrompeu a tagarelice de Cabeça-de-Lobo e perguntou:
- O que queres por ela?
Cabeça-de-Lobo mostrou-se surpreendido com a pergunta. Como ele não respondeu, Yehl acrescentou:
- Ela é velha. Não posso te dar muito.
- Três peles de foca de óleo e uma pele de morsa, respondeu Cabeça-de-Lobo.
- A parka vem com ela.
- Por isso preciso de mais uma pele de foca de óleo.
- Dou-te o óleo pela parka e apesar de ter certeza, como me disseste, de que foi ela quem a fez, as mãos dela preocupam-me. Talvez ela a tenha feito há muito tempo, quando era nova - disse Yehl.
K’os viu a consternação no rosto de Cabeça-de-Lobo.
- O que se passa? - perguntou ela.
- Ele acha que não foste tu que fizeste a parka.
- Diz-lhe que me dê um furador, uma faca de mulher e agulhas para costurar.
Cabeça-de-Lobo fez o pedido, e Yehl disse alguma coisa a uma das mulheres mais velhas que tinham se juntado ao fundo da tenda. Antes de começar a costurar, K’os despiu a sua própria parka e entregou-a a Cabeça-de-Lobo.
- Mostra esta às mulheres - disse ela. - Quem mais faria uma parka de escrava a não ser a própria escrava?
A parka não tinha nada de extraordinário, nem tufos de pele de raposa nos ombros, nem aplicações de tripa branqueada pela geada, nem penas. Mas qualquer pessoa podia ver a qualidade do trabalho; qualquer pessoa podia ver como ela assentava bem no corpo.
Várias mulheres dos Morsas examinaram a parka e viraram-na do avesso para verificar as costuras. Por fim, a mais velha ergueu a testa em sinal de admiração. K’os inclinou a cabeça sobre a pele de foca enquanto a velha falava.
- Ela diz que é uma boa parka, uma bela parka - cochichou Cabeça-de-Lobo a K’os.
K’os não respondeu. Trabalhou o mais depressa que foi capaz, abrindo buracos com o furador. Em seguida, atou a linha feita de tendão à agulha e fez a costura, com pontos pequenos, iguais e apertados. Sem dizer nada, estendeu a pele de foca a Cabeça-de-Lobo. Este passou-a a Yehl. Yehl olhou para ela e depois para K’os. O seu olhar demorou-se nos seios dela, na cintura e na pequena protuberância da barriga e fixou-se na amarra das calças.
”Ele é meu”, pensou K’os, sorrindo-lhe. Yehl fez sinal à velha, que devolveu a parka a K’os. Esta vestiu-a pela cabeça e passou rapidamente as mãos pelos seios. Ele ia aceitá-la como escrava, sem dúvida. Uma escrava custava menos do que uma mulher. Mas depois de K’os abrir o caminho para a cama dele, o seu poder não teria fim.
Baía de Herendeen, península do Alasca
602 a. C.
Yikaas estava tão embrenhado na sua história que durante algum tempo continuou a falar sem prestar atenção às palavras pronunciadas à sua volta. Depois, percebeu que os comentários não eram os habituais murmúrios de aprovação que os contadores de histórias esperavam. As mulheres choramingavam, os velhos lamentavam-se, duas jovens mães, com os bebês atados ao peito, levantaram-se e saíram, abanando a cabeça como que para expulsarem aquelas histórias dos ouvidos. Um homem dos Caçadores Marinhos levantou a voz com rudeza e gritou alguma coisa que parecia um insulto.
Yikaas olhou para Qumalix e levantou as mãos, num gesto interrogador.
Ela falou com o seu povo, escutou as suas respostas e, quando se virou para Yikaas, disse:
- Eles estão cansados da tua história. Não conhecem o povo de que falas e não gostam de K’os.
- É claro que não gostam de K’os - disse Yikaas. - Ela é egoísta. Má.
Qumalix encolheu os ombros.
- Eles não querem ouvir falar dela. Essa mulher irrita-os.
- Às vezes, as histórias irritam as pessoas - disse Yikaas. - Se não ouvirmos falar do mal, como saberemos o que é o bem? Além disso, a tua história sobre Filha termina com K’os.
- Gosto de saber da existência de K’os - retorquiu Qumalix. - Mas isso é porque sou contadora de histórias, e quanto mais eu souber, melhores serão as minhas histórias. Qumalix apontou para as pessoas que estavam sentadas na tenda. - O meu povo diz que já sabemos o suficiente sobre K’os. Talvez seja tempo de falares de Chakliux ou de Sok. Eles parecem ser boas pessoas. Porque não nos contas as suas histórias?
Uma velha dos Caçadores Marinhos pôs-se de pé. Tinha a face engelhada e escura como a casca de uma árvore, e falou num tom razoável, sem lamúrias nem lamentações. Quando ela acabou de falar, Qumalix disse a Yikaas:
- Esta velha é conhecida pela sua sabedoria e criou três filhos robustos. Diz que é bom saber e compreender um pouco mais sobre uma mulher como K’os. Mas também diz que está cansada de ouvir falar de uma mulher tão má, e agora preferia ouvir outra história sobre Filha.
Apesar da sua fúria, Yikaas foi delicado e ocupou o seu lugar entre os ouvintes. Mas quando Qumalix falou de Filha, as suas palavras eram apenas palavras, ele não conseguiu envolver-se na história. A sua mente dispersou-se e voltou ao que ele contara àquela gente. Falara com uma voz forte, escolhera bem as palavras, mas eles não tinham gostado da história.
Talvez a culpa não fosse dele, mas sim dos próprios Caçadores Marinhos. Talvez a mente deles fosse como a das crianças, e eles tivessem necessidade de histórias simples, fáceis de entender, de histórias como as de Filha.
Yikaas suspirou e concentrou-se de novo na história de Qumalix, mas não encontrou nela nada de bom e por fim, depois de ter ouvido o suficiente para que a sua retirada não parecesse indelicada, levantou-se sem fazer barulho e saiu da cabana.
Desceu até ao braço de mar, agachou-se e começou a observar a água. Avistou uma águia empoleirada numa língua de areia, comendo um peixe que tinha debaixo de uma pata. Quando acabou de comer, a ave abriu as asas e elevou-se no céu até desaparecer nas nuvens.
Como Yikaas gostaria de se afastar da recordação das suas histórias com a mesma facilidade! O vento empurrou-lhe areia para o rosto, fustigando-lhe a pele como as críticas dos Caçadores Marinhos lhe tinham fustigado o coração. Era como se fosse um rapazinho, inseguro, e não só duvidava das suas próprias histórias como também começava a pensar se Kuy’aa se enganara ao fazer dele um dzuuggi. Afinal, ela era uma velha. O que sabiam as velhas? Elas não iam caçar e por conseguinte entendiam pouco de animais. Era raro irem visitar outras aldeias. O que era a vida de qualquer mulher, além da cabana de que cuidava para o marido e dos filhos que ele lhe dava? Qual a sabedoria que podia advir daí?
Yikaas ouviu um ruído na areia atrás dele, virou-se e viu que Kuy’aa o seguira até à praia. Ficou aborrecido com ela. A velha não entendia que ele precisava de estar sozinho?
- Porque estás aqui? - perguntou ele, num tom desabrido.
Ela olhou-o como se ele fosse uma criança travessa, com um olhar duro como conchas de lapas. Lentamente, abaixou-se e sentou-se na areia, ao lado dele, e o vento empurrou-lhe para a testa os poucos cabelos brancos que ela tinha.
- Vim falar contigo sobre a tua história - respondeu ela.
- Eles não entendem nada de histórias, aqueles Caçadores Marinhos - disse Yikaas.
- Tens certeza? - perguntou Kuy’aa. - É estranho que eles não entendam nada de histórias quando passaram a vida ouvindo contá-las. Devem ser muito estúpidos.
- Tenho passado a vida toda contando histórias - disse Yikaas. - Sei mais do que aqueles que só ouvem.
- E tu és tão velho... - disse ela.
- Se não tens mais nada para fazer senão ridicularizar-me, então estou perdendo o meu tempo nesta aldeia - disse ele. - Conheço o caminho para casa. Não preciso esperar que os comerciantes estejam prontos para voltar. Irei sozinho.
- Isso seria um disparate. Perderias todas as histórias de Qumalix.
Yikaas fez um ar carrancudo.
- Porque eu ouviria as histórias dela? Ela não quer ouvir as minhas.
Durante muito tempo, Kuy’aa não disse nada. Arrancou um tufo de azevém da areia e começou a cortá-lo com a unha do polegar.
- Estás enganado - disse ela por fim. - Talvez alguns dos Caçadores Marinhos não queiram te ouvir, mas Qumalix quer.
- Foi ela quem te disse?
- Qual a contadora de histórias que não quer ouvir novas histórias? As velhas confortam-nos e as novas ensinam-nos. Precisamos de todas, mas creio que há aqui uma coisa que tu não entendes. Tu e eu somos contadores de histórias, e ouvimo-las para as aprendermos. As pessoas ouvem-nas para as poderem viver. As tuas histórias de K’os são boas, mas quem quer ser como K’os? Tu queres?
- É claro que não - disse Yikaas. - K’os é uma mulher. Qual o homem que quer transformar-se numa mulher?
Ela riu.
- E se tudo fosse igual em K’os, mas ela fosse um homem?
Yikaas não foi tão rápido na resposta. Reparou que tinha um talo de azevém entalado nos dedos e soprou até ele produzir um silvo prolongado e nítido e ser levado pelo vento.
Levantou a cabeça e viu o sorriso de Kuy’aa. Sentiu-se irritado consigo próprio, com a criança que ainda vivia no seu íntimo. Deixou cair o azevém e viu-o sendo arrastado pelo vento, que o fez dançar na praia.
- Não - respondeu ele. - Eu não quereria ser K’os, mesmo que ela fosse um homem.
- Compreendes agora por que motivo é que os Caçadores Marinhos não querem ouvir a tua história?
- Mas eles têm que ouvir falar em K’os.
- Evidentemente que sim, mas há muitas maneiras de contar uma história. Aí é que reside ao mesmo tempo o problema e a alegria de ser contador de histórias. E é por isso que eu estou aqui. Para te ensinar a aperfeiçoar as tuas histórias.
- Eu sou um bom contador de histórias. Melhor do que Qumalix.
- Sim, és um bom contador de histórias - reconheceu a velha. - Não vou discutir contigo por causa disso. Mas não me peças para dizer que és melhor do que Qumalix ou outro contador de histórias qualquer. Como é que se pode comparar os contadores de histórias uns com os outros? Kuy’aa encolheu os ombros. - Somos todos diferentes. Se um contador de histórias te falar ao coração, é porque as suas histórias são as melhores para ti. É por isso que um contador de histórias é bom para uma pessoa e não para outra. Se não podes alterar isto, porque te preocupas? Mas se um contador de histórias fechar os ouvidos a outras histórias, como evoluirá?
Cada um de nós vê o mundo com olhos diferentes, e esse é o maior dom que qualquer contador de histórias pode ter, o dom da visão, e a evolução resultante da compreensão dessa visão.
- Qumalix ainda está contando histórias? - perguntou Yikaas, interrompendo Kuy’aa.
Ela mirou-o de alto a baixo e suspirou, como uma mãe na presença de um filho.
- As pessoas estavam cansadas e com fome, e portanto as histórias só recomeçam amanhã - respondeu ela. Mas espero que voltes comigo.
- Para ouvir Qumalix.
- Não. As pessoas pediram-me que contasse as histórias de Chakliux e de Aqamdax. Vens?
- Claro que vou.
O olhar satisfeito da velha fez Yikaas sorrir, que ficou à espera de ouvir mais alguma coisa. Em geral, Kuy’aa era uma mulher de muitas palavras. Mas a velha limitou-se a dizer:
- Estou com fome. Ajuda-me a levantar.
Yikaas levantou-se, ofereceu-lhe o braço e amparou-a até ela ter firmeza nos pés.
- Vens? - perguntou ela.
- Mais tarde - respondeu ele, e ficou vendo ela afastar-se na areia, cambaleando, desajeitada como um papagaio-do-mar.
A cabana feita de terra voltou a encher-se de gente. Yikaas ocupou de novo um dos lugares de honra reservados aos contadores de histórias, e, quando Kuy’aa começou a contar as suas histórias, a voz dela o fez recuar a épocas muito antigas. Mais uma vez, ficou fascinado com as histórias de Chakliux e Aqamdax. Transformou-se no homem que fora um animal doado ao Povo, e sentiu-se cheio da sabedoria e da força de Chakliux.
Já estava amanhecendo quando a velha terminou as suas histórias. A essa hora, já tinham saído umas pessoas e entrado outras, mas a cabana continuava repleta. Yikaas via a luz das histórias de Kuy’aa no rosto dos que a escutavam. Tinham ganho saber e novas idéias. Uma boa troca por uma noite de vigília.
Yikaas percebeu que Kuy’aa estava cansada e aproximou-se para que ela se apoiasse nele. Ajudou-a a subir o poste da cabana e a descer a cobertura de erva escorregadia do telhado.
- Precisa dormir, tia - disse ele.
- Como é que eu posso dormir, rapaz? - retorquiu ela. - Chakliux e Aqamdax continuam a dançar na minha cabeça. Vou andar um pouco ao vento e, quando estiver pronta, durmo.
Kuy’aa empinou o queixo para ele e estendeu a mão enrugada para acariciar a pele de lobo que debruava o capuz da parka de Yikaas.
- Volta e vai ouvir. A próxima é Qumalix. Verás que desta vez aprendes com ela. Escuta de coração aberto e depois vem dizer-me o que pensas.
A velha deu meia volta e afastou-se, e Yikaas ficou observando-a para se certificar de que o seu passo era firme. Quando ela chegou ao caminho que ia dar na praia, ele subiu ao telhado da cabana e entrou pela abertura quadrada que fazia as vezes de entrada e de chaminé.
Qumalix ocupava o lugar reservado aos contadores de histórias e contava a mesma história - a de Filha. Mas Yikaas prometera que a escutaria e sentou-se, não nos lugares destinados aos contadores de histórias, mas num nicho apertado e escuro junto do poste de trepar. Escutou-a não só como contador de histórias mas também como homem, para aprender sem preconceitos, para ouvir sem inveja.
Pouco depois, a voz dela transportou-o para outro local. Yikaas esqueceu que estava sentado numa cabana ouvindo uma mulher dos Caçadores Marinhos. Transformou-se em Filha. Transformou-se em Cabaça-de-Água, e viu o mundo de outra maneira.
Ilha de Yunaska, arquipélago das Aleútes
6447 a. C.
História de Filha
Filha aconchegou mais a pele de lontra em volta dos ombros e encolheu-se o mais que pôde. Tinham saído do barco, e ela estava contente com isso, mas, como que por artes mágicas, a velha levara-os para dentro da terra, e Filha estava assustada. Por outra magia qualquer, a mulher acendera o fogo em cima de uma pedra e nesse momento estava fazendo alguma coisa ao braço do avô com facas e pedras cortantes.
Com medo, Filha olhou para a espessa camada de terra que os cobria e perguntou a si própria se estariam mortos, ela, o avô e a velha. Assistira aos rituais fúnebres de uma das tias e vira como a tinham posto no solo. Alguém lhes oferecera rituais fúnebres e os sepultara?
O chão estava coberto de erva, cortada e espalhada. Filha enterrara um pé nela e encontrara terra dura lá por baixo, como o chão do iori do pai. Dava-lhe um certo conforto, aquele chão. Ter terra debaixo dos pés, e não um barco, nem água.
Apesar de ser pequena - um círculo de labaredas dançando em cima de uma pedra - a fogueira libertava uma boa quantidade de calor. Filha, que passara tanto tempo no barco, no frio, estremeceu com o calor. Em cima da pedra, a mulher pendurara um saco de pele cheio de água. Colocara toda a espécie de coisas naquela água, embora nenhuma delas lhe parecesse comida, a menos que as pessoas comessem pó e folhas em vez de peixe.
A mulher mergulhou no saco uma concha de osso muito parecida com aquela que a mãe de Filha usava, depois levantou a cabeça do avô e levou-lhe a concha à boca. O avô gemeu, mas bebeu, embora não tivesse aberto os olhos. De repente, engasgou-se e virou a cabeça para o lado. A velha apertou-lhe o nariz e, quando ele abriu a boca para respirar, despejou-lhe o resto do líquido pela garganta abaixo. Ele teve um vômito e engasgou-se outra vez.
Filha levantou-se de um salto e correu para junto dele, com os punhos cerrados e os dentes à mostra. A velha fitou-a, com os olhos arregalados de espanto, mas atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. Falou em palavras que Filha não entendeu, e, ao falar, serviu-se das mãos para explicar o significado das palavras. Obrigou Filha a olhar para o braço do avô, inchado, roxo e cheio de pus. Em seguida, pegou uma faca. A lâmina era tão negra e luzidia que parecia água solidificada. Refletia a luz da fogueira e parecia brilhar na mão da velha.
A velha fez um gesto para mostrar a Filha que ia usar a faca no braço infectado. Dera-lhe um pedaço de peixe para comer, que nesse momento veio à boca de Filha. A criança inclinou-se e vomitou no chão. A mulher soprou-lhe, soltou um grito de raiva e empurrou Filha para o seu lugar, junto da parede de terra. Filha encolheu-se, e a velha agachou-se junto do avô. A sua faca faiscava. Filha cobriu o rosto com as mãos e tentou tapar os ouvidos, encolhendo os ombros quando o avô começou a gritar.
Por fim, quando ele se calou, Filha afastou lentamente as mãos dos olhos. A velha tinha despido o casaco de penas e estava nua da cintura para cima. Tinha o rosto molhado, tão luzidio como a faca, e o suor caía-lhe em bica entre os seios.
Filha ganhou coragem e disse:
- Não o machuques mais.
Mas a sua voz era fraca, a terra sugava-lhe o som das palavras. A velha nem sequer desviou o olhar do que estava fazendo. Ouviu-se um estalo forte, da pedra no osso, mais um grito alterado do avô, e depois a velha pegou o braço amputado.
O sangue escorreu para a erva do chão, e Filha virou-se de costas, encostou a cabeça à parede de terra fria e desatou a chorar. O que faria o avô sem o braço? Como poderia transportar água? Como poderia pescar?
Filha deixou-se ficar encolhida junto da parede, até que a velha se aproximou e a afastou dali. A criança manteve os olhos bem fechados para afastar a imagem do sangue e da faca da sua memória. Cruzou os braços com força, com medo de que a velha resolvesse também desferir-lhe um golpe, mas ela pegou-lhe no colo e entoou uma canção numa voz quente e reconfortante.
A princípio, Filha manteve-se rígida e imóvel, mas por fim aventurou-se a virar a cabeça e a olhar para o avô. Este parecia ter adormecido, com um rosto sereno, como se estivesse tendo bons sonhos. Os olhos de Filha encheram-se de lágrimas ao pensar na tristeza dele quando acordasse e visse que o seu braço desaparecera. Se ela o conseguisse encontrar e salvar, talvez o avô conseguisse costurá-lo de novo, tal como a mãe dela costurava mangas num casaco.
Filha examinou o chão, à procura do braço. O rolo ensangüentado estava junto de uma tora cheio de cavilhas que nascia do chão e subia até um buraco quadrado aberto na terra. Por cima do buraco estava escuro. Aquela escuridão seria a noite, ou haveria mais terra por cima deles? Quando a velha os tirara do barco, fora ajudada por outras pessoas, mas uma delas embrulhara Filha num cobertor de pele e tapara-a tão bem que ela nem vira como tinham chegado a terra.
Quando a velha acabou a sua canção, deu água e mais peixe a Filha. O peixe cheirava bem, como a fumaça de um cozido, e Filha fez um esforço para comer, mas a garganta parecia muito estreita, e ela teve dificuldade em engolir. Por fim, a velha ofereceu-lhe uma tigela de caldo mas, depois do primeiro gole, Filha não bebeu mais. A mulher fez-lhe uma cama, almofadada com peles e com várias camadas de pele de lontra, que tinham um cheiro adocicado, como as peles que a mãe de Filha usava nas camas.
Tirou a tigela de madeira das mãos de Filha, disse alguma coisa que ela não entendeu e depois apontou para a cama com o queixo. Filha trepou nas peles, aninhou-se, fechou os olhos e fingiu que estava dormindo. Mas, ali deitada, começou a pensar como é que ela e o avô voltariam a costurar o braço. Se a velha tinha facas, também devia ter agulhas e linha de tendão. Filha ainda não aprendera a costurar. A mãe dissera que ela era pequena demais para tocar em agulhas. Mas ela observara a mãe e a avó, e tinha certeza de que sabia costurar. Talvez o avô também entendesse alguma coisa disso. Afinal, quando o homem andava fora na caça ou na pesca, quem é que consertava as suas roupas, se não ele próprio?
Filha pensou em agulhas e fio, em protetores para os dedos feitos de pele, em furadores e facas de costura, até que por fim tudo se misturou numa dança, como flores curvadas pelo vento. Ficou observando-os até ter a sensação de que se encontrava de novo no barco, com o mar embalando-a, e adormeceu.
Durante a noite, K’os ficou de vigília junto do velho. O homem era dos fortes. Se assim não fosse, já teria morrido há uns dias, tal era a infecção que tinha no braço. K’os pôs-lhe a mão na testa. Havia nele espíritos de doença, sem dúvida, mas o pulso estava firme.
Ainda bem que Foca, o marido de K’os, fora caçar. Caso contrário, talvez não a tivesse deixado trazer o homem nem a menina para o ulax.
Pelo menos, o chefe dos caçadores não fora tão tolo. Havia histórias de outras pessoas que haviam ido parar nas ilhas dos Primeiros Homens, vindas de costas distantes, trazidas pelos ventos das tempestades. Dizia-se que a família do próprio chefe tinha antepassados que haviam chegado assim, segundo os contadores de histórias.
O barco do velho era estranho, diferente dos que o Povo Rio construía. Nenhum dos Primeiros Homens vira um igual, mas, se se conseguisse abstrair do mau cheiro, se verificaria que havia um certo mérito no modo como estava feito. Vários caçadores tinham até comentado a sua estabilidade nas ondas do mar. Mas quem podia desperdiçar dois belos troncos para fazer um só barco, quando nele havia madeira suficiente para construir quatro ou cinco iqyax? Devia ser um homem ganancioso, aquele, concluíram os caçadores.
K’os defendera-o, falara de terras em que havia árvores suficientes para fazer duas mãos-cheias de barcos de madeira para cada caçador. Eles tinham ficado pensando no que ela dissera, mas nenhum deles fora muito além da sua ilha, e o marido dela, o único comerciante, não estava ali para tomar o seu partido. Surpreendentemente, a esposa-irmã de K’os, Tira-Olhos, o fizera. Gabara-se das muitas terras estranhas que o marido visitara, de locais em que as árvores cresciam fortes como a erva. E por fim, com as palavras de Tira-Olhos apoiando-a, K’os conseguira autorização para tentar salvar o velho.
Ela também podia ficar com a menina, disse o chefe dos caçadores. Pelo menos até Foca voltar da caça. Depois, toda a aldeia se reuniria para resolver o que fazer ao velho e à criança.
Afinal, mesmo magra e com cicatrizes, e também sem um dedo do pé, a menina não era feia, e talvez um dia pudesse ser esposa de um dos seus filhos. É claro que, nessa hora, ela já teria aprendido a falar a língua deles e teria esquecido o que sabia do seu próprio povo, onde vivia e porque construía os barcos daquela maneira, pois não atingira ainda a idade das recordações. Mas o velho, esse, sabia muito, e o chefe dos caçadores estava ansioso por saber o que ele tinha para lhes dizer. Porque o homem não era do Povo Rio, nem sequer do Povo Caribu nem do Povo da Tundra do Norte, todos aqueles povos que os Primeiros Homens conheciam ou de que tinham ouvido falar. Sim, o chefe dos caçadores e os velhos concordaram que K’os devia tentar salvá-lo, e que arranjariam espaço para Tira-Olhos e para os filhos nos seus ulax, já que Tira-Olhos partira do princípio de que era provável que aquele velho trouxesse alguma maldição. Já que ele estava doente, ela e os filhos sairiam do ulax de Foca e ficariam num local mais seguro.
Mas quem se importava que K’os fosse amaldiçoada? Afinal, ela era uma mulher do Povo Rio, velha, e apenas uma segunda esposa.
Quando o tom acinzentado do nascer do Sol expulsou a noite, K’os comeu um pedaço de peixe seco e levantou um pouco o corpo do velho para lhe dar de beber. Ele ofereceu resistência, mas por fim ela conseguiu obrigá-lo a engolir um chá de casca de salgueiro. A menina ainda estava dormindo, e K’os pensou em acordá-la, mas depois resolveu esperar. Saiu do ulax e, expondo-se à brisa da manhã, foi até à praia, onde ainda se encontrava o barco do avô, com a cauda virada para as ondas.
Com uma ripa de madeira flutuante, começou a raspar a carne e o peixe podre do interior do barco e depois voltou à aldeia e trouxe vários rapazes para a ajudarem. Aproximaram-se do barco com os dedos no nariz, e nem K’os conseguiu evitar uma careta de repugnância quando o vento empurrou o cheiro para eles.
- Preciso que me ajudem a içá-lo para fora do alcance das ondas de tempestade e para o abrigo das rochas - disse-lhes K’os, empinando o queixo na direção de uma enseada rochosa.
- Porque ficamos com ele? - perguntou um dos rapazes. - Nunca irá perder o mau cheiro.
- Talvez o velho o queira um dia - respondeu K’os.
- O meu tio diz que ele vai morrer, que o braço dele está podre.
K’os encolheu os ombros.
- Se ele morrer, morreu, mas por agora vamos içar o barco - disse ela.
Eles lamentaram-se, mas ajudaram-na, no meio de gemidos e de lamúrias, até que K’os começou a felicitá-los pela sua força. Então, deram todos o melhor do seu esforço, disputando os louvores da mulher, e por fim o barco ficou atrás das rochas. Os rapazes voltaram correndo para a aldeia, mas K’os sentou-se junto do barco, pousou a mão na madeira molhada e saciada de água e pensou no presente que o mar lhe levara - um bom barco e uma filha para criar, com mais inteligência do que criara Chakliux.
Pensou numa adivinha e sorriu. Dirigiu-a ao céu e disse ao vento que a levasse para além das nuvens, para as poucas estrelas que viviam para lá das ilhas dos Caçadores Marinhos. Era raro brilharem, essas estrelas, e quando brilhavam, mal se viam, como se ao procurarem o caminho através das nuvens esgotassem todo o seu brilho. Mas cada pequena estrela lhe lembrava a grande cúpula de céu noturno que cobria as aldeias do Povo Rio. E agora aumentava a sua esperança de voltar a viver debaixo dessas estrelas brilhantes.
- Olhem. O que vejo eu? - gritou ela para aquelas estrelas dos Primeiros Homens. - Uma filha de luz para guiar o meu iqyax.
No sonho de Filha, a lontra saltou do mar para dentro do barco. Arrancou o braço do avô e depois aproximou-se dele, com os dentes arreganhados. Filha deu um grito e acordou. Ao abrir os olhos, viu que já não estava no barco, e a recordação do que acontecera voltou. Estava no interior da terra, ela, o avô e uma velha.
Desembaraçou-se das peles da cama e pôs-se de pé, mas o movimento do barco do avô parecia fazer parte dos seus braços e pernas, e ao andar foi obrigada a amparar-se nas paredes de terra para não perder o equilíbrio.
Então viu o avô. Estava deitado onde a velha o deixara, em cima de esteiras de erva um pouco parecidas com as do seu povo. Do braço esquerdo do avô restava apenas um pequeno toco, pouco maior do que a mão de uma criança. Filha lembrou-se do molho que vira junto do poste e das suas esperanças de costurar o braço, mas, ao aproximar-se do poste, viu que o molho desaparecera e que restava apenas uma mancha de sangue seco no chão de erva. A velha também desaparecera, e Filha concluiu que ela devia ter levado o braço do avô.
A perda daquele braço provocou uma dor no peito de Filha, e quando ela se agachou ao lado do avô, cantou uma canção que a mãe lhe ensinara. Era uma canção para golpes provocados pelas ervas e para joelhos esfolados, talvez não muito apropriada para o avô, mas era a única que Filha conhecia. Pôs-lhe a mão na testa e ficou admirada ao ver que ele tinha a pele fria.
Seria por culpa do braço que ele estava doente? Se assim fosse, talvez a velha tivesse razão ao cortá-lo. Pelo menos, o avô estava vivo. Filha olhou para os seus próprios braços, tão pequenos e magros que pareciam pouco mais do que ossos. Pôs a mão esquerda atrás das costas e imaginou que só tinha um braço.
Mesmo assim, conseguia comer, pensou. Conseguia pegar as coisas. O avô teria dificuldade em transportar objetos pesados, mas ela tinha dois bons braços. Levaria o que ele não pudesse levar.
Cabaça-de-Água dormiu durante cinco dias, e, quando abriu os olhos na escuridão do ulax, os seus primeiros pensamentos foram de morte. Ele morrera, evidentemente, e tinham-no posto debaixo da terra. Tinham-lhe concedido mais honrarias do que ele merecia, porque a sua sepultura era grande. Tentou lembrar-se do que poderia ter feito para merecer tal sepultura, mas não se recordou de nenhum ato de bravura ou de sabedoria. Talvez ele tivesse sido morto quando o Povo do Deus-Urso atacara a sua aldeia, e todos os que tinham morrido houvessem recebido honras fúnebres. Mas depois lembrou-se dos muitos dias passados no barco e pensou em Filha.
De repente, na escuridão, por cima dele, julgou ver costelas. Ossos eram, disso ele tinha certeza. Lembrou-se da sua luta com a lontra-marinha; lembrou-se do braço inchado e das dores que se tinham tornado insuportáveis, levando-o a refugiar-se num sono em que o seu espírito vagueava.
Um dragão-marinho, sem dúvida, encontrara-os e engolira-os inteiros enquanto Cabaça-de-Água dormia. Agora ele estava na barriga do monstro, pois nunca vira uma sepultura feita de vigas de osso. Onde estava Filha? Pensou na menina e sentiu um nó na garganta. Porque o levara a covardia a adormecer? com certeza era suficientemente homem para suportar a dor, e, se tivesse ficado acordado, talvez houvesse conseguido salvar os dois das garras do dragão.
Ainda lhe doía o braço, umas dores que começavam no ombro e iam até o pulso, mas alguns dos espíritos que tinham entrado com os dentes da lontra haviam saído, porque a dor era apenas um incômodo, nada comparado com o que fora. Tentou sentar-se, mas sentiu a cabeça rodar e deixou-se cair outra vez no fundo da barriga do dragão. Ali ficou durante algum tempo, entregue a pensamentos que eram quase sonhos, mas por fim voltou a tentar. Dessa vez conseguiu, embora sentisse uma dor do topo do crânio até aos dentes, que o obrigou a fechar a boca e a morder a língua. Com a boca com gosto de sangue, engoliu e engasgou-se. Sentiu-se inseguro, como uma criança que mal aprendera a andar. Inclinou-se para um lado e conseguiu manter o equilíbrio antes de cair, mas o braço não reagiu. Olhou para baixo e, horrorizado com o que viu, deu um grito.
Caiu, machucando com o peso do corpo o que restava do braço, e o seu segundo grito foi de dor.
Então, Filha apareceu a seu lado e acariciou-lhe o rosto com as mãozinhas frias. Ao lado dela estava uma mulher.
O primeiro pensamento do velho foi para a sua esposa favorita, uma boa mulher, que morrera há muito. Mas como podia ser? Ela não fora engolida por nenhum dragão-marinho. Morrera asfixiada.
Quando a mulher o ajudou e o deitou de costas é que ele lhe viu o rosto e percebeu que ela nem sequer era da sua aldeia. Tinha os olhos muito arredondados, o rosto afilado e o nariz muito grande.
Filha estava choramingando e, sem pensar, Cabaça-de-Água estendeu-lhe a mão e sentiu-se grato ao ver que o braço e a mão direita estavam inteiros. Mas como poderia transportar água sem o braço esquerdo?
”Transportar água”, pensou, troçando da sua própria loucura. Ele estava morto! Os mortos precisavam de água?
- Ela cortou-o, avô - disse-lhe Filha. - Ela cortou-o. Eu não o encontro.
Havia medo na voz da menina, mas Cabaça-de-Água viu algo mais. Ela parecia mais forte, com os olhos mais brilhantes e o rosto mais cheio.
- Onde estamos? - perguntou ele.
- Numa aldeia pequena - respondeu ela, e apontou para as grandes costelas que se estendiam como vigas sobre as suas cabeças. - Dentro do chão.
A criança enfiou um dedo na boca, chupou-o, voltou a tirá-lo e acrescentou:
- Tu doente. - Filha levantou a cabeça e olhou para a mulher. - Ela deu comida a ti e a mim. Peixe bom. A mulher proferiu algumas palavras em voz baixa. Parecia que tinha alguma coisa na garganta, e as palavras roçavam-lhe nos dentes com sons que mais pareciam roncos do que fala. Seria ela um Deus-Urso?
Não, o velho não acreditava que fosse. Tinha a pele escura demais e o cabelo preto e liso. Cabaça-de-Água percebeu o cheiro de fumaça e o sabor de óleo de peixe sempre que inspirava. A mulher devia estar queimando-o. Aquela fogueira, ateada em algum lugar atrás dele, permitiu-lhe ver os cabelos grisalhos. Ela devia ser mais velha do que parecia, e apesar de não ter aquilo a que o Povo Barco chamaria beleza - tinha umas feições pronunciadas demais para uma mulher - havia alguma coisa no seu rosto que chamou a atenção de Cabaça-de-Água.
- Nós estamos no interior da terra? - perguntou ele a Filha.
A criança estava chupando o dedo. A mulher, de costas para eles, fazia alguma coisa que bloqueava uma parte da luz.
Filha fez um sinal afirmativo.
- Podes ir lá fora? Podes sair daqui?
Filha virou-se e apontou para um toro enorme, de madeira flutuante, espetado no chão e que chegava ao teto. Cabaça-de-Água percebeu que ele atravessava um orifício quadrado e continuava em direção à escuridão. Via mal, mas julgou distinguir o brilho das estrelas dentro desse orifício.
- É de noite? - perguntou ele.
- Noite - respondeu Filha, sem tirar os dedos da boca. - Vamos lá fora de manhã. Apanhar peixe.
- Há mais pessoas?
De súbito, os olhos de Filha encheram-se de lágrimas.
- Não a minha mamã - respondeu ela com uma voz quase inaudível.
- Há outras mamãs?
- Outras mamãs. E bebês - respondeu ela.
- E homens? Caçadores? Pescadores?
- Homens - disse ela. - Muitos homens.
A princípio, as respostas da criança deixaram-no aliviado. Eles não tinham morrido. O barco fora parar numa aldeia. Mas estavam longe da sua ilha, e este povo, se todos falavam como a mulher que estava tratando dele, não conhecia a língua do Povo Barco.
Naquela aldeia, ele e Filha não teriam qualquer préstimo. Eram mais duas bocas para alimentar: uma menina que ainda estava muito longe da maternidade e um velho, fraco e doente, e só com um braço.
Ao pensar nisto, o cotovelo começou a doer-lhe, não o do braço bom, mas o cotovelo que ele já não tinha. Iria ele assombrá-lo, esse braço, acusá-lo por ele ter cometido a loucura de tentar apanhar uma lontra? Lhe provocaria dores que nada conseguiria aliviar? Quando ele era jovem e a caça ou a pesca lhe faziam doer os braços, a mulher esfregava-lhe os músculos, devolvia-lhe a energia à carne com as suas próprias mãos, mas como podia alguém esfregar o que não existia? Seria um homem conhecedor de mezinhas capaz de cortar a pele morta para deixar sair os espíritos da dor? Seria um sacerdote que soubesse rezar capaz de cantar a um braço que estava enterrado ou queimado?
Nesse momento, a mulher aproximou-se dele, passou-lhe uma mão por baixo da cabeça e levantou-o com cuidado para que ele pudesse beber de uma tigela de madeira. Cabaça-de-Água esperava que fosse água, mas era um chá quente que tinha gosto de terra e de plantas e que lhe acalmou a garganta. O velho pegou a mão de Filha e puxou-a para o seu colo. Ela aninhou-se nele e a mulher trouxe uma espécie de camisa de dormir com que cobriu a menina.
”Há coisas piores do que estar quente e seco e com uma mulher tratando de mim”, pensou Cabaça-de-Água. Havia coisas piores do que Filha estar salva. Então, com o calor de Filha a seu lado e a barriga cheia de chá, Cabaça-de-Água caiu num sono suave.
Quando acordou de novo, a luz entrava pelo orifício quadrado no telhado do iori de terra. A mulher e Filha estavam costurando, e, para surpresa de Cabaça-de-Água, quando a mulher falou, Filha respondeu. Umas vezes, a menina falava na língua do Povo Barco, mas outras parecia imitar a fala da mulher.
Durante quanto tempo estivera ele dormindo? Durante uma volta da Lua? Durante as estações do ano? Ou Filha era ainda tão pequena que as palavras lhe saíam com facilidade, e ela entendia todas as línguas?
Dessa vez, quando Cabaça-de-Água tentou sentar-se, o mundo imobilizou-se, e aquela ligeira vertigem que ele sentira desapareceu. Encostou-se ao braço direito e pensou em como dizer à mulher que precisava de ir verter águas, que tinha a bexiga quase rebentando.
Quando se certificou de que conseguia equilibrar-se, afastou o cobertor que o cobria e viu que estava nu. Inclinou-se para diante para pôr o cobertor à volta da cintura e tentou ajoelhar-se. A mulher desviou a atenção do que estava costurando, soprou e correu para ajudá-lo. Passou-lhe o braço pelos ombros e ajudou-o a levantar-se, devagarinho. O mundo escureceu e ficou reduzido a um pontinho de luz, mas o velho cerrou os dentes e conseguiu manter-se de pé até a escuridão desaparecer.
Apontou para o pênis, que estava coberto pela camisa de dormir e disse ”urina” na língua do Povo Barco, mas a mulher não percebeu. Então, viu Filha apontando para um rego cavado no local em que o chão se cruzava com a parede de terra. Enterrada nesse rego estava uma grande tina de madeira. A mulher ajudou-o a andar, acompanhou-o passo a passo até ele se aproximar da tina. Pelo cheiro, Cabaça-de-Água percebeu que havia nela urina armazenada.
Na sua aldeia, as mulheres também conservavam a urina. Quando ela fermentava e ganhava um odor que queimava as narinas, era boa para muitas coisas - limpar gordura ou óleo, conservar peles, matar os bolores que faziam apodrecer as esteiras de erva durante as épocas de chuva. Mas as mulheres do Povo Barco não conservavam a urina dentro de casa.
Cabaça-de-Água estava habituado a ter privacidade quando fazia as suas necessidades, e apesar de a mulher ter virado a cabeça para o lado, ele demorou um certo tempo para urinar. Quando acabou, ela levou-o de novo para a cama e ajudou-o a sentar-se.
Ofereceu-lhe uma tigela de caldo e ele bebeu-o com avidez, admirado por ter fome. Depois de ele beber uma segunda tigela, a mulher ajoelhou-se atrás dele, segurou-lhe as costas com os joelhos e começou a massagear-lhe o pescoço, com a pressão das mãos dela, até a dor do seu braço fantasma diminuiu.
A mulher deitou-o na cama devagarinho e acariciou-lhe o cabelo com os dedos até que, por fim, ele adormeceu, e dessa vez teve bons sonhos.
Quando Foca regressou da caça, os Primeiros Homens reuniram-se no ulax do chefe dos caçadores. Embora K’os costumasse sentar-se no lugar menos importante - com as crianças, longe da lanterna de óleo de foca -, dessa vez sentou-se ao lado do marido, perto do chefe, da sua mulher gorda e da sua filha feia. K’os tinha um porte imponente e uma aparência robusta. Apesar de ser velha, a maioria dos homens preferia ir para a cama com ela do que com a filha do chefe. K’os sorriu ao pensar no dia em que ela e o marido, Foca, tinham chegado àquela aldeia.
Os homens, ao vê-la ao longe, julgavam que Foca trouxera uma mulher jovem e bela. Só quando ambos se aproximaram é que eles perceberam que ela era velha como uma avó.
Embora não compreendesse a língua deles, K’os ouviu o tom das suas palavras e percebeu que eles estavam ridicularizando Foca. Na sua mente, ela dera voz aos gracejos deles. Porque aceitara Foca uma mulher tão velha? Um caçador jovem não podia esperar que uma velha gerasse filhos.
Foca reagira com gritos de irritação e mostrara-lhes as cicatrizes deixadas pelo seu ferimento. Enquanto falava, apontou para o seu iqyax reconstruído e muitas vezes para a perna, e K’os compreendera o que ele estava dizendo. Em seguida, puxou-a para si, enfiou-lhe a mão no decote da parka, ignorando as gargalhadas súbitas dos jovens, e tirou a bolsa de pele de lontra-do-rio, onde K’os guardava as suas mezinhas. Então, eles calaram-se, aqueles jovens, silenciados pelo poder que ela tinha naquela bolsa, e a troça acabou.
Agora, na cabana do chefe dos caçadores, ela levou a mão ao peito, onde trazia a bolsa, escura e macia, pendurada sobre os seios. Seguindo o hábito dos Primeiros Homens, K’os despira o sax ao entrar no ulax do chefe dos caçadores.
Não o fazer seria uma ofensa, um sinal de que a cabana não estava suficientemente aquecida para ela.
Sim, havia poder naquela bolsa de pele de lontra, mas K’os nem se atrevia a pensar em quantos pacotes de cada medicamentos que ainda lhe restavam, e como eram poucas as plantas de que ela precisava que cresciam naquela ilha dos Caçadores Marinhos! Estava familiarizando-se com a vegetação da ilha, mas as mulheres mostravam-se relutantes em ensiná-la, e nenhuma delas era muito versada em plantas medicinais. K’os aprendera a fazer um veneno com um dos jovens caçadores, um presente em troca de uma tarde passada na cama dela. A planta era mortífera, e K’os apanhara algumas e guardara-as em pacotinhos marcados com fio vermelho e atados com quatro nós. Era uma planta verde, alta, de caule forte, de cujas raízes se fazia um bom ungüento para as dores musculares, e havia outras que ela já conhecia milefólio, erva-de-fogo e salgueiro-rasteiro -, mas preocupava-a que os seus poderes curativos diminuíssem à medida que ela ia gastando as suas reservas. Depois, o que faria, uma velha do Povo Rio, e ainda por cima segunda esposa? Era preferível ser segunda esposa do que escrava, pensou K’os. Foca aparecera numa boa hora, quando os seus dias com os Caçadores de Morsas estavam contados. Fora terrível verificar que o xamã Yehl, dos Morsas, não a quisera. Mesmo depois de ela se esgueirar da cabana das escravas, de se enfiar no calor da cama dele e de o acordar com carícias - fizesse ela o que fizesse com as mãos, a língua ou a boca - ele não demonstrara desejo por ela.
Quando já estava mais familiarizada com a língua do Povo Morsa, ouvia os cochichos das esposas de Yehl. O homem afastava-as todas e não recebera nenhuma mulher na sua cama desde que K’os fora viver na aldeia. K’os ouviu contar as histórias de Aqamdax, Chakliux e Sok, e o que acontecera ao pai de Yehl por causa deles, e por fim compreendeu que a reação de Yehl não tinha qualquer relação com os seus desejos, mas sim com o medo que ele tinha do Povo Rio.
Se um homem não conseguisse manter o seu poder sobre uma mulher, como é que os espíritos continuariam a respeitá-lo? Quando é que as pessoas acabariam por rejeitar Yehl como xamã? Quando é que Yehl concluiria que K’os o amaldiçoara? Acabaria por matá-la, sem dúvida. Que esperança podia ela ter? Quem estaria disposto a defender uma escrava?
K’os escolheu uma noite de lua cheia para abandonar a Aldeia dos Caçadores de Morsas e caminhou durante muitos dias em direção à Praia dos Comerciantes. Para onde ela iria? Não para a aldeia do Povo Rio. Não para junto do Povo Quatro Rios. Aí, só a morte a aguardava. O que lhe restava senão ir para junto dos Caçadores Marinhos? Aí, teria a oportunidade de conquistar algum poder. Talvez encontrasse um xamã que recorresse à sua própria magia para destruir aqueles que tinham tentado destruí-la.
K’os andava pela praia à procura de madeira flutuante quando ouviu o cântico fúnebre de Foca, que se sobrepunha ao fragor das ondas. Seguira aquele cântico, subindo uma encosta de xisto que ia dar a uma gruta cavada num rochedo, não muito longe da praia.
Um espírito de doença infiltrara-se no corpo de Foca, através de um golpe que lhe abrira a perna até ao osso. Ela dera-lhe remédios, costurara-lhe a ferida, alimentara-lhe a fogueira e levara-lhe água e comida. Em algum momento durante o longo período da sua doença, ele começara a chamar-lhe esposa e, quando Foca já estava bom, ela mostrara-lhe que a pele que cobria o iqyax dele salvara uma boa parte da sua carcaça. Reconstruíram-no juntos. Foca refez a carcaça e K’os consertou a cobertura, e quando ele se preparava para regressar à aldeia do seu povo - uma longa viagem de muitos dias pedira a K’os que o acompanhasse.
Até então, fora ela o elemento forte, o guerreiro, o xamã, mas, quando chegaram à aldeia dos Primeiros Homens, ela precisava muito mais dele do que ele dela. Ainda não conhecia bem a língua dos Primeiros Homens, um povo pouco falador e que passava dias e dias sem dizer nada, os homens observando o mar em busca de focas, leões-marinhos e peixe, e as mulheres trabalhando em silêncio.
K’os sentia-se desesperada com as poucas plantas que havia na ilha, e teve que esperar pelo fim de um longo Inverno para começar a colher aquelas que conhecia ou a aprender as propriedades daquelas que nunca vira. Usava a sua reserva de remédios com parcimônia e esperava que houvesse ossos fraturados e deslocados, mas os espíritos tinham-na amaldiçoado. Os Primeiros Homens eram um povo saudável. Até dando à luz, as mulheres raramente precisavam dos seus conselhos. Desde que ela chegara à aldeia, todos os bebês tinham nascido de cabeça e cara para baixo, como deviam nascer.
Os Primeiros Homens eram curtos de pernas e tinham os ossos mais grossos do que o Povo Rio; as cabeças eram mais redondas e os narizes mais pequenos. As mulheres usavam os cabelos compridos e bem presos na nuca ou junto das orelhas. com uma agulha e fibras de carvão, desenhavam linhas tracejadas na face e triângulos nas coxas. Os homens marcavam o queixo com longas linhas que iam da boca até o queixo e usavam alfinetes de marfim enfiados no septo do nariz. Também perfuravam a pele no canto da boca, onde colocavam círculos de marfim, às vezes quase tão grandes como dentes de morsa.
A princípio, os seus rostos assim marcados pareceram estranhos a K’os, mas agora ela conseguia perceber a beleza nas marcas das mulheres e a ferocidade nas dos homens. E, se por acaso via o reflexo do seu próprio rosto na superfície imóvel de uma poça de água, parecia-lhe um rosto de criança, ainda incompleto.
Embora ocupasse o último lugar na hierarquia das mulheres da aldeia, não era escrava, e Foca tratava-a bem. Porém, com a chegada do velho e da menina, o seu estatuto ganhara importância, e K’os sentia que tanto os homens quanto as mulheres a observavam com menos receio, como se estivessem à espera de que ela fosse alvo de alguma maldição ou até de uma bênção. Afinal, se o chefe dos caçadores trazia nas veias o sangue daquele povo, como podia ele ser mau? E se os remédios de K’os lhes tinham salvo a vida, era porque também ela tinha mais poder do que eles julgavam.
K’os ouviu com atenção os Primeiros Homens, que discutiam o que fazer. Pareciam estar de acordo sobre a menina, que devia crescer entre eles, embora a maioria das mulheres receasse levá-la para os seus ulax. Por fim, o chefe dos caçadores dirigiu-se a Foca e perguntou-lhe se ele queria ficar com ela. Foca encolheu os ombros, olhou para K’os e, quando esta fez um sinal afirmativo, ele ignorou a raiva de Tira-Olhos e concordou.
- Como escrava, para a minha esposa Velha - respondeu ele.
Então, K’os fez aquilo que nenhuma segunda esposa devia fazer: falou sem pedir licença ao marido.
- Eu aceito-a como filha - disse ela.
Quando Foca olhou para ela, boquiaberto e de olhos arregalados de surpresa, ela inclinou a cabeça com um gesto de deferência, mas apressou-se a acrescentar:
- Preciso de alguém que me ajude nas meus remédios. Estou velha, e os poderes curativos que tenho são do Povo Rio. Estes poderes têm sido benéficos na vossa aldeia. - K’os apontou para a perna do marido e olhou para o filho mais novo do chefe dos caçadores, que fizera um golpe na face ao cair de um rochedo. - Mas quem pode dizer o que acontecerá aos vossos filhos se eu tentar passar este conhecimento a um deles? Os remédios do Povo Rio podem amaldiçoá-los. É melhor aproveitar esta menina.
Um murmúrio de concordância percorreu os presentes, e Foca sorriu a K’os. Tira-Olhos disfarçou a sua raiva com um aceno de cabeça rápido, e K’os voltou a fazer uma inclinação em sinal de respeito.
- E o velho? - perguntou o chefe dos caçadores. Desencadeou-se uma discussão entre os caçadores. Uns queriam matá-lo, outros afirmavam que ele era uma dádiva do mar. Por fim, Foca usou a palavra. Apesar de ser jovem, era conhecido pela sua sensatez, e até os velhos deixaram de resmungar para ouvi-lo.
- A minha mulher diz que o mais provável é que ele morra. Ela já lhe amputou o braço, e ele está velho e fraco. Porque correr o risco de sermos amaldiçoados se tomarmos essa decisão? Porque não esperar para ver o que acontece? Se ele for uma dádiva do mar, o mar lhe dará força para viver. Se não for, morrerá, porque um homem velho e doente como ele não terá forças para sobreviver.
Assim, em consciência, decidiram que tanto o homem quanto a criança viveriam, que seriam aceites como dádivas. K’os disfarçou a alegria que sentiu, e nesse mesmo dia começou a ensinar a Filha os muitos métodos da medicina do Povo Rio.
Baía de Herendeen, península do Alasca
602 a. C.
A história foi curta, mas depois das longas histórias de Kuy’aa sobre Chakliux e Aqamdax, Yikaas percebeu o que levara Qumalix a ser breve. As pessoas começaram a sair do ulax, e a maioria parava para falar com Qumalix.
Yikaas abriu caminho através das pessoas. Que melhor maneira de compreender estes Caçadores Marinhos do que ficar ali sozinho durante algum tempo, depois de todos saírem? Então, poderia tentar ver o mundo como eles, confinado pelas paredes de terra de uma das suas cabanas.
Instalou-se na escuridão, atrás do poste de saída, e amparou-se a ele. Depois de perder a casca durante a longa viagem por mar, aquele tronco devia ter as suas histórias para contar. Talvez estivesse ansioso por isso, já que todos os dias tinha que ouvir histórias saídas de outras bocas. Mas como a voz de uma árvore estava nas suas folhas, talvez o tronco se sentisse satisfeito por manter o silêncio e preferisse escutar em vez de falar.
Yikaas pensou nos Caçadores Marinhos, e perguntou a si próprio como seria viver tão perto do mar, da água que era ao mesmo tempo fronteira e passagem.
Pensou nas histórias de Qumalix. Eram boas, mas não tão agradáveis como as de Kuy’aa. Yikaas fechou os olhos e tentou imaginar a velha na sua juventude. Como seria ela?
Seria uma contadora de histórias tão boa como Qumalix era agora? Melhor, pensou ele. Ela devia ter sido melhor. Se não, como poderia ser tão boa ainda, velha como era? A sua pele, que parecia fina como a tripa de leão-marinho amaciada pelos nós dos dedos de uma mulher, estava agora cheia de rugas, e a sua voz estava tão marcada pela idade como o seu rosto.
- Queres água?
A voz sobressaltou Yikaas, que abriu os olhos e viu Qumalix na sua frente, já não como contadora de histórias mas apenas como mulher, oferecendo-lhe um odre de pele de foca com uma rolha de marfim.
Yikaas pegou o odre, tirou a rolha e bebeu. A água era boa, tão fresca que ainda mal apanhara o gosto da bexiga. Yikaas devolveu-a a Qumalix, que também bebeu. Em seguida, tapou o odre e pendurou-o num gancho. Acocorou-se junto dele e afastou com a mão a fumaça da lanterna de óleo que se elevava ao longo do poste e saía pelo orifício quadrado no teto do ulax.
- Vais embora? - perguntou ela, apesar de ele não se ter levantado do seu lugar atrás do poste.
Yikaas estava em vantagem, porque ela sentara-se à luz do orifício de entrada, enquanto ele estava às escuras.
- Não. E tu vais embora? - perguntou ele.
Ela olhou para o poste, como se falasse com ele e não com Yikaas, como se ele fosse um respeitável contador de histórias.
- Às vezes, é bom estarmos sentados sozinhos neste ulax - disse ela. - Na minha aldeia, não temos nenhum ulax só para contar histórias. Calculo que aqui, na Praia dos Comerciantes, eles precisem de um local destes, porque há muita gente que vem aqui visitá-los na Primavera e no Verão.
Qumalix calou-se, como se estivesse à espera de que ele respondesse, mas como ela estava falando com o poste, Yikaas não o fez. O poste que dissesse o que lhe apetecesse, já que era contador de histórias.
- O silêncio me dá idéias - prosseguiu ela. - Às vezes, quando o ulax está cheio de gente, até me parece que ouço os pensamentos das pessoas na minha cabeça e esqueço-me do que ia dizendo.
As palavras dela surpreenderam-no, de tal modo eram o eco dos seus próprios pensamentos.
- É por isso que eu estou aqui - explicou ele. - Para compreender melhor o teu povo. Esperava apanhar alguns dos pensamentos e das idéias que eles deixaram.
Qumalix voltou a agitar a mão diante do rosto, tossiu e afastou-se da chama da lanterna.
- Esta lanterna devia estar cheia de óleo de baleia, disse ela. - Dá uma luz mais nítida, sobretudo o óleo das baleias com dentes.
Yikaas ergueu as sobrancelhas e olhou para ela. Não entendia nada de baleias nem de lanternas de óleo de baleia, e ao perceber que havia muitas diferenças entre eles teve uma súbita sensação de desconforto.
- As fogueiras de lenha cheiram melhor - disse ele.
- Às vezes, fazemos fogueiras na praia - disse ela. Cheiram bem, mas em geral guardamos a madeira que vem do mar para construir os nossos ulax e para as carcaças dos iqyax dos homens.
- Não há árvores na tua ilha? - perguntou ele. Kuy’aa falara-lhe nisso, mas ele não conseguia imaginar tal coisa. Como é que as pessoas viviam sem árvores?
- Só salgueiros, mas não são iguais aos salgueiros daqui. - Qumalix aproximou a mão do chão. - Não crescem mais do que isto, ao longo do solo, mas usamos a casca para fazer remédios, e as velhas dizem que, há muito tempo, lhes cortavam as raízes para fazerem cestos. Os cestos de erva são melhores.
Yikaas limitou-se a responder com um grunhido. Porque um homem pensaria em cestos? Qumalix levantou-se e disse:
- Se quiseres ficar aqui sozinho, eu vou embora... Mas Yikaas agarrou-a pelo pulso e puxou-a para o seu lado.
- Na próxima sessão de histórias, vais falar de Filha e do modo como K’os a criou?
- Ninguém quer ouvir falar nisso - respondeu Qumalix.
- Eu quero.
- Os Primeiros Homens já conhecem essa história, que não é muito empolgante. As melhores histórias de Filha e de K’os vêm depois, quando Filha é uma mulher e K’os é tão velha que só a maldade que tem no coração é que lhe mantém o espírito ligado ao corpo.
- Se eu ouvir contar como é que K’os criou Filha, talvez compreenda melhor a inimizade existente entre K’os e Chakliux.
Qumalix atirou a cabeça para trás, como se examinasse as vigas do ulax. Era agradável de ver, depois de um homem se habituar às mulheres dos Caçadores Marinhos, de rosto arredondado, nariz pequeno e face tatuada.
- O que eu posso te dizer? - perguntou ela, dirigindo-se mais a si própria do que a Yikaas. - Cabaça-de-Água, apesar de não ser um homem dado a pensamentos novos e sábios, era bom recordando-se do saber dos outros. Assim que aprendeu a língua dos Primeiros Homens... e a aprendizagem durou mais de um ano, começou a partilhar as histórias e os conhecimentos que ouvira na aldeia do Povo Barco. Para os Primeiros Homens, tratava-se de novos conhecimentos, e Cabaça-de-Água conquistou um lugar junto dos velhos e, apesar de só ter um braço, começou a sentir-se mais inteiro do que na sua juventude.
K’os deu um novo nome a Filha. Chamou-lhe Uutuk, que significa ouriço-do-mar, porque a encontrou na praia, como se ela fosse uma dádiva das marés. K’os ensinou a Uutuk as propriedades medicinais das plantas, ensinou-a a consertar ossos, a arrancar dentes e a aliviar febres. Filha cresceu com a sua própria beleza, mas K’os planejou tudo e fez o possível por levá-la por maus caminhos.
- E Filha tornou-se má, como K’os.
- Oh, eu não diria isso.
Qumalix chupou o lábio inferior, como se estivesse pensando em alguma coisa, e por fim acrescentou:
- Há uma história sobre Filha que talvez devas saber. Posso contar-te agora, se quiseres, aqui neste ulax, ou podemos ir para um lugar onde vejamos a praia, a água e o céu.
Yikaas olhou para os recantos escuros do ulax, para as paredes de terra que o aqueciam e protegiam do vento, mas de repente quis ir lá para fora. Vestiu a sua parka de pele de caribu e esperou que Qumalix vestisse o sax. Este era feito de muitas peles de corvo-marinho, e as penas eram negras e luzidias. Qumalix não era casada, e por isso usava o cabelo comprido solto e não atado na nuca, mas, quando vestiu o sax, enfiou os cabelos no decote.
Levou-o para um local abrigado, num vale entre duas colinas, que não se via da aldeia. Sentaram-se atrás de um morro relvado, e a vegetação protegia-os de tal modo do vento que este não levava as suas palavras.
Quando Qumalix começou a falar, ainda era de dia; as nuvens estendiam-se pelo céu em faixas, como os fios dos contadores de histórias, prontos para dedos rápidos que lhes davam a forma de pessoas, pássaros e outros animais. Yikaas viu o vento transformar as faixas de nuvens em imagens, e, quando o dia deu lugar à noite, até as estrelas pareciam mais próximas.
Ilha de Yunaska, arquipélago das Aleútes
6440 a. C.
História de Filha
- Não podes esperar que elas gostem de ti, Uutuk, disse K’os. - Olha para ti. Ainda és uma menina, mas sabes mais do que a maioria das mulheres. Nem as avós delas sabem utilizar as plantas como tu. Os teus dedos são rápidos manejando a agulha, e a tua voz é a de uma contadora de histórias. Quando as jovens estão junto de ti, sentem-se crianças. Podes acusá-las por te excluírem das suas brincadeiras?
As palavras de K’os soaram bem aos ouvidos de Filha e reconciliaram-na com o mundo. K’os deu-lhe uma tigela de chá de raiz-amarela e disse:
- Vai levar isto ao teu avô. Lhe dará algumas forças.
Durante o Inverno, Cabaça-de-Água enfraquecera. Muitas vezes, nem tinha forças para subir ao topo do ulax, para apanhar ar e conversar com os velhos. Estes disseram a Filha que sentiam a falta da sabedoria do avô. Que outro homem sabia tanto da vida e dava os seus conselhos com tanta ternura?
O velho tirou a tigela das mãos de Filha, que susteve o fôlego até ele conseguir levá-la à boca. Quando ele acabou de beber, ela debruçou-se para pegar a tigela e ele disse-lhe alguma coisa ao ouvido na língua que só eles partilhavam.
- Tenho tido uma vida boa, Filha, mas estou velho e daqui a pouco tempo deixo-te para regressar ao nosso povo. Não chores por mim. Tenho sido respeitado como um velho. Foca e K’os têm sido generosos para mim, e tu tens sido uma filha maravilhosa. Nada mais tenho a pedir.
- Podias pedir mais um Verão - disse Filha, num acesso de egoísmo, querendo que o avô vivesse, apesar de ele estar pronto para morrer.
Falavam sempre em voz baixa para K’os não os ouvir. Ela tentara aprender a língua do Povo Barco, mas nunca conseguia lembrar-se de mais do que um punhado de palavras. Nos últimos anos, irritava-se sempre que ouvia Filha e Cabaça-de-Água falando nessa língua, e agora eles só a falavam quando estavam sós. Mas K’os tinha os seus próprios métodos de vingança. Quando Cabaça-de-Água fazia alguma coisa que não lhe agradava, ela falava com Filha na língua do Povo Rio, que ele não entendia. Às vezes, K’os passava vários dias sem falar a língua dos Primeiros Homens. Mas Cabaça-de-Água encolhia os ombros perante a obstinação da mulher e ignorava a sua fúria.
De um modo geral, eram felizes. Há pouco tempo, Foca construíra outro ulax para Tira-Olhos. Era uma mulher forte, abençoada com muitos filhos - um novo bebê quase de dois em dois anos. Agora eram oito pessoas, demais para o pequeno ulax onde viviam Filha, K’os e o avô. Mas K’os continuava a ser esposa de Foca, e, graças ao que ele negociava e caçava, havia sempre comida que chegasse. Embora Filha se sentisse grata por ter K’os e o avô, havia momentos em que desejava ser mais parecida com as outras meninas da aldeia, com tios, tias e primos que viviam juntos. É claro que tinham a família de Foca, Tira-Olhos e os filhos, mas Filha percebera que isso não era o mesmo que viver com as pessoas do seu sangue. K’os honrara o avô com um nome do Povo Rio, ”Taadzi”, que, conforme ela explicou, tinha a ver com a armadilha mortal que os homens do Povo Rio usavam para capturar um animal chamado lince.
O lince era conhecido por ser dotado de grandes poderes espirituais.
Filha nunca vira um lince, mas K’os tinha a pele castanha e amarela de um destes animais, que lhe fora oferecida por Foca depois de uma das suas viagens de negócios. Filha examinara essa pele, acariciara o seu pelo comprido e macio e tentara formar uma imagem na sua mente do que seria um lince. Por fim, concluiu que devia ser uma espécie de javali - um animal que ela recordava dos tempos da sua infância com o Povo Barco - embora com um pelo mais macio e bonito.
Na opinião de Filha, K’os era uma mulher generosa. Fazia roupas para os velhos e repartia a carne em abundância que ofereciam ao avô, como prova de apreço pela sua sabedoria. Nos dias em que o avô estava lá fora conversando com os velhos e Foca ia à caça, K’os partilhava até a sua cama, porque estava disposta a dar a um homem aquilo de que ele precisava, mesmo que não fosse o seu marido.
- Um dia serás tu a dar a mesma alegria, Uutuk - dizia-lhe K’os muitas vezes, e depois explicava-lhe como é que os homens gostavam que lhes tocassem e como é que uma mulher conseguia o que queria, trocando o prazer por muitas coisas.
Quando Filha estava com as outras meninas da aldeia, às vezes falavam do que os homens faziam com as mulheres. Nenhuma das meninas entrara ainda no seu período de sangue lunar, e nenhuma dormira com um homem, por isso sabiam apenas o que conseguiam ver ou ouvir. Durante essas conversas entremeadas de risinhos e de disparates, Filha fingia ser como elas, saber pouco, e não lhes contava nada do que K’os lhe explicava, porque em criança aprendera que os costumes da aldeia não eram os costumes de K’os, e os dela nem sempre eram aceitos. Era preferível ficar calada; era preferível guardar o que sabia para si, porque, depois de as palavras lhe saírem da boca, ela nunca mais poderia voltar a escondê-las debaixo da língua.
Uma noite, quando o avô estava dormindo e Filha costurando à luz da lanterna de óleo de baleia, K’os foi sentar-se ao lado dela.
- Estou preocupada com o teu avô - disse K’os. Tenho uma pequena quantidade de folhas-de-caribu, uma planta que eu trouxe comigo quando vim para cá, com muitos poderes benéficos, e guardei-a para alguém especial. Chegou o momento de usá-la. De outro modo, acho que ele morre antes do Verão.
K’os agachou-se junto de Filha e abriu a bolsa dos remédios. Tirou os pacotinhos de plantas medicinais, cada um deles atado com fio de tendão colorido. Por fim, tirou um tão velho que a pele já estava estaladiça. Cortou os nós e despejou o conteúdo do pacote na mão. As folhas-de-caribu estavam reduzidas a pó, um pó tão leve que bastaria um sopro para fazê-lo desaparecer. K’os distribuiu o pó por três tigelas de madeira, deu uma a Filha e disse-lhe que o misturasse com óleo e espalhasse a mistura pelo rosto de Cabaça-de-Água.
Num nicho da parede do ulax, havia uma pele de foca cheia de gordura. A pele de foca tinha o pelo virado para dentro e, no Verão anterior, Filha enchera-a de gordura de foca cortada às tiras, depois de ter retirado a carne. com o tempo, o calor transformara a gordura em óleo.
Filha pegou a pele de foca, abriu o bocal e inclinou a pele para despejar algum óleo. com os dedos, misturou-a com o pó de folhas-de-caribu. Em seguida, aproximou-se do avô, que dormia na parte de trás do ulax, arredou a cortina e começou a besuntar-lhe o rosto com o óleo. Ele roncou um pouco, mas não acordou e, pouco depois, até sorriu.
Ao longo do tempo, o corpo dele tornara-se esquelético, a face chupada e cheia de rugas e os olhos encovados. Nunca aceitara que o tatuassem nem que lhe perfurassem os lábios para colocar batoques. Usava um bigode comprido e ralo que lhe cobria a boca, à maneira do Povo Barco, cujos rostos lembravam a Filha fantasmas de um sonho quase esquecido.
K’os usava tatuagens na face e no topo das coxas. Muitas vezes, ela e o avô discutiam por causa das tatuagens que Filha devia usar - as linhas na face e os círculos e triângulos para embelezar as pernas. Filha desejava essas tatuagens para ser como as outras meninas da aldeia, mas o avô dizia que elas só iriam enfeia-la e que, quando ela fosse velha, se espalhariam debaixo da pele e a escureceriam de tal maneira que seria impossível limpá-la.
- Ele é velho e não viverá para sempre, Uutuk - dissera K’os quando Filha se lamentara. - Quando ele morrer e o luto terminar, então faremos as tuas tatuagens.
Filha pensava na promessa de K’os enquanto espalhava o óleo na pele do avô. Não se importava de parecer uma criança, sem marcas na pele, se o avô tivesse mais uns anos de boa saúde. Ergueu pequenas preces de esperança e lembrou-se de que as outras meninas diziam que as tatuagens faziam doer, e que às vezes uma mulher ficava com cicatrizes, com sulcos no rosto e nas pernas.
Quando Filha acabou o que estava fazendo, deu o resto do óleo a K’os.
- Ainda há algum - disse ela. - Besunto-lhe o pescoço ou a mão?
- Ele acordou? - perguntou K’os, ignorando a pergunta de Filha.
- Não - respondeu Filha, mas, ao recordar-se do sorriso do velho, sorriu também e perguntou a si própria o que estaria ele sonhando. Voltara a ser jovem no seu sono, gozara as mulheres e tivera êxito na caça?
- Bem, tens que acordá-lo. Ele tem que beber este chá. Uma chávena agora e a outra amanhã.
Filha pousou o óleo e pegou a chávena.
- Deixa-o dormir até o chá esfriar - disse K’os. Depois acorda-o e obriga-o a beber tudo. Vou deixar que sejas tu a fazer isto, porque eu tenho que ir ao ulax de Tira-Olhos. Foca quer que eu lhe conserte um sax. É o melhor que ele tem, e não confia na agulha de Tira-Olhos.
Filha virou-se para aquecer as costas com o calor da lanterna, mas de modo a proteger a chávena. Ainda bem que tinha um motivo para acordar o avô. Os melhores momentos que passavam juntos eram na ausência de K’os, mas desde o último Verão que ele dormia tanto que esses momentos eram raros.
O avô contava histórias maravilhosas sobre a ilha onde ele e Filha tinham vivido e, uma vez, falara até dos verdadeiros pais de Filha, da sua bela mãe e do seu forte e jovem pai. Filha dera-lhes nomes dos Primeiros Homens para fingir que eles faziam parte daquela aldeia, e que ela tinha outros além do avô. Quando as meninas da aldeia eram más para ela, os nomes eram úteis, assim como as histórias do avô.
Filha enfiou um dedo no chá. Este esfriara e ela levou-o com cuidado para o local onde o avô dormia. Abriu a cortina feita de erva e ajoelhou-se ao lado dele e chamou-o baixinho até ele abrir os olhos devagar. Ficou olhando para ela, como se tivesse visto outra pessoa qualquer, mas depois sorriu.
- Sonhei que estávamos na nossa aldeia, Filha - disse ele com uma voz afetada pelo catarro. - A tua mãe estava lá, assim como o teu pai e aquela mulher preguiçosa, a minha sobrinha. Estávamos festejando as promessas da Lua, e uma das mulheres prometia-se a um jovem caçador. Havia bolos de castanhas, Filha, e eu levei um à boca. Tu acordaste-me quando eu ia a dar-lhe uma dentada. Sabes há quanto tempo, é que eu não como bolo de castanhas?
- Desculpe, avô - disse Filha.
- Não é preciso pedires desculpa. Eu volto a adormecer e a comer todos os bolos de castanhas que puder - disse ele, com o riso na garganta.
Filha levantou a chávena para ele ver o chá.
- A mãe deixou este remédio para ti. Diz que te dará forças.
- Ela obrigou-te a acordar-me para me dares isto? resmungou o velho. - O que é que ela sabe? Sono e bons sonhos, essas coisas é que dão força a um velho.
Cabaça-de-Água endireitou-se, apoiou-se no cotovelo e inclinou-se para a frente para beber. Quando ele acabou de beber o chá, Filha pousou a chávena, amparou-lhe a nuca e ajudou-o a deitar-se de novo. O avô fechou os olhos, mas voltou a abri-los e olhou para ela. Pestanejou e perguntou em voz baixa:
- Onde está K’os?
- Foi ao ulax de Foca.
O avô sorriu.
- Então, talvez eu tenha tempo de te contar uma história. - Cabaça-de-Água falou na língua do Povo Barco e a sua voz parecia mais forte. - Já te falei daquela vez em que eu andava pescando ao largo e surgiu uma tempestade?
O velho já lhe contara muitas vezes essa história, mas Filha abriu muito os olhos para mostrar o seu interesse.
- Se contou, avô, eu devo ter-me esquecido. Por favor, conte outra vez.
Ele agarrou-lhe a mão, e Filha instalou-se a seu lado e começou a ouvi-lo.
K’os enroscou-se no corpo de Quíton e inclinou-se para a frente, tocando-lhe nos mamilos com a ponta da língua. A mulher de Quíton acabara de lhe dar mais uma filha e ainda estava na cabana de partos.
Quando K’os entrou no ulax de Tira-Olhos, a irmã e a tia de Quíton estavam lá e participaram-lhe o nascimento. K’os demorou-se apenas o tempo suficiente para receber o sax e depois fingiu que tinha que voltar para junto de Cabaça-de-Água, mas dirigiu-se ao ulax de Quíton.
Tal como esperava, ele estava só. K’os felicitou-o pelo nascimento da filha, mas ele fez um ar carrancudo e disse:
- Qualquer homem deseja um filho.
- Uma vez, há muito tempo, quando eu vivia com o Povo Rio, tive um filho - disse K’os. - Fui uma boa mãe, dei-lhe tudo, fiz todas as suas roupas e arranjei-lhe uma bela esposa. Mas quando outra aldeia atacou a nossa, ele traiu-nos e foi viver com aqueles que nos atacaram porque eram mais fortes, e ele sabia que eles podiam vencer. Depois de quase todos os nossos homens terem sido mortos e de a nossa aldeia ter sido queimada, fui vendida como escrava aos Caçadores de Morsas, e o meu filho não levantou um dedo para me ajudar. Só por sorte é que vim parar nesta aldeia, onde mais uma vez sou esposa e mãe. Se tivesse que escolher entre o meu filho e a minha filha, escolhia a minha filha. Dá graças por teres uma filha saudável. As filhas dão sorte, e às vezes os filhos não dão.
Quíton não respondeu, virou-lhe as costas e disse qualquer coisa entre dentes. K’os aproximou-se dele. Quíton tinha apenas uma tanga de pele de lontra em cima do corpo. K’os passou-lhe as mãos pela cintura e enfiou os dedos por baixo da tanga.
- Eu tenho uma esposa - disse ele, mas virou-se para ela e meteu-lhe as mãos debaixo do sax.
K’os despiu o sax pela cabeça, pegou-lhe nas mãos e levou-as aos seios.
- Porque te dar o meu sêmen? - perguntou ele. - És velha demais para gerares filhos.
Os dedos de Quíton deslizaram até o cós do avental de erva entrelaçada que ela trazia à cintura.
- Não pretendo fazer-me passar por nova. Mas não sou feia - retorquiu K’os, levantando os seios com as mãos. Achas que estes seios são de uma velha?
- Deves ter alguma mezinha que te mantém jovem disse ele. - Embora não dê resultado nas mãos nem no cabelo.
Quíton puxou vários cabelos grisalhos do rabo-de-cavalo que K’os usava na nuca. K’os sorriu.
- É uma boa mezinha. Como é que julgas que eu tenho conseguido manter vivo o velho Taadzi durante tantos anos?
- Todos os caçadores que eu escolho mantêm-se jovens durante muito tempo. Não posso te dar filhos... para isso tens a tua mulher... mas as minhas mezinhas te darão força.
- Eu sou forte - respondeu ele, com um ar carrancudo.
- Eu só quis dizer que te ajudava a manteres-te forte, disse ela. - Mas basta de conversa.
K’os empurrou-o para o nicho protegido por uma cortina onde ele dormia.
Quíton agarrou-a pelos braços, deitou-a em cima das peles e caiu sobre ela.
- Há muito tempo que não estou com uma mulher, e toda esta espera só por causa de uma filha.
De súbito, o avô calou-se, e Filha, de olhos fechados para imaginar a história, ficou à espera. Era a parte mais empolgante, aquela em que as vagas tinham arrancado o flutuador do barco, mas ela calculou que ele tivesse adormecido.
Quanto mais ele vivia, mais sono tinha. O que lhe dissera K’os? A vida era um círculo, e os velhos regressavam ao tempo em que eram crianças. Dormiam tanto quanto os bebês e às vezes, tal como eles, deturpavam os pensamentos e as palavras. É claro que a mente do avô estava lúcida. Ninguém na aldeia duvidava de que ele continuava a ser o mais sábio de todos os velhos.
Filha abriu os olhos. Admirada, verificou que o avô observava a parte de cima da cama. Por curiosidade, inclinou-se e olhou para cima. Não havia lá nada, apenas escuridão.
- Olhem, o que vejo eu? - disse ela, e ficou à espera que ele concluísse a adivinha.
As adivinhas eram um jogo do Povo Rio, mas K’os ensinara a ambos como eram divertidos esses jogos de palavras.
Como ele não respondeu, Filha pegou-lhe na mão.
- Avô?
O velho soltou um gemido, e de repente Filha assustou-se. Pôs-lhe um braço por baixo dos ombros e aproximou-se da cama para pousar a cabeça dele no seu colo. Encostou a palma da mão ao peito do velho. Cabaça-de-Água sempre tivera um coração forte, mas nesse momento Filha sentiu apenas uma ligeira palpitação.
- Avô! - gritou ela. - Avô, não me abandones! Eu preciso de ti!
Filha arrancou as peles da cama - todas as que não estavam debaixo dele - e fez um rolo que lhe pôs sob a cabeça e os ombros. Afastou-se e tirou uma bexiga de água das vigas, encheu uma tigela e tentou obrigá-lo a beber. O velho engasgou-se, e ela limpou-lhe as gotas de água do queixo e disse que ia chamar K’os. com certeza que ela teria um remédio que o poderia ajudar.
Só reparou que se esquecera do sax quando saiu e sentiu o vento morder-lhe a pele nua, mas não voltou atrás. Correu para o ulax de Tira-Olhos e, sem perder tempo com mesuras, desceu o poste.
- O meu avô... - disse ela, tentando recobrar o fôlego.
- Onde está o teu sax! - perguntou Tira-Olhos. Foca desviou o olhar do cabo da lança que estava alisando e franziu a testa.
- Devias proteger-te melhor - disse ele. - Olha que os espíritos do vento entram na tua barriga.
Um dos filhos do casal deu um traque, e os outros desataram a rir. Filha abanou a cabeça, olhando para eles, e os seus olhos encheram-se de lágrimas.
- A minha mãe devia estar aqui. O meu avô está muito doente - disse ela.
Filha viu a súbita preocupação nos seus rostos. As crianças rodearam-na, e o mínimo que ela podia fazer era não as empurrar.
- A minha mãe? - voltou a perguntar Filha.
- Ela esteve aqui, mas saiu há muito tempo - respondeu Foca. - Deve ter ido fazer alguma visita.
Foca ordenou aos seus dois filhos, rapazes de oito e dez Verões, que fossem a todos os ulax, descobrissem K’os e a mandassem para casa. Em seguida, Tira-Olhos disse a uma das filhas que fosse buscar um sax. Vestiram-no em Filha, e só quando ela sentiu o peso da roupa é que reparou como estava fria. Começou a tremer, e os seus dentes batiam tanto que ela não conseguia dizer nada sem cortar as palavras.
- Eu vou contigo - disse Tira-Olhos, empurrando Filha para o poste e saindo com ela correndo. - O meu pai era xamã. Conheço alguns cânticos que poderão ser úteis.
Filha fez um sinal afirmativo. Recordava-se do pai da mulher. Morrera pouco depois de ela e o avô terem chegado à aldeia. O xamã usava três batoques, um em cada canto da boca e um terceiro por baixo do lábio inferior. O peso desse batoque afastava-lhe tanto o lábio da boca que se lhe viam sempre os dentes, numa espécie de careta que às vezes ainda assustava Filha, quando ela tinha pesadelos. Era um homem que falava alto e com muitas palavras que, depois de ele morrer, pareciam ter passado da sua língua para a boca de Tira-Olhos. A mulher estava sempre gabando-se do pai e, quando falava, era com o ar de desafio de um homem.
Quando entraram no ulax, Cabaça-de-Água estava gemendo. Tinha os olhos fechados, e saía-lhe espuma da boca, como se um rio tivesse resolvido instalar-se de repente nos seus pulmões. O rolo de peles que Filha lhe pusera debaixo da cabeça escorregara para o lado, e ele estava torcido na cama. Filha ajoelhou-se e enfiou-se debaixo dos ombros do velho, erguendo-o para que ele pudesse respirar mais facilmente.
Tira-Olhos começou a cantar, e as suas palavras ribombaram nos ouvidos de Filha. A menina inclinou-se para a frente e, na esperança de que a sua necessidade fosse suficiente para manter o avô ligado à terra, disse-lhe em voz baixa que sentiria a sua falta se ele morresse.
Por fim, os filhos de Tira-Olhos entraram no ulax, aos gritos, e contaram onde tinham encontrado K’os.
Era difícil ouvi-los devido aos cânticos, mas Tira-Olhos não se calou e começou a dançar e a saltar. Filha sentiu que reinava a loucura no ulax, e que só ela estava ali para proteger o avô. Mas por fim, apesar do tom de voz de Tira-Olhos, percebeu o que os rapazes estavam dizendo.
A mãe estava na cama com Quíton, um homem cuja esposa acabara de dar à luz. Com certeza resultaria uma maldição fazer tal coisa. Filha corou de vergonha e tentou não pensar no que as outras meninas da aldeia lhe diriam.
A raiva agarrou-se à garganta como uma mão e apertou-a até ela não conseguir respirar nem falar, por muito que tentasse. Inclinou-se para a frente, encostou a face à testa do avô e deixou correr as lágrimas.
Nesse momento, K’os entrou no ulax, e os rapazes calaram-se. Até Tira-Olhos deixou de cantar. K’os despiu o sax. Trazia a bolsa dos remédios pendurada à cintura, de onde tirou um pacotinho atado com fio azul e com dois nós. Desatou-o com os dentes e espalhou o conteúdo na palma da mão. Lambeu as pontas dos dedos, enterrou-as no pó cinzento e enfiou os dedos na boca, nas narinas e nos cantos dos olhos do avô. Fez isto duas vezes, e Filha teve a sensação de que a respiração do avô melhorara.
Filha inspirou grandes quantidades de ar, como se os seus pulmões trabalhassem pelos dois. O avô abriu os olhos, e Filha recuperou a fala.
- Avô, a mãe tem um remédio para ti. Vais ficar bom depressa - disse ela.
Filha sorriu e olhou para K’os. A mulher tinha uma expressão estranha, quase de remorso, quase de tristeza, e o aperto voltou à garganta da menina, impedindo-a de falar mais uma vez. Tira-Olhos abriu caminho até se aproximar do avô. Abanava a cabeça a compasso, como se esta fosse um tambor. Mexeu os lábios, mas deles não saiu qualquer som. Um cântico sem palavras? Para que servia? Então, Tira-Olhos deu voz às palavras, e Filha percebeu que ela não cantava para o curar, mas que entoava um cântico fúnebre, um cântico de morte.
- Não! - exclamou Filha.
A palavra teve o efeito de uma faca que lhe abriu a garganta, deixando escapar um grito. Os filhos de Tira-Olhos taparam os ouvidos com as mãos.
- Nããão! Não, avô! Não! Não! Não!
Filha debruçou-se sobre o corpo do avô, e quando Tira-Olhos e K’os tentaram afastá-la, ela desatou aos pontapés e às unhadas. Por fim, resolveram deixá-la onde estava.
- Deixa-a ficar aqui durante a noite - disse Tira-Olhos a K’os. - Talvez amanhã ela volte à razão e chore como uma neta deve fazer.
Filha passou a noite inteira junto do avô, guardando o seu corpo com preces e cânticos.
De manhã, quando deixou que as mulheres da aldeia se aproximassem, estas viram, horrorizadas, que ela cortara mais um dedo, o mais pequeno do outro pé, e que o colocara na mão do velho. Quando tentaram tirar-lhe, Filha rosnou-lhes como se fosse uma lontra e ficou ali, de dentes arreganhados, até K’os lhes pedir que deixassem o dedo onde estava.
- Conheço um homem que cortou um dedo e o ofereceu aos espíritos em troca da vida do filho - disse K’os às mulheres.
- O filho estava morrendo? - perguntou uma delas.
- Estava quase morto.
- E sobreviveu?
- Sobreviveu - respondeu K’os.
Então as mulheres não protestaram mais e ficaram cochichando sobre os estranhos costumes e os disparates do outro povo. K’os costurou a ferida de Filha e, a partir desse dia, não falaram mais no assunto, não se consolaram nem se recriminaram.
- Afinal, o que sabemos nós desse Povo Barco? - perguntou K’os a Tira-Olhos. - Partilhei o ulax com Taadzi e ainda hoje não compreendo tudo o que ele fazia, mas era um homem sensato. Foi um bom avô para Uutuk.
E embora durante vários dias depois da morte as pessoas murmurassem sobre a ida de K’os ao ulax de Quíton, ela mostrou-se tão sincera ao chorar Cabaça-de-Água que o falatório acabou. Quando Foca voltou a levar K’os para a sua cama, toda a aldeia lhe prestou homenagem pela sua abnegação. Que outro homem ficaria com uma mulher que o desonrara, que era praticamente uma velha e que não lhe podia dar filhos?
Baía de Herendeen, península do Alasca
602 a. C.
- Obrigado - disse Yikaas em voz baixa. Qumalix sorriu, e o vento soltou-lhe uma madeixa de cabelo, puxou-a do decote do sax e empurrou-a para a face de Yikaas. Qumalix agarrou-a com os seus longos dedos e voltou a enfiá-la no sax.
- É uma boa história, mas eu não a conto tão bem como quem me ensinou - disse ela.
- O velho que está contigo? - perguntou ele.
- Não, esse é meu avô. Nunca foi contador de histórias. As palavras não lhe saem da boca com facilidade. Apesar de ter muitas histórias na cabeça, ele tem dificuldade em contá-las.
Qumalix riu e inclinou a cabeça, como se se tivesse lembrado de alguma coisa.
- Então, quem é que te ensinou?
- O pai dele.
Yikaas ficou sem fôlego.
- Um homem tão velho? - perguntou ele.
- Já morreu. Há muitos anos. Como vês, eu tive que aprender depressa e quando era muito nova. Quando ele só tinha forças para estar deitado, eu costumava sentar-me junto da sua cama, e ele contava-me histórias. As palavras saíam-lhe da boca tão devagar como o furador de uma mulher abrindo buracos para fazer uma costura.
- Uma boa maneira de aprender a ser paciente - comentou Yikaas.
Qumalix concordou, com um gesto de cabeça, de olhos virados para o céu, e Yikaas percebeu que ela o deixara por alguns instantes para revisitar esses tempos de aprendizagem.
- Juntei estas palavras como uma velha que apanha contas caídas, e a lentidão dele deu-me a oportunidade de pensar na luz, na cor e na vida de cada uma.
Qumalix apanhou duas ervas e deixou que o vento lhe levasse dos dedos. Yikaas sentiu o calor reconfortante do corpo dela. Sabia que devia estar cansada, mas não queria que ela fosse embora. Abriu a boca para dizer alguma coisa, esperando que as palavras a retivessem, mas ela também falou. As vozes de ambos misturaram-se e ele não entendeu o que ela dissera.
Qumalix riu, e ele sentiu o embaraço no seu riso. O que lhe dissera a avó? Os Caçadores Marinhos eram um povo que não precisava encher o ar com palavras. Quando falava, era porque tinha algo para dizer.
- Desculpa. O que disseste? - perguntou ele.
- Só disse que hoje já falei o suficiente. Agora é a tua vez. Contei-te uma história, portanto também tens que me contar uma. Os contadores de histórias são comerciantes, não é verdade? Uma viagem em troca de outra.
Aa, ela ficaria, mas Yikaas teve o cuidado de não ver no seu pedido mais do que a necessidade de aprender que era própria de um contador de histórias. Talvez ela sentisse o mesmo que ele quando contava muitas histórias e o som da sua própria voz se tornava tão monótono que ele próprio não sabia dizer se as suas palavras tinham força ou não. Esses eram os momentos de ouvir os outros, de deixar que as histórias deles agitassem o seu próprio espírito e lhe devolvessem o prazer de contá-las.
- Há alguma coisa que gostarias de ouvir? - perguntou ele.
- Não conheço muitas histórias do Povo Rio. Conta-me uma de que gostes.
Yikaas ficou pensando e depois disse:
- Lembras-te, quando estavas a falar de Filha, que K’os se referiu a um pai que cortara um dedo para salvar a vida do filho?
- Lembro.
- Gostarias de saber a história desse rapaz?
- O filho?
- Sim. Chamava-se Ghaden e fez-se um homem conhecido pela sua força e sabedoria.
- Eu gostaria de ouvir a história de Ghaden - disse ela.
Qumalix enfiou as pernas dentro do sax e encostou-se em um montículo de erva. Tirou uma tira de peixe seco da manga e ofereceu-a a Yikaas. Depois, tirou mais uma para si e disse:
- Estou pronta. Conta-me uma história.
Yikaas deu uma dentada no peixe e, olhando para o céu estrelado, imaginou a sua aldeia: as tendas de Inverno abauladas, feitas de pele de caribu, as despensas da carne, o rio largo que corria ali perto. Ghaden vivera numa aldeia muito parecida com essa. Um pouco mais perto do mar, segundo diziam os velhos, mas Ghaden vivera há tanto tempo que já ninguém sabia ao certo.
Nesse tempo, os animais podiam transformar-se em pessoas, e as histórias que Yikaas contava agora como dzuuggi estavam sendo vividas.
Yikaas fechou os olhos e viu Ghaden, filho de uma mãe dos Caçadores Marinhos e largo de ombros como o seu povo. Alto como o pai, que era em parte do Povo Rio e afirmava ter sangue dos Morsas. Eram conhecidos pela sua bravura, esses Caçadores de Morsas. Ainda viviam relativamente perto da Praia dos Comerciantes, mas eram pessoas muito diferentes. Tinham vindo do Norte, eram robustos e implacáveis, umas vezes amigos, outras inimigos. Esses primeiros Caçadores de Morsas tinham desaparecido, e ninguém sabia onde se encontravam, apesar de alguns contadores de histórias afirmarem que eles tinham partido bem para o Sul, nos seus iqyax, e que viviam lá, em costas e ilhas distantes, caçando não morsas mas baleias. Parecia uma história sem sentido. Porque alguém abandonaria as águas abundantes do mar do Norte para ir para aquela terra onde viviam monstros, cet’aeni, nuhu’ahn e outros mais? Mas chegava de interrogações. Qumalix tinha pedido uma história.
Yikaas abriu os olhos e começou a falar.
- Desde criança, Ghaden aprendera a conviver com a tristeza. A mãe fora morta por uma mulher chamada Folha Vermelha quando ele ainda não tinha idade para se lembrar de nada. Folha Vermelha também tentara matar Ghaden, mas ele sobrevivera, apesar de ninguém esperar que tal acontecesse. Folha Vermelha usara uma faca, e as feridas de Ghaden eram profundas.
- Foi então que o pai ofereceu o dedo da mão em troca da vida de Ghaden? - perguntou Qumalix.
- Foi. E Cen recebeu a vida do filho em troca. Mais tarde, mudou-se para outra aldeia e arranjou uma mulher chamada Gheli.
- Aa, sim, Gheli - disse Qumalix.
- Essa história fica para outro dia - disse Yikaas, falando a Qumalix como se ela fosse uma criança. Mas ela não se ofendeu, limitou-se a rir, e Yikaas continuou falando. - Cen e Gheli tiveram duas filhas, e apesar de ele ser comerciante e viajar muito, e de Ghaden ser o seu único filho, durante muito tempo ele não se atreveu a aparecer na aldeia onde Ghaden vivia porque tinha medo que os homens o matassem.
- Porquê? - perguntou Qumalix. - Ele era um homem do Povo Rio, não era?
- Lembras-te da história que eu contei sobre K’os? A história de duas aldeias do Povo Rio que tinham lutado uma com a outra até que uma foi destruída e ficou apenas com alguns caçadores?
- Lembro.
- Mesmo na aldeia que ganhou a batalha morreram muitos dos seus jovens e, alguns anos depois, eles resolveram esquecer o seu ódio e tornar-se um só povo. Deste modo, uniram as forças dos caçadores que ficaram.
- E o que tem isso a ver com Cen e Ghaden?
- Antes de Cen casar com Gheli, ele e Ghaden viviam na aldeia que perdera a batalha. O problema surgiu quando Cen e os caçadores dessa aldeia foram para a luta. Cen viu que eles eram superiores em número, abandonou-os durante a noite e nunca mais voltou.
- Ele era um covarde - concluiu Qumalix.
- Mas com coragem suficiente para cortar o seu próprio dedo quando pensou que os espíritos poderiam aceitá-lo como oferenda e poupar a vida de Ghaden.
- Isso é tudo muito confuso.
- Tu vais compreender a minha história - garantiu-lhe Yikaas.
- Seria preferível que falasses a minha língua, e que eu não tivesse que ouvir palavras do Povo Rio.
A lamentação de Qumalix irritou Yikaas, que encolheu os ombros e disse:
- Nesse caso, eu precisaria de um professor.
- A tua tia, Kuy’aa, fala a língua. Pelo menos um pouco - disse ela.
A raiva apoderou-se da língua de Yikaas, que respondeu:
- Bem, vai buscá-la. Ela pode ensinar-me agora, depressa, para eu contar esta história com palavras que te sejam mais agradáveis aos ouvidos.
Ao olhar para ela, Yikaas reparou na crispação dos músculos do queixo. Qumalix enfiou um grande naco de peixe na boca, como se quisesse evitar uma resposta descabida. Por fim, com a boca cheia, disse:
- Ouvirei as tuas palavras da língua do Povo Rio.
- Interrompe-me se não compreenderes alguma coisa - disse ele. - Terei muito prazer em te ensinar palavras novas.
Yikaas ficou à espera, sem saber se ela se ofereceria para lhe ensinar a sua língua em troca, mas Qumalix não o fez e, quando ele começou a falar, a sua voz tinha um toque de desilusão - uma voz adequada à história de Ghaden.
Arredores do lago Iliamna, Alasca Fim do Inverno
6447 a. C.
História de Ghaden
- Estás desperdiçando comida, ao dar-lhe, disse o caçador Sok.
Ghaden agachou-se junto de Mordedor e passou a mão pelo pelo escuro do cão.
- Ele está velho, Ghaden. Já não caça nem será capaz de acompanhar o nosso passo quando formos para o acampamento de pesca.
Ghaden não encontrou resposta. Sok tinha razão. Mordedor era um cão conhecido pela sua inteligência, mas agora estava velho e doente.
- Eu levo-o - disse Sok. - Vais ver que eu tenho razão. Ele morre ainda antes de ser atingido pela lança.
Ghaden manteve-se cabisbaixo. com dezesseis Verões, há muito que era um homem, e qual o homem que chorava por causa de um cão? Ghaden não podia permitir que Sok lhe visse os olhos.
- Eu trato disso - disse Ghaden, com uma voz firme e dura.
Sok afastou-se, resmungando. Ghaden ficou junto do cão e durante muito tempo acariciou o pelo de Mordedor. Por fim, disse:
- Hoje devíamos ir à caça, Mordedor. Olha para o céu. Daqui a pouco, vêm as nuvens, e amanhã teremos mais neve. Mas o gelo do rio está duro e não teremos dificuldade em andar. Não gostarias de uma lebre fresca esta noite? Se apanharmos duas, podemos oferecer uma a Yaa. Chora-Alto ainda não desistiu de ir atrás daqueles primeiros caribus que deixaram o seu rasto muito perto da aldeia.
Ghaden pensou em todos os cães que conhecera. O cão de Ligige’, que mesmo depois de velho ajudara a matar aquele malvadão, Homem Noturno. Fazia agora dois Invernos que Ligige’ morrera, conservando até ao fim a inteligência e a astúcia.
No Verão anterior à sua morte, ela arranjara outro cão, e, quando já estava doente, oferecera-o a Ghaden. Era uma fêmea, que acasalara com Mordedor e dera à luz três bons filhotes. Um era parecido com Mordedor, com as mesmas marcas castanho-escuras e alguma da sua inteligência, embora fosse difícil fazer tal afirmação a propósito de um cão jovem. Ghaden ficara com ele para si, oferecera um dos outros a Chora-Alto, o marido de Yaa, e entregara o outro ao irmão mais novo de Chora-Alto, Leva-Muito, em troca de umas peles de raposa - menos do que o cachorro valia, mas Leva-Muito precisava ter o seu próprio cão.
Sok resmungara quando Ghaden oferecera o cão ao rapaz, apesar de Leva-Muito ser filho dele. Sok queria o cão para si, mas era ríspido com os animais, bom para as esposas e para os filhos, mas não tão bom para os cães ignorava-os durante muito tempo quando não precisava deles e era avarento na comida.
Ghaden entrou na cabana da irmã e pegou as raquetes, duas lanças e um arco. O Inverno ainda não terminara, mas o dia estava suficientemente quente para que o arco, depois de esticado, não se quebrasse, e, para apanhar pequenos animais, Ghaden preferia uma seta a uma lança.
Aqamdax estava sentada com a filhinha, e ajudava a menina a enfiar linha de tendão nos buracos abertos com o furador, bem espaçados, num pedaço de pele de caribu. Concentrada, a menina pusera a língua no canto da boca. Resfolegou de frustração quando a linha se desviou, e Aqamdax, de olhos postos em Ghaden, perguntou à filha:
- Lembras-te do que tens a fazer?
A menina largou a agulha e viu a linha desenrolando-se.
- Às vezes, quando insistes, as coisas complicam-se, e a única maneira de as resolveres é abandoná-las.
Por instantes, Ghaden fechou os olhos. Era difícil ter uma irmã que sabia sempre o que ele estava pensando.
- Tem cuidado - disse-lhe Aqamdax, quando ele saiu.
Ao contrário dos outros cães da aldeia, Mordedor costumava dormir dentro da tenda, mas, quando ele estava comendo, Ghaden prendia-o lá fora. Soltou o cão e incitou-o com um grito e promessas de uma boa caçada. Mordedor rosnou e deitou-se aos seus pés.
Atravessaram os caminhos da aldeia, contornando as tendas de Inverno, e desceram até o rio. A neve cobria o gelo, com uma camada forte e dura, mas, ao andar, Ghaden servia-se da ponta cega de uma lança para experimentar a superfície. Até as pequenas fendas podiam largar a água que ficara retida no estado líquido, debaixo de uma camada de neve. Se algum homem caísse naquela água, ensopava as botas e enregelava os pés. Mais do que um caçador morrera dessa maneira.
Ghaden continuou a andar até chegar a um caminho que descrevia uma curva e vinha do rio, uma trilha de mulher que ia dar nas armadilhas. Parou e calçou as raquetes. Avançou através da neve, protegido pelos salgueiros e amieiros, não tencionava ir longe. A caminhada era muito difícil para Mordedor, mas cada um dos seus passos parecia ir dar noutro, e por fim ele percebeu que continuava a andar só porque não queria parar.
Virou-se para trás e olhou para Mordedor. O cão caminhava com dificuldade, de cabeça baixa e língua de fora. Ghaden agachou-se junto do animal e passou-lhe um braço pelo pescoço.
Quantas vezes tinham se sentado dessa maneira? O calor e a força de Mordedor reconfortavam o rapazinho receoso de tantas coisas.
- Nunca terei um cão melhor do que tu - disse Ghaden.
O animal abanou a cauda e Ghaden acrescentou:
- Não sei para onde vão os cães no mundo dos espíritos. - Ghaden sentiu um nó na garganta e foi obrigado a fazer uma pausa para tomar fôlego. - Mas, se puderes, espera por mim.
Mordedor soltou um ganido débil, e Ghaden percebeu que o frio lhe provocava dores nas pernas. Ligige’ não se queixava também do frio? Do que ele lhe fazia aos joelhos e aos tornozelos?
”Basta esperar”, pensou Ghaden, e pela última vez encostou a cabeça ao pescoço de Mordedor e enterrou a face no pelo macio do animal. Yaa prometera-lhe que, quando Mordedor morresse, lhe faria um tufo de parka do pêlo do cão. Pelo menos, seria um consolo, e talvez esse pelo transmitisse a Ghaden um pouco da força de Mordedor.
O animal estava velho demais para ir correndo à frente de Ghaden, o que o impedia de usar uma lança rápida por trás. A maneira mais fácil de o matar seria cortar-lhe a garganta e agarrar-se a ele até o cão morrer. Ghaden desembainhou a faca que trazia na manga, com gestos lentos, para Mordedor não fugir. Agarrou-a com firmeza e preparou-se para a enterrar profundamente, mas de repente Mordedor deu um salto, de olhos fixos em alguma coisa que estava escondida no meio da vegetação. O ganido deu lugar a um forte rosnar, e o cão afastou-se de súbito.
Ghaden avançou, tentando agarrar a coleira de babiche entrançado de Mordedor, mas as raquetes tolheram-lhe os movimentos e ele conseguiu apenas arrancar uma mão-cheia de pelo.
Como se as suas pernas tivessem rejuvenescido subitamente, Mordedor desatou a correr através da neve, alternando os ganidos frenéticos com uivos e latidos. Ghaden foi atrás do cão, que se dirigiu para um aglomerado de abetos. Duas ptármigas fugiram dos seus esconderijos na neve, assustando Ghaden, que protegeu a cara com os braços. Foi então que ele ouviu um ronco, não de cão, mas de urso. Parou, passou a faca para a mão esquerda e puxou de uma das suas lanças. Olhou para todos os lados até que avistou a fera no meio das árvores, uma mancha de pelo escuro. Mordedor continuava a latir e Ghaden avançou lentamente, atravessando uma moita de amieiros. Depois parou, estupefato.
Era um urso-pardo, o maior que ele já vira.
O calor do dia devia ter levado o animal a sair da sua toca de Inverno, pensou Ghaden, embora ainda fosse cedo para um urso andar lá fora. Tinha a altura de dois homens, a largura de três e estava furioso, como era freqüente os ursos estarem no fim do Inverno, quando tinham a barriga vazia, o gelo dos rios ainda era espesso demais para eles pescarem e os frutos de Inverno já tinham sido colhidos pelas crianças da aldeia.
Se Mordedor não tivesse alertado Ghaden, o urso teria ido ao encontro de ambos quando estavam sentados na neve. Nesse caso, que oportunidade teriam de fugir?
Como todos os cães do Povo Rio, Mordedor fora treinado para caçar ursos, mas os caçadores do Povo Rio apanhavam ursos-negros, que eram mais pequenos e menos suscetíveis de atacar, e cujas reações eram mais previsíveis. Os ursos-pardos, duas ou mesmo três vezes maiores que os ursos-negros, não tinham medo dos homens, e porque teriam? Quais as chances de um homem, mesmo armado de lanças, facas e arcos, perante um animal daqueles, sobretudo se estivesse esfomeado ou protegesse as suas crias?
O urso distraiu-se com o latido de Mordedor e a princípio nem viu Ghaden. Avançou para o cão, mas este deu um salto e fugiu.
Ghaden agarrou-se à sua lança e, quando o urso se empinou nas patas traseiras, apontou-a ao coração e atirou. Ao ver a lança, o animal levantou uma pata, cujas garras castanhas e amarelas eram do tamanho dos dedos da mão de Ghaden. A ponta enterrou-se na pata dianteira direita do urso, que soltou um urro e desviou a sua atenção de Mordedor para se concentrar na ponta de pedra que se lhe espetara na parte de dentro da pata. Mordedor desatou a correr atrás do urso, disposto a rasgar-lhe o tendão.
- Afasta-te, Mordedor! - gritou Ghaden.
Um cão tão velho não era suficientemente rápido para se atirar em um urso, mordê-lo e pôr-se a salvo das suas garras ou dos seus dentes. Já era de admirar que Mordedor tivesse conseguido fugir do urso durante o primeiro ataque. Ghaden chamou-o de novo, mas Mordedor continuou a latir e a tentar atacar a fera.
”Foge”, pensou Ghaden. ”Agora!” Que morte mais respeitável podia ter Mordedor! Mas Ghaden não conseguiu ir embora.
O urso partiu o cabo de madeira, mordeu a ponta da lança e cortou a língua, tingindo o focinho de sangue. Depois virou-se e atacou de novo Mordedor. Ghaden, com o coração aos pulos, atirou a sua outra lança. Dessa vez, a arma atingiu em cheio o esterno do animal.
Ghaden ficou à espera que o urso caísse, mas ele limitou-se a soltar um ronco e agarrou a lança com as duas patas, levou a extremidade cega à boca e puxou-a até conseguir arrancá-la do corpo.
Em seguida, olhou Ghaden, com o olhar sábio e inteligente de um homem, deu um passo em frente e esmagou a lança na neve.
Ghaden fez menção de pegar o arco, puxou a alça que trazia a tiracolo e tirou várias setas da bainha. O urso pousou as quatro patas no chão, e Ghaden perdeu o fôlego, sentindo um nó na garganta ao ver aproximar-se aquela enorme mancha negra.
O animal ia atacar. O que podia uma seta contra um urso que nem as lanças tinham conseguido matar?
De repente, Mordedor, vindo de trás, deu um salto e cravou os dentes na parte traseira da pata esquerda da fera. A princípio, o urso limitou-se a sacudir a perna, mas Mordedor enterrou as patas na neve e começou a sacudir a cabeça de um lado para o outro. O urso parou, e Ghaden encaixou uma flecha no arco e lançou-a.
A seta atingiu o urso no ombro esquerdo e, antes que pudesse concentrar-se na dor, Ghaden lançou outra, que foi espetar-se no pescoço do animal.
O urso soltou um ronco, arrancou as duas setas com um só golpe, em seguida dobrou uma pata, ergueu-a e deixou-a cair com força sobre a cabeça de Mordedor. O cão soltou um latido, largou o urso, caiu na neve e ali ficou, debatendo-se e ganindo.
Ghaden apontou a terceira seta ao olho do urso e esperou que o animal se virasse para ele. Mas errou a pontaria, e a seta raspou apenas a cabeça da fera, provocando um arranhão sangrento. Em seguida, o animal desatou a correr, e não foi possível atirar mais setas.
Enterrado na neve, mesmo com as raquetes, Ghaden não tinha chance. Deixou cair o arco e puxou as suas facas, a que trazia na manga na mão esquerda e a faca de caça de lâmina longa, que usava atada à perna, na mão direita. Fez-se numa bola, protegeu a nuca com o seu fardo e esperou pelo ataque.
Ghaden sentiu as garras na pele de caribu da sua parka, na parka interior e na pele. A boca do urso cheirava a carne putrefata, ao longo sono do Inverno e a sangue fresco. Os dentes do animal arranharam o ombro de Ghaden e depois agarraram-se ao fardo que ele trazia às costas. O urso empinou-se e puxou o fardo com tanta força que lhe rebentou as alças.
À volta de Ghaden, tudo abrandou. Até a voz do vento enfraqueceu, e o ganir de Mordedor era um som distante, perdido nos ramos dos abetos e dos amieiros. Ghaden ouvira contar histórias de caçadores que, ao serem atacados por um urso, fingiam que estavam mortos. Mas aquele urso parecia esfomeado e, mesmo que julgasse que Ghaden estava morto, o devoraria.
Ghaden virou a cabeça e, através do tufo da parka, viu que o urso continuava a lutar com o fardo. Se ele tivesse alguma probabilidade de se salvar, seria nesse momento. Já não tinha o seu arco, e as setas jaziam espalhadas na neve. Mesmo que conseguisse enterrar as duas facas no pescoço do urso e cortar os vasos sanguíneos que levavam o sangue ao cérebro, o animal levaria muito tempo a morrer. Com o urso enfraquecido pela perda de sangue, talvez Ghaden conseguisse fugir. O animal estava de costas para ele, mas encontrava-se tão perto que Ghaden sentia-o rosnar enquanto destruía o fardo. Ghaden levantou-se de um salto e desatou a correr. A crosta de gelo prendia-lhe as raquetes, agarrando-o como se quisesse aprisioná-lo. Para ganhar fôlego, Ghaden inspirava grandes quantidades de ar frio até sentir um ardor nos pulmões.
Avistou o rio através das árvores, e a sua esperança começou a aumentar. De súbito, sentiu uma onda de calor, uma dor. As garras do urso enterraram-se na parte lateral do corpo. Ghaden virou-se e sentiu de novo os dentes da fera, dessa vez no braço esquerdo. Enterrou a sua faca de caça no pescoço do animal, até ao cabo, provocando um golpe sangrento.
O urso deu uma patada no ombro de Ghaden, que foi projetado para o ar. Caiu junto de um grande abeto, ouviu as costelas estalando e sentiu uma dor forte, como se lhe tivessem espetado uma lâmina no lado do corpo.
Ghaden agarrou-se aos ramos mais baixos da árvore e fechou as pernas em volta do tronco. As raquetas arranharam a casca dura da árvore com um som bem audível. Ghaden sentiu o bafo do animal na nuca, mas não conseguiu levantar-se. Encolheu-se, preparando-se para o golpe fatal, e nesse momento ouviu o grito torturado de um cão.
Em vez de tentar subir na árvore, Ghaden não pôde deixar de olhar e ficou boquiaberto ao ver Mordedor de pé, atrás do urso. A carne dilacerada do topo da cabeça do cão caía-lhe sobre a orelha esquerda, como se fosse uma aba ensangüentada, e deixava-lhe o crânio à mostra.
Os gritos do cão eram terríveis, e até o urso parou e ficou olhando, mas depois deixou cair as quatro patas no chão e atacou, atirando Mordedor para trás das costas e rasgando-lhe o flanco com as garras. Mordedor sacudiu a cabeça, tentando atingir a garganta do urso. A fera empinou-se e Mordedor ficou pendurado nela, rasgando-lhe a carne enquanto o urso tentava soltar-se.
O sangue escorria pelo pelo de Mordedor, e os roncos do urso ecoavam nas árvores, como se a luta envolvesse muitos animais. Ghaden viu o seu arco tombado na neve e, deixando-se cair da árvore, lançou-se sobre ele. Preparou uma seta e apontou, dando um grito ao soltar a corda.
A seta alojou-se no olho esquerdo do urso. O animal abriu a boca e deixou sair uma golfada de sangue que manchou o pelo de Mordedor. O cão largou o urso e caiu no chão. A fera levantou a cabeça e embateu em qualquer coisa que Ghaden não viu. Em seguida, caiu lentamente, esmagando Mordedor.
Ghaden ficou à espera que o urso voltasse a mexer-se, mas ele permaneceu onde estava. Por fim, pegou outra seta e atirou-a ao pescoço da fera. O urso não se mexeu. Ghaden aproximou-se e tocou-lhe com a extremidade do arco. O urso estava morto.
As costelas doíam-lhe com os movimentos da respiração, e o ombro esquerdo sangrava, mas Ghaden encostou o ombro esquerdo à carcaça do urso, inspirou o mais que pôde e conseguiu virar a fera, o suficiente para tirar Mordedor de baixo dela.
Mordedor tinha os olhos abertos. Ghaden ajoelhou-se junto dele e cobriu-lhe o crânio com o escalpo. Acariciou-lhe o focinho e começou a entoar um cântico de louvor em surdina, como se prestasse homenagem a um guerreiro. Por um instante, o espírito do cão quedou-se naqueles olhos abertos e fitou Ghaden. Neles havia amor. Amor.
Baía de Herendeen, península do Alasca
602 a. C.
- Uma história triste - concluiu Qumalix, levando a mão ao estômago, como se tivesse acabado de comer uma boa refeição.
Yikaas encolheu os ombros.
- Que melhor maneira de morrer para um cão valente? Além disso, ele estava velho.
- O que aconteceu a Ghaden?
- Segundo a maioria dos contadores de histórias, partiu umas costelas e ficou com as cicatrizes das garras e dos dentes do urso para o resto da vida. Deve ter sido um homem que aprendeu a mostrar respeito. Um urso tão poderoso como aquele poderia tê-lo amaldiçoado se ele não tivesse respeitado todos os tabus.
- Tabus? Que tabus?
Yikaas ficou admirado com a pergunta. Quem não respeitasse um urso era um louco.
- Os mesmos que todas as pessoas seguem - respondeu ele. - Um caçador não deve pronunciar o nome do animal e tu, como mulher, apesar de seres contadora de histórias, nem te atrevas a fazer tal coisa. Só uma velha é que está autorizada a comer carne de urso, e apenas algumas partes. A pele tem de ser raspada por um homem e pendurada durante um ou dois Verões antes de ser usada. Há pessoas que a cortam aos pedacinhos e a enterram. É que o animal tem muita vida. Até os pelos podem nos amaldiçoar. Os Primeiros Homens não conhecem estes tabus?
- Na ilha em que eu vivo não há... - Qumalix calou-se. - Animais grandes - concluiu ela. - Talvez os caçadores que vivem na Praia dos Comerciantes entendam de tabus. Ouvi-os dizer que há animais desses nestas montanhas e que alguns vivem mesmo à beira dos regatos.
- Não há ursos na tua ilha?
- Nenhum.
- E caribus?
- Não.
- O que caçam os vossos homens?
Assim que fez a pergunta, Yikaas percebeu que era absurda. Os Primeiros Homens caçavam no mar. Apanhavam focas, leões-marinhos, morsas e até baleias.
- Os nossos homens apanham mamíferos marinhos. Não houve qualquer traço de ironia nas palavras de Qumalix, e Yikaas apreciou a delicadeza da sua resposta.
- Mas fala-me mais de Ghaden - pediu ela. - O que lhe aconteceu depois da luta?
- A irmã dele raspou a pele do cão e, até morrer, Ghaden usou a pele de Mordedor como enfeite no capuz da parka. Os velhos dizem que o cão continuou a protegê-lo, porque Ghaden viveu muito tempo e foi chefe dos caçadores do seu povo.
Qumalix levantou-se e sacudiu a areia do sax.
- É um bom final. Há muitas histórias que têm um fim triste.
Yikaas encolheu os ombros.
- Qualquer história pode acabar com felicidade ou com tristeza, conforme for a escolha de quem a conta.
Ela sorriu.
- Agora entendo porque foste escolhido para dzuuggi disse ela. - Esta noite devias contar a história de Ghaden. Os homens vão gostar.
- E as mulheres, não?
- As mulheres também, mas os homens são mais difíceis de contentar.
Qumalix disse algumas palavras na língua dos Primeiros Homens e depois acrescentou na língua do Povo Rio:
- É assim que os Primeiros Homens se despedem. Eu disse: ”Agora vou-me embora.”
Yikaas repetiu a frase, alterando propositadamente alguns sons. Qumalix abanou a cabeça e repetiu as palavras. Yikaas disfarçou um sorriso, e ela teve a paciência de o ir corrigindo até ele as pronunciar corretamente.
À medida que o dia avançava para a noite e para a sua promessa de umas curtas trevas, as pessoas abandonavam a pesca e aqueles caçadores que não tinham partido nos seus iqyax iam juntar-se às mulheres e às crianças na cabana dos contadores de histórias. Dessa vez, o primeiro a falar foi um caçador de outra aldeia dos Primeiros Homens. Usava um chapéu de baleeiro, pintado de tons vivos azuis e vermelhos, com uns olhos desenhados de cada lado e uma longa proa que se estendia além da testa, como se fosse o focinho de um animal.
Como ele não falava a língua do Povo Rio, Qumalix traduziu as suas palavras. Yikaas sentia-se como um jovem que partilhasse a sua esposa pela primeira vez e ficou com pele de galinha ao pensar que as palavras do caçador saíam da boca de Qumalix. Por fim, não conseguiu olhar mais, fechou os olhos e limitou-se a ouvir.
As histórias eram sobre caçadas, e Yikaas estava à espera que o homem se gabasse das suas próprias proezas, mas ele mostrou-se impecável, contando apenas as histórias de outros com grande respeito.
Algumas eram divertidas e fizeram rir as pessoas, mas outras provocaram as lágrimas. Se Qumalix interrompia a tradução, Yikaas sustinha o fôlego até saber o que acontecia a seguir. Mas, mesmo assim, o êxito que o homem dos Caçadores Marinhos alcançou com as suas histórias incomodou Yikaas.
No intervalo, Yikaas recordou todas aquelas que ele próprio contava. Quase todas eram sobre pessoas que tinham vivido há muito tempo. Às vezes, essas histórias não tinham muito que ouvir, mas qual o dzuuggi que podia permitir que esses conhecimentos se perdessem? Nenhuma das suas histórias tinha graça, mas seria bom dispor de algumas que provocassem o riso e não apenas a concordância solene ou a ponderação. Kuy’aa devia ter-lhe contado histórias dessas; com certeza também tinham acontecido coisas divertidas ao Povo Rio.
Pelo menos o homem dos Caçadores Marinhos falava apenas na sua própria voz, não enviava as suas palavras para o topo da cabana para elas ecoarem na chaminé, não falava rispidamente para imitar um caçador nem levantava a voz para mostrar que falava como uma mulher. Eram estas coisas que Yikaas fazia, e fazia bem. E não houve adivinhas. É claro que só o Povo Rio é que sabia adivinhas, mas estes Caçadores Marinhos também as apreciavam. Eram pensadores. O seu silêncio era a prova disso, e às vezes diziam coisas muito acertadas, palavras que Yikaas guardava no coração para não se esquecer.
Por fim, o homem dos Caçadores Marinhos terminou as suas histórias, mas, antes de sair do ulax, pegou uma bolsa que trazia pendurada à cintura, tirou um colar feito de contas de osso de pássaro e entregou-o a Qumalix. Yikaas foi obrigado a virar a cabeça para não ver a alegria dela. Perguntou a si próprio se os Caçadores Marinhos teriam o hábito de trocar presentes. Se assim fosse, já deviam ter reparado na sua indelicadeza. Era preferível esperar que a sessão terminasse e depois oferecer um bom presente, algo que uma mulher apreciasse. Ele poderia pedir conselho a Kuy’aa. Talvez Qumalix gostasse de uma das parkas que ele levara para trocar.
Kuy’aa estava sentada ao lado dele; tocou-lhe no braço para o afastar dos seus pensamentos e depois apontou o queixo para Qumalix. Esta fez sinal a Yikaas para que se aproximasse, e ele dirigiu-se para o centro do ulax e instalou-se ao lado dela. Qumalix dirigiu-se às pessoas que estavam na cabana e depois inclinou-se e explicou-lhe em voz baixa que lhes falara na história de Ghaden, e que elas estavam preparadas para ouvir falar desse homem e do seu cão valente, Mordedor.
Yikaas serviu-se das suas vozes para contar a história e, apesar de não saber anedotas, as pessoas riram-se quando ouviram os latidos do cão vindos do telhado do ulax. Até Qumalix riu, o que a obrigou a interromper a sua tradução, e Yikaas admitiu que ela estivesse mostrando-se um pouco mais satisfeita com as histórias dele do que com as do homem dos Caçadores Marinhos.
Por instantes, pensou como se sentiria se Qumalix fosse sua mulher. Ela era agradável à vista, e ambos poderiam partilhar as suas histórias, mas depois lembrou-se de que a maioria das mulheres dos Caçadores Marinhos preferia desposar um caçador dos Primeiros Homens do que um homem do Povo Rio. O Povo Rio e os Primeiros Homens encaravam a vida de uma maneira muito diferente. Em seguida, Yikaas recordou as histórias de Aqamdax e Chakliux. Haveria algum casal mais feliz do que eles? E Aqamdax pertencia aos Caçadores Marinhos e Chakliux ao Povo Rio. Talvez as suas diferenças não tivessem importância, por ambos serem contadores de histórias.
O pensamento animou-o, até que um burburinho na parte de trás do ulax interrompeu as traduções de Qumalix. Ela calou-se, e o avô que entrara com ela levantou-se e começou a repreender um homem e uma mulher pela sua falta de educação. Qumalix inclinou-se para Yikaas e explicou-lhe que eles eram marido e mulher, conhecidos pelas suas discussões.
O marido subiu o poste com gestos bruscos e saiu, proferindo insultos. Então, Yikaas perguntou a si próprio por que motivo havia sequer de pensar em ter uma esposa. Ainda era novo e tinha muitos anos para tomar uma decisão tão difícil como a de escolher uma mulher entre todas as outras. E se ele e Qumalix fossem como aquele homem e aquela mulher - um motivo de troça na sua própria aldeia? Porque ele não conseguiria apenas atraí-la para a sua cama? Ele era dzuuggi. As mulheres nunca o rejeitavam.
Subitamente, percebeu que interrompera as suas histórias. Qumalix observava-o com um ar interrogador. Ele pediu desculpa e continuou, revivendo a história à medida que as palavras lhe saíam da boca. Quando falou do ataque do urso, o silêncio era tal que ele conseguia ouvir a respiração dos presentes. Quando Mordedor morreu, algumas mulheres choraram, e os homens pigarrearam e fizeram comentários sobre ursos em voz baixa e grossa.
Em seguida, o contador de histórias dos Caçadores Marinhos levantou-se e perguntou se podia contar mais uma.
Yikaas queria ouvir uma das histórias de Qumalix, e várias pessoas que se encontravam no ulax pareciam sentir o mesmo, pois duas mulheres apontaram para ela. Mas, por delicadeza, Qumalix cedeu o seu lugar ao contador de histórias dos Caçadores Marinhos e traduziu de novo as suas palavras para que o Povo Rio o entendesse.
Yikaas sentou-se, aborrecido. O homem tivera a sua oportunidade, e Qumalix merecia a dela. A fúria de Yikaas aumentava à medida que ele escutava, mas dissipou-se quando o Caçador Marinho tentou erguer a voz até o topo do ulax como ele fizera, tentou falar com várias vozes e tornar-se animal, mulher ou homem. Não foi bem-sucedido, e algumas das pessoas que estavam na parte de trás do ulax começaram a protestar. Outras saíram, mas Yikaas deixou-se ficar sentado, imóvel e muito atento, e aprendeu como não se devia contar uma história.
Por fim, o homem calou-se, e as pessoas, como se falassem a uma só voz, dirigiram-se a Qumalix. Yikaas viu o desapontamento na cara do homem e perguntou a si próprio se teria o mesmo aspecto quando as pessoas se mostrassem insatisfeitas com ele. Não era aconselhável que um contador de histórias se comportasse como uma criança e amuasse com as críticas. Que melhor maneira tinha ele de aprender?
Kuy’aa encostou-se a ele, e Yikaas admitiu que a velha estivesse fatigada e quisesse ir embora. Sentiu-se desapontado, mas fez um sorriso gentil e perguntou-lhe:
- Tia, está cansada? Eu vou levá-la à cabana onde vai ficar.
- Não, não - respondeu ela com impaciência, como se ele fosse uma criança travessa. - Qual a contadora de histórias que se cansa de ouvir as histórias dos outros? - Depois, acrescentou: - Fizeste um bom trabalho. Orgulho-me de ti. Viste aquele contador de histórias dos Caçadores Marinhos? - A velha inclinou a cabeça para o homem e baixou a voz. - Ele é invejoso. Sabe que a tua história era melhor que a dele.
- As histórias de caça dele eram boas - observou Yikaas.
- Pois claro que eram. Quando ele as contou, estava pensando mais nas histórias do que em si próprio. Da segunda vez que falou, estava pensando mais em si próprio, em ti, e em qual dos dois era melhor.
Quando um contador de histórias se exibe dessa maneira, se coloca acima do que está dizendo, a história deixa de viver.
Era um conselho acertado, como quase tudo o que Kuy’aa lhe dizia. Yikaas abriu a boca para lhe agradecer, mas ela levou os dedos aos lábios e apontou para Qumalix.
Qumalix começara a falar e explicava que a sua nova história sobre Filha se passava cinco Verões depois da morte do avô. As pessoas murmuraram, mostrando que a compreendiam, e ela deu início à sua narrativa.
Ilha de Yunaska, arquipélago das Aleútes
6435 a. C.
História de Filha
O vento soprou sobre eles, como um lamento. As primeiras ervas do Verão cresciam com força nos montículos dos anos anteriores. O sax de Filha ainda estava enrolado em volta da cintura, e as costas largas e os braços possantes de Salmão Branco continuavam expostos ao frio. Filha encostou a cabeça no ombro dele. Tinham feito amor às pressas, distraídos, e ela percebera que ele estava pensando no que iria passar-se nessa noite, quando falasse a K’os e a Foca do que tinha para lhes oferecer em troca dela.
Filha entregara-se a ele há cerca de um ano e, entretanto, rezara para fazer um bebê. Não via motivo para que K’os ou Foca recusassem a oferta de Salmão Branco, mas um filho os uniria para além de quaisquer objeções que os pais pudessem levantar.
A oferta de Salmão Branco era generosa, muito mais generosa que a da maioria dos rapazes. Ninguém podia negar que ela era hábil no manejo da agulha, que era trabalhadora e sorridente, mas não era verdadeiramente dos Primeiros Homens. Quem poderia adivinhar como seriam os filhos dela?
Quando os rapazes começaram a cortejar as amigas de Filha - um ano depois de os períodos de sangue lunar terem começado - ela tinha pouca esperança de que algum caçador a escolhesse. Talvez por uma noite, mas como esposa? Não. Ela era muito diferente. Quando Salmão Branco a abordara pela primeira vez, ela rejeitara-o. Porque se entregaria a um homem que só se aproveitava dela? Se ele fosse velho, um mau caçador, ou tivesse outra fraqueza qualquer, ela poderia pensar no assunto, mas para que havia de sofrer a esperança que as atenções dele despertariam no seu coração? Era melhor ignorá-lo, fingir que ele não estava interessado. Desse modo, a sua alma não seria consumida pela amargura quando ele a esquecesse.
Mas ele insistira, e por fim ela cedera. Tinham subido os montes sobranceiros à aldeia, tinham se deitado juntos entre os tufos de ervas carnudas e os caules altos e grossos do iitikaalux. Filha usara todos os truques que K’os lhe ensinara, as maneiras de agradar a um homem, e percebera que ele ficara admirado, primeiro com o que ela sabia, e depois, ao entrar nela, por o seu corpo estar intacto. Mostrara-se terno com ela nessa noite, e Filha entregara-se à alegria dessa união. Mas, no dia seguinte, tratara Salmão Branco como se nada se tivesse passado entre eles. Só depois de ele começar a procurá-la e a visitá-la no ulax de Foca, e de não fazer segredo das suas intenções, gabando-se do preço que pagaria por ela, é que Filha se entregara à esperança de ter um jovem caçador como as outras meninas da aldeia, e de ser mais do que a segunda esposa de um velho, escrava na cama do marido, escrava no serviço de uma esposa-irmã.
- Agora tenho que ir embora. Tenho tudo pronto, disse Salmão Branco.
A sua voz era firme e dissipou quaisquer dúvidas que Filha pudesse ter. K’os e Foca teriam dificuldade em arranjar-lhe um homem melhor.
Salmão Branco sentou-se e vestiu o seu sax de pele de pássaro. Filha fizera-lhe uma parka de pele de foca, às escondidas, e tencionava oferecer-lhe nessa noite, depois de ele e Foca combinarem o dia em que se realizaria a festa do casamento. Dali a pouco tempo, pensou Filha. Dali a três ou quatro dias, o tempo suficiente para ela, K’os e Tira-Olhos fazerem a comida. O tempo suficiente para os filhos de Tira-Olhos irem apanhar ouriços-do-mar, moluscos e savelhas que chegassem.
Nesse Verão, Foca fora pouco feliz na caça - mais um motivo para ficar satisfeito por um filho por casamento o ajudar a arranjar carne para o Inverno seguinte. Mas Salmão Branco prometera fornecer a carne de foca e de leão-marinho para o banquete, e até oferecer uma parte da carne da baleia que caçara na Primavera, uma bela baleia-de-bossa.
Filha levantou-se e sacudiu a erva das costas do sax de Salmão Branco. Ele pegou-lhe a mão, às pressas, e em seguida afastou-se a passos largos. Ela viu-o desaparecer na concavidade de um vale, depois deu meia volta e seguiu em sentido contrário, para o local em que ela e K’os tinham sepultado o avô.
- Ele foi embora para me pedir, avô - explicou Filha, ajoelhando-se junto do monte de pedras que cobria o corpo do velho.
Fora ela quem trouxera a maior parte daquelas pedras, da praia, na esperança de que a água que as arredondara e polira tivesse, em tempos, aflorado as costas da ilha do Povo Barco, na esperança de que o avô sentisse o mesmo conforto naquelas pedras gastas pelo mar.
- Talvez, quando eu voltar aqui, já seja uma esposa. As palavras aumentaram a sua esperança, e Filha sentiu as mesmas palpitações na barriga que sentia quando Salmão Branco olhava para ela. Rezou, por Salmão Branco, pelo casamento de ambos e pelo avô. Por fim, levantou-se e encaminhou-se para a aldeia, aproveitando as sombras do entardecer e enfrentando o vento.
Filha ficou à espera no topo do ulax. Ouvia as vozes subindo de tom, as de Foca e de Salmão Branco. De vez em quando, K’os falava, mas Filha não entendia o que ela dizia. Havia muitas coisas a combinar num acordo de casamento, não só o preço da noiva, como também certos pormenores sobre a vida em comum e a caça. Filha fizera saber a Salmão Branco que preferia ir viver com a família dele, e ele concordara e prometera que, assim que ela lhe desse um filho, arranjariam o seu próprio ulax. Filha queria afastar-se do ulax de K’os, afastar-se de Foca e das suas mãos atrevidas, afastar-se dos ciúmes de K’os à medida que os anos lhe roubavam a beleza e a acrescentavam a Filha.
Salmão Branco estava lá dentro há muito tempo e, enquanto Filha esperava, o vento tornara-se tão forte que parecia levar as estrelas, agora tão pequenas que se assemelhavam a pontinhos no céu.
Por fim, quando Salmão Branco apareceu no topo do poste, estava tão escuro que Filha nem lhe viu o rosto. Levantou-se, estendeu-lhe as mãos e chamou-o em voz baixa e, como ele não respondeu, ela agarrou-lhe o braço. Ele não disse nada, libertou-se com um gesto brusco, saltou do ulax e desapareceu na escuridão da noite. Filha ficou ali ao vento, tremendo.
Quando entrou, Foca mostrou-lhe os dentes num sorriso que a fez estremecer. K’os estava de costas para o poste, mas devia tê-la ouvido entrar, porque disse:
- Certos homens julgam que podem conseguir o que querem sem pagar o justo valor. Certos homens são tontos, e os tontos não dão bons maridos.
O medo e a desilusão de Filha deram lugar à raiva e, embora ela não estivesse habituada a reagir às críticas de K’os, dessa vez respondeu:
- Mãe, não fale assim do seu marido. Pelo menos ele trouxe uma foca para comer, duas, desde o Inverno.
Filha ouviu-a soprar e teve o bom senso de sair. Até os rapazes de dez ou onze Verões tinham levado cinco ou seis focas. A voz irritada e acusadora de K’os seguiu Filha até ao telhado do ulax. O que podiam eles fazer se ela e Salmão Branco resolvessem tornar-se marido e mulher, sem a ajuda deles? Ele não lhes pagaria nada por ela. Nem haveria acordo quanto ao produto da caça
Filha encaminhou-se para o ulax de Salmão Branco e esperou durante muito tempo, na esperança de que ele saísse, de que pudessem falar no que se passara. Ele era orgulhoso, e ela não tinha dúvidas de que K’os e Foca o tinham ofendido. Como é que K’os convencera Foca de que ele ficaria melhor sem um filho como Salmão Branco? Era verdade que os filhos de Foca, já adultos, se mostravam generosos, e que, ao contrário do pai, eram bons caçadores.
Filha subiu no telhado do ulax, encheu o peito de ar, convidando o vento a dar-lhe coragem, e chamou pela família de Salmão Branco. A princípio, não houve resposta, mas por fim a mãe de Salmão Branco enfiou a cabeça no orifício do telhado. A luz que vinha do interior do ulax transformava-lhe a cara numa espécie de máscara, como aquelas que os bailarinos usavam para afastar o mal e assustar os espíritos. Parecia um objeto partido, queimado, para evitar que os espíritos maus voltassem.
- O que estás fazendo aqui? - perguntou a mulher, com uma voz dura e furiosa.
- Preciso de falar com Salmão Branco - respondeu Filha, quase em surdina.
- Deixa-o em paz. Ele não quer te ver.
- Por favor...
- Vai embora.
A mulher voltou a subir para o ulax, mas Filha ficou ali, à espera, desejando que a fúria de Salmão Branco se desvanecesse, que ele fosse falar com ela. Quando o frio da noite lhe entrou nos ossos e ela só conseguia tremer, foi embora. Para quê ficar, se sabia que nem sequer conseguiria abrir a boca para falar sem rasgar as palavras com o bater dos dentes?
Encaminhou-se para o ulax do chefe dos caçadores e entrou. Desde que o avô morrera, K’os acompanhara o marido em duas das suas viagens de negócios. Filha ficara na aldeia. Durante a primeira viagem, vivera com Tira-Olhos e os filhos, mas, durante a segunda, ficara com o chefe dos caçadores e com a sua família numerosa. Nesse Verão, o chefe dos caçadores perdera uma esposa, que morrera de parto, e as outras duas disseram que precisavam da ajuda de Filha para costurar a roupa dos filhos, para compensar a perda da agulha da mulher morta.
Filha sentira-se feliz ali, assim como as mulheres do chefe dos caçadores, que a tratavam como se ela fosse da família, ralhando, ensinando e rindo.
No ulax do chefe dos caçadores, tudo parecia mais fácil. Se não se acabasse uma coisa até à noite, fazia-se no dia seguinte. Se Filha fizesse uma costura torta, saberia emendá-la. Se alguém entornasse óleo, o seu cheiro suavizaria o das bagas de urze que atapetavam o chão. As fúrias e os remorsos eram raros, não havia dias estragados pelo olhar apático de Foca, que a observava das sombras.
Para onde Filha poderia ir, agora que a família de Salmão Branco não a queria?
No ulax, só havia uma lanterna acesa. O chefe, as esposas e os filhos já tinham ido deitar-se, mas a avó ainda estava acordada. Velha como era, tinha dificuldade em chamar o sono. Sorriu ao ver Filha, bateu no chão a seu lado e, quando a moça se sentou, ela deu-lhe uma agulha e um sax de pele de corvo-marinho que precisava de conserto.
Nessa noite, Filha ficou acordada, costurando, e, quando a manhã obrigou a velha a fechar os olhos, ela levou-a para a cama e ficou ali, sozinha, até sentir o despertar de uma das esposas do chefe. Então, subiu o poste e saiu, recebendo a luz do dia. A tristeza abrandara, quer pela falta de sono, quer pela ilusão que ela alimentara quando estava sentada ao lado da avó: que pertencia à família do chefe dos caçadores, que era uma filha estimada, cujo casamento seria festejado e não amaldiçoado.
Nos dias seguintes, Filha ficou no ulax de Foca, atarefada com a costura. Voltou uma vez ao ulax do chefe dos caçadores, mas nessa altura até a avó já sabia o que lhe acontecera, e Filha não conseguiu suportar a sua compaixão. Era preferível ficar junto de K’os, que a tratava com brusquidão como se tudo o que se passava fosse por culpa dela. Filha tentou não acalentar a esperança de que Salmão Branco fosse à sua procura, mas sempre que ouvia passos no telhado do ulax o seu coração alvoroçava-se.
Na manhã do quinto dia, Foca entrou, acossado pelo vento e cheirando a peixe.
- Estamos prontos - disse ele a K’os, empinando o queixo na direção de Filha e erguendo as sobrancelhas com um ar interrogador.
K’os abanou a cabeça, e Filha, aterrada, sentiu um aperto no estômago. Alguma coisa estava para acontecer. Teriam eles resolvido entregá-la a outro homem? A algum velho que tivesse feito uma oferta melhor?
Filha deixou cair o que estava costurando e levantou-se, agarrando-se ao amuleto que trazia ao pescoço. Estava calor no ulax, mas de súbito ela desejou ter algo mais em cima do corpo além da tanga de ervas entrelaçadas pendurada no cinto.
- O que fizeste? - perguntou ela a Foca.
- Nada - respondeu ele, e sorriu, com a boca escancarada. - Eu e a tua mãe pensamos que esta é uma boa oportunidade de saíres da aldeia. Vamos fazer uma viagem de negócios. Tu vens conosco.
- Não - disse ela. - Vão vocês, mas eu não vou. Tira-Olhos precisa que eu a ajude a tratar dos filhos.
- Julgas que, se te deixarmos aqui, Salmão Branco vem buscar-te e te aceita como esposa?
Filha não respondeu.
- Mas não vem. Pergunta ao pai de Vara Verde quanto é que Salmão Branco ofereceu por ela.
Estas palavras tiveram o efeito de uma bofetada, e Filha não precisou ouvir mais nada para se levantar. Mas K’os já lhe mentira, em pequenas coisas, sem jeito. Filha não disse nada, pegou o sax que estava pendurado na parede e vestiu-o.
- Quando partem? - perguntou ela a Foca.
- Amanhã, se o tempo estiver bom. Talvez depois de amanhã.
Filha saiu do ulax e encaminhou-se para a praia, na esperança de encontrar Salmão Branco, ou pelo menos um dos irmãos. Ele estava junto dos cavaletes dos iqyax, rindo e conversando com outros rapazes. Antes, ela teria ido se juntar a eles, teria ficado atrás de Salmão Branco como uma esposa devia fazer, por respeito, mas dessa vez interrompeu o que ele estava dizendo, pousou-lhe uma mão atrevida na manga e obrigou-o a voltar-se para ela.
- O que ouvi dizer sobre Vara Verde é verdade? perguntou ela.
Ele olhou para a praia e depois para o mar, por cima do ombro, e por fim para o céu, como se ela não estivesse ali. Um dos outros rapazes cobriu a face com a mão para disfarçar o riso e virou-se para o lado.
- Comprometi-me a pagar para casar com ela - disse finalmente Salmão Branco.
A raiva controlou a língua de Filha, e, no momento em que ela preferia ter dito algumas palavras amáveis, só se lembrou de maldições. Então, virou-lhe as costas e deixou que o vento afastasse o som do riso dos homens.
Caíra uma pedra do topo da sepultura do avô, e Filha a pôs no seu lugar. Quem cuidaria da sepultura depois de ela partir? Dali a pouco tempo, os tremores de terra e o vento deslocariam todas aquelas pedras e a erva começaria a crescer por cima dos ossos do avô. Então, mesmo que ela voltasse, como saberia onde ele estava? Parecia-lhe uma crueldade deixá-lo ali, junto de pessoas que não eram verdadeiramente as dele, mas que mais podia ela fazer?
- Farei o possível por voltar, avô - disse Filha, virada para a sepultura. - Mas K’os quer ir visitar o povo dela, o Povo Rio, e eu não tenho certeza de que ela volte a esta ilha.
Filha encolheu os ombros de tal modo que o decote rígido do sax lhe tapou as orelhas. Devia ter trazido a parka de pele de lontra com capuz que K’os lhe fizera para a viagem, mas precisava do conforto das roupas que lhe eram familiares.
Levantou a cabeça e disse algumas palavras na língua do Povo Rio, como se o vento as pudesse entender. Talvez, pensou, o vento que soprava nas ilhas dos Primeiros Homens também trouxesse as nuvens e a chuva ao Povo Rio.
K’os dizia que Filha falava bem a língua. Foca fingia que falava, mas sabia apenas umas frases soltas, palavras que os comerciantes podiam usar. Pronunciava-as de uma forma estranha e, quando o fazia, gabando-se dos seus conhecimentos, Filha tinha que pensar muito para entender o que ele queria dizer. Ele esbofeteara-a mais do que uma vez por ela não entendê-lo.
- Por isso, avô, venho despedir-me e dizer-te que não me esquecerei de ti, nem das tuas histórias, nem da tua sabedoria. Falarei aos meus filhos do Povo Barco e de ti e contarei como me salvaste dos guerreiros do Povo do Deus-Urso.
As lágrimas fizeram-lhe um nó na garganta, e ela não conseguiu dizer mais nada. Arrancou as ervas da sepultura, criando uma faixa de terra nua, e voltou a dispor as pedras, encostando-as bem umas nas outras e fazendo um montículo que durante algum tempo resistisse ao vento, ao gelo e aos tremores de terra. As duas montanhas da ilha ficavam a sul e a oeste da aldeia, e Filha falou com elas e pediu-lhes que protegessem a sepultura. Afinal, era um local tão pequeno, e, se as montanhas tinham o resto da ilha para abanar, porque perturbar aquele pequeno monte de pedras e o homem cujos ossos se encontravam debaixo dele?
Feitas as despedidas, deu meia volta, mas foi então que se lembrou de uma coisa que queria fazer. Fizera um colar de contas de madeira com os restos do barco em que ela e o avô tinham saído da ilha. Tirou o colar de debaixo do sax e, afastando várias pedras do monte, deixou-o cair dentro da sepultura. Estava repondo as pedras quando reparou num pedacinho de pele, escura e quase podre, entalado entre duas pedras. Pegou-lhe sem dificuldade e percebeu que era um amuleto que o avô trazia sempre consigo.
A pele caiu-lhe por entre os dedos e ela agarrou o que estava lá dentro - areia, mais clara do que a areia da ilha dos Primeiros Homens. Fechou a mão para que o vento não lhe roubasse. Tratava-se, sem dúvida, de um presente do avô.
Ao regressar à aldeia, fechou as mãos à sua frente, sem largar o tesouro. Empoleirou-se no ulax de Foca e olhou para a praia. Aliviada, viu que Foca estava junto dos cavaletes, oleando o barco. Quando entrou, preparou-se para as perguntas de K’os, e engendrou mentalmente uma história na sua língua - levaria um pouco de areia da ilha para dar sorte - mas encontrou o ulax sem ninguém e uma confusão de recipientes de comida espalhados pelo chão.
Filha enfiou-se na cama e, com os dentes, puxou um cobertor de pele para o colo, com o pelo para cima, e despejou nele a areia.
No meio dos grãos, viam-se pequenos fragmentos de pedra verde, quase translúcida. Ela pegou um pedacinho curvo e percebeu que se tratava de um pedaço de uma cabaça. Como pudera ela esquecer-se daquelas cabaças que os tinham mantido vivos durante a viagem?
Filha pegou o pedaço da cabaça e ficou sem fôlego ao ver a minúscula conta esculpida que se encontrava por baixo. Era pequena, do tamanho de uma baga de empetro, e quase tão dura como a pedra, mas não era de pedra. Quando a examinou mais de perto, reparou que tinha um pequeno rosto esculpido de um dos lados. A conta tinha um buraco e, embora Filha tivesse guardado a areia, as pedras e o pedaço da cabaça na sua bolsa de amuletos, enfiou-a num fio de tendão e atou-o ao pescoço.
Partiram dois dias depois, K’os à frente com um remo, e Filha atrás dela, no meio dos fardos de comida e dos objetos para comerciar. Filha olhou demoradamente para a ilha, para a erva tão verde, para as flores de cores vivas nos prados baixos - cinco-folhas, tremoços, primulax e pulmonárias - e para as montanhas com os cumes ainda cobertos de neve.
Havia algumas pessoas na praia, e Filha procurou Salmão Branco, perguntando a si própria se ele iria despedir-se. Mas ele não estava lá. As esposas e os filhos do chefe dos caçadores enchiam a praia e os rapazes, aos gritos, pediam-lhe que trouxesse presentes. Festejavam a sua partida por estarem convencidos de que ela voltaria. Mas o olhar de K’os mostrava outra coisa, e Filha sabia que K’os não tencionava separar-se dela. Qual a mãe que queria enfrentar a velhice sozinha?
Mas com certeza K’os queria que Filha tivesse um marido, e um marido protegia sempre a mulher, mesmo da mãe dela. O mais provável era que ele fosse um homem do Povo Rio e Filha tivesse que aprender novos hábitos, mas já entendia a língua do Povo Rio, e K’os contara-lhe muitas histórias do Povo Rio e insistira para que Filha aprendesse a contá-las. Costurara parkas e botas como o Povo Rio usava, mas fizera-as de pele de foca ou de lontra e não de pele de caribu. Aprendera a fazer remédios com plantas, e K’os oferecera-lhe uma bolsa igual à dela para guardar os pacotinhos dos remédios.
Por isso, de certo modo, ela compreendia o Povo Rio, mas nunca esfolara um caribu, nunca ajudara numa caçada. Nunca comera carne fresca de caribu, e muitas vezes perguntava a si própria como é que era possível viver sem o belo sabor da gordura de foca, sem o calor que ela provocava no estômago durante os dias e as noites frias de Inverno.
Quando vestiu a linda parka que K’os lhe fizera, achou que o capuz lhe tolhia os movimentos. Como é que uma mulher virava a cabeça? Como é que ela via alguma coisa exceto o que tinha diante dos olhos?
- Achas que os Invernos são frios nesta ilha? - perguntara-lhe K’os uma vez. - Vais ver como é que o Inverno pode ser frio quando vivermos com o Povo Rio.
Filha não respondera. Desde pequena que percebera que K’os gostava de assustá-la, e aprendera a ter força suficiente para fazer frente a todos os problemas que K’os antevia. Das poucas vezes que Filha duvidara das suas capacidades, lembrara-se de que K’os já fora jovem, enfrentara as mesmas dificuldades, os mesmos perigos, e sobrevivera. Se K’os era capaz, ela também era.
Embora, a princípio, todas as coisas parecessem novas, a viagem, como tudo na vida, caiu na monotonia. Os dias dos três viajantes começavam com os primeiros raios de sol. Foca explicou-lhes que os comerciantes não comiam de manhã, só à noite, mas K’os não lhe deu ouvidos e tinha sempre peixe seco e uma bexiga de água a postos. Só voltava a arrumar o barco depois de comer, e Filha também comia, a princípio com receio de quebrar tabus, mas, depois de vários dias de palavras contundentes de Foca e de provocações de K’os, Foca também comeu peixe. Na opinião de Filha, era prudente comer, e Foca conseguia remar com mais energia e rapidez.
Todas as manhãs, ela e K’os arrumavam o barco, enquanto Foca estudava o céu e concluía se a maré estava suficientemente cheia para se fazerem de novo ao mar. Em geral, desembarcavam mais facilmente com a maré alta, e Foca tentava evitar praias onde houvesse remoinhos. Partiam quando o mar estava calmo, às vezes de manhã bem cedo, e outras assim que carregavam o barco.
Foca remava atrás durante todo o dia, enquanto K’os e Filha se revezavam na frente, e aquela que não remava despejava a água do barco.
O tubo de baldeação era um tronco oco de bambu, do comprimento de um antebraço, com uma junta abaulada no meio. Um caçador mergulhava uma ponta do tubo na água que se encontrava no fundo do barco e sugava pela outra ponta até o tubo estar cheio. Então, a água começava a sair pela borda. Um homem com as duas mãos ocupadas pelo remo podia servir-se da boca para despejar a água do barco, e o tubo cabia com facilidade nos pequenos espaços entre os fardos e até num pequeno orifício de um iqyax.
Filha já vira vários rapazes praticando com tubos de baldeação em águas pouco fundas, na maré baixa. Nessa altura, rira-se deles, tal como as outras meninas. Porquê praticar uma coisa que era tão simples? Mas agora entendia que não tinha fôlego suficiente para sugar tanta água. Foca troçava dela e fazia comentários sobre a fraqueza das mulheres, mas ela ignorava-o e continuava tentando até ficar tão atordoada que via o Sol rodando. À medida que os dias passavam, os seus pulmões tornavam-se mais fortes e, apesar de não conseguir sugar tanta água como Foca, já era melhor do que K’os.
Pouco a pouco, a cobertura de leão-marinho do barco ia deixando entrar água através das costuras, e às vezes as ondas salpicavam o interior da embarcação. Então, Foca amaldiçoava o seu barco e dizia a K’os que, se não fosse por causa dela e de Filha, ele faria as suas viagens como qualquer outro homem, num iqyax.
K’os vedava as folgas nas costuras com tiras de gordura de peixe e lembrava a Foca, com rispidez, que quase todos os comerciantes usavam barcos abertos. Se ele conseguisse prender melhor as coberturas de pele de leão-marinho que protegiam a proa e a ré, eles não teriam tantos problemas. Então, Foca calava-se, furioso, e não dizia mais nada. Discutindo, quem levava a melhor sobre K’os?
Quando encontravam uma boa praia, aportavam. Umas vezes, isso acontecia ao raiar do dia; outras, só ao anoitecer. Por duas vezes, não encontraram nem praia, nem ilhas, e passaram a noite inteira remando.
Sempre que paravam, levavam o barco e os fardos para lá da linha de maré. O barco era mais largo e comprido que um iqyax e, conseqüentemente, mais estável na água, mas mesmo assim era suficientemente leve para K’os e Filha o transportarem.
Para fazerem um abrigo, inclinavam-no para o lado, com o bojo contra o vento, e dispunham os fardos de cada lado como se fossem muros. Depois, estendiam peles de foca por cima deles, para fazer um telhado. Se havia madeira flutuante na praia, acendiam uma fogueira junto da abertura do abrigo.
Filha ia à procura de madeira, enquanto Foca oleava a cobertura do barco e K’os consertava as costuras. Para Filha, era o momento preferido do dia. Apesar de ter a barriga vazia, sabia que não tardaria a comer, e era agradável sentir terra firme debaixo dos pés.
Em certas praias, as ondas eram generosas e muitas vezes traziam mais madeira do que eles precisavam, mas em outras não havia nada, exceto algumas conchas. Nessas praias, Foca usava a sua lanterna de caçador para se aquecerem. Era feita de pedra, como todas as lanternas dos Primeiros Homens, e o óleo de foca ou de baleia alimentava o pavio de musgo, mas era pequena, do tamanho da mão de um homem, com os dedos afastados, e não dava muito calor. Sobretudo nas noites frias, Foca acocorava-se junto da lanterna, ou mesmo por cima dela, e o sax servia de funil ao calor, que lhe subia pelas pernas até as virilhas, e a fumaça saía-lhe pelo decote. Filha e K’os ficavam tremendo no frio, e só tinham o calor uma da outra.
- Devíamos ter trazido as nossas lanternas e o nosso óleo - disse Filha a K’os na primeira noite em que não conseguiram fazer uma fogueira.
K’os limitou-se a encolher os ombros e disse:
- Temos que ter cuidado ao navegarmos neste mar. O mar permite certas coisas a um homem que, vindas de uma mulher, são uma prova de desrespeito.
- As lanternas dos caçadores são tabu para as mulheres? - perguntou Filha.
- Talvez sejam - respondeu K’os. - Porque nos arriscarmos? Teremos mais frio na terra do Povo Rio do que temos aqui. Queres que o mar ouça as tuas lamentações? Veste a tua parka.
Nessa noite, a parka aqueceu-a, e Filha usou-a no barco no dia seguinte. Mas com o vento, as ondas e os borrifos, tanto Filha como a parka ficaram encharcadas. À noite, quando acamparam, Filha estava tão molhada e com tanto frio que não conseguia deixar de bater os dentes. Olhou com um ar melancólico para a parka impermeável e com capuz que Foca vestia, mas teve o cuidado de não se queixar nem mostrar que gostaria de ter uma igual. Embora K’os não tivesse dito nada, aquelas parkas deviam ser tabu para as mulheres. De outro modo, K’os teria uma. No entanto, era estranho que só os caçadores pudessem usar um chigdax, se era a mão de uma mulher que os fazia, de tripa seca de leão-marinho, e a agulha de uma mulher que costurava as suas costuras resistentes à água.
Foca e K’os calçavam botas de barbatana de foca, mas Filha ia descalça, como andara durante toda a vida. Fizera umas botas à moda do Povo Rio, mas não queria vê-las apodrecer de dia para dia, porque tinha sempre os pés dentro da água que se acumulava no fundo do barco.
Os primeiros dias no mar tinham-na assustado, e à noite a sua mente era atormentada por sonhos com lontras que a atacavam com dentes aguçados e malévolos. Uma vez, sonhara que olhara para os pés e ficara admirada ao ver que tinha os dedos todos, até os mais pequenos. Então, o avô pegara uma faca, com uma grande lâmina, suja de sangue seco, e ela acordara aos gritos, tocara no local onde antes tinha os dedos, sentira as cicatrizes e lembrara-se de que fizera uma boa troca com aquele primeiro dedo - a vida, não só a dela como a do avô.
Durante a segunda lua de viagem, foram açoitados por rajadas de vento, e, apesar de Filha não ter muito respeito por Foca, ele dominou as ondas e o vento com força e falou à mulher e à filha num tom de voz que as tranqüilizou. A sua calma como que afastou o medo de ambas, e a baldeação tornou-se uma cadência moderada pelas suas palavras.
Conseguiu levar o barco para uma praia que pouco mais era do que uma plataforma rochosa, sem areia nem madeira flutuante, encravada em rochedos tão altos que, com a chuva e o nevoeiro, Filha não lhes via o topo.
Apesar de estarem frios e molhados, e de o chão ser duro por baixo das esteiras onde dormiam, Filha sentiu-se grata por não se encontrarem no mar. Depois disso, durante toda a viagem, o medo de Filha afastou-se um pouco do seu coração.
Nessa noite, aconchegaram-se uns aos outros, com K’os no meio. Em algum momento durante o sono, Filha foi acordada pelos movimentos ritmados de K’os e de Foca, que se esfregavam um no outro. Era Foca cobrando a segurança de todos.
No dia seguinte, apesar do bom tempo, não se fizeram ao mar porque K’os avistara tocas de aves nas rochas. Ela e Filha percorreram a estreita praia até encontrar uma escarpa em declive, que permitiu a Filha subir ao topo dos rochedos. Se houvesse ali um grupo de mulheres, de homens ou de rapazes ágeis, teriam feito um laço onde alguém poderia descer para se aproximar do ninho e roubar os ovos, mas, sozinha, K’os não conseguia agüentar o peso de Filha. Então, Filha deitou-se de barriga para baixo à beira do rochedo, enfiou as mãos nos buracos a que chegou, e apanhou os ovos. Depois de verificar todos os buracos, ficou com as mãos cheias de golpes e sangrando, dilaceradas pelos bicos dos pássaros, mas conseguiu arranjar um cesto cheio de ovos e apanhar várias tordas-mergulheiras, torcendo-lhes o pescoço quando elas ofereciam resistência.
Filha e K’os levaram os ovos e os pássaros para o acampamento e foram encontrar Foca, impaciente, à espera delas.
- Maré alta! - exclamou ele e, sem dizer mais nada, apontou para o barco.
Sentou-se, amuado, enquanto as duas mulheres acondicionavam a bagagem, e Filha escondeu o seu ressentimento quando Foca enfiou os polegares em quase metade dos ovos e lhes sorveu o conteúdo.
Uma vez, apontou para ele com o queixo e disse a K’os:
- Olha o que ele está fazendo.
Mas K’os respondeu apenas:
- E quem é que passa o dia remando? Não és tu.
Filha sabia que K’os tinha razão, o que só aumentou a sua raiva. Quando viviam na aldeia dos Primeiros Homens, K’os e Foca estavam constantemente discutindo, mas ali, no mar, K’os tornara-se de repente uma boa esposa, sempre preocupada com o marido. Passava as noites sentada, consertando-lhe o sax ou o chigdax, quando as suas próprias roupas precisavam mais de conserto que as dele, sempre velando para que ele comesse o melhor e dormisse com a camisa mais quente.
Como se tivesse ouvido os pensamentos de Filha, K’os disse:
- Lembra-te disto, Uutuk. Enquanto não chegarmos a uma aldeia, sem ele, morreremos.
Então Filha percebeu que a mãe não mudara. K’os sabia o que queria e limitava-se a trabalhar para consegui-lo.
Depois de mais de duas luas de viagem, a terra começou a dar árvores - abetos-negros, como lhes chamou Foca. K’os disse que elas estavam fracas e doentes, curvadas na sua luta contra o vento, e explicou a Filha que as árvores que cresciam na terra do Povo Rio eram direitas e fortes. Apesar de não ter dito nada, Filha lembrou-se de repente das árvores que havia junto da aldeia onde ela e o avô tinham vivido. Eram tão altas que até parecia que os seus ramos roçavam nas estrelas. Ali, os abetos-negros não eram mais altos do que um homem, mas pelo menos eram árvores, e ela festejou-as com K’os, entoando uma canção do Povo Rio sobre a dança das árvores.
Foca queixou-se dessa canção, e a verdade é que o sal do mar se alojara na garganta delas, porque até Filha cantava com uma voz de velha.
O mar também lhes atacara o rosto, e todos eles tinham feridas inflamadas nos lábios e nas narinas. A pele das mãos de K’os estava estalada e áspera, e, alguns dias depois de remar, ficara com os dedos tão encaracolados que só conseguia endireitá-los na manhã seguinte.
Um dia depois de terem avistado as árvores, viram também uma aldeia, e Filha teve esperança de que ficassem por ali. Era uma aldeia dos Primeiros Homens, pequena, mas até do mar se viam as elevações dos ulax, os cavaletes de suporte dos iqyax e velhos e crianças passeando pela praia, apanhando madeira e fazendo covas na areia, à procura de mexilhões. Mas Foca não parou, e limitou-se a dirigir um insulto, grosseiro e desdenhoso, às mulheres daquela aldeia.
K’os virou-se para o marido, e Filha ficou à espera que ela o repreendesse, mas ela limitou-se a fazer uma careta e continuou a remar. Pensando melhor, Filha percebeu que K’os disfarçava um sorriso e que estivera gozando do marido, e calculou que ele não tivesse sido bem-sucedido nos seus negócios naquela aldeia ou que, pior ainda, tivesse irritado algum marido.
O dia foi longo e monótono, mas, ao anoitecer, aproximaram-se de uma ilhota e chegaram a outra aldeia. Dessa vez, Foca virou o barco para a praia. As crianças foram correndo ao encontro deles, gritando que chegara um comerciante. Então os jovens e os caçadores aproximaram-se do barco e levaram-no para terra. Um deles ajudou Filha a sair e ofereceu-lhe água que trazia num odre. Filha pegou o odre, com a garganta áspera e ferida do mar, mas antes de o levar aos lábios, K’os agarrou-lhe no braço e abanou a cabeça.
- Tem cuidado, talvez ele esteja oferecendo a água para fazer negócio e não por amabilidade - disse ela, falando na língua do Povo Rio para que o jovem não a entendesse.
- É apenas água, mãe - disse Filha.
Mas K’os virou-se para o homem e perguntou-lhe o que esperava em troca. Ele respondeu com um gracejo e pediu que Filha ficasse com ele no ulax do pai.
Filha abanou a cabeça ao jovem, mas sorriu para amenizar a sua recusa. Em seguida, ela e K’os foram ajudar Foca a empurrar o barco para fora do alcance das ondas. Esperaram que Foca falasse com o chefe dos caçadores, e Filha sorriu timidamente às crianças que se juntaram à sua volta. Uma atreveu-se até a tocar-lhe na mão.
Estava cansada e doíam-lhe as pernas de passar o dia sentada no barco, e, quando K’os lhe fez sinal para que a seguisse, ela obedeceu sem pensar, de olhos postos no caminho. Deu consigo pensando que gostaria de gozar o conforto de um ulax. Tinham passado tantas noites nas praias, à mercê do vento, da chuva e das ondas!
Levaram-na para o ulax de uma velha. Era pequeno mas estava quente, e a mulher fez-lhe uma cama atrás do poste de saída. Filha esperava adormecer assim que a cama estivesse feita, mas a velha queria conversar. Filha fez um esforço para manter os olhos abertos e mordeu o interior das bochechas para que a dor a impedisse de adormecer.
A velhice murchara a pele da mulher e escurecera-lhe o rosto. A corcunda nas costas quase a obrigava a dobrar-se ao meio e os poucos cabelos brancos que lhe restavam encontravam-se atados com um nó apertado no alto da cabeça.
- A tua mãe e o teu pai ficam com o chefe dos caçadores - disse ela, soltando uma gargalhada. - Ele julga que recebeu a maior das honras, esse caçador, mas é um palerma, porque as crianças são as melhores companheiras, e as filhas são muito boas. Estou contente por estares aqui.
A velha continuou a conversar e falou de pessoas da aldeia que Filha não conhecia. Por fim, perguntou:
- Gostas de ser comerciante?
Filha sentira-se tão tranqüilizada com as palavras da velha que levou um certo tempo para entender que ela esperava uma resposta.
- Esta é a minha primeira viagem como comerciante, respondeu ela.
- Sabes onde estás?
- Não, mas esta é a segunda aldeia por onde passamos hoje - admitiu ela.
A velha riu-se.
- Como conseguirás voltar a este local se não sabes onde estás? - perguntou ela. - Contudo, parecia não estar censurando-a, porque acrescentou: - Esta é a Praia dos Comerciantes.
As suas palavras alegraram Filha. Já ouvira Foca falar daquele local e sabia que ele tencionava ficar por ali para negociar.
A velha inclinou a cabeça e examinou o rosto de Filha. Em seguida, perguntou:
- Sempre viveste na aldeia da tua mãe?
Filha não sabia o que havia de dizer, mas pouco depois respondeu:
- Há quem diga que eu já vivi noutra praia, e outros dizem que a tempestade nos arrastou, a mim e ao meu avô, de muito longe, para uma aldeia dos Primeiros Homens.
Como se falasse sozinha, a velha disse em surdina:
- Eu sabia que havia alguma coisa diferente no teu rosto.
Os olhos não são os dos Primeiros Homens e o nariz é pequeno demais. - Depois, levantou a voz e perguntou: Lembras-te desse outro local onde viveste?
- Às vezes, em sonhos, recordo-o - respondeu Filha.
- Então não te esqueças dos teus sonhos. Esse avô de que falas, lembra-se de alguma coisa?
- Ele lembrava-se de muita coisa e contou-me muitas histórias.
- Gostaria de falar com ele, mas ele deve ser como eu, deve estar muito velho para viajar - comentou a velha.
- Ele morreu há cinco Verões - disse Filha. - Mas talvez eu possa contar-te algumas das suas histórias.
A velha ficou radiante.
- Esta noite? - perguntou ela. Filha abanou a cabeça.
- Desculpa, avó, mas estou muito cansada - respondeu ela delicadamente. - Podes esperar até amanhã?
Então, como se a velha só então se lembrasse de que ela era sua convidada, pediu desculpa e apontou para um odre de água que estava pendurado numa viga.
- Chegas lá melhor do que eu, mas também deves estar com fome, e aqui estou eu pedindo que me contes histórias.
Com o queixo, apontou para um cesto cheio de ouriços-do-mar. Filha foi buscar o cesto, sentou-se e o pôs entre ambas. A velha pegou um ouriço, abriu-o e tirou as ovas com a unha do polegar. Sorveu-as e depois disse:
- O meu marido morreu há muito tempo, assim como os meus filhos, exceto uma filha que vive noutra aldeia. Uma vez, uma menina veio viver comigo. Ensinei-lhe as minhas histórias, mas ela deixou-me por um marido do Povo Rio. Mas este ano aconteceu uma coisa agradável. O irmão dessa menina veio a esta aldeia, ele e o pai, que é comerciante. O rapaz disse-me que a irmã está bem e que ela e o marido têm três filhos.
- Isso é bom - disse Filha.
- Sim, é bom - reconheceu a velha. - E, durante algum tempo, esse comerciante e o filho ficam vivendo comigo. Trazem-me toda a espécie de coisas boas para comer, coisas que uma velha tem dificuldade em arranjar.
A velha franziu os lábios e apontou para os ouriços-do-mar.
- Se eu ficar contigo durante uns tempos, talvez consiga trazer-te ouriços-do-mar - disse Filha.
A velha riu. De repente ouviu-se alguém bater no teto do ulax e o riso de um homem fanfarrão.
- Aa! Cá estão eles! - exclamou a velha, e apoiou-se no ombro de Filha para se levantar. - Estamos comendo explicou ela ao homem que entrou no ulax.
Era mais alto que os homens da aldeia de Filha, magro e mais estreito de ombros. Atrás, vinha um jovem muito parecido com ele, embora exibisse a robustez física dos Primeiros Homens. Ambos tinham o nariz comprido, com um alto no meio, e a face alongada. Usavam o cabelo entrançado na nuca, com penas e contas enfiadas nas tranças.
- Cen, que é comerciante, e o filho, Ghaden - disse a velha, fazendo as apresentações.
O jovem tinha uns olhos escuros, redondos e ternos à luz trêmula das lanternas do ulax, e Filha, envergonhada, percebeu que o fitava. Mas ele fez-lhe um sorriso de esguelha e aparentemente não deu importância à indelicadeza dela.
- Cen, Ghaden, esta é a filha do comerciante - explicou a velha, rindo-se outra vez. - Não sei como te chamas.
- Isso não me admira - disse Cen.
- Chamo-me Uutuk, mas quase toda a gente me trata por Filha.
Depois, Filha sorriu à velha e permitiu-se acrescentar num tom arreliador:
- E se amanhã te vou contar as minhas histórias, também tenho que saber como te chamas.
Foi a vez de Cen e Ghaden rirem e de se agacharem junto do cesto dos ouriços-do-mar. Filha, como se fosse a dona da casa, alcançou-lhes o cesto e, depois de eles se servirem, tirou também um ouriço, abriu-o e deu-o à velha.
- Eu não te disse o meu nome? - perguntou ela. Julguei que todos sabiam. Quem é mais velho do que eu em todas estas aldeias dos Primeiros Homens? Acho que viverei até encontrar alguém que queira aprender as minhas histórias, uma contadora de histórias que fique com os Primeiros Homens e que não se embora com um homem do Povo Rio.
Cen sorriu, baixou a cabeça e ergueu as sobrancelhas a Ghaden.
- Ela continua furiosa com a tua irmã - disse ele.
A velha fez um ar carrancudo.
- Continuo furiosa contigo, mas pelo menos trouxeste Ghaden.
Depois, disse a Filha:
- Chamo-me Qung. Estou ansiosa por ouvir as tuas histórias amanhã. - Deu uma cotovelada no braço de Ghaden e disse:
- E se elas forem boas, talvez eu resolva que vocês também as devem ouvir.
- Talvez eu já tenha resolvido ouvi-las, tia - disse Ghaden. - Que melhor presente posso eu levar à minha irmã Aqamdax do que umas histórias novas?
De súbito, Qung fez um ar muito solene e disse:
- Traga-a contigo quando voltares aqui. Gostaria muito de a ver mais uma vez antes de morrer.
- Que tenha uma vida longa, tia - disse Ghaden em voz baixa, afastando o riso das suas palavras. - Precisamos da sua sabedoria.
História de K’os
- Nem penses em comer antes de acabares de consertar as costuras - disse Foca a K’os.
Ela sorriu com doçura.
- Pensa em arranjares uma nova cobertura, marido disse ela, com uma voz melosa, enchendo as suas palavras de respeito. - Não iremos muito longe com esta.
- Entendes tanto assim de barcos? - disparou ele.
- De peles, marido - respondeu ela em surdina, logo que ele se afastou.
Havia outros comerciantes observando-os, e ela não queria que Uutuk perdesse a oportunidade de arranjar um bom marido. Muitas vezes, uma filha era avaliada pelo comportamento da mãe.
K’os atou um fio de tendão em ponta da agulha, molhou os dedos na água de um dos odres que havia no barco e umedeceu a costura. Esta estava fraca devido aos muitos buracos abertos pelo furador e começava a dar de si no local em que a cobertura esticara com a força das ondas e da água do mar. Foca deixara o barco junto dos cavaletes dos iqyax e, enquanto trabalhava, K’os examinava as marcas de cada uma das embarcações. A maioria pertencia a caçadores, mas havia três grandes barcos abertos em cima, todos com uma marca amarela, para mostrar que pertenciam a comerciantes. Os iqyax também tinham as marcas dos proprietários, pintadas de várias cores, algumas feitas com uma mão cuidadosa, outras aplicadas de qualquer maneira.
Havia um belo iqyax que se destacava dos outros, construído, sem dúvida, por um caçador dos Primeiros Homens, embora as marcas do proprietário fossem do Povo Rio. K’os segurou a agulha de osso de pássaro entre os dentes e umedeceu uma costura particularmente fraca. Massageou-a com os nós dos dedos para amaciar a pele e tentou esticá-la para fazer uma prega na parte mais gasta, mas já fizera o mesmo muitas vezes. Não havia alternativa. Teria que fazer um remendo.
Enfiou a agulha numa tira fina de pele de pássaro que arrancara da frente do seu sax e espetou-a no seu cesto da costura. Tirou um rolo de pele de foca com três dedos de largura. Com o polegar e o dedo do meio, mediu o suficiente para cobrir a parte mais gasta da costura e depois cortou a tira com a sua faca de mulher.
Como a tira estava dura e tesa, ela umedeceu com água do odre, voltou a enrolá-la com força e a pôs na boca, servindo-se da língua para verificar se ela já adquirira a maleabilidade necessária. Depois, começou a mastigá-la, trabalhando-a com os dentes.
Ao largo da baía soprava um vento frio, e K’os enfiou as mãos nas mangas e esperou que o calor lhe tirasse as dores nas articulações. Sempre tivera dores nas mãos, mesmo em criança, mas nesta viagem, de tanto remar e rebocar, o sofrimento tornara-se quase insuportável. Às vezes nem a deixava dormir.
Quando encontrasse o marido certo para Uutuk, se veria livre de Foca, que era um preguiçoso, e construiria uma tenda confortável em qualquer aldeia do Povo Rio e faria muitas luvas. Nunca mais teria frio nas mãos.
Não teria que esperar muito. Qual a dificuldade de encontrar um marido para Uutuk?
Uutuk passara a sua primeira noite na Aldeia dos Comerciantes com Qung, a contadora de histórias da aldeia, uma velha que vivia sozinha. Que melhor maneira de afastar Uutuk dos homens? K’os ensinara a menina a agradar a um homem na cama, mas não fazia sentido desperdiçar os seus favores com aqueles que não a mereciam. Além disso, K’os queria que ela tivesse um marido do Povo Rio, e os homens do Povo Rio eram melindrosos com as suas mulheres, não gostavam de as partilhar com outros. Não havia dúvida de que Salmão Branco levara Uutuk para a cama, mas ele estava muito longe, preso na sua pequena ilha.
Mesmo que K’os tivesse se decidido por um marido dos Primeiros Homens para Uutuk, nunca teria escolhido Salmão Branco. Era preferível optar por um homem que vivesse ali, na Aldeia dos Comerciantes. Mesmo nos seus melhores tempos, a aldeia de Rio Próximo nunca fora tão grande. É claro que K’os preferia viver numa tenda do Povo Rio do que num ulax, mas compreendia a necessidade das casas subterrâneas junto do mar do Norte, onde muitas vezes o vento era tão forte que jogava um homem adulto ao chão.
Era uma pena que, quando ela fugira dos Caçadores de Morsas, não tivesse ido parar ali. Teria sido preferível encontrar um marido naquela aldeia, que era próspera graças a tudo aquilo que os comerciantes traziam e não ficava tão distante do Povo Rio como a aldeia de Foca. Mas se tivesse ficado ali, não teria Uutuk.
K’os esfregou a tira de pele de foca com os nós dos dedos, introduziu-a na costura e costurou com todo o cuidado, certificando-se de que a agulha não perfurava completamente a camada exterior da cobertura do barco. Era um trabalho meticuloso, e às vezes ela era obrigada a parar e a esticar os dedos, que ficavam dormentes, mas por fim terminou.
Endireitou e arqueou os ombros e depois começou a verificar as outras costuras. Quando precisava descansar os olhos, parava e concentrava-se em algo distante ou voltava a observar os iqyax que se encontravam nos cavaletes. O iqyax dos Primeiros Homens marcado com cores do Povo Rio parecia atraí-la.
”Sentes falta do teu povo”, pensou ela, mas depois concluiu que havia outro motivo para as marcas lhe chamarem a atenção. Ela já as vira. Mas onde?
De repente, lembrou-se, e foi como se tivesse levado um murro no estômago. Não, não fora num iqyax. Fora na bainha que protegia o arco de um caçador, no fardo de um comerciante, junto de uma cabana do Povo Rio. Era a marca de Cen. O coração de K’os alvoroçou-se. Mesmo que ele tivesse trocado o iqyax, o novo proprietário teria pintado as suas próprias cores por cima das de Cen, e que probabilidade havia de dois homens escolherem a mesma marca constituída por três círculos e linhas tracejadas?
Ela teria que convencer Foca a sair da aldeia, o quanto antes. Cen só tinha mal a dizer dela, e havia sempre a possibilidade de ele ter descoberto que fora ela quem matara a mulher dele, Gheli.
Cen devia estar-lhe grato. Fora um idiota ao tentar esconder quem ela era mudando-lhe apenas o nome. Gheli ou Folha Vermelha, qual era a diferença? Ela fora a mesma mulher egoísta, mas Cen só conhecera a parte boa e não fazia idéia de que a mulher era capaz de matar. K’os devia tê-lo avisado, mas como podia Cen acreditar em qualquer coisa que ela dissesse?
E agora, sentiria-se Cen obrigado a vingar-se dela? O que aconteceria se ele a matasse?
K’os deu uma gargalhada. Era uma pergunta disparatada. Ela sabia o que aconteceria. Foca aceitaria Uutuk como esposa.
Até uma criança perceberia o desejo nos olhos de Foca sempre que olhava para a moça, sobretudo quando julgava que K’os não estava observando-o. Que outro motivo levaria Uutuk a retrair-se sempre que o homem se aproximava dela?
K’os encolheu os ombros, como se estivesse conversando consigo própria. Sim, se ela morresse, Foca ficaria com Uutuk. Mas isso não seria necessariamente assim tão mau. Com certeza, depois de morta, K’os teria poder suficiente para mudar a sorte de Foca, para o fazer passar uns maus bocados na vida. É claro que ela não queria mal a Uutuk, mas a moça era nova e podia arranjar outro marido, um caçador do Povo Rio que a levasse para a aldeia de Chakliux.
Quem é que não sabia que os espíritos podiam intrometer-se nos sonhos? Se estivesse morta, K’os podia segredar os seus desejos ao ouvido de Uutuk, e a moça poria em Prática o seu plano de vingança, não só sobre Foca, como também sobre Chakliux e Aqamdax.
Por isso, a morte não era o pior que lhe podia acontecer. Porque preocupar-se com Cen? Como é que ela podia esconder-se dele se estavam ambos na mesma aldeia? K’os mudara um pouco, mas não o suficiente. Mesmo com as tatuagens e o cabelo cortado com uma franja sobre a testa, mesmo com as roupas dos Primeiros Homens, ele a reconheceria.
K’os empinou o queixo e cerrou os dentes. Era raro fazer o papel de lebre, enfiando-se na terra para enganar os seus inimigos. Quase sempre, ela era o lobo.
- Falas bem a nossa língua, do Povo Rio - disse Cen.
Filha baixou os olhos por delicadeza, mas não pôde deixar de sorrir. Inclinou-se para Qung e traduziu o cumprimento. Cen desatou a rir, e Filha levantou a cabeça, confusa.
- Eu entendo o que ele diz, filha - disse Qung. Afinal, sou contadora de histórias, e o dom das línguas é algo que qualquer contador de histórias deve fazer seu.
Estavam sentados no ulax de Qung, comendo peixe seco, defumado e conservado em óleo de foca. Era um sabor que pertencia à infância de Filha, aos seus primeiros tempos no ulax de K’os, e o paladar a fez sentir-se à vontade com aquela nova gente.
Dormira até de manhã e, ao acordar, vira que Cen e o filho estavam à sua espera. Sabia que K’os e Foca deviam ter trabalho para ela, mas como podia ela esquivar-se tão depressa à hospitalidade de Qung? K’os entenderia, e a fúria de Foca não duraria muito.
Ficou ouvindo Cen, que falou da viagem que fizera à aldeia do filho e depois àquela praia, mas por fim pegou o sax e levantou-se.
- Tenho de ir falar com a minha mãe. Ela deve ter trabalho para mim.
Qung estendeu o braço e agarrou o pulso de Filha, obrigando-a a sentar-se outra vez nas esteiras.
- A tua mãe disse-me que podes ficar aqui enquanto te der vontade - disse Qung. - Além disso, prometeste contar-me histórias da ilha em que viveste quando eras pequena, antes de seres uma das nossas.
Ghaden levantou a cabeça, e Filha viu a sua surpresa.
- Tu não és dos Primeiros Homens? - perguntou ele.
- Achas que ela parece uma mulher dos Primeiros Homens? - perguntou Qung.
Ghaden fitou Filha e sorriu, abrindo metade da boca como se escondesse um gracejo. Filha sentiu-se corar e disfarçou o seu embaraço com palavras.
- Venho de uma aldeia do outro lado do mar - disse ela e olhou para o chão, para Cen, mas não para Ghaden. Demos a nós próprios o nome dos barcos que fazíamos. Eu era muito pequena e quase não me lembro nem da aldeia nem do meu povo. Mas o meu avô dizia que fomos atacados por outra aldeia, pelos seus guerreiros. Ele e eu escondemo-nos num barco e, durante a noite, uma tempestade empurrou-nos para o mar. Lembro-me de que a viagem foi longa, que todos os dias o frio parecia aumentar, mas depois encontramos as ilhas dos Primeiros Homens.
- O teu avô já não é vivo? - perguntou Cen.
Com um nó na garganta, Filha foi obrigada a tossir para conseguir falar.
- Ele morreu faz agora cinco anos, mas eu conservo aqui a sua sabedoria e as suas histórias - disse Filha, pondo a mão no meio do peito, sobre o coração.
- Já que nos prometeste histórias, agora é uma boa hora - disse Qung, erguendo as sobrancelhas e olhando para Cen. - Nae?
A velha sorriu ao pronunciar a palavra do Povo Rio.
- É - reconheceu Cen. - Seria uma boa hora para nos contares uma história desse Povo Barco. Lembras-te dos seus ulax? Lembras-te da sua ilha? Sabes quantos dias passaste no barco?
Qung desatou a rir.
- Perguntas de comerciante, não há dúvida - observou ela.
- E que mal há nisso, tia? Eu sou comerciante - disse ele.
Qung encheu a boca com um naco de peixe e desviou o olhar de Cen, o que era um insulto, mas com graça. Fez sinal a Filha e disse:
- Começa, começa. Somos todos ouvidos.
Filha inclinou a cabeça por instantes, pensando por onde começar. Pelo ataque dos guerreiros do Povo do Deus-Urso, decidiu finalmente. Cen e Ghaden gostariam dessa história. Os homens pareciam gostar de histórias de lutas. Filha contou-lhes tudo aquilo de que se lembrava e depois respondeu às perguntas deles. Repetiu histórias que o avô lhe ensinara sobre a sua aldeia e do seu povo, dos homens e da pesca. Cen fez perguntas sobre os barcos com flutuador, mas Filha não se lembrava suficientemente bem deles para o elucidar. Por fim, disse:
- Talvez fosse melhor perguntares à minha mãe. Ela sabe descrever as coisas e talvez consiga fazer um desenho na areia. O barco apodreceu há muito tempo, e eu ainda era pequena quando o vi pela última vez.
- Dizes que o teu pai se chama Foca? - perguntou Cen.
- Sim.
- Julguei que conhecia quase todos os comerciantes dos Primeiros Homens, mas não me lembro dele.
- Ele não faz muitas viagens de negócios. A nossa ilha fica muito longe. Já foste lá?
- Não. Há muito poucas aldeias até chegar lá. A distância não justifica que um comerciante perca tanto tempo na viagem.
Ghaden inclinou-se para a frente, como se quisesse observar o olhar de Filha, e disse:
- Mas o meu pai já foi às aldeias do Povo Tundra, onde o Sol desaparece durante todo o Inverno e passa o Verão dançando no céu. Fez negócio com os homens das aldeias dos Caribus, com os Morsas, o Povo Rio e os Primeiros Homens.
Era uma gabarolice suave, que aqueceu o coração de Filha.
- E tu também és comerciante? - perguntou ela.
- Não, eu sou caçador - respondeu Ghaden.
Filha viu um lampejo de desilusão nos olhos de Cen, que desapareceu rapidamente, e Ghaden acrescentou:
- Às vezes, finjo que sou comerciante. Vale a pena o incômodo para eu passar algum tempo com o meu pai.
Cen riu e depois perguntou a Filha:
- A tua mãe veio contigo?
A maioria das mulheres dos comerciantes não acompanhava os maridos nas suas viagens. Em todas as aldeias havia sempre mulheres dispostas a serem esposas por pouco tempo, e qual a mulher que queria trocar o seu ulax, ou a companhia dos filhos, por longas noites passadas em praias, ao frio, ou por longos dias nos caminhos da tundra?
- Ela gosta de viajar com ele - disse Filha. - Mas esta é a minha primeira viagem. A minha mãe é uma mulher do Povo Rio, e trouxe-me porque espera arranjar-me um marido do seu povo.
- Um marido do Povo Rio! Que disparate! Um marido dos Primeiros Homens é muito melhor - resmungou Qung.
Filha mordeu as bochechas para não falar em Salmão Branco e teve o cuidado de não olhar para Ghaden. Já dissera mais coisas do que a delicadeza aconselhava, e os seus pensamentos estavam cheios demais de Salmão Branco para que ela pensasse noutro homem como marido. Além disso, o rosto de Ghaden, que pertencia ao Povo Rio, era-lhe estranho, o seu nariz longo e adunco, o sua testa pesada. Mas estava convencida de que qualquer mulher se habituaria à cara do marido, fosse ele como fosse. Afinal, o coto do braço do avô, apesar de enrugado, não a incomodava.
O que era um nariz grande comparado com isso?
- A tua mãe é do Povo Rio... - disse Cen, em voz baixa, como se falasse consigo próprio. - Como é que ela chegou às ilhas dos Primeiros Homens?
- Esse é um assunto de que ela nunca fala - respondeu Filha. - Mas uma vez, uma das outras mulheres da aldeia disse que ela tinha sido escrava dos Caçadores de Morsas. Talvez ela tenha fugido, ou eles a tenham vendido aos Primeiros Homens.
- Quando tu ainda eras pequena houve grandes lutas entre duas aldeias do Povo Rio - explicou Cen a Filha. As mulheres e as crianças eram feitas escravas. Talvez ela fosse de uma dessas aldeias e, se assim for, talvez eu a conheça.
- O nome dela dos Primeiros Homens é Velha, mas entre o Povo Rio era conhecida por K’os - disse Filha.
Quando Filha pronunciou este nome, estava oferecendo peixe a Qung e não viu a expressão do olhar de Cen.
- K’os... Já ouvi falar desse nome - disse Qung. Olhou por cima do ombro para Cen e depois, confusa, franziu a testa. Filha virou-se e viu que Cen se levantara de repente e se preparava para subir o poste.
- A conheces, Cen? - perguntou Qung.
Cen parou, virou-se para trás e fez um esforço para se rir, mas o riso saiu-lhe da boca como se fosse uma praga.
- Uma vez, há muito, muito tempo, ela esteve para ser minha mulher - disse ele. Em seguida, empinou o queixo e perguntou a Ghaden: - Lembras-te dela?
- Lembro. Quando eu vivia na aldeia de Rio Primo, ela vivia lá. A minha irmã Aqamdax foi escrava dela - respondeu Ghaden com amargura.
A linha do queixo de Cen retesou-se, como se ele tivesse cerrado os dentes. Agradeceu a comida a Qung e depois, delicadamente, forjou uma desculpa para ir embora.
- Ghaden, vem comigo - disse ele. - Tenho umas coisas para tu fazeres. Talvez haja outra oportunidade de ouvirmos as histórias.
Depois, como se se tivesse lembrado de que Filha ainda ali estava, acrescentou:
- Foi agradável ouvir falar do Povo Barco.
Os dois homens saíram, e Qung, abanando a cabeça ao ver a quantidade de comida que sobrara, encolheu os ombros e disse:
- Os homens estão sempre atarefados e nunca conseguem ficar sentados no mesmo local durante muito tempo.
Quando saíram, já longe do ulax de Qung, Cen disse a Ghaden:
- Uutuk é bonita, mas afasta-te dela. Se ela for como a mãe, só te trará azar. - Depois, olhando para Ghaden de frente e com um ar frio, acrescentou: - Tens mercadorias para despachar, nae? Despacha-as depressa. Não ficaremos nesta aldeia tanto tempo como eu pensava.
Em seguida, afastou-se e encaminhou-se para o ulax do chefe dos caçadores.
Ghaden já ouvira várias histórias sobre K’os, cochichos. Diziam que ela matara os próprios maridos. Quando ele voltara à aldeia de Rio Próximo com Chakliux e Aqamdax, eles só tinham aceito ficar se K’os - que então era escrava da velha Bico-de-Gaivota - fosse vendida a outra aldeia. Sok, o irmão de Chakliux, quisera matá-la, mas Chakliux continuava dizendo que ela era mãe dele e que não sujaria as mãos com o sangue dela.
A mulher também vivera na aldeia de Cen - a aldeia dos Quatro Rios - e Ghaden ouvira dizer que Cen a obrigara a partir. Ghaden nunca fora a essa aldeia, embora Cen vivesse lá com a mulher e duas filhas. Prometera a si próprio que iria lá nesse ano, para conhecer as duas irmãs que nunca vira.
Pouco depois da morte de Mordedor, Ghaden aceitara uma jovem como esposa. Três anos depois, ela morrera ao dar à luz. Desde então, Ghaden pensara em arranjar outra mulher, mas nenhuma o preenchera e ele contentara-se em ficar vivendo na tenda de Chakliux e Aqamdax, e arranjava alimento para as viúvas e para os velhos.
Às vezes, o pai insistia com ele para que arranjasse uma mulher de Quatro Rios e fosse viver na tenda dele, mas o espírito de Ghaden estava com as pessoas da aldeia de Chakliux. Nessa época, os caçadores não eram muitos. Além disso, como poderia ele separar-se de Yaa? Ela fora uma irmã e uma mãe para ele desde que Folha Vermelha matara a sua verdadeira mãe, Daes. Como podia ele deixar Aqamdax e Chakliux, ou mesmo Sok? Não, ficaria na aldeia de Chakliux e um dia arranjaria outra mulher.
De repente, o rosto de Uutuk brilhou na mente de Ghaden, e ele deu consigo pensando nas histórias que ela contara. Não falara como uma contadora de histórias, mas mais como uma mãe que conta histórias a um filho, e era verdadeiramente um tesouro para qualquer homem.
Não, pensou Ghaden. Ela era filha de K’os. E ele não era tão burro que não percebesse o perigo que havia nisso.
Quando Cen viu K’os, ela vestia um sax dos Primeiros Homens. Estava de costas e o seu cabelo começara a branquear, mas ele reconhecera-a. Havia energia no porte dos seus ombros, graça nos seus movimentos, e quem podia ignorar a perfeição do trabalho de costura do seu sax? Cortado à maneira dos Primeiros Homens, estava enfeitado com bicos de pássaro e com franjas de tendão tingido de cores claras.
K’os encontrava-se trabalhando no barco de um comerciante. O cesto de costura que ela tinha a seu lado fora-lhe oferecido por Cen. Ao ver que ela ainda o conservava, Cen sentiu um aperto no coração. Às vezes, ela aparecia-lhe em sonhos, tão nova e bela como quando ele a vira pela primeira vez, quando ele não desejava mais nada na vida do que fazer dela sua esposa.
Há muito tempo, ouvira dizer que ela fora vendida como escrava aos Morsas, e evitara a aldeia deles por este motivo. Mas depois ela começara a visitar os seus sonhos com tanta freqüência que ele concluíra que ela tinha morrido. Não se atreveu a chorá-la e, pelo contrário, rejubilou ao pensar que não voltaria a vê-la.
A maldade de K’os superava tudo e todos. Cen estremeceu ao pensar que ela criara Uutuk e perguntou a si próprio que horrores viveriam por trás dos olhos escuros daquela moça.
Enquanto trabalhava, K’os levantava a cabeça de vez em quando e examinava os iqyax. Com certeza reparara no dele; Cen duvidava que ela se tivesse esquecido das cores e dos símbolos que ele usava para assinalar o que lhe pertencia.
Por instantes, ficou olhando para a angra, uma baía abrigada, perfeita para uma aldeia, com boa pesca em águas calmas e de fácil acesso ao mar. O nevoeiro começara a aproximar-se, espalhando os seus dedos pelos vales e atingindo os montes que se erguiam por trás da baía.
Como era comerciante, Cen usava as roupas das aldeias que visitava, em parte porque em geral era essa a melhor opção por causa do tempo, e em parte porque os aldeões o aceitavam como se fosse um igual. O sax dos Primeiros Homens era uma peça de vestuário confortável, solta nos ombros para ele poder remar, e as peles de pássaro protegiam-no da chuva. Mas Cen usara calças de pele de caribu durante muitos anos, e o sax comprido não era suficiente para o aquecer. A atmosfera estava úmida, e ele sentia o frio nas ancas e nos joelhos.
Suspirou e olhou de novo para K’os. Como uma esposa dos Primeiros Homens, ela prendera o cabelo com um nó apertado na nuca e, enquanto trabalhava, levantou a mão para enfiar várias madeixas soltas no nó. Aquele gesto era familiar demais. De repente, Cen sentiu o calor dos cabelos dela no seu corpo, quando ambos estavam deitados, nus, na sua tenda. Era como se sentisse o seu perfume.
Quando conhecera Gheli, Cen convencera-se de que K’os perdera o poder que tinha sobre ele, mas como podia negar que uma parte dela estava ainda alojada no seu coração? De súbito, irritou-se por não conseguir controlar os seus sentimentos. Um homem com idade para ser avô não devia comportar-se como um jovem caçador, deixando que o desejo comandasse a sua mente.
Estivera tempo demais afastado da sua mulher. Talvez houvesse uma mulher dos Primeiros Homens que trocasse os seus favores por óleo ou carne seca de caribu. Se assim fosse, Cen tinha que encontrá-la.
O descontentamento levou-o a mexer-se. Atravessou a praia na direção dos cavaletes dos iqyax, propositadamente de costas para K’os, fingindo que examinava os barcos.
- Vejo que encontraste um marido dos Primeiros Homens - disse ele na língua do Povo Rio, apesar de estar voltado para os iqyax.
- E tu... encontraste outra mulher? - perguntou K’os, como se estivesse à espera dele, como se eles falassem com freqüência e a delicadeza ou os cumprimentos não fossem necessários entre ambos.
- Outra mulher? - perguntou Cen, confuso.
Depois, atirou a cabeça para trás e compreendeu. Quando K’os saíra da aldeia dos Quatro Rios, Gheli estava doente. Cen teve que admitir que ela fora boa para eles, que dera a Gheli muitos medicamentos diferentes, mas K’os devia ter-se convencido de que aquele era um caso desesperado.
- Achas que eu seria capaz de viver sem uma mulher? perguntou ele, virando-se para ela.
K’os mudara mais do que ele julgava. Durante anos, conservara-se, com a pele sem rugas, o cabelo escuro e os olhos brilhantes. Depois de sair da aldeia dos Quatro Rios, devia ter tido uma vida difícil. Rugas profundas sulcavam-lhe a face, do nariz até ao queixo. Tinha papos no canto dos olhos, e na pele viam-se ainda as cicatrizes e as feridas da viagem por mar. É claro que até o rosto de Uutuk tinha cicatrizes, que desapareceriam, mas enquanto que a face da moça era lisa como a de uma mulher do Povo Rio, K’os adotara as tatuagens dos Primeiros Homens. Linhas azuis, quase pretas, atravessavam-lhe a zona plana da face.
O vento levantara-lhe o sax, mostrando uma parte da coxa, e também ali Cen viu as marcas que faziam dela uma mulher dos Primeiros Homens. Mesmo assim - apesar das tatuagens e da passagem do tempo - ainda era bela. Nenhum homem passaria por ela sem se virar para admirar aquele rosto e, para um caçador dos Primeiros Homens, aquelas tatuagens deviam realçar-lhe a beleza. Cen teve um desejo súbito de lhe puxar o sax para baixo para cobrir a perna, um sentimento de posse próprio de um marido.
”Ela não é minha”, pensou ele. ”Nunca foi minha, e eu não a quero.”
- Mas porque eu precisaria de outra mulher? - perguntou ele. - Para um comerciante, já é difícil tomar conta de uma e encontrar uma mulher que seja fiel ao marido quando ele passa tanto tempo longe de casa.
- Julgava que não querias criar Daes sem uma mãe retorquiu K’os. - Eu teria sido uma boa mãe para ela. Bem sabes que eu não matei o meu jovem marido do Povo Rio. Tu sabes melhor do que ninguém.
Cen deu um passo na direção de K’os, agachou-se, e o vento que lhe açoitava a cara obrigou-o a piscar os olhos.
- Continuo pensando que foste tu que o mataste.
Ela sorriu.
- Estás enganado. Foi terrível para mim teres convencido o Povo Quatro Rios de que fui eu.
- Se eu os tivesse convencido, já estarias morta. Eles limitaram-se a pedir que tu fosses embora. - Cen levantou os braços e abriu as mãos. - Parece que estás saindo-te bem. Conheci a tua filha Uutuk. É uma bela moça e fala bem de ti e do teu marido.
- Alegra-te por mim, Cen - disse K’os. - Estou velha, mas tenho uma vida boa. Fala-me da aldeia dos Quatro Rios e da tua família. Arranjaste um marido para Daes? Ela já deve estar na idade de casar.
- Está prometida a um caçador, mas continua a viver na minha cabana. A mãe diz que ela é trabalhadora e que ajuda a tratar da irmã mais nova.
- Então, deste outra irmã a Ghaden - disse K’os. Da última vez que o vi, ele era um rapazinho. Agora deve estar um homem. Casou? Tem filhos?
Cen não respondeu e virou as costas ao seu iqyax. Uma coisa era falar das filhas que viviam longe da Praia dos Comerciantes, fora do alcance da maldade de K’os; outra era pensar em Ghaden. Ele mudara muito, e talvez K’os não o reconhecesse.
Cen passou a mão pelo seu iqyax, e K’os disse:
- É de longe o mais bonito da praia. Onde o arranjaste?
- Comprei-o. Há um caçador do Povo Rio que faz iqyax à maneira dos Primeiros Homens. - Cen encarou-a. Ele foi contemplado com o dom da lontra-marinha.
Cen olhou para os pés, com um simples pestanejar, mas ouviu-a assobiar e teve a certeza de que ela percebera que fora o seu filho, Chakliux, quem construiu o iqyax.
K’os deu mais alguns pontos rápidos na cobertura do barco do marido. De olhos postos no seu trabalho, disse:
- Então encontraste outra mulher.
- O teu remédio foi mais forte do que tu julgas. Gheli está viva.
A incredulidade, a raiva e o ódio deformaram-lhe a cara, como uma máscara de bailarina que tivesse caído e fosse substituída por outra, mas por fim K’os sorriu.
- Estou contente. Por ti e por Gheli. Agora fala-me da tua nova filha.
Cen encolheu os ombros. Queria acabar com aquela conversa. K’os parecia uma armadilha mortal, pronta a apanhar e a esmagar qualquer incauto.
- É um bebê - respondeu ele. - O que há para dizer? Ela chora, come e dorme.
Antes que K’os fizesse outra pergunta, ele afastou-se, curvando os ombros e passando a mão pelo cabelo, como um homem na tundra, na época das moscas e dos mosquitos.
De manhã, o negócio não estava muito animado e, pouco depois, Ghaden perguntou se podia ir pescar na enseada com alguns dos Primeiros Homens.
Cen autorizara, encolhendo os ombros. Porque obrigar Ghaden a ficar junto dele se um homem podia facilmente dar conta do recado? Além disso, seria aconselhável terem alguns peixes para oferecer a Qung, sobretudo se resolvessem sair da aldeia dali a um ou dois dias.
Ghaden apanhou várias savelhas, o peixe de sabor requintado e carne esverdeada que os Primeiros Homens tanto apreciavam, e Cen disse-lhe que as fosse levar a Qung e que depois voltasse para ocupar o seu lugar, porque ele tinha que passar algum tempo no telhado dos ulax conversando com os velhos. Muitas vezes, os melhores negócios faziam-se graças à amizade. Mas, a meio da tarde, Ghaden ainda não voltara. Por fim, Cen abandonou as suas mercadorias e dirigiu-se ao ulax de Qung.
Ghaden estava lá, ao lado de Uutuk e em frente de Qung, os três de cabeça inclinada. ”Estão a jogando alguma coisa, sem dúvida”, pensou Cen. Ghaden gostava sempre de lançar ossos, e mais do que uma vez ganhara um dos tesouros tão apreciados pelos caçadores.
Os comerciantes tinham que ser cautelosos com a sorte no jogo. Em geral, quem tinha sorte no jogo tinha azar nos negócios. Mas quando Cen se agachou ao lado deles verificou que Ghaden estava mostrando às mulheres as cicatrizes causadas pelo urso-pardo que matara Mordedor, o seu velho cão, e que quase lhe tirara a vida. Pois então, o seu filho andava a contar histórias às contadoras de histórias! Porque não? A história era boa e ele contava-a sem fanfarronices, exceto quando falava do cão. Mas a morte do cão fora muito triste, e o sofrimento na voz de Ghaden quando ele falava do que acontecera destroçava sempre o coração de Cen.
Viu o mesmo sofrimento no rosto de Uutuk, e de repente teve vontade de a proteger como se ela fosse sua filha. Por isso, foi com uma voz dura que se dirigiu ao filho.
- Estás aqui sentado quando eu te pedi que fosses se encontrar comigo e olhar pelas nossas mercadorias? Aposto que preferias ser uma mulher e passar o dia inteiro no ulax.
O queixo de Ghaden crispou-se, mas o rapaz levantou-se, vestiu a parka e saiu sem dizer nada a ninguém, exceto uma palavra de cortesia a Qung.
Uutuk ofereceu a Cen um odre de água e peixe, apontou para as esteiras e convidou-o a sentar-se. Ele ficou de pé e recusou o peixe, mas levou um odre aos lábios, fez sair um esguicho de água e, quando já estava satisfeito, limpou a boca com a mão.
Qung abanou a cabeça, despertando como se tivesse acordado de um sonho, e fitou-o com os olhos semicerrados.
- Não mudaste muito, Cen. Continuas falando mais do que é preciso. O teu filho sabe contar uma boa história.
Cen abriu a boca para responder, mas Qung levantou a mão para o mandar calar.
- Não tens motivo para te preocupares. Ele nunca será um contador de histórias. Tem as palavras e o dom, mas não o desejo.
A velha levantou-se a custo, e Cen inclinou-se para lhe dar a mão. Já de pé, espetou um dedo, agitou-o junto da face de Cen e começou a repreendê-lo como se ele fosse uma criança.
- Não faças dele um comerciante. A caça está nas mãos e no coração dele. Se ainda não percebeste isso, és mais tonto do que as tuas palavras.
Dizendo isto, Qung virou-lhe as costas e embrenhou-se no trabalho das mulheres.
Cen não teve resposta para ela e, em vez de ficar ali sem saber o que dizer, saiu do ulax. Já no telhado, parou e olhou para a praia. Avistou Ghaden puxando os fardos e dispondo as mercadorias. Por muito pouco que ele tivesse dado ao rapaz, Ghaden era um filho muito melhor do que ele próprio merecia. Muitas vezes abandonara Ghaden para ir em socorro de outras pessoas, muitas vezes ficara dependente das irmãs de Ghaden e dos maridos para o ensinarem e tomarem conta dele.
Cen nunca pedira a Ghaden que fosse para a sua tenda na aldeia dos Quatro Rios, mas isso era por causa da mulher, Gheli. Era tímida, forte à sua maneira, mas insegura no que dizia respeito ao seu próprio mérito. Cen via o medo nos seus olhos sempre que ele falava de Ghaden. E porque não? Ele era filho da mulher que Cen amara mais do que todas as outras. Gheli, apesar de ser uma boa esposa, não conseguia expulsar a falecida Daes do coração do marido. Cen arrependera-se de ter dado o nome de Daes à filha de Gheli. A criança fizera-se uma bela mulher, alta e forte como a mãe, mas muitas vezes Cen dava consigo a comparando-a com a primeira Daes, mais atento aos seus defeitos do que às suas habilidades.
Ao observar o filho, Cen teve a sensação de que o coração inchava até não lhe caber no peito. Por fim, desviou o olhar, concentrou-se no sopé dos montes e pensou noutras coisas, além de filhos bons e filhas robustas.
K’os passou as mãos pelos lados do barco de Foca, pela última vez. As costuras estavam o melhor possível. Talvez o barco os levasse até às aldeias do Povo Rio, mas K’os sentiu um nó no estômago ao pensar nessa viagem. A teimosia de Foca metera-os em confusão mais do que uma vez.
K’os era suficientemente inteligente para saber que, se discutisse com ele por causa de uma cobertura nova para o barco, isso só aumentaria a sua determinação em manter a velha. Tinha estômagos de foca cheios de óleo que eram dela, e podia negociá-los, mas detestava desperdiçá-los numa cobertura para um barco. Talvez conseguisse convencer Foca a deixá-las ali, ela e Uutuk, durante um ou dois dias, enquanto ele ia fazer o seu negócio em uma aldeia dos Primeiros Homens. Com certeza Foca não tentaria levar sozinho um barco tão pesado e convidaria outro comerciante a acompanhá-lo. E qualquer homem se apressaria a fazer-lhe sentir que ele precisava de uma cobertura nova, e Foca mais depressa daria ouvidos a um estranho do que a ela.
K’os detestava o seu desamparo. Por muitas razões, a sua vida seria muito mais fácil sem Foca, mas como poderiam ela e Uutuk, sozinhas, ir visitar o Povo Rio? Não conseguiam remar durante tanto tempo, e, mesmo que conseguissem, ela não se arriscava a voltar sozinha, sem marido, para os Caçadores de Morsas. O que os impediria de a reclamar como escrava?
K’os não era bem-vinda na aldeia de Chakliux. É claro que havia outras aldeias do Povo Rio, mas ficavam muito mais longe. Seria difícil chegarem lá, ela e Filha sozinhas, a pé pela tundra. Era uma pena que Cen a odiasse tanto. Ele conhecia todas as aldeias do Povo Rio.
Pensou em Gheli. K’os dera-lhe veneno suficiente para matar mais de três homens. Como é que ela sobrevivera?
De repente, K’os deu consigo a sorrir. Como gostaria de ter uma nova oportunidade! Ela e Gheli viam o mundo com os mesmos olhos. Seria uma bela luta, a delas, e K’os estaria em vantagem porque Gheli não sabia que ela continuava lutando. As mulheres lutavam de uma forma que os homens nunca entenderiam.
K’os deteve-se um momento pensando nas guerras que travara e vencera: com a primeira mulher de Chakliux, Gguzaakk, com Raposa-Que-Ladra, com Bate-no-Chão. Cada vitória lhe trouxera um determinado tipo de poder e agora, apesar de ela estar a anos de distância dessas conquistas, sentia que elas lhe davam uma nova força.
Olhou para a elevação de terreno ao fundo da praia e avistou Uutuk. Sorriu a custo. Uutuk acenou-lhe e correu ao seu encontro. Os cabelos negros e soltos da moça esvoaçavam ao vento, e o coração de K’os alvoroçou-se de alegria. Aquela filha lhe proporcionaria tudo o que ela desejava.
Talvez fosse esse o poder de Gheli, a força com que enfrentara o veneno de K’os - a sua esperança na filha. K’os riu. Uma filha com o nome da mulher que a própria Gheli matara!
K’os começou a pensar. Talvez fosse essa a maneira de enfraquecer o poder de Gheli - destruir essa filha. É claro que a maneira mais fácil era revelar a Cen que Gheli e Folha Vermelha eram uma e a mesma pessoa. Então seria o próprio Cen a matar Gheli. Mas a vitória de K’os seria maior se fosse ela própria a matá-la. Porque havia de negar a si própria essa alegria? Afinal, havia muitos caminhos para a aldeia dos Quatro Rios.
K’os encostou-se ao barco de Foca. Nas viagens de negócios, ela atava sempre vários sacos vazios a um dos bancos do barco. Escolheu o maior e tentou desfazer o nó. A maresia apertara-o ainda mais e a força dos seus dedos não era suficiente. Serviu-se dos dentes e, com um gesto de mão, recusou a ajuda de Uutuk. Quando conseguiu abrir o saco, os cordões endurecidos pelo sal tinham-lhe queimado os lábios. Resmungou com a dor e levou o saco para junto de uma poça de água, apanhou três ouriços-do-mar e aproximou-se de outra poça.
- Tens passado a manhã trabalhando, mãe - disse Uutuk. - Vai para o ulax da contadora de histórias. Qung está lá sozinha. Se a ouvires, aprendes muito sobre esta gente.
K’os franziu a testa. Julgaria Uutuk que ela era alguma criança que precisasse de informações sobre os hábitos dos Primeiros Homens? Mas depois percebeu que a moça só estava preocupada por a mãe estar trabalhando demais.
- Aã, Uutuk, bem sabes o que acontece quando duas velhas se juntam. Dali a pouco o ulax ficaria tão cheio de palavras que mais ninguém poderia entrar lá.
Uutuk riu.
- Pelo menos deixa-me apanhar os ouriços.
A moça tirou o saco das mãos de K’os, aproximou-se dela e apontou com o queixo para os comerciantes que estavam sentados na praia, acrescentando em voz baixa:
- Estás vendo aquele rapaz que está de pé atrás daquele monte de peles? É um caçador do Povo Rio, e o pai é comerciante.
K’os levantou a cabeça para ver, mas os seus olhos não eram tão fortes como tinham sido, e ela percebeu apenas que ele era bem constituído, mais alto que os Primeiros Homens, mas baixo para um caçador do Povo Rio.
- Há nele alguma coisa dos Primeiros Homens - disse ela.
- Qung diz que a mãe dele pertencia aos Primeiros Homens.
K’os pigarreou e deu mais firmeza à voz.
- Conheceste o pai dele? - perguntou ela, continuando a trabalhar para não se denunciar. Inclinou-se para apanhar mais um ouriço.
- Conheci. O pai dele chama-se Cen. É um comerciante do Povo Rio.
- Vai ver o que ele tem - disse K’os. - Talvez ele aceite um odre de óleo de foca em troca de alguma coisa que te agrade.
- Vem comigo, mãe - disse Uutuk. - O que entendo eu de negócios?
- Tu disseste que ele era caçador e não comerciante. Uma moça pode conseguir mais do que deve de um homem como aquele.
K’os viu a insegurança no olhar de Uutuk, mas a moça devolveu-lhe o saco e percorreu a praia em direção aos comerciantes. K’os fingiu que andava apanhando ouriços-do-mar de poça em poça até se aproximar o suficiente para ver o filho de Cen.
Era Ghaden, sim, sem dúvida. Apesar de não ter certeza de que o reconheceria se não lhe tivessem dito quem ele era. Ghaden vestia um sax dos Primeiros Homens. Cen podia ser um palerma quanto a mulheres, mas era o melhor comerciante que ela conhecia. Era uma pena que não pudessem viajar juntos para que Foca aprendesse alguma coisa com ele. Mas Foca era tão casmurro que talvez nem aprendesse coisa nenhuma.
O rapaz tinha o nariz de Cen, o que era uma pena. Mas também tinha o rosto ossudo do pai. Havia qualquer coisa nos seus olhos que lembrou a K’os os Primeiros Homens. E quem podia duvidar que os ombros largos vinham do lado da mãe?
Uma cicatriz esbranquiçada descia-lhe pelo pescoço desde a orelha esquerda e prolongava-se no interior do sax.
Quando Gheli tentara matar o rapaz, servira-se de uma faca, mas aquela cicatriz era recente demais, ainda não mirrara.
K’os viu Uutuk aproximar-se dele. O jovem encheu o peito de ar como se se preparasse para se gabar de uma grande proeza. Uutuk esperou que outros fizessem os seus negócios e inclinou a cabeça com modéstia. Apalpou uma pele de caribu e acariciou uma pele de raposa.
Os objetos do Povo Rio atraíram K’os, que desejou estar longe das praias e do mar, voltar a passear naquelas trilhas da floresta, ouvir o vento nos ramos dos abetos-negros.
Deixou-se embalar pelo sonho das plantas que colheria, das pessoas que resolveria, ou não, curar.
Mesmo no seio do Povo Rio, Uutuk, com o seu belo rosto, depressa arranjaria um marido forte. Então, o que impediria K’os de vir a ser a curandeira nessa aldeia do jovem marido? Ela e Uutuk depressa ganhariam tal força que nem Chakliux seria capaz de lhes fazer frente.
Ghaden observou Uutuk pelo canto do olho. Custava-lhe pensar que a mãe dela era K’os. Sentia-se contente só de olhar para ela. Perguntou a si próprio se todas as mulheres da sua ilha, essas mulheres do Povo Barco, de que ela falara, seriam tão bonitas como ela.
Não ouviu o que um caçador dos Primeiros Homens estava dizendo e tentou concentrar-se de novo no negócio que o homem tentava fazer - peles de leão-marinho em troca de peles de caribu. Ghaden fingiu que pensava na oferta, mas por fim disse:
- Eu consigo arranjar peles de leão-marinho junto dos Caçadores de Morsas, e até naquelas aldeias do Povo Rio mais próximas do mar do Norte.
Mas depois reconsiderou. Passou as mãos pelas peles que o homem lhe oferecia.
- Elas são boas, grandes e bem raspadas - reconheceu ele. Falava baixinho, como se discutisse consigo próprio, mas suficientemente alto para que o caçador dos Primeiros Homens o ouvisse. - Se eu te favorecer muito, o meu pai não me leva com ele na próxima viagem.
- Três por duas, então - disse o caçador dos Primeiros Homens.
- Três peles de leão-marinho por duas de caribu? - repetiu Ghaden, olhando para o homem de sobrancelhas erguido.
- Foi o que eu disse.
Ghaden passou uma mão pelo topo da cabeça e suspirou, como se estivesse frustrado.
- Tu é que devias ser comerciante - disse ele. - Fazes bons negócios. - Depois, sorriu com relutância e empurrou o monte de peles de caribu em direção ao homem. - Duas por três. Escolhe as que quiseres.
O caçador dos Primeiros Homens deu uma palmadinha no braço de Ghaden.
- Há muito tempo que faço isto - disse ele. - Aprenderás. O teu pai não se arrependerá de te ter trazido.
O caçador escolheu as suas peles e deixou as de leão-marinho. Ghaden as expôs junto dos outros objetos para negociar. Outro caçador que estivera examinando uma parka afastou-se e Filha, então a sós com Ghaden, comentou na língua do Povo Rio:
- Conseguiste o que querias neste negócio, não é verdade?
Ele sorriu.
- As peles são boas e o caçador voltará para comprar mais coisas.
- Dizes que esta é a primeira viagem de negócios que fazes com o teu pai?
- À Praia dos Comerciantes, sim, mas já fui a algumas aldeias do Povo Rio com ele e com o marido da minha irmã, Chakliux.
Filha franziu a testa. O nome era-lhe familiar, como se tivesse ouvido falar dele em criança. Tentou situá-lo, mas desistiu quando Ghaden perguntou:
- Tens alguma coisa para negociar?
- Não, mas a minha mãe tem óleo - respondeu ela.
- O que é que ela quer?
- Ela disse-me que escolhesse alguma coisa.
Filha pegou uma parka. Era feita de pele de caribu raspada até ficar branca. As costuras em volta dos braços e em cima dos ombros eram debruadas de pele branca.
Ghaden alisou o pelo com a ponta do dedo e disse:
- É doninha de Inverno. São animais pequenos, como os lêmingues, mas esguios e compridos, com o nariz pontiagudo e a ponta da cauda preta. No Verão, as doninhas são castanhas, e no Inverno tornam-se brancas.
Ela sorriu e abanou a cabeça, dizendo:
- Há muitos animais que eu não conheço. Preciso passar um ano numa aldeia do Povo Rio, só para ver o que perdi.
- Talvez um caçador do Povo Rio gostasse de te mostrar a sua aldeia - disse Ghaden.
Envergonhada, Filha corou subitamente. Já tinha idade para não dizer certas coisas. O que lhe acontecera à língua? De repente, era como se a sua boca pertencesse a uma criança e não a uma mulher.
- Eu tinha esperança que o meu pai passasse pelas aldeias do Povo Rio - disse ela e, ao fitá-lo, viu a desilusão no seu olhar. Só piorara a situação. - Seria bom se pudéssemos viajar juntos.
Uutuk arrependeu-se das suas últimas palavras. Era uma mulher dos Primeiros Homens, e os Primeiros Homens sabiam calar-se quando era preferível deixar algo por dizer.
Para o distrair, Filha pegou a parka e admirou a pele cinzenta e branca que enfeitava o capuz.
- É de lobo - explicou Ghaden, e Filha reparou que ele se esforçou para não sorrir.
Sim, porquê arriscar um sorriso que podia levar outra pessoa a acreditar que o comerciante era o mais beneficiado? Mas, mesmo assim, Ghaden fez um trejeito com a boca, como se disfarçasse o riso. E porque não? Ela estava portando-se como uma criança, só dizia o que não devia.
- Estes... - disse Filha, pegando uma tira de enfeites costurados na parte da frente da parka.
- São bicos e penas de pica-pau. O pica-pau é um pássaro com um grande poder espiritual, e raramente se vê. Um homem que apanhe um pica-pau tem sorte para o resto da vida. Os bicos de pica-pau não se arranjam com facilidade.
Filha examinou as costuras. Os pontos eram finos como se tivesse sido K’os que tivesse feito aquela parka.
- O trabalho é muito bom - disse ela.
- Devia ser eu dizendo isso - respondeu Ghaden. - Tu devias falar-me dos defeitos e dizer-me porque não me dás o que eu quero.
Um sorriso transformou os olhos de Ghaden em quartos crescentes, como se a Lua tivesse voltado a nascer nesse momento.
- Não faz mal. Eu não posso comprar essa parka - disse ela. - Eu e a minha mãe só temos alguns odres de óleo de foca.
Filha levou a parka ao rosto e aspirou o aroma limpo das peles bem raspadas. Pousou-a e acariciou o tufo de pele de lobo.
- Seria uma boa parka para uma mulher - disse Ghaden.
- Uma mulher com um marido que tenha mais óleo do que precisa - respondeu Filha, virando-se para se ir embora.
- E o sax que tens vestido? - gritou-lhe Ghaden. Talvez eu quisesse trocar esta parka por óleo, óleo de boa qualidade conservado em estômagos de foca, e por um sax dos Primeiros Homens.
- Eu preciso do meu sax - disse Filha. - Como sobreviveria no barco do meu pai se só tivesse uma parka para vestir?
Ao ver que a mãe continuava a apanhando ouriços, Filha correu ao seu encontro e pegou-lhe o saco. Estava cheio e pesado.
- Queres que eu leve isso para o ulax do chefe dos caçadores? - perguntou Filha.
- Seria um bom presente para eles - respondeu a mãe. Filha atravessou a praia com o saco na mão e Ghaden gritou-lhe:
- Talvez haja alguma coisa que eu possa trocar por ouriços-do-mar!
Filha soltou uma gargalhada e, aproximando-se dele, tirou um ouriço verde do saco e o pôs em cima da esteira de comerciante.
- Um presente - disse ela.
Ele arrancou uma pena de pica-pau da parka e ofereceu-a.
- É para dar sorte - disse ele.
K’os ficou olhando para Uutuk até ela desaparecer no meio da vegetação alta que bordejava a praia. Em seguida, aproximou-se de Ghaden com passo rápido. Ele continuava de olhos postos no caminho que ia dar na aldeia, como se pudesse obrigar Uutuk a voltar. Por fim, percebeu que K’os estava na sua frente.
- Temos óleo, gordura e carne seca de caribu, parkas e calças feitas de pele de caribu - disse ele. - Há peles de lobo e de raposa, peles de pássaro e peixe seco, cabos para lanças tão retos como o local em que o mar toca no céu.
Ghaden falou como os comerciantes, com um ritmo quase cantante, e a sua voz era um prazer para os ouvidos, como a voz de um contador de histórias. Cen afirmara que ele era caçador, mas aparentemente também poderia ser comerciante, se quisesse, ou mesmo contador de histórias. Era um jovem com muitas possibilidades. K’os perguntou a si própria se Ghaden teria a sabedoria suficiente para tomar a decisão certa para a sua vida.
- Sou a mãe de Uutuk - disse K’os, falando na língua do Povo Rio. - Reparei que ela estava olhando para esta parka.
K’os inclinou-se para examinar as costuras. Se ela tivesse dúvidas de que Folha Vermelha ainda estava viva, aquela parka dissipava-as. Quem mais é que sabia costurar daquela maneira?
- Eu disse-lhe que a trocava por um sax dos Primeiros Homens, bem-feito, e por vários odres de óleo de foca.
- E ela não trocou?
- Ela disse que precisava do sax.
- É uma mulher prudente, a minha filha. K’os olhou fixamente para Ghaden.
- Não me conheces, Ghaden? - perguntou ela.
- Conheço. Lembro-me do tempo em que a minha irmã foi tua escrava - respondeu Ghaden tranqüilamente, mas K’os sentiu-lhe a raiva na voz.
- Me odeias por isso? - perguntou ela. - Nunca tiveste uma escrava? Eu própria fui escrava da velha Bico-de-Gaivota na aldeia de Rio Próximo. Talvez te lembres dela. Ela já era velha nesse tempo. Agora já deve ter morrido.
- Ainda estava viva quando saí da aldeia - disse Ghaden.
K’os sorriu.
- Ainda bem. Eu gostava dela. Apesar de não ser fácil ser sua escrava.
- Poderias ter tratado melhor a minha irmã.
- Agora percebo isso - respondeu K’os. - Mas nesse tempo, eu era uma ignorante. Em criança, fui a única filha de um bom caçador. Depois de adulta, os meus maridos foram chefes do seu povo. Eu era respeitada como curandeira, e ajudei muita gente. Não sabia o que era ser escrava. Agora que sei, nunca mais voltaria a ter uma escrava.
Ghaden observou-a, como se tentasse perceber se devia ou não acreditar nela.
- Disseram-me que os Primeiros Homens não têm as mesmas plantas que nós, os do Povo Rio, temos - disse Ghaden, como se nunca tivessem falado de escravos. Talvez haja plantas que crescem nas ilhas dos Primeiros Homens e nas quais os curandeiros do Povo Rio veriam utilidade. O meu pai trouxe folhas-de-caribu para vender.
- Eu tenho plantas - disse K’os devagar, pensando no que tinha na sua bolsa dos remédios.
Quem diria que Cen também trouxera remédios? Mas porque ela se admirava? Era curandeira quando Cen a conhecera. Com certeza, nesse tempo, ele ficara conhecendo o valor medicinal das plantas. Ela precisava de folhas-de-caribu. Era uma pena que a maior parte das plantas que ela trouxera também se crescessem na terra do Povo Rio.
- Eu tenho cixudangix - disse ela. Era a flor-das-gaivotas, mas as suas raízes tinham o dom de coagular o sangue. - É difícil de arranjar, mesmo nas ilhas dos Primeiros Homens, e não cresce em todo lugar junto das nossas aldeias do Povo Rio. - K’os estava mentindo, mas Ghaden não sabia. - Uma mulher que teve um parto difícil, ou um homem que está sangrando de uma ferida, essas pessoas devem beber um chá feito das suas raízes.
- Preciso de uma prova.
- Julgas que, lá porque eu já fui escrava, não sou honesta nos meus negócios?
- Como a venderei a outra pessoa se não souber o que tenho?
O rapaz não era burro. Fazia lembrar a meia-irmã, Aqamdax, uma mulher que dera a K’os muitos motivos para se arrepender.
- Eu dou-te um pacotinho - disse ela. - Mostra-o aos velhos dos Primeiros Homens. Eles te dirão o que é.
- Se os velhos considerarem que é um negócio justo, eu dou-te folhas-de-caribu em troca - disse ele.
- Combinado. Eu volto, e não tenhas pressa de vender essa parka. Ficaria muito bem na minha filha.
Apressada, K’os encaminhou-se para o ulax do chefe dos caçadores. Ficou aliviada ao ver que lá só estava o velho pai do caçador, um homem que passava a maior parte dos dias num mundo que conhecera em criança. Quando a viu, o homem julgou que era a irmã, uma mulher que morrera há muito tempo. Chamou-a por esse nome, e K’os julgou sentir o espírito da morta rondando-a. Estremeceu e ficou com pele de galinha nos braços.
Encheu-lhe uma tigela de caldo e disse:
- Cala-te e come. Não sabes o que dizes.
Em seguida, vasculhou a sua bolsa dos remédios, descobriu o pacotinho que pretendia, pegou também um dos seus odres de óleo de foca e saiu do ulax.
Quando entregou o cixudangix a Ghaden, disse:
- Disseste que aceitarias óleo e um sax dos Primeiros Homens em troca dessa parka.
K’os apontou com o queixo para a parka de pele de caribu e não pôde deixar de tocar na pele de lobo macia que debruava o capuz. Noutros tempos, fizera parkas como aquelas, ou ainda mais belas, mas onde fora Folha Vermelha arranjar todos aqueles bicos de pica-pau? K’os nunca vira tantos. Ela e Uutuk poderiam servir-se da sorte que uma parka como aquelas lhes daria.
Entregou o odre a Ghaden e debruçou-se sobre as mercadorias para tirar a rolha de marfim. Pressionou ligeiramente a parte lateral do odre até sair um fio de óleo pela abertura.
- Prova - disse ela. - É óleo novo, e não tem um único pelo de foca. Não encontras melhor.
Ghaden passou a mão pelo óleo entornado e lambeu a palma.
- Quantos odres tens? - perguntou ele.
- Seis.
- Quatro e um sax - propôs ele.
- A minha filha fez uns colares. Com conchas da nossa ilha que não encontras aqui.
- Tenho muitos colares.
K’os encolheu os ombros e estendeu as mãos com a palma para cima.
- Não temos nenhum sax para trocar - disse ela. Mas tenho certeza de que conseguiremos arranjar um. Vou dizer a Uutuk o que tu disseste. Pões a parka separada se eu já te entregar o óleo?
- Traga-o - disse ele. - Onde vais arranjar o sax? Ghaden pegou a parka e guardou-a num dos seus fardos.
- As jovens belas como Uutuk têm sempre alguma coisa para trocar, e os velhos estão ansiosos por lhes darem mais do que deviam.
K’os afastou-se e não olhou para trás.
Foi encontrar Uutuk sentada no topo do ulax de Qung. Subiu-o e agachou-se ao lado dela. Segundo o hábito dos Primeiros Homens, não falaram durante algum tempo, mas por fim K’os disse:
- Devias voltar lá pra baixo na praia. Talvez Ghaden queira fazer negócio contigo. Leva três odres de óleo de foca. Estão no ulax do chefe dos caçadores, na cama que está mais perto do poste. Leva uns colares, duas peles de foca, e peixe seco. Não digas ao teu pai que os levaste. Acho que Ghaden vai querer fazer negócio.
K’os viu a alegria no rosto da filha e disfarçou um sorriso.
- Não sejas burra, Filha - disse ela a Uutuk. - Não tragas só uma parka.
Baía de Herendeen, península do Alasca
602 a. C.
Yikaas levantou a voz para elogiar as histórias de Qumalix, e outras pessoas que estavam no ulax fizeram o mesmo. Por instantes, o olhar de Qumalix demorou-se no rosto dele, e ela sorriu. Ele levantou-se, espreguiçou-se e começou a abrir caminho em direção a ela, mas de súbito uma mão grosseira empurrou-o para o lado. Um contador de histórias dos Primeiros Homens - um tal Chega-ao-Céu passou à frente dele, distribuindo cotoveladas pelos velhos e pelas crianças, e chegou primeiro junto de Qumalix.
Falou-lhe na língua dos Primeiros Homens, interrompendo os outros. Por fim, como se o homem fosse uma criança, Qumalix levantou a mão, pedindo-lhe silêncio.
Yikaas sentiu o riso na garganta, mas depois Qumalix inclinou-se para Chega-ao-Céu e disse-lhe alguma coisa ao ouvido. O homem sorriu e apertou-lhe o ombro, como se fossem marido e mulher.
A velha Kuy’aa aproximou-se de Yikaas, pôs-se na ponta dos pés, pousou-lhe a cabeça no ombro e disse:
- Lembras-te dele? Chama-se Chega-ao-Céu. Há uma história que ele conta sobre o caçador que chamou o Sol para as ilhas dos Primeiros Homens. Ele ofereceu-se para contar essa história a Qumalix.
- Aqui? Agora?
Kuy’aa evitou o olhar dele, mas disse:
- A palavra dos Primeiros Homens que ele usou significa algo lá fora, ao vento. Longe daqui.
Yikaas olhou para Qumalix. Ela e Chega-ao-Céu riam, com as cabeças unidas. A dor e a raiva apoderaram-se dele, e disse a Kuy’aa entre dentes:
- Agora vou embora. Queres sair ou ficas ouvindo mais histórias?
Yikaas ofereceu-lhe o braço para a ajudar a subir o poste, mas ela abanou a cabeça e agachou-se, no momento em que outro contador de histórias começou a falar.
Yikaas começou a subir o poste, mas não conseguiu deixar de olhar para trás mais uma vez. Qumalix estava vestindo o sax e continuava falando com Chega-ao-Céu. Yikaas encolheu os ombros, como se tentasse convencer-se de que não se importava, continuou a subir e saiu.
A névoa da manhã cobria a enseada, e tudo parecia frio e molhado. A obscuridade entrou-lhe no coração e subiu-lhe à cabeça, como se isolasse tudo exceto os seus pensamentos e o seu sofrimento. Yikaas encaminhou-se para a praia, para as esteiras em que os comerciantes tinham exposto as suas mercadorias, e começou a procurar algo que pudesse comprar com as peles de caribu que trouxera da sua aldeia. Mas o óleo que os comerciantes ofereciam cheirava a ranço, as peles eram baças e finas e até as contas eram tortas.
O nevoeiro pressionava-lhe os ouvidos, como se umas mãos lhe apertassem a cabeça. As palavras perdiam-se antes de ele compreendê-las. Por fim afastou-se dos comerciantes e atravessou a praia em direção aos cavaletes dos iqyax. Ali, agachou-se, passou os braços em volta dos joelhos como um caçador dos Primeiros Homens, e pensou em Qumalix e em Chega-ao-Céu. Abanou a cabeça ao lembrar-se da mão de Chega-ao-Céu pousada no ombro dela, como se ela já lhe pertencesse.
E se assim fosse?
A idéia surgiu com tal rapidez que era como se alguém lha tivesse gritado. Qumalix dissera que não era casada... E se estivesse prometida a alguém? Ao próprio Chega-ao-Céu. Talvez fosse por isso que ela fora tão longe, até à Praia dos Comerciantes. Afinal, eles eram ambos Primeiros Homens e contadores de histórias.
Yikaas ouviu uma risadinha atrás de si e virou-se, com o coração alvoroçado pela súbita interrupção do silêncio. O seu primeiro pensamento foi Qumalix, mas depois riu de si próprio. Alguma vez a ouvira rir daquela maneira? Ela era uma mulher, não uma menina. O seu riso era cheio e forte, nunca tolo.
Do nevoeiro saíram duas moçadas dos Primeiros Homens. Usavam os cabelos soltos, como mandava a tradição às mulheres solteiras, e tinham tatuagens na face. Uma era gorda e a outra magra, mas, fora isso, pareciam gêmeas, tão semelhantes eram as suas feições.
Correram para ele como mergulhões a caminho do ninho e começaram a falar ao mesmo tempo na língua dos Primeiros Homens. De repente, a magra calou-se e cobriu a boca com as mãos.
- Tu és do Povo Rio - disse ela na língua dele. Yikaas não conseguiu evitar um sorriso pelo modo como a boca dela distorcia as palavras do Povo Rio.
- Sim, sou do Povo Rio - respondeu ele.
- E falas a língua dos Primeiros Homens?
Ele abanou a cabeça, e as moças deixaram-se cair na areia, rindo e cochichando. De repente, levantaram-se, agarraram-se aos braços de Yikaas e começaram a puxá-lo, fazendo-lhe sinal para que as acompanhasse.
Ele protestou, mas não fez qualquer esforço para se libertar enquanto elas tropeçavam na areia e subiam as dunas de areia grossa, em direção à aldeia. O nevoeiro só lhe permitiu ver o ulax delas quando já estavam quase em cima dele. Yikaas percebeu que estavam no interior da aldeia, na zona em que os ulax eram mais pequenos e estavam encostados aos montes. As moças fizeram-lhe sinal para ele subir ao telhado de musgo e erva, e Yikaas obedeceu. Depois, virou-se para elas.
As duas moças encostaram a cabeça uma na outra, taparam a boca e começaram a cochichar. Depois, a gorda, cujos olhos pareciam fendas sobre a face rechonchuda, sorriu-lhe com a boca aberta e passou a ponta da língua pelos dentes.
- Falou na língua dos Primeiros Homens, mas Yikaas não teve dificuldade em entender o que ela queria dizer. Foram juntar-se a ele no topo do ulax e depois fizeram-lhe sinal para que entrasse. Yikaas deu uma olhadela ao ulax da contadora de histórias, e pensou em Qumalix e nas histórias que tinham contado um ao outro, escondidos na vegetação do sopé do monte. Em seguida, lembrou-se de Chega-ao-Céu, do rosto largo, dos braços e dos ombros possantes, das pernas curtas e fortes. Era um homem de contas e penas, de cabelo oleado e batoque no queixo. Quando um homem daqueles andava, a terra sentia-lhe os passos. Quando um homem daqueles falava, qual a mulher que não o ouvia?
Yikaas abaixou-se para entrar no ulax.
Só as duas moças estavam lá dentro. Ambas haviam despido o sax. Tinham os seios pequenos, mas a pele era macia e cheirava a óleo. Olharam para ele com as pálpebras semicerradas. Porque ele choraria por Qumalix? Despiu a parka, e as moças foram ao seu encontro, cada uma com um odre de óleo. Começaram pelos ombros, e esfregaram-lhe a pele até lhe expulsarem o nevoeiro dos ossos.
Yikaas fechou os olhos e afastou Qumalix da sua mente.
- Eu contei-te a história de Traz-Sol - disse Chega-ao-Céu a Qumalix. - O que tens para dar em troca?
Chega-ao-Céu continuou a descobrir pretextos para lhe tocar, para lhe apalpar o joelho ou lhe passar o braço pelos ombros. Por fim, ela afastou-se tanto que ele não conseguia tocar-lhe sem se sentir ridículo e, tal como ela calculara, Chega-ao-Céu não era homem para fazer papel de tolo.
A história dele fora boa, e ele autorizara Qumalix a contá-la. Ela escutara-o com atenção, pensando em fazer algumas alterações para que os seus ouvintes imaginassem que eram o jovem que enganara o Sol e que o atraíra muito para norte, para uma terra de neve e gelo. Chega-ao-Céu contara-lhe que os caçadores nos seus iqyax ainda conseguiam seguir o caminho que o Sol tomara para chegar aos Primeiros Homens. Qual o caçador - empurrado para o mar alto pelas tempestades ou arrastado pelas baleias - que não procurava aqueles rios de águas tépidas que vinham do Sul e que contornavam as ilhas dos Primeiros Homens? Qual o caçador que não entoava cânticos de agradecimento pelos caminhos que o Sol deixara na sua procura das belas mulheres dos Primeiros Homens de que Traz-Sol se gabara?
Quando Chega-ao-Céu acabou a sua história, inclinou-se para ela e olhou-a de frente.
- É pena que não estivesses aqui nesse tempo - disse ele. - Então o Sol teria aparecido até nas noites de Inverno. Como poderia ele afastar-se do teu rosto?
Era um belo cumprimento, como Qumalix nunca recebera, mas por qualquer motivo ele a fez pensar no contador de histórias Yikaas, e ela perguntou a si própria se ele seria capaz de dizer tal coisa. Depois, ficou aborrecida. Porque pensar em Yikaas? Qualquer pessoa via que Chega-ao-Céu era mais bonito, com um narizinho direito e uns olhos escuros e brilhantes. Era largo de ombros e forte de braços. Yikaas até coxeava. Não era de admirar que fosse contador de histórias em vez de caçador.
E qual a mulher que preferia um contador de histórias a um caçador? Qual o caçador que trocava caça com um contador de histórias? Era melhor confiar em si próprio do que na generosidade dos outros.
- Não respondeste à minha pergunta - disse Chega-ao-Céu, com laivos de irritação na voz.
Qumalix estava habituada a homens irascíveis. O pai era assim, apesar de a sua irritação ser sempre de palavras, que se diziam e se esqueciam depressa. Não fora por sua vontade que ela voltara àquela aldeia tão distante, com o medo no olhar, mas o avô de Qumalix aceitara acompanhá-la.
- Se trouxeres um marido, que seja um caçador - dissera-lhe ele quando se despediram, em parte por graça, para disfarçar o tremor na voz.
Era muito provável que o pai ficasse satisfeito se ela levasse Chega-ao-Céu, um homem que era caçador e contador de histórias. E se ela levasse Yikaas? Aã, o pai ficaria zangado. Um homem do Povo Rio que não sabia a língua dos Primeiros Homens. Um homem do Povo Rio que não sabia caçar de um iqyax. Nem ela seria aceita na aldeia de Yikaas. Não tinha os dotes do Povo Rio, nunca montara uma armadilha, que no entanto não devia ser muito diferente das armadilhas que ela montava junto das tocas dos mergulhões.
E fazer uma parka! Seria difícil para uma mulher que sabia costurar peles de pássaro?
O rosto de Chega-ao-Céu muito próximo do seu interrompeu-lhe os pensamentos.
- Uma história, evidentemente - respondeu ela à pergunta dele. - Que mais tenho eu para te dar?
- Que histórias sabes que eu gostaria de ouvir? - perguntou ele. As palavras saíam-lhe da boca aos impulsos, como se ele estivesse vomitando. - Achas que eu quero ouvir histórias sobre mulheres? Qual o homem que quer ouvir tal coisa?
As palavras dele foram duras como uma bofetada, e o seu insulto feriu como se ele a tivesse agredido, mas Qumalix respondeu:
- Sei histórias da caça à baleia.
- Essas seriam melhores, mas acho que já ouvi todas as tuas histórias sobre a caça à baleia - respondeu ele.
Qumalix encolheu os ombros.
- Então, vou contar-te a história de Filha. Ouve, se quiseres. Caso contrário, vai-te embora.
Chega-ao-Céu deixou que o seu olhar pousasse nas ancas e no peito dela, e de repente Qumalix desejou não estar sozinha com ele naquele lugar tão distante da aldeia. Passou os braços pelos joelhos e agarrou a faca curva que atara ao braço esquerdo com a mão direita. Dava-lhe coragem, aquela pequena faca, e de repente a boca dela encheu-se de palavras. Quando começou a falar, a história de Filha instalou-se à sua volta como as paredes fortes de um ulax, como se ela a protegesse de um homem que queria mais do que Qumalix estava disposta a oferecer.
O melhor da literatura para todos os gostos e idades