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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


APOCALIPSE 2000 / Guy Snider
APOCALIPSE 2000 / Guy Snider

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

APOCALIPSE 2000

 

ERA um deserto. Na verdade, não se tratava bem de um deserto, mas sim de um descampado — e não muito descampado.

Os habitantes da região, na falta de melhor nome, chamavam-lhe um deserto.

     Durante o dia, abutres voavam sobre ele. Sob o calor, vários pequenos répteis, muitos deles sugerindo estranhas mutações do camaleão, esgueiravam-se graças ao que Deus lhes dera como meio de propulsão primitiva. O ar fremia sob o calor, em direção ao céu, no Verão. De vez em quando aparecia um veado em busca de uma floresta. Os animais da próxima, e por vezes normal, "boa" terra, tinham uma tendência muito pronunciada para se perderem no deserto, isolando-se dos seus grupos. Eventualmente, acabavam por cair mortas — o clima não os tolerava: era... pouco hospitaleiro para eles. Morriam ou de envenenamento local ou de sede, conforme as suas capacidades individuais. Os abutres, adaptáveis como eram, cuidavam-lhe da carne.

     Os abutres.

     Os abutres eram sempre muito magros.

     Os abutres passaram um mau bocado. Eram os pássaros mais odiados, ainda que fossem muito necessários. Por vezes, quando as condições do tempo estavam a seu favor, comiam muito bem. Na realidade não eram nativos daquela área — ninguém sabia de onde eles tinham vindo. Subitamente tinham aparecido ali, a deslizar sobre as correntes aéreas. Talvez alguém se tivesse esquecido de fechar uma cova perto dali, e eles tivessem vindo por ela do Inferno.

     Por vezes, no Verão, o solo do deserto estava muito quente, mas nunca mais de 38 graus.

     O deserto era uma zona queimada com cerca de seis mil metros quadrados.

     Durante o Inverno o deserto era razoavelmente frio. Não havia muitas coisas que nascessem no seu solo. Quando a chuva ou a neve caiam, resíduos corriam para um rio que divida o espaço quase a meio. O rio estava a abrir uma garganta. A erosão era terrível. O ar não poda ser respirado por períodos longos sem modificação — alguns minutos já eram um risco.

     O deserto, mesmo quando visto do conforto da redoma de observação, deitava uma tremenda sensaçao de nada — uma sensação deslavada de monotonia.

     O céu tinha perpetuamente a cor do aço ao lume — um azul intenso e sólido.

     Ocasionalmente, encontrava-se a ruína de uma árvore, de pé ou caída.

     As árvores eram mais comuns para além do centro do deserto — na direção das "boas terras" ainda com relvas e florestas que rodeavam a zona, mas nenhuma terra era boa. Muitas das árvores tinham, noutros tempos, sido bem tratadas. Mas que ainda estavam de pé. A maioria eram carvalhos, porque não apodreciam muito depressa.

     Ainda estavam vivas? Parecia surpreendente que mesmo os carvalhos tivessem sobrevivido por tanto tempo.

     Havia um próximo que ainda estava vivo. Estava perto do rio e as suas raízes bebiam a água corrente.. Tinha folhas estranhas, de formas invulgares. Sem bagas. Fornecia alguma sombra aos animais deformados que eram suficientemente espertos para irem obter água a outros sítios que não ao rio. Não tardaria que a corrente que abria a garganta minasse as raízes do carvalho e então ele também cairia.

     Havia muitos ossos abandonados no deserto e nas ruínas, branqueados pelo sol — muito bem limpos.

     As noites eram melhores. As estrelas surgiam e o céu tornava-se negro e sempre extremamente límpido. Não havia nada que perturbasse a visão da Via Lactea.

     No solo do deserto havia alguns trilhos; viam-se melhor dos poucos aparelhos que voavam. Para os lagartos que tomavam sol nos fragmentos e nas pedras arrancadas aos antigos leitos das estradas, pareciam formações muito naturais.    

     A maior parte dos lagartos tinham o tamanho de um bom rato da Republica. A pele era cor de areia e tinha a textura dos pedaços do pavmento. Integravam-se bem no ambiente e tinham uma tendência para procriar em excesso. Alguns mostravam um terceiro olho, ainda que cego.

     As superauto-estradas tinham sido destruídas — eram pesadelos contorcidos e tinham morrido de choque.

    

     ...Não quero memórias; não quero memórias...

    

     Havia algumas ervas que quase formavam um relvado, aqui e ali. Nenhum cato, nada como aqueles que constavam dos arquivos de recursos constituídos para os inteligentes filhos do Rei, da Rainha e da Igreja.

     No meio daquilo que era virtualmente nada, cresceria um dente-de-leão com uma flor de um metro de diâmetro; estava sempre florido e não dava sementes. Era muito bonito.

    

     violação

     violação

     violação

    

     Havia uma estrada bem reparada. Estava no alto de um monte de concreto com seis metros de altura — era uma estrada toda negra com a forma de um círculo de vinte metros de diâmetro e quatro e meio de largura. Dentro dela havia um quadrado de quatro metros e meio de lado, feito de um material metálico qualquer, e esse quadrado poda ser descido na terra, muito abaixo do nível da superfície. Tinha pintado nele um alvo negro.

     Havia quatro arcadas brilhantes no monte e, a cerca de sete metros da encosta inclinada, uma redoma de observação ao nível do solo, colocada ao lado de uma estrada que levava a cada uma das arcadas, a partir de um segundo círculo pavmentado que rodeava o monte.

     O círculo exterior do pavmento estava a trinta metros das arcadas. A estrada que partia da arcada virada para leste tinha nove metros de largura e não acabava no círculo pavmentado exterior. Continuava por mais cem metros, para além de um perímetro muito ferrugento de arame farpado, e então desfazia-se em pedaços e lajes, um pouco mais além. Nos mapas a estrada acabava por ligar à Interestadual 96, que para todos os efeitos práticos era um cemitério.

     Os postos de observação eram feitos de um vidro especial, blindado, de cor verde baço. Assentavam em bases de aço brilhante, inoxidável. Um cano negro, curto, de um negro baço, saía de cada redoma. O aparelho inteiro poda rodar 360 graus e os danos podiam elevar-se de quarenta graus.

     No papel, tudo poda existir.

    

     Alguns animais tinham observado ocasionalmente a BiaMa de vários estranhos e muito misteriosos objetos da terra entre o monte de concreto e o perímetro de arame farpado. Um lagarto em particular — um tipo pequenino, com perto de quarenta e cinco centímetros e talvez uns quatro quilos e meio de gordura — fora uma vez muito perturbado por isso. Estava ele absorvendo inocentemente o bom sol de Junho, num da particularmente belo para os lagartos, sobre uma rocha particularmente boa para os lagartos (ele era muito racista), quando muito subitamente (sem qualquer aviso, calculem!), a terra começou a inclinar-se!

     A princípio ele percebeu a coisa como uima miragem surrealista — o resultado de qualquer coisa que ele comera. Mas então a terra inclinou-se ao ponto de o atirar de cabeça sobre a cauda enrolada para a base da perpendicular que se formava rapidamente.

     Pela atitude que o lagarto tomou depois de se endireitar e verificar que estava inteiramente em ordem, pareceu que ele considerava aquela coisa absolutamente indesejável!

     Um objeto de forma estranha subiu então lentamente acima da terra tornada perpendicular e eu estou muito certo de que os sinais que nele se viam não satisfizeram o lagarto, considerando que o lagarto não os leu, provavelmente não os quis ler e, na verdade, nunca pensou em tal coisa.

     QUADRANTE NORTE: C-42, ANTENA DE RADIO — PARABÓLICA — diziam os sinais.

     O lagarto decidiu que era melhor ir para qualquer outro lado e pôs-se a andar. Aparentemente ele não gostava de estar em lugares onde não apreciavam os banhos de sol, onde isso era negado por terras que se inclinavam, esmagado por forças ivisíveis, e ameaçado por fantasmas metálicos de gigantes que o lagarto poda considerar serem os seus antepassados. O lagarto vira muitos esqueletos na sua vida limitada. Não se preocupava muito por aquele ser de alumínio, que não era um material orgânico — eram todos iguais aos olhos dele.

    

     Havia ruínas naquele deserto, além das árvores. Eu tinha-as visto. A trinta e três quilômetros a sul-sudeste do monte de concreto, havia a periferia do que fora uma das grandes cidades humanas.

     Os abutres andavam agora pelas ruas. Ou voavam através delas.

     Do ar podiam ver-se muitas paredes reforçadas com aço que permaneciam de pé dentro da cidade como se fossem estátuas, e estavam completamente mortas. Os abutres empoleiravam-se nelas. Faziam os seus ninhos no cimo delas.

     O mundo? Ê muito estranho agora, de certo modo re-naturalizado. Seria verdade que, em algumas regiões, as florestas, ainda que tendo sofrido mutações, estavam a cobrir as cidades? Mas não será isso comum? Admito que se trate de um fenômeno que exige muito tempo.

    Um segundo é um ano e depois um ano é um segundo.

    

     ...ali na cidade, na República, no ar bombeado das fazendas e que passava pelo nariz, poda sentar-se a presença de coisas desagradáveis...

    

     Numa cave totalmente negra totalmente silenciosa, quase estanque, talvez a múmia de alguém chamado... talvez sentada numa velha cadeira de braços com uma cesta de roupa lavada a seu lado, tem tempos acabada de sair de um secador. Fizera uma tentativa para escavar uma saída, cansara-se, sentara-se por um momento, e parte dela como que se afastara. Tinha os olhos fechados como se estivesse a dormir ou a rezar em silêncio. Morrera da falta de um certo ar.

     E a sua mascara de morte era totalmente vazia, despida de qualquer emoção. Nenhuma amargura, nenhuma resolução, nenhuma resignação; nada.

     ... e os filhos...

     ... e o marido...

     ... e a nova moralidade...

     ... e a vida e ressurreição...

    

                   farsa

                   farsa

    

       — Senhor?

     A poeira devia estar a assentar nas fendas de alguém chamada... rosto...

       — Senhor?

       — Deixem-me em paz! — disse ele baixinho, mas distintamente segundo todos os testemunhos.

       — É importante, majestade.

       — Deixem-me em paz!

     — Mas, senhor, talvez não compreenda...

       — Não preciso compreender nada hoje! — foi ele ouvido dizer. — Não pedi nada e nada darei! Bom dia!

       — Senhor...

     Foi então que a voz do servo parou a meio da frase quando o seu senhor se levantou, saltou da cama e colocou-se ao lado dela. O que assustara o príncipe, nenhum homem soube ao certo. Os olhos dele brilhavam e isso era um acontecmento invulgar no homem. Disseram até que havia uma espécie de sorriso ligeiro nos lábios dele. Tinha, as faces coradas. O servo disse-me depois que as mãos do príncipe tremiam — doente, talvez? Não tinham o sentido do colorido; as mãos abanavam, pálidas.

     O servo e o príncipe fitaram-se silenciosamente naquele monstruoso quarto de dormir finamente mobilado. Trocaram olhares.

       — Devo procurar um castigo adequado a testa insubordinação? — disse mediatamente o príncipe, secamente.

     Com uma vénia, o servo retirou-se.

     O quarto de dormir ficou silencioso, calmo, sem qualquer indicação de ruído.

     No entanto, havia sempre o zumbido dos ventiladores em qualquer parte, no fundo, mas o espírito rapidamente se adaptou a ele, como se fosse uma pulsação ou função de corpo natural.

     A alcatifa era opulenta, com pêlos compridos, e as paredes estavam cobertas com painéis de nogueira rija, talhada à mão. As armas reais estavam suspensas na parede que olhava para nordeste. Na parede oposta havia uma tapeçaria mostrando uma floresta. A tapeçaria era um trabalho formidável — nove metros e meio por seis metros. A cama era velha de duzentos e trinta anos; um homem qualquer, famoso, tinha por certo dormido nela.

     Ele conhecia todos os grupos encarregados de espiar. Tinha guardado os prêmios. Algumas moedas, uma corrupçãozinha honesta permitida aqui e ali...

     Ouviu-se uma pancada na porta do príncipe e uma mulher com uma cruz na testa, de uns vinte e três anos de idade, o rosto num ardor profissional perpétuo, entrou e perguntou:

       — O meu senhor quer divertir-se? Era muito versada.

     Disse-me que ele lhe disse que fosse para o Inferno. E depois ela saiu.

     Ele era um príncipe de boa aparência e a mãe dele e o pai dele, pensassem dele o que pensassem, tinham, pelo que se dizia, muito orgulho nele. Esperava-se que fosse outro John, o prmeiro rei da República — o trisavô do príncipe.. De fato, segundo todos os registas reais, tanto oficiais como não-oficiais, de todos os homens que tinham sucedido no trono, o príncipe era o que mais se assemelhava com aquele que começara tudo aquilo. Tinha os mesmos olhos azuis brilhantes, os mesmos cabelos castanhos e a mesma pele branca, germânica. Onde o príncipe diferia era nos lábios e no nariz, e a diferença era pequena. Parecia mais sério que o seu antepassado. Era talvez mais egocêntrico.

     Tinha um espírito maravilhosamente treinado. Recebera a melhor educação geral que qualquer homem poda desejar, quase poda compreender a discussão de qualquer ofício ou arte, e possuía, segundo diziam alguns, bastante perspicácia.

     Disse-se que depois da mulher sair houve outra pancada, na porta do príncipe. Foi aquele toque eternamente especial, aquele que não pareceria bem ao público que o príncipe negasse.

     Nem ao Rei...

     Se não a Igreja...

     E a Deus...

     Ele permitiu que o Arcebispo de Wayne entrasse.

     Dizem que esse Wayne sempre batia da mesma maneira, uma maneira talvez algo tímida para um homem tão grande, tão dominador. Tinha cerca de um metro e oitenta de altura, mas pesava perto de cento e trinta e cinco quilos. Tinha uns quarenta anos de idade. Os seus cabelos eram agora grisalhos, mas nenhum deles faltava, sob o chapéu alto do seu cargo.

     A calvície era, de fato, a norma dos homens da sua idade, considerando que Wayne descenda de gente comum.

       — Wayne — ouviram dizer o príncipe.

       — A paz seja consigo, majestade — respondeu Wayne. Nesse momento o príncipe tornou-se mais frio, recordando-se por certo da política.

       — Não o esperava.

       — Tem problemas, meu filho?

     Wayne disse-me que, chegado a esse ponto, o príncipe se tornou ainda mais frio para ele, e se calou. Depois, subitamente, voltou-se para a frasqueira.

       — Quer um pouco de vinho, arcebispo? — perguntou o príncipe ao fim de um momento.

       — Cada um tem os seus hábitos, majestade.

       — Vinho?

       — Apenas um pouco, muito obrigado.

     D príncipe serviu o arcebispo, apontou-lhe uma das duas cadeiras de braços que estavam em frente da falsa lareira e sentou-se na outra.

     Diz-se que Deus guia o arcebispo. Ou que o arcebispo guia Deus. O cérebro de Wayne estava cheio de vulgaridades religiosas, moralidades, norrnalidades. E as massas tendiam a olhar para Wayne com paixão nos seus corações, os rostos ardentes, as vozes a arquejarem preces.

     Alguns diziam que Wayne seria um bom São Pedro para a nova igreja e para a nova religião, ainda que àmíbas as coisas tivessem para eles uns bons cento e onze anos de idade.

     Quem estivesse no poder não devia confiar no arcebispo.

     Talvez pudessem ver o ego dele a pingar das vestes sagradas como se fossem os santos óleos e a pulsarem através do seu corpo como o sexo pontificial... luxurioso e proibido. Sob o báculo arcebispal de Wayne, as ovelhas da sua Igreja tinham-se tornado num corpo unido, suficientemente forte para desafiar o próprio Estado em nome de Deus.

 

     ... em nome de Deus...

     ... portanto da tradição...

     ... portanto da dúvida...

     ... portanto uma espécie de fé deformada...

 

     O príncipe disse ao Arcebispo que estava a ter sonhos estranhos.

     O principie disse-me depois que viu Wayne a absorver a sua emoção como se fosse uma espécie de sanguessuga, e que o homem, se lho permitissem, estaria perfeitamente disposto a chupar-lhe o sangue.

       — Sonhos, majestade?

       — Os sonhos são um pecado? — perguntou o príncipe, numa estranha recuperação.

       — Isso depende do sonho e do sonhador — disse Wayne.

     O príncipe fitou Wayne durante um segundo, depois levantou-se da cadeira e andou um pouco — em círculos, sem faixas paralelas e quase inteiramente a sorte. Ao fim de algum tempo parou junto à lareira e pousou o braço esquerdo no cimo dela.

       — E o próprio sonho? — perguntou o príncipe como se não tivesse passado tempo algum. — Pode um sonho, só por si, ser um pecado?

       — Pode o vinho deixado numa garrafa embebedar um homem?

       — As ações são mais honrosas que as intenções? Não se importe com isso, Wayne — eu tive esse sonho!

       — Um pesadelo, majestade?

     Outro silêncio.

       — Foi um sonho muito estranho — disse finalmente o príncipe. — Uma série de sonhos, na verdade. Foram tão... tão... foram de tal ordem que não quero dormir mais.

     Agora era Wayne que não falava.

       — Tive o mesmo problema — disse ele passado um momento. — Os homens na nossa posição — saiba vossa majestade — sempre o têm.

     A tentação verbal, pensou o príncipe. A falsa auto-identificação.

       — Não são sonhos de perseguição, Padre — disse ele.

       — Não estava a falar nisso.

       — Nem de assassinatos. Se fosse simplesmente a morte... — A voz do príncipe baixou de tom. — Bem, a morte posso eu enfrentar, posso aceitá-la. Além disso, Padre, a morte não existe, não é real porque é apenas uma simples transição.

     — Tem rezado?

       — Minha mãe... — murmurou o príncipe. — Tenho feito preces a minha mãe.

       — É um erro fazer preces aos mortos.

     O príncipe olhou para outro lado.

       — Mas ela não morreu — disse ele.

       — O médico...?

       — O médico que vá para o Inferno!

     Um arrepio pareceu passar pelo corpo do príncipe como se tivessem deitado gelo sobre as fibras da sua espanal medula. Fechou os olhos por um momento. O seu rosto tornou-se muito pálido.

       — Perdoe-me, Padre — disse o príncipe, com uma calma suficiente, depois de se terem passado dois minutos. Abriu os olhos, arquejando profundamente. — Pequei — disse ele.

       — Todos nós somos pecadores, meu filho.

       — Sim. — O principie riu-se nervosamente. — Somos, não somos?

       — O nosso objetivo na vida é vencermos essa nossa tendência.

       — Porque foi que veio aqui, Wayme?

       — Para ver vossa majestade.

       — Sem convite?

       — Temos os nossos deveres, meu senhor.

       — Para que fim, então?

       — Para os vossos fins, majestade. Para estar à sua disposição quando tiver necessidade de mim.

     Wayne disse que isso pareceu satisfazer o príncipe por um momento e que depois o homem se manteve junto da lareira com o braço esquerdo apoiado no cimo dela, bebericando o vinho da taça que tinha na sua mão direita, a versão sintética artificialmenite vermelha, a brilhar no cristal facetado...

     O silêncio tornou-se completo. A luz solidificou-se e o mesmo aconteceu à corrente de ar artificialmente filtrada e ao brilho do quarto imaculadamente limpo.

       — Como você é parecido com Deus — disse o príncipe.

       — O quê?

       — Oh — o príncipe riu-se. — Precisa que lhe explique? Somos todos feitos à Sua imagem e semelhança, não somos? Do Seu barro, não somos? Ainda que, segundo se diz, possamos diferir entre nós pela cor da pele e pela forma do nariz e do ar, fomos todos criados à Sua semelhança, não fomos? Para mim, você, eu... tudo, toda a espécie humana — somos todos cópias do mais divino dos Padres! Portanto, meu querido Arcebispo, como você é parecido com Deus!

       — Parece-me que tem febre — disse Wayne. — Já viu o médico real?

       — Sim, vi. O bufão. O doutor... Como é que ele se chama... sim.

       — Que disse o Dr. Barton?

      — Que devo descansar. E comer mais; estou a perder peso. Ele diz que não é nada de importância — não sofro de nada... que não tenho apetite porque perturbo o estômago com o cérebro. Que devo descansar... que espera? Tenho esta ilusão!

     O vinho a cair, o príncipe a cair de joelhos perante o arcebispo quando as gotas caíram sobre ele — e ele a esconder o rosto mas profundezas das suas mãos, o seu corpo a tremer.

     O Arcebispo disse que então perguntou ao príncipe se desejava ou mão confessar-se.

   O principie chorou.

       — Se me pode compreender, eu sonho que estou deitado na cama. Um homem que eu não conheço aparece a porta do meu quarto — um dos guardas? Não vejo qual o seu posto. Leva-me a um dos postos de observação. Lá fora, Wayne... lá fora há pessoas! Pessoas nuas! Como homens miseráveis! E eles batem na redoma de observação! Gritam!

       — É tudo?

     O príncipe descobriu o rosto. Ficou novamente silencioso por longo tempo. Olhou para além do Arcebispo sem olhar para nada.

       — Somos todos pecadores, Padre — disse ele finalmente.

       — É tudo? — repetiu Wayne.

       — Não — disse o príncipe, calmamente. — Pude ler os lábios de um homem, lá fora. Ele olhava para dentro e batia na redoma de uma maneira muito estranha, Padre. Gritava para mim com o mais vil dos ódios.

       — Que dizia ele?

     O príncipe pôs-se de pé, rindo de uma estranha maneira. Durante a confissão o Arcebispo colocara uma das suas mãos na cabeça do príncipe. Estava pegajosa e coberta de suor; encharcada nele.

       — Padre — disse o principie ao Arcebispo. — Ele chamava-me de bastardo.

    

UMA porção de cenouras caiu da tulha — o fundo de uma carga continuamente transportada das fazendas dos pisos 10 e 11, pequenos grãos de poeira ainda pegadas às suas raízes brancas, pequeninas. Sob as luzes da fábrica as máquinas a girarem, as cenouras brilhavam com a sua cor; a espessa lama artificial que as fizera nascer com água fora arrastada — eram cenouras hidropônicas e não tinham aquele sabor...

       — Não há nada a fazer senão estarmos sentados a ver — cantou um idiota no fundo da linha de produção de máquinas.

     Noutra parte, pedaços de aço comprimido, reprocessado, eram trazidos da Grande Queda, pedaços e peças a baterem e a caírem nas fornalhas. O produto emergia numa torrente franca de fogo, pronto a se r fundido, ou endurecido, ou rolado — vaporoso na sua luxúria criada pelo homem, arrefecendo, arrefecendo sempre, no ar frio.

     As cenouras caíam num quente banho escaldante em cujas claras e vaporosas profundezas eram purificadas de cindo em cinco minutos — e ficavam ali por mais um minuto antes que os cestos de arame subissem para as deitarem fora. Dali as cenouras caíam para outra rampa de aço inoxidável, até outra plataforma de produção.

     Em círculos bem olhados mas saltitantes, os painéis de circuitos ainda não nascidos giravam sob as máquinas de partículas, parando talvez uma fração de segundo maior perante as mandíbulas das máquinas para ter um pedaço de circuito micro-impresso, todos de silicones e cobre, implantando nos seus quadros abertos.

    

     ... a validade do seu nascmento foi estabelecida...

    

     — As máquinas fazem tudo, bastardos; sentem-se e vejam.

    

     A quase perpétua torrente de cenouras, domo troncos em miniatura, de todos os tamanhos e formas, limpos e brilhantes, era agitada por dispositivos adequados aqui e ali, a por fim por meio de uma maquina barulhenta, desintegradora. Saiam dela por uma correia transportadora de algo semelhante a borracha, Santarizada, perfeitamente cortadas no comprmento, ou em rodelas, ou esfarrapadas — conforme o objetivo.

    

       — ... então porque foi que a Rainha não produziu outro? Deus sabe que ela teve tempo para isso...

    

       — Não se pode ter mulheres sem pagar...

    

     As correias transportadoras — negras e acionadas por eletricidade produzida por fusão nuclear — lançavam a toda a velocidade as cenouras para panelas de alta pressão. Cargas de toneladas a simples quilos estavam prontas para serem comidas num momento — inteiramente preparadas. Das panelas de pressão eram enviadas por condutas adequadas, de aço inoxidável, e distribuídas segundo o seu corte e quantidade.

    

       — Nenhuns dólares me comprariam vinho hoje.

    

     Uma fila de recipientes de plástico comia ao lado do idiota que estava sentado num banco e que cantava para si próprio. De vez em quando um vigilante passava. De vez em quando um recipiente amachucado e meio desfeito surgia no caminho para a selagem e para os dispositivos de irradiação. Ocasionalmente surgia um invólucro não completamente cheio do produto ou com impurezas ao lado dele e fedia a cenouras podres.

    

       — Atenção rapazes; vejam lá se isso fica na linha.

    

     Os invólucros bons eram transportados para lugares misteriosos para o idiota, através de arcadas sobre as quais brilhavam painéis com luzes verdes que nunca mudavam. A linha nunca parava. As cenouras podiam ter-se tomado em beterrabas, feijões ou couves ou milho ou qualquer coisa dessas, mais a linha nunca parava. Por vezes trabalhava com dois produtos conjuntamente, como rabanetes cortados as rodelas num invólucro e pmentões verdes no ouitro — os rabanetes nos pares, os pmentões nos ímpares — mas raras as ocasiões em que o idiota tinha duas caixas para encher com invólucros rejeitados.

    

       — Isenta-te e cumpre o tempo — cantava o idiota para ninguém, talvez limpando o nariz de vez em quando.

    

     As cenouras vão sendo enlatadas.

     As cenouras vão sendo enlatadas.

    

       — Responde-me, James — disse o príncipe caminhando comigo entre as filas de vegetação que cresciam silenciosamente na área das fazendas do Quadrante Oeste 11, a brilhante luz solar artificial a esconder os tetos secundários antionda de choque que cobriam cada um dos quinze pisos. — Responde-me — repetiu ele. — Conseguiste descobrir onde mora Deus?

       — Meu senhor? — disse eu.

       — O que, não tens língua? Escondes-me alguma coisa, não é? Não queres que nós, os mortais, o saibam?

       — Por certo que não fala a sério, meu senhor.

       — Não, na verdade não — respondeu ele. — Hum... o ar é demasiado fresico aqui.

       — Uma frescuira maravilhosa — disse eu.

     "Um autômato de manutenção passou por nós, todo ele metal cinzento e aço. Estava a vaporizar uma das filas à nossa direita — eram tomateiros recentemente plantados. A sua parecença com os adultos era evidente no verde das folhas, sob aquele sol feito pelo homem. Cresciam muito e bem depressa — diziam eles.

       — Que é na verdade o espaço, James? — pergiuntou o príncipe ao fim de algum tempo.

       — Um vácuo, alteza — disse-lhe eu.

       — A vida suspensa porque passaste... era dolorosa?

       — Despertar é sempre doloroso, meu senhor; o corpo adora o repouso. A vida suspensa não é muito dolorosa, mas é muito perigosa. Disseram-me que tinha cinquenta por cento de probabilidades de ficar lesionado.

       — E a morte?

       — Dez por cento, ainda que todos esses números dependessem da constituição individual.

       — Gostas de enfrentar riscos, não?

       — O universo inteiro é um vácuo, meu senhor. Nós somos simples imperfeições dentro dele.

       — Tens uma maneira notável de lisonjear.

       — Falo apenas para servir o meu senhor.

       — E serves apenas para falar?

       — Essa reação é altamente endotérimiica.

       — Falas sempre com causa?

       — Sempre, meu senhor. E por vossa permissão, evidentemente.

       — Sim, James — disse o Principe, rindo-se baixinho. — Por minha permissão.

     Passámos de uma seção de filas de vegetais que se estendiam quase até aos limites da visão humana para uma seção de relva. A maior parte da carne consumida na República era na verdade um produto à base de soja, com exceção do rebanho real mantido numa seção das fazendas do Quadrante Norte. Aquela relva era muito especial. Era plantada nas poucas áreas de recreio da cidade, e na arena da cidade que raras vezes era usada. Aquela relva produzia uma quantidade anormal de oxigênio por cada folha, porque era uma mutação planejada. Era muito resistente; as pessoas estavam autorizadas a pisá-la, ainda que poucas tivessem tal desejo. Catorze mil criatutras da humanidade caminhavam pelas ruas da República, o que era menos de metade da capacidade delas — e os sete parques estavam quase sempre desertos. Alguns desportos organizados eram praticados ali, mas eram coisas só para os jovens. Havia bares para os trinta e nove por cento da população que era masculina, e, evidentemente, os sempre populares bordéis onde as mulheres em excesso — inspeccionadas, abençoadas e oertificadas pela Igreja — tiravam proveito dos seus corpos. Esses eram jogos para adultos; a Igreja e as suas instituições obtinham o seu dinheiro da sua operação, estritamente licenciada. Eram delícias de adultos.

     Deitei-me ao lado do príncipe.

     Estendemo-nos sobre aquela deliberadamente longa e bem cheirosa luxúria, e se desejássemos bronzear a pele tudo quanto tínhamos a fazer era despirmo-nos, porque as luzes ali eram bem adequadas, mas os bronzeados na República não eram comuns.

       — Que queres dizer-me? — perguntou-me o príncipe como que num zumbido, com uma longa folha de erva na boca.

       — Considerando que sou o vosso conselheiro em assuntos militares, meu senhor — e, posso acrescentar, o seu novo conselheiro militar, é mais meu dever que responda as vossas perguntas que lhe faça palestras. O vosso pai, devo lembrar-vos, colocou-me a vosso lado para esse fim e para vos assistir em tempos de emergência.

       — Ah, sim — disse o príncipe num tom escarninho. — Sim

       — Bem, eu preferia fazer uma série completa de rondas...

       — Como é aquilo por lá? — perguntou o príncipe, como que disparando.

     Parei de pensar por um momento.

       — Lá? Onde?

       — Não falo do espaço — respondeu o príncipe mediatamente. — Pensei bastante nisso por algum tempo. Não, agora estou a falar da superfície da Terra. Disseram-me que recolheram o teu corpo a poucos quilômetros a noroeste daqui — deves ter visto qualquer coisa durante esses poucos quilômetros.

       — Uma ruína — disse eu.

       — Verdade?

       — Oh, não inteiramente. Desci sobre algumas árvores, carvalhos, azinheiras, pinheiros. Talvez alguns bordos — não sou perito em árvores. Desci numa pequena clareira nessa floresta, mas, meu senhor, depois de eu ter andadio quilômetro e meio na direção da República... Bem, a terra que rodeia a Republica é horrivelmente desolada.

     — Assim dizem.

       — Orbitei a Terra durante onze dias antes de me decidir a descer. A Stellar continua lá em cima, senhor; servi-me do módulo de descida e ele está tão danificado que não pode ser reparado. A manobra de pouso foi muito dura.

       — Compreendo — disse o príncipe.

       — Não, não creio que compreenda, senhor — disse eu. — Eu devia descer no Pacífico e, por qualquer razão, as estações de rastreio não estavam a funcionar. Evidentemente que não podiam estar. Eu devia entrar em contato com o Space Exploration Lab, em Sands, no Novo México, para receber instruções. Não houve qualquer resposta. Orbitei a Terra durante onze dias, senhor, e não vi em parte alguma qualquer sinal de habitação à superfície.

       — Oh — disse o príncipe, em voz baixa.

       — clareira na floresta? Tinha sido um parque de estacionamento, senhor. Havia paredes ocultas nas árvores; desci num subúrbio do que se chamava Detroit — dizem que o centro da cidade é agora o deserto. Onze dias... É melhor que eu nião diga mais nada.

       — Nem o digas aos guardas — aconselhou o príncipe. — Não me deixam sair num traje anti-radiação, para fazer investigações pessoais; têm receio de dlanos, mesmo que muito pequenos, aos genes reais.

       — Compreendo — disse eu.

     — Não — disse o príncipe. — Não me compreendes. Mas isso não importa James. Que estrela visitaste?

       — A lestrela de Bernardo.

       — Encontraste alguma coisa interessante?

       — Alguns planetas, evidentemente. Os cinco são inabitáveis.

       — Oh!

       — Fiorneci os resultados da minha exploração aos homens do Riei. Pareceram deliciados com eles.

       — Eles todos parecem ser assim com todos os assuntos, tudo lhes parece serem coisas sem qualquer valor — triviais.

       — Sim, é isso, não é?

     Estivemos calados durante outro momento e eu imitei o príncipe, colhendo outra folha de erva. Sabia a terra e era refrescante.

     O príncipe:

       — Agora que estamos sós, ponhamos de parte as frases polidas. Chamo-me Robert.

       — Está bem Robert.

       — Assim é melhor... Já te puseram a fazer rondas? Há quanto tempo estás aqui?

       — Steis semanas.

       — Seis semanas e só ouvi falar de ti há duas semanas? Onde foi que te esconderam?

       — No, Colégio Militar.

     — Verdade?

       — Há duas semanas, Robert, o Rei fez-me cavaleiro e concedeu-me riqueza. Nao lhe pedi um centavo mas ela deu-ma de qualquer maneira. Estive entregue tao General-Superior Williiam H. Handerlaan — o nosso mais leal defensor, ainda que senil. Deixe que eu não me fique por meias palavras: fizeram-me jurar fidelidade à República assim que despi o traje espacial, converteram-me à Igreja enquanto eu tomava banho — foi Wayne, o Arcebispo quem tratou pessoalmente disso — e descreveram-me as defesas da República assim que verificaram os documentos que eu trazia comigo, e os confrontaram. com os restos da História que tinham permanecido conosco.

       — Quem disse que não és um espião? — perguntou o príncipe.

       — Sim, quem não o dirá?

    O príncipe riu-se entre dentes perante o que parecia ser uma brincadeira muito sua, e ao mesmo tempo olhou em volta. Montados sobre o teto, a uns dez metros de altura, uma série de dispositivos automáticos distribuía sementes pelos lotes que tinham sido recentemente arroteados, espalhava fertilizantes de alta intensidade sobre outros e depositava sobre outras áreas, menos férteis, torrentes negras de solo artificialmente preparado — muito mais produtivo que o solo natural. Autômatos do piso corriam a cultivar o solo, com lâmpadas vermelhas no alto das suas cabeças, os rastros a deixarem estranhas marcas no chão. De vez em quando via-se um homem. Mas não havia nenhum perto de nós. Talvez o mais próximo estivesse a uns quinhentos metros dali, mo centro exato do piso — num gabinete circular que havia ali. Quando tínhamos passado por ele a caminho dos tomateiros, tínhamos o visto com os pés em cima de uma mesa de comandos, a beber café enquanto os computadores zumbiam.

       — Gostas de estar aqui? — perguntou subitamente o principie.

       — O quê, meu senhor?

       — Chamo-me Robertt. Gostas de estar aqui na República?

       — Que quer dizer, Robert?

       — Se gostas disto aqui, James. Quero dizer... Isto é apenas uma cidade, mas... esta vida. Não é muito diferente daquela que deixaste?

       — Gosto disto aqui, majestade — disse eu, com muito cuidado.

       — De que maneira?

       — É ainda a mesma da do mundo que deixei. Exceto os nomes.

       — Uma mudança difícil de lealdades, não é?

       — Não.

     O principie abanou a cabeça e disse:

       — Depois me explicarás.

     O príncipe esticou-se por completo sobre a relva e fechou os olhos. Durante cerca de cinco minutos não disse nada. Toquei a relva. O odor dela satisfez-me por completo. Era como se ela me tocasse, em resposta.

       — James — disse o príncipe do chão, depois de o tempo ter passado. — Conta-me o que pensas sobre as instalações defensivas da República. — depois ele ergueu-se e fitou-me.

       — Está a ver se eu me dedico ao trabalho?

       — É verdade, James?

       — Há quatro sistemas básicos de defesa, reunidos no Comando da Defesa. E o sítio onde o café não presta e onde tenho de permanecer oito horas por semana. Encontra-se no Piso 15, como sabe, o piso de expansão sob as fabricas. Os sistemas, segundo os seus nomes originais, designam-se por longo ou número um, médio ou número dois, curto ou númuero três, e absoluto ou, número quatro dos sistemas defensivos.

       — O sistema longo é um perímetro de armamento que está colocado nos limites exteriores da República, logo acima do Piso Um. Está a cerca de mil metros da instalação da superfície, ou o monte da superfície, como alguns lhe chamam. O sistema longo consiste, além de vários postos de armas ligeiras que nunca são usados exceto perante uma ameaça de invasão, tem vinte canhões normais C/M. Há cinco canhões por quadrantes, cada um com um alcance atmosférico de trinta quilômetros. Têm várias regulagens, comandadas quer pelas subestações, quer pelo Comando da Defesa, indo de um impulso atroador para tropas de superfície até à máxima potência, capaz de abrir um rombo de três metros numa chapa de aço de treze centímetros de espessura. Se a chapa não estiver protegida por qualquer barreira, evidentemente.

       — Graças a Deus que o equipamento que produz as barreiras magnéticas é tão pesado que só um grande avião o pode transportar — ou um carro pesado de batalha. Nem quero pensar o que aconteceria se alguém conseguisse reduzir as dez toneladas desse peso.

     Parei e acrescentei:

       — Oh! Parto do princípio de que sabe que um canhão C/M não é verdadeiramente um refinamento de um laser de transmissão ultraconcentrada, mas sim uma forma de conversor de matéria — essencialmente um projeto de quantidade de anti-energia, magneticamente protegidos.

     O príncipe moveu a cabeça num gesto de concordância.

       — O aamame inito do sistema longo está armazenado — bem, na verdade, tudo esta retraído num compartmento abaixo da superfície, capaz de resistir a um impato quase direto de uma megatonelada. São levantados até a superfície para serem usados. O canhão pode girar trezentos e sessenta graus em azímute e noventa graus em elevação. Como é óbvio, não podem ser disparados iem instalações de superfícile sem serem retirados do Sistema de Computadores de Defesa, e isso exige uma extensa remodelação dos circuitos.

       — Continua — disse o príncipe.

       — O sistema médio está localizado a cerca de metro e meio em frente do círcuito exterior do pavmento, na superfície — a estrada de acesso que rodeia o monte da superfície e que antigamente se destinava aos abastecmentos. Estamos agora a usá-lo como uma superfícile de pouso, sempre que enviamos lá para fora um grupo num LcmdHov.

     "O sistema médio pode ser baixado ainda mais que o longo — abaixo do texto primário antionda de choque, o que lhe dá uma capacidade de resistência contra um impato direto de dez megatonelada

     "O sistema curto é um sistema de defesa de última linha composto pelas armas ligeiras de superfície montadas no monte da superfícile. É ali que nós armazenamos as nossas armas anticarros e antipessoal, assim como mísseis nucleares de curto alcance, assim como quatro baterias de canhões automáticos de dez canhões de dois canos de 30 milímetros. O sistema curto, pode aguentar uma explosão de dez megatoneladas sem danos significativos.

       — E o quarto sistiema defensivo? — perguntou o principe.

       — O absoluto esta contido no único centro externo de defesa da República, a oito quilômetros ao norte. Está ligado à cidade por uma linha de fierro subterrâneo. O nosso equipamento antibalístico está alojado nele. Os mísseis, os lançadores e uma quantidade limitada de armas ofensivas.

       — Omitadla?

      — Vinte mísseis balísticos intercontinentais com ogivas de vinte megatoneladas, quinze mísseis balísticos de alcance médio com ogivas de vinte megatoneladas.

       — Hidrogêio?

       — Sim, mas podem ser todas revestidas.

       — E tiudo isso é comandado pelo Sistema de Computadores de Defesa? E pelo Comando de Defesa?

       — Bem, de certo modo nada é — disse eu. — O Comando da Defesa é essencialmente um dispositivo de vigilância — todas as partes de cada esquema têm as suas próprias guarnições — e há cinco subestações para o comando independente, se o Comando de Defesa for aniquilado. Mas normalmente, por conveniência, o Comando da Defesa dirige tudo.

     Tinha acabado.

     O príncipe, ao ver isso, deitou-se sobre o estômago, esfregou o nariz na relva e depois olhou para cima, para mim.

       — Sabes isso — disse ele.

       — O quê?

       — Creio que posso confiar em ti, James.

       — O meu pai disse-me para não confiar em nenhuma pessoa, por muito sincera que ela fosse, Robert.

       — Nem mesmo num príncipe?

       — Nem mesmo num rei.

     A confiança tomou-se num silêncio completo. E o ar, o próprio ar, pareceu purificado por isso.

       — Portanto o espaço é um vácuo — murmurou o príncipe.

     E eu não disse nada.

       — E Jesus também foi um bastardo, pprtantx). Que estranho...

       — Um bastardo?

       — Oh — respondeu o príncipe, rindo-se tanto que o estômago dele fremia. — Não quero ser blasfemo, James, mas a semente de que ele nasceu não era a de José.

       — Evidentemente que não. Era de Deus!

       — Portanto o Seu filho tinha de ser um bastardo.

       — Impossível!

     Mas pensei um momento mais e disse:

       — Oh, compreendo o que quer dizer e no entanto estamos casados com a Igreja e com Deus.

       — Assim creio — respondeu o príncipe. — Mias diga-me, apenas por uma questão de argumento, se isso não significa que quando um homem casa com uma mulher, o homem e a mulher em questão cometem uma dupla bigamia?

       — Deve estiar louco, Robert.

       — Não, na verdade não estou — respondeu o príncipe a rir-se. — Mas, pelo nosso dicionário, Maria era uma adúltera ou pelo menos uma bígama e portanto o seu filho... era um bastardo. Não há desonra nisso.

       — Mas o nascmento foi um caso especial!

       — Bem dito, James! — gritou o príncipe. — Podemos atirar um ao outro com os nossos dicionários, não podemos?

       — Que quer dizer?

       — Não quero discutir — disse o príncipe, lenta e deliberadamente. — Ele é que sabe das Suas razões para fazer Jesus vir a este planeta através do útero de uma Santíssima Virgem. Eu quero apenas discutir a grande estupidez que por vezes surge nas ações do autodenominado "homem pensante".

       — O intelectual?

     Um ventilador quaste silencioso começou a funcionar. Aspirava o ar exalado nos corredores públicos e lançava-o para a relva esfomeada. O príncipe e eu levantámo-nos e dirigimo-nos para sul através de uma fila de cenouras.

       — Não os verdadeiros intelectuais — continuou o príncipe. — São ainda muito místicos porque não querem admitir o seu gênio. Escondem-se muito bem. Falo daqueles que se firmam em impuras — talvez ridículas — qualificações que os nossos pais e nós próprios criamos através do preconceito.

       — Continue.

     O príncipe baixou-se, arrancou do solo uma cenoura. Estava madura ou perto disso. Ele limpou a cenoura da poeira e dirigimo-nos para uma das poucas fontes para humanos que havia nos pisos das fazendas, para a lavarmos. Eu segui-o.

       — Que esta cenoura, por exemplo, represente um homem — disse ele. — E não te rias, James; alguns homens são vegetais em aspectos mais que físicos. A cenoura é, lesm comparação, uma planta muito pensadora — apresenta uma espécie de erva, nada apetecível, ao sol, deixando as suas melhores e mais saborosas partes debaixo da terra — três quartas partes dela — onde ninguém a pode ver. Como o verdadeiro intelectual, as cenouras não se importam com a lama, a água e as coisas terrenas — adoram-nos porque são o seu elemento; tanto as cenouras como os intelectuais. Nem desprezam o lugar onde nasceram nem desprezam o lugar onde nasceram nem se desprezam a si próprias; o passado, as famílias, os pequenos problemas não representam nada para elas e para eles. Vê bem, James: a cenoura não é bonita?

     Estava manchada com a terra negra, artificial. Partes da sua cinética pele brilhavam sob o pó.

       — Ê natural — disse eu.

       — Os mais belos aspectos da vida são os mais naturaus. Nós só podemos por em destaque a beleza ou destruí-la.

       — Sim — disse eu.

     Chegamos à fonte e eu cobri com a mão o fotointerruptor, para que a água continuasse a correr enquanto o príncipe limpava a sua cenoura.

     Quando terminou, ele disse:

       — Agora é talvez mais bela. Pusemos a beleza em evidência? Toda limpa e pronta para consumo?

       — Sim.

       — Será mais bela que quando tinha terra sobre ela?

       — Evidentemente.

       — Oh! — disse o príncipe. — Essa expressão de certeza nos teus lábios, esse ar de profunda decisão na forma como falas! Como podes ser tão positivo? É a mesma cenoura, não é? Como pode ser agora mais bela? "Belo" não é um adjectivo comparativo.

       — A sua filosofia parece indicar que o mármore deixado na terra se encontra em melhor estado que a do produto acabado por um artista.

       — Nesse caso ocorreu uma concepção.

       — Bem, em qualquer caso, lavou a terra.

       — Eu lavei a terra! Que observação! Que capacidade intelectual, James!

       — Bem, lavando a lama de um homem, pode-se com certeza melhorá-lo.

       — E o homem ficará verdadeiramente melhorado? — contrapôs o príncipe. — Como podemos nós, ou a sociedade, sermos honestos, ao determinarmos se ele está sujo ou não está? Tudo depende do observador e do homem em questão.

       — A mulher honesta é melhor que a prostituta comum — respondi eu.

       — É verdadeiramente? — perguntou o príncipe. — A prostituta tem razões para as suas ações; a mulher honesta pode nunca as ter.

       — Mesmo assim digo...

       — Que a mulher honesta é melhor? Pode um pedaço de papel e uma devoção eterna — fenômenos que confessadamente são raros hoje — justificar um ato sexual melhor que o dinheiro?

       — Certamente.

       — Tanto que uma mulher casada apanhada em más circunstâncias nunca deve ir para a cama com outro homem — é um ato impuro e contrário a Deus — mesmo que se trate de salvar a vida do marido das mãos de vis e maldosos raptores. Mais vale manter a fé que a vida.

       — Não disse isso!

     — Oh, de certa maneira disseste-o, James. Porque dada essa circunstância, essa mulher passa a ser desonesta — torna-se numa prostituta se nos apegarmos às tuas definições, e o marido salvo por ela processá-la-á por adultério.

     O príncipe sorriu e fez saltitar a cenoura na mão.

       — Não acredites em palavras aqui, James. Podem significar coisas que foram muito valiosas no passado, mas não na República; o ar está cheio de trapaças. Não acredites nas palavras — são uma ilusão. Aceita apenas as que estejam provadas; quanto às outras espera paciente mas sabiamente para que o sejam. Também não acredites aqui nos papéis. Os homens usam os seus poderes como se fossem apagadores, e sabem fazê-lo muito bem aqui. Crê na amizade entre os homens e nas suas ações observáveis. Não quero dizer que se ignorem os desconchavos dos loucos — os loucos, por vezes, são os mais sábios dos homens — mas sim que coloques tudo na perspectiva devida. Crê nos homens, porque as palavras, quer escritas quer ditas, podem ser deformadas para que o mais alto e sagrado objeto pareça o mais baixo e o mais condenável. Podem também fazer o inverso e tornar o mais horrível bastardo em... rei.

       — Os homens não são observadores, James — disse eu. — Os homens são os observados.

      

OS monges da Santa Guarda da Cruz alinhavam os culpados contra as paredes completamente limpas da Igreja dos Justos. Todos se ajoelhavam quando as preces iniciais eram cantadas perante uma estátua de Jesus com todas as suas cores, no momento da Sua morte na Cruz; o Homem cravado na madeira manchada; o sangue meio evidente, a pingar; a necessidade de justiça a enegrecer os Seus olhos de cristal.

       — ... Em nome de Nosso Senhor, amen — cantou o padre-presidente, a sua voz amplificada a ressoar pelo vasto e polido espaço, refletindo-se contra os vitrais por onde a luz solar artificial entrava. E enquanto o som viajava, um rapazinho com um manto segurava no livro das orações, tremendo com o peso dele; na verdade tudo isso era desnecessário para o padre — ele tinha na memória, havia muito tempo, todos os procedmentos adequados.

     Com as espadas à vista, a brilhar, os monges alinharam então os culpados contra as paredes polidas, cor de creme, e os painéis de madeira que mostravam a jornada de Jesus até ao lugar dos Crânios sobre a cabeça deles, com o pavmento do que parecia ser pedra sob os pés deles. Julgavam todos os casos individualmente, os padres, perante o nosso Deus e a cadeira deles e as consequências políticas; depois determinavam o castigo adequado.

     A realeza estava acima do crme honesto.

     Os monges, com os seus mantos, alinhavam os culpados contra as paredes, uns cem por dia. Os assassinos, os ladrões, os adúlteros e os seus cúmplices, os casos de divórcio, os casos cíveis, os heréticos, os blasfemos, os que infringiam as leis da Igreja, os culpados que negavam a verdade.

     Os padres sentenciavam Vida.

     Morte.

     Depois da morte.

     Redimiam.

     Matavam.

     Excomunhavam.

     Julgavam o que era certo e errado quando os casos exigiam esse julgamento.

     De vez em quando, concediam um divórcio.

       — ... Em nome de Nosso Senhor, ámen — cantava o padre-presidente.

     Aceitavam todas as confissões e entoavam as preces adequadas quando os assassinos eram levados para serem enforcados ou gaseados ou envenenados. Aos redimidos era oferecida uma opção antes da Grande Queda.

     Adultério — nunca.

     A prmeira pena para as relações sexuais com uma mulher não abençoada — isto é, para uma mulher que não seja casada com o homem ou não seja uma prostituta licenciada pela Igreja — é de dez chicotadas a ambas as partes, em público, na arena da cidade.

     A segunda — vinte.

     A terceira — excomunhão e morte por decapitação: usa-se a espada de um monge.

     Os padres são homens ricos.

     Assim como os monges, mas muito menos.

     Os culpados são os que se deixam iludir.

     Os culpados são, por vezes, homens com um idealismo indesejável que são pobres ou não têm protetores, e atausaram a Igreja.

     O Tribumial é laperaas para manter as aparências.

     Os monges da Santa Guarda administram as necessárias medidas policiais e mantem a ordem na República e na Igreja pelo uso das suas espadas cerimoniais, que são cuidadosamente untadas todas as manhãs com os óleos sagrados, e oram com o abade da sua ordem. Usam minas antipessoal sob os seus mantos e, de vez em quando, armaduras. Todos os monges têm dentro do peito um rádio muito pequeno, comandado por misteriosas flexões do seu braço direito. Todos os momges tinham uma pistola de laser sob o sovaco direito. As espadas são afiadas e todos os monges sabem como usá-la.

     Os criminosos menores arrependem-se, são perdoados, passam um dia ou uma semana na prisão em serviço do senhor, saem e, eventualmente, pecam de movo. Voltam, são abençoados, passam outro dia ou outra semana...

     Os que cometiam crmes de violência indevida descobriam invariavelmente uma manhã que estavam mortos e bem mortos.

       — ... Em nome de Nosso Senhor, amen — cantou o padre-presidente.

     O suor, prateado à luz da igreja, treme por um momento, depois escorre da testa do garoto e cai no chão de pedra artificial. Eles alinham os culpados para o julgamento.

     Alinham os culpados...

     Eles...

     Eles...

    

     O lixo das massas é atirado para baixo por descarregadores individuais de aço inoxidável e levado por um líquido oleoso, esverdeado, para os túneis maiores dos fundos invisíveis de cada piso — e, no fim, para a Grandie Queda.

     A grande conduta da Grande Queda possui uma blindagem e está contraventada de modo a poder suportar um impato direto de vinte megatoneladas na superfície. Tem exatamente vinte metros de diâmetro.

     Os detritos são vazados na Grande Queda e passam dela para os "fogos" de baixo. Sob uma chuva quase perpétua, quase toda a matéria produzida na República, os restos de todos os produtos criados na República, caem por ela para serem purgadas em massas cobertas de líquido verde.

     Mas não é uma verdadeira queda.

     Uma queda precisamente regulada.

     É uma queda determinada por campos gravitacionais artificiais.

     É uma queda gravitacional precisa, para satisfazer as exigências.

     A "chama", no fundo, lambe e consome tudo.

     O fogo, alojado num campo magnético e protegido por uma couraça de chumbo, nunca foi visto por olhos humanos — exceto os dos mortos que são lançados para a Grande Queda, cobertos pelo líquido verde, para serem totalmente despedaçados.

     Na "chama" os átomos separam-se todos uns dos outros — todos os elos moleculares são quebrados.

     Depois os elementos leves e pesados e todos entre eles são separados.

     E novas matéirias-primas são formadas...

     Eles estimulam o fogo com plutónio, urânio e outros metais notáveis. Produzem o calor necessário e adicionam-lhe o hidrogênio que extraem nas quantidades necessárias da água ocasionalmente bombeada no lago Saint Clare, a sessenta e cinco quilômetros de distância.

     Por outras palavras: apadrinham o nascmento e continuam a vida de um pequeno sol onde tudo é purificado.

     E depois fazem descer taças magnéticas para o caldo desse sol e os dispositivos convenientes bebem dele.

     Os homens vêem imagens persistentes, eletrônicas, nos seus monitores, quando a maquinaria, numa espécie de união técnica, reage.

     O cabo é muito espesso e a couraça magnética é muito forte.

     E os termopares produzem uma tremenda parte da energia elétrica comercial da República, enquanto os reatores reprodutores, noutras partes, produzem o resto e o excesso.

    

     Eletricidade.

     Energia.

     Energia.

    

     ...na realidade, — disse o príncipe, inclinando-se sobre a lareira artificial, a luminosidade elétrica a lavar o seu rosto escuro, de sombras profundas. — Na realidade não tenho qualquer cargo de comando, a menos que meu pai...

    

       — Queres dizer que o meu filho está pior da sua aflição? — eis o que se diz que o Rei disse, sentado num pequeno quarto no seu compartmento privado; os cabelos muito grisalhos e o rosto engelhado com desgostos do tempo.

       — Infelizmente, meu senhor, temo que seja uma forte possibilidade — disse Wayne.

       — Wayne, como pode ser isto? — perguntou o rei. — O meu único filho, nunca gostou muito de mim, mas de qualquer modo é o meu único filho.

     ...O seu corpo, aos sessenta anos, em belas condições físicas, o coração muito forte; dizem que ainda está bom para outros trinta...

       — Parece que ele sofre de uma doença qualquer — disse Wayne. — O comportamento dele é talvez... irracional?

       — Ele confessou-se? — perguntou o Rei.

       — Tem-no feito, meu senhor — respondeu um monge, o Irmão Conrad Gates.

       — De que fala ele?

       — Isso, meu senhor, é entre mim e Deus, mas posso dizer-vos isto: ele é de fato um homem que luta contra a sua alma.

       — Até à danação?

     Gates sorriu-se ligeiramente.

       — Não. Está apenas inseguro.

       — Temos de ouvir o que dizem aqueles que o rodeiam — disse o rei. — O médico foi chamado?

       — Não pelo príncipe, majestade — respondeu Gates.

       — Por mim, meu senhor — disse Wayne. — Ele crê, como eu, que pode ser uma doença do espírito...

       — O meu filho está doido?

    

       — ... E detesto o meu pai — disse o príncipe, pegando no copo de vinho que eu enchera para ele.

       — Quem? — perguntei eu, casualmente.

       — Deixa que te fale a direito, James. Toda a minha vida... senti aqui qualquer coisa estranha de que não gostei. A minha mãe morreu antes que eu tivesse cinco anos de idade. Odeio o meu pai porque ele nunca me vê; até estou proibido de assistir à Missa na presença dele.

       — O quê?

       — Não compreendes? Estive debaixo das mãos dos meus tutores e dos meus pares durante toda a minha vida; permitem-me a companhia do Rei somente durante algumas funções cerimoniais.

       — Tais como...

       — O da dos seus anos, James; o da dos meus; o Natal, a Páscoa e os dias de honras reais da República

       — Quando ele entende declará-los.

       — Isso...

       — Corresponde a uma méda de doze vezes por ano, James, cerca de uma hora de cada vez. Somos humanos. Sentamo-nos, envergando vestes esplendorosas que me fazem soar como uma cadela, enquanto as câmaras de estereovisão exploram a nossa beleza e conversamos cortesmente para que os outros vejam, enquanto a orquestra se arrasta e a parada passa pela arena.

       — Compreendo.

       — Não, James — disse o príncipe num tom forte, batendo com o copo vazio no cimo falso da lareira falsa. — Não podes compreender.

    

     ... mas se eu voltar a casar?

     ... Deus diz que todos os chefes devem ser masculinos como era o Seu Filho Jesus, portanto mesmo se vossa majestade voltar a casar-se, ela não poderá assumir o trono se o vosso filho, permita que digamos, prove ser defeituoso...

     ... defeituoso...

     ... sim, meu senhor, mas capaz de continuar a linha...

     ... a loucura não é transmissível?

     ... esta loucura não é transmissível, meu senhor...

    

     Os nomes nas portas parecem os dos advogados. Só a barreira da idade, na verdade não observada, os distingue do resto.

     Um trabalhador vindo da fábrica, sujo do seu trabalho, pára perante uma porta — uma porta bem iluminada — e conta o seu donativo antes de entrar.

     A luz apaga-se.

     Ele sairá, purificado, uma hora depois.

     Algumas andam pelas ruas vestidas como qualquer mulher, o perfume da sua profissão diluído no ar ventilado.

       — A sua casa ou a minha?

       — Não, perdoe-me, hoje não.

       — Todas as bênçãos...

       — Estou a ver isso. Bom dia, minha senhora.

     A cruz violada, mascarada em testas ardentes...

     A correr, as crianças atacam as salas de brincar, devastando os balouços. Uma olha para cima, para o teto pintado de azul enquanto a maior parte trava batalhas fingidas no chão.

       — Órfãos.

       — Nascidos das mulheres?

       — Nascidos dessas mulheres.

       — Mas...

       — Contracepção? Com a nossa subpopulação e uma taxa de natalidade terrivelmente baixa?

       — Então...

       — Elas casam-se James? Nunca são proprietárias do que produzem fora do matrimônio, são férteis e não podem deixar de produzir.

       — Mas...

       — De qualquer modo, poucas procuram casar.

    

     ... o padre disse a congregação silenciosa... no entanto eu disse que se eu, ou um anjo do Céu, estivéssemos aqui a pregar qualquer outro evangelho que não o que ouviram, amaldiçoados fôssemos! Ouviram-me já dizer isto, e agora vou pô-lo bem a claro — se alguém pregar outro evangelho que não aquele que ouviram, é porque é uma alma danada! Amen Amen

    

       — Robert?

       — James — disse ele finalmente. — Porque deverei ser um bastardo? — Todos somos.

       — Somos?

       — Se somos imagens de Deus, assim é segundo o nosso dicionário.

     Ele sorriu-se por um momento e depois olhou para baixo para o falso fogo elétrico que lentamente a cobrindo os madeiros sintéticos da lareira.

       — Pai — murmurou ele.

       — Quê?

     Ele riu.

       — Engraçado, mas neste momento desejo que meu pai...

       — Não desejamos todos, meu senhor — disse eu do cadeirão. — O meu está a cento e trinta anos de distância.

       — E o meu — suspirou o príncipe, muito calmamente, quase silenciosamente — está a uma eternidade de distância.

    

       ... mas ele está maldisposto, senhor — disse o guarda.

    

     Encontrara-o, um rosto que eu vira em qualquer parte em qualquer outro momento no passado, a guardar a única porta de um pequeno corredor. Era o pequeno corredor, número oito, que conduzia ao túnel principal de trainsporte norte-sul do prmeiro piso. A superfície, e aquele era o ponto mais próximo que alguma pessoa poda atingir não oficialmente, estava a trinta e seis metros acima das nossas cabeças. A sete metros havia um falso tecto que esconda a superfície interior da espessa couraça principal, além das condutas auxiliares de ventilação, água e energia, e outras delícias. As paredes que separavam da cidade os compartmentos daquele piso, os pequenos paióis, escritórios, armazens auxiliares, instalações militares, eram muito e muito espessas por causa das enormes bebidas absorventes que se encontravam no seu interior.

     ENTRADA PARA A OBSERVAÇÃO DE SUPERFÍCIE DO QUADRANTE NORTE — dizia a tabuleta na porta. E a porta era uma espessa placa de metal.

       — ... mas ele está maldisposto — disse o guarda.

    

     O guarda usava o vulgar uniforme azul da Segunda Divisão de Infantaria Blindada. Era constituído por um traje de malha, de uma só peça, dos pés ao pescoço. O cinto era largo e negro, com uma pistola de laser, muito cerimonial, sobre a coxa direita. Tinha nos braços uma espingarda de massa C/M-34 e apoiava-a sobre o cinto; aparentemente tinham-lhe entregue uma arma mais pesada (a C/M-32 era a normal) porque ele guardava o que era considerado como uma área de alta segurança.

     Não sendo tão dedicados nem permanentes, os soldados não mereciam rádios implantados; um rádio de pulso estava bem em evidência no punho esquerdo do guarda. A antena brilhava, a prata, na manga esquerda — estava incluída no tecido do uniforme. O capacete era tão azul como o seu uniforme, a cor do azul que o céu em tempos tivera, com um visor negro que o guarda mantinha muito limpo, da e noite. Era um cabo, como indicavam os dois traços negros nas suas mangas. As botas, que chegavam aos joelhos, eram muito negras, talvez ainda mais negras que o visor do seu capacete, e eram feitas de um sintético semelhante ao couro. Eram muito mais elásticas que as reais artificialmente produzidas; moldavam perfeitamente os pés e as pernas, mas davam muito mais possibilidades de correr.

    

       — ... ele está maldisposto — disse o guarda,

     A minha visita seguinte ao príncipe será amanhã às nove da manha, pensei eu. Tenho um quarto de serviço das 05:00 às 09:00 no Comando da Defesa...

     Esta noite precisava dormir. Tentei consegui-lo mas falhei e vim dar um passeio para me acalmar ...

     ... As notícias informaram o público que um dos compressores de purificação de ar foi fechado para o serviço regular de manutenção no Piso 1. A qualidade do ar, disseram eles, baixou de cinco por cento, mas continua a ser basicamente fresco.

     ... O meu uniforme, como oficial? Permitem-me uma capa, maravilha das maravilhas! O guarda pode ver a minha patente, está bem visível nos ombros, e pode ver também os cordões dourados e roxos que indicam que sou um cavaleiro. Pendem do meu ombro direito e vão até ao lado esquerdo da minha cintura. E o selo da República, a coroa sobre o rolo dos evangelhos, ladeado por dois grifos de pé e a divisa: de profundis. O guarda pode ver a minha suposta autoridade... a minha grande ilusão.

     ... A diferença no ar? Dizem que cinco por cento nunca é muito, mas não há uma sensação de sufocação, mesmo nestes altos corredores, mesmo entre estas paredes maciças e nas salas enormes deste piso da República, que não desaparece?

    

       — ... maldisposto — disse o guarda.

    

     A cidade estava apenas meia cheia, e no entanto os planificadores do prmeiro e segundo piso estavam a expandi-la continuamente. Talvez fosse a sua maneira de assegurar o emprego dos trinta e nove por cento da população masculina que tudo domina. E a sorte das prostitutas para as mulheres escravizadas, ou o trabalho de secretaria, até que a igualdade física seja alcançada?

     Há uma mudança de turno de quatro em quatro horas, mas nesta noite o silêncio é quase total...

     Uma prostituta de rua passou depois de o guarda ter falado. Talvez fosse noviça na sua profissão, pois parecia não ter mais de dezesseis ou dezessete anos. Anunciou-nos o seu preço enquanto a observávamos, as suas ancas agradáveis a ondularem perante nós muito profissionalmente, e o sutil indício de um sorriso. São curiosas estas mulheres quando aprendem a odiar os homens. Um dístico bordado no vestido dela dizia: "Sigam-me" e os pés dela estavam limpos. Comprar uma... não agora, não esta noite. A bênção da Igreja, a cruz na testa dela; pelo menos era legal, mas não era o bastante. Talvez andasse a ganhar dinheiro para poder estudar no colégio. Ou talvez tivesse a Escritura escrevinhada no ventre para que o seu amante por dinheiro pudesse expandir o seu espírito ao mesmo tempo que esvaziava a sua luxúria.

     O guarda suspirou.

       — Disseste que o Rei está maldisposto? — perguntei eu depois de a prostituta ter desaparecido numa esquina.

     O guarda, movendo a cabeça afirmativamente de uma maneira abstrata, sorriu um pouco e depois puxou por um cigarro, quebrando a regra de não fumar quando em serviço. Estendi-lhe o isqueiro e ele acendeu o cigarro e agradeceu-me; o fumo cinzento subiu no ar.

       — Tenho um amigo na guarda do Rei — disse ele. Acenou com a sua ilegalidade como que para acentuar a certeza do que subentendera.

       — Evidentemente — disse eu. — Não falarei nisso. Onde está esse amigo? Que faz ele?

       — Oh, várias coisas — disse o guarda, acalmando-se. — Serviço de guarda, evidentemente... de vez em quando alguns recados; muito pouco cansativos. Sabe... isso fez-lhe pensar, há aquela criada do Rei, senhor. Bem, senhor, ela tem o mais maravilhoso par de nádegas com que um homem já se sentiu deliciado...

       — Isso leva o Rei a estar maldisposto?

       — Isso? Oh, não, senhor! Não estava a falar disso em referência ao Rei!

       — És um soldado recrutado?

       — Sim, senhor.

       — Entendo.

       — Sim, senhor — disse ele tirando outra fumaça. — Mas essa criada...

       — Concordo, a criada é um assunto muito melhor.

       — Assim pensam os outros guardas do Rei, pelo que dizem os meus amigos, senhor.

     Outra nuvem de fumo cinzento, fragrante.

       — Tens mais que um amigo junto do Rei?

       — Essa criada vale por mil — disse ele.

       — Oh, não — disse eu, a rir-me. — Há novidades lá por cima?

       — Por cima e por baixo, de lado ou revirado.

       — Devias ter vergonha.

       — Mas ela é tão fácil de convencer...

       — Não disseste já isso?

       — Evidentemente, senhor. — O guarda acrescentou, num aparte: — Não é abençoada, mas considerando a tentação...

       — Cuidado, soldado. É um aviso amigável que te estou a dar.

     O guarda riu-se.

       — Não se preocupe, senhor. Temos um fundo.

       — Um fundo?

       — Sim, digamos, dinheiro para fiança?

       — Isso.

       — O custo médio é de cerca de duzentos, senhor, mas depende do padre, evidentemente.

       — E a jovem?

       — Pagaremos também para a manter de fora, senhor. De resto, poucos sabem.

       — Exceto Deus.

       — Senhor?

       — Não importa.

       — Oh. — Outra fumaça.

       — Então o que há com o rei? — disse eu finalmente.

       — Ele? É demasiado velho para essas coisas; não pensa, senhor?

     O guarda prosseguiu, os olhos a brilharem:

       — Quer o número da garota?

       — Obrigado — disse eu a rir. — Mas não. Tenho as minhas próprias fontes de abastecmento. Mas se elas secarem...

     Rimo-nos os dois.

       — Agora a sério — disse eu tirando também uma fumaça do cigarro que ele me ofereceu. — Que há com o Rei?

       — Oh, ele está a correr com os cozinheiros.

       — Sim? Ele grita: "Procurem-me um cozinheiro decente!" Mas ainda não encontraram nenhum que lhe agradasse.

       — Hum...

       — Ele conserva-os durante cerca de um mês e depois despede-os. Dizem que ele nos últimos tempos se tornou terrivelmente sensível à maneira como toma as suas refeições. Não parece dar-se bem com a carne, e os vegetais — é melhor esquecê-los. Têm de o almentar continuamente com carne autêntica, em vez da sintética, ainda que ninguém possa notar a diferencia. Mas o Rei nota a diferença no sabor. Tem sido um inferno na manada real, senhor; têm estado a recorrer a drogas de fertilidade e mesmo assim não conseguem uma produção bastante. Atrevo-me a dizer, senhor, que nenhum cozinheiro neste maldito mundo tem talentos bastantes para fornecer ao rei o que ele deseja.

       — Se não há nenhum que o satisfaça individualmente, porque não recorrem a uma equipe de cozinheiros?

       — Dizem que ele afirma que ainda há-de encontrar um cozinheiro capaz de preparar para ele uma refeição, mas não senhor, nem sequer um prato perfeito, segundo eles dizem.

       — Excetuando talvez a tal criada?

       — Um homem não pode viver somente disso — disse o guarda com um sorriso conspícuo. — Não é almento bastante, senhor!

       — Não haverá alguém capaz de tentar?

       — Não o rei — disse o guarda com uma gargalhada. — O velho patife é demasiado idoso para essa espécie de coisinhas tenras. Deixa-as a nós, os mais jovens!

       — Bem — respondi eu, dando-lhe uma palmada no ombro. — Vê se deixas também alguma coisa para mim.

     ... ele está maldisposto...

    

       — Sim, senhor! Boa noite, senhor. Espero que goste das estrelas!

     ... maldisposto...

    

       — Boa guarda, soldado!

     Dizem que é raro agora que uma estrela seja oculta por uma nuvem.

     O guarda de vigia na redoma, junto de mim.

       — Não há nada dentro do meu traje anti-radiação, posso desligar o rádio, posso desligar o apoio de vida.

       — Não, é melhor que o deixe em funcionamento automático; é tão silencioso...

     Liembrava-me de nuvens, ali. Enormes extensões de nuvens — volumes gigantescos. Lembro-me deles. A mudança de clima foi tão drástica.

     Não me parece estranho que ninguém possa permanecer fora do vidro blindado desta redoma, nu perante os efeitos da atmosfera.

     Röntgen 5 a 15.

     Já não há sons do tráfego na superfície nem pulsações libidinosas (se alguma vez de fato o foram) — só os gritos do espírito aberto de uma torrente de homens, debaixo da terra.

     Röntgens 5 a 15.

     Gostaria de saber para onde vão os abutres à noite. Dizem-me que para as ruínas do sul. Patrulhar ali e depois dormir nos restos das ruínas — onde, Woodward Street?

     Possivelmente.

     E dizem que os novos sons de vida, ou os daqueles que sobreviveram, podem ser ouvidos à superfície — fazem subir os microfones subterrâneos e depois escutam.

     Esses sons naturais são agora coisas exóticas?

     Mas para mim...

     Memórias.

    

     ... Mas eu não devo dizer "nós" a mim próprio. Não estava aqui nessa ocasião; estava a cerca de um ano-luz de distância, se a históiria corresponde à realidade.

     Um ano-luz devia separar-me dos culpados — eu estava para além da órbita de Plutão. Estava longe, muito longe.

     E no entanto, se há um Criador — ainda que eu não tenha encontrado provas da existência de qualquer — se Ele existe, tudo quanto é humano Lhe deve merecer uma Santa gargalhada.

     Estou a tremer como o príncipe.

     Oh, estive bem protegido durante as três horas.

     Fui terrivelmente desiludido nessa floresta.

     Os tijolos espalhados entre o mato rasteiro, os torrões de terra sobre o asfalto ou o que restava dele — ainda alguns vestígios de carbonização.

     concreto. A sombra de um homem apanhado sobre um passeio — caído com um dedo erguido.

     O esqueleto de uma mulher, identificado pelos cabelos compridos que ainda estavam agarrados ao crânio.

     O veículo da República esperava por mim na orla da floresta.

     Havia lá um carro todo coberto de ferrugem, com três pessoas dentro. Parte da carne mumificara-se. Algumas das roupas não tinham apodrecido.

     A quinhentos quilômetros, lá em cima, nas estrelas — a dez meses de distância a Stellar. A parte interstelar dela. Um conjunto de tanques vazios, motores C/M parados, um reator inerte, comandos inúteis.

     Caindo.

     Ela desintegrar-se-á quando a sua órbita decair, finalmente, e a levar a chocar contra os duros limites do ar.

     Nas trevas mortiças, negras, do espaço — ela é como uma mulher honesta. Toda ela coberta com as pedrarias resplandecentes da sua estúpida personalidade.

     Penso que estou num Inferno mais que total. Tenho uma possibilidade de dez por cento de me suicidar — em que posso acreditar agora?

     Tenho o desejo de rezar a um Deus que duvido exista, ainda que o finja bastante.

     Cento e trinta e dois anos. Todos compilados num monte de papel, microfilme e fita gravada — um vasto programa de computador.

     Talvez daqui a cem anos algum monge o encontre enquanto procurar os meios de confirmar a existência do seu Deus, e então deite fora a maldita mensagem.

     O Rei

     O Rei.

     É melhor que deixe de falar comigo próprio.

     O Rei e os seus motivos para me usar eventualmente como um espião perante o filho, ainda que agora seja demasiado cedo para ele abrir a brecha, demasiado evidente que se trata de um jogo de personalidades inocentes — e é limpo. Ele acredita em que pode extrair informações de mim sobre a sanidade mental e os assuntos do filho, através do choque cultural e da intimidação (depois de me ter dado a saborear, aborrecidamente, o tribunal) — tornar-me um grande homem num mês, depois deitar-me abaixo de uma maneira sutil até o fundo do nada. E tudo por causa da minha ignorância da sociedade da República; um movmento falso da minha parte e, por causa da maneira como entrei nela, serei condenado.

     Ê o que acontecerá se o que o Irmão Conrad me disse esta noite for verdadeiro.

     Porque foi que ele, sem me conhecer veio dar-me esta informação que me tirou o sono?

     Porque não a transmite ele ao príncipe — é o seu confessor.

     Que esse Wayne pretende suceder ao Rei, declarando o filho dele louco, e formando um governo de regência depois da morte do Rei?

     A noite.

     A noite do mundo.

     Que lado deveria ele escolher, naquela noite?

     E o leve sussurro do vento que ninguém mais ouvia.

     Piedade.

     Piedade.

     — ... O príncipe não parecia doente? — perguntou o Arcebispo, num tom de força.

       — Não. Encontrei-o na sala de estar do meu apartamento. Não sei como ele entrou. Suponho que era direito dele.

       — Não sei do que está a falar — disse-lhe.

     Wayne, vestido com as suas roupas cerimoniais, enfrentou-me como uma muralha coberta de ouro. Os olhos dele eram penetrantes. Tenho a certeza de que ele conhecia o horário das rondas; era um homem desse tipo. Naquele momento eram onze da noite, vinte e três horas, a hora da cópula, de modo que seria de esperar que estivesse em qualquer outro lado. Ele explicou num tom seco:

       — Perguntei simplesmente se o príncipe deu indícios de qualquer espécie de desarranjo mental...

       — Nem esta noite nem de dia. Parece mais racional do que qualquer homem com o qual tivesse falado, Padre.

       — Estamos preocupados — murmurou ele baixinho, talvez com a língua um pouco entaramelada, como se quisesse que eu me aproximasse mais para o ouvir melhor.

       — Todos estamos Padre — disse eu mais uma vez, voltando-me, contornando-o, entrando no meu quarto e fechando a porta.

     Ele está mal-disposto.

     A carne deve esconder o sabor da verdade.

     De manhã encontrei na minha porta um aviso para que eu fosse falar com o Rei à uma da tarde, treze horas, no "Piso 1", na ala nova da República.

     Para além da protecção completa...

    

O vento quente... se bem me recordo, era, sem duvida... Verão. O último Verão. Fria, ainda que úmida, ao contato, — mas não refrescante — ela era sempre fria como neve.

     Aquilo quebraria o seu coração de cristal, pensei eu.

     Há sempre uma mulher que ficou longe, mesmo que ela seja apenas uma memória escondida nas profundezas do cérebro. Era o tipo de mulher que exigia ser odiada para que pudesse, de uma maneira superior... amar.

       — Tenho de partir; foi esse o fim de toda a minha preparação.

       — James — disse ela num tom material. — Não vejo a necessidade de ires enfrentar tal coisa. Temos dinheiro; de que mais precisamos?

       — Orgulho.

       — Egoísmo inflacionado?

       — Esperança.

       — Sonhos infantis, imaturos, de astronauta, querido?

       — Não sejas burra, Mary. Vou partir.

     Na minha memória ela olha para o oceano como que piedosamente, e nós ainda estamos naquela praia, juntos num simples mundo físico — ainda encerrados na carne.

       — Ou será que decidiste acabar tudo comigo? — disse ela. — Cumpri a minha finalidade de educar um tal James Nathan Williamson, despendendo o meu dinheiro e o meu tempo, o meu corpo e a minha vida?

       — Nunca toquei na abundância.

       — Porque é que te serves das pessoas, James?

       — Eu...

       — Porque é que manténs apenas o que te dá benefícios e deitas fora tudo o mais?

       — Eu...

       — Fica comigo, James. Cuida de mim.

     Voltando-lhe as costas, respondi:

       — Talvez eu seja o cancro das almas dos outros.

    

     — Café, senhor?... James...

     Umia pulsação eletrônica.

     Um condutor que estremece em qualquer parte — um estremecmento apenas notado por um voltímetro.

    

     ... cuidem de mim...

    

      Alastrada, uma série de relés funciona; alguns metais aquecem, mas dentro das tolerâncias de desenho. Há um zumbido durante um segundo. Um condensador dispara. Uma série de novos sinais é enviada. A progênie algo estúpida de um computador olha para eles com um pseudo-olho acabado de abrir e depois diverge-os para os devidos circuitos. Um rato, caminhando por cima de uma chapa de cobre onde não devia andar, é subitamente eletrocutado, e cai a contoroer-se. Está morto agora.

    

     — Café, senhor?

   

     ...o cancro...

    

     Uma série de motores, enormes abre os painéis que deitam para o céu — duas portas de aço e concreto, reforçadas por aço — porque um escudo antiexplosão tem de ser recuado. Um elevador hidráulico recebe ar. Sobe, dirigindo um objeto dobrado para o sol silencioso da madrugada de agora.

    

     ...mas teu amo-te, James?

    

       — Café, senhor?

    

     Um lagarto, muito preguiçoso naquele começo da manhã, piscou os olhos sem pálpebras ao ver o objeto que subia, e depois fugiu. Um abutre, pairando alto, sobre uma corrente de ar, notou o movmento, decidiu que era algo vivo, è vôou para céus mais altos.

    

     ... mas a minha imperfeição...

    

     O objeto abriu-se com um estrondo! Uma luz relampejou no painel do Tri-Exp. Um capitão de quarto olhou vagamente para ele por um momento; premiu outro botão que gerou um relâmpago quando ativado.

     Uma nova série de ordens eletrônicas foi enviada.

     À máxima velocidade...

    

       — Café, senhor?

    

     Não me abandones, James não me abandones, James não me abandones, James

    

       — Programa Oito, Exploração ativada, senhor!

    

       — Café, senhor?

       — O quê?

     O tenente sorriu. Parecia estar à espera havia bastante tempo, mas a chávena que tinha na mão ainda fumegava, como se tivesse sido acabada de encher.

       — Oh — disse eu abanando a cabeça, despertando de novo. — Obrigado.

       — Bem-vindo seja, senhor — disse ele, dando-me a chávena.

       — Como é que se chama? Creio que nunca nos tínhamos visto.

       — George — disse ele. — George Kennedy.

       — Kennedy do Cabo?

     Fez-se silêncio entre nós.

       — Do Cabo, senhor? — perguntou ele, erguendo as sobrancelhas.

       — Aapenas um lugar que eu conhecia.

     Ele riu-se.

       — Sim, senhor.

       — Obrigado, mais uma vez. Volte para o seu posto, Kennedy.

       — Obrigado, mais uma vez. Volte para o se o posto, Kennedy.

       — Sim, senhor.

    

     Sorvendo a bebida artificial, negra e quente, ativei com a minha mão livre uma série de relatos de situação, para serem transmitidos pelo Computador de Defesa através do VPC — o visor do meu computador pessoal. Na parede oposta, em frente de todos os homens — talvez para criar uma grande impressão nos visitantes dos Militares — estava a ser projetada uma imagem de 360° do Trid-Exp. Era na essência uma vista geral a longa distancia — num raio de quinhentos quilômetros — , tirada de cima, da área que rodeava a República, tomada de altitudes de sessenta mil a quarenta e cinco mil metros. No centro havia uma vista ampliada da área mediata da República. Estava a ser projetada sobre um mapa. A vista ampliada mostrava muito devidamente os planos de vôo dos abutres que naquela manhã andavam por ali a pairar — o peso deles, a velocidade em relação ao ar, o rumo e a percentagem de material cindível estava indicada ao lado da imagem de cada ave, num amarelo eletrônico.

     De resto, um visor de seis metros por cinco e meio era demasiado grande para aquilo — sessenta centímetros em diagonal teriam sido bastantes.

     O inimigo tinha de carregar as suas bombas de fusão com suficientes elementos pesados; depois a bomba tinha de ser revestida cuidadosamente, para que produzisse uma base radioativa cuja precipitação demorasse à Terra quinhentos anos a anular.

     E sem dúvida que não tardariam a resolver, finalmente, o gigantesco problema do peso das bombas de conversão de matéria, para que o mundo não tivesse mais possibilidades de anular fosse o que fosse...

    

     VPC

     Uma notícia, a relampejar

    

       — A todos os postos — disse eu, movendo-me um pouco na minha cadeira de comando. — Preparar verificação zero oitocentos.

     Dois minutos depois acrescentei:

       — Começar verificação.

    

     sistemas de observação de superfície,

     Entendido

     sistema de armas quatro

     Entendido

   detecção eletrônica

     Entendido

     sistemas de contenção de avarias

     Entendido

     computador de operações de defesa,

     Entendido

    

       — Kennedy?

    

     comunicações de emergência

     Entendido

    

       — Senhor?

    

     sistemas de armas três e um

     Entendido

    

       — O café é bom.

    

     evac. médica

     Entendido

    

       — Obrigado, senhor.

    

     sistemas de armas dois

     Entendido

    

       — Friedreich?

    

     sistemas de energia um

     Entendido

    

       — Senhor? — perguntou o oficial das operações gerais.

    

     sistema de energia dois

     Entendido

    

       — Horas.

    

     apoio de vida

     Entendido

     apoio de vida de emergência

     Entendido

    

       — Oh, é zero e oitocentas. Oito horas, senhor.

    

     vigilância militar

     Entendido

    

       — E, não é?

    

     iluminação de emergência

    

       — Senhor?

    

     defesa civil

     Entendido

    

       — Não se preocupe.

    

     Caras, pensávamos todos.

    

     Caras nos carros e nas ruas. Vistas das escolas, dos autocarros e dos passeios... da...

     Vimo-las impressas tem granito concreto bronze e por vezes ouro.

    

     Imagens ilusões...

     ilusões...

    

       — Comando da Defesa — cantou uma voz estéril com uma perfeição de cadência.

     O canto fora feito por uma voz eletrônica.

    

     ... ilusões...

    

     A voz surgira por um altofalante montado sobre a escotilha de saída de emergência — a escotilha estava montada na antepara traseira do Comando da Defesa.

     Não viera do altofalante montado sobre a entrada normal — as portas do elevador estavam fechadas.

     O Piso 15 era onde a escotilha de emergência conduzia. O Piso 15, cerrado, guardado, vazio.

     Levantei os olhos do último ponto da lista de verificações, um ponto final que eu confirmei com um leve toque da caneta.

       — O quê? — murmurei eu, reagindo.

    

     ... ilusões...

    

       — Cavalheiros; o príncipe.

     Na escotilha houve um estalido e depois rodou qualquer coisa.

       — Cavalheiros — disse eu. — Recordem-se de que estão em serviço. Mantenham-se nos seus postos sem observar quaisquer formalidades. Cumpram os regulamentos.

     O coro:

       — Sim, senhor?

    

     ... ilusões...

    

     Perguntei a mim próprio quem fora que o príncipe subornara.

    

     ... ilusões...

    

     Ele estava vestido com um uniforme vulgar de oficial, sem quaisquer insígnias.

    

     ... aquelas imagens, ilusões passando através do tempo...

    

     O posto onde eu estava situava-se no centro do Comando da Defesa, separado dos painéis de comando montados nas paredes. O posto encontrava-se sobre uma plataforma que se elevava cinco centímetros acima do chão. Tinha uma cerca de aço inoxidável em toda a volta, a altura do ventre, com uma porta que se abria com um sinal subsónico.

    

      ... tempo...

    

     Os olhos dele eram como lanterna de frade; pareciam lançar uma chama em volta, uma chama fria, amarga na sua profundidade.

     Olhei de esguelha para Friedreich e viu-o a esconder livros de quadrinhos sob as nádegas. Depois mostrou-se como se soubesse o que estava a fazer ali, mas seria uma preparação ou uma ação?

    

     ...tempo...

    

     Como que sonhando, o príncipe agarrou-me o ombro numa saudação, e isso obrigou os meus olhos a rodarem com a minha cabeça, em resposta.

    

     ... tempo...

    

     Um estremecmento atravessou o meu corpo com as forgas das nossas posições: Apanhado.

    

     ... religião...

    

     Seriam apenas as sombras, o fundo, a atmosfera?

       — Alteza — disse eu sem emoção, num tom neutro, os meus olhos a observarem, o rosto dele por um momento e depois a descerem de novo sobre o meu trabalho.

    

     Apresentação: FEE. Produção de Energia Elétrica, Carga; Exigência, Sistema 1, Rede Comercial.

     Banco de Termopares A. Três centrais de reatores-geradores operando a setenta e cinco por cento. Banco de Termopares B fechado. Uma central desligada, em reserva.

    

     ...religião...

    

     Mudei para uma apresentação das condições do tempo à superfície e...

    

       — Muito bem, muito bem, James — disse ele numa voz rouca.

       — O eficiente James.

    

     Trinta graus; trinta. Umidade dez por cento...

    

       — Nada de novo, alteza.

    

     ... religião com a divindade de deus...

    

       — Os teus homens — disse o príncipe, a voz a vacilar. — Parecem ignorar-me. Já sou um fantasma? Porquê?

     Enquanto desligava a apresentação do tempo, disse:

       — Porque, senhor, eles têm de manter nos seus postos custe o que custar, sem atender a furtuidaides; assim foi ditado pelo Rei.

     O príncipe soltou uma gargalhada.

    

     ...absorvida pela nossa emoção...

    

     Ele gritou:

       — Estas a dizer que me estou a intrometer no trabalho do meu pai?

       — Talvez mais do seu representante, senhor. Esta regra foi estabelecida por um gienertal qualquer e apírovada pelo rei do seu tempo. Depois foi transmitida sucessivamente.

       — Compreendo — disse ele, falando a gargalhada, apoiando as mãos na cerca de aço inoxidável. — Não é nada de que nos possamos rir.

     Voltei-me, escutando as vozes que nos meus ouvidos corriam quilômetros em eletrons...

    

     ... emoção...

    

       — James, pensei sempre que tinhas olhos na nuca — disse o príncipe.

       — São castanhos — disse eu para mim próprio, mas em voz alta. — Prova-o.

    

       — Entendido, E quatro — disse eu ao microfone fixado com adesivo no meu pescoço. — Está livre e a substituição de emergência fica registada. Recolha a enfermaria mais próxima para assistência e envie um relatório da situação. Para o substituto de emergência: as ordens do dia podem ser obtidas pelo código OS cinco-três-zero-nove-um. Computador de Defesa.

    

     ...emoção...

    

       — O meu pai está doente — disse o príncipe. — Por causa da doença impedem-me a sua presença, e no entanto, neste mesmo momento, apesar da doença, esse homem está a passar revista às construções em curso no prmeiro piso.

     Olhei para cima.

       — A guarda? — perguntei. — Provavelmente é gripe. Tem andado por aí.

     O principie deu um soco no topo da cerca.

       — Maldito seja o meu pai! — exclamou ele, numa voz forte mas não decidida.

    

     ...estamos parados perante o vento...

    

       — A traição é uma coisa de que os príncipes podem ser acusados, senhor — disse eu, em voz baixa.

      — Não sou suficientemente homem para me fazer ouvir?

       — Com razão, sim. Com malícia nenhum homem tem qualquer possibilidade.

    

     ...como folhas espalhadas...

    

       — Qual é o vosso propósito, majestade? — pergunte.

       — Propósito?

       — Que pretende de mim?

       — Amizade.

       — Isso dou-vos, mas que pretende daqui?

     O príncipe abanou a cabeça.

       — Eu — começou ele a dizer numa voz hesitante.

       — ...Eu... desejava... ver a superfície, James.

     — A superfície...

    

     ... como folhas espalhadas douradas        

     bronzeadas

     ou dilapidadas...

    

     — Não deixam os principes sair daqui, nem mesmo com equipamento anti-radiação. — o príncipe riu-se. — Nem sequer me deixam ir aos postos de observação!

     Um momento depois...

       — Não compreendes, James? O príncipe pode sofrer danos nos testículos... esses preciosos orgãozinhos!

    

     ... portanto ficamos de boca aberta ao fitar as estatuas...

    

       — James! — gritou ele, saoudindo-me o ombro. Olhei para o príncipe.

       — Se o que deseja é uma visita, Isso só demorará um momento, majestade.

       — O eficiente James — disse ele.

    

     ...fitar...

    

       — Kennedy!

       — Senhor?

       — Transfere o leitor geral da Tri-Exp. para um dos nossos visores.

       — Sim, senhor.

       — Richkart!

       — Senhor?

       — Prepara a câmara da superfície e projete a sua imagem no visor principal, para sua majestade.

       — Sim, senhor.

       — Aí temos, senhor — disse-lhe eu, olhando-o e sorrindo, mas ele estava absorvido pelo cintilar de sinais mortos no visor principal, os olhos fixos à espera das observações da câmara.

     ... fitar as estatuas

     Uma torre saiu sutatamente da superfície do monte de concreto, brilhando cromada sob o sol dourado.

    

     ... cabeças...

    

     A lente de uma câmara a girar com um ligeiro zumbido que não se adequava à sua função, um zumbido em vez de um rodopio, a abertura a expandir-se, a luz a ser recolhiidia.

    

     ... cabeças...

    

     ...os sons de uma cidade cheia da sua população, engasgada com automóveis e outros efeitos dessa população; o som da vida passada no pavmento negro quente, ardente...

    

     ...cabeças...

    

     ... criancjas jogando basebol num parque da cidade e os homens do luxo a carregarem as entranhas do seu trabalho para o útero de um velho caminhão de turbina, para serem esmagadas, levadas e recicladas...

    

     ... vemos o vácuo lá...

    

     ...a garotinha olha da prmeira base: ó mãe olha para aqueles aviões prateados lá em cima, que lindos rastros! brancos...            

    

     ...flores abrem-se e o sol aurge para ofuscar o sol; os garotos começam a arder e o grande caminhão do lixo slam-bam tomba de lado e como paciências de metal, pedaços e peças caem em volta e as cascas de batata encaracolam-se e enegrecem ainda a rodopiar, no meio do ar...

    

     ... e levantamos os olhos e viemos as estrelas...

    

       — Meu pai — murmurou o principie. — Oh, que estranha deformação é esta?

       — Não há muito que ver, quer que expiemos trezentos e sessenta graus?

       — Há mais do que um sitio para o inferno.

       — E para o Paraíso?

       — Também há mais que um sítio para isso.

       — E...

     Parar para um momento de silêncio. Parar para um segundo de não movmento e todas as coisas absolutamente paradas.

     Parar para uma hora de ternádlade. Beber.

       — Senhor!

     AVISO

    

       — Alvo a dois-quatro-sete-ponto-zero-sete-um — Kennedy inclinou-se mais sobre o seu visor. — Altitude seiscentos constante. Velocidade: Mac um ponto sete. Tempo de Chegada à Zona de Ataque: Marcial, cinco minutos. Designação: Aeronave tripulada, bombardeiro pesado. Percentagem de cindíreis: oito ponto nove.

       — Deixe-se estar, meu príncipe — disse-lhe eu calmamente, tocando-lhe no braço.

     Ele ergueu as sobrancelhas, como que chocado.

       — James?

       — Alerta Vermelho — disse eu.

    

     VERMELHO

    

     Todas as escotilhas dias instalações militares foram cerradas hermelâcamente, isolando os postos defensivos, salvo os dias guarnições de observação.

    

     VERMELHO

    

       — Guardas de Observação aos abrigos — disse eu. — Sistema Quatro, esta a rastrear?

       — Afirmativo.

       — Compute soluções de fogo. Preparíar-se para disparar à minha ordem.

       — Sim, senhor.

       — Friedreich — disse eu, atuando automaticamente, com o meu treino a fazer efeito. — Retirar as seguranças em todos os sistemas de sobrevivência e anti-explosão, assim como nos sistemas de armas. Carpman, preparar para auto/ativação dos canhões C/M dos sistemas curto e médio. Talbert, preparar o sistema um — o longo.

    

     VERMELHO

    

     Estímulos eletrônicos.

    

     VERMELHO

    

     Números disparam a dançar do computador de Defesa, foram apanhados por olhos e então desceram de novo a girar para o computador.

    

     VERMELHO

    

       — O Rei — disse o príncipe, em voz baixa.

       — Kemnedy — disse eu. — Mude a sua imagem geral para o visor principal. Jones, recolhia essa maldita camara. Preparar para análise de evacuação.

    

     VERMELHO

    

     VERMELHO

    

      Houve um cuspinhar de fotons e as iimagens do Tri-Exp voltaram à vida na nossa frente.

     Ele estava no extremo da sensitividade da altitude do Tri-Exp, a cerca de duzentos quilômetros de distância e a aproximar-se rapidamente. Aindla que os cálculos do computador de Defesa não pudessem ser precisos devido à qualidade pobre do sinal — parecia que a sua carga era de qualquer coisa como setenta ou oitenta megatoneladas.

    

     VERMELHO

    

       — Diabo, diabo, diabo — disse Friedreich. — Nada no ar e não temos tempo para preparar nada.

    

     VERMELHO

    

       — Evacuaçao?    

       — Marca — gritou Kennedy. — Quatro minutos.

       — Negativo — respondeu! Jones. — Estamos a começar a mudança de turno das nove horas. O computador indica negativa para a localização da população abaixo do Nível Dez, negativo para simulação nos corredores porque não podemos reunir guardas suficientes.

       — O Rei — murmurou o príncipe.

       — Muito bem — disse eu em voz baixa. — Estamos prontos aqui, Friedreich — comunicou com o destacamento do Nivel Um na área de construção — o Rei está lá! Levem-no para os abrigos reais.

    

     VERMELHO

    

     Sem dizer nada, o príncipe dirigiu-se ao visor principiai, pôs as mãos atras das costas e observou o avião que se aproximava.

    

     VERMELHO

    

     VERMELHO

    

     Dei comigo a observar intensamente os ombros do principie. Havia neles um ligeiro estremecer.

    

     VERMELHO

    

       — Senhor! — gritou Jiones. — Os sistemas de energia de emergência estão em operação total. Estamo-nos a aproximar... Manca! Um por cento da capacidade de energia!

    

     VERMELHO

    

     Quase num murmúrio, tão baixa era a voz que vinha da bateria de mísseis.

       — Solução — disse o homem, a oito quilômetros de distância.

       — Fogo como programado — foi a minha resposta mediata.

    

     10

    

     Agora o príncipe estava demasiado hirto.

    

     9

    

     Levantei-me da consola de comando, afastando os meus olhos do príncipe, e dei os três passos que me separavam de Kennedy.  

       — Três minutos até ao alcance do canhão — disse ele em voz baixa.

    

     8

    

       — Talbert — disse eu. — Ligue ao Sistema Um, o longo da superfície, ensaie e rastreie o alvo. Em vigilância todos os outros sistemas que ainda não receberam ordem de fogo.

    

     7

    

     Foi o momento em que o medo veio e se riu.

    

     6

    

       — Estão a ter dificuldade em encontrar o Rei — disse Friedreich.

       — O quê? — perguntou o príncipe, numa voz aguda, voltando a cabeça.

    

     5

    

       — Não se alarme, senhor — disse Friedreich. — Ainda há tempo.

       — Sim — disse ele numa voz rouca. — Temos tempo, não temos? Miuito tempo. Tempo. Tempo.

    

     4

    

     Dei uma palmada no ombro de Kennedy e dirígi-me para o príncipe.

    

     3

    

     O pé levantou-se do chão e a perna atrás dele moveu-se para cima. Depois o pé baixou.

    

     2

    

     O príncipe olhou de esguelha quando me aproxmei; os olhos dele fecharam-se e ele inclinou a cabeça para a direita e voltou as costas silenciosas para mim.

       — Destino — disse ele então.

    

     1

    

       — Está desanimado? — perguntei-lhe, tocando-lhe no braço.

       — Afasta-te — disse ele em voz baixa. — Posso contaminar-te.

     SISTEMAS A & B — MÍSSEIS 1 A 18 — DISPARADOS emitiu   ligeiro   de o computador   um   zumbido   exta se

     No espírito eles podiam ser vistos a saltarem dos lançados, inflamados pelas chamas dos seus motores. Eles, os mísseis antiaéreos, surgiram subitamente no visor do Tri-Exp como pontos verdes brilhantes que deixavam atrás de si os traços verdes enquanto avançavam para o alvo.

    

     — Contarninar-me?

     — Conheces a doença, James.

     — Mas eu...

     — E eles saíram do covil para me afastarem, James, sabemos do que falamos... És um deles, também?

     — Estou nessa posição?

     — É preciso uma circunstancia para decidir uma ação?

     — Eu?...

     — Não tens ideais? — Ele começou a afastar-se. — Estão a servir-se de ti, James. Todos eles — és um fantoche porque não fizeste uma opção. Mas... Ah, esses mísseis (antiaéreos, que belos veículos, esses que eles usam para defesa da República. Máquinas que correm atrás do alvo. E nós é que somos os malditos. Enquanto elas são as máquinas do diabo. Somos malditos, James, porque como os loucos do passado nada temos que mereça ser salvo. Tudo isto é desperdício? Pois é. Todos somos o alvo — não importa que arma é usada nem quem a usa. O meu pai... o meu pobre, paupérrimo pai, foi induzido a ações pelos outros porque padecia de uma pobreza na alma. Compreendes isso, amigo?

       — Não é o momento de compreender.

       — Ainda não sabemos nada do Rei — disse Friedredch. E depois pôs-se a tratar de outras coisas.

       — Não sabemos nada do Rei — disse o príncipe num eco. — Ter-se-á ele perdido na construção? Não sente o perigo? Tem de se abrigar. Tem de se abrigar. Oh, estou perdido num mar de palavras não ditas, mas as palavras não têm valor. Ainda temos algumas regras? Alguma vez as tivemos? Será tudo maquinal? Serão a salvação e a ressurreição comercial coisas que só possam ser pagas através de outras coisas preciosas e belas? O meu pai. Dêem-me o meu pai. Dêem-me carne. Humanidade! É a única coisa de valor!

       — Príncipe!

       — Pai! — gritou ele, correndo para a escotilha fechada, pela qual entrara. — Tenho de ir ter com o meu pai!

    

     ...mísseis aproximando-se da área do alvo...

    

       — Não pode sair daqui, senhor.

       — A escotilha, James? — gritou ele.

       — Fechada pelo alarme, senhor.

     Sacou do uniforme uma pequena pistola de laser.

       — Resta pouco tempo — disse ele numa voz arrastada. — Abra-a, James, tens a chave. Deixa que vá apanhar o meu pai.

       — Uma ordem de um rei, tão velha como a República, obriga-me a mantê-lo aqui, senhor — disse eu, calmamente. — O laser não o ajudará. Aqui há segurança. Lembre-se que é o sucessor do Trono e... Robert, eles encontrá-lo-ão. Não se preocupe.

       — Não são capazes de salvar ninguém! — gritou o príncipe, apontando-me a pistola.

     Avancei um passo.

       — Porque quer sair? — gritei eu. — Quer ver o seu pai morrer consigo? É esse o seu destino?

     Ele apontou a arma para o teto, a mão cerrada em volta da coronha e o rosto prateado pelo suor.

       — Não seremos dignos?

     Atirei-me para a frente, e atirei-o mais a pistola contra a escotilha. A arma trambolhou e foi parar longe, separámo-nos e ele procurou a arma. Agarrei-o e atirei-o contra um extintor. Ele deu-me um pontapé no ventre. Caí para trás. Ele deu-me um soco em cheio no queixo quando me levantei, fazendo-me cair novamente, com muita força. Saltou sobre mim quando me viu no chão. Rolei sobre mim própirio e afastei-me, separamo-nos e pusemo-nos de pé. Dei-lhe um soco em cheio, na cara e ele encolheu-se e deu-me oportunidade de lhe dar uma joelhada entre as pernas, mas ele respondeu com um direto no meu estômago, atirando-me de novo ao chão.

     Friedreich apanhou-o com um golpe limpo, de atordoamento, e o príncipe ficou estendido.

       — Obrigado — disse eu, olhando-o enquanto ele apanhava a pistola de laser do príncipe e a entregava a mim.

       — Porquê? — respondeu ele, sorrindo. — Todos nós temos de desempenhar a nossa parte.

       — Lembre-me de que te devo uma cerveja.

       — Senhor! — gritou Kennedy. — Os sistemas dos mísseis estão a ser desviados!

     Dirigi-me ao posto dele ie vi-os a afastarem-se do eco do bombardeiro, no Tri-Exp, como pedras atiradas para a terra.

       — Raios os partam — disse Friedreieh por cima do meu ombro.

       — Olhem para isso — respondi eu, apontando para os números que os computadores forneciam e que estavam a ser mostrados no visor. — Um fluxo de aflita energia está a interferir com o nosso sistema de orientação; se ele pode projetar isso também pode estabelecer uma barreira contra os rebentamentos C/M isolados. É pena que não possamos determinar a polaridade.

       — Sim? — disse Friedreich. — Apanhámo-lo com uma salva!

     Kemniedy e eu olhamos, impressionados.

       — Eu disse alguma coisa? — perguntou Friedreich recuando um pouco.

       — Volte para o seu posto e comprove com o Computador de Defesa os efeitos de um disparo de dupla energia, do Sistema Um, com um alcance máximo até menos oitocentos metros, inclusive, e uma dispressao de cinco por cento.

       — Ena!

     Bati nas costas de Kennedy.

       — Quanto tempo falta para o raio de ação dos canhões?

       — Sessenta e quatro segundos, respondeu ele, acertando o foco do Tri-Exp.

       — Sir — disse Jones, olhando o seu posto. — O reator da central sete exige uma redução de potência.

       — Negativo — disse eu, abanando a cabeça. — Que fiquem no amarelo — mas mantenham um esquema de emergência, pronto para o que houver.

       — Entendido.

       — Jesus Cristo! — gritou Friedreich. — Ele é por dinheiro — então fá-lo-emos trepar por uma barreira de anti-protons. Esse filho da mãe!

    

     ... com tristes gritos os lagartos

     voavam através do ar gritante

     e a poeira subia...

    

     Os canhões dispararam sobre os seus reparos.

    

     ...a vidrite dias redomas de observação desapareceu houve uma grande ventania

     ... as blindagens antiexplosõo oscilaram; os dispositivos de segurança atuaram; o escudo anti onda-de-choque de cada um dos pisos tremeu sobre as suas boinas num êxtase...

    

     ...o Rei olhou para cima e viu uma enorme e nova...

     ... toda a gente...

     ... todos caíram...

    

     E o príncipe, no pavmento de metal, estava em silêncio para o mundo, abandonado.

    

     ...enquanto...

    

     Cinco lagartos firmes sobre as suas quatro ancas observaram de diferentes direções os canhões a girarem sobre os seus reparos.

    

       — ...segundo as estimativas a ogiva deve ter umas oitenta megatoneladas...

    

     Um firme

     jato de vapor cozinhava cenouras

    

     Seis bonecos, autômatos.

    

     ...enquanto...

    

       — ...aquilo estará vivo, James? Seremos nós apenas os bastardos de um Criador, expulsos da grandeza, sozinhos na defesa dos nossos lamentáveis seres?

    

     FOGO

    

       — Todos os canhões de longo alcance disparados!

       — Kennedy, ele fez uma diversão?

       — Senhor... ele detonou prematuramente ...

 

                                 REALIDADES

    

JUNTARAM-SE na santa igreja-mor, a Igreja dos Justos. Os pés deles ressoavam no plástico que imitava o granito, os seus murmúrios reverberavam do plástico que imitava os painéis de nogueira. As câmaras de estereovisão foram focadas. Milhares de outros observavam e regulavam os seus receptores de estereo. O padre verifica a sua caracterização, em busca de quaisquer falhas, sai do seu quarto, sobe os degraus do altar, o padre mostra à câmara uma cruz dourada e depois mostra-a a todos Os vinte adoradores escolhidos ajoelham em almofadas especiais que estão colocadas no chão em frente da altar. Um monge aproxima-se dos púlpito; murmurando preces, abre o livro sagrado.

     Depois começa a missa.

     Uníssono eletrônico — cantam-se canções, cantam-se preces de papel, traçam-se cruzes sobre o corpo.

     O equivalente eletrônico de um órgão construído em 1600 toca.

     As luzes baixam de intensidade, expandem-se, morrem para glorificação.

     As vetos têm chamas que vacilam sob uma brisa falsa, desnecessária...

     O padre leu, a sua voz amplificada e vista num medidor como uma série de pulsações de uma agulha — a parte externa dessa voz a cair sobre os atores que o rodeavam.

       — ... E então apareceu perante mim um grande trono dourado e Aquele que estava sentado sobre ele fez com que o céu e a terra voassem e desaparecessem.

       — Amem — gritaram os atores perante a deixa.

       — E o Seu Espírito caiu sobre os chefes dessa passada nação e todos ajoelharam perante Ele porque conheciam e temiam a Sua Cólera.

       — Amem — gritaram os atores, as suas vozes unidas extinguindo-se mas molas dos reverberadores.

       — E eu ouvi uma grande voz — leu o padre, apaixonadamente — Veio desse trono e gritou: A casa de Deus estará com os homens e Deus viverá entre eles e eles serão o Seu povo, e Deus limpará as lágrimas dos olhos deles.

       — Amem — cantaram as vozes.

       — E então a voz ordenou: Construam grandes templos subterrâneos nos quais aqueles que vão ser salvos dos primeiros fogos da purificação viverão em felicidade em Meu Nome!

       — Deus seja louvado! — gritaram as vozes dos atores.

       — Aqueles que sobreviverem adorarão a Deus. Verão o seu rosto e os Seus servos mais ou menos privilegiados deverão ter escrito o final de Jesus sobre as suas testas. Nunca mais haverá noite nem dia; não terão necessidade da luz do Sol porque o Senhor olhará por eles.

       — Deus seja louvado!

       — Sim, mas recomendo-vos cuidado! Porque as forças de Satanás seguirão o exemplo e lançarão sobre a Terra os seus falsos deuses, em busca da violência.

       — Amem — responderam os atores, as suas vozes baixando agora como numa deixa.

     — Afastemos dos templos depravados, os feiticeiros, os impuros, os idolatras, os assassinos, e todos os que praticam e amam a mentira!

       — Ámem.

       — Porque eu sou o Alfa e o Omega, o primeiro e o último, o princípio e o fim. Aquele que era e Aquele que será, e o tempo do Meu Reino está próximo.

     — Confessa — disse a luz cegante.

     — Vá para o Inferno!

     — Não, aquela palavra vinha de um homem.

     — Confessa!

     Voltei ao mundo preso a uma mesa, uma mesa muito dura nas minhas costas. Era metálica, fria e dura e eu estava deitado sobre ela, com os pulsos e os tornozelos ligados, separadamente.

     A mão desceu, andou em volta, subiu e andou de través — senti as pancadas no meu rosto.

       — Confessa — disse o monge, nas suas vestes cinzentas, com um frasco dos santos óleos na mão esquerda, imóvel.

     Tinham-me abatido com um atordoador de laser quando saí de quarto. Aparentemente tinham-me prendido, despido e ali estava eu acordado, nu, sobre uma mesa de metal frio.

     Havia eletrodos no meu crânio, presos por fita adesiva.

     Rodeando-me, zumbindo, havia a evidência sensorial do equipamento eletrônico.

       — Confessa — disse o monge.

     Sim, era a luz do teto, não era? Impedindo intencionalmente a visão, tornada ainda mais absoluta pelas paredes absolutamente brancas, a palidez do rosto do monge, o polimento da mesa — até o crucifixo na parede em frente dos meus pés era de uma substância branca, artificial. Alguém dera-se ao trabalho de pintar à mão as marcas vermelhas do sangue de Cristo torturado.

       — Confessa — disse o monge, bocejando.

       — Vão-se lixar — disse eu. — Que disparatada maneira de latordiar! Confessar? Confesso. Sou um homem absolutamente horrível.

     O monge olhou parta o teto, para onde eu não poda voltar os meus olhos por causa do tipo de iluminação.

       — Confessa — murmurou ele. — Para bem da tua alma. Outro homem estava perto, branco como a morte devido à luz crua, o peito nu, um capuz negro na cabeça, e tinha um chicote negro e brilhante.

     — Confessa — disse o monge.

     Outro homem estava junto do que tinha um capuz. Também usava um capuz, mas tinha nas mãos um cacete.

     — Confessa — disse o monge.

     Eu ri-me.

     — Confessar? O quê, que diabo? Nao paguei o meu donativo. Não recebi o meu talão. Há uma hóstia à minha espera em qualquer parte?

       — Confessa — disse o monge.

     Sentia outro homem atras de mim. Estava a trabalhar num painel de comando produzindo uma abundância de zumbidos que lançavam dispositivos nas suas operações devidamente integradas.

       — Que está ligado ao meu crânio? Eletrodos? Um pouco de aperfeiçoamento do sistema nervoso humano? Espevitar um pouco os velhos neurônios?

     — Confessa — disse o monge.

     Tossi. O meu peito arquejou com a tosse, o som da tosse ecoou sobre os azulejos brancos, estéreis, das paredes, sobre os homens, sobre os azulejos brancos do chão, sobre a mesa de metal, sobre o crucifixo. Foi registada como um fluxo de elétrons dentro do equipamento zumbidor.

       — Que Deus possa perdoar o teu silêncio — disse o monge, levantando as mãos como um sinal ao técnico para fazer rodar os potenciômetros.

       — Não sou eu quem está silencioso, monge — respondi.

     Os homems pararam todos por um momento. Talvez estivessem à espera do efeito. A uma qualquer ordem do monge, começariam a desempenhar sobre mim as suas honrosas tarefas.

     A eletrônica amplificou a dor ao mais alto grau.

     O chicote vôou pelo ar.

     A carne começou a escurecer e a fraquejar na frente dele.

       Os ossos vibraram sonsamente com o cacete. Só a negra inconsiciência me libertou daquilo.

    

     4,79 Mov

     4,05 Mov

    

     aumento na concentração de cevada media/25 anos   uma partícula Beta foi formuladia

     atraves da seguinte equação:

    

     n=p+e — 4-v

    

     ... Contenção de avarias

    

     — Não precisavam de o punir assim! — disse ela.

    

     BRECHA

     BRECHA

     BRECHA

     ...antepara número um, piso um fechado e estanque... é a área da nova construção, não houve tempo de terminar a protecção antiexplosão...  

    

     ...o rei morreu...

     o rei morreu.

     orei morreu?

     o rei está a momer.

     oh, o rei morreu...

    

     — Preciso de sangue — disse ela. — Tipo A, Rh positivo.

    

     ... coração, 120...

     ... respiração a avisar...

     ... sempre uma bomba pesada, senhor, ainda que desta vez o engenho estivesse limpo. Nem sódio nem camisa de cobalto 60. Ê surpreendente que eles tenham mantido aquilo tão...

    

     — Ele pode ter sido morto por vocês, seus imbecis — disse ela.

       — ... Bem, a onda de choque destruiu os circuitos de segurança nos novos setores, de modo que ele recebeu, possivelmente uma dose de seis mil Röntgen, além dos fermentos físicos.

       — ...Vítimas?

       — Trinta e cinco mortos no desabamento, cerca de cento e vinte feridos a receber os últimos sacramentos.

    

     ... deixem-no ir é a radiação deixem-no ir é a radiação

    

     — ...É a radiação — disse eu, aparentemente.

     — Ele está a voltar a si — disse a voz de mulher que pairava sobre a minha cabeça. — Não temos de lhe agradecer isso.

       — Temos os nossos deveres a cumprir — respondeu o monge. — Ainda que os nossos objetivo sejam os mesmos, os departamentos não o são. Faça-o viver.

       — Sobreviver — disse eu. — Sobreviver.

       — Que está ele a murmurar? — perguntou o monge. — Não faz qualquer sentido.

       — Você está no meu caminho — disse a mulher.

    

     ...cuidado com os abalos de terra secmdários, disse um homem...

     ...energia de emergência firme, disse Kennedy...

     — Que maneira de sobreviver — gritou Friedireich, abanou a cabega enquanto o rosto estava merso nas luzes vermelhas de alarme. — Que maneira miserável de sobreviver.

    

     ...morte ao rei

     o irei está a morrer

     o rei morreu.

     que miserável maneira de sobreviver

     que miserável maneira de morrer...

    

     — Essa é a mensagem — disse a mulher. — e o que estás a fazer, querido.

     Estava a esfregar-me nas costas qualquer coisa que ardia,

       — O quê? — disse eu em estupor, esfregando o meu queixo enquanto torcia a minha cabeça para o meu lado ôobre o lençol esticado na marquesa.

       — Você voltou à vida — disse ela, passando com um dispositivo eletrônico qualquer a cerca de três centímetros de distancia das minhas costas. — Como é que se sente, bonitão?

       — Morto.

       — Parece que o está. Eh! Não se atreva a deitar-se de costas, rapazão — deixe-se estar deitado sobre a barriga, compreende-me?

       — Está bem — disse eu, calmamente.

       — Mantenha-se quieto enquanto eu cubro a sua pele oom plástico.

       — S-im, senhora.

       — Assim é melhor, querido.

       — Como é que se chama?

       — Genevieve — disse ela, vaporizando apressadamente um líquido frio sobre as feridas. — Genevieve Christian.

     Tentei levantar o braço esquerdo.

       — Você sofreu algumas inibições neurais temporárias, querido — disse ela em voz baixa. — Desaparecerão dentro de minutos.

      — Com mil diabos! Que aconteceu?

       — Cuidado com a linguagem!

       — Então vou falar melhor, jovem. Que foi que eles me fizeram?

       — Bateram-lhe até o tornarem numa polpa sangrenta — disse ela num tom neutro, enquanto se afastava, para qualquer lado. — E deram-me o seu corpo para que eu o possa pôr em condições de estar presente ao julgamento, dentro de uma hora.

       — Oh!

       — Esses animais quase que fizeram um trabalho demasiado bom.

       — Suponho que ainda estou despido.

     — O quê? Ah, já vi homens nus.

     — Então desculpe a minha aparência.

     — Que há a desculpar, James?

     — Conhece o meu nome?

     — Toda a Republica Conhece o seu nome.

     — Oh!

     — Quer fazer o favor de se voltar?

     — Sem dúvida.

     Quase perdi os sentidos, porque as minhas costas arderam numa dor total.

     — Teve sorte — disse Genevieve. — Eles não lhe partiram nenhum osso.

     Ela era morena, mas o resto do seu corpo estava fora de foco.

     — Que bonita — disse eu, através dos olhos fechados. — Onde estão eles?

     — Oh, com o Irmão Richmund daqui para fora, há pouco, levei um século imenso a convencê-lo de que você não lhe serviria de nada durante longo tempo.

     Houve uma pressão de qualquer coisa contra o meu braço esquerdo.

     — Vamos ver o que é que isto poderá fazer por si — disse ela.

     Ela inclinou-se sobre mim e eu pude cheirar o seu perfume e a tépida pressão do seu corpo contra o meu quando ela abriu uma das minhas pálpebras, acendeu uma luz e espreitou.

       — Creio que estou doente — disse eu.

     Ela foi muito rápida com os aparelhos necessários. Limpou a minha boca com um lenço de papel. Afastou os meus braços quando me deu um pouco de água.

     — Ainda há problemas?

     — Por certo que isso bate a gripe.

     Abri os olhos e pestanejei algumas vezes. Notei que a imagem estava a tornar-se clara e deixara de girar.

     — Pensa que pode levantar-se?

     Descobri que poda fazer isso sem uma desorientação excessiva.

     Ela começou a massajar o meu pescoço.

     — Diga-me — disse ela ao fim de um momento. — Ê verdade que bateu no príncipe?

     — Sim.

     — Porquê?

     — Para o salvar do ataque.

     — para o salvar?

     — O que ele pretenda era o martírio. Queria morrer com o pai, se o pudesse encontrar.

     No silêncio que se seguiu os músculos do meu corpo deixaram um pouco de se contraírem espasmodicamente e remeteram-se a uma simples dor forte.

       — Tenho de me apressar — disse ela, falando em voz baixa ao meu ouvido. — Tenho certeza de que não instalaram nenhum microfone no meu gabinete, mas é melhor jogarmos pelo seguro. Tenho certeza de que falou recentemente ao Irmão Gates, não é verdade, querido?

      — Sobre a Igreja? iStoi.

     — O Irmão Conrad Gates está a organizar uma Igreja para substituir a antiga.

     — O quê?

     — Quieto, James — disse ela, debruçando-se mais sobre mim. — Não te esforces depois daquilo por que passaste, amor.

     Ela era uma mulher muito atraente, mesmo na sua bata de médica, com grandes madeixas de cabelo que acariciavam docemente os seus ombros e seios.

     — Que importância tenho para si? — disse eu. — Sou um homem morto.

     Ela falou a sério.

     — Jarmes. És o meu paciente. Porque o quiseste.

     — Era melhor assim.

     — Não sejas amargo, querido James; não é próprio de ti.

     — A chuva tem de morrer — disse eu.

     — Não — disse ela, abanando, a cabeça.

     — E o vento parara e nada restará para continuar a vida, porque partimos e abandonamos a superfície — somos criaturas sem uma palavra chamada amor. Somos criaturas da finalidade.

     — Tenho de me apressar, James.

     — Chame o monge; deixe-me partir.

     — Não compreendes? — gritou ela, sacudindo os meus ombros. — Fui posta aqui para salvar a tua alma, raios te partam! És impossível!

     Olhei para cima, para ela.

     — Minha senhora — disse eu. — Não pode aliviar o que nunca existiu.

     Houve entre nós um novo silêncio de choque, um ventilador começou a funcionar e lançou sobre nós uma torrente de ar refrescante; o meu corpo parecia uma massa de carne ressuscitada com chagas e outras coisas a sangrar aqui e ali.

     — Olhe, cavalheiro — disse ela com as narinas a fremirem. — Sabe como eu que a Bíblia da Igreja não é a Bíblia correta.

     — Não faça fantasias comigo, Genevieve — disse eu,

     — Não seja cabeçudo.

     — Não me importa que os senhores disto creiam num livro sagrado cujas palavras foram mudadas para sustentar a teocracia que está no poder — o que me preocupa é a sua existência.

     — Deixe de ser burro — disse ela.

     — Muito bem — suspirei, levantando a cabeça para o teto. — Que é que a preocupa?

     — Estou chocada! — gritou ela. — O Irmão Gates faz uma descoberta desta importância — você conheceu-a sempre — mas um homem não é bastante, de modo que você tem uma desculpa. Mas Deus, James — a Igreja de Wiayne é a Igreja do Anti-Cristo! É blasfémia! E isso não significa nada para si?

     Durante um tempo que pareceu longo ela observou-me com uma expressão de cólera no rosto, as sobrancelhas deprimidas, os lábios ligeiramente franzidos. Mas depois veio uma expressão de simpatia, colorida por outras coisas que para mim não eram tão agradáveis como a simpatia humana. Eram de justiça para o corpo na sepultura.

     Os cabelos dela caíam pelos ombros para tocar os seios clamamente modelados; todo o castanho daqueles cabelos terá um indício, na luz crua do gabinete, do lustro que a luz pura do sol poda revelar, se tivesse a devida oportunidade para isso.

       — Sim — murmurei eu, olhando para as minhas mãos. — Isso deve ter um significado.

       — Se ao menos eu o odiasse — murmurou ela.

     — O quê?

     — Precisa de uma prova, James? — gritou ela. — Bem, temos a prova!

     Com isso, ela dirigiu-se a um dos armários brancos do canto da sala, remexeu em alguns instrumentos e retirou um livro familiar, pequeno, encadernado em castanho-escuro. Trouxe-o até mim e colocou-o nas minhas mãos.

     O livro sofrera a passagem do tempo e a cor da encadernação estava a desbotar; as letras no exterior quase tinham desaparecido, mas as impressões sobre o papel amarelado, dentro dele, eram ainda muito claras:

    

     A BIBLIA SAGRADA

     Contendo o

     VELHO e o NOVO TESTAMENTO

     Traduzidos das Línguas Originais

     Segundo a Versão estabelecida em 1611

     Comparada com as mais antigas autoridades e revista em 2006-2009

     Novamente Editada pela Comissão de Revisão Bíblica Americana, Nova Iorque, 2011

    

       — A idade foi comprovada laboratorialmente — disse ela.

       — Onde encontrou isto?

       — Dentro do sistema de ventilação. Encontramos uma caixa de cinquenta.

     Comecei a rir baixinho.

     Genevieve inclinou-se e fitou-me nos olhos.

     Perguntei-lhe:

       — Então vocês precisam de um novo mártir?

    

METERAM-ME no que era uma cela de isolamento total ou uma masmorra para passar a noite. Era uma masmorra escura, ainda que o pavimento de concreto fosse limpo e muito liso. Havia uma banca de concreto contra a parede, de modo que não fosse necessário dormir no chão. Havia também um candeeiro de plástico no teto e a luz tinha sido amortecida, mas não tanto que uma câmara oculta não pudesse fuincionar. Provavelmente havia um microfone no candeeiro. Havia uma torneira numa parede e uma espécie de bacia de cerâmica por baixo com a válvula normal para funções sanitárias.

     Tudo aquilo constituía uma bela jaula.

     A sua intenção eira a de quebrar eventualmente um ser humano e o tornar num primata mais manipulável.

     Na parede oposta — naquela em que se encontrava a torneira — havia uma crosta quadrada que parecia um pedaço de pano grosseiro que houvesse sido pintado para se parecer com o cimento. Possivelmente escondia a objetiva da câmara. A parede dominava a vista da cela.

     Tudo isso observei sentado no chão que se inclinava ligeiramente para o centro, onde havia um escoadouro.

     Tinham-me atirado para ali momentos antes; qualquer coisa macia fora atirada comigo e caíra sobre o meu corpo protestante. A minha pele nua contraíra-se duramente ao contato com o concreto. Depois a maciça porta de aço fora partida e o fecho entrara no seu lugar com um estalito.

     A coisa inaoia eram coisas macias — uma era o meu uniforme, do qual tinham sido tirados todos os galões e distintivos e nada continha de uso para um assassino potencial; a outra era um pijama de flanela, sem quaisquer fechos além de uma faixa velcro.

     Sorri para a câmara, acedi e vesti o pijama.

     Durante o resto da noite não dormi.

     Dormira sobre o cimento quando fora criança. Podia ter dormido mas qualquer coisa manteve-me acordado.

     Eram os passos infinitos dos guardas no corredor fora da cela, o corredor pelo qual eu fora arrastado. A porta era nova, de aço, e espessa. Havia um altofalante montado em qualquer parte. Aquilo era uma gravação.

     No entanto, as solas de simáli-couro faziam um som de escova sobre o espesso tapete que havia lá e os olhos deles estavam provavelmente embevecidos perante o fino luxo das paredes do corredor, luxuria permitida aos prisioneiros em breves relances, ou em apressados passeios até o carrasco.

     Visões de relance, ocasionais, de realidade.

     Realidade, no livro deles, é um bom compartimento, boas roupas e um leito realmente tépido onde se durma.

     A água não fora feita para ser bebida. Era pura, mas morna. Aquecia até vinte e sete graus e se uma pessoa tentava fechar o ralo para inundar a cela a torneira fechava-se automaticamente.

     Passei a noite a pensar em mim próprio — um passatempo confessadarniante egoísta, mias não ditado pela minha escolha.

     Os meus principais pensamentos eram os de que nunca acreditaria na Igreja de Wayne e que os meus votos a ele tinham sido mentiras, mas na verdade eu nunca desejara qualquer religião. Deus era demasiado nebuloso para mim. Precisava de um ídolo com substância.

     A minha sociedade estava errada.

     E a minha sociedade, pelo menos nos começos, fundava-se no mesmo Deus.

     Eles viriam para me arrastar para o Tribunal. Julgar-me-iam perante os juízes deles sem jurados, porque eram os homens escolhidos por Deus e eles culpar-me-iam de uma ficção. A da dessagração de um príncipe. Depois excomungar-ie-iam, matar-me-iam e atirar-me-iam para a Grande Queda. Talvez os meus átomos reconstruídos viessem a formar a substância de um sapato.

     Porquê? O crime tem motivos políticos. Terão eles medo de mim?

     Eu excomunguei-os.

     Como os homens são estúpidos!

    

     O abutre

     moribundo,

     asas em movimento,

     desceu em vôo planado,

     virou,

     observou,

     e então,

    

     pousou e empoleirou-se nos restos semi-derretidos de um dos canhões C/M do sistema longo, agora destruído. Fora apanhado pela onda de calor e pela onda de choque e tornado em sucata completa. A capa de penas do abutre perdera o seu brilho. Não tardaria que ele morresse. Fios de baba escorriam descuidadamente do seu bico. A fêmea morrera e ele sobrevivera por rnilagre. Havia agora muita carne podre para ele, mas ele perdera o apetite. Empoleirado, observava, os esporões cravados no lixo de aço e silício; via os homens nos seus incômodos trajes anti alta-radiação conduzindo os seus veículos semelhantes a tanques, com propulsão nuclear, em volta do monte, verificando os danos sofridos pelas instalações de superfície da Repúblíica.

     Uma antena saiu do chão sem aviso e procurou mais inimigos nos céus.

     Os postos de observação de superfície tinham sido levados pelo vento infernal, as sólidas redomas de vidrite quebradas, fundidas e caldeadas nas suas bases. Os homens estavam agora atarefados a substituí-las. O monte sobrevivera, e as entradas de norte, sul e leste estavam queimadas mas utilizáveis. No entanto a entrada oeste estava obstruída, soldada no seu lugar, e teria de ser feita rebentar para que a substituíssem. No canto sudoeste da República, a cerca de cem metros fora do perímetro, onde estivera o arame farpado, havia uma cratera que ainda estava a exalar fumo no ar escuro, radioativo. O avião detonara a onze quilômetros de distância, a oeste.

     A poeira ainda estava a cair.

     Uma câmara subiu subitamente, olhou para abutre, o abutre olhou para ela durante um momento, e depois a câmara desapareceu no chão de maneira totalmente súbita. O abutre estava cansado, doente e não tinha pensamentos muito claros.

     Houve um movimento próximo que o abutre não notou. Um lagarto queimado estava deitado de barriga para o ar junto do canhão C/M ao pé das portas amassadas e erguidas do posto — fora do poço que comunicava com o interior da terra. Fora ligeiramente protegido pela sombra das portas. O abutre examinou-o com um ligeiro interesse

     Um cano saído do monte começou a dirigir-se para o centro.

     O abutre olhou para o céu ensombrado, bateu as asas para chamar mais um pouco de ar a si. O calor era invulgar e talvez o grande pássaro negro compreendesse que a morte não estava longe. Talvez compreendesse que nunca estivera assim tão doente.

     Três balas detonantes de calibre 53 entraram quase simultaneamente no corpo do abutre, disparadas pela metralhadora, e espalharam os restos dele, os pequenos pedaços de ossos, carne e penas por toda a ruína do canhão, o sangue a pingar pelos destruídos e fundidos aparelhos de ereção, a cair no sólido estudo anti-explosão, a sete metros de profundidade.

     Fumo subiu da metralhadora antipessoal, e depois a arma foi retraída para o compartimento protegido contra explosões, dentro do monte.

    

     Os pés tinham parado.

     Despertei de uma confusão que não era sono nem consciência. Parecia ser manhã. Levantei-me da banca e depois sentei-me nela e olhei para a porta de aço sem abertura.

     Os pés tinham parado.

     Ouvi chaves a moverem-se na fechadura. Devia ter pensado que teles fossem mais modernos a esse respeito.

     Depois, no ponto da inaudibilidade, ouvi vozes no fundo; dois guardas a discutirem? Mas não consegui saber sobre quê.

     A mortiça luz noturna da cela aumentou de brilho sem aviso e podia-se sentir a íris da câmara oculta a responder a isso. Era de uma intensidade quase igual à do dia. Agora poda ver a ligeira camada de poeira acumulada nos cantos do concreto.

     A porta maciça abriu-se.

     Um guarda entrou, olhou em volta e disse-me para que me vestisse.

       — Para quê?

       — Para o julgamento.

     Enverguei a minha veste, a capa que antes fora ornamentada com os galões e insgnias, e apertei o cinto que o guarda me deu, deixando o pijama na banca de concreto. O meu corpo gemeu com o esforço que fazia para responder à demanda do meu cérebro — ele protestava contra qualquer ação, contra toda a ação. Mas pelo menos parte de mim sentiu uma semelhança de normalidade, e eu tinha certeza de que não sofreria por muito tempo mais.

       — Saia! — gritou o guarda que entrara prmeiro, agarrando-me pelo braço, atirando um livro para cima da minha capa, do lado oposto à câmara, e depois parando para murmurar muito baixinho e muito rapidamente ao meu ouvido: — Não se preocupe, senhor. O Irmão Gates compreende-o.

       — Para o julgamento! — berrou ele.

       — Para o julgamento? — perguntei eu. — Tão depressa?

     O outro guarda agarrou o meu braço livre.

     — Não deixamos que os traidores vivam muito tempo na República! — disse ele.

    

PORTANTO confessas que bateste no príncipe? — disse Wayne, de mãos douradas. Dois padres rodeavam o Arcebispo na mesa que fora posta perante o altar da Igreja dos Justos, um altar que tinha suspenso sobre ele um crucifixo. Havia outras pessoas além de mim, os monges da Guarda Santa (que se agarravam às espadas, convictos), e os juízes.

     Os longos bancos de mármore fingido estavam vazios.

     A voz de Wayne ecoava naturalmente no grande espaço da igreja.

     Através das portas centrais do santuário fui atirado para a coxia de mais de cinquenta metros até ao altar onde me era permitido fazer uma prece. O guarda que colocara o livro no meu casaco obrigou-me a ajoelhar.

     Ao fim de um momento de silêncio fui autorizado a sentar-rne, e o padre leu as minhas acusações; tinham-me declarado culpado de traição contra a República, culpado de quebrar os meus votos à Igreja, e culpado de exercer o desejo consciente de agredir o herdeiro do trono abençoado.

     Pedi para alegar.

     Aleguei que estava inocente.

     Enquanto eles trocavam olhares pios, eu disse que as minhas ordens me obrigavam a proteger o senhor do trono e o seu herdeiro de toda a ofensa, que elas nada estipulavam quanto às ofensas auto-infligidas, que o suicídio era um pecado e que eu me limitará a seguir essas ordens.

      — Portanto confessas que bateste no príncipe? — perguntou Wayne.

       — Quais são as provas contra mim, Padre?

       — O tribunal viu as provas.

       — Não tenho o privilégio de as ver?

       — Neste caso não!

       — Padre, lembre-se do pecado de Adão.

       — Silêncio!

       — Se errei ao evitar o suicídio de um homem então sou verdadeiramente culpado desse pecado e confesso essa culpa.

       — Nenhum homem tem o direito de bater no rosto real — contrapôs Wayne.

       — Porquê? Não matarás. Suicídio é matar-se a si próprio. Matar é um pecado mortal. Padre, limitei-me a evitar que o príncipe perdesse a sua alma.

       — Ele queria apenas procurar o pai — argumentou Wayne.

       — O pai estava a ser procurado. As minhas ordens mandavam-me que me certificasse de que a família real estava numa área de segurança no caso de um ataque inimigo. Não há lugar mais seguro na República que o Centro do Comando de Defesa.

     Wayne disse lentamente:

     — O prisioneiro deve ser informado de que o príncipe é abençoado por Deus, o seu nascmento é prova disso, e portanto não pode cometer pecado algum. Mas o prisioneiro pelas suas próprias palavras confessou o crime de infligir ofensa a um membro da família real.

       — Não infligi ofensa alguma.

       — Silêncio!

       — Nem cometi traição alguma ou quebrei os meus votos a Deus, Arcebispo. O meu pecado tem sido o de silêncio perante esta blasfémia.

     Os guardas agarraram-me. Os que não estavam envolvidos na ação puxaram pelas pistolas de laser e olharam para cima, para os juízes. Wayne voltou a sentar-se na cadeira, o rosto a suar, e passou as mãos úmidas pelo peito abaixo, endireitando ligeiramente as vestes.

       — Muito bem — disse ele. — Prova a blasfêmia.

       — Uma prova? — disse eu, calmamente. — Talvez esteja certo que me perguntes por uma prova, Wayne, porque eu conheci o mundo antes de o acidente acontecer. Conheci Deus antes de acontecer aquilo a que chamas os prmeiros fogos da purificação.

       — Não obterás benefício da mentira num templo de Deus.

       — Mentira, Wayne? Não preciso mentir. Tu é que precisas mentir. Há pessoas vivas que conhecem a verdade, que leram a verdade, que praticam a verdade atrás de portas fechadas, porque se o fizessem fora delas tu os esmagarias.

       — O Anti-Cristo — disse Wayne em voz baixa aos seus padres.

       — Toda esta fabricação é uma mentira, caro Arcebispo. Esta Igreja deformou profundamente o trabalho de Deus para se apresentar como a única sagrada, com os seus padres a engordarem com a corrupção, os Tribunais a governarem o crime em vez da redenção. Tribunais corruptos pela ambição, caro Arcebispo. Eu conheci a verdadeira versão do Novo Testamento e do Velho Testamento — eu conheci a Bíblia antes de partir para a Estrela de Bernardo. Soube que nos teus cofres secretos, Wayne, existem cópias dela, cópias que foram confiscadas durante o estabelecimento da Igreja, há mais de cem anos.

       — Tens mais a dizer?

       — Muito mais. Que vais matar-me para derramares prematuramente o meu veneno antes que o mal esteja feito. Mas há aqui ouvidos, Wayne. Quem poderá a partir de agora confiar nesta Igreja? Eles podem parecer normais, mias podem não o ser. E agora um presente final, Wayne — um presente de despedida.

     Ergui a Bíblia para que eles a vissem. Atirei-a para o colo de Wayne.

     — Onde arranjaste isto? — perguntou-me ele.

     — Um anjo deu-ma.

     O guarda pegou na espada de um monge e bateu-me com os copos dela na minha cara, atirando-me ao chão. A pele do meu queixo abriu-se, o sangue escorreu.

     O guarda dobrou-se pana me fazer levantar.

     — Fez bem o seu trabalho — murmurou ele.

       — Anti-Cristo! — gritou Wayne.

       — Continue, Wayne — disse eu. — É um julgamento de sangue, um julgamento maldito. Pensavas que não tinha nada para te dizer, não é? Lê a Bíblia. Condena-me à morte para me calar, ainda que a mensagem tenha sido difundida e com sorte a minha morte apenas lhe aumente a validade. Foste tu que vieste até mim e me disseste para observar o príncipe e te informar se ele estava doido. Foste tu que procuraste convencer o Rei de que o filho estava louco, de que o príncipe não estava em condições de lhe suceder, e que chegara o momento de a Igreja se apoderar do trono!

     — Não estou a ser julgado aqui!

     — Deus é que está a julgar, Wayne, ainda que possas negares isso, tu és Deus!

     — Basta! — gritou Wayne.

     Os guardas agarraram-me e fizeram-me calar.

     Wayne olhou em volta, para os padres que estavam junto dele. Notou que estava de pé enquanto eles estavam sentados e que eles olhavam para baixo, para qualquer outra parte do santuário.

     — Senhores — disse ele. — Penso que o prisioneiro se mostrou digno do que o espera.

     Voltou-se para mim e disse:

     — Vais morrer dentro de uma hora. Durante esse período serás excomungado da Igreja. Volta a Satanás, amigo. A tua alma que apodreça por lá.

     Olhei para cima, para o guarda.

     O guarda estava silencioso.

     Wayne olhou para a entrada da igreja. Depois, a cor começou a desaparecer-lhe do rosto.

       — James! — gritou o príncipe. — Então estás aqui!

     Voltei-me e o príncipe a avançar, o seu rosto todo sorrisos e delícia.

     Wayne baixou o rosto.

     O príncipe estava vestido com um traje completamente grego, uma máscara negra pendurada do pescoço, e usava um barrete negro, pontiagudo, como uma criança endiabrada, tirou uma espada das mãos de um monge, fê-la girar no ar um par de vezes e depois aproximou-se de mim.

     — Onde tens estado, James? — perguntou o príncipe, a voz exaltada, viva de energia. — Tenho andado a procurar-te por toda a parte, neste maravilhoso lugar!

     O sangue da minha face encharcava o meu colarinho.

     — Tenho estado na prisão, senhor — disse eu.

     O príncipe soltou uma gargalhada.

     — Oh, não tiveste cuidado! Oh, James, James, devias tomar precauções com essa criada; ouvi dizer que ela é fértil como uma vaca!

     A gargalhada dele interrompeu-se a si própria a meio.

     Ele tocou no sangue que corria pela minha face.

     — Que espécie de insulto é este? — disse ele, lentamente. — Quem fez isto ao meu amigo? Quem permitiu que acontecesse isto a este homem?

     — Fui acusado de traição, senhor — disse eu. — E de quebrar os meus votos para com a Igreja, e ainda o crime de infligir ofensas ao meu senhor.

     Os olhos do príncipe viraram-se dos meus para os juízes, para os monges no fundo da igreja, para o crucifixo na parede do altar, e depois para Wayne. Num movimento rápido, fluído, ele saltou a balaustrada do altar, correu e apontou a espada à garganta do Arcebispo.

     — Senhor — arquejou Wayne, empurrado contra as costas da cadeira. — Fizestes mal a Deus ao mostrar uma violência irracional na Sua Igreja.

       — Tu é que me fizeste mal, Arcebispo — disse o príncipe. — Cuspiste nas minhas roupas negras; têm havido aqui demasiados crimes. O ar, o próprio ar, está podre disso. O nariz de Deus está á torcer-se de desgosto. Liberta James.

     — Alteza!

     — Ele não cometeu crime algum — replicou o príncipe. — Não há sentenças enquanto existe o luto; somos maiores que a baixa vingança. É o tempo de chorarmos sozinhos; ele que parta com a tua bênção.

     — A minha bênção, senhor?

     — Abençoa-o, Wayne! — gritou o príncipe.

     — Vai! — arquejou o Arcebispo, a face lívida. — Vai, James, e o Espírito de Deus que seja contigo.

     — Amem — acrescentou o príncipe.

    

     O trovão martelou a terra.

     O vento, vivo com o odor da violência, lançou o seu poderoso corpo contra tudo quanto se mantinha no seu caminho.

     Maciças gotas de chuva com coágulos de poeira bateram nas entradas que olhavam para o norte, leste e sul, inundaram a cratera a oeste. Cobriram a nova construção; tornaram os restos derretidos escorregadios ao toque.

       — Chuva — disse o príncipe. — Trovoada.

     Tinham retirado a proteção de aço e chumbo da porta norte, que cobria os painéis de vidrite ali colocados. O príncipe e eu tínhamos autorizado a guarda a tomar café. Estávamos metidos em trajes anti-radiação.

     Destroços, de novo despedaçados, esvoaçavam ao vento.

     O que ficara dos animais queimados e doentes lutava contra a súbita transformação, escondidos atrás das ruínas do sistema de defesa longa, penedos, fragmentos do pavimento queimado, arrancados e virados. Levantavam os olhos.

     O rio não tardaria a encher-se até à borda com os restos da terra sem plantas, e a sua carcaça lamacenta cheia de bebida correria sempre, em frente, sempre rápida e violentamente até ao fim.

       — Meu príncipe — disse eu finalmente. — Está louco?

       — Furioso? — respondeu ele, com espírito. — Não. Maluco? Talvez. Faço este jogo com fins políticos, James: o traje que está por baixo deste não tem significado algum. Não. Sou apenas uma coisa.

       — Que é?

       — Um bastardo.

      — Todos nós somos.

       — Mas eu recebi a minha confirmação.

       — Também eu.

     — Porque meios?

       — Caim nasceu; uma das pedras-base da nossa religião é essa.

       — Sim. — O príncipe riu-se baixinho. — Mas o meu Adão morreu a noite passada.

       — Meu senhor — disse eu. — Abençoado seja ele, foi o que cantaram quando o coroaram. Abençoado seja aquele que usa esta coroa, porque ele conduzirá os salvos, purificados e eleitos de Deus no caminho da eternidade.

     O príncipe respondeu:

       — Como este trovão soa a pequenas guerras. É um fenômeno notável, James.

       — Sim, Robert.

       — James — disse ele, voltando-se para me fitar. — Há rumores de que uma força invasora foi enviada de Chicago. Trata disso. Agora és o Ministro da Defesa.

       — Mas a Igreja, Robert. Eles nunca...

       — A Igreja que vá para o Inferno! — gritou ele. — Para o maior dos Infernos! Porque a Igrejia abençoou o meu nascmento, James — tornaram-no legal apesar da infertilidade da minha mãe morta. Permitiram-me ser o que sou.

     Lançou-me um último olhar e partiu.

     E eu fiquei com estes pensamentos: o trovão detona. O vento vinga-se.. A chuva encarrega-se de limpar os céus de novo. O estrôncio degenera. O rádio degenera. Os produtos de todas as bombas desde sempre lançadas sobre o mundo degeneram.

     E o mundo degenera.

    

O sono de um certo homem terminou muito normalmente às quatro horas e um minuto da manhã. Esse homem, como habitualmente, levantou-se naquela manhã e dirigiu-se à casa de banho — uma divisão que não contava como um quarto da sua casa de dois compartimentos. Ali espalhou alguma água fria sobre os seus olhos pegados e sobre o topo do crânio nu.

     O centro de sono pré-programado, funcionando um pouco mal, ainda que fosse um serviço pago, muito útil para os homens da sua profissão, emitiu um estalido de estática e as luzes no apartamento do homem brilharam com a máxima intensidade. Mesmo assim, o centro de sono acordara esse homem no momento devido e continuara a emitir um sinal subsônico, amortecido, de 10 Hertz que o mantinha acordado.

     O espelho da casa de banho viu esse homem enquanto ele se barbeava, usando uma navalha que não tinha lâmina mas cortava e aspirava os pêlos do seu rosto eficientemente, deixando atrás de si apenas a pele nua e lisa; o dispositivo devorou o rosto do homem.

     As torneiras do lavatório na frente desse homem mantiveram a sua imagem refletida enquanto ele se lavava, e depois, eletricamente, esfregava os dentes permanentemente revestidos para que pudessem brilhar adequadamente. Devolveu o reflexo enquanto ele tratava de pentear os inertes restos do cabelo que rodeavam o seu crânio, como uma velha coroa de louros.

     Verificando o tempo, o homem nu decidiu reservar o banho de água e sabão para depois do jantar e passar em vez disso um esterilizador químico de pele pelo corpo limpo. O dispositivo, na mão dele, emitia uma ligeira, névoa. As bactérias eram mortas instantaneamente.

     Esse homem bebeu um copo de líquido de cento e oitenta gramas como pequeno-almoço naquele dia. O líquido continha na sua profundidade cerca de trezentas e dez calorias em várias proteínas e gorduras.

     Às quatro horas, vinte e três minutos, o homem estava vestido.

     Envergara um simples traje de malha, verde, com um cinto negro de couro e botas iguais. Tinha um capacete de proteção branco na cabeça e usava no peito uma simples cruz de prata suspensa de uma corrente de prata — para decoração. Do cinto pendiam duas bolsas, uma para as ferramentas eletrônicas do ofício, e outra para o dinheiro, cartões de crédito e fichas compostas de matrizes de computador.

     Tocou nas costas da orelha esquerda, em qualquer coisa dura que estava implantada ali debaixo da pele. Atrás da orelha direita havia um dispositivo semelhante.

     Enfiou num dedo um anel prateado, de aparência vulgar, e começou a ouvir sons monofônicos que pareciam ser dirigidos para a sua orelha esquerda. Reconheceu a música como sendo uma parte das Escales de Ibert.

     Mas naquele dia ele não queria música, queria notícias, portanto tirou de um bolso oculto do seu traje de malha um pequeno molho de chaves. Além de outras coisas, havia nele uma pequena e fina vara hexagonal. Procurou o furo adequado, pequeno, quase invisível, oculto no próprio desenho do anel, inseriu nele a vareta, e fê-la girar até ouvir a estação que procurava.

     ...Os serviços fúnebres em honra de Sua Falecida Majestade Gregório serão celebrados hoje às catorze horas na Sala dos Reis, Piso 7. O corpo será então exposto em câmara-ardente para os tradicionais trinta dias de luto antes de ser reciclado. O Arcebispo de Wayne celebrará a Missa na presença de um grupo de cidadãos privilegiados e da família real. Faremos uma emissão especial em estéreo às treze horas e cinquenta minutos...

     ...Outras notícias: uma avaria no equipamento na subestação de energia, Piso 12, causou uma paragem temporária na produção da linha de eletrônicos, montagem final. A paragem durou vinte minutos e quatro segundos. Os geradores de emergência da subestação asseguraram imediatamente a energia para o apoio de vida, depois de ter ocorrido nos geradores normais o que pareceu ser a queima de uma bobina...

    

     Esse homem abriu a porta do apartamento, fechou-a, carregou com o polegar no fecho sensível às impressões digitais para o cerrar devidamente, e afastou-se pelo corredor deserto, alcatifado, daquela seção residencial.

    

     ...um informador disse que a queima da bobina foi devida a um súbito e enorme aumento no consumo de energia. Pessoal da reparação está a verificar as linhas principais da subestação, procurando quaisquer possíveis fugas.

     A subestação c, Piso 12, fornece energia eléctrica ao terceiro quadrante, ou do sul, desse piso da República...

    

     O corredor residencial dava para uma das principais salas do nono piso da República. Duas faixas de pedestres, desertas, que corriam pelo centro, atingiam velocidades da ordem dos oito e dezesseis quilômetros por hora, respectivamente. As faixas eram suaves no seu funcionamento, os rotores por baixo delas bem lubrificados, funcionando bem.

     Quando saiu do corredor residencial, o homem voltou-se para a direita e caminhou cinco passos até um depósito de bicicletas. Abriu o cadeado de uma de três velocidades, com rodas de vinte e seis polegadas, que lhe custara duas semanas de trabalho. Montou nela, fê-la recuar com a ponta dos pés e depois começou a pedalar e dirigiu-se às faixas das bicicletas que seguiam para norte, ultrapassando outro homem noutra bicicleta.

    

     Provavelmente houve um onda um homem que escreveu uma porção de afirmações matemáticas vagas num quadro, em qualquer parte. Provavelmente esse homem pensou que poda ver algum senso nisso. Portanto juntou um par de afirmações, equacionou-as com um par de outras, viu que tudo parecia bom na sua régua de cálculo, e acabou com um belo cheque do seu editor, que pensara sempre que o homem em questão fosse um gênio.

    

     O homem da bicicleta chegou a uma subida em curva que levava aos Pisos 10, 11, 12 e 13. Travou e rodou para baixo, para o Piso 12, numa espiral apertada. As rampas de subida dispunham de energia e tinham um pavimento de alta aderência para ajudar o ciclista; as rampas de descida não tinham nada disso.

     Ao chegar ao seu destino esse homem saiu, depois voltou para leste durante vinte metros e parou em frente da pequena capela da fazenda do piso — uma das cinco que existiam fora da única igreja da República, a Igreja dos Justos.

    

     Possivelmente outro homem leu o relato do prmeiro homem e decidiu que também poda ver nele um sentido formidável, particularmente agora, que estava digerido. Portanto ele, sendo mais dado à ciência aplicada, construiu um dispositivo experimental e comprovou a grande teoria do gênio. Evidentemente, acabou por ter dois cheques na algibeira e a possibilidade de uma fortuna.

    

     Esse homem fechou a bicicleta no pequeno parque em frente da capela e depois tirou dois dólares da carteira que mantivera na bolsa do cinto.

    

     ...O dispositivo experimental cobriu-se de poeira por algum tempo; na verdade podia ter sido esquecido. Mas então veio a grande guerra. E as pessoas foram tão estúpidas que acreditaram que aquela era a guerra final. E com essa guerra veio a destruição de cidades e populações inteiras. Milhões dê homens marchavam para a guerra e só milhares regressavam. Era um perigo de morte ser um patriota.

     E era moda.

     Outro grupo de génios, talvez mais motivado pelo medo que pelo intelecto, pegou no audacioso dispositivo expermental, deformou-o um pouco, e depois largou o resultado sobre uma cidade inimiga.

     E depois uma segunda cidade e a guerra não tardou a acabar.

     Mas ninguém ganhou a guerra.

    

     A mão desse homem afastou-se da orelha enquanto a outra, a direita, agarrava o dinheiro. Pelos corredores do Piso 12, que rodeava a fazenda, vinham os sons ocasionais de alguém voltando de um trabalho anterior, o puf-puf dos ventiladores enchendo o ar de ruídos amortecidos, e enquanto tudo isso a pequena máquina na frente da porta da capela zumbia suavemente a si própria.

     Colocou os dois dólares na bandeja da máquina que lhe chegava à cintura e aguardou durante cerca de três segundos enquanto uma câmara estéreo o olhava. Depois a máquina soltou um zumbido mais forte e entregou uma fatura de plástico. Esse homem embolsou-a, entrou na capela e sentou-se num dos bancos da retaguarda.

     Esse homem estava sozinho na capela.

     Sobre uma coluna junto do altar, metido num invólucro de vidro vermelho, ardia uma só vela, marcando o caminho da sua consumação com um traço único vertical de fuligem na parede cor de creme.

     Esse homem inclinou a cabeça e juntou as mãos como se estivesse a rezar.

     Um autômato de limpeza, sentindo a presença do homem, hesitou na porta do seu esconso e depois colocou-se em estado de alerta com um silencioso suspiro eletrônico...

     Então um monge, vestido com trajes cinzentos, entrou por uma porta ao lado do altar, ajoelhou-se por um momento, fez o sinal da Cruz, e dirigiu-se ao púlpito que ficava à direita do crucifixo suspenso da parede do altar.

     O monge abriu o grande livro colocado no púlpito.

     Fez o sinal da cruz quando abriu o livro e proferiu uma bênção, em voz baixa, dirigida ao texto.

    

     ... E ele disse aos que estavam reunidos — disse o monge. — Quando observam uma nuvem erguendo-se a oeste, dizem mediatamente que vai chover, e assim acontece. E quando sentem o vento sul a soprar, fustigando-vos, dizem que dentro em pouco haverá calor e assim acontece. Loucos! Sabem como interpretar as disposições da terra e da atmosfera. Porque não sabem interpretar o significado dos tempos em que vivem?

    

       — Esta é a palavra de Deus — cantou o monge, em voz alta.

       — Amem — murmurou esse? homem.

       — ... é a palavra de Dieus.

       — Amem...

       — ... a palavra de Deus...

       — Amem...

    

     Nada.

     Linhas de produção de máquinas com trezentos metros de comprimento, cruzadas por várias correias transportadoras, guindastes e outras coisas como essas, mantidas eternamente limpas e polidas por autômatos de serviço — todas vazias, vazias; nunca usadas.

     Rótulos de vinil autocolantes colocados por homens que tinham montado o equipamento cento e trinta e seis anos antes e que ainda mostravam as claras inscrições a tinta azul, negra, vermelha e alaranjada, de um marcador de ponta fina.

     Algumas inscrições eram simples marcas de verificação e/ou X nos quadrados apropriados; outras eram mais complicadas.

     OK por TH.

     Bom — WE

     Sist. 23C Verif. Jim S.

     Os pavimentos eram como novos, os ladrilhos originais ainda estavam no seu lugar e brilhavam como metal precioso, bem cuidado.

     Esse homem entrou.

     O seu anel captava agora uma estação diferente e ele usava um colar que estava ligado a uma antena cosida na manga direita do fato de malha.

     Atravessou os corredores a cantarolar baixinho.

     Eram cinco horas e vinte e dois minutos.

     Tinha tirado qualquer coisa de dentro de uma das bolsas do cinto e colocara-a no pulso, e isso era uma prova de que estava totalmente só.

     Esse tomem guardava certo equipamento de produção.

     E não havia mais ninguém.

     Ninguém estava ali.

     Seis horas e quarenta e um minutos.

     Sete horas, onze minutos.

     Esse homem passou a mão pelos painéis de instrumentos, cumprindo o ritual das verificações horárias do equipamento, observou que tudo estava a corresponder normalmente, que o rendimento estava assegurado, que tudo estava pronto para que fossem dadas as ordens.

     Oito horas e trinta minutos.

     Esse homem foi tomar café com um dos guardas que se encontrava fora das portas especialmente fechadas daquela seção do Piso 14; obteve o café num pequeno gabinete junto do posto da guarda, um gabinete usado para assinar o ponto à entrada e à saída do trabalho. Levou o café ao guarda.

     Nove horas, tudo bem.

     Esse homem pensou, se devia fugir um pouco ao estabelecido e ouvir um programa de entretenimento no seu rádio, mas concluiu que era melhor permanecer ligado ao circuito silencioso que lhe daria ordens de emergência e o mantinha consciente das horas.

     Dez horas e oito minutos.

     Esse homem sentou-se numa pequena prateleira de proteção, numa das máquinas que não funcionavam, e passou a mão pelo rosto.

     Onze horas e vinte minutos.

     Esse homem bocejou.

     As escadas mecânicas para aquela seção iluminada do Piso 14 estavam hermeticamente fechadas.

     Os elevadores estavam fechados.

     As portas estavam fechadas, a maior parte delas trancadas, todas guardadas.

     O sistema de apoio estava reduzido ao mínimo, porque ali um homem respirava ar.

     Mesmo as luzes não eram mantidas no máximo brilho, porque só um homem tinha que ver com elas.

     As escadas mecânicas abriram-se e começaram a funcionar.

     Os grandes elevadores começaram a zumbir, os painéis sobre as portas iluminaram-se.

     Os fechos de todas as portas abriram-se.

     O sistema de apoio de vida começou a zumbir, e sete ventiladores gigantescos foram ligados, com as pás a girarem.

     As luzes passaram a brilhar com toda a intensidade.

     Esse homem olhou através do corredor de maquinaria em que se detivera.

     No fim, a uns bons duzentos e quarenta metros de distância, as luzes verdes que indicavam que o equipamento estava a funcionar, acenderam-se. Durante um segundo esperaram na prmeira fila das máquinas; depois, como que numa torrente, correram para esse homem numa súbita tagarelice de operações.

     De boca aberta o homem começou a correr para a porta.

     Com um grande estrondo, as portas do elevador abriram-se e um grupo de trabalhadores com capacetes saiu e dirigiu-se para os vários postos na fábrica.

     Homens começaram a sair em torrente das escadas mecânicas e das portas.

       — Não! — gritou esse homem quando viu a prmeira aeronave a ser incubada.

    

     ... não responderá ele à convocação de emergência?

    

       — Não! — gritou esse homem quando o primeiro dos carros de batalha anti-radiação foi completado.

     ... vamos, vamos Harrison, recua — recua, sim, sim?

    

       — Não! — arquejou esse homem enquanto as espingardas, as pistolas e os lança-foguetes e as couraças corporais eram fabricadas, como se fossem coisinhas insignificantes destinadas a uma caixa de brinquedos.

    

     ... recua! recua!

    

     — Não! — gritou ele como um louco, arrancando trabalhadores dos seus postos e fazendo-os cair, para depois encolherem os ombros e voltarem ao trabalho. — Parem com isso! Parem tudo! — berrava esse homem com toda a força dos seus pulmões. — Não houve ordens para começar!

    

     Mas então dois guardas, um soldado e um cabo, surgiram por detrás desse homem; enquanto um o agarrava, outro injetava-lhe nas veias um sedativo.

    

     Benjamin Harrison, disse o relatório projetado no visor do computador.

     Guarda

     Quinze anos de experiência

     Solteiro

     Cumpriu o serviço militar

     Tem direito à classe 5-C com todos os benefícios correspondentes.

       — Muito bem — disse o capitão, escrevendo qualquer coisa com uma caneta num pedaço de papel.

       — Sim senhor.

       — Leve isto ao meu secretário — disse ele ao sargento. — Depois meta esse homem no seu lugar.

       — Retreinamento, senhor?

       — Tenhamos esperanças — disse o capitão tirando um cigarro do maço sobre a sua secretária. — Tenhamos esperanças.

    

ERA um rato de bom tamanho, um rato muito inteligente, e o seu pêlo liso mostrava-se brilhante à luz mortiça. Os homens tinham colocado algumas lâmpadas no sítio por onde o rato andava e elas iluminavam um poço horizontal de ventilação na semelhança de uma semimanhã. O rato parou por um momento, o seu corpo completamente imóvel e atento, antes de dar suma boa dentada num isolamento de plástico que cobria um cabo coaxial de cobre...

    

     Foi relatado que, talvez pela primeira vez na carreira profissional do Arcebispo de Wayne, o homem bateu com uma porta. Qualificação: bateu com força com uma porta.

     Era uma bela porta. Dava para o gabinete de Wayne.

     Segundo o relato, Wayne realizou o ato com menos graça que força. As vesteis da sua dignidade restolharam quando ele recorreu à força. O alto chapéu da sua dignidade tremeu com o seu corpo quando a porta, rodando sobre os gonzos, comprimiu o ar no seu caminho, batendo no umbral.

     O Irmão Gates foi o relator.

     O seu senhor era algo irracional e o assunto da convocação de Gates era tão trivial que nem sequer foi discutido, ou pelo menos foi o que Gates me relatou.

      — Nunca o farei — começou a dizer o Arcebispo.

     Então, sem razão, Wayne calou-se. Dançou um rápido olhar ao seu assistente e calcou os seis metros de tapete até à secretária.

       — Padre? — perguntou Gates.

     Com um resmungo, o Arcebispo, de pé em frente da secretária, apresentou o anel que o monge fielmente beijou. Wayne retirou instantaneamente a mão uma vez que a ação foi cometida e depois lançou-se bruscamente sobre a cadeira, na qual se sentou com estrondo.

     Uma vez sentado à secretária, Wayne pegou numa lente e ignorou o monge.

       — Há qualquer coisa errada, Padre? — perguntou Gates.

       — Irmão Gates — respondeu cortesmente Wayne, sem qualquer indicação na voz do que o seu corpo estava a gritar. — Se quiser tomar alguma coisa enquanto espera por mim, sabe onde mora o vinho.

       — Ê muito generoso — disse o monge.

     Gates disse que se serviu um borgonha. Wayne puxou por uma muito familiar Bíblia de bolso e observou-a opticamente, o seu rosto vermelho a empalidecer lentamente numa semelhança de tom de pele mais normal.

     Enquanto Gates levantava o copo de vinho para o primeiro gole, Wayne terminou, arrumou o livro e a lente em cima da secretária e murmurou para todos e para ninguém:

     — Que significado isto tem agora?

     — Padre?

     Houve uma pancada na porta,..

    

     ... o rato cuspiu o isolamento não mastigado com um ar de desgosto. A qualidade do produto parecia estar-se a afundar nos últimos tempos. Era cada vez mais difícil encontrá-lo de boa qualidade, e de resto o rato tinha uma companheira que já não era de idade salgada. Com um suspiro de roedor, concluiu que aquela era uma ocasião tão boa como qualquer outra para lavar o seu belo focinho. Fê-lo cuspindo nas patas e esfregando vigorosamente o nariz atraente, coberto de fino pêlo, e as orelhas. Tinha sempre muito cuidado consigo e pensava ser um bom partido para as fêmeas.

     No entanto o rato ainda estava muito esfomeado, e por isso começou a avançar pelo poço horizontal, mas, subitamente, num cruzamento de poços horizontais, sentiu o tênue odor de qualquer coisa muito atraente. Empoleirou-se nas pernas traseiras, farejou longa e profundamente e então, como um relâmpago, correu pelo poço da esquerda, do qual vinha o odor. Passara-se muito tempo desde que o rato tivera a oportunidade de cravar os dentes numa quantidade de comida real, viva...

    

     Houve uma pancada na porta...

     — Dêem-me um homem — disse Wayne, pegando de novo na Bíblia de bolso. — Dêem-me um homem que não se sinta tentado pelo orgulho, pela carne, por qualquer mal do espírito.

     Houve uma pancada na porta...

     — ... Dêem-me um homem inteligente que honestamente possua um pouco de humildade, dignidade — um que acredite no Espírito de Deus, sendo manifesto na perfeição do homem, e a esse homem eu darei a minha coroa e prestarei serviço.

     Houve uma pancada na porta.

     Gates abriu a porta um pouco e viu a jovem do lado de fora, com a cruz na testa.

     — Padre — disse ele. — Creio que é a sua prostituta.

    

     ... O rato — a boca cheia de saliva, porque o odor da comida era cada vez mais forte nas suas narinas, os bigodes a tremerem num êxtase — correu pelo poço de ventilação, contornou corretamente uma esquina, ultrapassou um ventilador, e durante todo esse tempo manteve o focinho bem levantado no ar fresco, corrente. As patas levavam-no e ele nem sequer tinha pensamentos profundos quanto ao que acontecia. O seu cérebro interessava-se somente nos baixos pensamentos que estavam ligados ao eventual enchimento do seu ventre... e ele tinha muito orgulho na barriga...

    

     — Voltaste?

     — Lamento incomodar-te a esta hora tão tardia.

     — Como sabias que eu estava aqui?

     — Aqui não há microfones.

     — Eles não...

     — Sou um fantasma... eles não podem matar um fantasma... além de que era o dia de folga do carrasco.

     — Sentes-te bem, James?

     — Estive com o novo Rei, e assim lhe chamo muito embora saiba que ainda não foi coroado. Longe e longe. Oh, ele ainda não afastou os competidores, minha querida médica. Minha querida mulher.

     — Competidores?

     — A sua eventual morte violenta.

     — James, não estás bem. Não podes estar. As drogas já não devem estar a atuar. Entra.

     — Não, não. É melhor que fique aqui e te diga algumas palavras — poucas.

     — Lamento muito. — Ri-me: — Já fiz este mesmo discurso perante o Arcebispo. Sobre a natureza perversa da sua adoração. Depois quando ele me estava a condenar à morte, fui arrancado à morte por ele próprio.

     — James, estás a desmaiar.

     — Oh, nada. Nada. Genevieve, minha querida. Nada... Ele tomou-me no seu braço direito. Agora a Morte é uma doença contagiante. Ministro da Defesa. Ele atirou tanta responsabilidade sobre os meus ombros que agora... é impossível.

     — James.

     — Desculpa-me... perdoa... Eu... é curioso que agora... depois da minha brilhante defesa, meu amor... mesmo o nosso adultério segundo o pensamento cristão... que eu agora...

     — Psiu — murmurou ela, debruçando-se sobre mim. — Meu amor — disse ela em voz baixa. — A tua face...

       — O punho da espada... deixa-me levantar...

     — Deixa-te estar assim por um momento.

     — Não posso... Não posso... compreendes? Tenho de sair agora... vai haver uma guerra... tenho de ir para a guerra.

     — James, a culpa é toda minha. Precisas de te deitares.

       — Estou bêbedo.

       — Não. São as drogas. Podes levantar-te agora?

     — Para quê?

       — Para ires para a cama.

       — Para ir para a cama... para a cama...

    

     ...Foi o rato, somente o animal, quem dobrou a esquina no poço de ventilação. Nas trevas, os seus olhos negros como contas distinguiram o que o seu nariz detectara — o que pareciam ser restos de comida caídos através de uma grelha lateral. Mas o rato era cauteloso. Parou, fungou. O odor das migalhas sobrepunha-se a tudo, quase exigindo ser devorado. No entanto sobre o odor havia um indício de ozônio. Portanto o rato afastou-se. Afastou-se de uma placa de cobre que estava na frente da comida — uma placa eletrônica de cobre, cheia de uma voltagem venenosa... o rato sentia-se amargamente desapontado... terá um empate... porque ele era um rato de bom tamanho, um rato bastante inteligente, e a sua elegante capa brilhava à luz mortiça...

    

Ah, aqui está ele — disse o novo Rei quando eu fui autorizado a entrar no seu gabinete informal.

— Vejam, cavalheiros: no momento exato. Pontual. Eu adoro a pontualidade. Talvez o meu primeiro édito real seja o de exigir que tudo comece a tempo e horas. Porque a vida é breve e as ações realizadas durante a vida talvez sejam importantes às nossas pessoas físicas, não devem essas ações ser respeitadas? Porque, se o respeito aqui falta, nós seremos desrespeitosos, não a uma segunda pessoa, mas a nós próprios.

     Apontou para o relógio com um sorriso.

     — Oito horas, precisamente.

     — Bom dia, majestade — disse eu.

     — Bom dia, meu ministro da defesa. De fato é uma manhã que exige saudações. O ar é fresco, o sol quente, a possibilidade de chuva pouca.

     Os três generais trocaram olhares estranhos.

     — Diz-me, James — acrescentou o novo Rei, a meu lado. — Queres tomar o pequeno-almoço comigo?

     — Terei muita honra nisso, tanto mais que ouvi dizer que tem um excelente cozinheira.

     — Sim — o novo Rei riu-se. — De fato é o momento de prestarmos honras ao pequeno-almoço e devorarmos as suas delícias, mais do que de jantar com o maior dos reis.

     — Como está o meu senhor esta manhã?

     — Bem, James. Bem. E vejo que estás recuperado dos episódios de ontem. Mas basta, porque estamos a ignorar estes cavalheiros. Como vai a guerra? Ouvi que repararam a maior parte dos nossos danos à superfície. É assim?

       — Senhores, esses cavalheiros sabem mais do que eu sobre tais assuntos. Entretanto sei que os trabalhos ainda não começaram no sistema longo, porque os canhões de substituição ainda têm de ser fabricados. Mas há que pensar numa coisa, senhores. O inimigo usou uma arma limpa. Duvido de que a razão disso seja qualquer falta de cobalto sessenta ou sódio. Receio um objetivo pior — invasão. Neste momento o nível de radiação é de cerca de vinte Röntgens; deve descer ao nível normal de cinco ou seis no fim de semana. Portanto o inimigo deve ser próximo, e deve estar pronto a conquistar-nos para dominar toda esta área.

     Os generais espevitaram as orelhas, ao ouvirem tal coisa.

     O novo Rei disse-me para continuar.

       — Dispomos de fatos bem substanciados — disse eu. — Existe uma instalação semelhante à nossa perto da margem sul do lago Michigan, onde existia a cidade de Chicago. Segundo os nossos satélites de observação descobriram, Chicago não existe como uma monarquia, mas sim sob o mesmo tipo de governo que existia nesta nação antes da guerra.

       — Que nome dá a esse governo? — perguntou o general Renderson.

       — Democracia, ainda que a definição do dicionário, segundo a qual ela é o poder do povo, não seja a mais exata. Não nos devemos arrastar pela corrupção. No entanto, segundo os nossos serviços secretos, a única outra instalação semelhante neste estado, a Baronia de Grand Rapids, foi contactada por Chicago com vista a uma aliança, mas a Baronia não a quis. No entanto isso não aconteceu por via da aliança deles conosco, mas sim em nome da neutralidade.

       — Neutralidade! — gritou Henderson.

       — Compreende, caro general — disse eu. — A Baronia mal sobrevive. — Com a sua população de dois mil, mal podem manter o seu mundo subterrâneo, muito menos manter um exército.

       — No entanto o Barão não nos contatou? — perguntou o novo Rei.

       — Não, meu senhor. Sugiro que entre em contato com ele. Aposto em como ele declarou a neutralidade para salvar o seu país da ocupação.

       — Assim seja — declarou o novo Rei.

       — Mas porque é que Chicago deseja a guerra? — perguntou um general cujo nome eu não conhecia. — Não faz sentido. O interior é inabitável, e assim permanecerá durante os próximos setenta anos, exceto em algumas áreas. Sangue de Cristo, para que serve esta terra?

       — Chicago diz ser o único sobrevivente dos chamados Estados Unidos da América — expliquei. — Pelo que os nossos serviços de informação puderam averiguar, eles são contra qualquer forma de realeza. Mas não contra as igrejas. No governo deles, o poder está nas mãos de um grupo de individuos. Têm um corpo legislativo, um corpo judicial, e um executivo que é apenas uma figura de fachada. Não importa — a política fica para depois. Mas pensem nisto: se tivessem uma população de dezoito mil como Chicago e desejassem dominar esta terra, que parte dela quereriam dominar?

       — Não compreendo — disse o novo Rei.

       — Os Grandeis Lagos, senhor — disse eu. — Tendo o domínio militar dos Grandes Lagos e das suas saídas, uma potência terá um domínio considerável de um meio de transporte econômico. Além do que Michigan é muito mais fácil de defender se rodeada por água. Não se podem deter as forças aéreas, nuas pelo menos é possível obter um aviso através do Tri-Exp, se uma invasão vier dos lagos.

     Um general gritou:

       — Não temos sequer equipamento para lutar contra uma invasão; dispomos somente de novecentos soldados!

       — Sei disso — respondi eu. — Às onze horas de hoje, a fábrica de armas, que estava adormecida desde a fundação da República, iniciou a produção ao ritmo máximo, assistida pelo computador. As unidades do Serviço Aéreo foram mandadas sair em patrulha. Todas as reservas serão chamadas amanhã às seis. Dentro de quarenta e oito hocras teremos todas as nossas forças mobilizadas — isto é: três mil e quinhentos homens; dentro de noventa e seis horas, a menos que as máquinas se avariem, estaremos inundados de armamento.

       — E se eles nos invadem prmeiro? — perguntou Henderson.

       — Temos material suficiente para equipar mil homens. E temos também os trinta aparelhos do Serviço Aéreo. Tenho esperanças de que nos possamos aguentar com isso.

     — E a economia? — perguntou outro general.

     — É tudo quanto o preocupa?

     — Não, mas...

     — Senhores — disse eu, interrompendo-o. — Com a autorização do sucessor do rei, haverá uma reunião de todos os altos comandos às dez da manhã para discutir e levar a efeito os nossos planos. Sugiro que estejam presentes com os vossos estados-maiores.

     Eles afirmaram que assim seria.

     O novo Rei riu-se.

       — Vejo que o meu ministro da Defesa tem estado a trabalhar.

       — Estou cheio de fome, majestade,

       — Generais — disse o novo Rei. — Temos outras coisas a tratar — perdoem-nos se há mais perguntas, por certo que James responderá a elas esta manhã... mas agora temos de tomar o pequeno-almoço. Bom dia.

     Na porta, eu disse:

     — Tenho certeza, cavalheiros, de que com a vossa experiência e chefia, a República não terá preocupações quanto à sua defesa.

     Desejaram-nos bom dia.

     — Parvos — disse o novo Rei no corredor. — Aceitaram bem o teu raciocínio, James.

     — Sim, Robert — respondi. — Quem sabe? Pode haver verdade nisto. Porquê uma guerra? É uma pergunta que tem sido repetida muitas vezes. É o momento adequado para Chicago, há uma razão — eles devem ter conhecimento de Wayne, da tempestade que vai por cá.

       — Não faz diferença, James — disse o novo Rei. — Mesmo que aqui houvesse conspiração, as nossas mãos estariam atadas até que um lado se comprometesse. Lembro-me da morte de meu pai, detenho-me para a examinar, e então o meu espírito tece meadas da pior natureza — doentias, triviais. Que será que leva os homens a não ser mais que celestiais jogadores de xadrez?

       — A guerra é um jogo, senhor.

     — Há uma explicação miserável, trivial, do fenômeno.

       — Porque o fenômeno, em si, é trivial.

    

     A sala de jantar privada do Rei tinha uma decoração muito calma — media seis metros por quinze por seis de altura, com paredes azuis e soalho de carvalho antigo. Havia uma mesa de nogueira, rectangular, com uma toalha de branco puro no centro da sala. Um fogo sintético arda na lareira de mármore branco. Entrámos através do que parecia ser um armário pela frente, mas que na verdade era tão falso como as chamas da lareira. Um servo mantinha-se junto de umas portas duplas que pareciam ser a entrada principal; havia uma pequena porta que devia comunicar com as cozinhas.

     O novo Rei parou perante a lareira durante um momento, espreitou para a ilusão que dava um pequino calor, e depois soltou uma espécie de gargalhada interna que resultou num ligeiro abalar dos seus ombros.

     Olhou para mim com um profundo silêncio nos olhos, uma profunda calma no rosto, uma expressão de nada.

     — O passado não basta — disse ele.

     Havia dois talheres preparados: um à cabeceira da mesa, outro do lado direito dela.

     Sem uma palavra, Robert fez-me um sinal com a mão para que me sentasse e eu sentei-me à sua direita. O servo segurou na cadeira do Rei.

     — Farias um bom Rei, James — disse o novo Rei quando o prato foi colocado junto dele.

     — Robert? — perguntei.

     — Notei a maneira como trataste esses parvos. Eles sentem se seguros e precisamos dessa segurança. Penso que fizeste uma boa escolha.

     — È apenas uma simples especulação, meu Rei.

     — Ainda não sou rei — respondeu ele. — Continuo a ser um príncipe de luto.

     — Um rei não de nome, mas mesmo assim de poder.

     — Obrigado pelo cumprimento. Come.

     Uma refeição simples de ovos mexidos e salsichas foi colocado perante nós, com café e sumo sintético de laranja. Os ovos e as salsichas eram produtos à base de soja, o café era natural, e o sumo de laranja — tinha dúvidas quanto à natureza da manufatura.

     — Onde estiveste a noite passada?

     — Num médico, Robert. Até às cinco da manhã.

     — Compreendo — disse ele olhando para a minha face. — Ela fez um bom trabalho.

     Com todo o cuidado, disse-lhe:

     — Então deve saber que foi ela quem me preparou para o julgamento.

     — Sabemos disso.

     — Tem-me observado? — perguntei.

     — Diz-me uma coisa — disse ele, sorvendo o café. — Ela é soberba na sua função?

     Inclinei-me sobre a mesa como para murmurar.

     — Não tenho certeza — disse eu em voz baixa. — O gato dela não me deixou.

     — Ah! — riu-se o novo Rei.

     — Quer ver as marcas das garras nas minhas costas?

       — Não, não! — Ele continuou a rir-se. — Não creio que isso seja necessário.

    

     — ... não se desculpe. Saia do meu caminho! Tenho de ver sua majestade...

    

     — Discussão? — perguntou o novo Príncipe, franzindo uma sobrancelha. Chamou o servo para que abrisse a porta principal da sala de jantar.

    

     — ... maldito!

    

     Na sala de recepções estava o Arcebispo de Wayne, e quando as portas se abriram ele pôde ser visto a gesticular violentamente contra outro servo intimidado — o servo, um pobre rapaz de cabelos castanhos, tinha uma expressão de absoluto terror. Era aquele — o único — que enfrentava o dilema amargo de receber ou o castigo espiritual do seu deus, ou o mais físico e mundanamente mediato castigo do seu senhor. Portanto foi mais que um suspiro físico de alivio que saiu dos seus lábios quando notou a preocupação do novo Rei.

     — Bom dia, Wayne — disse o Rei.

     O Arcebispo, fogoso na sua tirada contra o servo, saltou ao ouvir a voz de Robert. Dobrou o seu corpo e espreitou para os ocupantes da sala de jantar, a sua idade a transparecer no seu rosto.

     — Que é isto, querido Arcebispo? O seu cozinheiro está doente? Entre, entre! Quer tomar o pequeno-almoço comigo? Não nos faria mal uma bênção.

     Lentamente o Arcebispo voltou a cabeça para fitar, curioso, o servo, mais o servo tornara-se hirto e polido. Wayne abanou a cabeça, como que comentando a qualidade do pessoal; depois endireitou-se e avançou.

     — Bom dia, majestade — disse ele.

     — Talvez venha a ser — disse o novo Rei, escavando os ovos fumegantes. — Mas então, Wayne, todas as manhãs em que estamos vivos devem ser consideradas boas. Porque não é bom voltar de um breve contato com a morte e ser capaz de falar sobre isso? Basta de tais coisas — hoje estou com o jeito de filósofo. Quer um pouco de café? Comida? Avance, avance, bom Padre, sente-se a meu lado.

     Wayne lançou-me um olhar como aquele que lançara sobre o servo intimidado. Depois sentou-se à esquerda do Rei. Um talher foi colocado perante ele; surgiu uma xícara e nela deitaram café a fumegar.

       — E como está Deus hoje? — perguntou o novo Rei.

     — O quê? — exclamou Wayne.

     — É o guardião da Sua Igreja, meu querido Arcebispo. A sua chegada indica que qualquer coisa não vai bem. Diga-me porquê.

     — A nossa Igreja foi atraiçoada, alteza.

     — Atraiçoada? — exclamou polidamente o novo Rei, dobrando as suas mãos como que em atenção.

     — Talvez o seu ministro da Defesa possa dizer-lhe mais a esse respeito.

     — Traição? — O novo Rei riu-se. — James? Quer ter o cuidado de se explicar, Wayne?

     — Foi o coronel Sir James Williamson, agora ministro da defesa, que afirmou que a nossa Bíblia é uma fraude, senhor, e agora uma certa convocação de monges decidiu acreditar na blasfêmia.

     — Falei no meu julgamento apoiado pela História.

     — História escrita pela mão do Diabo!

     — Cavalheiros, cavalheiros! — disse o novo Rei com um ar de desgosto. — Por favor! Contenham-se.

     — Majestade — disse eu. — Sabe muito bem do meu argumento; talvez haja confusão na perspectiva. Não acusei Wayne de ter escrito de novo a Bíblia; disse apenas que os seus antecessores o fizeram, e que Wayne tem a possibilidade de restaurar a verdadeira palavra de Deus. Se isto é traição, sendo apenas a declaração de um fato, então condene-me e mate-me.

      — Não farei comentários sobre a lei da Igreja — respondeu Wayne. — Ela proíbe a crítica da doutrina da Igreja feita por comuns, porque não estão em posição de possuírem uma perfeita compreensão dela. Majestade, não peço que declare culpado de um crime o vosso ministro da Defesa, a menos que seja necessário. As acusações dele não mudarão a Igreja senão levando-a ao nível que existia antes do Armagedon. Foi o seu nascimento que o levou a tal coisa, pois ele é desse tempo. Pode ser desculpado.

     O novo Rei disse com um bocejo.

     — É muito estranho que agora, depois de eu ter salvo o pobre James da excomunhão e da morte, e creio que sabes que eu pensei em mandá-lo matar antes de o teres condenado, tenhas a magninimidade de o deixares viver.

     O Arcebispo escutou aquilo em silêncio e depois procurou nas vestes, com o crucifixo de prata a balouçar, até que encontrou dois pedaços de papel manuscritos que entregou a Robert.

     — Encontrei este documento na minha secretária depois de ter terminado a Grande Missa desta manhã.

     — Vejamos — disse o Rei, pegando nos papéis para os ler. — Quando a verdade é corrompida perante os olhos do público... quando uma igreja existe apenas para sua própria perpetuação e não para guiar espiritualmente os seus membros...

     — Mentiras, evidentemente — murmurou o Arcebispo. — Mentiras totais.

     — Oh, não fales, Wayne — disse o Rei. — Há mais para ler. Hum. Muito mal escrito, devo dizer.

     — Infelizmente — respondeu Wayne, sorvendo o café.

     — Nessas ocasiões — prosseguiu o Rei —, torna-se necessário quebrar os grilhões da instituição corrupta para fugir à infecção que a corrompeu... o rei, sendo o produto dessa instituição, pode ser colocado numa posição em que não seja capaz de julgar objetivamente os valores dela. Pedimos apenas que seja justo... os pensamentos e crenças das pessoas são direitos concedidos por Deus e nenhum homem ou instituição tem o poder de os infringir...

     O Arcebispo disse:

     — Aí tem a prova da traição debaixo dos seus olhos, senhor.

     — Quem escreveu isto?

     — O seu nome está no fim.

     — Oh, Gates. Conrad Gates. Hum. Pensei que fosse mais original que isso.

     — É um traidor às suas vestes!

     — Calma, Padre. Bebe o teu veneno. — Wayne pousou a xícara na mesa. O novo Rei colocou o documento sobre a mesa. — De fato são palavras de natureza muito séria — disse ele. — O pensamento que está por detrás dele é muito sério, ainda que as palavras sejam triviais.

     O fogo sintético que arda na lareira elétrica emitiu um estalido artificial de madeira a queimar-se.

     Dentro da cozinha, ao longe, no fundo do corredor, alguém deixou cair no chão de ladrilhos qualquer coisa metálica.

     — Então? — perguntou o Arcebispo.

     — Então o quê? — perguntou o novo Rei. — O teu veneno bebe-o. Preferes o teu café? O que é a verdade, meu querido Arcebispo? A verdade é uma ficção, portanto indique-me um número que não seja um rabisco grosseiro num pedaço de papel. Nomeie-me um fato, um fato nu e cru, sem quaisquer roupagens. Os seres humanos são seres de abstração. A verdade é um rato a devorar detritos, querido Araebispo; a verdade é a doença que ele transporta e a agudeza dos seus dentes. Não? A verdade é sentida e não detectada. A verdade é uma vida amarga e fria. E assim chegamos ao pecado, como se a sua determinação pudesse ser mais clara. O que é um pecado, uma mentira? Posso dizer que pecado é cobiça, o desejo que uma pessoa tem de ter mais do que merece. No entanto quem pode determinar o nosso merecimento, Padre? Ele pode fazê-lo, mas não neste mundo. Neste caso, Padre, não temos cobiça. Este documento não pede nada e dá até alguma coisa em troca. Pede uma voz. Portanto eles atrevem-se a desafiar a ti, nosso futuro rei. Que importa isso? O teu trono não está seguro, hem? As palavras são ficções, Padre; as emoções podem dizer muito mais que as palavras, as palavras são uma forma inferior de comunicação. Eles afirmam que uma religião suportada pelo estado conduz a uma situação onde duas instituições se autoperpetuam. Isso é tudo verdade ou mentira? Eles apresentam uma opinião, e não um julgamento. É um pensamento humano subjectivo — como Deus —, e o pensamento humano subjectivo é o material de que a razão se alimenta, ainda que não nos atrevamos a admitir isso. E quanto a reprimir o pensamento humano subjectivo — Deus; quanto a possuir qualquer desejo de destruir os pensamentos de outras pessoas — , devo afirmar que é a mais total das cobiçias, Wayne.

     — Por amor de Deus! — gritou o Arcebispo, levantando-se da mesa.

     — Burro! — disse o novo Rei, num tom de desafio. — O veneno soube-te bem? Sabes diferenciar entre os anjos do Senhor e os anjos do ego? Não tens inteligência?

     — Está a proteger a escumalha!

     — A escumalha? — perguntou o novo Rei. — Não desejo a rebelião. Se os devotos fossem devotos, creio que perderias muitos assistentes. Faz mártires deles, Wayne, e assim criarás outros Jesus — secundários.

     Wayne voltou-nos as costas.

     O novo Rei disse:

     — Creio que seria avisado se oferecesses instalações para o Irmão Gates. Enquanto ele seguir a lei a que obedece o estabelecmento da nossa Igreja, eu não discutirei com ele.

     — Oferecer-lhe uma capela! — Wayne gritou e voltou-se. — É louco! O seu pai...

       — O meu pai está morto! — gritou o novo Rei. — Eu sucedi-lhe no trono. Nunca mais me fale no meu pai, entendeu? E lembre-se que me deve obediência!

     — Esta traição é algo que só a Igreja pode julgar!

     O Rei deteve novas palavras com o silêncio.

     Ao fim de um longo intervalo, ele disse:

     — Deixa que torne bem clara uma coisa, Wayne: se Gates ou qualquer membro do seu movimento estiverem presos, irão ser libertados agora. Além disso, se forem detidos pelos teus monges por qualquer violação, deverão ser trazidos perante mim.

     — Não tem jurisdição sobre eles!

     — Eu, o eleito de Deus? O bastardo abençoado? Tenho um exército, Wayne; portanto se for obrigado a assumir os deveres dos teus monges, Senhor! Fá-lo-ei.

     O Arcebispo recuou três metros da sua cadeira.

     Calmamente, disse:

     — Para esses pecados, senhor, não terá confessor. Quanto ao destino da sua alma, Deuis tomará a Sua decisão. Quanto à Sua Igreja, ela será negada a si. Bom dia, majestade!

     O Arcebispo saiu precipitadamente.

     — Excomunhão, Robert? — perguntei.

     Um servo trouxe ao novo rei um pouco de vinho.

     — Foi um veneno não muito forte — disse ele. — Do seu nome nada sei. Mas o efeito foi sutil, um aperto gradual das veias em direção a Deus, e depois um ataque cardíaco. Não foram os cozinheiros mas sim os servos, e eles serão substituídos e observados — a comida é provada antes de ser colocada na mesa. Sim, Wayne falava a sério quanto à excomunhão.

     — E a sua coroação? Quem procederá a da?

       — Ou um novo Arcebispo ou eu próprio.

     — Ele pode excomungar um rei?

     — Ele pode excomungar quem quiser. E eu não posso tocar-lhe. Isso dividiria a República, tal como a repressão.

     — Nunca houve uma coisa dessas?

     — O meu pai chegou a ter o documento preparado, mas nunca foi assinado. Não, James, ainda não foi excomungado nenhum rei. — Robert pegou na taça cheia de vinho. — Mas eu sempre quis que no meu reinado acontecesse qualquer coisa absolutamente sem precedentes.

    

O piloto estava na sala dos Prontos, o pé num banco implantado na parede. Fumava um charuto. Um pequeno charuto com uma ponta de marfim. Marfim plástico. Tabaco sintético. Sem perigo de cancro. Um sabor ligeiramente amargo. Comercialmente, chamavam-lhe Pontas-Frias. Era uma coisa que ficava bem a um piloto fumar — particularmente àquele piloto. Ele não se importava nada com aquele nome estúpido. Além disso, não pagava impostos sobre eles.

     O avião DV-AV — de descolagem e aterragem vertical — estava pousado na plataforma das operações de vôo e tinha um painel de acesso aberto. Um técnico estava a carregar de película as câmaras de estereovisão. O aparelho era capaz de voar a velocidades superiores a dois mil quilômetros por hora. Havia uma conduta de combustível enfiada no depósito auxiliar número dois, sob a curta asa de estibordo. Petróleo sintético. Todos os produtos sintéticos de petróleo eram fabricados nas labo-refinarias da República, a partir dois elementos básicos das suas especificações moleculares — os elementos extraídos da Grande Queda. O combustível era denominado, não comercialmente, Grau 4L SH Tue, era o combustível adequado àquele tipo de aparelho DV-AV, número de série R12-56.

     O piloto olhava para o seu capacete pousado sobre o banco quando, através do intercomunicador, surgiu a ordem de começar as operações. Silenciosa e eficientemente, atirou o charuto para o chão sujo e esmagou-o com o pé direito.

     A destruição da chama do charuto deu ao pé direito do piloto mais alguma coisa que fazer do que suportar o peso do piloto contra o banco. O piloto agarrou o capacete, abriu-o, enfiou-o na cabeça e cerrou-o sobre o anel de titânio que estava colocado sobre o colarinho do traje. A viseira estava subida. O piloto abriu a porta de metal pintada de cinzento e entrou a passos vibrantes no compartmento da placa de operações de vôo.

     O técnico afastou-se do painel de acesso e carregou num botão do comando que empunhava na sua mão direita. Com um suspiro, o painel voltou ao seu lugar. O técnico olhou para cima, para o piloto, que se encontrava junto do nariz da aeronave. Havia ali uma escotilha, com uma escada de titânio que subia para o posto de comando iluminado de verde. Os projetores do compartmento incidiam sobre o capacete do piloto — o rosto estava na sombra. A viseira brilhava à luz. O piloto olhou para o técnico, que o fitava, começou a dizer qualquer coisa, mas dominou a pressa. Pôs a mão direita na escada, mas depois voltou-se subitamente e olhou de novo para a porta que dava para a sala dos Prontos. Durante um momento olhou para ela e depois voltou-se de novo e olhou para o posto de comando. Luzes pequenas...

    

     — ... pareces cansado, James.

     — Talvez, talvez. Estou atrasado?

     — Não, vens a tempo, amor.

     — Excelente. Verdadeiramente excelente. Posso sentar-me a teu lado?

     — Mas evidentemente...

    

     ... verdes, indicavam o caminho. Numa série de movimentos fluídos, precisos, ele subiu a escada, entrou na escotilha e sentou-se no seu assento.

     Quando apertou o cinto de segurança, o piloto olhou para baixo, por entre as pernas, e viu a escada de titânio dobrar-se. Quando ligou as condutas de apoio de vida, viu o técnico olhar para ele com um rosto silencioso através da escotilha ainda aberta. O piloto quis fazer um sinal, um gesto de reconhecimento, mas dominou-se. O técnico parecia olhar para qualquer coisa ao lado do piloto...

      

     — Hasta gente não é excitante, Sir James? Já se sentou num banco alguma vez, a ver os outros homens passarem? Vê estes homens? Aquele de cabelos castanhos... não é simpático? Talvez seja um milionário, ou um homem destinado a amealhar um milhão, e está a dizê-lo aos amigos... está a dizê-lo aos amigos...

     — Que está ele a dizer aos amigos?

     — Aquela mulher ali — a idosa, é linda, com os cabelos prateados, torna-a bonita, não é verdade? Tinha um corpo que atraía os homens e soube conservá-lo. Usa as últimas modas para manter a competição diminuída. E agora anda às compras — procurando os bons negócios e procurando um homem, qualquer homem... porque agora é velha, não jovem, Sir James, e ela quer que a ajude a viver a velhice em graça, James, em paz.

     — Ela terá de esperar.

     — Todos temos de esperar, Sir James. Nós somos...

    

     ... mas não era nada importante, porque o técnico afastou-se, e a escotilha fechou-se hermeticamente.

     O piloto procurou no ombro direito do traje e retirou dele um sobrescrito de papel castanho com um carimbo dizendo Secreto. Abriu-o e retirou dele um pedaço de película que colocou numa espécie de pulseira apertada sobre o traje. Durante esse tempo os seus olhos tinham estado fixos sobre a lista de verificações a que o computador proceda e que a surgindo no monitor de bordo. Depois de ter instalado a película no seu lugar, retirou uma cassete do sobrescrito e enfiou-a numa fenda, à esquerda. Um mapa, com a sua informação codificada, substituiu a lista de verificações no monitor, o pára-brisas estava um pouco sujo. Ele carregou num botão, moveu um interruptor e aguardou oalmamente por algum tempo; depois inverteu os movmentos. O limpa-vidro recolheu-se no nariz do espelho. O piloto olhou para o relógio. Ligou o rádio, e deu sinal de que estava pronto. Foi dada a ordem para fazer funcionar os motores. O piloto accionou os comandos adequados e observou com cuidado o movimento dos ponteiros nos mostradores. Uma sereia fez-se ouvir fora do aparelho. O teto rolou para trás e deixou o sol entrar. Sentiu um ligeiro tremor quando a placa do compartimento de operações de superfície foi subindo até ao topo do monte. A ordem de partir foi dada. O piloto agarrou a alavanca de comando, acelerou os motores, carregou no botão de gravidade e então o aparelho subiu graciosamente...

    

     — O príncipe vai ser excomungado.

     — James, estás a brincar!

     — Que esperavas? Um certo grupo de monges, dirigido pelo Irmão Conrad Gates, separou-se da Igreja; sua alteza recusou-se a dominar a rebelião. Por amor de Deus, mulher, pensas que Wayne não é um homem capaz disso?

    — Que vais fazer, James?

     — Que vou fazer? Hum... Tomar conta das minhas atividades, da minha vida, dos corredores escuros. Estou surpreendido por não me teres feito perguntas sobre a pistola que estou a usar.

     — Não és um assassino, James.

     — Uma noite de compreensão, hum? Já matei muitas pessoas.

     — És um soldado.

     — O resultado é o mesmo.

    

     O maestro inclinou se ligeiramente perante o aplauso dos que almoçavam e depois voltou-se para a música aberta perante os seus olhos. Consoante a tradição, deixou a batuta no pódio e com um movimento rápido do pulso dirigiu a orquestra. Nem trombetas, nem clarins nem tambores. Mozart. Sinfonia N.° 40 em G menor, K550. Os quinhentos assistentes que sentiam, viam e ouviam a orquestra, deram calmamente as suas ordens para o almoço em murmúrios. O maestro era lento. A orquestra atrasava-se. Os acordes eram mortiços.

    

     ... e dirigiu-se para sudoeste. O céu estava límpido. Quando o DV-AV subiu ao céu límpido, muito limpo, o nível de radiação começou a flutuar. A seis mil metros era de trinta e um Röntgens, comparado com os dezoito na superfície. A treze mil e quinhentos desceu a cinco. O piloto procurou afastar-se das nuvens, porque sabia que nelas havia poeira radioativa.

     A dezoito mil metros o piloto passou a voar horizontalmente, acerca de mil quilômetros por hora. As suas câmaras de estereovisão começaram a funcionar. Estendeu uma antena longa, filiforme, da cauda do aparelho, para uma melhor transmissão. O combustível corria pelas condutas — os motores estavam esfomeados, ainda que fossem assistidos pelos geradores gravitacionais. O DV-AV depressa ultrapassou os limites do deserto, para as terras onde a vida existia e não fora prejudicada por coisas como a água, a areia e a erosão do vento. As ruínas de Detroit não tardaram a ficar para trás. O piloto armou o canhão C/M ligeiro instalado no nariz do avião e verificou os foguetes. Tinha bons motivos para esperar visitantes. Tinha bons motivos para esperar tudo...

    

     — Que significa tudo isso para mim?

     — Simplesmente isto, Genevieve: não tentes voltar a ver-me.

     — Mas eu...

     — Eles devem estar a observar-te. Só posso agravar a pena que te espera. Eles encontrarão uma desculpa qualquer, cairão sobre ti e far-te-ão mal.

     — Oh, olha aquela gente ali! — exclamou ela.

     — Ouve-me! Fala comigo!

     — Vês aquele rapaz naquele grupo, Sir James? É um estudante que vai ser...

     — É para nosso bem, não compreendes isso?

     — Compreendo — disse ela com chamas nos olhos. — Se seguirmos caminhos separados, Sir James, isso será de algum valor para nós? Que valor terá?

     — Nenhum.

    

     Por baixo dele um grupo de abutres estavam a orbitar, a dezesseis quilômetros do deserto. — a orbitar talvez sobre um animal morto. O piloto não se importou. Os restos pilhados de uma pequena povoação, intocada pela devastação das antigas e das recentes bombas, ficaram para trás. Os níveis de radiação desciam e formavam bolsas — não existiam em algumas áreas. Ainda havia bolsas, na superfície, que eram adequadas à ocupação humana. Não que houvesse muitos humanos por lá. Uma família ou duas, acasaladas dentro de si próprias de tal modo que a reprodução já não era desejável. As nuvens começaram a juntar-se abaixo do piloto e a seu lado. Não tardou que ele estivesse a cento e sessenta quilômetros da República, direto a Chicago, perdendo altitude. Uma luz de aviso do radar Tri-Exp acendeu-se. o piloto olhou instintivamente. Havia um jato por cima dele. Havia três jatos por cima dele.

     Com a mão esquerda, o piloto retirou os dispositivos de segurança do seu armamento e começou a seguir os alvos. Fora detectado. Ali, tanto ao norte. Os aviões, de asas fixas, afastaram-se uns dos outros e convergiram sobre ele. O piloto moveu um comutador e em cinco segundos comunicou a sua detecção, posição, altitude, número dos aviões, e tipo.

     Quando os jatos se aproximaram, o piloto carregou a fundo na alavanca de aceleração, mergulhou mil e quinhentos metros, descreveu uma curva, viu a solução no computador e disparou dois mísseis ar-ar, que se afastaram traçando riscos de espuma branca, os chamas dos seus motores escondidas pela fumaça.

     O sinal requerido chegou ao seu rádio, vindo dos seus oficiais superiores. O piloto ejectou a câmara, curvou e voltou a esquivar-se perante o seu inimigo a tempo de ver um míssil perder-se e outro perseguir um avião e destruí-lo.

     Os jatos tinham neles as marcas de Chicago.

     Um aparelho passou, disparando o canhão C/M e errando.

     O outro lançou um míssil.

     O piloto fez descer instantaneamente o DV-AV — o altímetro a descer e a velocidade a subir. O míssil descreveu um círculo e mergulhou atrás dele. Ele passou a barreira do som ao atingir os seis mil metros. O campo gravitacional começou a compensar os efeitos da aceleração. Os sistemas automáticos tentaram fazer sair o DV-AV do mergulho. O piloto sobrepôs-se a eles. O míssil aproximava-se. A terra, toda verde e castanha, com pedaços de azul, amarelo-torrado e cinzento, começou a girar para cima. O piloto observou o altímetro. A mil e quinhentos metros começou a manobrar para subir, levando o acelerador à posição mais avançada. A estrutura da aeronave gritou. As pressões subiram como que disparadas. O aparelho começou a subir depois de chegar aos duzentos e setenta metros. A sua velocidade em relação ao ar era de cerca de duas vezes e meia a do som. O piloto, mesmo com a assistência gravitacional, estava prestes a perder os sentidos. O míssil embateu no solo, produzindo uma bola de fogo com trinta e três metros de altura.

     Os dois jatos restantes esperavam-no a três mil metros.

     O piloto viu-os afastarem-se, um para a esquerda e outro para a direita. Mergulhou atrás do que fora para a direita. Descreveu uma curva mais apertada que a do inimigo. Uma força centrífuga ligeiramente mais alta premiu o piloto contra o fundo do assento. O inimigo, talvez um pouco menos capaz, talvez um pouco menos cuidadoso, surgiu nas alças no piloto, que disparou o seu canhão C/M. Fogo, pequenos jorros de chamas, apareceram no jato de Chicago. Mas depois...

      

     — James — disse ela, calmamente. — Eles perseguem-me por causa das minhas ligações com Gates. Sou ministro na Igreja dele. Tu e eu sabemos que comédia é a Igreja de Wayne. A afetação... James, sou um Cristão, mas sou também uma mulher, e como mulher, a profundidade dos meus sentmentos...

    

     ... o outro jato apareceu na cauda do DV-AV. O piloto carregou no acelerador, subiu e tentou um loop. A sua curta barragem perante o jato de Chicago produzira os efeitos esperados. As silenciosas torrentes de antifótons tinham feito surgir primeiro fumaça do aparelho, depois chamas verdadeiras, e finalmente a ejeção do piloto, para uma morte mais lenta, talvez mais horrível que a de ser esmagado no solo.

     O piloto olhou para baixo torcendo o pescoço, quando descrevia o loop, e viu o aparelho restante afastar-se do seu caminho. Saiu do loop em folha morta, endireitou-se e deixou que o jato de Chicago se aproximasse dele. Desviando-se do fogo do inimigo, o piloto curvou para ver o outro jato nas suas miras, mas o adversário executou uma, série de manobras que levou o piloto a mergulhar para se afastar. Ao fazer isso o DV-AV apanhou alguns tiros na asa de estibordo e estremeceu com a força deles. O piloto atuou instantaneamente um comando que gerava uma espuma, para que ela se misturasse com o combustível no depósito da asa, produzindo uma fumaça de camuflagem. O adversário era um homem inteligente lançou-se a matar. O piloto esquivou-se, reduziu o gás e o atacante passou pela frente dele. O piloto apanhou-o nas miras e disparou. Danos ligeiros...

    

     — Olha para aquela mulher — disse eu. — Está bem vestida. Talvez apenas para o trabalho, ou para o marido, para o futuro marido, talvez para o homem que finalmente resolveu dar-lhe uma oportunidade. As faces dela estão quase vermelhas, de expectativa, e nota como o corpo dela se move.

     — James — disse ela.

     Ele respondeu baixinho:

     — Talvez que, como ministro da Defesa e confidente do novo Rei, eu possa ser manipulado tão facilmente como o fui para o meu falhado martírio.

     — Bem, se acreditas nisso...

     — Não acredito em nada — disse eu. — Por vezes duvido mesmo dessa fé deslocada, esse sonho-prece que eu dirigia a uma divindade sem rosto a que alguns chamam Deus. É engraçado. Quando jovem costumava acreditar na vida. Depois foi na morte. Mas ambas me desapontaram... quero dizer... agora... olha à tua volta. Podes ver os rostos e os corpos em movimento — as cascas da realidade. Por vezes eu acordo e vejo o animal no homem, e dessas vezes fico assustado, porque apenas preciso de um momento para compreender que sou também um membro dessa espécie. E quando se pega num homem, amor, e se lhe tira a pele para espreitar nas profundezas... bem, não temos nem um vestígio de luz dentro de nós — a cavidade é negra como o Inferno. Todos nós somos doentes por dentro. Estamos cheios de podridão. Em alguns, a infecção já atingiu o pior, noutros ainda tem de alcançar a fase de máximo desenvolvimento. Mas essa fase virá. Chamas a isto viver, amor? Chamemos-lhe o que é, um longo obituário, nada mais do que isso. Mesmo no meu tempo tinha muito disso. Um governo totalmente fora de contato com o povo e mais preocupado consigo do que com o mundo. E havia sempre guerra nos bastidores, sempre guerra. Se o meu país não fornecia as armas, o país rival fazia-o. Por qualquer estranha razão — talvez porque possuíam um fundamento que, pelo menos no plano idealista, tinha algumas bases de humanidade — as religiões praticadas pelo homem eram as únicas instituições que se preocupavam com a semelhança da verdade. Pediam fraternidade, mas os vivos estavam sempre a preparar os seus enterros. Estavam demasiado atarefados para amar. Muitos Cristãos adoravam por medo, do passado, do presente, e talvez do futuro. O medo era respeitável. E ainda é. E havia chefes religiosos — grandes — que gaguejavam publicamente de uma maneira doentia, jogando com esse medo respeitável para satisfação do seu egoísmo e da sua cobiça. Sim, o medo, por tudo quanto sei, é uma melhor arma para o domínio do que qualquer infecção humana.

     — Não acreditas em mim?

     — Talvez — disse eu. — A seu tempo.

     — James — disse ela, suspirando. — Sir James, vai deixar-me?

     — Para quê? Para manter a honra? Não tenho nenhuma neste momento. Orgulho, sim, isso tenho eu, os que estão em rebelião sentem-se doentes com ele. Redenção dos pecados passados? Nem mesmo a Igreja tal como existe agora pode torcer o que fizemos juntos e fazer com isso uma teia. Genevieve, há pessoas que vão morrer.

     — Depressa?

     — Receio que sim.

     — E nós?

     — E nós... e nós...

    

     O inimigo descreveu um curto mergulho com o piloto logo atrás dele. O jato de Chicago surgiu na mira uma vez mais. Foi apenas por poucos segundos. O piloto disparou. mais uma vez, apenas danos ligeiros.

     O piloto ultrapassou o inimigo antes de ter possibilidade de o evitar e numa alternativa curvou para leste e descreveu inesperadamente um novo loop, escapando à salva do adversário por uns bons quinze metros. Mas o piloto manobrou de modo a interceptar o jato mais uma vez — o homem de Chicago superou-se a si próprio e o DV-AV apanhou uma rajada a meio. A cabina ficou toda esburacada até à cauda. O traje cerrou-se hermeticamente. Começava a ser difícil manobrar. O jato de Chicago aproximou-se. O piloto curvou para a esquerda. O jato seguiu-o. O piloto fez picar o seu DV-AV, com os disparos do inimigo a passarem perto da cauda.

     Sem pensar, o piloto abriu o gás a fundo e fez subir o nariz do aparelho. A aceleração atirou-o para trás. O sangue quase estourou as veias. O coração tentou combater as forças que tentavam arrastar os fluidos para o estômago. O jato de Chicago, apanhado de surpresa, reagiu com lentidão. Correu de lado e surgiu nas miras do piloto. O canhão C/M disparou. Apanhado do meio para trás, toda a traseira do jato de Chicago se abriu. O combustível explodiu. O jato dividiu-se em quatro partes e numa enorme bola de fogo. O céu límpido, muito límpido, foi riscado por um fumo negro, oleoso. O piloto começou a descrever um círculo em torno do fumo para ver se o seu opositor tinha escapado. Houve...

    

     — Temos de levar vidas secretas, separadas — disse eu. — Que ninguém saiba de nós enquanto a violência não desaparecer. O meu corpo pode pôr o teu em perigo. Não posso permitir isso.

     — E se eu morrer? — disse ela.

     — Ê o tempo — disse eu. — É a qualidade do tempo que está contra nós.

       — James.

     — Bom dia, doutora... eu... Bom dia.

    

     ... um suspiro quando o fecho da escotilha foi aberto enquanto os restos do banho de descontaminação ainda formavam gotas sobre o revestimento polido do DV-AV e inundavam os rombos que o fogo do canhão C/M abrira na fuselagem. A escada desceu automaticamente. O técnico olhou para cima, para o piloto, no posto de comando. O piloto estava rodeado por luzes de aviso que tingiam de verde o seu capacete.

     O piloto olhou para baixo por um momento e depois, lentamente, começou a retirar o capacete.

     O rosto branco e limpo do técnico não mostrava qualquer emoção. O rosto do técnico era incaracterístico, desprovido de qualquer feição notável, salvo uma boca que parecia não existir.

     O piloto desapertou os cintos e depois retirou a película da pulseira e olhou para ela durante um longo tempo.

     O técnico recuou quando o piloto desceu a escada, deitou os registros do vôo numa caixa de chumbo e parou para olhar para cima, para o aparelho. O trem de aterragem direito não chegara a abrir-se; o da esquerda e da proa deixavam o aparelho tombado de uma maneira bizarra, para a direita. Lentamente, o piloto dirigiu-se para outra porta implantada na parede do compartmento de operações de vôo de superfície.

     Ao chegar a essa porta, o piloto olhou longamente para a porta da sala dos Prontos, depois torceu o fecho e entrou num longo corredor que levava a qualquer outra parte.

     O piloto planejava ficar doente durante alguns dias, mas tinha a certeza de que as probabilidades da sua recuperação eram boas.

 

                   VARIAÇÕES

 

Era um dos servos de noite, um homem de cerca de quarenta anos, o crânio nu a brilhar às luzes do corredor, que lhe lançou um olhar implorante e disse:

     — Majestade.

     Talvez o novo Rei não quisesse a sua ajuda. Era difícil a qualquer pessoa determinar o que o novo Rei desejava.

     — Silêncio! — berrou ele, vestido com as suas roupas de dormir e o seu manto, com os cabelos revoltos pelo sono aberto e com uma expressão meio consciente nos olhos. — Todos! — rosnou ele numa voz que parecia emperrada. — Silêncio!

     As mulheres da limpeza, de joelhos no corredor, olharam para o fundo.

     Um autômato varredor e polidor parou.

     Um homem que estava a fazer um ligeiro ajustamento no alinhamento de uma pintura a óleo na parede baixou as mãos como um ladrão que tivesse sido apanhado.

     Havia no ar um cheiro sujo, de água e sabão.

     Uma máquina de vácuo, num quarto próximo, soltou um estalido e suspirou eletronicamente. Os seus sons desapareceram num mar de sussurros e gemidos cada vez mais fracos.

       — Dêem-me silêncio! — rugiu o novo Rei, a voz ainda emperrada pelo cascalho da sua inconsciência, as costas curvas, as palmas das mãos a tapar os ouvidos com dureza.

       — Chamem o médico real — disse o servo calvo a um rapaz curioso que surgira vindo das cozinhas. — E não corras. Não faças barulho.

       — Este ruído — ouviram dizer o novo Rei. — Este horrível, terrível ruído. Quem está a fazer todo este barulho? Parece que estão a cravar estacas, parece que são blocos de concreto a baterem uns nos outros, ou uma fábrica a trabalhar a toda a força. E esse som de qualquer coisa que corre — como a respiração de um monstro, a arquejar, a arquejar. Meu querido Deus. Deus. Ó meu Deus. William, não abriram nenhuma brecha, pois não?

     O servo amparou o novo Rei nos seus braços, endireitou-o e disse-lhe que tudo estava normal no mundo.

     — Não — disse o novo Rei, recuando para o corredor. — Não há nada normal no mundo esta noite. A Lua, esta noite, está rodeada por uma nuvem alaranjada. O Sol será coberto por uma nuvem cinzenta, escura, e os fogos brilharão com chamas. E se amanhã a Lua tiver sido roubada, então, então...

       — A Lua, alteza? — perguntou o servo.

     O novo Rei prosseguiu como se não tivesse feito qualquer pausa.

     — Mas este ruído! — Torceu o seu corpo subitamente para baixo e para a direita, oomo se tivesse sido atingido por uma dor.

     — Nem tudo está bem — disse eu. — Meu querido Senhor, nunca esteve tudo bem.

     — Senhor!

     — Olha, ele está a cair!

     — O médico — depressa!

     — Ah, ai — disse uma criada no fundo do corredor, metendo a escova de esfregar num balde com água quente. Era uma mulher madura, de quase cinquenta anos. — O Rei desmaiou. — A mulher abanou a cabeça.

     Depois meteu a mão no bolso do avental e tirou dele um comando manual, de plástico.

     — Vamos, menino, há que fazer — cantarolou ela enquanto um autômato saía de uma parede. — Limpa o chão para a Avozinha.

    

     — Quem vem lá?

     — Não atires, amigo.

     — Isaac?

     — Quem mais esperavas a esta hora?

     — Avança para reconhecmento!

     — Vai deitar-te!

     — É essa a minha intenção.

     O novo guarda parou no alto das escadas, deu voltas e contravoltas desajeitadamente, olhando os céus, e depois subiu para a plataforma e apertou o ombro do guarda que estava sentado na cadeira da artilharia, de face para a planície deserta, ao sul.

     A redoma era agora nova e muito limpa.

     — Como vão as coisas esta noite, Herbert?

     — Tenho uma preparada para mim.

     — Grátis?

     — Que pensavas?

     — Oh — disse o novo guarda, rindo-se, passando a mão enluvada pelo fundo do capacete, conscientemente, como se para esfregar a barba que ali houvesse. — Pensei o contrário.

       — Então pensaste errado, amigo.

       — No fim tem-se sempre de pagar — disse o novo guarda, — Seja como forem as coisas a princípio. Que demônio, faz um calor horrível, dentro destes trajes, os normais são melhores, é desumano sujeitar soldados leais às exigências deste equipamento.

       — Este equipamento, amigo, permitirá que os teus filhos vejam a luz do dia.

     — A luz do dia? Ora! Um homem não pode andar por ai com um peso destes. E se surge uma necessidade? Temos de fazer chichi nas calças. Ou pior que isso!

     — Ê bom para ti — disse Herbert com uma gargalhada. — Faz bem a esses velhos músculos.

     — Bah! — disse Isaac fazendo um gesto de desgosto com uma das mãos. — Bem, há alguma coisa estranha ou invulgar a comunicar?

     Herbert pegou uma prancheta que tinha assente no joelho e depois olhou para os instrumentos recentemente instalados.

     — Nada — disse ele. — Alguns clarões de radiação, locais, estão na carta e no computador. Radiação de fundo mostrando a atenuação esperada. Não sei por que demônio querem que façamos leituras aqui; eles recebem as mesmas informações do equipamento que têm no Comando da Desfesa.

       — Confirmação — disse Isaac, premindo um código de verificação no posto do computador na redoma de observação. — OK. Calma, Herbert — disse ele quando o homem saiu da cadeira da artilharia e tentou espreguiçar-se. Isaac sentou-se na cadeira. — Não trabalhes agora muito durante o sono.

       — Farei tudo muito bem e com calma — disse Herbert, sorrindo, quando chegou ao cimo das escadas. — Oh! Quanto a esses clarões locais. Há um bem perto de nós, possivelmente a mil e seiscentos metros, a zero-dois-um-zero graus, um minuto exato.

     Isaac voltou-se nessa direção e inclinou-se para a vidrite.

     — Baixa as luzes um pouco mais.

     Herbert obedeceu.

     — Hum... — disse Isaac olhando para o clarão. — A mim não me parece fluorescência radioativa, é demasiado brilhante. Azulada. Não, talvez seja suficientemente mortiça, Não sei. Se começar a piscar, ou a enviar Morse, terei de te arrancar da cama, por muito desapontada que essa garota possa ficar.

     Herbert começou a descer as escadas.

     — Então é a recompensa que tenho por ser o responsável? — disse ele.

    

     ... os olhos a relampejarem, o rato-canguru parou à entrada da sua toca, as suas patas semelhantes a mãos unidas numa espécie de prece — o nariz a fremir, vivo. A Lua podia brilhar nos seus bigodes. A sua pele era escorregadia e limpa. As orelhas atentas, ativas, estavam erguidas como diamantes negros, os olhos do rato-canguru brilhavam acima de tudo.

     O ar era mais fresco nessa noite que no passado recente.

     O rato inalava e exalava o ar num ritmo rápido, mas aquele rato-canguru era uma espécie particular de rato, e à sua maneira muito especial saboreava a atmosfera.

     A sul da toca do rato havia os projetores da superfície da República, e as novas redomas de observação — uma confusão de metal, concreto e vidro anti-radiação manchando a terra revolvida; pelo menos era o que o rato pensava.

     Aquele rato-canguru era um rato inteligente, realista, que sabia onde estava, no mundo, e, ainda que não compreendesse o mundo, estava seguro dentro da sua inocência.

     Sobre um pequeno turbilhão de fumo luminoso, com algumas ligeiras centelhas de uma chama errante, um aparelho DV-AV largou do monte de concreto, parou por um momento a uma altitude de cerca de seis metros e depois partiu como que disparado para sudoeste.

     O rato-canguru, sendo em absoluto de espírito simples e meios humildes, encolheu os ombros, desanimado. Não tinha um grande conhecimento da República porque só podia ver o que acontecia na superfície, e isso era algo confuso para ele. Compreendia que não estava em condições de julgar se aquilo era ou não algo importante, por certo que, noutras ocasiões, o rato perguntara a si próprio o que eram aquelas estranhas coisas de metal que surgiam das portas do monte de concreto e caminhavam por ali. Tinham dois braços, caminhavam de pé, e passavam o tempo a mexer noutros objetos também metálicos e de formas estranhas, ou construíam estranhas coisas no chão, ou trabalhavam em volta de poços que eles próprios fechavam. Também conduziam veículos. E os veículos também se conduziam. Quem conduzia a quem era coisa que o rato não sabia bem. Sendo, como se disse, um rato inteligente, o rato-canguru estabelecera a teoria de que aquelas estranhas criaturas metálicas talvez estivessem relacionadas com as formigas, porque nas raras viagens que ele fizera de da observar as formigas a trabalhar. Mas a sua teoria não lhe parecia satisfatória, porque aquelas estranhas criaturas metálicas tinham somente quatro patas enquanto as formigas tinham seis, e eram gigantescas em relação a elas — portanto deviam ter oito, dez ou doze patas, ou qualquer coisa como isso.

     Quanto ao resultado da teoria, como quanto a tudo o mais, o rato tinha apenas uma solução. Encolher os ombros.

     Com um salto, saiu da entrada da sua toca e desapareceu na noite.

     Sendo um rato pacífico, o rato-canguru vivia da pouca vegetação que poda apanhar durante a noite sem nuvens, algo fria. Ele não enfrentava uma competição excessiva. A sua companheira morrera poucas semanas antes e não ficara nenhuma ninhada.

     Meditando nisso, o rato parou para mordiscar algumas falhas de erva que tentavam sobreviver no mau solo.

     Amara muito a sua companheira, e ela amara-o. Tinham-se encontrado por sorte uma noite e sendo solitários, tinham-se adotado um ao outro. Mas ela adoecera e ele nada pudera fazer.

     Mas então a terra começou a inclinar-se e a subir.

     O rato parou tudo quanto estava a fazer, tremeu durante um segundo, e depois ficou algo louco, porque não sabia o que estava a acontecer.

     Lentamente, com um rangido, o solo em que as patas do rato assentavam, ergueu-se para as estrelas e isso pareceu uma mudança permanente.

     Entretanto o rato-canguru estava furioso, muito furioso, porque aquilo já lhe acontecera uma vez e ele não estava disposto a safar-se de novo do lixo que estava no fundo. Portanto, com muita coragem, o rato escavou com as patas traseiras e pulou pela rampa acima, alcançando o topo exatamente quando o solo por baixo dele começou a ceder.

     Teria sido por culpa do rato que ele, logo que chegou ao topo, se viu sem outro lugar para ir senão a nove metros abaixo, nas mandíbulas de um analisador de ar que se erguia?

    

     — Boa noite — disse eu do fundo da escada.

     — Ê de manhã — disse Isaac, um pouco aborrecido. Depois lembrou-se da saudação da regra:

     — Quem vem lá?

     — Sir James Williamson.

     — Posto?

     — Ministro da Defesa.

     Houve lum momento de silêncio.

     — Não está à espera que eu acredite numa dessas, não é? — disse Isaac.

     — Sim, se não queres ficar sem as divisas.

     — Oh, não tenho nenhumas. Está a usar o equipamento regulamentar?

     — Sim.

     — Avance com a identifioaçjão visível, para reconhecimento. Meu Deus. senhor, perdoe-me — disse Isaac quando me viu no alto das escadas.

     — Os meus cumprimentos — respondi eu, guardando o meu cartão de identidade num dos bolsos exteriores do traje anti-radiação.

     Parecíamos dois monstros, os visores retraídos de modo que as nossas cabeças mal saíam dos trajes maciços, os corpos algo atardados sob o peso de dezoito quilos.

     O guarda meteu desajeitadamente a pistola de laser no coldre.

     — Como vai a noite?

     — A manhã vai boa, senhor — respondeu o guarda de uma maneira neutra, olhando para o painel dos instrumentos onde vários mostradores brilhavam como olhos de animais.

     — Já é manhã?

     — Exatamente duas horas e trinta minutos, senhor.

     — Maldito eu seja.

     — Todos nós o somos, senhor.

     Varri com os olhos a superfície que rodeava a redoma e que pareceu com um aspecto surrealista devido aos efeitos dos projetores. Para além dos feixes, aqui e ali, nas depressões do terreno, havia estranhos clarões de uma espécie que eu ainda não vira.

       — Diga-me, Isaac. Que é aquilo, para além do perímetro?

     — O quê, senhor?

     — Aquelas luzes estranhas.

     — Radiação.

     — Causada por quê?

     — Distribuição desigual da precipitação resultante do último ataque.

     — É melhor que nos mantenhas afastados daquilo, não é?

     — Sim, senhor.

    

     ... encurralado no espírito, no espírito, no espírito, no espírito, pensou ele quando, olhou para cima da mesa fria e confortável e observou aquelas sondas de metal macio a descerem sobre o seu crânio. Tudo partido, para sempre, pensou ele. Doença, podridão e decadência. Ossos limpos e o cérebro todo em papas — papas cinzentas, fedorentas, próprias para a Grande Queda. A Grande Queda.

     A enfermeira, o uniforme particularmente retesado sobre os seios, o corpo coberto de perfume, pegava nas mãos daquele homem quando o delicioso contato foi estabelecido.

     ... debruçado sobre o painel, o médico observou com neutralidade os ponteiros a flutuarem. Um osciloscópio dançou uma linha fotônica através da esverdeada janela do espírito. "Um estremecimento percorreu o corpo daquele homem quando um eletroencefalograma foi tirado e mostrou que ele ainda tinha o coração vivo, ainda sob domínio... não, não, todo este componente está danificado, pensou ele. Os transístores, todos eles, estão queimados. O complexo circuito subminiatura — está tudo queimado, está tudo em curto-circuito. Oh, cheirem esse fumo. Os transformadores já não trabalham. Todo, o isolamento desapareceu.

     Limpando as sinapses, rapaz.

     Limpando as sinapses e restaurando as velhas dendrites à sua antiga e distentida glória.

     Corram as gravações do perfil de personalidade... o espírito, o espirito, o espírito, pensou ele.

     Olhando a textura... ... stoppp

     ... dos solos...

     ...stoppp

     ... onde a redoma de observação

     ... stoppp

     ... foi assente.

    

     Olhei para cima e vi o guarda, Isaac, recostado na cadeira da artilharia, na sombra do canhão C/M desativado, o rosto escondido na caverna do seu capacete aberto.

     — Diga-me, Isaac. Como vai o nosso mundo?

     — Mais ou menos, senhor.

     — Mais ou menos?

     — Menos mal porque nos permitem viver nele, senhor — mais a possibilidade de que surja um amanhã.

     — Dizem que o novo Rei está doido.

     — Sim, senhor, dizem isso, embora eu não acredite muito nessas vozes.

     — Por causa das vestes dos donos dessas vozes?

     — Sim — disse Isaac rindo-se. — E dos crucifixos que eles usam nos seus lindos pescoços.

     — Então será possível que sejas um daqueles que sabe sempre as últimas mexeriquices?

     — Chamamos-lhe bocas, senhor.

     Sorri perante a resposta.

     — Então que pensam da rebelião na Igreja?

     — Que há que pensar, senhor? — respondeu Isaac. — Esse novo bispo — como é que ele se chama, Gates, não é? Sim, é Gates. Portanto ele afirma que a Igreja de Wayne violou o Novo Testamento ao escrevê-lo de novo, e apresenta cópias de como ele era antes da Grande Guerra. Grande negócio. Para começar, Gates poda ter falsificado os livros e há quem diga que eles são mal escritos. Mas Wayne também o podia ter feito. Portanto para que estamos a discutir? Que importa isso? E outro bando de egoístas a dizer que há uma divindade, se assim fosse não estaríamos aqui os dois a dar à língua.

     — Não acreditas em Deus?

     — Acredito, sim. Acredito na divindade do homem, porque creio loucamente que foram os homens que criaram Deus, e não o contrário. Que importa que sejamos o produto final de, como alguns dizem, um oceano de proteínas ferventes? Que importa isso?

     — E quanto a Cristo?

     — Ele também pode ter existido — disse o guarda, olhando a noite. — Posso crer nisso. Mas ele era apenas um homem, nada mais do que nós, nenhum super-homem. Talvez não fosse o homem perfeito.

     — Então porque vais à igreja?

     — Para essa pergunta há três respostas, senhor — respondeu Isaac. — Prmeira: perderia a minha posição. Segunda: se não for lá, a pena é a excomunhão. Terceira: apesar de penas como essa, a Igreja tenta pregrar que devemos amar-nos uns aos outros. Essa hipocrisia é tão divertida que o preço é bem pago.

     Calamo-nos. Toquei com a mão enluvada a balaustrada em que apoiara o braço e quase não senti nada.

     Houve um relâmpago de qualquer coisa lá fora e um escurecimento. Nuvens aproximavam-se rapidamente.

     Um alarme soou.

     Parecia um como, a quebrar-se no meio de uma nota.

     — Que demônio! — gritou Isaac saltando do seu lugar. Lançou-se sobre o painel dos instrumentos, fazendo baixar bruscamente algumas alavancas. O visor de um computador iluminou-se. Alguns mostradores entraram em ação. As luzes na redoma acenderam se.

     Sobre o visor surgiu a imagem do Tri-Exp, uma série de imagens eletrônicas distintas mas flutuantes.

     — Bárbaros — disse Isaac mecanicamente ao microfone do seu capacete. — Onze deles. Velocidade cinco quilômetros por hora. Direção, agora duzentos e setenta graus exatos. Tempo de chegada cerca de dez minutos. Distância cerca de quinhentos metros.

     Enquanto estava a dizer aquilo, uma luz acendeu-se no painel de comando.

    

                   ALARME AMARELO

    

     Isaac premiu uma combinação de algarismos numa série de botões e no visor anexo os pontos eletrônicos, amarelados, tornaram-se vermelhos — brilhantes formas vermelhas, humanas.

     O computador começou a pensar — eu podia senti-lo pensar — e as conclusões começaram a ser expostas.

     — Que pensas? — perguntei.

     Isaac levantou a cabeça.

     — Gente da superfície. Provavelmente desarmada.

     — Meu Deus! Que querem eles daqui?

     — Não sei — disse Isaac. — Pode ser...

    

     ... para o seu trabalho, trabalho, trabalho, na fábrica...

    

     ...seja...

    

     ... para o dinheiro despendido na bebida...

    

     ... quase...

    

     ... e não esqueçam a querida garota...

    

     ... tudo.

    

     ...da agência que escolher...

    

     — Quem vem lá? — disste Isaac, a sua voz um reflexo.

     — Q... O quê?

     — Quem vem lá?

     Ouviu-se a voz de um guarda que devia estar noutro lado:

     — É sua majestade.

     — Está com o equipamento padrão? — perguntou Isaac. Houve silêncio por um momento.

     — Está — respondeu o outro guarda. — Eu próprio ajudei-o a equipar-se.

     — Avance então — disse Isaac. — E bem-vindo seja, majestade.

     Pernas começaram a subir a escada de concreto. Eu dirigi-me ao alto dela.

     — Boa noite majestade — disse.

     — James? — disse ele, olhando para cima. — Isto é curioso. Realmente curioso. É manhã, James, e eu estou como bêbado com tudo isto.

     Dei-lhe a mão para o ajudar nos dois últimos degraus.

     — Bem vejo, majestade — disse eu.

    

     ... leituras do infravermelho completas. Preparar exploração preliminar por radar — murmurou Isaac consigo próprio.

    

     — A noite está fria, James? — perguntou o novo Rei.

     — Depende da percepção de cada um — disse eu.

     — Portanto depende do espírito de cada um — disse ele.

     — Não tardarão a estar à vista.

     — Eles? — perguntou o rei, em voz baixa, voltando-se.

     — Senhor — disse eu. — Apanhamos no nosso visor o que parece um grupo de pessoas vindo nesta direção.

     — Pessoas? — explodiu o novo Rei. A sua cabeça voltou-se mediatamente, explorando o horizonte oculto. — Onde? Estão armadas?

     — Não que saibamos, majestade — disse Isaac. — Contamos onze a pé, com pouco conteúdo metálico.

     — Onde? — inquiriu o novo Rei, subindo à balaustrada e batendo com as mãos nela.

     — Ali, majestade — disse Isaac, apontando. — A cerca de noventa metros, agora.

     — Luz — disse o Rei. — Dá-me luz neles. Quero vê-los.

     — Os projetores não tardarão a apanhá-los — disse eu. Um estremecimento pareceu percorrer o corpo do novo Rei.

       Com um estremecimento tão intenso que pude senti-lo através do traje anti-radiação.

     — Como é que alguém pode viver nessa sujeira que criamos? Não é boa para os homens. Foi assim que a deixamos. Como podem eles sobreviver?

     — Provavelmente são bárbaros — disse Isaac, calmamente. — Provavelmente vivem nas ruínas do sul, onde talvez seja admissível qualquer espécie de vida, senhor.

     — Meu Deus, meu Deus. Esta noite não pode haver sonhos.

     — Ali! — gritei eu. — Ali!

     — Doce Jesus! — gritou o novo Rei.

     Era um grupo de quatro homens, três mulheres e quatro crianças de idades diferentes. Estavam quase nus. A luz e as sombras corriam sobre a sua falta de roupa, pondo em destaque as manchas de poeira nos corpos e outras coisas não agradáveis nem naturais. Usavam sobre si, pelo que poda ser visto, vários panos desbotados e peles de animais. Dois dos homens carregavam os filhos, um homem com um garoto e outro com uma garota Havia um homem a conduzi-los com um ajudante perto, e depois os dois homens com as crianças, as mulheres e as restantes crianças. Uma das mulheres coxeava terrivelmente e uma das crianças caminhava como se não tivesse estômago, e tinha de usar as mãos para sustentar as entranhas.

     Dirigiam-se para nós, agora.

     — Estamos num mundo cinzento — disse o novo Rei, deixando-se cair no chão.

     — Senhor!

     — Somos demasiado maldosos, James, ainda que estejamos na luz, e demasiado religiosos, ainda que estejamos no interior do maior dos Infernos.

     — Sente-se bem, majestade?

     — James, deixa-me estar assim sentado, por um pouco.

     — Tem a certeza de que não está doente?

     — Estou tão bem como deve estar um bastardo. É a bebida. Só a bebida.

     — Aí estão junto de nós, senhor! — gritou Isaac. Voltei-me. Os projetores mostravam agora as características mais óbvias deles.

       — Céus! — disse eu, — A equipa médica de emergência que esteja pronta na arcada. Contingência normal nas minhas ordens. Quem está hoje de vigia no comando de Defesa?

     — Timpkins, senhor — disse Isaac. — Posso ligá-lo para aqui.

     — Muito bem, obrigado. Tratemos disso!

     Pararam a seis metros dà redoma de observação. Mantiveram-se de pé. Não se sentaram. Não fizeram qualquer ruído detectável; mantiveram-se silenciosos. Pareciam estar a fitar intensamente a redoma como se pudessem ver os três homens que estavam dentro dela atrás da dura luz verde, exterior.

     Estavam queimados.

     A pele estava acastanhada ou enegrecida, a cair ou prestes a cair; rostos humanos deformados. Eram calvos ou prestes a sê-lo. Os corpos das mulheres estavam todos inchados e avermelhados. As crianças eram silenciosas e imóveis. O chefe tinha uma pala no olho direito — esse lado do seu rosto fora carbonizado. Pedaços de qualquer coisa pendiam do braço do ajudante do chefe — parecia ser pele misturada com uma tentativa de ligadura.

     — Irmãos. — O novo Rei gemeu para o chão. — Oh, onde estão eles? Os meus irmãos na matança?

     — Estão mortos — disse eu. — É o nosso produto final, compreende? Espoliados da sua dignidade vieram instintivamente até nós pedir auxílio, ainda que pouco possamos fazer além de aliviar a tremenda dor da transição para eles. Cheios de estrôncio, cobalto e o resto. Os corpos deles estão a desfazer-se perante os nossos próprios olhos. E para quê? A perpetuação de um sonho? Uma imagem infantil da masculinidade?

     — Horrível — murmurou baixinho, para o chão, o novo Rei. — Horrível, horrível, horrível...

     — É surpreendente que tenham conseguido chegar até aqui — disse Isaac.

     — Horrível...

     — A equipe está pronta?

     — Não tardará. Estão a preparar o equipamento.

     — Horrível...

     — Somos aqueles que temos a culpa estampada na testa.

     — Meu Deus! — gritou o novo Rei. — Meu Deus!

     — Meu senhor?

     Voltei-me e vi o Rei levantar-se.

     — Eles estão à nossa volta, James! Estão à nossa volta! À nossa volta! Estão todos em volta de nós! Assassinos. Assassinos! Vão matar-nos, querido Jesus. Tenho o cérebro a arder!

       — Robert! Agarre-o.

    Ele não lutou, mas contorceu-se numa espécie de ataque epiléptico, de angústia e terror, de dor e de um êxtase de crueldades.

     Mas num momento tudo acabou. O suor começou a correr pela testa do novo Rei labaixo. Ele ficou frio e calmo mais uma vez e sem uma palavra retirou a minha anão dele.

       — Está bem, senhor?

       — Acabou — disse ele, calmamente, dirigindo-se para a escada. — Tudo acabou.

       — Senhor?

     Ele parou no alto das escadas.

     — Matem-nos — disse ele.

     — Quem?

     — Não é necessário especificar. Usem o laser anti-pessoal de modo que eles não sintam dor.

     — É um crme, senhor!

     — Sou Rei, James.

     — Robert!

     — Obedece-me, James.

     Sem mais uma palavra, o novo Rei voltou-se e começou a descer as escadas.

     — Por Deus tende piedade, senhor!

     Ele não disse nada.

     — Por amor de Deus!

     Ele continuou a descer para a República.

     — Covarde!

     Ele desapareceu da minha vista.

     — Maldito covarde!

    

     Os canhões foram apontados para a execução.

     Os projetores focariam indiretamente o grupo para que a precisão do disparo pudesse ser assegurada.

     Isaac levantou os olhos do painel de comando, pronto a dar a palavra final através de mim ao Comando de Defesa.

       — Que estão eles a fazer agora, senhor? — perguntou ele.

     Afastei os olhos de uma estrela que eu conhecia, muito longe dali, e fitei o grupo.

     — Estão a rezar — disse eu.

    

HAVIA somente uma vela sobre o altar semelhante a mármore, com uma pequena chama, uma veia fina feita de cera com um pavio negro. O Arcebispo de Wayne murmurou palavras em línguas mortas, sobre ela, o seu bafo fazendo a chama vacilar em êxtase perante a sua força.

 

     Perante as câmaras de estereovisão, o novo Rei ergueu uma coroa, a coroa dourada que o pai usara nas ocasiões formais, com um interior acolchoado, forrado de veludo negro, moldado à mão para se adaptar ao crânio do novo Rei.

    

     Abri a porta violentamente. O homem que estava a colar um dispositivo de escuta camuflado no fecho caiu no chão do apartamento. Estava de joelhos e desequilibrara-se. Dei-lhe um pontapé no queixo com todas as minhas forças. Ele dobrou-se e rolou pelo chão, depois do que ficou absolutamente inerte. A mão direita abriu-se e dela caiu uma pistola de laser.

     — James! — gritou Genevieve.

     — Silêncio — disse eu e comecei a examinar o homem. Estava ligado ao Arcebispo de qualquer maneira, tinha a certeza disso. Escondidos no seu hábito havia três outros dispositivos de áudio de várias formas, um gravador e uma pequena câmara de televisão (bidmensional) que aparentemente podia ser escondida num ventilador.

     O pontapé que eu lhe dera fora demasiado forte.

     Ele estava morto.

     Tinha o pescoço quebrado.

    

     — ...talvez possamos todos tirar benefício da parábola de Cristo como diz Lucas — disse o ministro quando o padre iniciou a pausa na Homilia dos leigos. — A parábola que fala da figueira.

     Vinte e dois crentes estavam presentes:.

       — O que é surpreendente nesta parábola — disse o ministro — é a escolha dos pormenores por Cristo. Bem, para entrar em pormenores, a parábola da figueira diz respeito à paciência de Deus com a nação judaica; mas porquê, entre todas as coisas, uma figueira? Recordam-se de Adão e Eva e da nudez? Mas vamos ao que interessa. A história que Cristo relatou era a de um homem que tinha uma figueira a crescer no seu jardim, mas quando o homem foi à procura dos figos não havia nenhum. Desgostoso, porque esperava havia uns bons três anos pelos frutos, o homem disse ao jardineiro para cortar a árvore, porque ela ocupava espaço sem proveito. Mas talvez o jardineiro fosse um homem mais paciente, porque ele respondeu:

     — Senhor, não lhe toque enquanto eu não tiver possibilidade de cavar à volta dela e colocar algum estrume. Se ela der fruto depois disso, muito bem. Se não, então cortá-la-emos.

     O ministro sorriu.

     — Esta parábola é de fato uma história de muita beleza — disse ele. — Em poucas palavras, bem claras, diz-nos muitas coisas: o amor de Deus pela Sua criação, a paciência de Deus, e o dever do homem para com os seus irmãos quanto ao ensinamento dos caminhos de Nosso Senhor, porque...

     O ministro começou a dobrar-se para trás, estranhamente, agarrando-se aos lados do púlpito.

     — ...em cada homem — prosseguiu ele, os joelhos a dobrarem-se.

     Estava a cair para o chão.

       — ... a, qualidade do seu Criador pode...

     Os monges abriram violentamente a porta da igreja de Gates.

       — ... viver.

     A congregação abriu fogo dos bancos numa vaga de fogo de laser e pistolas-metralhadoras rápidas.

     As portas que rodeavam o altar abriram-se, o primeiro homem à esquerda foi abatido, mas três padres com armas conseguiram correr para os abrigos na área dos altares, enquanto as metralhadoras da igreja começavam a disparar.

     A luz errante de um projetor, girando sobre os fios agora estendidos do teto, brilhou sobre os olhos abertos de um crente que, meio sentado, meio estendido, estava sobre um banco, sangrento e morto.

     O padre que celebrava o serviço caiu quando um laser lhe carbonizou e separou uma perna. Ainda que os vasos principais tivessem sido cauterizados, ele começou a sangrar. Mesmo assim arrastou-se em frente, para salvar a Hóstia.

     — Portanto, meus cidadãos — disse o novo Rei perante as estereocâmaras —, sou forçado pela ameaça de guerra, a fim de que a minha autoridade seja reconhecida como a mais alta e para que um gabinete seja firmemente estabelecido, a tomar prematuramente o trono sem quaisquer bênçãos. O costume e o dever mandam que façamos luto pelo falecido rei durante trinta dias antes de permitirmos que um novo governo surja e ainda que desejemos verdadeiramente obedecer a essa tradição, não posso nem devo sucumbir às forças que resultaram na morte do meu pai. Quando a paz for finalmente assegurada será o momento em que entregarei a minha coroa para que a Igreja a torne válida.

      

     — Pedimos ao príncipe para que repelisse essa Igreja de Satanás e no entanto ele recusou — disse Wayne, em voz bem alta. Pedimos-lhe para segurança da sua alma que repelisse os ensinamentos de uma Bíblia adulterada, os impudicos e diabólicos ensinamentos do Diabo, e ele recusou-nos. E agora, rodeado por luxúrias, desonestidades e vilanias, ele atreve-se a profanar o espírito do nosso falecido Rei Gregório, reclamando prematuramente o trono sem a bênção de Deus.

     A luz da vela vacilou.

     — Roubar uma coroa consagrada é cuspir na face sagrada de Deus — disse Wayne numa voz dramaticamente calma.

     Pegou na vela e ergueu-a perante o rosto.

     — Portanto podem-lhe ser negados o seio da Igreja, todos os ritos da Igreja, a salvação eterna. Que seja excomungado e despachado para a sua morte eventual no mais ardente abismo do pior dos Infernos, para sofrer a danação eterna.

       — Eles levaram o corpo, meu amor — disse eu. — Não deixou manchas. Amanhã farei um relatório e tudo estará terminado.

     — James, ele vai matar-te?

     — Sim, mas e um assassínio de qualquer maneira. O quê? Não podes compreender? Eu... eu vou aproveitar-me dos erros dos meus irmãos? Tirar proveito deles? E julgar as ações deles? Não tenho poder para isso; não tenho o direito. Matei-o. Porque o matei? Porque ele queria matar-me. Poderia tê-lo impedido disso? Talvez. Escolhi a solução conveniente. Possa e1e dormir agora em paz. No Céu.

     Ela levou dois dedos unidos à boca e fitou-me.

     — Que diferença faz a legítima defesa? O Céu é o mesmo para qualquer homem, não há diferenças na perfeição.

     Ela colocou os dois braços à minha volta. Estava sentada no sofá.

       — A vida não tem qualquer significado profundo para ti, Sir James? Ê tudo apenas um simples prelúdio?

     Eu respondi:

     — Agora tenho frio, Genevieve. Há gelo dentro de mim. Um gelo amargo.

     Ela largou-me.

     — Temos de morrer — disse eu. — Etntão porque vivemos?

     — Nenhum homem pode ser assim — gritou ela. Depois, em voz baixa e suave acrescentou:

     — Pelo menos tu. Porque nos teus olhos, Sir James, eu vejo melhores coisas sepultadas, apenas não deixas que elas venham ao de cima.

       — Essas coisas melhores — disse eu rapidamente —, são a tua fantasia. Colorida por uma vil e inimaginável emoção a que alguns chamam amor, mas eu tenho certeza de que não pode existir.

     — Ah, mas é aí que estás errado. — Ela riu-se. — Talvez no passado, Sir James, te tivesse enganado — o caminho é duro, mas se duas pessoas se combinam numa e mesmo assim permanecem duas, se duas pessoas se unem, podem acontecer milagres, amor. Milagres.

       — Não posso crer em milagres — disse eu.

     Ela colocou a mão no fecho de correr que se abria a todo o comprmento das suas vestes. Fitou-me. Eu olhei para baixo, para ela.

     Disse às minhas mãos:

     — Porque é que eu devo estar tão dividido que as partes de mim estão em luta com o meu crânio desnudo, que a minha alma quebrada exige a minha morte, e no entanto essa doce parte, essa parte dominante, deve dizer — James, o amor. Abandona tudo quanto te parecer importante porque só o amor é importante. O amor, essa impossível emoção, deve ser tomada possível porque sem amor não há significado para este lugar, para esta posição, para este mundo, para este Deus.

     As mãos dela começaram a correr o fecho para baixo — rapidamente.

     — Sou fraco — disse eu.

     E então vi o corpo dela e o meu espírito foi capturado pela beleza dele. Mas ali havia mais do que luxúria. Os olhos dela, foi o que me chocou. Os seus olhos nus, o eco nos seus olhos.

     — Sim — disse eu. — Amei-te desde o meu julgamento. Não quis confessar isso a mim próprio. Ê tudo quanto queres de mim?

     — Não, James — disse ela. — Não estou a pedir-te nada. Só posso aceitar o que me deres, e espero que aceites o que eu te dou. Não pode haver dívidas.

     Pegando-lhe na mão e aproximando-a de mim, disse-lhe:

     — Então não faremos nenhuma.

    

     Forças militares chegaram à igreja de Gates, armadas com gases e equipamento anti tumulto, mas aquilo não era um tumulto — era guerra.

     O tenente que comandava as forças foi o primeiro a ser abatido.

     Havia um sargento que assumiu o comando e ordenou que largassem algemas granadas de gás. A igreja não tardou a ficar cheia dele, mas quando o sargento se voltou um feixe de laser encontrou o seu alvo e um buraco de trinta centímetros de diâmetro abriu-se das costas até ao peito dele, enquanto as suas entranhas eram espalhadas por todo o pavimento do corredor.

     Três dos ministros de Gates surgiram em tropel da porta esquerda do altar, pistolas-metralhadoras a disparar através das nuvens de gás, e carregaram sobre os monges estacionados na entrada principal da igreja. Os três morreram. Mas calaram a metralhadora de tiro rápido e a guarnição que ali estava colocada.

     Um homem foi abatido quando lançava uma granada antipessoal. Caiu entre os crentes, junto da fila da frente. A granada explodiu ali, espalhando sangue, ossos e tecidos sobre estilhas de madeira.

     Novas tropas chegaram, ao todo uns cinquenta homens. Carregaram sobre os monges, do exterior, com espingardas de laser, canhões C/M 34 e uma ou outra faca. Onze homens da República foram abatidos enquanto avançavam. Seguiu-se uma luta corpo a corpo. Facas assassinas relampejaram nas nuvens de gás e mais homens caíram.

     O padre que ficara só com uma perna e tinha a Hòstia arrastou-se até à direita do altar e expirou nos braços de um homem que estava ali e passou a Hóstia a Gates. Conrad Gates recebeu-a e protegeu-a com o próprio corpo.

     Os monges começaram a ceder.

     Estavam a ser abatidos pelos soldados, quer queimados pelos lasers quer vaporizados ou cortados à faca, e caíam como grandes insetos sobre o chão escorregadio.

     Gates disse aos seus homens para cessarem o fogo.

     As tropas acabaram o seu trabalho e verificaram que tinham trinta e um monges mortos nas suas mãos e mais vinte e nove corpos na igreja.

     O capitão que comandava as tropas praguejou em voz alta.

     Os padres e os ministros da Igreja de Gates saíram com muito cuidado dos seus quartos atrás do altar, armas prontas, e ficaram a olhar as tropas no exterior da igreja e os corpos sobre os bancos.

     O capitão apontou para os corpos sem dizer uma palavra.

     Os ministros e os padres de Gates puseram as armas de lado e começaram a trabalhar.

    

     As câmaras secretas da estereovisão procuraram um primeiro plano da coroa e seguiram o movimento para cima dos braços do novo Rei, quando a coroa foi colocada numa posição sobre a sua cabeça.

     Com um sopro forte, Wayne apagou a vela e o pavio começou a fumegar.

     Então as mãos desceram num movimento suave até que a coroa ficou firme sobre o crânio do novo Rei.

     Wayne esmagou o topo fumegante da vela no altar e parte da cera fendeu-se e quebrou-se, espalhando-se no chão.

       — Deus me salve — murmurou o Rei.

       — Vão-se embora — disse Wayne à assistência. — O serviço terminou.

     Um medidor deu um salto; depois o ponteiro fixou-se contra o limitador.

    

ERA um esquilo e estava a dormir. Enrolara-se todo porque o ar, de noite, era frio; o calor do sol dissipara-se ma noite límpida.

     A respiração do animal era lenta e regiular, não muito forte.

     O seu pêlo acastanhado tinha um tom mais de areia que aquele que os seus antepassados haviam tido.

     Houve uma nova sensação.

     O esquilo abriu ligeiramente um olho peludo.

     E houve um silêncio momentâneo no ar da toca.

     Os insetos tinham-se calado e só o vento fazia companhia.

     O outro olho abriu-se e o esquilo levantou as orelhas, tirando-as debaixo da sua quente e confortável cauda. A sua respiração tornou-se mais funda e mais rápida.

     Noite.

     Aquilo não era muito perto.

     A terra vibrava, uma vibração muito suave mas não calmante, porque o esquilo era suficientemente esperto para saber que não se devia confiar em terra que vibrava.

     Pedaços de terra solta começaram a oscilar silenciosamente no teto da toca, sobre os filamentos das raízes.

     Alarmado, o esquilo levantou-se, tremeu e farejou o ar. Era um esquilo muito relutante, quanto a decisões mediatas.

     Do sul ou do sudoeste?

     Batendo os dentes, o esquilo correu pelo túnel de emergência que dava para o sul e fazia um ângulo reto com o leste, onde, como ele se recordava, uma parede caída e um monte de pedaços de concreto se encontravam à superfície.

     Vinham sob o céu límpido. O luar ainda não surgira. Era a luz das estrelas que brilhava refletida nos lados polidos das suas máquinas. Homens com trajes de cores escuras e capacetes, atrás dos pára-brisas de vidro espesso. Sombras de aviões a distância, aproximavam-se agora do esquilo, gritando, passando e afastando-se.

     Coisas feitas pelo homem, observou o esquilo.

    

     — ... e transportes de tropas, senhor — disse ele. — Todos tremendamente maciços, potentes e pesados. Direi talvez uns dois mil homens.

       — Tem certeza desse número? — perguntei.

    

     Vinha a cento e dez quilômetros por hora. Flutuando a quarenta centímetros do solo nos seus campos gravitacionais, não possuíam virtualmente inércia e deixavam na terra a impressão de um ruído subsonico.

     Carros de batalha, pesados.

     Tanques ligeiros com grande velocidade e manobrabilidade.

     Todos a correrem.

     Todos dispersos de tal modo que o esquilo poda olhar a noite e ver apenas vultos misteriosos nessa noite em que uma lua era precisa.

    

       — Estás certo da identificação? — perguntou o Rei.

       — Não tenho dúvida alguma, alteza — respondeu o major. — Tenho um avião abatido para o provar, e foram carros do modelo de Chicago que fizeram isso.

    

     Desgostoso, o esquilo tremeu, porque estava frio. E sentia-se ludibriado. Os seus pensamentos sobre o assunto foram facilmente detectados porque ele deu um pontapé numa pequena pedra com a pata, na direção das fileiras que avançavam. Homens, a estragarem tudo mais uma vez, pensou ele. Que desperdício!

    

     — ... mas só depois de ter passado quatro vezes sobre eles — explicou o major. — E consegui trazer tudo para aqui — concluiu ele com um sorriso.

       — E conseguiste trazer tudo para aqui — repetiu o Rei. — Mas agora eles sabem! Sabem que estamos à espera deles. Antes... talvez pensassem que não tínhamos suspeitas, depois do ataque deles ao nosso avião e à própria República, mas agora foram observados no próprio ato.

       — Não faz qualquer diferença — disse eu, apoiando-me sobre a pedra da chaminé e bebendo um pouco de vinho.

     — Faz um mundo de diferença — disse o Rei, apoiam-do-se sobre o braço da sua cadeira.

     — Senhor, por certo que compreende que é estúpido lançar homens contra as nossas armas nucleares.

     Ele olhou para cima, para mim, de testa franzida.

     — Temos um grupo de aviões prontos, senhor. Transformamos em bombas dez ogivas dos nossos mísseis intercontinentais.

     — Vamos bombardeá-los? — perguntou o Rei em voz baixa.

     — No momento adequado.

     — Qual?

     — Quando eles começarem a agrupar-se para o ataque. A parte mais importante da batalha travar-se-á nos céus. Tentaremos derrotar as forças aéreas deles para lançarmos as bombas.

     — Mas isso dizimará as forças de superfície deles.

     Coloquei os restos do meu vinho sobre a pedra da lareira.            

     — É essa a nossa intenção, e a nossa garantia de paz.

    

     ... Cristo morreu para nos salvar da danação, disse ele. Não podes compreender de que estou a falar?

    

     O rosto do Rei teve um espasmo.

    

     ...foi um sonho, um sonho, um sonho do céu, senhor, que nós realizamos, realizamos...

     O Rei ordenou ao major que saísse.

    

     ...as trevas, fechar-se-ão sobre si, senhor...

    

     ... estás enganado, enganado. Eu não posso ser negado...

    

     — Serve-me um pouco de vinho, James — disse o Rei em voz baixa.

     — Certamente.

     A mão do Rei tremia quando ele levantou o copo em que eu despejei o borgonha. Olhei para os olhos dele, mas fitavam o copo e não os meus.

    

     ... há apenas uma igreja, senhor: a igreja de Deus, e nenhuma outra. Ê o que está no livro de Deus. Um conselho franco, senhor: não aceda aos pecadores que profanaram a palavra de Deus. Renuncie à sua decisão. Pedimos apenas que a unidade seja restaurada. Dê a paz aos seus súditos. Deus deseja estender a si essa graça final...

    

     — Agora devemos esperar que o inimigo se agrupe, senhor — disse eu.

     — Sim — respondeu o Rei. — Três horas no dia e devemos esperar.

    

     ... Ofereço-lhe a salvação. Ofereço-lhe a graça de Deus com risco da minha própria vida...

    

     — A paciência pode vencer guerras — disse eu.

       — Se a paciência travar uma — respondeu o Rei.

    

     .. não negues Deus...

    

     Um silêncio caiu sobre nós. O Rei estava sentado na sua cadeira perante o fogo, a três metros dele, e ainda que deixasse de olhar para ele, ainda que eu não o pudesse ver por causa da chama artificial, as minhas costas podiam sentir a presença dele comigo ali.

     A presença de uma estátua.

     Sem vida, ainda que possessa de vida, uma ironia em concreto ou mármore.

     — Vejo-o nas chamas, ali, James.

     — Quem, Robert.

     — Apenas um rosto. Nunca viste rostos no fogo, James?

     — Num fogo real, sim, mas não num destes.

     — Tudo quanto é preciso é imaginação James.

     — Com imaginação, todos somos reis.

     — A cremação, James.

     — Senhor?

     — O fogo — disse o Rei, e depois riu-se.

     — Senhor? — perguntou ele.

     — Porque tudo é atirado para a Grande Queda, James, tudo é aquecido no processo. Tudo é queimado pelo pequeno sol artificial no fundo da Queda. A descida é retardada até parecer deter-se ou poder ser acelerada até parecer um relâmpago ao olho impossível. Aquecida, tudo é bem desintegrado mesmo antes do beijo desse sol magneticamente contido. Tudo entra nele para a purificação final, para a transferência ao estado virginal. E tudo isso é guiado pelo homem e pelo seu dólar e a sua gravitação, de modo que a reação seja eficiente, barata e dominada — a podridão deve esperar e ser medida no momento próprio.

     Ele olhou para o vinho que tremia na sua mão.

     — Como me sinto estranho — disse ele, num tom de desgosto.

     — Está doente, senhor?

     — Não — disse ele ao fim de algum tempo. — Não porque, como acontece com tudo, sempre se chega a algum ponto no meu espírito imperfeito. Sinto, sinto como se o tempo, James, se tivesse erguido e agora residisse dentro do meu cérebro. A minha cabeça é um fulcro para ele.

       — É a hora, Robert — disse eu. — É tarde. O inimigo. ..

       — O meu reino está a desfazer-se, James! — gritou o Rei, levantando-se da sua cadeira, o vinho em que não tocara a entornar-se no chão. — Sentes o firmamento a rasgar-se? A autoridade? A ordem? Tivemos de usar quinhentos soldados para manter a ordem. Não devíamos precisar de nenhum. Setenta e dois mortos até agora. Há um a mais? Sabes a resposta. As nossas prisões estão cheias de rebeldes. A minha alma — arquejou ele. Caiu para trás, na cadeira: — A minha alma encontrou a sua imperfeição.

     Um servo abriu a porta das câmaras do Rei.

     — Está confundido, Robert — disse eu, agarrando-o pelos ombros. — Não estamos em guerra civil. Homem, todos os rebeldes estão a soldo de Wayne, os nossos serviços de informação confirmam-no, e Wayne não está em parte alguma onde possa ser encontrado. Alguns até dizem que ele partiu para Chicago para chefiar o exercito deles. Senhor, a população não apóia a rebelião; ela tem muito pouco apoio, se é que tem algum. Compreende? Eles estão fartos das suas prostitutas. Ver este tumulto como uma ameaça ao seu trono é simples estupidez.

     — Todos somos estúpidos — disse o Rei.

     — Mas somos homens — observei.

     — O trono é defeituoso, James — disse ele, em voz baixa.

     — Senhor?

     — James — disse ele, afastando as minhas mãos e levantando-se. — Não vês, James? O Rei só está metade aqui. O resto dele está morto.

     — Mas, Robert!

     Ele voltou-se e dirigiu-se para a porta aberta da sala onde os generais se reuniriam. Parou quando chegou à porta e abanou a cabeça.

     — E o príncipe — disse ele. — Também lhe falta a outra metade.

     Depois, quando a a sair, deteve-se e olhou para mim durante longo tempo.

     — Não haverá armas nucleares — disse ele, por fim.

    

O tempo está a chegar a nós! Compreende isso! Observa isso! Saboreia-o, cheira-o, vê-o e come-o! Tempo, tempo, tempo necessário! Estou a responder-lhe. Estou à espera. Eles não sabem onde estou ou o que faço, mas têm os meios de me chamarem através do meu próprio pulso.

     — De qualquer maneira, onda! — disse ela.

     — Aonde? Querida, querida, preciso gritar mais? Podemos ser interrompidos em qualquer momento, o nosso sincronismo pode ser desfeito. Para quê começar?

     — Anda comigo, Sir James.

     — Que eu desejo ir é bem evidente, mas não, querido amor, fiquemos aqui no meio da multidão e cerquemo-nos de ilusão.

     — Que deve ser importante para nós, James? — disse ela em voz baixa. — Que eu sou uma mulher e tu es um homem? Isso sabemos. Portanto estamos perturbados. Deve a importância da vida estar em que combinemos bem, e não na intenção? De que é que fazes o teu amor? É indispensável que todas as coisas terrenas tenham o odor da perfeição em todas as ocasiões? É deus esse pequeno humano em composição?

     Os olhos dela começaram a ganhar umidade enquanto o seu corpo principiava a tremer.

     Olhei para as minhas mãos. Perspectiva, foi a palavra que eu disse.

       — Meu querido Sir James — gritou ela, suavemente. — Anda comigo.

       — Não — respondi eu, com igual suavidade. — Por favor, não esta noite. Todas as outras noites, sim, menos esta noite...

     — Não fiquemos aqui sós, James.

     — Eu...

    

     O leito.

    

       — Não compreendo — disse ela.

     — Nunca to pedi para o fazer — disse eu. — Esta noite não há solução.

     Ela estava silenciosa quando abri os olhos e a fitei. Estava sentada na cama chegando a ela as roupas, calma, o pescoço branco e o cabelo apanhado quando a a cair em torno do pescoço. Os fechos do meu uniforme ainda estavam por ser tocados.

     — Não te sintas perturbada ou magoada ou insultada — disse eu, tentando confortá-la. — ó bela, bela, preciso de um conforto diferente esta noite. Conforme da mesma doçura, mas não, por favor, deste método. Deixa-o para um tempo mais feliz em que possamos viver numa melhor luz. Não chores. Amor da nossa alma esta noite, oh, sim — é o que tenho e prometo mantê-lo digno de ti. Mas por este formidável, firme empenho teu desta noite, eu desejo-te... no entanto a hora é demasiado negra e fria. O corpo está demasiado frio. E a atmosfera ainda tem de ter uma temperatura, salvo a neutralidade.

     — Que foi que te aconteceu, Sir James? — disse ela, o choro na sua voz.

     — A vida... foi a vida que me feriu.

       — Tanto que te fizesse usar esses modos? — Estou doente com vida.

     Ela chorava cuidadosamente.

     — E nenhuma agulha me pode curar — prossegui eu. — A podridão já chegou ao estado avançado em que eu próprio posso sentir o fedor dela; ela mete o seu fedor pelo meu nariz acima. Estou infectado, os meus sonhos são realidades! A podridão vai apanhar-me todo — e eu estou nu, estou indefeso.

       — Oh, não é assim!

       — Nem é preciso o enterro! Ou a Grande Queda! Olha para mim; o gênio a viver uma mentira maldita! E o que é mais, minha querida doutora; a vivê-la propositadamente. E porquê? Aí está o trivial: para promover a infecção, para viver! Agora chora, meu amor, se isso te fizer bem, mas na verdade é tudo hipocrisia, e nada mais alto ou mais além disso.

     — Oh, cala-te, cala-te!

     — Eu conhecia este sistema de cidades subterrâneas antes de eles me despacharem para a minha missão interstelar. Disseram-me que esperavam que elas nunca fossem usadas. Talvez eles soubessem que a guerra acabaria por vir. As cidades destinavam-se a continuar uma maneira de viver que falhara quando o resto fora queimado. Não foi o que... Meu Deus, meu Deus... olhem o que substituiu essa maneira de viver! Um paradoxo de ! ihito e mesquinhez! Uma confusão de ordem! Um resumo da história cuspido por aqui e ali e mal usado! Um progresso dos tempos? Arcebispos tornados em donos de bordéis, os indivíduos pré-programados, as mentiras a substituir as verdades, e tudo isso para quê?

     Houve um movimento no leito em que eu agora estava sentado, a olhar para longe. Senti os seios dela emcostaram-se às minhas costas, o calor do corpo dela e depois a pressão suave dos lábios dela contra o meu pescoço.

       — Eu não pertenço a isto — disse eu, catoiamente.

     — Nós não pertencemos a isto — disse ela. — Casa comigo.

     — Porquê?

     — Porque não?

    

     AMARELO

     AMARELO

     AMARELO

    

     Ergui o meu pulso direito, afastando-o da mão dela, e olhei para o dispositivo metálico ligado à pulseira de couro artificial.

    

     AMARELO

     AMARELO

    

     Depois, suavemente, libertei-me dela, saí do leito e dirigi-me à sala de estar do meu apartamento.

    

     AMARELO

    

     Quando cheguei à porta, e antes de a abrir, ouvi a voz dela de novo.

    

     AMARELO

    

     — Quando? — perguntou ela

    

     — ...para o Alarme Vermelho — dizia Henderson quando entrou no Comando da Defesa, e as portas dos elevadores fecharam-se atrás de mim.

     — Tropas colocadas conforme as ordens — disse uma voz rouca de um altofalante em qualquer parte.

    

     curioso troços       de

     um                 movimentos      estavam    homem passou

     a ser criados,        estimulados                 com           uma

     série de                           livros de             código

     pelos   comandos elétricos                       que continham

     os adequados       planos de contingência       de invasão

     pontos          de     luz     relampejaram

    

     — Estranho — disse eu.

     — O que é que é estranho? — perguntou o general, levantando os olhos de uma mesa eletrônica especial que fora recentemente instalada e em que, fotonicamente, estavam indicados os elementos mecanizados de ambas as partes.

     — Este ambiente — disse eu.

    

     Thummmm

    

     Um homem, um sargento técnico, viu o meu olhar.

     — São as molas de choque, senhor — disse ele. — Temos estado a disparar mísseis antipessoal na superfície, e eles também. Os mísseis explodem no solo e o nosso sistema antionda de choque absorve as vibrações.

       — È um som surdo.

       — Provavelmente não será tão agradável no Piso Um, senhor.

    

       — Alarme Vermelho — disse Henderson.

    

     VERMELHO

     VERMELHO

     VERMELHO

       — Abaixem esse sinal de alarme! — gritei. — Por amor de Deus, vocês até acordam os espíritos do Inferno! O general soltou uma pequena gargalhada.

    

     VERMELHO

     VERMELHO

     VERMELHO

    

       — Senhor Ministro da Defesa — disse Henderson calmamente. — Se quiser observar comigo...

     Debrucei-me sobre a mesa eletrônica.

       — Senhor — começou ele. — Pelo que posso detectar, o inimigo agrupou-se em duas forças.

       — Perfeito para um ataque nuclear — murmurei.

       — Sim — respondeu secamente Henderson. — Pela nossa AES — Análise de Energias de Superfície — calculamos que cada grupo contém cerca de quinhentos veículos de assalto. Um grupo atacará de oeste e, por razões que apresentarei depois, creio que tem por fim criar uma diversão. O grupo dois parece estar a manobrar para atacar de nordeste.

       — É para tentar aniquilar o nosso sistema quatro, de caminho, não é?

       — Precisamente — disse Henderson. — É um bom plano. No entanto, para além da defesa da zona, não empenharei as minhas tropas para dispersar o grupo dois.

       — Porquê?

     Henderson fitou-me nos olhos.

     — O chamariz óbvio é atrair-nos a oeste, destruir os nossos mísseis, esmagar a nossa força principal e atacar o norte enfraquecido. O que pergunto é isto: o computador de defesa poderá indicar duas trajetórias dos mísseis antipessoal deles? Normalmente só mostra uma.

     — De onde vêm eles?

     — Uma do oeste, a outra indica uma largada nas ruínas de IDetroit.

     — Que diz o reconhecmento aéreo?

     — Essa a dificuldade: as unidades aéreas inimigas estão a lutar conosco a cento e sessenta quilômetros a sudeste. Estamos a aguentá-los, mas eles têm a base em Chicago. Temos muito poucos aviões para fazermos um reconhecmento decente sobre Detroit.

     Bati na mesa eletrônica com os nós dos dedos.

     — Quanto à cobertura por satélite, alguém correu conosco da órbita. Os foguetes podem estar a ser lançados de posições móveis dentro da cobertura que as ruínas da cidade oferecem em relação ao Tri-Exp, e podem ser programados para voar baixo, de modo a ficarem ocultos nos reflexos da superfície. Podiem subir a oeste, como se poderia esperar se eles viessem das posições desse lado. Um desperdício de propulsante, sem dúvida, mas pode ser outra tentativa para nos atraírem para oeste.

     — Brilhante — disse eu. — Mas não provado. Que confirmação tem, na verdade?

     — Só que o Tri-Exp indica qualquer espécie de interferência magnética, muito forte, na área de Detroit.

     — Demônio! — disse eu dando um soco na mesa.

     — Sim — disse Henderson. — Não sabia que o Tri-Exp poda ser tão efetivamente interferido.

     — É um dispositivo eletrônico como qualquer outro — disse eu, irritado. — Porque não poderia ser interferido?

     — Ou levado a fazer disparates — murmurou Henderson. — Pode ser muito bem que os estejamos a subestimar, que tenhamos de enfrentar um ataque triplo, ou duplo, ou apenas um.

     — Eles terão de mostrar o que têm na mão — disse eu em voz baixa.

     — Senhor! — gritou Henderson. — Sem dúvida que têm!

     — Como podem eles falsificar as indicações gravitacionais?

       — É verdade que o nosso AES é baseado no registro dos campos gravitacionais do inimigo, mas suponhamos que eles podem usar projeção abrigada, disparada sobre o solo de modo que uma máquina possa passar por cem?

     — Um projetor de gravitação? Por Deus, a despesa de energia exigiria uma máquina enorme e lenta. Uma máquina de dez mil toneladas.

     — Veja a velocidade dos dois grupos de ataque. Cinquenta quilômetros por hora para um, quarenta e seis para o outro. É bastante lento.

     Olhei para Henderson.

     Henderson sorriu-me.

     Quando voltei a olhar para a mesa eletrônica, Henderson desaparecera. Estava no posto de Comando, no Centro do Comando da Defesa, junto do oficial de serviço, e falava através do microfone dele.

    

     — Serão eles leais?

     — Têm de ser, pois se não forem morrerão na superfície sem provisões como todos os pecadores devem morrer. Morrerão das maleitas.

     — E quanto ao Rei?

     Na sombra resultante da iluminação pouco cuidada da principal conduta de ventilação do Piso 14 só os olhos de Wayne podiam ser vistos.

     — O Senhor prometeu que Satanás o chamará esta noite — disse ele.

     — E assim deve ser — disse um bispo.

     — Vocês conhecem os planos — prosseguiu Wayne. — O padre Calbreth será o nosso chefe esta noite, uma vez que o padre Reginald está agora nas mãos do demônio. Esta purificação, devo dizer, é muito necessária.

     — Mesmo assim devo dizer que nós é que estamos a suportar todos os riscos — disse o único padre entre os cinco.

     — Mas é necessário — contrapôs outro bispo.

     — É? — disse o padre. — O Rei ainda não designou um sucessor; estou certo de que se ele morrer esta noite o nosso divino padre será solicitado a assumir o poder; ele terá de aceitar, para nossa salvação. Este sangue adicional... enoja-me, pois me parece desnecessário.

     — Ê a vontade de Deus! — gritou Wayne. — Porque, ainda aquilo que dizes seja verdade, e possa até parecer cheirar a razão, não é o momento disso. A purificação determinada por Deus deve continuar; temos de expulsar Satanás! Temos de queimar aqueles que nos estão a levar à danação com a sua tolerância do rebelde Gates, e precisamos de nos assegurarmos do completo domínio da República, para curarmos os cegos!

     — A isso nos comprometemos! — disse o primeiro bispo.

     — Oferecemos as nossos vidas como Jesus ofereceu a Sua — disse outro, num eco.

     — Amem — cantou o grupo.

    

     ...o capitão. Estava sentado na sua cadeira, sob o vidro combinado com chumbo que constituía a redoma de observação, os motores do seu blindado a zumbirem por baixo dele, o ar a correr pela frente da sua boca coberta de suor, subindo até ao capacete e arrefecendo assim ligeiramente os seus cabelos molhados.

     Corriam em formação, sem que o inimigo os detectasse porque estava a disparar foguetes sobre o perímetro da República. Num ardil, um pequeno grupo de tanques ligeiros corria ao encontro do falso armamento.

    

     Não havia luar.

     Não havia luar.

     Não havia luar, pensou o capitão.

    

     Os sons da explosões da guerra deviam chegar aos seus ouvidos e aos dos companheiros, mas estavam ainda muito longe do seu carro de combate; pareciam muito distantes. Era como qualquer outra missão de treino, correr sobre o solo a cento e trinta quilômetros por hora com todas as luzes apagadas, o rádio no silêncio máximo — o instrutor na plataforma atrás do assento.

     Nenhuns aviões no ar da noite.

     Estavam a lutar em qualquer outra parte.

    

     O Rei.

     O Rei.

     O Rei.

    

     — Não está nos aposentos dele, senhor — disse ele. Olhei para Henderson. Olhei de novo para o soldado.

     Olhei para a secretária e vi que as nossas tropas estavam a mover-se numa formação perfeita e que o contato estava apenas a minutos de distância. Olhei para o vapor que subia do meu café.

     — Outra vez, não! — murmurei. — Onde poderia estar ele?

     — Por certo que não em segurança — disse o soldado.

     — O quê?

     — Há um rumor, senhor — disse o soldado. — Dizem que na noite de anteontem, o Rei teve uma visita do Arcebispo.

     — Wayne? Onde?

     — Nos aposentos do Rei, senhor.

    

     É TUDO, SENHOR? Ê TODO, SENHOR?

    

     — Continuem a busca! — gritei. — Quero que o encontrem! Que demônio, é preciso que o encontrem! Por amor de Deus, encontrem-no! Por amor de Deus!

    

     uma explosão

    

     — Henderson! Abaixe-se!

     A escotilha da saída de emergência foi iluminada por um clarão brilhante e depois caiu no resto do Piso 15 — fora do Comando da Defesa.

     Alguém tocara o alarme.

     As portas do elevador abriram-se e dele saíram a correr doze guardas, dois dos quais foram atingidos pelo que saía pela escotilha aberta e acabaram despedaçados pelo canhão C/M e pelos feixes de laser.

     — Auxiliares! — gritou Henderson. — Mudem para os comandos auxiliares, todos os postos. Alguém que desligue o painel principal!

     Dois homens de serviço foram mortos ao tentarem cumprir a última tarefa.

     — Eles não se atrevem a usar qualquer explosivo — gritei a Henderson. — O que querem é tomar o Comando da Defesa intacto.

     Três homens com vestes de monge correram para nós, a gritar.

    

     Um tenente disparou. Um capitão diisparou. Outras seguranças foram desligadas.

     Um homem, que não se sabia a que lado pertencia, foi apanhado por fogo cruzado. Depois nada ficou senão pedaços dele pelo chão.

     Então eles começiaram a disparar as armas pesadas. Balas explosivas começaram a rebentar nas paredes. Um MFC estourou num tumulto de elétrons.

   — Maldição.

     — Senhor?

     — Apenas um estilhaço — disse eu. — Não muito fundo.

     Explosões lá fora.

     O fogo cessou, na escotilha.

     — Reforços — disse um tenente, espreitando por cima do cadáver de um monge, caído no chão contra a plataforma do Posto de Comando. — Atacam da retaguarda.

     Levantei-me.

     Henderson levantou-se também.

     Não estava a sair muito sangue do ponto onde acabavam as minhas costelas. O pouco que havia ali tinha uma cor escura, pelo que poda ver.

     — Tragam socorros médicos — disse eu. — Vi então que Henderson também estava ferido, no braço direito, e sangrava rapidamente.

     — Senhor? — disse ele.

     — Cuide desse braço — disse eu, pisando um bispo morto.

     — Foi Wayne, senhor — disse o coronel, do outro lado.

     — Já sabia — disse eu, agarrando a minha espádua e espreitando através do espesso fumo que os ventiladores ainda tinham de aspirar.

     — Apanhámo-lo. Está ferido mas vivo. Quer falar-lhe?

     — Não — disse-lhe eu. — Atirem-no para uma cela militar. Sei o que ele vai dizer.

     — Senhor?

     — Que o Rei morreu. Ou que não tardará a morrer. A menos que...

     — A menos que o quê, senhor!

     — A menos que não deixemos que essa morte aconteça.

     O coronel ficou silencioso.

     — Não está fatigado de tudo isto? Destes assassínios insensatos? Quem manda aqui? E que importa isso?

     — Senhor!

     — Henderson?

     Voltei-me e vi-o passar através da escotilha estourada. Vi-o agarrar o braço em que o sangue se coagulava sobre os dedos.

     — Localizamos o Rei, senhor!

     — O Rei? Onde?

     — Porta de Ataque A, Carro de Batalha cinco-setenta-dois pesado...

     Voltei para trás. Atravessei a escotilha em direção ao elevador.

     Corri.

    

Não foi uma batalha.

Não foi verdadeiramente uma orgia.   Uma grande orgia.

Havia carros de combate e transportadores de mísseis, alguns homens sem carros com trajes anti-radiação e armamento portátil. Eram as forças de series de tecnologias que jogavam consigo próprias.

     Eram inimigos admiráveis, umas para as outras. O aço enchia o ar da madrugada, a ascensão do sol brilhava na sua frescura e as chamas desafiavam esse sol.

     E outras coisas aconteciam, sem importância. Homens voavam, pelo menos através de uma pequena distância, empurrados por detonações, com os seus corpos unidos mais pela força do seu equipamento que pela resistência da sua carne. Corri.

     Num traje anti-radiação, e depois num transportador de superfície, desarmado, a uma velocidade de mais de setenta quilômetros por hora — um pequeno veículo de dois lugares cujo raio de ação não ia além de trezentos quilômetros. Não dispunha de reator nuclear — usava baterias.

     Falta de óleo.

     Quando cheguei ao que parecia ser o campo de batalha, pousei o veículo. Isto é: fi-lo descer trinta centímetros até ao solo. Saí e corri para me abrigar. Mas o inimigo estava agora em retirada e os destroços que nos rodeavam começavam a tornar-se coisas vulgares. Como um sonho esquecido.

    

     sonho esquecido

     sonho esquecido

    

     O Rei repousava contra o flanco de um tanque pesado que sofrera um impacto direto de um míssil. O tanque tinha o número 572, e o Rei não tinha capacete, porque o seu traje fora aberto de alto a baixo.

     Metade do Rei estava dentro do traje.

     Porque, ainda que o seu rosto ainda estivesse intacto, e a maior parte do seu corpo estivesse lá, o seu lado direito quase desaparecera — não havia braço nem perna, mas havia muito sangue derramado.

     Como um brinquedo, ele estava morto.

     Havia perto um sargento do exército que ainda estava bem vivo, ainda que tivesse despido o seu traje para ligar devidamente a sua ferida com gaze e a tratar com medicamentos — isto era: o coto da sua perna esquerda. Uma vez que o traje dele já não era estanque ao ar, não fazia grande diferença que ele o tivesse vestido ou não.

     Debrucei-me sobre ele.

     Estava a segurar um torniquete sobre o coto e olhava para qualquer coisa que ficava para além de mim.

     Um pequeno altofalante de cinco centímetros foi ativado no peito do meu traje.

     — Olá — disse eu.

     — Olá.

     — Que aconteceu?

     — Fomos atingidos.

     — Estavas no mesmo tanque que o Rei?

     — Sim.

     — Que foi que lhe aconteceu?

     — Ele salvou-me. Tirou-me de lá de dentro.

     — Mas ele está despedaçado.

     — Não. Foi atingido depois de o carro ter explodido. Deve compreender: quando o carro foi atingido a primeira vez, eu desmaiei no posto da artilharia. Ele cortou os meus cintos e tirou-me para fora. Colocou-me as ligaduras dele. Tínhamos chegado aqui quando começaram a usar as munições antipessoal; a blindagem do tanque protegeu-nos de algum modo. Ele disse-me para apertar as ligaduras. Depois ele subiu ao tanque para ver se qualquer desses filhos da mãe ainda sobrevivia, E foi cortado por um feixe de laser pesado. Eu vi tudo.

     Calmamente, carreguei o botão de apoio medico do rádio do meu traje.

     — Se me recolherem depressa, antes que eu respire demasiado esta coisa, talvez me safe, não? — perguntou o soldado.

     — Sem dúvida — respondi. — O Rei disse mais alguma bolsa?

    

     Mantém o meu povo vivo. O Deus, mantém o meu povo vivo. Sei que somos ignorantes como o Inferno, estupidos como a mais baixa forma de vida e incapazes de sabedoria, mas, Deus, mantém o meu povo vivo e livre...

    

     Aquele particular voltar de olhos para mim...

     — Paciência — disse eu. — O Rei disse-me que tudo quanto precisávamos era termos paciência, uns pelos outros. Quando isto se juntar ao amor que os homens possuem, uns pelos outros, será o Segredo dos Céus.

    

     A Terra.

     A Terra.

    

     Uma mão tocou na minha perna. Olhei para baixo e vi o sargento a tentar levantar-se para me dar qualquer coisa suspensa em uma corrente de prata.

     — Pegue isso, senhor — disse ele. — Talvez possa fazer melhor uso dessa coisa que o Rei me deu.

 

                                                                                Guy Snider  

 

                      

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