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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Aquela Força Medonha 1 / C. S. Lewis
Aquela Força Medonha 1 / C. S. Lewis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Aquela Força Medonha 1

 

— Minha jovem — disse Miss Ironwood —, não entende totalmente a seriedade deste assunto. As coisas que viu referem-se a alguma coisa, as quais, comparadas com felicidade, ou mesmo a vida, da senhora e de mim, não têm importância alguma. Tenho de lhe pedir que enfrente a situação. Não pode ver-se livre do seu dom. Pode tentar suprimi-lo, mas falhará e ficará tremendamente assustada. Por outro lado, pode pô-lo à nossa disposição. Se o fizer, ficará muito menos assustada, a longo prazo, e estará ajudando a salvar a raça humana de um enorme desastre. Ou, em terceira hipótese, pode contar a outra pessoa qualquer o que se passa. Se o fizer, aviso-a de que quase com certeza cairá nas mãos de outras pessoas que estão pelo menos tão ansiosas como nós de utilizar a sua faculdade e que não darão mais importância à sua vida e felicidade do que às de uma mosca.

 

Chamei isto de conto de fadas na esperança de que nin­guém, que não goste de fantasia, possa ser induzido pelos dois pri­meiros capítulos a continuar lendo, e depois se queixe por se sentir desapontamento. Se perguntarem por que é que — tendo a inten­ção de escrever sobre mágicos, diabos, animais de pantomima e anjos planetários, eu, não obstante, inicio com cenas e pes­soas tão comuns, respondo que sigo o esquema tradicional do conto de fadas. Nem sempre notamos o seu método, porque as cabanas, castelos, entalhadores e reizinhos, com os quais abre um conto de fadas tornaram-se para nós tão remotos como as bruxas e ogros que nele vêm a seguir. Mas, para os homens que primei­ro fizeram as histórias e com elas se divertiram, não eram nada remotos. Eram, na verdade, mais realistas e comuns do que a Faculdade de Bracton é para mim; pois muitos camponeses tinham, efetivamente, tido madrastas cruéis, enquanto eu nun­ca encontrei, em universidade alguma, uma Faculdade como Bracton. Esta é uma «história fictícia» sobre artes e obras do demo, embora contenha um «fundo» sério que tentei traçar no meu Abolition of Man. Na história, o bordo exterior dessa obra do Diabo tinha de se mostrar tocando a vida de uma profissão comum e respeitável. Escolhi a minha própria profissão, não, é claro, por eu pensar que os professores das faculdades sejam mais aber­tos a ser corrompidos do que outra pessoa qualquer, mas por ser a minha própria profissão a única que conheço suficientemente bem para escrever sobre ela. Imaginou-se uma universidade mui­to pequena porque isso traz certas vantagens para a ficção. Edges­tow não tem qualquer semelhança, salvo pela sua pequenez, com Durham, uma universidade com a qual a única ligação que tive foi inteiramente agradável.

Creio que uma das idéias centrais deste conto me veio à cabe­ça a partir de conversas que tive com um colega cientista, algum tempo antes de encontrar uma sugestão bastante similar nas obras do Sr. Olaf Stapledon. Se estou enganado nisto, o Sr. Stapledon é tão rico em inventiva que bem pode permitir-se emprestar, e eu admiro tanto a sua inventiva (embora não a sua filosofia) que não senti­rei vergonha alguma em pedir emprestado.

Aqueles que gostariam de aprender mais a respeito de Numenor e o Verdadeiro Oeste têm (que pena!) de esperar pela publi­cação do muito que ainda existe apenas no manuscrito do meu amigo, Prof. J. R. R. Tolkien. A época desta história é vagamente «depois da guerra». Conclui a Trilogia, da qual Além do Pla­neta Silencioso era a primeira parte, e Perelandra a segunda, mas pode ser lida por si só.

C. S. Lewis

 

 

VENDA DE PROPRIEDADES DA FACULDADE

«O matrimônio foi instituído, em terceiro lugar», disse Jane Studdock para consigo própria, «para a associação, auxílio e conforto mútuos que um deve receber do outro. » Não ia à igreja desde os seus tempos de escola, até que lá fora, a seis meses, para se casar, e essas palavras da cerimônia tinham ficado na sua mente.

Através da porta aberta podia ver a diminuta cozinha do apar­tamento e ouvir o bater forte e pouco delicado do relógio. Tinha acabado de sair da cozinha e sabia como estava arrumada. As coisas do café da manhã estavam lavadas, as toalhas do chá penduradas por cima do fogão e o chão passado a pano. As camas estavam feitas e os quartos arrumados. Tinha acabado de regres­sar de fazer as únicas compras de que precisava para aquele dia, e ainda faltava um minuto para as onze. Exceto preparar o seu próprio almoço e o chá, não havia nada que tivesse de ser feito até às 6 horas, isso supondo que Mark viesse realmente jantar. Mas hoje havia uma reunião da Faculdade. Quase com certeza ligaria por volta da hora do chá para dizer que a reunião estava demorando mais do que previra e que teria de jantar na Faculdade. As horas diante dela estavam tão vazias como o apartamento. O sol brilhava e o relógio fazia o seu tique-taque.

«Associação mútua, ajuda e conforto», disse Jane com amar­gura.

Na realidade o casamento tinha provado ser a porta de saída de um mundo de trabalho e camaradagem, riso e incontáveis coisas que fazer, para qualquer coisa como prisão na solitária. Durante alguns anos antes do casamento nunca vira tão pouco o Mark como nos últimos seis meses. Mesmo quando estava em casa, ele mal falava sequer. Estava sempre com sono ou inte­lectualmente preocupado. Enquanto tinham sido amigos, e mais tarde quando eram amantes, a própria vida parecia curta demais para tudo o que tinham a dizer um ao outro! Mas agora... por que é que tinha casado com ela? Ainda a amaria? Se sim, «amar alguém» teria que significar coisas totalmente diferentes para os homens e para as mulheres. Seria a crua verdade que todas as con­versas infindáveis que lhe tinham parecido, antes de casa­dos, a autêntica expressão do próprio amor, nunca tivessem sido para ele mais do que um preliminar?

«Aqui estou eu começando a desperdiçar outra manhã, na Lua», disse Jane para si mesma, vivamente, «tenho que fazer um trabalho qualquer. »

Por trabalho ela queria dizer a sua tese de doutorado sobre Donne. Tinha tido sempre a intenção de continuar a sua própria carreira de professora depois de casar: essa era uma das razões porque não iriam ter filhos, de qualquer maneira, ainda por muito tempo. Jane não se achava uma pensadora muito original e o seu plano fora dar grande ênfase à «triunfante justificação do corpo», de Donne. Acreditava ainda que, se tirasse para fora todos os seus livros de notas e publicações e se sentasse seriamente para fazer o traba­lho, podia forçar-se a recuperar o entusiasmo perdido pelo assun­to. Mas antes de fazê-lo, talvez para adiar o momento de começar, virou um jornal que estava em cima da mesa e passou os olhos pela imagem na última página.

No momento em que viu a imagem, lembrou-se do sonho. Lembrou-se não só do sonho como do tempo sem fim que passa­ra, depois de se ter esgueirado da cama, sentada à espera dos pri­meiros sinais da manhã, receosa de acender a luz, com medo de que Mark acordasse e protestasse, mas sentindo-se ofendida pelo som da sua respiração regular. Ele dormia de forma excelente. Uma única coisa parecia mantê-lo acordado depois de ir para a cama, e mesmo isso não o mantinha acordado muito tempo.

O terror deste sonho, como o da maior parte dos sonhos, eva­pora-se quando contado, mas deve ser registrado por causa do que veio a seguir.

Começara por sonhar simplesmente com um rosto. Era um rosto com aparência de estrangeiro, com barbas e bastante ama­relo, com o nariz adunco. A expressão dele era aterradora porque estava aterrado. A boca caía-lhe aberta e os olhos eram fixos, como já vira os olhos de outros homens ficarem fixos por um segundo ou dois, quando tinha ocorrido um súbito choque. Mas aquele rosto parecia estar num choque que durava horas. Depois, gradualmente, teve consciência de mais. O rosto pertencia a um homem que estava sentado, curvado, num canto de um pequeno quarto quadrado, de paredes caiadas, «à espera», pensou ela, «de que aqueles que o tinham em seu poder chegassem e lhe fizessem alguma coisa horrível». Finalmente, a porta abriu-se e um homem bem apessoado, com uma barba cinzen­ta pontiaguda, entrou. O preso pareceu reconhecer nele um velho conhecido, e sentaram-se os dois juntos e começaram a conversar. Em todos os sonhos que Jane tivera até aí, a pessoa ou compreen­dia aquilo que os personagens dos sonhos estavam dizendo ou então não o ouvia. Mas neste sonho, e isso ajudava a dar-lhe o seu extraordinário realismo, a conversa era em francês e Jane perce­bia pedaços dela, mas não tudo, tal como teria fei­to na vida real. O visitante estava dizendo ao preso alguma coisa que aparentemente pensava que ele consideraria boa notícia. E o preso no início ergueu os olhos tendo neles um fulgor de es­perança e disse: «Tiens... ah... ça marche»; mas então vacilou e mudou de idéia. O visitante continuou a apresentar as suas ra­zões numa voz baixa e fluente. Era um homem bem apessoado, à sua maneira bastante fria, mas usava umas lentes pincenez e estas re­fletiam a luz tornando os seus olhos invisíveis. Isto, combinado com a perfeição pouco natural dos dentes, causou a Jane, de cer­ta, forma, uma impressão desagradável. E esta era aumentada pela crescente angústia, e finalmente o terror, do preso. Não conseguia distinguir o que o visitante estava lhe propondo, mas percebeu que o preso fora sentenciado à morte. O que quer que o visitante estava lhe oferecendo era algo que o aterrorizava ainda mais do que a morte. Neste ponto, o sonho abandonou toda a pre­tensão de realismo e tornou-se um pesadelo comum. O visitan­te, ajustando as lentes e ainda com o seu sorriso frio, agarrou a cabeça do preso com as duas mãos. Torceu-a bruscamente, tal e qual como Jane no Verão anterior vira torcer bruscamente o capa­cete, que estava colocado por cima da cabeça de um mergulhador. O visitante desenroscou a cabeça do preso e retirou-a. Depois tudo se tornou confuso. A cabeça era ainda o centro do sonho, mas era agora uma cabeça completamente diferente, uma cabeça com uma barba branca cerrada e toda coberta de terra. Pertencia a um velho que algumas pessoas estavam desenterrando numa espécie de cemitério inglês antigo, tipo druida, com um comprido manto. Jane, no início, não se importou muito com is­to porque pensou que fosse um cadáver. Então, subitamente, observou que aquela coisa antiga estava voltando à vida. «Cuida­do!», gritou no sonho. «Ele está vivo. Parem! Parem! O estão acor­dando.» Mas elas não se importaram. O homem velho, que estava enterrado, sentou-se e começou a falar qualquer coisa que soa­va vagamente como espanhol. E isto, por qualquer razão, aterro­rizou Jane de tal maneira que ela despertou.

Este foi o sonho — nem pior, e também nem melhor, do que muitos outros pesadelos. Mas não era a mera recordação de um pesadelo que fez a sala de estar do apartamento flutuar diante dos olhos de Jane e deu motivo a que ela se sentasse, com receio de cair. A aflição estava algures. Ali, na página de trás do jornal es­tava a cabeça que vira no pesadelo: a primeira cabeça (se é que tinha havido duas), a cabeça do preso. Com extrema relutância pegou no jornal, «execução de alcasan» era o título, e por baixo dele «cientista barba-azul vai para a guilhotina». Lembrava-se vagamente de ter seguido o caso. Alcasan era um distinto radiologista num país vizinho, um árabe, por ascendência, di­ziam, que tinha cortado uma carreira, de outra forma brilhante, ao envenenar a mulher. Era essa, portanto, a origem do seu sonho. Devia ter olhado para a fotografia dele no jornal, antes de ir para a cama, o homem tinha certamente um rosto desagradável. Mas não: isso não podia ser. Era o jornal daquela manhã. Mas, é cla­ro, tinha de haver alguma fotografia anterior que ela vira e esque­cera, provavelmente semanas atrás, quando o julgamento começa­ra. Era tolice ter deixado a coisa abalá-la tanto. E agora vamos a Donne. Vejamos, onde é que nós íamos? A passagem ambígua no fim da Alquimia do Amor,

 

Não esperes por inteligência nas mulheres; no seu melhor,

Doçura e graça são as possibilidades da mamãe.

 

«Não esperes por inteligência nas mulheres. » «Algum homem realmente quer ver a inteligência nas mulhe­res?»

Mas essa não era a questão.

«Tenho de recuperar o meu poder de concentração», disse Jane, e depois «havia alguma fotografia anterior de Alcasan? Su­ponho... »

Cinco minutos mais tarde, pôs de lado todos os seus livros, foi ao espelho, pôs o chapéu e saiu. Não tinha bem certeza para onde ia. A qualquer lugar, só para sair fora daquela sala, daquele aparta­mento, de toda aquela casa.

 

Enquanto isso, Mark ia descendo para a Faculdade de Bracton e pensando num assunto muito diferente. Não notou totalmente a beleza matutina da pequena rua que o levava, da encosta arenosa do subúrbio onde ele e Jane viviam, por ali abaixo, até à parte central e acadêmica de Edgestow.

Embora eu seja de Oxford por criação e goste muito de Cam­bridge, penso que Edgestow é mais bela do que qualquer das outras terras. Uma das razões é por ser tão pequena. Nenhum fabricante de carros, ou de salsichas ou de marmelada tinha ainda vindo industrializar a cidade de província que é sede da Univer­sidade, e a própria Universidade era diminuta. Além de Bracton e da Faculdade para mulheres, que vem do século XIX e fica para lá da ferrovia, existem apenas duas Faculdades: Nor­thumberland, que fica abaixo de Bracton, no rio Windy, e Duke’s, em frente da Abadia. Bracton não aceita senão licenciados. Foi fundada em 1300 para a manutenção de dez homens de saber cujos deveres eram rezar pela alma de Henry de Bracton e estu­dar as leis da Inglaterra. O número de membros tinha sido gra­dualmente aumentado para quarenta, dos quais apenas seis (além do Prof. de Bacon) estudam agora leis e dos quais talvez nenhum reze pela alma de Bracton. Mark Studdock era, ele pró­prio, sociólogo e tinha sido eleito para o corpo docente cinco anos antes. Começava a firmar os pés. Se tivesse sentido alguma dú­vida nesse ponto (coisa que não tinha), esta teria sido resolvida quando deu por si encontrando Curry bem à porta do posto dos Correios e vendo como Curry achou natural que fossem juntos até à Faculdade e discutissem a agenda da reunião. Curry era o subdi­retor de Bracton.

— Sim — disse Curry —, vai levar um tempo do diabo. Prova­velmente continuará depois do jantar. Nós iremos ter todos os obs­trucionistas ganhando tempo, tanto quanto puderem. Mas, feliz­mente, isso é o pior que podem fazer.

Ninguém imaginaria nunca, pelo tom da resposta de Studdock, que prazer intenso ele sentia por Curry ter empregado o pronome «nós». Até bem pouco tempo, estivera de fora, observando as ma­nobras do que então chamava «Curry e o seu bando», com admi­ração e com pouca compreensão, e fazendo, nas reuniões da Fa­culdade, curtas e nervosas intervenções que nunca influenciavam o curso dos acontecimentos. Agora estava dentro e «Curry e o seu bando» passara a ser «nós» ou o «Elemento Progressista da Faculdade». Tudo tinha acontecido de repente e ainda sentia na boca o sabor doce.

— Acha que vai passar, então? — disse Studdock.

— Com certeza — disse Curry. — Temos o diretor, o tesoureiro e todo o pessoal químico e bioquímico, para começar. Falei com o Pelham e com Ted e estão firmes. Fiz Sancho acreditar que enten­dia a posição e que era a favor. Bill, o Nevão, vai fazer provavel­mente alguma coisa bastante devastadora mas é natural que alinhe conosco se formos a votação. Além disso, ainda não lhe contei, Dick vai estar lá. Chegou na hora do jantar ontem à noite e meteu-se logo ao trabalho.

A mente de Studdock saltou de lá para cá, à procura de al­guma forma segura de ocultar o fato de que não sabia quem era Dick. De repente lembrou-se de um colega muito obscuro cujo nome de batismo era Richard.

— Telford? — disse Studdock em voz espantada. Sabia muito bem que Telford não podia ser o Dick a que Curry se referia e por isso pôs um tom irônico e levemente caprichoso na sua pergunta.

— Santo Deus! Telford!! — disse Curry com uma risada. — Não. Eu queria dizer Lord Feverstone, Dick Devine como era en­tão.

— Estava um pouco perplexo com a idéia de Telford. — disse Studdock, juntando-se ao riso. — Fico satisfeito que Feverstone venha. Nunca o encontrei, sabe.

— Oh, mas tem de o fazer — disse Curry. — Olhe, venha jan­tar no meu aposento hoje à noite. Eu o convidei.

— Gostaria muito — disse Studdock, com muita sinceridade. E depois, após uma pausa. — A propósito, suponho que a própria posição de Feverstone seja absolutamente segura?

— O que quer dizer? — perguntou Curry.

— Bem, há certas conversas, se bem se lembra, quanto à pos­sibilidade de alguém que está há tanto tempo ausente do seu lugar de membro do corpo docente.

— Oh, refere-se a Glossop e todos esses trepadores. Daí não vai sair nada. Não lhe parece que é só palavreado?

— Aqui, entre nós, sim. Mas confesso que, se tivesse de expli­car em público exatamente porque é que um homem, que está quase sempre em Londres, continuaria a ser membro do corpo docente de Bracton, não acharia isso tão fácil. As razões au­tênticas são do tipo a que Watson chamaria imponderáveis.

— Não estou de acordo. Não poria a mínima objeção a expli­car em público as razões reais. Não é importante para uma esco­la como esta manter ligações influentes com o mundo exterior? Não é nada impossível que Dick venha a estar no próximo gover­no. Mesmo agora, Dick tem sido em Londres bem mais útil à fa­culdade do que Glossop e meia dúzia de outros do mesmo tipo têm sido, estando aqui toda a vida.

— Sim. É claro que aí é que está a razão. Todavia, seria um pouco difícil apresentá-la dessa forma numa reunião da Fa­culdade.

— Há uma coisa — disse Curry num tom ligeiramente menos íntimo — que talvez devesse saber a respeito de Dick.

— Qual é?

— Foi ele quem o fez membro do corpo docente.

Mark ficou calado. Não gostava de coisas que lhe recordassem de um tempo em que não estava apenas fora do Elemento Progressis­ta mas até fora da Faculdade. E também, nem sempre gostava de Curry. O seu prazer em estar com ele não era assim tão grande.

— Sim — disse Curry. — Denniston era o seu rival principal. Aqui entre nós, muita gente gostava dos trabalhos dele mais do que dos seus. Foi Dick quem insistiu, do princípio ao fim, que você era o tipo de homem que realmente queríamos. Foi à Faculdade de Duke e trouxe de lá tudo o que havia a seu respei­to. Tomou a posição de que o ponto a considerar é o tipo de homem de que precisamos, e as qualificações no papel que vão para o dia­bo. E tenho de dizer que foi confirmado que ele tinha razão.

— Muito amável da sua parte — disse Studdock, com uma pequena vênia trocista. Estava surpreendido com o caminho que a conversa tinha tomado. Era uma velha norma em Bracton, como presumivelmente na maior parte das faculdades, que nunca se mencionavam na presença do próprio as circunstâncias da sua seleção, e Studdock não tinha percebido, até essa altura, que esta era também uma das tradições que o Elemento Progressista esta­va preparado para atirar fora. Também nunca lhe ocorrera que a sua própria seleção tivesse dependido de outra coisa a não ser da excelência do seu trabalho no exame para professor: e ainda me­nos que tivesse sido uma coisa apertada. Estava já tão acostu­mado à sua posição atual que esta idéia deu-lhe a mesma curio­sa sensação que um homem tem ao descobrir que o pai esteve quase para se casar com uma mulher diferente.

— Sim — continuou Curry, prosseguindo numa outra linha de pensamento. — Vê-se agora que Denniston nunca teria servido. Absolutamente nunca. Era um homem brilhante naquela altura, é cla­ro, mas parece ter saído completamente dos trilhos desde então, com todo esse seu distributivismo e não sei que mais. Me disseram é bem capaz dele acabar num mosteiro.

— Não é nenhum tolo, mesmo assim — disse Studdock.

— Estou contente por ir se encontrar com Dick — disse Curry. — Não temos tempo agora, mas há uma coisa a respeito dele que eu queria discutir consigo.

Studdock olhou para ele interrogativamente.

— James e eu e um ou dois outros — disse Curry com voz mais baixa — andamos pensando que ele devia ser o novo diretor. Mas aqui estamos.

— Ainda não são doze — disse Studdock. — Que tal se entrás­semos no Bristol para uma bebida?

E entraram no Bristol, como sugerido. Não teria sido fácil preservar a atmosfera na qual operava o Elemento Progressista sem uma boa quantidade destas pequenas gentilezas. Aquilo pe­sava mais em Studdock do que em Curry, que era solteiro e tinha o salário de subdiretor. Mas o Bristol era um lugar muito agradável. Studdock comprou um whisky duplo para o seu com­panheiro e meio pint de cerveja para si próprio.

 

Na única vez em que fui recebido em Bracton, persuadi o meu an­fitrião a deixar-me entrar no parque e ficar lá sozinho durante uma hora. Ele pediu desculpa por fechar a porta, comigo lá dentro.

Muito pouca gente era autorizada a entrar no Parque de Brac­ton. O portão era de Inigo Jones e constituía a única entrada: um muro alto circundava o parque, que tinha cerca de um quarto de milha de largura e uma milha de leste a oeste. Para quem vinha da rua e passava através da Faculdade para chegar lá, a sensação de penetrar num recesso muito íntimo era muito forte. Primeiro atravessava-se o quadrilátero de Newton, que é seco e com o chão de cascalho; edifícios georgianos, ornamentados mas belos, olham-nos lá de cima. A seguir tem de se entrar numa passagem fres­ca e parecida com um túnel, quase escura ao meio do dia, a não ser que estejam abertas quer a porta para o salão da entrada, do lado direito, quer a meia porta da despensa, do lado esquerdo, dando um vislumbre da luz do dia a bater nos painéis, e uma baforada de odor de pão fresco. Ao emergir deste túnel, encontramo-nos na faculdade medieval: no claustro do quadrilátero muito mais pequeno, chamado República. A relva aqui muito verde, depois da aridez de Newton, e a própria pedra dos pilares que nele se erguem, dá a impressão de ser macia e ter vida. A capela não fica muito longe: o ruído rouco e pesado do maquinismo de um velho e grande relógio chega até nós, vindo de um ponto qualquer lá em cima. Vai-se ao longo do claustro, passando lápides e urnas e bustos que homenageiam mortos de Bracton e depois descem-se uns degraus baixos e chega-se à plena luz do dia do quadrilátero cha­mado Lady Alice. Os edifícios à esquerda e à direita são obras do século xvii: humildes, de características quase domésticas, com janelas de água-furtada, musgosos e de telhas cinzentas. Estava-se num doce mundo protestante. Dávamos por nós pensando, tal­vez, em Bunyan ou em Lives, de Walton. No quarto lado de Lady Alice não havia nenhum edifício na frente, apenas uma fila de olmos e um muro: e ali, pela primeira vez, tinha-se cons­ciência do som da água corrente e do arrulhar dos pombos no bos­que. A rua, nesta altura, está já tão longe que não há outros ruí­dos. No muro há uma porta. Leva-nos a uma galeria coberta, furada por janelas estreitas em ambos os lados. Olhando através delas, descobrimos que estamos atravessando uma ponte e que o Wynd, castanho-escuro e levemente agitado, corre debaixo de nós. Nesta altura estamos muito perto da nossa meta. Uma cancela no extremo oposto da ponte levava-nos para o campo relvado do jogo de bolas dos membros da Faculdade, e do lado de lá via-se a pare­de alta do parque, e, através do portão de Inigo Jones, tinha-se um vislumbre de verde batido pelo sol e de sombras profundas.

Suponho que o simples fato de ser cercado por muros deu ao parque parte da sua qualidade peculiar, pois quando uma coisa é fechada, o espírito não a encara voluntariamente como pública. À medida que avançava sobre o terreno silencioso, tinha a sensação de ser recebido.

As árvores estavam afastadas de forma a que, à distância, se via a folhagem sem interrupções, mas o local em que a pessoa estava parecia sempre ser uma clareira: cercada por um mundo de sombras, a pessoa caminhava sob um sol suave. Exceto pelos carneiros, cujo pastar conservava a erva assim rente e que por vezes erguiam os focinhos compridos e tolos para me fitarem, eu estava completamente só; e parecia-me mais a solidão de um quarto muito grande numa casa deserta do que qualquer solidão ao ar livre. Lembro-me de pensar: «Este é o tipo de lugar que, em criança, se teria bastante medo, ou então se gostaria muito. » Um momento mais tarde, pensei: «Mas quando sozinhos, realmente sozinhos, todos nós somos crianças, ou ninguém é?» A juventude e a idade tocam apenas a superfície das nossas vidas.

Meia milha é um passeio rápido. Contudo, pareceu muito tem­po até eu chegar ao centro do parque. Sabia que era o centro, pois lá estava a coisa que eu tinha vindo ver principalmente. Era um poço: um poço com degraus que desciam até ele, e com um antigo pavimento em volta. Estava agora muito imperfeito. Não pus os pés em cima, mas estendi-me na relva e toquei o com os dedos. Pois aquele era o coração de Bracton ou Bragdon Wood: disto saíram as lendas e disto dependera originalmente, sus­peito eu, a própria existência da Faculdade. Os arqueólogos esta­vam de acordo que a alvenaria era trabalho do período final bri­tânico-romano, feito nas vésperas da invasão anglo-saxônica. Como é que Bragdon, bosque, se relacionava com Bracton, o advo­gado, era um mistério, mas imagino que a família Bracton se tenha valido de uma semelhança acidental entre os nomes para crer, ou fazer crer, que tinha alguma coisa a ver com o caso. Certamente, se tudo o que se dizia fosse verdade, ou mesmo só metade, o bosque era mais velho do que os Bractons. Calculo que ninguém daria mui­ta importância a Balachton de Strabo, embora tenha levado um diretor da Faculdade, no século XVI, a dizer: «Não sabemos, nem pelos mais antigos relatos, de qualquer Grã-Bretanha sem Brag­don. » Mas a canção medieval faz-nos recuar ao século xiv:

Em Bragdon acaba brilhante este dia

De longe, até aqui veio Merlin

E aqui ficou jazendo

Isto é prova bastante de que o poço com o pavimento britâni­co-romano era já o «Poço de Merlin», embora não apareça até ao reinado da rainha Isabel, quando o bom diretor Shovel cercou o bosque por um muro «para retirar todas as superstições profanas e pagãs e para impedir todo o tipo de vigílias vulgares, jogos, danças, mascaradas, e cozimento de pão de Morgan, até lá pra­ticadas junto da fonte chamada vaidosamente o Poço de Merlin, e que têm de ser renegadas e abominadas como uma caldeirada de papismo, selvageria, lascívia e sombria loucura». Não que a Faculdade tenha, com esta ação, renunciado ao seu próprio inte­resse no lugar. O velho Dr. Shovel, que viveu quase até aos cem anos, mal tinha esfriado na sepultura quando um dos maio­res generais de Cromwell, pensando ser sua obrigação destruir «os bosques e os lugares altos», enviou algumas tropas com poder para impressionar a gente da região para aquele piedoso traba­lho. O esquema no fim deu em nada; mas tinha havido uma al­tercação entre a Faculdade e as tropas, no centro de Bragdon, e o fabulosamente sábio e santo Richard Crowe fora morto por uma bala de mosquete nos próprios degraus do poço. Quem acusasse Crowe de papismo ou selvageria teria de ser um homem corajoso, contudo a história é que as suas últimas palavras tinham sido: «Vejam, Senhores. Se Merlin, que era filho do Diabo, era um ho­mem do rei, verdadeiro como qualquer que jamais tenha comido pão, não é uma vergonha que vós, que não sois senão filhos de puta, tenhais de ser rebeldes e regicidas?» E sempre, através de to­das as mudanças, cada diretor de Bracton, no dia da sua eleição, tem bebido um trago cerimonial da água do Poço de Merlin, pela grande taça que, tanto pela sua antiguidade como pela sua bele­za, era o maior dos tesouros de Bracton.

Eu pensava em tudo isto, estendido ao lado do Poço de Merlin, ao lado do poço que, com toda a certeza, deve datar do tempo de Mer­lin, se alguma vez existiu um Merlin autêntico; estendido onde estivera estendido Sir Kenelm Digby durante toda uma noite de verão e visto uma certa aparição estranha; onde estivera estendi­do o poeta Collins e onde Jorge III chorara; onde o brilhante e muito querido Nathaniel Fox compusera o seu famoso poema, três semanas antes de ser morto na França. O ar estava tão sossega­do e os tufos de folhagem tão densos por cima de mim, que ador­meci. Fui acordado pelo meu amigo a chamar–me lá muito ao longe.

O assunto mais controverso presente à reunião da Faculdade era a questão da venda do Parque de Bragdon. O comprador era o Instituto Nacional de Experiências Coordenadas (NICE). Queriam um local para o edifício que havia de alojar adequada­mente esta notável organização. O NICE era um dos primeiros frutos dessa fusão construtiva entre o Estado e o Laboratório, sobre a qual tantas pessoas ponderadas baseavam as suas esperanças de um mundo melhor. Era para ficar livre de quase todas as cansa­tivas limitações — «formalidades» era o termo que os seus apoiadores usavam — que têm até aqui entravado a pesquisa neste país. Ficava também livre das peias da economia, pois, como se ar­gumentava, uma nação que pode gastar tantos milhões por dia numa guerra, pode com certeza permitir-se alguns milhões por mês em pesquisa produtiva em tempo de paz. O edifício para isso proposto era de molde a constituir um acrescento verdadeiramen­te notável ao recorte de Nova Iorque no céu, o pessoal era para ser enorme e os salários principescos. Pressão persistente e uma diplomacia infindável, por parte do senado universitário de Edges­tow, tinham atraído o novo Instituto para longe de Oxford, de Cambridge e de Londres. Tinha pensado em todas estas, sucessi­vamente, como cenas possíveis dos seus labores. Por vezes o ele­mento Progressista, em Edgestow, quase tinha desanimado. Mas o sucesso estava agora praticamente certo. Se o NICE pudesse obter a terra necessária, viria para Edgestow. E uma vez que vies­se, então, como todos sentiam, as coisas começariam finalmente a acontecer. Curry tinha até expressado a dúvida quanto a Oxford e Cambridge, eventualmente, poderem mesmo sobreviver como grandes universidades.

Três anos atrás, se Mark Studdock tivesse vindo para uma reunião da Faculdade, na qual estivesse tal questão para ser deci­dida, teria esperado ouvir abertamente debatidas as reivindica­ções do sentimento contra o progresso e da beleza contra a utili­dade. Hoje, ao tomar o seu lugar no Soler, a comprida sala no pavimento superior da parte sul de Lady Alice, não esperava tal. Sabia agora que não era esse o modo de fazer as coisas.

O Elemento Progressista conduzia os seus assuntos realmen­te muito bem. Muitos dos professores não sabiam, ao entrarem no Soler, que existia a questão da venda do parque. Viram, é claro, na sua folha com a agenda, que o ponto quinze era «Venda de ter­ras da Faculdade», mas como isso aparecia em quase todas as reuniões da Faculdade, não estavam muito interessados. Por outro lado, vi­ram que o ponto um era «Questões sobre o Parque de Bragdon». Estas não se referiam à venda proposta. Curry, que como subdiretor se levantara para as apresentar, tinha umas tantas cartas para ler à Faculdade. A primeira era de uma sociedade dedicada à preservação de monumentos antigos. Penso que esta sociedade fora mal-avisada ao fazer duas queixas numa só carta. Teria sido mais sensato se se tivessem limitado a chamar a atenção da Facul­dade para o mau estado do muro em redor do parque. Quando prosseguiram, instando sobre o interesse de se construir uma pro­teção qualquer por cima do próprio poço, e salientando que já anteriormente tinham posto a questão, os membros da Faculdade começaram a ficar agitados. E quando, numa espécie de lembrança de última hora, expressaram o desejo de que a Fa­culdade pudesse mostrar-se mais favorável para com antiquários sérios que queriam examinar o poço, o conselho da Faculdade ficou nitidamente mal disposto. Não gostaria de acusar um ho­mem na posição de Curry de ler incorretamente uma carta, mas a sua leitura desta carta certamente não foi de molde a encobrir quaisquer defeitos no tom da composição original. Antes de ele se sentar, quase todos na sala desejavam fortemente fazer o mundo exterior compreender que o Parque de Bragdon era pro­priedade privada da Faculdade de Bracton e que era melhor que o mundo exterior tratasse da sua vida. Então levantou-se de novo para ler uma outra carta. Esta era de uma sociedade espírita que queria permissão para investigar os «fenômenos relatados» no parque «uma carta relacionada», como disse Curry «com a que vem a seguir que, com licença do diretor, vou ler já. » Esta era de uma firma que tinha ouvido da proposta dos espíritas e queria permissão para fazer um filme, não exatamente dos fenômenos, mas dos espíritas à procura dos fenômenos. Curry recebeu instru­ções para escrever curtas negativas às três cartas.

Então veio uma nova voz, de uma parte completamente dife­rente do Soler. Lord Feverstone tinha-se levantado. Estava intei­ramente de acordo com a decisão tomada pelo conselho a respeito daquelas cartas impertinentes de diversos intrometidos de fora. Mas, de qualquer maneira, não era um fato que o muro do parque se encontrava em condições muito pouco satisfatórias? Uma boa par­te dos professores — Studdock não era um deles — imaginou que estava presenciando uma revolta da parte de Feverstone contra «Curry e o seu bando» e ficou imensamente interessado. Quase de imediato, o tesoureiro, James Busby, estava de pé. Acolheu com aprovação a questão levantada por lord Feverstone. Na sua qua­lidade de tesoureiro tinha recentemente solicitado a opinião de um perito sobre o muro do parque. «Pouco satisfatórias» eram, temia ele, palavras muito suaves para descrever as suas con­dições. Nada, a não ser um muro novo completo, resolveria real­mente a situação. Com grande dificuldade foi-lhe extraído o custo provável desta obra, e quando os membros da Faculdade ouviram o número, prenderam a respiração. Lord Feverstone inquiriu glacialmente se o tesoureiro estava propondo seriamente que a Fa­culdade devia arcar com tal despesa. Busby (um ex-sacerdote muito grande com uma barba negra cerrada) replicou com um cer­to mau humor que não tinha proposto nada: se viesse a fazer uma sugestão, seria de que a questão não podia ser tratada isolada de algumas considerações financeiras importantes que seria seu dever apresentar-lhes mais tarde, naquele dia. Seguiu-se uma pausa a esta ominosa declaração até que gradualmente, um a um, os «do lado de fora» e «obstrucionistas», os homens não incluí­dos no Elemento Progressista, começaram a entrar no debate. A maior parte destes achava difícil acreditar que nada que não fos­se um muro novo completo não pudesse servir. O Elemento Pro­gressista deixou-os falar durante quase dez minutos. Então pare­ceu outra vez que Lord Feverstone estava realmente a chefiar os «do lado de fora». Quis saber se era possível que o tesoureiro e a comissão de manutenção não pudessem realmente encontrar ne­nhuma alternativa além de construir um novo muro ou deixar o Parque de Bragdon degenerar num terreno baldio público. Exigiu uma resposta. Alguns «do lado de fora» até começaram a achar que ele estava sendo muito rude com o tesoureiro. Por fim, o tesoureiro, numa voz mais baixa, respondeu que tinha, num aspecto puramente teórico, alinhado alguns fatos quanto a alter­nativas possíveis. Uma vedação de arame farpado... mas o resto foi apagado num berreiro de desaprovação, durante o qual se ou­viu o velho conselheiro Jewel dizer que antes faria abater todas as árvores do parque do que vê-lo engaiolado em arame farpado. Finalmente, o assunto foi adiado para consideração na reunião se­guinte.

O ponto seguinte era um daqueles que a maioria dos membros não conseguia compreender. Envolveu a recapitulação (por Curry) de uma longa correspondência entre a Faculdade e o Senado da Universidade sobre a proposta de integração do NICE na Uni­versidade de Edgestow. As palavras «comprometido a» estavam sempre a reaparecer no debate que se seguiu.

— Parecemos — disse Watson — ter dado garantias, como Fa­culdade, do mais completo apoio ao novo Instituto.

— Parecemos — disse Feverstone — ter-nos atado de pés e mãos e dado carta branca à Universidade.

A que tudo isto, efetivamente, equivalia não ficou cla­ro para nenhum dos «do lado de fora». Lembravam-se de ter luta­do a valer em reuniões anteriores contra o NICE e todas as suas obras, e de terem sido derrotados; mas todos os esforços para desco­brir o que significara a sua derrota, conquanto respondidos por Curry com grande lucidez, apenas serviram para os emaranhar mais nos labirintos impenetráveis da constituição da Universidade e do mistério ainda mais obscuro das relações entre a Univer­sidade e a Faculdade. O resultado da discussão foi deixá-los com a impressão de que a honra da Faculdade não estava envolvida no estabelecimento do NICE em Edgestow.

Durante este ponto, os pensamentos de mais de um membro tinham-se voltado para o almoço, e a atenção tornara-se distraí­da. Mas quando Curry se levantou, aos 5 minutos para a 1 hora, para apresentar o ponto três, houve um vivo renascer de interes­se. Disse: «Retificação de uma anomalia no salário dos assis­tentes». Não gostaria de dizer quanto os assistentes de mais baixa categoria estavam ganhando naquela altura, mas creio que mal dava para as despesas da residência na Faculdade, que era obrigatória. Studdock, que só recentemente saíra dessa classe, sentia grande simpatia por eles. Compreendia a expressão nos seus rostos. A retificação, se passasse, representaria para eles roupas e férias, e carne no almoço, e a possibilidade de comprar metade, em vez de um quinto, dos livros de que precisavam. Os olhos de todos eles estavam fixos no tesoureiro, quando este se levantou para responder às propostas de Curry. Esperava que ninguém imaginasse que aprovava a anomalia que tinha, em 1910, excluído os assistentes de mais baixa categoria das novas cláusulas no parágrafo 18 do estatuto 17. Tinha a certeza de que todos os presentes desejariam que fosse retificada, mas era seu dever, como tesoureiro, salientar que aquela era a segunda pro­posta, envolvendo despesas muito pesadas, que lhes fora apresen­tada naquela manhã. A respeito disso apenas podia dizer, como dissera sobre o problema anterior, que não podia ser isolado do problema da situação financeira presente da Faculdade no seu conjunto, o qual esperava explicar perante eles durante o correr da tarde. Muito mais foi dito, mas ninguém respondeu ao tesou­reiro, o assunto foi adiado, e quando, faltando 15 minutos para as duas horas, os membros começaram a aparecer fora do Soler para almoçar, com fome e dores de cabeça e ansiosos por tabaco, cada assisten­te tinha fixado no seu espírito que um muro novo para o parque e um aumento no seu próprio salário eram alternativas que se excluíam mútua e estritamente.

— O raio do parque tem estado no nosso caminho toda a ma­nhã — disse um deles.

— Ainda não saímos daí — respondeu outro.

Neste estado de espírito, os membros da Faculdade voltaram ao Soler depois do almoço para considerar as suas finanças, Busby, o tesoureiro, foi naturalmente o principal orador. Numa tarde de sol, é muito quente no Soler, e o curso uniforme da expo­sição do tesoureiro, e até o brilhar dos dentes certos e brancos por cima da barba (tinha uns dentes notavelmente bonitos) possuía uma espécie de poder hipnótico. Membros das faculdades nem sempre acham os assuntos de dinheiro fáceis de entender: se achassem, provavelmente não seriam do tipo de homens que se tornam membros do corpo docente das faculdades. Concluíam que a situação era má; realmente muito má. Alguns dos membros mais jovens e mais inexperientes deixaram de cogitar se iriam ter um muro novo ou um aumento de salário e começaram em vez disso a perguntar a si mesmos se a Faculdade sequer continuaria funcionando. Os tempos, como o tesoureiro dissera com tanta verdade, estavam extraordinariamente difíceis. Os membros mais velhos tinham já muitas vezes ouvido referir tempos assim por dúzias de anteriores tesoureiros e estavam menos perturba­dos. Não estou sugerindo, nem por um momento, que o tesoureiro de Bracton estivesse de qualquer modo apresentando erradamen­te a situação. Só muito raramente a situação financeira de uma grande organização, dedicada a título permanente ao avanço do saber, pode ser descrita, de forma inteiramente não ambígua, como sendo satisfatória. A sua locução era excelente. Cada frase era um modelo de clareza; e, se os seus ouvintes achavam a subs­tância da sua declaração completa menos clara que as partes, isso pode ter sido culpa deles. Algumas reduções e re-investimentos que sugeriu foram unanimemente aprovadas e a Faculdade interrompeu a reunião, para o chá, numa disposição animada. Studdock ligou para Jane e disse-lhe que não iria jantar em casa.

Foi só pelas 6 horas da tarde que todas as linhas de pen­samento e de sentimento convergentes, despertadas pelos assun­tos anteriores, se juntaram na questão de vender o Parque de Bragdon. Não foi nomeada como «a venda do Parque de Bragdon». O tesoureiro chamou-a de «venda da área pintada de cor-de-rosa na planta que, com permissão do diretor, passaria agora à vol­ta da mesa». Salientou, muito francamente, que isso envolvia a perda de parte do parque. De fato, o local proposto para o NICE ainda deixava à Faculdade uma faixa de cerca de dezesseis pés de largura ao longo da metade mais afastada da parte sul, mas não havia qualquer mistificação, pois os professores tinham a planta para examinar com os seus próprios olhos. Era uma planta em pequena escala e talvez não perfeitamente rigorosa, apenas com a intenção de dar uma idéia geral; em resposta a perguntas, admi­tiu que infelizmente, ou talvez felizmente, o próprio poço estava na área que o NICE pretendia. Os direitos de acesso da Faculda­de seriam, é claro, garantidos; e o poço e o seu pavimento seriam preservados pelo Instituto, de maneira a satisfazer todos os arqueólogos do mundo. Absteve-se de fornecer qualquer conselho e mencionou simplesmente a quantia estarrecedora que o NICE oferecia. Depois disso, a reunião tornou-se animada. As vanta­gens da venda foram ficando visíveis uma por uma, como fru­ta madura caindo na mão. Resolvia o problema do muro; resolvia o problema de proteger monumentos antigos; resolvia o problema financeiro; parecia que iria resolver o problema dos salários dos assis­tentes. Parecia mais que o NICE considerava este o único local possível em Edgestow; se por qualquer hipótese Bracton não vies­se a vender, todo o esquema abortava e o Instituto iria indubita­velmente para Cambridge. Foi arrancado do tesoureiro, depois de muito questionado, que sabia de uma Faculdade de Cambridge muito ansiosa por vender.

Os poucos «difíceis de morrer» presentes, para os quais o Parque de Bragdon era quase um dado básico da vida, dificilmen­te podiam compreender o que estava acontecendo. Quando encontraram a voz, e fizeram soar uma nota discordante entre o zumbido geral de animados comentários, foram manobra­dos para a posição de aparecer como o partido que desejava apai­xonadamente ver Bragdon cercado por arame farpado. Quando por fim o velho Jewel, cego e trêmulo e quase a chorar, se pôs de pé, a sua voz era fracamente audível. Homens viraram-se para fitar, e alguns para admirar, o rosto bem talhado e meio infantil e o cabelo branco que se tornava mais conspícuo à medida que o comprido salão se tornava mais escuro. Mas apenas os que esta­vam junto dele podiam ouvir aquilo que ele dizia. Neste momen­to Lord Feverstone pôs-se de pé de um salto, cruzou os braços e olhando diretamente para o velho, disse numa voz muito alta e clara:

— Se o conselheiro Jewel deseja que nós não ouçamos as suas opiniões, sugiro que essa finalidade melhor podia ser alcançada pelo silêncio.

Jewel já era um velho nos dias antes da primeira guerra, quando os velhos eram tratados com delicadeza, e nunca tivera êxito em conseguir habituar-se ao mundo moderno. Por um mo­mento, enquanto se manteve de pé, de cabeça inclinada para a frente, as pessoas pensaram que ele ia replicar. Depois, repenti­namente, estendeu as mãos abertas num gesto de desalento, en­colheu-se e começou laboriosamente a retomar a sua cadeira.

A moção foi aprovada.

 

Depois de deixar o apartamento nessa manhã, Jane tinha ido também a Edgestow e comprado um chapéu. Tinha antes desse momento expressado um certo desprezo pela espécie de mulher que compra chapéus, como um homem que compra bebidas como um estimulante e uma consolação. Não lhe ocorreu que ela própria es­tava procedendo assim naquela ocasião. Gostava de que as suas roupas fossem algo severas e de cores que fossem realmente boas, em bases estéticas sérias — roupas que tornassem evidente para todos que ela era uma pessoa adulta, inteligente e não uma mu­lher da variedade caixa de chocolates — e por causa dessa prefe­rência, não sabia sequer que se interessava por roupas. Ficou por isso um pouco aborrecida quando a Sra. Dimble a encontrou saindo do Sparrows e disse: «Olá, querida! Comprou um chapéu? Venha almoçar lá em casa e vamos ver isso. Cecil está com o carro logo ao virar a esquina.»

Cecil Dimble, professor de Northumberland, fora o orientador de Jane no seu último ano como aluna e a Sra. Dimble (havia a ten­dência para chamá-la de Mãe Dimble) tinha sido a tia não oficial de todas as moças do seu ano. Gostar das alunas do marido não é, talvez, tão comum quanto seria dêsejável entre as mulheres dos professores; mas a Sra. Dimble parecia gostar de todos os alunos do Dr. Dimble, de ambos os sexos, e a casa dos Dimbles, afastada, do lado de lá do rio, era uma espécie de salon barulhento durante todo o período escolar. Tinha dedicado um carinho especial a Jane com aquele tipo de afeição que uma mulher de bom humor, feitio fá­cil e sem filhos, sente por vezes por uma moça que ela pensa ser bonita e bastante absurda. Durante o último ano ou coisa assim, Jane tinha perdido um pouco de vista os Dimbles e sentia-se bas­tante culpada por esse motivo. Aceitou o convite para almoçar.

Passaram pela ponte ao norte de Bracton e depois seguiram para sul ao longo da margem do Wynd, para lá das casas de cam­po, depois para a esquerda e para leste, na igreja normanda, e des­ceram a estrada reta com álamos de um lado e o muro do Par­que de Bragdon do outro, e por fim chegaram à porta da frente dos Dimbles.

— Como está bonito — disse Jane com toda a sinceridade quando saiu do carro. O jardim dos Dimbles era famoso.

— Então é melhor olhar bem para ele — disse o Dr. Dimble.

— Que quer dizer? — perguntou Jane.

— Não lhe contaste? — disse o Dr. Dimble para a mulher.

— Ainda não consegui forçar-me a tal — disse a Sra. Dimble. — Além disso, pobrezinha, o marido dela é um dos vilões da His­tória. De qualquer maneira, espero que ela saiba.

— Não faço nenhuma idéia do que estão dizendo — disse Jane.

— A sua própria Faculdade está tão maçadora, querida. Vão mandar-nos embora. Não renovaram o aluguel.

— Oh, Sra. Dimble! — exclamou Jane. — Eu nem sequer sabia que isto aqui era propriedade de Bracton.

— Aí tem! — disse a Sra. Dimble. — Metade do mundo não sa­be como vive a outra metade. Aqui estava eu imaginando que vo­cê estaria usando toda a sua influência junto do Sr. Studdock para ten­tar salvar-nos, quando na realidade...

— Mark nunca me diz nada sobre os assuntos da Faculdade.

— Os bons maridos nunca dizem — disse o Dr. Dimble. — Pelo menos, só sobre os assuntos das faculdades de outras pessoas. É por isso que Margaret sabe tudo sobre Bracton e nada a res­peito de Northumberland. Não entram para almoçar?

Dimble imaginava que Bracton ia vender o parque e tudo o mais que era sua propriedade naquela margem do rio. Toda a região lhe parecia agora um paraíso ainda mais do que quando viera pela primeira vez para ali viver, vinte e cinco anos atrás , e sentia o caso com muita intensidade para desejar falar sobre ele diante da mulher de um dos homens de Bracton.

— Vais ter de esperar pelo almoço até eu ter visto o novo cha­péu de Jane — disse a Mãe Dimble, e logo a seguir apressou Jane pela escada acima. Seguiram-se então alguns minutos de conver­sa que era estritamente feminina, à moda antiga. Jane, preser­vando, entretanto, uma certa sensação de superioridade, achou a coisa agradável de uma forma indefinível; e embora a Sra. Dimble tivesse realmente um modo de ver errado sobre tais assuntos, não havia como negar que a única pequena modificação que ela sugeriu foi bastante adequada. Quando o chapéu estava sendo outra vez embrulhado, a Sra. Dimble subitamente disse:

— Não há nada correndo mal, pois não?

— Mal? — disse Jane. — Por quê? O que é que poderia haver?

— É que você não parece a mesma.

— Oh, estou muito bem — disse Jane em voz alta. Mental­mente, acrescentou: — Está morrendo para saber se vou ter um be­bê. Este tipo de mulher sempre está.

— Detesta que a beijem? — disse a Sra. Dimble, inesperada­mente.

«Se eu detesto que me beijem?», pensou Jane para si própria, «Esse realmente é o problema. Detesto que me beijem? Não espe­res pôr cabeça nas mulheres... » Tencionara replicar: — Claro que não — mas inexplicavelmente, e para seu grande aborrecimento, deu por si, em vez disso, a chorar. E então, por um momento, a Sra. Dimble passou a ser simplesmente uma pessoa crescida, como as pessoas crescidas eram quando éramos muito pequenos: objetos grandes, quentes e macios para os quais corríamos com os joelhos esfolados ou brinquedos quebrados. Quando pensava na sua infância, Jane recordava usualmente aquelas ocasiões em que o volumoso abraço da ama ou da mãe não tinha sido bem acolhido e tinha encontrado resistência como um insulto à maioridade própria; agora, num instante, tinha regressa­do àquelas ocasiões esquecidas, e, contudo, pouco freqüentes, quando o medo ou a desgraça induziam uma rendição voluntária e a rendição trazia conforto. Não detestar ser acariciada ou apal­pada era contrário a toda a sua teoria de vida; todavia, antes de descerem, dissera à Sra. Dimble que não estava esperando bebê, mas que estava um pouco deprimida por estar muito sozinha e devido a um pesadelo.

Durante o almoço, o Dr. Dimble falou sobre a lenda do rei Artur.

— É realmente maravilhoso — disse ele —, como toda a histó­ria se mantém ligada, mesmo numa versão recente, como a de Malory. Já notaram como há dois conjuntos de personagens? Há Guinevere e Lancelote e toda aquela gente no centro: todos mui­to palacianos e nada de particularmente britânico a respeito deles. Mas depois, em pano de fundo, do outro lado de Artur, por assim dizer, há todas aquelas pessoas enigmáticas como Morgan e Morgawse, que são na verdade muito britânicos e usualmente mais ou menos hostis embora sejam seus próprios parentes. Tudo misturado com magia. Lembram-se daquela frase maravilhosa, como a rainha Morgan «pôs todo o país em fogo com damas que eram feiticeiras». Merlin também, é claro, é britânico, embora não hostil. Não parece mesmo um retrato da Grã-Bretanha como ela deve ter sido na véspera da invasão?

— Que quer dizer, Dr. Dimble? — perguntou Jane.

— Bem, não houve uma parte da sociedade que era qua­se puramente romana? Pessoas vestindo togas e falando um latim mesclado de celta, algo que nos soaria bastante como espanhol, e totalmente cristão. Mas mais para o interior, em lugares afasta­dos, isolados por florestas, teriam existido pequenas cortes gover­nadas por velhos reizinhos britânicos, falando qualquer coisa semelhante ao galés e praticando uma certa dose da religião druida.

— E que é que o próprio Artur teria sido? — disse Jane. Era patetice o coração dela ter pulado às palavras «bastante como espanhol».

— É esse justamente o ponto — disse o Dr. Dimble. — Podemos imaginá-lo como um homem da velha linha britânica, mas também um cristão e um general bem treinado, com técnica romana, tentando integrar toda esta sociedade e quase sendo bem sucedi­do. Haveria ciúmes da parte da sua própria família britânica, e o setor romanizado (os Lancelotes e Lionéis) haviam de olhar os bretões por cima da burra. Seria por isso que Kay é sempre repre­sentado como um rústico: ele é parte da estirpe nativa. E sempre aquela ressaca, aquele arrastar de regresso ao druidismo.

— E onde estaria Merlin?

— Sim... Ele é a figura realmente interessante. Será que a coi­sa toda falhou porque ele morreu tão cedo? Alguma vez já repa­rou que estranha criação Merlin é? Ele não é mau; contudo, é um mágico. Ele é obviamente, um druida; porém, sabe tudo a respeito do Graal. Ele é «o filho do Diabo»; mas depois Layamon faz tudo para nos dizer que o tipo de ser que foi o pai de Merlin não pre­cisava, no fim das contas, ter sido mau. Lembre-se, habitam no Céu muitas espécies de criaturas. Algumas delas são boas e algu­mas produzem o mal.

— É bastante intrigante. Não tinha pensado nisso antes.

— Muitas vezes me pergunto — disse o Dr. Dimble — se Mer­lin não representa o último traço de alguma coisa de que a tradi­ção recente se esqueceu completamente, algo que se tornou impos­sível quando as únicas pessoas em contato com o sobrenatural eram ou brancas ou pretas, ou párocos ou feiticeiros.

— Que idéia horrível — disse a Sra. Dimble, que notara que Ja­ne parecia preocupada. — De qualquer maneira, Merlin aconte­ceu há muito tempo, se é que aconteceu, e ele está seguro e enterrado debaixo do Parque de Bragdon como todos sabemos.

— Enterrado mas não morto, segundo a História — corrigiu o Dr. Dimble.

— Vi! — disse, involuntariamente, Jane, mas o Dr. Dimble ia cogitando em voz alta.

— Pergunto a mim mesmo o que é que irão encontrar se come­çarem a cavar naquele lugar para as fundações do tal NICE deles — disse ele.

— Primeiro lama, e depois água — disse a Sra. Dimble. — É por isso que realmente não podem construir ali.

— Assim seria de pensar — disse o marido. — Mas então por que é que eles iam querer vir para cá? Não é natural um pequeno lon­drino como Jules ser influenciado por qualquer fantasia poé­tica a respeito do manto de Merlin ter ido cair sobre ele.

— O manto de Merlin, realmente! — disse a Sra. Dimble.

— Sim — disse o doutor —, é uma idéia esquisita. Atrevo-me a dizer que alguns do grupo dele gostariam bastante de re­cuperar o manto. Se seriam suficientemente grandes para preenchê-lo é uma outra questão! Não creio que gostassem dele, se o próprio velho voltasse à vida junto com o manto.

— Esta jovem vai desmaiar — disse a Sra. Dimble, subita­mente, pondo-se de pé de um salto.

— Olá! O que está acontecendo? — disse o Dr. Dimble, olhando es­pantado para a cara de Jane. — Está muito quente aqui na sala para si?

— Oh, isto é ridículo demais — disse Jane.

— Vamos para a sala de visitas — disse o Dr. Dimble. — Venha. Encoste-se ao meu braço.

Um pouco mais tarde, na sala de visitas, sentada junto a uma janela que abria para o relvado, agora semeado de folhas amarelas e brilhantes, Jane tentou desculpar-se do seu comportamen­to absurdo, contando a história do seu sonho.

— Acho que desvendei os meus segredos de uma forma terrí­vel — disse ela. — Podem ambos começar a psicanalisar-me já.

Pela cara do Dr. Dimble, Jane podia, na verdade, ter conjeturado que o sonho dela o tinha impressionado excessivamente.

— Coisa extraordinária... muito extraordinária — continuava a murmurar. — Duas cabeças. E uma delas a de Alcasan. Ora, se­rá isso uma pista falsa...

— Não faça isso, Cecil — disse a Sra. Dimble.

— Acha que eu devia ser analisada? — disse Jane.

— Analisada? — disse o Dr. Dimble, olhando-a de relance como se não tivesse compreendido inteiramente. — Oh, estou vendo. Quer dizer, ir ao Brizeacre ou alguém do tipo? — Jane per­cebeu que a sua pergunta o tinha arrancado de uma cadeia qualquer de pensamento completamente diferente e até, de forma desconcertante, que o problema da sua própria saúde tinha sido empurrado para o lado. Ter contado o sonho tinha levantado alguns outros problemas, embora não pudesse sequer imaginar quais fos­sem.

O Dr. Dimble olhou para fora, pela janela.

— Justamente o meu aluno mais obtuso está tocando a campai­nha — disse ele. — Tenho de ir para o escritório e ouvir um ensaio sobre Swift, começando por «Swift nasceu». Tenho de tentar man­ter o espírito atento ao que ele disser, o que não vai ser fácil. — Le­vantou-se e ficou de pé um momento com a mão no ombro.

— Olhe lá — disse ele. — Não lhe vou dar conselho nenhum. Mas se realmente decidir ir ver alguém por causa desse sonho, desejo que considerasse primeiro ir ter com alguém cujo endereço Margery ou eu lhe daremos.

— Não acredita no Sr. Brizeacre? — disse Jane.

— Não posso explicar — disse o Dr. Dimble. — Agora, não. É tudo tão complicado. Procure não se incomodar com isso. Mas se tal acontecer, trate de nos dar conhecimento em primeiro lugar. Adeus.

Quase imediatamente depois da partida dele, chegaram alguns outros visitantes, de forma que não houve oportunidade alguma de mais conversas em privado entre Jane e a sua anfitriã. Deixou a casa dos Dimbles cerca de uma hora mais tarde e foi a pé para casa, não ao longo da estrada com os álamos, mas pelo carreiro através do parque público, passando os burros e os gansos, com as torres e as espiras de Edgestow para a sua esquerda e o velho moi­nho no horizonte, para a direita.

 

JANTAR COM O SUBDIRETOR

— Isto é um golpe! — disse Curry, de pé em frente do fogão de sala nos seus magníficos aposentos, que davam para Newton. Constituíam o melhor conjunto na Faculdade.

— Alguma coisa do NO? — perguntou James Busby. Ele, Lord Feverstone e Mark estavam todos bebendo o seu sherry antes de jantar com Curry. NO, que representava Non-Olet, era a alcunha de Charles Place, o diretor de Bracton. A sua eleição para este cargo, uns quinze anos atrás, fora um dos primeiros triunfos do Elemento Progressista. À força de dizer que a Faculdade precisa­va de «sangue novo» e tinha de ser arrancada nas suas «rotinas acadêmicas», tinham conseguido fazer entrar um funcionário civil idoso, que certamente nunca tinha sido contaminado por fra­quezas acadêmicas, uma vez que largara a sua bastante obscura Faculdade de Cambridge no século anterior, mas que escrevera um relatório monumental sobre Saúde Pública Nacional. O assun­to tinha-o, se alguma coisa, recomendado ao Elemento Progres­sista. Consideravam-no uma bofetada na cara para os diletantes e «difíceis de morrer», que replicaram apelidando o seu novo dire­tor de Non-Olet. Mas, gradualmente, até os apoiadores de Place tinham adotado o nome. Pois Place não correspondera às expec­tativas deles, revelando-se um dispéptico com queda para a filatelia, cuja voz era tão raras vezes ouvida que alguns dos assis­tentes mais novos não sabiam qual era o som dela.

— Sim, raios o partam — disse Curry —, quer me ver sobre um assunto dos mais importantes, assim que eu tenha possibili­dade de ir ter com ele depois de jantar.

— Isso quer dizer — disse o tesoureiro — que Jewel e companhia se têm estado a atirar a ele e querem achar uma maneira de an­dar para trás com a questão toda.

— Não ligo para isso — disse Curry. — Como é que se pode revogar uma resolução? Não é isso. Mas é o suficiente para dar cabo da noite toda.

— Só da sua noite — disse Feverstone. — Não se esqueça de deixar aqui fora esse seu brandy muito especial, antes de ir.

— Jewel! Santo Deus!;— disse Busby, enterrando na barba a mão esquerda.

— Senti uma certa pena do velho Jewel — disse Mark. Os seus motivos para dizer isto eram muito confusos. Para lhe fazer justiça, deve-se dizer que a brutalidade do comportamento de Feverstone, inteiramente inesperada e aparentemente desneces­sário, para com o velho, o tinha desagradado. E depois, também, a idéia toda da sua dívida para com Feverstone no caso da sua pró­pria entrada no professorado tinha-o irritado o dia inteiro. Quem era este sujeito, Feverstone? Mas, paradoxalmente, mesmo en­quanto sentia que era chegado o momento de afirmar a sua própria independência e de mostrar que não deveriam considerar a sua concordância com todos os métodos do Elemento Progressista, como anteci­padamente garantida, achava também que uma certa indepen­dência o faria ascender a uma posição mais elevada dentro do próprio Elemento. Se a idéia (Feverstone terá melhor conceito seu se lhe mostrar os dentes) lhe tinha ocorrido com todas as letras, provavelmente a teria rejeitado como servil. Não o fez.

— Com pena de Jewel? — disse Curry, dando uma volta com­pleta. — Não diria isso se o tivesse conhecido quando ele estava em plena forma.

— Concordo consigo — disse Feverstone a Mark —, mas é que eu sigo a maneira de ver de Clausewitz. A guerra total, a longo prazo é a mais humana. Eu o fiz calar instantaneamente. Agora que já lhe passou o choque, está imensamente feliz consigo próprio porque eu confirmei inteiramente tudo o que vem dizendo sobre a geração mais nova, durante os últimos quarenta anos. Qual era a alternativa? Deixá-lo babar-se até lhe dar um acesso de tosse ou um ataque de coração, e a somar a isso dar-lhe o de­sapontamento de verificar que era tratado com civilidade.

— Esse é com certeza um ponto de vista — disse Mark.

— Diabos levem isto — continuou Feverstone —, homem nenhum gosta de se ver desapossado de todos os seus pertences. Que faria aqui o nosso pobre Curry se um dia os «difíceis de mor­rer» se recusassem a continuar «a morrer com dificuldade»? A ocu­pação de Otelo teria desaparecido.

— O jantar está servido, senhor — disse o «atirador» de Curry —, pois é assim que um criado é chamado em Bracton.

— Tudo isso é tolice, Dick — disse Curry enquanto se sen­tavam.

— Não há nada de que eu mais gostaria do que ver o fim de to­dos estes «difíceis de morrer» e obstrucionistas e poder avançar com o trabalho. Não imagina que eu goste de ter de gastar todo o meu tempo desimpedindo a estrada? — Mark notou que o seu anfitrião estava um pouco irritado com a zombaria de Lord Feverstone. Este último tinha um riso ex­tremamente viril e contagioso. Mark achou que estava começando a gostar dele.

— Sendo trabalho...? — disse Feverstone, não olhando de re­lance, e muito menos piscando o olho, para Mark, mas fazendo-o sentir que estava de certa maneira sendo incluído na brincadeira.

— Bem, alguns de nós têm trabalho próprio a fazer — replicou Curry, baixando a voz para lhe dar um tom mais sério, quase como algumas pessoas baixam a voz para falar de assuntos médicos ou religiosos.

— Nunca soube que você fosse esse tipo de pessoa — disse Feverstone.

— Isso é o pior do sistema todo — disse Curry. — Num lugar como este, ou se fica satisfeito vendo tudo se desfazer em pedaços, quer dizer, estagnar, ou então tem de se sacrificar a própria car­reira como estudioso a toda esta infernal política da Faculdade. Um destes dias vou atirar isso para o lado e voltar ao meu livro. O material já está todo lá, bem sabe, Feverstone. Umas férias longas e creio realmente que poderia lhe dar forma.

Mark, que nunca antes vira Curry provocado, estava come­çando a se divertir.

— Estou vendo — disse Feverstone. — A fim de manter o lugar funcionando como uma sociedade de estudo, todos os melhores cé­rebros que estão lá têm de desistir de fazer coisa alguma a respeito do estudo.

— Exatamente! — disse Curry. — É isso justamente... — En­tão parou, sem ter a certeza de estar sendo levado inteiramente a sério. Feverstone desatou a rir. O tesoureiro, que até então estivera empenhadamente atarefado a comer, limpou a barba cui­dadosamente e falou a sério.

— Tudo isto está muito bem na teoria — disse ele —, mas pen­so que Curry tem toda a razão. Suponhamos que renunciasse ao seu cargo de subdiretor e se retirasse para a sua caverna. Podia dar-nos um estrondoso e belo livro de economia.

— Economia? — disse Feverstone, erguendo as sobrancelhas.

— Acontece que sou um historiador militar, James — disse Curry. Ele ficava muitas vezes incomodado com a dificuldade que os colegas pareciam encontrar em lembrar que ramo parti­cular do saber ele tinha escolhido para seguir.

— Eu queria dizer, é claro, história militar — disse Busby. — Como disse, ele podia presentear-nos com um estrondoso e belo livro sobre história militar. Mas seria posto de lado em vinte anos. Enquanto que o trabalho que está atualmente fazendo pela Facul­dade irá beneficiá-la durante séculos. E toda esta questão, então, de trazer o NICE para Edgestow. Que me diz de uma coisa destas, Feverstone? Não estou meramente falando do seu lado financeiro, embora, como tesoureiro, eu naturalmente ponha isso como prioridade da escola. Mas pensem na nova vida, no despertar de novas formas de ver, no agitar de impulsos adormecidos. O que seria qual­quer livro de economia...

— História militar — disse Feverstone suavemente, mas des­ta vez Busby não o ouviu.

— Que seria, comparado com uma coisa assim, qualquer livro de economia? — continuou. — Eu a considero como o maior triun­fo de idealismo prático que este século já viu.

O bom vinho estava começando a exercer os seus bons ofícios. Todos temos conhecido o tipo de eclesiástico que tende a esque­cer o seu colarinho de sacerdote depois do terceiro copo; mas o hábito de Busby era o inverso. Era depois do terceiro copo que começava a se lembrar do colarinho. À medida que o vinho e a luz das velas lhe soltavam a língua, o pároco ainda latente dentro dele, depois de trinta anos de apostasia, começou a despertar numa vida galvânica estranha.

— Como vocês sabem, rapazes — disse ele —, não recla­mo de ortodoxia. Mas se a religião for entendida no sentido mais profundo, não tenho qualquer hesitação em dizer que Curry, ao trazer o NICE para Edgestow, fez mais por este num ano do que Jewel tem feito na sua vida inteira.

— Bem — disse Curry, modestamente. — Isso é, aliás, o tipo de coisa que se podia esperar. Eu não a poria exatamente como você, James...

— Não, não — disse o tesoureiro —, claro que não. Todos nós temos a nossa linguagem própria; mas todos nós queremos real­mente dizer a mesma coisa.

— Alguém já descobriu — perguntou Feverstone — o que, precisamente, é o NICE ou o que tem intenção de fazer?

Curry olhou para ele com uma expressão levemente espan­tada.

— É estranho isso, vindo de si, Dick — disse ele. — Pensei que estava por dentro da coisa.

— Não é um pouco ingênuo — disse Feverstone — supor que estar por dentro de uma coisa envolve qualquer conhecimento claro do seu programa oficial?

— Oh, bem, se quer dizer detalhes — disse Curry, e depois parou.

— Certamente, Feverstone — disse Busby —, está fazendo um grande mistério a respeito de nada. Eu penso que os objetivos do NICE são bastante claros. É a primeira tentativa de levar a sério, do ponto de vista nacional, a ciência aplicada. A di­ferença em escala entre isto e qualquer coisa que tivemos antes, equivale a uma diferença qualitativa. Só o edifício, só a apa­relhagem! Pensem naquilo que já fez pela indústria. Pensem como vai mobilizar todo o talento do país; e não apenas o talento cien­tífico no sentido mais estrito. Quinze diretores departamentais a quinze mil por ano cada um! O seu próprio pessoal jurídico! A sua própria polícia, me disseram! O seu quadro permanente próprio de arquitetos, topógrafos, engenheiros! A coisa é estupenda!

— Carreiras para os nossos filhos — disse Feverstone. — Estou vendo.

— Que quer dizer com isso, Lord Feverstone? — disse Bu­sby, pousando o copo.

— Deus! — disse Feverstone, os olhos a rir. — Que tijolo que eu deixei cair. Tinha-me esquecido completamente que você tinha família, James.

— Concordo com James — disse Curry, que tinha estado à es­pera, algo impacientemente, para falar. — O NICE marca o come­ço de uma nova era, a era realmente científica. Até agora, tudo tem sido meio ao acaso. Isto vai pôr a própria ciência numa base cien­tífica. Vão haver quarenta comissões interligadas, em funções todos os dias e vão dispor de um magnífico instrumento (mostra­ram-me o modelo da última vez) através do qual as descobertas de cada comissão aparecerão impressas no seu próprio pequeno compartimento no quadro analítico de informações, de meia em meia hora. Depois, esse relato desliza sozinho para a posição exata, onde fica ligado por pequenas setas com todas as apropriadas dos outros relatos. Um olhar de relance no quadro mostra-nos a política de todo o Instituto tomando forma efetivamente, bem debaixo dos nossos olhos. Haverá um estado-maior de, pelo me­nos, vinte peritos no topo do edifício fazendo funcionar o quadro de informações numa sala muito parecida com a sala de controle do metrô. É um mecanismo maravilhoso. Os diferentes tipos de assuntos aparecem todos no quadro em luzes colori­das diferentes. Deve ter custado meio milhão. O chamam de pragmatômetro.

— E aqui — disse Busby — vê-se de novo o que o Instituto já está fazendo pelo país. O pragmatômetro vai ser uma grande coi­sa. Centenas de pessoas estão ficando a favor. E este quadro ana­lítico de informações estará provavelmente fora de moda antes do edifício estar acabado!

— Ora bem, meu Deus — disse Feverstone —, e o próprio NO me disse esta manhã que a parte sanitária do Instituto ia ser qual­quer coisa absolutamente extraordinária.

— Pois é — disse Busby, resolutamente. — Não vejo porque é que alguém iria pensar que isso não é importante.

— E o que é que você pensa a respeito disto, Studdock? — perguntou Feverstone.

-— Penso — disse Mark —, que James tocou no ponto mais importante quando disse que teria o seu próprio pessoal jurídico e a sua própria polícia. Não dou a mínima pelos pragmatômetros e sanitários de luxo. O ponto autêntico é que desta vez vamos ter a ciência aplicada aos problemas sociais e apoiada por toda a força do Estado, tal e qual como no passado. A guerra tem sido apoia­da pela força toda do Estado. Espera-se, é claro, que descobrirá mais do que fez a velha ciência por conta própria; mas o que é certo é que pode fazer mais.

— Raios — disse Curry, olhando para o relógio. — Tenho de ir falar com o NO agora. Se desejarem algum brandy quando tive­rem acabado o vinho, está naquele aparador. Os copos de balão en­contram-se na prateleira por cima. Voltarei assim que puder. Não vem, James, pois não?

— Sim — disse o tesoureiro. — Vou para a cama cedo. Que isso não interrompa a festa de vocês dois. Tenho estado em pé quase todo o dia, sabem. Um homem é um tolo, se desem­penhar algum cargo nesta Faculdade. Ansiedade constante. Res­ponsabilidade esmagadora. E depois ainda tem gente sugerindo que todos aqueles pequenos escaravelhos investigadores que nunca espetam o nariz fora das suas bibliotecas ou laboratórios é que são os autênticos trabalhadores! Gostaria de ver Glossop ou qualquer desse tipo enfrentar o tipo de trabalho diário que eu tive hoje. Curry, meu rapaz, teria tido uma vida fácil se tivesse optado pela economia.

— Já lhe disse — começou Curry, mas o tesoureiro, agora de pé, estava curvado sobre Lord Feverstone a contar-lhe uma ane­dota.

Assim que os dois homens saíram da sala, Lord Feverstone olhou fixamente para Mark durante alguns segundos, com uma expressão enigmática. Depois riu-se entre dentes. Depois o riso transformou-se numa gargalhada. Atirou o corpo magro e musculoso bem para trás na cadeira e riu cada vez com mais força. Tinha um riso contagioso e Mark deu por si a rir também, muito sincera­mente e até desamparadamente, com uma criança.

— Pragmatômetros, casas de banho de palácio, idealismo prá­tico — arfou Feverstone. Era um momento de extraordinária libertação para Mark. Todo o tipo de coisas relativas a Curry e Busby, que não tinha previamente notado, ou então, tendo no­tado, passara por cima na sua reverência perante o Elemento Pro­gressista, voltaram-lhe à mente. Perguntava a si próprio como é que podia ter sido tão cego, face ao lado divertido deles.

— Realmente é um tanto arrasador — disse Feverstone, quan­do se recuperou parcialmente — que as pessoas, que temos de utilizar para ter as coisas feitas, digam tais baboseiras logo que se lhe fazem perguntas sobre essas mesmas coisas.

— E, contudo, são, em certo sentido, os miolos de Bracton — disse Mark.

— Santo Deus, não! Glossop e Bill, o Nevão, e até o velho Jewel, têm dez vezes a inteligência deles.

— Não sabia que tinha essa opinião.

— Penso que Glossop, etc., estão totalmente enganados. Pen­so que a idéia deles sobre cultura, conhecimento e não sei que mais, não é realista. Não penso que se adapte ao mundo em que vivemos. É uma mera fantasia. Mas é uma idéia inteiramen­te clara, e eles a seguem com coerência. Sabem o que querem. Mas os nossos dois pobres amigos, embora possam ser persua­didos a tomar o trem certo, ou até conduzi-lo, não têm noção de para onde ele vai, ou porquê. Vão suar sangue para trazer o NICE para Edgestow: é por isso que são indispensáveis, mas saber qual é o objetivo de NICE, qual é o objetivo de qualquer coisa, é melhor perguntar-lhes outra coisa. Pragmatometria! Quinze subdiretores!

— Bem, talvez eu próprio esteja no mesmo barco.

— De forma alguma. Você viu logo qual era o objetivo. Eu sa­bia que o faria. Li tudo que tem escrito desde que se candidatou a professor. Era sobre isso que eu queria falar consigo.

Mark ficou calado. A sensação atordoadora de ser subitamen­te arrebatado de um lugar secreto para um outro, juntamente com o efeito crescente do excelente Porto, de Curry, impedia-o de falar.

— Quero que venha para o Instituto — disse Feverstone.

— Quer dizer, deixar Bracton?

— Isso não faz diferença. Aliás, não imagino que haja alguma coisa que você queira aqui. Havemos de fazer Curry diretor quando NO se retirar e...

— Eles falavam de fazer a si diretor.

— Deus! — disse Feverstone, e arregalou os olhos. Mark com­preendeu que, do ponto de vista de Feverstone, aquilo era igual à sugestão de que ele devia tornar-se diretor de uma escola de pequenos idiotas, e agradeceu às suas estrelas que a sua própria observação não tivesse sido enunciada num tom que a tornasse obviamente séria. Então ambos riram outra vez.

— Você — disse Feverstone — seria absolutamente desperdi­çado como diretor. Essa é tarefa para Curry. Ele a fará muito bem. Querem um homem que ame manobrar e puxar os cordéis, por eles, e não pergunte realmente do que se trata. Se o fizesse, começaria a introduzir as suas próprias, bem, suponho que lhe chamaria «idéias». Assim, desta maneira, apenas temos de lhe dizer que ele pensa que fulano tal é um homem que a Faculdade quer, e ele pensa isso mesmo. E então não descansa mais até fulano tal ter um lugar de professor. É para isso que queremos a Faculdade: uma rede de arrasto, um escritório de recrutamento.

— Um escritório de recrutamento para o NICE, quer dizer?

— Sim, na primeira fase. Mas é apenas parte da história toda.

— Não estou certo de saber o que quer dizer.

— Em breve estará. O nosso lado, e tudo isso, sabe! Soa um tan­to ao estilo de Busby dizer que a Humanidade está numa encru­zilhada. Mas neste momento, essa é a questão principal: de que lado cada um está: obscurantismo ou ordem. Parece que agora realmente teremos o poder de nos firmarmos, como espécie, duran­te um período de vacilação para assumirmos o controle do próprio destino. Se forem realmente dadas à ciência mãos livres, ela pode agora tomar conta da raça humana e reconciliá-la: tornar o homem um animal realmente eficiente. Se não for feito, estamos liquidados.

— Continue.

— Há três problemas principais: primeiro, o problema inter­planetário...

— Que diabo quer dizer?

— Bem, isso já realmente não interessa. Nada podemos fazer sobre isso, presentemente. O único homem que podia ajudar-nos era Weston.

— Foi morto num ataque aéreo, não foi?

— Foi assassinado.

— Assassinado?

— Tenho certeza absoluta, e tenho boa idéia de quem foi o assassino.

— Santo Deus! E não se pode fazer nada?

— Não há provas. O assassino é um respeitável professor de Cam­bridge com olhos fracos, uma perna coxa e a barba loura. Já jan­tou nesta Faculdade.

— Por que é que Weston foi assassinado?

— Por estar do nosso lado. O assassino é um dos do inimigo.

— Quer dizer que foi assassinado por isso?

— Sim — disse Feverstone, batendo secamente com a mão em cima da mesa. — Essa é que é a questão. Vai ouvir gente como Curry ou James gorgolejando a respeito da «guerra» contra a reação. Não lhes entra na cabeça que poderá ser uma guerra real, com baixas reais. Pensam que a resistência violenta do outro lado terminou com a perseguição de Galileu e tudo isso. Mas não acre­dite. Está justamente começando a sério. Sabem agora que temos finalmente poderes reais: que a questão daquilo que a Humanida­de vai ser será decidida nos próximos sessenta anos. Vão lutar polegada a polegada. Não pararão diante de nada.

— Não podem ganhar — disse Mark.

— Esperemos que não — disse Lord Feverstone. — Penso que não podem. Por isso é tão importante que cada um de nós escolha o lado certo. Quem tenta ser neutro, torna-se simplesmente um peão.

— Oh, não tenho dúvida alguma de qual é o meu lado — dis­se Mark. — Tudo o mais pode perder-se, mas a preservação da raça humana é uma obrigação bem fundamental.

— Bem, pessoalmente — disse Feverstone —, não vou me entre­gar a quaisquer Busbyismos a esse respeito. É um pouco fantás­tico basearmos as nossas ações numa suposta preocupação por aquilo que vai acontecer daqui a milhões de anos; e tem de se lem­brar que o outro lado clamaria estar também preservando a Humanidade. Se tomam essa orientação, ambos podem ser explicados em termos psicanalíticos. A questão prática é que vo­cê e eu não gostamos de ser peões; antes preferimos lutar, espe­cialmente do lado vencedor.

— E qual é o primeiro passo, em termos práticos?

— Sim, essa é a questão real. Como disse, o problema interpla­netário tem de ser deixado de lado, no momento. O segundo pro­blema é o dos nossos rivais neste planeta. Não quero dizer apenas insetos e bactérias. Há por aí um excesso de vida de toda espé­cie, animal e vegetal. Ainda não desbravamos realmente este lugar. Primeiro não podíamos, e depois tínhamos escrúpulos esté­ticos e humanitários; e ainda não eliminamos a questão do equi­líbrio da natureza. Tudo isso é para ser tratado. O terceiro proble­ma é o próprio homem.

— Continue. Isto me interessa muito.

— O homem tem de se encarregar do homem. Isto significa, lembre-se, que alguns homens têm de tomar conta dos restantes, que é mais uma razão para aproveitar a ocasião logo que se puder. Você e eu queremos ser daqueles que tomam conta dos outros e não daqueles de quem outros tomam conta. Perfeita­mente.

— E que coisas você tem em mente?

— Coisas inteiramente simples e óbvias, primeiro: esteriliza­ção dos incapazes, liquidação das raças atrasadas (não queremos pesos mortos), reprodução seletiva. Depois educação autêntica, incluindo educação pré-natal. Por educação autêntica quero dizer uma que não tenha faltas de senso do tipo «pega ou dei­xa ficar». Uma educação autêntica faz do paciente aquilo que ela quer, infalivelmente: façam o que fizerem ele ou seus pais. Claro que no início terá de ser principalmente psicológico. Mas chegare­mos ao condicionamento bioquímico, e, finalmente, à mani­pulação direta do cérebro...

— Mas isso é estupendo, Feverstone.

— Será a chave de tudo, enfim. Um novo tipo de homem: e será gente como você que tem de começar a fazê-lo.

— Aí é que está a minha dificuldade. Não pense que é falsa mo­déstia, mas ainda não vi como é que eu posso contribuir.

— Não, mas nós vimos. Você é o que nós precisamos: um soció­logo preparado, com uma maneira de ver radicalmente realista e sem receio das responsabilidades. E também, um sociólogo capaz de escrever.

— Não está querendo dizer que quer que eu vá exaltar por escri­to tudo isto?

— Não. Queremos que o insinue por escrito, que o disfarce. Apenas por enquanto, é claro. Uma vez que as coisas comecem a andar não teremos que nos incomodar com o grande coração do público britânico. Faremos do grande coração aquilo que quere­mos que ele seja. Mas, entretanto, faz realmente diferença como as coisas são postas. Por exemplo, se sequer se murmurasse que o NICE quer poderes para fazer experiências em criminosos, íamos ter todas os velhotes de ambos os sexos de armas na mão e a ganir sobre a Humanidade. Mas dê-lhe o nome de reeducação dos não-adaptados e vai ter todos se babando deliciados porque a era brutal do castigo punitivo chegou finalmente ao fim. É uma coisa esquisita; a palavra «experiência» não é popular, mas a pala­vra «experimental» é. Não se deve fazer experiências com crian­ças; mas oferece-se aos queridos pequeninos educação gratuita numa escola experimental ligada ao NICE, e está tudo bem!

— E este lado jornalístico seria a minha ocupação principal?

— Não tem nada a ver com jornalismo. Os seus leitores, em pri­meiro lugar, seriam Comissões da Câmara dos Comuns, e não o público. Mas isso seria apenas um aspecto lateral. Quanto ao tra­balho em si, bem, é impossível dizer como ele poderia desenvolver-se. Falando com um homem como você, não vou vincar o lado financeiro. Começaria por qualquer coisa muito modesta, diga­mos, cerca de mil e quinhentas por ano.

— Não estava pensando nisso — disse Mark, corando de pura excitação.

— É claro — disse Feverstone —, tenho de avisá-lo, há perigo. Não ainda, talvez. Mas quando as coisas realmente começarem a zumbir, está escrito que podem tentar abatê-lo, como ao pobre ve­lho Weston.

— Não acho que estivesse pensando nisso também — disse Mark.

— Olhe lá — disse Feverstone. — Deixe-me levá-lo amanhã para ver John Wither. Ele me disse para levá-lo no fim de semana, se estivesse interessado. Vai encontrar lá toda as pessoas importan­tes e lhe dará a oportunidade de tomar uma decisão.

— Como é que Wither entra nisto? Pensava que Jules era o chefe do NICE. — Jules era um novelista distinto e um divulga­dor científico cujo nome apareceria sempre ao público ligado ao novo Instituto.

— Jules! Diabos me levem! — disse Feverstone. — Não ima­gine que esse mascote tem algo a dizer quanto ao que realmente se passa! Ele serve muito bem para vender o Institu­to ao grande público britânico nos jornais de domingo e ganha um salário avantajado. Não tem utilidade para o trabalho. Não exis­te nada dentro da cabeça dele exceto algum palavreado socia­lista do século xix e patetices a respeito dos direitos humano. Chegou até Darwin e mais nada.

— Oh, absolutamente — disse Mark. — Sempre fiquei um tan­to intrigado por ele figurar nesta história. Sabe, já que foi tão amável, acho melhor aceitar a sua oferta e ir até casa de Wither no fim de semana. A que horas é que vai partir?

— Por volta de quinze para as onze. Ouvi dizer que você vi­ve para os lados de Sandown. Posso passar por lá e levá-lo.

— Muito obrigado. Conte-me agora alguma coisa sobre Wither.

— John Wither — começou Feverstone, mas interrompeu-se subitamente. — Raios! — disse ele. — Aí vem Curry. Agora vamos ter de ouvir tudo o que NO disse e quão maravilhosamente o arquipolítico lidou com ele. Não fuja. Vou precisar do seu apoio moral.

 

O último ônibus já tinha saído muito antes de Mark deixar a Faculdade, e lá foi a pé para casa, pela colina acima, à luz bri­lhante da lua. Algo muito incomum lhe aconteceu no momento em que entrou no apartamento. Encontrou-se, no tapete da entrada, abraçando uma Jane aterrada e soluçante, uma Jane até humilde, que lhe dizia «Oh Mark, tenho estado tão assustada.»

Havia uma qualidade nos próprios músculos do corpo da sua mulher que o tomou de surpresa. Uma certa e indefinível sensa­ção de defensiva a tinha abandonado momentaneamente. Tinha conhecido antes tais ocasiões, mas eram raras, e vinham se tornando cada vez mais raras. E tendiam, pela sua experiência, a ser se­guidas no outro dia por zangas inexplicáveis. Isto o intrigava muito, mas nunca pusera em palavras a sua confusão.

É duvidoso se poderia compreender os sentimentos dela, mesmo se lhe tivessem sido explicados; e Jane, em qualquer caso, não podia explicá-los. Estava numa extrema confusão. Mas as ra­zões para o seu comportamento incomum, nesta noite em especial, eram bastante simples. Tinha regressado da casa dos Dimbles cerca das 4 horas e 30 minutos, sentindo-se muito animada pelo passeio, com fome e absolutamente certa de que as suas experiên­cias na noite anterior e ao almoço eram coisas do passado e resolvidas. Tivera de acender as luzes e correr as cortinas antes de acabar de tomar chá, porque os dias estavam ficando curtos. En­quanto o fazia, viera-lhe à mente o pensamento de que o seu ter­ror com o sonho e com a simples menção de um manto, um velho, um velho enterrado mas não morto, e uma língua parecida com a espanhola, tinha sido realmente tão irracional como o medo de uma criança no escuro. Isto a levara a recordar momentos em que ela tivera medo do escuro em criança. Talvez tivesse ficado lem­brando-se deles tempo demais. De qualquer maneira, quando se sen­tou para tomar a última xícara de chá, a tarde tinha-se estra­gado, por isto ou por aquilo. E não se recompôs. Primeiro, achou um tanto difícil concentrar o espírito no livro que tinha nas mãos. Depois, quando reconhecera já essa dificuldade, achou difí­cil concentrar-se em qualquer outro livro. Depois verificou que esta­va inquieta. De inquieta passou a nervosa. Depois seguiu-se um longo período em que não estava assustada, mas sabia que ficaria muito assustada realmente se não se controlasse. Depois uma curiosa relutância em ir à cozinha preparar qualquer coisa para jantar, e uma dificuldade, na verdade, uma impossibilidade, em comer o que quer que fosse, depois de o ter preparado. E agora não havia como disfarçar o fato de que estava assustada. Em deses­pero, ligou para os Dimbles.

— Acho que, afinal, talvez vá ver a pessoa que sugeriu — disse. A voz da Sra. Dimble respondeu, depois de uma curiosa ligeira pausa, dando-lhe o endereço. Ironwood era o nome, aparen­temente, Miss Ironwood. Jane tinha pensado que fosse um homem e sentiu uma certa repulsa. Miss Ironwood vivia em St. Anne-on-the-Hill. Jane perguntou se devia marcar um horário.

— Não — disse a Sra. Dimble. — Estarão, não é preciso mar­car horário. — Jane prolongou a conversa tanto quanto possível. Tinha ligado não tanto para obter o endereço mas mais para ouvir a voz da Mãe Dimble. Secretamente tivera a esperança louca de que a Mãe Dimble reconhecesse a sua aplicação e dissesse imedia­tamente:

— Vou já ir aí de carro.

Em vez disso obteve a simples informação e um apressado «boa noite».

Pareceu a Jane que havia qualquer coisa de esquisito na voz da Sra. Dimble. Achou que, ao telefonar, tinha interrompido uma conversa a respeito dela própria (ou não); talvez não a respeito dela pró­pria, mas a respeito de outra coisa qualquer mais importante, com a qual ela estava de alguma maneira relacionada. E o que é que a Sra.Dimble tinha querido dizer por «estarão, estarão à sua es­pera?» Visões horríveis, de noites infantis, de Eles «à espera dela», passaram-lhe pela cabeça. Viu Miss Ironwood, toda vestida de preto, sentada com as mãos cruzadas sobre os joelhos, e depois al­guém a levá-la à presença de Miss Ironwood e dizendo: «Ela está aqui » e a «deixe-a lá».

«O Diabo leve os Dimbles!», disse Jane para consigo mesma, e depois se desdisse, mais com receio do que com remorsos. E ago­ra que a tábua de salvação fora utilizada e não trouxera alívio algum, o terror, como se ofendido pela sua tentativa fútil de lhe escapar, voltou a atirar-se a ela sem possibilidade de disfarce, e não foi capaz mais tarde de se lembrar se o velho e o manto lhe tinham, efetivamente, aparecido num sonho ou se ela tinha sim­plesmente ficado por ali sentada, atordoada e de olhos esgazeados, esperando, esperando, esperando (até mesmo rezando, em­bora não acreditasse em nada a que pudesse rezar) que não apa­recessem.

E foi por isso que Mark encontrou uma Jane tão inesperada no tapete da entrada. «Era uma grande pena», pensou, que aquilo tivesse acontecido numa noite em que ele vinha tão tarde e tão cansado e, para dizer a verdade, não totalmente sóbrio.

 

— Sente-se mesmo bem esta manhã? — disse Mark.

— Sim, muito obrigado — disse Jane secamente.

Mark estava estendido na cama bebendo uma xícara de chá. Jane estava à mesa do toucador, parcialmente vestida e arrumando o cabelo. Os olhos de Mark pousaram nela com prazer indolente e matutino. Se ele tinha tão pouca consciência do que havia de mal ajustado entre ambos, isso era em parte devido ao hábito incurável de «projeção» da nossa raça: pensamos que o cordeiro é dócil porque a sua lã é macia nas nossas mãos; os homens cha­mam voluptuosa a uma mulher quando ela desperta sentimentos voluptuosos neles. O corpo de Jane, macio mas firme, delgado mas bem proporcionado, era tão exatamente como o espírito de Mark queria que fosse, que lhe era praticamente impossível não lhe atribuir as mesmas sensações que despertava nele.

— Tem certeza que está bem? — perguntou outra vez.

— Absolutamente — disse Jane ainda mais secamente. Jane pensou que estava aborrecida porque o cabelo não estava ficando do gosto dela e porque Mark estava atrapalhando. Sabia também, é claro, que estava profundamente zangada consigo mesma devido ao colapso que a traíra na noite anterior, fazendo-a ser o que mais detestava: a «mulherzinha» alvoroçada, lacri­mosa da ficção sentimental, correndo em busca de conforto nos braços masculinos. Mas pensava que aquela animosidade estava apenas na parte mais afastada do seu espírito, e não tinha qual­quer suspeita do que pulsava através de todas as suas veias e esta­va produzindo naquele mesmo momento a falta de jeito dos seus dedos que fazia o cabelo parecer intratável.

— Porque — continuou Mark — se se sente minimamente desconfortável, eu podia adiar a ida a esse tal Wither.

Jane não disse nada.

— Se eu for — disse Mark — terei certamente de passar a noi­te fora, ou talvez duas noites.

Jane cerrou os lábios um pouco mais firmemente e continuou a não dizer nada.

— Supondo que eu vá — disse Mark —, não pensaria em pedir a Myrtle para vir ficar aqui?

— Não, obrigada — disse Jane com ênfase, e depois: — Estou absolutamente acostumada a ficar sozinha.

— Bem sei — disse Mark em tom um tanto defensivo. — É o diabo do estado em que as coisas estão atualmente na Facul­dade. Essa é uma das principais razões por que estou pensando noutro emprego.

Jane continuou calada.

— Olha lá, minha velhinha — disse Mark, sentando-se subi­tamente e atirando as pernas para fora da cama. — Não ganha­mos nada em andarmos evitando o assunto. Não me sinto bem ao ir embora enquanto estiver nesse estado...

— Que estado? — disse Jane, voltando-se de modo a ficar de frente para ele, pela primeira vez. — Bem, quero dizer, só um pouco enervada, como qualquer pessoa pode ficar temporariamente. Só porque tive um pesadelo na noite passada, não há neces­sidade nenhuma de falar como se eu fosse uma neurastênica.

Isto não era nada daquilo que Jane tinha pensado ou espera­do dizer.

— Não se ganha nada em estarmos com... — começou Mark.

— Estarmos com quê? — disse Jane em tom gelado, e então, antes de ele ter tido tempo de replicar. — Se resolveu que estou ficando maluca é melhor chamar Brizeacre para vir aqui e me pas­sar uma receita. Seria conveniente fazer isso enquanto estiver fora. Podiam despachar-me enquanto estiver na casa do Sr. Wither, sem barulho nenhum. Agora vou tratar do café da manhã. Se não se barbear e vestir bem depressa, não vai estar pronto quando Lord Feverstone aparecer.

O remate daquilo foi que Mark deu um grande corte ao barbear-se (e imaginou, imediatamente, um retrato de si próprio falando ao todo importante Wither com um grande chumaço de algodão no lábio superior) enquanto Jane resolvia, por uma mistu­ra de razões, preparar para Mark um café da manhã incomumente esmerado, de que ela preferia morrer a comer alguma coisa, e o fez com a rápida eficiência de uma mulher zangada, ape­nas para no último momento o entornar todo em cima do novo fogão. Estavam ainda à mesa, pretendendo ambos ler os jornais, quando chegou Lord Feverstone. Lamentavelmente a Sra. Maggs chegou no mesmo momento. A Sra. Maggs era aquele ele­mento representado no relatório de despesas de Jane com a frase: «Tenho uma mulher que vem aqui duas vezes por semana.» Vinte anos atrás, a mãe de Jane se dirigiria a tal funcionária por «Maggs» e ela a tra­taria por «senhora». Mas Jane e a sua «mulher que ia lá » tra­tavam-se uma à outra por Sra. Maggs e Sra. Studdock. Eram mais ou menos da mesma idade e aos olhos de um homem solteiro não havia uma diferença muito considerável nas roupas que usavam. Não era por conseguinte indesculpável que, quando Mark preten­deu apresentar Feverstone a sua mulher, Feverstone tivesse apertado a mão à Sra. Maggs; mas isso não adoçou os últimos mi­nutos antes dos dois homens partirem.

Jane deixou o apartamento sob o pretexto de ir às compras quase em seguida. «Realmente hoje não seria capaz de suportar a Sra. Maggs», disse para si mesma, «é uma faladora terrível.» Então, aquele era o Lord Feverstone, aquele homem com o riso estron­doso, pouco natural e a boca de um tubarão, e sem maneiras ne­nhumas. Aparentemente, também um perfeito tolo! Que benefício traria para Mark andar com um homem daqueles? Jane não con­fiara na cara dele. Ela era sempre capaz de dizer: «havia qualquer coisa de velhaco nele». Provavelmente estava fazendo Mark de tolo. Mark era tão facilmente iludido. Se ao menos ele não estivesse em Bracton! Era uma Faculdade horrível. Que é que Mark via em gente como o Sr. Curry e aquele odioso antigo sacerdote de barba? E, entretanto, o que iria fazer durante o dia que a esperava, e a noite e a noite seguinte, e depois dessa, pois quando os homens dizem que vão precisar ficar duas noites fora, isso quer dizer que duas noites é o mínimo, e esperam ficar fora durante uma semana. Em tele­grama (nunca um telefonema interurbano) resolve as coisas, quanto àquilo que lhes toca.

Tinha de fazer qualquer coisa. Chegou até a pensar em seguir o conselho de Mark e pedir a Myrtle para ir lá ficar com ela. Mas Myrtle era a sua cunhada, irmã gêmea de Mark, com toda a atitude da irmã que adora o irmão brilhante. Era capaz de falar sobre a saúde de Mark e das suas camisas e meias com uma corrente invisível contínua de estupefação, não expressa, mas in­confundível, perante a sorte de Jane ao casar com ele. Não, chamar Myr­tle, não, com certeza. Depois pensou ir ver o Dr. Brizeacre, como doente. Ele era um homem de Bracton e por isso provavelmente não lhe cobraria nada. Mas quando pensou que teria que responder, e logo a Brizeacre, ao tipo de perguntas que ele iria certamente fazer, isso mostrou-se ser impossível. Tinha de fazer alguma coisa. Por fim, para a sua própria sur­presa, verificou que tinha resolvido ir até St. Anne ver Miss Iro­nwood. Se achou uma tola por fazer isso.

 

Um observador hipotético colocado à altura certa por cima de Edgestow naquele dia poderia ter visto, lá bem para o Sul, um ponto móvel na estrada principal e, mais tarde, muito mais perto do fio de pra­ta de Wynd, andando muito mais devagar, a fumaça de um trem.

O ponto teria sido o carro que levava Mark Studdock em direção ao Serviço de Transfusão de Sangue, em Belbury, onde o núcleo do NICE tinha fixado seu endereço temporário. O sim­ples tamanho e estilo do carro causara uma impressão favorável nele no momento em que o viu. Os estofamentos eram de tal qualidade que uma pessoa achava que deviam ser bons para comer. E que magnífica, máscula energia (Mark sentiu-se enjoado das mulhe­res nesse momento) se revelava nos simples gestos com os quais Feverstone se instalou ao volante e pôs o cotovelo na buzina, e apertou com firmeza o cachimbo entre os dentes! A velocidade do carro, mesmo nas estreitas ruas de Edgestow, era impressionan­te, e também o eram as críticas lacônicas de Feverstone sobre ou­tros motoristas e peões. Uma vez para lá da passagem de nível e da velha Faculdade de Jane (de St. Elizabeth), começou amostrar o que o carro podia fazer. A sua velocidade tornou-se tão grande que mesmo numa estrada bastante vazia, os motoristas indesculpavelmente maus, os manifestantes idiotas, peões e homens com cavalos, a galinha por cima da qual realmente passaram e os cães e galinhas que Feverstone declarou terem «uma sorte danada», pareciam seguir-se uns aos outros, quase sem intervalo. Postes telegráficos passavam por eles a correr, as pontes precipitavam-se por cima da cabeça com um rugido, aldeias desfilavam para trás para se juntar à região já devorada e Mark, embriagado pelo ar, fascinado e repelido ao mesmo tempo pela insolência da direção de Feverstone, sentado, ia dizendo «sim» e «absolutamen­te» e «foi culpa deles», e olhando de relance e de soslaio o seu com­panheiro. Era certamente uma mudança em relação à importân­cia agitada de Curry e do tesoureiro! O nariz comprido e direito e os dentes cerrados, os traços duros dos ossos da cara, a própria ma­neira com que usava as roupas, todos falavam de um homem gran­de, conduzindo um carro grande para qualquer parte onde iriam encontrar coisas grandes a acontecer. E ele, Mark, ia estar nisso tudo. Num ou dois momentos, em que o coração lhe veio à boca, cogitou se a qualidade da direção de Lord Feverstone justifica­va realmente a sua velocidade.

— Não é preciso levar um cruzamento destes a sério — gritou Feverstone enquanto prosseguiam depois da mais apertada des­tas passagens.

— Absolutamente — berrou Mark. — Não há vantagem nenhuma em fazer deles um feitiço!

— Você dirige muito? — perguntou Feverstone.

— Costumava fazê-lo um bom bocado — disse Mark.

A fumaça que o nosso imaginário observador poderia ter visto a leste de Edgestow teria indicado que o trem, no qual Jane Studdock seguia, ia progredindo lentamente em direção à aldeia de St. Anne. Edgestow, para aqueles que lá chegavam vin­dos de Londres, tinha toda a aparência de ser um terminal; mas se se olhasse em redor, podia efetivamente ver-se, num ramal, um pequeno trem de dois ou três vagões e uma locomoti­va, um trem que espirrava e expelia vapor por debaixo dos estribos dos vagões e no qual a maioria dos passageiros pareciam conhe­cer-se uns aos outros. Em certos dias, em vez do terceiro vagão, poderia haver um vagão para cavalos, e na plataforma haveria cestos contendo coelhos mortos ou aves de capoeira, vivas, e homens de chapéus coco castanhos e polainas, e talvez com um terrier ou um cão pastor que pareciam habitua­dos e viajar. Neste trem, que partia à 1 hora e 30 minutos, Jane foi sacudida e matraqueada ao longo de uma barreira, da qual ela olhava para baixo através de alguns ramos nus e alguns ramos salpicados de folhas vermelhas e amarelas, até o próprio Parque de Bragdon, e daí, através da cortadura e da passagem de nível no Campo de Bragdon e ao longo da borda do Parque Brawl (a gran­de casa era até visível num certo ponto) e por aí afora até à primei­ra parada em Duke’s Eaton. Aqui, bem como em Woolham e Cure Hardy e Fourstone, o trem ajeitava-se para trás ao parar, com uma pequena sacudidela e uma espécie de suspiro. E então haveria um ruído de vasilhas de leite a rolar e de botas gros­seiras calcando a plataforma e depois disso uma pausa que pare­cia durar muito tempo, durante o qual a luz do sol do Outono se tornava quente no painel da janela e cheiros de madeira e de campo, vindos d'além da minúscula estação vinham flutuando e pa­reciam reivindicar a estrada de ferro como parte da terra. Passa­geiros saíam e entravam nos vagões a cada parada; homens com cara cor de maçã e mulheres com botas de plástico e imitação de frutas no chapéu, e estudantes. Jane mal os notava: pois em­bora fosse teoricamente uma democrata extrema, nenhuma clas­se social, salvo a sua própria, se tinha tornado realidade para ela em lugar algum, exceto numa página impressa. E entre as esta­ções, as coisas iam passando a fugir, tão isoladas do seu contexto, que cada uma parecia prometer qualquer felicidade extraterrena se uma pessoa pudesse ter descido do trem nesse mesmo momento para a agarrar; uma casa tendo por trás um grupo de fardos de feno, e extensos campos castanhos em redor, dois cavalos idosos de pé, um atrás do outro, um pequeno pomar com roupa pendurada numa corda; e um coelho fitando o trem, cujos dois olhos pareciam pontos e as orelhas as linhas verticais de um duplo ponto de exclamação. Às 2 horas e 15 minutos chegou a St. Anne’s, que era o terminal autêntico do ramal, o fim de tudo. O ar deu-lhe a sensação de frio e de tônico quando deixou a estação.

Embora o trem tivesse ido soprando e arquejando pela coli­na assim durante a última metade da sua jornada, havia ainda que subir a pé, pois St. Anne’s é uma dessas aldeias encarrapitadas no alto de um monte que são mais comuns na Irlanda do que na Inglaterra, e a estação fica a uma certa distância da aldeia. Uma estrada serpenteante entre bermas elevadas levou-a até lá em cima. Assim que passou a igreja virou à esquerda, conforme as instruções que tinha recebido, na Saxon Cross. Não havia casas à sua esquerda, apenas uma fila de faias e um terreno lavrado, sem vedação, que descia pronunciadamente, e para lá disso a pla­nície interior, arborizada, estendendo-se até onde ela podia ver, e azul à distância. Estava no ponto mais elevado do terreno em toda aquela região. Nessa atura chegou a um muro alto à direita, que parecia ir por ali fora; havia nele uma porta e ao lado da porta uma velha campainha de ferro, de puxar. Uma certa insensibili­dade de espírito estava com ela. Tinha a certeza de estar fazendo uma tolice; não obstante, tocou. Quando o ruído de som desagra­dável cessou, seguiu-se um silêncio tão prolongado e, naquela terra alta, tão frio, que Jane começou a pensar se a casa seria de­sabitada. Então, justamente quando debatia se devia tocar outra vez ou ir embora, ouviu o ruído dos pés de alguém que se apro­ximava com rapidez no lado de dentro do muro.

Entretanto, o carro de Lord Feverstone chegara há muito a Belbury, uma mansão eduardiana ornamentista, que tinha sido construída para um milionário que admirava Versalhes. Dos la­dos, parecia ter rebentado em excrescências difundidas em novos edifícios de cimento, que albergavam o Serviço de Transfusão de Sangue.

 

BELBURY E ST.

ANNE’S-ON-THE-HILL

Ao subir pela vasta escadaria, Mark avistou a sua imagem e a do seu companheiro num espelho. Feverstone parecia, como sempre, senhor das suas roupas, da cara e de toda a situação. O pedaço de algodão no lábio superior de Mark tinha sido arrastado pelo vento durante a viagem, de forma que parecia metade de um bigode postiço virada para cima ferozmente e revelava uma man­cha de sangue enegrecido por baixo. Um momento mais tarde encontrou-se numa sala de grandes janelas com um fogão de cha­mas altas, sendo apresentado ao Sr. John Wither, diretor-adjunto do NICE.

Wither era um velho de cabelo branco com maneiras palacia­nas. A cara era realmente muito grande, perfeitamente barbeada, de olhos azuis aquosos e qualquer coisa um tanto vaga e caótica em toda ela. Não parecia dedicar-lhes toda a sua atenção, e esta impressão devia, acho eu, ter sido devida aos olhos, pois as suas palavras e expressões, na realidade, eram delicadas ao ponto de serem efusivas. Disse que era um grande, um muito grande pra­zer, receber o Sr. Studdock entre eles. O que vinha aumentar a dívida já grande em que Lord Feverstone o colocara. Esperava que tivessem tido uma viagem agradável. O Sr. Wither parecia ter a impressão que tinham vindo por ar, e, quando este ponto foi cor­rigido, que tinham vindo de Londres de trem. Depois passou a inquirir se o Sr. Studdock achava as suas instalações confortáveis e tiveram de lhe recordar que tinham chega­do apenas naquele momento. «Suponho», pensou Mark, «que o velhote está tentando me deixar à vontade.» De fato, a conversa do Sr. Wither estava a ter precisamente o efeito oposto. Mark desejava que ele lhe oferecesse um cigarro. A sua crescente con­vicção de que o homem realmente não sabia nada a seu respeito, e todos os esquemas bem tecidos e as promessas de Feverstone se estavam naquele momento a dissolver numa espécie de nevoeiro qualquer, era extremamente desconfortável. Por fim, pegou na coragem com ambas as mãos e fez o possível por trazer o Sr. Wither ao que interessava, dizendo que não estava ainda totalmente certo quanto a como poderia au­xiliar o Instituto.

— Garanto-lhe, Sr. Studdock — disse o diretor-adjunto com um olhar invulgarmente distante —, que não precisa de antever a mais ligeira dificuldade nesse ponto. Nunca houve qualquer idéia... ahn... qualquer idéia de circunscrever as suas atividades e a sua influência geral na política, muito menos as suas relações com os seus colegas e aquilo a que eu chamaria em geral o mandato em cujos termos irá colaborar conosco, sem a mais completa consi­deração possível das suas próprias vistas e, na verdade, o seu pró­prio conselho. Irá achar-nos, Sr. Studdock, se me devo expressar desse modo, uma família muito feliz.

— Oh, não me compreenda mal — disse Mark. — Não queria dizer nada disso. Apenas queria dizer que gostaria de ter uma idéia daquilo que exatamente eu iria fazer se me juntasse a vós.

— Ora bem, quando fala em juntar-se a nós — disse o dire­tor-adjunto —, isso levanta um ponto sobre o qual espero que não exista mal-entendido algum. Penso que todos concordamos que não precisa pôr-se nenhuma questão de residência, quero dizer, nesta fase. Pensamos, todos nós pensamos, que deverá ser deixa­do inteiramente livre para efetuar o seu trabalho onde quer que lhe agrade. Se lhe interessar viver em Londres ou em Cambridge...

— Edgestow — ajudou Lord Feverstone.

— Ah, sim, Edgestow. — Aqui o diretor-adjunto virou-se e di­rigiu-se a Feverstone. — Estava justamente a explicar ao Sr... ahn... Studdock, e acho que concordará inteiramente comigo, que nada estava mais longe do espírito da Comissão do que impor, de qual­quer forma, ou sequer aconselhar, onde o senhor, onde o seu amigo deveria viver. É claro que, onde quer que ele vivesse colocaríamos transporte aéreo e transporte rodoviário à sua disposição. Atrevo-me a dizer, Lord Feverstone, que já lhe terá explicado que veri­ficará que todas as questões desse tipo se arranjarão por si mesmas sem a menor dificuldade.

— Realmente, senhor — disse Mark, — não estava pensando em nada disso. Não tenho, quero dizer, não teria a mínima objeção em viver em qualquer parte: eu só...

O diretor-adjunto interrompeu-o, se uma forma tão suave como a voz de Wither podia chamar-se interrupção.

— Mas asseguro-lhe, senhor... ahn... asseguro-lhe, senhor, que não existe a mínima objeção a que resida onde quer que ache conveniente. Nunca houve, em qualquer altura, a mais ligeira sugestão... — Mas aqui Mark, quase em desespero, aventurou-se ele próprio a interromper.

— É a exata natureza do trabalho — disse ele —, e das minhas qualificações para ele que pretendo esclarecer.

— Meu caro amigo — disse o diretor-adjunto —, não precisa ter a menor inquietação nesse campo. Como disse antes, vai achar-nos uma família muito feliz, e pode sentir-se perfeitamen­te tranqüilo, porque nenhumas questões quanto à sua inteira adequação têm agitado minimamente o espírito de ninguém. Não estaria lhe oferecendo uma posição entre nós se houvesse o menor risco de não ser totalmente bem-vindo para todos, ou se houvesse a mínima suspeita de não serem inteiramente aprecia­das as suas muito valiosas qualidades. Está entre amigos aqui, Sr. Studdock. Eu seria a última pessoa a aconselhá-lo a ligar-se a alguma organização onde corresse o risco de ficar exposto, ahn, a contatos pessoais desagradáveis.

Mark não voltou a perguntar, com todas as letras, o que é que o NICE queria que ele fizesse, em parte porque começara a ter receio de pensarem que ele já o devia saber, e em parte porque uma pergunta direta pareceria uma grosseria naquela sala, uma grosseria que poderia excluí-lo subitamente da atmosfera quen­te e quase anestesiada de vaga, mas enormemente importante, confiança na qual estava a ser gradualmente envolvido.

— É muito amável — disse ele. — A única coisa que eu dese­jaria um pouco mais clara é o exato, bem, o exato âmbito da no­meação.

— Bem — disse o Sr. Wither numa voz tão profunda e rica que era quase um suspiro —, estou muito satisfeito que tenha levan­tado a questão agora de uma maneira totalmente informal. Obviamente que nem o senhor nem eu desejaríamos comprome­ter-nos, nesta sala, de uma forma que fosse de qualquer modo ofensiva dos poderes da Comissão. Compreendo inteiramente os seus motivos e respeito-os. Não estamos, é claro, falando de uma nomeação no sentido quase técnico do termo; seria impróprio da parte de ambos (embora, como bem me podia recordar, de for­mas diferentes) fazê-lo, ou pelo menos podia conduzir a certos inconvenientes. Mas penso que posso garantir-lhe da forma mais definitiva que ninguém pretende forçá-lo a enfiar-se numa camisa-de-força ou na cama de Procrusta. Não pensamos realmente, en­tre nós, em termos de funções estritamente demarcadas, é claro. Acho que homens como o senhor e eu estão, bem, para expor o caso francamente, pouco no hábito de usar conceitos desse tipo. Cada um do Instituto sente que o seu próprio trabalho é não tanto uma contribuição departamental para um fim já definido, como um momento ou grau na auto-definição progressiva de um todo orgânico.

E Mark disse (Deus lhe perdoe, porque era jovem e envergo­nhado, e vaidoso e tímido, tudo ao mesmo tempo):

— Penso que isso é muito importante. A elasticidade da vossa or­ganização é uma das coisas que me atraem.

Depois disso, não teve mais oportunidade de trazer o diretor ao assunto e sempre que a voz lenta e suave se calava, dava por si a responder-lhe no mesmo estilo, e aparentemente incapaz de proceder de outra forma, apesar da recorrência torturante da questão.

— De que é que estamos falando?

Já no fim da entrevista apareceu um momento de clare­za. Mr. Wither supunha que ele, Mark, acharia conveniente en­trar para o clube NICE: mesmo que só para os dias seguintes, estaria mais livre, como sócio, do que como convidado de alguém. Mark concordou e depois corou até ficar escarlate como um rapazinho ao saber que a forma mais fácil era tornar-se sócio vitalício, ao pre­ço de 200 libras. Ele não tinha essa quantia no banco. Claro que se obtivesse o novo emprego, com as suas quinze centenas por ano, tudo estaria bem. Mas tinha-o ele obtido? Havia afinal algum em­prego?

— Que tolice — disse em voz alta —, não tenho o meu talão de cheques comigo.

Um momento mais tarde encontrou-se na escada com Fevers­tone.

— Então? — perguntou Mark impaciente. Feverstone não pareceu ouvi-lo. — Então? — repetiu Mark. — Quando é que sa­berei a minha sorte? Quero dizer, se obtive o lugar?

— Olá, Guy! — berrou Feverstone subitamente para um homem no átrio lá em baixo. No momento seguinte tinha trotado até o fundo das escadas, agarrara o seu amigo pela mão, caloro­samente, e desaparecera. Mark, indo atrás dele lentamente, deu por si no átrio, silencioso, sossegado e pouco à vontade, no meio de grupos e pares de homens que tagarelavam, e que o iam atraves­sando em direção às duas grandes portas articuladas à sua esquerda.

 

Pareceu demorar muito, aquele estar de pé, aquele perguntar a si próprio o que fazer, aquele esforço de parecer natural e não en­carar os olhos dos estranhos. O ruído e os cheiros agradáveis que vinham das portas de fole tornava óbvio que as pessoas iam almo­çar. Mark hesitou, inseguro quanto à sua situação. Por fim, resol­veu que não podia ficar ali mais tempo parecendo um tolo, e en­trou.

Tinha tido a esperança de que houvesse diversas mesas pequenas numa das quais pudesse sentar-se sozinho. Mas havia apenas uma única mesa comprida, já quase tão cheia que, depois de procurar em vão por Feverstone, teve de se sentar ao lado de um estranho.

— Suponho que cada um se senta onde lhe apetece? — murmu­rou ele ao sentar-se, mas o outro aparentemente não ouviu. Era uma espécie de homem atarefado que comia muito depressa e falava ao mesmo tempo com o vizinho do outro lado.

— É isso mesmo — estava ele dizendo. — Como eu lhe disse, não me faz diferença alguma de que maneira vão resolver isso. Não tenho qualquer objeção a que a gente do IJP tome conta de tudo, se é isso que o DA quer, mas aquilo de que não gosto é que um homem seja responsável quando metade do trabalho está sendo feito por outra pessoa qualquer. Como disse a ele, você tem agora três CD tropeçando uns nos outros por causa de um trabalho que podia realmente ser feito por um empregado. Está tornando-se ridículo. Olhe para o que aconteceu esta manhã.

A conversa continuou nesta linha durante toda a refei­ção. Embora a comida e as bebidas fossem excelentes, foi um alí­vio para Mark quando as pessoas começaram a levantar-se da mesa. Seguindo o movimento geral, tornou a atravessar o átrio e veio para uma grande sala mobiliada como uma antecâmara onde estava sendo servido café. Ali, finalmente, viu Feverstone. Na verdade, teria sido difícil não vê-lo pois era o centro de um grupo e ria prodigiosamente.

Mark desejava aproximar-se dele, se mais não fosse para sa­ber se se esperava que ele ficasse ali a noite e, assim sendo, se lhe tinha sido destinado um quarto. Mas o nó de homens em torno de Feverstone era daquele tipo confidencial que é difícil de se entrar. Deslocou-se para uma das muitas mesas e começou a folhear as páginas lustrosas de um semanário ilustrado. De tan­tos em tantos segundos levantava os olhos para ver se havia algu­ma oportunidade de ter uma palavra a sós com Feverstone. À quinta vez que o fez, deu por si a olhar para a cara de um dos seus próprios colegas, um professor de Bracton chamado William Hingest. O Elemento Progressista chamava-lhe, mas não na cara dele, Bill, o Nevão.

Hingest não tinha, como Curry calculara, estado presente na reunião da Faculdade e mal falava com Lord Feverstone. Mark percebeu, com certo respeito, que estava ali um homem diretamente ligado ao NICE, um que começara, por assim dizer, num ponto para além de Feverstone. Hingest, que era um físico-químico, era um dos dois cientistas de Bracton que gozava de reputação fora da Inglaterra. Espero que o leitor não tenha sido induzido a supor que os professores de Bracton eram um corpo especialmen­te distinto. Não era certamente intenção do Elemento Progressis­ta eleger mediocridades para os lugares de professor, mas a sua determinação em eleger «homens capazes» limitava cruelmente o seu campo de escolha, e, como Busby uma vez dissera: «Não se pode ter tudo», Bill, o Nevão, usava um bigode enrolado à moda an­tiga no qual o branco tinha quase, mas não completamente, triun­fado sobre o amarelo, tinha um nariz grande em forma de bico e a cabeça calva.

— Este é um prazer inesperado — disse Mark com uma som­bra de formalismo. Tinha sempre um pouco de medo de Hingest.

— Ahn? — grunhiu Bill. — Eh? Oh, é você Studdock. Não sa­bia que tinham assegurado os seus serviços aqui.

— Tive pena de não o ver ontem na reunião da Faculdade — disse Mark.

Aquilo era mentira. O Elemento Progressista achava sempre um embaraço a presença de Hingest. Como cientista, e o único cientista realmente eminente que tinham, ele era a sua legítima propriedade; mas ele era aquela odiosa anomalia, o tipo erra­do de cientista. Glossop, que era um clássico, era o seu principal amigo na Faculdade. Tinha o ar (a «afetação», como Curry dizia) de não dar muita importância às suas próprias descober­tas revolucionárias na química e de dar muito mais valor a si pró­prio por ser um Hingest: a família era de uma antigüidade qua­se mítica, «nunca contaminada», como dissera o seu historiador do século xix, «por traidor, funcionário público ou baronato». Tinha sido particularmente ofensivo por ocasião da visita de Broglie a Edgestow. O francês gastara o seu tempo livre exclusivamente na companhia de Bill, o Nevão, mas quando um entusiástico assis­tente tinha apalpado o terreno a respeito do rico festim de ciência que os dois sábios deviam ter partilhado, Bill, o Nevão, parecera vasculhar a memória por um momento e depois replicara que pen­sava que não tinham chegado a tocar no assunto: «Gasear a insen­satez do Almanaque de Gotha, suponho», foi o comentário de Curry, embora não na presença de Hingest.

— Eh? Que é isso? Reunião da Faculdade? — disse o Nevão — De que é que estiveram falando?

— Da venda do Parque de Bragdon.

— Tudo disparates — murmurou o Nevão.

— Espero que tenha concordado com a decisão a que chegamos.

— Não faria qualquer diferença a decisão a que chegassem.

— Oh — disse Mark com alguma surpresa.

— Era tudo disparate. O NICE teria obtido o parque de qual­quer modo. Tinham poderes para impor a venda.

— Que coisa extraordinária! Foi-me dado a entender que eles iriam para Cambridge se nós não vendêssemos.

Hingest fungou ruidosamente.

— Nem uma palavra de verdade nisso. Quanto a ser uma coi­sa extraordinária, isso depende do que quer dizer. Nada há de extraordinário no fato dos professores de Bracton falarem toda a tarde sobre um assunto irreal. E não há nada de extraordi­nário no fato do NICE desejar, se possível, deixar a Bracton o odioso de fazer do coração da Inglaterra um cruzamento entre um hotel americano abortado e uma fábrica de gás glorificada. A úni­ca parte realmente intrigante é a razão por que NICE havia de querer este pedaço de terra.

— Suponho que descobriremos à medida que as coisas prosse­guirem.

— Você talvez. Eu não.

— Oh? — disse Mark interrogativamente.

— Já tive o suficiente — disse Hingest, abaixando a voz. — Vou-me embora esta noite. Não sei o que você fazia em Bracton, mas se prestava para alguma coisa, aconselhá-lo-ia a voltar e ficar por lá.

— Realmente! — disse Mark. — Por que é que diz isso?

— Para um fulano de idade como eu, não faz diferença — dis­se Hingest —, mas são capazes de fazer o diabo consigo. É claro que tudo depende daquilo de que um homem gosta.

— Na realidade — disse Mark —, ainda não me decidi comple­tamente. — Tinham-lhe ensinado a considerar Hingest um reacionário perverso. — Nem sequer sei qual seria o meu trabalho se ficasse.

— Qual é o seu ramo?

— Sociologia.

— Huh — disse Hingest. — Nesse caso posso indicar-lhe o homem a quem vai ficar subordinado. Um tipo chamado Steele. Ali adiante, junto à janela, está vendo?

— Talvez me pudesse apresentar.

— Então está resolvido a ficar?

— Bem, suponho que tenho pelo menos de ir ter com ele.

— Muito bem — disse Hingest. — Não é nada comigo. — Depois acrescentou em voz mais alta: — Steele.

Steele voltou-se. Era um homem alto, que não sorria, com o tipo de cara que, embora comprida e parecida com um cavalo, tinha, contudo, lábios um tanto grossos e mal-humorados.

— Este é Studdock — disse Hingest —, o novo homem para o seu departamento. — Depois virou as costas e afastou-se.

— Oh — disse Steele. Então, depois de uma pausa: — Ele dis­se o meu departamento?

— Foi isso que ele disse — replicou Mark com uma tentativa de sorriso —, mas talvez ele se tenha enganado. Sou um sociólogo, se isso traz alguma luz ao caso.

— É verdade que sou o CD de sociologia — disse Steele —, mas esta é a primeira vez que ouço falar de si. Quem lhe disse que vi­nha para cá?

— Bem, na realidade — disse Mark —, tudo isto é um tanto va­go. Acabo de ter uma conversa com o diretor-adjunto, mas, efetivamente, não entramos em pormenores.

— Como é que conseguiu vê-lo?

— Lord Feverstone apresentou-me. — Steele assobiou.

— Olhe lá, Cosser — disse para um homem de cara sardenta que estava passando —, ouça isto. Feverstone acaba de nos enfiar este fulano no nosso departamento. Levou-o direto ao DA sem me dar uma palavra sobre o caso. Que é que pensa disto?

— Bem, diabos me levem! — disse Cosser, mal deitando os olhos em Mark, mas fitando fixamente Steele.

— Desculpem — disse Mark, um pouco mais alto e menos à vontade do que falara até então. — Não se alarmem. Parece que me puseram numa situação um tanto falsa. Deve ter havido um mal-entendido qualquer. Na realidade, de momento, estou apenas dando uma vista de olhos. Em qualquer caso, ainda não tenho intei­ra certeza de tencionar ficar.

Nenhum dos outros dois ligou qualquer importância a esta última sugestão.

— É mesmo do Feverstone — disse Cosser a Steele. Steele virou-se para Mark

— Eu o aconselharia a não levar em grande conta aquilo que Lord Feverstone diz aqui — observou. — Isto não é de forma al­guma assunto dele.

— Tudo a que me oponho — disse Mark, desejando que pudes­se impedir a cara de ficar vermelha — é ser colocado numa posição falsa. Apenas vim até aqui como experiência. É indiferente se vou ter um lugar no NICE ou não.

— Está vendo — disse Steele para Cosser —, não há realmente lugar para um homem na nossa peça, especialmente para alguém que não conhece o trabalho. A não ser que o pusessem no UL.

— É isso mesmo — disse Cosser.

— Sr. Studdock, penso eu — disse uma nova voz junto ao cotovelo de Mark, uma voz aguda que parecia desproporcionada em relação ao enorme monte que era o homem que viu quando virou a cara. Reconheceu quem falara imediatamente. A sua cara lisa e escura e o cabelo negro eram inconfundíveis, e também o so­taque estrangeiro. Aquele era o Prof. Philostrato, o grande fisiologista, ao lado de quem Mark ficara sentado num jantar há cerca de três anos atrás. Era gordo àquele grau que é cômico no palco, mas cujo efeito não é engraçado na vida real. Mark ficou encanta­do que um homem daqueles se lembrasse dele.

— Estou muito satisfeito que tenha vindo juntar-se a nós — disse Philostrato, agarrando no braço de Mark e conduzindo-o de­licadamente para longe de Steele e de Cosser.

— Para lhe dizer a verdade — disse Mark —, não tenho a certe­za de tê-lo feito. Quem me trouxe foi Feverstone, mas desapare­ceu, e Steele, eu iria para o departamento dele, suponho, não pare­ce saber nada a meu respeito.

— Ora! Steele! — disse o professor. — Isso é tudo uma baga­tela. Está ficando grande demais para as botas. Um dia destes terá de ser posto no seu lugar. E pode ser você quem o vá fazer. Li todos os seus trabalhos, sim, sim. Não lhe dê importância.

— Tenho fortes objeções a ser colocado numa situação falsa... — começou Mark.

— Ouça, meu amigo — interrompeu Philostrato —, tem de tirar todas essas idéias da sua cabeça. A primeira coisa a enten­der é que o NICE é sério. Não é nada menos do que a existência da raça humana que depende do nosso trabalho: do nosso traba­lho real, compreende? Vai encontrar fricções e impertinências no meio desta canalha, desta ralé. Não se lhes deve mais considera­ções do que ao desafeto por um camarada oficial quando a bata­lha está no seu auge.

— Na medida em que me seja dada para fazer alguma coisa que valha a pena fazer — disse Mark —, não deixarei que nada desse tipo venha interferir com ela.

— Sim, sim, está muito bem. O trabalho é mais importante do que pode ainda compreender. Vai ver. Estes Steeles e Feverstones, não têm importância alguma. Enquanto tiver a boa vontade do diretor-adjunto, pode dizer-lhes adeus com os dedos. Apenas precisa ouvir a ele e a mais ninguém, compreende? Ah, e há um outro. Não tenha a Fada como inimigo. Quanto ao resto, ria-se deles.

— A Fada?

— Sim. Chamam-lhe a Fada. Oh meu Deus, uma inglesa ter­rível. É a chefe da nossa polícia, a Polícia Institucional. Aí vem ela. Vou apresentá-lo. Miss Hardcastle, permita que lhe apresente o Sr. Studdock.

Mark deu por si a torcer-se com o aperto de mão digno de um fogueiro ou de um carregador, de uma mulher grande, de unifor­me preto de saia curta. A despeito de um busto que teria sido moti­vo de crédito numa empregada de bar da era vitoriana, era mais de compleição larga do que gorda e o cabelo cinzento cor de ferro estava aparado curto. O rosto era quadrado, severo e pálido e a voz profunda. Uma mancha de batom aplicado com violenta falta de atenção à forma real da boca era a sua única concessão à moda, e ro­lava ou mascava um comprido charuto negro, apagado, entre os dentes. Enquanto falava tinha o hábito de o tirar da boca, olhar atentamente para a mistura de batom e saliva na extremidade mastigada e depois tornar a colocá-lo mais firmemente do que an­tes. Sentou-se imediatamente numa cadeira perto do local em que Mark estava de pé, passou a perna direita por cima dos bra­ços da cadeira e fixou-o com um olhar de fria intimidade.

 

Click-clack, distintamente no silêncio, onde Jane esperava de pé, chegaram os passos da pessoa do outro lado do muro. Depois a porta abriu-se e Jane encontrou-se cara a cara com uma mulher alta, mais ou menos da sua idade. Esta pessoa olhou-a com olhos aten­tos mas que nada diziam.

— Vive aqui uma Miss Ironwood? — disse Jane.

— Sim — disse a outra moça, sem abrir mais a porta nem se afastando para o lado.

— Quero vê-la, por favor — disse Jane.

— Tem hora marcada? — disse a mulher alta.

— Bem, não exatamente — disse Jane. — Quem me disse pa­ra vir aqui foi o Dr. Dimble, que conhece Miss Ironwood. Ele disse que eu não ia precisar marcar hora.

— Oh, se vem da parte do Dr. Dimble, é outra coisa — disse a mulher. — Entre. Espere só um momento enquanto trato do fecho. Assim é melhor. Agora sim. Não há espaço pa­ra dois neste carreiro, de modo que tem de desculpar por eu ir à frente.

A mulher levou-a por um carreiro de tijolo ao lado do muro, no qual cresciam árvores de fruto, e depois para a esquerda ao lon­go de um carreiro com musgo, com tufos de groselhas de cada lado. Depois veio um pequeno relvado com um balanço no meio, e para lá deste, uma estufa. Aqui encontraram-se no tipo de lugarejo que por vezes aparece nas redondezas de um grande jardim, des­cendo na realidade por uma pequena rua que tinha um celeiro e um estábulo num lado e, no outro, uma segunda estufa, e um alpendre com vasos e uma pocilga*, habitada, como os grunhidos e o cheiro não inteiramente agradável a informavam. Depois ha­via caminhos estreitos através de uma horta numa encosta bastante íngreme e depois tufos de roseiras, cheias de espinhos, no seu aspecto invernoso. Num dado lugar, iam por uma vereda feita de tábuas simples. Isto lembrou qualquer coisa a Jane. Era um jardim muito grande. Era como, como, sim, agora já tinha a idéia: era como o jardim em Peter Rabbit. Ou era como o jardim no Romance da Rosa? Não, não era realmente nada pare­cido. Ou como o jardim de Klingsor? Ou o jardim em Alice? Ou como o jardim no alto de qualquer torre do templo da Mesopotâmia que tinha provavelmente dado origem à lenda toda do Paraí­so? Ou simplesmente como todos os jardins murados? Freud dizia que gostávamos de jardins porque eles eram símbolos do corpo feminino. Mas esse deve ser um ponto de vista de homem. Presu­mivelmente os jardins querem dizer algo diferente nos sonhos das mulheres. Ou não? Será que homens e mulheres se sentem ambos interessados no corpo feminino e até, embora soe ridículo, quase da mesma maneira? Uma frase ergueu-se na memória de­la. «A beleza da fêmea é a raiz da alegria da fêmea tanto como do macho, e não é por acidente que a deusa do Amor é mais antiga e mais forte do que o deus.» Onde é que ela teria lido isto? E, incidentalmente, que tremendos disparates tinha estado pensando durante o último minuto ou coisa assim! Afastou todas aquelas idéias a respeito de jardins e decidiu tomar cuidado. Uma sensação curiosa de que agora estava em terreno hostil, ou pelo menos estranho, avisou-a de que devia estar com os sentidos aguçados. Nesse momento, emergiram subitamente de entre plantações de rododendros e loureiro e encontraram-se junto a uma pequena porta lateral, flanqueada por um tanque de água, na comprida parede de uma casa grande. Uma janela fechou com ruído, por cima delas.

Um minuto ou dois mais tarde, Jane estava sentada à espera numa sala grande e escassamente mobiliada, aquecida por um fogão fechado. A maior parte do pavimento estava nua, e as pare­des, por cima do painel de madeira, eram de estuque branco acinzentado, de modo que o efeito geral era levemente austero e conventual*. Os passos da mulher alta foram morrendo nas passa­gens e a sala tornou-se muito sossegada quando isso aconteceu. Ocasionalmente podia ouvir-se o grasnar das gralhas.

«Deixei-me ir nisto», pensou Jane, «vou ter de contar a esta mulher aque­le sonho e ela vai fazer toda espécie de perguntas.» Conside­rava-se, em geral, uma pessoa moderna que podia falar de qual­quer coisa sem embaraço, mas começava a parecer-lhe muito diferente enquanto estava sentada na sala. Todo o tipo de reservas secretas no seu programa de franqueza, coisas que, ela compreendia agora, tinha posto de lado para nunca serem conta­das, vieram rastejando para dentro da sua consciência. Era sur­preendente como muito poucas delas estavam relacionadas com o sexo.

— Nos dentistas — pensou Jane —, eles, pelo menos, deixam jor­nais ilustrados na sala de espera. Levantou-se e abriu o único livro que estava em cima da me­sa no meio da sala. Instantaneamente, os olhos dela pousaram nas seguintes palavras: «A beleza da fêmea é a raiz da alegria pa­ra a fêmea, bem como o macho, e não é por acidente que a deusa do amor é mais velha e mais forte do que o deus. Desejar o dese­jo da sua própria beleza é a vaidade de Lilith, mas desejar o des­frutar da sua própria beleza é a obediência de Eva e em ambas é no amante que a amada saboreia o seu próprio prazer. Assim como a obediência é a escadaria do prazer, também a humildade é...»

Nesse momento a porta abriu-se subitamente. Jane ficou ver­melha enquanto fechava o livro e levantava os olhos. A mesma moça que a deixara entrar tinha aparentemente aca­bado de abrir a porta e estava ainda de pé no vão da porta. Jane concebera agora por ela aquela admiração quase apaixonada que as mulheres, mais vezes do que se supõe, sentem por outras mulheres cuja beleza não é do seu próprio tipo. «Seria bonito», pensou Jane, «ser assim, tão direita, tão direta, tão valente, tão própria para vir num cavalo e tão divinamente alta.»

— Miss Ironwood está em casa? — disse Jane.

— É a Sra. Studdock? — disse a moça.

— Sim — disse Jane.

— Vou levá-la já à presença dela — disse a outra. — Temos es­tado à sua espera. O meu nome é Camilla, Camilla Denniston.

Jane foi atrás dela. Pela estreiteza e simplicidade das passa­gens, Jane julgou que ainda estavam nas traseiras da casa e que, se assim era, devia ser na verdade uma casa muito grande. Anda­ram bastante até Camilla bater a uma porta e se pôr de lado para Jane entrar, depois de dizer em voz baixa: («como uma cria­da», pensou Jane).

— Ela veio. — E Jane entrou, e lá estava Miss Ironwood toda vestida de preto, sentada com as mãos cruzadas sobre os joelhos, tal e qual como Jane a tinha visto em sonhos, se é que estivera a sonhar, na noite anterior, no apartamento.

— Sente-se, minha jovem — disse Miss Ironwood.

As mãos que estavam cruzadas nos joelhos eram muito gran­des e embora ossudas não pareciam grosseiras, e mesmo sentada Miss Ironwood era extremamente alta. Tudo nela era grande: o nariz, os lábios que não sorriam e os olhos cinzentos. Estava tal­vez mais próxima dos 60 do que dos 50 anos. Havia na sala uma atmosfera que Jane achou...

— Jane Studdock.

— É casada?

— Sim.

— O seu marido sabe que veio ter conosco?

— Não.

— E a sua idade, por favor?

— 23.

— E agora — disse Miss Ironwood —, o que é que tem para me dizer?

Jane inspirou profundamente.

— Tenho estado a ter maus sonhos e sentindo-me deprimida ultimamente — disse ela.

— O que eram os sonhos? — perguntou Miss Ironwood.

A narrativa de Jane, ela não a contou muito bem, demorou al­gum tempo. Enquanto falava, mantinha os olhos fixos nas gran­des mãos de Miss Ironwood e na sua saia preta e no lápis e no livro de notas. E foi por isso que subitamente parou. Pois enquanto ia seguindo viu a mão de Miss Ironwood parar de escrever e os dedos enrolarem-se em torno do lápis: dedos que pareciam imensa­mente fortes. A cada instante apertavam-se, até os nós ficarem brancos e as veias ficarem saltadas nas costas das mãos e por últi­mo, como se sob a influência de qualquer contida emoção, parti­ram o lápis em dois. Foi então que Jane parou, estupefata, e olhou para a cara de Miss Ironwood. Os grandes olhos cinzentos continuavam a olhar para ela sem qualquer mudança de expres­são.

— Continue, por favor, minha jovem — disse Miss Ironwood.

Jane retomou a sua história. Quando terminou, Miss Iro­nwood fez-lhe um certo número de perguntas. Depois disso ficou calada tanto tempo que Jane disse:

— Pensa que há qualquer coisa séria funcionando mal em mim?

— Nada há funcionando mal em si — disse Miss Ironwood.

— Quer dizer que isto vai desaparecer?

— Não tenho qualquer meio de o dizer. Diria que provavel­mente não.

O desapontamento ensombrou a cara de Jane.

— Então, não se pode fazer nada neste caso? Foram sonhos horríveis, horrivelmente vívidos, nada parecidos com sonhos.

— Posso compreender isso perfeitamente.

— É alguma coisa que não se pode curar?

— A razão por que não pode curar-se é porque não está doente.

— Mas tem de haver qualquer coisa mal. Certamente não é normal ter sonhos como estes.

Houve uma pausa.

— Penso — disse Miss Ironwood — que é melhor contar-lhe toda a verdade.

— Sim, conte — disse Jane com voz tensa. As palavras da ou­tra tinham-na assustado.

— E vou começar por dizer isto — continuou Miss Ironwood. — Você é uma pessoa mais importante do que imagina.

Jane não disse nada, mas pensou intimamente: «Está brincando comigo. Pensa que sou maluca.»

— Qual era o seu sobrenome de solteira? — perguntou Miss Iro­nwood.

— Tudor — disse Jane. Numa outra ocasião qualquer teria dito o sobrenome com certa falta de naturalidade, pois estava muito desejosa de que não a julgassem vaidosa da sua antiga ascendência.

— O ramo da família de Warwickshire?

— Sim.

— Alguma vez leu um pequeno livro, só tem quarenta páginas, escrito por um dos seus antepassados sobre a batalha de Worcester?

— Não. O meu pai tinha um exemplar, o único, segundo ele dizia. Mas nunca o li. Perdeu-se quando se desfez a casa depois da sua morte.

— Seu pai estava enganado ao pensar que era o único exem­plar. Há, pelo menos, outros dois; um está na América e o outro es­tá nesta casa.

— E então?

— O seu antepassado fez um completo e, no conjunto, correto relato da batalha, que ele diz ter acabado no mesmo dia em que ela foi travada. Mas ele não estava lá. Na ocasião estava em York.

Jane, que realmente não estava acompanhando a histó­ria, olhou para Miss Ironwood.

— Se ele estava dizendo a verdade — disse Miss Ironwood —, e nós pensamos que estava, sonhou-a. Está compreendendo?

— Sonhou a respeito da batalha?

— Sim. Mas sonhou-a corretamente. Viu a batalha autênti­ca no seu sonho.

— Não estou percebendo a relação.

— Visão, o poder de sonhar realidades, é por vezes hereditá­rio — disse Miss Ironwood.

Algo parecia estar interferindo com a respiração de Jane. Teve a sensação de a ofenderem, aquilo era exatamente o tipo de coisa que detestava: algo vindo do passado, algo irracional e que não tinha sido chamado, e que saía da sua toca e vinha interferir com ela.

— Pode ser provado? — perguntou. — Quero dizer, apenas te­mos a palavra dele a afirmá-lo.

— Temos os seus sonhos — disse Miss Ironwood. A sua voz, sempre grave, tornara-se severa. Um pensamento fantástico cru­zou a mente de Jane. Aquela mulher teria a idéia de que não se de­ve chamar mentirosos aos antepassados, ainda que remotos, de cada um?

— Os meus sonhos? — disse ela um tanto secamente.

— Sim — disse Miss Ironwood.

— O que quer dizer?

— A minha opinião é que nos seus sonhos viu coisas reais. Viu Alcasan quando ele estava realmente sentado na cela de conde­nado e viu um visitante que ele efetivamente teve.

— Mas, mas, oh, isso é ridículo — disse Jane. — Essa parte foi mera coincidência. O resto foi apenas um pesadelo. Era tudo im­possível. Ele desatarrachou a cabeça, estou lhe dizendo. E eles desenterraram o velho horroroso. Fizeram-no voltar à vida.

— Existem aqui algumas confusões, sem dúvida. Mas na mi­nha opinião existem realidades por trás até desses episódios.

— Receio não acreditar nessas coisas — disse Jane friamente.

— A forma como foi criada torna natural não acreditar — repli­cou Miss Ironwood. — A não ser, é claro, que tivesse descoberto por si própria que tem tendência para sonhar coisas reais.

Jane pensou no livro em cima da mesa de que aparentemen­te se lembrara, antes de o ter visto, e depois havia a própria apa­rência de Miss Ironwood, que também vira antes de a ter visto. Mas tudo isso devia ser disparate.

— Não pode então fazer nada por mim?

— Posso dizer-lhe a verdade — disse Miss Ironwood. — É o que tenho tentado fazer.

— Quero dizer, não pode fazer parar isto, curá-lo?

— Visão não é uma doença.

— Mas eu não a quero — disse Jane com paixão. — Tenho de pará-la. Detesto este tipo de coisas.

Miss Ironwood não disse nada.

— Não conhece, ao menos, alguém que seja capaz de parar isto? — disse Jane — Não me pode recomendar alguém?

— Se for a um psicoterapeuta comum — disse Miss Ironwood —, ele procederá baseado na admissão de que os sonhos refletem apenas o seu próprio subconsciente. Vai procurar tratá-la. Não sei quais serão os resultados do tratamento baseado numa hipótese dessas. Receio que pudessem ser muito sérios. E, certa­mente, não faria desaparecer os sonhos.

— Mas o que é tudo isto? — disse Jane. — Quero levar uma vi­da normal. Quero fazer o meu trabalho. É insuportável. Por que é que fui escolhida para esta coisa horrível?

— A resposta para isso é conhecida apenas por autoridades mui­to superiores a mim própria.

Houve um curto silêncio. Jane fez um movimento vago e dis­se um tanto mal-humorada:

— Bem, se nada pode fazer por mim, talvez seja melhor ir an­dando — depois, subitamente, acrescentou: — Mas como pode a senhora saber tudo isto? Quero dizer: a que realidades se está refe­rindo?

— Penso — disse Miss Ironwood — que você própria tem mais razão para suspeitar da verdade dos seus sonhos do que me disse até agora. Senão, em breve terá. Entretanto, vou responder à sua pergunta. Sabemos que os seus sonhos são parcialmente verda­deiros porque condizem com informações que já possuímos. Foi por ter visto a sua importância que o Dr. Dimble a mandou falar conosco.

-— Quer dizer que ele me mandou aqui não para ser curada mas para prestar informações? — disse Jane. A idéia ajustava-se a coisas que observara no comportamento dele quando pela pri­meira vez lhe contara o caso.

— Exatamente.

— Desejaria ter sabido disso antes — disse Jane com frieza, e dessa vez pondo-se definitivamente de pé. — Receio que tudo tenha sido um mal-entendido. Imaginei que o Dr. Dim­ble procurava ajudar-me.

— E procurava. Mas procurava também fazer alguma coisa, ao mesmo tempo, que é mais importante.

— Suponho que deveria estar grata pelo simples fato de me terem atendido — disse Jane secamente —, e como, exatamen­te, é que eu ia ser ajudada por, por todo este tipo de coisas? — A tentativa de gelada ironia desfez-se quando disse estas últimas palavras e a cólera vermelha e sem disfarce voltou-lhe ao rosto. Sob alguns aspectos era muito jovem.

— Minha jovem — disse Miss Ironwood —, não entende totalmente a seriedade deste assunto. As coisas que viu referem-se a al­guma coisa, comparadas com a qual, felicidade, ou mesmo a vida, da senhora e minha, não têm importância alguma. Tenho de lhe pedir que enfrente a situação. Não pode ver-se livre do seu dom. Pode tentar suprimi-lo, mas falhará e ficará tremendamente as­sustada. Por outro lado pode pô-lo à nossa disposição. Se o fizer, ficará muito menos assustada, a longo prazo, e estará ajudando a salvar a raça humana de um enorme desastre. Ou, numa terceira hipótese, pode contar a outra pessoa qualquer o que se passa. Se o fizer, aviso-a que, quase com certeza, cairá nas mãos de outras pessoas que estão tão ansiosas como nós de utilizar a sua faculdade e que não darão maior importância à sua vida e feli­cidade do que às de uma mosca. Não é de forma alguma imprová­vel que já saibam, e que estejam, involuntariamente, andado a espioná-la. E, se assim for, não descansarão enquanto não lhe puserem as mãos. Aconselharia, até no seu próprio interesse, a juntar-se ao nosso lado.

— Continua falando em nós e nosso. São alguma espécie de com­panhia?

— Sim, pode chamá-la de uma companhia.

Jane estivera de pé durante aqueles últimos minutos; e esti­vara quase acreditando no que ouvira. Depois, subitamente, voltou toda a sua repugnância, toda a sua vaidade ferida, o seu ressen­timento contra a complicação sem sentido na qual parecia ter sido apanhada e o seu desagrado geral pelo misterioso e pelo não fami­liar. Naquele momento nada mais parecia interessar além de sair da­quela sala e afastar-se da voz grave e paciente de Miss Ironwood. «Me deixou pior do que estava», pensou Jane, que ainda se consi­derava uma doente. Em voz alta disse:

— Tenho de ir para casa agora. Não sei do que tem estado falando. Não quero ter nada a ver com essas coisas.

 

Mark descobriu, por fim, que se esperava que ele ficasse, pelo menos aquela noite, e quando subiu para se vestir para o jantar sentia-se mais animado. Isso era em parte devido a um whisky com soda tomado com a «Fada» Hardcastle antes e em parte pelo fato de, com um olhar de relance ao espelho, ter visto que já po­dia tirar o indesejável pedaço de algodão do lábio. O dormitório, com fogo na lareira e com o banheiro anexo tinha também algo a ver com o fato. Por sorte, tinha se deixado convencer por Jane a comprar aquele novo traje! Posto em cima da cama, tinha muito bom aspecto, e via agora que o traje velho realmente não teria servido. Mas o que o tinha tranqüili­zado, mais do que tudo, fora a sua conversa com a Fada.

Seria ilusório dizer que gostava dela. Ela tinha na realidade excitado nele a repulsa que um homem jovem sente pela proximi­dade de algo grosseiramente, ou mesmo insolentemente sexual, e que ao mesmo tempo não é nada atraente. E algu­ma coisa nos seus olhos frios lhe tinha dito que ela tinha plena consciência daquela reação e a achava divertida. Tinha-lhe con­tado uma grande quantidade de histórias pesadas. Mui­tas vezes antes daquela, Mark tinha tido arrepios com os esforços desastrosos da fêmea emancipada para se dedicar a este tipo de humor, mas esses arrepios tinham sido sempre consolados por uma sensação de superioridade. Desta vez tinha a sensação de que ele é que era o alvo; aquela mulher estava a exasperar a modéstia masculina para seu próprio divertimento. Mais tarde, deri­vara para reminiscências da polícia. A despeito de um certo ceticismo inicial, Mark foi ficando gradualmente horrorizado pela sua admissão de cerca de trinta por cento dos nossos julgamentos de assassinatos acabarem pelo enforcamento de um homem ino­cente. Havia detalhes, também, a respeito do palanque de exe­cução que não lhe tinham ocorrido antes. Tudo isto era desagradável. Mas era compensado pelo cará­ter deliciosamente esotérico da conversa. Diversas vezes naque­le dia o tinham feito sentir-se um estranho, essa sensação desa­parecera por completo enquanto Miss Hardcastle estivera falando com ele. Tinha a sensação de estar a passar para o lado de dentro. Miss Hardcastle levara aparentemente uma vida excitante. Tinha sido, em diferentes ocasiões, uma sufragista, uma pacifista e uma fascista britânica. Tinha passado pelas mãos da polícia e tinha si­do presa. Por outro lado, encontrara primeiros-ministros, ditado­res e estrelas de cinema famosas; toda a sua história era história secreta. Sabia, por ter estado nos dois extremos, aquilo que a for­ça policial podia fazer e o que não podia.

— Especialmente agora — disse ela. — Aqui no Instituto, esta­mos a apoiar a cruzada contra a «papelada».

Mark percebeu que, para a Fada, o aspecto policial do Institu­to era o aspecto realmente importante. Existia para aliviar o exe­cutivo comum daquilo a que podiam chamar-se os casos sanitá­rios, uma categoria que se estendia da vacinação a acusações de vícios contra a Natureza, donde, como salientou, era apenas um passo para fazer entrar todos os casos de extorsão. No que respei­ta ao crime em geral, tinham já vulgarizado na imprensa a idéia de que o Instituto devia ser autorizado a experimentar muito lar­gamente, na esperança de descobrir até onde tratamento huma­no, recuperativo, podia substituir a velha noção de punição «retribuitiva» ou «vingativa». Era aqui que uma quantidade de «papelada» se levantava na frente deles.

— Mas só há dois jornais que não controlamos — disse a Fa­da. — E havemos de os esmagar. Temos de levar o homem comum a um estado tal que ele diga automaticamente «sadismo» quando ouvir a palavra castigo. E então teremos carta branca.

Mark não aprendeu de imediato. Mas a Fada salientou que o que embaraçara todas as forças policiais inglesas até à data era precisamente a idéia do merecido castigo. Pois o que era sempre finito: podia-se fazer uma certa coisa a um criminoso, mas mais nada. O tratamento recuperativo, por outro lado, não precisava ter limite fixo algum; podia continuar até ter produzido a cura, e aqueles que o estavam a ministrar é que decidiriam quan­do tal aconteceria. E se a cura era humana e desejável, quanto mais não seria a prevenção? Em breve, quem quer que estivesse esta­do nas mãos da polícia por qualquer razão viria a ficar sob o controle do NICE; e por fim todos os cidadãos.

— E é aqui que você e eu entramos, meu filho — acrescentou n Fada, batendo levemente no peito de Mark com o indicador. — A longo prazo não existe distinção alguma entre o trabalho da po­lícia e a sociologia. Você e eu temos de trabalhar de mãos dadas.

Isto trouxera Mark de volta às suas dúvidas quanto sabendo se efetivamente lhe estavam a dar um emprego, e se sim, qual era ele. A Fada tinha avisado que Steele era um homem perigoso.

— Há duas pessoas a respeito das quais precisa ser muito cau­teloso — disse ela. — Um é Frost e o outro é o velho Wither. — Mas rira dos seus receios em geral.

— Já está aqui, descanse, filho — disse. — Só não seja muito esquisito quanto ao que exatamente vai ter de fazer. Há de ver à medida que for aparecendo. Wither não gosta de gente que tente apertá-lo contra a parede. Não serve de nada dizer que veio para aqui para fazer isto e que não fará aquilo. O jogo é muito rápido, mesmo neste momento, para esse tipo de coisa. Tem de me tornar útil. E não acredite em tudo o que lhe contam.

Ao jantar Mark encontrou-se sentado ao lado de Hingest.

— Bem — disse Hingest —, o caçaram finalmente, hein?

— Acho bem que sim — disse Mark.

— Porque — disse Hingest —, se chegar a melhor conclusão, eu vou-me embora de carro esta noite e podia dar-lhe carona.

— Ainda não me disse por que é que nos deixa — disse Mark. — Ora bem, tudo depende daquilo de que um homem gosta. Se apreciar a companhia desse eunuco italiano e do pároco maluco e dessa Hardcastle, a avó dela arrancar-lhe-ia as orelhas se fosse viva, é claro que nada mais há a dizer.

— Acho que dificilmente será para ser julgado em termos pu­ramente sociais, quero dizer, isto é alguma coisa mais do que um clube.

— Eh? Julgado? Nunca julguei nada na minha vida, tanto quanto tenho conhecimento, exceto num concurso de flores. É tudo uma questão de gosto. Vim até aqui porque pensava que tinha algo a ver com ciência. Agora que verifiquei que é qualquer coisa mais parecida com uma conspiração política, vou-me embora para casa. Estou velho demais para esse tipo de coisas e se eu quisesse meter-me numa conspiração, esta não seria a minha escolha.

— Quer dizer, suponho, que o elemento de planejamento social não lhe desperta interesse? Eu compreendo perfeitamente que não se enquadra no seu trabalho, como o faz com ciências como a sociologia, mas...

— Não há ciência nenhuma como a sociologia. E se eu achas­se que a química começava a ajustar-se com uma polícia secreta dirigida por uma virago de meia-idade que não usa cinta e com um esquema para retirar a cada inglês a sua quinta, a sua loja e os seus filhos, mandava a química para o Diabo e voltava a dedicar-me à jardinagem.

— Penso que compreendo o sentimento que ainda se atribui ao pequeno homem, mas quando se tem de estudar a realidade como eu tenho de fazer...

— Eu ia querer fazer tudo em bocados e pôr qualquer ou­tra coisa no lugar. É claro. É o que acontece quando se estudam os homens: encontram-se enganos. Acontece que eu acredito que não se podem estudar os homens; podem-se somente conhecer, o que é uma coisa completamente diferente. Porque os estudamos, queremos fazer com que as classes mais baixas governem o país e ouçam a música clássica, o que é uma tolice. Também queremos retirar-lhes tudo o que torna a vida digna de ser vivida e não ape­nas a eles mas a toda a gente exceto uma quantidade de pedan­tes e de professores.

— Bill! — disse a Fada Hardcastle subitamente, lá do outro lado da mesa, numa voz tão alta que mesmo ele não podia ignorá-la. Hingest fixou os olhos nela e a cara dele tornou-se vermelho-escura.

— É verdade — berrou a Fada — que se vai embora logo depois do jantar?

— Sim, Miss Hardcastle, é.

— Estava pensando se me podia dar uma carona.

— Ficaria satisfeito de o fazer — disse Hingest numa voz que não tinha a intenção de enganar ninguém —, se formos na mes­ma direção.

— Para onde vai você?

— Vou para Edgestow.

— Passa por Brenstock?

— Não. Deixo o desvio no cruzamento logo depois do portão da frente de Lord Holywood e desço por aquilo a que costumam cha­mar Potter’s Lane.

— Oh, raios! Não me serve. O melhor ainda é esperar pela ma­nhã.

Depois disto Mark viu-se ocupado com o seu vizinho do lado esquerdo e não viu outra vez Bill, o Nevão, até o encontrar no átrio, depois do jantar. Estava de sobretudo e pronto para ir para o carro.

Começou a falar enquanto abria a porta e assim Mark foi leva­do a acompanhá-lo através da curva de cascalho até ao ponto on­de o carro estava estacionado.

— Siga o meu conselho, Studdock — disse ele. — Ou, pelo me­nos, pense bem no caso. Eu próprio não acredito na sociologia, mas você tem na sua frente uma carreira perfeitamente decente se ficar em Bracton. Não trará benefício nenhum a si próprio mistu­rando-se com o NICE, e, Deus sabe, também não trará nenhum benefício a ninguém.

— Suponho que existem sempre duas formas de ver a respei­to de tudo — disse Mark.

— Eh? Duas formas de ver? Existem dezenas deformas de ver toda e qualquer coisa, até se encontrar a resposta. Então nada mais há senão uma. Mas não é nada comigo. Boa noite.

— Boa noite, Hingest — disse Mark. O outro pôs o carro em marcha e foi-se embora.

Havia no ar um toque de geada. O ombro da Orion, embora Mark não conhecesse sequer essa importante constelação, cha­mejava na sua direção por cima do topo das árvores. Sentiu uma certa hesitação em voltar para dentro de casa. Podia querer dizer mais conversa com pessoas interessantes e influentes; mas também podia querer dizer sentir-se mais uma vez um estranho, ron­dando por ali e assistindo a conversas onde não podia entrar. De qualquer forma, sentia-se cansado. Passeando ao longo da frente da casa, acabou por chegar a uma outra porta mais peque­na, pela qual, julgou ele, se podia entrar sem passar pelo átrio pelas salas públicas. Assim fez, e subiu para o seu quarto, para se deitar, imediatamente.

 

Camilla Denniston acompanhou Jane à saída, não pela peque­na porta no muro pela qual ela tinha entrado, mas pelo portão principal que abria para a mesma estrada cerca de cem jardas mais adiante. Uma luz amarela, vinda de uma fenda na parte oes­te do céu cinzento, despejava um brilho gelado e de curta duração sobre toda a paisagem. Jane tinha tido vergonha de se mostrar zangada ou ansiosa em frente de Camilla; como resultado ambos os sentimentos se tinham realmente reduzido quando disse adeus. Mas permanecia um decidido desagrado por aquilo a que chama­va «todos aqueles disparates». Na verdade não tinha a certeza de que fosse disparate, mas já tinha resolvido tratá-lo como se fos­se. Ela não se iria «meter naquilo», não se deixaria arrastar para aquilo, cada um tinha de viver a sua própria vida. Evitar compli­cações e interferências tinha há muito sido um dos seus primei­ros princípios. Mesmo quando descobrira que ia casar-se com Mark se ele lhe pedisse, o pensamento: «Mas eu tenho de conti­nuar a manter a minha própria vida», tinha surgido de imediato e nun­ca ausente do seu espírito por mais do que alguns minutos de cada vez. Um certo ressentimento contra o próprio amor, e por conse­guinte contra Mark, por invadir assim a sua vida, permanecia. Estava, pelo menos, muito vividamente consciente de quanto uma mulher cede ao casar-se. Mark parecia-lhe insuficiente­mente consciente disto. Embora ela não o exprimisse, este receio de ser invadida e metida em complicações era o fundamento mais profundo da sua determinação de não ter um filho, ou não o ter tão cedo. Uma pessoa tem a sua própria vida a viver.

Assim que regressou ao apartamento o telefone tocou.

— É você, Jane? — veio uma voz. — Sou eu, Margaret Dimble. Aconteceram coisas tremendas. Contar-lhe-ei quando aí chegar. Estou furiosa demais para falar neste momento. Tem uma cama disponível por acaso? O quê? O Sr. Studdock está fora? Nem um pouco, se você não se importa. Mandei Cecil dormir na Faculda­de. Tem certeza de que não será um incômodo? Muito e muito obrigado. Estarei aí em meia hora.

 

A LIQUIDAÇÃO DE ANACRONISMOS

Assim que Jane acabou de pôr lençóis lavados na cama de Mark, chegou a Sra. Dimble, com uma grande quantidade de embrulhos.

— É um anjo em me deixar passar aqui a noite — disse ela. — Tentamos todos os hotéis em Edgestow, acho eu. Este lugar vai tornar-se insuportável. A mesma resposta em toda a parte! Tudo cheio com os acompanhantes e os dependentes desse detestável NICE. Secretárias aqui, datilógrafas ali, encarregados de obras, a coisa é afrontosa. Se Cecil não tivesse um quarto na Faculdade, acredito realmente que teríamos de ir dormir na sala de espera da estação. Só espero que o homem lá na Faculdade tenha arejado a cama.

— Mas o que é que, em nome dos céus, aconteceu? — pergun­tou Jane.

— Despejados, minha querida!

— Mas não é possível, Sra. Dimble. Quero dizer, isso não pode ser legal.

— Isso é o que Cecil disse... pense só, Jane. A primeira coisa que vimos quando pusemos a cabeça fora da janela, esta manhã, foi um caminhão no caminho da entrada, com as rodas traseiras no meio do canteiro das rosas, descarregando um pequeno exército do que pareciam ser criminosos, com picaretas e pás. Bem no nosso próprio jardim. Havia um odioso homenzinho de boné de pala que falou com Cecil de cigarro na boca, pelo menos não esta­va na boca mas colado no lábio superior, sabe, e adivinha o que é que ele disse? Disse que não tinham qualquer objeção a que ficás­semos de posse (da casa, repare, não do jardim) até às 8 horas da manhã seguinte. Objeção alguma!

— Mas, certamente, certamente, tem de haver um engano qualquer.

— É claro, Cecil ligou para o tesoureiro. E, é claro, o tesoureiro não estava. Isso tomou a manhã quase toda, ligando uma e outra vez, e por essa altura a grande faia de que você costumava gostar tanto, tinha sido abatida e todas as ameixeiras. Se não estives­se tão furiosa, tinha-me sentado e posto a chorar até me caírem os olhos. Era assim que eu me sentia. Por fim Cecil lá conseguiu chegar ao nosso Sr. Busby, que foi perfeitamente inútil. Disse que tinha de haver um mal-entendido qualquer mas que o caso agora já estava fora das suas mãos e que era melhor nós contatarmos o NICE, em Belbury. Claro que se verificou ser inteiramente im­possível chegar até eles. Mas à hora do almoço, vimos que pura e simplesmente não se podia ficar ali a noite, fosse o que fosse que viesse a acontecer.

— Por que não?

— Minha querida, não tem idéia alguma do que era aquilo. Grandes caminhões e tratores passando, a rugir, a toda a hora, e uma grua numa coisa que parecia um vagão de trem. Pois quê, os nossos próprios fornecedores não podiam atravessar aquilo. O leite não chegou até às 11 horas. A carne nunca chegou a aparecer; telefonaram-nos dizendo que o pessoal deles não tinha sido capaz de alcançar a nossa casa por qualquer das entradas. Nós próprios tivemos a maior dificuldade em chegar à cidade. Levamos meia hora de casa até à ponte. Era como um pesadelo. Clarões e barulho por toda a parte e a estrada praticamente arrui­nada e uma espécie de bairro de lata já a crescer no parque pú­blico. E a gente! Que homens horrorosos. Não sabia que tínhamos trabalhadores como aqueles na Inglaterra. Oh, horrível, horrível! — A Sra. Dimble abanou-se com o chapéu que tinha justamente acabado de tirar.

— E que é que vai fazer — perguntou Jane.

— Os céus é que sabem! — disse a Sra. Dimble. — De momento, fechamos a casa e Cecil tem estado com Rumbold, o advogado, para ver se, pelo menos, podemos conseguir que a casa seja sela­da, sem ninguém lhe mexer até tirarmos de lá as nossas coisas. Rumbold não parece saber muito bem como o caso está. Vai dizen­do que o NICE está, legalmente, numa posição muito especial. Depois disso, estou certa de que não sei nada. Tanto quanto pos­so ver, não vai haver casas nenhumas em Edgestow. Não há hipó­tese de tentar continuar a viver do lado de lá do rio, mesmo que nos deixassem. Que é que disse? Oh, é indescritível. Todas as cercas estão sendo derrubadas. Todas aquelas lindas casinhas de campo junto à igreja vão abaixo. Encontrei a pobre Ivy, é a sua Sra. Maggs, sabe, lavada em lágrimas. Pobrezinhas! Ficam horrorosas quan­do choram por cima do pó de arroz. Também está a ser posta na rua. Pobre mulher; já tinha problemas bastantes na vida dela sem isto. Fiquei contente de fugir dali. Os homens eram tão horríveis.

Três grandes brutos foram à porta traseira pedir água quente e portaram-se de tal maneira que deixaram Marta a tremer de me­do e Cecil teve de lá ir e falar com eles. Pensei que iam bater no Cecil, realmente pensei. Foi horrivelmente desagradável. Mas uma espécie de guarda especial mandou-os embora. Quê? Oh sim, há dezenas do que parecem ser polícias por toda a parte, e não gos­tei do ar deles também. Brandindo uma espécie de bastões, como se vê nos filmes americanos. Sabe, Jane, Cecil e eu pensamos am­bos a mesma coisa: pensamos, é quase como se tivéssemos perdido a guerra. Oh, boa moça, chá! É mesmo o que eu queria.

— Fique aqui tanto tempo quanto lhe apetecer, Sra. Dimble — disse Jane. — Mark terá mesmo de dormir na Facul­dade.

— Bem, realmente — disse a Mãe Dimble. — Acho que neste momento nenhum professor de Bracton devia ser autorizado a dormir em parte nenhuma! Mas faria uma exceção a favor do Sr. Studdock. Na realidade, não terei de me comportar como a espa­da de Siegfried, e, incidentalmente, que espada gorda, mal feita e desagradável eu seria! Mas esse lado da questão já está arruma­do. Cecil e eu havemos de ir para o solar em St. Anne’s. Temos de lá estar, presentemente, está vendo.

— Oh — disse Jane, prolongando involuntariamente a excla­mação, enquanto a totalidade da sua própria história voltava a passar-lhe pelo espírito.

— Ora esta, que porca egoísta tenho estado a ser — disse a Mãe Dimble. — Aqui tenho estado eu a tagarelar a respeito dos meus próprios problemas e esquecendo-me completamente que você es­teve lá e está cheia de coisas para me contar. Viu Grace? E gostou dela?

— Grace é Miss Ironwood? — — perguntou Jane.

— Sim.

— Vi-a. Não sei se gostei dela ou não. Mas não quero falar sobre tudo isso. Não posso pensar noutra coisa exceto nesse afrontoso seu problema. É a senhora que é a verdadeira mártir, não eu.

— Não, minha querida — disse a Sra. Dimble —, não sou uma mártir. Sou apenas uma velha zangada, com os pés a doer e a cabeça a rachar (mas isso está começando a melhorar), que está tentando convencer-se a si própria a ficar bem disposta. Pelo menos, Cecil e eu não perdemos o nosso ganha-pão como aconteceu à pobre Ivy Maggs. Realmente não importa deixarmos a velha casa. Sabe, o prazer de viver lá era de certo modo um prazer me­lancólico (e pergunto-me agora, se realmente os seres huma­nos gostam de ser felizes?) Um pouco de melancolia, sim. Todos aqueles grandes quartos no andar de cima que nós pensávamos que havíamos de querer, porque pensávamos que íamos ter uma quantidade de filhos, e depois nunca tivemos. Talvez eu estivesse a ficar muito amiga de sonhar com eles nas tardes compridas, quando Cecil estava fora. Tenho pena de mim própria. Ficarei melhor longe disso, sou capaz de dizer. Podia ter ficado como aque­la mulher horrorosa em Ibsen que andava sempre a resmungar a respeito de bonecas. Para Cecil é realmente pior. Ele gostava tan­to de ter os alunos lá por casa. Jane, essa é a terceira vez que bocejou. Está caindo de sono e eu moí-lhe a cabeça com conversa. Isto vem de estar casada há trinta anos. Os maridos eram feitos para se falar com eles. Ajuda-os a concentrar o espírito no que estão lendo, como o som de uma azenha. Lá está!, está a bocejar outra vez.

Jane achou a Mãe Dimble uma pessoa embaraçosa para com ela partilhar o quarto porque rezava as suas orações. «Era real­mente extraordinário», pensou Jane, «como isto desconcertava uma pessoa.» A pessoa não sabia para onde olhar, e era tão difí­cil conversar outra vez com naturalidade, bastantes minutos depois de a Sra. Dimble ter deixado de estar de joelhos.

 

— Está acordada agora? — disse a voz da Sra. Dimble, tranqüi­lamente, no meio da noite.

— Sim — disse Jane. — Peço desculpa. Acordei-a? Estava aos gritos?

— Sim. Estava a gritar a respeito de alguém levar uma pan­cada na cabeça.

— Vi-os matar um homem, um homem num carro grande, seguindo por uma estrada municipal. Então chegou a um cruza­mento e virou à direita, passando umas árvores, e havia alguém de pé no meio da estrada, acenando com uma luz para ele parar. Não podia ouvir o que disseram; eu estava muito afastada. Devem de qualquer maneira tê-lo persuadido a sair do carro, e aí estava ele falando com um dos outros. A luz bateu em cheio na cara dele. Não era o mesmo velho que vi no meu outro sonho. Não tinha bar­ba, só um bigode. E tinha modos rápidos, talvez mesmo orgulho­sos. Não gostou daquilo que o outro homem lhe disse e na altura levantou os punhos e derrubou-o. Um outro homem por detrás dele tentou atingi-lo na cabeça com qualquer coisa, mas o velho era muito rápido e virou-se a tempo. Então foi bastante hor­rível, mas também magnífico. Havia três contra ele e ele lutava contra todos. Já li sobre este tipo de coisas em livros mas nunca imaginara como uma pessoa se sentiria na realidade. Cla­ro que no fim eles levaram a melhor. Bateram-lhe terrivelmente na cabeça com o que tinham nas mãos. Eram absolutamente frios no que faziam a abaixaram-se para o examinar e ter a certeza de que estava efetivamente morto. A luz da lanterna parecia esqui­sita. Parecia fazer compridos traços de luz, uma espécie de hastes, em toda a volta do lugar. Mas talvez nessa altura eu já estivesse a acordar. Não, obrigada, eu estou bem. Foi horroroso, é claro, mas realmente não estou assustada, não da forma que estaria antes. Tenho mais pena é do velho.

— Acha que é capaz de dormir outra vez?

— Com certeza! A sua dor de cabeça está melhor, Sra. Dimble?

— Já passou de todo, obrigada. Boa noite.

 

«Sem qualquer dúvida», pensou Mark «este deve ser o tal Pároco Maluco de que falava Bill, o Nevão.

A Comissão em Belbury não reunia senão às 10 horas e 30 minutos, e desde o café da manhã tinha andado a passear com o reverendo Straik no jardim, a despeito do tempo áspero e brumoso da manhã. No preciso momento em que o homem se tinha agarrado a ele, as roupas cocadas e as botas grosseiras, o puído colarinho eclesiástico, o rosto escuto, magro e trágico, mal barbeado e com cortes, e a amarga sinceridade dos seus modos, tinha feito soar uma nota discordante. Não era o tipo que Mark tinha esperado encontrar no NICE.

— Não imagine — disse o Sr. Straik — que eu me permito sonhar em pôr em prática o nosso programa sem violência. Vai ha­ver resistência. Hão de atormentar a língua e não se arrepender. Mas não seremos dissuadidos. Enfrentamos essas confusões com uma firmeza que levará os caluniadores dizendo que as desejamos. Pois que o digam. Num certo sentido, assim foi. Não faz parte do nosso testemunho preservar essa organização de pecado ordena­do que se chama sociedade. A essa organização, a mensagem que temos para entregar é uma mensagem de absoluto desânimo.

— Ora aí está o que eu queria dizer — disse Mark — quando disse que o seu ponto de vista e o meu têm de ser, a longo prazo, incompatíveis. A preservação da sociedade, que implica planejamento perfeito, é precisamente o fim que tenho em vista. Não penso que haja ou possa haver nenhum outro fim. O problema para si é completamente diferente porque procura algo mais, al­guma coisa melhor do que a sociedade humana, num outro mun­do qualquer.

— Com cada pensamento e vibração do meu coração, com cada gota do meu sangue — disse o Sr. Straik — repudio essa doutrina amaldiçoada. Esse é justamente o subterfúgio pelo qual o mundo, a organização e o corpo da morte, desviou e castrou o ensinamen­to de Jesus, e transformou em artes de pároco e misticismo a clara exigência do senhor por retidão e julgamento, aqui e agora. O Reino de Deus é para ser realizado aqui, neste mundo. E há de ser. Ao nome de Jesus todos os joelhos se dobrarão. Por esse nome dissocio-me completamente de toda a religião organizada que até agora se viu no mundo.

Ao nome de Jesus, Mark, que teria lecionado sobre aborto ou perversão a uma audiência de moças novas sem um escrúpu­lo de consciência, sentiu-se tão embaraçado que soube que as faces estavam a ficar ligeiramente coradas, e ficou tão zanga­do consigo próprio e com o Sr. Straik por esta descoberta que elas se tornaram na verdade muito vermelhas. Aquela era exatamente a espécie de conversa que não era capaz de suportar; e nunca, desde a desgraça ainda bem presente das lições sobre as escrituras na escola, se tinha sentido tão desconfortável. Murmu­rou qualquer coisa acerca da sua ignorância sobre teologia.

— Teologia! — disse o Sr. Straik com profundo desprezo. — Não é de teologia que estou falando, meu jovem, mas de Nosso Se­nhor Jesus Cristo. Teologia é conversa, água para lavar os olhos, uma cortina de fumaça, um jogo para homens ricos. Não foi nas sa­las de conferências que encontrei Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi nas minas de carvão, e ao lado do caixão da minha filha. Se pen­sam que a teologia é uma espécie de algodão em rama que lhes dará segurança, no grande e terrível dia, darão então pelo seu er­ro. Porque, registre as minhas palavras, isto irá acontecer. O Rei­no vai chegar: neste mundo: neste país. Os poderes da ciência são um instrumento. Um instrumento irresistível, como todos nós no NICE sabemos. E por que é que são um instrumento irresistível?

— Porque a ciência se baseia na observação — sugeriu Mark.

— São um instrumento irresistível — bradou Straik —, por­que são um instrumento na Sua mão. Um instrumento de julga­mento tanto como de cura. É isto que eu não consegui que nenhuma das Igrejas visse. Cegaram. Cegaram pelos seus imundos farrapos de humanismo, pela sua cultura e humanitarismo e liberalismo, bem como pelos seus pecados, ou aquilo que pensam ser os seus pecados, embora estes sejam realmente aquilo que nelas será menos pecado. E por isso que acabei por ficar isolado: um pobre homem, fraco, indigno, mas o único profeta que restou. Eu sabia que Ele vinha para o poder. E por conseguinte, onde nós vemos o poder, vemos o sinal da Sua vinda. E é por isso que me encontro junto a comunistas e materialistas e a mais quem quer que seja que esteja realmente pronto a acelerar a vinda. A mais fraca destas pessoas aqui tem o trágico sentido da vida, a impie­dade, a dedicação total, a prontidão para sacrificar todos os valo­res meramente humanos, que não fui capaz de encontrar entre toda a nauseante hipocrisia da religião organizada.

— Quer dizer, — disse Mark —, que tanto quanto se refere à prática imediata, não existem limites à sua cooperação com o programa?

— Varra toda a idéia de cooperação — disse o outro. — Será que o barro coopera com o eleito? Ciro cooperou com o Senhor? Estas pessoas serão utilizadas. Eu serei utilizado também. Ins­trumentos. Veículos. Mas aqui entra o ponto que lhe diz respeito, meu jovem. Não tem escolha quanto a ser usado ou não. Não há forma de voltar atrás uma vez que se colocou a mão na massa. Nin­guém sai do NICE. Aqueles que tentarem voltar atrás pere­cerão no deserto. Mas a questão é, se se está satisfeito por ser um dos instru­mentos que é posto de lado quando já serviu a Sua parte, alguém que tendo proferido julgamento sobre outros está à espera de ser ele próprio julgado, ou se se estará entre aqueles que partilham a herança? Pois tudo isto é verdade, sabe. São os santos que vão herdar a terra, aqui, na Inglaterra, talvez dentro dos próximos doze meses, os santos e mais ninguém. Não sabe você que have­remos de julgar os anjos? Então, baixando subitamente a sua voz, Straik acrescentou:

— A ressurreição, a autêntica está já tendo lugar agora. A tal vida eterna. Aqui neste mundo. Há de vê-la.

— Olhe — disse Mark —, já passam vinte. Não deveríamos ir andando para a Comissão?

Straik virou ao mesmo tempo que ele, em silêncio. Em parte para evitar mais conversas ao longo das mesmas linhas, e em par­te porque realmente queria saber a resposta, Mark disse então:

— Aconteceu-me uma coisa bastante aborrecida. Perdi a mi­nha carteira. Não tinha lá muito dinheiro, só cerca de três libras. Mas havia cartas e outras coisas, e é uma maçada. Devo contar o caso a alguém?

— Podia contar ao administrador — disse Straik.

 

A Comissão se reuniu cerca das duas horas e o diretor-adjunto presidia. O seu método de conduzir a sessão era lento e complica­do, e para Mark, com a sua experiência de Bracton para o guiar, cedo se tornou óbvio que o trabalho real do NICE tinha de ser efe­tuado noutro lado qualquer. Isto, na verdade, era o que ele espe­rava, e era muito razoável para supor que se iria encontrar, naquela fase tão inicial, no núcleo interior, ou no que quer que em Belbury correspondia ao Elemento Progressista em Bracton. Mas esperava que o não fizessem ficar marcando passo em comissões fantasmas por tempo demais. A matéria daquela manhã dizia res­peito principalmente aos detalhes do trabalho que já tinha começado em Edgestow. O NICE tinha aparentemente obtido uma espécie de vitória que lhe dava o direito de derru­bar a velha igreja normanda na esquina.

— As objeções usuais foram, é claro, apresentadas — disse Wither. Mark, que não estava interessado em arquitetura e que não conhecia a outra margem do Wynd, nem aproximadamente tão bem como a sua mulher, deixou vaguear a sua atenção. Foi só no final da reunião que Wither apresentou um assunto muito mais sensacional. Acreditava que a maior parte dos presentes tinha já ouvido («por que é que os presidentes começam sempre dessa maneira?», pensou Mark) a muito penosa notícia que era, não obstante, seu dever comunicar-lhes agora, de forma semi-oficial. Referia-se, é claro, ao assassinato de William Hingest. Tan­to quanto Mark era capaz de descobrir a partir da narrativa tortuosa e indireta do presidente, Bill, o Nevão, fora descoberto com a cabeça estourada por um instrumento contundente qual­quer, caído perto do seu carro em Potter’s Lane, cerca das 4 horas daquela manhã. Estava morto fazia várias horas. O Sr. Wither atrevia-se a supor que seria um prazer melancólico para a Comis­são saber que a polícia do NICE estivera na cena do crime antes das 5 e que nem as autoridades locais nem a Scotland Yard esta­vam levantando quaisquer objeções à mais completa colaboração. Achava que, se a ocasião fosse mais apropriada, teria acolhido bem uma moção para uma expressão do reconhecimento que todos deviam sentir para com Miss Hardcastle, e possivelmente de con­gratulações pela perfeita interação entre as suas próprias forças e as do Estado. Este era um aspecto extremamente gratificante naquela história triste e, sugeriu ele, um bom indicador quanto ao futuro. Algum aplauso, em tom decentemente sumido deu a vol­ta à mesa, sobre este ponto. O Sr. Wither continuou então falando com certa demora sobre o morto. Todos tinham lamentado muito a decisão do Sr. Hingest de se retirar do NICE, embora apreciando inteiramente os seus motivos; todos tinham achado que esta separação oficial não iria alterar em nada as cor­diais relações que existiam entre o falecido e quase todos, pensa­va que podia dizer todos sem exceção, os seus antigos colegas no Instituto. O necrológio (na magnífica frase de Raleigh) era um ins­trumento que os talentos do direto-adjunto o habilitavam bem a tocar, e falou longamente. Concluiu por sugerir que todos se erguessem em silêncio durante um minuto como testemunho de res­peito pela memória de William Hingest.

E assim fizeram: um minuto sem fim no qual se tornaram audíveis estranhos ruídos de estalar das madeiras e de respira­ção, e por trás de cada rosto vidrado e de lábios cerrados, pensa­mentos recatados e irrelevantes, a este ou aquele respeito, apare­ciam silenciosamente, como pássaros e ratos aparecem outra vez na clareira de um bosque quando as pessoas que estiveram fazendo um piquenique se vão embora, e cada um silenciosamente garan­tiu a si próprio que ele, pelo menos, não estava a ser mórbido nem pensando na morte.

Depois houve uma agitação e uma azáfama e a Comissão dis­persou.

 

Todo o processo de levantar e fazer os «trabalhos da manhã» era mais animado, achou Jane, porque tinha com ela a Sra. Dimble. Mark ajudava muitas vezes; mas como ele era sempre da opi­nião, e Jane podia senti-la mesmo se ele a não exprimisse por palavras, de que «qualquer coisa servia» e de que Jane fazia uma quantidade de trabalho desnecessário e de que os homens podiam tratar da casa com um décimo da confusão e problemas que as mu­lheres fazem, a ajuda de Mark era um dos motivos de discussão mais comuns entre ambos. A Sra. Dimble, por outro lado, ajusta­va-se ao seu modo de agir. Estava uma brilhante manhã de sol e quando se sentaram na cozinha para tomar o café da manhã, Jane sentia-se também brilhante. Durante a noite o seu espírito tinha desenvolvido uma confortável teoria segundo a qual o sim­ples fato de ter visto Miss Ironwood e «ter posto tudo para fora» iria provavelmente fazer cessar de vez os sonhos. O episódio encerrar-se-ia. E agora havia toda a excitante possibilidade do novo tra­balho de Mark para antecipar. Começava a ver imagens no seu es­pírito.

A Sra. Dimble estava ansiosa por saber o que acontecera a Jane em St Anne’s e quando é que ela voltaria lá. Jane respondeu de for­ma evasiva à primeira pergunta e a Sra. Dimble era muito bem educada para insistir. Quanto à segunda, Jane pensava que não iria «incomodar» Miss Ironwood outra vez, ou que não se «incomodaria» mais a respeito de sonhos. Disse que tinha sido «tola» mas tinha a certeza de que estava perfeitamente bem, ago­ra. Olhou para o relógio e perguntou a si própria porque é que a Sra. Maggs ainda não tinha aparecido.

— Minha querida, receio que tenha perdido Ivy Maggs — dis­se a Sra. Dimble. — Eu não lhe disse que também tiraram a casa dela? Pensei que compreenderia que ela de futuro já não viria para si. Veja, não há lugar nenhum para ela viver em Edgestow.

— Que aborrecimento! — disse Jane, e acrescentou, sem muito interesse na resposta. — Que é que ela está fazendo, sabe?

— Foi para St. Anne’s.

— Ela tem lá amigos?

— Foi para o solar, com Cecil e comigo.

— Quer dizer que ela tem trabalho lá?

— Bem, sim. Suponho que é trabalho.

A Sra. Dimble partiu por volta das 11 horas. Também ela, pare­cia, ia para St Anne’s mas primeiro ia encontrar-se com o mari­do e almoçar com ele em Northumberland. Jane foi a pé com ela até à cidade, para fazer umas pequenas compras e separaram-se ao fundo de Market Street. Foi logo a seguir que Jane encontrou o Sr. Curry.

— Já ouviu as novidades, Sra. Studdock? — disse Curry. Os seus modos eram sempre importantes e o seu tom sempre vaga­mente confidencial, mas naquela manhã pareciam ainda mais.

— Não. Que desgraça aconteceu? — disse Jane. — Pensava que o Sr. Curry era um tolo pomposo e Mark um tolo por se dei­xar impressionar por ele. Mas logo que Curry começou a falar, a cara dela mostrou todo o espanto e consternação que ele podia ter desejado. Não eram, daquela vez, fingidos. Ele contou-lhe que o Sr. Hingest tinha sido assassinado, num momento qualquer durante a noite, ou às primeiras horas daquela manhã. O corpo fora encontrado estendido ao lado do carro, em Potter’s Lane, com muitas pancadas na cabeça. Tinha vindo de carro de Belbury para Edgestow. Curry naquele momento voltava apressadamente para a faculdade para falar ao diretor sobre o caso; acabava de estar na delegacia de polícia. Via-se que o assassinato já se tornara pro­priedade de Curry. O «assunto» estava, num certo e indefinido sentido, «nas suas mãos» e ele estava cheio de responsabilidade. Noutra altura qualquer Jane teria achado aquilo divertido. Esca­pou dele logo que possível e entrou no Blackie’s para uma xícara de café. Sentia que precisava se sentar.

A morte de Hingest, em si mesma, nada significava para ela. Apenas o tinha encontrado uma vez e tinha aceito a opinião de Mark de que ele era um velho desagradável e um tanto preten­sioso. Mas a certeza de que ela própria, no seu sonho, tinha sido testemunha de um assassinato real desfizera de um só golpe todas as consoladoras pretensões com as quais tinha começado a ma­nhã. Ocorreu-lhe com doentia claridade que a questão dos seus sonhos, longe de estar terminada, estava só começando. A estreita, brilhante e simples vida que ela se propusera viver estava sendo irremediavelmente invadida. Janelas estavam se abrindo sobre imensas e escuras paisagens, por todos os lados, e ela era impoten­te para as fechar. «Enfrentar aquilo sozinha a poria doida», pensou. A outra alternativa era voltar a Miss Ironwood. Mas is­so parecia ser apenas uma forma de mergulhar mais em toda aquela escuridão. Aquele solar em St Anne’s, aquela «espécie de companhia», estava «metida naquilo». Ela não queria ser arrasta­da para lá. Era injusto. Não era que ela tivesse pedido muito da vida. Tudo o que ela queria era que a deixassem em paz. E a coisa era tão absurda! O tipo de coisa que, segundo todas as autori­dades que até aí aceitara, não podia realmente acontecer.

 

Cosser, o homem de cara sardenta com a pequena escova de bi­gode preto, aproximou-se de Mark quando este saía da Comissão.

— Você e eu temos um trabalho para fazer — disse ele. — Temos de mandar um relatório sobre Cure Hardy.

Mark ficou muito aliviado ao ouvir falar de um trabalho. Mas sentiu-se um tanto na sua dignidade, pois não tinha gostado muito de Cosser quando o encontrara no dia anterior, e respon­deu:

— Quer isso dizer que vou ficar no departamento de Steele, afinal.

— Isso mesmo — disse Cosser.

— A razão por que pergunto — disse Mark — é que nem que ele nem você pareciam muito entusiasmados em ter-me lá. Eu não quero impor-me, sabe. Não preciso de ficar no NICE se se chegar a isso.

— Bem, não comece a falar nisso aqui — disse Cosser — Va­mos lá para cima.

Estavam conversando no átrio e Mark notou Wither caminhan­do pensativo em direção a eles.

— Não seria bom falar com ele e pormos a coisa toda a claro? — sugeriu. Mas o diretor-adjunto, depois de chegar a dez pés deles, virara noutra direção. Ia sussurrando para si próprio em voz baixa e parecia tão profundamente imerso em pensamentos que Mark achou o momento inadequado para uma entrevista. Cosser, embora nada dissesse, aparentemente pensou o mesmo e, portanto, Mark seguiu-o até ao gabinete no terceiro andar.

— E sobre a aldeia de Cure Hardy — disse Cosser depois de sentados. — Está vendo, toda aquela terra no Parque de Bragdon vai ficar pouco melhor do que um pântano assim que comecem a trabalhar. Porque diabos nós queremos ir para lá, não sei. De qualquer modo, o ultimo plano é desviar o Wynd: fechar completamente o velho canal através de Edgestow. Olhe. Aqui está Shilling Bridge, dez milhas a norte da cidade. É para ser des­viado aqui e trazido por um canal artificial, aqui, para leste, onde está a linha azul, e junta-se ao velho leito aqui embaixo.

— A Universidade dificilmente concordará com isso — disse Mark. — O que será de Edgestow sem rio?

— Temos a Universidade na mão — disse Cosser. — Não pre­cisa se preocupar com isso. De qualquer forma não é trabalho nosso. A questão é que o novo Wynd tem de vir mesmo através de Cure Hardy. Olhemos agora para os contornos. Cure Hardy fica neste pequeno e estreito vale. Eh? Oh, você já esteve lá, não é? Isso torna isto muito mais fácil. Eu não conheço pessoalmente estes lugares. Bem, a idéia é construir uma barragem no extremo sul do vale e fazer um grande reservatório. Vai ser preciso uma nova fon­te de abastecimento de água para Edgestow, agora que irá ser a segunda cidade do país.

— Mas o que é que acontece a Cure Hardy?

— Essa é outra vantagem. Construímos uma nova aldeia modelo (vai chamar-se Jules Hardy ou Wither Hardy) quatro mi­lhas afastada. Aqui adiante, junto à estrada de ferro.

— Parece-me, sabe, que vai haver o diabo a respeito disso. Cure Hardy é famosa. É um ponto histórico. Há o asilo para pobres, do século xvi e a igreja normanda, e essas coisas todas.

— Exatamente. E aí onde você e eu entramos. Temos de fazer um relatório sobre Cure Hardy. Amanhã vamos até lá e damos uma olhada, mas podemos escrever a maior parte do relatório hoje. Deve ser bastante fácil. Se é um ponto histórico, podemos apostar que tem deficiências no aspecto sanitário. Esse é o pri­meiro ponto a salientar. Depois temos de determinar alguns fatos sobre a população. Penso que descobriremos que consiste quase inteiramente em dois dos mais indesejáveis elementos, pequenos rendeiros e trabalhadores agrícolas.

— O pequeno rendeiro é um mau elemento, concordo — disse Mark. — Suponho que o trabalhador agrícola será mais contro­verso.

— O Instituto não lhe dá a sua aprovação. É um elemento mui­to recalcitrante numa comunidade planejada, e é sempre reacionário. Não somos a favor da agricultura inglesa. De maneira que tudo o que temos a fazer é verificar alguns fatos. Fora isso, o relatório escreve-se por si.

Mark ficou calado um momento ou dois.

— Isso é bastante fácil — disse. — Mas antes de me meter nis­so gostaria só de estar um pouco mais esclarecido a respeito da mi­nha própria posição aqui. Não deveria ir ter com Steele? Não me agrada pôr-me a trabalhar neste departamento se ele não me quer lá.

— Eu não faria isso — disse Cosser.

— Por que não?

— Bem, por um lado, Steele não pode impedi-lo se o diretor-adjunto o apoiar, como parece estar fazendo, no momento. Por outro lado, Steele é um homem um tanto perigoso. Se você for em frente com o trabalho, sem barulho, ele pode acabar por se habituar à idéia, por fim; mas se for ter com ele isso poderá con­duzir a uma confrontação. Há uma outra coisa, também. — Cos­ser fez uma pausa, meteu o dedo no nariz, pensativamente, e pros­seguiu: — Aqui, entre nós, não penso que as coisas, da forma que estão atualmente neste departamento, possam continuar indefinidamente.

O excelente treino que Mark tivera em Bracton, habilitou-o a compreender isto. Cosser esperava simplesmente pôr Steele fora do departamento. Pensou que estava percebendo a situação toda. Stee­le era perigoso enquanto durasse, mas podia não durar.

— Tive a impressão ontem — disse Mark — que você e Stee­le se entendiam muito bem.

— A principal coisa aqui — disse Cosser —, é nunca questio­nar com ninguém. Detesto questões. Posso dar-me bem com quem quer que seja, desde que o trabalho seja feito.

— É claro — disse Mark. — A propósito, se amanhã formos a Cure Hardy, posso aproveitar para dar um pulo em Edgestow e pas­sar a noite em casa.

Para Mark, muito dependia da resposta a isto. Podia descobrir se efetivamente estava sob as ordens de Cosser. Se Cosser disses­se: «Não pode fazer isso», pelo menos sabia onde estava. Se Cos­ser dissesse que Mark não podia ser dispensado, isso seria melhor ainda. Ou Cosser podia replicar que era melhor consultar a DA. Isso faria Mark sentir-se mais seguro da sua posição. Mas Cosser disse meramente «oh», deixando Mark na dúvida se ninguém pre­cisava de licença para se ausentar ou se Mark não estava suficiente­mente vinculado, como membro do Instituto, para a sua ausência ser de qualquer importância. Então foram trabalhar no relatório.

Levou-lhes o resto do dia, de forma que Cosser e ele foram para jantar tarde e sem mudar de roupa. Isto deu a Mark uma sen­sação extremamente agradável. E apreciou também a refeição. Embora estivesse entre homens que não tinha encontrado antes, dentro dos primeiros cinco minutos parecia conhecer todos e associar-se naturalmente à conversa. Estava aprendendo a falar a linguagem do conjunto.

«Como isto é belo!», disse Mark para si próprio na manhã seguinte quando o carro deixou a estrada principal em Duke’s Eaton e começou a descer a pequena via de pavimento irregular que levava ao longo vale onde ficava Cure Hardy. Mark não era em regra muito sensível à beleza, mas Jane e o seu amor por Jane já o tinham despertado um pouco neste aspecto. Talvez o sol mati­nal de Inverno o afetasse ainda mais, porque nunca lhe tinham ensinado a considerá-lo especialmente belo e por isso atuava nos seus sentidos sem interferência. A terra e o Céu tinham o ar das coisas recentemente lavadas. Os campos castanhos pareciam ser bons para comer e os que tinham erva marcavam as curvas das pequenas colinas, como o pelo cortado rente traça o corpo de um cavalo. O céu parecia mais longe do que o usual, mas também mais limpo, de forma que as faixas de nuvens, compridas e delgadas (cor de ardósia escura sobre o azul pálido) tinham as bordas tão nítidas como se fossem cortadas em papelão. Cada pequeno tufo de arbustos estava preto e eriçado como uma escova de cabelo, e quando o carro parou em Cure Hardy o silêncio que se se­guiu ao desligar do motor estava cheio do barulho das gralhas, que pareciam chamar «Acorda! Acorda!»

— Barulho danado que estes pássaros fazem — disse Cosser. — Tem o seu mapa? Ora... — Lançou-se imediatamente ao trabalho.

Passearam pela aldeia durante duas horas e viram com os olhos todos os abusos e anacronismos que tinham vindo destruir. Viram o recalcitrante e retrógrado trabalhador e ouviram as suas opiniões sobre o tempo. Encontraram o pobre, superfluamente sustentado, na pessoa de um velho arrastando os pés através do pátio do asilo para ir encher uma chaleira, e a velha rendeira (para tornar as coisas piores, tinha com ela um velho cão gordo) em ani­mada conversa com o carteiro. Fez Mark sentir-se como se esti­vesse em férias, pois fora só em férias que ele alguma vez deambulara por uma aldeia inglesa. Por essa razão sentiu prazer no fato. Não lhe escapou totalmente que a cara do retrógrado trabalha­dor era bem mais interessante do que a de Cosser e a sua voz bem mais agradável de ouvir. A semelhança entre a idosa rendeira e a Tia Gilly («Quando é que ele tinha pensado nela pela última vez? Santo Deus, isso levava uma pessoa bem para trás») o fez com­preender como era possível gostar daquele tipo de pessoa. Tudo isto não influía nas suas convicções sociológicas. Mesmo que estivesse livre de Belbury e não fosse nada ambicio­so, não o podia ter feito, pois a sua educação tivera o curioso efei­to de tornar mais reais para ele as coisas que lia e escrevia do que as coisas que via. Estatísticas sobre trabalhadores agrícolas eram a substância; qualquer cavador real, homem da enxada ou ser­vente, era a sombra. Embora ele próprio nunca tivesse notado, sentia uma grande relutância, no seu trabalho, em usar termos como «homem» ou «mulher». Preferia escrever sobre «grupos vocacionais», «elementos», «classes» e «populações», pois, à sua própria maneira, acreditava, tão firmemente como qualquer místico, na realidade superior das coisas que não se vêem.

E, contudo, não podia impedir-se de gostar um tanto daque­la aldeia. Quando, à 1 hora, persuadiu Cosser a entrarem no Two Bells, até o disse. Ambos tinham trazido sanduíches com eles, mas Mark achou que lhe agradaria uma caneca de cerveja. No Two Bells estava muito quente e escuro, pois a janela era pequena. Dois trabalhadores (sem dúvida recalcitrantes e retrógrados) estavam sentados com canecas ao lado, mastigando san­duíches muito espessos, e um terceiro estava de pé ao balcão man­tendo conversa com o dono da casa.

— Para mim, cerveja não, obrigado — disse Cosser —, e não queremos fazer estéreo por aqui tempo demais. O que você estava dizendo?

— Estava dizendo que, numa manhã bonita, existe algo de bas­tante atraente num local como este, a despeito de todos os seus evidentes absurdos.

— Sim, está uma manhã bonita. Um pouco de sol faz uma dife­rença real para a saúde de uma pessoa.

— Eu estava pensando no local.

— Você quer dizer isto? — disse Cosser, passando os olhos de relance pela sala. — Eu teria pensado que era exatamente o tipo de coisa de que nos queríamos ver livres. Sem luz do sol, sem ventilação. Não vejo muita utilidade no álcool (li o Relatório Miller) mas se as pessoas têm de ter os seus estimulantes, gosta­ria de os ver administrados de uma forma mais higiênica.

— Não sei se a questão toda está no estimulante — disse Mark, olhando para a sua cerveja. A cena toda recordava-lhe bebidas e conversas de muito tempo atrás, de riso e discussões dos tem­pos antes da licenciatura. De certa forma faziam-se amigos mais facilmente então. Perguntava a si próprio o que teria acontecido a todo esse grupo, de Carey e Wadsden e Denniston, que estivera tão perto de ficar com o seu lugar de professor.

— Tenho a certeza de que não sei — disse Cosser, em respos­ta à sua última observação. — A nutrição não é o meu setor. Teria de perguntar a Stock a esse respeito.

— O que estava realmente pensando em voz alta — disse Mark —, não se refere só a esta taberna, mas à aldeia toda. Cla­ro que tem toda a razão; este tipo de coisas tem de desaparecer. Mas tem o seu lado agradável. Teremos de ter cuidado para que o que quer que vamos construir seja realmente capaz de bater isto em todos os sentidos e não meramente em eficiência.

— Ah, arquitetura e tudo isso — disse Cosser.

— Bem, isso é pouco o meu campo, sabe. É mais para alguém como Wither. Já está quase acabado?

De repente veio à cabeça de Mark que terrível maçador era aquele homenzinho, e no mesmo momento sentiu-se totalmente enjoado do NICE. Mas lembrou a si próprio que uma pessoa não podia esperar entrar logo no grupo interessante; mais tarde haveria coisas melhores. De qualquer forma não tinha queimado os seus barcos. Talvez atirasse aquilo tudo ao ar e regressasse a Bracton, num dia ou dois. Mas não de imediato. Seria apenas sen­sato agüentar um pouco mais e ver o jeito que as coisas tomavam.

No caminho de regresso, Cosser deixou-o perto da estação de Edgestow e enquanto caminhava para casa, Mark começou pensando no que ia dizer a Jane a respeito de Belbury. Seria equivocar-nos a respeito dele pensar que estava conscientemente inven­tando uma mentira. Quase involuntariamente, à medida que surgia no seu espírito a imagem dele próprio entrando no apartamento e do rosto interrogativo de Jane, erguia-se também a imaginação da sua própria voz respondendo-lhe, apontando os aspectos sa­lientes de Belbury em frases divertidas e confiantes. Este seu dis­curso imaginário gradualmente expulsou do seu espírito as expe­riências reais por que tinha passado. Essas experiências reais de desconfiança e mal-estar, na verdade, incentivavam o seu dese­jo de fazer boa figura aos olhos da sua mulher. Quase sem notar, tinha resolvido não mencionar a questão de Cure Hardy; Jane in­teressava-se por velhos edifícios e todo esse tipo de coisas. Como conseqüência, quando Jane, que estava nesse momento a correr as cortinas, ouviu a porta se abrir e olhou para trás e viu Mark, viu um Mark bastante jovial e bem disposto. Sim, ele estava quase certo que tinha obtido o emprego. O salário não estava abso­lutamente fixado, mas ia tratar disso no dia seguinte. Era um lugar muito engraçado; explicaria isso tudo mais tarde. Mas já tinha chegado junto da gente importante de lá. Wither e Miss Hardcastle eram aqueles que importavam.

— Tenho de te contar a respeito da tal mulher, Hardcastle — disse ele —, é absolutamente incrível.

Jane tinha de decidir aquilo que ia dizer a Mark muito mais depressa do que ele tinha decidido aquilo que ele ia dizer a ela. E ela decidiu nada lhe contar sobre os sonhos ou St. Anne’s. Os ho­mens detestavam mulheres que tinham alguma coisa de mal, em especial coisas esquisitas e invulgares. A sua decisão foi facilmen­te mantida pois Mark, cheio da sua própria história, não fez pergunta nenhuma. Ela não estava, talvez, inteiramente con­vencida por aquilo que ele disse. Havia um certo ar vago a respei­to dos detalhes todos. Muito no início da conversa ela dissera numa voz aguda e agitada (não fazia idéia de como essa voz o desagradava):

-— Mark, não abandonou o seu lugar de professor em Bracton?

Ele disse:

— Não, claro que não — e continuou. Ela escutou apenas com metade do seu espírito. Sabia que ele muitas vezes tinha idéias um tanto grandiosas, e por qualquer coisa na sua cara adivinhou que durante a sua ausência ele tinha andado a beber muito mais do que usualmente fazia. E, assim, toda a noite, o pássaro macho pôs em destaque a sua plumagem e a fêmea desempenhou o seu papel e fez perguntas e riu e fingiu mais interesse do que sentia. Ambos eram jovens e se nenhum dos dois amava muito profunda­mente, cada um estava ansioso por ser admirado.

 

Nessa noite, os professores de Bracton sentavam-se na Sala Grande, para a sobremesa e vinho. Tinham deixado de se vestir para o jantar, como medida de economia durante a guerra, e ainda não tinham retomado o hábito, de forma que os casacos desporti­vos e práticos davam uma nota algo discordante em comparação com os painéis escuros, as velas e as pratas de diversas épocas. Feverstone e Curry estavam sentados um ao lado do ou­tro. Até essa noite, e por cerca de trezentos anos, aquela Sala Grande tinha sido um dos lugares sossegados e agradáveis de In­glaterra. Ficava em Lady Alice, no pavimento térreo, debaixo do Soler, e as janelas no extremo deste davam para o rio e para o Par­que de Bragdon, para lá de um pequeno terraço, onde os profes­sores tinham o costume de comer a sobremesa nas noites de Verão. Àquela hora e estação do ano, as janelas estavam, é claro, fechadas e de cortinados corridos. E do exterior delas vinham ruí­dos como nunca antes tinham sido ouvidos naquela sala, berros e pragas e o som de caminhões, passando pesadamente, como grandes tambores, ou mudando, rangendo, de velocidade, o arrastar de correntes, a percussão de brocas mecânicas, o chocalhar de ferro, apitos, ruídos de queda, e uma vibração que tudo invadia. Saeva sonare verbera, tum stridor ferri tractaeque catenae [1] como Glossop, sentado do lado mais afastado do fogo, observara a Jewel. Pois para lá daquelas janelas, a escassas trinta jardas do outro lado de Wynd, estava já andando depressa a conversão de um anti­go bosque num inferno de lama e barulho, de aço e cimento arma­do. Diversos membros do Elemento Progressista, aqueles que tinham quartos daquele lado da Faculdade, andavam já res­mungando a respeito disso. O próprio Curry ficara um pouco sur­preendido pela forma que o seu sonho tinha tomado, agora que era uma realidade, mas fazia o seu melhor para enfrentar o caso com sobranceria, e embora a sua conversa com Feverstone, tivesse de ser conduzida o mais alto que as suas vozes davam, não fez qual­quer alusão a esta inconveniência.

— É então inteiramente definitivo — berrou ele — que o jovem Studdock não vai voltar?

— Oh, absolutamente — gritou Feverstone. — Enviou-me uma mensagem através de um funcionário superior, para me dizer para dar conhecimento à Faculdade.

— Quando enviará a renúncia formal?

— Não faço a mínima idéia! Como todos estes jovens, ele é mui­to descuidado a respeito dessas coisas. Na realidade, quanto mais tempo demorar, melhor.

— Quer dizer que isso nos dá oportunidade de olhar à nossa volta?

— Exatamente. Está vendo, nada tem de ser apresentado à Faculdade até ele escrever. Vamos querer ter a questão do seu su­cessor toda tratada antes disso.

— Obviamente. Isso é o mais importante. Uma vez que se apresente uma questão em aberto a toda aquela gente, que não compreende o setor e não sabem sequer as suas próprias idéias, qualquer coisa pode acontecer.

— Exatamente. É isso que nós queremos evitar. A única for­ma de gerir um lugar como este é avançar com o nosso candidato, tirar o coelho da cartola, dois minutos depois de termos anuncia­do a vaga.

— Temos de começar a pensar nisso imediatamente.

— O sucessor tem de ser um sociólogo? Quero dizer o lugar está ligado à matéria?

— Oh, nem pouco mais ou menos. É um desses lugares criados por Paston. Porquê? Tem alguma matéria em mente?

— Já há muito tempo que não temos ninguém em política. — Um, sim. Existe ainda um preconceito considerável contra a política como matéria acadêmica. Olhe, Feverstone, não seria de darmos a essa nova matéria uma mão?

— Que nova matéria?

— Pragmatometria.

— Ora bem, é curioso que você diga isso, porque o homem em quem estava começando a pensar é um político que também tem dedicado um grande bocado à pragmatometria. Podíamos cha­mar-lhe uma cadeira de pragmatometria social, ou coisa assim.

— Quem é o homem?

— Laird, de Leicester, Cambridge.

Era automático Curry parecer muito pensativo, embora nun­ca tivesse ouvido falar de Laird, e dizer:

— Ah, Laird. Recorde-me só dos detalhes da carreira acadê­mica dele.

— Bem — disse Feverstone —, como se lembra, estava mal de saúde na altura dos exames finais e saiu-se um tanto desastrada­mente. Os exames em Cambridge são tão maus hoje em dia que mal se liga a isso. Todos sabiam que ele era um dos homens mais brilhantes do seu ano. Era presidente dos Sphinxes e costumava editar The Adult. David Laird, sabe.

— Sim, com certeza. David Laird. Mas parece-me, Dick...

— Sim?

— Não estou feliz de todo com a sua má classificação. É claro que não dou um valor supersticioso aos resultados dos exames, tal e qual como você. Todavia... Ultimamente fizemos uma ou duas eleições pouco felizes.

Quase involuntariamente, enquanto dizia isto, Curry olhou de relance para o outro lado da sala onde estava sentado Pelham. Pelham com a sua boca pequena em forma de botão e cara de pudim. Pelham era um homem sólido; mas até mesmo Curry achara difícil recordar qualquer coisa que Pelham tivesse jamais feito ou dito.

— Sim, eu sei — disse Feverstone —, mas mesmo as nossas piores eleições não são tão sombrias como as que a Faculdade faz quando as deixamos para resolver.

Talvez porque o barulho intolerável lhe tinha desgastado os nervos. Curry sentiu uma dúvida momentânea a respeito do lado sombrio desses intrusos. Tinha jantado recentemente em Northumberland e encontrara Telford jantando lá na mesma noite. O contraste entre o vivo e espirituoso Telford, que todos em Northumberland pareciam conhecer, a quem todos escutavam, e o «baço» Telford na Sala Grande de Bracton tinha-lhe causado perplexidade. Poderia ser que os silêncios de todos aqueles «intru­sos» na sua própria Faculdade, as suas respostas monossilábicas quando condescendiam dá-las e os seus rostos inexpressivos quando ele assumia os seus modos confidenciais, tivessem uma explicação que nunca lhe tivesse ocorrido? A fantástica sugestão de que ele, Curry, pudesse ser um aborrecido, passou-lhe pela mente tão rapidamente que um segundo depois tinha-a esqueci­do para sempre. A muito menos dolorosa sugestão de que esses tradicionalistas e escaravelhos investigadores aparentavam olhá-lo com desdém foi mantida. Mas Feverstone estava a gritar-lhe outra vez.

— Vou estar em Cambridge na próxima semana — disse ele. — De fato vou dar um jantar. Preferia que isso não fosse mencio­nado por aqui porque, na realidade, o PM pode ser que esteja pre­sente e uma ou duas pessoas dos grandes jornais e Tony Dew. Quê? Oh, claro que conhece Tony. Aquele homenzinho escuro do banco. Laird vai estar lá. Ele é tipo um primo do PM. Eu estava pensando se você podia juntar-se a nós. Sei que David está muito ansioso de encontrá-lo. Tem ouvido falar mui­to em si por um fulano qualquer que costumava assistir às suas conseqüências. Não consigo lembrar-me do nome.

— Bem, seria muito difícil. Depende bastante de quando for o funeral do velho Bill. Teria de estar aqui para isso, é claro. No noti­ciário das 6 havia alguma coisa a respeito do inquérito?

— Não ouvi. Mas é claro que isso levanta uma segunda ques­tão. Agora que o Nevão vai cair num mundo melhor, temos duas vagas.

— Não consigo ouvir — berrou Curry. — O barulho está ficando pior? Ou sou eu que estou ficando surdo?

— Olhe lá, subdiretor — bradou Brizeacre, do lado de lá de Feverstone —, que diabo estão fazendo os seus amigos lá de fora?

— Será que eles não podem trabalhar sem berrar? — pergun­tou outra pessoa qualquer.

— A mim não soa nada como trabalho — disse um terceiro.

— Ouça! — disse Glossop subitamente —, aquilo não é traba­lho. Escutem os pés. É mais parecido com um jogo de empurra.

— Está se tornando pior a cada minuto — disse Raynor. No momento seguinte, todos na sala se puseram de pé

— Que é que foi aquilo? — berrou um.

— Estão assassinando alguém — disse Glossop. — Só há um processo de fazer sair um ruído daqueles da garganta de um homem.

— Onde é que você vai? — perguntou Curry.

— Vou ver o que está acontecendo — disse Glossop. — Curry, trate de reunir todos os criados da Faculdade. Alguém ligue para a polícia.

— Eu não iria lá para fora se fosse você — disse Feverstone, que se tinha conservado sentado e que estava enchendo de novo o copo de vinho. — Soa-me que a polícia, ou coisa assim, já está lá.

— Que quer dizer?

— Escute. Ali!

— Pensei que fosse a infernal perfuradora deles.

— Escute!

— Meu Deus... pensa realmente que é uma metralhadora?

— Cuidado! Cuidado! — disse ao mesmo tempo uma dúzia de vozes enquanto o estilhaçar de vidro se tornava audível e uma chuva de pedras caía no pavimento da Sala Grande. Um momen­to mais tarde diversos professores tinham corrido às janelas e fechado as portas de madeira; e depois ficaram todos de pé olhan­do uns para os outros, e silenciosos salvo pelo ruído das suas res­pirações mais profundas. Glossop tinha um corte na testa, e no chão espalhavam-se os fragmentos daquela famosa janela do lado les­te na qual Henriqueta Maria tinha uma vez gravado o seu nome com um diamante.

 

ELASTICIDADE

Na manhã seguinte, Mark regressou a Belbury de trem. Tinha prometido a sua mulher esclarecer um certo número de pontos sobre o salário e local de residência, e a recordação des­sas promessas produzia uma pequena nuvem de mal-estar no seu espírito, mas no conjunto estava com boa disposição. Aquele regres­so a Belbury, entrar descuidadamente, pendurar o chapéu e man­dar vir uma bebida, era um agradável contraste com a sua primei­ra chegada. O criado que trouxe a bebida conhecia-o. Filostrato acenou-lhe com a cabeça. As mulheres haviam de inquietar-se, mas aquele era claramente o mundo real. Depois da bebida subiu vagarosamente até ao gabinete de Cosser. Esteve lá apenas cin­co minutos, e quando saiu, o seu estado de espírito tinha se alte­rado completamente.

Steele e Cosser estavam ambos lá e ambos levantaram os olhos com o ar de homens que tinham sido interrompidos por um com­pleto estranho. Nenhum deles falou.

— Ah, bom dia — disse Mark pouco à vontade.

Steele acabou de fazer uma nota a lápis num extenso do­cumento qualquer, aberto na frente dele.

— O que há, Sr. Studdock? — disse, sem levantar os olhos.

— Vim falar com Cosser — disse Mark, e depois, dirigindo-se a Cosser: — Estive pensando sobre a penúltima seção daquele re­latório...

— Que relatório é esse? — disse Steele a Cosser.

— Oh, pensei — replicou Cosser com um pequeno sorriso que lhe torcia o canto da boca — que seria bom preparar um relatório sobre Cure Hardy no meu tempo livre, e como ontem não havia nada de especial para fazer, efetuei-o. O Sr. Studdock aju­dou-me.

— Bem, deixemos isso agora — disse Steele. — Pode falar com o Sr. Cosser a esse respeito noutra hora qualquer, Sr. Studdock. Receio que ele esteja ocupado neste momento.

— Vamos ver — disse Mark —, acho que é melhor nos entendermos uns com os outros. Será que percebo que aquele relatório era um entretenimento particular de Cosser? Se assim é, gostaria de ter sabido antes de ter gasto oito horas de trabalho nele. E afi­nal eu estou às ordens de quem?

Steele, brincando com o lápis, olhou para Cosser.

— Fiz-lhe uma pergunta sobre a minha posição, Sr. Steele — disse Mark.

— Não tenho tempo para este tipo de coisas — disse Stee­le. — Se o senhor não tem nada que fazer, eu tenho. Nada sei quanto à sua posição.

Mark pensou, por um momento, em virar-se para Cosser, mas a cara de Cosser, lisa e sardenta e os seus olhos inexpressivos su­bitamente encheram-se de um tal desprezo que fez meia volta e saiu da sala, batendo com a porta. Foi até o diretor-adjunto.

À porta da sala de Wither hesitou por um instante porque ouviu vozes no lado de dentro. Mas estava zangado demais para esperar. Bateu e entrou sem esperar pela resposta.

— Meu caro moço — disse o diretor-adjunto, levantando os olhos mas sem os fixar inteiramente na cara de Mark. — Estou en­cantado por vê-lo.

Ao ouvir estas palavras Mark notou que havia na sala uma terceira pessoa. Era um homem chamado Stone que tinha encon­trado no jantar dois dias antes. Stone estava de pé em frente da mesa de Wither, enrolando e desenrolando um pedaço de papel mata-borrão entre os dedos. Tinha a boca aberta e os olhos fixos no diretor-adjunto.

— Encantado em vê-lo — repetiu Wither. — Tanto mais por­que me interrompeu naquilo que receio ter de chamar uma peno­sa entrevista. Como eu estava dizendo ao pobre Sr. Stone quando você entrou, nada está mais perto do meu coração do que o dese­jo de que este grande Instituto trabalhe em conjunto como uma família... a maior unidade de vontade e propósito, Sr. Stone, a mais completa confiança mútua... isso é o que eu espero dos meus colegas. Mas então, como me podia recordar, Sr., ahn, Studdock, mesmo na vida familiar, existem ocasionalmente tensões e atritos e mal-entendidos. E é por isso, meu caro moço, que eu neste mo­mento não tenho completa liberdade; não se vá embora, Sr. Sto­ne. Tenho muito mais coisas para lhe dizer.

— Talvez seja melhor eu voltar mais tarde? — disse Mark.

— Bem, talvez em qualquer circunstância... são os seus senti­mentos que estou a considerar, Sr. Stone... talvez... o processo habitual para falar comigo, Sr. Studdock, é ir ter com o meu secretário e marcar uma audiência. Não, como compreenderá, que eu tenha o menos empenho em insistir em quaisquer formalidades ou ficasse outra coisa senão satisfeito em o receber quando quer que aqui apareça. E a perda do seu tempo que eu estou ansioso por evitar.

— Muito obrigado, Sr. Diretor — disse Mark. — Vou ter com o seu secretário.

O gabinete do secretário era na porta ao lado. Quando se en­trava, não se encontrava o próprio secretário, mas um certo núme­ro de subordinados que estavam separados dos visitantes, por trás de uma espécie de balcão. Mark marcou uma audiência para as 10 horas do dia seguinte, que era a hora mais cedo que lhe podiam facultar. À saída deu com a Fada Hardcastle.

— Olá, Studdock — disse a Fada. — Pendurado no gabinete do DA? Isso não é bom, já sabe.

— Decidi — disse Mark — que tenho de ter a minha posição de­finida de uma vez por todas ou então deixo o Instituto.

Ela olhou para ele com uma expressão ambígua na qual pare­cia predominar o divertimento. Então, repentinamente, enfiou o braço no dele.

— Olha, meu filho — disse ela —, vais deixar-te disso tudo, es­tá bem? Não te fará bem nenhum. Anda daí e vamos ter uma con­versa um com o outro.

— Não há realmente nada para conversar, Miss Hardcastle — disse Mark. — Está tudo perfeitamente claro no meu espírito. Ou arranjo um emprego autêntico aqui, ou volto para Bracton. É bas­tante simples: nem sequer particularmente me importa qual dos dois, desde que eu saiba.

A Fada não deu resposta alguma a isto, e a pressão constan­te do braço dela obrigou Mark, a não ser que estivesse preparado para lutar, a seguir com ela pelo corredor. A intimidade e autori­dade do aperto era jocosamente ambíguo e ter-se-ia adaptado quase igualmente bem às relações entre polícia e preso, amante e amante, ama e criança. Mark sentiu que, se encontrassem al­guém, pareceria um tolo.

Ela levou-o para o seu próprio gabinete que era no segundo andar. A sala exterior estava cheia daquilo que ele já tinha apren­dido a chamar Waips, moças da Polícia Institucional Auxiliar Feminina. Os homens desse serviço, embora muito mais numero­sos, não se encontravam tantas vezes dentro de casa, mas sempre se viam Waips voando para cá e para lá, sempre que aparecia Miss Hardcastle. Longe de partilhar as características masculinas da sua chefe, eram (como dissera Feverstone uma vez) «femininas ao ponto de imbecilidade», pequenas e delgadas e penugentas e cheias de risos abafados.

Miss Hardcastle comportava-se com elas como se fosse um ho­mem e se dirigia a elas em tons de galanteria meio jovial, meio feroz.

— Cocktails, Dolly — apregoou ela quando entraram na sala exterior. Quando chegaram ao gabinete interior, fez Mark sentar-se, mas ficou ela própria de pé, com as costas para o fogo e as per­nas bem separadas. As bebidas foram trazidas e Dolly retirou-se, fechando a porta atrás dela. Mark tinha contado os seus agravos, resmungando, no caminho.

— Deixe disso, Studdock — disse Miss Hardcastle. — E faça o que fizer, não vá maçar o DA. Já lhe disse que não preci­sa de se preocupar com toda essa gente pequena do terceiro andar, contando que o tenha a ele do seu lado. Que presentemente tem. Mas não terá se continuar a ir até ele com queixas.

— Isso seria muito bom conselho, Miss Hardcastle — disse Mark —, se eu já tivesse o compromisso de aqui ficar. Mas não te­nho. E por aquilo que já vi não gosto do local. Já quase decidi a ir para casa. Pensei apenas que era bom ter uma conversa com ele pri­meiro, para pôr tudo claro.

— Pôr as coisas a claro é a única que o DA não pode suportar — replicou Miss Hardcastle. — Não é assim que ele dirige este lugar. E lembre-se, ele sabe o que faz. Funciona, meu filho. Ain­da não faz idéia alguma como funciona bem. Quanto a largar is­to... você não é supersticioso, pois não? Eu sou, não penso que dê sorte deixar o NICE. Não precisa maçar a cabeça por causa de todos os Steeles e Cossers. Isso faz parte da sua aprendizagem. Neste momento fazem-no atravessar isso, mas, se agüentar, aca­ba por ficar por cima deles. Tudo o que tem de fazer é ficar quie­to. Nenhum deles vai ficar aqui quando começarmos a andar.

— Foi essa a linha seguida por Cosser e Steele, justa­mente — disse Mark — , e não me pareceu que me sirva de mui­to quando chegar a hora.

— Sabe, Studdock — disse Miss Hardcastle —, tenho um fra­co por si. E ainda bem que tenho. Porque se não tivesse, sentir-me-ia disposta a ficar ofendida com essa última observação.

— Eu não queria ser ofensivo — disse Mark. — Mas, que dia­bo, olhe a coisa do meu ponto de vista.

— Não serve, meu filho — disse Miss Hardcastle, sacudindo a cabeça. — Você conhece os fatos apenas o suficiente para que o seu pon­to de vista valha seis pence. Ainda não compreendeu aquilo em que se meteu. Está sendo-lhe oferecida a oportunidade de chegar a algo muito maior do que um lugar no Governo. E só há duas alternativas, sabe. Ou se está dentro do NICE ou se está fora dele. E eu sei melhor do que você o que vai ser mais interes­sante.

— Eu compreendo isso — disse Mark. — Mas qualquer coisa é melhor do que estar nominalmente dentro e não ter nada que fa­zer. Dê-me um lugar real no Departamento de Sociologia e eu...

— Bolas! O departamento inteiro vai para a sucata. Tem de lá estar, no princípio, para efeitos de propaganda. Mas todos vão ser postos fora.

— Mas que garantia tenho eu de vir a ser um dos sucessores deles?

— Não vai ser. Eles não vão ter sucessores nenhuns. O traba­lho real nada tem a ver com todos esses departamentos. O tipo de sociologia em que nós estamos interessados será feito pela minha gente, a polícia.

— Então onde é que eu entro?

— Se confiar em mim — disse a Fada, pousando o copo vazio e puxando um charuto — posso pô-lo em contato com um peda­ço do seu trabalho real, aquilo para o que foi realmente trazido para cá, e já.

— Que é isso?

— Alcasan — disse Miss Hardcastle entre dentes. Tinha come­çado uma das suas intermináveis fumadelas fingidas. Depois, olhando de relance para Mark com um traço de desprezo. — Sa­be de quem estou falando, não sabe?

— Quer dizer o radiologista, o homem que foi guilhotinado? — perguntou Mark que estava completamente desnorteado. A Fada acenou afirmativamente.

— Ele é para ser reabilitado — disse ela. — Gradualmente. Tenho todos os fatos no processo. Você começa com um pequeno artigo sossegado, sem pôr em causa a sua culpa, não logo de en­trada, mas apenas insinuando que, é claro, ele era um membro do governo Quisling[2] deles e havia um preconceito contra ele. Diga­mos que não se duvida que o veredito foi justo, mas que é inquietante compreender que ele teria quase com certeza sido o mesmo, ainda que ele estivesse inocente. Então, um dia ou dois depois, segue com um artigo de natureza completamente diferente. Esti­mativa popular do valor da sua obra. Pode obter os fatos, sufi­cientes para esse tipo de artigo, numa tarde. Depois uma carta, bastante indignada, ao jornal que publicou o primeiro artigo, e in­do muito mais longe. A execução foi um erro judiciário. Por essa altura...

— Mas que raio é a finalidade disso tudo?

— Estou lhe dizendo, Studdock. Alcasan é para ser reabilita­do. Transformado num mártir. Uma perda irreparável para a raça humana.

— Mas para quê?

— Aí vai você outra vez! Resmunga por não lhe darem nada para fazer, e logo que eu sugiro um pedaço de trabalho autêntico, espera que lhe contem todo o plano de campanha antes de o fazer. Não faz sentido. Não é esse o caminho para se progredir aqui. A grande coisa é fazer o que nos dizem para fazer. Se realmente for mesmo bom, em breve compreenderá o que se passa. Mas tem de começar fazer o trabalho. Você não parece perceber o que nós somos. Somos um exército.

— De qualquer maneira — disse Mark —, não sou um jorna­lista. Não vim para cá para escrever artigos de jornal. Tentei tor­nar isso claro para Feverstone logo de início.

— Quanto mais cedo deixar toda essa conversa sobre o que veio para cá fazer, tanto melhor fará carreira. Estou falando para o seu próprio bem, Studdock. Você é capaz de escrever. Essa é uma das coisas por que o querem aqui.

— Então vim para cá por causa de um mal-entendido — dis­se Mark. O elogio à sua vaidade literária, naquela altura da sua carreira, de forma alguma compensava a implicação de que a sua sociologia não tinha qualquer importância.

— Não tenho intenção alguma de gastar a minha vida escrevendo artigos de jornal — disse ele. — E se tivesse, havia de querer saber um bom bocado mais sobre a política do NICE antes de me meter nisso.

— Não lhe disseram que é estritamente apolítico?

— Disseram-me tantas coisas que eu não sei se estou assen­tado na cabeça ou nos pés — disse Mark. — Mas não vejo como é que se vai começar uma manobra jornalística (que é mais ou menos aquilo em que a coisa consiste) sem ser de natureza política. São jornais da esquerda ou da direita que vão publicar toda essa por­caria a respeito de Alcasan?

— Ambos, doçura, ambos — disse Miss Hardcastle. — Será que não compreende nada? Pois não é absolutamente essencial manter uma esquerda feroz e uma feroz direita, ambas prontas a arrancar, e com terror uma da outra? É assim que fazemos as coisas. Qualquer oposição ao NICE é representada com uma fal­catrua da esquerda nos jornais da direita e uma falcatrua da direi­ta nos jornais da esquerda. Se for convenientemente feito, temos cada um dos lados oferecendo mais do que o outro em nosso apoio, para reputar as calúnias do inimigo. É claro que somos apolíticos. O poder autêntico sempre é.

— Não acredito que se possa fazer isso — disse Mark. — Não com os jornais que são lidos pelas pessoas instruídas.

— Isso mostra que ainda está no jardim de infância, queridinho — disse Miss Hardcastle. — Ainda não percebeu que é exatamente ao contrário.

— Que é que quer dizer?

— Ouça lá, meu tolo, é o leitor instruído que pode ser enga­nado. Todas as nossas dificuldades vêm dos outros. Quando é que encontrou um trabalhador que acredite nos jornais? Ele tem por garantido que todos eles são propaganda e passa por cima dos arti­gos de opinião. Ele compra o seu jornal pelos resultados do fute­bol e pelos pequenos parágrafos sobre moças que caem das janelas e cadáveres encontrados em apartamentos de Mayfair. Ele é nosso problema. Temos de o recondicionar. Mas o público instruído, as pessoas que lêem os semanários intelectuais, não precisam recondicionamento. Já estão muito bem. Acreditarão em qualquer coisa.

— Como um dos da classe que menciona — disse Mark com um sorriso —, eu apenas não acredito nisso.

— Santo Deus! — disse a fada. — Onde estão os seus olhos? Olhe para aquilo com que os semanários têm conseguido sair-se bem! Olhe para o Weekly Question. Aí está um jornal para si. Quando apareceu o inglês básico, simplesmente como invenção de um professor de Cambridge, livre pensador, nada era muito bom para lhe chamarem; logo que foi adotado por um primeiro-mi­nistro conservador tornou-se uma ameaça à pureza da nossa língua. E não foi a monarquia um absurdo dispendioso durante dez anos? E depois, quando o duque de Windsor abdicou, não se tornou o Question todo monárquico e legitimista durante cerca de uma quinzena? Perderam um único leitor? Não está vendo que o leitor instruído não pode parar de ler os semanários intelectuais, façam eles o que fizerem? Não pode. Foi condicionado.

— Bem — disse Mark —, tudo isso é muito interessante, Miss Hardcastle, mas nada tem a ver comigo. Em primeiro lugar, não quero de forma alguma tornar-me num jornalista, e se o fizesse, gostaria de ser um jornalista honesto.

— Muito bem — disse Miss Hardcastle. — Tudo o que vai fa­zer é ajudar a arruinar este país e talvez toda a raça humana. Além de destroçar a sua própria carreira.

O tom confidencial no qual ela tinha estado falando até então, desaparecera e havia um ar de ameaçadora finalidade na sua voz. O cidadão e o homem honesto que tinha despertado em Mark com a conversa desanimou um pouco; o seu outro e bem mais forte «eu», o «eu» que estava ansioso, a todo o custo, por não ser colocado do lado de fora, saltou, totalmente alarmado.

— Eu não quero dizer — disse ele — que não esteja vendo as suas razões. Estava apenas a imaginar...

— Para mim é tudo igual, Studdock — disse Miss Hardcastle, sentando-se finalmente à sua escrivaninha. — Se você não gosta do emprego, isso, é claro, é assunto seu. Vá e arrume o caso com o DA. Ele não gosta que as pessoas se demitam, mas é claro que você pode. Ele vai ter de dizer qualquer coisa a Feverstone por o ter trazido para cá. Nós admitimos que você compreendia.

A menção de Feverstone colocou bruscamente diante de Mark, como realidade, o plano, que até então tinha sido levemente irreal, de regressar a Edgestow e de se contentar com a carreira de um professor de Bracton. Em que termos iria ele regressar? Conti­nuaria a ser membro do círculo interior, mesmo em Bracton? Encontrar-se sem a confiança do Elemento Progressista, ser ati­rado para o meio dos Telfords e dos Jewels, parecia-lhe insupor­tável. E o salário de um simples professor parecia coisa pequena depois dos sonhos que vinha sonhando durante os últimos dias. A vida de casado já se estava a tornar mais dispendiosa do que ele tinha pensado. Então apareceu-lhe a dúvida aguda a respeito das duzentas libras para ser sócio do clube do NICE Mas não, isso era absurdo. Eles não podiam com certeza importuná-lo com isso.

— Bem, evidentemente — disse numa voz vaga —, a primei­ra coisa é ir ter com o DA.

— Agora que se vai embora — disse a Fada —, há uma coisa que tenho de dizer: pus as cartas todas na mesa. Se alguma vez lhe passar pela cabeça que seria engraçado repetir qualquer coisa desta conversa no mundo exterior, siga o meu conselho e não o faça. Não seria de forma alguma saudável para a sua carreira futura.

— Oh, mas é claro — começou Mark.

— É melhor pôr-se andando agora — disse Miss Hardcastle. — Tenha uma agradável conversa com o DA. Tenha cuidado em não aborrecer o velho. Ele detesta tanto demissões.

Mark fez uma tentativa para prolongar a entrevista mas a Fada não o permitiu e em alguns segundos estava fora da porta.

O resto do dia passou-o bastante miseravelmente, mantendo-se fora do caminho das pessoas tanto quanto possível, não fosse ser notada a sua falta de ocupação. Saiu antes do almoço para um desses passeios curtos e que dão pouca satisfação, que um homem dá num ambiente estranho, quando não trouxe consigo nem rou­pas velhas nem uma bengala. Depois do almoço explorou os terre­nos. Mas estes não eram do tipo em que alguém iria passear por prazer. O milionário da época eduardiana que construíra Belbury tinha encerrado cerca de 8 ha num muro baixo de tijolo, sobrepu­jado por uma grade de ferro, e estendido tudo naquilo a que o seu empreiteiro chamava Terrenos de Prazer Ornamental. Havia árvores espalhadas por aqui e por ali e caminhos serpenteantes cobertos tão espessamente com seixos brancos e redondos que mal se podia caminhar por eles. Havia imensos canteiros de flores, uns oblongos, alguns em forma de losango, e outros de cres­cente. Havia plantações, placas seria quase um termo melhor, daquela espécie de loureiro que parece ser feito de metal bem pin­tado e envernizado. Ao longo dos caminhos, a intervalos regulares, erguiam-se maciços assentos de Verão, de um verde brilhante. O efeito geral era semelhante ao de um cemitério municipal. Toda­via, pouco atraente como era, procurou-o outra vez depois do chá, fumando, embora o vento soprasse a ponta acesa do cigarro e a lín­gua já lhe ardesse. Desta vez, vagueou até às traseiras da casa, onde os novos edifícios mais baixos se lhe juntavam. Ai foi sur­preendido por um cheiro de estábulo e uma misturada de grunhidos, rosnadelas e lamúrias, todos os sinais, de fato, de um zôo con­siderável. No início não compreendeu, mas então lembrou-se que um imenso programa de vivisseção, liberto finalmente da bu­rocracia e dos empecilhos da economia, era um dos planos do NICE. Não tinha ficado particularmente interessado e pensara vagamente em ratos, coelhos e um ocasional cão. Os ruídos confu­sos vindos do interior sugeria alguma coisa muito diferente. En­quanto ele estava ali ergueu-se um uivo melancólico, estrondoso, e então, como se tivesse ligado a chave, toda a espécie de trombe­tear, ladridos, gritos, riso até, que estremeceu e protestou por um momento e depois foi morrendo em murmúrios e gemidos. Mark não tinha quaisquer escrúpulos quanto à vivisseção. Aquilo que o ruído significava para ele era a grandeza e grandiosidade de todo aquele empreendimento, do qual, aparentemente, era provável ele vir a ser excluído. Havia ali toda a espécie de coisas: milhares de libras de animais vivos, que o Instituto podia permitir-se esquartejar como papel, na mera hipótese de alguma descoberta importante. Ele tinha de obter o lugar: ele tinha, de qualquer ma­neira, de resolver o problema de Steele. Mas o barulho era desa­gradável e ele afastou-se.

 

Mark acordou na manhã seguinte com a sensação de que ha­veria certamente uma ou talvez duas barreiras para ele transpor durante o dia. A primeira era a sua entrevista com o diretor-adjunto. A não ser que pudesse obter uma garantia mui­to definida quanto a um emprego e um salário, cortaria a sua liga­ção com o Instituto. E depois, quando chegasse em casa, a segunda barreira seria a sua explicação a Jane de como o sonho todo se des­vanecera.

O primeiro nevoeiro autêntico de Outono descera sobre Bel­bury naquela manhã. Mark comeu o seu desjejum com luz artificial, e nem o correio nem os jornais tinham chegado. Era sex­ta-feira e um criado entregou-lhe uma conta referente à parte da semana que ele já estivera no Instituto. Pô-la no bolso, depois de um apressado olhar de relance com a decisão de que isto, de qual­quer maneira nunca, havia de ser mencionado a Jane. Nem o total nem os artigos eram do tipo que as esposas compreendem com facilidade. Ele próprio tinha dúvidas se não haveria qualquer engano, mas ainda estava na idade em que um homem antes se deixa esfolar até ao seu último tostão do que discute uma conta. Então acabou a sua segunda xícara de chá, procurou os cigar­ros, não encontrou nenhum e pediu um maço novo.

A meia hora que esperou antes da entrevista com o diretor-adjunto passou devagar. Ninguém falou com ele. Todas as outras pessoas pareciam afadigar-se com qualquer importante e bem de­finido objetivo. Durante parte do tempo esteve sozinho na sala de chá e sentiu que os criados olhavam para ele como se não deves­se estar ali. Ficou contente quando pôde subir as escadas e bater à porta de Wither.

Foi admitido imediatamente, mas a conversa não foi fácil de iniciar porque Wither nada dizia, e embora tivesse levantado os olhos assim que Mark entrou, com uma expressão de sonhadora cortesia, não olhava exatamente para Mark, nem o convidou a sentar-se. A sala, como de costume, estava extremamente quen­te, e Mark, dividido entre o seu desejo de deixar claro que tinha re­solvido não ficar mais tempo para ali dependurado e o seu dese­jo, igualmente intenso, de não perder o emprego, se é que existia algum emprego real para ele, não falou talvez muito bem. Fosse como fosse, o diretor-adjunto deixou-o ir até ao fim, passando por repetições desconexas até ao completo silêncio. Esse silêncio du­rou algum tempo. Wither estava sentado, com os lábios em bico e levemente abertos, como se estivesse a entoar uma música.

— De maneira que penso, Sr. Diretor, que é melhor ir-me em­bora — disse Mark, por fim, como uma vaga referência àquilo que tinha estado dizendo.

— É o Sr. Studdock, penso eu? — disse Wither, como quem en­saia, depois de um outro silêncio prolongado.

— Sim — disse Mark, impacientemente. — Vim vê-lo com Lord Feverstone alguns dias atrás. Deu-me a entender que me es­tava oferecendo uma posição na secção sociológica do NICE. Mas como eu ia dizendo...

— Um momento, Sr. Studdock — interrompeu o diretor-adjunto. — É muito importante sermos perfeitamente claros no que estamos fazendo. Deve ter a noção sem dúvida de que, em certos significados das palavras, seria muito infeliz falar-se de eu ofere­cer a quem quer que seja um lugar no Instituto. Não deve imagi­nar nem por um instante que eu ocupo algum tipo de posição autocrática, nem, por outro lado, que a relação entre a minha própria esfera de influência e os poderes, estou falando dos poderes temporários, como compreende, da comissão permanente ou os do próprio diretor são definidos por qualquer sistema rígido do que, err, poderíamos chamar um caráter constitucional, ou mesmo constitutivo. Por exemplo...

— Então, Sr. Diretor, pode dizer-me se alguém me ofereceu um lugar e, se assim for, quem?

— Oh — disse Wither subitamente, mudando tanto a sua po­sição como o seu tom, como se uma nova idéia lhe tivesse ocorri­do. — Nunca existiu qualquer questão dessa natureza. Entendi sempre que a sua colaboração com o Instituto seria sempre acei­tável, seria do maior valor.

— Bem, eu posso... quero dizer não deveríamos discutir os detalhes? Quero dizer, o salário, por exemplo e debaixo das ordens de quem eu iria trabalhar?

— Meu caro amigo — disse Wither com um sorriso —, não prevejo que venha a haver qualquer dificuldade sobre o, err, aspec­to financeiro da questão. Quanto a...

— Qual seria o salário, Sr. Diretor? — disse Mark.

— Bem, aí toca num ponto que dificilmente me compete deci­dir. Creio que membros na posição que pensávamos que ocuparia usualmente recebem qualquer coisa como mil e quinhentos libras por ano, permitindo flutuações calculadas numa base muito libe­ral. Verá que todas as questões desta natureza se resolvem por si próprias com a maior das facilidades.

— Mas quando eu poderei saber, Sr. Diretor? A quem devo dirigir-me nesta matéria?

— Não deve supor, Sr. Studdock, que quando refiro mil e qui­nhentas libras estou de forma alguma a excluir a possibilidade de uma soma maior. Não penso que qualquer de nós aqui deixasse que um desacordo sobre esse ponto...

— Eu ficaria perfeitamente satisfeito com mil e quinhentas — disse Mark. — Não estava pensando nisso, de todo. Mas... — A ex­pressão do diretor-adjunto tornou-se cada vez mais palaciana e confidencial à medida que Mark mastigava as palavras, de forma que, quando finalmente disse impulsivamente. — Suponho que haveria um contrato ou coisa que o valha. — Sentiu que tinha pro­nunciado uma indizível vulgaridade.

— Bem — disse o diretor-adjunto, fixando os olhos no teto e afundando a voz num murmúrio como se estivesse também pro­fundamente embaraçado —, esse não é exatamente o tipo de procedimento... seria, sem dúvida, possível...

— E esse não é o ponto principal, Sr. Diretor — disse Mark, enrubescendo. — Há a questão da minha posição. Vou trabalhar sob as ordens do Sr. Steele?

— Tenho aqui um impresso — disse Wither, abrindo uma ga­veta — que não foi, creio, realmente usado mas que foi concebido para este tipo de acordos. Pode interessar-lhe estudá-lo pelo tem­po que quiser e se ficar satisfeito, podemos assiná-lo em qualquer altura.

— Mas quanto ao Sr. Steele.

Nesse momento entrou um secretário e colocou algumas car­tas na mesa do diretor-adjunto.

— Ah! O correio, finalmente! — disse Wither. — Talvez, Sr. Studdock, err, tenha cartas para si para tratar. É, creio eu, casa­do? — Um sorriso de paternal indulgência espalhou-se no seu rosto ao dizer estas palavras.

— Peço desculpa de o demorar, Sr. Diretor — disse Mark —, mas quanto ao Sr. Steele? De nada serve eu analisar o impres­so do acordo até essa questão estar resolvida. Sentir-me-ia obri­gado a recusar qualquer lugar que implicasse trabalhar sob as or­dens do Sr. Steele.

— Isso abre uma questão muito interessante sobre a qual gostaria de ter uma pequena troca de palavras, absolutamente in­formal e confidencial, consigo numa futura ocasião qualquer — disse Wither. — De momento, Sr. Studdock, não considerarei qualquer coisa que tenha dito como definitiva. Se quiser procurar-me amanhã... — Ficou absorto na carta que tinha aberto e Mark, sentindo que já alcançara bastante numa só entrevista, deixou a sala. Aparentemente, queriam-no mesmo no NICE e estavam prontos a pagar um preço elevado por ele. Lutaria mais tarde quanto a Steele; entretanto ia estudar o impresso do acordo.

Desceu de novo e encontrou à sua espera a seguinte carta.

 

Faculdade de Bracton,

Edgestow,

20 de Outubro, 19.

 

Meu Caro Mark:

Tivemos todos muita pena ao ouvirmos de Dick que vo­cê pediu a demissão como professor, mas temos absoluta certeza de que tomou a decisão certa no que respeita à sua própria carreira. Uma vez que o NICE esteja instalado aqui esperarei vê-lo quase tantas vezes como antes. Se ainda não enviou um pedido formal de demissão ao NO, eu não teria muita pressa em fazê-lo. Se escrever cedo no pró­ximo período, a vaga será considerada na reunião de Feve­reiro, e teremos tempo para aprontar um candidato conve­niente como seu sucessor. Tem algumas idéias sobre o assunto, você mesmo? Estive na outra noite falando com Jane e com Dick sobre David Laird (James não tinha ouvido falar nele antes disso). Sem dúvida conhece o seu trabalho: poder-me-ia facultar umas linhas sobre ele, e sobre as suas qualificações de um ponto de vista mais ge­ral? É possível que o veja na próxima semana quando for até Cambridge para jantar com o primeiro-ministro e um ou dois outros, e penso que Dick é capaz de convidar tam­bém Laird. Já deve ter ouvido que tivemos na outra noite aqui um certo problema. Houve aparentemente qualquer tipo de balbúrdia entre os novos trabalhadores e os ha­bitantes locais. A polícia do NICE, que parece ser gente nervosa, cometeu o erro de disparar uns tiros por cima das cabeças da multidão. Ficamos com a janela de Henrietta Maria arrebentada e diversas pedras entraram na Sala Grande. Glossop perdeu a cabeça e queria sair e arengar às massas, mas lá consegui acalmá-lo. Isto é estritamente confidencial. Há uma quantidade de gente pronta a tirar proveito disto e levantar um grande alarido por termos vendido o parque. Cheio de pressa, tenho de sair por cau­sa dos preparativos para o funeral de Hingest.

Seu,

G. C. Curry.

 

Às primeiras palavras desta carta, como que uma punhalada de medo percorreu Mark. Procurou tranqüilizar-se. Uma explica­ção do mal-entendido, que iria escrever e pôr no correio imediata­mente, tinha de colocar tudo no seu devido lugar. Não podiam em­purrar uma pessoa do seu lugar de professor simplesmente com base numas palavras ocasionalmente ditas por Lord Feverstone na Sala Grande. Veio-lhe então à idéia, com a experiência triste que já tinha, que, aquilo a que chamava agora «palavras ocasio­nalmente ditas», correspondia exatamente ao que aprendera, no Elemento Progressista, a descrever como «resolver em privado as questões reais» ou «eliminar a burocracia», mas procurou afastar isto do seu espírito. Voltou-lhe à idéia que Conington tinha efetivamente perdido o seu lugar de uma forma muito semelhante a esta, mas explicou a si próprio que as circunstâncias tinham sido completamente diferentes. Conington era um dos que estavam «do lado de fora»; ele estava «por dentro», mais ainda do que o pró­prio Curry. Mas estava mesmo? Se ele não estivesse «por dentro» em Belbury (e começava a parecer que não estava), continuaria a ser da confiança de Feverstone? Se tivesse de regressar a Bracton, verificaria que mantinha sequer a sua antiga posição lá? Podia ele ir para Bracton? Sim, é claro. Tinha de escrever uma carta ime­diatamente, explicando que não pedira a demissão, e não ia pedir, do seu lugar de professor. Sentou-se à mesa na sala de escrever e puxou da caneta. Então outro pensamento cruzou-lhe o espíri­to. Uma carta para Curry, dizendo claramente que tencionava ficar em Bracton, seria mostrada a Feverstone. Feverstone conta­ria a Wither. Uma carta assim podia ser considerada como uma recusa a qualquer lugar em Belbury. Bem, pois que seja! Desisti­ria do seu sonho de curta duração e regressaria ao seu lugar de professor. Mas como, se isso fosse impossível? A coisa toda podia simplesmente ter sido arranjada para o deixar cair entre os dois bancos, expelido de Belbury porque mantinha o seu lugar de pro­fessor de Bracton e expelido de Bracton porque se supunha que aceitava um lugar em Belbury, e então ele e Jane deixados para que se afundassem ou nadassem, sem um tostão entre os dois, tal­vez com a influência de Feverstone contra ele quando tentasse arrumar um outro emprego. E onde estava Feverstone?

Era óbvio que tinha de jogar as suas cartas com muito cuidado.

Tocou a companhia e mandou vir uma farta dose de whisky. Em casa não teria bebido até às 12 horas e mesmo então beberia apenas cerveja. Mas agora, e de qualquer forma sentia-se curio­samente gelado. De nada servia apanhar um resfriado em cima de todos os seus problemas.

Decidiu que tinha de escrever uma carta muito cuidadosa e um tanto astuciosa. «A sua primeira redação», não era, pensou ele, «suficientemente vaga»: seria usada como prova de que tinha abandonado toda a idéia de um emprego em Belbury. Tinha de fazê-la mais vaga. Mas então, se fosse muito vaga, não teria utilidade alguma. Oh, raios, raios, raios partissem aquilo tudo. A jóia de entrada de duzentas libras, a conta da sua primeira sema­na, e pedaços de tentativas imaginárias de fazer Jane ver todo o episódio à luz apropriada, continuavam entre ele e a sua tarefa. Por fim, com a ajuda do whisky e de muitos cigarros, produziu a seguinte carta:

 

Instituto Nacional para Experiências Coordenadas, Belbury,

21 de Outubro, 19.

 

Meu caro Curry:

Feverstone deve ter-me entendido mal. Nunca fiz a mais leve sugestão de pedir a demissão do meu lugar de professor e não desejo fazê-lo. Na realida­de, quase já me decidi a não aceitar um emprego em tempo integral no NICE, e espero estar de volta à Faculdade num dia ou dois. Por outro lado, estou um tanto preocupado sobre a saúde da minha mulher e não gostaria de me comprometer a estar muitas vezes afastado, presentemente. Em segundo lugar, embora todos aqui tenham sido ex­tremamente lisonjeiros e todos insistam para eu ficar, a espécie de trabalho para que me querem é mais para o lado administrativo e da publicidade e menos científica do que esperava. Portanto, esteja certo e desminta se ouvir alguém dizer que estou pensando em deixar Edgestow. Espero que aproveite bem o seu giro até Cambridge; que círculos em que você se move!

Seu,

Mark G. Studdock.

 

PS. — Laird não serviria em qualquer caso. Ficou no último terço e a única obra que se aventurou a publicar foi tratada como uma anedota pelos críticos sérios. Em parti­cular, não tem capacidade crítica nenhuma. Pode-se sem­pre contar com ele para admirar qualquer coisa que seja in­teiramente fictícia.

 

O alívio de ter acabado a carta foi apenas momentâneo, pois assim que a fechara, o problema de como passar o resto daquele dia voltou a se pôr. Resolveu ir sentar-se no seu pró­prio quarto; mas quando lá chegou viu a cama desfeita e um as­pirador no meio do chão. Aparentemente não se esperava que os membros estivessem nos seus quartos àquela hora do dia. Desceu e tentou a sala de chá; os criados estavam a limpá-la. Espreitou na biblioteca. Estava vazia salvo por dois homens que conversa­vam com as cabeças encostadas. Pararam e olharam para ele as­sim que entrou, obviamente à espera que ele se fosse embora. Fez de conta que tinha ido buscar um livro e retirou-se. No átrio viu o próprio Steele junto ao quadro de notícias conversando com um homem de barba em bico. Nenhum deles olhou para Mark, mas quando passou por eles, calaram-se. Vagueou através do átrio e examinou pretensamente o barômetro. Onde quer que fosse, ou­via portas a abrir e a fechar, o ruído de passos rápidos, o ocasio­nal tocar de telefones; todos os sinais de uma instituição atarefada, conduzindo uma vida vigorosa, da qual ele era excluído. Abriu a porta da frente e olhou para fora; o nevoeiro era espesso, úmido e frio.

Há um sentido no qual todas as narrativas são falsas; não me atrevo a tentar, mesmo se tal fosse possível, exprimir o real mo­vimento do tempo. Aquele dia foi tão comprido para Mark que um relato fiel dele seria impossível de ler. Por vezes sentou-se no seu quarto, pois finalmente acabaram de «tratar» do quarto, por vezes saiu para o nevoeiro, algumas vezes andou pelas salas públicas. Uma vez por outra, estas estavam inexplicavelmente cheias de multidões de gente falando, e durante alguns minutos, o esforço de procurar não parecer desocupado, não parecer miserável e emba­raçado, era-lhe imposto; então, subitamente, como se tivesse sido convocada para o seu próximo compromisso, toda aquela gente desaparecia a toda a pressa.

Algum tempo depois do almoço encontrou Stone num dos cor­redores. Mark não tinha pensado nele desde a véspera de manhã, mas agora, ao olhar para a expressão no seu rosto e para algo de furtivo em todas as suas maneiras, percebeu que ali, de algum mo­do, estava alguém que se sentia tão desconfortável como ele pró­prio. Stone tinha o ar que Mark tinha muitas vezes visto antes em rapazes impopulares ou novos alunos na escola, em «excluídos» em Bracton, o ar que era para Mark o símbolo dos seus piores temores, pois ser um dos que têm de mostrar esse ar era, na sua escala de valores, o maior dos males. O seu instinto foi de não fa­lar com aquele homem, Stone. Sabia por experiência como é perigoso ser amigo de um homem a afundar-se ou mesmo ser visto com ele: não se pode mantê-lo a flutuar e ele pode levar uma pessoa com ele para o fundo. Mas o seu anseio por companhia era agora tão agudo que, contra o que o bom senso lhe dizia, fez um sorriso meio amarelo e disse:

— Olá!

Stone teve um sobressalto, como se o fato de alguém lhe falar fosse quase uma experiência aterradora.

— Boa tarde — disse ele nervosamente e fez menção de pros­seguir.

— Venha daí e vamos falar num lugar qualquer, se não esti­ver ocupado — disse Mark.

— Eu estou, quer dizer, não tenho bem a certeza de por quan­to tempo estarei livre — disse Stone.

— Conte-me o que há sobre este lugar — disse Mark. — Pa­rece-me perfeitamente amaldiçoado, mas ainda não me resolvi. Venha até ao meu quarto.

— Não penso isso. De modo algum. Quem disse que eu pensa­va assim? — respondeu Stone muito depressa. E Mark não res­pondeu porque nesse momento viu o diretor-adjunto a aproxi­mar-se deles. Havia de descobrir, nas semanas mais próximas, que nenhum corredor e nenhuma sala pública em Belbury estava alguma vez livre dos prolongados passeios internos do diretor-adjunto. Não podiam ser considerados como uma forma de espio­nagem pois o ranger das botas de Wither e a musiquinha melan­cólica que ele estava quase sempre entoando teriam derrotado um tal propósito. Ouvia-se bem ao longe. Muitas vezes via-se igual­mente bem ao longe, pois era um homem alto (sem o seu aspecto curvado seria mesmo realmente muito alto) e muitas vezes, mesmo no meio da multidão, via-se a cara dele à distância, fixando va­gamente o olhar em nós. Mas aquela era a primeira experiência de Mark da referida ubiqüidade e achou que o DA não podia ter aparecido num momento mais indicado. Muito devagar aproxi­mou-se, olhou na direção deles embora não fosse evidente pela sua cara se os tinha reconhecido ou não, e continuou. Nenhum dos dois homens mais novos fez qualquer tentativa de retomar a con­versa.

Ao chá, Mark viu Feverstone e foi logo sentar-se ao lado dele. Sabia que a pior coisa que um homem na sua posição podia fazer era tentar impor a sua presença a alguém, mas naquela altura es­tava se sentindo desesperado.

— Olá, Feverstone — começou alegremente. — Estava à pro­cura de informação. — Ficou aliviado ao ver Feverstone sorrir em resposta.

— Sim — disse Mark. — Não tive da parte de Steele exata­mente aquilo a que se poderia chamar uma recepção calorosa. Mas o DA não quer ouvir falar em eu ir-me embora. E a Fada pare­ce querer que eu escreva artigos para os jornais. Que diabo se supõe que eu vá fazer?

Feverstone riu em voz alta e prolongadamente.

— Porque – concluiu Mark — diabos me levem se consigo des­cobrir. Tentei atacar o velho, diretamente...

— Deus! — disse Feverstone, rindo ainda mais alto.

— Será que nunca se pode tirar nada dele?

— Não aquilo que você quer — disse Feverstone, com um a risa­da entre dentes.

— Bem, como diabo é que se descobre o que querem, se nin­guém faculta nenhuma informação?

— Exatamente.

— Oh, e a propósito, isso me lembra outra coisa. Como raio é que Curry apanhou a idéia de que eu ia pedir a demissão do meu lugar de professor?

— Não vai?

— Nunca tive a mais leve idéia de o fazer.

— Realmente! Foi-me dito muito claramente pela Fada que você não ia voltar.

— Você não pensa que, se eu fosse pedir a demissão, o ia fazer por intermédio dela?

O sorriso de Feverstone tornou-se mais largo e mais bri­lhante.

— Não há diferença nenhuma, sabe — disse ele. — Se o NICE quiser que você tenha um emprego nominal algures, fora de Balbury, você terá um; se não quiser, não terá. Simplesmente assim.

— Que o NICE tenha muita saúde! Estou completamente a procurar manter o lugar de professor que já tinha, o que não lhes diz respeito. Uma pessoa não tem empenho algum em cair entre dois bancos.

— Uma pessoa não tem empenho nisso.

— Quer dizer?

— Siga o meu conselho e assim que puder conquiste de novo as boas graças de Wither. Eu proporcionei-lhe uma boa partida, mas você parece ter-lhe passado a mão ao contrário do pêlo. A atitu­de dele mudou desde esta manhã. Tem de o dispor bem, sabe. E só entre nós, eu não me chegaria demais à Pada: não lhe será útil a nível mais alto. Há rodas dentro de rodas.

— Entretanto — disse Mark — escrevi a Curry, explicando-lhe que isso do meu pedido de demissão é tudo tolice.

— Não faz mal nenhum, se isso o diverte — disse Feverstone, ainda a sorrir.

— Bem, não acho que a Faculdade queira correr comigo sim­plesmente porque Curry interpretou mal qualquer coisa que Miss Hardcastle lhe disse.

— Você não pode ser privado de um lugar de professor, sob qualquer estatuto que eu conheça, exceto por grave imoralidade.

— Não, claro que não. Não queria dizer isso. Eu referia-me a não ser reeleito quando, no próximo período, tiver de me apresen­tar à reeleição.

— Oh, estou vendo.

— E é por isso que tenho de contar comigo para tirar essa idéia da cabeça de Curry.

Feverstone não disse nada.

— Você terá — insistiu Mark contra o que seria o seu melhor juízo — de lhe tornar perfeitamente claro que a coisa toda foi um mal-entendido.

— Você não conhece Curry? Há muito tempo que já terá pos­to toda a sua máquina diplomática em movimento quanto ao pro­blema do seu sucessor.

— É por isso que conto consigo para o fazer parar.

— Eu?

— Sim.

— Eu porquê?

— Bem, diabos levem isto tudo, Feverstone, foi você quem pri­meiro lhe meteu a idéia na cabeça.

— Sabe — disse Feverstone, servindo-se de um sonho —, acho o seu estilo de conversa um tanto difícil. Terá de se apresentar à reeleição dentro de alguns meses. A Faculdade poderá resolver reelegê-lo, ou, é claro, poderá não o fazer. Tanto quanto consigo descortinar, você está nesta altura tentando angariar o meu voto antecipadamente. Ao que a resposta apropriada é aquela que lhe dou agora: vá para o Inferno! — Você sabe perfeitamente bem que não existia dúvida algu­ma quanto à minha reeleição até ter dito umas palavras ao ouvi­do de Curry.

Feverstone olhou para o sonho com ar crítico.

— Você cansa-me um bocado — disse. — Se você não sabe como seguir o seu rumo num lugar como Bracton, porque é que vem aborrecer a mim? Não sou uma babá. E para seu próprio bem, o aconselharia, quando falar com as pessoas aqui, a adotar modos mais agradáveis do que está usando agora. De outra forma a sua vida pode ser, nas palavras famosas, «desagradável, pobre, brutal e curta»!

— Curta? — disse Mark. — Isso é uma ameaça? Quer referir-se à minha vida em Bracton ou no NICE?

— Não vincaria muito a distinção, se fosse você — disse Feverstone.

— Vou lembrar-me disso — disse Mark, levantando-se da cadeira. Ao começar a afastar-se, não pôde impedir-se de se virar uma vez mais para aquele homem sorridente e dizer: — Foi você quem me trouxe para aqui. Pensei que pelo menos fosse meu ami­go.

— Romântico incurável! — disse Lord Feverstone, abrindo com destreza a boca num esgar ainda mais largo e enfiando nela o sonho inteiro.

E assim Mark ficou sabendo que se perdesse o emprego em Bel­bury perderia igualmente o seu lugar de professor em Bracton.

 

Durante estes dias Jane passou tão pouco tempo quanto pos­sível no apartamento e mantinha-se acordada, lendo na cama, tan­to quanto era capaz, em cada noite. O sono tornara-se o seu ini­migo. Durante o dia continuava a ir a Edgestow, nomeadamente numa tentativa de encontrar outra «mulher que viesse duas vezes por semana», em vez da Sra. Maggs. Numa dessas ocasiões ficou encantada ao encontrar subitamente Camilla Denniston. Camilla tinha acabado de sair de um carro e no momento seguinte apre­sentou um homem alto e moreno como sendo seu marido. Jane viu de imediato que ambos os Dennistons eram o tipo de pessoas de quem ela gostava. Sabia que o Sr. Denniston tinha a tempos sido amigo de Mark, mas nunca o tinha encontrado; e o primeiro pensamento dela foi a interrogar-se porque é que os amigos atuais de Mark eram tão inferiores àqueles que ti­vera em outros tempos. Carey e Wadsden e os Taylors, que tinham sido membros do grupo, no qual ela começara primeiro a conhecê-lo, tinham sido mais simpáticos do que Curry e Busby, para não mencionar esse tal Feverstone, e este Sr. Denniston era, obviamente, muito mais simpático, na verdade.

— Vínhamos exatamente à sua procura — disse Camilla. — Olhe lá, trazemos o almoço conosco. Vamos de carro para os bos­ques junto de Sandown e comemos no carro. Temos uma quanti­dade de coisas para conversar.

— Ou então que tal virem vocês ao apartamento e almoçarem comigo? — disse Jane, perguntando-se intimamente como é que se desembaraçaria de tal. — Dificilmente o dia está para piqueniques.

— Isso apenas significa mais louça a lavar para si — disse Ca­milla. — Seria melhor irmos a qualquer lado na cidade, Frank, se a Sra. Studdock pensa que está muito frio e enevoado.

— Um restaurante não serviria, Sra. Studdock — disse Den­niston. — Queremos ficar em privado. — A primeira pessoa do plural queria, obviamente, referir-se aos «três» e estabelecia logo uma unidade agradável, em estilo de negócios, entre eles. — Não gos­ta mesmo de um dia um tanto enevoado num bosque, no Outono? Verá que estaremos perfeitamente quentes sentados no carro.

Jane disse que nunca ouvira antes falar de alguém que gostas­se de nevoeiro mas não se importava de experimentar. Entraram os três.

— É por isso que Camilla e eu nos casamos — disse Denniston quando se afastavam de carro. — Ambos gostamos do tempo. Não esta ou aquela espécie de tempo, mas do tempo, puro e simples. É um gosto útil se se vive na Inglaterra.

— Como é que aprendeu a fazer isso, Sr. Dennis­ton? — disse Jane. — Não penso que alguma vez conseguiria gos­tar de chuva e neve.

— É exatamente o contrário — disse Denniston. — Todos começam, em criança, por gostar do tempo. Aprende-se a ar­te de não gostar dele à medida que se cresce. Nunca deu por isso num dia de neve? Os crescidos andam todos por aí de cara compri­da, mas olhe para as crianças, e para os cães. Eles sabem para que é feita a neve.

— Tenho certeza de que detestava os dias molhados, quando criança — disse Jane.

— Isso era porque os crescidos a obrigavam a ficar dentro de casa — disse Camilla. — Qualquer criança gosta da chuva se a dei­xarem sair e chapinhar nela.

Nessa altura, deixaram a estrada, para lá de San­down e foram aos solavancos através da erva e por entre as árvo­res e finalmente pararam numa espécie de pequena baía relvada, com um maciço de abetos num lado e um grupo de faias, no outro.

Havia teias de aranha molhadas e um rico odor outonal em toda a volta deles. Então sentaram-se os três juntos na parte detrás do carro e houve um certo desafivelar de cestos, e depois apareceram sanduíches e um pequeno frasco de Xerez e finalmente café quen­te e cigarros. Jane estava começando a se sentir bem.

— Agora! — disse Camilla.

— Bem — disse Denniston —, suponho que é melhor começar. Sabe, é claro, de onde nós viemos, Sra. Studdock.

— De Miss Ironwood — disse Jane.

— Bem, da mesma casa. Mas não pertencemos a Grace Iro­nwood. Ela e nós ambos pertencemos a alguém mais.

— Sim? — disse Jane.

— A nossa pequena casa, ou companhia, ou sociedade, ou o que quer que deseje chamar é dirigida por um Sr. Fisher-King. Pelo menos esse é o nome que ele recentemente adotou. A senho­ra poderia conhecer ou não o seu nome original se eu lhe disses­se. Ele é um grande viajante mas agora é um inválido. Fez uma ferida num pé, na sua última viagem, que não sara.

— Como é que ele veio a mudar o seu nome?

— Tinha uma irmã casada na Índia, uma Sra. Fisher-King. Ela morreu há pouco tempo e deixou-lhe uma grande fortuna com a condição de que ele adotasse o nome dela. À sua maneira ela foi uma mulher notável; uma amiga do grande místico cristão de que pode já ter ouvido falar: o Sura. E aqui chegamos ao ponto. O Sura tinha razões para crer que um grande perigo estava penden­te sobre a raça humana. E mesmo antes do fim, mesmo antes de ele desaparecer, ficou convencido de que viria realmente a defla­grar nesta ilha. E depois dele ter partido...

— Morreu? — perguntou Jane.

— Isso não sabemos — respondeu Denniston. — Algumas pes­soas pensam que está vivo, outras não. De qualquer maneira, desapareceu. E a Sra. Fisher-King mais ou menos passou o pro­blema para o seu irmão, para o nosso chefe. Essa foi, de fato, a razão por que ela lhe deu o dinheiro. Era para ele juntar uma com­panhia à roda dele para estar de vigia a esse perigo e para o ata­car quando ele aparecesse.

— Não é exatamente assim, Arthur — disse Camilla. — Foi-lhe dito que uma companhia de fato de se reunir em volta dele e ele era para ser o seu chefe.

— Não penso que precisamos de entrar nisso — disse Arthur. — Mas concordo. E agora, Sra. Studdock, aqui é onde a senhora entra.

Jane ficou à espera.

— O Sura disse que quando o tempo chegasse, havíamos de en­contrar aquilo a que ele chamava um vidente: uma pessoa com uma segunda visão.

— Não que havíamos de obter um vidente, Arthur — disse Camilla —, que um vidente havia de aparecer. Ou o nosso ou o ou­tro lado iria ficar com ele.

— E parece — disse Denniston a Jane — que você é a vidente.

— Mas, por favor — disse Jane, sorrindo —, eu não quero ser uma coisa assim tão excitante.

— Não — disse Denniston. — É má sorte sua. — No seu tom havia apenas a conta certa de simpatia.

Camilla voltou-se para Jane e disse:

— Percebi, pelo que me disse Grace Ironwood, que você não estava inteiramente convencida de que era uma vidente. Quero dizer, pensava que pudessem ser simples sonhos. Ainda pensa isso?

— É tudo tão estranho e brutal — disse Jane. Ela gostava daquelas pessoas, mas o seu habitual ponto interior murmurava-lhe: «Tome cuidado. Não se deixe apanhar. Não se comprome­tas em nada. Tem a sua própria vida para viver.» Então, num im­pulso de honestidade forçou-a a acrescentar: — Na realidade, tive um outro sonho desde então. E verificou-se que era verdadeiro. Vi o assassinato, assassinato do Sr. Hingest.

— Aí tem — disse Camilla. — Oh, Sra. Studdock, tem de entrar. Tem, tem mesmo. Isso significa que estamos agora exa­tamente em cima da coisa. Não está vendo? Temos andado à pro­cura, todo este tempo onde é que o problema vai começar, e agora o seu sonho nos dá uma pista. Viu qualquer coisa a poucas milhas de Edgestow. De fato já estamos aparentemente no meio do acon­tecimento, qualquer que ele seja. E não podemos mover-nos uma polegada sem a sua ajuda. Você é o nosso serviço secreto, os nos­sos olhos. Tudo foi preparado muito antes de termos nascido. Não estrague tudo. Junte-se a nós.

— Não, Cam, não faças isso — disse Denniston. — O Pendragon, o chefe, quero eu dizer, não gostaria que o fizéssemos. A Sra. Studdock terá de vir de livre vontade.

— Mas — disse Jane —, não sei nada a respeito de tudo isso, pois não? Não quero tomar partido numa coisa qualquer que não compreendo.

— Mas não está vendo — interrompeu Camilla — que não pode permanecer neutra? Se não se entregar a nós, o inimigo usá-la-á.

As palavras «entregar-se a nós» foram mal escolhidas. Os pró­prios músculos do corpo de Jane inteiriçaram-se um pouco: se quem falava fosse alguém que a atraísse menos do que Camilla, ela ter-se-ia tornado numa pedra para qualquer ulterior apelo. Denniston pousa a mão no braço de sua mulher.

— Tens de ver isto do ponto de vista da Sra. Studdock, queri­da — disse ele. — Esqueces que ela não sabe praticamente nada a nosso respeito. E essa é a dificuldade real. Nós não podemos con­tar-lhe muito até ela se ter juntado a nós. Estamos de fato pedindo-lhe para dar um salto no escuro. — Virou-se para Jane com um sorriso ligeiramente zombeteiro no rosto que, era, não obstan­te, grave.

— É assim — disse —, como casar, ou ir para a Marinha em rapaz, ou ir para frade, ou experimentar alguma coisa nova para comer. Não se pode saber como é, até termos dado o mergulho. — Ele não sabia talvez (ou então talvez soubesse) os complicados res­sentimentos e resistências que a sua escolha de comparações des­pertava em Jane, nem ela própria podia analisá-los. Replicou simplesmente numa voz mais fria do que usara até aí:

— Nesse caso, é um tanto difícil ver porque é que se há de dar mesmo o mergulho.

— Admito francamente — disse Denniston — que apenas po­derá basear-se na confiança. Tudo depende realmente, suponho eu, da impressão produzida em si pelos Dimbles e Grace e por nós dois, e, é claro, pelo próprio chefe, quando se encontrar com ele.

Jane abrandou outra vez.

— O que é que, exatamente, me estão pedindo para fazer? — disse ela.

— Para vir ver o nosso chefe, primeiro do que tudo. E então, bem, juntar-se a nós. Isso implicará fazer promessas a ele. Ele é realmente um chefe, está vendo. Todos nós concordamos em receber as suas ordens. Oh, há uma outra coisa. Que opinião te­rá Mark disto? Ele e eu somos velhos amigos, como sabe.

— Pergunto a mim própria — disse Camilla. — Precisamos de entrar nessa parte nessa altura?

— Vai surgir mais tarde ou mais cedo — disse o marido. Houve uma pequena pausa.

— Mark? — disse Jane. — Como é que ele entra nisto. Não con­sigo imaginar aquilo que ele diria a respeito de tudo isto. Pensa­ria provavelmente que não estamos bem da cabeça.

— Mas objetaria? — disse Denniston. — Quero dizer, levan­taria objeções a que você se juntasse a nós?

— Se estivesse em casa, suponho que ficaria bastante sur­preendido se eu anunciasse que ia ficar indefinidamente em St. Anne. É isso que significa «juntar-se a vocês»?

— Mark não está em casa? — perguntou Denniston com algu­ma surpresa.

— Não — disse Jane. — Está em Belbury. Penso que vai ter um emprego no NICE — Ficou bastante satisfeita por poder dizer isto, pois estava bem consciente da distinção que tal implicava. Se Denniston ficou impressionado, não o mostrou.

— Não penso — disse ele — que «juntar-se a nós» signifique, neste momento, vir viver em St. Anne, especialmente realmen­te se ele próprio viesse...

— Isso está inteiramente fora de questão — disse Jane. — («Ele não conhece Mark», pensou ela.)

— De qualquer maneira — continuou Denniston —, esse difi­cilmente é o ponto principal neste momento. Poria ele objeções a você juntar-se a nós, pôr-se sob as ordens do chefe e fazer as pro­messas e tudo isso?

— Poria ele objeções? — perguntou Jane. — Que é, neste mundo, isso teria a ver com ele?

— Bem — disse Denniston, hesitando um pouco. — O chefe, ou as autoridades às quais ele obedece, tem noções algo à moda an­tiga. Ele não gostaria que uma mulher casada entrasse no nosso grupo, se isso se pudesse evitar, sem que o marido dela... sem con­sultar...

— Quer dizer que eu tenho de pedir licença a Mark? — disse Jane com uma pequena risada forçada. O ressentimento que tinha estado a encher e a vazar, mas enchendo de cada vez um pouco mais do que vazava, havia já vários minutos, tinha agora transbordado. Toda aquela conversa de promessas e obediências a um desconhecido Sr. Fisher-King já a tinha repelido. Mas a idéia de esta mesma pessoa a mandar obter licença de Mark, co­mo se ela fosse uma criança pedindo licença para ir a uma festa, era o fim. Por um momento olhou para o Sr. Denniston com real desa­grado. Via-o, e a Mark, e o tal Fisher-King e aquele absurdo faquir indiano, simplesmente como homens, figuras complacen­tes, patriarcais, tomando disposições quanto às mulheres, como se as mulheres fossem crianças, ou mercadejando-as como se fossem gado. («E assim o rei prometeu que se alguém matasse o dragão, ele dar-lhe-ia a sua filha em casamento»). Ficou muito zangada.

— Arthur — disse Camilla —, estou vendo uma luz ali em cima. Pensas que será uma fogueira?

— Sim, diria que é.

— Os meus pés estão ficando frios. Vamos dar um pequeno passeio e ver o fogo. Queria era ter algumas castanhas.

— Oh, vamos a isso — disse Jane.

Saíram do carro. Estava mais quente ao ar livre do que na al­tura se tornara dentro do carro, quente e cheio de odores de folhas, e umidade e o ligeiro ruído dos ramos que pingavam. O fogo era grande e ia a meio, uma encosta fumegante de folhas, num lado e grandes cavernas e penhascos de vermelho resplandecente no outro. Estiveram à volta do fogo, conversando assuntos sem re­levância por um tempo.

— Vou-lhe dizer o que vou fazer — disse então Jane. — Não me vou juntar ao vosso, vosso, o que quer que seja. Mas prometo dar-lhes conhecimento se tiver algum sonho mais daquela espécie.

— Isso é esplêndido — disse Denniston. — E eu penso que is­so é tanto quanto tínhamos o direito de esperar. Vejo perfeitamente o seu ponto de vista. Posso pedir uma promessa mais?

— Qual é ela?

— Não falar de nós a ninguém.

— Oh, certamente.

Mais tarde, quando tinham voltado ao carro e iam andando de regresso, o Sr. Denniston disse:

— Espero que os sonhos não a venham a preocupar muito ago­ra, Sra. Studdock. Não: não quero dizer que espero que eles ces­sem, e também não penso que o façam. Porém, agora que sabe que não são alguma coisa dentro de si própria, mas apenas coisas que se desenvolvem no mundo exterior (coisas sórdidas, sem dúvida, mas não piores do que imensas outras que se lêem nos jornais), acredito que os achará absolutamente suportáveis. Quanto me­nos pensar neles como sonhos seus e quanto mais pensar neles, bem, como notícias, tanto melhor se sentirá em relação a eles.

 

NEVOEIRO

Uma noite (com pouco sono) e metade de outro dia arrastaram-se antes de Mark conseguir falar outra vez com o diretor-adjun­to. Foi ter com ele num estado de espírito abatido, ansioso por obter o emprego em quase quaisquer termos.

— Trouxe comigo o impresso, Sr. Diretor — disse ele.

— Que impresso? — perguntou o diretor-adjunto. Mark veri­ficou que estava falando com um novo e diferente Wither. O ar de ausência ainda estava lá, mas os modos palacianos tinham desa­parecido. O homem olhava para ele como se estivesse sonhando, como se estivesse separado dele por uma distância imensa, mas com uma espécie de desagrado sonhador que me podia tornar em aversão ativa se alguma vez essa distância diminuísse. Ainda sorria, mas havia qualquer coisa semelhante ao gato nesse sorri­so; uma ocasional alteração das linhas em torno da boca que su­geriam mesmo um rosnar. Mark nas mãos dele era um rato. Em Bracton, o Elemento Progressista, tendo de enfrentar apenas es­tudiosos, passava por ser formado por gente muito conhecedora do mundo, mas ali, em Belbury, uma pessoa sentia-se absolutamen­te diferente. Wither disse que compreendera que Mark tinha já recusado o emprego. Não podia, em qualquer caso, renovar a ofer­ta. Falou vagamente, e assustadoramente, de atritos e tensões, de comportamento pouco judicioso, do perigo de fazer inimigos, da impossibilidade de o NICE poder albergar uma pessoa que pare­cia ter questionado com todos os seus membros na primeira semana. Falou, ainda mais vagamente e assustadoramente, de conversas que tinha tido com os «seus colegas em Bracton», que confirmavam inteiramente esta opinião. Duvidava que Mark se ajustasse realmente a uma carreira de ensino, mas negava qual­quer intenção de dar conselhos. Só depois de, com insinuações e murmúrios, ter levado Mark a um conveniente estado de desânimo é que lhe atirou, como um osso a um cão, a sugestão de uma no­meação por um período experimental a (aproximadamente, ele não podia comprometer o Instituto) seiscentas libras por ano. E Mark aceitou. Tentou obter respostas, mesmo então, a algumas das suas perguntas. De quem devia ele receber ordens? Tinha de residir em Belbury? Wither replicou:

— Penso, Sr. Studdock, que já mencionamos a elasticidade como a nota dominante do Instituto. A não ser que esteja prepa­rado para tratar a qualidade de membro como, err, uma vocação mais do que uma mera nomeação, eu não poderia, em consciência, aconselhá-lo a ser um dos nossos. Não existem compartimentos estanques. Receio que não poderia persuadir a Comissão a inven­tar, para seu benefício, uma posição muito bem definida, na qual cumpriria os seus deveres artificialmente limitados e, fora deles, consideraria o tempo como seu. Por favor, permita-me que termi­ne, Sr. Studdock. Somos, como já tenho dito antes, mais como uma família, ou até talvez, como uma única personalidade. Tem de não haver qualquer questão de «receber as suas ordens», como o se­nhor (um tanto desgraçadamente) sugere, de um determinado funcionário e sentir-se livre para adotar uma atitude intransi­gente em relação aos seus outros colegas. (Tenho de lhe pedir que me não interrompa, por favor.) Esse não é o espírito com o qual gostaria que abordasse os seus deveres. Tem de se fazer útil, Sr. Studdock, útil em geral. Não penso que o Instituto pudesse per­mitir a permanência nele de alguém que demonstrasse a disposi­ção de fazer finca-pé dos seus direitos, que mostrasse má vonta­de face a esta ou aquela parte do serviço, porque estava fora de uma função qualquer que escolhera circunscrever por uma defi­nição rígida. Por outro lado, seria igualmente desastroso, quero dizer para si, Sr. Studdock: estou pensando inteiramente nos seus próprios interesses, em absoluto igualmente desastroso se permi­tisse a si próprio ser alguma vez distraído do seu trabalho real pela colaboração não autorizada, ou, pior ainda, pela interferên­cia, no trabalho de outros membros. Não deixe sugestões ocasio­nais distraírem-no ou dissiparem as suas energias. Concentra­ção, Sr. Studdock, concentração. E o espírito livre para dar e receber. Se evitar ambos os erros que mencionei, então, ah, não penso que precisa desanimar de corrigir, a seu favor, certas im­pressões menos felizes que (temos de admitir) o seu comporta­mento já causou. Não, Sr. Studdock, não posso permitir mais nenhuma discussão. O meu tempo já está plenamente ocupado. Não posso ser continuamente perseguido por conversas deste tipo. Tem de encontrar o seu nível próprio, Sr. Studdock. Bom dia, Sr. Studdock, bom dia. Lembre-se do que tenho dito. Estou pro­curando fazer tudo o que posso por si.

Mark compensou-se da humilhação desta entrevista, refle­tindo que se não fosse um homem casado não a teria suportado nem por um momento. Isto parecia-lhe (embora não o pusesse em palavras) atirar o fardo para cima de Jane. Isso também o liber­tava para pensar em todas as coisas que teria dito a Wither se não tivesse a oportunidade.

Isto manteve-o por diversos minutos numa espécie de felicida­de crepuscular; e quando foi para o chá verificou que a recompen­sa pela sua submissão já tinha começado. A Fada fez-lhe sinal para ele se ir sentar ao lado dela.

— Ainda não fez nada sobre Alcasan? — perguntou.

— Não — disse Mark. — Porque ainda realmente não tinha decidido ficar, até esta manhã. Podia ir ter consigo e ver os mate­riais que tem, esta tarde, pelo menos tanto quanto sei, pois eu realmente ainda não descobri aquilo que é suposto eu fazer.

— Elasticidade, meu filho, elasticidade — disse Miss Hardcas­tle. — Nunca há de descobrir. O seu papel é fazer o que quer que lhe disserem para fazer e acima de tudo não aborrecer o velho.

 

Durante os dias seguintes diversos processos, que posterior­mente vieram a parecer importantes iam prosseguindo regular­mente.

O nevoeiro, que cobria Edgestow bem como Belbury, conti­nuou e tornou-se mais denso. Em Edgestow considerava-se que ele «vinha subindo do rio», mas na realidade estendia-se sobre todo o coração de Inglaterra. Cobria toda a cidade como um cober­tor, de modo que as paredes escorriam e se podia escrever o nome na umidade em cima das mesas e os homens trabalham com luz artificial até ao meio dia. Os trabalhos, onde fora o Parque de Bracton, deixaram de ofender os olhos conservadores e tornaram-se simples ruídos estridentes, estrondos de quedas, vaias, ber­ros, pragas e gritos metálicos num mundo invisível.

Alguns sentiram-se alegres por a obscenidade estar assim co­berta pois tudo para lá do Wind era agora uma abominação. O aperto do NICE em torno de Edgestow ia-se cerrando. O próprio rio que fora uma vez verde-acastanhado e cor de âmbar e prata lisa, puxando pelos juncos e brincando com as raízes vermelhas, agora corria opaco, espesso de lama, navegado por intermináveis esquadras de latas vazias, folhas de papel, pontas de cigarros e fragmentos de madeira, por vezes com variantes de arco-íris das manchas de óleo. Depois, a invasão na realidade atravessou-o. O Instituto tinha comprado a terra pelo lado esquerdo acima, da margem leste. Mas agora Busby foi convocado para se encontrar com Feverstone e um tal Prof. Frost, como representantes do NICE e soube pela primeira vez que o próprio Wind era para ser desviado: não haveria rio algum em Edgestow. Isto era ainda es­tritamente confidencial, mas o Instituto detinha já poderes para o impor. Assim sendo, um novo ajustamento de fronteiras entre ele e a Faculdade era claramente necessário. O queixo de Busby caiu quando percebeu que o Instituto queria chegar mesmo às paredes da Faculdade. Recusou, é claro. E foi então que ouviu a primeira referência à requisição. A Faculdade podia vender hoje e o Instituto oferecia um bom preço: se não vendessem, a expropriação e uma compensação meramente nominal esperava-os. As relações entre Feverstone e o tesoureiro deterioraram-se duran­te esta entrevista. Uma reunião extraordinária da Faculdade te­ve de ser convocada, e Busby teve de se apresentar com a melhor cara que pode, face às coisas, perante os seus colegas. Ficou qua­se fisicamente chocado pela tempestade de ódio que o acolheu. Em vão salientou que aqueles que agora o estavam insultando ti­nham, eles próprios, votado a favor da venda do parque; mas igualmente em vão o insultaram. A Faculdade foi apanhada na re­de da necessidade. Venderam a pequena faixa do lado deles do Wynd, que tanto significava. Não era mais do que um terraço entre as paredes do lado leste e a água. Vinte e quatro horas mais tarde, o NICE tapou com tábuas o Wynd condenado e converteu o terraço num vazadouro. Durante todo o dia os trabalhadores cal­cavam com força por cima das pranchas com pesadas cargas, que atiravam contra as próprias paredes de Bracton até que a pilha cobriu a entaipada escuridão que fora em tempos a janela de Henriqueta Maria e quase chegava à janela leste da capela.

Nesses dias, muitos membros do Elemento Progressista aban­donaram-no e juntaram-se à oposição. Os que ficaram viram-se pregados uns aos outros com mais força pela impopularidade que tinham de enfrentar. E embora a Faculdade, no seu interior, es­tivesse dividida, contudo, por essa mesma razão teve de se apre­sentar uma nova unidade nas suas relações com o mundo exterior. Bracton, como um todo, suportava o odioso de trazer o NICE pa­ra Edgestow. Isto era injusto, pois muitas altas autoridades da Universidade tinham aprovado inteiramente a ação de Bracton ao fazê-lo, mas agora, que o resultado se tornava visível, as pes­soas recusavam-se a lembrar-se disso. Busby, conquanto tives­se ouvido a alusão à requisição confidencialmente, não perdeu tempo nenhum antes de a espalhar por todas as salas comuns de Edgestow.

— De nada teria servido se nos tivéssemos recusado a vender — dizia ele. Mas ninguém acreditava que fora por isso que Brac­ton tinha vendido, e a impopularidade dessa Faculdade aumen­tou constantemente. Os alunos dos cursos tiveram idéia disso e deixaram de assistir às preleções dos professores de Bracton. Busby e mesmo o diretor, totalmente inocente, foram maltratados pela população nas ruas.

A cidade, que não partilhava usualmente as opiniões da Uni­versidade, encontrava-se também numa situação de perturba­ção. Nos jornais de Londres ou mesmo no Edgestow Telegraph pouca nota fora tomada dos distúrbios nos quais tinham sido que­bradas as janelas de Bracton. Mas eles tinham sido seguidos por outros episódios. Tinha havido um ataque com propósitos inde­centes, numa das ruas pobres para os lados da estação. Houvera duas «sovas» numa taberna. Havia crescentes queixas de compor­tamento ameaçador ou desordeiro por parte de trabalhadores do NICE. Mas estas queixas nunca apareciam nos jornais. Aqueles que efetivamente tinham presenciado incidentes asquerosos ficavam surpreendidos ao ler no Telegraph que o novo Instituto se ia acomodando muito confortavelmente em Edgestow e se desen­volviam as mais cordiais relações entre ele e os naturais. Aqueles que os não tinham visto mas apenas ouvido falar deles, não encon­trando nada no Telegraph, punham de lado as histórias como boa­tos ou exageros. Aqueles que os tinham visto escreviam cartas ao jornal, mas este não publicava as cartas.

Mas se se podia duvidar dos episódios, ninguém podia duvidar de que quase todos os hotéis da cidade tinham passado para as mãos do Instituto, de forma que um homem já não podia beber com um amigo no seu bar costumeiro; que as lojas familiares estavam cheias de forasteiros que pareciam ter muito dinheiro, e que os preços eram mais altos; que havia filas para todos os ônibus e dificuldades para ir a qualquer cinema. Casas sossegadas que tinham espreitado para ruas sossegadas eram abanadas du­rante todo o dia por um trânsito pesado e fora do habitual; onde quer que se fosse era-se acotovelado por multidões de estranhos. Para uma cidadezinha de feira, do interior, como Edgestow, mes­mo visitantes vindos do outro lado do conselho eram até ali tidos por estrangeiros; o clamor ao longo do dia de vozes do Norte, galesas ou até irlandesas, os berros, os apupos, as canções, os rostos selvagens passando no nevoeiro, eram absolutamente detestá­veis . «Vai haver problema por aqui», era o comentário de muito cida­dão; e daí a alguns dias: «Podia-se pensar que eles queriam problema.» Não ficou registrado quem primeiro disse: «Precisamos mais polícia.» E então, finalmente, o Edgestow Telegraph tomou conhe­cimento. Apareceu um envergonhado pequeno artigo, uma nu­vem não maior do que a mão de um homem, sugerindo que a po­lícia era inteiramente incapaz de lidar com a nova população.

Jane pouco deu por todas estas coisas. Estava, durante esses dias meramente à espera. Talvez Mark a chamasse para Belbury.

Talvez ele desistisse de todo o esquema de Belbury e viesse para casa, as cartas dele eram vagas e pouco satisfatórias. Talvez ela fosse até St. Anne ver os Dennistons. Os sonhos continuavam. Mas o Sr. Denniston tinha tido razão; era melhor quando se cedia a considerá-los como «notícias». Se não tivesse sido isso, dificil­mente teria suportado as noites. Havia um sonho repetitivo no qual não acontecia nada exatamente. Ela parecia realmente es­tar estendida na sua própria cama. Mas havia alguém do lado da cama, alguém que aparentemente puxara uma cadeira para o la­do da cama e que se sentara nela a observar. Tinha um livro de no­tas no qual ocasionalmente tomava um apontamento. Fora disso sentava-se perfeitamente imóvel e pacientemente atento, como um médico. Já conhecia o rosto dele, e veio a conhecê-lo infinita­mente bem: as lunetas, as feições bem cinzeladas e bastante bran­cas e a pequena barba em bico. E presumivelmente, se ele a podia ver, ele devia por aquela altura conhecer o dela igualmente bem: era certamente a ela própria que parecia estar estudando. Jane não escreveu a este respeito ao Dennistons na primeira vez que ocor­reu. Mesmo depois da segunda, demorou até ser tarde demais pa­ra pôr a carta no correio, naquele dia. Tinha uma espécie de espe­rança de que, quanto mais tempo se mantivesse em silêncio, mais era provável que eles viessem vê-la outra vez. Queria conforto, mas queria-o, se possível, sem ir até St. Anne’s, sem encontrar o tal Fisher-King e ser arrastada para a sua órbita.

Mark entretanto estava trabalhando na reabilitação de Alca­san. Nunca antes tinha visto um processo da polícia e achou-o di­fícil de entender. A despeito dos seus esforços para ocultar a sua ignorância, a Fada cedo o descobriu.

— Vou pô-lo em contato com o capitão — disse ela. — Ele vai mostrar-lhe os trâmites. — Foi assim que Mark veio a gastar a maior parte das suas horas de trabalho com o segundo-comandante dela, o capitão O’Hara, um homem grande, de cabelo branco e cara simpática, falando aquilo a que os ingleses chamam sotaque irlandês do Sul e a gente irlandesa «um sotaque de Dublin que se podia cortar à faca». Proclamava-se de família antiga e tinha uma residência em Castlemortle. Mark realmente não compreendia as suas explicações sobre o processo, o registro «Q», o sistema de arquivo e aquilo a que o capitão chamava «mondar». Mas tinha vergonha de o confessar, de forma que tudo veio a dar em que a in­teira seleção dos fatos se mantinha realmente nas mãos de O’Hara e Mark achou-se trabalhando simplesmente como escritor. Fez o seu melhor para esconder isso de O’Hara e para fazer pare­cer que estavam realmente trabalhando juntos; isso naturalmen­te tornou-lhe impossível repetir os seus protestos iniciais contra ser tratado como um mero jornalista. Tinha, na verdade, um esti­lo cativante (que tinha ajudado a sua carreira acadêmica muito mais do que gostaria de reconhecer) e o seu jornalismo foi um su­cesso. Os seus artigos e cartas sobre Alcasan apareceram em jornais onde nunca teria tido entrada com a sua própria assina­tura: jornais lidos por milhões. Não pôde deixar de sentir um pe­queno estremecimento de aprazível excitação.

Confiou também ao capitão O’Hara as suas ansiedades finan­ceiras menores. Quando é que se era pago? E entretanto estava necessitado de dinheiro miúdo. Perdera a carteira na sua primei­ra noite em Belbury e nunca tinha sido recuperada. O’Hara rugiu de riso.

— Com certeza que pode obter o dinheiro que desejar, pedindo-o simplesmente ao administrador.

— Quer dizer que depois o descontam no próximo cheque? — perguntou Mark.

— Homem — disse o capitão —, assim que se está no Institu­to, Deus o abençoe, já não se precisa moer a cabeça a esse respei­to. Pois não vamos nós encarregar-nos de toda a questão mone­tária? Nós é que fazemos o dinheiro.

— O que você quer dizer? — arfou Mark e depois fez uma pausa e acrescentou: — Mas iam exigir tudo de volta se uma pessoa se fos­se embora?

— Que é que você quer dizer, falando a respeito de ir embora? — disse O’Hara. — Ninguém se vai embora do Instituto. Pelo menos, o único em que jamais ouvi falar foi o velho Hingest.

Por esta altura o inquérito de Hingest chegou ao fim com um veredicto de assassinato por pessoa ou pessoas desconhecidas. A cerimônia fúnebre teve lugar na capela da Faculdade, em Brac­ton.

Era o terceiro dia de nevoeiro e aquele em que este estava mais cerrado: era tão denso que os olhos dos homens ardiam de olhar para ele e todos os sons distantes eram absorvidos; apenas os pin­gos das goteiras dos telhados e das árvores e os berros dos traba­lhadores do lado de fora da capela eram audíveis dentro da Facul­dade. No interior da capela as velas ardiam com chamas direitas, cada chama dentro de um globo de luminosidade gordurosa, e não davam quase luz nenhum no edifício no seu conjunto; se não fos­se pelo tossir e pelo arrastar dos pés não se poderia saber que os bancos estavam completamente cheios. Curry vestido de preto e com a toga preta, e parecendo maior do que realmente era, anda­va para trás e para diante no extremo oeste da capela, murmurando e espreitando, ansioso não fosse o nevoeiro atrasar a chegada daquilo a que ele chamava os restos, e não desagradavelmente consciente do peso que a responsabilidade por toda a cerimônia fa­zia tombar sobre os seus ombros. Curry era muito bom em fune­rais da Faculdade. Não havia traço de agente funerário nele; ele era o amigo varonil, reprimindo as emoções, ferido por um duro golpe mas ainda lembrado de que era (num certo sentido indefi­nido) o pai da Faculdade e de que, no meio de todos os despojos de instabilidade, ele, de toda a maneira, não podia ir-se abaixo. Pes­soas de fora, que tinham estado presentes em tais ocasiões, muitas vezes diziam umas para as outras, quando se iam embo­ra nos seus carros: «Podia ver-se como o subdiretor sentia aqui­lo, embora não o fosse mostrar.» Não havia nisso qualquer hipo­crisia. Curry estava tão habituado a superintender nas vidas dos colegas, que lhe ocorria naturalmente superintender na sua mor­te; e possivelmente, se possuísse um espírito analítico, podia ter descoberto em si mesmo uma vaga sensação de que a sua influên­cia, o seu poder de aplanar caminhos e puxar os cordéis adequa­dos, não podia realmente acabar, uma vez que o corpo deixasse de respirar.

O órgão começou a tocar e afogou tanto as tosses, lá dentro, como os ruídos mais ásperos, do lado de fora, as vozes monótonas e mal dispostas, o matraquear do ferro, e os choques vibratórios com que cargas várias eram atiradas de tempos a tempos contra a parede da capela. Mas o nevoeiro, como Curry temia, tinha atra­sado o féretro, e o organista já estava a tocar há meia hora, quan­do houve uma agitação junto à porta, e os familiares de luto, os Hingests de ambos os sexos, vestidos de preto, costas direitas como varetas e caras de camponeses, começaram a ser arrumados nos bancos para eles reservados. Depois vieram bedéis e censores e o Magnífico Reitor de Edgestow; depois cânticos, o coro e finalmente o caixão: uma ilha de flores, à deriva, indistintamen­te, através do nevoeiro, que parecia ter sido despejado lá para den­tro, mais espesso, mais frio e mais úmido, com o abrir da porta. Começou a cerimônia.

O cônego Storey tomou conta dela. A sua voz era ainda bela, e havia beleza também no seu isolamento de toda aquela compa­nhia. Estava isolado tanto pela sua fé como pela sua surdez. Não sentia quaisquer escrúpulos quanto à propriedade das palavras que lia sobre o corpo do velho e orgulhoso descrente, pois nunca suspeitara a sua descrença; e estava inteiramente inconsciente da antifonia entre a própria voz que lia e as outras vozes vindas do exterior. Glossop podia melindrar-se quando uma dessas vozes, impossível de ignorar no silêncio da capela, foi ouvida a ber­rar:

— Tira a tua grande pata traseira da janela ou prego-te com isto tudo em cima dele.

Mas Storey, impassível e desconhecedor, replicou:

— Tu meu louco, aquilo que semeaste não reviverá a não ser que morra.

— Ainda te aplico uma nesse focinho, daqui a pouco, vais ver se não — disse a voz outra vez.

— É semeado como um corpo natural; ergueu-se um corpo es­piritual — disse Storey.

— Vergonhoso, vergonhoso — murmurou Curry para o tesou­reiro que estava sentado ao seu lado. Mas alguns dos assistentes viam, como diziam, o lado engraçado daquilo e pensavam como Feverstone (que não conseguira estar presente) haveria de apreciar a história.

 

A mais agradável das recompensas que coubera a Mark pela sua obediência era a admissão à biblioteca. Pouco depois da sua breve intromissão nela, naquela manhã desgraçada, descobrira que aquela sala, embora nominalmente pública, era na prática reservada para aqueles que, na escola, se aprendia a chamar «os meninos bonitos» e, em Bracton, o «Elemento Progressista». Era no tapete junto à lareira da biblioteca, e entre as 10 e as 24 horas, que tinham lugar as conversas importantes e confidenciais; e foi por isso que, quando Feverstone uma noite se chegou ao lado de Mark, na sala-de-estar, e disse: — Que tal uma bebida na biblioteca? — Mark sorriu e anuiu e não guardou qualquer ressentimento pela última conversa que tinha tido com Feverstone. Se sentiu um certo desprezo por si pró­prio por assim ser, reprimiu-o e esqueceu-o: esse tipo de coisa era infantil e irrealista.

O círculo da biblioteca consistia usualmente em Feverstone, a Fada, Filostrato e, mais surpreendentemente, Straik. Era um bálsamo para as feridas de Mark verificar que Steele nunca aparecia ali. Ele tinha chegado aparentemente além, ou aquém, de Steele, como lhe tinham prometido que faria; tudo estava funcionando de acordo com o programa. A única pessoa cuja freqüente aparição na biblioteca ele não entendia era o homem silencioso com as lunetas e a barba em ponta, o Prof. Frost. O diretor-adjun­to, ou, como Mark lhe chamava agora, o DA ou o velho, estava muitas vezes lá, mas numa forma peculiar. Tinha o hábito de des­lizar para dentro da sala e por lá vaguear, rangendo as botas e sus­surrando como era natural. Algumas vezes vinha até ao círculo junto ao fogo e ouvia, olhava com uma expressão vagamente paternal no rosto; mas raramente dizia alguma coisa e nunca se juntava ao grupo. Retirava-se deslizando outra vez, e depois, tal­vez voltasse uma hora mais tarde e uma vez mais gastasse o tem­po pelas partes vazias da sala e uma vez mais se fosse embora. Nunca mais falara com Mark desde a entrevista humilhante no seu gabinete, e Mark soube pela Fada que ainda estava fora das boas graças.

— O velho há de derreter, com o tempo — disse ela. — Mas eu disse-lhe que ele não gostava que as pessoas falassem em ir-se embora.

O menos satisfatório elemento do círculo, aos olhos de Mark, era Straik. Straik não fazia esforço algum para se adaptar ao tom cínico e realista no qual falavam os colegas. Nunca bebia nem fu­mava. Ficava sentado em silêncio, afagando um joelho com a mão fina e virando os grandes olhos infelizes de um dos que fa­lavam para outro, sem tentar combatê-los ou juntar-se a eles quando riam de uma graça. Então, talvez que uma vez em toda a noite, qualquer coisa dita punha-o a funcionar: usualmente algu­ma coisa sobre a oposição dos reacionários no mundo exterior e as medidas que o NICE havia de tomar para tratar dela. Nessas alturas explodia em discursos ruidosos e prolongados, ameaçan­do, denunciando, profetizando. O que era estranho era que os ou­tros nem o interrompiam nem se riam. Havia qualquer unidade mais profunda entre aquele homem e eles, que aparentemente continha a óbvia falta de simpatia, mas o que era Mark não des­cobriu. Por vezes Straik dirigia-se a ele em particular, falando, para grande desconforto e perplexidade de Mark, sobre a res­surreição.

— Nem um fato histórico nem uma fábula, meu jovem — dizia ele —, mas uma profecia. Todos os milagres, sombras das coisas que hão de vir. Livre-se da falsa espiritualidade. Vai tudo acon­tecer, aqui neste mundo, no único mundo que existe. Que nos dis­se o Mestre? Curai os doentes, expulsai os demônios, ressuscitai os mortos. Havemos de o fazer. O Filho do Homem, isto é, o pró­prio Homem, plenamente adulto, tem poder para julgar o mundo, para distribuir vida sem fim, e castigo sem fim. Há de ver. Aqui e agora. — Tudo aquilo era muito desagradável.

Foi no dia seguinte ao funeral de Hingest que Mark pela pri­meira vez se aventurou e entrar na biblioteca sozinho; até aí tinha sido sempre assistido por Feverstone ou Filostrato. Estava um pouco incerto quanto à recepção, e, contudo, tinha também receio de que, se não afirmasse o seu direito de entrada, esta modéstia pudesse prejudicá-lo. Sabia que em tais matérias o erro em qual­quer das direções é igualmente fatal; uma pessoa tem de adivi­nhar e correr o risco.

Foi um sucesso brilhante. O círculo estava todo lá, e antes de ter fechado a porta atrás dele, todos se tinham virado, com cara de quem lhe dava as boas vindas, e Filostrato dissera:

— Eco.

E a Fada:

— Aqui está o homem.

Um calor de puro prazer passou por todo o corpo de Mark. Nun­ca o fogo parecera arder com mais fulgor nem o aroma das bebi­das ser mais atraente. Estavam na realidade à espera dele. Que­riam-no.

— Quão depressa é capaz de escrever dois editoriais, Mark?— disse Feverstone.

— É capaz de trabalhar a noite inteira? — perguntou Miss Hardcastle.

— Já o tenho feito — disse Mark. — De que é que se trata?

— Está convencido — perguntou Filostrato — de que aquilo, os distúrbios têm de se verificar de imediato, não é?

— Aí é que está a graça — disse Feverstone. — Ela fez o tra­balho bem demais. Não leu o seu Ovídio. Ad metam properate simul. [3]

— Não podemos demorá-los, mesmo que quiséssemos — dis­se Straik.

— De que é que estão falando? — disse Mark.

— Dos distúrbios em Edgestow — respondeu Feverstone.

— Oh... Não tenho estado a acompanhá-los com muita aten­ção. Estão a tornar-se sérios?

— Vão tornar-se sérios, meu filho — disse a Fada. — E aí é que está o ponto. O autêntico tumulto estava marcado para a próxima semana. Todas estas pequenas bagatelas eram apenas destina­das a preparar o terreno. Mas têm corrido muito bem, raios as partam. O balão tem de ir para o ar amanhã, ou no dia seguinte, pelo menos.

Mark passou os olhos de relance da cara dela para a de Fevers­tone. Este último desmanchou-se à gargalhada e Mark, quase au­tomaticamente, deu uma volta jocosa à sua própria estupefação.

— Penso que não está tudo perdido, Fada — disse ele.

— Com certeza não imaginava — sorriu Feverstone — que a Fada ia deixar a iniciativa aos naturais?

— Quer dizer que ela própria é os distúrbios? — disse Mark.

— Sim, sim — disse Filostrato, os olhos pequenos a luzir por cima das gordas bochechas.

— É tudo jogo limpo — disse Miss Hardcastle. — Não se podem pôr umas centenas de milhar de trabalhadores importados...

— Não do tipo que você recrutou! — interpôs Feverstone.

— Num pequeno buraco sonolento como Edgestow — conti­nuou Miss Hardcastle — sem haver problema. Quero dizer que ha­veria problema, de qualquer maneira. Como as coisas estão andando, não creio que os meus rapazes precisem fazer nada.

Mas, uma vez que era natural que aparecessem os problemas, não há mal nenhum em fazer que apareçam no momento certo.

— Quer dizer que maquinou os distúrbios? — disse Mark. Para se lhe fazer justiça, o seu espírito ficou a cambalear peran­te esta nova revelação. E também não teve consciência de qual­quer decisão para ocultar o seu estado de espírito: e no aconche­go e intimidade daquele círculo, achou os músculos faciais e a sua voz, sem qualquer vontade consciente, a iludir os seus colegas.

— Essa é uma forma crua de pôr a coisa — disse Feverstone.

— Não faz diferença alguma — — disse Filostrato. — As coisas têm de ser geridas assim.

— Absolutamente — disse Miss Hardcastle. — Sempre é feito assim. Quem quer que conheça o trabalho de polícia lhe dirá. E, como eu digo, a coisa a valer, o grande tumulto, tem de ter lugar dentro das próximas quarenta e oito horas.

— É muito bom ouvir a história de quem sabe mesmo! — dis­se Mark. — Desejava, contudo, pôr a minha mulher fora da ci­dade.

— Onde é que ela vive? — disse a Fada.

— Lá em cima, em Sandown.

— Ah. Mal a afetará. Entretanto, você e eu temos de nos atarefar sobre o relato do tumulto.

— Mas, para que é isso tudo?

— Regulamentos de emergência — disse Feverstone. — Nun­ca se obterão os poderes que queremos em Edgestow, até que o go­verno declare que aqui existe um estado de emergência.

— Exatamente — disse Filostrato. — É uma tolice falar de re­voluções pacíficas. Não que a canalha vá sempre resistir, muitas vezes tem de ser espicaçada a fazê-lo, mas até haver os distúrbios, os tiros, as barricadas, ninguém obterá os poderes para atuar efetivamente. Não há bastante daquilo a que se chama peso na embarcação para a governar.

— E a matéria tem de estar toda pronta para aparecer nos jor­nais no próprio dia seguinte ao tumulto — disse Miss Hardcastle. — Isso quer dizer que tem de ser entregue ao DA amanhã, às 6 horas da manhã, o mais tardar.

— Mas como é que nós a vamos escrever esta noite, se a coisa não vai acontecer até amanhã, e não antes?

Todos desataram a rir.

— Nunca há de dirigir publicidade dessa maneira, Mark — disse Feverstone. — Com certeza não precisa de esperar que uma coisa aconteça para contar a história dela!

— Bem, admito — disse Mark, e o rosto todo se ria — que tinha um ligeiro preconceito contra fazer isso, não vivendo no tipo de tempo do Sr. Dunne nem na terra do espelho.

— Não dá nada, meu filho — disse Miss Hardcastle. — Temos de andar com isto agora mesmo. Tempo para mais uma bebida e você e eu é melhor irmos lá para cima e começar. Fazemo-los dar-nos café e costeletas às 3 horas.

Aquela era a primeira coisa que tinha sido pedida para Mark fazer, a qual, ele próprio, antes de fazê-la, sabia perfeitamente ser criminosa. Mas o momento do seu consentimento passou quase sem ele dar por isso; certamente não houve nenhuma luta, nenhu­ma sensação de virar uma esquina. Pode ter havido uma altura na história do mundo em que momentos tais revelaram inteiramen­te a sua gravidade, com feiticeiros fazendo profecias sobre calor amaldiçoado, ou visíveis Rubicões a serem atravessados. Mas, pa­ra ele, tudo deslizou num chilrear de riso, daquele riso cheio de in­timidade entre profissionais do mesmo ofício, que é o mais forte dos poderes terrenos para fazer os homens praticarem más ações antes de serem, individualmente, homens muito maus. Alguns momentos mais tarde trotava escada acima com a Fada. Passa­ram por Cosser no caminho e Mark, falando diligentemente com a sua companheira, viu pelo canto do olho que Cosser os estava a observar. Pensar que ele já tivera a tempos receio de Cosser!

— Quem tem a tarefa de acordar o DA às 6 horas? — pergun­tou Mark.

— Provavelmente não é necessário — disse a Fada. — Supo­nho que o velho tem por vezes de dormir. Mas nunca descobri quando o faz.

 

Às 4 horas, Mark estava sentado no gabinete da Fada, relen­do os dois últimos capítulos do que escrevera, um para um dos mais respeitáveis dos nossos jornais, o outro para um órgão mais popular. Aquela era a única parte do trabalho da noite que conti­nha alguma coisa para lisonjear a vaidade literária. As primeiras horas tinham sido gastas no labor mais duro de cozinhar as pró­prias notícias. Aqueles dois artigos de fundo tinham sido guarda­dos para o fim e a tinta ainda estava fresca. O primeiro era como segue:

 

Conquanto fosse prematuro fazer qualquer comentário final sobre o motim da noite passada, em Edgestow, duas conclusões parecem emergir dos primeiros relatos (que pu­blicamos noutro lado), com uma clareza que não é provável ser abalada por acontecimentos subseqüentes. Em primei­ro lugar, todo o episódio administrará um rude choque em qualquer complacência que ainda possa albergar-se entre nós quanto ao esclarecimento intrínseco da nossa civiliza­ção. Tem, é evidente, de se admitir que a transformação de uma pequena cidade essencialmente universitária, num centro de pesquisa a nível nacional, não pode ser levada a efeito sem algum atrito e alguns casos gravosos para os ha­bitantes locais. Mas o inglês sempre tem tido a sua manei­ra própria, sossegada e cheia de humor, de lidar com os atritos e nunca deixou de se mostrar disposto, quando o caso lhe é apresentado de forma adequada, fazendo sacrifí­cios muito maiores do que aquelas pequenas alterações de hábitos e sentimentos que o progresso exige da gente de Edgestow. É gratificante verificar que não há sugestão al­guma, em qualquer setor com autoridade, de que o NICE tenha de qualquer forma ultrapassado os seus poderes ou faltado com aquela consideração e cortesia que dele era es­perada; e pouca dúvida existe de que o real ponto de origem dos distúrbios foi alguma discussão, provavelmente numa taberna, entre um dos trabalhadores do NICE e algum se­nhor Oráculo local. Mas como o Stagyrita disse há muito tempo, desordens por motivos triviais têm causas mais profundas, e parece haver poucas dúvidas de que este pequeno tumulto deve ter sido inflamado, se não levado à explosão, por interesses setoriais ou preconceitos larga­mente espalhados.

 

É inquietante ser forçado a suspeitar que a velha des­confiança da eficiência planejada e os velhos ciúmes daqui­lo a que se chama ambiguamente «burocracia» podem ser tão facilmente (conquanto, esperamos, temporariamente) ressuscitados; embora ao mesmo tempo, esta mesma sus­peita, ao revelar as falhas e fraquezas do nosso nível nacio­nal de educação, realce uma das próprias doenças para cuja cura existe o Instituto Nacional. Que ele a há de curar não necessitamos de ter dúvida alguma. A vontade da nação está por detrás deste magnífico «esforço de paz», como com tanta facilidade o Sr. Jules descreveu o Institu­to, e qualquer mal formada oposição, que se aventure a me­dir forças com ele encontrará, esperamos, delicada mas firme resistência.

A segunda moral a extrair dos acontecimentos da noite passada é mais animadora. A proposta original para habi­litar o NICE com o que é enganadoramente chamado a sua própria «força policial» foi encarada com desconfiança em muitas instâncias. Os nossos leitores hão de lembrar-se que, embora não partilhando essa desconfiança, lhe dedi­cávamos uma certa simpatia. Mesmo os falsos temores da­queles que amam a liberdade devem ser respeitados, como nós respeitamos as ansiedades sem fundamento de uma mãe. Ao mesmo tempo insistimos que a complexida­de da sociedade moderna tornará num anacronismo limi­tar a efetiva execução da vontade da sociedade a um cor­po de homens cujas reais funções eram a prevenção e a detecção do crime: que a polícia, de fato, deve ser, mais tarde ou mais cedo, libertada desse crescente conjunto de funções coercivas que não caem propriamente dentro da sua esfera de ação. Que este problema foi resolvido por outros países de uma forma que provou ser fatal para a liberdade e justiça, pela criação de um autêntico «império dentro do império», é um fato que é provável que ninguém esqueça. A chamada «polícia» do NICE, que melhor se cha­maria o seu «executivo sanitário», é a solução caracteristicamente inglesa. A sua relação com a polícia nacional não pode, talvez, ser definida com perfeito rigor lógico; mas, como nação, nunca estivemos muito enamorados da lógica. O executivo do NICE não tem qualquer ligação com a polí­tica; e se alguma vez vier a ter relações com a justiça cri­minal, fá-lo-á no papel benigno do salvador, um salvador que pode retirar o criminoso da severa esfera do castigo pa­ra a do tratamento curativo. Se alguma dúvida existia quanto ao valor de uma tal força, foi amplamente dissipa­da pelos episódios em Edgestow. Parecem ter-se mantido as mais felizes relações, de uma ponta à outra, entre os fun­cionários do Instituto e a polícia nacional, que, se não fos­se a assistência do Instituto, se teria visto confrontada com uma situação impossível. Como um eminente funcionário policial observou a um dos nossos representantes nesta manhã, salvo pela polícia do NICE, as coisas teriam assu­mido um aspecto completamente diferente. Se, à luz des­ses acontecimentos, for achado conveniente colocar toda a área de Edgestow sob o controle exclusivo da «polícia» ins­titucional por um certo período limitado, não cremos que o povo britânico, sempre realista no fundo do coração, ponha a mais ligeira objeção. É devido um tributo especial aos elementos femininos da força, que parecem ter atuado, por toda a parte, com aquela mistura de coragem e senso comum que os últimos anos nos ensinaram a esperar das mulheres inglesas, quase como uma coisa natural. Os boa­tos selvagens, que esta manhã eram correntes em Londres, de fogo de metralhadora nas ruas e baixas às centenas, es­tão por confirmar. Provavelmente, quando estiverem disponíveis detalhes rigorosos, ver-se-á (nas palavras de um primeiro-ministro recente) que «quando correu sangue, foi, em geral, do nariz».

 

O segundo rezava assim:

 

O que é que está a acontecer em Edgestow?

Esta é a pergunta que o «cidadão João» quer ver res­pondida. O Instituto que se instalou em Edgestow é um instituto nacional. Isso quer dizer que é seu e meu. Nós não somos cientistas e não pretendemos saber o que é que os grandes cérebros do Instituto estão pensando. Saber aqui­lo que cada homem ou mulher dele espera. Esperamos uma solução do problema do desemprego, do problema do câncer, do problema da habitação, dos problemas monetá­rios, da guerra, da educação. Esperamos dele uma vida mais brilhante, mais limpa, mais plena, para os nossos fi­lhos, na qual nós e eles possamos marchar sempre em fren­te, e em frente, e desenvolver por inteiro a ânsia de vida que Deus atribuiu a cada um de nós. O NICE é o instru­mento do povo para fazer aparecer todas as coisas pelas quais lutamos.

Entretanto, que é que está acontecendo em Edgestow?

Acredita que este motim surgiu simplesmente porque a Sra. Snooks ou o Sr. Buggins verificaram que o senhorio tinha vendido a sua loja ou o seu lote de terra ao NICE? A Sra. Snooks e o Sr. Buggins sabem como é. Sabem que o Instituto significa mais comércio em Edgestow, mais ins­talações públicas, uma população mais numerosa, uma ex­plosão de prosperidade não sonhada. Digo que aquelas perturbações foram produto de maquinações.

Esta acusação pode parecer estranha, mas é verda­deira.

Por isso eu pergunto ainda outra vez: «O que é que es­tá acontecendo em Edgestow?»

Há traidores em campo. Não tenho medo de dizer isto, sejam eles quem forem. Podem ser as pessoas chamadas religiosas. Podem ser interesses financeiros. Podem ser os velhos professores e filósofos, tecedores de teias de aranha da própria Universidade de Edgestow. Podem ser advoga­dos. Não me interessa quem são, mas tenho uma coisa dizendo-lhes. Tenham cuidado. O povo da Inglaterra não vai suportar isto. Não vamos deixar sabotar o Instituto.

Que é que há a fazer em Edgestow?

Eu digo: ponham toda a localidade debaixo do polícia da Instituição. Alguns de vós podem ter estado em férias em Edgestow. Se assim for, saberão tão bem como eu como ela é, uma pequena e sonolenta cidade de província com uma dúzia de polícias que há dez anos que não tinham na­da que fazer a não ser parar os ciclistas porque tinham os faróis apagados. Não faz sentido esperar que estes pobres e velhos Bobbies sejam capazes de se haver com um motim organizado. Na noite passada a polícia do NICE mostrou do que era capaz. Aquilo que eu digo é: «Tiremos o chapéu a Miss Hardcastle e aos seus bravos rapazes e, sim, tam­bém às suas valentes moças. Dêem-lhe liberdade e deixem-nos prosseguir o trabalho. Há que cortar a pape­lada burocrática.»

Tenho ainda um conselho. Se ouvirem alguém dizendo mal, pelas costas, da polícia do NICE, digam-lhe qual é a saída. Se ouvirem alguém comparando-a com a Gestapo ou com a GPU, digam-lhe que já ouviram essa antes. Se ou­virem alguém falando das liberdades de Inglaterra (que­rendo dizer com isso as liberdades dos obscurantistas, as Sras. Grundies, os bispos e os capitalistas), prestem aten­ção a esse homem. Ele é o inimigo. Digam da minha par­te que o NICE é a luva de boxe no punho da democracia, e se não gosta dele, o melhor é sair da frente.

Entretanto, atenção a Edgestow.

 

Poderia supor-se que depois de ter ficado satisfeito com os ar­tigos, no calor da sua feitura, Mark havia de despertar para a razão, e com isso para a aversão, ao ler em seguida o produto aca­bado. Infelizmente o processo fora quase que o inverso. Quanto mais trabalhava nela, tanto mais ficava reconciliado com a tarefa.

A reconciliação completa veio quando passou a limpo ambos os artigos. Quando um homem pôs os traços nos «t» e os pontos nos «i», gosta do aspecto do seu trabalho e não o quer ver jogado no cesto de papéis. Quanto mais vezes lia os artigos, tanto mais gos­tava deles. E, de qualquer maneira, a coisa era uma espécie de brincadeira. Tinha no espírito uma imagem dele próprio, velho e rico e certamente muito distin­to. Quando tivesse aquilo, todo o lado desagradável do NICE, teria passado, regalando os mais jovens com histórias extravagan­tes, inacreditáveis, do tempo de agora («Ah... era um caso sério naqueles tempos do princípio. Lembro-me uma vez...»). E depois, para um homem cujos escritos tinham até então aparecido apenas em periódicos científicos, ou, na melhor das hipóteses, em livros que somente outros professores iriam ler, havia também o quase irresistí­vel engodo de pensar na imprensa diária, os editores à espera dos artigos, leitores por toda a Europa, qualquer coisa dependente realmente das suas palavras. A idéia do imenso dínamo que fora colocado, de momento, à sua disposição, fazia vibrar todo o seu ser.

Além do que, afinal fazia muito tempo que ele tinha ficado exci­tado pela admissão no Elemento Progressista em Bracton. Mas o que era o Elemento Progressista em face daquilo? Não era como se ele próprio fosse iludido pelos artigos. Estava escrevendo fazendo figas, uma frase que de algum modo o confortava, ao fazer apa­recer tudo aquilo como uma partida. E, afinal, se ele não o fizes­se, outro qualquer faria. E durante todo o tempo, a criança que vivia dentro dele murmurava como era esplêndido e triunfante­mente crescido estar ali sentado daquela maneira, tão cheio de álcool e, contudo, sem estar bêbedo, escrevendo (fazendo figas) artigos para grandes jornais, contra o tempo, «com o demônio do tipógrafo à porta» e todo o círculo interior do NICE na dependên­cia, e sem ninguém ter jamais o mínimo direito de o considerar uma pessoa sem valor ou um simples número.

 

Jane estendeu a mão no escuro mas não sentiu a mesa que de­via estar ali à cabeceira da cama. Então, com um choque de surpresa, descobriu que não estava na cama, mas de pé. À sua volta havia completa escuridão e o frio era intenso. Às apalpadelas, tocou o que parecia ser uma superfície irregular de pedra. O ar, também, tinha em si qualquer qualidade estranha, ar morto, ar aprisionado, parecia. Algures, lá muito ao longe, pos­sivelmente por cima da sua cabeça, havia ruídos que lhe chega­vam abafados e vibrando como se através da terra. Tinha então acontecido o pior, tinha caído uma bomba na casa e ela fora soter­rada viva. Mas antes de ter tempo de sentir o impacto total des­ta idéia, lembrou-se de que a guerra tinha acabado... Oh, e des­de então tinha sucedido toda a espécie de coisas... tinha casado com Mark... tinha visto Alcasan na sua cela... tinha encontrado Camilla. Então, com grande e rápido alívio, pensou: «É um dos meus sonhos. É um pedaço de notícias. Vai passar. Não há nada para ter medo.»

O lugar, fosse qual fosse, não parecia ser muito amplo. Foi às apalpadelas ao longo de uma das paredes ásperas e então, viran­do no canto, bateu com o pé em qualquer coisa dura. Curvou-se para a frente e apalpou. Havia uma espécie de plataforma eleva­da ou mesa de pedra, com cerca de três pés de altura. E em cima dela? Atrevia-se a explorar? Mas seria pior não o fazer. Começou a experimentar a superfície da mesa com a mão, e no momento seguinte mordeu o lábio para se impedir de gritar, pois tinha to­cado num pé humano. Era um pé nu, e morto, a julgar pela frieza. Continuar às apalpadelas parecia a coisa mais difícil que jamais fizera, mas de algum modo era impelida afazê-lo. O cadá­ver estava coberto por um tecido muito grosseiro qualquer, que era também irregular, como se fosse pesadamente bordado e mui­to volumoso. «Deve ser um homem muito corpulento», pensou ela, subindo a apalpar em direção à cabeça. Sobre o peito, a textura mudava subitamente, como se a pele de algum animal peludo tivesse sido estendida sobre a grosseira túnica. Assim pensou inicialmente, então percebeu que o cabelo realmente pertencia a uma barba. Hesitou antes de tocar na cara; tinha “medo, não fosse o homem mexer-se ou acordar ou falar, se ela o fizesse. Por isso ficou imóvel por um momento. Era apenas um sonho; podia supor­tar; mas era tão triste e tudo aquilo parecia ter acontecido há tanto tempo atrás, como se ela tivesse resvalado, através de uma fenda no presente, para algum poço frio e sem sol de um passado remoto. Esperava que não a deixassem ali muito tempo. Se ao me­nos alguém aparecesse depressa e a deixasse sair. E imediata­mente teve a imagem de alguém, alguém de barbas mas também (isto era estranho) divinamente jovem, alguém todo dourado e for­te e quente que descia, com pisadas poderosas e que abalavam a terra, para dentro daquele lugar negro. O sonho tornou-se caóti­co neste ponto. Jane tinha a impressão que devia fazer uma vênia àquela pessoa (que nunca chegou efetivamente a aparecer, em­bora a impressão tivesse ficado, brilhante e forte, no seu espírito), e sentiu uma grande consternação ao verificar que algumas me­mórias baças de lições de dança na escola não eram suficientes para lhe mostrar como o fazer. Neste ponto acordou.

Foi para Edgestow logo depois do café da manhã para pro­curar, como agora procurava todos os dias, alguém que viesse substituir a Sra. Maggs. No topo de Market Street aconteceu algu­ma coisa que finalmente a resolveu a ir a St. Anne’s nesse mesmo dia e pelo trem das 10 horas e 23 minutos. Chegou a um lugar onde estava parado um grande carro ao lado do pavimento, um carro do NICE. Quando chegou junto dele, um homem saiu de uma loja, passou pela frente dela para falar ao motorista do car­ro e depois entrou neste. Estava tão perto dela que, a despeito do nevoeiro, viu-o muito distintamente, isolado de todos os outros objetos: o pano de fundo era todo ele nevoeiro cinzento e pés que passavam e os sons rudes daquele trânsito fora do costume que agora nunca acabava em Edgestow. Tê-lo-ia reconhecido, onde quer que fosse: nem o rosto de Mark, nem o seu próprio rosto num espelho, lhe eram agora mais familiares. Viu a barba em bico, as lunetas, o rosto, que de certa maneira lhe recordava um rosto de cera. Não tinha necessidade de pensar o que ia fazer. O seu cor­po, ultrapassando-o rapidamente, parecia ter decidido por si próprio que ia direito à estação e daí para St. Anne’s. Era qualquer coisa diferente do medo (embora ela estivesse também aterroriza­da, quase a ponto de ter náuseas) que a conduzia tão infalivelmente em frente. Era uma total rejeição, ao mesmo tempo. Os sonhos afundavam-se na sua insignificância comparados com a ofuscante realidade da presença do homem. Estremeceu ao pensar que as mãos de ambos se podiam ter tocado, quando passara por ele.

O trem estava abençoadamente quente, o compartimento dela vazio, o fato de se sentar delicioso. A lenta viagem através do nevoeiro quase a pôs a dormir. Mal pensou em St. Anne’s até que lá se encontrou: mesmo enquanto caminhava pela íngreme colina acima não fazia planos, não ensaiava nada do que tencionava dizer, pensava apenas em Camilla e na Sra. Dimble. Os níveis infantis, o subsolo do espírito, tinham vindo de cima. Queria estar com as pessoas, gentis, longe das pessoas desagra­dáveis, essa distinção de infantário parecia no momento mais im­portante do que quaisquer posteriores categorias de Bons e Maus ou Amigos e Inimigos.

Foi despertada deste estado, ao notar que estava mais claro. Olhou em frente: seguramente que a curva da estrada estava mais visível do que deveria estar num nevoeiro assim? Ou seria apenas que o nevoeiro do campo era diferente do nevoeiro da cidade? Com certeza o que fora cinzento estava a tornar-se branco, quase deslumbrantemente branco. Umas jardas mais à frente e por cima da cabeça, mostrava-se o azul luminoso, e as árvores faziam sombra (não via uma sombra havia dias), e então de repente, enormes por­ções do céu ficaram visíveis e o pálido sol dourado também, e ao olhar para trás, quando virou para o solar, Jane estava de pé na costa de uma pequena ilha verde iluminada pelo sol, olhando para baixo para um mar de nevoeiro branco, com sulcos e cristas, em­bora plano no conjunto, que se estendia até onde ela podia ver. Havia também outras ilhas. Aquela escura, para oeste, eram as colinas arborizadas por cima de Sandown, onde tinha feito o piquenique com os Dennistons; e a muito maior e mais brilhante, para o lado norte, eram as colinas cheias de cavernas, quase se lhes podia chamar montanhas, na qual o Wind tinha a sua nascen­te. Respirou fundo. Era o tamanho daquele mundo por cima do nevoeiro que a impressionava. Lá em baixo, em Edgestow, todos aqueles dias tinha-se vivido, mesmo quando ao ar livre, como se se estivesse dentro de um quarto, pois apenas eram visíveis os objetos que estavam à mão. Sentia que estivera perto de esque­cer como é grande o céu, como é distante o horizonte.

 

O CHEFE SUPREMO

Antes de chegar à porta do muro, Jane encontrou o Sr. Dennis­ton e ele guiou-a para dentro do solar, não por essa porta mas pelo portão principal, que abria para a mesma estrada, umas centenas de jardas mais à frente. Ela contou-lhe a sua história enquanto caminhavam. Na companhia dele, tinha aquela curiosa sensação, que a maior parte das pessoas casadas conhecem, de estar com al­guém com quem (por uma razão definitiva mas inteiramente mis­teriosa) nunca se poderia ter casado mas que, não obstante, é mais do mundo da própria pessoa do que aquela com quem de fato se casou. Ao entrarem em casa, encontraram a Sra. Maggs.

— O quê, A Sra. Studdock! Imaginem! — disse a Sra. Maggs.

— Sim, Ivy — disse Denniston —, e trazendo grandes novida­des. As coisas estão começando a mexer. Temos de ver Grace ime­diatamente. E está por aí Mac Phee?

— Anda lá por fora a jardinar, há horas — disse A Sra. Maggs. — E o Dr. Dimble foi para a Faculdade. E Camilla está na cozinha. Devo mandá-la ir ter convosco?

— Sim, faça-o E se puder evitar que o Sr. Bultitude se intro­meta...

— Está bem. Hei de o manter sem fazer maldades, realmen­te. Gostaria de uma xícara de chá, Sra. Studdock, não é? Depois de vir de trem e tudo isso.

Uns minutos mais tarde, Jane encontrou-se uma vez mais no quarto de Grace Ironwood. Miss Ironwood e os Dennistons esta­vam todos sentados de frente para ela, de forma que se sentiu como se fosse um candidato num exame oral. E quando Ivy Maggs entrou com o chá, não foi embora outra vez, mas sentou-se, como se fosse também um dos examinadores.

— Agora! — disse Camilla, os olhos e as narinas abertos, com uma espécie de fome mental recente, era muito concentrada para se chamar excitação.

Jane olhou de relance à volta do quarto.

— Não precisa preocupar-se com Ivy, minha jovem — disse Ironwood. — Ela é uma das da nossa companhia.

Houve uma pausa.

— Temos a sua carta do dia 10 — continuou Miss Ironwood —, descrevendo o seu sonho com o homem de barba em bico, senta­do e tomando notas no seu quarto. Talvez deva dizer-lhe que ele não estava realmente lá: pelo menos, o diretor não acha ser isso possível. Mas ele estava a estudá-la. Ele estava obtendo informações a seu respeito, de qualquer outra origem que, infelizmen­te, não era visível por si no sonho.

— Pode contar-nos, se não se importa — disse o Sr. Den­niston —, o que estava me dizendo quando vínhamos para cá?

Jane contou-lhes o sonho com o cadáver (se era um cadáver) no lugar escuro e como encontrara o homem de barba nessa ma­nhã em Market Street; e logo teve a consciência de ter criado um interesse intenso.

— Imaginem! — disse Ivy Maggs.

— Tínhamos, pois, razão a respeito do Parque de Bragdon! — disse Camilla.

— É realmente Belbury — disse o marido. — Mas nesse caso, onde é que aparece o Alcasan?

— Desculpem — disse Miss Ironwood na sua voz tranqüila, e os outros ficaram instantaneamente silenciosos. — Não devemos discutir o assunto aqui. A Sra. Studdock ainda não se juntou a nós.

— Não vão me dizer nada? — perguntou Jane.

— Minha jovem — disse Ironwood. — Tem de me desculpar. Não seria sensato neste momento: na verdade não temos liberda­de de fazê-lo. Permita-me que lhe faça mais duas perguntas?

— Se o deseja — disse Jane, enfadada, mas só um pouquinho. A presença de Camilla e do marido de certa forma fazia-a assumir o seu melhor comportamento.

Miss Ironwood abrira uma gaveta e durante alguns momen­tos houve silêncio enquanto ela pesquisava lá dentro. Depois estendeu uma fotografia a Jane e perguntou:

— Reconhece esta pessoa?

— Sim — disse Jane em voz baixa. — É o homem com quem te­nho sonhado e o homem que vi esta manhã em Edgestow.

Era uma boa fotografia e debaixo dela estava o nome Augustus Frost, com uns tantos detalhes mais, que Jane no momento não absorveu.

— Em segundo lugar — continuou Miss Ironwood, estenden­do a mão para Jane devolver a fotografia — está preparada para ver o diretor, já?

— Bem, sim, se o deseja.

— Nesse caso, Arthur — disse Miss Ironwood para Denniston —, é melhor ir dizer-lhe aquilo que acabamos de ouvir, e ver se ele está suficientemente bem para se encontrar com a Sra. Studdock.

Denniston levantou-se de imediato.

— Entretanto — disse Miss Ironwood —, gostaria de ter uma palavra a sós com a Sra. Studdock. — Com isto os outros também se levantaram e saíram do quarto à frente de Denniston. Um ga­to muito grande que Jane não tinha notado antes saltou e ocupou a cadeira que Ivy Maggs tinha acabado de deixar vaga.

— Tenho muito poucas dúvidas — disse Miss Ironwood — de que o diretor a irá receber.

Jane não disse nada.

— E na entrevista — continuou a outra — será, presumo eu, chamada a tomar uma decisão definitiva.

Jane tossiu ligeiramente, sem qualquer outro propósito que não o de dissipar um certo ar de importuna solenidade que pare­cia ter-se instalado no quarto, logo que ela e Miss Ironwood foram deixadas a sós.

— Há ainda certas coisas — disse Miss Ironwood — que deve saber sobre o diretor, antes de ir vê-lo. Vai parecer-lhe, Sra. Studdock, ser um homem muito novo; mais novo do que a senho­ra. Compreenda por favor que não é esse o caso. Ele está mais pró­ximo dos 50 do que dos 40 anos. É um homem de muita ex­periência, que viajou para onde nenhum outro ser humano jamais viajou antes, e conviveu com sociedades das quais nem você nem eu temos qualquer idéia.

— Isso é muito interessante — disse Jane, embora sem mos­trar interesse algum.

— E em terceiro lugar — disse Miss Ironwood — tenho de lhe pedir para se lembrar de que ele está às vezes cheio de dores. Qualquer que seja a decisão a que chegar, confio que não dirá ou fará nada que possa submetê-lo a uma tensão desnecessária.

— Se o Sr. Fisher-King não está em condições de receber vi­sitas... — disse Jane em tom vago.

— Tem de me desculpar — disse Miss Ironwood — por insis­tir consigo nestes pontos. Sou médica, e a única na nossa compa­nhia. Sou, por isso, responsável por protegê-lo tanto quanto pos­so. Se vier agora comigo, vou levá-la à Sala Azul.

Levantou-se e abriu a porta para Jane passar. Saíram para um corredor simples e estreito e daí, por degraus baixos, subiram para um amplo átrio de entrada, de onde uma bela escadaria georgiana levava aos andares de cima. A casa, maior do que Jane a princípio supusera, estava quente e muito silenciosa, e depois de tantos dias passados no nevoeiro, a luz do sol de Outono, incidin­do em carpetes macias e nas paredes, parecia-lhe brilhante e dou­rada. No primeiro andar, mas seis degraus acima dele, encontra­ram um pequeno lugar quadrado com colunas brancas, onde Ca­milla, sossegada e atenta, estava sentada à espera deles. Havia uma porta por detrás dela.

— Ele vai recebê-la — disse para Miss Ironwood, levantando-se.

— Está com muitas dores esta manhã?

— Não são contínuas. É um dos seus dias bons.

Quando Miss Ironwood ergueu a mão para bater à porta, Ja­ne pensou para consigo: «Tome cuidado. Não se deixe arrastar para nada. Todos estes corredores compridos e vozes baixas, se não tiver cuidado, a farão de tola. A tornarão mais outra das ado­radoras femininas deste homem.» No momento seguinte deu por si a entrar. Era claro, parecia tudo janelas. E era quente, o fogo ar­dia no fogão. E o azul era a cor prevalecente. Antes dos olhos de­la terem absorvido aquilo, ficou aborrecida, e de certa maneira en­vergonhada, ao ver que Miss Ironwood estava fazendo uma vênia. «Não o farei», questionava no espírito de Jane com «não posso», pois tinha sido verdade no sonho dela: não podia.

— Esta é a jovem, senhor — disse Miss Ironwood. Jane olhou; e instantaneamente o seu mundo desfez-se. No sofá na frente dela, com um pé enfaixado como se tivesse uma ferida, estava estendido o que parecia ser um rapaz de 20 anos de idade.

Num dos compridos peitoris da janela, uma gralha domestica­da andava para baixo e para cima. A luz do fogo com o seu refle­xo fraco, e a luz do sol com o seu reflexo mais forte rivalizam no teto. Mas toda a luz na sala parecia correr para o cabelo de ouro e a barba loura do homem ferido.

Evidentemente ele não era um rapaz, como é que ela podia ter pensado nisso? A pele fresca na testa e nas faces e, acima de tu­do, nas suas mãos, sugerira a idéia. Mas nenhum rapaz podia ter uma barba tão cerrada. E nenhum rapaz podia ser tão forte. Esperava ver um inválido. Agora era manifesto que do aperto daque­las mãos não se poderia escapar e a imaginação sugeria que aque­les braços e ombros podiam sustentar a casa toda. Miss Ironwood, a seu lado, parecia-lhe uma velha, pequena, encarquilhada e pá­lida, uma coisa que se podia afastar com um sopro.

O sofá estava colocado numa espécie de estrado, separado do resto da sala por um degrau. Teve a impressão de uma massa de reposteiros azuis; mais tarde, viu que era apenas um biombo, por detrás do homem, de forma que o efeito era de uma sala do trono.

Teria chamado tolice àquilo se, em vez de o estar vendo, alguém lhe tivesse contado. Através das janelas ela não via árvore nenhuma, nem colinas nem as formas de outras casas: apenas o nevoei­ro ao nível do pavimento, como se aquele homem e ela estivessem empoleirados numa torre azul, olhando do alto para o mundo.

A dor ia e vinha na cara dele: súbitas pontadas de dor abrasadora e que causava agonia. Mas, como o relâmpago atravessa a es­curidão e a escuridão torna a fechar-se e não mostra traço algum, assim a tranqüilidade do seu semblante engolia cada transe de tortura. Como podia ela tê-lo pensado jovem? Ou então velho? Atingiu-a a idéia, com uma sensação de medo súbito, de que a ca­ra dele não tinha idade nenhuma. Ela não gostava (ou assim jul­gava) de caras com barbas, exceto em velhos de cabelos brancos. Mas isso era porque há muito esquecera o Rei Artur que imagina­ra na sua infância, e o Salomão que imaginara. Salomão, pela pri­meira vez em muitos anos a brilhante mistura solar de rei, aman­te e mágico que pende sobre esse nome voltava a entrar de volta e de surpresa no seu espírito. Pela primeira vez em todos aqueles anos, saboreou a palavra rei, com todas as associações ligadas de batalha, casamento, sacerdócio, misericórdia e poder. Naquele momento, quando os seus olhos primeiro pousaram na cara dele, Jane esqueceu quem era, e onde estava, e o seu vago ressentimen­to contra Grace Ironwood, e o seu ressentimento mais obscuro contra Mark, e a sua infância e a casa do pai. Foi, é claro, apenas por um relâmpago. No momento seguinte, era novamente a Ja­ne social e comum, corada e confusa ao verificar que tinha esta­do a fitar rudemente (pelo menos esperava que a rudeza fosse a principal impressão causada) um completo estranho. Mas o seu mundo estava desfeito; sabia isso. Qualquer coisa podia acontecer agora.

— Obrigado, Grace — estava o homem dizendo. — Esta é a Sra. Studdock?

E a voz parecia ser também como luz do sol e ouro. Como o ou­ro, não apenas como o ouro é belo, mas como ele é pesado; como a luz do sol, não apenas como ela incide suavemente nas paredes in­glesas no Outono, mas como fustiga a selva ou o deserto, para ori­ginar vida ou para a destruir. E agora dirigia-se a ela.

— Tem de me perdoar por não me levantar, Sra. Studdock — dizia. — O meu pé está magoado.

E Jane ouviu a sua própria voz dizer «sim, senhor» suave e res­peitosa como a voz de Miss Ironwood. Tencionara dizer: — Bom dia, Sr. Fisher-King — num tom à vontade que teria contrariado o absurdo do seu comportamento inicial ao en­trar na sala. Mas o outro foi o que saiu realmente da sua boca. Pou­co depois, deu por si sentada em frente do diretor. Estava abalada, estava mesmo tremendo. Tinha forte esperança de não começar a chorar ou de não ser incapaz de falar ou de não fazer qualquer tolice. Pois que o seu mundo fora desfeito: qualquer coisa podia agora acontecer. Se ao menos a conversa já tivesse acabado! De forma a ela poder sair daquela sala sem ser em desgraça, e ir-se embora, não de vez, mas por longo tempo.

— Quer que eu fique, senhor? — disse Miss Ironwood.

— Não, Grace — disse o diretor —, não penso que precise ficar. Obrigado.

«E agora», pensou Jane «vai vir, vai vir, vai vir agora». Todas as perguntas mais intoleráveis que ele podia fazer, todas as coisas mais extravagantes que ele podia fazê-la praticar, perpassaram-lhe pelo espírito numa confusão tola. Pois, todo o poder de resis­tência parecia ter sido extraído dela e ela ficara sem proteção.

 

Durante os primeiros minutos depois de Grace Ironwood os ter deixado sós, Jane mal entendeu aquilo que o diretor estava dizendo. Não era que a sua atenção se dispersasse; pelo contrário, a sua atenção estava tão fixa nele que se derrotava a si própria. Cada tom, cada olhar (como é que tinham podido pensar que ela o acharia jovem?), cada gesto, estava a ficar impresso na sua me­mória; e foi só quando verificou que ele tinha deixado de falar, e estava aparentemente à espera de uma resposta, que compreen­deu que tinha absorvido tão pouco daquilo que ele estivera dizendo.

— Peço, peço desculpa — disse, desejando não continuar a ficar corada como uma menina de escola.

— Eu estava dizendo — respondeu ele — que já nos prestou o maior serviço possível. Sabíamos que um dos mais perigosos ata­ques, jamais desencadeados contra a raça humana, viria muito em breve, e nesta ilha. Tínhamos idéia de que Belbury podia estar relacionado com ele. Mas não tínhamos a certeza. Certamente que não sabíamos que Belbury era assim tão importante. É por isso que a sua informação é tão valiosa. Mas, por outro lado, apresen­ta-nos uma dificuldade. Quero dizer, uma dificuldade naquilo que lhe diz respeito. Tínhamos esperança de que pudesse juntar-se a nós, de vir a ser um elemento do nosso exército.

— E não posso, senhor? — disse Jane.

— É difícil — disse o diretor depois de uma pausa. — Está vendo: o seu marido está em Belbury.

Jane levantou os olhos de relance. Tinha estado na ponta da língua dizer:

— Quer dizer que Mark corre perigo? — Mas compreendera que a ansiedade a respeito de Mark não fazia, de fato, parte das complexas emoções que estava sentindo, e que replicar assim se­ria hipocrisia. Era um tipo de escrúpulos que não experimen­tara muitas vezes antes. Por fim, disse: — O que quer dizer?

— Pois é — disse o diretor —, sereia difícil para a mesma pes­soa ser esposa de um funcionário do NICE e ao mesmo tempo membro da minha companhia.

Quer dizer que não podia confiar em mim?

— Eu não quero dizer nada de que precisamos ter receio de fa­lar. Quero dizer que, nas circunstâncias, você, eu e o seu marido não poderíamos todos confiar uns nos outros.

Jane mordeu os lábios, zangada, não com o diretor mas com Mark. Por que é que haviam, ele e os seus negócios com o tal Feverstone, de se intrometer num momento como aquele?

— Eu tenho que fazer aquilo que eu penso ser certo, não tenho? — disse ela suavemente. — Quero dizer: se Mark, se o meu ma­rido, está do lado errado, não posso deixar que isso cause qualquer diferença naquilo que eu faço. Posso?

— Está pensando sobre o que é certo ? — disse o diretor. Ja­ne sobressaltou-se, e corou. Percebeu que não tinha estado pensando nisso.

— É claro — disse o diretor — que as coisas podiam chegar a tal ponto que a sua vinda para aqui fosse justificada, mesmo intei­ramente contra a vontade dele, secretamente até. Isso depende de quão perto estiver o perigo, o perigo para todos nós, e para si pes­soalmente.

— Pensava que o perigo já estava mesmo em cima de nós nes­te momento, da forma que a Sra. Denniston falou.

— Essa é justamente a questão — disse o diretor, com um sor­riso. — Não me é permitido ser muito prudente. Não me é permitido usar remédios desesperados até serem realmente visí­veis doenças desesperadas. De outro modo tornamo-nos exata­mente como os nossos inimigos, quebrando todas as regras, sem­pre que imaginamos que isso possa eventualmente fazer qualquer vago bem à Humanidade num futuro remoto.

— Mas causará algum dano a alguém se eu vier para cá? — pergun­tou Jane.

Ele não respondeu diretamente a isto. Acabou por falar outra vez.

— Parece que terá de voltar para casa, pelo menos por agora. Há de, sem dúvida, ver outra vez o seu marido muito em breve. Penso que deve pelo menos fazer um esforço para o desligar do NICE.

— Mas como é que eu posso, senhor? — disse Jane. — Que é que eu tenho para lhe dizer? Pensaria que tudo era insensato. Não acreditaria em nada sobre um ataque à raça humana.

Logo que disse isto, interrogou-se: «Aquilo suava a astúcia?», e depois, de forma mais desconcertante: «era astúcia?»

— Não — disse o diretor. — E não lhe deve contar. Não se de­ve referir a mim nem à companhia, em absoluto. Pusemos as nos­sas vidas nas suas mãos. Tem simplesmente que lhe pedir para deixar Belbury. Tem que pôr isso como seu desejo próprio. Você é a esposa dele.

— Mark nunca dá importância nenhuma àquilo que digo — respondeu Jane. Tanto ela como Mark pensavam isso um do outro.

— Pode ser — disse o diretor — que nunca lhe tinha pedido nada como vai pedir-lhe isto. Não quer salvar a ele tanto como a si?

Jane ignorou esta pergunta. Agora que a ameaça de expulsão da casa estava eminente, sentia uma espécie de desespero. Sem atender ao comentador interior, que, durante esta conversa, mais do que uma vez lhe tinha mostrado as suas próprias palavras e desejos a uma luz tão diferente, começou falando rapidamente.

— Não me mande embora — disse —, estou completamente só em casa com sonhos terríveis. Não é como se Mark e eu nos vísse­mos muito um ao outro, no melhor dos tempos. Sou tão infeliz. Ele não se importará que eu venha para cá ou não. Apenas se riria disto tudo, se soubesse. É justo que toda a minha vida seja estragada só porque ele se meteu com umas pessoas horríveis quaisquer? Não pensa que uma mulher não é para ter nenhuma vida própria, só porque é casada?

— Sente-se infeliz agora? — disse o diretor. Uma dúzia de afirmativas morreram nos lábios de Jane ao levantar os olhos em resposta a esta pergunta. Então, subitamente, numa espécie de profunda calma, como a imobilidade no centro de um redemoinho, ela viu a verdade e cessou por fim de pensar como as suas palavras podiam fazê-lo pensar a respeito dela, e respondeu:

— Não.

— Mas — acrescentou depois de uma curta pausa —, agora será pior, se me for embora.

— Será?

— Não sei. Não. Suponho que não. — E por pouco tempo, Jane mal teve consciência de outra coisa a não ser paz e bem-estar, o conforto do seu próprio corpo na cadeira onde estava sentada, e uma espécie de límpida beleza nas cores e proporções da sala. Mas em breve começou a pensar consigo mesma: «Este é o fim. Dentro de um momento manda chamar essa mulher, Ironwood, para me levar daqui.» Parecia-lhe que a sua sorte dependia daqui­lo que dissesse no minuto seguinte.

— Mas é realmente necessário? — começou ela. — Não penso que olhe para o casamento exatamente como o senhor o faz. Pare­ce-me extraordinário que tudo deva depender daquilo que Mark disser...

— Minha filha — disse o diretor —, não é uma questão de como você ou eu encaramos o casamento, mas sim de como os meus mestres encaram.

— Alguém disse que eles eram muito à moda antiga; mas...

— Isso foi uma brincadeira. Não são à moda antiga; mas são muito, muito velhos.

— Nunca pensariam em saber primeiro se Mark e eu acredi­tamos nas idéias deles sobre casamento?

— Bem, não — disse o diretor com um sorriso curioso. — Não. Em absoluto e em definitivo, não pensariam em tal fazer.

— E não lhes fazia diferença alguma como era realmente o casamento, se era um êxito? Se a mulher amava o marido?

Jane não tinha tido exatamente a intenção de dizer isto: mui­to menos de o dizer no tom prático, barato, que, parecia-lhe ago­ra, tinha usado. Odiando a si própria, e temendo o silêncio do diretor, acrescentou:

— Mas, suponho que dirá que eu não devia ter-lhe dito isto.

— Minha querida filha — disse o diretor —, tem estado a me dizer isso desde que o seu marido foi mencionado.

— Isso não faz diferença nenhuma?

— Suponho — disse o diretor — que isso dependeria de como ele perdeu o seu amor.

Jane ficou calada. Conquanto não pudesse contar a verdade ao diretor, e na verdade não a soubesse ela própria, contudo, quan­do tentava explorar os seu mal-definido agravo contra Mark, uma nova sensação da sua própria injustiça, e mesmo de piedade pelo marido, surgia no seu espírito. E o coração dela teve um ba­que, pois agora parecia-lhe que aquela conversa, para qual ela tinha vagamente olhado como uma espécie de libertação de todos os problemas, estava, de fato, a envolvê-la em outros, novos.

— Não foi culpa dele — disse ela por fim. — Suponho que o nos­so casamento foi apenas um erro.

O diretor não disse nada.

— O que é que o senhor, o que é que as pessoas de que está falando, diriam sobre um caso como este?

— Eu digo-lhe, se realmente quer saber — disse o diretor.

— Por favor — disse Jane com relutância.

— Diriam — respondeu ele — que não se falha na obediência devido à falta de amor, mas que você perdeu o amor porque nun­ca tentou a obediência.

Algo em Jane, que normalmente teria reagido a uma observa­ção assim com zanga e riso, foi banido para uma distância remo­ta (onde ela podia ainda, mas apenas, ouvir a sua voz) pelo fato de que a palavra obediência, certamente, porém, não obediência a Mark, a envolveu, naquela sala e naquela presença, como um es­tranho perfume oriental, perigoso, sedutor e ambíguo...

— Pare! — disse o diretor, com firmeza.

Jane fitou-o, boquiaberta. Houve alguns momentos de silên­cio, durante os quais a fragrância exótica se dissipou.

— Pensava que o amor significava igualdade — disse ela — e livre camaradagem.

— Ah! Igualdade! — disse o diretor. — Temos de falar disso noutra altura qualquer. Sim, todos nós temos de estar protegidos por direitos iguais contra a ganância uns dos outros, porque caí­mos. Exatamente como precisamos usar roupas pela mesma razão. Mas o corpo nu devia estar lá debaixo, amadurecendo para o dia em que já não precisaremos delas. A igualdade não é a mais profunda das coisas, sabe.

— Sempre pensei que era isso exatamente que ela era. Pen­sei que era na alma que as pessoas eram iguais.

— Estava enganada — disse ele gravemente. — Esse é o últi­mo lugar em que elas são iguais. Igualdade perante a lei, igualda­de de rendimentos, isso está muito bem. A igualdade guarda a vida, não a cria. É um remédio, não o alimento. Era o mesmo do que tentar aquecer-se com um livro.

— Mas, seguramente, no casamento...?

— Cada vez pior — disse o diretor. — O cortejar nada sabe dis­so, nem a fruição. Que tem a livre camaradagem a ver com isso? Aqueles que estão apreciando qualquer coisa, ou sofrendo qual­quer coisa juntos, são companheiros. Aqueles que causam prazer ou sofrimento um ao outro, não são. Sabe como a amizade é tími­da. Amigos, camaradas, não olham uns para os outros. A amiza­de ficaria envergonhada...

— Pensei — disse Jane, e parou.

— Percebo — disse o diretor. — Não é culpa sua. Nunca a pre­veniram. Ninguém lhe disse que a obediência, a humildade, é uma necessidade erótica. Está pondo a igualdade exatamente onde ela não devia estar. Quanto a vir para cá, isso pode admitir algumas dúvidas. De momento, devo mandá-la embora. Pode vir ver-nos. Entretanto fale com o seu marido e eu falarei com as minhas auto­ridades.

— Quando é que as vai ver?

— Elas vêm ter comigo quando lhes agrada. Mas temos esta­do falando todo este tempo a respeito de obediência muito sole­nemente. Gostaria de lhe mostrar algumas das graças delas. Não tem medo dos ratos, pois não?

— Medo de quê? — disse Jane, atônita.

— Ratos — disse o diretor.

— Não — disse Jane em voz intrigada.

O diretor tocou uma pequena campainha ao lado do sofá e foi quase imediatamente respondido pela Sra. Maggs.

— Penso — disse o diretor — que gostaria do meu almoço ago­ra, por favor. Lhe darão o seu almoço lá em baixo, Sra. Stud­dock, algo mais substancial do que o meu. Mas se se sentar aqui comigo, enquanto eu como e bebo, mostro-lhe alguns dos aspec­tos atraentes da nossa casa.

A Sra. Maggs voltou pouco depois com um tabuleiro com um co­po, um pequeno frasco de vinho tinto e um rolo de pão. Pousou-o numa mesa ao lado do diretor e saiu da sala.

— Está vendo — disse o diretor —, vivo como o rei em Curdie. É uma dieta surpreendentemente agradável. — Com estas pala­vras partiu o pão e serviu-se de vinho no copo.

— Nunca li o livro de que está falando — disse Jane. Falaram um pouco do livro enquanto o diretor comia e bebia, mas a certa altura ele agarrou no prato e despejou as migalhas pa­ra o chão.

— Agora, Sra. Studdock — disse —, vai ver uma diversão. Mas tem de ficar perfeitamente quieta.

Com estas palavras tirou do bolso um pequeno apito de prata e soprou nele uma nota. E Jane ficou sentada quieta, até a sala ficar cheia de silêncio como uma coisa sólida e houve primeiro um raspar e depois um sussurrar e então viu três ratos gordos abrin­do caminho através do que para eles era a espessa vegetação ras­teira do carpete, apontando o nariz para um lado e outro de for­ma que, se fosse traçada a rota deles, ter-se-ia assemelhado a um rio serpenteante, até estarem tão perto que ela podia ver o cintilar dos seus olhos, e mesmo o palpitar dos narizes. A despeito do que dissera, realmente não lhe agradavam ratos na vizinhança dos seus pés e foi com esforço que se manteve sentada quieta. Graças a este esforço viu os ratos pela primeira vez como eles são realmente, não como coisas rastejantes mas como quadrúpedes delicados, quase, quando se sentam nos quartos traseiros, como minúsculos cangurus, com as patas dianteiras enluvadas e ore­lhas transparentes. Com movimentos rápidos e inaudíveis deslo­cavam-se para cá e para lá até que nem uma migalha restasse no chão. Então ele soprou uma segunda vez no apito e, com uma súbi­ta abanadela das caudas, os três, todos, estavam a correr para casa e em poucos segundos tinham desaparecido atrás da caixa do carvão. O diretor olhou para ela com riso nos olhos.

«É impossível», pensou Jane, «considerá-lo velho.»

— Aqui temos — disse ele — um ajustamento muito simples. Os humanos querem as migalhas removidas; os ratos estão ansiosos por removê-las. Nunca devia ter sido uma causa de guerra.

Mas vê que a obediência e a direção são mais parecidas com uma dança do que com um exercício, especialmente entre homem e mulher, onde os papéis estão sempre a mudar.

— Como lhes devemos parecer imensos — disse Jane.

Esta observação inconseqüente tinha uma causa muito curio­sa. Grandeza era aquilo em que ela estava pensando e por um ins­tante parecera que ela estava pensando na sua própria grandeza em comparação com os ratos. Mas quase de imediato esta identi­ficação caiu. Na realidade, ela estava pensando simplesmente em grandeza. Ou antes, não estava pensando nela. Estava, de uma forma estranha qualquer, a experimentá-la. Alguma coisa intoleravelmente grande, alguma coisa de Brobdingnag estava fa­zendo pressão sobre ela, aproximava-se, estava quase na sala. Sentia-se ela própria encolher, vazia de todo o poder e virtude. Dardejou um olhar de relance ao diretor que era realmente um grito de auxílio, e esse olhar de relance, de uma forma inexplicá­vel qualquer, revelou-o como sendo, como ela própria, um objeto muito pequeno. A sala inteira era um lugar minúsculo, um buraco de rato, e parecia-lhe estar inclinado em relação à verti­cal, como se a massa insuportável e o esplendor daquela coisa informe e imensa, ao aproximar-se, a tivesse empurrado de lado. Ouviu a voz do diretor.

— Rápido — dizia ele delicadamente —, tem de me deixar agora. Este não é lugar para os pequenos como nós, mas eu estou imunizado. Vá!

 

Quando Jane deixou a aldeia de St. Anne’s no topo da colina e desceu até à estação, verificou que, mesmo ali em baixo, o nevoei­ro tinha começado a levantar. Tinham-se aberto nele grandes janelas, e à medida que o trem a ia levando, passou repetida­mente através de lagoas da luz do sol da tarde.

Durante esta viagem, estava tão dividida dentro de si mesma que se podia dizer que havia três, senão quatro, Janes no compartimento.

A primeira era uma Jane simplesmente receptiva em relação ao diretor, recordando cada palavra e cada olhar, e deliciando-se com eles, uma Jane apanhada com a guarda absolutamente aber­ta, sacudida para fora do pequeno e modesto conjunto de idéias contemporâneas que constituíra até ali a sua parcela de sabedo­ria, e arrastada na corrente de maré de uma experiência que não compreendia e não podia controlar. Pois estava tentando controlá-la; essa era a função da segunda Jane. Esta segunda Jane enca­rava a primeira com aversão, como o tipo de mulher, de fato, que tinha sempre especialmente desprezado. Uma vez, ao sair de um cinema, ouvira uma pequena empregada de loja dizer para a amiga.

— Oh, como ele era adorável! Se tivesse olhado para mim da forma como olhou para ela, tê-lo-ia seguido até ao fim do mundo.

Uma moça pequena, que dava nas vistas, pintada, a chupar hortelã-pimenta. Se a segunda Jane tinha razão ao iden­tificar a primeira Jane com essa moça, pode ser posto em causa, mas ela o fez. E achou-a intolerável. Ter-se rendido sem condi­ções à simples voz e aspecto daquele estranho, ter abandonado (sem o notar) o pequeno e afetado domínio do seu próprio desti­no, essa reserva permanente que entendia essencial à sua situa­ção como pessoa adulta, integrada e inteligente... a coisa era abso­lutamente degradante, comum, não civilizada.

A terceira Jane era uma visitante nova e inesperada. Da pri­meira houvera traços na adolescência, e a segunda era o que Jane tomava como sendo a sua identidade «real» ou normal. Mas a ter­ceira, a tal Jane moral, era uma de cuja existência nunca tinha suspeitado. Saída de alguma região desconhecida de boa vontade ou hereditariedade, pronunciava toda a espécie de observações que Jane ouvira antes muitas vezes mas que nunca tinham pare­cido, até aquele momento, estar relacionadas com a vida real. Se lhe tivesse simplesmente dito que os seus sentimentos sobre o diretor eram errados, não teria ficado surpreendida, e teria dado desconto a isso como sendo a voz da tradição. Mas não o fazia. Vinha a culpá-la por não ter sentimentos semelhantes sobre Mark. Continuava a incutir no seu espírito aqueles novos senti­mentos a respeito de Mark, sentimentos de culpa e de pena, que experimentara pela primeira vez na sala do diretor. Fora Mark quem cometera o erro fatal; ela tinha, tinha, tinha de ser «agra­dável» para com Mark. O diretor insistira obviamente nisso. No preciso momento em que o seu espírito estava principalmente cheio por outro homem, surgia nele, enevoada por uma emoção mal definida, a resolução de dar a Mark muito mais do que jamais lhe dera antes, e a sensação de que ao fazê-lo estaria realmente a dá-lo ao diretor. E isto produzia nela uma tal confusão de sen­timentos que todo aquele debate interno se tornou indistinto e foi desaguar na experiência mais vasta da quarta Jane, que era a pró­pria Jane e dominava todo o resto em todos os momentos sem esforço e até sem o escolher.

Esta quarta e suprema Jane estava simplesmente num esta­do de alegria. As outras três não tinham poder sobre ela, pois ela encontrava-se na esfera de Júpiter, no meio de luz, música e pom­pa festiva, cheia a transbordar de vida e radiante de saúde, jocunda e vestida de roupagem fulgurante. Mal se detinha pensando nas curiosas sensações que tinham imediatamente precedido a sua despedida do diretor e tornara essa despedida quase um alívio. Quando tentava fazê-lo, isso imediatamente levava os seus pen­samentos a voltarem ao próprio diretor. O que quer que fosse em que ela tentasse pensar conduzia-a de novo ao diretor e, nele, à alegria. Pelas janelas do trem via os raios de sol delineados, derramando-se sobre o restolho ou os bosques lustrosos e sentia que eles eram como as notas de uma trombeta. Os olhos dela des­cansavam sobre os coelhos e vacas à medida que eles deslizavam a abraçava-os intimamente com amor alegre, de férias. Delicia­va-se com a fala ocasional da única pessoa, um velho seco, que partilhava com ela o compartimento e via, como nunca antes, a be­leza da sua velha mente, sagaz e brilhante como o sol, doce como uma noz e tão inglesa como o traçado a giz. Refletiu com surpre­sa quanto tempo já lá ia desde que a música desempenhara qual­quer papel na sua vida, e resolveu ouvir muitos corais de Bach no gramofone nessa noite. Ou, então, talvez, fosse ler uma quantida­de de contos de Shakespeare. Deleitava-se também com a fome e sede que sentia e decidiu que faria para o chá torradas com man­teiga. E deleitava-se também com a consciência da sua própria beleza; pois tinha a sensação, podia ser falsa na realidade, mas nada tinha a ver com vaidade, de que ela estava a crescer e a ex­pandir-se como uma flor mágica a cada minuto que passava. Com tal disposição, era apenas natural, depois do velho camponês ter saído em Cure Hardy, pôr-se em pé e ver-se ao espelho que esta­va na frente dela na antepara do compartimento. Certamente que estava com bom aspecto; estava com aspecto invulgarmente bom. E, uma vez mais, pouca vaidade havia naquilo. Pois a beleza foi feita para os outros. A sua beleza pertencia ao diretor. Pertencia-lhe tão completamente que ele podia até decidir não a guardar para si próprio, mas ordenar que ela fosse dada a um outro, por um ato de obediência mais baixa e por conseguinte mais alta, mais incondicional e por conseguinte mais encantadora, do que se ele a tivesse exigido para si próprio.

Quando o trem chegou à estação de Edgestow, Jane esta­va mesmo decidida a não pegar um ônibus. Desfrutaria a caminhada até Sandow, lá em cima. E então, mas que diabo era aquilo tudo? A plataforma, usualmente quase deserta àquela hora, parecia uma plataforma de Londres em dia de feriado bancário.

— Cá estamos, parceiro! — gritou uma voz, quando ela abriu a porta, e meia dúzia de homens apinharam-se no vagão tão brutalmente que por um momento não pôde sair. Teve dificuldade em atravessar a plataforma. As pessoas pareciam seguir em todas as direções ao mesmo tempo, pessoas zangadas, grosseiras e excita­das.

— Entre outra vez no trem, depressa! — berrou alguém.

— Saia da estação, se não estiver viajando — vociferou outra voz.

— Que diabo? — perguntou uma terceira, mesmo ao lado dela, e então uma voz de mulher disse:

— Oh, senhor! Por que é que não param isto!

E de fora, para lá da estação veio um ruído retumbante como o da multidão num jogo de futebol. Parecia haver uma quantida­de de luzes não familiares.

 

Horas mais tarde, magoada, aterrada e cansada de morte, Jane encontrou-se numa rua que nem sequer conhecia, cercada por polícias do NICE e algumas das suas agentes femininas, as Waips. O seu trajeto tinha sido como o de um homem tentando chegar em casa ao longo da praia com a maré a encher. Tinha sido desviada da sua rota natural pela Warwick Street, estavam as­saltando lojas e fazendo fogueiras por lá, e forçada a seguir um círculo muito mais amplo, por cima, pelo asilo, que a teria levado para casa no final. Depois, mesmo esse círculo mais amplo provara ser im­praticável, pela mesma razão. Tinha sido forçada a tentar uma volta ainda mais longa; e de cada vez a maré chegara lá antes dela. Finalmente vira Bone Lane, direita e vazia e calma, e aparente­mente a sua última hipótese de chegar em casa naque­la noite. Um par de políciais do NICE, parecia que se encontravam em toda a parte exceto onde o motim era mais violento, tinha gri­tado: «Não pode descer por aí, menina.» Mas como eles então lhe tinham virado as costas, e estava mal iluminado, e porque ela agora estava desesperada, Jane meteu-se pela rua. Apanharam-na. E foi assim que se achou sendo levada para uma sala ilumi­nada e sendo interrogada por uma mulher uniformizada, de cabe­lo cinzento curto, cara quadrada e com um charuto que não fora aceso. A sala estava em desordem, como se uma casa particular tivesse sido subitamente e sumariamente convertida em esqua­dra de polícia. A mulher com o charuto não tomou nenhum inte­resse particular até Jane ter dado o seu nome. Então Miss Hardcastle olhou-lhe para a cara pela primeira vez. E Jane expe­rimentou uma sensação inteiramente nova. Ela estava já cansada e aterrorizada, mas aquilo era diferente. A cara da outra mu­lher afetava-a como a cara de alguns homens, homens gordos com pequenos olhos ávidos e sorrisos estranhos e inquietantes, a tinham afetado quando tinha menos de 20 anos. Estava aterradoramente sossegada e, todavia, aterradoramente interessada nela. E Jane viu que uma idéia qualquer, inteiramente nova, es­tava a raiar no espírito da mulher enquanto a fitava: uma idéia qualquer que a mulher achava atraente, e depois tentou pôr de lado, e depois voltou a acariciar e finalmente, com um pequeno suspiro de contentamento, aceitou. Miss Hardcastle acendeu o charuto e soprou uma nuvem de fumaça para cima dela. Se Jane sou­besse quão raramente Miss Hardcastle efetivamente fumava teria ficado ainda mais alarmada. Os policiais e as mulheres-po­liciais que a cercavam provavelmente ficaram. Toda a atmosfera da sala tornou-se um pouco diferente.

— Jane Studdock — disse a Fada. — Conheço tudo a seu res­peito, querida. Deve ser a mulher do meu amigo Mark. — En­quanto falava ia escrevendo qualquer coisa num impresso verde.

— Está tudo bem — disse Miss Hardcastle. — Vai já poder ver Hubby outra vez. Vamos levá-la para Belbury esta noite. Agora só uma pergunta, querida. O que é que estava fazendo aqui em bai­xo a esta hora da noite?

— Tinha acabado de sair do trem.

— E onde é que esteve, querida?

Jane não disse nada.

— Não andou fazendo maldades enquanto Hubby estava fora, pois não?

— Por favor, deixe-me ir embora. — disse Jane. — Quero che­gar em casa. Estou muito cansada e é muito tarde.

— Mas não vai para casa — disse Miss Hardcastle. — Vem é para Belbury.

— O meu marido não me disse nada quanto a juntar-me a ele lá.

Miss Hardcastle acenou, afirmativamente.

— Esse foi um dos erros dele. Mas vai vir conosco.

— Que é que quer dizer?

— É uma prisão, querida — disse Miss Hardcastle, estenden­do um pedaço de papel verde no qual estivera escrevendo. Aquilo parecia a Jane o que todos os impressos oficiais parecem sempre: uma massa de compartimentos, uns vazios, outros cheios de letra miúda de imprensa, alguns com assinaturas rabiscadas a lápis, e um tendo o seu nome; tudo sem sentido.

— Oh! — gritou Jane, subitamente, submersa por uma sensa­ção de pesadelo, e tentou uma corrida para a porta. Claro que nun­ca chegou lá. Um momento mais tarde recuperou o senso e encon­trou-se agarrada por duas mulheres policiais.

— Mas que mau feitio! — disse Miss Hardcastle em ar de brin­cadeira. — Mas vamos pôr lá fora os homens sem vergonha, não é? — Disse qualquer coisa e os polícias retiraram-se e fecharam a porta atrás deles. Assim que eles partiram, Jane sentiu que uma proteção lhe tinha sido retirada.

— Bem — disse Miss Hardcastle, dirigindo-se às duas moças uniformizadas. — Vamos ver. Quinze para a uma... e tudo a correr que é uma beleza. Penso, Daisy, que podemos ofere­cer-nos um pequeno descanso. Cuidado, Kitty. Aperta um pouco mais a tua mão que está a segurar debaixo do ombro dela. Assim está bem.

Enquanto falava, Miss Hardcastle, desafivelou o cinto e quan­do tinha acabado, despiu o casaco e atirou-o para cima do sofá, revelando um tronco enorme, sem espartilho (como Bill, o Nevão, se queixara) grosseiro, mal feito e com pouca roupa: coisas do tipo que Rubens, a delirar, teria pintado. Depois tornou a sentar-se, tirou o charuto da boca, soprou outra baforada de fumaça na direção de Jane e dirigiu-lhe a palavra.

— Aonde é que foi nesse trem? — disse.

E Jane nada disse, em parte porque não podia falar, e em par­te porque sabia agora, sem dúvida, que aqueles eram os inimigos da raça humana contra os quais o diretor estava combatendo e não tinha de lhes contar nada. Não se sentia herói­ca ao tomar aquela decisão. Para ela a cena toda estava se tornando irreal; e foi entre dormindo e acordada que ouviu Miss Hard­castle dizer:

— Penso, querida Kitty, que é melhor tu e Daisy trazerem-na até aqui.

E era ainda só metade real quando as duas mulheres a obri­garam a ir de volta até ao outro lado da mesa, e viu Miss Hardcas­tle sentada na cadeira com as pernas muito abertas, uma para cada lado, como se estivesse numa sela; pernas compridas, vesti­das de couro, e que se projetavam vindas debaixo da saia curta. As mulheres forçaram-na a avançar, com um aumento de pres­são, calmo e habilidoso, sempre que ela resistia, até ficar de pé, entre os pés de Miss Hardcastle, altura em que Miss Hardcastle juntou os pés de forma a manter os tornozelos de Jane presos entre os dela. Esta proximidade da aventesma* afetou Jane com tal hor­ror que ficou sem medo daquilo que lhe poderiam vir a fazer. E, pelo que pareceu um tempo infinito, Miss Hardcastle fitou-a, sorrindo um pouco e soprando fumaça na cara dela.

— Sabe — disse Miss Hardcastle por fim —, é uma coisinha bastante engraçada, à sua maneira.

Houve outro silêncio.

— Aonde é que foi naquele trem? — disse Miss Hardcastle. E Jane fitou-a, como se os olhos lhe fossem saltar da cara, e nada disse. Então, subitamente, Miss Hardcastle inclinou-se para a frente e, depois de muito cuidadosamente virar para baixo a or­la do vestido de Jane, enfiou-lhe contra o ombro a ponta acesa do charuto.

Depois disso houve outra pausa e outro silêncio.

— Aonde é que foi naquele trem? — disse Miss Hardcastle.

Quantas vezes isto aconteceu Jane nunca se poderia lembrar. Mas de uma forma ou de outra, houve uma altura em que Miss Hardcastle estava falando não com ela mas com uma das mulhe­res.

— Que estás aí toda excitada, Daisy? — ela estava dizendo.

— Estava só dizendo, minha senhora, que era 1 hora e 5 minutos.

— Como o tempo voa, não é Daisy? Mas que diferença faz que seja? Não estás confortável, Daisy? Não estás cansada, só por agarrar uma coisinha como ela?

— Não minha senhora, obrigada. Mas a senhora disse, que se ia encontrar com o capitão O’Hara à 1 hora em ponto.

— Capitão O’Hara? — disse Miss Hardcastle, com ar sonhador a princípio, e depois mais alto, como quem desperta de um sonho. No momento seguinte tinha-se posto em pé de um salto e estava a enfiar o casaco.

— Abençoada moça! — disse ela. — Que par de cabeças ocas me saíram vocês! Por que é que não me lembraram antes?

— Bem, minha senhora, não me agrada lá muito.

— Agradar! Para que é que julgam que aqui estão?

— Às vezes a senhora não gosta que a gente interrompa, quan­do está a interrogar.

— Não discutas! — bradou Miss Hardcastle, rodando sobre si própria e atingindo-a na face com uma sonora pancada com a pal­ma da mão.

— Vamos andando rápido. Metam a presa no carro. Não espe­rem para lhe abotoarem o vestido, idiotas. Vou já atrás de vocês assim que passar a cara por água fria.

Alguns segundos mais tarde, entalada entre Daisy e Kitty, mas ainda perto de Miss Hardcastle (parecia haver espaço para cinco na parte traseira do carro), Jane encontrou-se a deslizar através da escuridão.

— É melhor irmos o menos possível, através da cidade, Joe — disse a voz de Miss Hardcastle. — Há de estar bem animada, por esta altura. Vão até ao asilo e metam-se por aquelas pequenas ruas na parte de trás da cerca.

Parecia haver toda a espécie de ruídos estranhos e de luzes por ali. Nalguns lugares, parecia haver também uma grande quantidade de gente. Então chegou uma ocasião em que Jane ve­rificou que o carro tinha estacado.

— Para que diabo você parou? — disse Miss Hardcastle.

Por um segundo ou dois não houve resposta alguma do condu­tor exceto grunhidos e o ruído das tentativas mal sucedidas para pôr o motor em marcha.

— Que é que se passa? — repetiu Miss Hardcastle rispidamente.

— Não sei, minha senhora — disse o condutor, ainda fazendo tentativas.

— Meu Deus! — disse Miss Hardcastle —, não é sequer capaz de tratar de um carro? Alguns de vocês estão precisando de um pequeno tratamento correcional humano, para uso próprio.

A rua onde se encontravam estava vazia mas, a julgar pelo barulho, estava perto de outra rua qualquer que estava muito cheia e com muita zanga. O homem saiu do carro, praguejando em voz baixa, e abriu o capô.

— Olhem lá — disse Miss Hardcastle. — Vocês dois saltem. Procurem outro carro, em qualquer parte a cinco minutos a pé, e requisitem-no. Se não encontrarem nenhum, estejam de volta aqui em dez minutos, haja o que houver. Rápido. — Os outros dois polícias apearam-se e desapareceram, em acelerado. Miss Hard­castle continuou a desejar injúrias sobre o condutor e o condutor continuou trabalhando no motor. O barulho tornou-se mais forte. Subitamente, o condutor endireitou-se e voltou a cara (Jane viu o suor a brilhar nela, à luz da lâmpada) na direção de Miss Hard­castle.

— Olhe aqui, menina — disse ele —, acho que já chega, está vendo? Ou tem uma língua decente ou então vem arrumar o estupor do carro você mesma, já que é assim tão esperta.

— Não tentes seguir essa tática comigo, Joe — disse Miss Hardcastle —, ou então ainda vais dar comigo dizendo uma pala­vrinha a teu respeito à polícia oficial.

— Muito bem, suponhamos que o faça? — disse Joe. — Estou começando a pensar que tanto me faz estar na choça como na sua revolução maluca. É verdade. Já estive na polícia militar e já esti­ve nos Black and Tans e já estive no BUP, mas todos eram simples piqueniques comparados com esta gente. Um homem lá era tra­tado de uma forma decente. E tinha homens acima dele, e não um raio de um monte de mulheres velhas.

— Sim, Joe — disse Miss Hardcastle —, mas para ti não seria a choça desta vez, se eu passasse palavra aos chuis oficiais.

— Ah, não seria, pois não? Eu sou capaz de ter uma história ou duas para contar, a seu respeito, se as coisas chegarem a isso.

— Por amor de Deus, fale com ele com bons modos, minha se­nhora, choramingou Kitty. Vêm aí. Vamos apanhar a valer.

E, de fato, homens a correr, aos dois e três, tinham começado a desembocar na rua.

— A pé, moças — disse Miss Hardcastle. — Rápido é a pala­vra de ordem. Por aqui.

Jane viu-se tirada do carro e arrastada entre Daisy e Kitty, Miss Hardcastle seguia à frente. O pequeno grupo atravessou a rua correndo e subiu por uma travessa, do outro lado.

— Alguma de vocês conhece o caminho por aqui? — perguntou Miss Hardcastle depois de andarem alguns passos.

— Tenho a certeza de que não sei, minha senhora — disse Daisy.

— Sou estrangeira por aqui, minha senhora — disse Kitty.

— Que belo e útil grupo que eu arranjei! — disse Hardcastle.

— Há alguma coisa que vocês saibam?

— Parece que não vai mais adiante, minha senhora — disse Kitty.

A travessa tinha-se revelado realmente ser um beco. Miss Hardcastle ficou imóvel por um momento. Ao contrário das suas subordinadas, não parecia estar assustada, mas somente agradavelmente excitada, e um tanto divertida com as caras brancas e as vozes trêmulas das moças.

— Bem — disse ela —, isto é aquilo a que eu chamo passar uma noite fora. Estás vendo a vida, Daisy, não estás? Pergunto a mim mesma se algumas destas casas estão vazias? Tudo fechado à cha­ve. Talvez o melhor seja ficarmos onde estamos.

A gritaria na rua que tinham abandonado tinha-se tornado mais forte e podiam ver uma massa confusa de gente, surgindo va­gamente numa direção para oeste. Subitamente tornou-se ain­da mais forte e furiosa.

— Apanharam Joe — disse Miss Hardcastle. — Se conseguir fazer-se ouvir vai mandá-los aqui para cima. Raios! Isto signifi­ca ficarmos sem a presa. Deixa-te de choramingar, Daisy, minha tola. Rápido. Rápido. Temos de descer e meter-nos na multidão, separadamente. Temos uma probabilidade muito boa de passar. Mantenham a calma. Façam o que fizerem não façam fogo. Pro­curem chegar a Billingham, no cruzamento. Vamos, Babs! Quan­to mais quieta ficares, menos provável é nos encontrarmos outra vez.

Miss Hardcastle pôs-se a andar, imediatamente. Jane viu-a de pé por alguns segundos na beira da multidão e depois desaparecer den­tro dela. As duas moças hesitaram e depois seguiram. Jane sentou-se no degrau de uma escada. As queimaduras eram dolo­rosas onde o vestido tinha roçado nelas, mas o que mais a pertur­bava era a sua extrema fadiga. Estava também morta de frio e um pouco agoniada. Mas acima de tudo, cansada; tão cansada que po­dia cair a dormir quase...

Sacudiu-se. Em volta dela havia silêncio total; tinha mais frio do que jamais tivera e doíam-lhe os membros.

«Acho que estive dormindo», pensou. Pôs-se de pé, esticou-se toda e caminhou pela desolada travessa abaixo, à luz das lâmpa­das, até a rua mais larga. Estava absolutamente vazia, exceto por um homem com uniforme da ferrovia que disse: «Bom dia, menina», quando passou por ela, aprumado. Ficou de pé por um momento, indecisa, e depois começou a caminhar devagar para o lado direito. Enfiou a mão no bolso do casaco em que Daisy e Kitty a tinham enrolado, antes de deixarem o apartamento, e en­controu três quartos de uma grande barra de chocolate. Estava esfomeada e começou a mastigá-la. Quando acabou, foi ultrapassada por um carro que parou pouco depois de ter passa­do por ela.

— Está bem? — disse um homem, pondo a cabeça de fora.

— Foi ferida nos distúrbios? — disse uma voz de mulher do lado de dentro.

— Não... não muito... não sei — disse Jane estupidamente.

O homem olhou para ela com atenção e depois saiu do carro.

— Acho — disse ele — que não parece lá muito bem. Tem cer­teza de que está mesmo bem? — Depois virou-se e falou com a mu­lher no interior. Parecia a Jane ter sido há tanto tempo que tinha ouvido vozes amáveis ou simplesmente semanas, que se sentiu com vontade de chorar. O par desconhecido a fez sentar no carro e deu-lhe brandy e depois disso sanduíches. Por fim pergun­taram-lhe se lhe podiam dar carona até em casa. Mas onde era a sua casa? E Jane, para sua surpresa, ouviu a própria voz, muito ensonada, a responder:

— O solar, em St Anne’s.

— Magnífico — disse o homem. — Vamos para Birmingham e temos de passar por lá.

Então Jane adormeceu de imediato, outra vez, e acordou apenas ao encontrar-se entrando numa porta iluminada e a ser re­cebida por uma mulher de pijama e com um sobretudo, que vinha a ser a Sra. Maggs. Mas estava muito cansada para se lem­brar de como e onde fora para a cama.

 

LUAR EM BELBURY

— Sou a última pessoa, Miss Hardcastle — disse o diretor-ad­junto —, a desejar interferir com os seus, err, prazeres privados. Mas realmente!...

Faltavam algumas horas para o horário do café da manhã e o velho cavalheiro estava completamente vestido e por barbear. Mas se ele tinha estado de pé a noite toda, era esquisito que tives­se deixado apagar o fogo. Ele e a Fada encontravam-se de pé jun­to a uma grelha fria e enegrecida no seu gabinete.

— Ela não pode estar muito longe — disse a Fada Hardcastle. — Vamos apanhá-la em qualquer outra ocasião. Valeu a pena tentar. Se eu lhe tivesse arrancado onde é que ela tinha es­tado, e tê-lo-ia feito se tivesse tido mais uns minutos, pois quê, até podia verificar-se que era o quartel-general do inimigo. Podía­mos ter apanhado o bando inteiro.

— Dificilmente seria a ocasião conveniente... — começou Wi­ther, mas ela interrompeu-o.

— Não temos assim tanto tempo a perder, sabe. Diz-me que Frost está já se queixando de que a mente da mulher está menos acessível. E de acordo com a sua própria metapsicologia, ou o que quer que lhe chame no seu maldito calão, isso significa que ela es­tá caindo debaixo da influência do outro lado. Você próprio me dis­se isso! Onde é que vamos parar se perdermos o contato com a mente dela antes de eu conseguir fechar o corpo aqui dentro?

— Eu estou sempre, é claro — disse Wither —, muito pronto e, err, interessado em ouvir expressões das suas próprias opiniões, e não negaria por um momento que elas são (em certos aspectos, é claro, senão em todos) de um valor muito real. Por outro lado, há matérias sobre as quais a sua, ahn, experiência, necessaria­mente especializada, não lhe dá inteira qualificação... Nessa altu­ra, não estava contemplada uma prisão. O chefe será de opinião, de que excedeu a sua autoridade. Ultrapassou a sua própria esfe­ra, Miss Hardcastle. Eu não digo que concorde necessariamente. Mas todos temos de concordar que ação não autorizada...

— Oh, deixe disso, Wither! — disse a Fada, sentando-se na beirada da mesa. — Experimente esse jogo nos Steeles e nos Stones. Sei demais a respeito dele. Não serve de nada tentar essa da elas­ticidade comigo. Foi uma oportunidade de ouro, termos achado a moça. Se a não tivesse aproveitado, teria falado de falta de iniciativa; como aproveitei, fala de ter excedido a minha autorida­de. Não é capaz de me assustar. Sei muito bem que estamos todos enlatados se o NICE falhar; e, entretanto, gostaria de o ver desem­baraçar-se sem mim. Temos de apanhar a moça, não temos?

— Mas não por uma prisão. Temos sempre desaprovado qual­quer coisa que pareça violência. Se uma simples prisão pudesse ter garantido a, err, boa vontade e colaboração da Sra. Studdock, dificilmente nos teríamos embaraçado com a presença do marido dela. E mesmo supondo (meramente, é claro, em termos de discus­são) que a sua ação ao prendê-la pudesse justificar-se, receio que a sua conduta da questão depois disso dê lugar a sérias críticas.

— Eu não podia contar com que o mal concebido do carro fos­se avariar-se, ou podia?

— Não penso — disse Wither — que o chefe possa ser conven­cido a encarar esse como sendo o único erro. Da parte dessa mu­lher apenas se manifestou uma resistência muito ligeira; não era, na minha opinião, razoável esperar sucesso com o método que em­pregou. Como está ciente, deploro sempre qualquer coisa que não seja perfeitamente humana; mas isso é perfeitamente coerente com a posição de que, se expedientes mais drásticos tiverem de ser utilizados, então tem de o ser completamente. Dor moderada, que um grau ordinário de resistência permite suportar, é sempre um erro. Não é benevolência nenhuma para com o preso. Os meios de interrogatório coercivo mais científicos, e acrescentaria mesmo, mais civilizados, que pusemos à sua disposição aqui, podiam ter sido bem sucedidos. Não estou falando oficialmente, Miss Hardcas­tle, e não tentaria de qualquer maneira antecipar as reações do nosso chefe. Mas não estaria cumprindo o meu dever se deixasse de lhe lembrar que já têm sido felizes (embora, é claro, não por es­crito) referentes a esse setor e à sua tendência em permitir que uma certa, err, excitação emocional com a parte disciplinar ou corretiva do seu trabalho a distraia das exigências da nossa políti­ca geral.

— Não vai encontrar ninguém que possa desempenhar uma tarefa como a minha, a não ser que daí tire algum gozo — disse a Fada, de mau humor.

O diretor-adjunto olhou para o relógio.

— De qualquer forma — disse a Fada —, para que é que o chefe me quer ver agora ? Estive em pé o raio da noite toda. Bem podia ser autorizada a tomar um banho e café da manhã.

— O caminho do dever, Miss Hardcastle — disse Wither —, nunca pode ser um caminho fácil. Não se vá esquecer de que a pontualidade é um dos aspectos sobre os quais se tem insistido bastante.

Miss Hardcastle levantou-se e esfregou a cara com as mãos. — Bem, tenho de beber qualquer coisa antes de entrar — dis­se ela. Wither estendeu as mãos desaprovadoramente.

— Vá lá, Wither. Tenho mesmo — disse Miss Hardcastle.

— Não pensa que ele perceba pelo cheiro? — disse Wither.

— De qualquer maneira não vou sem isso — disse ela.

O velho abriu o guarda-louça e deu-lhe o seu whisky. Depois os dois deixaram o escritório e percorreram uma longa distância, até o outro lado da casa, onde ela se ligava aos próprios serviços de transfusão de sangue. Estava tudo escuro, àquela hora da manhã e foram à luz da lanterna de Miss Hardcastle, através de corredores alcatifados e com quadros, depois por corredores vazios e de pavimento plastificado e paredes pintadas a têmpera e depois passaram uma porta, cujo fecho tiveram de abrir, e ain­da uma outra. Durante todo o caminho os pés calçados com botas de Miss Hardcastle faziam barulho mas os pés com chinelos do diretor-adjunto não faziam barulho nenhum. Por fim chegaram a um local onde as luzes estavam acesas e havia uma mistura de cheiros de animais e de produtos químicos, e depois a uma porta que lhes foi aberta, depois de terem parlamentado através de um tubo de comunicação. Filostrato, vestindo um casaco branco, esperava-os à porta.

— Entrem — disse Filostrato. — Ele estava à vossa espera há já algum tempo.

— Está mal disposto? — disse Miss Hardcastle.

— Sim — disse Wither. — E em qualquer caso, minha queri­da senhora, não penso que seja exatamente a maneira como se deve falar do nosso chefe. Os seus sofrimentos, na sua condição peculiar, sabe...

— Devem entrar de imediato — disse Filostrato —, assim que se tenham aprontado.

— Pare. Só um instante — disse subitamente Miss Hard­castle.

— Que é que há? Seja rápida, por favor — disse Filostrato.

— Vou vomitar.

— Não pode vomitar aqui. Volte para trás. Vou-lhe dar ime­diatamente um pouco de X54.

— Já está tudo bem — disse Miss Hardcastle. — Foi só mo­mentâneo. Era preciso mais do que isto para me transtornar.

— Silêncio, por favor — disse o italiano. — Não tentem abrir a segunda porta até o meu assistente ter fechado a primeira atrás de vocês. Não falem mais do que for impossível evitar. Não digam sequer sim quando lhes for dada uma ordem. O chefe assumirá a vossa obediência. Não façam movimentos súbitos, não se aproxi­mem demais, não berrem e acima de tudo não discutam. Agora.

 

Muito depois do nascer do sol, entrou na mente adormecida de Jane uma sensação que, se a tivesse posto em palavras, teria can­tado: «Alegra-te tu que dormes e afastas as tuas penas. Eu sou o porão para toda a bom-ventura.» E depois de ter acordado e dado por si estendida, num agradável langor, com a luz do sol de ma­nhã de Inverno tombando sobre a cama, a disposição continuava.

«Agora ele tem de me deixar ficar aqui», pensou ela. Algum tempo depois disto, a Sra. Maggs entrou, acendeu o fogo e trou­xe o café da manhã. Jane estremeceu de dor quando se sentou na cama, pois algumas das queimaduras tinham-se pegado ao estra­nho vestuário de cama (um tanto grande demais para ela) com o qual se encontrou vestida. Havia no comportamento da Sra. Maggs uma diferença indefinível?

— É sempre tão agradável estarmos ambas aqui, não é, Sra. Studdock? — disse ela, e de algum modo o tom parecia implicar uma relação mais estreita entre ambas do que Jane tinha imagi­nado. Mas estava com preguiça demasiada para se interrogar muito sobre isso. Pouco depois do café da manhã veio Miss Ironwood. Examinou e pensou as queimaduras, que não eram sé­rias.

— Pode levantar-se logo à tarde se quiser, Sra. Studdock — disse ela. — Eu faria um dia calmo até então. Que é que gostaria de ler? Há uma biblioteca, bastante grande.

— Gostaria dos livros Curdie, por favor — disse Jane —, e Mansfield Park e os Sonetos, de Shakespeare.

— Tendo assim sido abastecida com material para ler durante diversas horas, muito confortavelmente se pôs outra vez a dor­mir.

Quando a Sra. Maggs espreitou cerca das 4 horas para ver se Jane estava acordada, Jane disse que gostaria de se levantar.

— Muito bem, Sra. Studdock — disse a Sra. Maggs —, como quiser. Vou trazer-lhe uma bela xícara de chá dentro de um minuto e depois apronto-lhe o banho. Há um banheiro à saída da porta, só tenho é que tirar esse Sr. Bultitude de lá. Ele é assim preguiçoso e vai meter-se lá, e fica sentado todo o dia, quando o tempo está frio.

Logo que a Sra. Maggs se foi, contudo, Jane resolveu levantar-se. Achou que as suas habilidades sociais eram perfei­tamente suficientes para lidar com o excêntrico Sr. Bultitude e não queria perder mais tempo nenhum na cama. Tinha a idéia de que assim que estivesse «a pé e a se mexer» toda a espécie de coisas agradáveis e interessantes podiam acontecer. Consequentemen­te, enfiou o casaco, pegou na toalha e seguiu a exploração; e foi por isso que a Sra. Maggs, ao vir para cima com o chá um momento mais tarde, ouviu um grito contido e viu Jane emergir do banheiro com a cara branca e bater a porta atrás dela.

— Oh, querida! — disse a Sra. Maggs, desatando a rir. — Devia ter-lhe dito. Não se importe. Eu já o tiro de lá para fora.

Pousou o tabuleiro no chão do corredor e virou para a sala de banho.

— É seguro? — perguntou Jane.

— Oh, sim, é seguro realmente — disse a Sra. Maggs. — Mas ele não é assim fácil de deslocar. Nem para si nem para mim, Sra. Studdock. Claro que se fosse Miss Ironwood ou o diretor seria ou­tra questão. — Com isso abriu a porta do banheiro. Lá dentro, sentado no traseiro, ao lado da banheira, e ocupando a maior par­te do compartimento estava um grande urso pardo, fumegando, soprando, de olhos pequenos, pele frouxa e barriga redonda, que, depois de imensas imprecações, apelos, exortações, empurrões e pancadas da Sra. Maggs, alçou o seu enorme volume e saiu muito lentamente para o corredor.

— Por que é que não vai lá para fora fazer exercício nesta tar­de magnífica, meu grande preguiçoso? — disse a Sra. Maggs. — Devia ter vergonha de si, aí sentado no caminho de toda a gen­te. Não se assuste, Sra. Studdock. É manso como os que o são. Ele deixa-a fazer-lhe uma festa. Vá lá, Sr. Bultitude. Vá lá dizer «como passou» à senhora.

Jane estendeu uma mão hesitante e pouco convincente para tocar nas costas do animal, mas o Sr. Bultitude estava mal-humo­rado e, sem um relancear de olhos a Jane, continuou o seu cami­nhar vagaroso pelo corredor afora até um ponto dez jardas mais adiante onde, absolutamente de repente, se sentou. As coisas do chá chocalharam aos pés de Jane, e todo mundo no andar de baixo deve ter ficado sabendo que o Sr. Bultitude se sentara no chão.

— É realmente seguro ter uma criatura como esta à solta aí pela casa? — disse Jane.

— Sra. Studdock — disse Ivy Maggs com certa solenida­de —, se o diretor quisesse ter um tigre aí pela casa, seria segu­ro. É assim a maneira que ele tem de lidar com os animais. Não há uma criatura neste local que se atire a outra ou a qualquer de nós, uma vez que ele tenha tido a sua pequena conversa com ela. Exatamente o mesmo como ele faz conosco. Vai ver...

— Se pusesse o chá no meu quarto... — disse Jane um tanto friamente, e entrou no banheiro.

— Sim — disse a Sra. Maggs, de pé à entrada da porta aberta —, podia ter tomado o seu banho com o Sr. Bultitude sentado ao seu lado, embora ele seja tão grande e tão humano que eu própria de algum modo não penso que isso fosse agradável.

Jane fez menção de fechar a porta.

— Bem, vou então deixá-la para o efeito — disse a Sra. Maggs sem se mexer.

— Muito obrigado — disse Jane.

— Tem certeza de que tem tudo o que quer? — disse a Sra. Maggs.

— Certeza absoluta — disse Jane.

— Bem, então vou andando — disse a Sra. Maggs, virando-se como para ir embora, mas voltando outra vez para trás quase instantaneamente, para dizer: — Vai encontrar-nos na cozinha, espero, a Mãe Dimble, eu e o resto.

— A Sra. Dimble tem estado aqui em casa? — perguntou Jane, com uma ligeira ênfase no Sra.

— Mãe Dimble, é como todos a chamamos aqui — disse a Sra. Maggs. — E tenho a certeza de que ela se não importará se fizer o mesmo. Há de habituar-se aos nossos usos num dia ou dois, tenho a certeza. É uma casa engraçada realmente, quando se começa a pensar nisso. Bem. Então vou andando. Não demore muito ou o seu chá já não estará em estado de se beber. Mas atre­vo-me a dizer que é melhor não tomar um banho, com essas coi­sas feias no seu peito, não. Tem tudo o que quer?

Quando Jane já se tinha lavado e tomado o chá e se arrumado com tanto cuidado quanto era possível com uma escova de cabelo e um espelho que não eram os de costume, pôs-se à procura das salas habitadas. Percorreu um corredor comprido, no meio do silêncio que não é inteiramente semelhante a qualquer outro no mundo, o silêncio do andar de cima, numa casa grande, numa tarde de In­verno. Por fim, chegou a um ponto em que se encontravam dois corredores, e aí o silêncio era cortado por um ruído fraco e regu­lar: pob, pob, pob, pob. Olhando para a direita viu a explicação, pois onde o corredor acabava numa janela de sacada estava o Sr. Bultitude, desta vez de pé nas patas traseiras, socando com ar meditabundo uma bola de treino. Jane escolheu o caminho à sua es­querda e chegou a uma galeria de onde via a escadaria pela qual se descia para um amplo átrio onde a luz do dia se misturava com a luz do fogo. Ao mesmo nível em que ela, estava, porém, apenas acessível descendo a um patamar e subindo outra vez, havia regiões sombrias que reconheceu como levando à sala do diretor.

Pareceu-lhe que uma espécie de solenidade emanava delas e des­ceu para o átrio quase na ponta dos pés, e então, pela primeira vez, a recordação daquela última e curiosa experiência na Sala Azul voltou-lhe com um peso, que mesmo a idéia do próprio diretor não conseguia contrariar. Quando chegou ao átrio viu de imedia­to onde é que deviam ficar os compartimentos dos fundos da ca­sa, descendo dois degraus e seguindo um corredor de mosaicos, passando um lúcio empalhado num armário de vidro e depois um relógio de sala, e então, guiada pelas vozes e outros sons, até à pró­pria cozinha.

Uma ampla lareira aberta, reluzindo com a lenha a arder, ilu­minava as confortáveis formas da Sra. Dimble que estava senta­da num banco de cozinha num dos lados dela ocupada aparente­mente, pelo alguidar no colo e outras indicações numa mesa a seu lado, a preparar vegetais. A Sra. Maggs e Camilla estavam fazendo qualquer coisa num fogão, a lareira não era aparentemente usada para cozinhar, e à entrada de uma porta que indubitavelmente dava para os lava-louças, um homem alto de cabeça grisalha, que usava botas de borracha e parecia ter acabado de chegar do jar­dim, estava limpando as mãos.

— Entre, Jane — disse a Mãe Dimble, cordialmente. — Não estamos à espera de que faça algum trabalho hoje. Venha sentar-se no outro lado do lume conversando comigo. Este é o Sr. MacPhee, que não tem nada que estar aqui, mas é melhor apresentá-lo.

O Sr. MacPhee, tendo acabado o processo de secagem das mãos e cuidadosamente pendurado a toalha atrás da porta, avançou cerimoniosamente e apertou a mão de Jane. A mão dele era muito grande e áspera e ele tinha uma cara perspicaz, de feições duras.

— Estou muito contente em vê-la, Sra. Studdock — disse, na­quilo que Jane tomou por ser um sotaque escocês, embora fosse realmente o de um homem do Ulster.

— Não acredite uma palavra do que ele diga, Jane — disse a Mãe Dimble. — Ele é o seu primeiro inimigo nesta casa. Não acre­dita nos seus sonhos.

— Sra. Dimble! — disse MacPhee —, tenho repetidamen­te explicado a distinção entre um sentimento pessoal de confiança e a satisfação lógica das exigências da evidência. Uma é um fato psicológico...

— E a outra uma perpétua maçada — disse a Sra. Dimble.

— Não ligue para ela, Sra. Studdock — disse MacPhee. — Estou, como estava dizendo, muito satisfeito de a acolher entre nós. O fato de ter achado ser meu dever, em diversas ocasiões, salientar que nenhuma prova experimental tivesse ainda confirmado a hipótese de os seus sonhos serem verídicos, não tem qualquer relação no mundo com a minha atitude pessoal.

— É claro — disse Jane vagamente, e um pouco confusa. — Tenho a certeza de que tem o direito de ter as suas próprias opi­niões.

Todas as mulheres riram, enquanto MacPhee, num tom um tanto mais alto, replicava:

— Sra. Studdock, eu não tenho opiniões nenhumas sobre nenhum assunto neste mundo. Eu apresento os fatos e mostro as implicações. Se toda gente se entregasse menos a ter opiniões— (pronunciou a palavra com enfática repugnância) — haveria me­nos palavreado tolo e menos tolices impressas no mundo.

— Eu sei quem fala mais nesta casa — disse a Sra. Maggs, um tanto para surpresa de Jane. O homem do Ulster olhou para a últi­ma pessoa que falara, com o rosto sem qualquer alteração en­quanto extraía uma pequena caixa de estanho da algibeira e se servia de uma pitada de rapé.

— De que é que está à espera, afinal? — disse a Sra. Maggs. — Hoje na cozinha é dia das mulheres.

— Estava pensando — disse MacPhee —, se tem uma xícara de chá guardada para mim.

— Então por que é que não veio à hora certa? — disse a Sra. Maggs.

Jane notou que ela falava com ele da mesma maneira como falara com o urso.

— Estava ocupado — disse o outro, sentando-se na ponta oposta da mesa; e acrescentou depois de uma pausa — a cortar aipo. A mulherzinha faz o melhor que pode mas tem uma fraca noção daquilo que é preciso fazer num jardim.

— O que é «dia das mulheres» na cozinha? — perguntou Jane à Mãe Dimble.

— Não há crianças aqui — disse a Mãe Dimble — e o trabalho é feito por todos nós. Um dia são as mulheres fazendo e no dia seguinte os homens. Quê? Não, é um arranjo muito sensato. A idéia do diretor é que homens e mulheres não conseguem fazer os trabalhos da casa sem questionarem. E há qualquer coisa nis­so. É melhor, é claro, não olhar muito de perto para as xícaras no dia dos homens, mas no conjunto nos damos bastante bem.

— Mas por que é que haviam de questionar? — perguntou Jane.

— Métodos diferentes, minha querida. Os homens não podem ajudar num serviço, sabe. Podem ser levados a fazê-lo, não a aju­dar enquanto nós o estamos fazendo. No mínimo ficam mal-humorados.

— A dificuldade cardial — disse MacPhee — na colaboração entre os sexos é que as mulheres falam uma língua sem substan­tivos. Se dois homens estiverem fazendo um certo trabalho, um dirá para o outro: «Põe esta tigela dentro da tigela maior que en­contras na prateleira de cima do guarda-louça verde.» A expres­são feminina para isto é: «Põe essa na outra ali.» E então se lhes perguntarem: «Onde?» dizem: «Ali, claro.» Há por conse­qüência uma lacuna de locução.

Pronunciou estas palavras de forma cadenciada.

— Aqui está o seu chá — disse Ivy Maggs —, e vou lhe bus­car uma fatia de bolo, o que é mais do que merece. E quando terminar de comer pode ir lá para cima e falar de substantivos o resto da tarde.

— De substantivos, não; por meio de substantivos — disse MacPhee, mas a Sra. Maggs já tinha saído do compartimento. Jane aproveitou esta oportunidade para dizer à Mãe Dimble em voz mais baixa:

— A Sra. Maggs parece estar aqui como em sua casa.

— Minha querida, ela aqui está em casa.

— Como criada, quer dizer?

— Bem, não mais do que qualquer outro. Ela está aqui prin­cipalmente porque lhe tiraram a casa. Não tinha mais lado ne­nhum para ir.

— Quer dizer que ela é uma das obras de caridade do diretor.

— Certamente que é isso. Por que é que pergunta?

— Bem, não sei. Pareceu-me um pouco esquisito que ela lhe chamasse Mãe Dimble. Espero não estar a ser presunçosa...

— Está se esquecendo que Cecil e eu somos outra das obras de caridade do diretor.

— Isso não é um pouco jogar com as palavras?

— Nem um pouco. Ivy, Cecil e eu estamos todos aqui porque fomos expulsos dos nossos lares. Pelo menos Ivy e eu estamos. Pode ser um tanto diferente com Cecil.

— E o diretor sabe que a Sra. Maggs fala assim com toda gente?

— Minha querida filha, não me pergunte o que é que o diretor sabe.

— Penso que o está me intrigando é que, quando falei com ele, ele disse qualquer coisa a respeito da igualdade não ser o impor­tante. Mas a sua própria casa parece ser gerida em, bem, linhas muito democráticas, realmente.

— Nunca tento perceber o que ele diz sobre esse assunto — dis­se a Mãe Dimble. — Habitualmente está falando de categorias espirituais, e você nunca foi tão tola que pensasse ser espiritual­mente superior a Ivy, ou então está falando do casamento.

— Compreendeu as opiniões dele sobre o casamento?

— Minha querida, o diretor é um homem sábio. Mas é um homem, afinal, e um homem solteiro. Alguma coisa do que ele diz, ou do que os mestres dizem, a respeito do casamento parece-me ser uma quantidade de barulho sobre uma coisa tão simples e natural que não devia precisar se dizer nada. Mas supo­nho que há moças hoje em dia que precisam que se lhes diga.

— Não vê grande utilidade nas moças assim, estou vendo. — Bem, talvez eu seja injusta. As coisas eram mais fáceis para nós. Fomos criados com histórias com finais felizes e com o Livro de Orações. Sempre tencionamos amar, honrar e obedecer, tínha­mos formas e usávamos saias e gostávamos de valsas...

— As valsas são sempre tão agradáveis — disse a Sra. Maggs que tinha acabado de voltar e dado a MacPhee a sua fatia de bolo —, tão à moda antiga.

Nesse momento abriu-se uma porta e uma voz do outro lado disse:

— Bem, entra lá, se vais mesmo entrar.

Assim exortada, uma bela gralha saltou para dentro da cozi­nha, seguida primeiro pelo Sr. Bultitude e a seguir por Arthur Denniston.

— Já lhe disse, Arthur — disse Ivy Maggs —, para não trazer esse urso para aqui quando estamos fazendo o jantar. — Enquanto ela estava falando, o Sr. Bultitude, que estava, ele próprio, aparen­temente incerto quanto ao acolhimento, atravessou a cozinha no que ele cria ser (erroneamente) um modo nada intrometido e sen­tou-se atrás da cadeira da Sra. Dimble.

— O Dr. Dimble chegou agora mesmo, Mãe Dimble — disse Denniston. — Mas teve que ir direito à Sala Azul. E o diretor que­ria que também fosse lá, MacPhee.

 

Nesse dia Mark sentou-se para almoçar, bem disposto. Toda gente dizia que o motim tinha corrido o mais satisfatoriamente possível e tinha-se deleitado lendo os seus próprios relatos nos jor­nais da manhã. Apreciou ainda mais quando ouviu Steele e Cos­ser falando a respeito do que houvera de uma forma que mostra­va que nem sequer sabiam como aquilo fora engendrado, e muito menos quem o descrevera nos jornais. E tinha apreciado também a sua manhã. Tinha envolvido uma conversa com Frost, a Fada e o próprio Wither, sobre o futuro de Edgestow. Todos concorda­ram que o governo ia seguir a opinião quase unânime da nação (como vinha expressa nos jornais) e pôr a cidade temporariamen­te sob o controle da Polícia Institucional. Tinha de ser nomeado um governador de emergência para Edgestow. Feverstone era o homem indicado. Como membro do Parlamento representava a nação, como professor de Bracton representava a Universidade, como membro do Instituto representava este. Todas as exigências rivais que de outra forma podiam entrar em colisão reconcilia­vam-se na pessoa de Lord Feverstone; os artigos que Mark tinha de escrever sobre este assunto naquela tarde escreviam-se quase por eles próprios! Mas isso não fora tudo. À medida que a conver­sa prosseguia ficara claro que existia realmente um duplo objetivo ao obter aquele invejável cargo para Feverstone. Quando che­gasse o momento, e a impopularidade local do NICE atingisse o auge, ele podia ser sacrificado. Isto, é evidente, não foi posto por estas palavras, mas Mark compreendeu de forma perfeitamente clara que mesmo Feverstone já não estava inteiramente no Núcleo Interior. A Fada disse que o velho Dick, no fundo do coração, era um simples político e sempre havia de ser. Wither, suspirando profundamente, confessou que os seus talentos tinham talvez sido mais úteis numa fase mais inicial do movimento, do que era pro­vável que fossem no período em que estavam a entrar agora. Não havia na mente de Mark plano algum para cavar por baixo de Feverstone nem mesmo um desejo completamente formado de que isso devesse ser feito; mas a atmosfera toda da discussão tor­nou-se de algum modo mais agradável para ele à medida que começou a perceber a situação real. Estava também satisfeito por ter (como teria dito) «vindo a conhecer» Frost. Sabia por experiên­cia própria que em quase todas as organizações existe alguma pessoa, sos­segada e que não se destaca, e que o pessoal menor supõe não ter im­portância nenhuma, mas que é realmente uma das molas mestras de todo o maquinismo. Só o reconhecer tais pessoas como elas são, mostra que se fizeram consideráveis progressos. Havia, com cer­teza, em Frost uma qualidade fria, como um peixe, de que Mark não gostava, e algo até repulsivo na regularidade das suas feições. Mas cada palavra que ele dizia (não dizia muitas) ia à raiz daqui­lo que estava a ser discutido, e Mark achava encantador falar com ele. Os prazeres da conversação estavam ficando, para Mark, cada vez com menos relação com o espontâneo gostar ou não gostar das pessoas com quem falava. Tinha a consciência dessa mudan­ça, que começara quando entrou para o Elemento Progressista na Faculdade, e acolhia-a como um sinal de maturidade.

Wither tinha degelado da forma mais encorajadora. No final da conversa tinha chamado Mark de lado, falando vaga mas paternalmente do grande trabalho que estava fazendo, e finalmente perguntando pela mulher dele. O DA esperava que não fosse ver­dade o boato que lhe tinha chegado de que ela estava sofrendo, err, de um certo desarranjo nervoso.

«Quem diabo lhe disse isto?», pensou Mark.

— Porque — disse Wither —, ocorreu-me, em vista do gran­de volume de trabalho que pesa sobre si presentemente e da difi­culdade, por conseguinte, em estar em casa tanto quanto nós todos (por sua causa) desejaríamos, que no seu caso o Instituto podia ser levado... estou falando de uma maneira absolutamente informal... que ficaríamos todos encantados por acolher a Sra. Studdock aqui.

Até o DA ter dito isto, Mark não tinha percebido que não havia nada que lhe desagradasse mais do que ter Jane em Belbury. Havia tantas coisas que Jane não compreenderia: não só a bebi­da em grande quantidade que estava se tornando um hábito, mas, oh, tudo de manhã à noite. Pois é apenas de justiça, tanto para Mark como para Jane, registrar que ele teria achado impossível ter, estando ela a ouvir, qualquer uma das centena de conversas que a sua vida em Belbury envolvia. A simples presença dela teria feito soar a metálico, e irreal, todo o riso do Núcleo Interior; e aqui­lo que ele encarava agora como simples prudência pareceria, a ela, e por ela a ele também, mera lisonja, dizer mal pela cos­tas e engolir sapos. Jane no meio de Belbury transformaria todo Belbury numa vasta coisa comum, vistosa e, contudo, furtiva. O seu espírito sentia agonias ao pensar em tentar convencer Jane de que precisava ajudar a manter Wither de bom humor e dar-se bem com a Fada Hardcastle. Desculpou-se vagamente perante o DA com profusos agradecimentos, e saiu dali tão depressa quan­to pôde.

Nessa tarde, enquanto estava tomando chá, a Fada Hardcastle chegou, encostou-se às costas da cadeira e disse-lhe ao ouvido: — Estragaste tudo, Studdock.

— O que é que há, desta vez, Fada? — disse ele.

— Não consigo descobrir o que se passa consigo, jovem Stud­dock, e isto é um fato. Será que resolveu meter na cabeça aborre­cer o velho? Por que isso é um jogo perigoso, bem sabe.

— Mas de que diabo é que está falando?

— Bem, temos todos aqui estado trabalhando em seu favor, a acalmá-lo, e esta manhã pensávamos que finalmente tínhamos sido bem sucedidos. Ele falava em dar-lhe a nomeação que origi­nalmente tencionava dar, dispensando o período provisório. Não havia uma nuvem no céu: e então você tem uma conversa de cin­co minutos com ele, mal chegou a cinco minutos, de fato, e nes­se tempo conseguiu desfazer tudo. Começo pensando que é um doente mental.

— Que diabo é que está mal para ele, desta vez?

— Você bem deve saber. Ele não disse qualquer coisa a respei­to de trazer a sua mulher para cá?

— Sim, disse. E o que é que isso tem?

— E o que é que você disse?

— Disse para não se incomodar com isso, e, é, claro, agradeci-lhe muito e tudo isso.

A Fada deu um assobio.

— Não está vendo, meu amor — disse ela, batendo suavemen­te no couro cabeludo de Mark com os nós dos dedos, —, que difi­cilmente podia ter cometido uma asneira pior? Era uma concessão terrífica que ele estava fazendo. Nunca a tinha feito a ninguém. Devia saber que ele ia ficar ofendido se lhe virasse as costas. Ago­ra está por aí gorgolejando a respeito de falta de confiança. Diz que ficou «magoado»: o que quer dizer que alguém mais, em bre­ve, ficará! Toma a sua recusa como um sinal de que você não está realmente «fixado» aqui.

— Mas isso é pura loucura. Quero dizer...

— Por que raio não podia ter-lhe dito que traria a sua mulher para cá?

— E isso não é problema meu?

— Não a quer ter? Não está sendo muito dedicado para com a sua mulherzinha, Studdock. E dizem-me que é uma moça boni­ta prá valer.

Nesse momento, a figura de Wither, vagueando lentamente na direção deles, tornou-se visível, e a conversa acabou.

Ao jantar sentou-se ao lado de Filostrato. Não havia nenhum outro membro do círculo interior ao alcance do ouvido. O italiano estava de bom humor e falador. Tinha acabado de dar ordens para deitar abaixo algumas das magníficas faias que havia no terreno.

— Por que é que fez isso, professor? — disse um tal Sr. Winter que se sentava em frente. — Eu não teria pensado que elas cau­sassem muito dano, àquela distância da casa. Gosto bastante de árvores, eu próprio.

— Oh, sim, sim — replicou Filostrato. — As árvores bonitas, as árvores de jardim. Mas não as selvagens. Ponho a rosa no meu jardim mas não a silvestre. A árvore da floresta é uma planta dani­nha. Mas digo-lhe que já vi a árvore civilizada na Pérsia. Era o adido francês que a tinha, porque estava num local onde não havia árvores. Era feita de metal. Uma coisa pobre, grosseira. Mas como seria se fosse aperfeiçoada? Leve, feita de alumínio. Tão natural que até enganaria.

— Dificilmente seria o mesmo do que uma árvore verdadeira — disse Winter.

— Mas considere as vantagens! Se ficar farto dela num local, dois trabalhadores levam-na para outro lado qualquer, onde quer que lhe agrade. Nunca morre. Não há folhas a cair, não há raminhos, pássaros fazendo ninhos, não há porcaria nem confusão.

— Suponho que uma ou duas, como curiosidades, podiam ser um tanto divertidas.

— Porquê uma ou duas? Presentemente, concedo, temos de ter florestas, por causa da atmosfera. Mas havemos de encontrar um substituto. E então porquê quaisquer árvores naturais? Não pre­vejo nada exceto a árvore artificial em toda a terra. De fato, lim­pamos o planeta.

— Quer dizer — interveio um homem chamado Gould — que não vamos ter vegetação alguma?

— Exatamente. Você faz a barba: até, à moda inglesa, faz a barba todos os dias. Um dia fazemos a barba ao planeta.

— Pergunto o que é que os pássaros farão?

— Também não vou ter pássaros nenhuns. Na árvore artificial terei pássaros artificiais, todos a cantar quando se oprime o inter­ruptor dentro de casa. Quando estivermos cansados do que can­tam, desligamos. Considere, uma vez mais, a melhoria. Não há penas espalhadas em volta, não há ninhos, nem ovos, nem porca­ria.

— Isso soa — disse Mark — a abolir praticamente toda a vida orgânica.

— E por que não? É simples higiene. Ouçam, meus amigos. Se apanharem qualquer coisa podre e encontrarem essa vida orgâni­ca a mexer em cima dela, não dizem: «Oh, coisa horrorosa. Está viva», e depois não a largam?

— Continue — disse Winter.

— E vocês, em especial vocês, ingleses, não são hostis a qual­quer vida orgânica, exceto o seu próprio corpo? Para a não per­mitir, inventaram o banho diário.

— É verdade.

— E a que é que chamam sujo e porco? Não é precisamente orgânico? Os minerais são só sujos. Mas a imundice autêntica vem dos organismos: suor, cuspe, excreções. Não é toda a vossa idéia de pureza um imenso exemplo? O impuro e o orgânico são conse­lhos intermutáveis.

— Aonde quer chegar, professor? — disse Gould. — Afinal somos todos organismos, nós próprios.

— Concedo isso. Essa é a questão. Em nós a vida orgânica pro­duziu a mente. Fez o seu trabalho. Depois disso nada mais quere­mos dela. Não queremos o mundo mais tempo todo coberto de vida orgânica, como aquilo a que chamam o bolor azul, toda ela germi­nando, brotando, reproduzindo-se e entrando em decomposição. Temos de nos livrar disso. Pouco a pouco, é claro. Devagar have­mos de aprender como. Aprender fazendo os nossos cérebros viver com cada vez menos corpo; aprender a construir diretamente os nossos corpos com produtos químicos, e a não termos mais que os encher com brutos mortos e ervas. Aprender a nos reproduzirmos, nós próprios, sem copular.

— Não penso que isso fosse muito divertido — disse Winter.

— Meu amigo, você já separou o divertimento, como o cha­ma, da fertilidade. O próprio divertimento começa a desvanecer-se. Bah! Sei que não é isso que pensa. Mas olhe para as vossas mulheres inglesas. Seis em dez são frígidas, não são? Está vendo? A própria Natureza começa a expelir o anacronismo. Quando o tiver expelido, então torna-se possível a autêntica civilização. Se fossem camponeses compreenderiam. Quem tentaria trabalhar com garanhões e touros? Não, não, queremos cavalos castrados e bois. Nunca haverá paz e ordem e disciplina enquanto houver se­xo. Quando o homem o tiver extirpado, então tornar-se-á final­mente governável.

Isto levou-os até ao fim do jantar e quando se levantaram da mesa, Filostrato segredou ao ouvido de Mark:

— Não lhe aconselharia a biblioteca esta noite. Compreende? Não está nas boas graças. Venha ter uma pequena conversa comi­go no meu quarto.

Mark levantou-se e seguiu-o, satisfeito e surpreendido por, nesta nova crise com o DA, Filostrato ser aparentemente ainda seu amigo. Subiram até à sala de estar do italiano no primeiro an­dar. Aí, Mark sentou-se ao pé do lume, mas o seu anfitrião con­tinuou andando para cá e para lá, na sala.

— Tenho muita pena, meu jovem amigo — disse Filostrato —, de saber deste novo problema entre você e o diretor-adjunto. Tem de cessar, compreende? Se ele o convida para trazer a sua mulher para cá, por que é que não traz?

— Bem, realmente — disse Mark —, nunca soube que ele liga­va tanta importância a isso. Pensei que estava apenas sendo gentil.

A sua oposição a ter Jane em Belbury fora, se não removida, pelo menos temporariamente amortecida pelo vinho que tinha bebido ao jantar e pela aguda sensação de dor que sentia com a ameaça de expulsão do círculo da biblioteca.

— Em si não tem importância nenhuma — disse Filostrato. — Mas tenho razões para acreditar que o convite não partiu de Wither, mas do próprio chefe em pessoa.

— O chefe? Quer dizer Jules? — disse Mark, com surpresa. — Pensei que ele era apenas uma figura decorativa. E por que é que ele se havia de ralar que eu trouxesse ou não a minha mulher pa­ra cá?

— Está enganado — disse Filostrato. — O nosso chefe não é nenhuma figura decorativa. — «Havia qualquer coisa de esquisi­to nas maneiras dele», pensou Mark. Por algum tempo, nenhum dos homens falou.

— É tudo verdade — disse Filostrato, por fim. — Aquilo que eu disse ao jantar.

— Mas a respeito de Jules — disse Mark. — Qual é o papel dele?

— Jules? — disse Filostrato. — Por que é que fala dele? Digo que é tudo verdade. O mundo a que aspiro é o mundo da pureza perfeita. A mente limpa e minerais limpos. Quais são as coisas que mais ofendem a dignidade do homem? Nascimento, procriação e morte. Que tal se estivéssemos perto de descobrir que o homem pode viver sem nenhuma das três?

Mark ficou de olhos arregalados. A conversa de Filostrato parecia tão desconexa e os seus modos tão incomuns que come­çava a pensar se estaria perfeitamente sóbrio.

— Quanto à sua mulher — continuou Filostrato —, não dou qualquer importância a isso. Que é que eu tenho a ver com as mu­lheres dos homens? O assunto todo repugna-me. Mas se fazem questão disso... Olhe meu amigo, o ponto fundamental é se tenciona ser verdadeiramente um dos nossos ou não.

— Não estou acompanhando inteiramente — disse Mark.

— Quer ser um simples assalariado? Mas já foi longe demais para isso. Está num ponto de virada da sua carreira, Sr. Studdock. Se tentar voltar atrás será tão infeliz como o tolo do Hingest. Se entrar realmente, o mundo... bah, que estou eu dizendo?... o universo está a seus pés.

— Mas é claro que quero entrar — disse Mark. Uma certa excitação estava tomando conta dele.

— O chefe pensa que não pode realmente ser um dos nossos se não trouxer a sua mulher para cá. Tê-lo-á todo, e tudo o que é seu, ou nada. Tem de trazer a sua mulher também. Ela tem de ser tam­bém dos nossos.

Esta observação foi como um choque de água fria na cara de Mark. E, contudo..., e, contudo..., naquela sala e naquele momen­to, com os olhos pequenos e brilhantes do professor fixos nele, difi­cilmente conseguiu tornar autenticamente real no seu espírito a imagem de Jane.

— Vai ouvi-lo dos lábios do próprio chefe — disse Filostrato, subitamente.

— Jules está cá? — disse Mark.

Em vez de responder, virou-lhe vivamente as costas e com um grande movimento lento correu para trás as cortinas da janela. Depois fechou a luz no interruptor. O nevoeiro tinha desapareci­do todo, levantara-se vento. Nuvens pequenas corriam veloz­mente sobre as estrelas e a lua cheia. Mark nunca a vira tão bri­lhante. Olhava para eles, lá de cima. À medida que as nuvens pas­savam ela parecia uma bola que rolava através delas. A sua luz exangue enchia a sala.

— Ali está um mundo para si, não? — disse Filostrato. — Há limpeza, pureza. Milhares de milhas quadradas de rocha polida sem uma única folha de erva, sem uma fibra de líquen, sem um grão de pó. Nem ar sequer. Já pensou como seria, meu amigo, se pudesse andar naquela terra? Nada se desfaz, não há erosão. Os picos daquelas montanhas são picos autênticos: aguçados como agulhas, atravessar-lhe-iam as mãos. Penhascos tão altos como o Everest e tão direitos como a parede de uma casa. E lançados por esses penhascos, hectares de sombra negra como o ébano, e na sombra centenas de graus abaixo de zero. E depois, um passo para além dessa sombra, luz que lhe perfuraria os globos oculares, como se fosse aço, e rocha que lhe queimaria os pés. A temperatu­ra está no ponto de ebulição. Morreria, não é? Mas mesmo então não se tornaria em imundice. Em alguns momentos fica um pequeno monte de cinza; pó branco, limpo. E repare, não há vento para dispersar esse pó em redor. Cada grão desse pequeno monte manter-se-ia no seu lugar, exatamente onde você tinha morri­do, até o fim do mundo... mas isto é uma insensatez. O universo não terá fim.

— Sim. Um mundo morto — disse Mark, fitando a Lua.

— Não! — disse Filostrato. Tinha-se aproximado de Mark e falou quase num murmúrio, o murmúrio como do morcego, de uma voz que é naturalmente de timbre alto. — Não. Lá existe vida.

— Sabemos isso? — perguntou Mark.

— Oh, sim. Vida inteligente. Sob a superfície. Uma grande raça, mais avançada do que nós. Uma inspiração. Uma raça pura. Limparam o mundo deles, libertando-se (quase) do orgânico.

— Mas como?

— Não precisam nascer, procriar e morrer; apenas o povo comum, a canalha, faz isso. Os mestres continuam a viver. Con­servam a sua inteligência: podem mantê-la viva artificialmente, depois do corpo orgânico ser eliminado, um milagre da bioquími­ca aplicada. Não precisam de alimentos orgânicos. Compreende? Estão quase libertos da Natureza, ligados a ela apenas pelo cor­dão mais fino, mais estreito.

— Quer dizer que tudo aquilo — Mark apontou para o globo matizado da Lua — é obra deles?

— Por que não? Se remover toda a vegetação, não se tem depois nenhuma atmosfera, nenhuma água.

— Mas qual seria o propósito?

— Higiene. Por que haviam eles de ter o seu mundo fervilhan­do de organismos? E especialmente baniriam um organismo. A superfície da Lua não é toda como ela vê. Há ainda habitantes da superfície, selvagens. Uma grande área no lado mais distante dela, onde existem ainda água, ar e florestas, sim, e germes e morte. Vão estendendo lentamente a sua higiene sobre todo o seu glo­bo. Desinfetando-o. Os selvagens lutam contra eles. Há frontei­ras, e guerras ferozes, mas cavernas e galerias lá por baixo. Mas a grande raça vai avançando. Se pudesse ver o outro lado, veria ano a ano a rocha limpa, como a deste lado da Lua, invadindo; a mancha orgânica, todo o verde, o azul e a umidade, a ficarem mais pequenos. Como limpar a prata manchada.

— Mas como nós sabemos tudo isso?

— Vou contar-lhe tudo noutro momento. O chefe tem muitas fontes de informação. No momento, falo apenas para o inspirar. Falo para que possa saber o que pode ser feito; o que será feito aqui. Este Instituto, meu Deus, é para alguma coisa melhor do que habitação e vacinas e trens mais rápidos e curar as pessoas do câncer. É para a conquista da morte, ou para a conquista da vida orgânica, se preferir. São a mesma coisa. É para fazer sair desse casulo de vida orgânica, que abrigou a primeira infância do espí­rito, o novo homem, o homem que não morrerá, o homem artificial, liberto da Natureza. A Natureza é a escada por onde subimos, agora empurramo-la com o pé.

— E pensa que um dia realmente descobriremos um meio de manter o cérebro vivo indefinidamente?

— Já começamos. O próprio chefe...

— Continue — disse Mark. O coração estava batendo furiosa­mente e tinha esquecido tanto Jane como Wither. Aquela era, finalmente, a questão fundamental.

— O próprio chefe já sobreviveu à morte, e você vai falar com ele esta noite.

— Quer dizer que Jules já morreu?

— Bah! Jules nada é. Não é ele o chefe.

— Então quem é?

Nesse momento bateram à porta. Alguém, sem esperar pela resposta, entrou.

— O jovem está pronto? — perguntou a voz de Straik.

— Oh, sim. Está pronto, não está, Sr. Studdock?

— Explicou-lhe a situação, então? — disse Straik. Virou-se para Mark e o luar da sala era tão brilhante que Mark podia ago­ra reconhecer parcialmente o rosto dele, as rugas ásperas salien­tadas por aquela luz fria e pela sombra.

— Quer mesmo juntar-se a nós, meu jovem? — disse Straik. — Uma vez que ponha a mão na enxada, já não há como vol­tar atrás. E não existem reservas. O chefe mandou chamá-lo. Compreende, o chefe? Vai olhar para alguém que foi morto e está ainda vivo. A ressurreição de Jesus na Bíblia era um símbolo; esta noite vai ver o que é que ela simbolizava. Este é finalmente o homem autêntico e reclama toda a nossa fidelidade.

— De que diabo você está falando? — disse Mark. A tensão dos nervos alterou-lhe a voz para um grito rouco e estrondoso.

— O meu amigo tem toda a razão — disse Filostrato. — O nos­so chefe é o primeiro dos novos homens, o primeiro, o primeiro a viver para lá da vida animal. Tanto quanto diz respeito à Nature­za, está já morto: se a Natureza tivesse seguido o seu caminho, o cérebro dele estaria agora em decomposição na sepultura. Mas vai falar consigo em breve, e, deixe-me dizer-lhe uma coisa, meu amigo, vai obedecer às suas ordens.

— Mas quem é ele? — disse Mark.

— É François Alcasan — disse Filostrato.

— Quer dizer o homem que foi guilhotinado? — disse Mark, sustentando a respiração. Ambas as cabeças se inclinaram afir­mativamente. Ambas as caras estavam chegadas a ele: naquela luz desastrosa, pareciam máscaras suspensas no ar.

— Está aterrado? — disse Filostrato. — Vai passar. Estamos oferecendo fazer de si um dos nossos. Ah, se estives­se de fora, se fosse mera canalha, teria razão para estar assusta­do. É o começo de todo o poder. Ele vive para sempre. O gigante do tempo está conquistado. E o gigante do espaço, esse foi já conquistado também. Um dos da nossa companhia já viajou no espaço. É verdade que foi traído e assassinado e os seus manus­critos são imperfeitos; ainda não fomos capazes de reconstituir a sua nave espacial. Mas isso há de chegar.

— É o princípio do homem imortal e do homem ubíquo — disse Straik. — O homem no trono do universo. Era isso que todas as profecias realmente queriam dizer.

— De início, é claro — disse Filostrato —, o poder vai ser limitado a um certo número, um pequeno número de Indivíduos! Os que forem escolhidos para a vida eterna.

— E quer dizer — disse Mark — que será então estendido a todos os homens?

— Não — disse Filostrato. — Quero dizer que será então reduzido a um só homem. Você não é tolo, pois não, meu jovem ami­go? Toda essa conversa a respeito do poder do homem sobre a Natureza, o homem em abstrato, é apenas para a canalha. Sabe tão bem como eu sei, que o poder do homem sobre a Natureza significa o poder de alguns homens sobre outros homens, com a Natureza como instrumento. Não existe essa coisa a que chamam homem, é uma palavra. Há apenas homens. Não! Não é o homem que vai ser onipotente, é um determinado homem, um homem imortal. Alcasan, o nosso chefe, é o primeiro esboço disso. O pro­duto final pode ser um outro qualquer. Pode ser você. Posso ser eu.

— Virá um rei — disse Straik — que governará o universo com retidão e os céus com o seu juízo. Você pensava, sem dúvida, que tudo isso era mitologia. Pensava que, porque em torno da frase «fi­lho do homem» se amontoavam fábulas, o homem nunca teria realmente um filho que viesse a exercer todo o poder. Mas terá.

— Não compreendo, não compreendo — disse Mark.

— Mas é muito fácil — disse Filostrato. — Descobrimos como fazer viver um homem morto. Era um sábio mesmo na sua vida natural. Vive agora para sempre; fica mais sábio. Mais tarde, os faremos viver melhor, pois, por agora, temos de conceder, esta segunda vida provavelmente não é muito agradável para aquele que a vive. Está vendo? Mais tarde fazemo-la para alguns, talvez não tão agradável para outros. Pois podemos fazer os mortos vive­rem, quer eles queiram quer não. Aquele que finalmente vier a ser o rei do universo pode atribuir esta vida a quem lhe agradar. Não se poderá recusar esse pequeno presente.

— E, assim — disse Straik —, as lições que se aprenderam nos joelhos da nossa mãe, voltam. Deus terá poder para dar eterna recompensa e castigo eterno.

— Deus — disse Mark. — Como é que Ele entra nisto? Eu não creio em Deus.

— Mas, meu amigo — disse Filostrato —, porque não havia Deus, no passado seguir-se-á que no futuro também não haverá Deus?

— Não está vendo — disse Straik — que lhe estamos oferecendo a glória indizível de estar presente na criação de Deus Todo Pode­roso? Aqui, nesta casa, vai encontrar-se com o primeiro esboço de Deus autêntico. É um homem, ou um ser feito pelo homem, que as­cenderá finalmente ao trono do universo. E governará para todo o sempre.

— Vem conosco? — disse Filostrato. — Ele mandou-o cha­mar.

— Claro que vem — disse Straik. — Pensa ele que podia recuar e viver?

— E esse pequeno caso da esposa — acrescentou Filostrato. — Não vai mencionar uma coisa trivial como essa. Vai fazer como lhe disserem. Não se discute com o chefe.

Mark não tinha agora nada que o auxiliasse a não ser a excitação do álcool tomado à hora do jantar, e que desaparecia rapi­damente, e alguns reflexos tênues de memória de horas passadas com Jane e com amigos, antes de ter ido para Bracton, durante as quais o mundo tinha um sabor diferente do horror excitante que agora pesava sobre ele. Estes e um desagrado meramente instin­tivo por ambos os rostos batidos pela lua que tanto detinham a sua atenção. Do outro lado estava o medo. Que é que lhe fariam se recusasse? E a ajudar o medo estava a sua crença de jovem de que, se acedesse na altura, as coisas se comporiam por si de uma ma­neira ou de outra, «de manhã». E, apoiando o medo e a esperança, havia ainda, mesmo então, a emoção não totalmente desagradá­vel causada pela idéia de partilhar um tão estupendo segredo.

— Sim — disse ele, falando aos arrancos como se lhe faltasse o fôlego —, sim, é claro, eu vou.

Conduziram-no dali em diante. Os corredores já estavam si­lenciosos e o som de conversas e de riso vindo das salas públicas no pavimento térreo tinha terminado. Tropeçou e deram-lhe o braço. A viagem parecia longa: corredor após corredor, corre­dores que nunca tinha visto antes, portas que era preciso abrir, e depois um lugar onde todas as luzes estavam acesas e onde havia cheiros esquisitos. Então Filostrato falou através de um tubo de comunicação e foi-lhes aberta uma porta.

Mark encontrou-se numa sala de aspecto cirúrgico com luzes resplandecentes e bacias, e garrafas e instrumentos brilhantes. Um homem ainda novo que mal conhecia, vestido com um casaco branco, recebeu-os.

— Dispa-se até ficar em roupa íntima — disse Filostrato. En­quanto Mark obedecia, verificou que a parede oposta da sala esta­va coberta de mostradores. Numerosos tubos flexíveis saíam do chão e entravam na parede, por baixo dos mostradores. As faces, que os pareciam fitar, dos mostradores e os molhos de tubos por baixo deles, que pareciam pulsar levemente, davam a impres­são de se estar olhando para uma criatura qualquer com muitos olhos e muitos tentáculos. O jovem mantinha os olhos fixos nos ponteiros trementes dos mostradores. Quando os três recém-che­gados já tinham removido as roupas exteriores, lavaram as mãos e a cara, e depois disso Filostrato tirou com um forceps, de um con­tentor de vidro, roupas brancas para eles. Depois de as terem ves­tido, deu-lhes também luvas e máscaras como usam os cirurgiões. Seguiu-se um momento de silêncio enquanto Filostrato estudava os mostradores.

— Sim, sim — disse ele. — Um pouco mais de ar. Muito, não: ponto zero três. Abra o ar para a câmara, devagar, até «todo». Ago­ra as luzes. Agora o ar no isolado. Um pouco menos de soluto. E agora (aqui virou-se para Straik e para Studdock), estão prontos para entrar?

Conduziu-os então a uma porta na mesma parede onde esta­vam os mostradores.

 

A CABEÇA DO SARRACENO

— Foi o pior sonho que eu já tive — disse Jane na manhã seguinte. Estava sentada na Sala Azul com o diretor e Grace Ironwood.

— Sim — disse o diretor. — O seu é talvez o posto mais difí­cil: até principiar a autêntica luta.

— Sonhei que estava num quarto escuro — disse Jane — cheio de cheiros esquisitos e com uma espécie de ruído baixo de zumbi­do. Depois veio a luz, mas não assim tanta luz, e por bastante tem­po não percebi para o que é que estava olhando. E quando distin­gui o que era... teria acordado se não tivesse feito um grande esforço para isso não acontecer. Pensei que via uma cara flutuan­te na minha frente. Um rosto e não uma cabeça, se compreendem o que quero dizer. Isto é, havia uma barba e nariz e olhos, pelo me­nos, os olhos não se podiam ver porque tinha óculos escuros, mas parecia não haver nada acima dos olhos. No início, não. Mas à medida que me habituava à luz, senti um choque hor­rível. Pensei que o rosto era uma máscara amarrada a uma espé­cie de balão. Mas não era, exatamente. Talvez se parecesse um pouco com um homem tendo um tipo de turbante... estou a con­tar isto horrorosamente mal. Aquilo era realmente uma cabeça (o resto de uma cabeça) cuja parte superior do crânio fora retirada e então... então... era como se alguma coisa do lado de dentro tivesse transbordado, a ferver. Uma enorme massa que fa­zia bojo para fora era o que restava do crânio. Enrolada numa es­pécie qualquer de material composto, mas material muito fino. Podia ver-se em contrações. Mesmo no meu susto, lembro-me de pensar: «Oh matem-no, matem-no. Libertem-no do seu sofri­mento.» Mas só por um segundo porque pensava que a coisa era real, efetivamente. Parecia verde e a boca estava toda aberta e absolutamente seca. Compreenda que fiquei muito tempo, a olhar para aquilo, antes de ter acontecido alguma coisa mais. E cedo vi que não estava exatamente a flutuar. Estava fixada numa espécie qualquer de suporte, plataforma ou pedestal, não sei exatamente o quê, e havia coisas penduradas dela. Que­ro dizer, do pescoço. Sim, tinha um pescoço e um tipo de cola­rinho em torno dele, mas abaixo do colarinho, nada; nem ombros nem corpo. Apenas aquelas coisas penduradas. No sonho pensei que era uma espécie qualquer de novo homem que tivesse apenas cabeça e intestinos: pensei que todos aqueles tubos eram as suas entranhas. Mas dali a pouco, não sei bem como, vi que eram arti­ficiais. Pequenos tubos de borracha e bolbos e pequenas coisas de metal, também. Não era capaz de os entender. Todos os tubos iam até a parede. Então, finalmente, aconteceu qualquer coisa.

— Sente-se bem, Jane, sente-se mesmo? — disse Miss Ironwood.

— Oh, sim — disse Jane —, pelo menos até aqui. Somente, uma pessoa não quer contar isto. Bem, subitamente, como quan­do um motor é posto a funcionar, saiu um sopro de ar da boca, com um som duro, seco e áspero. E depois saiu outro, e acabou por se instalar uma espécie de ritmo, huff, huff, huff, como que a imitar respiração. Depois veio a mais horrível das coisas: a boca começou a babar. Sei que parece tolo mas, de certa maneira, tive pena dela porque não tinha mãos e não podia limpar a boca. Parece coi­sa pequena comparada com todo o resto, mas foi assim que eu sen­ti. Depois começou a mexer a boca e até mesmo a lamber os lábios. Era como uma pessoa a pôr uma máquina em condições de funcio­nar. Ver aquilo fazendo exatamente como se estivesse vivo, e ao mesmo tempo babando-se pela barba abaixo, barba que estava inteiriçada e parecia morta... Então entraram no quarto três pes­soas, todas vestidas de branco, com máscaras postas, andando cuidadosamente, como gatos por cima de um muro. Um era um homem grande e gordo e o outro era magro e ossudo. O terceiro... — aqui Jane fez involuntariamente uma pausa. — O terceiro... penso que era Mark... quero dizer, o meu marido.

— Não tem a certeza? — disse o diretor.

— Não — disse Jane. — Era Mark. Reconheci a sua maneira de andar. E conhecia os sapatos que ele usava. E a voz dele. Era Mark.

— Peço desculpa — disse o diretor.

— E então — disse Jane — os três aproximaram-se e ficaram em frente da cabeça. Inclinaram a cabeça perante ela. Não se podia dizer se ela estava olhando para eles por causa dos óculos escuros. Continuava com aquele resfolegar rítmico. Então falou.

— Em inglês? — disse Grace Ironwood.

— Não, em francês.

— O que é que ela disse?

— Bem, o meu francês não era suficientemente bom para acompanhá-la. Falou de uma forma esquisita. Aos arrancos, como um homem com falta de fôlego. Sem expressão adequada. E, é claro, não podia virar-se para este lado ou para aquele como faz uma pessoa autêntica.

O diretor falou outra vez.

— Percebeu alguma coisa do que foi dito?

— Não muito. O homem gordo parecia estar a apresentar-lhe Mark. E a cabeça disse qualquer coisa a Mark. Depois Mark ten­tou responder. A ele eu podia seguir perfeitamente. O seu francês não é muito melhor do que o meu.

— Que é que ele disse?

— Disse qualquer coisa como «ir fazê-lo dentro de poucos dias, se fosse possível».

— Isso foi tudo?.

— Muito aproximadamente. Estão vendo, Mark não era capaz de agüentar aquilo. Lembro-me de, idiotamente, no sonho querer dizer-lhe isso. Vi que ia cair. Penso que tentei gritar aos outros dois: «Ele vai cair.» Mas, é claro, não podia. Ele estava agoniado, além disso. Então o tiraram da sala.

Os três ficaram em silêncio por alguns segundos.

— Isso foi tudo? — disse Miss Ironwood.

— Sim — disse Jane. — É tudo de que me lembro. Acho que acordei nessa altura.

O diretor inspirou profundamente.

— Bem — disse ele, olhando de relance para Miss Iro­nwood —, torna-se tudo cada vez mais claro. Temos de reunir o conselho imediatamente. Estão todos aqui?

— Não. O Dr. Dimble teve de ir a Edgestow, à Faculdade, para receber alunos. Não estará de volta antes da noite.

— Então temos de reunir o conselho esta noite. Façam todos os preparativos. — Fez uma pausa por um momento e então virou-se para Jane.

— Receio que isto seja muito mau para si, minha querida — disse ele —, e pior para ele.

— Quer dizer para Mark, Sr. Diretor?

O diretor acenou afirmativamente com a cabeça.

— Sim. Não pense mal dele. Ele está sofrendo. Se formos der­rotados, cairemos com ele. Se vencermos, havemos de salvá-lo; ele não pode ter ido ainda muito longe. — Fez uma pausa, sorriu e acrescentou: — Já estamos muito habituados a problemas por causa dos maridos por aqui, sabe. O da pobre Ivy está na cadeia.

— Na cadeia?

— Oh, sim, por furto. Mas é uma excelente pessoa. Ficará tudo bem outra vez.

Embora Jane sentisse horror, até o ponto da náusea, à vista (no seu sonho) do que realmente rodeava Mark e dos seus associa­dos, fora um horror que acarretava com ele uma certa grandeza e um certo mistério. A súbita identificação entre as suas dificul­dades e a de um condenado de delito comum fazia-lhe subir o san­gue às faces. Não disse nada.

— Uma outra coisa — continuou o diretor. — Não vai inter­pretar mal se eu a excluir do nosso conselho esta noite?

— Claro que não, Sr. Diretor — disse Jane, de fato interpre­tando muito mal as palavras dele.

— Está vendo — disse ele —, MacPhee tem a opinião de que se você ouvir falar certas coisas, transportará as idéias para o sono e isso destruirá o valor probatório dos seus sonhos. E não é muito fácil refutá-lo. Ele é o nosso cético, um lugar muito impor­tante.

— Compreendo perfeitamente — disse Jane.

— Isso aplica-se, é claro — disse o diretor —, apenas a coisas que ainda não sabemos. Não deve ouvir as nossas suposições, não deve estar presente quando nos interrogamos, intrigados a res­peito dos fatos. Mas não temos segredos nenhuns para consigo sobre a história anterior da nossa família. De fato, o próprio MacPhee insistirá em ser ele quem vai lhe contar tudo isso. Ele teria receio de que o relato de Grace, ou o meu, não fosse suficien­temente objetivo.

— Estou vendo.

— Quero que goste dele, se puder. É um dos mais velhos ami­gos. E ele será possivelmente o nosso melhor homem se viermos a ser derrotados. Não podia ter melhor homem a seu lado numa batalha perdida. O que ele fará se ganharmos, não consigo imaginar.

 

Mark acordou na manhã seguinte com a consciência de que a cabeça lhe doía, em especial na parte de trás. Lembrava-se de ter caído, fora assim que machucara a cabeça, caindo naquela ou­tra sala com Filostrato e Straik... e então, como diz um dos poetas «descobriu na sua mente uma inflamação inchada e deformada, a sua memória». Oh, mas era impossível, nem por um momento podia aceitar: fora um pesadelo, tinha de ser empurrada para lon­ge, desvanecer-se-ia, agora que estava inteiramente desperto. Era um absurdo. Uma vez, a deliberar, tinha visto a parte da fren­te de um cavalo, sozinho, sem corpo ou pernas traseiras, a correr através de um campo relvado e achou-o ridículo no próprio mo­mento em que o viu, mas nem por isso menos horrível. Aquilo era um absurdo do mesmo tipo. Uma cabeça sem ninguém por debai­xo. Uma cabeça que era capaz de falar quando abriam o ar e a sali­va artificial, por meio de torneiras na sala do lado. A sua própria cabeça começou a latejar com tanta força que teve de parar de pensar.

Mas sabia que era verdadeira. E não era capaz, como dizem, de «agüentar». Mas estava muito envergonhado por isso, pois desejava ser considerado um dos duros. Porém, a verdade é que a sua dureza era apenas da vontade, não dos nervos, e as virtudes que quase conseguira banir do seu espírito ainda viviam, se bem que apenas negativamente, como fraquezas, no seu corpo. Apro­vava a vivisseção, mas nunca trabalhara numa sala de anatomia. Recomendava que certas classes de pessoas fossem gradualmen­te eliminadas: mas nunca lá estivera quando um pequeno lojista ia para o asilo ou uma velha, do tipo governanta, chegava ao seu último dia, e hora, e minuto, no sótão frio. Nada sabia sobre a última meia xícara de cacau, bebida lentamente dez dias antes.

Entretanto, tinha de se levantar. Tinha de fazer alguma coisa quanto a Jane. Aparentemente teria de a trazer para Belbury. A sua mente tinha tomado esta decisão por ele num momento qual­quer, de que não se lembrava. Tinha de a apanhar, para salvar a vida. Todas as suas ansiedades a respeito de estar no círculo in­terior ou de se obter um emprego tinham encolhido até à insignificância. Era uma questão de vida ou de morte. O matariam se os aborrecesse; o decapitariam talvez... oh, Deus, se ao menos matassem mesmo aquele monstruoso pequeno amontoado de tor­tura, aquele amontoado com uma cara, que eles mantinham falando lá no seu suporte de aço. Todos os medos menores em Bel­bury, pois agora sabia que todos, exceto os dirigentes, estavam sempre com medo, eram apenas uma emanação daquele medo central. Tinha de apanhar Jane; agora não lutaria contra isso.

Tem de recordar-se que, no espírito de Mark, um farrapo de pensamento nobre, quer cristão quer pagão, dificilmente tinha pousada firme. A sua educação não fora nem científica nem clás­sica, apenas «moderna». Os rigores tanto na abstração como de uma elevada tradição humana tinham-lhe passado ao largo; e não tinha nem a astúcia camponesa nem a honra aristocrática para o ajudarem. Era um homem de palha, um examinando loquaz em assuntos que não exigiam conhecimento exato nenhum (tinha sempre tido bons resultados em ensaios e generalidades) e a pri­meira sugestão de uma ameaça real à sua vida corpórea deixa­va-o estendido ao comprido. E a cabeça doía-lhe de forma tão terrível e sentiu-se tão mal. Afortunadamente agora guardava uma garrafa de whisky no quarto. Um longo trago permitiu-lhe fazer a barba e vestir-se.

Chegou tarde ao café da manhã, mas isso fez pouca dife­rença, pois não era capaz de comer. Bebeu diversas xícaras de café simples e depois foi para a sala de escrever. Ali ficou muito tempo sentado, traçando coisas no mata-borrão. Agora que chega­ra à altura da tal carta para Jane, mostrava-se quase impossível de escrever. E por que é que queriam Jane? Medos indefinidos agi­tavam-se no seu espírito. E logo Jane, entre toda a gente! Iriam levá-la ao chefe? Talvez pela primeira vez na sua vida, uma rever­beração de qualquer coisa como amor desinteressado penetrou-lhe na mente; desejou nunca ter casado com ela, nunca a ter arrastado para todo aquele conjunto de horrores que estava, apa­rentemente, para ser a sua vida.

— Olá, Studdock! — disse uma voz. — Escrevendo à sua mulherzinha, eh?

— Raios! — disse Mark. — Deixou cair a caneta.

— Então apanhe-a, meu filho — disse Miss Hardcastle, sen­tando-se em cima da mesa. Mark assim fez, e depois deixou-se estar sentado e quieto, sem olhar para ela. Desde os tempos em que tinha sido arreliado na escola que não sabia o que era odiar e temer alguém com todos os nervos do corpo, como agora odiava e temia aquela mulher.

— Tenho más notícias para si, meu filho — disse ela a seguir. O coração dele teve um sobressalto.

— Agüente a coisa como um homem, Studdock — disse a Fada.

— O que é?

Ela não respondeu imediatamente e ele sabia que estava a estudá-lo, observando como o instrumento respondia à sua atuação.

— Estou preocupada sobre a sua mulherzinha, é isto mesmo — disse ela por fim.

— Que é que quer dizer? — disse Mark bruscamente, desta vez, levantando os olhos. O charuto entre os dentes dela estava ainda apagado mas tinha ido ao ponto de tirar os fósforos para fora.

— Fui procurá-la — disse Miss Hardcastle —, tudo por sua causa, também. Pensei que Edgestow não era um lugar muito saudável para ela estar presentemente.

— O que é que há com ela? — bradou Mark.

— Sh! — disse Miss Hardcastle. — Não vai querer que todos ouçam.

— Não pode me dizer o que há de mal?

Ela esperou alguns segundos antes de replicar.

— Quanto é que sabe sobre a família dela, Studdock?

— Muita coisa. O que é que isso tem a ver com o caso?

— Nada... esquisito... de ambos os lados?

— Que diabo você quer dizer?

— Não seja rude, querido. Estou fazendo tudo o que posso por si. É só que... bem, pensei que ela estava a se comportar de forma bastante estranha quando a vi.

Mark lembrava-se bem da conversa com a mulher na manhã em que partira para Belbury. Uma nova pontada de medo atra­vessou-o. Podia aquela mulher detestável estar falando a ver­dade?

— Que disse ela? — perguntou.

— Se houver alguma coisa de mal com ela nesse aspecto — dis­se a Fada —, tome o meu conselho, Studdock, e faça-a vir para cá imediatamente. Aqui cuidaremos dela convenientemente.

— Ainda não me disse o que é que ela disse ou fez.

— Não gostaria de ter alguém que me pertencesse metido no asilo de Edgestow. Especialmente agora que vamos ter os nossos poderes de emergência. Vão usar os doentes comuns em expe­riências, sabe. Enquanto que, se assinar só este impresso, eu vou até lá depois do almoço e a temos aqui esta noite.

Mark atirou a caneta para cima da secretária.

— Não faço nada disso. Especialmente porque ainda não me deu a mais ligeira noção do que há de mal com ela.

— Estou tentando dizer-lhe mas você não me deixa. Ela só falava de alguém que tinha assaltado o vosso apartamento, ou então a tinha encontrado na estação (não se conseguia perceber qual das coisas fora) e a tinha queimado com charutos. Então, in­felizmente, notou o meu charuto, e, se dá licença, identificou-me com o seu perseguidor imaginário. É claro que, depois disso, não podia fazer mais nada.

— Tenho de ir para casa, já — disse Mark, pondo-se de pé.

— Espere lá! Não pode fazer isso — disse a fada, erguendo-se também.

— Não posso ir para casa? Claro que tenho mesmo de ir, se tudo isso for verdade.

— Não seja tolo, amorzinho — disse Miss Hardcastle. — Sério! Eu sei do que estou falando. Você já está numa posição danada e perigosa. Vai dar cabo de si se agora se ausentar sem licença. Mande-me a mim. Assine o impresso. Essa será a forma sensata de fazer a coisa.

— Mas há um momento disse que ela não a podia ver, por qual­quer preço.

— Oh, isso não faria mal nenhum. Claro que seria mais fácil se ela não se tivesse desagradado de mim. Olhe lá, Studdock, não pensa que a sua mulherzinha possa estar com ciúmes, pois não?

— Ciúmes? De si? — disse Mark com aversão incontrolável.

— Para onde vai você? — disse a Fada, bruscamente.

— Ver o DA e depois para casa.

— Pare. Não vai fazer isso, a não ser que tenha a intenção de fazer de mim sua inimiga para toda a vida, e deixe-me dizer, você já não pode permitir-se ter muitos mais inimigos.

— Oh, vá para o Diabo — disse Mark.

— Volte para trás, Studdock — bradou a Fada. — Espere! Não seja um maldito de um maluco. — Mas Mark já estava no átrio. De momento tudo parecia ter-se tornado claro. Iria ver Wither, não para lhe pedir licença mas para anunciar que tinha de ir a casa imediatamente porque a sua mulher estava gravemente doente; estaria fora da sala antes que Wither pudesse responder, e, depois, dali para fora. O futuro mais longínquo era vago, mas isso não parecia importar. Pôs o chapéu e o casaco, correu escada acima e bateu à porta do gabinete do diretor-adjunto.

Não houve resposta. Então Mark notou que a porta não esta­va completamente fechada. Aventurou-se a empurrá-la e abrir um pouco mais e viu o diretor-adjunto sentado no interior, com as costas para a porta.

— Desculpe, senhor — disse Mark. — Podia falar-lhe por al­guns minutos? — Não houve resposta alguma.

— Desculpe, senhor — disse Mark, em voz alta, mas a figura não falou nem se mexeu. Com uma certa hesitação, Mark entrou e deu a volta até ao outro lado da secretária; mas, quando se virou para olhar para Wither, susteve a respiração, pois pensou estar a olhar para a cara de um cadáver. Um momento mais tarde reco­nheceu o engano. No silêncio da sala podia ouvir o homem sem res­pirar. Nem sequer estava a dormir, pois tinha os olhos abertos. Não estava inconsciente, pois pousou momentaneamente os olhos em Mark e depois desviou-os.

— Peço perdão, Sr. Diretor — começou Mark e depois parou. O diretor-adjunto não estava a escutar. Estava tão longe de es­cutar, que Mark sentiu uma dúvida insensata se ele estava ali realmente, se a alma do diretor-adjunto não estaria a flutuar muito longe, espalhando-se e dissipando-se como um gás através de mundos sem formas e sem luz, baldios e quartos de arrumação do universo. Aquilo que espreitava daqueles olhos pálidos e aquosos era, num certo sentido, o infinito, o informe e o interminável. A sala estava silenciosa e fria; não havia relógio e o lume apaga­ra-se. Era impossível falar com um rosto como aquele. Todavia, parecia impossível também sair da sala, pois o homem tinha-o visto. Mark estava com medo; era tão diferente de qualquer expe­riência que ele jamais tivera.

Quando por fim o Sr. Wither falou, os seus olhos não estavam fixos em Mark mas num ponto qualquer afastado, para lá dele, pa­ra lá da janela, talvez no céu.

— Sei quem é — disse Wither. — O seu nome é Studdock. Qual é a sua intenção ao vir para aqui? Era melhor ter ficado de fora. Vá-se embora.

Foi então que os nervos de Mark cederam. Todos os receios len­tamente crescentes dos últimos dias juntaram-se numa única decisão fixa e poucos segundos mais tarde ia escada abaixo, aos três degraus de cada vez. A seguir estava a atravessar o átrio. Depois estava fora, andando pelo caminho de acesso. Uma vez mais, a sua rota imediata parecia-lhe absolutamente evidente. Do lado oposto à entrada havia uma cintura espessa de árvores, atravessada por um caminho campestre. Esse caminho o levaria em meia hora a Courthampton e aí podia apanhar um ônibus para Edgestow. Quanto ao futuro, nada pensava. Apenas duas coisas importavam: primeiro sair daquela casa e em segundo lugar voltar para Jane. Devorava-o uma ânsia por Jane, que era física sem ser nada sensual: como se consolo e fortaleza emanas­sem do corpo dela, como se a sua pele viesse a limpar toda a imundice que parecia cobri-lo. A idéia de que ela pudesse estar realmente louca tinha de qualquer modo desaparecido do seu espírito. E ele era suficientemente jovem para ser incrédulo em relação à desgraça. Não podia libertar-se de toda a crença de que bastava só que corresse direito a ela e a rede havia de se partir, de alguma maneira, e tudo acabaria com Jane e Mark a tomarem chá juntos como se nada daquilo tivesse acontecido.

Já estava fora dos terrenos do Instituto, estava a atravessar a estrada, tinha penetrado numa cintura de árvores. Subita­mente parou. No carreiro, à frente dele, havia uma figura: uma figura alta, muito alta, levemente curvada, vagueando e sussur­rando uma pequena melodia monótona: o diretor-adjunto em pessoa. E num momento toda aquela ousadia frágil tinha desapa­recido da disposição de Mark. Voltou para trás. Ficou parado na estrada; aquele pareceu-lhe o pior sofrimento que jamais sentira. Depois, cansado, tão cansado que sentiu as lágrimas fracas, encherem-lhe os olhos, caminhou muito devagar de volta para Belbury.

 

O Sr. MacPhee tinha um pequeno quarto no andar térreo, no solar, a que chamava o seu gabinete e no qual mulher alguma era jamais admitida, exceto sob a sua própria direção; e naquela ar­rumada mas poeirenta divisão estava sentado com Jane Studdock pouco antes do jantar, naquela noite, tendo-a convidado para lhe apresentar aquilo a que chamava «um esboço breve e objetivo da situação».

— Devo começar por explicar à partida, Sra. Studdock — dis­se ele —, que conhecia o diretor há já muitos anos e que durante a maior parte da sua vida foi um filólogo. Não chego a estar con­vencido de que a filologia possa ser considerada como uma ciência exata, mas menciono o fato como testemunho da sua capacida­de intelectual geral. E, para não julgar de antemão qualquer assunto, não direi, como o faria numa conversa ordinária, que ele foi sempre um homem com o que podia chamar-se uma tendên­cia imaginativa.

O seu nome original era Ransom.

— Não Ransom de Dialeto e Semântica ? — disse Jane.

— Sim. É esse o homem — disse MacPhee. — Bem, há cerca de seis anos, tenho todas as datas aqui num livrinho, mas isso não interessa no momento, houve o seu primeiro desaparecimento. Desapareceu por completo, nem um traço dele, durante cerca de nove meses. Pensei que o mais provável era ter-se afogado tomando banho ou alguma coisa do tipo. E então um dia o que é que ele faz se não aparecer outra vez nos seus aposentos em Cam­bridge e adoecer e baixar ao hospital durante mais três meses. E não dizia a ninguém onde tinha estado exceto, em particular, a alguns amigos.

— Então? — disse Jane com impaciência.

— Dizia — respondeu MacPhee, sacando da caixa de rapé e pondo grande ênfase na palavra dizia —, dizia que tinha estado no planeta Marte.

— Quer dizer que ele disse isso... enquanto estava doente? — Não, não. Ainda diz o mesmo. Faça disto o que puder; esta é a história dele.

— Acredito nela — disse Jane.

MacPhee escolheu uma pitada de rapé com tanto cuidado como se aqueles grãos em particular fossem diferentes de todos os outros dentro da caixa e falou antes de os levar às narinas.

— Estou a transmitir-lhe os fatos — disse ele. — Contou-nos que tinha estado em Marte, raptado pelo Prof. Weston e pelo Sr. Devine, Lord Everstone, como é agora. E, segundo o seu próprio relato, conseguira fugir deles, em Marte, há de compreender, e andara vagueando por lá, sozinho, durante um tempo. Sozinho.

— É desabitado, suponho?

— Não temos prova alguma nesse ponto, exceto a própria história dele. Está sem dúvida ciente, Sra. Studdock, que um homem em completa solidão, mesmo nesta terra, um explorador, por exemplo, entra em estados de consciência muito notáveis. Têm-se dito que um homem pode chegar a esquecer a sua própria identi­dade.

— Quer dizer que ele podia ter imaginado coisas em Marte que não estavam lá?

— Não estou fazendo comentários nenhuns — disse MacPhee. — Estou simplesmente a registrar. Pelos próprios relatos dele há toda a espécie de criaturas andando por lá; é talvez por isso que transformou a casa num tipo de jardim zoológico privado, mas isso não importa. Mas diz além disso que encontrou lá um tipo de criatura que especialmente nos interessa neste momento. Cha­mam-lhe eldils.

— Uma espécie de animal, que você dizer?

— Já alguma vez tentou definir a palavra animal, Sra. Stud­dock?

— Que me lembre, não. Quero dizer, essas coisas eram... bem, inteligentes? Eram capazes de falar?

— Sim. Podiam falar. Eram inteligentes, além disso, o que não é sempre a mesma coisa.

— Na realidade, esses eram os marcianos?

— Isso exatamente é o que eles não eram, segundo o relato de­le. Estavam em Marte mas não pertenciam lá, verdadeiramente. Diz que são criaturas que vivem no vácuo.

— Mas aí não há ar.

— Estou a contar-lhe a história dele. Diz que não respiram. Disse também que não reproduzem a sua espécie e não morrem. Mas notará que, mesmo que admitamos que o resto da sua histó­ria está correta, esta última afirmação não pode apoiar-se na observação.

— Mas como diabo são eles?

— Estou a contar-lhe como ele os descreveu.

— Quero dizer, o que eles parecem?

— Não estou exatamente preparado para responder a essa pergunta — disse MacPhee.

— São enormes? — disse Jane quase involunta­riamente. MacPhee assoou-se e continuou.

— A questão, Sra. Studdock — disse ele —, é esta; o Dr. Ran­som afirma que tem recebido visitas contínuas destas criaturas desde que regressou à Terra. Aqui está quanto ao seu primeiro de­saparecimento. Depois veio o segundo. Esteve fora durante mais de um ano e dessa vez ele disse que tinha estado no planeta Vênus, levado para lá por esses eldils.

— Vênus é também habitado por eles?

— Há de perdoar-me por eu fazer notar que esta observação mostra que não apreendeu o que lhe estou a contar. Estas criatu­ras não são, em absoluto, criaturas planetárias: Supondo que existem, tem de as imaginar flutuando lá nas profundezas do es­paço, embora possam pousar num planeta aqui ou ali, como uma ave pousando numa árvore, compreende. Existem alguns deles, diz o diretor, que estão ligados, mais ou menos permanente­mente, a um planeta em particular, mas não são nativos de lá. São efetivamente uma espécie de coisa completamente diferente. Houve uns tantos segundos de silêncio, e então Jane perguntou:

— São, suponho eu, mais ou menos amigáveis?

— Essa é, seguramente, a idéia do diretor a respeito deles, com uma exceção importante.

— Qual é ela?

— Os eldils que se têm concentrado, por muitos séculos, no nosso próprio planeta. Parece que não tivemos sorte nenhuma ao escolher o nosso conjunto particular de parasitas. E isso, Sra. Studdock, traz-me ao cerne da questão.

Jane ficou à espera. Era extraordinário como os modos de MacPhee quase neutralizavam o que de estranho havia naquilo que lhe estava a contar.

— Para resumir em poucas palavras — disse ele —, esta casa é dominada quer pelas criaturas de que estou falando, quer por uma pura ilusão. É pelos conselhos que pensa ter recebido dos el­dils que o diretor descobriu a conspiração contra a raça humana; e mais, é seguindo instruções dos eldils que está a conduzir a campanha, se se pode chamar a isso conduzir! É capaz de lhe ter ocorrido a si interrogar-se, Sra. Studdock, como pensa qual­quer homem em seu pleno juízo que vamos derrotar uma conspi­ração poderosa, sentando-se aqui a criar vegetais de Inverno e a treinar ursos de circo. É uma questão que tenho levantado em mais do que uma ocasião. A resposta é sempre a mesma: estamos à espera de ordens.

— Dos eldils? Era isso que ele queria dizer quando falou dos seus mestres?

— Duvido que seja, embora ele não use essa palavra ao falar comigo.

— Mas, Sr. MacPhee, não compreendo. Pensava que tinha dito que os do nosso planeta eram hostis.

— Essa é uma questão muito válida — disse MacPhee —, mas não é com os nossos próprios que o diretor afirma estar em comunicação. É com os seus amigos do espaço exterior. A nossa tripulação, os eldils terrestres, estão por trás da conspiração toda. Deve imaginar, Sra. Studdock, que vivemos num mundo onde a classe criminosa dos eldils estabeleceu o seu quartel-general. E o que está acontecendo agora, se as opiniões do diretor estão corretas, é que os próprios parentes respeitáveis deles estão de visita a este planeta para pôr isto tudo cor de sangue.

— Quer dizer que os outros eldils, do espaço exterior, efetiva­mente vêm cá, a esta casa?

— Isso é o que o diretor pensa.

— Mas deve saber se é verdade ou não.

— Como?

— Já os viu?

— Essa não é uma pergunta a que se responda «sim» ou «não». Já vi na minha vida uma quantidade de coisas que não estavam lá ou que não eram o que deixavam parecer ser: arco-íris, reflexos, pôr-do-sol, para não mencionar os sonhos. E há também a hetero-sugestão. Não negarei que tenho observado nesta casa uma série de fenômenos que não consegui ainda explicar completa­mente. Mas nunca ocorreram num momento em que eu tivesse um bloco de notas à mão ou quaisquer meios de verificação.

— Mas ver não é crer?

— Pode ser, para crianças ou animais — disse MacPhee.

— Mas não para pessoas sensatas, quer dizer?

— O meu tio, o Dr. Duncansom — disse MacPhee —, cujo nome lhe é talvez familiar, era moderador da assembléia-geral sobre a água, na Escócia, costumava dizer: «Mostrem-me isso na palavra de Deus.» E depois dava uma palmada na grande Bíblia em cima da mesa. Era uma maneira que ele tinha de calar as pessoas que iam ter com ele com parlapatices sobre experiências religio­sas. E, aceitando as suas premissas, tinha toda a razão. Eu não tenho as mesmas opiniões, Sra. Studdock, compreenda, mas fun­ciono segundo os mesmos princípios. Se alguma coisa quer que Andrew MacPhee acredite na sua existência, ficar-lhe-ei muito grato se ela se apresentar em plena luz do dia, com um núme­ro suficiente de testemunhas presentes, e não se tornar envergo­nhada se empunharmos uma máquina fotográfica ou um termô­metro.

MacPhee olhou para a sua caixa de rapé com ar meditativo.

— Já viu então qualquer coisa.

— Sim. Mas devemos manter o espírito aberto. Pode ter sido uma alucinação. Pode ter sido uma habilidade de ilusionista...

— Pelo diretor? — perguntou Jane, zangada.

O Sr. MacPhee recorreu uma vez mais à sua caixa de rapé.

— Espera realmente — disse Jane — que eu acredite que o diretor é esse tipo de homem? Um charlatão?

— Desejo, minha senhora — disse MacPhee —, que consiga ver a maneira de considerar o assunto sem usar constantemente termos tais como acreditar. Obviamente, ilusionismo é uma das hipóteses que qualquer investigador imparcial deve ter em conta. O fato de ser uma hipótese especialmente inadequada às emo­ções deste ou daquele investigador, não vem ao caso. A não ser, tal­vez, por ser uma razão suplementar para vincar a hipótese em questão, exatamente porque há um forte risco psicológico de a não considerar.

— Existe uma coisa chamada lealdade — disse Jane. MacPhee, que estivera cuidadosamente fechando a caixa de rapé, levantou subitamente os olhos, tendo neles uma centena de prevenções.

— Existe sim, minha senhora — disse ele. — À medida que for ficando mais velha há de aprender que é uma virtude importante demais para ser dissipada com personalidades individuais.

Nesse momento bateram à porta.

— Entre — disse MacPhee, e Camilla entrou.

— Já acabou de falar com Jane, Sr. MacPhee? — disse Camil­la. — Ela prometeu sair para pegar um ar comigo, antes do jantar.

— Ora, pegar ar, a sua avó! — disse MacPhee com um ges­to de desânimo. — Muito bem, senhoras, muito bem. Lá para fora para o jardim. Duvido que estejam fazendo alguma coisa mais diri­gida ao objetivo do lado do inimigo. Terão todo este país nas suas mãos antes de nos mexermos, neste ritmo.

— Gostaria que tivesse lido o poema que estou lendo — disse Camilla. — Pois diz numa linha exatamente o que sinto sobre esta espera: «Tolo. Tudo está numa paixão de paciência, é a regra do meu senhor.»

— De onde é isso? — perguntou Jane.

— Taliessin through Logres.

— O Sr. MacPhee se calhar não aprova nenhum poeta, salvo Burns.

— Burns! — disse MacPhee com profundo desprezo, abrindo a gaveta da mesa com grande energia e apresentando uma formi­dável resma de papéis. — Se vão para o jardim, não se demorem por minha causa, senhoras.

— Tem-lhe estado a contar? — disse Camilla, quando as duas moças desciam juntas o corredor. Movida por um tipo de impulso que era raro na sua experiência, Jane pegou na mão da ami­ga ao responder:

— Sim! — Ambas estavam plenas de paixão, mas qual, não sa­biam. Chegaram à porta da frente e quando a abriram, os seus olhos encontraram uma visita que, embora natural, no momento parecia apocalíptica.

Todo o dia o vento tinha estado a subir e as duas viram-se a olhar para um céu varrido até estar quase limpo. O ar estava in­tensamente frio, as estrelas severas e brilhantes. Lá no alto, aci­ma dos últimos farrapos das nuvens em fuga apressada, pendia a Lua em toda a sua beleza selvagem, não a Lua voluptuosa de um milhar de canções de amor sulistas, mas a caçadora, a virgem indomesticável, a ponta de lança da loucura. Se aquele satélite frio tivesse então acabado de se juntar ao nosso planeta pela pri­meira vez, dificilmente podia ter aparecido mais um ómen. A bele­za selvagem penetrou rastejando no sangue de Jane.

— Aquele Sr. MacPhee... — disse Jane enquanto subiam o caminho íngreme até o alto do jardim.

— Eu sei — disse Camilla. E depois: — Acreditou nele?

— Claro.

— Como é que o Sr. MacPhee explica a idade do diretor?

— Quer dizer, ele parecer, ou ser, tão jovem, se se lhe chama jovem?

— Sim. É assim que as pessoas que regressam das estrelas parecem. Ou, pelo menos, de Perelandra. O paraíso ainda funcio­na lá; faça-o contar-lhe o que se passou, um dia. Nunca mais ele ficará um ano ou um mês mais velho outra vez.

— Irá morrer?

— Será levado, creio. De volta ao Céu distante. Já aconteceu a uma ou duas pessoas, talvez a cerca de seis, desde o princípio do mundo.

— Camilla!

— Sim.

— Que é, que é ele?

— É um homem, minha querida. E é o chefe supremo de Logres. Esta casa, todos nós que aqui estamos, e o Sr. Bultitude e Pinch, é tudo o que ficou de Logres: todo o resto tornou-se sim­plesmente na Grã-Bretanha. Vamos lá. Vamos mesmo até ao cimo. Como venta! Pode ser que venham ter com ele, esta noite.

 

Nessa noite, Jane lavou-se sob o olhar atento do barão Corvo, a gralha, enquanto os outros se reuniam em conselho na Sala Azul.

— Bem — disse Ransom quando Grace Ironwood acabou de ler as suas notas. — Esse é o sonho, e tudo nele parece ser objetivo.

— Objetivo? — disse Dimble. — Não compreendo, senhor. Não quer dizer que eles podem realmente ter uma coisa assim?

— O que pensa, MacPhee? — disse Ransom.

— Oh, sim, é possível — disse MacPhee. — Veja que é uma experiência antiga, com cabeças de animais. Tem sido feito muitas vezes em laboratório. Corta-se a cabeça de um gato, por exemplo, e atira-se fora o corpo. Pode manter-se a cabeça funcionando duran­te um tempo, se lhe fornecer sangue à pressão correta.

— Imaginem! — disse Ivy Maggs.

— Quer dizer, mantê-la viva? — disse Dimble.

— Viva é uma palavra ambígua. Podem manter-se todas as funções. É isso a que popularmente se chamaria viva. Mas uma cabeça humana, e a consciência. Não sei o que aconteceria se fosse tentado tal.

— Já foi tentado — disse Miss Ironwood. — Um alemão ten­tou isso antes da primeira guerra. Com a cabeça de um criminoso.

— Isso é verdade? — disse MacPhee com grande interes­se. — E sabe que resultados obteve?

— Falhou. A cabeça decompôs-se simplesmente, à maneira normal.

— Já chega de tudo isto, já chega — disse Ivy Maggs, levantando-se e saindo abruptamente da sala.

— Então esta abominação asquerosa — disse o Dr. Dimble — é real e não apenas um sonho. — O rosto estava branco e a expres­são tensa. A cara da mulher, por outro lado, nada mais mostrava do que a repugnância controlada com que uma senhora da velha escola escuta algum detalhe desagradável quando se torna inevi­tável a sua menção.

— Não temos nenhuma prova de tal — disse MacPhee. — Es­tou apenas a enunciar fatos. Aquilo que a moça sonhou é possí­vel.

— E que é que se passa com essa história do turbante? — dis­se Denniston. — Essa espécie de inchaço no alto da cabeça?

— Está vendo o que podia ser — disse o diretor.

— Não tenho a certeza de estar, senhor — disse Dimble.

— Suponho que o sonho é verídico — disse MacPhee. — Pode adivinhar o que seria. Uma vez que conseguissem mantê-la viva, a primeira coisa que havia de ocorrer a rapazes como eles seria ampliar o cérebro. Tentariam todas as espécies de estimulantes. E então, pode ser que abrissem a caixa craniana e, bem, deixá-lo, por assim dizer, ferver até sair por fora. Essa é a idéia, não duvi­do. Uma hipertrofia cerebral produzida artificialmente para apoiar um poder de criação de idéias sobre-humano.

— É efetivamente provável — disse o diretor — que uma hipertrofia como essa fosse aumentar a capacidade mental?

— Esse me parece o ponto fraco — disse Miss Ironwood. — Teria pensado que era igualmente natural que produzisse lou­cura, ou absolutamente nada. Mas podia ter o efeito oposto.

Houve um silêncio cheio de reflexão.

— Então aquilo contra o qual estamos — disse Dimble —, é um cérebro criminoso aumentado para proporções sobre-humanas e experimentando um tipo de consciência que não podemos imagi­nar, mas que é presumivelmente uma consciência de sofrimento e ódio.

— Não é seguro — disse Miss Ironwood — que haja muita dor real. Alguma, devido ao pescoço, talvez, no início.

— O que nos importa muito mais imediatamente — disse Mac­Phee — é determinar que conclusões podemos extrair destas ma­nobras com a cabeça de Alcasan e que passos práticos devem ser dados pela nossa parte, sempre e simplesmente como hipóteses de trabalho, assumindo que o sonho é verídico.

— Este nos diz, de imediato, uma coisa — disse Denniston.

— Qual é ela? — perguntou MacPhee.

— Que o movimento inimigo é internacional. Para apanharem aquela cabeça têm de estar de mãos dadas com, pelo menos, uma polícia estrangeira.

MacPhee esfregou as mãos.

— Homem — disse ele —, você tem a estrutura de um pensa­dor lógico. Mas a dedução não é assim tão segura. O suborno podia explicar a coisa sem efetiva união.

— Diz-nos alguma coisa ainda mais importante a longo pra­zo — disse o diretor. — Quer dizer que, se esta técnica for real­mente bem sucedida, o pessoal de Belbury descobriu, para todos os efeitos práticos, uma forma de se tornar imortal. — Houve um mo­mento de silêncio e depois continuou: — É o começo daquilo que é realmente uma espécie nova: as cabeças escolhidas que nunca mais morrem. Chamar-lhe-ão o próximo passo na evolução. E daqui por diante, todas as criaturas a que vocês e eu chamamos humanas são meros candidatos à admissão na nova espécie, ou então seus escravos, talvez o seu alimento.

— A aparição dos homens sem corpo! — disse Dimble.

— Muito provavelmente, muito provavelmente — disse Mac­Phee, estendendo a sua caixa de rapé ao último orador. Foi recusa­da e ele tomou uma pitada com muita deliberação antes de conti­nuar. — Mas não nos serve de nada aplicar as forças de retórica para nos fazermos assustadiços ou ficar sem a cabeça em cima dos ombros por tolice, porque a outras pessoas tiraram os ombros debaixo da cabeça. Eu aposto na cabeça do diretor, e na sua, Dr. Dimble, e na minha própria, contra a deste moço, quer os miolos estejam a ferver até deitar para fora quer não. Desde que nós as usemos. Ficaria satisfeito por ouvir que medidas práticas são su­geridas do nosso lado.

Com estas palavras, bateu de leve com os nós dos dedos no joelho e fitou vivamente o diretor.

— Esta é — disse MacPhee — uma questão que me aventurei a adiantar antes.

Uma súbita transformação, como o crepitar da chama nas bra­sas, passou pelo rosto de Grace Ironwood.

— Não se pode confiar ao diretor ele apresentar o seu próprio plano na altura que entender, Sr. MacPhee? — disse ela impetuo­samente.

— Pela mesma razão, doutora — disse ele —, não pode o con­selho do diretor merecer a confiança de ouvir o seu plano?

— Que quer você, MacPhee? — perguntou Dimble.

— Sr. Diretor — disse MacPhee. — Vai-me desculpar por eu falar francamente. Os seus inimigos forneceram-se com esta cabeça. Tomaram posse de Edgestow e estão no bom caminho para suspender as leis na Inglaterra. E o senhor diz-nos que ainda não é tempo para nos pormos em marcha. Se tivesse tomado o meu conselho há seis meses, teríamos já uma organização em toda esta ilha e talvez pelo menos um partido na Câmara dos Comuns. Sei bem o que dizer, que esses não são os métodos certos. E talvez não. Mas se nem pode seguir o nosso conselho nem dar-nos nada para fazer, para que é que estamos todos aqui sentados? Já con­siderou seriamente mandar-nos embora e arrumar outros colegas com os quais o senhor possa trabalhar?

— Dissolver a companhia, você quer dizer? — disse Dimble.

— Sim, quero — disse MacPhee.

O diretor ergueu os olhos com um sorriso.

— Mas — disse ele —, não tenho qualquer poder para a dis­solver.

— Nesse caso — disse MacPhee —, tenho de perguntar que autoridade tinha para fazê-la reunir?

— Eu nunca a fiz reunir — disse o diretor. Então, depois de relancear os olhos em volta pela companhia, acrescentou: — Há aqui um estranho mal-entendido qualquer! Têm todos a impres­são de que eu os escolhi?

— Têm? — repetiu, quando nenhum deles respondeu.

— Bem — disse Dimble —, no que toca a mim próprio, percebo perfeitamente que a coisa se verificou mais ou menos inconscien­temente... acidentalmente mesmo. Não houve momento nenhum em que me pedisse para entrar para um movimento definido, ou coisa desse tipo. É por isso que sempre me considerei uma espé­cie de simpatizante. Parti do princípio que os outros estavam nu­ma situação mais regular.

— Sabe porque é que Camilla e eu estamos aqui, senhor — dis­se Denniston. — Nós, certamente que não tínhamos intenções ou previsões quanto à forma como iríamos ser empregados.

Grace Ironwood levantou os olhos com uma expressão decidi­da no rosto que se tornara bastante pálido.

— Deseja...? — começou ela. O diretor pôs-lhe a mão no braço.

— Não — disse ele —, não. Não há necessidade nenhuma para se contarem todas essas histórias.

As feições severas de MacPhee abriram-se num largo sorriso.

— Vejo onde quer chegar — disse ele. — Temos andado todos a jogar à cabra-cega, parece. Mas pedirei licença para fazer notar, Dr. Ransom, que leva as coisas um pouco longe demais. Não me lembro sequer como é que passou a ser tratado por diretor: mas a partir desse título e de uma ou duas outras indicações, uma pes­soa teria pensado que procedia mais como dirigente de uma orga­nização do que como anfitrião numa festa em sua casa.

— E sou o diretor — disse Ransom, sorrindo. — Pensam que eu reclamaria a autoridade que tenho, se a relação entre nós dependesse quer da vossa escolha quer da minha? Vocês nunca me escolheram. Eu nunca vos escolhi. Mesmo o grande Oyeresu, a quem sirvo, nunca me escolheu. Entrei nos mundos deles por aquilo que parecia, no início, um acaso; como vocês vieram até mim, como os próprios animais nesta casa vieram para ela. Vocês e eu não iniciamos ou concebemos isto: desceu sobre nós, chupou-nos para dentro dele, se quiserem. É, sem dúvida, uma organização: mas não somos nós os organizadores. E é por isso que não tenho autoridade alguma para dar a qualquer um de vocês permissão para deixar a minha casa.

Durante um certo tempo houve completo silêncio na Sala Azul, exceto pelo crepitar do lume.

— Se nada mais há para discutir — disse Grace Ironwood, por fim —, talvez seja melhor deixar o diretor descansar.

MacPhee levantou-se e sacudiu algum rapé dos joelhos defor­mados das calças, preparando assim uma nova aventura para os ratos quando saíssem da próxima vez, obedecendo ao apito do diretor.

— Não tenho idéia nenhuma — disse — de deixar esta casa se alguém desejar que eu fique. Mas no que respeita à hipótese ge­ral assente na qual o diretor parece estar a agir e à autoridade muito peculiar que ele reclama, reservo em absoluto o meu juízo. Sabe bem, Sr. Diretor, em que sentido tenho e em que sentido não tenho, completa confiança em si.

O diretor riu-se.

— Os céus não permitam — disse ele — que eu alegue saber o que se passa nas duas metades da sua cabeça, MacPhee, e mui­to menos como você as liga uma à outra. Mas sei (e isso interessa muito mais) o tipo de confiança que tenho em si. Mas não vai sentar-se? Há muito mais para dizer.

MacPhee retomou à sua cadeira; Grace Ironwood, que tinha estado sentada muito direita na sua, descontraiu-se; e o diretor falou.

— Ficamos sabendo esta noite — disse ele — senão aquilo que o real poder por detrás dos nossos inimigos está fazendo, pelo me­nos a forma sob a qual está corporizado em Belbury. Sabemos por conseguinte alguma coisa sobre um dos dois ataques que estão prestes a ser feitos contra a nossa raça. Mas estou pensando no ou­tro.

— Sim — disse Camilla, com empenho. — O outro.

— Querendo dizer o que? — perguntou MacPhee.

— Querendo dizer — disse Ransom — o que quer que seja que está debaixo do Parque de Bragdon.

— O senhor ainda está pensando nisso? — disse o homem do Ulster.

Seguiu-se um momento de silêncio.

— Não estou pensando em quase mais nada — disse o diretor. — Sabíamos já que o inimigo queria o parque. Alguns de nós imaginamos por que. Agora Jane viu, ou melhor sentiu, numa visão, de que é que eles andam à procura em Bragdon. Pode ser que seja o perigo maior dos dois. Mas o que é certo é que o maior perigo de todos é a junção das forças do inimigo. Ele está apostando tudo nisso. Quando o novo poder de Belbury se juntar com o velho poder debaixo do Parque de Bragdon, Logres, na verdade, o homem, fica­rá quase cercado. Para nós, tudo se resume em evitar essa junção. Esse é o ponto em que nós temos de estar prontos tanto para ma­tar como para morrer. Mas não podemos atacar ainda. Não pode­mos entrar em Bragdon e começar a escavar por nossa conta. Tem de haver um momento em que o encontrem. Não tenho dúvidas que nos será dito de uma maneira ou de outra. Até lá temos de es­perar.

— Eu não conhecia uma palavra dessa outra história toda— disse MacPhee.

— Penso — disse Miss Ironwood — que não devíamos usar palavras como acreditar. Penso que devíamos apenas enunciar os fatos e apresentar as implicações.

— Se vocês dois discutem muito mais — disse o diretor —, penso que os farei casar um com o outro.

 

No início o grande mistério para a companhia tinha sido o porque do inimigo querer o Parque de Bragdon. A terra era inadequada e somente através do mais dispendioso trabalho pre­liminar podia ficar em condições de suportar um edifício à escala do que se propunham fazer; e o próprio Edgestow não era um local obviamente conveniente. Através de estudo intenso, em colabora­ção com o Dr. Dimble, e a despeito do continuado ceticismo de MacPhee, o diretor chegara, por fim, a uma determinada conclu­são. Dimble e ele e os Dennistons partilhavam entre si um conhe­cimento da Grã-Bretanha do tempo do Rei Artur, que estudos ortodoxos não atingirão provavelmente durante alguns séculos. Sabiam que Edgestow estava situado no local que fora o próprio coração do antigo Logres, que a aldeia de Cure Hardy mantinha o nome de Ozana le Coeur Hardi, e que um histórico Merlin tinha uma vez trabalhado naquilo que era agora o Parque de Bragdon.

O que, exatamente, ele tinha feito lá, não sabiam; mas tinham todos, por vários caminhos, chegado longe demais para considerar a sua arte uma mera lenda e impostura, ou para a iden­tificar exatamente com aquilo a que a Renascença chamava ma­gia. Dimble tinha a opinião de que mesmo um bom crítico, unicamente pela sua sensibilidade, podia detectar a diferença entre os traços que as duas coisas tinham deixado na literatura.

— Que medida comum existe — perguntava ele — entre ocultistas cerimoniais, como Fausto, Prospero e Archimago, com os seus estudos à meia-noite, os seus livros proibidos, os seus demô­nios auxiliares ou fundamentais, e uma figura como Merlin que parece produzir os seus resultados simplesmente por ser Merlin?

E Ransom concordava. Pensava que a arte de Merlin era a últi­ma sobrevivência de qualquer coisa mais antiga e diferente, qual­quer coisa trazida para a Europa Ocidental depois da queda de Numenor e que recuava até uma era em que as relações gerais en­tre mente e matéria neste planeta tinham sido outras que não aquelas que conhecemos. Provavelmente diferia profundamente da magia da Renascença. Fora possivelmente (embora isso fosse duvidoso) menos culpada; fora certamente mais eficaz. Pois Paracelso e Agripa e o resto pouco ou nada tinham conseguido; o pró­prio Bacon, que não era inimigo da magia, exceto pelo motivo que segue, relatava que os mágicos «não procuravam atingir a gran­deza e o rigor dos trabalhos». Toda a explosão das artes proibidas da Renascença fora, segundo parecia, um método de perder a al­ma em termos singularmente desfavoráveis. Porém, a arte mais antiga fora uma proposição diferente.

Mas se o único atrativo possível de Bragdon residia na sua as­sociação com os últimos vestígios da magia Atlanta, isso dizia à companhia alguma coisa mais. Dizia-lhes que o NICE, no seu núcleo, não estava somente interessado nas modernas ou mate­rialistas formas de poder. Dizia de fato ao diretor que por trás dele havia a energia e os conhecimentos dos eldils. Era, é cla­ro, uma questão diferente se os seus membros humanos sabiam dos negros poderes que eram os reais organizadores de tudo. E a longo prazo esta questão talvez não fosse importante. Como o pró­prio Ransom dissera mais de uma vez: «Quer eles saibam quer não, as coisas que vão acontecer são as mesmas.» Não é uma questão de como o pessoal de Belbury vai atuar (os eldils negros tratarão disso) mas daquilo que vão pensar sobre as suas ações. Irão para Bragdon: resta saber se algum deles conhece a razão real por que vão para lá, ou se inventarão qualquer teoria sobre solos, ou ar, ou tensões do éter, para explicar a ida. Até certo ponto o diretor supusera que os poderes pelos quais o inimigo ansiava residiam simplesmente na localização de Brag­don, pois existe uma antiga e propagada crença de que a localiza­ção em si é importante em tais assuntos. Mas, a partir do sonho de Jane com aquele que dormia o sono final, ficara sabendo mais. Era alguma coisa muito mais definida, qualquer coisa loca­lizada debaixo do solo do Parque de Bragdon, qualquer coisa que iria ser descoberta por escavação. Era, na realidade, o corpo de Mer­lin. Aquilo que os eldils lhe tinham dito quanto à possibilidade de tal descoberta, ele o recebera, quase sem se maravilhar, enquanto ali estavam. Não era maravilha alguma para os eldils. Aos olhos deles as formas telúricas de ser, acarretando o nascimento, a morte e a decomposição, que formam para nós o quadro de refe­rência do pensamento, não eram menos maravilhosas do que os outros esquemas, sem conto, de ser que estão constantemente presentes nos seus espíritos sempre despertos. Para aquelas cria­turas de alto nível, cuja atividade constrói o que chamamos Natureza, nada é «natural». Da sua posição, as arbitrariedades essenciais (para lhes chamar assim) de cada criação real é inces­santemente visível; para elas não há assunções básicas: tudo sal­ta, com a beleza propositada de uma graça ou de uma melodia, desse momento milagroso de autolimitação em que o infinito, rejeitando uma miríade de possibilidades, arremessa para fora dele próprio a invenção positiva e escolhida. Que um corpo perma­necesse incorrupto durante quinze centenas de anos não lhes parecia estranho; conheciam mundos onde não havia corrupção alguma. Que a sua vida individual permanecesse latente nele esse tempo todo não era para eles mais estranho: tinham visto incontáveis modalidades diferentes segundo as quais alma e ma­téria podiam combinar-se ou separar-se, separar-se sem perda de influência recíproca, combinar-se sem verdadeira encarnação, fundir-se tão absolutamente que passavam a ser uma terceira coisa, ou estarem periodicamente juntas numa união tão curta, e tão momentosa, como o abraço nupcial. Não era como uma maravilha da filosofia natural, mas como uma informação em tempo de guer­ra, que traziam ao diretor as suas novidades. Merlin não tinha morrido. A sua vida tinha sido escondida, desviada, deslocada para fora do nosso tempo unidimensional, durante quinze sé­culos. Mas sob certas condições, voltaria ao seu corpo.

Não lhe tinham contado isto senão recentemente, porque não o sabiam antes. Uma das maiores dificuldades de Ransom ao discutir com MacPhee (que professava solidamente não acreditar na própria existência dos eldils) era que MacPhee fazia a suposição comum mas curiosa de que, se existirem criaturas mais sábias do que o homem, elas devem ser por conseguinte oniscientes e onipotentes. Em vão Ransom se esforçava por explicar a verdade. Sem dúvida os grandes seres que agora tantas vezes vinham ter com ele tinham poder suficiente para varrer Belbury da face da Inglaterra e a Inglaterra da face do globo; a talvez, também, para obliterar a existência do próprio globo. Mas nenhum poder desse tipo seria usado. Nem eles tinham qualquer visão direta para o inte­rior da mente dos homens. Fora num local diferente, e aproximan­do-se do seu conhecimento do outro lado, que eles tinham desco­berto o estado de Merlin; não a partir da inspeção da coisa que dormia debaixo do Parque de Bragdon, mas por observar uma cer­ta configuração única no local onde se mantêm essas coisas que foram retiradas da estrada principal do tempo, atrás das sebes invisíveis, dentro de campos que não são imagináveis. Nem todos os tempos que estão fora do presente são por isso passado ou fu­turo.

Era isso que mantinha o diretor desperto, com o sobrolho franzido, às primeiras e frias horas daquela manhã quando os ou­tros o tinham deixado. Não havia dúvida no seu espírito que o ini­migo tinha comprado Bragdon para encontrar Merlin: e se o encontrassem haviam de acordá-lo. O velho druida inevita­velmente tomaria o seu lugar ao lado dos novos intrigantes; o que poderia evitar que ele o fizesse? Efetuar-se-ia uma junção entre duas espécies de poder que, entre ambas, iriam determinar o destino do nosso planeta. Sem dúvida que houvera durante séculos a vontade dos maléficos eldils. As ciências físicas, boas e inocentes em si próprias, tinham já, mesmo no tempo de Ransom, começado a ser pervertidas, tinham sido sutilmente mano­bradas numa certa direção. Desânimo em relação à verdade objetiva fora se insinuando de forma crescente nos cientistas; indiferença perante ela e a concentração no simples poder, fora o resultado. Balelas a respeito do impulso vital e namoro com o panpsiquismo faziam o seu lance para a restauração do Anima Mundi, dos mágicos. Sonhos de um longínquo destino futuro do homem arrancavam da sua sepultura, pouco profunda e inquieta, o velho sonho do homem como Deus. As próprias experiências do teatro anatômico e do laboratório patológico estavam alimentando a convicção de que o sufocar de todas as repugnâncias arraigadas era o primeiro elemento essencial para o progresso. E agora, tudo is­to tinha atingido a fase em que os seus maléficos conspiradores pensavam que podiam com segurança começar a torcer aquela, de forma a que fosse encontrar a outra e anterior espécie de poder. Na verdade, estavam escolhendo o primeiro momento em que isto poderia ser feito. Não poderia ter sido feito com os cientistas do sé­culo XIX. O seu firme materialismo objetivo teria excluído a idéia do seu espírito; e mesmo se pudessem ser levados a acreditar ne­la, a sua moralidade hereditária tê-los-ia impedido de mexer na porcaria. MacPhee era um sobrevivente dessa tradição. Agora era diferente. Pode ser que poucas ou nenhumas das pessoas em Bel­bury soubessem o que estava acontecendo; mas uma vez que acon­tecesse, seriam como palha no fogo. O que é que eles poderiam achar incrível, se não acreditavam num universo racio­nal? O que é que eles poderiam considerar obsceno demais, já que sustentavam que toda a moralidade era um mero subproduto subjetivo das condições físicas e econômicas dos homens? O tem­po estava maduro. Do ponto de vista que é aceito no Inferno, toda a his­tória de nossa Terra conduziria a este momento. Havia ago­ra por fim uma possibilidade real para o homem caído de sacudir aquela limitação dos seus poderes que a misericórdia lhe tinha imposto como proteção contra os resultados totais da sua queda. Se isto tivesse êxito, o Inferno seria finalmente encarnado. Os homens maus, ainda no seu corpo, ainda rastejando neste peque­no globo, entrariam nesse estado em que, até então, apenas tinham entrado depois da morte, teriam a duração e o poder dos espíritos maus. A Natureza, sobre todo o globo da Terra, seria sua escrava, e não podia ser previsto certamente nenhum fim para es­se domínio, antes do fim do próprio tempo.



 

* Local onde ficam os porcos.

* Relativo a convento.

[1]Em latim, no texto, significa: «Soavam os golpes cruéis, também o ruído do ferro e do arrastar das correntes». (N. do T.)

[2]Quisling era um norueguês pró-nazi, cujo nome ficou sinônimo de traidor, colaboracionista com o inimigo. (N. do T.)

[3]Em latim, no original, significa: «Caminhai juntos para a meta». (N. do T.)

* Pessoa ou coisa exageradamente grande, disforme ou assustadora. (Nota da revisora)

 

                                                                                            C. S. Lewis

 

 

                      

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