Biblio "SEBO"
Este romance situa-se na ilha de França, hoje ilha Maurícia, entre os anos de 1810 e 1815. Todos os acontecimentos históricos referidos são rigorosamente exactos. Trata-se portanto, como fundo da narrativa, da pintura fiel duma época particularmente rica e colorida da história francesa do ultramar.
A autora esforçou-se, aliás, por ressuscitar o melhor possível o modo de vida e os costumes da sociedade colonial francesa do começo do século xix nessa ilha. Ver-se-á como os seus habitantes, tendo-se tornado súbditos britânicos, pelas infelicidades e azares da guerra, souberam adaptar-se a essa situação de facto, sem por isso cortarem com as suas raízes francesas. Até ao dia de hoje, essa fidelidade dos primeiros colonos às suas origens e à sua própria personalidade marca ainda a fisionomia da ilha, apesar de todas as alterações étnicas e políticas ocorridas desde então.
"A noite está a chegar, menina Louise. Agora temos de ir para casa."
A jovem sentada na relva, e que brincava com uma tartaruga, nem sequer levantou a cabeça para responder ao escravo:
"Tu aborreces-me, Joseph. Aborreces-me sempre!
- Esse bicho vai sujar o seu lindo vestido. Se a nénne Rosalie a visse...
- Felizmente que ela não está aqui."
Nesse instante, ouviu-se o canhão. Um único tiro que encheu todo o espaço, rolando dum horizonte ao outro, em ecos intermináveis. A jovem tinha-se levantado num pulo. "Pronto", exclamou ela, "estão a bater-se!"
Corria já pela álea, segurando com as duas mãos a saia de musselina. Havia três dias que as fragatas francesas e inglesas estavam em frente umas das outras na baía; as coisas tinham mesmo de acabar assim, finalmente.
"Aonde vai, menina?", gritou o escravo. "Meu Bom Senhor S. Luís, não é possível que corra para lá, para a guerra! Se o seu padrinho soubesse isso é Criada consagrada ao serviço das crianças.
a Sr. a D. Elisa! Pare, ou eu vou chamá-los. Hei-de dizer-lhes... Hei-de dizer-lhes... Hei-de dizer tudo!"
A silhueta branca contornou a esquina da casa e desapareceu. O escravo cirandava ao redor, com gestos desesperados, sem abandonar o local, não sabendo se devia tentar agarrar a rapariga ou voltar para casa a prevenir o patrão, o Sr. De Bonnière.
Encurtando caminho, entre os maciços de palmeiras e de bambus, Louise atravessara já o pequeno parque da plantação. Sem abrandar a marcha, meteu-se por uma pista de erva e de terra pedregosa que seguia ao longo dos campos de mandioca.
O terreno acidentado escondia o mar. Para o descobrir, era necessário chegar ao cimo da última colina. Quando a jovem o conseguiu, a grandiosidade do espectáculo e a fadiga enfraqueceram-lhe de repente o impulso. Parou. Massas negras de fumo cobriam a imensa baía do Grand Port, desde a Pointe du Diable, a leste, até aos Deux Cocos, a sul. Acima das espessas volutas apontavam mastros e por vezes, numa aberta, avistavam-se os flancos dum navio com as goelas brilhantes dos canhões, ou um pedaço da laguna, faiscante e imóvel como vidro.
Era o pôr do Sol. Sobre o horizonte, muito para lá dos recifes e do alto mar vazio, o vento impelia formas estranhas, cabeludas, coroadas de chamas. O olhar deslumbrado da rapariga errava sobre essa imensidade, indo da tempestade negra ao longo da costa até ao esplendor solitário do céu, ao longe.
A voz do escravo, por detrás dela, fê-la sobressaltar:
"Faz favor de voltar para casa imediatamente, menina! Bem vê o que se está a passar. Eles estão a matar-se, acolá... E, se os Ingleses desembarcarem, vão cortar a cabeça a toda a gente aqui.
- Cala-te lá! São os nossos marinheiros que hão-de ganhar. E depois, se tens medo, vai-te embora, volta para casa."
Ela recomeçara a correr. A margem estava negra de gente e de toda a parte, surgindo das ruelas do porto, descendo das colinas em redor, novos curiosos vinham engrossar a multidão. Colonos ou escravos, ninguém teria querido perder o espectáculo. O estrondo dos canhões, que os ecos das colinas reproduziam, cobria os seus apelos e os seus gritos. Mas por vezes, numa súbita acalmia, as vozes passavam, vibrantes de excitação e de medo:
"Que fazem os nossos? Estão a vê-los? Acolá é a Bellone e ao lado a Minerve... Os Ingleses adiantaram-se... Mas Bouvet foi o primeiro a atirar... Ah! grande desgraça! Sr. S. Luís, piedade para nós!..."
Já a noite varrera o breve crepúsculo tropical. Diante do horizonte desaparecido, a baía iluminava-se agora com o fogo dos canhões e com o clarão dos incêndios que se ateavam sobre as cobertas, se extinguiam, para voltarem a atear-se quase a seguir. Assim, o combate, que ocupava agora toda a cena, parecia mais próximo e mais terrível ainda.
O combate naval a que aqui se faz alusão é o do Grand Port. O seu nome figura no arco de triunfo da Étoile.
Louise, esgueirando-se por entre a multidão, conseguira perder o escravo; deteve-se um momento para retomar o fôlego. O coração batia-lhe desordenadamente.
O barulho do canhoneio começava a enfraquecer. Mas as vozes ansiosas, que respondiam umas às outras ao longo das praias, tomavam por isso maior amplitude.
"As fragatas francesas estão à deriva. As balas cortaram os cabos.
-Olhem para a Bellone! Ah! meu Deus! vejam bem... vai chocar contra a Minerve!
- Todos os nossos navios se encostam uns aos outros... Já não poderão manobrar."
De repente, o terror envolveu a rapariga, como um turbilhão vindo daquele mar coberto de ruído e de furor. Se a sorte virasse para o pior, então os diabos vermelhos desembarcariam. Amanhã, nessa mesma noite, podiam estar ali...
Virando as costas ao mar, pôs-se a correr para a sombra das casuarinas, como se ali houvesse um refúgio.
"Louise!"
O chamamento fizera-a estacar, enquanto uma vaga de alegria lhe afastava de vez o terror.
"És tu, Jacques?"
Do tronco duma árvore destacou-se uma silhueta. Embora fosse impossível distinguir coisa alguma na escuridão, as feições do homem que avançava para ela eram-lhe tão familiares que julgava vê-lo como em pleno dia. Os seus olhos escuros riam numa face queimada pelo sol. Em volta da testa, os cabelos negros e espessos caíam em curtas mechas. A gravata, que laçava sempre negligentemente, libertava-lhe o pescoço robusto. "Como é que estás aqui, Jacques?
- E tu, que fazes sozinha aqui? Há um momento que te observo. A todo o instante esperava ver surgir o teu padrinho ou o teu velho negro.
- Perdi-o na multidão.
- Bravo!"
O rosto do jovem inclinava-se para o dela. No entanto, não a beijou. Havia à volta deles muita gente que podia vê-los.
Ela aproximou-se mais, insensivelmente. A presença dele envolvia-a de calor e consolação. Era sempre assim quando Jacques aparecia. As incertezas, os temores, os preconceitos do mundo em que vivia, eram logo substituídos por uma realidade robusta, um pouco cínica, em que os próprios objectos se modificavam de repente para tomarem formas precisas, alegres e firmes.
A mão do jovem tocou-lhe ao de leve nas faces, demorou-se um instante nos seus lábios. Ela beijou-o furtivamente, de fugida.
"Atenção, meu coraçãozinho! -murmurou ele. - Por muito que todas estas santas criaturas brinquem à guerra, haverá sempre um par de olhos para nos surpreenderem.
- Como vieste até ao Grand Port?
- Com a minha escuna, evidentemente. Quando os Ingleses tomaram o forte da Passe, vi-me como um rato na armadilha. Agora, está ancorada ao fundo da baía, o mais longe possível dos combates, mas eu não estou tranquilo.
- Porquê?"
Ele pôs-se a rir:
"A atirarem uns aos outros como estão a fazer, vão dar cabo da minha Créole.
-Oh! Jacques!", disse ela em tom de censura.
Num tal momento, não havia muito mais a recear do que a destruição duma escuna? Por brincadeira ou porque pensava realmente assim, Jacques nunca exprimia as opiniões que eram as dos outros colonos. Essa originalidade, pondo-o pouco a pouco à margem da boa sociedade da colónia, não deixara de lhe granjear um inegável prestígio, sobretudo aos olhos das mulheres. Mas no decurso daqueles últimos meses os acontecimentos tinham-Lhe trazido, para além disso, outros títulos de glória. Excelente marinheiro, com efeito, ele chegava a iludir o bloqueio inglês para levar a sua escuna até às ilhas vizinhas, a Madagáscar e mesmo à costa de África, para de lá trazer víveres.
"Tu não vens muitas vezes ao Sul... -recomeçou a jovem.
- É verdade. Mas, como trouxera um belo carregamento de gado e de peixe salgado para PortLouis, a administração, muito boazinha, quis fazer-vos aproveitar também disso e expediu-me para aqui com metade dos meus animais. Não podia escolher melhor ocasião! Cheguei há uma semana.
-Uma semana! E não me preveniste.
- Subi muitas vezes até à plantação. E ontem, ainda, vi toda a família Bonnière, de longe. Tomavam o fresco debaixo da varanda. Os avós, a filha Elisa e até essa amorosa Delphine. Toda a gente, menos tu.
- Devias ter mandado Hippolyte. Porque não o mandaste?
- Porque ele não está comigo. Tive de o deixar em Port-Louis. Aquele imbecil apanhou a febre. Vem. Não fiquemos aqui."
Os jovens puseram-se a caminhar à sombra das árvores, seguindo a costa.
"Que nos acontecerá - disse a voz inquieta de Louise -se os Ingleses levaram a melhor e desembarcarem?
- Se os Ingleses desembarcarem, não creio que façam grande mal à população, nem mesmo à virtude das nossas senhoras."
Como podia ele falar daquela maneira, dizer aquelas coisas escandalosas, que a sua voz quente e trocista tornava tranquilizadoras mesmo assim?
Na baía, os tiros de canhão continuavam a espaçar-se e acabaram por cessar completamente. Então, durante um momento, nada mais veio perturbar a paz da noite tropical.
"A Sr. a Bramond com a família", disse Jacques entre dentes.
Um grupo de mulheres estavam sentadas à beira da água em almofadas e cobertores.
"Elas reconheceram-me - murmurou Louise.
- Estiveram de visita ontem ao meu padrinho.
- Não te preocupes. São amigas, não falarão. " As senhoras faziam-lhes sinal para se aproximarem.
"Vem", disse ele, "já não vale a pena escondermo-nos."
Ela seguiu-o de má vontade.
"Conhece a minha prima, creio - disse Jacques inclinando-se diante da Sra. Bramond.
- Mas certamente, tivemos o prazer de conhecer a menina Louise em casa do padrinho. Ai, querida menina, a sua estada no Grand Port corre muito desagradavelmente, não está com sorte.
- Que terrível recordação vai levar da nossa linda costa!", reforçou a irmã.
A cortesia nunca perdia os seus direitos na ilha de França e a jovem não se espantava de ouvir aquelas senhoras afáveis trocarem as suas opiniões diante da baía avermelhada pelos incêndios.
O parti pris evidente que mostravam em ignorar o escândalo da sua presença ali, na companhia dum rapaz, parecia-lhe muito mais extraordinário. Que Jacques fosse seu primo não melhorava as coisas, antes pelo contrário. Na estreita sociedade da ilha, todos se conheciam. As genealogias eram conhecidas de toda a gente e os conflitos familiares eram logo pasto das curiosidades. Assim, ninguém ignorava o ódio que separava os dois ramos da família Montaller, a de Charles, o pai de Louise, e a do velho Victor, o pai de Jacques.
"Quer sentar-se um momento junto de nós, minha querida filha?", continuou a Sra. Bramond. Ao mesmo tempo, afastava-se para lhe dar lugar entre ela própria e, sua filha Virginie.
Louise aceitou o convite sem prazer. Ao tomá-la sob a sua protecção, a Sra. Bramond procurava evidentemente fazer voltar à ordem uma situação comprometedora. Era uma boa mulher, sem dúvida. Um pouco solícita de mais, muito embora, a meterse nos assuntos dos outros.
"Que pensa dos acontecimentos? - prosseguiu a Sra. Bramond dirigindo-se ao jovem. -Meu Deus, como é que tudo isto vai acabar? Parece que o Sr. Duperré foi ferido e teve de passar o comando ao Sr. Bouvet.
- Bouvet é um grande marinheiro! " O jovem inclinava-se de novo:
"Vou ter de as deixar, minhas senhoras. Seria abusar muito da vossa bondade pedir-vos o favor de acompanharem a minha prima? Ela perdeu o seu escravo na multidão.
- Certamente, certamente... Espero que os nossos amigos Bonnière não se vão inquietar. A minha querida Elisa achará sem dúvida absolutamente excêntrico que nos tenhamos atrasado com estas jovens. Mas com o que se passa, como ficar em casa e dormir?
- Eu penso, pelo contrário, que a Sra. De Bonnière ficará reconhecida por tomar conta de Louise."
A jovem olhava com desespero para a silhueta que se afastava na sombra. Não tinham combinado qualquer encontro.
Quem sabia, agora, quando tornariam a ver-se?
Louise dormia. Mas a animação da casa, que despertava, atingia-a até no fundo do seu sono. Vozes discutiam com veemência e uma delas gritou: "Deus o ouça, senhor, isso seria a salvação."
Abriu os olhos. O quarto estava invadido por uma luz leitosa, doce, ainda indecisa. O alvorecer. O assobio estridente dum melro, que vinha do jardim, misturava-se com o rumor das vozes. Reconheceu a do seu padrinho. E o homem que lhe dava réplica era sem dúvida o vizinho, o Sr. Delorme.
Sem perder tempo a chamar a criada, Louise afastou o mosquiteiro e começou a vestir-se à pressa. Quando surgiu sob a varanda, os dois homens estavam tão absorvidos pela conversa que nem sequer deram pela sua presença.
"Ah! meu bom amigo - gritava o Sr. Delorme - quando a bandeira francesa flutuou na Nereid, que gritos de entusiasmo em toda a margem, que delírio!... Perdeu um espectáculo histórico.
- Então nós ganhámos?", gritou Louise.
Os homens voltaram-se para a jovem. Ela viu o rosto do padrinho, branco de emoção, e o do Sr. Delorme avermelhado pela excitação e pela fadiga da longa corrida que o levara até ali.
"Os nossos marinheiros acabam de se apoderar do navio-almirante. Venho do porto..."
A rapariga agarrou no braço do Sr. De Bonnière.
"Vamos também lá! -gritou ela. -Vamos ver o que se passa.
- Espera, minha filha, espera um pouco..."
O velho debatia-se fracamente, estonteado pelo turbilhão de acontecimentos que vinha abalar a calma da sua existência.
"Há dezenas de feridos, tanto franceses como inimigos", continuava o Sr. Delorme. "As chalupas desembarcam mais sem parar. As autoridades não têm mãos a medir. Pede-se a todos os colonos que possam que os recebam. Eu já tenho dois marinheiros no meu salão e, meu caro amigo, creio bem que também lhos tragam... Ora olhe!"
Um grupo de escravos avançavam pela álea, trazendo uma maca. O governador do Grand Port, o próprio Sr. De Cherval, acompanhava-os. Junto à escada, fez sinal aos negros para pararem e subiu sozinho os degraus. A poucos passos do Sr. De Bonnière descobriu-se.
"Caro senhor, está ao corrente da situação trágica dos nossos feridos. Permiti-me trazer-lhe este. " Baixou a voz: "Um jovem oficial britânico, o tenente Bertie, da Nereid. Espero que tenha a generosidade de o receber e que a senhora..."
O troar dos canhões encheu de repente o espaço, cobrindo a voz do governador.
"Como? -balbuciou o Sr. De Bonnière. -Ainda se estão a bater?
-O nosso primeiro êxito não pôs termo ao combate. E os nossos homens não chegaram ao fim das suas provações. Para os feridos, pelo menos, de qualquer lado que venham, chegou a hora das tréguas. Posso confiar-lhe este jovem?"
Quase que não era uma pergunta. Nenhum colono da ilha teria pensado em se subtrair às exigências humanitárias e decorosas que constituíam o seu código de honra. Mesmo naquele instante, o Sr. De Bonnière imediatamente se curvou a ele.
"Mas com certeza. Trataremos esse infeliz o melhor que pudermos."
O velho fidalgo enxugava o rosto, em que a emoção fazia perlar o suor, enquanto do lenço de cambraia e de renda se escapava um suave perfume a limão que ia flutuar por entre os vasos de fetos, até à extremidade da varanda.
O Sr. De Cherval lançou uma ordem aos portadores, que retomaram a marcha. "Um inglês!", pensava Louise com cólera. "Na verdade, o padrinho não será demasiado bom? " Virou a cabeça, de maneira que não viu o jovem no momento em que ele transpunha a soleira da porta, de olhos fechados, com as mãos crispadas no colarinho desfeito e manchado de sangue.
"Minha filha", disse o Sr. De Bonnière, "vai prevenir Elisa. Mas sem acordar a minha pobre mulher. Ela estava tão fatigada quando se deitou esta noite! As emoções não fazem nada bem ao seu velho coração..."
Louise desapareceu na casa e correu ao quarto da jovem Sr. a De Bonnière, a nora do seu padrinho. Bateu durante um bocado, antes de ouvir responder finalmente do interior.
As cortinas do compartimento estavam completamente corridas. Um cheiro a fechado, a madeira velha, misturado com vagos perfumes femininos, envolvia as trevas. Elisa e sua filha Delphine estavam deitadas em camas iguais. Levantaram-se ao verem aparecer Louise.
"Louise! - gritou esta - o seu sogro chama-a! Trazem-nos um ferido inglês.
-Como? -disse uma voz em que o temor dissipava pouco a pouco as últimas brumas do sono. - O papá já se levantou? Que se passa? Um inglês aqui. Oh! valha-nos Deus!
-Mas está ferido - repetiu Louise com condescendência. - Não pode ser muito perigoso."
Delphine tinha-se levantado e corria já para o toilette.
"Despachemo-nos, mamã. Se ele está ferido, temos de o tratar. Aonde vais tu, Louise?", acrecentou ela ao ver a amiga retirar-se. "Espera por mim!"
A jovem partira já à pressa, atravessando uns após outros os diferentes compartimentos da casa, que, segundo a moda da região, comunicavam todos entre si, sem separações nos corredores. Atingiu por fim uma segunda varandazinha, que corria desta vez na fachada traseira. O canhão continuava a troar. Louise escapuliu-se para o jardim. Ninguém a vira partir. O caminho estava livre. Podia voltar à margem e tentar encontrar Jacques. Durante um bom bocado ainda, a família do padrinho estaria ocupada com o ferido. Abrigar um inimigo debaixo do nosso tecto, que situação absurda! Ela esperava bem nunca mais ter de o encontrar. Havia bastantes mulheres ali para se ocuparem dele e o bom coração de Delphine não pediria mais. Era o seu papel, aliás. Não era ela a filha da casa, enquanto Louise não era senão uma convidada de passagem?
Mas, no dia seguinte, essa esperança foi desiludida. Quando Louise saía do quarto, depois do almoço, à hora em que a sesta esvaziava normalmente a casa e a deixava mergulhada na calma, teve a surpresa de encontrar a velha Sra. De Bonnière, rodeada das criadas.
"Minha querida, o nosso doente acaba de chamar e a nénne Félicie está a preparar-lhe uma chávena de caldo. Queres levar-lha?"
Elisa e Delphine deviam estar a dormir ainda, o que lhe valia essa maçada.
"Félicie não poderia ir lá sem mim?
-Oh! minha filha!..."
O tom exprimia tanta surpresa e censura velada que Louise ficou confusa. A amabilidade para com um hóspede exige maneiras mais afáveis. Que no mesmo momento, na baía, franceses e ingleses estivessem a matar-se uns aos outros não entrava em linha de conta. Era outro aspecto das coisas.
"Com certeza, eu vou", balbuciou ela.
Na boca da Sra. De Bonnière, levar uma chávena não era, aliás, senão uma fórmula de civismo. Bem entendido, a rapariga não devia encarregar-se disso. Era a escrava que a levava numa bandeja ornamentada com rendas. Louise precedia-a, seguindo por sua vez uma pretinha que abria as portas.
O doente estava apoiado em almofadas que o mantinham quase sentado. Apareceu a Louise completamente diferente da forma inerte, vagamente divisada na véspera. Os negros tinham-no levado e vestido com uma das camisas do Sr. De Bonnière. As feridas estavam ligadas e o médico metera em talas a perna partida. Ele pousava na rapariga um olhar brilhante de febre e de curiosidade. Ela esforçou-se por sorrir.
"Trago-lhe um caldo - disse.
-Muito obrigado. Estou desolado por a incomodar, menina. Que perturbação estou a causar aqui a toda a gente!"
Ela ouvia-o com surpresa.
"Fala muito bem a nossa língua.
- A minha mãe é francesa."
Aquele inimigo tinha uma mãe francesa! Ela examinava-o com desconfiança, não sabendo se essa particularidade devia ser tomada a seu favor ou, pelo contrário, se agravava o seu caso.
Ele observava-a também, sorrindo com um ar divertido, como se lhe seguisse no rosto o curso das suas reflexões. Ela deu por isso e reprimiu um movimento de cólera. Como ousava ele sair assim do seu papel, que deveria ser todo de reconhecimento e de humildade?
"Félicie!", gritou ela. "Traz a bandeja e dá a beber."
O ferido esforçou-se por se endireitar e fez uma careta de dor.
"Quer que as criadas o ajudem?
- Não, obrigado. Está bem assim. Veja, consegui."
Louise perguntava a si mesma se a sua missão estava cumprida presentemente e se podia retirar-se. No entanto, hesitava em bater já em retirada. Sem dúvida que deveria demorar-se um momento ainda para se informar da saúde do doente ou arranjar qualquer outro assunto de conversa banal. Mas as ideias abandonavam-na e sentia-se curiosamente embaraçada.
Embora se estivesse no mês de Agosto, em pleno Inverno tropical, o compartimento escaldava. Tinham-se entretanto fechado as cortinas, mas os raios de Sol, que batiam directamente na fachada, saltavam dos menores interstícios. Nos seus feixes de impalpável poeira, grandes moscas iluminavam-se à passagem, antes de avançarem, zumbindo, para as trevas.
O jovem deixara-se cair de novo sobre as almofadas. O seu olhar perturbava-se. Através desses jogos de sombras e de luzes, que lhe pareciam os reflexos da sua própria fadiga, examinava a rapariga, de pé contra a cama, hostil e assustada, que só esperava um pretexto para fugir. E, de repente, uma vaga de doçura inundou-lhe a alma. A encantadora pequena madona de olhos azuis, de cabelos negros!... Era então preciso que ele viesse até àquela ilha, nos confins do mundo, para a encontrar?
"Você é a segunda filha desta amável família que me alberga e irmã da menina Delphine?"
Ela estremeceu. O seu pensamento errava longe dali, na baía devastada pela guerra. Não tornara a ver Jacques na véspera. Ele voltara sem dúvida para a Créole. De bordo, devia actualmente observar o combate, tal como o observava a multidão ao longo da margem. Ela própria lá estaria se as boas maneiras da idosa senhora não a tivessem mandado ali perder o seu tempo.
"Não", respondeu ela com irritação, "estou apenas de visita em casa do meu padrinho, o Sr. De Bonnière. A minha família habita na capital, em Port-Louis, e eu tenho de regressar em breve. De facto, já lá devia estar. Mas o colono com quem viajo adiou a partida por causa dos acontecimentos. Enfim, em breve virá a vitória e então..."
Calou-se de repente. Não devia ter falado daquela maneira àquele doente, cujo rosto branco luzia de suor no meio do voo das moscas. Ele fechara os olhos, parecia extenuado. Talvez não tivesse ouvido? Mas, após um instante, ele disse em voz baixa e calma:
"Sim, nós vamos certamente perder esta batalha. Os acontecimentos viraram-se contra nós, graças à coragem dos vossos marinheiros, devemos dizê-lo. Agora, estamos presos nesta baía, donde os ventos equatoriais nos impedirão de sair. E quando a divisão Hamelin, que o vosso governador Decaen conseguiu certamente alertar, chegar do norte, será o fim.
- É o céu que vos castiga!", disse ela asperamente, esquecendo uma vez mais as exigências da cortesia.
Ele abriu os olhos e lançou-lhe um olhar de malícia, cuja vivacidade a surpreendeu.
"Eu não acredito nesse género de maldição. De qualquer maneira, não perdem pela demora. Nós voltaremos."
Era verdade, sem dúvida. A guerra renascia e não acabava, havia anos. Os seus ecos prolongavam-se através de todos os relatos dos colonos, embalando as gerações umas após outras. Ela lá estava no tempo de Suffren e de Surcouf, de Malroux, o corsário cavaleiro, e do manhoso Cousinerie. Os grandes sopros da Revolução tinham passado, sacudindo os coqueiros e as mimosas, o governador do imperador substituíra o do rei, mas sempre, esfomeados como lobos, os navios ingleses continuavam a girar em volta da ilha, espreitando a presa.
A rapariga recuara até à porta. No momento de a transpor, lançou, num tom de cólera que não se coadunava com as palavras que teria querido amáveis:
"Descanse, Sr. Oficial, a criada virá dentro de momentos ver se precisa de alguma coisa."
Ele viu-lhe o vestido branco ondular na luz sedosa e, de novo, uma doce vaga de calor lhe passou no coração. Como estava demasiado esgotado para se deter nessa impressão fugaz, tornou a fechar os olhos e abandonou-se à febre.
Louise atravessava uma vez mais o dédalo dos compartimentos escuros no centro da casa. Quando se encontrou de novo sob a varanda, o brilho do jardim surpreendeu-a. Uma pequena brisa fazia vibrar os tufos de- bambus, das suas bases espessas até aos delgados cimos, sempre em alerta. Os maciços de canas-da-índia e de chagas brilhavam sobre os relvados. Lá no alto, acima dos cimos das árvores, volteavam aves marinhas.
Joseph estava sentado junto da escada. Ao ouvir o passo da jovem, levantou a cabeça e observou-a com desconfiança. Que ia ela inventar mais? Mas era demasiado tarde agora para tentar uma escapadela. Aliás, Delphine acabava por sua vez de surgir da casa e avançava para a amiga.
"Onde estavas tu? -disse ela. -Dir-se-ia que te escondes e eu passo o tempo a procurar-te.
- Estava ao pé do oficial. A tua avó insistiu para que eu lhe levasse uma chávena de caldo.
- Ah! o Sr. Bertie... Ele é muito bem-educado, não é? E homem esbelto..."
Louise lançou um olhar desconfiado à sua companheira, que não deu por isso. Sonhava, encostada à balaustrada.
"Em breve", replicou Louise, "os Ingleses terão acabado de perder esta batalha e nós poderemos partir para Port-Louis."
Aquela perspectiva despertou a atenção de Delphine, que sorriu. Era uma graciosa rapariga, um pouco mais baixa do que Louise, embora fosse mais velha. Caracóis fulvos, quase ruivos, emolduravam-lhe o rosto regular e doce, onde um pequeno nariz punha uma nota de alegria. Os olhos iluminaram-se-lhe.
"Oh! Bem o espero", disse ela. "Tenho sempre medo que, à força de adiar a partida, a mamã mude de ideias."
Viúva havia muito, Elisa de Bonnière concentrara toda a sua ternura nessa filha única, de quem nunca se separara. As duas irmãs da Sra. De Bonnière, as senhoras Bergre, levavam em Port-Louis uma vida tão fútil, alegre e mundana como a da pobre Elisa era apagada, tranquila. Tendo decidido que a sobrinha, que acabava de fazer dezoito anos, não podia enterrar-se por mais tempo no seu afastado campo, tinham insistido tanto que Elisa acabara por aceitar confiar-lhes a jovem. Na capital, elas faziam todos os esforços por lhe desencantarem depressa um bom partido. Argumento supremo, ao qual nenhuma mãe de família podia resistir.
Estava portanto combinado que Delphine partiria ao mesmo tempo que Louise, cuja estada no Grand Port atingia o seu termo, aproveitando ambas a escolta dum colono vizinho. Os bosques, no centro da ilha, ainda infestados de negros fugitivos, davam à mínima deslocação um carácter de aventura.
Louise apoiou-se por sua vez à balaustrada e, enquanto o seu olhar seguia maquinalmente a ronda das aves no céu, o seu pensamento voltou ao inglês. Um homem esbelto, dissera Delphine. Talvez, para quem aprecia a magreza, os olhos pálidos, a delicadeza das feições -exactamente o oposto de Jacques, exactamente o oposto daquilo que ela apreciava. Experimentava um sentimento confuso de impressão desagradável e de mal-estar.
Porque é que ele a encarara com tanta insistência? E aquela maneira de sorrir, como se trocasse dela? Que arrogância! Não era mais do que um prisioneiro, um vencido!
Quando estivesse curado, mandá-lo-iam para qualquer lugar de detenção, onde ficaria anos, sem dúvida, tendo como única esperança a de beneficiar um dia duma troca de prisioneiros.
No centro de Port-Louis, o bairro branco, habitado pelos Europeus, constituía uma ilhota de frescura com os seus jardins plantados de palmeiras-da-índia, de canforeiras, de bambus, floridos de hibiscos e de rosas. A oeste encontrava-se o Camp Livre, povoado de pessoas de cor e de libertos, e, a leste, o Camp Malabar.
Do modesto burgo cujo embelezamento o Sr. De Ia Bourdonnais começara havia setenta e cinco anos não restava já grande coisa. A capital tornara-se, pouco a pouco, uma cidade importante e extraordinariamente animada.
As ruas, rectilíneas, que mimosas por vezes sombreavam, eram invadidas por uma multidão ruidosa onde se misturavam todas as raças e cores de pele, Nas ruas comerciais, onde a balbúrdia atingia o cúmulo, os escravos abriam com dificuldade passagem aos palanquins dos seus senhores, enquanto do alto das sacadas as mulheres crioulas trocavam em altos berros comentários e conversa fiada. Nuvens de garotos galopavam na poeira, entrando e saindo das casinhas de madeira e das barracas, que
A palavra "crioulo" designa geralmente na ilha os negros ou os mestiços.
ao longo das ruas, ecoavam de chilreadas e disputas.
Uns anos antes, o porto conhecera um período de intensa Actividade. Os veleiros de comércio provenientes da Europa, das índias, de Mascate, descarregavam os seus sacos de trigo ou de arroz, os seus tonéis de vinho, os seus carregamentos de peixe salgado, de tapetes, de peles, de sedas e de porcelanas do Oriente. Agora, já não se viam na baía senão barcos de guerra. O bloqueio inglês acabara por asfixiar quase completamente a colónia. Só alguns navios, como a escuna do capitão Jacques, conseguiam por vezes iludir a vigilância inimiga. Mas essas façanhas eram raras. Nas proximidades do porto, presentemente, a multidão não fervilhava já como outrora. A agitação que reinava ainda era apenas a dos basbaques, dos eternos ociosos e dos jogadores de malha.
O Inverno tropical estava a acabar e Novembro trouxera os primeiros ardores do Verão. Nas colinas que dominam a cidade, as altas ervas que, nessa estação, tomam tons ocre e ferrugem ondulavam ao sabor da brisa marítima. Mas ao meio-dia, quando os raios caíam na vertical e mesmo os ventos não agitavam senão uma opressiva humidade, o calor extinguia até os clamores do bazar. As tagarelices acalmavam, os mercadores, com o cesto à cabeça, retomavam o caminho das choupanas. Só ficavam os dorminhocos, cujos corpos se viam abandonados nos pátios ou nas estreitas tiras de sombra que orlavam as fachadas.
Nas suas belas moradias, também os colonos procuravam o sono. Por detrás das gelosias descidas de Tamarim, a sua casa da Rua do Rempart, a Sra. " De Montaller e sua cunhada Mathilde faziam a sesta.
Supunha-se que Louise dormia igualmente. A neném Rosalie viera tirar-lhe o vestido e vestir-lhe um roupão de nanquim antes de a pôr na cama, recomendando-lhe que não saísse dela. Mas a rapariga nunca lá ficava muito tempo.
Depois de se ter virado e tornado a virar sobre a almofada escaldante, sentou-se, afastando com ambas as mãos a espessa cabeleira negra da testa. Durante um momento, o seu olhar errou através da penumbra do compartimento, depois saltou da cama e correu a abrir a janela.
À pressa e silenciosamente, começou então a vestir-se outra vez, depois penteou os caracóis com cuidado, levantou-os e prendeu-os no alto da cabeça à cima. Enquanto com uma pequena esponja refrescava o rosto, observava no espelho colocado diante de si os olhos azul-escuros sob o arco puro das sobrancelhas, a boca um pouco espessa talvez, a duma mulher já, enquanto as faces conservavam ainda a forma redonda própria das crianças, nénne Rosalie assegurava que as meninas que não dormem ficam com a tez estragada. Não tendo notado qualquer alteração, encolheu os ombros. Aquela maluca da Rosalie!...
Deslizou para fora do quarto, passou sem ruído diante à porta do pai, com um pouco menos de precauções diante das da Sra. " De Montaller e da tia Mathilde, depois alcançou o jardim.
Charlotte, a tartaruga gigante, também desencorajada pelo calor, adormecera sob um maciço de flor-de-sapato. Com cerca de cinquenta anos e embora lhe restassem muitos ainda de vida, já adquirira uma boa dose de filosofia e de indiferença. Mas o cão Pyrame, que dormia debaixo da varanda, deu um pulo e correu para a dona, assim que a viu. Tinha apenas uns meses e esse era o seu primeiro Verão. Pulava em volta da rapariga, feliz por ter encontrado uma companhia. Ambos foram refugiar-se, ao fundo do jardim, junto do lago em miniatura.
Aí a sombra muito espessa dava uma ilusão de frescura. Uma cascata escorria entre os gólfões e os novembriers'. Junto da margem,
encontrava-se um banco de pedra meio enterrado no solo.
Aquele canto de jardim fora o lugar preferido da primeira Sra. " De Montaller, a mãe de Louise e do seu irmão mais velho, François. Para ela se havia escavado o lago, edificado a cascata e plantado sob as árvores maciços de rosas, que, desde há muito, tinham morrido, abafados pela sombria vegetação tropical.
Antes do casamento, Adeline de Montaller estivera noiva do primo de seu marido, Victor de Montaller, excelente partido aos olhos dos pais da jovem, se bem que ele fosse viúvo, pai já do pequeno Jacques, embora tivesse mais vinte anos do que Adeline e passasse por ser um urso e um feroz sovina. Mas possuía uma bela fortuna. E previa-se que ela se tornaria mais considerável ainda, tão dotado para os negócios ele parecia. A predição confirmara-se.
Armador, negociante, Montaller enriquecera fabulosamente durante a guerra dos corsários e os
Nome de ave, sem correspondência na língua portuguesa.
30 anos de abundância. Quando a sorte virara, ele resignara-se, apesar da sua repugnância, a comprar terras. Bem geridas por administradores que ele escolhia intratáveis, à sua imagem, as plantações tinham prosperado. Agora, que o abastecimento se tornava raro, o velho encontrava ainda novas fontes de receita vendendo pelo mais alto preço as suas colheitas de mandioca ou de feijão.
Embora vivesse numa austeridade que tocava a avareza, a sua fortuna suscitava muitas invejas. Acusavam-no das piores acções e alguns cochichavam mesmo que ali habia bruxedo. Senão, como explicar tanta sorte e êxito? Esquecia-se o único e distante insucesso da sua juventude: o seu rompimento com a bela Adeline.
A poucas semanas do casamento, com efeito, a jovem declarara que já não queria aquele homem tão feio e tão triste, aquele avarento, que, no entanto, a cobria de jóias, de seda da China e de rendas de Franca...
Na verdade, ela encontrara Charles de Montaller, cuja presença logo a seduzira. Charles estava talvez enamorado da rapariga, mas, mais certamente, ficara encantado por pregar uma partida àquele aborto de primo que detestava... Os dois homens tinham-se defrontado durante uma cena terrível cuja repercussão se sentira através de toda a cidade branca. Os colonos idosos lembravam-se disso ainda e evocavam-no por vezes entre si. Que vergonha, aqueles dois senhores tinham-se batido como negros no mercado!
Adeline, finalmente, casara com Charles. Victor recolhera-se numa solidão que, com os anos, se tornara cada vez mais completa. Presentemente, só saía por causa dos seus negócios, evitava as recepções e as festas que os seus compatriotas tanto apreciavam. Não tinha nenhum amigo e desprezava toda a gente, incluindo o filho, do qual se ocupara muito pouco.
A morte de Adeline, quinze anos antes, não alterara fosse o que fosse à contenda. Alguns anos mais tarde, Charles tornara a casar-se e, dessa segunda união, dois outros filhos tinham nascido.
Sentada no banquinho de Adeline, Louise evocava por vezes a lembrança da mãe. Mas era apenas um pensamento inconsciente que flutuava por um instante acima da água, entre o voo das libélulas. A jovem senhora morrera um ano após o nascimento da filha. Para Louise, não era senão um quadro, o retrato da senhora loura que tanto se parecia com François, pendurado no lugar de honra no salão, mesmo por cima da poltrona onde se sentava a segunda Sr. a De Montaller. Para toda a gente, só houvera uma dona da casa, Adeline. A outra nunca a substituíra e aliás nunca o pretendera, presença amável e dolente, acolhida sem dificuldade pelas crianças, que lhe chamavam Mamã-Doce.
Louise levantou-se. Estava na verdade muito calor ali e ela esquecera-se da sombrinha. Quando regressava a casa, avistou o mais novo dos seus irmãos, Lucien, que desembocava da álea das palmeiras-da-índia. O maroto devia ter andado a vadiar outra vez pelas ruas, em pleno calor. Se a neném Rosalie soubesse...
O rapaz também a vira. Pôs-se a gritar.
"Há uma escuna em situação difícil ao largo! Duas fragatas inglesas perseguem-na. Dizem que é a Créole."
Ela sentiu o coração parar-lhe.
"Toda a gente corre para a ponta para ver", prosseguia o rapazinho, ofegante. "Eu também quero lá ir. Vem comigo!"
Mas, nesse instante, uma voz furiosa começou a gritar ao longe.
"Menina Louise, outra vez sem chapéu, sem sombrinha! E o menino, Lucien, onde é que estava? A senhora não quer que saiam sem licença dela. Façam favor de vir imediatamente! São horas do lanche."
O grande volume da nénène Rosalie agitava-se na escada. Por detrás, viam-se sombras. A Sr. a De Montaller e a cunhada, acabada a sesta, vinham sentar-se debaixo da varanda, esperando a frescura da tarde. Louise viu também a silhueta do irmão mais velho. O pequeno Lucien dava largas ao seu ódio.
"Esta peste da Rosalie tem sempre de meter o nariz em tudo. Mas eu tenho a certeza de que o Jacques se há-de salvar. Ele é esperto de mais para esses estúpidos Ingleses. E Hippolyte é o melhor dos marinheiros!"
Voltavam lentamente em direcção à escada. A voz de Rosalie ralhou de novo.
"Para onde foi correr outra vez, menino Lucien? Devia ter vergonha! Está todo a suar, capaz de apanhar uma doença. E os cabelos nesse estado... Os sapatos cheios de pó. Olhe, minha senhora, olhe!"
A Sra. De Montaller deixou tombar a cabeça contra as costas da poltrona e gemeu: "Estas crianças!... estas crianças!..."
"Que diz a isto, Sr. François? - recomeçou a nénène, virando-se para o jovem, como último recurso.
- Lucien - disse ele - vai lavar as mãos. Leva-o, nénène."
Mas não tinha posto no seu tom a reprovação desejada. Manifestamente ultrajada por não ter podido provocar uma reacção mais enérgica, a negra arrastou o rapazinho numa atitude de veemente censura.
Louise permanecia de pé, apoiada contra a balaustrada. De repente,
ouviu-se ao longe, do lado do mar, o tiro rápido e sacudido de várias bocas de fogo. O seu coração oprimiu-se de angústia e ela pôs-se a rezar com uma precipitação desesperada, como se se tratasse de forçar a decisão do Céu: "Salvai-o, salvai-o, meu Deus, e não voltarei a estar com ele!... Salvai-o!... Nunca mais, juro-o! Não me esconderei mais para o ver, não desobedecerei mais. Entrarei para o convento. Meu Deus, não podeis
perdê-lo, não podeis fazer isso, não tendes o direito. Ah! perdão, piedade, piedade!..."
"Não parece o canhão? " observou a tia Mathilde. "Já me tinha parecido ouvi-lo, há bocado."
Duas escravas apareceram, trazendo bandejas com bolos e refrescos.
O canhão continuava a troar.
"Deve haver um recontro junto do porto - acrescentou François.
- Tomemos as cadeirinhas - exclamou Louise
- e vamos lá! Queres, François?"
Ele observou-a durante um momento indeciso, com a atenção desperta.
"Queres ir ao porto...
- Vejamos, minha filha - cortou a tia Mathilde, és doida! Sair com este calor! Vamos, senta-te, vamos lanchar. Aliás - acrescentou com enfado - todos os dias o canhão troa."
A nénène Rosalie voltava, arrastando o pequeno Lucien, com os cabelos bem colados à força de escova, as faces esfregadas até ficarem vermelhas. Atrás deles, um rapaz gordo bamboleava-se em cima das pernas curtas. Era Jérôme, o outro filho da Mamã-Doce.
"O lanche está servido!", exclamou ele alegremente. "Temos chocolate?"
E já se apoderava dum bolo.
Louise sentia o suor escorrer-lhe pela cara, em ondas, como lágrimas. O canhão calara-se presentemente. Estaria tudo acabado? Teria ele conseguido fugir? "Meu Deus! salvai-o, salvai-o!... Boa Virgem! S. Luís!..."
Lucien lançou ao irmão um olhar de desprezo.
"Estamos em guerra, e tu comes!"
Por outras palavras: "É isso que te interessa. Não és mais do que um animal, um ventre. " A família operou logo a tradução sem lhe ligar, no entanto, a menor importância. Os dois irmãos não perdiam uma ocasião de disputa. Combate desigual, de que Lucien, mordaz, venenoso e eficaz como um maravilhoso insectozinho, saía sempre vencedor, com a cumplicidade indulgente dos espectadores. Lucien, que só tinha sete anos, era o mais novo, enquanto o seu idiota de irmão tinha nove. Para a família, era uma desculpa para a sua serena injustiça. Nenhuma voz se elevava fosse quando fosse em favor do mais velho, nem mesmo a de François, tão escrupuloso, aliás.
"Tu tens um ar fatigado, Louise - disse o jovem. - Não queres comer? Bebe ao menos qualquer coisa...
- Ela deve ter adoecido - resmungou a nénène Rosalie. -Sair sem chapéu com este calor... Mas as meninas, hoje, não querem já ser razoáveis."
François encheu um copo de refresco e estendeu-o à irmã.
"Cá está já o Sr. Jonathan!", exclamou Lucien. "Naturalmente, vem adiantado. Como sempre."
Uma silhueta apressava-se ao fim da álea. "O pobre homem", pensava François, "espera chegar a tempo para que o convidem a beber uma chávena de chocolate!"
O Sr. Jonathan fora seu professor e de Louise, antes de começar com a educação dos dois últimos pequenos. Um pouco de gramática e de cálculo, algumas noções de latim, os conhecimentos do Sr. Jonathan não iam mais longe. Tinham portanto de contentar-se com isso. Era, aliás, o que faziam os pais de todos os alunos que ele formara. Para ser negociante ou plantador, caçar com amigos, frequentar a pequena sociedade da ilha, não era necessário saber mais. E aqueles que o desejavam, como François, podiam sempre cultivar o espírito perdendo o tempo com livros.
O velho chegava junto à escada. Fez um grande gesto com os dois braços.
"Acabo de assistir a um espectáculo extraordinário: uma das nossas escunas a lutar com dois navios inimigos..."
Depois, dando conta da incorrecção daquela intrusão sem preâmbulo, o colono trepou os degraus à pressa para ir cumprimentar as senhoras.
"Que se passou?", gritou Louise. "Diga lá, faz-nos morrer de impaciência."
Sentiu de novo o olhar do irmão sobre ela, surpreendido, vagamente preocupado.
"Sente-se, caro senhor", disse a tia Mathilde. "Está estafado. E vai querer uma chávena de chocolate? Rosalie, sirva o Sr. Jonathan."
O colono retomava o fôlego. Duas manchas vermelhas cobriam-lhe as maçãzinhas do rosto redondas e meigas de velho. Os cabelos em desordem espetavam-se-lhe na cabeça como uma poupa.
"Este velho chato!", disse para consigo Lucien encolerizado. "Agora, vai levar uma hora antes de acabar a história! " Para aliviar o seu nervosismo, deu um pontapé na mesa, e os copos, as pratas, os jarros de refresco, entrechocaram-se num vigoroso retinir.
"Então, Lucien!", disse François.
Louise escondia o rosto atrás do leque. Já não rezava. Esquecera Deus e os seus santos, até mesmo o bom S. Luís, patrono da ilha.
"Oh! foi um momento emocionante - recomeçou o Sr. Jonathan. -A escuna chegava do norte, avistaram-na ao largo da baía do Tombeau, com as duas fragatas atrás dela. Mas o nosso barquinho lutava como um diabrete, fazendo bordos, fugindo à perseguição. Costeava de tão perto os recifes que o julgaram perdido! Felizmente que a maré estava ainda alta. As pessoas no porto agitavam-se como loucas, gritavam insultos aos Ingleses, encorajavam os nossos marinheiros como se eles pudessem ouvi-las.
-E depois?", inquiriu Louise.
O colono tirou um lenço da algibeira e hmpou a testa. Adorava prolongar a expectativa. Era o homem mais falador e mais bisbilhoteiro da colónia e também o que estava mais ao corrente dos dramas e das anedotas. Conhecia toda a gente, frequentava toda a espécie de meios, embora sendo de origem modesta pelo lado da mãe, que se dizia mestiça, mas introduzido pelas suas funções na intimidade das famílias de brancos importantes.
"Conte lá o fim!", explodiu Lucien, e, sem que o tivesse querido dessa vez, a sua perna estendeu-se, como movida por uma mola, para ir bater de novo no pé da mesa.
O rosto do velho alegrou-se: "Pois bem, ela ganhou, a nossa valente escunazinha! Vimo-la na baía, já salva. Que marinheiros! Mas sobretudo que capitão! Homens daquela têmpera, precisávamos de muitos.
- Ah! sim", apoiou Lucien com convicção.
As proibições e maledicências familiares rodeavam para ele o primo Jacques duma auréola de glória. Sentia, além disso, uma grande afeição pelo seu marinheiro Hippolyte, que vinha muitas vezes a Tamarin, quando a Créole se encontrava no porto. Com ele percorria o bazar, ou ia passear diante da baía. Das suas viagens, o escravo trazia-lhe esculturas negras, penas, conchas. Ensinava-o a talhar nos bambus flautas e apitos.
"Que escuna era essa?", perguntou a tia Mathilde.
O colono perturbou-se, confuso de repente. Esquecera a história da zanga. "A Créole", disse por fim.
Houve um instante de embaraço, de silenciosa incerteza e de ausência.
"Na verdade, cara senhora - recomeçou o velho Jonathan virando-se para a Mamã-Doce -, este chocolate é uma maravilha.
- Vai tomar outra chávena.
- Acha... Não me atrevo. E deve ser a hora da lição."
Puxou um relógio da algibeira do colete e suspirou.
"Tem muito tempo. Aliás, com este calor, as crianças estão fatigadas. Louise queres passar-me a chávena do Sr. Jonathan. "
A rapariga não se mexeu. Não ouvira. Nos seus olhos deslumbrados, os clarões da felicidade rodopiavam pelo jardim, tocavam nas poinsettias, que se punham a flamejar, nos troncos brancos das palmeiras-da-índia, nos roussailliers, carregados de flores e de bangalis.
"Se a escuna trouxe trigo", observou a tia Mathilde, "teremos pão branco."
Lucien escapara-se para detrás da poltrona da irmã. Assoprou-lhe ao ouvido: "Amanhã, Hippolyte estará aqui. Vai dar-me uma faca, disse-me ele. " Depois, esquecendo o Sr. Jonathan e a lição comprometida, correu para a tartaruga, que, com todo o seu peso e às dentadas, devastava um canteiro de chagas.
Lucien não se enganara. Ao romper da aurora, no dia seguinte, Hippolyte esperava na escada. Foi
Nome de planta, sem correspondência em português.
a pequena Maria, a sobrinha de Rosalie, a primeira a vê-lo. Em vez de limpar os móveis da varanda, o seu trabalho a essa hora foi sentar-se ao pé do jovem negro.
"Que é que vens cá fazer tão cedo?", disse ela. "Sabes bem que a minha tia não quer que andes por aqui. Se te vê, vai gritar."
Ele nem sequer respondeu. Contentou-se com rir. Hippolyte fazia sempre o que lhe dava na gana. Quando Rosalie, ao vê-lo, começasse a esbravejar, ele dar-lhe-ia mais uma vez a sua desculpa do costume: o genro do cozinheiro era primo do seu cunhado, não fazia mal nenhum ao visitá-lo.
A má-fé desse argumento exasperava a nenens, cuja intransigência ultrapassava até a da família. A tia Mathilde não se preocupava com a presença do jovem negro, achando que as querelas dos senhores não dizem respeito aos escravos. Quanto à Sr. a De Montaller, nem sequer era certo que tivesse alguma vez notado a sua presença. Andam tantos escravos nas proximidades das casas!
Rosalie, de momento, estava ocupada a apertar o espartilho de Louise.
"Não se mexa tanto, ou não conseguirei.
- Demora muito, nénène.
- A culpa é sua. Está a remexer-se como uma enguia!"
Enfiou-lhe uma combinação, depois um vestido de musselina. Uma laçada de veludo apertava-lhe a cintura, quase sob os seios. Uma fita, cor-de-rosa também, debruava o grande decote, que Rosalie tentou subir um pouco. Ela não apreciava aquela moda nova que punha as mulheres meio nuas.
"Eu não gosto de musselina - disse Louise. - As pessoas verdadeiramente elegantes já não a usam. A Mamã-Doce devia mandar-lhe fazer vestidos de seda, como os das Sr. as Bergère, com bordados em baixo. Isso é que são toilettes elegantes.
- Essas senhoras são umas arrogantes, umas orgulhosas. Pavoneiam-se como galinhas que acabam de pôr o ovo. E, depois, são casadas. As meninas devem usar musselina.
- É ridículo. Aliás, eu também estarei em breve casada!"
Rosalie deixou escapar um cacarejo.
"Com quem? Só tem dezassseis anos. E, aliás, quem quereria uma garota má como a menina?"
Louise já nem a escutava. Pela janela aberta, acabava de avistar Hippolyte e Lucien, que chegavam ao caramanchão de chuchus. Mas, quase ao mesmo tempo que ela, alertada pela imobilidade repentina da rapariga, Rosalie viu-os também.
"Malvado negro", pôs-se ela a gritar, "cá estás tu outra vez! Vai-te embora! Vai-te já embora!..."
Hyppolyte não se movia. Com a ponta da faca, talhava um bocadinho de madeira.
"Lucien", continuava a criada, "volte imediatamente, ou será castigado."
Mas a criança, de conivência com o escravo, fingia que não ouvia e absorvia-se na contemplação do trabalho do companheiro.
"Não quer obedecer? Vamos ver isso! Vou buscá-lo e levo-o pelas orelhas. Não vai ter sobremesa. A tia Mathilde vai fechá-lo no armário. Bem pode chorar então, como no dia em que roubou as goiabas. Espere que eu chegue e vai arrepender-se..."
A nénène Rosalie partira. A sua voz extinguia-se ao longe, enquanto atravessava toda a casa para chegar à varanda e ao jardim.
Hippolyte levantara a cabeça. Ficou por um momento na expectativa, depois, rápido e leve com os seus pés descalços, saltou até à janela.
"Menina Louise", murmurou ele, "o meu patrão vem esta noite!"
Fugiu em seguida atrás de Lucien, que se safava já para as dependências. Ouvia-se de novo a voz de Rosalie, que, tendo chegado ao jardim, devia estar a dobrar a esquina da casa. Ela apareceu, balouçando e rolando como uma fragata em mar encapelado. Desconcertada por não encontrar ninguém, parou e depois deu meia volta, procurando saber onde é que os culpados se tinham metido. Finalmente, olhou para a janela de Louise para se informar.
Prevendo essa reacção, a jovem refugiara-se no fundo do quarto e ria ao ouvir praguejar a criada: "Para onde foram eles todos? Escondem-se! Jesus, não é possível! A senhora vai saber, desta vez, e talvez mesmo o senhor. Sim, mesmo o senhor. Então ninguém se vai rir mais. Com certeza!"
Mas Louise sabia que a escrava não executaria essa última ameaça. O pai não saberia de nada, como de costume, porque uma cumplicidade idêntica e aterradora existia entre senhores e escravos, culpados e inocentes. Havia anos, desde que o Sr. De Montaller, vítima duma queda, ficara enfermo, que ninguém, de moto próprio pelo menos, lhe falava e não teria tido a ousadia de se apresentar diante dele sem ter sido convocado.
Ao redor do quarto do doente, os passos abafavam-se, as vozes calavam-se. Quando os escravos tratavam do senhor ou quando este recebia as duas únicas pessoas admitidas a visitá-lo, o notário e o administrador da sua propriedade de Moka, ouviam-se ressoar através da casa gritos e invectivas. Os tabiques vibravam, as flores tremiam nos seus vasos. A família, aterrada, refugiava-se debaixo da varanda ou nos compartimentos mais afastados, para evitar a tempestade.
Quando esta se acalmava, finalmente, a vida pouco a pouco retomava o seu curso. Os risos das crianças soavam de novo, a tia Mathilde e a Mamã-Doce voltavam aos seus bordados, serviam-se bebidas, os visitantes eram recebidos com amabilidade. De novo o mundo tenebroso e terrífico do pai desaparecera por detrás da sua porta fechada.
Durante todo o dia, Louise esperou a hora da sua entrevista.
Hippolyte não tivera necessidade de a indicar. Era sempre a mesma e havia muito tempo, antes mesmo da estada da rapariga no Grand Port, que os jovens se tinham habituado a esses encontros furtivos ao fim da tarde. Terminado o lanche, as Sras. Montaller demoravam-se um momento sob a varanda. Rosalie, ocupada a preparar os quartos para a noite, não andava já nas proximidades e as crianças, fechadas com o Sr. Jonathan na sala de estudo, tinham abandonado o jardim.
Louise colocou o seu trabalho em cima duma mesa e, esforçando-se por parecer indiferente, deu uns passos em direcção à escada. A voz da tia Mathilde já a estava a chamar:
"Aonde vais tu, minha filha?
- Tomar um pouco de ar.
- Não te afastes! Dentro em pouco anoitece."
Ela esgueirou-se para detrás da casa, evitando as janelas do pai, e depois, assim que atingiu os primeiros maciços de hibiscos, pôs-se a correr.
Ao fundo do jardim cresciam sebes tufadas, esquecidas pelos jardineiros, que nunca se preocupavam em arrancar as cuscutas e os cachos de baunilha que as abafavam.
A sombra, naquele sítio, era espessa e fazia quase noite. Ela ouviu mexer no emaranhado das folhagens.
"És tu, Jacques?", chamou medrosamente.
Ele surgiu e ardorosamente agarrou-a pelo braço:
"Vem, vem por aqui."
Estavam rodeados por todos os lados pelos ramos leves, pelos longos caules frescos.
"Tive tanto medo por ti!... -balbuciou ela.
- Nunca tenhas medo por mim!"
Os seus braços rodearam-na e ela sentiu faltar-Lhe a respiração. Ele beijava-a na testa, nos lábios, no pescoço. Da sombra verde em volta deles, cheia de fortes cheiros vegetais, subia uma tempestade cujas vagas lhe martelavam as fontes, lhe refluíam até ao coração, lhe corriam nas veias. Ela perdia pé, agarravá-se a ele com todas as suas forças.
"Tu és o meu amor... para sempre. Oh! para sempre.
-Meu coraçãozinho, em breve serás minha mulher.
- O papá nunca deixará..."
A tempestade terrível e maravilhosa, de repente, acalmara.
"Tenho de voltar - disse ela de súbito, assustada. -A nénène Rosalie deve andar à minha procura.
- Não te preocupes com essa velha catatua. " Contudo, afrouxou o abraço. Ela afastou os
ramos e encontrou-se na álea. Ele seguira-a. "Vão ver-te - disse ela. -Não, já é de noite.
- Quando voltas?
-Não sei. Em breve. Hippolyte prevenir-te-á."
Deram uns passos, depois pararam de novo.
"É estúpido separarmo-nos tão depressa", resmungou ele.
Uma roseira abria as suas flores num maciço meio selvagem, no limite do mundo civilizado dos jardineiros. Jacques pegou na sua faca e cortou uma flor. Enquanto ela o via raspar o caule para o desembaraçar dos espinhos, a felicidade de novo lhe inundou o coração. Ele estendeu-lhe a rosa, ao mesmo tempo que se inclinava para a beijar.
"Agora vai, vai, meu coraçãozinho."
A tia Mathilde e a Mamã-Doce já não estavam debaixo da varanda, mas a nénène Rosalie lá estava a vigiar.
"Onde estava? Andámos à sua procura. As Sr. as Bergère estão no salão com a menina Delphine."
De repente, vendo a flor, ela pôs-se a gritar: "Não se colhem flores a esta hora, bem vê que a noite já chegou. Deite isso fora, depressa, traz o mal consigo!"
Louise encolheu os ombros.
"Que ridículo, não digas asneiras!"
Mas, subitamente, a confiança e a alegria tinham-na abandonado. O jardim estava banhado de sombras. No céu lívido, abandonado pelos últimos raios do sol-poente, um único e delgado rasto vermelho se demorava ainda. Uma ave passou ao rés das árvores, soltando um grito. Então, como se não esperasse senão esse sinal, de toda a parte, no jardim, o coro poderoso dos insectos entoou o hino da noite.
Era a hora perturbada em que os lobisomens começam a correr pelos campos de canas, em que os bruxos se entregam às suas maléficas tarefas.
"Deite isso fora!", repetiu a negra com cólera.
Depois do pôr do Sol, os espíritos repousam nas flores. Aquele que as colhe arrasta também consigo essas almas vagabundas. Jacques não acreditava nessas parvoíces. Louise também não. No entanto, involuntariamente, abriu a mão e a rosa caiu-lhe aos pés.
À medida que a cidade mergulhava no calor do Verão, as famílias abandonavam-na umas após outras, para se retirarem para as suas terras.
Viam-se partir primeiro carros puxados por bois, onde se empilhavam móveis e toda a espécie de objectos. Depois, os colonos, por sua vez, punhamse a caminho. As mulheres em palanquins, os bebés e as crianças em pequenas redes, protegidas do sol por panos, os homens em mulas ou burros. Procedendo e seguindo os senhores, agitavá-se a multidão dos escravos. Uma carneirada de cabeças negras, carregadas de fardos.
Os Montaller também deixavam outrora a capital para passarem a estação quente na sua fazenda de Moka. Mas o Sr. De Montaller decretara um dia que não seria mais assim. Sofria muito com o transporte e não queria sair do seu quarto. De maneira que, agora, toda a família ficava em PortLouis durante o Verão, suportando com ele a canícula. À excepção de François, todavia, que o pai mandava para a plantação para vigiar, com o administrador, o corte das canas-de-açúcar.
O jovem deixara Tamarin dois dias mais cedo e essa partida enchia a casa duma nuvem de tristeza.
Para desafogar o coração, Lucien corria a encontrar-se com a pequena Antoinette, cujos pais habitavam na casa vizinha. Só uma delgada sebe de bambus separava os dois jardins. Os Dumont Tillac tinham dez filhos, mas, embora fingisse um certo desprezo pelas raparigas, era Antoinette que Lucien preferia.
"Porque é que o Bom Deus fez pais?", declarou-Lhe ele depois da partida de François. "Não servem para nada!"
Ela olhou para ele com terror e indignação. Pensava no seu próprio pai, um gigante ruivo que a arrebatava nos braços, a punha ao ombro, ria alto e cantava com uma bela voz de barítono que enchia a casa e rolava através do jardim.
"Não se deve dizer isso!"
Mas Lucien já esquecera o seu ressentimento.
"Parece - disse ele -que do alto da Montagne Longue se vê até ao fim da Terra. Se lá fôssemos, podíamos ver Paris.
- A minha nénène não deixa.
- Não precisa de lhe falar nisso - lançou o rapazinho com desprezo.
-A Montagne Longue fica muito longe.
- Montaremos na minha tartaruga. Ela corre muito, você sabe, quando lho mando. Mais depressa que um cavalo. Se partirmos amanhã, antes do romper do dia, quando toda a gente está ainda a dormir, estaremos na Montagne Longue um quarto de hora mais tarde. Ninguém terá tido tempo de notar a nossa ausência..."
O silêncio assustado de Antoinette podia passar por uma aquiescência.
"Temos de ir quando ainda está escuro. Eu espero-a acolá, junto à sebe. Você não tem nada a temer", afirmou Lucien.
O fim da tarde e a noite foram cheios duma maravilhosa excitação. À hora de deitar, no entanto, a segurança da criança enfraquecera um pouco. Quando a nénène Rosalie apagou a vela e ele se encontrou só, junto de Jérôme, cuja respiração ruidosa enchia já o quarto, foi pior ainda. Corajosamente, tentou lutar, ao mesmo tempo, contra a dúvida e o sono. Mas isso era presumir muito das suas forças. Antes mesmo de terem cessado, nas dependências, os cantos dos escravos, ele mergulhara na inconsciência.
E as horas passaram. Bandos de aves anunciaram a aurora, depois os primeiros raios começaram a filtrar-se por entre as cortinas. Quando finalmente se sentou na cama, com a garganta apertada, experimentando o horror da decepção antes mesmo de se lembrar da sua causa, já era dia.
O encontro falhara... Como tinha ele podido dormir assim, como um bruto? Não sabendo a quem deitar as culpas, lançou um olhar de cólera a Jérôme, que se agitava num sonho penoso. Que idiota e como era feia a sua cabeleira ruiva, que fazia uma grande mancha na almofada!
Lucien saltou da cama e começou a vestir-se. Talvez que, apesar de tudo, não fosse demasiado tarde. Ninguém se levantara ainda. Abriu a porta com precaução e escapou-se para debaixo da varanda. O jardim estava deserto. Nenhuma silhueta se perfilava contra a sebe de bambus. Antoinette cansara-se de esperar ou, mais naturalmente, não viera. Oh! estas raparigas!... pensou ele com desprezo. Procurou com os olhos a tartaruga e também não a viu. Devia estar a dormir, amolecida à sombra de qualquer maciço.
Nas profundezas da sua consciência, uma voz disse baixinho: "É melhor assim, visto que de toda a maneira ela não teria corrido. " Ficou um instante estupefacto pela chateza desta comprovação e, como a voz queria ainda falar, fê-la calar-se raivosamente.
Visto que tudo se coligava contra ele, iria só e a pé até à Montagne Longue! De lá de cima, para além dos oceanos e das terras, veria a França, com todas as suas maravilhas, os seus cavaleiros, os seus generais cobertos de ouro e de penachos, como o Sr. Decaen, as suas casas de pedra, cujos telhados tocam nas nuvens. E essa pobre Antoinette arrepender-se-ia amargamente de não o ter acompanhado. Corria já pela álea das palmeiras-da-índia. Chegou à rua e, sem abrandar o andamento, sumiu-se nela.
Desaparecera havia muito tempo, quando Louise surgiu, por sua vez, sob a varanda. Era o momento mais agradável do dia, mas não durava. A manhã desapareceria em breve na ardente luz e no calor.
"Lucien perdeu-se!", declarou Jérôme, que chegava carregando com o seu grande traseiro.
Ao longe, na casa, ouviam-se os gritos da nénène Rosalie, aos quais fazia eco a voz preocupada da tia Mathilde:
"Enfim, não é possível, minha boa Rosalie. Deve ter-se escondido para lhe meter medo..."
- E nem sequer almoçou. Quando o senhor souber isto..."
Mas o senhor não saberia de nada. A menos que os clamores da negra acabassem por alertá-lo.
"Olha, ei-lo", anunciou Jérôme.
A criança acabava de surgir ao fim da varanda entre as lianas, cujas flores esmagava sem contemplação. O seu rosto estava escarlate e ele esforçava-se por gritar qualquer coisa, mas arquejava tanto que só sons inarticulados lhe saíam dos lábios.
"Parece uma gueule pavée' na areia - observou Jérôme.
- Os Ingleses! - ouviu-se por fim. -Os Ingleses!...
-Que é que dizes? os Ingleses... -exclamou Louise.
- Estão a chegar com toda a frota. Os espias viram-nos. Há dezenas e dezenas de velas. O mar está coberto delas!
- Estás a divagar.
- Não... Hippolyte também sabe. Diz-lhe, Hippolyte."
O escravo apareceu, por sua vez, atrás do pequeno.
"É verdade, menina Louise. E reina a loucura agora no porto. As pessoas correm por toda a parte. Dizem que é a invasão e que desta vez não se poderá fazer nada porque os diabos vermelhos são muito mais numerosos. Então a nossa ilha está perdida.
- Oh! cala-te!"
Não era verdade, nada daquilo podia ser verdade. Eram apenas histórias de crianças e de escravos. As mãos trémulas da rapariga agarraram-se à balaustrada. Ao mesmo tempo, ela virava-se, procurando instintivamente atrás de si uma presença, um conforto ou um desmentido talvez. Mas a varanda estava vazia.
"Hippolyte! -gritou ela - onde está o teu patrão?
- Partiu, menina. Foi ter com os guardas nacionais."
Ele partira sem que ela tivesse podido tornar a vê-lo, nem dizer-lhe adeus. Todos os homens válidos iam pegar agora em armas. François também iria bater-se. E as mulheres ficariam sozinhas na cidade com os negros e as crianças. Aquela cidade que seria o primeiro objectivo dos exércitos inimigos.
Diante dos seus olhos passou a visão terrível das ruas entregues à guerra, os civis misturados com os soldados, as casas de madeira, tão vulneráveis, ardendo umas após outras.
"Sente-se, menina", gritou o escravo. "Está mais branca do que o seu vestido."
Mas ela agarrava-se cada vez com mais força à balaustrada, como se receasse largar aquele último ponto de apoio num mundo onde tudo vacilava.
"Vou-me embora agora - disse Hippolyte.
- Tenho de vigiar a Créole, que está no estaleiro. O Sr. Jacques
confiou-ma e há sempre malvados que rondam por ali. Com o que se passa agora, não se poderá contar já com os guardas. Cada um tem de velar pelos seus bens.
- Eu quero ir contigo - gritou Lucien. - Leva -me, Hippolyte.
- Não, menino Lucien. Já é muita sorte que eu o tenha encontrado no caminho. Tem de ficar em casa, com a mamã, e não andar outra vez pelas ruas como outrora.
- Traz notícias - disse Louise. Volta depressa a dizer-nos o que se passa.
- Oh! sim! volta depressa!", suplicou Lucien.
Viram o negro mergulhar na confusão das lianas e desaparecer. Estupefactos, confundidos com a brutalidade do choque, nem sequer pensavam em prevenir as duas mulheres que, no compartimento vizinho, remoíam sempre as suas preocupações, sem saberem que a desgraça acabava de lhes cair em casa como o raio.
Hippolyte não apareceu nos dias seguintes. Mas os acontecimentos precipitaram-se tão depressa que se tornou inútil procurar informações. Elas afluíam de todo o lado, divulgadas por multidões de bocas.
A 29 de Novembro, os Ingleses desembarcaram no Mapou, no Nordeste da ilha. Em breve se sabe que as tropas inimigas marcham sobre a capital e que os guardas nacionais, depois de algumas escaramuças, são repelidos.
No dia seguinte, 30 de Novembro, o chefe de batalhão, Nougarède, que comanda a região Norte, entra em contacto com o inimigo. Por um instante, a esperança acende-se, mas para logo se extinguir. Nougarède tem sob as suas ordens apenas uma centena de homens. Recua. Os Ingleses apoderam-se das baterias de Malactic e da Pointe aux Canonniers. Avançam ainda para a capital, depois param diante de Moulin à Poudre.
Faz um calor terrível. Na memória de colono não existiu nenhum semelhante e parece pesar sobre a cidade, sobre toda a ilha, como uma enorme maldição.
O capitão-general chama novas tropas e colocaas sob as ordens do general Vendermaesen. A esperança renasce. Vandermaesen tomou posição frente ao inimigo. A coluna Lerch apoia-se na Montagne Longue, a de Bissy "a plantação Médine. Três peças de artilharia batem os caminhos de Moulin à Poudre e das Pamplemousses.
A de Dezembro, uma notícia espantosa faz atear de novo as esperanças: Vandermaesen ataca. Tem apenas umas centenas de homens consigo, atiradores da Legião Nacional, caçadores coloniais, soldados do regimento da ilha de França. Os Ingleses, em frente, são aos milhares. E, todavia, ele avança. Recupera a plantação" Husson.
Mas não há milagres. O inimigo, por um momento confundido, refaz-se. De novo os Franceses batem em retirada, a coluna Lerch pela estrada das Pamplemousses, a coluna Bissy à sua esquerda. Os Ingleses seguem Lerch de perto. Estão agora às portas da capital. Nada, segundo parece, poderá já detê-los e, todavia, uma vez mais se produz o inverosímil: o fogo da bateria Dumas corta-lhes o caminho.
Em Port-Louis vivia-se doravante ao ritmo da guerra próxima. O troar do canhão rolava sobre os telhados, sacudia as mimosas, fazendo fugir do mercado as negras desvairadas. Agora, o medo estava em toda a parte, nas choupanas como nas brancas moradias de colunatas.
Só as crianças, que retomavam por sua conta os combates dos adultos, se divertiam ainda. Lucien
Título do governador Decaen.
polia as suas armas, duas espadas de madeira e uma pequena faca que Hippolyte lhe dera. Já não havia lições. O Sr. Jonathan só vinha a Tamarin para trazer notícias e discutir um pouco com as senhoras. Depois corria a levar a outro sítio os seus relatos de catástrofes.
A família abandonava a varanda para se refugiar no salão, como se esses poucos metros de recuo pudessem representar uma protecção contra o avanço inimigo. A bateria Dumas clamava sempre a sua cólera. Lucien agarrava-se à Mamã-Doce, brincava com o leque dela. O seu olhar, pelas portas abertas, procurava em vão a silhueta de Hippolyte.
Louise andava para trás e para diante no compartimento, sentava-se diante do bordado, largava-o para ir à varanda. Também ela procurava Hippolyte por entre as sombras do jardim. Sem dúvida que ele não tinha qualquer notícia do patrão, senão teria vindo trazer-lha.
No meio do desastre geral, só a nenène Rosalie continuava a cumprir as suas tarefas com um rigor inabalável. Punha o mesmo cuidado que de costume a pentear Louise, a apertar-lhe fortemente o espartilho, a enunciar os seus axiomas preferidos: "Elegância e modéstia são os melhores trunfos duma rapariga."
Sentadas à entrada do salão, a tia Mathilde e Louise viram-na uma tarde na álea, precedendo um carrinho de mão que um negro puxava e outro empurrava. Nele havia sacos empilhados.
"Que é que traz aí, Rosalie? - interrompeu a tia Mathilde.
-Pois bem, minha senhora, é arroz. Não sabe que toda a gente anda agora em busca de arroz?
Encontrei ainda este na loja do chinês. Esse ladrão fez-mo pagar pelo dobro. Mas amanhã será ainda mais caro e, em breve, não haverá nenhum.
- Tem sem dúvida razão. Meu Deus, não tinha pensado em tudo isso. Que tragédia...
- É preciso dinheiro, minha senhora.
- Pois sim, com certeza, minha boa Rosalie. Vou dar-lho."
As duas mulheres afastavam-se. Louise seguiu-as com o olhar até que contornaram a casa e desapareceram com o carrinho. A incerteza, o longo vazio daquela noite, tornavam-se-lhe insuportáveis. Não esperava já ver surgir Hippolyte. Mas o tio Victor sabia talvez onde se encontrava o filho. De repente, veio-lhe a tentação extraordinária de ir ter com ele. Ela conhecia bem a casa, que ficava muito perto de Tamarin. Da rua via-se por vezes o velho, sentado debaixo da varanda, por detrás dos maciços de flores-de-sapato meio selvagens.
A rapariga, até então, nem sequer imaginara que pudesse um dia
arriscar-se nesses lugares proibidos, desafiando abertamente as ordens do pai. Mas o desejo que tinha de ouvir falar de Jacques e de ser tranquilizada a seu respeito dominava todos os outros sentimentos. Aliás, no desabamento actual, que valiam ainda as velhas proibições?
A tia Mathilde e a nénène Rosalie estariam por um momento ainda ocupadas com os negros. A Mamã-Doce retirara-se para o quarto, levando as crianças. Ninguém a veria partir. Desceu a escada a correr e precipitou-se para a rua, a essa hora quase vazia. Nenhum colono lá se encontrava. Apenas alguns negros, que a seguiam com olhar espantado.
Apressou o andamento. Via já a casa do tio, escondida no jardim abandonado. Brilhava lá uma luz.
No momento de se meter pela álea estreita e escura, hesitou. Apenas um instante. Vamos! a sorte estava lançada! Demasiado tarde agora para recuar.
Avançava pelo limiar da varanda, quando o velho a viu e se levantou com vivacidade. "Saberá ele quem eu sou?", perguntou a si mesma. Naturalmente, ele sabia. Toda a gente se conhecia na ilha.
Por um momento, ficaram frente a frente, ele esperando que ela justificasse um tão incrível passo e a rapariga não sabendo que dizer.
"Queria falar-me, menina?", começou ele, enfim, numa voz que, antecipadamente, desencorajava toda e qualquer confidência. "Pode sentar-se."
Ele próprio retomou o seu lugar junto dum candeeiro de globo, rodeado por uma nuvem de insectos. Esses candeeiros eram um luxo novo na colónia. Como é que o velho avarento podia possuir um? Talvez que tivesse feito parte do carregamento duma presa.
"Só me demoro um instante", balbuciou ela.
Embora nada traísse os seus sentimentos, o velho estava estupefacto.
Não podia desprender o olhar da rapariga que tinha na sua frente, quase uma criança ainda. Como tivera ela a audácia de vir a casa dele? A filha de Adeline! Não se parecia com ela. Salvo os olhos, talvez, sim, qualquer coisa nos olhos. Mas os de Adeline eram mais claros, não daquele azul-escuro, quase violeta.
"Tem notícias de Jacques?", perguntou ela por fim com a brutalidade desajeitada dos adolescentes.
E de repente, a enormidade do seu acto perturbou-a. Não só penetrara no antro do inimigo, mas, ao falar de Jacques, traía-se, desonrava-se. Como ousara ela uma tal coisa e cometera semelhante estupidez?
"Notícias de Jacques?", repetiu o velho, "do meu filho? Eis uma pergunta bem singular, menina."
Ela recuava para a escada. Ia fugir, sem esperar mais, quando a voz do tio se elevou de novo:
"Claro que não tenho nenhuma notícia... Veja como ele se preocupa com o pai. Nem sequer sei onde foi bater-se, aquele louco!"
Bruscamente, ela defrontou-o.
"Não é um louco!", gritou com cólera. "Foi defender o nosso país. Todos os homens partiram."
"Menos o senhor", pensava ela. Mas essa ofensa não tinha razão de ser, o tio Victor era manifestamente demasiado velho. Ele ria:
"Absurdo, completamente absurdo! Esse desmiolado vai-se deixar matar com os nossos outros jovens. Toda a resistência é ilusória. O inimigo é dez vezes mais forte do que nós. Nenhum espírito razoável pode pensar por um instante que nós poderemos fazer-lhe frente.
- E, todavia - lançou ela asperamente - Vandermaesen obrigou-o a retirar.
- Fogo-de-vista, sem futuro. O general tinha seiscentos homens sob as suas ordens. Disseram-lhe quantos eram os Ingleses? Seis mil.
- Bem vê, Deus está connosco. -Deus não está com ninguém, menina."
Ela considerava com desagrado o pequeno rosto enrugado e negro do arrnador, os seus olhos brilhantes, as suas compridas orelhas descoladas.
"Mesmo quando tudo estivesse perdido", disse ela, "fícar-nos-ia a honra!"
A honra não tinha importância. Ele encolheu os ombros:
"Sim, a honra, se quiser."
Por um momento, ficaram silenciosos, enquanto os reflexos do candeeiro corriam ao longo da varanda e iam perder-se nos arredores, nos maciços de flores-de-sapato e de crótons. Por detrás do velho, um feto pluma estremecia com os seus milhares de folhinhas lívidas. Metido no seu canto de sombra, solitário e desdenhoso, parecia travar consigo próprio um interminável colóquio.
"A melhor solução", concluiu ele, "seria procurar uma capitulação honrosa e obtê-la antes que as nossas tropas estejam completamente dizimadas, de forma a restarem-nos ainda alguns trunfos na mão."
Louise encarava o tio com horror. Como é que Jacques podia ser filho desse horrível velhote, tão duro, tão frio, desse calculador que falava de capitulação honrosa? Segurou a saia com uma mão e voltou-se para descer a escada.
Nesse instante, assemelhou-se tanto com a bela Adeline, vinte anos antes, quando atirara à cara do seu apaixonado que não o amava e nunca casaria com ele, que o velho pareceu por um momento transtornado. A amargura do passado subia-lhe de repente à garganta. Tornava a encontrar-lhe o sabor com espanto. Esse amor que ele julgava morto, enterrado sob anos de indiferença e de desprezo, era então capaz de o fazer sofrer ainda com tanta violência? Porque tinha vindo aqui, aquela descarada? Ela amava o seu filho. Incrível! Simplesmente incrível! A filha de Adeline!
Victor procurou com os olhos a rapariga, mas ela desaparecera. Com as fontes latejando de emoção, corria para a rua, completamente escura agora. À entrada de Tamarin, uma forma que espreitava sob as árvores correu para ela. Era Joseph.
"Onde é que estava, menina? Toda a gente anda à sua procura."
"Pronto", pensou Louise. "A nénène Rosalie sabia... " Se, por milagre, a família sobrevivesse àquela guerra, a história voltaria eternamente através de todas as censuras futuras, acompanhada dos comentários e acrescentos que os anos lhe trariam.
A tia Mathilde e a nénène estavam na escada. A velha senhora apertou a sobrinha nos braços e pôs-se a chorar.
"Que susto nos pregaste, minha filha. Fugires assim, sozinha. E os Ingleses que estão a chegar..."
A nénène Rosalie esbravejava contra o mau procedimento das meninas actuais, a audácia dos invasores, os santos do Paraíso, com o grande S. Luís à cabeça, que se importavam bem pouco com as misérias do mundo. "Vou dizer ao cozinheiro que sirva o jantar - decidiu por fim. -Isso sempre ocupará as crianças.
- Acha, Rosalie -disse brandamente a tia Mathilde-, que nós temos vontade de ir para a mesa?"
A escrava ignorou a objecção. Evidentemente que era preciso ganhar forças para resistir a todas essas desgraças prestes a caírem de novo.
Pela manhã, uma chuvada caiu sobre a cidade. O seu pesado bater nos telhados de ripas despertou Louise. Sentou-se na cama, no calor sufocante, e o seu olhar percorreu o quarto.
Gotas brilhantes atravessavam a sombra e esmagavam-se ruidosamente nas vasilhas que as criadas dispunham no chão e em cima dos móveis para as receber. Mas a rapariga não prestava nenhuma atenção a esse espectáculo banal. Aquando das grandes chuvas, todos os telhados vertiam. Ela observava uma ratazana, acachapada debaixo do armário, e cujo focinho inquieto via tremer. Devia ter-se introduzido pela porta aberta. As ratazanas tinham os seus buracos sob as buganvílias. À noite invadiam a varanda e introduziam-se mesmo no interior das casas.
"Malvado animal", disse Louise, "que procuras aqui?"
A chuvada abrandava. Não era mais do que um desses bruscos dilúvios de Verão que desaparecem logo por mil ravinas, sem que os jardins sedentos tenham tempo de beber.
Já o dia se anunciava por uma fraca claridade que passava por entre as cortinas. De repente, ela sentiu um leve roçar por detrás da porta e a voz ciosa da pequena Maria pôs-se a cochichar: "Menina Louise, menina Louise...
-Que queres tu? Entra."
A criança avançou até à cama.
"Foi o Sr. Jonathan que chegou. Quer falar com a senhora. Mas ela está a dormir a esta hora..."
Louise afastou o mosquiteiro e viu junto de si o rostinho negro.
"Eu não me atrevo a ir junto da senhora - recomeçou Maria. -Por certo que ela ainda tem a dor de cabeça. E são notícias de desgraça que ele traz.
-Que estás a dizer?
- Ele não tem a cara dos dias bons. Mete medo, menina.
- Eu vou lá.
- Oh! não! -gritou a rapariguinha, mais assustada ainda. -Não está vestida, a tia vai ficar furiosa.
- Não te preocupes com isso."
Enfiou um roupão e saiu a correr, de pés descalços, sem pensar em se pentear, seguida da pretinha, cuja curiosidade era mais forte ainda do que o medo de ver surgir Rosalie.
Durante esse breve instante, o dia nascera. Explodia já no jardim numa fúria de cores e de cantos de pássaros. As palmeiras balançavam miríades de centelhas. As flamboaiãs salpicavam o céu com as suas pétalas vermelhas, enquanto as flores caídas formavam a seus pés coroas resplandecentes.
Correndo para debaixo da varanda, Louise mergulhou de repente nesses esplendor. Mas nem sequer o notou. Não via senão-o Sr. Jonathan, pequena silhueta mirrada, negra, como que esmagada por um fúnebre fardo.
"Que se passa?", gritou ela. O velho hesitava. "Peço-lhe, senhor, fale.
- Ai, minha querida menina, são terríveis notícias as que trago. De todos os lados, os nossos vigias anunciam novos desembarques inimigos. Estamos submersos pelo número. Desta vez não há nem sombra duma esperança. Estamos mesmo perdidos."
O colono hesitou por um instante ainda antes de prosseguir: "O governador pediu uma capitulação. Ela será efectiva dentro das próximas horas. Em breve as tropas inimigas farão a sua entrada na cidade."
Ela ouvia essa palavra "capitulação" girar à sua volta como um dobre de sinos. Os troncos brancos das palmeiras reenviavam-lhe os ecos para a casa, que os repercutia ao longo das suas colunas, os atirava para o mar, para os telhados em redor, até ao porto. E o vento levava-os na multidão das cristas brancas, para a imensa zona dos alísios. Mas, por muito longe que corresse essa angústia, ninguém podia já ouvi-la. Abafar-se-ia muito antes de ter atingido a pátria, na outra extremidade do mundo. A ilha estava perdida. Ninguém viria em
seu socorro.
Ele tivera razão, afinal de contas, o homem com cara de morcego, sentado entre as sombras da sua varanda, junto da sua planta maléfica, o velho colono que não acreditava na honra...
Era a véspera de Natal. Havia já vinte dias que a capitulação estava assinada. Uma multidão enorme, reunida no porto, assistia à partida do governador Decaen, da sua família e dos oficiais que voltavam a França.
Não sem dificuldades, Louise obtivera licença para acompanhar a Sra. Dumont Tillac, que queria, pela última vez, cumprimentar a mulher do governador. Mas, terminados os adeuses, no momento de subirem para as cadeirinhas, Louise declarara que ficaria mais um bocadinho, a fim de assistir ao embarque dos viajantes nas chalupas. A Sr. a Dumont Tillac, espantada com este capricho, hesitava em deixar a rapariga só.
"Acha razoável demorar-se com este calor? E que dirá a sua mãe?"
Mentindo com descaramento, Louise assegurou-Lhe que a Mamã-Doce não veria nisso nenhum inconveniente. Não estava ela acompanhada pelos seus escravos?
Mas, assim que a sua acompanhante a deixou com reticências, a jovem apressou-se a despedir todo o seu pessoal. Havia um momento que descobrira Jacques na multidão e procurava um pretexto para se encontrar a sós com ele.
"Como és espertalhona, meu coraçãozinho -disse ele - por teres conseguido desembaraçar-te dessa encantadora senhora! Maravilhosa, além disso.
- Ela tem a idade da Mamã-Doce - exclamou Louise, estupefacta. -E acha-la maravilhosa?"
Ele desatou a rir, agarrou-lhe na mão enluvada de mitenes e beijou-lhe a ponta dos dedos. "Menos que tu, evidentemente.
- Oh! Jacques, diante de toda esta gente!
- Não te faças assustadiça. Não foste provocar o meu pai mesmo em sua casa?"
Os olhos de Jacques brilhavam de divertimento e de alegria.
"Eu julgava-te ferido, morto. Que sei eu? Estava louca de inquietação.
- Mas, afinal, não tenho nem uma beliscadura.
- François, esse, apanhou uma bala na perna! O médico veio tirar-lha no outro dia.
-Sim, bem sei. Que guerra idiota, que nem sequer o era. Santo nome! Não tínhamos qualquer meio de nos defendermos. Tudo estava perdido antecipadamente. Absurdo!..."
Ele não a observava já. O seu olhar perdia-se ao longe, na enorme cintilação da baía, por entre a floresta dos mastros inimigos.
"Ei-los que partem", disse Louise.
Junto do embarcadouro, a multidão agitava-se. Os oficiais da comitiva do governador tomavam lugar nas chalupas. Viam-se agitar as plumas dos chapéus, brilhar os bordados e os galões.
Sete anos antes, que espanto causara na colónia a chegada desses homens, tão magnificamente vestidos, e das suas mulheres, mais deslumbrantes ainda! Era o ar de Paris e a sua moda, toda uma concepção nova de vida que desembarcava com eles.
Envergonhados por se terem deixado surpreender vestidos de algodão e simples musselina das índias, os colonos logo se lançaram num frenesi de despesas e de luxo. Dessa época datavam as fúrias de elegância a que os homens se entregavam tanto como as mulheres, as sumptuosas recepções, os requintes de toda a espécie habituais desde então e de que a jovem Sr. a Decaen fora a primeira instigadora. Fora ela quem dera às mulheres o gosto dos prazeres, quem introduzira na cidade essas novas reuniões chamadas "chás", em que os velhos colonos só viam pretextos para jogo e dissipação.
Agora, levantavam-se braços de todos os lados em gestos de adeus, agitavam-se lenços. Ouviam-se soluços. "Voltem", gritava-se, "voltem depressa..."
As lágrimas toldavam os olhos de Louise. As suas mãos trémulas tentavam abrir a bolsa para dela tirar um lenço, mas os cordões emaranhados não cediam.
"Ali está a Sr. a Decaen, que vai embarcar também", observou Jacques. "Sempre tão elegante, a malandra!"
A rapariga não a viu. Não havia já diante dos seus olhos senão uma mancha líquida, onde se diluíam as cores da multidão e os reflexos do mar.
"Mas estás a chorar! " disse a voz de Jacques.
Passou o braço em volta da cintura de Louise, mas ela não protestou. Tanto pior, toda a gente podia olhar à vontade para eles. Que lhe importava? De repente, as lágrimas transbordaram-lhe das pálpebras e sentiu, contra o seu, o rosto moreno do primo.
"Vamos, não te aflijas! - disse ele. - Nada está ainda completamente perdido. Esta guerra há-de acabar um dia. No tratado de paz, os assuntos serão retomados. A Inglaterra, então, será talvez obrigada a restituir as suas colónias à França.
- Será possível?
- Muita gente o crê. O próprio Decaen o pensa.
- Se o Céu, enfim, nos pudesse ajudar...
- O Céu, não contes muito com isso. O imperador talvez... A bem dizer, eu não tenho muitas ilusões."
Voltaram lentamente à Place d'Armes, para onde Louise mandara os negros com a cadeirinha. Ao passar diante do palácio do Governo, a rapariga virou a cabeça para não ver a bandeira inglesa. Seria que uma bela manhã as cores francesas lá flutuariam outra vez?
"Vais fazer uma visita ao teu pai? -disse ela. - Ele estava furioso contigo.
- Isso não é novidade. Agora, escuta, meu coraçãozinho... -Hesitou um instante antes de prosseguir. -Nós vamos ficar separados durante algum tempo porque eu tenho de voltar a Borbom. Tenho um carregamento lá retido e oferece-se-me uma oportunidade de passar para a ilha. Tenho de a aproveitar, senão os Ingleses seriam capazes de me confiscar os bens."
Ela parara de andar e considerava-o com sobressalto.
"Mal acabo de te encontrar e vais-te já... com tudo o que se passa e os Ingleses aqui?"
Hoje, ilha da Reunião. Estava então ocupada pelos Ingleses.
Ele pôs-se a rir.
"Bem vês que os diabos vermelhos não cortaram a cabeça a ninguém. E; como eu previra, não pensaram em violar as nossas mulheres. O que é quase ofensivo, em resumo.
- Jacques!
- Você não receia sair e passear como dantes, sob a guarda de uns quantos escravos ou infelizes nénènes e tem muita razão, visto que a administração britânica mantém a ordem e a mais perfeita tranquilidade. Aliás, eu estarei em breve de volta, dois ou três meses no máximo."
Agarrou-lhe nas mãos e mergulhou o seu olhar no dela. "Então, meu coraçãozinho, vestirei o meu mais belo fato, porei um elegante chapéu, e irei pedir a tua mão ao teu pai.
-Tu irás... -Ela sufocava de alegria e de terror. -Mas, Jacques, ele não quer, bem o sabes! Não quererá nunca, nunca! E antes que eu atinja a maioridade temos de esperar cinco anos."
Era o mesmo que dizer uma eternidade. A angústia ensombrava-lhe o olhar.
"Jacques, esperar-me-ás ainda por mais cinco anos?
- Não -lançou ele em voz baixa e brutal - não continuarei por mais cinco anos a espreitar-te no extremo do jardim, nem a beijar-te os dedos no meio duma multidão de quinhentas pessoas. Nenhum homem poderia aceitar isso. Irra! se a tua família não me quiser... vai-se arrepender.
- Que queres dizer? - balbuciou ela, aterrada.
- Não me abandonarás. Tu amas-me, Jacques?
- Com certeza, meu coraçãozinho. E não te preocupes enquanto esperas o meu regresso. Verás as coisas compor-se-ão. Comigo, compõem-se sempre!"
Deu-lhe o braço e afastaram-se sob as mimosas, em busca dos carregadores.
Ninguém se espantou em Tamarin ao ver Louise voltar sozinha. Para todos escusado era dizer que a Sra. Dumont Tillac a deixara no fim da álea. Louise, por seu lado, não sentia qualquer preocupação. Os Dumont Tillac partiam no dia seguinte para a sua plantação das Pamplemousses. Dentro de vários meses, quando voltassem, quem pensaria ainda nos pormenores daquele dia? Só se lembrariam da partida do governador.
François estava instalado sob a varanda, com a perna ferida assente num banquinho e as duas senhoras ao pé dele. Louise subiu a escada a correr e deixou-se cair numa poltrona.
"Estás muito corada, minha filha- disse a Mamã-Doce. - Fiz mal, talvez, em te permitir que saísses. Não tens febre?
- Não, mamã."
Seguiu-se um silêncio. Louise divertia-se com as reticências que impediam as duas mulheres de fazerem as perguntas que certamente lhes queimavam os lábios. As Montaller eram legitimistas. No passado, elas tinham sempre manifestado um desprezo de bom tom para com o governador Decaen, esse criado empenachado do Usurpador. Mas nas actuais circunstâncias, abandonadas pelo chefe de família, transtornadas pelos últimos acontecimentos, as pobres mulheres já não sabiam que atitude se impunha.
Instintivamente, viraram-se para François, esperando que ele falasse. O jovem teve pena delas. "Então -disse ele - viste-os? -Sim. Partiram.
- Partiram...", repetiu a tia Mathilde.
Uma impressão de vazio, de abandono, oprimiu-os a todos. Partidos para França. E eles ficavam ali, na sua ilha do fim do mundo. Uma angústia, uma tristeza tão intensas, que pareciam tangíveis, pesavam de repente sobre as coisas, esmagavam o jardim, onde nem uma flor, nem uma palma, se agitava com o terrível calor.
"A Sr. a Dumont Tillac - recomeçou Louise cumprimentou a Sr. a Decaen, que parecia muito comovida. Beijou-nos a ambas. Um pouco mais tarde, subiu para uma chalupa com o seu rapazinho.
- Pobre mulher", disse François.
Tudo estava portanto bem acabado dessa vez, a última página virada. Ela ia-se embora também, essa louca e encantadora Félise, que vestira as mulheres da ilha com seda e plumas, as tinha feito brilhar em tantas festas. E o pequeno, o filho, tão alegremente recebido, baptizado" quatro anos antes, tinha até o nome da colónia: Gustave, Hippolyte, Emilien, lle-de-France. Não haveria senão essa criança a conservá-lo dali por diante.
"Sabem - disse o jovem -que a ilha vai retomar o seu antigo nome: Mauritius. Foi pelo menos o que me disse o Sr. Jonathan há pouco.
- Não é possível - exclamou Louise. -Quem decidiu isso?
- Farquhar, o novo governador inglês.
- Então os nossos inimigos pegam até com o nome do nosso infeliz país -disse a tia Mathilde. -Teremos suportado tudo..."
De novo o silêncio os envolveu.
O leque da Mamã-Doce agitava-se no ar, dispersando em redor leves odores de sândalo.
"Em breve virá o ano novo - suspirou ela. -Vamos celebrá-lo este ano? Pergunto a mim mesma o que farão os nossos vizinhos. Ninguém deve ter vontade de divertimentos. Tenho de falar nisso ao vosso pai. Sim, sim, tenho...
- Tudo veio tão depressa! - disse a tia Mathilde. -Não estávamos preparados para este infortúnio. Agora que vai passar-se? A nossa pátria fica tão longe... Passarão meses ainda antes que ela saiba somente da nossa derrota. E que poderá fazer, então... Esse Sr. Bonaparte preocupa-se connosco? Ah, se o nosso querido rei estivesse ainda no trono!"
Um canto de escravo subia ao longe, do lado das dependências. Eles escutavam-no vagamente, envolvidos pela sua nostalgia, perdidos nos seus sonhos. E, como a incerteza não deixava ver o futuro, era para o ano que acabava que olhavam. Um longo ano percorrido de esperanças, glorificado pelo combate do Grand Port e que terminava em desgraça.
Pela terceira vez, a silhueta pesadona de Jérôme apareceu entre os maciços de hibiscos.
"Vem, Lucien, despacha-te lá. A visita acabou. Vamos embora. A mamã disse que viesses imediatamente."
Dessa vez não havia mais remédio senão obedecer. O rapazinho resignou-se a isso de má vontade.
"A mamã deve estar cansada", disse ele a Antoinette, procurando cobrir a retirada com uma atitude generosa. "Tenho de ir ver. Está muitas vezes cansada, a esta hora."
Afastou-se no crepúsculo que começava, seguido da rapariguinha que levava o tambor e a trombeta que ele deixara atrás.
Na escada dos Dumont Tillac, a Mamã-Doce, a cunhada e Louise despediam-se da dona da casa. Não era muito tarde ainda, mas o Sr. De Montaller não suportava que a mulher abandonasse a casa durante mais de uma hora ou duas. Mesmo quando lhe interditava o seu quarto, exigia dela que não se afastasse, a fim de poder responder ao primeiro chamamento.
A varanda estava ainda cheia de gente e pelas portas abertas viam-se os jogadores sentados no salão, em volta das mesas de jogo. Sons de flautas e de violinos vinham dum compartimento vizinho onde se reuniam os amadores de música.
"Passámos uma tarde encantadora-dizia a Sra. De Montaller.
- Mas vai-se embora muito cedo, querida amiga. E eis justamente as Sr. as Bergère que vêm a chegar."
As recém-chegadas saíam das cadeirinhas com a ajuda das criadas, que se apressavam a rectificar o tufado das mangas e o bom cair das saias. As Sr. as Bergère tinham uma reputação de elegância de que eram muito ciosas e que convinha manter. Cynsagravam a isso todos os seus ócios, que eram numerosos.
A mais velha era viúva, a segunda provida dum esposo velho que nunca saía da sua plantação de Poudre d'Or. O marido invisível e o morto ocupavam tão pouco lugar na vida daquelas senhoras que toda a gente acabara por os esquecer completamente. Por isso continuavam a chamá-las pelo nome do pai, o Sr. Bergère, que fora um negociante considerável na ilha. Quanto à pobre Elisa, a gata-borralheira da família, tinha sido necessária a chegada da filha à cidade para que as pessoas se lembrassem da sua existência.
Delphine saía por sua vez da cadeirinha e, ao vê-la, Louise ficou por momentos estupefacta. Que mudança! Como é que, em tão poucos meses, a ajuizada adolescente do Grand Port pudera transformar-se naquela elegante pessoa tão requintada? Não podia acreditar no que via.
Com manifestações de alegria, como se desembarcassem duma longa viagem, as duas senhoras cumprimentavam as amigas. "A sua filha é encantadora e como se fez bonita! -exclamaram elas dirigindo-se à Sr. a De Montaller.
-Faz a sua entrada na sociedade este ano", disse a tia Mathilde.
As Sr. as Bergère falavam agora com entusiasmo das próximas festividades. Recepções e bailes deviam efectuar-se um pouco por toda a parte. Graças ao Céu, começavam a encontrar-se de novo na ilha os tecidos e os acessórios que tinham faltado durante tanto tempo.
"Bem entendido", exclamaram elas, "ouviu falar de Miss Findler?"
A Sra. Tillac estava ao corrente, mas a Mamã-Doce e a tia Mathilde tiveram de confessar a sua ignorância.
Miss Findler, chegada de Londres, acabava de abrir uma casa de modas onde se encontravam coisas maravilhosas: tecidos, plumas, fitas, bugigangas de toda a espécie, segundo a última moda da Europa. "A sua filha tem de ir visitá-la", declararam elas.
"Uma inglesa...", disse a Sr. a De Montaller.
As Sr. as Bergère abriam os braços desesperadamente, abanavam a cabeça.
"Ai, cara senhora, ai, que podemos fazer? A vida tem de continuar. Muitos dos nossos compatriotas pensam, aliás, que não devemos mostar aos Ingleses rostos demasiado taciturnos, que contradiriam a nossa esperança de os ver partir em breve e de a nossa querida ilha tornar a ser francesa.
- Deus a ouça, minha amiga
- Mas, efectivamente, sabe a notícia? O Sr. Bouvet saiu de Borbom. Esperam-no aqui de um momento para o outro.
- Eu julgava que ele tinha de voltar a França.
- Sim, mas faz escala na colónia e ficará por algum tempo. Fretou um navio, a A dele, que leva para a Europa os parentes dele e as pessoas que querem voltar para a metrópole.
- O capitão Bouvet vai voltar para junto de nós", disse a tia Mathilde juntando as mãos.
Houve um instante de silêncio e de emoção. Bouvet, o herói do Grand Port. Com ele, era um pouco do passado que voltava. O ar da derrota tornava-se por isso menos pesado.
"E como há espectáculo no teatro na próxima semana - continuavam as Sras. Bergère -, o Sr. Bouvet e os seus oficiais irão lá certamente. É uma reunião a que se não deve faltar. Espero que estejam lá, queridas amigas. E Louise também.
- Eu não - balbuciou a Sr. a De Montaller-, já não saio. Louise talvez..."
"Tens de vir", segredou Delphine ao ouvido da rapariga. "Toda a cidade lá estará. Por isso insiste."
"Se não quer sair, mamã, o François podia acompanhar-me - disse Louise.
- Veremos, veremos..."
A Sr. a De Montaller começava a descer a escada. Joseph mandara avançar as cadeirinhas. Aquelas senhoras tinham apenas uns metros a percorrer para voltarem à sua varanda, mas nem se pensava em fazê-los a pé, tanto mais que durante aquele curto intermédio a noite descera.
"Mamã - disse Louise - posso ir amanhã à loja dessa Miss Findler?
- Essa inglesa... Mas, minha filha, não sei. Pergunto a mim mesma... Porquê já amanhã?
- Se o espectáculo se efectua na próxima semana, temos de nos despachar."
No dia seguinte, a Sra. De Montaller tinha dores de cabeça. A tia Mathilde assistia a um serviço religioso. Foi a nénène Rosalie que recebeu à missão de acompanhar a rapariga a casa da inglesa. A pequena Maria juntou-se também à expedição, embora não tivesse qualquer papel a desempenhar. Levava a sombrinha de Louise. No momento de subirem para as cadeirinhas, Hippolyte apareceu.
"Que fazes aqui?", gritou a nénène Rosalie. "Volta para casa do teu patrão."
Hippolyte fazia ouvidos de mercador.
"Vai-te embora", gritava a nénène Rosalie mais alto. "Vai-te embora daqui!"
Louise observava o escravo, com o coração oprimido de emoção. Pelo olhar que ele lhe lançara, pelo seu ar alegre, ela adivinhava que ele trazia novidades.
"Deixa-o lá-disse ela - ele levará os embrulhos.
- Não vai haver embrulhos! Sabe muito bem que a senhora só quer amostras. A menina é muito nova para escolher os tecidos e quer cores que não convêm a uma menina."
A nénène Rosalie aproximou-se da cadeirinha de que a sua importância e a sua falta de agilidade a autorizavam a servir-se. Joseph ajudou-a a subir e, durante essa operação, que reclamava todos os esforços dum e doutro, Hippolyte meteu rapidamente a cabeça pela porta do lado de Louise: "O meu patrão volta com o Sr. Bouvet", murmurou ele. "Em breve estará cá."
Puseram-se a caminho, com os dois negros, que levavam a nénène, vergando sob o seu peso.
A casa de Miss Findler ficava próximo do porto. Não foi preciso muito tempo para chegar à rua que, segundo as indicações das Sras. Bergère, devia ser da inglesa. A nénène Rosalie inspeccionava as casinhas de madeira com desconfiança e procurava informarse. Passaram alguns negros, para os quais ela nem sequer teve um olhar. Eram apenas moçambicanos, esses primitivos que vivem nus e dormem no chão como animais.
Finalmente, viu um crioulo, decentemente vestido com calças e uma camisa às tiras, que vinha a puxar um porco na ponta duma corda.
"Eh! negro, não sabes onde vive uma senhora inglesa que faz vestidos?"
O homem parou. Ele não sabia, mas estava desejoso de travar conversa. Uma senhora inglesa... uma alta, muito magra, que falava com voz muito forte? Encontrara-a uma vez ou duas e até perguntara a si mesmo quem seria aquela senhora. Então ela fazia vestidos? E era inglesa? Deixara o seu país de selvagens, lá longe, do outro lado do mar, para vir instalar-se aqui...
Nesse instante, um bólide apareceu ao fim da rua, numa nuvem de pó. Era Pyrame. Atirou-se imediatamente ao porco, que se pôs a soltar guinchos. O negro gritava quase tanto como o animal e procurava em vão interpor-se, enquanto o cão andava à roda, encantado com a brincadeira, agarrando ora uma ponta de pata, ora uma ponta de orelha ou de cauda.
A nénène Rosalie clamava a sua indignação. Quem tinha deixado sair aquele cão? Hippolyte foi acudir. Mas ria tanto que, durante um momento, foi incapaz de intervir. O furor de Rosalie aumentou ainda mais.
"Agarra esse cão", gritava ela. "Não fiques aí, sem fazer nada..."
Finalmente, Hippolyte agarrou o animal. O porco safou-se, gritando sempre. E, justa lei das compensações, dessa vez foi ele que arrastou o negro na ponta da corda.
Só Joseph e Rosalie conservavam uma dignidade ainda trémula de indignação. Louise ria tanto como o jovem negro. A própria Maria fez ouvir alguns cacarejos. A tia fulminou-a com o olhar.
"Fazes favor de te calares, tu! E guardar as conveniências, estúpida negra.
- Vou perguntar onde habita essa inglesa - disse Hippolyte. - Quer ficar com o cão, menina?"
Instalou Pyrame na cadeirinha, aos pés da rapariga, e começou logo o inquérito. Viam-no na rua, ao longe, deter os transeuntes à esquerda e à direita, entrar nos pátios ao acaso.
"É descarada, esta juventude!", ralhava a nénène Rosalie.
Dentro em pouco, voltou a correr. A Miss habitava muito perto. A casa com papaieiras no pátio. No primeiro andar.
Joseph ficou para vigiar as cadeirinhas e os carregadores, enquanto os restantes se enfiavam uns atrás dos outros numa escadinha de madeira que rangia horrivelmente. A porta de Miss Findler estava aberta. Não havia que enganar, viam-se por toda a parte peças de tecidos, plumas e chapéus empilhados. A própria inglesa apareceu em breve.
O seu aspecto rígido e gelado, o seu porte severo, contrastavam estranhamente com as frioleiras do seu comércio. Mantinha-se especada no limiar, enquanto os visitantes, surpreendidos com aquela aparição, hesitando de repente, tinham parado nos últimos degraus. Por um pouco, teriam' voltado para trás.
Pyrame, no entanto, não mostrava qualquer embaraço. Depois de ter saudado a velha solteirona com uns latidos, penetrou no apartamento e pôs-se a farejar debaixo dos móveis.
"Não querem entrar?", disse Miss Findler. "Ou devo mostrar a minha mercadoria ao cão?"
Falava francês com voz aguda e breve, com um terrível sotaque britânico.
A procissão tornou a pôr-se em movimento. No último degrau, Louise hesitou, não sabendo se devia estender a mão àquela estrangeira. Miss Findler pareceu esperar um instante, depois virou-se bruscamente, chamou a criada e mandou vir cadeiras.
A jovem e a nénène Rosalie sentaram-se. Maria ficou de pé atrás do assento da tia, continuando a segurar a sombrinha.
"As Sras. Bergère falaram-me de si - disse Louise timidamente.
- Toda a gente fala de Miss Findler - cortou esta. -Vêm ter comigo de muito longe! De Curepipe, de Moka, das Pamplemousses. Há pessoas que fizeram de propósito a viagem do Grand Port até aqui. As Francesas sabem apreciar as coisas bonitas..."
O começo da tirada irritara Louise; o fim agradou-lhe mais. Sorriu.
"Queria ver sedas - disse ela.
- Tenho um lote magnífico."
Miss Findler voltou-se para unia mesa onde se empilhavam rolos de tecidos. Louise levantou-se bruscamente e aproximou-se para ver melhor. Havia ali uma abundância de cores, reflexos deslumbrantes ou delicados, que a maravilhavam. Tocava nas sedas delicadamente, com a ponta dos dedos. Parecia-lhe acariciar pétalas de flores. Nunca vira nada tão sumptuoso. No entanto recalcitrou ao ouvir Miss Findler declarar:
"As sedas inglesas são as mais belas do mundo.
- Não, as sedas mais belas vêm de Lião!"
Miss Findler pôs-se a rir.
Era troça, desdém, simples divertimento? Louise sentia-se pouco à vontade, não sabendo se devia zangar-se ou rir também.
"O azul ficava-lhe lindamente", disse a inglesa. "Condizia com a cor dos seus olhos."
Ela notara esse pormenor. Louise sentiu-se lisonjeada com isso.
Levantando-se pesadamente da cadeira, a nénène Rosalie viera também até junto da mesa e Maria esgueirara-se atrás dela.
A adolescente considerava tantas maravilhas com olhos esbugalhados. Quando os mercadores ambulantes se apresentavam sob a varanda, ela nunca deixava de observar a cena de longe, aproveitando o facto de as patroas estarem demasiado ocupadas para se preocuparem com a sua presença. Muito tempo depois de os vendedores terem partido, com a sua malinha à cabeça, ela conservava a visão deslumbrada dos tecidos expostos, dos bordados, das jóias brilhantes. Mas os esplendores presentes ultrapassavam tudo o que vira antes, nunca se aproximara tanto dessas coisas.
Passado o primeiro momento de embaraço, Louise pusera-se a esquadrinhar com ardor por entre os montes de tecidos. Fazia rolar as peças umas sobre as outras, queria ver tudo. Finalmente, descobriu um pequeno corte cor de alperce e ficou encantada.
Um vestido daquela tonalidade não era nada banal. Ela seria o ponto de mira de todas as elegantes e até Jacques, que nunca notava nada, não deixaria de ficar impressionado com uma toilette tão magnífica.
"Esta seda agrada-me", disse ela.
Nos olhinhos cinzentos de Miss Findler acendeu-se um clarão. Qualquer coisa parecia tê-la surpreendido, talvez a escolha da cor.
"Tem bom gosto, menina, esta seda é muito bonita, muito original, dá perfeitamente com a sua tez. E, como vê, só recebi um corte. Chega à justa para um vestido. Será a única a tê-lo."
A nénène Rosalie não era da mesma opinião.
"A menina não vai comprar esse tecido. Não é uma cor própria para si! A senhora nunca consentirá que use esse vestido. Aliás, é a senhora quem deve escolher. Ela disse para levar apenas amostras. Pode escolher cor-de-rosa, branco ou talvez azul."
Hyppolyte, que todos tinham esquecido e que ficara ao pé da porta,
meteu-se com entusiasmo na conversa.
"Eu acho que a menina tem razão. Seguramente que essa linda seda lhe ficará bem. Far-lhe-á um vestido todo de luz."
A nénène Rosalie sufocava de indignação. Não somente o jovem negro ficara naquela loja, onde não tinha nada que fazer, mas levava a audácia e a indecência a ponto de dar a sua opinião. A sua opinião sobre uma toilette!
"Fazes favor de te ires embora!", gritou ela. "Vai ter com Joseph!"
O escravo correu para a porta. Ouviram-se os seus pés nus descer a escada.
A nénène Rosalie virava-se de novo para a patroa para recomeçar o combate. Mas era demasiado tarde, a derrota estava consumada. Louise nem sequer regateara e aceitara logo o preço pedido por Miss Findler. Pior ainda, a inglesa, agora, apresentava modelos. Todos os vestidos da jovem, até ali, tinham sido executados em casa e eis que uma costureira de fora queria meter-se no assunto.
"O vestido tem de ser feito em casa", disse a nénène Rosalie firmemente.
A jovem fez de conta que não ouvia e continuou a discutir com Miss Findler, enquanto folheava o figurino. Era para a nénène Rosalie o pior insulto. Não só não se respeitava a autoridade que ela encarnava, mas tratavam-na como uma quantidade desprezível, ignoravam-na. Lançou um olhar odiento à inglesa. O mal vinha daquela estrangeira. Bem se dizia que tudo estava a mudar na ilha! Os costumes estavam pervertidos, os escravos permitiam-se dar a sua opinião, as raparigas só faziam o que lhes dava na cabeça.
Quando Louise declarou que precisava do vestido para a semana seguinte, Miss Findler levantou as mãos ao céu.
"Mas é impossível, impossível, estou sobrecarregada de encomendas. E todas essas senhoras querem as suas toilettes para a próxima semana. Que se passa então?
- Vai haver uma festa no teatro. Não ouviu dizer?
- Meu Deus, não. Eu faço os mais lindos vestidos de Port-Louis, mas nunca saio."
Louise olhou de novo para a inglesa de meia-idade com curiosidade. As mãos ossudas continuavam a segurar as fitas e as plumas, que se abriam diante da longa silhueta com uma vivacidade incongruente. Usava um vestido preto, sem graça. Os seus cabelos cinzentos, muito puxados, formavam-Lhe no alto da cabeça um pequeno carrapito. Dir-se-ia um pequeno ninho de passarinho colocado ali por inadvertência.
Miss Findler deixara o seu país na longínqua Europa, suportara meses de fadiga e de desconforto, dobrado o cabo da Boa Esperança, aguentara os maus tempos e as tempestades, para desembarcar finalmente aqui com o seu vestido preto e as suas frioleiras. Porque teria ela vindo viver sozinha nesta ilha? Não tinha então parentes na pátria?
Louise tinha vontade de lhe fazer a pergunta, mas não ousava. Arriscou-se por fim a perguntar:
"É a primeira vez que sai do seu país?
- Sim, aos cinquenta e cinco anos, minha menina."
Louise ficou surpreendida de a ouvir dizer "minha menina". Não eram elas duas inimigas?
"Vive em Londres?", perguntou.
Era a única cidade de Inglaterra cujo nome conhecia.
O olhar de Miss Findler já não estava pousado na rapariga. Fugira para longe, para trás dela, muito para além dessa ilha de sol e de calor, para além da imensidão do mar.
"Eu vivia em Glásgua. Nasci lá. É um porto como aqui, mas a água é cinzenta. O meu pai levava-me ao cais, à tarde. Víamos o Sol a pôr-se. O meu pai fora marinheiro. Falava-me... mas não tem interesse para si, jovem."
Endireitou-se e os seus olhos abandonaram a cidade fria do outro lado do mundo. Por um instante, pareceu admirada de se encontrar na sua lojfe, com os rostos redondos e sem mistério das suas duas assistentes, a janela aberta sobre as papaieiras do pátio e a rapariga, curiosa e desconfiada ao mesmo tempo, que a observava.
"Vamos, estou a dar à língua", disse secamente, "é tempo perdido..."
Mas, no fim de contas, o vestido foi prometido para a semana seguinte, assim como o chapéu condizente e até mesmo uma charpa. Talvez que a lembrança da cidade de céu brumoso tivesse abrandado o coração da velha escocesa.
No salão de Tamarin, a Sr. a De Montaller e François esperavam por Louise, que acabava de se vestir para o espectáculo.
As primeiras pancadas das sete horas soaram, quebrando o silêncio.
Pyrame levantara-se, afilando o focinho, com as orelhas espetadas. Percorreu-o um pequeno estremecimento de excitação. Mas não havia na verdade matéria para intervir. Soltou um suspiro de pena, deixando recair a cabeça sobre as patas.
"A tua irmã leva muito tempo a preparar-se.
- Por enquanto não há pressa. Não estamos atrasados."
A porta do salão abriu-se nesse instante e Louise apareceu. A nénène Rosalie seguia-a. Embora tivesse desaprovado a escolha do tecido, do feitio, das plumas, das fitas, de tudo, o seu rosto agora brilhava de satisfação. François endireitara-se energicamente.
". Meu Deus, Louise, estás encantadora!"
Os olhos da rapariga brilhavam de excitação. Rodopiou sobre si mesma e a comprida saia seguiu-Lhe brandamente o movimento.
"Vai estragar o penteado - resmungou Rosalie. -Não se agite dessa maneira.
- Não é um vestido para uma rapariga - disse a Sra. " De Montaller -, mas confesso que te fica bem. Rosalie, vá procurar a Sra. " D. Mathilde para vir ver a minha filha."
Mas a ordem era inútil. A tia Mathilde aparecia à entrada do salão, seguida pelos dois rapazes. A velha senhora juntou as mãos, em êxtase.
"A nossa Louise vai fazer estragos em todos os corações.
- Porquê estragos? - disse Jérôme -, não é um ciclone."
Lucien lançou-lhe um olhar de desprezo.
"Tu és estúpido de mais para compreenderes!"
Passaram para debaixo da varanda. As cadeirinhas esperavam já junto à escada. Hippolyte surgiu do escuro.
"Menina Louise - gritou ele com entusiasmo - como está bonita! É como a Lua que se levanta sobre o jardim!
- Cala-te lá, gritou a nénène Rosalie. -Ainda andas a rondar por aqui, onde não tens nada que fazer..."
À espera da hora do espectáculo, uma multidão cada vez mais numerosa apinhava-se sob o peristilo e nas cercanias do teatro. Assim, podia-se aproveitar até ao último momento da relativa frescura da noite. As elegantes, aliás, sentiam prazer em se demorar para deixarem admirar as suas toilettes e observarem as das outras. Era uma profusão de plumas, de jóias, de sedas e de bordados.
Desde a derrota, dir-se-ia que um vento de loucura passara pela ilha. As recepções e as festas sucediam-se num ritmo estonteante, sendo todas pretexto para a exibição dum luxo requintado. Estranha bravata dos vencidos para com os vencedores, reflexo de amor-próprio ferido, necessidade desenfreada de prazer também. Os Ingleses tomavam parte em todas essas reuniões. Muitos deles, aliás, estavam em casa de famílias francesas.
Louise também não tinha pressa de abandonar o peristilo. Pela primeira vez, parecia-lhe entrar directamente no universo dos adultos e essa impressão perturbavá-a. Ao sentir os olhares espantados e admirativos deterem-se nela, adivinhava muito bem os pensamentos que se agitavam sob os chapéus: "Mas é a pequena Montaller!... Que transformação, uma verdadeira rapariga agora, e encantadora!"
"Olha", disse François, "o Sr. De Cormick. Até este pobre velho saiu do seu retiro. Esta noite toda a gente está aqui."
Diante da porta do teatro, o venerável fidalgo falava a um convidado, ao qual François não prestou atenção, mas que Louise reconheceu imediatamente. Uma onda de sangue coloriu-lhe as faces. Jacques... Como o Sr. De Cormick os cumprimentava de longe, o seu interlocutor voltou-se maquinalmente. Logo um sorriso lhe iluminou o rosto e ele curvou-se muito, com uma manifesta ostentação.
Louise adivinhava o embaraço do irmão, tornado de repente o ponto de mira duma dúzia de pares de olhos. Por um instante, ele hesitou, depois curvou-se por sua vez.
O Sr. De Cormick adiantava-se: "Que bela surpresa", disse François. "É raro vermo-lo na cidade."
O colono habitava um cochicho na propriedade dum primo e não tinha muitas ocasiões de vir à cidade. De longe em longe apenas, aparecia, imutavelmente anacrónico, com os cabelos empoados, a sua casaca de abas, o seu calção curto e os seus sapatos de fivela.
Jacques embrenhara-se na multidão, onde a rapariga já não o distinguia, apesar da sua elevada estatura. De repente, puseram-se a murmurar em volta deles: "Ei-lo... É o Sr. Bouvet. Aqui está o Sr. Bouvet. " As pessoas cumprimentavam, afastavam-se para dar lugar ao capitão que estava acompanhado por um grupo de amigos e por alguns antigos oficiais da Minerve.
"O capitão não vai ficar muito tempo connosco - disse o Sr. De Cormick. -A A dele deve levantar âncora dentro em pouco.
- Em França, ele defenderá a nossa causa - declarou Louise com calor. - O imperador não nos abandonará."
O velho fidalgo fez uma careta. Era legitimista.
"Entremos! " disse François, "o espectáculo não tarda a começar."
Atrás de Bouvet, a multidão penetrava agora no teatro. François e Louise ocuparam o seu camarote. Quase todos os lugares nos balcões estavam já tomados. Uma animação extrema reinava na plateia. De repente, Louise avistou entre os oficiais ingleses, sentado mesmo por baixo do seu camarote, uma fisionomia que lhe prendeu o olhar. Aqueles cabelos louros, aqueles olhos trocistas, onde é que ela já vira aquele homem?
O oficial também a reconhecera. Cumprimentou-a sorrindo.
François olhava para a irmã com surpresa.
"Conheces aquele inglês?
- Creio que sim: Era um ferido de Grand Port. O padrinho albergou-o e tratou-o. Estava ainda lá em casa quando eu parti."
No fim de contas, ele não ficara muito tempo prisioneiro. A conquista inglesa libertara-o e agora pavoneava-se ali como vencedor, com os outros oficiais. "É só questão de tempo, nós voltaremos... " Ele dissera isso, ou qualquer coisa desse género, quando estava deitado no quarto quentíssimo, cheio de moscas. Era talvez a lembrança dessa profecia que lhe punha agora aquele sorriso nos lábios. Louise examinava-o disfarçadamente, sentindo renascer esse sentimento confuso de irritação, de curiosidade também, que já experimentara aquando do seu primeiro encontro. Que fazia ele então em Port-Louis, presentemente? Sem dúvida, teria ocasião de o encontrar de novo. Mas nesse instante viu Jacques e esqueceu o oficial.
Agora, a sala estava à cunha e o calor tornava-se insuportável. As luzes dos lustres dançavam sobre aquela multidão magnificamente ataviada, enquanto o barulho das vozes subia, descia, como uma enorme respiração, e por toda a parte os leques agitavam o ar.
De repente, correu um sussurro: o governador Farquhar fazia a sua entrada no camarote, rodeado da sua comitiva.
O espectáculo começava. O silêncio caiu sobre a sala e as pessoas, deixando de se espiar, viraram os olhares para o palco. Louise viu uma sombra que deslizava por detrás dos seus assentos.
"É o Sr. Jonathan? -murmurou François.
- Por acaso têm um lugarzinho para mim, meus queridos filhos, não consegui meter-me em parte nenhuma."
Louise lançou um olhar de mau humor ao recém-chegado. O Sr. Jonathan era um vizinho incomodativo porque não parava de fazer comentários e de cochichar durante as representações. Desforrava-se um pouco, é verdade, no momento dos intervalos, porque conhecia toda a gente e tinha sempre escândalos a contar a respeito de uns e de outros.
"Olha! - observou ele assim que a cortina se fechou após a primeira parte do espectáculo-, as Bergère, aquelas finórias conseguiram sentar a sobrinha ao pé de Emilien Labarasque. Motivo para inquietar as nossas boas mães de família. Ainda elas não sabem tudo: o pai Labarasque é muito mais rico do que se diz... A Sr. a De Laumont não está cá. Roubaram-lhe as pérolas! Prefere ficar em casa a sair sem jóias. E obriga o marido a ficar também.
- Há qualquer hipótese de encontrar o ladrão? - perguntou François.
- Nenhuma. Viu o decote da Sr. a Saint-Ange? É caso para perguntar até onde irão as nossas mulheres e o que lhes ficará dentro em pouco para esconder."
A sala começava a esvaziar-se. Durante os intervalos, os espectadores tinham o hábito de voltar ao peristilo para tomarem um pouco de ar.
"Quer sair um bocadinho? " propôs François. "Faz muito calor aqui."
Levantaram-se. Louise observava Jacques, que se afastava em direcção à porta e não a via. Em compensação, surpreendeu o olhar do tenente Bertie, que fingiu ignorar. O capitão Bouvet e os seus companheiros tinham-se levantado também. De chapéus na cabeça, preparavam-se para deixar a sala. Louise pegou na charpa e na bolsa, compôs as pregas da saia. Teria Jacques dado pelo seu vestido novo?
Nesse momento, dominando o sussurro da multidão, ouviu-se o som agudo dum violino. Todos os olhos se levantaram. Quem podia divertir-se a fazer guinchar aquele instrumento?
Era, na galeria superior, um marinheiro inglês manifestamente embriagado.
"Reconhecem o que ele está a tocar?", perguntou o Sr. Jonathan. "É o God save the King. Mas que coisa tão desagradável."
Do fundo da sala saiu a voz de estentor de Jacques:
"Silêncio! Fora o perturbador! " Da plateia e dos camarotes elevaram-se protestos em eco. Mas o bêbado desenfreado tocava cada vez mais alto, encorajado por um grupo ruidoso de camaradas.
Bouvet e os seus companheiros tinham parado, surpreendidos, não compreendendo bem, sem dúvida, o sentido daquela manifestação. E de repente, como a um sinal, os oficiais ingleses que se encontravam em volta deles descobriram-se, ao mesmo tempo que entoavam o canto por sua vez. Então de toda a parte, elevaram-se gritos.
"Descubram-se! Descubram-se!..."
De uns para os outros, o entusiasmo dominava os espectadores britânicos. Abafado pelas vociferações, já nem sequer se ouvia o violino que desencadeara a tormenta.
No seu camarote, o governador mantinha-se impassível. Mas todos os olhares estavam fixos nele, perguntando-se cada um se ia ficar sentado, enquanto os compatriotas cantavam o seu hino nacional. Ele levantou-se, imitado por todos aqueles que o rodeavam.
"Insultam-nos - gritou Louise. -François, podemos suportar isto?
-Não!
- Não se excitem-suplicava o Sr. Jonathan, agarrando-se ao braço do jovem. -É uma coisa preparada, uma provocação. É só ao Sr. Bouvet que todos estes energúmenos querem mal."
Louise sentia o coração bater-lhe com fortes pancadas.
"Com certeza, não podem suportar ver aqui o vencedor do Grand Port."
"Descubram-se! Descubram-se!... " Com efeito, era directamente a Bouvet e aos seus companheiros que todos os gritos agora se dirigiam.
Os oficiais franceses permaneciam imóveis, sempre de cabeça coberta, no meio da multidão que se excitava à sua volta. Os protestos dos espectadores franceses eram submersos pelos gritos frenéticos que continuavam: "Descubram-se! Descubram-se!"
Alguns punhos se estenderam. Um major britânico desembainhou a espada. Um oficial francês, empurrando os que o rodeavam, correu para salvar o seu chefe.
"Vou lá!", exclamou François.
Com agilidade, apesar da ferida da perna, saltou por sobre a balaustrada do camarote e deixou-se escorregar para a sala. Louise e o Sr. Jonathan, debruçados por sobre o vácuo, viram-no aterrar nas costas das poltronas, no meio dos espectadores. Dos camarotes vizinhos, seguindo o seu exemplo, alguns franceses saltavam de todos os lados.
"É absurdo, absurdo", gemia o Sr. Jonathan. Vão-se massacrar por um mal-entendido e porque um punhado de agitadores conseguiu semear a discórdia!"
No centro da plateia, a situação tornava-se cada vez mais confusa. O Sr. Perier d'Hauterive, cunhado de Bouvet, acabava por sua vez de se atirar do balcão para a sala. De todos os lados, agora, as armas saíam das bainhas. Bouvet agarrou na sua bengala-espada.
Nesse instante, um dos assaltantes britânicos conseguiu apoderar-se do chapéu dum oficial francês e fê-lo voar para longe, por cima das cabeças. Então, como se esse gesto tivesse bruscamente desembriagado a multidão, exorcizado as fúrias, o silêncio encheu o teatro.
Os espectadores que, um momento antes, se comprimiam em volta de Bouvet afastavam-se agora. Ele conservava-se imóvel na passagem, com o chapéu ainda na cabeça e os braços cruzados.
"Bravo! Srs. Ingleses!", gritou ele, "acabam de ganhar uma gloriosa vitória sobre um homem desarmado..."
O governador sentara-se de novo no camarote, com o rosto impassível. Um sentimento de entorpecimento e de embaraço pesava agora sobre a assistência, os olhares evitavam-se. Que raiva súbita se apoderara deles? Como é que a cortesia, as amabilidades, os sorrisos dispensados um momento antes, tinham podido transformar-se naquela explosão de ódio e de violência?
"O Sr. Farquhar deve estar furioso! - murmurou o Sr. Jonathan. - Aposto qua amanhã choverão censuras e avisos.
- Talvez, mas era publicamente que se deviam denunciar estes brutos. Não, senhor, os Ingleses odeiam-nos, apesar da sua pretendida benevolência. Vejam, na primeira ocasião levantam-se todos contra nós.
- Vamos ter com o seu irmão, vejo que ele vai sair."
Os corredores estavam cheios de grupos de excitados que comentavam os acontecimentos. No meio dum deles, Louise viu o primo, que ria e parecia muito mais divertido do que escandalizado com o incidente. Sob o peristilo, encontraram François.
"Já ia procurá-los", disse ele. "O capitão Bouvet e os seus oficiais já abandonaram o local. A maior parte dos nossos amigos imita-os..."
Pelas portas abertas, as luzes do teatro chegavam até eles. Mas já não era a alegria e o entusiasmo da chegada. Uma atmosfera de mal-estar pesava sobre a multidão que, lentamente, se dispersava.
"Suplico-lhes, não se vão embora", disse uma voz próxima, a do tenente Bertie. "Não se vão embora!", repetiu ele. "Os meus compatriotas conduziram-se muito mal e eu sinto vergonha por eles. Mas muitos já o lastimam. Desculpem-nos a eles. Desculpem-nos a nós."
Houve um instante de embaraço.
"Obrigado, senhor - disse por fim François. - As suas palavras tocam-nos. Mas não podemos, esta noite, voltar ao espectáculo como se nada se tivesse passado. Deve compreender isso. É uma questão de dignidade.
- Sim, sem dúvida... Lastimo muito. Permitam-me que os acompanhe."
O tenente observava Louise disfarçadamente. Estava fascinado pelos olhos azuis, cheios de sombrios reflexos. "Se não a tivessem educado tão bem", pensava ele, "ela atirar-se-me-ia ao pescoço."
"Aqui está uma festa estragada - suspirou o Sr. Jonathan. - E estupidamente...
- Sim, de facto", disse o inglês.
Ao chegarem ao pé das cadeirinhas, o tenente estendeu a mão à rapariga para a ajudar a subir. Ela aceitou-a, contrariada, mal reprimindo um primeiro movimento de cólera.
Victor de Montaller observava o filho, prostrado alguns passos à sua frente. De quem é que aquele rapaz herdara a sua elevada estatura?
Tivera de baixar a cabeça, há pouco, para passar sob o vaso de espargos suspenso à entrada da varanda. Victor fora sempre um alfenim e a mulher, pelo que se lembrava, também não era muito alta. Quanto ao resto, Jacques era bem um Montaller, inclusive na insolência.
"Há quanto tempo não me vinhas ver? -resmungou o velho. - À falta de afeição, não te peço tanto, o respeito e até a simples correcção deveriam incitar-te a procurar por vezes notícias de teu pai.
- Eu sabia que estava de saúde.
- Nunca estive mais doente. O reumatismo, o estômago... Mas não insisto; essas histórias, evidentemente, não te interessam de todo. Mesmo assim, senta-te, se tens um momento a perder. Queres beber qualquer coisa?", acrescentou sem calor.
O velho Victor nunca oferecia álcool. Em casa dele só se serviam xaropes, infusões e água de coco. O chá estava banido. Essa bebida mundana e frívola parecia-lhe suspeita.
Um galo dos bosques entrou para debaixo da varanda e veio empoleirar-se nas costas dum cadeirão, mesmo por detrás da cabeça do colono. Jacques conhecia aquele visitante e sempre se espantara com a sua presença. Que é que o podia atrair ali? O pai prestava-lhe apenas uma atenção malévola e distraída. Por vezes, queixava-se de que o pássaro sujava os ladrilhos. Dizia que o mandaria matar pelo jardineiro.
"Tu vestes-te como um peralvilho", continuou o velho, "a tua gravata é grande de mais e essas botas são ridículas. Suponho que tudo isso é muito caro. Eis em que gastas o teu dinheiro. Tens necessidade de todas essas extravagâncias para me vires visitar?"
Jacques suspirou e sentou-se.
"Vim informá-lo dum projecto, meu pai. Receio que lhe desagrade. Mas o respeito que lhe devo, pense o que pensar, faz disso um dever para mim.
- Que projecto? - disse o colono com desconfiança.
-Vou casar-me, meu pai."
O velho deu um salto como se tivesse sido picado por uma cantárida, engasgou-se com o gole de xarope que engolia e pousou o copo na mesa tão bruscamente, junto de si, que este se partiu.
"Casares-te, casares-te! - gritava ele no meio dos seus soluços. -Anuncias-me isso Como uma coisa decidida. Pediste o meu conselho e o meu acordo?
- Já não sou um garoto."
O líquido corria em regueiros sobre a madeira envernizada e começava a cair para o chão. O pássaro, desvairado, voou.
"Ah! queres casar-te", continuava o colono, "mas uma mulher é um abismo de despesas! Precisa de jóias, de vestidos, de bugigangas sem fim. E onde a alojarás? As mulheres querem belas casas com criados e jardineiros. Tu só tens alguns negros e vives numa choupana. Ah! a fachada é bela", troçava o velho apontando com o dedo para a gravata à moda de Paris, "mas quanto dinheiro tens nas algibeiras? Caius Gracchus!", pôs-se ele a gritar de repente, "vem limpar a água que caiu aqui."
O velho Fanchin, chamado Caius Gracchus após a Revolução, não respondeu. Dormia fora do alcance da voz, à sombra dum maciço de roussailliers.
Jacques, saracoteou-se, incomodado pelas costas muito direitas do seu assento, em busca duma posição menos desconfortável.
"É certo- disse ele-que, se me tivesse ajudado um pouco, a minha situação seria melhor.
- Quando quis mandar-te para as minhas plantações, recusaste. O senhor preferia correr os mares! A época do negócio marítimo e dos lucros passara, mas tu nunca quiseste ouvir conselhos. Agora, a tua Créole está nas mãos dos Ingleses, segundo o que ouvi dizer. Pergunto a mim mesmo de que vives. Da generosidade de algumas relações, talvez? E eis o momento que escolhes para me vires anunciar tranquilamente o teu casamento. Pensas, sem dúvida, que vou instalar-te e dar-te uma renda. Estás doido, meu rapaz, completamente doido! Os tempos são duros para toda a gente..."
O jovem brincava com uma varinha de bambu, com a que batia nervosamente nas botas.
"Eu não vim pedir-lhe dinheiro", gritou ele violentamente, "embora estivesse no direito, afinal, de lhe reclamar a herança de minha mãe. Mas deixemos isso. E fique sabendo que não vivo da caridade de ninguém. Venho de Borbom, onde vendi um carregamento de lã e de sementes.
- Quanto tempo poderás viver disso?
- Com a breca, meu pai! Até parece que se sente feliz com as minhas dificuldades e com uma falta de dinheiro que não faz nada para me evitar, como seria o seu dever."
O ruído da varinha, batendo no couro, exasperava o velho. Pôs-se a gritar:
"O meu dever, o meu dever! Queres agora ensinar-me qual é o meu dever! Que insolência! Sempre foste uma criança revoltada. Ao cresceres, tornaste-te pior ainda. E olha, pára lá com esse barulho insuportável."
Jacques agarrou na varinha com as suas mãos, partiu-a e lançou os dois bocados à toa, por cima da balaustrada da varanda.
"Não tenho tempo a perder - disse ele raivosamente. -Só vim para o informar do meu casamento e lhe pedir, por pró-forma, uma autorização que me vai recusar. Vou casar com a minha prima Louise.
- Como?
- Louise, a filha de Charles, o seu velho inimigo."
Fez-se silêncio. Silêncio de abismo e de catástrofe. Assim o centro dum ciclone, essa encruzilhada de vazio entre os turbilhões da tempestade, pára um instante sobre as coisas antes de as varrer.
A filha de Charles e de Adeline! A filha de Adeline! A pequena que ali viera e que, por um instante, tanto se parecera com a mãe. Então aquela história nunca mais acabaria? Nunca mais o deixariam tranquilo? A filha de Adeline ia casar com o seu filho: aquele malandro que sempre troçara dele desde que, rapazinho, se rebolava no chão e se recusava a obedecer; àquela cabeça de mula; aquele mal dotado para os negócios, que não queria ouvir nada e acabaria como um vagabundo; aquele latagão demasiado alto, de botas ridículas, cujas cóleras se transformavam de repente em riso, não se sabia porquê. Que é que ela lhe encontrava então de tão extraordinário? Se ele próprio, outrora, se tivesse parecido com Jacques, talvez que também Adeline o tivesse amado... Sim, talvez, por causa daqueles ombros de marinheiro, do andar pretensioso e das botas de viras amarelas. Oh! as mulheres, as mulheres!... Miséria das mulheres!
"Nunca!", pôs-se ele a gritar. "Nunca casarás com essa rapariga, essa descarada! Ela veio aqui, ousou, a minha casa, aqui mesmo..."
Jacques pôs-se a rir.
"Caramba! ela teve muita coragem em vir desafiar o papão no seu covil! E por amor de mim.
- Por amor, por amor... Julgas que ela te ama! Pobre louco, porventura as mulheres amam? Nenhuma! Nada no coração. E cérebros de pit-pits. Primeiro, como é que a conheceste? Eu proibira-te de frequentares essa família. Mas, naturalmente, não fizeste caso, muito contente por troçares de teu pai. Sabes todavia tudo o que nos separa, o passado... E é essa rapariga que vais escolher, entre todas as meninas da ilha! Fazes de propósito, palavra de honra, para achincalhares teu pai!"
As explosões desta cólera subiam tão alto, rolavam tão longe, que, dessa vez, Caius Gracchus
Pequena ave de penas castanhas, mais ou menos riscada, de forma esguia, bico fino e cauda bastante comprida.
acordou no seu retiro. Prestou atenção. Mas não conseguia perceber as palavras do senhor. Então, tremendo de medo e de curiosidade, deslizou até às proximidades da varanda e agachou-se sob as flores-de-sapato.
Se o senhor resmungava muitas vezes, raramente elevava o tom. Aquela cólera magistral e tonitruante era um acontecimento único que não se repetiria talvez mais e que não se devia perder.
"Bom Deus! - pôs-se Jacques a gritar. Essas velhas histórias não poderiam ser enterradas e esquecidas de uma vez para sempre? Essa pobre Adeline morreu há quinze anos. Porque é que eu tenho de pagar os seus ressaibos amorosos? Meu pai, pergunto a mim mesmo se não está com ciúmes de mim...
- Ciúmes!", repetiu o velho.
Estava lívido, com a agitação, as cores da vida apagadas de repente.
Dir-se-ia uma múmia, arrancada às suas ligaduras e regressada do fundo das idades.
"Ciúmes...", recomeçou ele, "ousas falar assim ao teu pai. Ciúmes..."
O golpe atingira-o no mais sensível de si próprio: o orgulho.
Ciumento do seu próprio filho, ele! o personagem mais considerável da ilha. Verdade tanto mais cruel quanto era justamente aquele rapaz, que ele sempre considerara como um ingénuo que a descobria.
De repente, endireitou toda a sua fraca figura, de braços abertos. "Ele é grotesco!", pensou Jacques. Todavia, já não tinha vontade de rir diante daquela face pálida, daquela atitude grandiloquente tão estranha à fria e trocista moderação habitual de seu pai.
"Amaldiçoo-te, mau filho! Não apareças mais à minha frente. Não entres mais nesta casa. Nunca mais voltarei a ver-te!"
Sob os maciços de flores-de-sapato, Caius Gracchus tremia da cabeça aos pés. Parecia-lhe que a cólera do senhor se comunicava às próprias coisas, que impregnava o ar húmido e ardente, recaía sobre a terra, a penetrava, insinuando-se até às raízes das plantas, que a bebiam e lhe guardariam para sempre o veneno. Como lamentava agora ter cedido à curiosidade e ter vindo até ali!
"Filho maldito! Não terás um tostão de mim, nem hoje nem mais tarde, nem depois da minha morte. Deserdo-te!"
O escravo deitou-se no chão, com as mãos coladas aos ouvidos. "Santa Mãe Maria, S. Luís, nosso bom patrono..."
O fogo do céu ia cair agora e reduzir tudo a cinzas: o jardim, a casa e o filho revoltado.
Entre as folhas dos maciços, viu o jovem agarrar no chapéu, abandonar bruscamente a varanda, batendo com a cabeça no vaso de espargos, e atravessar o relvado a grandes passadas furiosas, enquanto atrás dele rolava sempre a enorme e magnífica cólera: "Maldito! maldito!..."
O pequeno Lucien, escarranchado na sua tartaruga gigante, raspava-lhe a carapaça com uma pedra. O animal, irritado, endireitava-se de vez em quando sobre as suas enormes patas, dava uns passos aos baldões, depois caía de novo na sua inércia. A criança enervava-se: "Vamos, Charlotte, vá! anda! " E raspava com mais força.
"Que está a fazer a esse infeliz animal, jovem? Veja, está a dar-lhe cabo da carapaça."
A criança voltou-se e viu Miss Findler. Não dera por ela vir.
Conservava-se a uns passos dele, hirta, severa, acompanhada duma escrava que levava um cesto.
A pedra, não há dúvida, deixara uns riscos no dorso do animal. Lucien experimentou com isso um pouco de confusão e tentou fazê-los desaparecer esfregando-as com a palma da mão. Mas em breve se refez. Afinal, que é que aquela velha tinha a ver com isso? Era a sua tartaruga.
"Isto não lhe faz mal. Faz-lhe um pouco de cócegas, e então ela põe-se a andar para se sacudir."
Falava com delicadeza e condescendência. Mesmo o tom conveniente para uma pessoa de idade, mas que era, ao mesmo tempo, uma inglesa, uma inimiga. Além disso, não se podia considerá-la verdadeiramente como uma senhora. Ela fazia vestidos e andava a pé. As senhoras só se deslocam em cadeirinhas ou em palanquins.
Miss Findler dirigira-se para a casa no seu passo seco, enquanto a criada negra a seguia, oscilando indolentemente com o traseiro e as ancas.
Maria, que dormitava num canto da varanda, correu a prevenir Louise da chegada da visitante. A rapariga estava a fazer a sesta. Levantou-se à pressa. A nénène Rosalie apareceu por sua vez. O mínimo acontecimento encontrava-a alerta, pronta a intervir.
"Aquela senhora", protestou ela, "nunca chega a horas convenientes. Incomoda as pessoas enquanto dormem. Tornou a vir a pé. Com certeza que é maluca, essa inglesa. A senhora não devia deixá-la entrar aqui. Não é um convívio próprio para si. E aquelas toilettes, aquelas toilettes... Não é preciso tudo aquilo. Não se deve gastar mal o dinheiro. Se o pobre senhor soubesse...
-Vai lá buscá-la - cortou Louise. -Ela traz o vestido para o piquenique de amanhã.
-O seu vestido cor-de-rosa estava muito bom ainda. É mesmo o que serve bem para a beira-mar.
-Toda a gente o conhece. E depois, tu aborreces-me. Vai buscar a Miss Findler."
Havia semanas que aquele passeio à beira-mar estava decidido e a jovem esperava-o com impaciência. Com efeito, ao saber do projecto, Jacques declarara que sairia de Port-Louis, por seu lado, e iria abordar numa praia próxima do lugar da reunião. "Hippolyte far-te-á sinal, meu coraçãozinho", dissera-lhe ele, "e tu encontrarás maneira de te escapares por um momento para vires ter comigo enquanto as pessoas estiverem a digerir sob os coqueiros."
A perspectiva daquela escapadela divertia o jovem. Tinha muitos momentos livres agora e os dias pareciam-lhe compridos desde que a sua escuna estava parada.
A inglesa entrou, hirta, com a cabeça direita. E imediatamente, o ar carregou-se de electricidade, como à aproximação da tempestade. Era sempre assim quando Miss Findler vinha visitá-las. Louise experimentava uma impressão de tensão insuportável. A todo o instante, havia ameaças de conflito. E, inelutavelmente, ele surgia, porque uma ou outra, exasperada de esperar, acabava por romper hostilidades. Louise tremia por isso de cólera e de alegria também: uma estranha alegria secreta que fazia mal e aliviava ao mesmo tempo.
Ninguém na ilha de França se parecia com Miss Findler. Aqui, a boa educação punha uma máscara em todos os rostos. Podia-se estar certo de que, em todas as circunstâncias, um freio interviria, os limites da decência não seriam ultrapassados. Enquanto com a rudeza da velha senhora todos os temores e esperanças inconfessados eram permitidos.
"As raparigas não deviam apertar tanto os espartilhos", disse Miss Findler examinando Louise com olhar severo. "Ficam sufocadas e isso é ridículo. Acham que um rapaz deseja segurar um cabo de vassoura nos braços?"
A jovem ficou por um momento aturdida. Como é que Miss Findler, uma solteirona da sua idade podia proferir palavras tão incongruentes? Felizmente que a nénène Rosalie saíra da sala.
"A senhora não usa também espartilho? - disse ela com irritação.
- Nem por sombras. São os músculos e a vontade que devem suster o corpo e não barbas de baleia e cordões. As raparigas não querem compreender isso."
Os músculos é que devem suster o corpo. Que é que aquilo significava? Onde é que Miss Findler ia buscar ideias tão esquisitas?
Entretanto, a criada tirara do cesto o vestido novo e Louise esqueceu tudo o mais. Que maravilha! Em cambraia azul-pálida.
"Vou experimentá-lo? exclamou ela.
A criada ajudou-a a vestir-se. Miss Findler vigiava a operação. De vez em quando levantava-se do seu assento para fazer tufar as manguinhas, ajustar a cintura, verificar a abotoadura.
"Vai-lhe a matar", disse ela por fim. "Não há uma prega, um ponto a emendar."
Quando Miss Findler dizia às suas clientes que um vestido lhes ia a matar, tinha de se compreender que ela se colocava no ponto de vista da compradora. No que lhe dizia respeito, nunca teria consentido em usar aquelas loucas toilettes ao gosto francês. Enquanto cobria as senhoras da ilha de festões, de bordados, de plumas, não queria usar senão severos canudos à moda do seu país. E os seus minúsculos chapéus excitavam a piedade, ao mesmo tempo que o espanto mais profundo.
"A que reunião se destina este vestido?
-Vamos fazer um piquenique amanhã à Pointe au Sable. As Dumont Tillac convidaram-nos."
Miss Findler deixara o corpo decair para. as costas da poltrona. De repente, pareceu tomar consciência dessa fraqueza, endireitou-se num golpe de rins e ficou muito empertigada na cadeira, com o rosto severo. Acontecia-lhe sorrir, mas nunca sem razão. Uma amabilidade sem causa é apenas hipocrisia.
"Um dos meus compatriotas está em casa dos Dumont Tillac- disse ela.
- Quem?
- O tenente Bertie.
- Ele não vive em casa deles.
- Vive, há alguns dias. Esse pobre rapaz tivera de deixar o seu domicílio e encontrava-se na rua. A Sr. a Dumont Tillac teve a bondade de o acolher e hospedar. Tenho de reconhecer que os seus compatriotas têm o sentido da hospitalidade.
- Em demasia-lançou a jovem com cólera.
- Não somos ainda inimigos?"
Dessa vez, as hostilidades estavam abertas. Louise esperava a réplica de Miss Findler com uma mistura de receio e excitação. A cólera sustinha-a. No entanto, mesmo nesse instante, ela estava consciente daquilo que a posição dos colonos em relação aos ocupantes tinha de ambíguo. Não se sentiam num terreno estável. A sua irritação aumentou mais por isso.
"Os seus amigos têm melhor coração do que a menina - respondeu Miss Findler. - Estão com certeza mais ao par da situação também. Sabem bem que nós ficaremos aqui por muito tempo, para sempre- O bom entendimento, eis a melhor política que os seus colonos podem adoptar.
- Os Tillac não fizeram com certeza esse raciocínio - replicou Louise. -Eles sabem muito bem, aliás, como toda a gente aqui, que os Ingleses não ficarão na ilha. Os Franceses voltarão e expulsar-vos-ão a todos, até ao último!... Então, ficaremos livres de novo e esse será o mais belo dia da nossa história."
Tremia de indignação. Talvez que tivesse ultrapassado um pouco os limites. Esperava confusamente que Miss Findler se deixasse irritar por sua vez e respondesse no mesmo tom, o que restabeleceria o equilíbrio. Mas não aconteceu nada disso, Miss Findler nunca perdia o sangue-frio.
Lia-se o pânico no rosto da criada sentada no chão junto do cesto vazio. Oxalá que a nénène Rosalie não tivesse ouvido e não fosse meter-se naquele assunto!
Miss Findler levantou-se para compor o laço da cintura, que se deslocara.
"Não passa duma criança", observou ela, em tom calmo e uniforme.
Louise era bastante nova ainda para que essa alusão a ferisse. No entanto, fez um esforço para abafar a sua fúria.
"O futuro dirá qual de nós tem razão", murmurou ela.
A inglesa voltara a sentar-se.
"Será", disse ela, "uma história longa e honesta, a dum casamento de interesse."
Houve um momento de silêncio. Miss Findler olhava distraidamente para um lagarto colado à parede. O pequeno corpo gelatinoso do animal mal se via sobre o fundo cinzento. Todavia, adivinhava-se pelas palpitações do pescoço que todo o seu corpo permanecia em alerta. Que um insecto tivesse a infelicidade de se aventurar naquelas paragens e estaria perdido.
"Já encontrou o tenente Bertie?", perguntou Miss Findler.
Aquele jovem parecia verdadeiramente interessá-la, na qualidade de compatriota, evidentemente. Era talvez também natural daquela mesma cidade de bruma e de água cinzenta. Louise esquecera-se de procurar o seu nome no atlas de François.
"Sim", disse ela, "encontrei o Sr. Bertie duas vezes. A segunda, no teatro. Foi no dia em que os seus compatriotas se comportaram tão malcriadamente, em que insultaram o Sr. Bouvet e a nossa pátria."
Louise julgou por um instante que aquelas palavras iam reacender a guerra. De novo se crispou, pronta para o assalto.
"Com efeito", disse Miss Findler, em voz alta e clara, "foi uma péssima acção. " Depois duma curta hesitação, acrescentou: "Envergonho-me disso."
Com a velha senhora, a honestidade e a franqueza nunca perdiam os seus direitos. Já em muitas outras ocasiões elas tinham desarmado Louise. Dessa vez ainda ela sentiu o seu ódio fundir-se. Mas a visita estava terminada. Miss Findler caminhava já para a porta com o seu andar resoluto. Ia a transpor o limiar, quando se voltou para lançar estas palavras surpreendentes:
"O tenente Bertie possui todas as qualidades que uma mulher pode desejar. A que casar com ele será a mais feliz da ilha..."
Louise pôs-se a rir. O futuro do tenente em nada podia dizer-lhe respeito. Em breve ele voltaria para o seu país e, com o seu bonito rosto, as suas elegantes maneiras, a auréola das suas aventuras, tornar-se-ia seguramente a coqueluche de todas as senhoras.
A partida de Port-Louis efectuara-se pela alvorada, em duas embarcações à vela.
Não podia ser menos para transportar os membros das famílias Montaller e Tillac, aos quais se juntara o tenente Bertie, sem falar dos marinheiros necessários à manobra, duma multidão de criados e de todos os utensílios, esteiras e móveis julgados indispensáveis para a deslocação.
Só a Mamã-Doce não ousara sair de Tamarin e largar a porta fechada do marido. Aliás, as fadigas dum dia ao ar livre, o calor e os insectos teriam bastado para a afastar da ideia do passeio.
Passara-se já a Grande Rivière Nord-Ouest, as barcas aproximavam-se da Pointe au Sable.
O tenente Bertie esforçava-se por responder com afabilidade aos comentários do Sr. Dumont Tillac, que lhe indicava, ao passarem, os sítios interessantes da costa, mas o seu olhar voltava sem cessar a Louise, sentada um pouco mais longe, entre os seus dois irmãozinhos.
Como ela era bela e perturbadora! No seu país tê-la-iam considerado ainda como uma adolescente. Mas aqui era já uma mulher. A sombra da vela que ia e vinha sobre o seu rosto mergulhava-a de repente numa deslumbrante fornalha e, um instante depois, o modelado das faces, o carnudo dos lábios, desenhavam-se no claro-escuro com uma delicadeza extraordinária. Ela tinha dificuldade em defender do vento o seu grande chapéu de pandano e os seus cabelos desfeitos enrolavam-se-lhe no pescoço.
De longe, a nénène Rosalie observava com irritação a desordem daquele penteado. Assim que chegasse, teria de lho pôr em ordem. A atitude do tenente não lhe escapara. Que queria afinal aquele senhor inglês? É decente olhar para uma menina daquela maneira?
As duas barcas estavam ancoradas agora, lado a lado, à beira da água e os negros andavam para cá e para lá para transportarem as crianças e as senhoras, instaladas em cadeirões de rotim.
O tenente aproximou-se de Louise.
"Quer que a leve até à praia, ou prefere esperar pelos seus negros?"
Ela olhou-o sem brandura. Porque se intrometia aquele rapaz?
"Desembaraçar-me-ei muito bem sozinha", lançou ela.
Tirava já os sapatos e as meias. A água mal lhe chegava às barrigas das pernas. Mas uma rapariga não deve exibir-se assim aos olhos dos escravos e dum jovem desconhecido. A tia Mathilde avançou, escandalizada e preocupada.
"Louise, sai daí. Depressa... Podes ser picada por um laff. Meu Deus, esta pequena não quer ouvir ninguém. François, vigia a tua irmã!"
Acabava o desembarque e o Sr. Dumont Tillac fazia o toque de chamada.
Peixe cuja picada é perigosa; peixe-aranha.
"Não fiquemos aqui, minhas senhoras, meus meninos. O sol está forte de mais, vamos para acolá, para debaixo dos coqueiros."
Puseram-se a caminho pela areia mole e escaldante, em direcção à delgada cortina de árvores ao longo da praia. O Sol estava quase no zénite. As sombras estreitas das palmas repousavam no solo brilhante, com a delicadeza e a precisão duma renda preta.
Tendo alcançado aquele abrigo precário, os piquenicantes ficaram por um momento indecisos sob o calor opressivo. Os olhos fechavam-se, ofuscados pelo reflexo do ar por cima da praia e da laguna imóvel, resplandecente como uma enorme jóia de esmalte.
"Vamos ter um dia magnífico", disse o Sr. Tillac em voz alta.
E esforçou-se logo por reavivar as coragens que desfaleciam. Os escravos trouxeram almofadas, esteiras e assentos para as senhoras, depois começaram a pôr a mesa. Sob a direcção do Sr. Dumont Tillac, puseram a refrescar, no mar, os garrafões de vinho e de limonada.
Louise sentou-se entre Marie-Agnês, a filha mais velha dos Dumont Tillac, e seu irmão Justin. O jovem fazia-lhe uma corte tímida e desajeitada, que a divertia por vezes, mas que geralmente a irritava. Era um rapaz gordo, de cabelos leves e moles, de boca grossa. Olhos à flor da cara, dum azul aquoso e trémulo, davam-lhe o ar de estar sempre à beira das lágrimas. Parecia-se com Marie-Agnès, de quem era ao mesmo tempo uma espécie de caricatura. O que era nela cor dourada, graça, tornava-se nele insipidez. Ela era redondinha, ele era pesadão. A timidez da rapariga, a sua doçura, transformavam-se no irmão, não obstante ser muito bom rapaz, numa espécie de apatia.
O tenente sentou-se em frente de Louise, junto do Sr. Tillac.
"Que é isso? - perguntou ele ao seu vizinho, que lhe apresentava uma marmita cheia de arroz amarelo.
-Um dos nossos pratos preferidos, caro senhor, piau. Prove, e depois me dirá.
-Espero que o seu cozinheiro não tenha carregado muito no pimento! " Com desconfiança, ele via cair-lhe no prato o arroz fortemente colorido pelo açafrão, os bocados de carne, os cravos-da-índia, os pauzinhos de canela.
"Vamos, vamos!", gracejava o Sr. Tillac, "é uma questão de hábito. Em breve estará tão acostumado como nós!"
Os Dumont Tillac testemunhavam muita amizade pelo seu hóspede desde que tinham percebido que Bertie era católico. "É um jovem em todos os pontos perfeito", declarava o Sr. Tillac. Sem dúvida, pensava ele, que, inglês ou não, poderia dar um marido muito conveniente para uma das suas filhas. "Aliás", agradava-lhe sublinhar, "a mãe dele é francesa, filha dum fidalgo normando."
Louise escutava vagamente as conversas à sua volta, enquanto o seu olhar errava ao longe sobre a linha branca dos recifes e sobre o horizonte em fogo. O seu coração pulava de alegria. Em breve, ele estaria ali... Depois, a inquietação aumentava de repente. Contanto que ele venha, e que não chegue demasiado tarde. Porque não haveria nenhuma vela à vista?
"Vejamos, Louise, estás a sonhar. O Sr. Bertie está a oferecer-te os doces."
Ela sobressaltou-se. Marie-Agnès empurrava-lhe vivamente o cotovelo. O rosto do inglês surgiu em primeiro plano, por entre as leves sombras que caíam dos coqueiros.
"Obrigada."
O seu primeiro gesto fora o de afastar a travessa que o jovem lhe estendia, mas reconsiderou e tirou um bolo.
"Você partira para muito longe", disse o tenente.
As senhoras levantavam-se sem pressa. Sacudiam a areia do vestido, procuravam as sombrinhas e os chapéus. O calor, ali, era na verdade intenso de mais. Retiravam-se em fila para um bosquezinho de "pandanus". Depois, tendo os escravos instalado esteiras e almofadas, puseram-se à vontade para a sesta. As crianças, deitadas pelas nénènes, tinham de dormir por seu lado.
Tendo conseguido escapar à solicitude da tia Mathilde e às tagarelices de Marie-Agnès, Louise tinha-se afastado do grupo, dissimulada em parte pelas altas raízes dum bosquezinho de pandanos. Assim, Hippolyte poderia vir ter com ela sem dificuldade. Um escravo a atravessar o bosque não atrairia a atenção de ninguém.
Mas, à medida que o tempo passava, a sua ansiedade e a sua impaciência exasperavam-se. Ele já não viria, ou então seria demasiado tarde, e Marie-Agnès, que nunca dormia muito tempo, encontraria o seu esconderijo e viria maçá-la com confidências.
Um leve assobio, como um grito de pássaro, ressoou ao longe e, um momento mais tarde, a cabeça de Hippolyte apareceu por entre as folhagens. "O meu patrão está ali", soprou ele. "Espera-a detrás da ponta."
Louise levantou-se precipitadamente, esforçando-se todavia por ficar dissimulada o mais possível por detrás das árvores.
"Deixe lá a sombrinha, menina, e o xaile", disse o escravo. "Assim, julgarão que ainda está a dormir."
Para além do bosque de pandanos, a praia continuava na sua insustentável brancura. Contornaram uma pequena angra. Um montículo, coberto de grama e de esqueletos' de arbustos, estava-lhe sobranceiro.
"O meu patrão está do outro lado", disse Hippolyte. "Disse-me para ficar aqui a vigiar. Vá, menina Louise, não tem nada a temer."
Ela escalou a crista, correndo quase, apesar do calor. Do outro lado, Jacques espreitava-a, sentado entre os maciços de veludilhos. Alguns metros abaixo estava ancorada a sua barca.
Por um momento, sem fôlego, ela parou, enquanto lhe passava diante dos olhos uma vaga de estrelas que vinham do mar, do céu, da areia crivada de palhetas. Depois, como o jovem se levantara e avançava ao seu encontro; lançou-se-lhe nos braços.
"Eu tinha tanto medo que não pudesses...
- É o que dizes em todos os nossos encontros. E, como vês, cá estou.
- Mas, se um dia...
- Tolice, meu coraçãozinho, estarei sempre cá! Porquê tantas preocupações?"
Ele arrastava-a para a sombra escassa e leve dos veludilhos. Sentaram-se e ficaram por um momento silenciosos diante do golfo de fogo, a seus. pés. Ela encostou-lhe a cabeça no ombro.
"Estiveste com o teu pai?
- Sim, esse velho louco.
- E então?"
A voz tremia-lhe de inquietação. "Não quer ouvir falar nisso, naturalmente. Deserda-me. -E pode?
- Não, não creio... Quero dizer por testamento, após a sua morte. Mas, de momento, não me dará nada, nem um tostão."
Louise apertou-se mais contra ele. Sentia o ardor da sua carne através da camisa encharcada em suor. As suas mãos uniam-se numa onda de febre.
"Não temos necessidade de dinheiro - balbuciou ela.
- E como havias tu de viver, meu coraçãozinho? Não tens vontade de ter jóias e uma bela casa cheia de criadas, de nénènes e de jardineiros? Parece que é esse o sonho de todas as mulheres. Que pensariam os teus pais, astuas amigas, as Sras. Bergère e todas essas catatuas da cidade, se eu te instalasse numa choupana? Se não tivéssemos nem cavalos nem palanquins?
- Quero lá saber do dinheiro, das Sras. Bergère e de tudo o mais. De tudo! Só quero estar contigo, Jacques, só contigo."
Ele deitava-a nos braços, embalava-a como a uma criança. Ela teve um soluço:
"Que é que vai ser de nós? Nunca o teu pai nem o meu aceitarão o nosso casamento. Tu não queres esperar e eu também não...
"Pois bem, então -pôs-se ela a gritar - vamos embora, Jacques. Partamos ambos, para longe daqui e de toda a gente. Vamos para França. Ajudar-nos-ão lá por causa do nosso infeliz país. Conheceremos Paris. Viver em Paris, Jacques. Como seríamos felizes!
- Ninguém nos ajudará, louquinha. E eu nunca iria. Sou um homem desta ilha, deste bocado de terra..."
Ele levantara-se, já não a conservava apertada nos braços. O seu olhar perdia-se no imenso horizonte de mar. "Em toda a parte, aliás, eu estarei sem prisões, solto. Preciso do meu céu, da minha escuna, das praias, do vento, dos pássaros daqui. Quero que os meus filhos sejam filhos deste país. E tu és como eu, somos todos iguais. Depressa te aborrecerias, longe da tua família e das pessoas que falam a mesma linguagem que nós. Até sentirias a falta dos negros."
Ela brincava distraidamente com a pequena cruz de prata que Jacques trazia ao pescoço e que sempre lhe conhecera.
"Nós somos franceses também - disse ela.
- Ela importa-se connosco, a França? Decaen reclamou em vão, durante anos, homens, barcos. Achas que teríamos sido vencidos em quatro dias, se a França nos tivesse ajudado?
- Estamos tão longe - suspirou ela - e o imperador tem tantos inimigos! Mas um dia há-de lembrar-se de nós. Os Franceses hão-de voltar.
- Assim o desejo."
Ela apertou bruscamente a mão na cruz, cujas pontas a magoaram.
"E o juramento de obediência que os Ingleses nos impõem, que pensas disso?
- Estou-me nas tintas! Que vale um juramento extorquido à força? Declaram-nos súbditos britânicos. Muito bem. Isso não me diz respeito. Eu só tenho uma pátria: a minha ilha. Não me arrancarão dela por meio de manhas jurídicas ou casos de consciência. Os Ingleses podem decretar tudo o que quiserem. O seu juramento, submeto-me a ele hoje e renego-o amanhã, sem o menor escrúpulo. Esta terra, meu coraçãozinho, é a nossa terra."
Agarrou num punhado de areia e deixou-o escorregar docemente para cima da saia dela. Depois, abrindo os braços, agarrou de novo a rapariga e puxou-a para si. "Agora, já chega de melancolia, tenho finalmente uma boa notícia..."
Ela via-lhe os olhos mesmo junto dos seus, brilhando de alegria.
"Esses malditos Ingleses vão, talvez, restituir-me a minha Créole.
-A sério? E não me dizias... Quando soubeste?
- Há uns dias apenas.
- Estás contente, então?
- Sim, e beijo-te por isso. E depois, como uma coisa boa nunca vem só, se eu recuperar a minha escuna, poderei sem dúvida concluir um acordo com os colonos de Diego Garcia, que procuram um capitão para os abastecer. Transportarei a sua compra para Maurícia e trar-lhes-ei os produtos de que necessitam. Como vês, nem tudo está perdido, apesar das maldições do diabo do meu pai. Entre as minhas viagens a Diego, farei cabotagem nas ilhas. Enriquecerei, comprarei outras escunas...
- E tornar-te-ás um grande armador, como outrora o tio Victor.
-Talvez, mas antes, se os meus projectos se realizarem, irei pedir a tua mão ao teu pai, como já te disse."
Louise via por cima dela os ramos baixos e torcidos dos maciços com a sua folhagem dispersa. Por detrás desse frágil desenho de sombras, o azul deslumbrante brilhava por toda a parte. Esse desapareceu de repente e já não houve senão o rosto de Jacques contra o seu. Ela passou-lhe os braços à volta do pescoço. Mergulhava com ele naquele furacão de fogo que caía do céu, saltava do solo debaixo deles, os consumia, quando um assobio rasgou o ar.
Jacques levantou-se, ela tornou a ver-lhe o rosto longe, de repente. O assobio recomeçava.
"É Hippolyte", resmungou o jovem, "nunca teremos um momento de paz."
Ela sentou-se apressadamente, compôs os cabelos, tornou a pôr o chapéu. O negro surgia no alto da crista.
"Os meninos vêm por aqui", anunciou ele.
Louise estava já de pé, pronta para fugir. Jacques agarrou-a de repente, estreitou-a mais uma vez. "Um destes dias, a minha paciência esgotar-se-á e eu torcerei o pescoço a um dos teus ou a todos talvez..."
O seu riso perseguiu-a enquanto subia penosamente a encosta, lutando contra a maré doce da areia. Voltou-se para um último adeus. Ele agitava o chapéu.
- Coragem, meu coraçãozinho!"
À borda da angra, Louise encontrou as crianças, que chafurdavam.
"Estavas aqui? -exclamou Lucien com surpresa. - Não te tinha visto.
- Andava a passear. Mas venham, voltemos para junto dos outros."
A presença das crianças convinha-lhe agora. Caucionaria a sua ausência e evitaria as perguntas de Rosalie.
Avistaram em breve, com efeito, a nénène postada de sentinela à orla do bosque.
"Mas que ideia ir assim debaixo de sol. A menina Louise não é razoável. O seu lindo vestido está todo amarrotado e tem areia nos cabelos!"
Obrigou a rapariga a descansar à sombra, depois de se ter ocupado, resmungando, a dar-lhe melhor aparência.
Pela tarde, o Sr. Dumont Tillac tocou a reunir. Propunha um passeio até à Grande Rivière NordOuest. Cortar-se-ia pelas terras e depois voltar-se-ia devagar, seguindo a beira-mar, para aproveitar a brisa da tarde. As senhoras protestaram um pouco. Era muito longe e as crianças tinham já corrido muito. Mas era difícil resistir à alegre tirania do Sr. Dumont Tillac. Em breve, todo o grupo se pôs em movimento, acompanhado por alguns escravos. Os outros ficavam na praia, junto das barcas.
A luz era ainda viva e as sombras caíam espessas sobre o solo arenoso, coberto duma pequena grama. No entanto, por uma doçura difusa, por uma ínfima palpitação do ar, adivinhava-se já a aproximação da noite.
O tenente Bertie caminhava ao lado de Louise.
"Um dos meus amigos acaba de me oferecer o livro de Bernardin de Saint-Pierre: Voyage à File de France. Quer lê-lo?"
A rapariga virou bruscamente a cabeça para o inglês e os seus olhos fixaram-se nos dele. Flamejavam de cólera. Que tinha então ele dito de extraordinário? O ardor das reacções de Louise surpreendia-o sempre.
"Seguramente que não lerei esse livro -lançou ela. - Bernardin de Saint-Pierre mostra-se nele muito injusto para com os meus compatriotas. Você não o ignora. Além disso, é um escritor sem talento.
- O seu romance Paul et Virginie fez grande sucesso e não deixa de ter méritos, parece-me. Mas eu não sou talvez bom juiz.
- Está cheio de inexactidões e de hipocrisia. Bernardin de Saint-Pierre fala muito de virtude mas, quando estava aqui, não tentou ele seduzir a mulher do Sr. Poivre?
- Não há direito. Quem era o Sr. Poivre? " Louise lançou a Bertie um olhar desconfiado.
Tentava averiguar se ele troçava dela. E de repente experimentou um choque, como se, pela primeira vez, descobrisse o rosto do jovem. Era verdade que ele era belo! Mas havia outra coisa: um encanto, um mistério, que o envolviam como uma espécie de luz e que a perturbavam inconscientemente. Logo, censurou-se do facto como duma traição e, por reflexo, quis-lhe mal também por isso. Não pertencia a Jacques todo o seu coração? Ela não podia sentir senão indiferença ou desprezo por aquele estrangeiro, aquele inimigo...
Todavia, aquela imagem dum instante gravara-se profundamente nela e já não podia fugir-lhe da lembrança. Muitos anos mais tarde, sobreviveria ainda, através de todas as visões sobrepostas e envelhecidas desse mesmo rosto. Ela voltaria a ver aquela expressão radiante, os cabelos louros ao vento, a pele queimada pelo ardente sol, em que os olhos punham a sua pálida claridade líquida.
Ela explicou:
"O Sr. Poivre foi uma personalidade da ilha de França. Admira-me que não tenha ouvido falar dele. Com certeza que não se interessa muito pela história do nosso país.
- Pelo contrário, apaixona-me - protestou o tenente-, mas sou apenas um recém-chegado. Muitos episódios do passado são-me desconhecidos.
- E arriscam-se a ficá-lo para sempre.
- Porquê?
- Porque em breve a guerra estará acabada. " Ela pensava: "E então terá de tornar a embarcar, meu belo tenente, e deixar-nos aqui com a nossa história, as nossas tradições, os nossos escravos, as nossas diversões marítimas e o nosso sol, demasiado quente para vocês.
"Sim, em breve a guerra estará acabada", aprovou Bertie.
Tal como ela, ele não precisou o que entendia por essas palavras. Era inútil, compreendiam-se perfeitamente. Louise sentiu a cólera reacender as suas chamas. Teria desejado atirar-lhe à cara as palavras ultrajantes que o ferissem como ela própria se sentia ferida. Mas, finalmente, a conversa apesar das suas alusões, não saíra do terreno do civismo.
O tenente nunca renunciava à sua perfeita cortesia. Com ele não podia haver luta aberta como com Miss Findler. Louise, que tinha a impressão de malhar em ferro frio, experimentava com isso uma particular irritação. Tanto mais que a imagem do jovem inglês continuava a impor-se-lhe, de maneira inexplicável, apesar dos seus esforços para a repelir.
Havia já um momento que Louise notava que Hippolyte procurava entregar-lhe uma mensagem. Mas, mal o jovem negro surgira junto da varanda, entre os maciços de hibiscos, Lucien precipitara-se sobre ele, não mais o largando.
Sentada entre a mãe e a tia, a rapariga não sabia como escapar-lhes. A tia Mathilde aplicava-se a ensinar-lhe um ponto de bordado.
"Meninos", inquiriu de repente François, "já estudaram as lições para amanhã?"
Louise alegrou-se. Eis o que ia desviar a atenção. As sessões de recitação eram sempre férteis em dramas.
Ouviu-se a voz de Rosalie, que arrumava os brinquedos das crianças antes de anoitecer.
"Ninguém estudou as lições! Desde que o Sr. Jonathan partiu, o pobre, os garotos não têm feito outra coisa senão divertir-se e desobedecer. Bom Deus, Jesus!", encadeou a negra, falando consigo própria, mas tão alto que toda a gente a ouviu. "Bom Deus, Jesus! não é verdade o que estou a ver acolá!..."
Os olhares voltaram-se instintivamente para a álea. A aparição do homem que avançava a passo leve e rápido, com o chapéu atirado para trás, a chibata na mão, pareceu de tal modo espantosa e carregada de tantas tempestades e escândalos que a família ficou petrificada de incredulidade.
Louise sentiu o coração parar-lhe. Era Jacques. Ele estava ali, como anunciara. Avançava naquela álea que nunca pisara antes em direcção à casa interdita.
Junto à escada, Lucien viu-o passar, mudo de admiração. O jovem subia já os degraus. No limiar da varanda, descobriu-se rasgadamente e inclinou-se. Como parecia à vontade, ele, o intruso, no meio de todas aquelas pessoas protegidas pelas suas certezas, as suas regras de decoro, os seus hábitos, e que ele vinha desafiar mesmo na sua casa!
"Apresento-vos os meus respeitos", disse ele.
Como ninguém respondia, acrescentou com uma ponta de ironia:
"Devo apresentar-me?"
A Mamã-Doce virou-se atrapalhada para a cunhada, mas nenhum som lhe saiu dos lábios.
"Não, não", gaguejou a tia Mathilde, "sabemos muito bem quem é."
Nesse instante, toda a gente pensava no pai intratável, encerrado por detrás da sua porta, e fazia votos por que nenhum rumor o pusesse alerta. Graças ao Céu, as janelas dele não davam para aquele lado. Ele não tinha podido ver o visitante.
Como nenhuma das duas mulheres ousava convidá-lo a sentar-se, Jacques permanecia de pé, parecendo mais alto assim e mais incomodativo ainda.
"Compreendo o vosso espanto - disse ele. - Evidentemente que nunca tinham imaginado ver-me aqui... Mas há tantos anos que a zanga separa as nossas famílias, não acham, minhas senhoras, que seria tempo de lhe pôr fim? Pela minha parte, desejaria que fossem esquecidas essas velhas querelas. E ainda mais-acrescentou sorrindo para Louise-, que uma brilhante reconciliação nos unisse de hoje em diante! É por isso - marcou uma imperceptível hesitação -, é por isso, minha querida tia, que venho respeitosamente solicitar-lhe a mão da sua filha.
- Da minha filha?", repetiu a Mamã-Doce, como se frases tão inverosímeis não pudessem chegar até ao seu entendimento.
Olhou para a rapariga, cujo rosto se ruborizara, depois de novo para a tia Mathilde, finalmente para o filho, que chamou fracamente em seu auxílio.
"François, suplico-te..."
A tia Mathilde agarrara na rapariga pelo braço e forçou-a a levantar-se. "Vai para o teu quarto, vai, minha filha, nós precisamos de falar com este senhor. Nénène Rosalie, leve-a e às crianças também. Vão, vão, todos!"
Louise protestava, mas o pulso sólido da nénène Rosalie arrastava-a para o interior da casa. De passagem, a negra agarrou também em Jérôme. Lucien tivera tempo de se esgueirar para debaixo dos maciços de hibiscos e de desaparecer.
Refazendo-se do espanto e não recebendo reforços da família, a Mamã-Doce decidiu-se a encarar a situação.
"Conhece então a minha filha, o senhor?"
O jovem pareceu por momentos desconcertado. Metiam-se por um caminho perigoso. Mas em breve se recompusera.
"Vi a minha prima no teatro e a sua beleza causou em mim a mais profunda impressão. Foi no dia em que o Sr. Bouvet assistia ao espectáculo. Lembra-se? - acrescentou ele virando-se para François.
- Com efeito - disse o jovem -, lembro-me muito bem de o ter visto na plateia.
- Julgar uma mulher unicamente pela sua beleza é muito imprudente - disse a Mamã-Doce.
- Mas, minha senhora, eu não desejo senão travar um mais amplo conhecimento."
A Sr. a De Montaller sentia o pânico apoderar-se dela. Como desembaraçar-se daquele homem, persuadi-lo a ir-se embora antes que o escândalo caísse sobre a casa?
"É impossível, senhor - balbuciou ela. - Seria preciso o consentimento de seu pai.
- Pois bem, minha tia, vou pedir-lho já.
- Pare, senhor, pare...", gritaram ao mesmo tempo as duas mulheres, enquanto Rosalie, tendo voltado à pressa, barrava a porta com o seu imponente volume.
"Ah! senhor, senhor! peço-lhe - suplicava a Mamã-Doce, enquanto as suas pequenas mãos assustadas rasgavam o lenço. -O meu marido não sai do seu cadeirão, está muito doente. Se ele o visse forçar-lhe a entrada do quarto, meu Deus, não sei o que poderia acontecer. E para quê, para quê? Nunca se deixará convencer. Conhece os seus agravos. E os do seu pai, que, certamente, não seria menos intransigente. Não insista portanto, senhor. Não devia ter vindo. Meu Deus, a pobre Louise... Ah! meu Deus! - repetia ela encostando-se ao espaldar do assento.
- Veja, senhor - exclamou a tia Mathilde acudindo - a minha cunhada sente-se mal. Como é que ousa perseguir-nos desta maneira? Retire-se.
- Não antes de ter falado com o Sr. De Montaller."
François levantou-se e Jacques perguntou a si mesmo por momentos se ele teria a intenção de empregar a força. Ao mesmo tempo, lembrava-se de que o jovem, até ali, permanecera curiosamente passivo. Instintivamente, virou-se para aquele novo adversário. Mas a frágil e elegante silhueta de François não tinha nada de ameaçador e o seu rosto não exprimia, aliás, nem cólera, nem sequer animosidade.
"Meu primo", disse ele, e Jacques notou logo que era a primeira pessoa ali a marcar o laço de parentesco deles, "compreende que não sentimos qualquer hostilidade para consigo. Pelo contrário. Conhecemos a sua coragem, ouvimos elogiar as suas qualidades de marinheiro, quando com a sua escuna forçava o bloqueio para abastecer o porto. É unicamente o respeito pela vontade de meu pai que dita a minha mãe a sua atitude. Mas, se quiser, deixemos aqui estas senhoras, a quem esta conversa perturba. Gostaria de falar um pouco consigo em particular. Dêmos uns passos juntos pelo jardim. E depois... depois, decidirá a sua conduta."
Sem esperar pela resposta de Jacques, encaminhou-se para a escada e o outro, para sua própria surpresa, seguiu-o. Meteram-se pela álea, lado a lado.
"Não conhece o meu pai... -disse por fim François.
- Pelo meu, posso julgar.
- Sim, bem sei, o tio Victor tem a reputação dum carácter difícil. Mas enfim, nesta história, é ele o ofendido. A sua atitude é portanto mais compreensiva. Ao passo que o meu pai... -O jovem hesitava. -Veja -recomeçou ele - é muito penoso para um filho falar do pai com as palavras que eu vou empregar.
- Não tenha receio - disse Jacques com vivacidade-, tudo isto ficará entre nós. Pode estar certo, palavra de honra."
Sentia simpatia por aquele priminho tão novo ainda e tão grave. Seguramente que não era o seu género. Mas aquele rapaz, que entrava na vida para lhe suportar tantos fardos e responsabilidades, merecia a sua estima.
"O meu pai é um homem terrível, mais terrível, creio do que qualquer mesmo na nossa família, supõe. E não gosta de nós. Isso parece-lhe sem dúvida extraordinário.
- Nem por isso.
- Nenhum de entre nós. Nem mesmo Louise, a sua única filha, a filha de Adeline. De resto, não tenho a certeza de que ele tenha amado Adeline. Mas posso enganar-me!... Sim, posso enganar-me. Eu era um rapazinho quando ela morreu. Não conservo qualquer recordação precisa de meu pai e da minha mãe juntos."
Jacques pôs a mão no ombro do primo. Aquele jovem era tão honesto que não podia deixar na sombra a mínima dúvida.
"Hoje", continuou Françoís, "nenhum sentimento poderá fazer flectir o meu pai. Só escutará o seu orgulho e o seu ressentimento. Nunca dará o seu consentimento ao vosso casamento. Nunca! Se Louise casar consigo um dia, será contra a sua vontade e ele fará tudo para se vingar. Tudo o que estiver ao seu alcance contra ela e contra si...
" Naturalmente, pode não me acreditar. Se quiser forçar-lhe a porta, conseguirá. Provocará uma tempestade de fúria de que troçará sem dúvida e que não lhe causará grande medo nem grande mal. No entanto, a vítima desse passo será Louise. Era isso que queria fazer-lhe compreender e que me levou a falar-lhe com esta franqueza... A minha madrasta e a minha tia puderam acreditar que a beleza da minha irmã, nessa única noite no teatro, o tinha perturbado a ponto de o conduzir até aqui.
" O meu pai não será seguramente tão ingénuo. Se ele pensar que Louise pôde encontrar-se consigo sem a sua autorização e que a sua autoridade foi desrespeitada, ridicularizada, ficará louco de cólera! Sequestrará a minha irmã, atormentá-la-á de mil maneiras!...
- Caramba! -exclamou Jacques -, que família! Eis um aspecto das coisas que eu não previra!..."
Ele hesitava. Sem dúvida, tinha razão, aquele rapaz todo escrúpulo e delicadeza. Uma acção intempestiva não traria senão catástrofes. Que desgraça, aqueles dois velhos tão casmurros um como o outro. E a pequena Louise que só tinha dezasseis anos...
"Eu falarei a meu pai -disse François. - Não para lhe apresentar cruamente o seu pedido, mas para lhe exprimir em meu nome apenas o desejo duma reconciliação entre os dois ramos da família.
- Vamos, quer deixar-me uma esperança em que você mesmo não acredita. É simpático, mas inútil!"
Por um momento ainda, caminharam na álea em silêncio. Jacques chicoteava raivosamente a bota com a extremidade da chibata, com o gesto que lhe era familiar.
"Com a breca, primo!", exclamou ele por fim, "você ganhou... por esta vez... E a sua família poderá alegrar-se com a infelicidade de dois inocentes; renuncio. Adeus então!"
Enterrou o chapéu na cabeça e afastou-se com grandes passadas, seguido de Hippolyte, que, de longe observara toda a cena. O escravo voltou-se para dirigir com a mão um sinal a Louise, debruçada à janela do seu quarto. Mas Jacques não a viu, estava já a chegar ao fim da álea e entrava na rua.
O ridículo da situação tornava-o furioso de repente. Queria mal a si mesmo e aos outros, não sabendo já muito bem quem era responsável pela ocorrência. Não se teria ele enganado, ao meter-se em toda aquela história inexplicável? E aquelas diabólicas pessoas! O tirano atrás da sua porta, pronto a devorá-los a todos, as duas pobres mulheres tão apavoradas uma como a outra, a Mamã-Doce a enfiar os dedos na renda do lenço, suplicando: "Ah, senhor, senhor...", sem ousar chamá-lo pelo seu nome, a nénène que barrava a porta e até o priminho, tão honesto e bem-educado.
Que tinha ele então ido fazer àquela família, agarrada às suas tradições aos seus velhos ódios, aos seus preconceitos ridículos? Era ele um homem para se submeter a todos esses constrangimentos, para trocar sorrisos com senhoras de idade? Desde os quinze anos que corria os mares. A vida civilizada da capital administrativa não era para ele.
Dava talvez por isso a tempo e tudo era melhor assim. Um baile, uma soirée de espectáculo aqui ou acolá, um belo par de botas para passear na Place d'Armes, como distracção, muito bem. Mas todos os dias, as mundanidades, as conveniências, as partidas de whist ou de bouillotte, as discurssões entre plantadores... Ah! caramba, não!
No fim da semana, a Créole estaria pronta. Entretanto, iria até à baía do Tombeau e passaria os dias seguintes na choupana de Elodie, a sua amante negra. Mais tarde, ver-se-ia, ver-se-ia. Os projectos, os planos longamente amadurecidos, não eram o seu forte.
François voltava lentamente para a varanda. Estava deserta, com excepção da nénène Rosalie, que vigiava ainda como um dragão diante da porta.
"A senhora está doente", gemeu ela, "e a Sr. a D. Mathilde está junto dela. Com certeza que precisará de muito tempo a pobre senhora para se refazer do escândalo. Bom Jesus, Maria, não havia necessidade desta desgraça!"
François pôs-se a rir.
"Não é uma desgraça..."
A negra lançou-lhe um olhar incrédulo. Estava sufocada com tanta calma e indulgência. François deixara o intruso demorar-se o suficiente para formular as suas ignóbeis propostas, acompanhara-o em seguida até à álea.
"Esse Sr. Jacques", lançou ela odientamente, "contam-se coisas a seu respeito. Horrores! É evidente que se não deve falar dele aqui e eu não quero dizer nada. Mas sei, sei..."
Toda a pessoa de nénène Rosalie, o seu ventre, o seu peito volumoso, as carnes do seu pescoço tremiam. Tinha o aspecto de digerir a sua indignação.
"O seu próprio pai, o Sr. Victor, amaldiçoou-o.
- Que estás a dizer?
- A verdade verdadeira!"
Metia-se por aquela nova pista com um sombrio júbilo. Caius Gracchus estava escondido debaixo das flores-de-sapato, ouvira tudo. Aliás, o Sr. Victor gritava de tal modo que mesmo da rua teriam podido ouvi-lo. O Sr. Jacques gritava também. Caius tremia de medo no seu esconderijo. Que vergonha, um filho que não respeita o próprio pai. Então o Sr. Victor amaldiçoara-o e deserdara-o.
"Sim, amaldiçoado! Ele pode agora pavonear-se com as suas lindas botas e armar em orgulhoso. O que está dito está dito. Terá a desgraça consigo durante toda a vida, como um cão negro", afirmou Rosalie.
Sentada no banquinho de Adeline, Louise sonhava.
Sempre gostara daquele canto de água e sombra. Presentemente, vinha ali mais vezes ainda que no passado. Uma paz relativa reinava lá. As crianças já ali não brincavam. Os gritos e as disputas da ruela que ladeava o jardim daquele lado chegavam confusos e mal perceptíveis.
Aquela ruela, Jacques seguia-a outrora, quando ia ter com Louise ao cair da noite. A sebe selvagem que ele atravessava ficava na extremidade da álea, por detrás do lago.
O jovem já não vinha. Louise não tornara a vê-lo desde o dia em que ele se apresentara perante a família, horrorizada, para pedir a sua mão. Havia já dezoito meses... Hippolyte, por vezes, passava ainda por Tamarin, como sempre fizera, mas, quando ela lhe falava do patrão, ele tornava-se de repente evasivo e fugidio. Compreendera que ele vinha de sua própria vontade, sem missão especial. Mesmo assim, ficava feliz com a sua presença. Era um laço com Jacques e, pelo escravo, tinha notícias dele.
Falatórios, recolhidos à esquerda e à direita, traziam-lhe também outros ecos. A pequena sociedade faladora e fechada da cidade interessava-se vivamente pelo jovem, embora fingisse a seu respeito um desdém de bom tom. As suas audácias provocavam escândalo. Tivera o descaramento de se exibir na cidade com a amante negra. Essa rapariga dera-lhe um filho, que ele baptizara com o nome de seu pai, Victor. O pobre velho quase morrera de raiva por causa disso.
Estes pormenores atingiam Louise no coração. Mas, quando a sua revolta acalmava um pouco, dizia para consigo que aquela situação, afinal de contas, não era de desesperar. Uma amante negra nunca seria muito perigosa. Enquanto Jacques estivesse com ela e se satisfizesse com aqueles amores à margem, nada estava perdido. Durante esse tempo, os anos passavam. Um dia, ela seria maior. Então, encontrar-se-iam de novo e tudo poderia recomeçar como outrora.
Entretanto, o verdadeiro e único risco seria que ele se deixasse apanhar por uma filha de colono, essas intrigantezinhas sempre à caça de marido, apesar dos seus ares de santinhas.
Uma silhueta apareceu ao longe, entre as árvores, e a rapariga reconheceu o tenente Bertie. Seis meses antes, o jovem fora nomeado para o gabinete do governador e essa promoção conferia-lhe uma autoridade nova na colónia. Tinha saído de casa dos Dumont Tillac para se instalar perto do palácio do Governo. Mas vinha muitas vezes visitar os seus antigos hospedeiros e aproveitava para passar por Tamarin.
O tenente dirigia-se para o banco de Louise. No fundo, ela não estava aborrecida por o ver. A conversa com ele não era nem monótona nem maçadora. Ele viajara muito, conhecera toda a espécie de pessoas e de coisas. Muitas vezes também, falava do seu país, dos seus pais, da casa da sua infância, das suas brincadeiras com os irmãos. Descrevia os frutos da Europa. "Os nossos são melhores", declarava Louise com firmeza. Ele ria com aquele ar de troçar sempre um pouco. Ela interrogava-o sobre os Invernos na sua terra. É verdade que a água é tão dura que se pode andar por cima dela? E as cidades? Como são as cidades, lá?
Por vezes, ele trazia jornais, livros. Parecia conhecer tudo, a política, a história, os poetas e mil pormenores engraçados sobre a vida na Europa e mesmo na corte de Franca. Como é que ele podia saber tantas coisas? No entanto, por nada no mundo ela teria confessado que se divertia muito mais com ele do que com os outros jovens da ilha, seus companheiros de infância, seus apaixonados. Com nenhum deles tinha discussões tão palpitantes nem réplicas tão mordazes.
"Espanta-me vê-lo", disse-lhe ela. "Você devia ter ocupações muito mais imperiosas hoje. Como pode perder o seu tempo junto de pequenos colonos franceses sem importância? O seu grande homem não chegou então?"
Esperava-se na colónia a visita de Lorde Moira, governador-geral da índia. De facto, Louise sabia muito bem que ele desembarcara na véspera do navio Stirling Castle com a esposa, a condessa Lowdon, as suas duas sobrinhas e toda a sua comitiva. Não se falava senão desse acontecimento na capital.
"Sua Senhoria descansa no palácio do Governo. Aproveitei isso para me escapar um instante.
Queria trazer-lhe este livro. São poemas de George Gordon Byron, um jovem autor que começa a dar que falar."
Ela pegou no livro e leu o título com dificuldade: Child Harold. Na página da frente o tenente escrevera com a sua delicada caligrafia: "Como respeitosa homenagem à beleza e ao espírito dum intrépido adversário. " Que beleza? Que espírito? E intrépido adversário! Estava a troçar dela.
"Não sei inglês, não poderia lê-lo.
-Eu traduzo-lho."
Louise fechou o livro. A encadernação, vermelha e dourada, era bonita. Ela acariciou vagamente o couro com a ponta dos dedos, embaraçada, não sabendo se deveria restituir-lhe aquele presente ou conservá-lo. Um livro inglês, que faria dele? E aquela dedicatória, não era comprometedora?
"Aliás - prosseguiu o jovem-, se quiser, posso ensinar-lhe inglês. Em poucos meses ficaria capaz de o ler suficientemente para compreender este texto.
- Muito obrigada, a minha língua chega-me."
Lançara estas palavras com indignação, como se aprender a língua do inimigo fosse uma traição. O tenente esperava sem dúvida aquela recusa, contentou-se com sorrir.
"Passeemos um pouco-disse ele - quer?"
A manhã mal começava, o ar trazia ainda a humidade e a frescura dos orvalhos nocturnos. O mês de Agosto e o Inverno tropical apresentavam as suas tréguas.
Tomaram o atalho que dava a volta ao pequeno tanque. Uma cascata em miniatura escorria sobre as rochas negras com preguiçosa monotonia. Os seus pés enterravam-se sem ruído na terra mole e vermelha.
"Infelizmente", deplorou o tenente, "não posso demorar-me. Dentro de meia hora, Sua Senhoria levanta-se. Não posso dispensar-me de lá estar."
Por razoes do seu cargo, ele devia ter, com efeito, mil obrigações. Todavia, tivera tempo de ir até ali para lhe levar aquele livro. Tê-lo-ia encomendado de propósito para ela? Não, não... sem dúvida que fazia parte duma dessas remessas que o tenente recebia regularmente de casa. François, que sabia um pouco de inglês, poderia lançar-lhe uma vista de olhos, só para lhe dizer de que se tratava.
Louise parou junto dum maciço de gólfões. No centro das largas folhas, ficara retida a água da chuva. Ela agarrou num dos grossos caules e agitou-o levemente. A água espalhava-se na superfície envernizada e as gotas corriam, semelhantes a bolinhas de mercúrio. Como muitas crianças, ela divertira-se com essa brincadeira outrora. Era preciso impedir a água de se escapar da folha. Mas as bolinhas fugiam com uma velocidade de tal modo desconcertante que acabavam sempre por saltar da borda e perder-se. O tenente observava-a com uma curiosidade meio divertida. "Ele deve achar-me bem fútil!", pensou ela. Durante esse instante de desatenção, a água fugira. Ela largou a folha.
Havia já um certo tempo que notara aquela atenção que Bertie lhe dispensava, como se o menor dos seus gestos tivesse um significado ou importância. Nunca tivera essa impressão na companhia de Jacques. Com ele, tudo era simples e directo. Certamente que ele nunca fizera a si mesmo muitas perguntas a respeito dela. Experimentou com isso uma estranha decepção que se esforçou logo por afastar. Afinal, Jacques conhecia-a havia muito tempo, era normal que não complicasse as coisas.
"Acompanhe-me até à rua", disse o inglês.
Era ao mesmo tempo um pedido e uma ordem. Mas ela não se melindrou com isso. O ar estava muito suave, muito carregado de doçura. Sabia bem andar.
"Vai assistir às festas previstas em honra de Sua Senhoria?
- Não sei", disse ela.
Toda a colónia se preparava febrilmente para essas festas. Seguramente, ela também lá iria. Lorde Moira devia colocar a primeira pedra da igreja paroquial e estavam previstos dois grandes bailes, o do comércio e o que a guarnição britânica oferecia. Por ocasião dessas festas, talvez que visse Jacques. Havia semanas que essa frágil esperança não cessava de lhe ocupar o pensamento.
"Os seus admiradores ficariam desapontados se não a vissem - disse o tenente.
-Acha?
- Tenho a certeza, visto que sou o mais fiel de entre eles."
Por um instante ficou interdita. Ali estava sem dúvida aquela ironia britânica que a desarmava sempre.
De qualquer modo, se Marie-Agnès, secreta admiradora do tenente, o ouvisse, não ficaria encantada! A menos que ele já lhe tivesse dirigido aquele mesmo cumprimento, como a muitas outras.
A quadrilha que abrira o baile estava a acabar.
"Belo espectáculo - observou o Sr. De Cormick. - Temos de reconhecer que estas figuras são graciosas. Mas não compreendi bem o que representavam.
- A ronda das estações."
François sorriu ao velho legitimista. Aquela concessão às modas novas espantava-o. Mas, evidentemente, depois de tantos anos de exílio na sua terra, o pobre homem devia sentir-se feliz por encontrar de novo o fausto duma grande festa, mesmo que tudo tivesse mudado, os trajos, as danças, os costumes.
Enredado na via da euforia e da tolerância, o colono já não parava. Teve um gesto largo para os lustres carregados de luzes, para as flores, para as plantas verdes, para os cortinados.
"A decoração é verdadeiramente admirável. E estas bandeiras, que diz destas bandeiras, Sr. François?"
Em todos os cantos da sala, os feixes de bandeiras inglesas e francesas misturavam as suas cores. Fora a primeira coisa que impressionara o jovem. E todos os convidados da colónia, ao vê-las, tinham sentido o mesmo choque.
"Eis uma iniciativa inesperada", disse ele. "Atribuo esta ideia ao tenente Bertie, que é um homem de tacto."
Havia um momento que François procurava um pretexto para se esquivar, quando a orquestra atacou uma valsa.
"Vá, meu jovem amigo, vá -disse o Sr. De Cormick. -Não quero privá-lo dos prazeres da sua idade. Sabe que fui um bom dançarino outrora?
- Tenho a certeza de que ainda o é. " O velho abanou a cabeça.
"Seria muito capaz de dar uns passos, mas já não é a mesma coisa. Oh! não! As minhas pernas estão duras, toda a máquina está enferrujada. Mas não se demore. Vou cumprimentar a sua mãe amanhã, talvez, e terei o prazer de tornar a vê-lo".
Louise, que valsava um pouco mais longe com o tenente Bertie, viu os dois homens. Sorriu, dirigindo-lhes um pequeno sinal de amizade.
O inglês não viu o movimento da mão acima do seu ombro, mas surpreendeu o sorriso.
"Que é que a torna feliz? - disse ele. - É a vista das suas bandeiras reencontradas?
- As nossas bandeiras - repetiu ela. -Mas há as vossas também. E os uniformes ingleses. São assaz numerosos."
O tenente pôs-se a rir.
"É o baile da guarnição..."
Evidentemente, não se podia esperar que fosse doutra maneira. Tinha de se suportar o esplendor daqueles jovens, todos cheios de galões dourados. Mas, sob a irritação de superfície, a alegria fascinante daquela linda festa não era na verdade perturbada. Uma vez mais, o antigo exorcismo actuava inconscientemente: que importava, nada tinha consequências, visto que um dia os Ingleses ir-se-iam embora. Essa esperança permanecia inabalável no coração da maior parte dos colonos. E, todavia, havia quase três anos que os invasores ocupavam a ilha.
A orquestra calou-se. Os dançarinos pararam e, libertando o centro do salão, refluíram para os assentos agrupados ao longo das paredes.
"Vamos para a sala verde", propôs o tenente, "faz lá fresco... e mais escuro. Verá menos os uniformes."
Ela apoiou-se levemente no braço que ele lhe estendia e ambos avançaram para as portas abertas.
Com efeito, estava-se melhor na penumbra verde das paredes de palmas. Longas exalações ali passavam. Então, os lustres animavam-se, passeando sobre as folhagens a sua alegria silenciosa e rápida.
"Quer sentar-se um momento?", disse o jovem.
A música da orquestra chegava-lhes abafada. Em volta deles só viam alguns raros pares, vindos ali para repousar um momento e aproveitar da relativa frescura da noite. Lá fora, a multidão dos negros reunidos observava de longe a festa. Ouviam-se rir e acompanhar com os seus cantos a música da orquestra.
"Que horas são? - perguntou Louise.
- Pensa ir-se já embora? Está-se bem aqui, no entanto..."
Sim, estava-se bem ali. Ela sorria vagamente ao jovem, brincando com o leque e os mitenes de seda.
Um roçar a seus pés, entre as folhagens, fê-los sobressaltar. Um animalzinho activo, negro eriçado, esquadrinhava ao longo das paredes de verdura. Parecia tão insólito no meio daquela festa, tão indiferente, tão preocupado com as suas próprias actividades, que os dois jovens se puseram a rir.
"Engraçado visitante - disse o tenente. - É um ouriço-cacheiro?
- Sim, um tandrac. Que fazes aqui, pobre louco? Se os negros te apanham, vão guisar-te com caril.
-É bom?
- Não sei - disse ela com desprezo - nunca comi, evidentemente. É uma comida de escravos."
A certeza com que ela se referia aos costumes do seu país como se fossem os melhores e não pudessem ser ignorados senão por um estrangeiro bárbaro divertia sempre Bertie. Ela viu-o sorrir, julgou que ele troçava e reprimiu-se logo. Que fatuidade! Como ele estava seguro de si, o belo tenente, do seu lugar no mundo, do fundamento das suas convicções, do futuro e da grandeza britânica!
"Vamos, não se zangue!", disse ele. "Não se zangue ainda, porque tenho uma coisa muito importante a dizer-lhe e terá tempo, daqui a pouco, de se encolerizar."
Ele pusera a sua mão sobre a dela e ela ficou por um instante confundida pela audácia desse gesto.
"Quer casar comigo?"
Louise esqueceu a mão, que ficara na do jovem. O que ela ouvira era muito simplesmente inverosímil. Não podia acreditá-lo.
"Como... balbuciou ela.
-Amo-a profundamente, querida Louise, com todas as minhas forças, com toda a minha ternura. Não quer tentar aceitar este amor?
- Mas é impossível! -Ela repetiu, gritando quase: - Impossível!"
- Sei bem que não me ama - suspirou o tenente. - Sei-o muito bem. Sendo assim, como é que hoje poderia imaginar ser minha mulher um dia? Tudo o que lhe peço... não, espere, não responda ainda! Tudo o que lhe peço é que pense nisso. Que pense nisso apenas. Tornaremos a falar mais tarde.
- Mas para quê... visto que é impossível! " Notando que a mão do jovem continuava a apertar a sua, ela libertou-se bruscamente. "O seu pai opor-se-ia a esse casamento?
- O meu pai - lançou ela asperamente - desde que você seja católico e legitimista, dá-se por satisfeito.
- E a sua mãe?
- A Mamã-Doce, creio que o acha encantador. De qualquer maneira, ela será da opinião de meu pai.
- Em suma, o único obstáculo vem de si, meu querido amor?"
De repente, pareceu à rapariga tão surpreendente ouvir aquelas palavras na boca do tenente Bertie que se pôs a rir para lutar contra a perturbação que a invadia.
"Creio que tudo isso é uma brincadeira e que você está a troçar de mim."
Ele fixava-a gravemente, imperturbável, sem responder nem protestar.
"Você sabe bem - prosseguiu ela - que eu nunca poderei casar consigo.
- Porquê?
- Porque detesto os Ingleses!"
O rosto do tenente animou-se de repente, o reflexo trocista brilhava de novo nos seus olhos.
"Eu tinha uma avô irlandesa - disse ele. - Adorava o marido, mas, naturalmente, odiava os Ingleses e odiou-os até ao seu último dia. Estava bem no seu direito, o meu avô nunca se zangou por isso.
- Mas eu tenho muito mau feitio. Passaríamos o tempo a discutir.
- Julga que a minha avó foi uma pessoa cómoda? Seria conhecer mal os Irlandeses! A mulher mais irascível que se possa sonhar. Sim! Durante quarenta anos, a casa dos meus avós ressoou com os ecos das suas cóleras. Mas quando ela morreu deixou atrás de si um tal silêncio, um tal vazio, que o meu avô não pôde suportá-lo. Morreu por sua vez... No fundo, eles tinham sido muito felizes na sua casa cheia de ruído e de tempestades.
- Pois bem, eu tenho outra ideia da felicidade conjugal."
Pensava no pai, murado no silêncio durante meses, e nas fúrias que saíam por vezes do compartimento fechado, alastrando-se em grandes vagas através de toda a casa, submergindo-a de terror.
Jacques também não era um anjo de paciência. Mas as suas cóleras não gelavam a alma como as do Sr. De Montaller. Pareciam bruscos turbilhões de calor, semelhantes àquelas tempestades de Verão que varrem os jardins e acabam na alegria do céu azul.
"Com que está a sonhar, rapariguinha?", recomeçou Bertie. "Espero que seja com o nosso futuro."
Rapariguinha... o nosso futuro. Como ousava ele empregar aquele tom protector e dispor da sua pessoa como se ela lhe pertencesse já? Louise procurou de novo afastar a perturbação inesperada que a desamparava, a amolecia.
"Nem por sombras!", disse ela, com voz incerta, "estava a ouvir cantar os nossos negros e, para falar verdade, não pensava em nada."
Justin hesitava à entrada da sala verde. Havia um bom bocado que procurava Louise e acabava finalmente de a ver com o tenente. O ciúme mordeu-lhe o coração. Por um instante, esteve tentado a virar os calcanhares e a fugir para um canto para aí esconder o seu amuo. Mas o tenente notara-o. Já não podia recuar agora.
Deu uns passos contrafeito, com o rosto vermelho de emoção, e sem dúvida teria acabado por bater em retirada se não tivesse visto, de repente, que Louise lhe sorria com uma afabilidade pouco costumada. Ela sentia-se portanto feliz por o ver? O coração de Justin pôs-se a bater com grandes pancadas precipitadas. Não podia adivinhar que a rapariga encontrava no facto uma desforra contra o inglês e se servia disso com alegria.
"Andava à minha procura?", disse ela.
Pusera uma sombra de confusão na voz, como se dirigisse a si própria a censura de o ter esquecido. Justin sentiu essa cambiante. A sua felicidade transformou-se em beatitude.
"Oh! sim -suspirou ele - há muito tempo François não soube dizer-me onde é que você estava.
-Ele toma conta de mim muito mal.
- Aceitaria talvez conceder-me esta dança?
- balbuciou Justin. -A menos que esteja fatigada?
- Não, não!"
Louise levantou-se com vivacidade e dirigiu-se para a sala de baile.
Justin deu uns passos atrás dela, depois, indeciso, virou-se para o tenente.
"Desculpe-me, eu... eu..."
Não encontrava mais nada para acrescentar.
Aquela vitória demasiado súbita, demasiado bela, confundia-o e não sabia como fazer-lhe face. A sua adolescência ingrata, incómoda com roupas mal talhadas, não o preparara para qualquer êxito. As pequenas derrotas, as gentis condescendências, eram em suma tranquilizadoras. Tinham o gosto do quotidiano. Os raros favores do véu apanhavam-no desprevenido.
"Não quer voltar connosco? - propôs ele a Bertie.
- Daqui a pouco", disse o tenente.
Seguiu com o olhar os jovens até desaparecerem nos redemoinhos da multidão. Então, o homem seguro de si, tanto como da grandeza britânica, sentiu a melancolia invadi-lo. Estendeu a mão e pôs-se a brincar distraidamente com as compridas folhas lenhosas duma palmeira. Dum lado a música da orquestra, do outro o canto dos negros, todo o ar zumbia. Vindos do porto, longínquos cheiros de mar, de especiarias, de sândalo, misturavam-se com o cheiro das flores.
Como ele amava aquela cidade, aquela ilha! Poderia um dia construir o seu futuro sobre aquele solo, aí enterrar raízes, deixar mais tarde essa herança a seus filhos? A ilha aceitá-lo-ia alguma vez? Por detrás da máscara da cortesia, a hostilidade não depunha as armas. Bertie continuava a ser o intruso, aquele que uma barreira invisível, fluida como um véu, mas impiedosa, separa sempre dos outros.
Os homens e as mulheres do país, em compensação, quaisquer que fossem as suas diferenças de opinião, as suas dissenções, nem por isso ficavam menos unidos por uma indestrutível cumplicidade. Todos estavam perfeitamente integrados na sociedade, no seu pequeno mundo fechado.
O tenente tornou a ver Louise e Justin caminhando lado a lado para o baile. Largou a planta, que se endireitou como um animal, num movimento leve e rápido, chicoteando o ar. Ele viera até ali, até ao fim do mundo, para encontrar aquela mulher que tanto lhe agradava, para descobrir aquela terra de sonho.
Era um conquistador e tudo lhe escapava.
Instalado no último degrau do patamar, Lucien dispunha frente a frente as suas forças inimigas; sementes vermelhas para os Ingleses, conchinhas para os Franceses.
Aquele jogo absorvia-o de tal modo que não notou Hippolyte, que se aproximava a passo de lobo, enfiando-se por entre as moitas. Descobrindo a gaiola que o escravo brandiu de repente à sua frente, o rapaz soltou um grito de alegria. Por trás duma grosseira grade de rotim via-se um casal de bengalis espantados, duas minúsculas bolas de penugem cinzenta, donde emergiam os bicos agudos, cor-de-rosa coral.
"Isso é para mim, Hippolyte? Oh! como são lindos, lindos..."
Alertada pelo barulho, a família observava a cena da varanda.
"Esses anjinaizinhos estariam melhor em liberdade", observou a tia Mathilde. "Os nossos pobres negros têm a especialidade dos presentes importunos."
Lucien mostrava orgulhosamente a sua gaiola, onde os pássaros perdidos batiam com a cabeça contra as grades. "Vejam como são bonitos", repetia ele.
E, de repente, tomado de inquietação: "Posso ficar com eles, François?
- Depois veremos isso."
O rapazinho virou-se para o escravo. "Como é que os apanhaste?
- Com uma armadilha.
- Tu és muito espertalhão. Também sabes apanhar macacos?"
Do alto do patamar, a nénène Rosalie interveio.
"Não faltava mais nada, agora, macacos! Para partirem tudo aqui, a começar pelo lindo potiche da senhora. E é ainda esse malandro que vem meter semelhantes ideias na cabeça do pequeno.
- Por certo que posso apanhá-los, os macacos - lançou Hippolyte muito alto-, e de todas as espécies. Grandes, pequenos... grandes sobretudo!"
Satisfeito com o efeito produzido, mergulhou de novo entre as moitas de hibiscos. Um instante mais tarde viu-se tornar a aparecer a sua silhueta, enquanto atravessava o relvado com o seu passo alongado e leve de jovem felino. Cantava:
Ah, tu lembrar-te-ás.
La... ri... rá.
Da partida de Boulogne...
Um bosquezinho de pequenas palmeiras escondeu-o à vista. Mas continuava a ouvir-se a sua voz:
A h, tu lembrar-te-ás...
"Malandro - repetiu Rosalie com rancor.
- Onde aprendeu ele aquela canção?
- perguntou François, rindo.
- Sabe-se lá. Tal patrão, tal negro. Anda sempre a rondar por aqui e por ali com marinheiros, libertos, ralé. E até pior ainda, pelo que se conta... -A negra baixou a voz, como para atenuar o horror do que ia dizer, e o seu cochichar, ao mesmo tempo, adquiriu um tal relevo que toda a família, instintivamente, apurou o ouvido. - Ele tem conhecimentos até mesmo entre os escravos fugitivos. Ah! a pobre mãe ainda não parou de chorar como uma Madalena por causa dele."
-Há aqui um negro que mantém relações com os fugitivos? - perguntou a Sra. De Montaller.
Quando a Mamã-Doce saía do seu alheamento, tendo uma frase ao acaso interrompido o seu sonho, as suas intervenções apanhavam sempre os assistentes desprevenidos. Ainda dessa vez, ninguém achou nada para responder.
"É preciso prevenir o teu pai, François- acrescentou ela.
- Pobre senhor - gemeu Rosalie hipocritamente-, com certeza que é preciso contar-lhe tudo."
Hippolyte afastava-se, tendo esquecido o seu canto, na tepidez daquele fim de tarde, todo impregnado do cheiro das canforeiras. De repente, viu uma sombra que se dissimulava apressadamente por entre os troncos. Mal se via, cinzenta como as cascas. O jovem saltou e, nalguns passos, alcançou a pequena forma assustada que tentava fugir.
"És então tu, Maria! Sempre escondida onde não tens nada a cheirar. Se a tia te apanha, tornarás a ser castigada. Devias estar a coser ou a bordar para as senhoras, a esta hora!"
A garota baixou a cabeça. O rosto desapareceu-lhe completamente. Só se via uma bola de lã preta onde se amontoavam caracolinhos minúsculos, duros e compactos como grãos de café.
"Não tenho medo..."
Hippolyte agarrou a curta cabeleira e puxou a cabeça para trás sem cerimónias, até fazer reaparecer a pequena face selvagem e o pescoço magro, envolvido por um lenço vermelho. Desatou a rir.
"Não armes em valente, tu tens medo da nénène Rosalie! Aliás, toda a gente tem medo dela, é uma potência."
A pretinha sacudia a cabeça com raiva, sem conseguir libertar-se. O rosto tornava-se-lhe cinzento pelo sofrimento, as lágrimas picavam-lhe os olhos.
Ele largou-a por fim, repelindo-a ao mesmo tempo com um soco. Ela oscilou para trás, tropeçando, depois endireitou-se de repente. O lenço vermelho estriava-lhe o pescoço com a sua cutilada brilhante. Ela bufava como um gato encolerizado.
"Não chores", disse Hippolyte desdenhoso. "Só queria divertir-me um pouco. Olha, vou-me embora. Já perdi muito tempo contigo."
Ela limpava os olhos à pressa, mostrando as lágrimas nas faces, em grandes manchas brilhantes.
"Não, fica para conversarmos um pouco.
- Não teria nada para te dizer.
- Conta o que fazes no mar com o Sr. Jacques. É que ele é mais mau do que o Diabo. É a minha tia que diz.
- Não é verdade. Se acreditas nessas histórias...
- E Diego Garcia, é longe daqui?
- Oh! sim, minha pobre rapariga, do outro lado do mar. São precisos dias e dias para lá chegar. Havias de ver aquela ilha, toda coberta de cocos e de caranguejos azuis... Por vezes, ficamos na ilha oito dias, dez dias, antes de termos a nossa carga. Creio que o senhor gosta daquilo. Deixamos os outros nas choupanas, junto da praia, e vamos para os bosques apanhar galinhas selvagens. À noite, pesca-se ao candeio. Todos aqueles peixes... E as tartarugas, andas por cima delas, de tal forma são numerosas, ocupadas em pôr os ovos na areia.
- Há lá a doença.
- Sim - concedeu Hippolyte. - Mas os leprosos têm o seu acampamento à parte.
- Mesmo assim, tu encontra-los.
- Nos bosques, por vezes, aonde eles vão à caça, também.
- Dizem que basta vê-los para que o mal se nos pegue.
- São mentiras. O mal não se apanha assim tão depressa. E, aliás, se julgas que não o há também aqui, eu digo-te que há muito, no bazar, nos acampamentos e por toda a parte. Só que eles se escondem com medo que os mandem para lá, para Diego!
"Mesmo os brancos apanham a lepra... Lembras-te do Sr. Laiston, que durante anos viveu fechado em casa e que ninguém via? E a jovem Sr. a D'Haricourt, que morreu o ano passado... Disseram que ela tinha febres, mas era a doença.
- Ah! bom Jesus! -exclamou a pretinha persignando-se precipitadamente - metes-me medo com as tuas histórias porque eu receio esse mal."
Hippolyte encolheu os ombros.
"Então, ficarás doente também, porque são aqueles que têm medo que o apanham. Agora, tenho de me ir. O patrão voltou para a cidade e amanhã de manhã, antes do romper do dia, metemo-nos à vela."
Nos olhos da rapariguinha pôs-se a brilhar um clarão.
"É verdade que o Sr. Jacques vai libertar a sua negra por causa do filho que ela lhe deu? Tu conhece-la? Dizem que ela tem a tez clara porque o pai era um mestiço de Borbom."
Ele pôs-se a rir diante do rostinho ansioso, devorado pelo desejo de saber, sobre o qual as lágrimas secas tinham deixado marcas como as das lesmas.
"Isso não é da tua conta. Era melhor que voltasses para a choupana, antes que a nénène Rosalie te procure."
Ele afastava-se já. Ela viu-o mergulhar na sebe de bambus e desaparecer.
Porque é que Hippolyte mostrava tanta indiferença para com ela? Só dava pela sua presença para troçar dela. As outras rapariguinhas da sua idade tinham verdadeiros namorados que dançavam com elas a sega e as levavam à noite para canaviais. Por mais que Rosalie vigiasse, ela teria achado maneira de ir ter com Hippolyte, se ele tivesse querido. Mas ele não se importava com ela. Seguramente, tinha outras mulheres na sua vida, as mais belas, aquelas que têm os cabelos bem entrançados e lenços paliacat. Por toda a parte, elas deviam andar atrás dele, no bazar, no porto, nos bosques.
De repente, Maria começou a detestá-lo. Vingar-se-ia. O feiticeiro fá-lo-ia morrer. Torcer-se-ia no chão, a gritar, com espuma na boca, como o velho Malabar que vendia jóias falsas no arrabalde de Leste e que a mulher matara. Dizia-se, pelo menos... Os feiticeiros são poderosos. Com dinheiro pode fazer-se morrer qualquer, mesmo as senhoras nos seus palanquins, com todas as suas pérolas e as faces pintadas.
Assim que as baterias do porto começavam a troar, a emoção apoderava-se da cidade. Aqueles tiros anunciavam que tinham chegado notícias da Europa e, claro, que elas eram favoráveis à causa britânica, visto que desencadeavam aquelas ruidosas manifestações.
O canhão troou muitas vezes no começo do ano de 1814. A 21 de Janeiro, pela queda de SaintSébastien. Depois, todas as vitórias sobre o imperador foram anunciadas, umas após outras. A 17 de Maio, finalmente, soube-se na ilha Maurícia da invasão da França.
Então, as paixões desencadearam-se, surgindo com toda a violência as querelas políticas que a ocupação inglesa mais ou menos abafara. Os partidários dos Borbons triunfavam, tinha chegado ao fim o ogro, aquele Sr. Bonaparte tão odiado! E a consternação acabrunhava os últimos fervorosos do imperador.
A 22 de Julho, à tarde, o Elizabeth ancorava na baía de Port-Louis. Logo subiu a febre. O navio saíra de Inglaterra no dia de Abril. Finalmente, ia saber-se o que se passava na Europa.
Sob as varandas, às esquinas das ruas, os comentários continuavam. Os boatos mais contraditórios bichanavam-se ao ouvido. Para uns, Napoleão alcançara grandes vitórias e expulsara os invasores. A França triunfante estava livre. Para outros, pelo contrário, tudo era desastre. O braço de Deus baixara sobre "o Usurpador".
A tarde desceu no seu breve esplendor. Depois a noite afogou a Place d'Armes, o palácio do Governo e os cais, onde os curiosos se demoravam ainda diante da silhueta do navio. Os grupos deslocaram-se, decidindo-se cada um a regressar a casa com as suas esperanças ou os seus terrores.
Pela alvorada, no dia seguinte, o canhão despertou a cidade. Enquanto as salvas se sucediam com uma regularidade exasperante, os colonos recomeçavam a interrogar-se e o seu nervosismo aumentava. Porquê aquele mutismo das autoridades britânicas, que podia ele esconder?
"Acabarão por nos enlouquecer - gemia a Sra. De Montaller. -François, não há de facto meio de saber qualquer coisa no porto?
- Acabo de vir de lá, mamã.
- Mas, desde então, talvez haja novidades - gritou Lucien. - Vou ver."
François agarrou-o de um salto e sentou-o à força numa cadeira.
"Fica aqui, proíbo-te de ires vaguear pelas ruas!"
Se Hippolyte tivesse estado ali, eles teriam encontrado o meio de se escaparem ambos para correrem até ao bazar. Teriam errado toda a manhã através da multidão ruidosa e palreira, onde se acotovelam marinheiros ingleses, escravos e basbaques de todas as raças. Ali, todos os boatos se propagam. Teriam acabado por saber qualquer coisa e teriam voltado a correr trazer a notícia à família maravilhada: o imperador estava vitorioso e toda a sua frota fazia rota para a ilha Maurícia.
Uma impressão na nuca de Lucien fê-lo sobressaltar. Virando-se bruscamente, viu atrás de si o grande rosto hílare de Jérôme. O pequeno segurava na mão uma vara de bambu que despojara de todas as suas folhas, deixando apenas um pequeno penacho na extremidade.
"Idiota! - gritou Lucien saltando sobre o irmão.
-Estas crianças continuam a bater-se - exclamou a Mamã-Doce. - François, fazes favor..."
O jovem agarrou, nos dois rapazes pelo pescoço e separou-os um pouco bruscamente.
"Vão ser castigados.
- A culpa é dele - gritou Lucien - chateia-me com o pau enquanto estou a pensar.
-Jérôme, não vais ter sobremesa.
- E ele então, e ele... Não é justo.
- Ninguém te mandou começar. Tu és o mais velho, deves dar o bom exemplo."
François intervinha maquinalmente para solucionar aquele incidente sem importância, repetindo as palavras banais ditas cem vezes em circunstâncias semelhantes. Mas Jérôme escutava-o, com o coração agitado pela revolta.
"A mamã devia ir descansar", encadeou o jovem. "Quando houver notícias, vou preveni-la."
Mas para quê enganarem-se? Um tal regozijo só podia anunciar novos desastres para os Franceses.
"É sempre a mim que castigam -gemeu o pequeno. -Lucien pode fazer tudo o que quer. Nunca lhe dizem nada.
- Cala-te. Tens inveja do teu irmãozinho. Não tens vergonha?
- Esta criança tem todos os defeitos - acrescentou a tia Mathilde. - Venha, minha querida irmã. Vamos sentar-nos no salão, ouviremos menos este barulho exasperante. Vocês, meninos, vão ter com a nénène rosalie. Têm as mãos e a cara todas pretas. Que ela os lave como deve ser antes do almoço."
A Sra. De Montaller afastou-se pelo braço da cunhada e as crianças fingiram que obedeciam. De facto, Lucien correu até às dependências e Jérôme escondeu-se por detrás dum vaso de fetos, no extremo da varanda. Dali, viu François atravessar o jardim e alcançar a rua. Voltara às notícias.
O pequeno saiu então do seu esconderijo. Finalmente, estava só, e assim é que estava certo, já que ninguém gostava dele. Nem François, nem a mamã, nem a tia Mathilde, nem Louise. Diziam sempre: "Tu és o mais velho. " Pois bem, justamente, Lucien não devia respeitá-lo e obedecer-lhe?
Aproximou-se duma mesinha onde um potiche da Companhia das índias estava colocado. As crianças não tinham o direito de lhe tocar. A nénène Rosalie limpava-o com mil precauções e a Sra. De Montaller punha-lhe por vezes flores. Todas as noites, com medo dos ladrões, recolhiam-no dentro de casa. Porquê tantos cuidados com aquela coisa inútil? Que diabo era a Companhia das índias? "No tempo da Companhia das índias... " diziam as pessoas crescidas. Que tinha então acontecido a essa Companhia?
Jérôme passou a mão pelos flancos redondos. Isso era já um pecado. Mas agora, ele ia partir o potiche. Por um momento, ficou cheio de espanto com aquela tentação monstruosa. Depois, ela apoderou-se dele, não deixando mais lugar à dúvida
ou ao remorso. Agarrou no potiche e levantou-o acima da cabeça, o mais alto possível. Deixá-lo-ia cair. Ele quebrar-se-ia em mil migalhas, com um ruído enorme que abalaria a casa... Saberiam então do que ele era capaz e que força de destruição o dominava.
Abriu as mãos.
No instante em que o potiche tocou no chão, estoirava uma salva de canhão e o seu ruído cobriu o da porcelana quebrada. O potiche, aliás, não voou em estilhaços. Partiu-se apenas em dois grandes bocados e foi tudo.
François chegava à Place d'Armes quando um rumor se ouviu ao longe, aumentou, percorreu a multidão. Depois, por um instante, restabeleceu-se o silêncio. Dir-se-ia que todos os peitos, esvaziados pela emoção, retomavam ao mesmo tempo o fôlego. O jovem pôs-se a correr, abrindo dificilmente passagem por entre os grupos cada vez mais densos.
Diante do palácio do Governo viu um edital. As autoridades britânicas tinham-se portanto decidido a trazer as notícias ao conhecimento do público. "Eis ao que nos conduziu a loucura dum tirano", gritou uma voz. E outra fez-lhe eco no tom do mais profundo desespero: "Está então acabado... " Acabado! A palavra flutuou por um instante, prolongando o seu eco fúnebre, antes de mergulhar na profusão dos rumores. Nesse instante, um movimento da multidão levantou o jovem, atirou-o mesmo para junto do edital e ele leu:
O imperador Alexandre e o rei da Prússia entraram em Paris no dia 30 de Março.
Bonaparte foi destronado.
Toda a França arvorou a insígnia branca. Bordéus foi tomada. A nação francesa declarou-se a favor de Luís XVIII e foi-lhe enviada uma deputação para o convidar a tomar posse do trono.
Os Aliados em Paris! A derrota consumada! Um grupo de pessoas que chegavam atirou François para trás. Ele deixava-se levar, sacudiu, perdido no seu espanto. Alguém o agarrou pelo braço.
"Que pensa dos acontecimentos, Montaller?"
François olhava para o seu interlocutor sem o ouvir. No entanto, a sua intervenção trouxera-o à consciência das coisas. Tornou a ver a multidão à sua volta. A sua agitação, os gritos, o calor húmido e carregado de cheiros, pareceram-lhe de repente intoleráveis.
Então, sem pensar em responder ao colono, virou-lhe as costas e
afastou-se à pressa, caminhando em frente.
Abandonando no solo os fragmentos do potiche, Jérôme correra para a escada. Ia descê-la para procurar refúgio ao fundo do jardim, por detrás das moitas de folhas vermelhas, quando, no meio do seu pânico, chocou com o Sr. Jonathan.
"A sua família está, em casa, meu amiguinho?"
Como o pequeno parecia não compreender, ele insistiu:
"Vá preveni-los, depressa. Trago-lhes as últimas notícias. Ai, bem tristes!"
Nesse instante, surgiu Lucien. Voltava das dependências, não tendo encontrado lá nenhuma distracção. Lançando de passagem um soco ao irmão petrificado de espanto e de incerteza, correu para a varanda a gritar: "Mamã! Louise! Venham depressa, venham todos! O Sr. Jonathan traz notícias, são terríveis, terríveis..."
Num abrir e fechar de olhos, a varanda ficou de novo cheia de gente: a família, os criados. A nénène Rosalie, apertando as mãos sobre o peito, repetia: "Bom, Jesus, bom S. Luís, será possível... " E, com confiança, as criadas por trás dela clamavam em uníssono e tomavam o Céu por testemunha.
"Mas, finalmente -disse a Sra. De Montaller -, que se passa?
- Os Aliados entraram em Paris, minha senhora. As tropas do czar Alexandre e do rei da Prússia."
Houve um instante de confusão.
"São os Ingleses que o dizem - lançou Louise.
- Ai, minha cara menina, receio bem que seja verdade.
- Meu Deus - suspirou a tia Mathilde -, a nossa pobre Paris."
As criadas tinham-se calado. O significado da catástrofe era obscuro para elas e já não sabiam com que comentários acompanhá-lo.
"Bom Jesus! Minha senhora", exclamou de repente a nénène Rosalie, "o seu bonito potiche está partido. Acontecem todas as desgraças hoje!"
Imediatamente, no grupo das criadas, as lamentações recomeçaram. Com tanto mais ardor que, dessa vez, a amplitude do desastre lhes escapava.
Jérôme sentiu o coração parar-lhe. Estava de repente acabrunhado pelo peso do remorso. Todo o mal vinha dele, fora o seu pecado que precipitara as catástrofes sobre o mundo e aberto as comportas da cólera celeste. Por sua culpa, a família estava desamparada e os soldados do czar tinham tomado Paris!
"Que potiche? - disse a Sra. De Montaller desnorteada.
- Ali, ali, minha senhora, o bonito potiche das índias, todo partido.
- Meu Deus, sim, o potiche. É-me indiferente! É pouca coisa neste instante, minha pobre Rosalie."
O pequeno deixou escapar um soluço em que o alívio se misturava à dor. A Mamã-Doce passou na cabeleira ingrata a sua mão leve, que brilhava com o reflexo dos anéis. "Não chores, meu querido. Nós vivemos tempos trágicos de mais para estas pobres crianças."
Uma vaga de reconhecimento, de doçura triste, invadiu a alma do rapazinho. Pela primeira vez, não tinha vergonha das suas lágrimas, pacificadoras e amargas como o perdão que lhe caía sobre a cabeça.
"Aqui está François!", anunciou o Sr. Jonathan.
O rosto pálido do jovem apareceu por detrás do grupo familiar.
"Venho do palácio do Governo - disse ele. - Li o aviso.
- Que tragédia! - suspirou a Sr. a De Montaller. - Estas emoções dão cabo de mim!"
A tia Mathilde agarrou na cunhada pelo braço e conduziu-a para um cadeirão, depois ela própria se deixou cair no canapé próximo.
"Sr. Jonathan", disse ela, "peço-lhe, sente-se. Vocês também, Louise e François. Vejamos, minhas filhas", disse ela para as criadas, "tragam cadeiras e depois vão ao vosso trabalho. Nada disto vos diz respeito."
O Sr. Jonathan virou-se para François.
"Já que leu o edital, sabe que o rei vai voltar."
Houve um pouco de incerteza.
"O rei? - disse a Sra. De Montaller. - O irmão do nosso infortunado Luís XVI?
-Sim, minha senhora. O rei Luís XVIII.
- O rei em França... isso leva-nos muito longe. " A nostalgia subia dos corações. O ar ficou como que carregado de repente de melancolia e de doçura. O velho colono nunca escondera os seus sentimentos legitimistas. No fundo, embora não ousasse confessá-lo francamente, não estava aborrecido, sem dúvida, com a evolução dos acontecimentos. A tia Mathilde suspirou. A nénène Rosalie, que apertava contra si os pedaços do potiche, notou:
"Um rei como o nosso bom S. Luís seria seguramente uma bênção do Céu."
- Cala-te! -gritou Lucien. - Cala-te, velha louca! Eu não quero esse rei. É o imperador quem deve voltar."
Atirava-se à criada, com os punhos estendidos, mas François interceptou-o no gesto. Passou o braço em volta dos ombros do rapazinho, puxou-o para si e falou-lhe ao ouvido.
"Vamos, acalma-te. Um fidalgo, ou, se preferes, um soldado do imperador não se põe em semelhante estado. Deve conservar o sangue-frio. Sabes bem que a nénène Rosalie é uma santa mulher que não sabe grande coisa destes assuntos.
- Eu lho direi.
- Meu Deus, não. De forma alguma!"
No jardim despertou uma brisa súbita, abanando as folhas secas das palmeiras-da-índia.
"Finalmente", disse o Sr. Jonathan, "agora vem a paz..."
À resignação, ao alívio confuso da velha geração opunha-se a cólera da nova. François tinha uma consciência aguda, quase dolorosa, daquele desafio silencioso.
"A paz por esse preço - disse Louise - quem a queria...
- Esta guerra durava já há muito tempo - suspirou a tia Mathilde.
-Para a nossa ilha - replicou o Sr. Jonathan - pode ser que essa infelicidade fosse um bem. E pelo menos o que muitos colonos pensam hoje, porque, finalmente, os Ingleses são os primeiros obreiros do regresso dos Borbons, o que os inclinará sem dúvida à conciliação no momento do tratado de paz. Parece impossível que as colónias não sejam restituídas ao soberano que acaba de recobrar os seus direitos.
- Que o Céu o ouça, caro amigo - disse a Sra. De Montaller -, que o ouça."
O vento tornou a fazer-se sentir, sacudindo as compridas palmas mortas, que produziam um som triste e doce.
"O senhor parece-me muito optimista - observou François. -Tenha a certeza de que os Ingleses terão primeiro o seu interesse em conta. Pense na nossa posição na rota das índias.
- Sim, sem dúvida, sem dúvida... Mas a paz tornará essa situação menos importante. Para mim, quero esperar, apesar de tudo. A bandeira branca flutuará de novo sobre os nossos monumentos. Os meus velhos olhos não se fecharão antes de ter voltado a ver as flores-de-lis."
Depois do almoço e da sesta, a família encontrou-se de novo debaixo da varanda. Alguns vizinhos faziam breves aparições, comentavam os acontecimentos e iam para outros locais, ávidos de informações ou de esperanças que ninguém podia dar-lhes. As Sr. as Bergère chegaram também num turbilhão de perfumes, de suspiros, de movimentos de saias.
A sua presença tão familiar, as suas vozes vibrando tão alto, aliviaram a atmosfera. O drama acomoda-se mal com certos seres, demasiado encantadores e fúteis. Precisam doutras dimensões. De resto, após alguns comentários de circunstância, elas apressaram-se a falar doutra coisa e, bem depressa, do acontecimento que de momento lhes ocupava mais a atenção: o próximo casamento da sobrinha Delphine com Emilien Labarasque.
Nessa festa, tinham decidido atingir um brilho sem igual. Ia ver-se o que é um grande casamento!
"Naturalmente", exclamaram elas, "contamos que vocês irão todos."
A Mamã-Doce esboçou um gesto de negação.
"Ai, não, queridas amigas. Sabem que nós já não saímos e, nestas infelizes circunstâncias, menos que nunca. E, depois, esse casamento efectuar-se-á, não é assim? no Grand Port. É muito longe. Não podemos encarar uma deslocação para tão longe!
Mas as duas irmãs não tencionavam depor as armas tão facilmente. Como é que, por umas objecções sem valor, se podia renunciar a todas as magnificências daquela recepção? Estavam previstos transportes por terra e por mar. Haveria mais de quatrocentas pessoas, um banquete depois da cerimónia religiosa, um baile à noite, com ceia.
"Além disso - acrescentaram elas - o noivo é um pouco vosso parente. Não está ligado aos Montaller?
- Não do nosso lado - disse a tia Mathilde com desdém. -É o outro ramo...
- Mas aos vossos filhos - insistiram ainda as Bergère - não podem
privá-los dessa reunião. Estes pobres jovens precisam de distracções. As tristezas actuais não devem, apesar de tudo, impedi-los de viver. Não são eles a esperança e o futuro do nosso desgraçado país?
- François vai deixar-nos em breve por causa da nossa plantação - suspirou a Mamã-Doce. - Vão ser os seus últimos dias aqui. Terá muita coisa para tratar com o pai."
Já não restava mais ninguém senão Louise. Mas, por esse lado, as Bergère jogavam uma partida mais fácil.
"A vossa filha, em todo o caso - decidiram elas, não pode deixar de comparecer! As Bonnière não compreenderiam a sua ausência e Delphine ficaria magoada com isso. Viajará connosco à ida e à volta. Teremos o maior cuidado com ela.
"Não é, minha querida filha - prosseguiram elas virando-se para a rapariga - que ficarias contente de assistir a este casamento? Todos os nossos parentes e amigos se encontrarão lá. E quem sabe, entre os jovens, talvez descubras o eleito do teu coração. Um casamento provoca sempre outros!"
Este último argumento, em particular, merecia reflexão. Assim, depois de a Mamã-Doce e de a tia Mathilde terem deliberado durante vários dias, foi decidido que Louise, afinal de contas, iria ao casamento.
Nele representaria a família.
As Sr. as Bergère não tinham mentido, era um grande casamento que se anunciava! Tendo-se ocupado do assunto, as duas irmãs ultrapassaram-se nos seus esforços, não hesitando em percorrer tantas vezes quantas fosse necessário o longo caminho da capital ao Grand Port para se assegurarem de que as coisas corriam bem e de que nada faltaria no último momento.
Os embelezamentos trazidos à plantação tinham-na transformado tanto que Louise, à chegada, tivera dificuldade em a reconhecer. O parque, mais ou menos ao abandono outrora, fora desbravado, rapado, decorado com canteiros novos. A varanda pintada de novo, os salões recentemente forrados, tinham um ar de alegria que fazia esquecer a tranquila sonolência doutros tempos.
No entanto, neste ambiente de festa, Louise não conseguia afastar a sua melancolia. As lembranças da sua última estada voltavam-lhe em multidão à memória. Como tudo mudara... Mesmo os habitantes pareciam-lhe diferentes.
Delphine, a companheira ingénua daquela época, tornara-se uma pessoa capaz e ponderada, que deixava adivinhar a dona de casa que seria em breve. Elisa, a quem a sua qualidade e o seu papel de mãe da noiva davam uma segurança nova, também parecia transformada. Em compensação, os velhos Bonnière, um tanto excluídos dos acontecimentos em curso, não pareciam mais do que sombras.
Na véspera do casamento, os convidados começaram a chegar em multidão. Os Tillac, sem falhar um, traziam o tenente Bertie. Quatro anos antes, quase dia a dia, jazia ele naquela mesma casa, ferido, vencido, recolhido por caridade. Agora, era na ilha um personagem importante, que os colonos rodeavam de atenções, mas também de amizade sincera.
Após a noite do baile, Louise encontrara-o de novo, duas ou três vezes, sem que ele fizesse qualquer alusão àquele inverosímil pedido de" casamento. Teria ele renunciado ao seu projecto, ou então, para ele, a questão continuava em suspenso? Ela não conseguia opinar sobre isso, julgando descobrir na sua reserva uma tranquila expectativa. Estava portanto muito seguro de si, aquele belo tenente... Louise censurava-se por vezes por pensar nisso demasiadamente.
Na manhã do grande dia, levantadas antes do alvorecer, as duas Bergère fizeram sair das varandas e dos salões os pequenos, que, não tendo tido lugar nos quartos, lá tinham dormido em colchões. Era preciso deixar o campo livre às equipas de negros encarregados das últimas decorações. Por toda a parte se colocavam plantas verdes, ramos, grinaldas de fetos e de flores.
Na balbúrdia dos quartos, as mulheres começavam a vestir-se. As criadas apertavam os espartilhos, traziam os vestidos e as fitas passados de novo. Em volta dos espelhos, as raparigas ajudavam-se umas às outras a pôr os caracóis em carrapitos, a atá-los com bandelettes brilhantes, a aplicar-lhes laços e flores.
As que estavam finalmente prontas enfiavam-se no quarto da noiva para assistirem aos últimos preparativos. Miss Findler, que se deslocara expressamente com duas costureiras negras, supervisionava a toilette, dando um ponto aqui ou ali, atando e desatando o cinto até que estivesse exactamente como ela queria.
De instante a instante, a sala enchia-se de mais pessoas e o calor tornava-se insuportável.
"Suplico-lhes, meninas", queixavá-se a inglesa, "afastem-se. Vão
abafá-la. A menina Delphine e as minhas ajudantas já nem sequer podem circular."
Enquanto a casa estava entregue às mulheres, os homens agrupavam-se debaixo da varanda. As duas Bergère lá estavam também para receberem os últimos convidados. Aqueles que chegavam da vizinhança saíam dos seus palanquins todos adornados e seguidos duma multidão de criados, carregados de flores e de presentes.
A cerimónia religiosa devia efectuar-se mesmo na propriedade. Armara-se para esse efeito um dossel sobre o relvado, e em volta, mas a distância respeitável, apinhavam-se os escravos. Na primeira fila, com os cabelos bem entrançados e esfregados com óleo, rapariguinhas brandiam ramos cujas flores se fanavam já sob o sol implacável.
O padre esperava diante do altar, que se elevava como um enorme ramalhete branco, enquanto os criados acabavam à pressa de dispor os assentos. A hora fixada para a cerimónia passara e, apesar da cuidadosa preparação das tias Bergère, viviam-se agora na plantação momentos de incerteza. Estando a noiva enfim pronta e entregue nas mãos de Elisa, Miss Findler correra a prestar assistência a algumas senhoras, aflitas com as saias e as plumas.
Os dois velhos Bonnière, perdidos na sua casa revirada, que já nem reconheciam, submersos pela barafunda dos convidados que refluía de todos os compartimentos, sentiam-se perdidos. Certamente que estavam felizes por verem a sua pequena Delphine casada, felizes com aquele belo casamento, mas se tudo aquilo pudesse estar terminado e aquela provação para trás deles... Até o papel que deviam desempenhar na cerimónia eles haviam esquecido.
Por felicidade, as irmãs Bergère cedo tiveram de repor a ordem. Os avós e os convidados mais representativos foram reunidos na escada, depois o cortejo pôs-se em movimento, enquanto um arrepio de excitação corria sobre a multidão dos negros. As rapariguinhas levantaram os seus ramos murchos e entoaram com toda a força um cântico preparado havia muito tempo para a circunstância.
Depois de uma ligeira confusão nas filas dos convidados, visto que cada um tentava ser mais rápido do que os vizinhos para se apoderar dos assentos mais bem situados, à sombra, toda a gente acabou por encontrar lugar diante do altar. Louise, que se deixara atropelar, encontrava-se afastada, muito atrás. Mas esse isolamento convinha-lhe. Não tinha vontade de falar com ninguém. Nem mesmo com as amáveis Sr. as Bramond, nem com Virginie, que, de longe, não cessavam de lhe dirigir sorrisos e sinaizinhos de inteligência.
Outrora, todavia, como ela se teria divertido naquela festa!... Hoje, esse casamento e as promessas que ele continha invadiam-na duma amargura que já não conseguia vencer. Porque é que aquela felicidade, tão legítima, que Delphine conhecia hoje, lhe fora recusada? Lastimava sinceramente ter vindo. Que estava a fazer ali? A sua visível tristeza produzia uma nota sombria e ela não tinha a coragem de a dissimular.
Tudo, aliás, parecia afastá-la. Nem sequer tinha o vestido adequado. O olhar severo de Miss Findler revelara-lhe que aquela toilette já usada, metida à última hora nas suas bagagens, não era de circunstância. A já nada jovem senhora não podia adivinhar que o pretexto dos coquetismos passados já não existia... Jacques, aliás, nunca notara nada. E fora o tenente Bertie que, um dia, cumprimentara Louise pela sua elegância. Que infelicidade que Jacques não tivesse um pouco do espírito de observação daquele bisbilhoteiro inglês!...
Havia um momento que o cura terminara a sua homilia e a cerimónia estava a acabar. Mezza você, um concerto de elogios e de felicitações saudou o jovem par, que se virava para a multidão e, lentamente, a atravessava para entrar em casa. O cortejo dos pais, dos rapazes e das damas de honor seguiu-os, acompanhado em breve pelas primeiras filas dos convidados. Depois, toda a gente foi atrás e houve uma debandada para o relvado.
Louise deixava-se de novo ultrapassar pela barafunda, esperando prolongar a sua solidão por um momento mais, quando ouviu de repente atrás dela uma voz trocista, bem conhecida.
"Você aqui, Menina De Montaller. Que surpresa!"
Não ousava voltar-se, petrificada pela emoção, com o coração batendo a estalar, quando se sentiu agarrada pelo ombro. Uma mão fê-la girar vivamente sobre si mesma.
"Jacques!
- Sim! meu coraçãozinho..."
Os olhos negros e brilhantes envolviam-na com a sua alegria familiar e directa, como se nada tivesse acontecido e eles se tivessem deixado na véspera.
"Como é que estás aqui? - exclamou ela.
-Mas porque sou um digno convidado. Não vês a minha gravata à artista, o meu fato à última moda, e, se insistires um pouco, exibo-te um magnífico par de suspensórios. Sim, minha querida, uso suspensórios como um petit maitre."
Ela ria com a alegria doutrora, não podendo despregar o olhar do rosto inclinado por cima do seu. Ele ali estava, pertinho dela. Um milagre! Mas, ao mesmo tempo, numa brusca reviravolta, parecia-lhe inevitável que fosse assim. Era a sentença do destino. Como pudera ela duvidar que haviam de se ver um dia outra vez? Com Jacques tudo devia compor-se, sempre, por simples complacência das coisas. Bastava ele aparecer para que a má sorte se exorcisasse, para que a vida recomeçasse a correr, tumultuosa e viva, a transbordar.
"Como é que eu ainda não te tinha visto? disse ela.
- Porque acabo de chegar.
- Há meses que ninguém te encontrava em parte nenhuma.
- Não. Os bailes, as recepções, a música de Pleyel e de Méhul, meu coraçãozinho, já não podia suportá-los.
-Todavia, estás aqui hoje.
- Porque o noivo é meu primo. E esse bom Emilien insistiu de tal modo que não pude dispensar-me de vir.
- Não o lamentas? - preocupou-se ela de repente.
- Com a breca, não!"
Louise notou que a multidão em volta deles diminuía. Em breve estariam sós no relvado e ponto de mira dos olhares. Mal se haviam encontrado, tinham de esconder-se de novo, evitar as curiosidades despertas. Talvez que já tivessem notado a sua reunião privada.
"Vem", disse ela, "não fiquemos aqui."
Apressaram o passo para se juntarem à retaguarda dos convidados.
"Escuta, meu coraçãozinho", murmurou Jacques, "tenho agora de ir cumprimentar os nossos anfitriões. Em seguida vou dar uma volta pelas mesas de comezainas."
Ela olhou-o com surpresa.
"Para pôr o meu cartão ao pé do teu.
- Meu Deus, Jacques, vamos encontrar-nos lado a lado diante de toda esta gente!
- Oh! A delicadeza exige que ocupemos os lugares que nos foram destinados. É culpa nossa se os responsáveis cometeram a gaffe de sentar lado a lado os membros incompatibilizados duma mesma família? Ao partir, não deixarei de o sublinhar. E de rir à farta. Mas antes teremos de nos resignar... e fazer boa figura."
Ela viu-o deslizar por entre os grupos e desaparecer. De repente, tudo mudara, a cor do céu, o gosto da vida. Aquela festa, que lhe parecera tão triste, tornava-se um turbilhão de risos e de cores que lhe enchiam o coração de pancadas de alegria.
Marie-Agnès, que a vira ao longe, corria para ela.
"Onde estavas? Ando à tua procura desde esta manhã."
Louise fez um gesto vago.
"Há tanta gente...
- Dormiste bem? Eu passei uma noite terrível. Fazia tanto calor no nosso quarto e a mamã não parava de se mexer! Fui picada pelos mosquitos, olha, é detestável."
Mostrava na testa, na raiz dos cabelos, umas intumescências cor-de-rosa. "Mal se vêem.
- Dizes isso para me consolar, mas eu sei que estou horrorosa... Olha, voltemos. Vamos ter com Delphine. Estamos em pleno sol, a nossa pele vai escurecer. Só faltava isso!"
Arrastou Louise para a casa, onde os convidados enchiam a varanda. A noiva, radiosa, passava dos braços das velhas tias para os redondos e gráceis das suas jovens amigas. Envolvia-a um rumor: "Ela está encantadora, que toilette maravilhosa!"
Um pouco separado, o marido não sofria senão o contragolpe daquele assalto. Partilhava essa posição de recuo com os outros homens da família, enquanto as mães, sogras, irmãs e primas, com todos os encantos revelados, charpas ondulantes, se dirigiam para o centro da acção.
"Não conseguiremos aproximar-nos dela! -suspirou Marie-Agnès.
- Paciência", disse Louise. E sorriu para Justin, que avançava para elas.
"Há gente de mais aqui - disse ele. - Afastemo-nos um pouco.
- Mas nós nem sequer pudemos dar um beijo a Delphine", protestou Marie-Agnès.
Louise coibiu-se de dizer que muitas pessoas se encarregariam disso.
"Vocês hão-de vê-la mais sossegadamente esta tarde", replicou o jovem. "Aliás, não vão tardar a servir a refeição. Vamos lá ver os nossos lugares."
As mesas estavam postas no jardim, à sombra de grandes árvores. Louise procurou Jacques com os olhos e não o viu. Teria ele tido tempo de mudar os cartões? Com todos os criados que circulavam nas redondezas, devia ser difícil não se fazer notar. A inquietação apertou-lhe o coração e só ouviu metade dos comentários de Marie-Agnès sobre a beleza da mesa. Por todo o lado, no meio de grinaldas de flores, sobre toalhas adamascadas, brilhavam os cristais, a porcelana fina, a louça lisa que o império pusera em moda.
Só a mesa das crianças, um pouco retirada sob as sombras, conservava a ingénua alegria daquela faiança branca e azul que os antigos plantadores chamavam porcelana de pedra e que estivera em moda noutros tempos.
"Espero que não sejamos colocados muito longe uns dos outros - observou Marie-Agnès.
- Teremos de aceitar a ordem que os nossos anfitriões escolheram - disse Louise.
- Pergunto a mim mesma onde é que terão posto o tenente Bertie.
- Ao teu lado, sem dúvida. Sabe-se que a tua família o olha com simpatia.
- Oh! não é verdade - protestou a rapariga. Pobre Marie-Agnès, se ela soubesse que o seu
tenente a traíra!
"Eu estou aqui - anunciou Justin tristemente
- e você não está ao pé de mim, Louise. É a pequena Delauzin.
- Ela é muito gentil!"
Os noivos tinham feito a sua aparição e já a guarda-avançada dos convidados atacava as mesas.
"Cá estão os nossos lugares, Louise", gritou Marie-Agnès, que procurava ao longo da mesa. "Estamos muito bem. E o tenente Bertie está entre nós."
Contrariada, Louise meteu-se por entre a multidão para alcançar a sua cadeira. Acabava justamente de chegar, quando Jacques surgiu a seu lado.
"Oh! mas que encantadora vizinhança!", gritou ele muito alto.
Com a ponta dos dedos, agarrou no cartão colocado no seu prato e pô-lo bem em evidência.
Louise ficou tão surpreendida com aquela aparição que já não esperava que a sua alegria pôde passar por confusão.
Um murmúrio em que o divertimento se misturava com a reprovação correu em volta deles.
"Os meus respeitos, menina", disse Jacques, inclinando-se. Depois afastou o assento de Louise, dizendo-lhe em voz baixa:
"Senta-te depressa, meu coraçãozinho."
Dois lugares mais longe. Marie-Agnès observava a cena com espanto. Só recuperou um pouco a tranquilidade ao ver chegar o tenente Bertie.
Entretanto, da mesa dos pais, no extremo dá fila de talheres, as Sras. Bergère tinham-se apercebido do escândalo. Uma delas precipitava-se já. Pôs-se detrás da rapariga para lhe cochichar ao ouvido:
"Minha querida filha, estou perturbada com esta inconveniência. Não percebo como é que tal coisa pôde acontecer. Queres mudar de lugar? Vou arranjar isso...
- Não, não - protestou Louise -, é tarde de mais. Um escândalo público seria pior ainda.
- Que dirá a tua pobre mamã. Meu Deus! nunca mo perdoarei..."
Recuava, pálida de emoção, quando Jacques, levantando-se do seu lugar, lhe dirigiu uma profunda e graciosa saudação. A sua confusão ainda aumentou mais, dado que as Sr. as Bergère eram muito sensíveis ao encanto masculino. Um homem tão bonito... não se exagerava um pouco ao criar-lhe essa má reputação?
"Então, meu coraçãozinho - murmurou o jovem -, não foi bem feito?
- Meu Deus, Jacques, toda a gente está a olhar para nós.
- Não te preocupes, dentro dum instante pensarão noutra coisa."
Ele observava-a com atenção, enquanto ela se mantinha a três quartos, não ousando ainda virar-se francamente para ele. Caramba, ela estava mais bonita do que dantes!
As faces tinham perdido as suas redondezas infantis. Encurvavam-se suavemente e as suas feições pareciam por isso mais nítidas e delicadas. A sua tez quente, dourada pelo sol apesar de todos os seus esforços e dos de Rosalie, sobretudo, fazia-lhe sobressair o azul profundo e límpido dos olhos. Ele deixara uma criança e encontrava uma mulher.
"Tu estás encantadora, Louise. Mais ainda do que eu me lembrava.
- Cala-te, não é verdade e vão ouvir-te."
Mas o sussurro das conversas ia aumentando. Para trocar umas palavras com Louise. MarieAgnès tinha de se inclinar diante do tenente e gritar cada vez com mais força. A rapariga imaginava, evidentemente, que a sua amiga estava terrivelmente incomodada com a situação e esforçava-se por não a abandonar à sua infelicidade. Essa solicitude exasperava Louise. O tenente, felizmente, mostrava-se muito mais reservado e até silencioso. Engolia sem dizer palavra o caldo de camarão, muito condimentado, que os criados acabavam de servir.
"Como! - não pôde deixar de observar Louise -, você come pimento, agora?
- Como vê, estou a tornar-me pouco a pouco um dos seus compatriotas."
Ela sentiu o joelho de Jacques encostar-se ao seu e estremeceu. No entanto, ao virar-se para ele, a lembrança da amante negra surgiu-lhe de repente numa onda de cólera. E teve um movimento de recuo.
"Que tens, meu coraçãozinho?
- Tu deixaste-me tempo de mais sozinha - lançou ela com rancor.
- Que querias que eu fizesse? O teu irmão explicara-me que, insistindo mais, eu faria a tua infelicidade. Acreditei nele... E tinha sem dúvida razão. Mas agora, que te encontrei, já não te deixarei. Aconteça o que acontecer! Aliás, tu já não és a rapariguinha doutrora. Que idade tens?
- Vinte anos."
De novo Marie-Agnès tentava uma ofensiva para arrancar Louise àquele homem tão dissoluto, esse capitão de quem se dizia tanto mal.
"Sabes - gritava ela -que o tenente Bertie acaba de praticar uma façanha?
- Aquela mulher é uma maçadora - resmungou Jacques. -Que tem ela que nos interromper constantemente? Faria melhor em se ocupar do seu inglês.
- Tanto mais que está apaixonada por ele.
- Tudo vai bem então.
- Não, porque é a mim que ele ama."
O riso de Jacques rebentou de repente com tão alegre sonoridade que todos os olhares se viraram para ele. O tenente Bertie encarava-o também, e, por um curto instante, eles ficaram frente a frente, Jacques sempre a rir e o britânico impassível.
Marie-Agnès, no entanto, que queria absolutamente contar a sua história, voltava à carga.
"Uma verdadeira façanha - gritava ela. -Subiu ao alto de Pieter Both.
-Então -disse Louise ao tenente - viu aquela enorme rocha redonda, mesmo no alto da montanha?
- Com certeza; vê-se, aliás, de muito longe. A sua forma e posição são extraordinárias. Dir-se-ia uma rolha de garrafa na extremidade do gargalo.
- Os feiticeiros predizem que quando aquela pedra cair os Franceses voltarão para a ilha.
- Parece-me solidamente fixada. " Jacques inclinou-se para a rapariga:
"Deixa lá o teu apaixonado e interessa-te um pouco por mim. Temos um plano a pôr de pé."
Nesse instante, Louise viu, do outro lado das mesas, dispostas em ferradura, o rosto sensaborão -de Justin. Estava sentado junto duma rapariga magra que se concentrava no prato, cheio de empadas e de galantina de aves, sem lhe prestar nenhuma atenção.
Vendo o olhar de Louise passar sobre ele, dirigiu-lhe um sorriso desesperado. Pobre rapaz, era a ele, sem dúvida, que Jacques desalojara e mandara para o exílio.
"Que plano? -disse ela.
- Para nos encontrarmos outra vez."
O coração saltou-lhe de alegria e, inclinando-se para o jovem,
agarrou-lhe na mão por baixo da mesa.
"Mas -recomeçou Jacques - já não quero mais introduzir-me na tua sebe ao cair da noite para te beijar à pressa, enquanto tu investigas com o olhar se a tua Rosalie vem lá. Ah, não! Não mais sebe, não mais nénène! Temos de encontrar outra coisa. Não tens amigas na cidade?
- Não confiaria em ninguém. E, além disso, tu conheces tão bem como eu as filhas dos colonos, patetas assustadas.
- Eu não pensava nesse género de pessoas. Mas as outras, evidentemente, não as conheces. Olha, bebe um pouco de vinho. Não sei onde estas Bergère o desencantaram, mas é de primeira classe."
Louise sentia a aflição apoderar-se dela. "Há que encontrar qualquer coisa", dizia ela para consigo, "há-o absolutamente. Senão, ele desencorajar-se-á, ir-se-á embora outra vez e tudo estará acabado."
"Escuta", disse ela, "o meu irmão vai-se embora dentro em pouco para a nossa plantação de Moka. Se eu insistisse com a Mamã-Doce, se dissesse que estou doente, que não suporto os calores, ela talvez conseguisse do meu pai que eu fosse para lá, também. Na plantação estaria livre, ou, enfim, muito mais livre, do que por cá."
A medida que falava, ela via iluminar-se o rosto do jovem. Manifestamente, aquela perspectiva agradava-lhe e ele encarava já as possibilidades que ela oferecia.
"Mas- acrescentou - tu poderás ir a Moka?
- Facilmente, todas as vezes que estiver no porto."
"Louise! Louise!...", chamava a voz ansiosa de Marie-Agnès.
Jacques endireitou-se bruscamente, para gritar por cima das cabeças.
"Cara menina, estou a explicar à minha prima como tive de violar as mulheres de dois chefes malgaxes e cortar a cabeça a uma caterva de velhas tias para que se decidissem a entregar-me um lote de escravas. Deve compreender que a minha vizinha se sente muito mais cativada por estes relatos do que em se ocupar, ao mesmo tempo, com as suas historiazinhas.
- Oh! Jacques! não devias...", exclamou Louise ao ver os olhares escandalizados em volta deles.
Só o tenente, protegido sem dúvida pelo humor britânico, conservava o ar sereno.
"Mas ela chateia-me, por último, essa pequena! Espero que fique agora sossegada."
Podia pensar-se isso ao ver o horror que petrificava a rapariga.
"Eu tenho o mais belo cavalo da ilha", prosseguia Jacques, "que paguei por um preço louco. Com esse animal posso percorrer a distância de PortLouis à vossa plantação em menos de duas horas. Meu coraçãozinho, a tua ideia é simplesmente maravilhosa. Olha, toma então um pouco de vinho e bebamos juntos pelo futuro."
Ele levantou o copo, impeliu-o contra o de Louise e o tinir alegre produzido pelo choque atraiu de novo para eles os olhares desaprovadores dos convivas.
A refeição estava a acabar. Os criados levavam os últimos pratos de bolos e traziam o café e os licores.
"Chegou o momento dos brindes - resmungou Jacques. -Vão maçar-nos com discursos e, depois, alguns velhos quererão por força cantar. Vou aproveitar para fugir já. Prometi à equipagem que voltava o mais depressa possível. Partiremos amanhã.
- Como, não ficas para o baile?
- Completamente impossível. Vamos, não faças essa cara triste. Eu não previra que te ia encontrar. Só pensava fazer uma curta aparição para não aborrecer esse bom Emilien. Mas não é grave, visto que devemos rever-nos em breve e muito melhor do que aqui."
Era verdade. Todavia, a decepção roía o coração de Louise. Contara com aquela comprida sotree, em que eles se procurariam sem cessar com o olhar. Onde, talvez, ela teria levado a audácia até dançar com ele.
Viu-o afastar-se por detrás das mesas e um pouco mais tarde o galope do seu cavalo ressoou ao longe.
Havia agora na plantação um momento de tréguas. Os convidados aproveitavam da frescura da noite, enquanto esperavam pelo baile e pela ceia. Algumas mulheres tinham-se retirado para os quartos para descansarem um momento. Os grupos reconstituíam-se por afinidades. Enquanto os rapazes e as raparigas se espalhavam em bandos pelos relvados, a varanda ficava ocupada por um núcleo masculino, compacto e sombrio, onde se discutia comércio e colheitas. Justin, que se deixara captar por aquela austera constelação, já não ousava escapar-se. Com o olhar, procurava Louise na multidão dos vestidos claros. Não a viu. Mas o tenente Bertie, que se afastava no jardim, viu-a, sentada sozinha junto dum bosquezinho de hibiscos.
Não o ouvira e sobressaltou-se quando ele chegou ao pé dela.
"Sabe - disse ele, baixando-se para apanhar o leque que ela deixara cair aos pés - eu não subi nada até ao cume do Pieter Both. A menina MarieAgnès exagera.
- Eu bem o pensava."
Ele pôs-se a rir e ela riu também. "São horas de se ir vestir para o baile? -Ainda não.
- Então, quer passear um bocadinho sob as árvores?"
Ela levantou-se para o seguir.
"Reservo a sua primeira dança", disse ele.
Ela passava a vida a esperar por Jacques, a suspirar pela sua presença, pelo som da sua voz, pelo contacto das suas mãos. E era Bertie, no fim de contas, que se encontrava sempre na sua companhia e se ocupava dela. Ela quis-lhe mal por ser bonito, por se mostrar tão cortês, por desencadear sentimentos confusos que provocavam nela um mal-estar que aumentava.
Os projectos de Louise concretizaram-se muito mais facilmente do que ela ousara esperar. A Mama-Doce e a tia Mathilde, preocupadas por ouvirem a jovem queixar-se da sua saúde, puseram-se de acordo para admitirem que uma estada em Moka lhe seria certamente proveitosa. A tia Mathilde levou a sua dedicação até intervir junto do irmão. Não tendo este oposto nenhum veto absoluto considerou-se a sua concordância como obtida.
Só a nénène Rosalie multiplicava as objecções. Que é que a pequena iria fazer para o campo? Aquelas senhoras eram boas de mais para cederem assim a todos os caprichos das crianças. Quem então se ocuparia dela, os criados na plantação eram uns selvagens que não sabiam fazer nada, mal cozer um pouco de arroz.
"Mas tu bem vês que eu estou doente - protestava a rapariga.
- Não vejo nada. A menina tem a cara rosada e estaria mais clara ainda se não saísse sem sombrinha."
A partida verificou-se, no entanto, no começo de Setembro. Uma equipa de negros partira na véspera, levando as bagagens. François e Louise deviam viajar sós, nas mulas. O jovem levava as pistolas; o trajecto era curto, as pistas naquela região muito frequentadas para que os escravos fugitivos tivessem a audácia de se arriscarem nelas. Todavia, as mulheres estavam preocupadas.
"Não se demorem no caminho - recomendava a tia Mathilde. - François, vela bem pela tua irmã. Talvez fizessem melhor em levar Joseph convosco.
-Não, não - protestava Louise. -Tudo está bem. Tu preocupas-te sempre, tia Mathilde."
Ela esforçava-se por apressar a partida. Joseph em Moka seria uma catástrofe. Como outrora no Grand Port, o homenzinho não a largaria nem por um momento. A sua dedicação era quase tão temível como a de Rosalie.
Finalmente, para alívio da rapariga, puseram-se a caminho. Sob a varanda, a tia Mathilde e a Mamã-Doce agitavam os lenços. Os rapazes fizeram-lhes escolta até à rua e foi precisa a chegada do Sr. Jonathan, cuja hora de lição eles tinham mais uma vez esquecido, para os decidir a voltar atrás.
Os viajantes chegaram à plantação ao começo da tarde. A grande casa, mais ou menos ao abandono desde que a família não ia para lá, fora limpa e apetrechada sumariamente pelos criados. Louise sentia-se feliz por encontrar de novo o seu quarto de criança, onde ainda se espalhavam brinquedos, roídos pelo bolor e pelos insectos.
Durante os dias que se seguiram, a vida organizou-se num tranquilo deixa-andar. Estava-se longe da minúcia da tia Mathilde e da tirania. da nénène Rosalie. Uma criada fazia as camas. Um velho negro limpava um pouco o pó e supervisionava o trabalho de dois negritos encarregados de fazer brilhar os soalhos, esfregando-os com casca de coco.
François levantava-se ao romper do dia e só voltava à hora do almoço. Louise ia então acordar o cozinheiro hindu, que dormia junto das suas marmitas. O homenzinho só sabia fazer caril e não se comia mais nada.
Pela tarde, quando o calor baixava um pouco, ela passeava no parque ao abandono, até ao limite dos campos. Depois voltava a sentar-se sob a varanda, para esperar por François.
Nunca até então conhecera dias solitários tão longos, livres de todas as sujeições. Quando Jacques viesse, teriam horas para passar juntos. O parque, os bosques em redor, estavam cheios de esconderijos onde poderiam encontrar-se sem receio de olhares indiscretos. A esse pensamento, o seu coração enchia-se de alegria, de impaciência e de inquietação também. Porque é que então Jacques não lhe dava sinais de vida?
Uma tarde, finalmente, quando se dirigia para debaixo da varanda, viu Hippolyte tranquilamente sentado na balaustrada, no emaranhado das lianas que trepavam ao longo das colunelas até ao telhado.
"O meu patrão está cá -disse ele.
-Onde?"
Instintivamente, procuravá-o à sua volta. O escravo pôs-se a rir.
"Aqui não, menina, no bosque. Fizemos uma choupana. Quer ir lá agora?
- Com certeza."
Ele saltou para o jardim do alto da balaustrada e ela precipitou-se para a escada para se juntar a ele. No fim dos degraus, antes de iniciar a marcha, lançou uma olhadela para trás de si. Mas a casa estava calma e silenciosa como de ordinário, nenhuma silhueta por ali rondava.
Os bosques começavam muito em breve, uma vez que tinham anexado uma parte dos bosquezinhos e dos arbustos que, outrora, faziam parte do parque. Com a sua faca e um pau forcado, Hippolyte esforçava-se por abrir caminho à rapariga através duma muralha de framboesas castanhas, cujos ramos, cobertos de espinhos, se prendiam ao vestuário como pequenas garras furiosas.
"O seu lindo vestido vai ficar todo estragado, menina", exclamou o negro. "Da próxima vez não deve pôr-se tão bonita."
As silvas rareavam pouco a pouco e eles penetraram num matagal livre, coberto de árvores muito grandes. Louise parou por um momento. A sombra era abrasadora, atravessada por raios de luz, constelada de manchas que dançavam no solo, nos troncos, nos ramos baixos, num obsidiante vibrato. De todas as partes cantos de aves respondiam uns aos outros.
"Onde está o teu patrão?", murmurou ela baixinho.
O negro pôs-se a rir.
"Pode falar alto, aqui, e gritar mesmo, se quiser. Não há ninguém para ouvir."
Ela lançou. um olhar à sua volta e de repente, subindo daquela profundidade dos bosques, um sentimento de libertação, de selvagem liberdade a invadiu.
"Eis o meu patrão."
Jacques surgiu uns metros mais longe, entre as árvores. Ela correu para ele e ele agarrou-a nos braços.
"Enfim, meu coraçãozinho, encontro-te de novo! Sabes que não fiz outra coisa senão pensar em ti desde aquele casamento? Via-te por detrás de todos os coqueiros de Diego, por detrás de todos os tatamakas. Punhas-me doido.
- Menina - gritava Hippolyte -, venha ver a bela choupana que nós construímos aqui.
- Sim, vem!", replicou Jacques.
Ele arrastou-a até à orla duma pequena clareira. Ali, entre os troncos de dois jovens ébanos, os dois homens tinham edificado uma cabana de troncos e de ramos, bastante vasta para se parecer quase com uma pequena casa.
"Eis a nossa habitação - disse Jacques.
- A grada-te?
- Oh! sim. Não se ouvem senão os pássaros aqui. Dir-se-ia que estamos no fim do mundo."
Do outro lado da clareira, o cavalo de Jacques e a mula de Hippolyte estavam amarrados lado a lado.
"Agora", prosseguiu Jacques, virando-se para o escravo, "vais voltar para Port-Louis. O teu animal está repousado e mais vale que chegues antes do anoitecer. Irei ter contigo amanhã à noite. Vamos, vá i-te!"
Eles sentaram-se à entrada da choupana e viram o negro afastar-se, depois de os ter saudado com um grande gesto de adeus. O trote da mula ressoou um momento antes de se extinguir pouco a pouco, ao longe.
Então, não podendo mais com a alegria e exaspero após tantos anos de espera, ela lançou-se contra ele, apertando-o com toda a força. Escorregaram para cima da erva.
"Caramba! és minha", dizia ele. "Ninguém pode já obstar a isso. Fico contigo e não te largarei mais."
Ela agarrava-se-lhe ao pescoço e escorregaram juntos num turbilhão de embriaguez, de loucura triunfante, enquanto o cheiro forte da erva quente lhes rolava sobre os corpos, os submergia.
Foi o mau humor do cavalo que, pela noite, os trouxe à consciência da hora. Cansado daquela longa tarde passada acorrentado, o animal relinchava, batendo no chão com o casco.
Louise levantou-se e viu com espanto os bosques em volta deles já invadidos pela escuridão.
"Mas já é de noite!"
Depois o seu olhar caiu sobre o largo peito de Jacques, sobre os seus ombros nus, e um novo impulso a lançou para ele.
"Que tem este animal?", resmungou Jacques.
Levantou-se um pouco, conservando sempre Louise apertada contra si. "Está aborrecido, o pobrezinho, não é como nós... Mas talvez que tenha razão para nos chamar à ordem antes que toda a gente, em tua casa, perca a cabeça."
Louise compunha à pressa as suas roupas.
"Deixa-me fazer isso, meu coraçãozinho, deixa-me vestir-te. Tu vais ver, eu sou a melhor das nénènes. Tens na realidade precisão de usar todas estas coisas? Para que serve isto?
- É uma combinação."
Ela nunca teria imaginado que pudesse falar com um homem, mesmo seu marido, de pormenores tão íntimos. Nalgumas horas, tornara-se então tão imodesta?
De repente, quando acabava de enfiar o vestido, o pânico e o horror submergiram-na. A sua alegria morreu de vez. O sonho desfazia-se, restituindo ao mundo o seu aspecto anterior, e as coisas, reencontrando os seus lugares, tomavam um aspecto aterrador.
"Jacques! - gritou ela - que fizemos nós!
-Nada mais do que qualquer coisa de muito natural e que recomeçaremos amanhã.
- Eu sinto-me doente, doente...
- Tens vontade de vomitar?"
Era verdade, uma terrível náusea lhe revolvia o estômago. Mas como ousava ele falar tão cruamente? Ela lançou-lhe um olhar escandalizado e ele atraiu-a de novo aos seus braços.
"Podes muito bem sentir-te um pouco doente depois do que se passou. Não há nisso nada de extraordinário, nem de vergonhoso. Será que as senhoras não têm coração
- Mas não este! " Ele desatou a rir.
"Agora, tens de voltar, sem te fazeres notar. Porque se alguém visse o teu vestido e o teu penteado, bem, ficaria espantado... A que horas volta teu irmão?
-Nunca antes da noite.
1 Jogo de palavras impossível de traduzir, dado que o termo "coeur" tanto significa estômago como coração.
- Então ainda tens tempo. Vou beijar-te uma última vez e depois acompanhar-te durante um bocado do caminho. Amanhã, ainda estarei aqui. Vem cedo, não me faças esperar. Já tenho vontade de te tomar de novo nos braços..."
Mas ela já não tinha vontade de nada. A não ser de estar no seu quarto sozinha, de se deitar e de mergulhar profundamente num sono de que nunca mais acordasse.
Jacques passou o seu braço no de Louise e vieram até aos primeiros maciços do parque, além da barreira de framboesas.
Não havia ninguém debaixo da varanda. Ninguém na casa. A criada indolente, sempre atrasada na sua tarefa, não preparara ainda os quartos nem estendera os mosquiteiros.
Quando François entrou um pouco mais tarde, Louise esperava-o, envergando um vestido vindo de lavar e engomar, com os cabelos bem penteados e levantados em carrapito. Ele não notou, ao jantar, que ela mal comia. A penumbra escondia-lhe o rosto vermelho, os olhos, que, por instantes, se enchiam de lágrimas.
Mal se deitou, adormeceu num profundo sono, donde saiu extraordinariamente leve, à vontade e feliz. O ar da manhã encontrara de novo a sua limpidez; as dúvidas, os remorsos, estavam afastados de vez. Com o coração a transbordar de impaciência, viu arrastarem-se as horas até ao momento de ir ter com Jacques; quando ele a deixou, ao fim do dia, foi dessa vez o desgosto da sua ausência que teve de dissimular. Poderia ela esperar duas semanas antes que a festa secreta recomeçasse?
Uma penosa incoerência se instalou pouco a pouco na vida da jovem, sucedendo à embriaguez um sentimento de vergonha, a felicidade ao remorso e à incerteza. Mas, quer triunfasse um ou outro momentaneamente, ela sabia não pertencer mais ao mundo que fora o seu até ali. Para sempre talvez, pusera-se à margem das suas regras, dos seus valores, das suas alegrias, dos seus deveres. Seguia agora por um caminho desconhecido, sem amparo, numa vertiginosa solidão. Se a Mamã-Doce, se a tia Mathilde, soubessem o que se passara... Doravante, uma falsidade a separaria sempre daqueles que amava. Da pequena Louise doutrora nada restava senão uma imagem mentirosa, que podia iludir ainda, mas que ela própria não -ousava olhar de frente.
O seu coração ardia por vezes em ódio contra Jacques. Se ele a tivesse verdadeiramente amado, tê-la-ia perdido daquela maneira? Depois a sua cólera virava-se contra o pai. Ele era o verdadeiro responsável pelo mal que acontecia hoje. O seu rancor absurdo fora o único obstáculo à sua felicidade; quando tudo devia ter favorecido a sua união com Jacques -o seu amor, a sua posição social, a sua idade - faziam que ela estivesse de qualquer forma inscrita na lógica das coisas...
Ela teria tido, como Delphine, um grande casamento, com uma multidão de convidados, cânticos, prendas em profusão. Miss Findler teria vindo vesti-la de seda branca e de rendas, coroá-la de pérolas. Era com a bênção dos seus, rodeada da afeição de todos, que teria entrado directamente na digna sociedade das senhoras da ilha.
Uma nostalgia dilacerante enchia o coração de Louise quando pensava nessa existência calorosa e doce que deveria ter sido a sua, percorrida por datas de aniversários, de baptizados, de casamentos, onde até as provações se tornam suportáveis, acompanhadas do cortejo fiel das amigas, das velhas tias, das primas e das nénènes.
"Em que estás a pensar, Louise?"
Ela estremeceu. François estava sentado ao pé dela sob a varanda, enquanto a noite cobria o jardim à sua volta.
"Não sei... em nada.
-Estás aborrecida? Responde francamente. Se quisesses voltar para casa, seria fácil.
- Mas nem por sombras. Porque dizes isso?
- Não sei. Tu não és a mesma desde a nossa chegada aqui. Pareces, como dizer... ausente."
Ela esforçou-se por rir.
"É sem dúvida o ar do campo que me adormece um pouco. Olha, estou a cair de sono. Vou-me deitar."
A tentação de falar a François e de lhe revelar tudo aflorara-lhe por um instante. mas era impossível. Apesar da sua gentileza e do seu afecto, ele não teria podido compreendê-la, e ainda menos aprová-la.
Fugiu apavorada para o quarto. Já não podia encarar presentemente estar separada de Jacques.
Durante as longas noites quentes, quando se virava e revirava na almofada encharcada em suor, no meio da vaga dos seus cabelos, a sua recordação obcecava-a. Julgava sentir contra si a carícia e o peso do seu corpo. Com todas as suas forças, chamava-o então numa vertigem de alegria e de pânico.
Assim que Jacques estava de volta e que ela o sabia no bosque próximo, cada instante passado longe dele parecia-lhe insuportável. Andava às voltas pela casa, desamparada, procurando os relógios com o olhar, enquanto a manhã se arrastava interminavelmente, de hora a hora. Perseguia as criadas, que, surpresas, paravam de trabalhar; corria a ver se o cozinheiro começara o seu caril, exasperava-se com os atrasos de François.
Enfim, a tarde instalava a sua vacuidade premente, a sua paz cheia de odores e de cantos de aves. Então, para compensar o tempo perdido, Louise corria ao longo do caminho, entre as moitas de vangassayes e de hibiscos, através da sebe de framboesas castanhas, onde os seus passos tinham acabado por traçar um caminho, até às primeiras árvores do bosque onde Jacques a esperava.
"Vamos até ao rio - disse-lhe ele um dia - faz lá mais fresco.
- Já não gostas da nossa cabana?
- Sim. Mas os ramos estão murchos agora. Tenho de refazer o tecto."
Atravessaram a clareira. Os ébanos à sua volta cresciam cada vez mais altos e bastos. Durante um bom bocado, caminharam à sua sombra antes de ouvirem o ruído da água. O ar imediatamente pareceu mais leve.
As margens baixas estavam cobertas de erva, de musgo e de tufos de bambus. Uma serpente fugiu-Lhes debaixo dos pés.
"Uma cobra", disse Jacques. "Não fazem mal. Há muitas por aqui. Olha, senta-te."
Ele estendeu o casaco na erva e deixou-se cair ao lado dela.
"Parece-me - prosseguiu ele passando o braço em volta da cintura dela e puxando-a para si -que há mil anos que não te vejo. E tu, aborreceste-te ao menos durante a minha ausência?
- Parece-me que, agora, quando não estás cá, já nada mais existe. E aborreço-me... aborreço-me todo o tempo.
- Isso é demasiado - murmurou ele. -Mas tu és toda a minha vida...
Ele observava-a em silêncio, com uma gravidade que não lhe era habitual.
"Nós não seguimos o caminho certo", disse ele finalmente. Após um instante, acrescentou mais ligeiramente: "Mas não havia outro..."
Agora, olhava para o rio, que, como todos os da sua ilha, ruidoso e vivo, volteava em redor de escuras rochas vulcânicas espalhadas no seu leito.
"Chegaram notícias ao centro administrativo esta manhã - recomeçou ele.
- Que notícias?
- Notícias de França. Vão causar-te desgosto. " Ela soltou-se bruscamente dos braços do jovem
para lhe observar o rosto. Mas ele era impenetrável e o seu olhar continuava a seguir a corrente de água a seus pés.
"O tratado de paz foi assinado - disse ele. - E os Ingleses ficam connosco.
-Ah! não! -gritou ela. -Não! Não!... " Por um instante, como sob o choque daquele grito, ela viu o mundo vacilar à sua volta. Mas já a quietação tornava a cair sobre as margens planas e suaves, sobre os ébanos e os tufos de bambus que mergulhavam as raízes na água.
"Borbom será restituída à França", acrescentou Jacques.
Era uma espécie de desforra mas, ao mesmo tempo, uma nova dor.
"Não é justo - gritou de novo Louise -, porquê eles e não nós?
- Os Ingleses querem-nos de mais para nos deixarem... E, além disso, a nossa terra é rica, temos um grande porto, bons ancoradouros.
- Nunca o rei aceitará isso. " Ele olhou-a com surpresa.
"Mas, meu coraçãozinho, já foi aceite!"
Tudo estava portanto acabado dessa vez. E para sempre. Assim terminava aquela longa aventura, com as suas lutas e as suas esperanças insensatas.
Ela encostou-se de novo a ele e sentiu os seus braços fecharem-se sobre si. "Meu querido amor", pensava ela, "tu, tu ficarás para mim. Para sempre."
"Para os nossos colonos", prosseguiu ele, não há transtorno a recear. Verás que tudo vai continuar como no passado. É só uma mudança de etiqueta."
Ela abanou a cabeça.
"Não, nada será nunca mais igual, nunca mais. E tu pensa-lo também e estás triste, mesmo que não queiras confessá-lo.
- Eu, sabes, desde que te tenha o meu coraçãozinho e a minha Créole e o mar... sou feliz. A minha pátria é aqui, em nenhum outro sítio. Já to disse. Queres tomar banho?
- Como? -disse ela, atordoada por aquele oferecimento sem transição.
- Sim, ali. Aquela água não te tenta? Vê como está clara. E faz tanto calor. Tira o vestido."
Louise estava duplamente escandalizada, a gravidade da hora não convinha a um tal oferecimento, chocante aliás em si próprio. Porem-se nus assim, em plena luz, sem terem sequer a protecção das folhagens da cabana. Nus como negros.
"Tens vergonha?", recomeçou ele a rir. "Não és a minha mulher? Além disso, és maravilhosa."
Ele desapertara a gravata, tirava as roupas, amontoava-as sobre o casaco. Ela via-o finalmente, como nunca o vira ainda, com uma mistura de admiração e de embaraço. Como ousava ele pôr-se assim diante dela com tanto à vontade e beleza?
"Vamos, agora tu!", lançou ele. "Vou ajudar-te..."
Levantava-lhe já a saia, fazia-a passar por cima da cabeça, desrnanchando-lhe os caracóis. Um pouco mais tarde, metiam-se os dois na água. O frio arrepiou-a ao primeiro contacto, mas em breve apenas experimentou uma frescura maravilhosa. A água era funda naquele sítio. A corrente rápida que lhe deslizava ao longo dos flancos e das pernas causava-lhe uma extraordinária emoção, em que vibravam o medo e a alegria. Agarrava-se a Jacques, as mãos escorregavam-lhe sobre os ombros dele.
"Vou cair!", gritou ela.
Ele agarrou-a e beijou-a, apertando-a fortemente contra si. Louise nunca mais poderia esquecer a embriaguez daquele instante, o calor dos seus corpos enlaçados e aqueles longos dedos rápidos e leves que os rodeavam de carícias...
"Nós vamos sair de Diego amanhã, patrão?
- Não, a carga ainda não está pronta."
Hippolyte examinou o capitão com atenção. Havia cinco dias que aquela situação se prolongava sem que ele parecesse ligar-lhe a mínima importância. Eis o que era verdadeiramente esquisito!
Desde que o patrão tomara o hábito de ir ter com a Menina Louise, já não suportava demorar-se em Diego. Porquê então, de repente, aquela indiferença tão estranha à sua natureza? Ele devia ter esbravejado e praguejado, perseguido os plantadores, não ter um instante de descanso antes de todo o assunto estar resolvido. E ficava ali, sentado na praia, olhando vagamente para a sua escuna vazia, ancorada na lagoa. Um pouco mais longe, a equipagem jogava à malha.
"Todavia, teria sido melhor sairmos de Diego", replicou o escravo. "Porque o tempo vai-se alterar..."
Jacques levantou maquinalmente os olhos para o horizonte de enxofre e de ouro-escuro onde desaparecia o sol-poente.
"Pode ser que sim."
Dessa vez, uma tal desenvoltura era simplesmente inverosímil. O marinheiro ficou tão escandalizado que abandonou o local para ir ter com os outros negros e com o seu jogo da malha. Jacques chamou-o.
"Chega aqui! Preciso de ti."
Tinha-se levantado e afastava-se ao longo da praia. O escravo foi ter com ele.
"Que tens tu, meu patrão? Estás doente?"
De repente, um pensamento assustador surgiu no espírito do negro. O capitão estava enfeitiçado. Tinham misturado pós no seu caril, acrescentado água maldita ao seu araque e haviam-lhes destruído a alma. Porque é que ele também tinha tantos inimigos, brancos, negros e de todas as espécies?
Tinham atingido uma ponta de areia onde os coqueiros imóveis flamejavam no esplendor da tarde. Por detrás dos seus delgados troncos, sobre a água lisa da laguna, começavam a correr longas chamas amarelas que vinham do horizonte. Jacques parou.
"Olha para isto", disse ele.
Tinha desabotoado a camisa e abriu-a vivamente.
"Que é, patrão?
- Aqui, imbecil!"
Mostrava-lhe duas manchas no lado, cuja palidez doentia contrastava com a cor bronzeada da pele. Instintivamente, o escravo recuou. Jacques viu-lhe o rosto decompor-se e tornar-se cinzento, como se se cobrisse de cinza.
"É a doença? - gritou o capitão.
-Não sei - balbuciou o escravo.
- Tu não sabes... Não ousas dizê-lo. Mas como poderia eu ter apanhado isto? Como? Eis o que não consigo compreender!"
É verdade que havia uma leprosaria na ilha. Entre os negros que ele transportava na sua escuna deviam aparecer doentes. Mas daí a contrair aquela porcaria...
"Já viste a doença de perto, Hippolyte?
-Algumas vezes, patrão."
Ele também a tinha visto, mas sem nunca lhe ligar a mínima importância. Era um mal de escravos que não podia dizer-lhe respeito.
"Escuta, meu patrão - replicou Hippolyte - eu sou ignorante e a minha cabeça está vazia. Mas há um velho aqui, na ilha, que sabe muitas coisas. Ele poderia dizer se é a doença de facto. Ele trata e conhece as palavras que afastam a desgraça. Devias ir ter com ele.
- Donde é ele, esse homem?
-Estava numa plantação ria Rivière Noire, mas saiu de lá.
- É um escravo fugitivo?
- Sim, de certa maneira. Mas o patrão também o deixou ir. Tinha medo, talvez, das palavras que ele diz. Se quiseres, amanhã posso levar-te à cabana dele.
- Porquê amanhã? -Leva-me já. Se ele puder dar-me informações, é tudo o que lhe peço.
O negro hesitava agora, como se a proximidade da visita o assustasse de repente.
"Pois bem, porque esperas? Não sabes o caminho?
-Sim, sei. E não é longe. Mas em breve vai anoitecer...
- Mais uma razão para não perder tempo. Vamos, vamos lá!"
Viraram as costas ao mar, deixando atrás de si os coqueiros e a praia coberta de caranguejos. Mal chegaram ao bosque, a escuridão envolveu-os. Aqui o dia já perdera o seu combate, só alguns traços rosados se desfiavam ainda no topo das árvores.
"Despachemo-nos- disse Jacques-, dentro dum momento não se verá nada.
- Acolá há uma vereda. Foi o velho que a fez à força de ir à praia procurar ovos de tartaruga."
Tiveram dificuldade em encontrar a pista, tão leve como a duma lebre. O bosque enchia-se em volta deles duma vida feltruda e secreta que fervilhava nas moitas e na erva seca, enquanto no céu, por cima da ilha, soavam os gritos lancinantes dos albatrozes: as fragatas e os fousi, que sentiam aproximar-se a tempestade.
"É certo", disse Hippolyte, "que o tempo está a mudar".
O patrão não respondeu e eles caminharam por um momento ainda; depois o escravo anunciou:
"Estamos a chegar... Já vejo a luz do velho na cabana."
Era apenas um ponto luminoso, do tamanho dum pirilampo. Avançaram às apalpadelas para essa luz até avistarem finalmente a cabana. Estava tão bem aninhada nas moitas que, mesmo em pleno dia, devia custar a encontrar.
"Se ele nos ouve, vai ter medo e fugir -murmurou Hippolyte. - É mais ágil do que um macaco.
- Então, mais vale anunciarmo-nos e tentarmos tranquilizá-lo. Eh! homem! -gritou Jacques. - Não tenhas medo! São visitantes que aqui vêm, amigos."
Ave marinha branca e muito grande.
Correu até à cabana e meteu a cabeça pela abertura. Um velho estava sentado no chão, completamente nu, com excepção dum langouti que lhe envolvia os rins. A pele ressequida, mal calculada, segundo parecia, para o seu esqueleto, pendia em pregas sobre o ventre e as coxas. Em compensação, colava-se tão estreitamente às costelas que parecia prestes a rasgar-se.
A luz vinha dum candeeiro colocado em cima duma marmita.
"Bom dia, tiozinho!", disse Hippolyte. "O meu patrão quer conversar um momento contigo."
Os dois homens penetraram na cabana, tão baixa que eram obrigados a curvar-se. Hippolyte chegou ao patrão um tronco de madeira que podia servir de tamborete e ele próprio se sentou no chão, ao lado do velho, que os deixava agir sem dizer nada.
"Sabes quem eu sou?", perguntou Jacques.
O velho teve um sorriso que descobriu umas gengivas estragadas.
"Tu és um grande capitão. Trazes a farinha, o pano, o rum. Tudo o que é preciso aqui.
- Escuta, preciso de ti.
- Um branco pode precisar dum negro? " Jacques examinou o velho com desconfiança.
Estaria a troçar dele?
"Pode acontecer... -disse. -Parece que tu sabes muitas coisas; que conheces as plantas e as palavras que têm poder; que és um grande feiticeiro.
- Deus me ajude.
Espécie de tanga.
- Eu julgaria antes que era o Diabo. Enfim, pouco importa. Vim somente pedir a tua opinião. Diz-me se conheces este mal ou se foi o sol que me tirou assim a pele."
Como fizera anteriormente para Hippolyte, Jacques desabotoou a camisa e inclinou-se para o velho para lhe mostrar as duas manchas no lado. O negro examinou-as tão demoradamente que Jacques perdeu a paciência.
"Então, estás a dormir, homem... Fala, que vês tu aí?
- Tens a tua faca, capitão? " Jacques estendeu-lha.
"Aqui está", disse com surpresa. "Que queres fazer?"
Sem responder, o velho agarrou na faca e espetou a ponta em cheio na mancha. Agira tão depressa que Jacques não tivera tempo de recuar. Via com espanto o sangue sair da arranhadela e correr em delgado fio.
"Fiz-te doer? - perguntou o velho.
- Caramba! não, feiticeiro, não senti nada. É esse o teu tratamento? Fazes sair o sangue mau?"
Sem responder, o velho restituiu-lhe a faca, depois, levantando-se um pouco, pôs a ponta do seu comprido dedo seco no peito do jovem.
"Sentes que te toco?
- Sim", disse Jacques com mal-estar. Estremecera ao contacto do dedo gelado.
Parecia-lhe que aquele frio lhe atravessava a carne até ao coração.
O homenzinho tinha-se deixado cair outra vez sobre os calcanhares e meditava de novo, com os olhos fixos no candeeiro, enquanto à volta da cabana as sombras giravam, como um rápido e silencioso carrossel. Pelo buraco da porta, elas engolfavam-se nas trevas, depois ressurgiam em breve e retomavam a sua carreira.
"Capitão", disse o velho, "tu tens a doença... " Jacques puxou bruscamente sobre si os dois lados da camisa. Depois, após um grande bocado, começou a abotoá-la, um botão depois do outro, até ao colarinho. O sangue, que não secara ainda, fez uma mancha no tecido.
"Como é que eu apanhei isto, homem? disse ele.
- Deus o sabe.
- Fiz amor com uma rapariga, achas que posso ter-lhe pegado a doença?
- Talvez que ela não tenha nada... O mal segue o seu caminho, capitão. Toma um e deixa o outro. Duas crianças na mesma cama, uma está doente e a outra não. O marido morre, a mulher procura outro homem e vive muito tempo ainda. Uma aldeia está doente e a sua vizinha em paz.
- Sim - cortou Jacques com cólera - tens razão, sem dúvida. Mas tudo isso me é indiferente. Quero saber se essa mulher ficará doente!
- Tu conheces o futuro, tiozinho - pôs-se Hippolyte a gritar. - Disseste-o a outros. És um grande feiticeiro, o maior de todos! Então, podes falar desta vez ainda. Peço-te, fala e serás recompensado... Eu irei pescar para ti, trar-te-ei cocos e caranguejos, contarei a lenha para o teu hime. Fala, tiozinho! E a boa Virgem e o Senhor S. Luís abençoar-te-ão.
- Eu nem sempre sei - disse o velho. - Por vezes as coisas vêm diante dos meus olhos, mas doutras vezes também não há nada. Tens um objecto que ela tenha tocado, capitão?
- A minha cruz, a que trago em volta do pescoço. Ela brincou muitas vezes com ela.
- Dá-ma."
Sem tirar a corrente, Jacques inclinou-se para o velho e pôs-lhe a cruz na mão.
O homem permanecia imóvel, de olhos fechados. O silêncio durou tanto tempo que Jacques sentia a anciosidade tomá-lo e mexeu-se um pouco no seu assento desconfortável.
"Estou a vê-la - murmurou por fim o velho. -Tem os olhos como o mar.
- Sim - gritou outra vez Hippolyte. - Fala, fala, tiozinho.
- Essa mulher tem muitos anos à sua frente. Viajará para longe, para o outro lado do mundo, mas voltará. Por ela, capitão, tu continuarás a viver."
Jacques endireitou-se e a cruz, no extremo da corrente esticada,
escapou-se da mão do negro.
"Que queres dizer? Talvez alguma coisa para mim?
- Essa mulher não conhece os remédios.
- Mas tu, homem, tu conhece-los. Poderás curar-me desta porcaria?"
O velho levantou a mão e a sombra dos seus dedos estendeu-se como uma gigantesca aranha sobre a parede da cabana.
"Se tivesses aberto o pé nos corais, se tivesses partido a perna ou se o laff-la-bouel tivesse o seu
Peixe cuja mordedura é venenosa.
veneno no teu corpo, eu curar-te-ia... Mas contra este mal, capitão, não posso nada. Talvez que as manchas desapareçam, mas voltarão noutro sítio. E depois as tuas mãos fechar-se-ão pouco a pouco e tu não poderás servir-te mais delas..."
Nesse instante, Jacques viu Louise como se ela estivesse mesmo ali, diante dele, à entrada da cabana. Observava-o com a expressão radiosa que tinha quando se encontravam depois das ausências dele. Nunca ela lhe parecera tão bela e resplandecente como naquele instante.
Depois, insensivelmente, como se recuasse na sombra, a forma começou a apagar-se até desaparecer por fim totalmente. Mas não era a imagem que voltava ao nada. Era ele que ficava para trás, enquanto Louise se afastava sozinha na longa viagem do futuro, em que ele não estaria.
Jacques levantou-se bruscamente. Depois, metendo a mão na algibeira, tirou de lá duas piastras, que estendeu ao velho.
"Toma", disse ele, "pelo teu trabalho."
O negro não se mexeu.
"Eu não posso nada por ti, capitão - disse ele lentamente, como se duvidasse de que o jovem tivesse compreendido bem as suas palavras.
- Falaste-me francamente e isso merece uma paga, porque, se tivesses prometido curar-me com as tuas ervas e as tuas habilidades, talvez que eu tivesse a fraqueza de te acreditar..."
Durante meses, ter-se-ia arrastado assim entre a esperança e as recaídas, entregue nas mãos daquele negro, renegando-se a si próprio, covarde a ponto de tudo aceitar menos a morte.
Colocou as piastras em cima da marmita, ao lado do candeeiro.
"Vem...", disse, virando-se para Hippolyte.
Viu então que o escravo chorava. As lágrimas silenciosas corriam-lhe pela face cinzenta, misturadas com o suor. Quando a chama, no seu rodar, tocava naquele rosto petrificado, ele ficava a brilhar para logo se extinguir.
"É a maldição! - balbuciou o escravo. - Quando o Sr. Victor gritou tanto, fez aparecer o mal.
-Vamos - ralhou Jacques-, isso são parvoíces! Vem, já não temos nada que fazer aqui."
Saiu e parou logo, surpreendido pela escuridão, já não distinguindo o estreito caminho que os conduzira até à cabana.
"Reconheces o caminho?", disse ele. "Eu estou perdido."
Sentiu a mão do negro no braço.
- Segue-me, patrão, é por aqui."
"Perdido", repetiu Jacques, chocado pela ressonância súbita daquela palavra.
Prendendo os pés nas lianas, praguejou e sentiu de novo a mão do escravo no braço. Agora, os dois homens davam as costas à luz que os guiara e era noite fechada. Levaram muito tempo até encontrarem a praia e aquela pálida claridade lunar que vela sempre à superfície da areia. A lagoa mergulhara nas trevas, mas para além dela elevava-se no céu a barreira branca e tonitruante dos recifes. O mar devia estar encapelado ao largo.
Juntos, deram uns passos na praia, depois Jacques sentou-se no tronco dum coqueiro morto e o escravo ficou de pé atrás dele.
O céu descobria-se por momentos, acima das suas cabeças, e, naqueles buracos de azul-escuro, viam-se brilhar as estrelas. Mas logo as nuvens aí rolavam de novo. A noite reencontrava a sua densidade enquanto os fous e as fragatas, dum extremo ao outro do horizonte, clamavam sempre a aproximação da tempestade.
"É tarde, patrão", disse Hippolyte. "Devias voltar para a choupana. Eu preparo-te a comida..."
Jacques não respondeu. Um momento antes era ainda a vida. E eis que tudo se desmoronava diante dele. Como é que aquelas coisas incríveis tinham podido encadear-se umas nas outras, com aquela rapidez de pesadelo? Ele teria podido não notar nada de anormal, não ter ido com o feiticeiro. E aquela noite teria sido uma noite como todas as outras. Teria fome. Estaria talvez sentado ali, no mesmo sítio, calculando as hipóteses dum golpe de vento e furioso com o atraso. De repente, o esplendor, a alegria da sua existência passada, deslumbraram-no, ao mesmo tempo que um intolerável sofrimento lhe despedaçava o coração.
Porque aquelas duas manchas insignificantes tinham revelado o seu veneno, o mundo tombara no irreparável. Era demasiado absurdo! Talvez que bastasse ignorá-las, para que tudo entrasse na ordem? A vida recomeçaria como outrora. E nada, talvez, acontecesse.
Mas afastou essa tentação. Para quê fingir que não sabia? A podridão estava nele. Já não o largaria, até que ano após ano acabasse de o devorar completamente... Dizia-se que o velho Laíston levara quinze anos a morrer. Quinze anos recluso no seu quarto, saindo só à, noite, com aquela porcaria a trabalhar-lhe na carne. Os vizinhos que vinham visitar a mulher dele contavam que, apesar das portas fechadas, o cheiro da sua decomposição se espalhava através da casa, até ao jardim.
Jacques baixou-se para apanhar uma concha cujo nácar brilhava a seus pés.
"Nunca mais - murmurou ele - nunca mais...
- Estás a falar, patrão?", disse a voz ansiosa de Hippolyte.
Jacques levantara-se. Agora era preciso agir, depressa, porque mais tarde tudo seria mais difícil ainda.
"Escuta - disse ele - o que acabas de saber hoje ninguém deve sabê-lo. Nunca. Aconteça o que acontecer. Ouves: nunca.
- Sim, patrão.
- Sobretudo a Menina Louise. Mesmo que ela te interrogue, que queira forçar-te a falar.
-Palavra que não digo nada, ela teria um grande desgosto.
- Vais jurá-lo sobre a cruz. E sabes o que acontece se não se cumpre um juramento feito sobre a cruz'. Sabes?
- Sim, sim, meu patrão."
A voz do escravo tremia. Nunca ele ousaria quebrar a sua promessa. O medo impedi-lo-ia durante toda a vida.
"O próprio fogo do céu cairia sobre a tua cabeça."
Soltou da camisa a cruz pendurada ao pescoço e, como fizera um momento antes com o feiticeiro, pô-la na mão de Hippolyte.
"E agora jura nada dizeres. Repete: juro-o."
O escravo hesitava. Então, ele fechou vivamente os dedos, apertando os do negro entre os seus: "Di-lo então e que isto acabe.
- Juro-o.
- Bem. Toma isto. Vais conservá-lo como recordação minha."
Retirou a corrente e fê-la passar para o pescoço de Hippolyte.
"A tua bela cruz, meu patrão...
- Sim, faç-te presente dela. Agora vai-te deitar. Vai, deixa-me."
Jacques afastava-se em direcção à lagoa. À beira da água parou e começou a despir-se. Com espanto, o escravo viu-o atirar a roupa para a areia antes de penetrar no mar. A água já lhe chegava à cintura e ele continuava a afastar-se, caminhando para a escuna.
"Aonde vais tu, meu patrão? - gritou Hippolyte, desvairado. - Não vais dormir dentro do barco com este tempo.
- Deixa-me sossegado e volta para a choupana com a equipagem. Não fiques aí. Vai-te embora!"
Jacques nadava agora e Hippolyte mal lhe distinguia a cabeça acima da água negra. Esteve tentado a segui-lo. Mas o patrão repeli-lo-ia. Queria estar só.
Já o capitão atingira a escuna e se içava para bordo.
O escravo permanecia na margem, desamparado, observando a silhueta do barco ao longe, com um sentimento atroz de solidão e de abandono. E, de repente, viu com espanto subir a vela. Então, pôs-se a correr pela praia, chamando com toda a força, gritando palavras que não tinham sentido.
Sentia-se enlouquecer e o patrão estava louco também. Ele não podia conduzir sozinho o barco e, além disso, aonde ia, em plena noite, com o vento que estava a levantar-se?
A escuna fazia a viragem para o largo. Aproximava-se do canal. Para além era o alto mar, onde se via correr, numa fantástica confusão, o galope negro das vagas. A vela foi engolida por aquela fúria. Saltava para o céu como se iniciasse um voo antes de cair nos golfos que a faziam desaparecer completamente.
Hippolyte já não chamava.
Repetia baixinho: "Meu patrão, meu patrão...", numa triste e inconsciente súplica, enquanto ele ia e vinha sempre na sua viagem sem objectivo. Já nem mesmo tinha a certeza de ver a escuna na tempestade do largo. E não soube exactamente quando ela desapareceu aos seus olhos.
Sentada à entrada da cabana, Louise vira a escuridão expulsar pouco a pouco, acima da clareira, as últimas chamas do crepúsculo. Num momento chegaria a noite, mas ela não podia decidirse ainda a regressar a casa. Porque é que Jacques não estava de volta? Todos os dias, desde o começo da semana, viera esperá-lo no bosque. Que contratempo o teria impedido de vir? E agora chegava a tempestade.
Levantou os olhos. Acima dela, os ébanos balançavam os cachos dos seus frutos. Segundo os remoinhos do vento, as folhas tomavam tonalidades claras ou verde-escuras. Tantas vezes que, naquele mesmo lugar, ela vira a noite descer... Mas nessa tarde estava só e, ao seu medo, parecia fazer eco das coisas à sua volta. Não se distinguia um ruído, afora a voz do vento que soava por instantes, alta e forte, como para fazer compreender bem que aquela hora lhe pertencia e que ele era o seu único senhor.
Seria possível que a Créole estivesse no mar? Esse pensamento atormentou-lhe o coração. Mas tentou tranquilizar-se. Jacques era muito bom marinheiro para se ter deixado surpreender. A escuna não saíra de Diego ou então já estava em PortLouis. Prestou o ouvido com a vaga esperança de ouvir o galope do cavalo.
De qualquer maneira, Jacques não viria, era demasiado tarde agora. De resto, a cabana, meio em ruínas, já não podia oferecer-lhe um abrigo suficiente e, antes do dia seguinte sem dúvida que a tempestade a teria levado.
Na plantação deviam procurar já. Louise e François preocupava-se. Todavia, ela não podia decidir-se a deixar aquele sítio mergulhado numa tristeza tão profunda, rodeado de obscuras ameaças.
De repente, o vento levantou-se de novo, mas com uma violência exasperada, um furor que rasgava a massa alta das árvores, a torcia, a revolvia em enormes turbilhões. E a chuva começou a cair. As gotas saltavam sobre as folhas com um rolar profundo como o da tempestade, dominado por rajadas de crepitações. Depois, com a cobertura furada, lacerada, cedendo ao peso da água, o aguaceiro abateu-se até ao solo.
Louise levantara-se num salto. Pôs-se a correr, cega pela tempestade e pela noite, segurando com ambas as mãos a saia a escorrer, chocando contra os ramos.
Quando, através do dilúvio, avistou finalmente a casa e o refúgio da varanda, pareceu-lhe emergir de repente dum naufrágio em que tivesse lutado até ao limite das suas forças antes de alcançar a margem...
O ciclone encarniçou-se durante três dias sobre a ilha. Depois o vento começou a decrescer. As torrentes que devastavam os campos e corriam ao longo das mais pequenas ravinas acalmaram. Espaços azuis apareceram no meio da confusão das nuvens. E o sol brilhou de novo.
Então, a terra e as plantas afogadas, saturadas de água, começaram a soltar baforadas de vapor. O ar, por um momento refrescado, tornou-se irrespirável. Os peitos sufocavam, as mãos só tocavam em objectos pegajosos, viscosos. Nas roupas, nas cortinas, nas paredes, via-se formarem-se em poucas horas as manchas verdes e negras dos bolores.
O vento levara o tecto da varanda, deixando as colunelas, agora inúteis, que, direitas umas atrás das outras, pareciam vigias à espera dum sinal. Em volta da escada amontoava-se uma confusão de ramagens, de ripas, de tábuas, que acabavam de esmagar as moitas de rosas e de hibiscos, já ceifadas pela chuva e pelo vento.
François passava os dias inteiros na plantação, percorrendo os campos destruídos, juncados de pedras, onde as colheitas se decompunham na lama. Em casa, Louise vigiava as criadas, que punham a secar os colchões húmidos, sacudiam os tapetes e as roupas. Mas o seu espírito errava longe dali. Sobressaltava-se quando os escravos lhe vinham pedir ordens, nem sequer ouvia as marteladas dos carpinteiros, que reparavam o telhado com grande barulheira.
De dia para dia, a sua angústia tornava-se mais insuportável. Que acontecera afinal a Jacques? Era incompreensível que ele a deixasse assim, sem notícias. Louise não voltara ao bosque. Para quê? Jacques não se encontrava lá, senão ela seria avisada. E um temor superticioso a afastava daquele lugar que fora o da sua felicidade e onde qualquer coisa de inexplicável se quebrara.
Uma tarde, quando estava sentada sob a varanda, ainda inundada de sol, Hippolyte apareceu de repente. Não o vira aproximar-se, ele parecia surgir do amontoado das ruínas, uns passos mais longe. Ao vê-lo, ela teve um movimento de alegria. Mas a expressão do negro, toda a sua atitude, exprimia de tal forma o drama de que era mensageiro que o terror atingiu a rapariga em pleno coração. Levantou-se.
"Onde está o teu patrão?
- Menina Louise...", balbuciou o escravo.
Ela agarrara-o pelo braço e sacudia-o fortemente.
"Onde está ele? Mas responde, responde..."
Como ele continuava sem falar, ela largou-o subitamente, recuou.
"Morreu!", disse ela.
Agora o escravo falava com desembaraço, entrecortando a sua narrativa incoerente com soluços, lágrimas, gritos de revolta. Ele partira na escuna, sozinho... na tempestade, como um louco. Mas porque fizera ele isso? Porquê? Ele bem sabia, no entanto, que a ventania surgiria... E já fazia escuro... E as aves tinham gritado todo o dia... Só, na tempestade. E ele ficara na praia. O patrão deixara-o ali, atrás... Ele deixara-o, a ele, o seu escravo, o seu marinheiro...
Ela ouvia-o petrificada de terror, anestesiada, não compreendendo nada do que ele dizia, perdida noutro mundo a milhares de quilómetros do sítio onde se proferiam aquelas palavras incompreensíveis.
"... Os negros de Galega encontraram o seu corpo nos recifes. Ah! Menina Louise, eu não lhe queria dizer. Há dois dias que estou aqui, nos bosques."
"Nos recifes de Galega", repetiu ela com a mais perfeita surpresa. "Porquê Galega..."
E, subitamente, as palavras que o negro acabava de pronunciar
penetraram-lhe no espírito com uma nitidez insustentável. Encontraram o seu corpo... o seu corpo nos recifes... o seu corpo.
Quis gritar que não era verdade, desafiar ainda o destino porque aquilo não podia ser verdade. Mas nenhum som lhe saiu dos lábios. Envolveu-a um turbilhão, no qual passavam as árvores nuas, as colunelas que esperavam não se sabe o quê, o rosto lavado em lágrimas do escravo e as belas nuvens brilhantes, enfunadas como velas, que flutuavam no céu. Instintivamente, estendeu os braços, procurando um ponto de apoio naquela vertigem. Mas tudo fugia. Então, rodando sobre si mesma, caiu no chão, antes que o escravo, que se precipitava para a segurar, tivesse tido tempo de chegar ao pé dela.
"Ainda não acabou de beber - resmungou a nénène Rosalie. - "Engula isto, ou então nunca mais se cura."
A negra tirou de cima da mesa outra vez o copo abandonado por Louise, cheio a três quartos ainda dum líquido amarelado. Sumo de papaias verdes, mel, com uma pitada de bruxaria à mistura, não há melhor para curar as cólicas e os langores.
"Eu não estou doente, nénène...
- Vamos lá, eu bem vejo a sua cara. Mas também, que necessidade tinha de ir para lá, para a plantação? A senhora nunca devia ter-lhe dado ouvidos. Bom Jesus, Maria, estas crianças!... Vamos, beba."
Louise esvaziou o copo e entregou-o à escrava com uma contracção de repugnância.
"Agora vai ficar melhor", declarou Rosalie com satisfação. Antes de se retirar, anunciou: "Há-de tomar outro esta noite e eu rezarei em seguida uma oração à boa Virgem."
Havia dois meses que tinham trazido Louise para Port-Louis, desfeita pela febre, meio inconsciente. Dessa doença tão súbita ninguém em Tamarin compreendera nada. Perdiam-se em conjecturas. François permanecia evasivo, uma insolação talvez, ou as febres, ou um abalo causado pelo ciclone.
As duas senhoras, agora, esforçavam-se por tratar a rapariga, por a encher de mimos para a consolarem do seu incompreensível abatimento, da sua tristeza, das suas crises de lágrimas.
A vida retomara o seu curso. Mas o mundo para Louise já não era mais do que a sombra cinzenta do de outrora. A alegria e o esplendor tinham desaparecido dele. Os crepúsculos não brilhavam já como festas, com os seus céus salpicados de ouro e de sangue. Ela não ouvia já as chuvadas abaterem-se sobre as folhas das bananeiras, que resplandeciam de repente como esmalte. Nada hoje tinha já brilho, nada transmitia já mensagens. Os dias iam-se, uns após outros, como um interminável enterro, até ao fim do futuro.
Jacques morrera.
A surpresa atroz do primeiro instante conservava ainda o seu horror. O pesadelo não acabava de se dissipar. Mas nessa morte havia também uma incompreensível traição do destino. Porque Jacques não podia morrer, ele encarnava todas as certezas e a própria força da vida. Tinha de ser feliz e conseguir tudo o que empreendia. Não havia um pacto entre ele e qualquer formidável potência tutelar? Ela sempre o acreditara, pelo menos, e eis que esse pacto acabava de ser quebrado. Ele dissera: "Eu estarei sempre aqui. " E estava morto.
Mas que ia ele fazer, sozinho na sua escuna, a Galega? Eterna pergunta sem resposta. Da bela Créole nada ficara, salvo algumas tábuas e o camarote de trás, atirados para a lagoa.
A cabeça de Lucien apareceu à janela.
"Queres bolos de pimento, Louise? Olha, trouxe-tos do bazar."
Afastou uma folha de golfão que colocara no parapeito da janela e descobriu os pequenos bolos amarelos, um pouco esborrachados.
"Não, obrigada. Tu és um amor.
- Tu já não gostas de bolos de pimento? - disse o pequeno, desiludido.
- Sim. Mas não tenho fome."
Louise pegou num lenço e limpou a testa. O calor incomodavá-a havia algum tempo. No entanto, o Inverno estava a chegar e toda a gente dizia que se sentia já a sua frescura no ar.
A porta tornou a abrir-se, dando passagem dessa vez à pequena Maria.
"Está aqui Miss Findler, que vem com o lindo vestido", anunciou ela, com os olhos a brilharem de excitação.
Louise teve um movimento de mau humor, que se esforçou logo por dissimular.
"Manda-a entrar. E depois deixa-nos."
O rosto da rapariguinha ficou petrificado com a decepção. Contava ser admitida à prova, o que lhe teria permitido passar os dedos
sub-repticiamente nos festões e laços, acariciar a seda.
"A menina não vai precisar de mim?
- Não. Manda entrar Miss Findler."
Já a inglesa, sem esperar que a introduzissem, fazia a sua aparição. Tantos acontecimentos se tinham produzido desde o seu último encontro que pareceu esquisito a Louise encontrá-la tão exactamente semelhante a si própria, com o seu vestido severo e o seu chapelinho.
Agora, que a ilha se tornara britânica, ela não voltaria mais à sua longínqua pátria. No fim de contas, tivera razão e era ela quem ganhara.
"Nós ficaremos com ela", pensou Louise, "para sempre, com as suas sedas e as suas rendas. Morrerá aqui e irá dormir na nossa terra com palavras inglesas no seu túmulo."
"Parece que esteve doente - disse Miss Findler. - Espero que já esteja boa.
- Estou completamente restabelecida, muito obrigada."
Miss Findler estendia sobre a cama um vestido de seda cor-de-rosa ornamentado com um festão onde estavam bordadas margaridas.
"Eis o modelo que a sua mãe escolheu", disse ela. "Penso que lhe agradará. Fi-lo exactamente com as suas medidas."
A Mamã-Doce fora de propósito a casa de Miss Findler para encomendar aquele vestido e com ela o discutira demoradamente. Esperava que aquela nova toilette incitasse a filha a sair e a distrair-se um pouco, o que seria certamente o melhor remédio para a sua apatia.
"Então-insistiu Miss Findler - que diz?
- É muito bonito", respondeu delicadamente Louise.
A inglesa envolveu-a num olhar atento. Mas Louise não deu por isso. Seguia, lá no alto, no céu, o voo duma ave marinha. Era apenas um ponto branco, um minúsculo salpico que uma nuvem escamoteou.
"Não quer experimentá-lo?"
A rapariga sobressaltou-se.
"Acha que é necessário?
- Mas... evidentemente."
Nos olhinhos cinzentos, a expressão interrogativa acentuou-se mais.
Louise tornou a pegar no lenço para limpar a testa e o pescoço. O suor colava-lhe as roupas às costas. Lastimava agora ter mandado embora a pequena Maria. A criada tê-la-ia ajudado a secar-se antes de enfiar o vestido. Dirigiu-se ao lavatório para pegar numa toalha e viu subitamente no espelho o seu rosto inchado e lustroso. "Estou horrível", pensou ela. Mas já nada tinha importância.
Começou a desabotoar o roupão e deixou-o cair aos pés. Com mil precauções, Miss Findler levantava o vestido de cima da cama. Ajudou a rapariga a enfiá-lo. Mas Louise enervava-se. O decote prendia-lhe os caracóis, não conseguia fazer descer a cintura. Quando o vestido, finalmente, ficou no seu lugar, ela sufocava, à beira do desmaio.
"Não me serve", exclamou ela. "Estou sufocada!"
Miss Findler contemplava-a em silêncio, enquanto o ar em volta delas se carregava dum embaraço e duma expectativa insuportáveis.
"Minha filha - murmurou a inglesa por fim - tem de se casar...
- Casar?", repetiu Louise, estupefacta.
E de repente, as suspeitas informuladas, as interrogações que a sua ignorância e a sua dor tinham recalcado para uma vaga inconsciência havia semanas, irromperam com uma brutal certeza. Apoiou-se ao lavatório, sentindo as pernas fraquejarem-lhe, e murmurou: "Não é possível..."
Ia ter um filho. Nenhum escândalo, nenhum drama, podia igualar aquele.
Dessa vez, tudo estava acabado, a sua vida destruída para sempre. Qualquer coisa agora mesmo a morte, a morte sobretudo, valia mais do que aquela vergonha. Como apresentar-se diante do pai, da Mamã-Doce, dos pequenos... e da nénène Rosalie? Toda a digna sociedade lhe fecharia a porta, exporia a sua família ao desprezo público.
"Vou matar-me", disse ela, tendo esquecido completamente a presença da inglesa.
Já lhe surgiam diante dos olhos certas imagens. Um passeio à beira-mar. Seria fácil afastar-se sem atrair as atenções... Caminhava sobre os rochedos. A espuma cobria-lhe os pés. Para o largo, os corais descem a pique. Via a profundidade azul e fria fechar-se sobre ela, envolvê-la, enquanto deslizava sob abóbadas cada vez mais longínquas, para espaços de sombrio esplendor onde Jacques a esperava.
"Vamos, vamos...", resmungou a voz de Miss Findler, "não diga parvoíces e tire esse vestido."
Desembaraçada da vestimenta demasiado apertada, Louise respirou mais à vontade. Miss Findler passava-lhe uma toalha húmida pela cara. Finalmente, revestia-lhe o roupão e guiou-a para uma poltrona.
"Aqui, sente-se..."
A rapariga deixava-se conduzir com espanto. Como é que aquela mulher tão seca, tão digna, podia ocupar-se daqueles pormenores materiais com tanta naturalidade? E não fugira, tapando o rosto, perante a descoberta das suas torpezas.
"Sente-se bem?
- Sim - disse Louise em voz fraca.
- Então, tanto melhor, porque agora temos de falar a sério."
Miss Findler pegou numa cadeira e empurrou-a para junto da poltrona.
"Primeiro, minha filha, a menina não vai nada matar-se. Não por causa das boas palavras que eu poderia dizer-lhe, mas porque pertence a uma raça valente e orgulhosa que não renuncia assim tão depressa. Os seus antepassados vieram para aqui do fim do mundo. Desbravaram esta terra, plantaram o algodão e a cana-de-açúcar, construíram cidades e organizaram este belo porto que despertou a nossa cobiça. Os seus compatriotas bateram-se em seguida contra nós com uma coragem maravilhosa e agora, que a ilha se tornou inglesa, preparais-vos ainda para defender sem concessão a vossa cultura, a vossa religião, a vossa língua, tudo o que constitui a riqueza da vossa individualidade.
" Então, não será uma infeliz aventura como essa que poderá quebrar a sua coragem!... A menina vai encontrar de novo as suas forças e salvar-se. É tão nova ainda! A sua existência não pode limitar-se a esse contratempo, por muito definitivo que ele lhe pareça hoje. Muitas outras coisas a esperam no futuro. Tenho esse pressentimento, muitas outras coisas...
" A sua personalidade, - que adivinhei logo nos nossos primeiros encontros, vai afirmar-se agora. Marcará a sua família, o círculo daqueles que viverão junto de si e até a sociedade da sua cidade. Um dia, quando for uma senhora idosa, rodeada de prestígio e de respeito, lembrar-se-á de Miss Findler e das suas profecias."
Louise fez um gesto desesperado com as mãos. Estava longe tudo aquilo... E impossível, além disso. Quando o escândalo rebentasse, mandá-la-iam esconder a sua vergonha numa plantação isolada de tudo. Não voltaria a sair de lá. Aliás, ela nem sequer o desejava.
Sem dúvida que Miss Findler lhe adivinhou os pensamentos, porque continuou imediatamente.
"Tudo isso, evidentemente, é o futuro. Entretanto, há esse problema imediato a resolver. Todos os problemas têm uma solução.
- Oh! não.
- Eu suponho - continuou a inglesa com precaução-, suponho que o pai dessa criança já não pode nada por ela, nem por si..."
Perante o espanto e a dor que desfiguravam de repente o rosto de Louise, Miss Findler não insistiu. Mas, após um silêncio, recomeçou:
"Vejamos, eu estava no casamento da pequena Delphine, como sabe. Então passaram-se coisas que pude adivinhar..."
De novo a cabeça de Lucien se enquadrou na janela.
"Louise!", gritou ele.
Depois, viu Miss Findler e cumprimentou-a o melhor que pôde, porque se estava a agarrar ao apoio da janela, com os pés pendentes acima do chão, e nessa posição era difícil mostrar muita elegância.
"Hippolyte voltou - prosseguiu ele. - Vem falar com ele.
- Já vai - cortou Miss Findler.
- Bem, estamos no caramanchão. Ele trouxe-me malhas. Atenção... " Ia dizer "a nénène Rosalie", mas contentou-se com uma piscadela de conivência à irmã e desapareceu.
"Tenho de a deixar agora, minha filha - recomeçou Miss Findler. E acrescentou em voz baixa:
- Não confie o seu segredo a ninguém. A ninguém ainda. Talvez, aliás, que nunca tenha de o dizer. Seria o melhor.
- Acha qUe este bebé vai ficar para sempre na minha barriga? - gritou Louise e com cólera.
- Schiu, não tão alto. Não, evidentemente. Conceda-me uns dias. Preciso de pensar, mas creio que as coisas se podem compor.
- Como?
- Escute, meu amor..."
De novo a porta se abriu e a nénène Rosalie reapareceu.
"A senhora vem para ver o vestido" - anunciou ela. Depois viu que Louise continuava com o roupão. "Então, menina, de que está à espera para se vestir?
- A prova terminou - disse a inglesa. -Há uns retoques a fazer. Vá dizer à senhora que não se incomode. Mais vale que veja o vestido quando estiver pronto."
A escrava lançou à visitante um olhar de desprezo. Nem sequer era capaz de executar como deve ser uma toilette, quando as fazia há tanto tempo para a pequena...
"Em breve - disse Miss Findler virando-se para Louise - poderá passar pela minha casa... tudo estará pronto.
- A menina está doente - declarou a escrava. -Não sai agora. Por isso é preciso que as provas sejam aqui.
- Não - disse a inglesa firmemente. - Temos de estar sossegadas."
Miss Findler saiu, seguida pela escrava indignada, que ia lançar as suas queixas no coração terno e ineficaz da Mamã-Doce.
Louise não se lembrou da presença de Hippolyte senão muito tempo depois da saída das duas mulheres. Não tornara a vê-lo desde o dia em que, na plantação de Moka, ele viera anunciar-lhe a morte de Jacques.
O desejo de o interrogar de novo, de ouvir falar ainda do drama, de lhe descobrir talvez finalmente as causas, animou-a subitamente. Atirou o roupão para cima da poltrona, correu a buscar um vestido e enfiou-o à pressa. As suas mãos trémulas não conseguiam atar a fita da cintura, não encontrava os sapatos nem o chapéu. Por fim, saiu do quarto, escapando-se furtivamente através da casa para alcançar o jardim.
A poucos passos do caramanchão, ouviu a voz alegre e aguda de Lucien. As lágrimas turvavam-lhe a vista e o coração batia-lhe com tanta força que sufocava. Parou para limpar os olhos e, por um instante, foi tentada a voltar para trás. Para quê agora falar com Hippolyte? Não estava tudo aquilo acabado?
De repente, pensou naquela criança que vivia nela e prolongava o pai para além da morte. Se fosse um filho, seria Jacques que tornava a vir, os seus olhos, o seu sorriso. Por momentos, esquecendo a angústia da sua situação, foi submersa pelo deslumbramento daquela descoberta.
Mas Lucien vira-a entre as folhas e chamava-a. Penetrou no caramanchão. Hippolyte, que brincava no chão com o rapazinho, levantou-se bruscamente à sua aproximação.
"Menina...
- Olha para o lindo jogo da malha que Hippolyte me trouxe - gritou o pequeno. - Vê como é bonito...
- Menino Lucien - disse o negro - se quer que façamos uma partida, tem de ir àquela álea, lá ao fundo, e tratar de desembaraçar o terreno para não haver muitas pedras, ramos e tudo isso.
- Bom, eu vou à frente."
Havia um banquinho no caramanchão. Louise sentou-se e ficou silenciosa, contemplando o negro à sua frente. Durante tantos anos, ele fora o companheiro de Jacques, o seu duplo obscuro e vigilante. Que ia ser dele agora? Que ia acontecer àquela sombra que ficara só na Terra?
"Já está curada, menina.
- Eu... sim - disse ela hesitando.
- Tenho muito gosto em tornar a vê-la. E depois vim também porque, por algum tempo talvez, não poderei estar aqui."
Agora, que o patrão morrera, ele pertencia ao velho Victor e, certamente, não devia ser feliz em casa dele.
"Faz-te falta o mar", disse ela, "e as viagens e..."
Não ousava pronunciar o nome de Jacques, com medo de começar a soluçar.
"Já não irei mais para o mar, menina. Durante dez anos naveguei e agora não serei mais marinheiro. Disso, também, tenho o luto no coração. A Créole, que era tão bonita... Em Galega, os negros fizeram as suas cabanas com a madeira dela, aquela que o mar restituiu.
-Tu foste a Galega?
- Sim... depois da desgraça."
Subitamente, ela teve a impressão de que ele lhe escondia qualquer coisa, que sabia muito mais do que dissera.
"Hippolyte", gritou ela, "porque é que o teu amo saiu de Diego Garcia na noite do vendaval? Porquê? Não fez essa loucura sem uma razão. Tu sabes, tu sabes porque é que ele partiu. Diz-mo!"
Ele contemplava com terror o seu rosto lívido, sulcado de lágrimas.
"Tu sabes", repetia Louise, "tu sabes. Tens de dizer."
Ele jurara sobre a cruz. O patrão amarrara-o para sempre. Instintivamente, levou a mão ao pescoço e os dedos fecharam-se-lhe sobre a corrente.
"Não, não sei -balbuciou ele. - O Sr. Jacques partiu como eu contei. Deixou-me na praia. Disse-me: Vai deitar-te com os outros na cabana. Eu julguei que ele queria dormir no barco. Talvez que o vento tivesse arrastado a Créole durante a noite, sim, talvez - repetiu ele, agarrando-se de repente àquela mentira.
- Não é possível, vejamos!"
As mulheres não conhecem os barcos, nem as coisas do mar. Se dissesse o que convinha agora, a Menina Louise poderia acreditá-lo. Não se esgotaria mais a procurar a incompreensível explicação. E então, para toda a vida, teria encontrado uma espécie de paz.
"Porque é que não é possível? Há correntes acolá que empurram para o canal e para muito mais longe ainda. Com a tempestade daquela noite, a âncora partiu-se ou soltou-se. Com certeza que foi assim que a desgraça aconteceu. É a verdade, menina."
Ouviu-se a voz irritada de Lucien através das folhas de chuchus.
"Vem, Hippolyte. De que estás à espera? Encontrei um terreno magnífico, acolá.
-Já vou, Menino Lucien. Agora, menina, tenho de lhe dizer adeus."
Ela esforçou-se por lhe sorrir.
"Até à vista, Hippolyte. Tenta escapar-te por um momento ainda, um destes dias, e volta a visitar-nos. Lucien vai ficar triste sem ti."
O negro hesitava como se quisesse acrescentar qualquer coisa. Mas, após um instante, disse apenas: "Que o Bom Deus a guarde, Menina Louise, que lhe dê a sua bênção..."
Saiu do caramanchão e desapareceu. Ela ficava no banco, no calor espesso das folhas, com a cabeça e o espírito vazios, contemplando o desastre da sua vida com uma longínqua indiferença, como se se tratasse de qualquer catástrofe cósmica, sem relação com o seu universo. Nem sequer ouviu a voz rabugenta da nénène Rosalie, que a procurava por toda a casa para lhe administrar, mais uma vez, a boa mistura que cura todos os males.
Três dias mais tarde, um recado da inglesa convidava a Menina De Montaller a passar pela loja. O primeiro movimento de Louise foi atirar a carta para uma gaveta da sua mesa. Não iria. Aquela pobre velha não lhe podia ser de nenhum préstimo.
Mas a angústia e a solidão da jovem eram tão fortes, ela tinha tanta necessidade de conforto e de esperança que depressa voltou atrás com a sua decisão. Quem sabe, apesar de tudo, se não se daria um milagre?
"Eu vou contigo, minha querida - propôs a Mamã-Doce quando a filha a veio avisar de que ia a casa de Miss Findler.
- Não, não, não se incomode - protestou Louise com terror. - Maria virá comigo ou uma das criadas."
Mas Rosalie não quis deixar aquele cuidado a mais ninguém.
A prosperidade do seu negócio obrigara a inglesa a alargar-se. A loja já não ocupava apenas os compartimentos do andar aonde Louise viera da primeira vez. Toda a casa lhe pertencia agora. No rés-do-chão encontrava-se um novo atelier de costura e pequenas salas para as clientes.
Uma jovem mestiça, assistente de Miss Findler, convidou as visitantes a sentarem-se.
"Não temos tempo para esperar", disse Rosalie dignamente.
Mas, perante a insistência da empregada, lisonjeada também por ver que ela se lhe dirigia exclusivamente como à pessoa responsável, a nénène acabou por aceder. Instalou a sua massa imponente numa das poltronas de rotim, estendeu a sua bonita saia às flores e colocou em cima dos joelhos a sombrinha de Louise.
Ao fim dum momento, Miss Findler apareceu. Depois de algumas palavras de boas-vindas e dum sorriso em direcção da negra, agarrou vivamente na jovem pelo braço e arrastou-a para a porta.
"Por aqui, menina", disse ela. "Está tudo pronto, demoramos apenas um instante."
Rosalie esforçava-se penosamente por se arrancar ao acanhado assento. Já no limiar, Miss Findler voltou-se para dizer:
"Não se incomode, cara Rosalie, nós já voltamos. O meu criado vai
servir-lhe uma bebida."
Imediatamente, com efeito, apareceu um indiano de turbante, trazendo um copo de refresco numa bandeja de cobre vermelho.
"Não preciso disso!", resmungou a nénène.
Mas estava impressionada com tantas atenções. Serviam-na como a uma senhora. Estendeu uma mão majestosa, apenas hesitante.
A porta fechara-se outra vez.
"Eis-nos livres do seu dragão", disse Miss Findler.
Introduziu a jovem num salão que abria directamente para o pátio das papaias. Uma estranha confusão de móveis ingleses e chineses enchia o compartimento. Na parede, uma pintura representava um lago da Escócia sob a neve. Era a única nota de frescura do local, com um ramo de antúrios, relegado para o fundo, na penumbra.
Miss Findler fez sentar a jovem num divã coberto duma caxemira e tomou para si uma rígida cadeirinha de palha.
"Ora", disse ela, atacando de frente o problema, "pensei muito desde o nosso último encontro. E achei uma solução. Naturalmente que vai confundi-la. Mas, em breve, deverá convir que é uma grande sorte que se lhe oferece e que não deve deixá-la fugir... Lembra-se de que falámos um dia, oh! há muito tempo, do tenente Bertie. Eu disse-Lhe que aquela que o tivesse como marido seria a mais feliz das mulheres. Pois bem, minha filha, decida-se, case com ele."
Louise lançou à inglesa um olhar atónito. Assim, era aquela a solução, o milagre que devia salvá-la.
"É absurdo! - gritou ela.
- Porquê absurdo? - disse Miss Findler, sacudindo uma mosca que se obstinava em se lhe colar à testa.
- Mas... eu não o amo.
- Ele ama-a. É já meio caminho. E a menina há-de mudar, pouco a pouco. O tempo cura, apaga tudo. Os nossos corações são presa do tempo.
- Eu não quero esquecer nada - lançou Louise furiosamente. - Nunca!
- Vejamos, minha filha, se a sorte tivesse sido diferente, se tivesse morrido a menina, o seu amigo teria renunciado a viver?"
Aquele pensamento não lhe viera ao espírito e atingiu-a dolorosamente. Com certeza que Jacques teria sofrido, mas, passado o primeiro choque, a existência teria seguido o seu curso. Teria continuado a navegar com os seus marinheiros, a cantar com eles. Ao fim de uns meses ou de umas semanas, teria voltado para junto de Élodie, a sua mulher negra.
Tê-lo-iam assim tornado a ver na zona central, com a sua bela presença e com aquela auréola de escândalo que atraía tanto as senhoras crioulas no meio do seu aborrecimento. E depois, sem dúvida, como muitos colonos do seu género, no limiar da idade madura, teria acabado por assentar. Teria escolhido uma mulher do seu meio, ter-se-ia casado.
Não, ele não teria renunciado à vida... Ele era a própria vida, em todo o seu esplendor e egoísmo. Se ela tivesse morrido, ele não teria pensado em revoltar-se. As pessoas não se revoltam contra o irremediável, vejamos, isso é estúpido! E também não se teria entregue ao desespero. Pelo contrário, teria empenhado todas as suas forças em esquecer, para recomeçar a viver. E provavelmente tê-lo-ia conseguido sem muita dificuldade.
De repente, quis-lhe mal por isso. Quis-lhe mal por ter sido essa a causa, justamente, de ela o ter amado tanto: forte, alegre, inconsciente. E, pela primeira vez, veio-lhe o pensamento de que, se ele tivesse vivido, a existência com Jacques nem sempre teria sido muito fácil nem feliz; que talvez mesmo, com o decorrer dos anos, tivesse podido
tornar-se muito cruel.
"Evidentemente - recomeçou Miss Findler, que se batia sempre contra o insecto - concebo tudo o que esta solução apressada pode ter de doloroso, de desagradável mesmo. Infelizmente, tem de se decidir, depressa.
- Como quer... " balbuciou Louise.
O seu olhar perdia-se no pátio cinzento onde cresciam as papaias. Eram árvores masculinas. Os seus troncos estéreis tinham apenas magros leques cuja sombra repousava, imóvel, a seus pés.
"Não é belo, o tenente?
- Sem dúvida - concedeu Louise.
- Ele aborrece-a?
- Não, não me aborrece - disse ela vivamente. E acrescentou com uma ponta de alegria: -Não me deixa tempo para isso, zangamo-nos sempre.
- Bom, está bem!"
Louise lembrou-se da avó que enchera a sua casa de clamores durante quarenta anos. Aquilo iria tornar-se na família uma tradição que ela estava encarregada de perpetuar?
"Vamos - recomeçou ela - tudo isto é ridículo. Sabe bem que o tenente não casará comigo.
- Ele não a pediu em casamento?"
A inglesa estava então ao corrente daquela história também? Era na verdade o diabo, aquela mulherzinha.
"Mas agora tudo é diferente - disse desabrigadamente Louise. - E eu morreria de vergonha, se tivesse de lhe confessar a verdade.
- Não terá que lhe dizer nada. - Como?
- Nada. O Sr. Bertie está terrivelmente apaixonado por si, louquinha. Não sabia? E é um cavalheiro. Agirá com delicadeza, pode estar certa disso.
- Não se trata de delicadeza...
- Vejamos, minha filha, se lhe falo como estou a fazer, há-de calcular que essa questão espinhosa já está arrumada. O Sr. Bertie está ao corrente.
-Está ao corrente! -exclamou Louise com horror". -Como pode ele estar ao corrente? Então, toda a gente o sabe já!
-De forma alguma. Acalme-se, ninguém o sabe ainda. A não ser ele e eu. E fui eu que lho disse.
- Fez isso! - pôs-se Louise a gritar com raiva. -Não tinha esse direito! Não, não tinha esse direito! Traiu a minha confiança!"
Miss Findler apertou com a sua mão seca e ossuda o braço da jovem e sacudiu-a para a moderar.
"O seu segredo, de qualquer maneira, já não o será por muito tempo e até me admiro de que ainda possa sê-lo... É por isso que não pode esperar mais. Se se resignar a casar' com o melhor homem da terra, escreva-me uma palavra. Eu avisá-lo-ei e então ele irá pedir oficialmente a sua mão. Foi assim que combinámos. Mas, repito-lhe, o tempo urge! Não se embale mais com ilusões..."
Agora, que o Verão estava a acabar e, ao mesmo tempo, as longas sestas nos cantos tranquilos do jardim, a tartaruga Charlotte mostrava tanta animação a devorar as flores e a percorrer os relvados que François se zangara.
Aquele animal era na verdade demasiado grande, estragava tudo e não podia ser deixado em liberdade. Ia àrranjar-se-lhe um recinto e não sairia mais de lá.
Lucien bem protestara, suplicara, se rebolara de raiva na cama da Mamã-Doce. François mantivera-se intratável. Havia três dias que Charlotte andava à roda no seu recinto, junto às dependências. Lucien esforçava-se por a consolar com gólfões, folhas vermelhas, algumas flores furtadas das platibandas, mas de que ela não se mostrava especialmente reconhecida.
O rapazinho oferecia agora à família o rosto da dor incompreendida.
"Charlotte emagreceu muito", declarou ele ao almoço.
Soou uma gargalhada, à qual ele não se dignou responder. Quando a hilaridade acalmou um pouco, observou apenas, mais para si do que para os outros:
"Com esta dieta, vai morrer nova!"
A refeição terminara. Levantaram-se e o rapazinho correu até ao recinto para ver se Charlotte não tinha muito mau aspecto. Ela estava abatida num canto. Um raio de sol que passava por entre os ramos caía-lhe exactamente sobre a cabeça imóvel. O bico apertado, as peles moles que lhe pendiam do pescoço, davam-lhe um ar de matrona ultrajada.
"Não fiques aí, Charlotte-", disse o pequeno, "vais apanhar uma insolação."
A tartaruga permanecia imóvel, com o olhar vago. Ele apanhou uma pedra, inclinou-se com dificuldade por cima da vedação, feita de grossos bambus, e esfregou-lhe a carapaça. Mas o animal não se mexeu.
"Vamos, Charlotte, sê razoável. Sai daí."
As patas, armadas de unhas poderosas, não tiveram um estremecimento. Ele correu até um bosquezinho de bananeiras, arrancou uma das folhas e voltou ao recinto.
"Vou salvar-te contra tua vontade, pobre louca!"
Um ligeiro ruído fê-lo voltar-se. Era Maria, que viera de mansinho, de pés descalços.
"Que é que está a fazer, Menino Lucien?
- Bem vês que estou a abrigá-la.
- Está a abrigá-la. E de quê? -Do sol, evidentemente, estúpida! " Ela desatou a rir.
"Está a abrigá-la... mas as tartarugas gostam do sol. Quando estava em liberdade, esse malvado animal, passava horas ao sol. E nessa altura o menino nunca pensou em abrigá-la."
Era verdade e ele sentiu-se ridículo. Mas não podia dar o braço a torcer.
"Quando estão presas, não é a mesma coisa. E depois tu chateias-me. Vai-te embora! Vou dizer à nénène Rosalie que vieste preguiçar para aqui em vez de trabalhares.
-Bom, eu vou. No entanto, trazia notícias.
-Que notícias? Tu não sabes nada de nada."
A rapariguinha fingiu que se afastava.
"Pára, diz que notícias.
- Eu não sei nada de nada, foi o que disse.
- Fala mesmo assim! Estás sempre a meter-te onde não deves, talvez tenhas sabido qualquer coisa..."
Lucien sentia o braço a ficar dormente. Deixou-o descair sobre a estacada de bambus. A extremidade da folha de bananeira veio tocar ao de leve na cabeça da tartaruga. Aquele contacto desagradou-lhe sem dúvida, porque o animal se endireitou subitamente, fazendo abanar a vedação, e afastou-se uns passos.
Estás a ver? Ela obedece-me! - disse Lucien, triunfante.
- Ela não lhe obedece. Foi uma ideia que lhe passou pela cabeça sem mais nem menos... Hippolyte partiu e nunca mais voltará."
Atirara estas palavras com uma espécie de sombria alegria. Porque é que também ele não quisera amá-la, quando estava pronta a tudo por ele: teria pilado o gengibre e a pimenta, misturado os pós do caril, cortado as mangas verdes. Ter-lhe-ia lavado a roupa todos os dias, teria cantado, dançado, para lhe agradar, ter-se-ia feito bonita. Mas ele nunca olhara sequer para ela. Só sabia rir e troçar. Então, o céu acabara por o castigar. A maldição do Sr. Victor caíra sobre ele, tal como sobre o seu amo.
Lucien largou a folha e voltou-se bruscamente. "Não é verdade!
- Sim, é verdade. Ele partiu para os bosques como todos os malandros que lá se escondem. E o Sr. Victor mandou os gendarmes atrás dele.
- Estás a mentir", balbuciou o pequeno.
Mas uma obscura angústia dizia-lhe que aquela horrível história podia muito bem ser verdadeira, que o era mesmo, sem dúvida.
Virando as costas à rapariguinha, dirigiu-se para
casa a correr.
A Mamã-Doce estava sentada debaixo da varanda entre François e Louise e mostrava-se preocupada com a prova da manhã.
"A Rosalie disse-me que Miss Findler te demorou muito. Devias poupar-te, minha filha. Nada é mais fatigante do que ficar de pé enquanto essas criaturas espetam os seus alfinetes. Esse vestido, ao menos, fica-te bem agora?"
A chegada do pequeno dispensou Louise de responder. Cansado ainda da corrida, ele pôs-se a gritar:
"A Maria disse que ele tinha partido, o Hippolyte. Partiu para os bosques com os outros...
- Que outros? - disse François.
- Os outros, de lá longe, os... escravos fugitivos. " A palavra terrível saíra: os fugitivos. Personagens de lendas que ensombravam os sonhos das crianças. As crónicas da ilha estavam cheias dos seus crimes: viajantes roubados ou assassinados, colheitas em cinzas. Os bandos mais ousados rondavam até às proximidades das plantações.
Hippolyte ia tornar-se um desses fora-da-lei cujas cabeças são postas a prémio, perseguidos arriscando-se a morrer todas as vezes que a pouca sorte os põe em contacto com um destacamento.
"Quem é esse Hippolyte? -perguntou a Mamã-Doce.
- Talvez não seja verdade - disse François. -Maria diz tantas mentiras... Olha, pergunta a Joseph."
O velho negro atravessava a varanda. A criança correu para ele.
"Eu não queria falar nisso - disse o escravo - mas é verdade! Partiu ontem à noite, do acampamento do Sr. Victor. Toda a gente o viu. Ele, que armava em orgulhoso, outrora, com os belos fatos do patrão, estava todo nu, como um moçambicano, só com um langouti em volta dos rins. Os vigilantes quiseram prendê-lo. Disseram que iam avisar o patrão. Então esse malandro puxou da faca e ousou dizer: "Já não tenho patrão'. Sim, Sr. François, disse-o. A mãe quis falar com ele, mas nem sequer parou para a ouvir. Os negros afastavam-se em volta dele e mesmo os vigilantes não ousavam fazer nada, porque a gente sabe que com uma faca ele pode matar um homem. Então, abandonou o acampamento. Partiu assim, completamente nu... como um moçambicano - repetiu ele com asco, como se, entre todas as surpresas daquela cena, essa fosse a pior.
- Ele há-de voltar por si, quando a raiva lhe passar.
- Não, Sr. François - disse Joseph gravemente-, não virá mais. A maldição passou-lhe por cima agora. Tornou-se selvagem.
- Vamos, vamos...", disse François.
Mas não insistiu, perante o rosto transtornado da irmã e as lágrimas de Lucien.
"A culpa é do tio Victor, esse velho demónio", pôs-se o pequeno a gritar. "Tudo isto é culpa dele. Fechava-o, obrigava-o a trabalhar na terra, a ele, um marinheiro. Hippolyte detestava-o e eu também. Por fim, partiu. E nunca mais voltará. Oh! nunca mais o verei!"
Pela primeira vez se via perante o irreparável e uma angústia desconhecida, para além da cólera e da dor, devastava-lhe a alma. Hippolyte estava perdido e ninguém podia nada contra isso, nem François, nem a mamã, nem nenhum adulto, nem o grande S. Luís.
"Que é que se passa afinal?", disse a Mamã-Doce. "Compreendes alguma coisa dessa história, François? Esta criança não devia excitar-se desta maneira."
Lucien virou-se para Louise, procurando uma consolação daquele lado. Mas ela estava absorvida na sua própria tristeza e não o viu.
Sem dúvida que Hippolyte tomara aquela decisão havia já muito tempo. Quando viera no outro dia, para debaixo do caramanchão, era verdadeiramente para dizer adeus. Ela lembrava-se de repente das suas hesitações, do cuidado que tivera em repetir que não voltaria.
Assim, também por aquele lado, a história acabava. Não se veria mais Hippolyte errar nas proximidades da varanda. Não se ouviria mais o seu riso. A nénène Rosalie não teria já que se zangar: "Cá estás tu a rondar por aqui, vai-te embora, vai-te embora, malvado negro! " Hippolyte, que parecia a própria estabilidade, a fidelidade, a alegria inalterável, Híppolyte que os alegrara e irritara tantas vezes, inevitável como as moscas e o sol. Ninguém está ao abrigo das surpresas e das grandezas da sorte... Ele partira só, para a profundidade dos bosques, virando as costas à mãe, aos mornos hábitos do passado, a tudo o que Louise conhecera até ali; tornara-se selvagem, como dizia Joseph.
Louise levantou a cabeça. Lucien já não estava ali. Correra até ao fundo do jardim, para lá esconder a sua angústia.
"Este pequeno preocupa-me", disse a Mamã-Doce. "Porque é que ele toma tão a peito a aventura desse escravo: como é que ele se chama?"
A Sr. a De Montaller levantava-se para voltar ao quarto. O filho apanhou o livro que ela deixara cair, depois o leque, por fim a charpa esquecida nas costas da poltrona.
Os dois jovens ficaram sós. Era uma ocasião para falar a François. Havia vários dias que Louise hesitava. Mas agora decidia-se a isso de repente. A partida de Hippolyte, embora ela tivesse disso uma vaga consciência, não era estranha a essa resolução. O último laço, ténue, que a ligava ainda ao passado acabava de se quebrar. No desgosto dessa ruptura havia também uma libertação, como se nada, dali por diante, a prendesse mais às ruínas daquilo que fora e ela ficasse livre.
Virou-se para François e surpreendeu o seu olhar fixo nela. Que sabia ele ao certo, que pudera adivinhar? Não fazia qualquer pergunta, mas ela notara que ele a observava muitas vezes com aquela gravidade inquieta que conservava ainda no rosto nesse momento.
"François - disse, hesitando-, tenho de te perguntar uma coisa...
- Pois sim, diz lá."
Ela sentiu imediatamente que ele estava alerta.
"Diz-me francamente o que pensas do tenente Bertie."
Uma expressão de surpresa perpassou no rosto do jovem. Manifestamente, não esperava aquela pergunta. No entanto, respondeu logo.
"Muito bem. É inteligente, recto e honesto. Tem todas as qualidades. Porque é que me perguntas isso?
- Parece que gosta de mim. " François sorriu.
"Não sabias já?
-Sim... sim, sem dúvida. Mas não me tinha preocupado muito com isso antes..."
De repente, ela reviu o rosto de Bertie tal como lhe aparecera naquela praia escaldante de sol, com os cabelos ao vento e o pálido brilho do seu olhar. De novo sentiu o choque profundo, já experimentado nesse instante, e que repelira então como uma traição.
"Enfim", recomeçou ela, "se ele viesse... é uma suposição... mas se ele viesse pedir-me em casamento?"
Ela pensava confusamente que o irmão ia encontrar objecções, insurgir-se talvez contra essa união. Pelo contrário, ele exclamou logo com uma espécie de alegre alívio:
"Casa com ele!
- Mas, François, é um inglês!
- Isso faz alguma diferença? Desde o tratado de Paris que nos tornámos todos súbditos britânicos. O que não quer dizer nada, afinal. O importante é continuarmos a ser o que somos, na nossa ilha. O tenente é já em três quartos um dos nossos. Se casar contigo, ficará a sê-lo completamente... Eu sei que ele tem intenção de se estabelecer na região. Os seus filhos serão puros maurícios, como quaisquer outros filhos das nossas famílias.
" Pobre Bertie - prosseguiu o jovem rindo - somos nós que vamos acabar por o colonizar. Ele já adoptou os nossos costumes, as nossas manias e até a nossa cozinha.
- O papá não há-de querer.
- Não recusará o seu consentimento, podes estar tranquila.
- E que dirão os nossos amigos, toda a gente?
- Os Dumont Tillac ficarão um pouco aborrecidos porque contavam casá-lo com a filha, e também as duas Bergère, que estão apaixonadas por ele... mas estão-no por todos os homens. À parte disso, não vejo quem tenha que dizer.
- Não sei...", suspirou ela.
Então, François empurravá-a também para aquele casamento.
Se tivesse podido esperar um pouco, uns meses, umas semanas, pelo menos! Mas tinha de se decidir agora, imediatamente. E nos dias que estavam para vir suportar a multidão dos visitantes, rir, falar, ter um ar feliz, receber sem fim as felicitações, os beijos, quando estava ainda mergulhada no âmago do seu luto, quando o seu corpo estava já a tornar-se pesado, quando as náuseas já a atormentavam...
"Bem vês - recomeçou François - quando soubemos que o tratado de Paris estava assinado e que não havia já esperança de ver voltar os Franceses duas soluções eram possíveis: partir ou ficar aqui, na nossa ilha. O papá escolheu por nós e não tivemos de decidir.
- Mas tu, se tivesses querido partir, tinhas podido.
- Sim. Mas não vos teria deixado, à mamã, a ti, a todos. Aliás, se a decisão me tivesse pertencido, teria feito como o papá.
" Compreendo muito bem que haja colonos que partam. Soube ainda esta manhã que os primos do velho Cormick vendiam a plantação e tinham a intenção de se instalar em Borbom. Mas nós temos aqui um longo combate a travar, um muito longo combate, para proteger as nossas crenças, a nossa cultura, as nossas tradições. Para que a nossa ilha sobreviva e continue a ser a nossa ilha. Perdemos a França. A nossa pátria agora é aqui, este bocado de terra."
Jacques falara quase da mesma maneira, outrora. Ele também não teria partido. Nunca teria aceitado o exílio. Dormia agora naquela terra que tanto amara. O velho Victor mandara trazer o corpo do filho para o enterrar no cemitério de Port-Louis, no sítio onde estavam enterrados todos os Montaller. A mulher já lá repousava e, no túmulo vizinho, Adeline, o seu perdido amor.
A voz de François rompeu o silêncio.
"Que vais dizer a esse pobre Bertie?"
Ela saiu do seu sonho.
"Não sei... Não sei ainda."
Ele inclinou-se para ela e pousou a mão na sua. "É uma decisão difícil, que ninguém pode verdadeiramente ajudar-te a tomar, mas, seja o que for que decidas, aconteça o que acontecer, sabes que nunca te abandonarei. Estarei sempre ao pé de ti. " Querido François! Mas toda a sua ternura não poderia preservá-la do escândalo, nem impedir que o filho de Jacques fosse para sempre um pária.
Com a noite, as nuvens subiram e a tempestade desencadeou-se.
A chuva caía em cataratas, que se esmagavam contra as vidraças e telhados. Acordado em sobressalto, Lucien permanecia imóvel nas trevas, com o coração apertado de angústia. Dir-se-ia que milhares de mãos batiam de todos os lados em redor da casa, se encarniçavam, reclamavam auxílio. Que fazia então Hippolyte, enquanto se desencadeava aquela fúria? Teria ele já encontrado os outros fugitivos nos bosques ou erraria sozinho, perdido, debaixo da enorme chuvada?
Depois a tempestade acalmou tão depressa como viera. O ruído das folhagens que gotejavam sobre a terra mole submerso pela música dos insectos, que tomava de novo posse da noite.
A criança já não conciliava o sono. Via Hippolyte escorregar, ligeiro e leve, por entre os troncos das palmeiras, das árvores-do-viajante, dos fetos gigantes. O tio Victor bem podia lançar os gendarmes em sua perseguição. Nunca esses pesadões de grandes botas, todos empenachados, poderiam apanhá-lo. E mesmo, se por acaso caíssem em cima dele um dia, Hippolyte saberia defender-se. Os vigilantes não tinham ousado prendê-lo porque com a sua faca, dizia Joseph, ele era capaz de matar um homem.
Uma sombria exaltação excitava o coração da criança. Porque é que Hippolyte não o levara com ele? Que bela vida teriam tido juntos! As pessoas contavam que os escravos fugitivos se deslocam constantemente, para escaparem às perseguições. Teriam errado sem fim, comendo goiabas, gólfões, mandioca roubadas durante a noite nos campos dos colonos. Por vezes, teriam parado no fundo duma ravina para pescarem camarões ou assarem um quarto de veado. Ah! se ele tivesse sabido como ir ter com o negro, teria partido logo. Mas aonde ir? Na ilha havia tantas florestas, morros, savanas!
Louise também não dormia. O relógio do salão bateu três horas, ao longe. Ela sentou-se na borda da cama e, com esse movimento, desalojou duas baratas presas ao mosquiteiro. Um ar fresco e húmido entrava no quarto, agitando as cortinas. Ela levantou-se e foi até à janela. Quando se inclinava para o exterior, a calma da noite surpreendeu-a. Da cidade não vinha nenhum ruído, nem das dependências, mergulhadas nas trevas. A noite só pertencia aos vegetais a escorrerem e perfumados, aos animais invisíveis cuja fuga se ouvia nas moitas.
O seu pensamento uma vez mais voltava a Jacques. Presentemente, podia evocar a sua recordação sem o intolerável sofrimento, sem a revolta das primeiras semanas. No entanto, não era esquecimento. Jacques parecia-lhe mesmo mais próximo agora, como se, de certa maneira, tivesse recomeçado a viver. Mas com outra vida, misteriosa, secreta, estreitamente ligada à sua. Doravante, ninguém podia já separá-los. Na profundidade íntima da sua alma, lá onde ninguém mais teria acesso eles estavam para sempre juntos. Os acontecimentos podiam suceder-se, novos sentimentos nascer, ela sabia que nunca abafariam o esplendor, a jovem glória daquele primeiro amor.
Por muito tempo, ficou encostada, acima das trevas do jardim, deixando-se invadir pouco a pouco pela paz das coisas à sua volta. Quando se virou, os seus olhos, habituados à escuridão, distinguiam todos os pormenores do quarto, iluminado apenas por uma lamparina.
Então, arrancando-se bruscamente ao apoio da janela, caminhou até à mesa, sentou-se e as suas mãos trémulas puseram-se a remexer nas gavetas. Retirou de lá uma folha de papel e colocou-a diante de si. Por um instante, ainda hesitou. Depois, pegou na caneta e na folha branca, sem que lhe fosse possível distinguir os caracteres que traçava, escreveu: "Cara Senhora, esta é a carta que me tinha pedido. Leva-lhe a minha concordância... " Louise acrescentou uma fórmula de delicadeza e assinou.
A sorte estava lançada.
Porque escrevera nas trevas, sem nada ver, as coisas tomavam um aspecto irreal, mais suportável. Como se não fosse ela mesma, mas o seu fantasma, que, ao traçar essas palavras invisíveis, punha a vida am marcha outra vez.
Lucien errava pelo jardim, movendo-se sem destino entre os maciços de hibiscos e os canteiros de margaridas. De tempos a tempos lançava uma olhadela à varanda, onde François estava sentado junto da mãe. Um pouco mais longe, a tia Mathilde rezava as suas contas. Orações, orações... Para que serviam então todas aquelas orações? Elas não tinham impedido Hippolyte de se tornar fugitivo. Nem sequer eram capazes de deter as terríveis cóleras do papá, que, nessa mesma manhã, tinham feito empalidecer a mamã-doce e precipitado Pyrame para debaixo do canapé do salão.
Com uma verdascada, fez saltar a corola de duas ou três margaridas. Ninguém protestou, ninguém o vira. Vagamente desconcertado por essa distracção da sorte, pôs-se de novo a fazer molinetes com a verdasca. Ele tinha-se portado mal e a ordem do mundo não fora perturbada por isso. Nenhuma voz se fizera ouvir para o acusar. As potências que deviam ter velado pelo bom andamento das coisas importavam-se muito pouco com ele.
Mais desocupada ainda e descontente, a criança recomeçou a deambular ao acaso. Se a família continuasse a ignorá-lo assim, poderia talvez ir para a rua e correr até ao porto. Errava tantas vezes em companhia de Hippolyte em volta dos estaleiros, dos armazéns, dos desembarcadouros... Conhecia-Lhes todas as voltas, todos os aspectos. Julgou sentir o forte e enjoativo cheiro das águas enquanto sobe e desce a vaga e os mastros inscrevem as suas intermináveis mensagens no céu. Lá, a brisa é mais fresca do que noutro sítio. Nos portos há sempre um pouco de esperança que aguarda.
Pôs-se a correr e, ao fim da álea, com o balanço que levava,
precipitou-se de cabeça baixa contra o tenente Bertie.
"Olá! Aonde vai tão depressa?
- A parte nenhuma, passeio apenas - disse Lucien, tentando readquirir a sua dignidade.
- Faz muito calor para passear a essa velocidade - observou o tenente, compondo a gravata do rapazinho. - Acha que posso falar com Louise?
- Ela está junto do lago, atrás da casa.
- Muito bem, vou dar uma volta por lá. Não diga nada a ninguém.
- Com certeza - disse o pequeno, a quem aquela cumplicidade divertia como um novo jogo em perspectiva. -Vou montar a guarda e impedi-los-ei de irem para esse lado."
Louise observava um bando de pit-pits que esvoaçavam por entre os ramos das moitas à sua volta. Enganados pela sua imobilidade e excitados pela activa caça aos insectos, que os ocupa todo o dia, aproximavam-se cada vez mais do banco onde ela estava sentada. Os seus pios, a sua agilidade, divertiam a jovem.
Pela primeira vez havia muito tempo, ela experimentava uma impressão de bem-estar. O vento percorria o jardim com um longo hálito selvagem que pairara sobre o mar e vinha de longe. Cada vaga fazia oscilar os pássaros, agarrados aos ramos flexíveis como frutos. À beira da água, pássaros exóticos curvavam-se todos num mesmo movimento. Depois, tornavam a levantar-se em desordem, abanando os pescoços frágeis e meneando a cabeça em intermináveis negativas.
O ruído de passos ressoou subitamente no caminho e ela avistou o tenente Bertie. "Já!", pensou em pânico.
Ele avançava para ela com um passo rápido, sorrindo, como na manhã em que viera àquele mesmo sítio trazer-lhe um livro de poemas. Mas tratava-se então duma simples visita de cortesia. Como é que hoje, naquela terrível situação, podia ele mostrar ainda tanta naturalidade e à-vontade? À sua aproximação, os pássaros voaram. Ele deu por isso e desculpou-se.
"Cá venho eu perturbar o repouso do seu retiro. Os seus companheirozinhos foram-se embora.
- Eles voltarão. Aliás, não tem importância.
- Portanto, eu não a incomodo?
- Não.
-Talvez me esperasse?"
Como Louise, embaraçada e apanhada de surpresa, não sabia o que responder, ele replicou:
"Há muito tempo que não tinha a alegria de a ver!"
Ela procurou por um instante na memória e lembrou-se de que o seu último encontro remontava ao casamento de Delphine. Como isso ia longe! Fora ela na verdade aquela rapariga que tanto ria e se divertia entre o homem que amava e aquele que ia ser o seu marido?
Mas nesse dia também, como uma prefiguração do futuro, depois da decepção da partida de Jacques, fora Bertie quem a rodeara com a sua solicitude.
"Quer sentar-se?", disse ela, afastando-se um pouco para lhe dar lugar.
Ela já não o via distintamente agora. Talvez que as coisas fossem mais fáceis assim. De qualquer maneira, era ele quem tinha de falar.
"Querida Louise - disse ele - o machado de guerra está enterrado entre nós?
- Oh! de maneira nenhuma! "-gritou ela com uma espontaneidade que a surpreendeu a si própria.
Ele pôs-se a rir.
"Bravo! Você parecia-me tão doce e resignada há pouco que eu estava preocupado... Já não a reconhecia. Enfim, eis-me aliviado e, visto que é mesmo a mulher que amo, posso pedir-lhe que não mude e que aceite brigar comigo durante toda a sua vida?"
Era um curioso pedido de casamento. Ela não pôde deixar de rir. Num ápice, o embaraço e as reticências desapareceram. Virou-se um pouco para ele e encontrou-lhe o olhar, carregado de ternura e de alegria.
"Certamente que você vai arrepender-se da sua imprudência - disse ela.
- Corro o risco.
- E, sabe, continuo a esperar que o vento faça cair a cabeça de Pieter Both.
- Está no seu direito..."
Ele parecia tão descontraído, tão feliz, que ela ficou preocupada de repente. Poderia acontecer que ele ignorasse o essencial?
Hesitava, não sabendo o que devia dizer, nem como abordar aquele aflitivo problema. Sem dúvida que ele lhe adivinhou a angústia, porque interveio logo.
"Não se atormente... A partir de hoje, não terá mais de lutar sozinha. Todas as suas dificuldades me dizem respeito. Encarrego-me delas e serão resolvidas o melhor possível para a sua honra e tranquilidade.
- Como é isso... -balbuciou ela.
- Em primeiro lugar, temos de precipitar o nosso casamento, porque eu parto em breve para a Europa, enviado em missão pelo governador. Naturalmente, como um jovem esposo enamorado não pode deixar a mulher atrás, você acompanhar-me-á.
-Eu?
-Com certeza. Chegaremos no Inverno e teremos de nos esforçar por não morrer de frio. Mas não tenha receio, a minha mãe ocupar-se-á bem de si. Vai ficar tão feliz por ter uma filha! Só tinha rapazes insuportáveis, a pobre senhora. E depois... - acrescentou, marcando uma imperceptível hesitação - e depois será a Primavera. Verá como essa estação é bonita na Europa. Iremos então a França. Poderemos visitar o Havre e Ruão, onde tenho família, finalmente Paris, e voltar por Nantes ou Bordéus.
- Irei a Paris?
- Não era isso o que desejava?"
Conhecer Paris. Esse sonho insensato, irrealizável!
Num desfile confuso, viu correr diante dos olhos nobres fachadas de pedra, campanários, jardins avenidas cheias de caleches, ruas nocturnas, brilhando com a luz dos cafés e das lojas.
Aos seus ouvidos soavam nomes que as Sr. as Bergère repetiam com delícia, acariciando-os com a língua como doces: Tivoli, o Ranelagh, o grande Véry, a Ópera. As Sr. as Bergère, que nunca tinham estado em Paris, como ninguém aqui, aliás.
Uma alegria, uma leveza perdida havia meses, encheram-lhe o coração. As trevas que ensombravam o futuro rasgavam-se de repente. Nem tudo estava portanto perdido. Havia diante dela aquela vida cheia de novidades, de imprevisto, em que entrava como numa festa, pelo braço dum homem que a cobria com a sua respeitabilidade.
"Penso que estaremos ausentes durante dois anos aproximadamente", recomeçava o tenente. "Quando voltarmos, o nosso filho estará bastante crescido já..."
Ele não concluiu a frase, mas ela compreendera. Crescido bastante para que ninguém comece a fazer perguntas.
"Estou decidido - prosseguiu o jovem - a rescindir as minhas funções junto do governador e a deixar a marinha... Tranquilize-se, você não tem nada a ver com esta decisão! Há muito tempo que ela está tomada e, mesmo que você renunciasse a casar comigo, eu não mudaria de opinião. Vou fazer-me plantador e instalar-me para sempre na ilha, depois de ter dito adeus à Europa.
- Vai viver como nós aqui, à moda da região?
- Naturalmente.
- Os nossos filhos... É preciso que os nossos filhos falem francês!
-Se não falassem, não seriam compreendidos por ninguém, nem mesmo pela mãe.
-E serão educados como as outras crianças?
- Não vejo como fazer isso de outra forma... Serão embalados pelas nénènes; alimentados com caris e especiarias; tremerão com as histórias de lobisomens e de bruxos; o Sr. Jonathan ensinar-Lhes-á as fábulas do vosso La Fontaine, em que se trata de lobos, de raposas, de cegonhas, todos esses animais que eles nunca verão aqui. E serão as crianças mais felizes do mundo.
- Está bem", disse ela.
Ele lançou-lhe um olhar de admiração. Ela estava na mais cruel das situações. Qualquer outra mulher, encontrando um marido naquelas circunstâncias, tê-lo-ia acolhido como um salvador. Louise conservava a sua intransigência e impunha condições.
Ela já não o observava. Os olhos perdiam-se-lhe sobre a água, onde o jogo dos pássaros misturava às sombras reflexos azuis. Ela pareceu-lhe naquele instante tão frágil, tão ameaçada, tão admiravelmente bela, que ele sentiu a tentação violenta até à dor de a abraçar, de a acariciar, de passear os lábios pelo seu pescoço delgado e redondo.
Mas era muito cedo ainda. Se ele tivesse a coragem de esperar, ganharia um dia aquela longa e difícil partida do amor.
"Agora, Louise, posso ir pedir a sua mão aos seus pais? Aceita ser minha mulher e suportar a minha solicitude durante toda a sua vida?
- E se o meu coração estivesse morto - lançou ela num tom de desafio-, se estivesse morto para sempre?
- Não... É a última coisa que morre em nós!"
Ela calava-se e o silêncio em volta deles carregava-se de uma melancolia que não era uma recusa, mas um lento o doloroso adeus ao passado.
"Você não trai nada, Louise", disse ele por fim, "não pense isso, porque a vida renova-se sem cessar. O que me der, espero, mais tarde, não pertencerá a ninguém. Será o meu bem próprio e não o de outro... O amor nunca torna a passar pelos mesmos caminhos. Sem dúvida que você é nova de mais para o compreender e um pouco intransigente de mais... Essa verdade, um dia, aparecer-lhe-á deslumbrante."
Ficaram silenciosos por um momento ainda, contemplando o jardim varrido pelas sombras e pela luz. No céu rolavam nuvens, resplandecentes como espuma. E outras as afastavam em breve, negras, compactas, enormes massas de crepe que orlas de prata rodeavam com uma brancura e com um brilho insustentáveis. Depois o vento levava-as por sua vez. Os bosquezinhos de bambus, por um momento enlutados de tristeza, recomeçavam a vibrar no sol com os seus milhares de pequenas lâminas verdes e douradas.
"Serei sua mulher - disse ela por fim.
- E não se arrependerá? " Ela abanou a cabeça.
Pensava: "Porque foi a sua ternura que no fundo do desespero veio salvar-me."
Fazendo um esforço sobre si mesmo para se dominar, pegou na mão de Louise e levou-a aos lábios. Mas, com uma espontaneidade infantil que surpreendeu Bertie, ela pôs-lhe os braços em volta do pescoço e beijou-o ternamente.
"Vá agora", murmurou, "vá dizer-lhes..."
Alex D'Unienville
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