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– Nunca achei que sofreria o mesmo destino do peru de Natal. – ouço Ruth resmungar. – Sabe, ser assada a trezentos graus contra a minha vontade.
Não dá pra discordar. Hoje, segundo o jornal, é o dia mais quente em seis meses. O ano mal começou e já jogou temperaturas altíssimas sobre nós, reles mortais. Janeiro foi um verdadeiro inferno. Meu corpo inteiro está derretendo lentamente, não importa quanto tempo eu fique deitada na frente do ventilador portátil. Enfiar a cara na geladeira também não funciona.
Ruth e eu decidimos que o melhor a fazer era ficarmos jogadas no chão do meu quarto, longe do tapete, em contato direto com o piso – que já foi mais refrescante -, dividindo a atenção do ventilador. Sempre que ele vira na direção da Ruth eu choramingo, e ela faz a mesma coisa quando a situação se inverte.
É uma tortura lenta e horrível, essa de viver o dia mais quente dos últimos seis meses.
Tudo bem, o Festival de Verão acontece no fim de semana e a promessa é de tobogãs e todo tipo de entretenimento envolvendo água, mas ainda é quinta-feira. A gente pode derreter até sábado.
– O Rodolfo respondeu sua mensagem? – Pergunto.
– Não quero alcançar o celular. – Ruth responde, virando o rosto para olhar onde deixou o aparelho. Na minha cômoda, do outro lado do quarto. – Grita pra um dos seus irmãos fazer isso. Eu serei eternamente grata.
– Susana! – Ela estava mais próxima daqui da última vez que chequei. Susana também detesta o calor e tem sorte de dormir num dos quartos mais fresquinhos dessa casa.
Quando ela não responde, tento a segunda opção:
– Henrique! – Ele, por outro lado, ama temperaturas elevadas. Talvez tenha um metabolismo melhor do que todo mundo nessa família, já que transpira muito pouco e aguenta ficar debaixo do sol fervente por um tempão. Ah, e de bônus: não se queima igual a mim. Ou o Téo. Minha mãe também tem seus problemas com o sol. A Lílian é uma desgraçada sortuda e sempre fica bronzeada.
Nenhuma resposta. As pestes devem estar no andar debaixo assistindo televisão e me ignorando, como fazem de melhor.
– Tampa? – Ruth tenta por fim. Por ser visita, ela acha que ainda tem alguma vantagem quanto aos meus irmãos menores, já que minha mãe trabalha com a política de: tem visita em casa, se comportem e façam com que ela se sinta confortável.
Não tem como se sentir muito confortável no verão, mas a gente tenta proporcionar a melhor experiência aos nossos hóspedes temporários.
Nenhum dos trigêmeos responde.
– Acho que vamos ter que levantar em algum momento. – Viro o rosto na direção de Ruth. O cabelo dela está todo trançado desde a raiz, preso em um coque firme no alto da cabeça. O top e o short são a melhor combinação de roupas refrescantes que ela conseguiu encontrar, pouco se lixando para o fato de a estampa de oncinha da parte de baixo não combinar em nada com a bandeira da Inglaterra na de cima.
– Se por “algum momento” você quer dizer “depois do pôr-do-sol”, então sim.
– O Rodolfo já deve ter respondido.
– O Rodolfo tem resistência ao calor. Ele gosta do verão. Não merece nossa amizade. – Ruth dramatiza. Ela deveria aproveitar a veia artística e seguir carreira no Teatro.
Fico de pé em um pulo e me arrependo logo em seguida. Não tem ventilador bem na minha cara aqui em cima. Vou até a cômoda para ver o celular e encontro uma mensagem do Rodolfo.
– Ok, ele disse que está indo aproveitar a piscina do clube. E mandou vários emoticons felizes demais para representar o real calor que estamos vivendo. – mostro a tela do celular onde guarda-sol, sorvete e carinha sorridente podem ser vistos no fim da mensagem. – Me sinto ofendida por ele achar que alguém sorriria desse jeito com o sol que tá lá fora.
– Minha nossa, mas é muito drama. – Lílian para na porta do meu quarto. Ela está vestindo a parte de cima do biquíni, tem uma toalha pendurada em um ombro e a sacola de praia no outro. – Os trigêmeos imploraram pra ir na piscina e a tia Rosa topou levar. Levanta essa bunda suada daí, Ruth, vamos dar um mergulho!
– Eu já disse que odeio a sua irmã? – Ruth resmunga bem alto quando a Lílian sai do quarto. Consigo ouvir a gargalhada dela no fim do corredor. – Como alguém consegue ficar radiante debaixo de trinta e oito graus?
– Trinta e nove. – anuncio, apontando pro mostrador na tela do celular. Nós duas seguimos até o andar debaixo, onde dá pra ouvir a tia Rosa correndo. Provavelmente pra fazer um dos trigêmeos passar protetor solar. É sempre um martírio.
– Você tem biquíni, Ruth? – Lílian espia a gente da porta da cozinha. – Podemos passar na sua casa, se quiser.
– Ela trouxe um. – respondo. – Nós temos um clube de aversão ao calor, mas estamos sempre preparadas para ele.
O que é uma grande mentira. Não importa o quanto eu tente, não me adapto a climas extremos. O grande problema do verão, em suma, é o sol. Ele torra minha pele em poucos segundos – mesmo com protetor fator 50 -, desidrata meu cabelo, deixa minha pele suada e oleosa e multiplica as minhas muitas sardas por oito mil.
Em resumo, é uma droga.
E eu pareço uma velhinha de oitenta anos reclamando, sei disso. Mas é como eu me sinto no verão. Uma velhinha cheia de dores que só queria ficar em casa, no sofá, debaixo de um ventilador, assistindo a um filme divertido, sem me preocupar com o lado de fora.
– Eu acabo de responder as mensagens do Rodolfo com uma faca e uma carinha furiosa, espero que ele entenda o recado. – Ruth anuncia, finalmente seguindo até o banheiro para se trocar.
Susana passa correndo por mim e, logo depois, a tia Rosa, toda esbaforida. Ouço um grunhido indignado na cozinha e vou até lá para ver a Lílian com a Susana nos braços, segurando a monstrinha até minha tia assumir o lugar.
Sento na bancada e Lílian me imita. Ela batuca os dedos na pedra e mantém o olhar no relógio. Tem alguma coisa muito ansiosa na maneira com que ela morde o lábio inferior e mexe as pernas sob o banquinho. Lílian é elétrica por natureza, mas isso é nervosismo.
– Quer conversar? – Empurro seu ombro de leve e recebo um arquear de sobrancelha em resposta.
– Sobre o quê?
– Você que não para de pular no banquinho, eu é que pergunto. – sorrio. – Tá louca pra usar a piscina, né, garota do verão?
– É. – Ela alonga a resposta, o que deixa margem para dúvida.
Falta uma semana para as aulas da faculdade dela começarem. Uma semana até a Lílian voltar pra Rouxinol; ela me contou toda a história que deixou lá, praticamente inacabada. Contou sobre o Gregório e sobre o término do que eles tinham – contou sobre como, em suas palavras, “quebrou o coração do melhor cara que já conheceu”. E, enquanto falava, tinha aquele olhar amuado e difícil de alcançar. O mesmo que eu vi quando ela nos visitou no ano passado, antes de toda a crise se resolver. Não era triste, mas perdido.
Agora, o olhar não é o mesmo – e eu fico feliz por isso. Nós conversamos bastante sobre sua situação amorosa e, apesar de ainda ter culpa nela, também tem resolução. Como eu sempre digo, Lílian não é de deixar uma história sem final. Conheço minha irmã muito bem pra saber que esse nervosismo e essa fixação nos ponteiros do relógio tem a ver com a volta para Rouxinol; para o seu recomeço. Sua segunda chance.
– Sabe que vai ser maravilhoso, não sabe? – Cutuco seu braço de novo. Eu apoiaria meu rosto em seu ombro se não estivesse tão quente.
Lílian me entrega seu sorriso animado.
– E você vai fazer tudo dar certo, não importa o que seja esse “tudo”.
– Eu gosto da minha irmãzinha confiante.
Faço minha melhor careta de convencida.
– Às vezes eu queria ter uma bola de cristal. – ela confessa. – Pra ter uma perspectiva do que vem pela frente. Só um rápido spoiler do que pode acontecer, sabe? Pra me preparar.
– Sei que minha fala vai soar estranha, ainda mais vinda de mim, mas... Isso não tiraria a graça das coisas?
– Com certeza. Mas tanta coisa repentina aconteceu no último ano que eu nem sei o que é estar preparada para começar de novo.
– Às vezes você só precisa deixar rolar. – ergo os ombros. – Vai por mim, as melhores coisas que me aconteceram no ano passado foram no susto.
– Eu só espero que sejam bons sustos.
– Você vai fazer isso acontecer. – que se dane o calor. Eu a abraço pelos ombros e me equilibro no banquinho pra não derrubar nós duas. – A faculdade, seus amigos, o Gregório... O que quer que apareça no seu caminho, você vai fazer dar certo.
Lílian demora um instante para responder. Eu fico com medo de encontrar aquele olhar perdido de novo. Quando ela vira pra mim, no entanto, é o sorriso aberto e alegre e cheio de energia que eu amo ver na minha irmã mais velha.
– Eu vou fazer dar certo. Aos trancos e barrancos.
– Considerando que você é você, bota tranco e barranco nisso. – Brinco, aproveitando a deixa para zoar sua aura destrambelhada. Lílian nunca conseguiu um argumento contra esse fato.
Ouvimos passos no corredor e Ruth aparece na porta da cozinha. Está com uma saída de praia branca sobre o biquíni preto, a mochila presa aos ombros.
– O Rodolfo disse que quase toda a nossa turma tá lá na piscina.
Quase toda, de fato, porque o Enzo está num treino com o time municipal. Vou chamar ele mesmo assim. O clube fica perto do ginásio – ok, tudo fica perto de tudo nessa cidade -, então quem sabe ele não encontre a gente lá quando acabar. E é um longo quando.
Mantenho isso em mente enquanto me troco, pego todo o kit de emergência contra o sol escaldante e arrumo minha bolsa. Perco um tempão pra fazer os trigêmeos ficarem quietos e ajudar a tia Rosa a terminar de passar protetor neles. Depois vem o feito extraordinário de fazer os três pirralhos mais três jovens adultas caberem no fusca da minha tia – não sei como, mas a gente consegue. Não é exatamente seguro, mas a tia Rosa anda a quinze quilômetros por hora e o clube fica a quatro quarteirões daqui.
O fato de não ter ar condicionado só torna toda a situação mais desesperadora.
Estou no colo da Ruth, então faço contorcionismo pra alcançar minha bolsa e puxar o celular. Se eu mandar a mensagem pro Enzo agora, ele deve ver lá pelas quatro da tarde; o clube fecha as seis, o que nos dá um tempinho livre.
É quando vejo as mensagens que ele me mandou uma hora atrás.
Ei, o Rodolfo também te chamou pra ir no clube?
O técnico liberou a gente mais cedo o
Acho q vc tá embaixo de algum ventilador e bem longe do celular.
Vou estar lá no clube se quiser aparecer!
Espero q queira aparecer ;)
– Por que esse sorriso? – Lílian me cutuca para perguntar. Ela analisa meu rosto e não espera por uma resposta. – Ah, acho que a pergunta é por quem.
O clube fica numa rua sem saída. Ocupa um terreno bem grande e, nessa época do ano, está sempre cheio. Meus pais pagam a carteirinha de membros do clube principalmente pra garantir que os trigêmeos tenham um escape nas férias. Eles já fazem natação aqui, então ter o parquinho e a pista de corrida e qualquer outra coisa envolvendo atividade física no período sem aulas à disposição dos três pestinhas é uma benção lá em casa. A Lílian entra como minha acompanhante, já que sua carteirinha venceu ano passado e ela achou besteira renovar pra usar por dois meses.
Tia Rosa guia os trigêmeos da catraca para o parquinho – atrás dele fica a piscina infantil. Pelo barulho que vem de lá, deve estar lotada.
– Se quiserem ir embora, é só me avisar. – ela tira um livro da bolsa, coloca o chapéu de praia e os óculos de sol e acena. – Vou tentar sobreviver aos meus sobrinhos. Aproveitem bastante sua liberdade. – Até porque, à noite, eu e a Lílian vamos assumir o turno de babá.
Ruth se anima depois que passa pela entrada – ela demorou na catraca de propósito, já que o prédio da guarita tem ar condicionado.
– Queria ter contrabandeado um pouco de sorvete pra cá. – Ruth comenta.
– Só contrabando mesmo, porque o que eles cobram numa casquinha aqui é absurdo. – Concordo.
– A última que chegar na piscina é a mulher do padre. – Lílian, em toda sua maturidade, exalta. E Ruth, em toda sua calma e racionalidade, corre atrás da minha irmã.
Sou deixada para trás com uma cara de tacho, mas nem o título de mulher do padre vai me fazer correr nesse calor.
A piscina fica depois de um pátio aberto com pistas de caminhada; se você seguir por elas, vai acabar na pista de corrida. É quase uma armadilha. Ei, venha aqui se divertir e andar e AGORA CORRA, FOREST, CORRA!
Atravesso todo o caminho ensolarado e dou a volta no prédio onde fica o salão de festas. Tem uma escada de pedra no campo gramado, um caminho de pedregulhos e, finalmente, a piscina. Vejo a Lílian já na beira da água, seus pertences em uma das cadeiras, e a Ruth se livrando da saída de praia pra mergulhar. Tem pelo menos umas trinta pessoas nadando e mais uma galera ocupando as espreguiçadeiras; a maioria é adolescente, mas encontro alguns idosos aqui e ali.
Fico um pouco nervosa com a quantidade de gente, o que já se tornou uma condição normal. Finjo mexer no celular enquanto desço as escadas – devagar pra não fazer a Lílian e me estrebuchar toda. O barulho de risadas e conversa fica mais alto conforme eu me aproximo; tem aquele friozinho na minha barriga e um formigamento nos meus dedos enquanto procuro algum rosto conhecido. Não demora muito pra eu ver o Juca e o Rodolfo sentados na beira da água; Ruth nada até eles e ergue os braços quando me vê.
– Ei, tartaruga. Anda logo! – Rodolfo provoca. Ele cumpriu bem seu papel de membro honorário do clube, e por isso pegou um bronzeado maravilhoso durante as férias. Do seu lado, Juca vira para me olhar e sorri. Seus ombros estão vermelhos, mas ele também ganhou uma cor. Eu só ganho queimaduras de terceiro grau.
Lílian nada até a beirada e joga um pouco de água na minha direção.
– Vem aqui, a água tá uma delícia! – Ela exalta.
– Eu sei, garota maravilha. Mas se quiser ter uma irmã até o fim do dia, preciso passar protetor de novo. São as regras da nossa genética. – ela ergue as sobrancelhas. – Da minha genética. Eu te odeio.
– O que convenceu as duas solitárias a sair da sombra? – Rodolfo pergunta, esticando a mão na minha direção. Mostro minha mão lambuzada de protetor solar e ele faz uma careta.
– Você, gostosão. – Ruth brinca, pendurando-se nas pernas dele. – Tudo por você.
– Ruth, eu não sou seu amigo pra você vir toda hétero pra cima de mim. O calor fritou seu cérebro? – Ele retruca, caindo na piscina pra empurrar ela de volta. Os dois começam a jogar água um no outro e Juca me dobra um olhar indignado.
– Ei, cadê o garoto de ouro? – Pergunto em brincadeira.
Dois braços rodeiam minha cintura e me erguem no ar. Nem preciso me virar pra saber que o recém-chegado está respondendo minha pergunta.
– Enzo, você tá todo molhado! – Guincho histérica, mas estou rindo enquanto me debato pra que ele me solte. Ele finalmente faz isso, mas não antes de plantar um beijo gelado no meu ombro quente. Meu guincho vira um grito estrangulado. Choque térmico em sua mais perfeita definição.
Giro nos calcanhares pra fazer uma careta furiosa, mas desarmo na mesma hora. Vi o Enzo ontem e antes de ontem; eu vejo o Enzo todos os dias desde que as aulas terminaram, e ainda assim todo novo encontro causa aquele comichão nos meus nervos e na minha sanidade. Ele ainda é o garoto mais incrível, bonito e adorável que eu já conheci. E é meu garoto.
A bermuda tem as cores da bandeira dos Dragões porque óbvio que sim. Perco um minuto observando as gotas de água escorrendo por sua pele, se enroscando em seus cílios, acompanhando o contorno da sua boca. O cabelo continua curto, raspado dos lados. Os olhos ainda são de chocolate quente – só o Enzo pra me fazer pensar em chocolate quente nesse calor.
– Oi. – ele diz finalmente. Franze as sobrancelhas quando olha meu rosto. – Tem protetor solar na sua cara toda.
– Eu sei. Alguém me interrompeu enquanto eu estava nesse processo de camuflagem contra o terror acima das nossas cabeças. – Dramatizo.
– Não me arrependo nem um pouco. – Ele dá um passo pra frente e eu dou um pra trás.
– Você tá todo molhado. – Reitero o fato. E aí preciso lutar comigo mesma pra não olhar de novo pro corpo dele todinho. É uma tentação desesperadora.
Enzo ergue as mãos. Estreito os olhos em sua direção, mas ele fica quieto e se afasta para conversar com o pessoal. Eu continuo passando protetor até ter certeza de que vai me salvar de ficar parecendo um tomate no fim do dia.
Vou até o Enzo e abraço seus ombros, já que está distraído conversando com o Juca. Ele gira o corpo e prende o meu no seu abraço; a sensação é sempre a mesma: faz minha pele se arrepiar e meus sentidos pifarem num curto-circuito. Com todo esse calor, o abraço do Enzo é que me faz entrar em combustão.
– Faz muito tempo que você chegou? – Pergunto.
– Uma hora, mais ou menos. Nem o técnico aguentava mais o calor. Um dos caras sugeriu de treinar a noite e pareceu a ideia mais genial e simples que deu até vergonha não ter pensado nisso antes.
Rio da sua cara indignada e o beijo antes que ele me beije. Seus lábios são quentes e frios e macios e familiares. O abraço fica mais forte e minhas mãos escorregam por seus ombros e seu pescoço.
– Olha a pouca vergonha em lugar público! – A voz do Rodolfo nos tira do momento. Enzo revira os olhos pra mim e eu beijo o canto do seu rosto em resposta.
– Vocês não vão entrar nunca?
– Acho que tenho que esperar mais uns minutos até o protetor... – Outro grito esganiçado escapa de mim quando o Enzo me ergue em seu colo. Ele corre até a piscina e salta comigo; tenho tempo de fechar os olhos antes de cair na água gelada. Nado na direção da borda e jogo água no Enzo quando ele tenta me acompanhar. – Traidor!
– Parece um ratinho molhado. – Rodolfo brinca ao fazer cafuné no meu cabelo. Empurro seu ombro pra baixo e ele quase submerge. – Ei, que força é essa? Alguém está fazendo academia em segredo?
– Tenta carregar um dos trigêmeos pra você ver se não ganha uns músculos. – Lílian retruca ao passar por nós, nadando de uma borda pra outra. Ela é a própria Pequena Sereia.
– Não foi tão ruim, foi? – Minhas costas estão contra a beirada e o Enzo está bem na minha frente. Sorrio para o seu sorriso, mas franzo o nariz para fingir a indignação de antes.
– A companhia tornou a experiência satisfatória.
– Eles não são umas gracinhas? – Ouço Juca exclamar. Ruth faz barulho de vômito.
– Ei, eu já te convidei pro festival? – Enzo recua e parece sem graça.
– Um monte de vezes, Enzo. – abraço seus ombros e aproximo mais nossos corpos. Ele está de pé porque alcança o fundo da piscina, eu preciso ficar batendo os pés igual uma criança. – Depois que eu terminar de tirar as fotos, podemos nos encontrar casualmente perto da barraca de algodão-doce... – Recebo o seu melhor sorriso em resposta. Aquele que forma covinhas em suas bochechas, que vai além dos seu olhar.
– E quem sabe depois na barraca de cachorro-quente.
– Mas não na de churros, tem toda uma parada ilegal com ela.
Estamos rindo quando ele me beija de novo. E é tão bom e relaxante que faz o dia mais quente do ano parecer o melhor dia do ano.
O Festival está ótimo.
Todo mundo ficou com um pouco de medo de o tempo estragar tudo. Ontem a noite choveu a beça. Mas o sábado amanheceu ensolarado e eu já estava suando às nove da manhã – o que, para os habitantes de Lagoa Feliz, principalmente os responsáveis por arrumar a praça para a festa, era um ótimo sinal.
Ok, foi mesmo um bom sinal. Eu cheguei aqui pouco depois das onze e não canso de andar pelo lugar. Igual ao aniversário da lagoa, o pessoal caprichou na decoração e na ambientação. Quase parece uma praia; eles colocaram espreguiçadeiras na beira da lagoa, com guarda-sóis e carrinhos vendendo sorvete passeando por ali. Os quiosques foram montados às pressas, mas ficaram bonitinhos; o pessoal das barracas usuais, como a de algodão doce, cachorro-quente e pastel foram os decoradores desses quiosques.
Tem uma bandinha da terceira idade tocando no coreto, todos vestidos com bermudas e camisetas coloridas.
Barracas de atividades foram espalhadas por toda praça; desde aquelas de derrubar o pino até aquelas onde você tem que derrubar uma pessoa – Rodolfo continua entrando na fila pra ser o alvo porque disse que a água é gelada e nada melhor do que mergulho grátis num dia desses. A piscina do clube foi aberta a público, mas a gente nem tentou ir pra lá porque lotaram até o limite.
Estou no meu horário de descanso quando vejo minha tia. Ela está sentada sozinha num dos bancos, olhando para o parquinho onde os trigêmeos estão brincando. Minha mãe assumiu o turno dela na barraca de flores pra dar um descanso. Meu pai está por aí, passeando com a Lílian. Os dois se desafiaram a tomar mais geladinhos em um só dia. Não quero nem ver quem vai acabar primeiro na emergência do hospital.
Tiro uma foto da minha tia antes que ela perceba. Com um buquê meio murcho em mãos e uma expressão alegre, ela nunca esteve tão bonita.
– Ei. – sento ao seu lado e apoio o rosto em seu ombro. Ainda não está tão calor quanto esteve no dia mais quente do ano, então dá pra manter contato físico. – Tudo bem?
– Tudo ótimo.
– Você que vai levar a Lílian pra Rouxinol na semana que vem?
– Não. Seu irmão. Ele disse que quer aprender a ir pra lá e vir pra cá sem a Fernanda ajudando com o caminho.
– Os Garcia e seu terrível senso de direção...
Minha tia cai na risada.
– Onde está o capitão do seu coração? – Ela pergunta. Eu faço a careta mais abismada que consigo expressar. – O quê? Não gostou da rima?
– Que brega, minha nossa.
– O amor é brega.
– O amor que você lê naqueles romances de banca é brega mesmo. – Brinco, arrancando uma reação indignada de volta. No fim, ela ergue os ombros e concorda.
– Não dá pra argumentar, eles têm muito clichê. Mas são engraçados.
– As capas sugerem outra coisa além de engraçados...
– Que cara de perversão é essa? Quem é você e o que fez com a minha sobrinha?
– Por que eu ouvi a palavra perversão perto da minha filha mais pura? – É claro que é justamente nessa hora que meu pai resolve chegar por trás da gente. Ele segura meus ombros e faz uma expressão solene, totalmente teatral. Não tem nada de solene no seu Edgar.
Lílian está tampando a boca pra esconder a risada.
– Em conversa de tia e sobrinha, pai não mete o bedelho. – Tia Rosa resmunga de volta.
– Hoje é o dia das gírias velhas e dos trocadilhos vergonhosos, aparentemente. – Fujo quando ela tenta dar um peteleco no meu ombro, puxando a Lílian pra que ela escape comigo.
Nós começamos a caminhar de volta para a praça quando pergunto:
– Quantos geladinhos você já tomou?
– Sete. – ela sorri e mostra a língua, que tem uma coloração de azul berrante.
– Isso aí deve ser muito saudável. – tiro uma fotografia correndo. Esse tipo de recordação vale ouro. – Não deixa o Téo ficar sabendo.
– Você não ia encontrar o Enzo? – Ela muda de assunto, provavelmente porque sabe que ainda vai comprar mais uns vinte geladinhos até o fim do dia.
– Ele tá no campinho gramado do outro lado do parque. Alguma competição de futebol...? Não posso dizer que estou totalmente interessada em ver isso.
– A gente podia entrar na fila do tiro ao alvo, que tal?
– Só se você for o alvo.
Lílian segura meu pulso e me puxa na direção do brinquedo em questão; a fila está quilométrica, o que me dá tempo de sobra de fotografar tudo nos arredores.
Rodolfo nos encontra depois de um tempo. Ele está todo encharcado e carrega um Bob Esponja de pelúcia; eu disse que ele estava viciado nesse jogo.
– Você parece mais feliz que pinto no lixo. – arregalo os olhos para Lílian e ela faz uma careta. – Meu Deus, os trocadilhos da tia Rosa são contagiosos.
– O Juca e o Enzo estão vindo pra cá. A Ruth disse que vai pensar. Vão fechar essa barraca daqui a pouco, mas acho que deixam todo mundo da fila ir uma última vez. – Rodolfo bagunça o cabelo e joga água na gente. – Eu preciso derrubar a Ruth pelo menos uma vez.
Ela aparece antes dos meninos. Ainda está com a camiseta de ajudante, já que trabalhou a manhã toda na barraca de boliche.
Enquanto eles se distraem discutindo quem vai ser o primeiro alvo, fotografo tudo. Meus amigos rindo, minha irmã observando a discussão e depois olhando para mim com uma cara de quem está se divertindo demais.
Fotografo as barracas, um dos alvos no exato instante em que ele cai na água; as bandeirolas em formato de sol e nuvem que penduraram entre as árvores e as pessoas passeando e sorrindo. Viro a câmera para um grupo de garotos no exato instante em que eles se afastam, e aí o foco fica todo no Enzo.
Ele não me vê num primeiro momento, e aproveito para fotografar seu sorriso, seus olhos. Todo ele. O garoto que sempre esteve nas minhas fotografias e que agora é uma parte crucial da minha vida.
Juca aponta na nossa direção e o olhar do Enzo me encontra. Ele balança a cabeça quando vê a câmera, mas eu continuo fotografando até que sua camiseta é tudo que a lente consegue focar.
– Uma vez stalker... – Cantarolo em brincadeira.
Juca abraça a Lílian e a Ruth e beija a bochecha do Rodolfo mais demoradamente. Eles estão juntos e todo mundo sabe disso, até os pais do Rodolfo – ele se abriu com eles depois do Ano Novo, e correu tudo surpreendentemente bem. Foi uma situação resumida pelo meu amigo como: primeiro eles ficaram surpresos, depois confusos e finalmente compreensivos.
Rodolfo ainda prefere ser discreto quando está em público. Ele é esse cara alegre e alto astral, mas tem uns detalhes em sua personalidade que nós, mais próximos, conseguimos ver como fragilidade e cautela. E é uma gracinha como o Juca respeita e aceita isso. Os dois não poderiam ser mais fofos.
E por isso eu fotografo o beijo; Rodolfo vai querer uma cópia, tenho certeza.
– Meu ship. – Ruth sussurra na minha direção.
– Ô Mônica, acho que você devia ser a primeira vítima. – Lílian chama minha atenção. Todo mundo se vira pra mim.
– Ah, acho que não. Eu já mergulhei abruptamente na água essa semana, tá de bom tamanho. – Aproveito pra lancear um olhar de canto pro Enzo e ele abaixa o rosto para rir.
– Você vai por último então. – Ruth sentencia e segue pra plataforma antes que eu possa retrucar. Ela sobre os degraus do lado do mecanismo e senta numa tábua que não parece muito segura. O objetivo é você acertar o alvo cinco vezes, derrubando a pessoa em todas as tentativas. Aí pode escolher entre os melhores prêmios, que são pelúcias gigantes igual a que o Rodolfo está segurando agora. Se errar uma, aí pode escolher um prêmio de consolação.
A gente divide uma tentativa entre cada um do grupo. O Juca vai primeiro e erra. A Lílian quase acerta. O Rodolfo acerta, mas a jogada é muito fraca e não ativa o botão. Eu falho miseravelmente. O Enzo acerta na mosca e a Ruth mergulha no tanque de água.
– Não dá pra reclamar, tá muito fresquinho! – Ela exalta assim que ajudam ela a sair. – Mas você tá marcado, Sposito da Silva. Vai ter volta. – Enzo escolhe um chaveiro entre os prêmios menores e me lança um olhar de desafio.
Eu não vou subir naquela plataforma de jeito nenhum.
Na vez do Rodolfo, a Lílian, o Enzo e o Juca derrubam o coitado. Eles se dividem pra escolher um quebra-cabeça da Dora, a Aventureira que vai ser dado aos trigêmeos mais tarde – quero só ver a cara de horror da Susana quando receber isso.
O Juca só cai uma vez por causa do Enzo; de novo.
– Dá licença, quando meu namorado foi substituído por um jogador de beisebol? – Eu resmungo.
Enzo me abraça por trás enquanto ajudam o Juca a sair.
– A gente devia fazer uma aposta. – O Enzo sugere. A boca está apoiada sobre meu ombro, então sua voz é a responsável pela descarga de arrepios em minha pele.
– Que tipo de aposta?
– Se eu te derrubar duas vezes, eu ganho. Se você me derrubar uma vez, você ganha.
Viro em seus braços. A Lílian resmunga alguma coisa sobre a possibilidade de se machucar real naquele brinquedo, e nem dá pra dizer que ela está exagerando, com todo o seu histórico médico em questão.
Observo o garoto que está me desafiando. Seus olhos doces e seu sorriso adorável e a curva discreta que sua sobrancelha direita faz.
– E o que a gente ganha?
– A outra pessoa escolhe.
– Enzo Sposito da Silva. – aperto seus braços e estreito os olhos. – Tem muita malícia nessa sua proposta.
– Eu mencionei que minha família foi passar o fim de semana na chácara? E que tenho a casa só pra mim? – Ele tenta fazer um tom sensual, mas acaba saindo mais engraçado do que sexy. O que torna o Enzo ainda mais fofo.
Sinto minhas bochechas ficando vermelhas.
– Aposta de alto risco. – Ele brinca.
– Mas os dois lados saem ganhando, independente do vencedor.
Seu sorriso fica maior e as covinhas aparecem nas bochechas. Eu as beijo.
– Ô Enzo, vem me derrubar, tem sol na minha cara! – Minha irmã grita lá de cima da plataforma. Óbvio que o Enzo a derruba.
Ele sobe lá e senta com a maior expressão de triunfo.
– Mas é um grande exibido. – Juca retruca. Seu arremesso acerta o alvo, mas a plataforma é problemática e não derruba o Enzo. – Um grande exibido trapaceiro!
A Ruth e a Lílian erram suas tentativas. O Rodolfo acerta e é muito engraçado ver o Enzo mergulhar num susto; ele emerge e eu o fotografo. Não consigo me conter; ele é muito adorável.
– Vai lá, Mônica. Traz honra pra nossa família. – Lílian me entrega a bolinha. Eu paro na linha marcada como o limite e finalmente percebo a dificuldade dos acertos; o alvo fica muito longe!
Mas aí olho pro Enzo e ele está sorrindo. Não é o sorriso de desafio e nem o de zombaria que ele usou com o Juca, é o meu sorriso. Aquele que eu amo mais do que tudo.
Jogo a bola e ela acerta o alvo. Todo mundo me abraça e comemora como se eu tivesse feito o gol da vitória.
Só que agora é minha vez. Tudo bem, eu me rendo.
– Boa sorte, garoto de ouro. – Provoco quando passo por ele. Deixo a câmera nas mãos da Lílian e ela obviamente desiste da sua chance para fotografar a minha humilhação. Aquela história dos humilhados serem exaltados é o momento da minha irmã agora.
Juca vai primeiro.
– Sua namorada é muito fofa, eu tenho dó. – Ele diz para o Enzo. Só para baixar minha guarda, lógico, porque aqueles arremessos ruins de antes? Sumiram.
O Juca acerta o alvo em cheio e ouço um clique alto embaixo da minha bunda antes de despencar na água fria.
Entrou água no meu nariz e meus olhos estão ardendo, mas pelo menos o calor passou. E ainda faltam quatro arremessos.
A Ruth é a próxima, e a expressão dela é quase psicótica.
– Lembra que eu te abriguei em casa no dia mais quente do ano. Te ofereci meu ventilador portátil! – Tento ganhar sua piedade. Ela faz uma careta de concordância e joga a bola; eu despenco no tanque.
Apoio os braços na beirada e ergo o rosto com o cabelo todo bagunçado na minha cara.
– Vocês são péssimos amigos.
Rodolfo erra, mas não de propósito. O safado realmente tenta me derrubar.
E aí o Enzo aparece. Ele tem a própria tentativa e a da Lílian; as duas chances que precisa pra ganhar o desafio. Honestamente, esse desafio nem é válido quando as duas partes vão querer a mesma coisa assim que forem pedir o prêmio. Eu já tenho uma ótima ideia de como usar a noite livre na casa do Enzo; envolve pizza, filme e depois o quarto dele. Eu amo o quarto do Enzo. E a cama.
Quando eu comecei a soar como o Rodolfo?
Estou nesse monólogo interno quando o clique da plataforma soa e eu mergulho no tanque. Subo e me penduro na beirada e me surpreendo quando o Enzo beija meu nariz.
– Foi mal. – Ele pede antes de voltar para a posição.
No último arremesso, a bola acerta o alvo, o clique acontece, mas a plataforma não me derruba.
– Parece que o jogo virou, não é mesmo? – Ergo as mãos em vitória.
O ajudante me equilibra pra que eu desça as escadas. Estou encharcada, meu cabelo virou um emaranhado cheio de cloro, mas estou rindo enquanto meus amigos me abraçam e a gente faz aquela bagunça típica de grupos escandalosos, seguindo o caminho pela praça.
Enzo abraça meus ombros e aperta os lábios no topo da minha cabeça.
– Empate?
– Empate. – ergo o rosto para beijar seu pescoço, e andamos assim juntinhos pelos minutos seguintes.
– Já sabe o que vai pedir por esse desafio? – a nota maliciosa está de volta, bem menos cômica e mais arrepiante do que antes.
– Eu tenho uma ideia ou duas.
Denise Flaibam
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