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O hall da reitoria Heythram não era uma sala muito grande, mas, sendo um dia frio em janeiro, em uma casa onde se levava muito em conta o consumo de carvão, suas ocupantes não consideravam isso uma desvantagem. O modesto fogo que ardia na alta lareira era considerado suficiente para que apenas uma das jovens que ali se encontravam, Elizabeth, tenha se decidido a cobrir os ombros com um xale. A caçula das belas filhas do reverendo Henry Tallant tinha dor de ouvido e além de colocar uma cebola grelhada no ouvido doente, tinha envolvido a cabeça e o pescoço com um xale de cashmere. Ela estava enrolada em um sofá usado, com a cabeça numa almofada vermelha e, ocasionalmente, soltava um suspiro lamentoso que nenhuma de suas irmãs prestou atenção. Betsy era uma criança doente. O clima de Yorkshire não estava de acordo com sua constituição, e como ela passou a maior parte do inverno sofrendo de uma variedade de doenças menores, todos, exceto sua mãe, consideravam a sua fraqueza como algo normal.
Espalhados na mesa principal havia numerosos indícios que as damas haviam retornado para aquela aconchegante e desordenada sala para costurar algumas camisas, porém apenas uma delas, a mais velha, se ocupava da tarefa. Numa cadeira ao lado da lareira, Miss Margaret Tallant, uma bem dotada jovem de quinze anos, devorava a historia de um exemplar encadernado do The Ladies’ Monthly Museum , com os indicadores metidos nos ouvidos para não ouvir nada. Sentada na frente de Miss Arabella, Miss Sophia, que tinha abandonado o seu trabalho na mesa ao lado dela, lia em voz alta um outro exemplar desta revista informativa.
— Deixe — me dizer, Bella, disse Sophia abaixando a revista por um momento, — isto é totalmente incompreensível. Ouça o que diz aqui! Nós temos oferecido aos nossos assinantes os modelos mais modernos, mas que não viole as normas de bom gosto e da decência, mas estimulem o sorriso de boa índole e causem um charme onde se adiciona a bondade. A economia deve ser a ordem do dia. E há uma imagem de um vestido de festa absolutamente divino. Mas olhe Bella! Ele diz que o corpete russo é de cetim azul, preso na frente por diamantes. Imagine! Sua irmã, obedientemente, levantou os olhos de onde estava fazendo a bainha, e examinou com um olhar crítico a esbelta figura desenhada entre Notas sobre a moda. Então suspirou e se inclinou sobre o seu trabalho.
— Bem, se essa é a sua concepção da economia, estou com medo que não possa ir para Londres, apesar do convite da minha madrinha. Enfim, eu tenho certeza que não vai me convidar, disse pessimista.
— Você tem que ir e você vai, disse com veemência Sophy. Pense no que isso significaria para nós se não for.
— Sim, mas eu não posso ir vestida como uma camponesa, contestou Arabella, e se tiver que colocar diamantes no meu corpete, você sabe que ...
— Isso é besteira! Claro que é um exagero, ou talvez os diamantes sejam falsos. Além disso, este número é antigo. Em outro exemplar, eu vi que as jóias não são mais usadas na parte da manhã, então... Onde está este exemplar? Está com você, Margaret! Dê — me, por favor. Você é jovem demais para se interessar por essas coisas.
— Margaret descobriu os ouvidos para segurar a revista e evitar que sua irmã a pegasse. — Não! Estou lendo a história em partes!
— Bem, você não deveria. Você sabe que nosso pai não gosta que leiamos romances. — Também não ficaria feliz se a visse lendo revistas de moda, disse Margaret. As duas irmãs se entreolharam. Os lábios de Sophy tremeram.
— Querida Meg, eu te imploro para emprestá — lo, apenas um momento. Eu emprestarei quando terminar de ler o Relato de Augustus Waldstein. Mas apenas um momento, de acordo?
— Espere, aqui tem algo para se preocupar, disse Arabella deixando seu trabalho para ver a cópia deixada por Sophia. Método para conservar o leite com rabanetes picantes... Cera branca para as unhas... Cobre para dentes escurecidos... Sim, aqui está ela! Ouça, Meg! Se uma senhora em sua juventude se dedica a leitura de romances, não estará capacitada para ser a companheira de um homem sensato nem para dirigir uma família com correção e decoro. Olhe! Ela levantou a cabeça e seus olhos brilhantes desmentiam o gesto pudico de seus lábios franzidos. — Asseguro — lhe que nossa mãe é capaz de ser a companheira de um homem de bom senso, disse Margaret, indignada. Ela lia romances! E nem o nosso pai pode ter objeção para a El errante ou os Cuentos da senhora Edgeworth.
— Não, mas não gostaria de surpreender a Bella lendo Os irmãos húngaros ou As crianças da abadia, disse Sophia, e aproveitou a oportunidade para arrebatar o The Ladies’ Monthly Museum de sua irmã, naquele momento desprevenida. Asseguro que nesses livros foram ditas muitas insensatezes e lhes falta caráter moral.
— Na história que eu estou lendo não falta de caráter moral! , Disse Margaret um pouco alterada. Veja o que diz aqui, na parte inferior da página: Albert! O teu primeiro dever é a pureza! Tenho certeza de que isso não se pode censurar.
— Arabella esfregou a ponta do nariz.
— Bem, eu acho que seria um exagero considerá — lo, observou. Mas devolva — o, Sophy.
— Eu devolverei quando encontrar o que estou procurando. Além disso, fui eu quem teve a brilhante idéia de pedir os volumes para a Sra. Caterham, então ... Achei! Aqui diz que, no período da manhã, deve — se usar apenas jóias muito simples. Acrescentou com uma pitada de hesitação, eu acho que a moda não muda muito rápido, mesmo em Londres. Esse número é de apenas três anos.
— Mas Bella não tem qualquer tipo de jóia, certo? Disse Elizabeth deitando — se cautelosamente no sofá.
Essa observação, feita com a franqueza própria de uma donzela de nove anos, ofuscou a conversa. — Eu tenho um medalhão de ouro e corrente com mechas de cabelo de nossos pais, disse Arabella. — Se você tivesse uma tiara, uma presilha e uma pulseira combinando, tudo seria resolvido, exclamou Sophy. Aqui ele descreve um modelo com estes ornamentos únicos. — Suas três irmãs olhavam com espanto.
— O que é um presilha? Elas perguntaram.
Sophy balançando a cabeça.
— Eu não sei, admitiu.
— Bem, de qualquer maneira, Bella não tem, disse Elizabeth, pragmática, lá do sofá. — Se fores tão tola de renunciar a ir para Londres por um motivo tão insignificante como esse, nunca vou te perdoar.
— Claro que não vou renunciar! Arabella exclamou desdenhosamente. Mas não tenho esperança que Lady Bridlington me convide. Por que deveria? Só porque eu sou sua afilhada? Se eu nunca a vi na minha vida!
— Ela te enviou um bonito xale como presente batismo, lembrou Margaret. — Além disso, é a melhor amiga da nossa mãe, disse Sophy.
— Mas a mãe só a viu há muito tempo atrás.
— E ela nunca mandou nada para Bella, mesmo em sua confirmação — disse Betsy removendo cuidadosamente a cebola do ouvido para jogá — la no fogo.
— Se não te dói tanto o ouvido — disse Sophia, olhando para a irmãzinha com desaprovação — você pode consertar esta costura. Eu quero desenhar um padrão para fazer um casaco. — Mamãe me disse para ficar sentado perto do fogo, respondeu a paciente, e se sentou confortável novamente. Existe algum acróstico nesses exemplares antigos?
— Não, e se tivesse algum, eu não os passaria a alguém tão pouco dada ao trabalho como você, Betsy, disse Sophy, friamente.
Betsy começou a chorar, mas com pouco entusiasmo. Como ninguém prestou atenção, pois Margaret voltou a concentrar — se na sua novela e Arabella estava ensinando a Sophia o desenho de um casaco de veludo com um luxuoso acabamento de arminho, parou de reclamar e limitou — se a fungar ocasionalmente, olhando com ressentimento para as duas irmãs mais velhas. Era agradável vê — las ali sentadas, estudando minuciosamente a revista, com os cachos escuros entrelaçados e abraçadas pela cintura. Elas estavam vestidas de forma simples, com trajes de sarja azul, gola alta e mangas longas e apertadas, com apenas um par de alças como único ornamento, mas todas as filhas do sacerdote eram conhecidas por sua beleza e não necessitavam de ornamentos. Embora Arabella fosse, sem dúvida a beleza da família, no bairro todos concordaram que quando Sophia crescesse um pouco e perdesse as formas arredondadas dos dezesseis anos, não teria nada a invejar de sua irmã mais velha. Ambas tinham os olhos grandes, escuros e expressivos, nariz pequeno e reto, e os lábios delicadamente formados, a pele das duas irmãs, que não se devia à loção da Dinamarca, ou ao Olympia Glow Dew Ninon , ou qualquer outro produto beleza que já foram publicados em revistas, fazia a inveja de outras garotas menos afortunadas. Sophia era a mais alta das duas, Arabella tinha a forma melhor e os tornozelos mais bonitos. Sophia parecia mais robusta do que Arabella, que subjugava os seus fãs com o seu enganoso ar de fragilidade, que inspirou um jovem de espírito romântico, a compará — la com uma esvoaçante folha ao vento, e outro para lhe dedicou uns péssimos versos em que ele a chamava de Nova Titania. Infelizmente, Harry descobriu um dia esta composição efusiva e mostrou para Bertram, e até que seu pai dissesse com sua moderada austeridade, que a brincadeira já estava bem desgastada, eles insistiram em chamar a irmã por essa denominação cômica. Ruminando sobre as injustiças que era vítima, Betsy não conseguia encontrar nada para admirar em qualquer uma das duas irmãs, e estava pensando na possibilidade de retirar — se para o quarto das crianças e receber os mimos de sua babá que se encarregava de cuidar e distrair o pequeno Jack, quando a porta se abriu e um corpulento menino de onze anos de cabelos encaracolados, vestindo calça e camisa com babados nanquim, irrompeu na sala e exclamou: — Olá! Você não ouviu? Papai e mamãe estão no estúdio, mas eu sei que o que está acontecendo! — O quê? Sophia perguntou.
— Gostaria de saber, certo? Harry exclamou. Ele pegou um pedaço de corda do bolso e começou a fazer um nó complicado. Veja como eu faço isso, Meg. Eu sei fazer seis nós de base, e se o tio James não convencer o capitão Bolton para me levar com ele em sua próxima missão, será uma farsa e uma infâmia.
— Mas você veio para nos dizer algo, disse Arabella. O que aconteceu? — É uma outra piada de Harry — disse Margaret.
— Não, nada disso, replicou seu irmão. Joseph Eccles chegou do White Hart com um correio. — Quando viu que tinha conseguido captar a atenção de suas irmãs, ele sorriu. Sim, já, podem fazer uma cara de surpresa! Há uma carta de Londres, para a nossa mãe. Quem a enviou foi um lord, eu vi com meus próprios olhos.
Margaret jogou fora o seu livro, Sophia deu um grito abafado e Arabella deu um pulo da cadeira.
— Harry! Não será a minha madrinha, certo? , Exclamou.
— Sua madrinha? Repetiu o menino.
— Se vem de Londres, deve ser de Lady Bridlington, disse Sophia. — Arabella, eu acho que a sorte está conosco.
— Não é possível, disse em com uma voz fraca. Provavelmente escreveu que não pode me convidar. — Bobagem! Respondeu pragmática, sua irmã. — Se assim fosse, quer explicar por que a mãe foi mostrar a carta para o papai? Pode acreditar. Você vai a Londres para a temporada. — Ai! Eu gostaria que fosse verdade! Arabella gritou, tremendo.
Harry, que tinha deixado os nós e tinha começado a fazer uma parada de mão, perdeu o equilíbrio nesse momento e caiu no chão junto com uma cadeira, a costura de Sophia e o bastidor de Margaret que ela tinha estado pintando antes de sucumbir ao The Ladies’ Monthly Museum . As jovens suplicaram a Harry para não ser tão rude, mas não o censuraram por sua imperícia. O menino se levantou e disse com desdém que apenas uma garota ficaria tão agitada com uma simples visita a Londres.
— Que maçada! Exclamou. Eu me pergunto o que você pensa que vai fazer lá. — Como você pode ser tão estúpido, Harry? Os bailes! Os teatros! Os salões! Arabella disse em uma voz embargada.
— Eu pensei que você estava indo para Londres para encontrar um bom partido, disse Betsy. Isso é o que eu ouvi dizer a nossa mãe.
— Bem, você não deveria ter escutado, Sophia repreendeu duramente. — O que é um bom partido? Harry perguntou, e começou a fazer malabarismos com um carretel de fio de seda caído da cesta de costura.
— Não sabe o que é um bom partido? Perguntou a enferma. É um casamento esplêndido. Bella e, em seguida, nos convidará, a Sophy, Meg e eu para sua casa em Londres, e todas nós encontraremos maridos ricos.
— Eu garanto — lhe que não vou fazer nada disso, senhorita, disse Arabella. — Deixe — me dizer que ninguém vai convidá — la para qualquer lugar até que você corrija os seus modos.
— Mas a mãe tinha dito — protestou Betsy em tom lastimoso. E não pense que eu não entendo dessas coisas, por que ...
— Betsy interrompeu impiedosamente Sofia, se você não quiser que eu conte ao papai o quão pouco discreta você foi, eu recomendo que você vá para o quarto das crianças, onde você pertence. Esta terrível ameaça surtiu efeito imediato. Reclamando que suas irmãs eram antipáticas, Betsy saiu o mais lentamente que pôde da sala, arrastando o xale.
— Ela está muito doente, desculpou Arabella.
— É um moleca precoce! Sophia contradisse. Deveria ser mais inteligente e não pensar sobre essas coisas. Oh, Bella, se você tiver a sorte de conseguir um casamento apropriado... Se Lady Bridlington a apresentar à sociedade, tenho certeza que vais conseguir. Porque, acrescentou, com nobreza, és de longe, a senhorita mais bonita que eu já vi.
— Oh! Brincou Harry.
— Sim, concordou Margarida, mas se você tiver que usar botões de diamantes, coroas e ... e tudo o que você disse antes, eu não sei como faremos.
Um silêncio sombrio seguiu estas palavras. Sophie foi a primeira a reagir. — Temos que pensar em alguma coisa! Ela disse com resolução.
Ninguém respondeu. Margaret e Arabella ponderado cautelosamente a sua afirmação, e Harry, que tinha descoberto uma tesoura e começou a cortar pedaços de uma meada de lã para tricô. Estavam todos em silêncio e pensativas, quando entrou no quarto um jovem saindo da adolescência. Ele era atraente, tez mais clara do que a sua irmã, mas parecido com ela, e era evidente devido a altura exagerada do colarinho da camisa e a estudada desordem de seus cachos castanhos, que cuidava de sua aparência até as raias do dandismo.
O Alfaiate de Knaresborough que confeccionava os seus trajes não podia aspirar a virtuosidade de Stultz ou Weston, mas tinha feito o melhor trabalho possível, naturalmente facilitado pelas proporções admiráveis de seu cliente. Bertram Tallant sabia tirar partido da sua compleição física e tinha pernas muito finas. Naquele momento usava calças de camurça, mas em um de seus baús guardava calças amarelas justas que ainda não tinha se atrevido a mostrar ao seu pai e dava — lhe um ar muito distinto. Suas botas, as quais devotava muita atenção, brilhavam como seria de esperar das botas de um jovem cujos pais não podiam pagar uma boa graxa preta e as pontas do colarinho da camisa, graças às mãos cuidadosas de suas irmãs, estavam tão bem engomadas, que tinha que se esforçar para virar a cabeça. Como seu irmão mais velho James, que estava estudando em Oxford, antes de receber ordens, ele foi educado em Harrow, mas neste momento vivia na casa da família e estudava supervisionado pelo pai para prestar os exames para o ingresso em Oxford nas próximas férias da Páscoa. Ele havia embarcado naquela tarefa sem entusiasmo, pois sua ambição era alcançar o posto de tenente de um regimento de hussar. No entanto, desde que o custo para isso não era inferior a oito libras, e como o fim da longa guerra contra Bonaparte havia prejudicado muito a promoção, e que só poderia ser alcançada mediante o pagamento de grandes somas de dinheiro, o Sr. Tallant decidiu, com muita sabedoria que uma ocupação civil seria melhor que uma carreira militar. Ele queria que seu filho Bertram, tendo atingido um nível respeitável de conhecimento, pudesse trabalhar no Ministério do Interior. As dúvidas que tinha da natureza instável do seu filho e sobre a sua aptidão para este tipo de trabalho foram dissipadas pensando que, afinal, Bertram não tinha ainda dezoito anos, e que a Universidade de Oxford, onde o pastor passou três anos estudando, exerceria uma influência benéfica sobre a sua personalidade. O futuro candidato ao Parlamento anunciou a sua entrada na sala de aula com um grito abafado de caça, seguido pela declaração de que havia pessoas a quem a fortuna favoreceu injustamente. Arabella juntou as duas mãos em frente ao peito e dirigiu um olhar eloqüente ao seu irmão.
— É verdade, Bertram? Ela perguntou. Peço que não me torture.
— Sim, certamente. Mas quem te disse?
— Harry, é claro, disse Sophia. Nesta casa, as crianças estão inteiradas de tudo! — Vamos! Harry gritou pondo — se em guarda contra o seu irmão mais velho. — Podemos lutar um pouco!
— Não aqui! Gritou suas irmãs, acostumadas com as conseqüências do buliçoso Harry. Mas não esperavam que eles fizessem caso, as jovens buscaram refúgio onde puderam, que não foi fácil porque, além de ser pequena, a sala estava cheia de caixas e bugigangas. Os irmãos lutaram e balançado, os braços, por um par de minutos, mas Harry, apesar de ser um menino robusto, não era páreo para Bertram, teve de resignar — se a que seu irmão o empurrasse para fora do quarto e fechasse a porta na cara dele. Depois de chutar a porta e ameaçando seu irmão com represálias terríveis, fui assobiando pelo espaço deixado pelo incisivo que estava faltando, assim Bertram deixou de segurar a porta com os ombros e pode ajustar sua roupa. — Bem, você está indo para Londres Arabella informou. Como eu gostaria de ter uma madrinha rica! A única coisa que recebi da velha senhora Calne foi um livro intitulado O terrível conforto de um cristão, ou algo assim.
— Sim, eu acho que foi um truque, admitiu Margaret. O nosso pai disse que mesmo que a Sra. Calne tenha pensado que você gostava desse tipo de literatura poderia ter deduzido que você poderia encontrar esse livro na nossa própria biblioteca.
— O pai sabe que eu não me sinto inclinado a isso, e é justo dizer, tão pouco o espera, disse Bertram, magnânimo. Apesar de ser terrivelmente puritano e estar cheio de idéias ultrapassadas, é justo e sincero, e não tenta enganar ninguém com mentiras.
— Sim, sim, disse Arabella, impaciente. Mas ele sabe da carta? Vai me deixar ir para Londres? — Acho que a idéia não lhe agrada em absoluto, mas disse que não pode impedir e acredita que você irá se comportar adequadamente na sociedade e que não vai se perder na vaidade ou futilidade. E sobre isso — disse Bertram com sinceridade fraternal, acreditam que você esteja deslocada entre os nobres, assim não existe muitas possibilidades de que te estragues. — Não, tenho certeza que não, disse Arabella. Mas diga — me tudo. O que diz a carta de Lady Bridlington?
— Eu não sei! Quando a mãe chegou eu estava tentando decifrar um texto grego diabólico, portanto, não prestei muita atenção. Acho que ela vai explicar. Enviou — me para dizer que te espera no seu quarto.
— Meu Deus! Por que você não me disse antes? Exclamou Arabella. Ele colocou a camisa que não estava terminada em um saco de costura e correu para fora da sala.
A reitoria era constituída de dois andares apenas, mas era grande e antiquada, e para chegar ao quarto de sua mãe, Arabella teve que atravessar vários corredores, todos cobertos com tapetes de lã puída e muito frios.
O benefício Heythram eclesiástico era respeitável, era cerca de trezentas libras por ano, além disso, o titular atual gozava de uma pequena renda pessoal, mas as necessidades de uma grande família transformou a mudança de tapetes nos corredores em um sonho maior do que as despesas poderiam suportar. O pastor, que era filho de um fazendeiro, havia se casado com a bela Miss Theale, que poderia ter aspirado a algo melhor do que um casamento com um simples filho mais novo, porém muito atraente. De fato, foi dito que ela casara para contrariar sua família e que se quisesse, ela poderia ter pego um baronete. Mas ela tinha se enamorado a primeira vista por Henry Tallant. Como ele vinha de uma família respeitável, e porque seus pais tivessem outras filhas casadoiras, Miss Theale tinha conseguido ir com ele. Apesar de por vezes lamentar que os benefícios não rendessem mais ou que Henry se desprendesse de uma moeda para cada mendigo que cruzasse o seu caminho, nunca tinha dado qualquer razão para se acreditar que ela estava arrependida de sua escolha. Na verdade, ela teria gostado de instalar na casa paroquial um desses novos banheiros e uma cozinha nova ou, como seu cunhado, ter velas de cera em cada quarto, sem passar por críticas. Mas era uma mulher sensível, e embora a fumaça da chaminé da cozinha e o mau tempo convertesse a sala de visitas em um lugar de cheiro particularmente desagradável, ela sabia que estava mais feliz com Henry do que jamais poderia ter sido com um baronete do qual já tinha quase se esquecido. Estava de acordo com a decisão do marido que, fosse qual fosse o destino de suas filhas, seus filhos deveriam receber uma boa educação. No entanto, embora administrasse muito bem o dinheiro para assegurar que Bertram e James pudessem levar uma vida respeitável em Harrow, as ambições relativas ao futuro da mais velha e mais bela de suas filhas foram crescendo. Embora não lamentasse abertamente as circunstâncias que a haviam impedido de se destacar além de York e Scarborough, determinou que Arabella não levaria uma vida tão limitada quanto sua mãe. Talvez ela guardasse esta esperança, quando convidou sua amiga de escola, Arabella Haverhill, que teve um casamento muito conveniente, para ser madrinha de sua filha. Sem dúvida, a sua intenção de enviar a jovem Arabella para ser apresentada na sociedade, sob os auspícios da senhora Bridlington não tinha nada de novo. Ao longo dos anos, ela tinha realizado uma rara, mas regular correspondência com a sua velha amiga, e estava convencida de que a vida moderna não tinha diminuído a bondade da gordinha e alegre Miss Haverhill. Lady Bridlington não tinha filhas, na verdade, apenas um menino, sete ou oito anos mais velho que Arabella Tallant, mas do ponto de vista de sua amiga, isto significava uma clara vantagem. Não importa o quão amável seja, uma mãe de uma família com várias filhas em idade de debutar, não iria concordar em acolher outra menina à procura de um marido adequado. Mas, uma viúva rica, da moda, divertida, carinhosa e sem filhas casadoiras não tinha nenhuma razão para não receber com entusiasmo a oportunidade de acompanhar uma jovem protegida para bailes, festas e saraus que tanto gostava. A Sra. Tallant não imaginava que pudesse ser de outra forma. E sua amiga não a decepcionou. Lady Bridlington, em uma carta de várias folhas de papel com bordas douradas, admitiu não compreender como a idéia não lhe tivesse ocorrido. Estava muito entediada e nada melhor do que estar rodeada por pessoas jovens. Ele confessou que tinha muita tristeza por não ter tido filhas, e como ela não tinha dúvida de que a filha de sua amada Sophia seria um encanto, ela esperava a sua chegada com impaciência. A Sra. Tallant nem sequer havia mencionado o seu objetivo de enviar Arabella à cidade: Henry Tallant talvez considerasse que as cartas de Lady Bridlington transmitiam apenas frivolidade e loucura, mas o fato é que a senhora, apesar de não ser
uma pessoa muito inteligente, sabia muito bem se movimentar na sociedade. Ela escreveu a Sophia que ela podia ficar tranquila porque não deixaria pedra sobre pedra até que eu tivesse encontrado um bom partido para Arabella. Na verdade, deu a entender que ele tinha pensado em alguns solteiros.
Portanto, não surpreende que quando Arabella surgiu por trás da porta do quarto de sua mãe a encontrou perdida em dum devaneio agradável.
— Mãe?
— Arabella! Venha, minha filha, e fecha a porta. Recebi uma carta maravilhosa de sua madrinha. Eu sabia que podia confiar nela, querida!
— Então é verdade? Eu vou para Londres? Ela perguntou em voz fraca. — Sim, e ela me pediu para a enviar o mais rapidamente possível, porque parece que seu filho está viajando no continente e ela está morrendo de tédio, sozinha em casa. Pense nisso! Irá tratá — la como se fosse sua própria filha. Ah, e embora eu nunca tenha pedido, se ofereceu para lhe levar a um dos seu salões.
Esta impressionante perspectiva tinha silenciado Arabella. Ele pode apenas olhar para a mãe enquanto ela listava todas as delícias que a aguardava em Londres. — O que eu sempre quis para você! Claro, você receberá um convite para ir a Almack, porque ela conhece as patrocinadoras. E vai levá — la para concertos e ao teatro. E as festas da boa sociedade. Pequeno — almoço, saraus, bailes ... Você verá quantas oportunidades você vai ter, tesouro! Ah, e também diz que ... mas não importa!
— Mas, mãe, Arabella conseguiu balbuciar, como fazemos? Pense no custo! Eu não posso ... eu não posso ir para Londres, se eu não tenho roupa para vestir.
— Não, claro que não! A Sra. Tallant admitiu, sorrindo. Isso seria terrível, é claro. — Sim, mãe, mas você sabe que porque me refiro a roupa. Eu tenho apenas dois vestidos de baile, e apesar de eles serem perfeitos para festas nos salões de Harrowgate e para as festas rústicas não são elegantes o suficiente para o Almack´s. Sophy tomou emprestado da Sra. Caterham as suas revistas Montly Museums, assim que eu tenho olhado os modelos que aparecem, e é tudo muito luxuoso, mãe. Tudo leva enfeites de diamante, ou arminho ou rendas. — Não se preocupe, minha querida Arabella. Garanto — lhe que eu pensei em tudo. Vocês devem saber que há muito tempo que eu venho planejando. Ela percebeu a expressão de perplexidade de sua filha e riu novamente. Você já pensou que ia mandar você para a cidade vestida como uma camponesa? Eu não sou louca! Venho poupando para a ocasião já não me lembro a quanto tempo. — Mãe!
— Olha, eu tenho algum dinheiro meu, disse a Sra. Tallant. Seu querido pai nunca quis usá — lo, e me pediu para gastá — lo em tudo o que eu quisesse, porque eu tinha alguns caprichos e ele não podia suportar a idéia de que quando nós nos casamos ele não os podia oferecer. Isso é um absurdo, é claro, e eu garanto — vos que, uma vez que nos casamos eu parei de pensar nessas bobagens. Mas
eu estava feliz de ter esse dinheiro para gastá — lo com os meus filhos. E, apesar das aulas de desenho de Margaret, da professora de piano de Sophy, do novo casaco de Bertram, e das calças amarelo apertadas que não se atreve a mostrar ao seu pai (oh, garoto bobo, como se seu pai ainda não soubesse!), e ter que levar a pobre Betsy ao médico três vezes este ano, consegui salvar algum para você.
— Não, mãe, não! Arabella exclamou muito chateada. Eu prefiro não ir a Londres, se você tem que gastar tanto dinheiro.
— Isso que você diz por que está chocada, querida, replicou a Sra. Tallant calmamente. Eu vejo isso como um investimento e não me surpreenderia se conseguir obter um grande benefício desse dinheiro. Ela hesitou um instante, escolhendo cuidadosamente as palavras, ela acrescentou: Eu tenho certeza que não preciso dizer — lhe que seu pai é um santo. Além disso, eu não acho que haja nenhum marido ou pai melhor do que ele. Mas não é pragmático, e quando se tem de garantir o bem — estar de oito filhos, não há escolha, além aguçar a nossa inteligência. Nosso querido James não me preocupa e como Harry está determinado a ser um marinheiro, e seu tio está determinado a usar sua influência para ajudá — lo, o seu futuro está assegurado. Mas admito que não esteja muito tranquila em relação ao pobre Bertram, e não sei onde encontrar maridos apropriados para todas vocês nesta sociedade tão limitada. Bem, eu suspeito que seu pai não iria gostar que eu falasse com tanta franqueza com você, mas você é uma garota sensível, Arabella, e eu não tenho nenhuma objeção em ser honesta com você. Se eu conseguir lhe dar uma posição respeitável, talvez você possa cuidar de suas irmãs, e se tiver a sorte de casar com um cavalheiro bem situado, talvez possa ajudar Bertram a adquirir um bom lugar no regimento. Eu não estou dizendo que você deva pedir ao seu marido para comprá — la, é claro, mas ele pode ter influência sobre O Regimento Real de Cavalaria, ou algo assim.
Arabella assentiu com a cabeça, pois não era novidade para a ela que, sendo a mais velha de quatro irmãs, esperava — se que se casasse com um bom partido. Ela sabia muito bem que era seu dever. — Mãe, farei o meu melhor para não a decepcionar, ela disse de todo o coração.
* * *
Capítulo 2
Os filhos do pastor não tinham escrúpulos em expressar sua opinião de que sua mãe devia ter tido dificuldade para convencer o pai sobre a ida de Arabella. Para ele, havia poucas coisas mais desagradáveis do que a vaidade e a busca do prazer e, embora ele nunca se opusesse que sua mãe acompanhasse Sophia e Arabella aos salões de Harrowgate, e inclusive fazia alguns comentários favoráveis em relação aos seus vestidos, sempre lembrava que o abuso destas diversões, inocentes em si mesmas, poderia arruinar o caráter da mais virtuosa das senhoras. Não gostava de encontros sociais e em numerosas ocasiões, tinham — no ouvido repreender severamente a vida fútil e frívola que levavam as mulheres modernas. Além disso, apesar de saber apreciar uma boa piada, ele não gostava da inconsequencia e não tolerava os comentários superficiais e se a conversa derivava para assuntos mundanos, sempre mudava para outros assuntos.
Mas o convite de Lady Arabella Bridlington não pegou de surpresa o pastor. Ele sabia que sua esposa tinha escrito a sua velha amiga e, embora não apreciasse o principal objetivo da visita de sua filha a Londres, alguns dos argumentos apresentados pela senhora Tallant para convencê — lo eram irrefutáveis.
— Meu querido marido, não vamos discutir as vantagens de um casamento adequado. Até você reconhece que Arabella é uma jovem de rara beleza.
Ele admitiu, acrescentando, pensativo, Arabella era muito parecida com ela, sua esposa, quando tinha a mesma idade. Ela não ficou imune a este elogio: corou e adotou uma expressão um tanto maliciosa, mas disse que ele não devia tentar engabelá — la (uma palavra que havia aprendido com seus filhos.)
— Tudo que eu quero que você entenda é que Arabella merece se movimentar nos melhores círculos, explicou.
— Minha querida esposa, respondeu o sacerdote dando — lhe uma mirada sorridente, “se acreditar em você, talvez deva considerar o meu dever demonstrar que a ambição de freqüentar os melhores círculos, como você os chama, é uma idéia louca. Eu não gostaria que minhas filhas aspiram — se a ele. Mas estou convencido de que você tem mais argumentos para apresentar, eu irei me conter e simplesmente peço — lhe para continuar.
— Bem, ela continuou, sinceramente me corrija se eu estiver errada, mas acho que não contemplas com agrado uma aliança com os Drayton de Knaresborough. — O pastor se quedou boquiaberto e dirigiu um olhar inquisidor a sua esposa. — O jovem Joseph Drayton se mostra particularmente atencioso, acrescentou gravemente. Observou o efeito de suas palavras e continuou em tom suave: Eu sei que é considerado um partido muito bom, vai herdar a fortuna do pai. O pastor não pode evitar um comentário muito pouco cristão..
— Eu nunca o consentirei! É um comerciante vulgar!
— Exatamente, concordou a Sra. Tallant, satisfeita. Mas há seis meses não se separa de Arabella. — Você está me dizendo que minha filha encoraja suas atenções?
— Com certeza não! Sua esposa se apressou em negar. Não as incentiva mais do que incentiva as que lhe dedica o coadjutor, o jovem Dewsbury, Alfred Hitchin, Finchley Humphrey ou uma dúzia de outros jovens solteiros. Arabella, querido marido, é a garota mais popular da região. — Meu Deus! Exclamou o padre, sacudindo a cabeça com espanto. Devo confessar, minha esposa, que eu não gostaria que qualquer um destes jovens se tornar — se seu marido. — “Então talvez acalente esperanças de ver sua filha Arabella casada com seu primo Tom. — Eu nunca quis nada disso! Disse o pastor com veemência. E acrescentou em um tom mais moderado: — Meu irmão é um homem muito respeitável, tanto o que lhe permite a sua inteligência, e desejo o melhor para seus filhos. Mas, por razões diversas que não vejo necessidade em enumerar, não quero que nenhuma das minhas filhas se case com um de seus primos. Além disso, estou certo que meu irmão tem outros planos para Tom e Algernon. — Sim, eu também acho, concordou Mrs. Tallant cordialmente. Ele está determinado a casá — los com uma herdeira.
O marido olhou para ela com incredulidade.
— Minha filha mostrou algum interesse para com esses jovens?
— Acho que não. Em outras palavras, não mostra preferência por nenhum deles. Mas quando uma menina não conhece outros cavalheiros além daqueles que vivem atrás dela deste que deixou a sala de aula, como você quer que acabe este assunto, meu querido marido? — E o jovem Drayton, acrescentou ela, pensativa — tem uma fortuna considerável. Eu não estou sugerindo que Arabella tenha isso em mente, mas é inegável que um cavalheiro que dirige um cabriolé elegante e pode se dar ao luxo de suplicar a uma jovem que aceite todos os caprichos mais elegantes, tem uma clara vantagem sobre os seus rivais.
Houve um silêncio tenso e o pastor aproveitou para absorver o impacto dessas palavras. — Eu estava esperando que algum dia se apresentasse um bom partido ao qual eu entregaria de bom grado a minha filha Arabella, disse ele depois de um certo tempo. A Sra. Tallant deu — lhe um olhar indulgente.
— Muito provavelmente, meu caro, mas seria absurdo pretender que essas coisas acontecem quando você não fez nada para as propiciar. O bons partidos não aparecem magicamente nas cidades: é preciso ir atrás deles. Ela percebeu que o pastor estava um pouco aflito, e riu. E não me diga que não foi assim no nosso caso, porque você sabe muito bem que eu o conheci em uma festa em York. Admito que minha mãe não me levou para lá na esperança de que eu me apaixonasse por você, mas tem que aceitar que se eu tivesse ficado em casa esperando por você, nunca teríamos nos conhecido.
O pastor sorriu.
— Seus argumentos são sempre atraentes, querida esposa. E, no entanto, não gosto da idéia. Eu sei que Arabella é muito boa e obediente, mas ela ainda é jovem e às vezes eu penso que sem a devida
orientação sua natureza pode traí — la e fazê — la cair em uma conduta imprópria. Temo que sob o teto da senhora Bridlington leve uma vida dissipada que mais tarde poderá prejudicá — la. — Asseguro que é uma menina muito dócil para provocar um único momento de preocupação, disse ela suavemente. Também estou convencida de que seus princípios são sólidos o suficiente para permitir que ela perca a cabeça. Ela tem uma tendência à melancolia, e isso, meu marido, porque ainda não teve as vantagens da cidade grande. Não tenho dúvidas de que vai melhorar muito se passar uma temporada com Bella Bridlington. E se ela estabelecer uma relação conveniente, que é apenas uma hipótese, estou certa de que ninguém ficaria mais feliz do que você.
— Sim, ele admitiu com um suspiro. Eu ficaria feliz em vê — la confortavelmente estabelecida, é claro, e tornando — se a esposa de um homem respeitável.
— Em vez de casada com o jovem Dewsbury.
— Claro que sim! Duvido que uma das minhas filhas fosse feliz com um homem que não tenho escolha a não ser considerar muito vulgar.
— Nesse caso, querido, continuou Mrs. Tallant, levantando — se, escreverei para Lady Bridlington aceitando o seu amável convite.
— Faça o que você considerar mais adequado. Nunca interfiro com o que acha mais adequado para as suas filhas.
E assim foi, às quatro da tarde daquele dia memorável, quando o pastor se reuniu com sua família em torno da mesa de jantar, surpreendeu a todos fazendo um comentário engraçado sobre a viagem de Arabella. Nem Betsy tinha se atrevido em falar do plano, porque todos assumiram que o sr Tallant o desaprovaria. No entanto, quando após abençoar a mesa e os membros da família que estavam sentada ao redor dela, Arabella começou a trinchar, sem muito empenho, a carne de uma das bandejas, o pastor, ao ver como sua filha punha uma destroçada asa de frango em um prato quebrado, disse com uma piscadela:
— “Eu acho que Arabella deve aprender a trincar a carne antes de partir para Londres, ou vamos todos cair no ridículo com sua imperícia. Veja querida, não deve jogar o prato sobre o seu vizinho, como parece que você está prestes a fazer neste momento.
Arabella corou e protestou. Sophia, a primeira a se recuperar do choque de ouvir seu pai falar com esse bom humor do projeto londrino, disse:
— “Mas Pai, isso não importa, pois certamente ali os pratos são servidos por lacaios nas mansões. — É verdade, Sophia, admitiu o sacerdote humildemente.
— Lady Bridlington tem muitos lacaios? Betsy perguntou, deslumbrada com esta imagem de opulência.
— “Um atrás de cada cadeira, Bertram se apressou a responder. E um para acompanhar Arabella sempre ela que quiser sair e dois para ir atrás de seu coche, e eu calculo que uma dúzia para formar uma avenida na entrada cada vez que milayd precisar colocar mais guardanapos na mesa
para os seus convidados. Quando Arabella voltar para casa não se recordará de como se abaixar para pegar um lenço no chão.
— Não sei como você vai lidar com uma casa como esta, disse Betsy, que acreditava no que havia dito o seu irmão.
— Nem eu! Arabella murmurou.
— Espero que ela se abaixe exatamente como faz nesta casa, disse o pastor. Seu comentário foi recebido em silêncio. Bertram deu um sorriso maroto para Arabella e Harry deu — lhe uma cotovelada casualmente
— Sim, Pai, mas não sei como vai fazê — lo, arriscou finalmente Margaret, que, com a testa enrugada, estava pensando nas palavras do pastor. Deve ser tudo muito diferente do que estamos acostumados. Não me surpreende, por exemplo, que tenha que usar vestidos de noite todos os dias, e estou certa de que ela não precisará ajudar na cozinhar ou engomar roupa ou alimentar as galinhas, ou ... ou algo assim.
— Não me referia exatamente a isso minha querida, retrucou o pastor. — Não tem que fazer nenhum trabalho? Exclamou Betsy. Eu gostaria de ter uma madrinha muito rica!
Esse comentário inadequado fez com que o Sr. Tallant tomasse uma expressão de profundo desagrado. Os membros da família perceberam que as palavras de Betsy haviam conjurado a imagem de uma filha completamente entregue aos prazeres o que não era algo que ele poderia olhar com um sentimento diferente de intensa suspeita. Betsy foi objeto de vários olhares de desaprovação por seus comentários indiscretos e as irmãs teriam, sem dúvida, que suportar uma palestra sobre os perigos da ociosidade. No entanto, antes do sacerdote poder falar, a Sra. Tallant interveio, repreendendo Betsy por falar muito.
— Bem, disse ela risonha, e eu acho que seu pai vai concordar que Arabella é uma boa menina e que ela merece esta indulgência mais do que qualquer uma de vocês. Garanto — lhes que eu não sei como vou passar sem ela, porque sempre que eu quero alguém para me ajudar a realizar alguma tarefa, eu posso confiar em Arabella. E o mais importante: nunca faz cara feia, ou se queixa de estar aborrecida ou de mau humor, porque eu concertei um vestido em vez de comprar um novo. Não se podia esperar que este magistral discurso agradasse as três jovens a quem foi dirigido, mas teve o efeito benéfico de suavizar a expressão do pastor. O Sr. Tallant olhou Arabella, muito vermelha e de cabeça baixa olhando para o prato.
— Certamente, disse o pastor, em um tom conciliador, eu acho que Arabella tem provado ser uma menina muito sensível e de sentimentos muito bons.
A própria levantou rapidamente os olhos lacrimejantes.
— Se você controlar a sua língua e não se expressar com termos que eu suponho que aprende com seus irmãos, acrescentou o pai rindo, nem se envolver em piadas próprias de garotos, estou convencido de que posso esperar que lady Bridlington não vá encontrar nada para censurá — la.
Tal foi o alívio que sentiram os seus filhos de se livrar de um dos sermões de seu pai, que a piada foi recebida com um caloroso e lisonjeiro reconhecimento. Bertram aproveitou a oportunidade que lhe rendeu os alegres protestos dos irmãos para informar a Betsy, em um tom ameaçador, que se ela abrisse a boca outra vez ele a jogaria na lagoa dos patos e a promessa aterrorizou tanto a pequena que ela não abrir a boca pelo resto da refeição. Sophia, mostrando sua nobreza de caráter, pediu ao pai para explicar uma passagem que havia lido na história da Pérsia de Sir John Malcolm, uma obra que o pastor (que somente se permitia o luxo de comprar livros) tinha recentemente adicionado à sua biblioteca. Foi uma idéia muito boa: enquanto seus irmãos olhavam com espanto para Sophia, seu pai, muito animado, falou longamente sobre o assunto, esquecendo outros problemas mais imediatos e reduzir o resto dos seus filhos a um estado de indignação silenciosa, quando, ao deixar a mesa, disse que estava contente por ver que pelo menos tinha uma filha com habilidades intelectuais.
— Sophy nunca leu uma única linha do livro! Bertram exclamou amargamente quando, depois de aguentar uma noite no salão com o pastor lendo em voz alta, várias passagens da obra memorável de Sir John Malcolm, ele e suas duas irmãs mais velhas conseguiram escapar para o abrigo do dormitório das meninas.
— Sim, eu li! Sophia protestou, sentando — se ao pé da cama e dobrando as pernas sob o corpo de uma forma que, se fosse vista por sua mãe, sem dúvida, teria ganhado uma bronca. Margaret, que sempre mandavam para a cama antes da bandeja de chá aparecer, e por essa razão tinha escapado da maior parte da enfadonha noite, levantou — se, abraçou os joelhos e perguntou: — Por quê?
— Foi no dia em que a mamãe teve que sair e me pediu para ficar no salão, pois ela ia visitar a Sra. Farnham, disse Sophia. Eu não tinha mais nada para fazer.
Depois de olhar para ela por um momento, seu irmão e irmãs decidiram, aparentemente, que a desculpa era razoável, porque decidiram considerá — la resolvida.
— Eu asseguro que você não sabia onde enfiar a cara quando o pai falou nesses termos para mim, disse Arabella.
— Sim, Bella, mas você sabe que ele é muito esquecido, disse Sophia, eu acho que ele não se lembra do que fez Bertram em 26 de dezembro passado, ou o que disse sobre o seu amor pelos enfeites, quando você arrancou as penas do pavão do nosso tio para adornar o seu velho chapéu. — Sim, talvez ele tenha esquecido, admitiu Arabella, desanimada. Mas, de qualquer maneira, disse ela, nunca alegou que eu não tivesse princípios, nem quando descobriu que tinha sido você, Sophy, que havia colocado um botão das calças Harry na caixa da igreja naquele domingo . Sophia não conseguia pensar em nada para defender — se desta acusação. — Bem, como está decidido que você irá a Londres, Bella, eu vou lhe dizer uma coisa, Bertram disse de repente.
Apesar ter dezessete anos que Arabella conhecia o seu irmão mais novo, a jovem não pôde evitar perguntar muito interessada:
— O que você tem para me dizer?
— Talvez quando você chegar lá, você receba uma surpresa”, disse Bertram em tom misterioso. Eu não digo que você vai recebê — lo, mas pode recebê — lo.
— O que você quer dizer? Diga — me, Bertram! Querido Bertram, por favor! — Me toma por tolo? As meninas vão saber de tudo!
— Não vou revelar! Você sabe que eu não vou! Bertram, por favor! — Não faça caso, recomendou Margaret recostada no seu travesseiro. Ele está provocando você. — Você está errada, senhorita, respondeu seu irmão, irritado. Mas eu não falarei. No entanto, Bella, não se surpreenda que quando estiver a pouco tempo em Londres, receba uma surpresa. A atitude de Bertram fez que suas irmãs se pusessem a gritar. Infelizmente, o seu entusiasmo chegou aos ouvidos da velha babá, que irrompeu na sala e também deu um estridente sermão sobre a incorreção dos jovens cavalheiros de ficarem sentados ao pé da cama de suas irmãs. Como a velha senhora era muito capaz de relatar essa surpreendente conduta a sua mãe, Bertram achou prudente se levantar, e a conversa foi abruptamente interrompida. Depois de soprar as velas, a babá assegurou que se sua mãe descobrisse o que aconteceu, a senhorita Arabella poderia esquecer a viagem para Londres. No entanto, o incidente aparentemente não chegou aos ouvidos da senhora Tallant e na manhã seguinte, e durante todos os dias posteriores, na reitoria não se falou em outra coisa (exceto na presença do pastor) além da introdução de Arabella na boa sociedade.
O primeiro e mais urgente fator a ser considerado era reunir um guarda — roupa adequado para uma jovem que esperava ser corretamente apresentada a sociedade. A análise detalhada das revistas de moda tinha deixado Arabella em um estado de profundo desespero, mas a mãe encarava o assunto com maior otimismo. Ela ordenou a seu criado para buscar o onipresente Joseph Eccles para que ambos descessem do sótão dois baús enormes. Joseph, que trabalhava em uma fazenda do pastor desde que este se casara, era considerado o esteio da casa, de modo que estava muito disposto a agradar as senhoras. Ele ficou no quarto, dando conselhos e apoio com o seu sotaque de Yorkshire, até que foi despachado gentilmente, mas com firmeza. Quando as tampas dos baús foram levantadas, um cheiro agradável de cânfora permeou o ambiente, e quando foi removida uma cobertura de papel prateado foram expostos inúmeros tesouros. A Sra. Tallant disse, que os baús continham todas as roupas elegantes que ela usara quando era jovem e imprudente como Arabella. Após se casar com o pastor não teve oportunidade de usar essas bobagens, mas foi incapaz de se livrar deles, de modo que foi guardada e esquecida. Três gritos de puro êxtase foram ouvidos quando as três meninas ajoelharam — se próximo aos baús e se prepararam para remexer no interior.
Os baús estavam cheios de maravilhas inimagináveis: plumas de avestruzes de várias cores, bouquets de flores artificiais, uma estola de vison (sim, infelizmente, era amarela, mas serviriam para costurar um debrum no casaco antigo de Sophy), uma máscara, um conjunto de renda delicada com uma camada de gaze que Margaret se pavoneou ao redor da sala, vários metros de
fita num tom de que a Sra. Tallant disse na época era chamado Opera Brulé, e era muito elegante, lenços de gaze, rendas, lantejoulas e uma caixa cheia de nós intrigantes de fita, cujo nome sua mãe não podia se lembrar, mas acreditava que a cor azul era um “sinal de esperança”, e o laço rosa “um suspiro de Vênus”, escofietas e rendas, um tocador de plumas; inúmeras faixas, uma saia de damasco carmesim com flores – que elegante deveria ter ficado a sua mãe com ela!! — uma capa de veludo com caimento maravilhoso: um presente de casamento de sua mãe, mas que quase nunca tinha usado porque, querida, era mais elegante do que qualquer um dos itens que sua tia possuía e, afinal, ela era a esposa do Squire e me professava um carinho tão grande, que eu sempre tentei não a ofender de alguma forma. Mas é uma maravilhosa pele, e serve para fazer um casaquinho para Arabella, e também para fazer uma gola para um abrigo. ” Felizmente, sua mãe era uma pessoa tolerante, e muito dada a brincadeiras, porque os baús também continham, além dos tesouros, itens antiquados que as três senhoritas Tallant foram incapazes de deixar de rir. A moda mudou muito desde então, e para uma geração acostumada a vestidos de cintura alta de chiffon e crepe, com mangas bufantes e curtas com babados recatados em torno da gola, os volumosos vestidos de seda e de brocado Sra. Tallant com suas célebres saias, almofadas e sutiãs com fio, parecia não só arcaicos, mas também feios. O que era este casaco tão largo e fino? Um casaco para se usar por dentro, ou seja, uma camiseta? Que estranho! “E esse vestido que parecia um manto listrado? Sua mãe usava isto em público? Que havia de elegante nisso? Poudre à la Maréchale ! Mas será que sua mãe usava o cabelo empoado como no retrato que vovó Tallant tinha na mansão? Não, nem tanto! Com um pó cinza? Não me diga isso, mamãe! E você não tem um único cabelo cinza! Como você penteava seu cabelo? Nunca o cortou? Os seus cabelos chegavam até a cintura? E com cachos atrás das orelhas! Como ela poderia ter a paciência de suportar? E o que era estranho, muito!
Mas a Sra. Tallant, olhando os vestidos que tinha quase esquecido, sentiu — se nostálgica lembrando — se do vestido de tafetá verde italiano com um brilho acetinado chamado de soupir d’étouffe que usara no dia que conhecera o seu marido. Recordou — se do elogio do baronete que havia rejeitado, quando viu um vestido de seda branca que Sophia estava segurando (com uma cauda de musselina e também deveria haver um casaco de seda rosa, muito elegante para pôr com ele), recordou — se de como ficou espantada quando viu aquele calção de chiffon rosa indiana que Eliza — Sua tia Eliza, querida — tinha comprado em Londres.
As meninas não entenderam a expressão de sua mãe quando ela suspirou ao olhar para um vestido vermelho cereja listrado, porque na verdade ele era um tanto espalhafatoso e quase sentiu incomodada ao pensar que havia sido vista em público com semelhante traje. Elas não se atreviam a rir e mantiveram um silêncio respeitoso, mas sentiram um alívio profundo quando, de repente, sua mãe deixou esta expressão incomum e disse sorridente com sua habitual vivacidade: — “Bem, vocês acham que eu deveria parecer uma idiota, mas eu garanto que não era assim. Entretanto, nenhum desses brocados servirá Arabella, então vamos guardá — los novamente. Mas com este cetim cor de palha podemos costurar um belo vestido de baile no qual poremos um laço como guarnição.
Em High Harrowgate vivia uma costureira de idade, uma francesa que tinha vindo para a Inglaterra para escapar da Revolução. Fez muitos vestidos para a Sra. Tallant e suas filhas, e como ela tinha bom gosto e não cobrava preços exorbitantes, exceto durante a curta temporada, ela decidiu
confiar — lhe a tarefa de costurar os vestidos para Arabella. No primeiro dia que puderam dispor dos cavalos, a Sra. Tallant e suas duas filhas mais velhas foram para High Harrowgate, carregadas com três caixas de chapéu cheio de sedas, veludos e rendas que tinham sido escolhidos do tesouro da Sra. Tallant.
Harrowgate, uma cidade entre Heythram e Knaresborough, era mais famosa por suas excelentes fontes medicinais do que pela modernidade de seus visitantes. Ela consistia por dois povoados que cresceram de forma desordenada, separados por um par de milhas, e só desfrutavam de breve temporada de verão. Como cerca de mil pessoas, a maioria idosos, que a frequentavam para beber as águas, as duas cidades e arredores se gabavam de ter mais hotéis e pousadas que residências particulares. De maio até a festa de São Miguel, havia bailes públicos duas vezes por semana nos novos salões e um grande salão de baile em um belo parque, um teatro e uma biblioteca, muito freqüentada pelas filhas da Sra. Tallant.
Madame Dupont ficou encantada ao receber uma cliente em meados de janeiro e prontamente se inteirou da razão para a confecção de um guarda — roupa tão completo, e se preparou para executar a tarefa com um entusiasmo tipicamente francês, louvou as sedas e os cetins das três caixas de chapéu e mostrou as damas os figurinos e os rolos de cambraia, musseline e crepe. Ela disse que seria um prazer trabalhar para uma demoiselle com um taille como o da mademoiselle Tallant. Podia imaginar como a polonesa de Madame Tallant se transformaria em um vestido de baile verdadeiramente divino, e quanto ao casaco de tafetá — sim, os modelos elegantes do século passado já não estavam na moda — não deveriam duvidar que nada seria mais comme il faut que uma capa de ópera feita deste material, e forrada com veludo plissado. Quanto ao custo, ela estava convencida de que chegariam a um acordo amigável.
Arabella, que geralmente tinha o seu próprio jeito de fazer as coisas e ideias muito definidas sobre a cor eo estilo de suas roupas, ficou impressionada com a quantidade de roupa que sua mãe e Madame Dupont consideravam indispensável para passar a temporada em Londres, e quase não abriu a sua boca, exceto para dar a sua aprovação, com um fio de voz, quando lhe perguntaram. Quanto a Sophia, que tantas vezes recebeu a reprimenda do pastor para falar pelos cotovelos, estava tão muda quanto a sua irmã. Os trajes que ela tinha visto na The Ladies’ Monthly Museum não a tinha preparado para as criações surpreendentes tiradas da La Belle Assemblée . Mas a Sra. Tallant e Madame Dupont concordaram que somente os modelos mais simples eram convenable para uma jovem da idade de Arabella. Só precisava de um ou dois vestidos de baile de cetim ou seda para ocasiões especiais, mas para ir ao Almack´s nada havia de mais seguro, disse madame, que o crepe e o el jaconet . Um pouco de lamé talvez, mostrou — lhes a ilustração, ou um xale Norwich, negligentemente pendurado nos cotovelos, eles dariam cachet ao vestido mais simples. E o vestido da manhã, o que lhes parecia uma musselina francesa com cauda curta? Ou mademoiselle preferia a seda de Berlín, forrado com seda também? Para vestidos de passeio, recomendamos um vestido de cambraia com um manto de veludo e um chapéu Waterloo, ou até mesmo um chapéu de peles, a tez de mademoiselle o permitia, inclusive era necessário, com um ramo de cerejas.
Vestidos de dia, de tarde, de passeio, para andarem de carruagem, de baile... Sophia e Arabella acreditavam que a lista nunca teria fim.
— Eu não sei se terás tempo para usá — los todos, disse Sophia no ouvido de sua irmã.
— Sapatos, botas, bolsas, luvas, meias, murmurou a senhora Tallant, revendo sua lista. Estes ainda lhe servirão por um tempo. Você deve ter muito cuidado com as meias de seda, minha filha, porque eu não posso comprar muitos pares. Chapéus... aha! É uma sorte que eu tenho guardado todas as penas de avestruz. Vamos ver o que podemos fazer com eles. Eu acho que é suficiente por hoje. — Mãe, o que Bella usará quando for ao salão da corte? Sophia perguntou. — Ah, pour ça, alors, la grande parure ! Disse Madame com os olhos brilhando. — Um vestido de gala, minha querida, disse a Sra. Tallant frustrando essas incipientes esperanças. Cetim, eu diria. Com penas, é claro. Eu não sei se eles ainda usam as armações na corte. Lady Bridlington quer dar o vestido a sua irmã, e tenho certeza que ele vai escolher o mais adequado. Venha querida! Se formos visitar seu tio em casa, temos que nos apressar. — Visitar o tio? Sophia repetiu surpresa.
A Sra. Tallant corou um pouco, mas respondeu com facilidade:
— “Claro, minha filha. Por que não? Além disso, não devemos negligenciar a observância de civilidade, e estou certo de que ele ficaria muito surpreso se não fosse informado da próxima viagem de Arabella para Londres.
Sophia enrugou um pouco a testa diante desta perspectiva, pois apesar das crianças visitarem frequentemente a mansão e seus jovens primos fossem muito a reitoria, as visitas entre seus respectivos pais eram raras. O squire e seu irmão, apesar de manterem uma relação muito correta, não tinham quase nada em comum, e se contemplavam com afável desdém. A falecida Lady Tallant, além de sofrer as desvantagens inerentes a uma natureza ciumenta tinha sido, mesmo levando — se em conta a caridosa opinião do cunhado, uma mulher muito vulgar. O casal teve dois filhos: Thomas, um bucólico jovem de 27 e Algernon, que estava atualmente na Bélgica com seu regimento.
A mansão, situada em um belo parque, um pouco mais de um quilômetro da aldeia de Heythram, era um edifício espaçoso e despretensioso construído com grandes pedras da região. A nota dominante do mobiliário e da decoração era mais o conforto do que a elegância, e tinha, apesar dos cuidados de uma excelente governanta, o ar indefinível de uma residência onde a mulher estava ausente da casa. O squire estava mais interessado nos seus estábulos que em sua casa. Ele era considerado um homem afável, mas cauteloso, e embora ele amasse seus sobrinhos e sobrinhas, e sempre fornecesse um cavalo a Bertram durante a época de caça, o carinho que tinha por eles não o movia a dar — lhes mais que um guinéu a cada um deles no Natal. Mas ele era hospitaleiro, e sempre parecia contente em acolher a família de seu irmão. Quando o coche da reitoria parou na sua porta, saiu correndo da casa gritando: — Bem, bem! Mas se não é a Sophia e as meninas! Que alegria! Mas como? Apenas duas de vocês vieram? Não importa! Passem e tomem um copo de vinho. Está muito frio, certo? A terra está dura como ferro, não sei quando poderemos sair.
Sem parar de falar, levou as mulheres a uma pequena sala quadrada na frente da casa, e só interrompeu o monólogo para gritar para alguém que lhes levasse um refresco na sala. Em seguida,
olhou suas sobrinhas, e declarou que elas estavam mais belas do que nunca, depois pediu para ser informado quantos eram os pretendentes das duas. As meninas não precisaram responder a essa jocosa pergunta porque seu tio voltou — se imediatamente para a Sra. Tallant e disse: — Apesar de não chegarem aos pés de sua mãe. Faz uma eternidade que não a vejo, Sophia. Não sei por que o pobre Henry e você não vêm me visitar com mais freqüência. Como está meu irmão, afinal? Claro que absorvido em seus livros. Eu nunca conheci ninguém como ele! Mas você não deve deixá — la contaminar o jovem Bertram, minha querida: é um jovem estupendo, não um rato de biblioteca.
— Bertram se preparando para entrar em Oxford, Sir John. Você sabe que ele tem que estudar. — Acredite em mim, ele não irá fazer nada de bom lá! Opinou o squire . Seria melhor se juntar ao exército, como o meu pequeno malandro. Mas diga — lhe para vir ao meu estábulo se ele quiser ver um cavalo magnífico: tem uma cauda e um jarrete espetaculares e ancas impressionantes. Eu não me importo que o menino o monte se o desejar, mas ainda é jovem e deve ser ensinado. Diga a Bertram para vir quando o frio terminar. Diga — lhe que o castanho foi ferido na perna, mas se ele quiser, pode montar Thunderer.
— Eu acho, respondeu Mrs. Tallant dando um pequeno suspiro, — que seu pai não quer que saia para caçar nesta temporada. Isso iria distraí — lo de seus estudos, o pobre menino. — Henry é muito rigoroso. Não se contenta com o que James seja tão intelectual como ele? Onde está o mais velho? Em Oxford, certo? Bem, todo mundo faz como lhe agrada. E o seu outro menino? Qual é seu nome? Harry! Eu gosto do olhar que ele tem, como eu diria. Diz que quer ser um marinheiro. Como você pensa consegui — lo?
A Sra. Tallant explicou que um dos seus irmãos estava disposto a ajudar Harry. O squire ficou satisfeito, perguntou sobre a saúde de seu afilhado e homônimo, e se dispôs a servir frios e vinho para suas convidadas. Passou algum tempo até que elas tivessem a oportunidade de revelar o motivo da viagem: quando a torrente de sua conversa se acalmou um pouco, Sophia, que mal podia conter a impaciência, de repente, disse:
— Sabe que Arabella está indo para Londres, senhor?
O squire olhou para Sophia e, em seguida, Arabella.
— Como? O que você disse? Como assim?
A Sra. Tallant, olhando com desaprovação para a filha Sophia, explicou o assunto. Ele ouviu com atenção, balançando a cabeça, franzindo os lábios como ele fazia quando algo lhe interessava. Depois de refletir um momento, concluiu que era uma excelente ideia, assim felicitou Arabella por sua boa fortuna. Mais tarde, ele expressou sua esperança de que a boa sorte a acompanhasse em sua relação com os galãs da cidade, invejava o afortunado que iria ganhar o seu amor e profetizou que ela iria suplantar todas as belezas de Londres, e teria seguido desta maneira, se a Sra. Tallant não tivesse cessado os seus cumprimentos ao sugerir que as filhas queriam ir para o quarto da empregada, para saudar a boa Sra. Paignton, que sempre foi tão amorosa com elas. Os estilo dos elogios do squire não estava a seu gosto, e também queria falar em particular com o cunhado.
Ele tinha muitas perguntas e comentários a fazer. Quanto mais pensava sobre os planos da Sra. Tallant, mais gostava da idéia, porque, embora ele amasse a sobrinha, e a considerasse uma jovem extraordinariamente bela e jovem, não queria vê — la convertida em sua nora. Apesar de não ser um homem particularmente inteligente, nem muito desconfiado, nos últimos tempos percebeu que seu herdeiro tinha se interessado pela sua sobrinha. Ele não achava que Tom sentia uma forte afeição por sua prima, e esperava que, Arabella saindo da região, ele logo iria se recuperar de sua paixão e direcionar suas atenções para uma outra jovem mais adequada. O fidalgo tinha encontrado uma jovem conveniente para Tom, mas ele era um homem justo, e não tinha escolha senão admitir que ela não poderia se comparar com Arabella. Portanto, nada dos planos da senhora Tallant poderia tê — lo agradado mais. Aprovou o projeto e elogiou a sabedoria de sua cunhada.
— Sim, não há necessidade de me dizer que tudo isso é idéia sua, Sophia. O pobre Henry nunca teve um bom julgamento. É um homem bom, é claro, mas quando um homem tem tantas crianças precisa ser um pouco mais inteligente do que ele. Em vez disso você está atenta, querida. Você está fazendo exatamente o que precisa: a menina é muito bonita, e fará um grande sucesso em Londres. Sim, você deve começar a fazer os preparativos para o casamento, antes que seja tarde demais! Lady Bridlington, certo? Tenho entendido que é uma pessoa importante na cidade. Eu não poderia pensar em ninguém melhor! Mas isso vai custar — lhe muito dinheiro. — Sim, Sir John, você está certo, admitiu a Sra. Tallant. Vai custar muito, mas eu acho que quando uma oportunidade como esta se apresenta, devemos fazer o possível para levá — la a um bom termo.
— Claro, você está investindo seu dinheiro em uma boa causa. Mas você confia que Lady Bridlington saberá manter longe os oficiais de segunda e os outros indivíduos da mesma espécie? Imagine se ela fugisse com algum tipo sem um tostão. Seria jogar tudo fora!
A mesma idéia já tinha passado pela sua cabeça em mais de uma ocasião o que não contribuiu para que este comentário fosse agradável a sra Tallant. Ela o considerou extremamente vulgar, de modo que respondeu em um tom repreensivo que tinha plena confiança na sabedoria de Arabella. — É melhor avisar a sua amiga, recomendou Sir John. Você sabe, Sophia, que sua filha tem que agarrar um homem decente, e por Deus não vejo por que não, isto será muito benéfico para suas irmãs. Sim, quanto mais eu penso mais eu gosto. É um bom investimento. Quando ela vai? Como você vai mandá — la para lá?
— Ainda não está determinado, Sir John, mas se a Sra. Caterham não mudar de planos e dispensar Miss Blackburn no próximo mês (e você deve saber já que é sua governanta), ela pode viajar com Arabella. Eu acho que ela mora em Surrey, assim terá de passar por Londres. — Mas não pensa em enviar Bella pela diligência, não é verdade?
A Sra. Tallant suspirou.
— Querido Sir John, eu não posso pensar em enviá — la em um carro de posta. É muito caro. Admito que a idéia não me agrada, mas você sabe que os pobres nem sempre podem escolher. O squire ficou pensativo.
— De jeito nenhum, ele meditou. Não, não pode ser. Como vai se apresentar na casa de sua rica amiga em um carro alugado? Devemos pensar em algo, Sophia. — Deixe — me ver... Sentou — se e ficou um tempo olhando o fogo na lareira, enquanto sua cunhada olhava pela janela perdida em pensamentos, tentando não pensar no que diria o seu sensato marido se descobrisse o que sua esposa estava fazendo.
— Eu tenho a solução, Sophia! Saltou de repente o squire . Bella vai para Londres no meu coche. Não faz sentido gastar dinheiro em uma diligência: sua filha não se importará de viajar em um veículo um pouco mais lento. Além disso, carros de posta não conseguiriam levar toda a bagagem que eu acho que ela levará, e além disso, como você mencionou também implica em levar a sua governanta.
— Seu coche de viagem! Exclamou Mrs. Tallant perplexa.
— Exatamente. Eu nunca uso. Ele não saiu da garagem desde a morte da minha pobre Eliza. Ordenarei aos meus criados para prepará — lo, ele não é um daqueles caleches elegantes e modernos, mas é um bom coche. Comprado por Eliza quando nos casamos, e meu emblema está gravado na porta. Você não estaria tranquila se a menina fosse conduzida por postilhões desconhecidos: é muito melhor ser conduzida pelo meu antigo cocheiro, e também enviar um dos lacaios para acompanhá — la com uma arma no bolso em caso dela encontrar obstáculos. Ele esfregava as mãos, satisfeito com seu plano, e começou a calcular quantos dias levaria um forte par de cavalos (ou, se necessário, até quatro), para chegar a Londres sem se cansar muito. Ele pensou que seu plano iria funcionar muito bem, e que Arabella não se importaria de parar de vez em quando para que os animais pudessem descansar. Poderia viajar em cômodas etapas, concluiu. A Sra. Tallant refletiu e concluiu que o plano de seu cunhado era altamente recomendado. O inconveniente de deter — se em várias pousadas da estrada foi compensado pelos benefícios de saber que o carro seria guiado por um cocheiro de confiança, e poderia levar, como apontado pelo squire , todos os baús e caixas de chapéu no veículo, ao invés de enviá — los a Londres através de uma companhia de transporte. Então lhe agradeceu, e ainda estava expressando sua gratidão quando as duas jovens entraram na sala.
Sir John cumprimentou Arabella alegremente, beliscou o seu rosto e disse: — Bem, pequena, estão me contando que vais ser introduzida na sociedade. Você deve ser estar muito animada. Ouça, sua mãe e eu estivemos conversando e decidimos que você irá para Londres em grande estilo, no coche do seu pobre tio, com seu cocheiro Timothy. O que você acha, querida? Arabella, que tinha maneiras muito boas, agradeceu e garantiu que lhe parecia estupendo. Sir John ficou satisfeito, disse que ficaria satisfeito se ganhasse um beijo e em seguida saiu da sala pedindo — lhe para esperar, porque tinha uma coisa para ela. Quando voltou, encontrou suas hóspedes preparado — se para sair. Apertou as suas mãos com muito carinho, e na de Arabella colocou uma nota dobrada, e disse:
— Aqui, para que te permitas algum capricho, pequena.
Arabella ficou muito perturbada, pois não esperava nada parecido de seu tio. Corou, agradeceu e disse — lhe que era muito amável. Seu tio, complacente, olhou para ela sorrindo e apertando seu rosto mais uma vez, muito orgulhoso de si mesmo e de sua sobrinha. — Mas, mãe, disse Sophia quando elas deixaram a mansão, você não pode permitir que Arabella vá para a cidade em um coche tão antiquado como o do meu tio.
— Não fale bobagem! É um coche muito respeitável, e não importa se é um pouco antiquado. Eu sei que você preferiria vê — la ir em um carro de posta, mas custa cinquenta ou sessenta libras, não contando o que você tem que pagar aos pontilhões, e não podemos nos permitir isso. Um par de cavalos, como estamos longe de Londres, custará trinta libras, e para quê? Eu sei que carro de seu tio é um pouco lento, mas Miss Blackburn vai acompanhar sua irmã, e se tiverem de passar a noite em um pousada (claro, para descansar os cavalos), ela poderá cuidar dela, e eu vou ficar tranquila. — Mãe! Arabella disse de repente com uma voz fraca. Mãe!
— O que é minha filha?
Arabella mostrou — lhe a nota que lhe tinha dado o squire .
— Queres que a guarde, certo? Perguntou a Sra. Tallant . Está bem, vou guardá — la, querida, e assim não irá gastá — la para comprar presentes para seus irmãos e irmãs. — Mãe! Mas é uma nota de cinqüenta libras!
— De jeito nenhum! Sophia exclamou.
— Bem, seu tio foi muito generoso, reconheceu a Sra. Tallant. Em seu lugar, Arabella, eu bordaria chinelos para ele antes de ir, como um gesto de agradecimento.
— Oh, não! É que eu não pensei... Eu tenho certeza que eu não lhe agradeci adequadamente. Mãe, você vai utilizá — lo para comprar roupas?
— Claro que não. De suas roupas eu me encarrego. Você vai se sentir mais confortável em Londres com o dinheiro. Além disso, esperam que seu tio lhe dê algo para suas despesas. Sem dúvida, você vai querer satisfazer alguns caprichos. E embora eu não ache que seu pai gostasse que você fizesse apostas, tenho certeza de haverá partidas de loo e, naturalmente, vai querer participar. Na verdade, seria estranho se não o fizesse.
Sophia arregalou os olhos quando ouviu sua mãe.
— Papai não gosta que joguemos nada, não é mamãe? Ele diz que os jogos de cartas são responsáveis por todos os males que...
— Sim, minha filha, você está certa. Mas um jogo de loo não tem nada demais, disse Mrs. Tallant com um ar misterioso. Brincou um pouco com sua bolsa, e então acrescentou, timidamente: — Eu não me incomodaria em dizer a seu pai o que fizemos hoje, meninas. Os homens não estão interessados em certas coisas como nós, e eu tenho certeza que ele tem assuntos mais importantes em que pensar.
Suas filhas não fingiram não ter entendido.
— Eu não direi uma palavra! prometeu Sophia.
— Nem eu, concordou Arabella. E ainda mais por causa das cinqüenta libras, porque tenho certeza que lhe pareceria muito dinheiro, e teria que devolvê — lo ao meu tio. E não acho que eu possa devolvê — lo!
* * *
Capítulo 3
Entretanto, não foi antes de meados de fevereiro, que Arabella fez a longa viagem para Londres. Madame Dupont levou mais tempo do que o esperado para confeccionar os vestidos necessários, e havia muitos detalhes para resolver. Por outro lado, Betsy não tinha desejado atrasar os preparativos ao contrair amigdalite acompanhada de febre o que não era nada estranho nela. Enquanto a Sra. Tallant ainda estava ocupada cuidando de sua filha mais nova, Bertram, sucumbindo à tentação e abandonou seus livros e seu pai, sem informar ninguém e passou um dia maravilhoso com os cães de caça. Mas retornou à reitoria em uma carroça com uma clavícula quebrada. Durante uma semana o acidente mergulhou a família em pessimismo, porque o pastor não estava apenas zangado, mas também muito triste. Não era o fato em si que o desgostava, porque embora ele já não caçasse, praticara o esporte regularmente em sua juventude, mas (ou assim ele disse) a falta de franqueza de Bertram que o levara a abandonar, sem permissão e sem quer participar o pastor de suas intenções. Tallant não entendia o comportamento de seu filho, porque ele não se considerava um pai severo e seus filhos deveriam saber que ele não queria privá — los de uma distração razoável. Ficou perplexo e aborrecido, e pediu a Bertram que lhe dissesse por que ele tinha se comportado dessa maneira. Mas era quase impossível para ele explicar que tinha preferido fazer primeiro e arcar com as consequências mais tarde do que pedir permissão para fazer algo que ele já sabia que seu pai reprovaria.
— Como se pode explicar alguma coisa a papai? Perguntou Bertram as irmãs, desesperado. Só consigo perturbá — lo ainda mais, e fazer com que eu me sinta um pouco menos do que uma criatura monstruosa.
— Eu sei, disse Arabella, compreensiva. Eu acho que ele se desgosta tanto e se põe tão triste que ficamos com medo, e é por isso que você não pediu permissão para ir. E, claro, não pode explicar que foi esta a razão.
— Se explicar, é claro que ele não iria entender, exclamou Sophia.
— Exatamente! Concordou Bertram. Também é impossível. Seria desnecessário eu confessar que eu não pedi permissão, porque eu sabia que ele se zangaria e me diria que eu deveria tomar as minhas próprias decisões e me perguntaria porque pareço me dedicar a distrair — me quando tenho um exame em breve. Você sabe como é o pai. No final, ele teria dito, com certeza. Eu não suporto os sermões moralizantes.
— Sim, disse Sophia, mas o pior é que quando um de nós o aborrece, ele fica extremamente deprimido, pensando que somos todos inconseqüentes e uns mimados, e que ele é culpado. Espero que não proíba você de ir a Londres por causa da temeridade de Bertram, Bella! — Não fale bobagem! Bertram exclamou. Por que iria proibir?
Na verdade, parecia pouco razoável, mas quando no jantar, os filhos do pastor voltaram a ver seu pai, sua face espelhava uma profunda melancolia e parecia evidente que ele não poderia encontrar nenhum conforto na conversa animada de sua prole. Uma pergunta um tanto imprudente Margaret sobre a cor exata das faixas selecionadas para o segundo vestido de baile de Arabella o fez perceber
que de todos os seus filhos, apenas James, não era dado à frivolidade e leveza. Tudo o que via ao seu redor era personalidades instáveis, e quando pensava na possibilidade de uma viagem a Londres sabia que todas as suas filhas enlouqueceriam pela moda, e se perguntava se estava agindo bem permitindo que Arabella fosse.
Se tivesse para pensar, Arabella teria percebido que aquelas palavras eram fruto de nervosismo, mas o principal defeito da jovem, como tantas vezes sua mãe tinha apontado, era a impetuosidade, que tantas vezes a tinha posto em apuros. No primeiro momento, as palavras do pároco a deixara sem palavras, mas depois, muito acalorada, disse:
— Como você é injusto, pai! Isto não é justo!
O pastor nunca tinha sido rigoroso com os filhos e mais, havia quem achasse que ele lhes dava grande liberdade. No entanto, as palavras que sua filha acabara de pronunciar foi além do que ele considera tolerável. Adotou uma expressão de grande austeridade e em um tom gélido disse: — “A linguagem injustificável que você acabou de usar, Arabella, a violência descontrolada de seu tom, a falta de respeito que você cometeu contra mim... Tudo mostra claramente que não está preparada para ser introduzida na sociedade!
Sophia desferiu um chute no tornozelo de Arabella por debaixo da mesa, sua mãe olhou — a com um sinal de advertência e reprovação.
— Por favor, perdoe — me, pai, balbuciou ruborizada e com os olhos lacrimejantes. O pastor não disse nada. Sua esposa quebrou o silêncio tenso pedindo gentilmente a Harry para não comer tão rapidamente, e então, como se nada tivesse acontecido, ela começou a contar a seu cônjuge sobre assuntos relacionados com a paróquia.
— Que confusão você armou! Reprovou Harry quando as crianças foram para o quarto de sua mãe e contaram toda a história para Bertram, que havia jantado lá no sofá. — Estou cansada de tanta apreensão! Exclamou Arabella dramaticamente. O nosso pai quer impedir que eu vá!
— Bobagem! Foi apenas uma de suas reprimendas. As meninas não entendem nada! — Você acha que eu deveria descer e pedir perdão? Oh, não, não me atrevo! Foi encerrar — se em seu estudo! O que eu posso fazer?
— Deixe isto com a mãe, aconselhou Bertram bocejando. É muito inteligente, e se ela quiser que você vá para Londres, tenho certeza de que você vai.
— Em seu lugar eu não falaria com o pai agora, disse Sophia. Ele está muito aborrecido, e você poderia dizer algo inconveniente, ou romper a chorar. E você sabe que ele odeia o excesso de sensibilidade. Fale com o papai amanhã de manhã, depois das orações.
Eles decidiram que isto era o melhor que Arabella podia fazer para desculpar — se com seu pai. Mas revelou — se o pior, como Arabella disse a Bertram. Sua mãe havia feito um grande trabalho: antes
que a filha arrependida conseguisse dizer uma única palavra de desculpa que tinha tão cuidadosamente ensaiado, o pai pegou sua mão e esboçando um sorriso doce, disse melancólico: “Minha filha, eu peço perdão. Ontem eu fui muito injusto com você. É incrível que eu, que tanto prego moderação aos meus filhos, não consiga controlar o meu temperamento. — Eu preferia que ele tivesse brigado Bertram! Disse Arabella.
— Céus, sim! Concordou Bertram, com um estremecimento. Como é estranho! Estou contente por não ter estado lá em baixo. Quando o pai se culpa de alguma coisa, eu me sinto terrível. O que você disse?
— Eu não consegui pronunciar uma única palavra! As lágrimas me deixaram sem palavras como você pode imaginar, e temia que não gostasse de mim por não ser capaz de reprimir melhor os meus sentimentos. Mas ele não estava zangado. Imagine! Abraçou — me e beijou e disse que me ama e que sou uma filha muito boa. E você sabe que eu não sou, Bertram! — Bem, não se preocupe tanto, recomendou seu irmão pragmático. Não demorará muito para ele corrigir essa opinião de você. O que importa é que passou a sua cólera. — Sim! Mas no pequeno — almoço foi pior. Não parou de falar sobre os planos londrinos brincando sobre a vida agitada que levarei ali e lembrando — me que não devo demorar em escrever muitas cartas para casa, porque lhe interessa muito saber o que eu faço.
— O que será que isso quer dizer? Bertram perguntou olhando para ela com indisfarçável horror. — Acredite em mim, Bertram! Com muita doçura e com aquele olhar triste que você conhece. Foi tão horrível que eu estava a ponto de renunciar a tudo.
— Meu Deus! Não é de admirar!
— E ainda por cima, continuou Arabella buscando muito afobada o seu lenço, ele manifestou seu desejo que eu tivesse algo bonito para usar em Londres, então vai mandar fazer um anel com a pérola de um alfinete de gravata que usava quando era jovem.
Esta surpreendente revelação deixou Bertram sem palavras.
— Resolvido! Decidiu o jovem depois de um momento de espanto. Eu não vou lá para baixo de jeito nenhum. Aposto que se o pai me vir, começará culpar — se pela minha leviandade, e eu teria que correr para me alistar ou algo assim, porque um homem não pode suportar essas coisas. — Não, é claro! Garanto que tenho o prazer estragado.
Como a atitude gentil e tolerante do pastor não mostrou sinais de abrandamento, Arabella afundou de tal forma em uma depressão que apenas o que a salvou de abandonar a viagem a Londres foi a intervenção oportuna de sua mãe, que lhe deu uma orientação mais positiva quando a chamou de manhã no seu quarto e disse, sorrindo:
— Eu quero lhe mostrar uma coisa, minha filha, e acho que você vai gostar. Em cima do tocador de sua mãe tinha uma caixa aberta. Arabella piscou os olhos, deslumbrados com os diamantes nela contidos, e soltou um longo “Ooooh!”.
— Foi um presente de meu pai, disse a Sra. Tallant suspirando baixinho. Há muitos anos que eu não os ponho, é claro, pois não tive chance. Além disso, não são apropriados para a esposa de um clérigo. Mas eu os mandei limpar, e quero dá — los a você para que o leve a Londres. Eu também perguntei o seu pai se ele achava que eu deveria dar — lhe um colar de pérolas de sua avó Tallant e ele não colocou qualquer objeção. Ele nunca gostou de jóias, mas acredita que as pérolas são modestas e apropriadas para uma mulher. No entanto, se Lady Bridlington levar você a um baile de gala, e eu não tenho nenhuma dúvida de que ela vai, adereços de diamante são mais adequados. Você vê, há um adereço de crescente para o cabelo, um broche e uma pulseira. E não são pretensiosos nem vulgares, o que o seu pai desaprovaria, são de excelente qualidade. Era impossível sentir — se desanimada depois disso, ou considerar que não iria a Londres. Arabella teve que decorar chapéus, costurar lenços, e bordar chinelos para o squire, fazer uma bolsa nova para seu pai, além de todas as tarefas domésticas que lhe eram devidas e por último, mas não menos importante, chegaram os vestidos de Harrowgate, assim Arabella não teve tempo para permitir — se reflexões negativas. Tudo estava indo bem: a dama de companhia de Caterham manifestou a sua disponibilidade para acompanhar Arabella em sua viagem, o squire constatou que só teriam de desviar alguns quilômetros para passar uns dias com a tia Emma em Arksey e assim descansar os cavalos, A clavícula de Bertram foi soldada e Betsy recuperou — se da sua amigdalite. Não demorou para que o coche do squire parasse na porta da casa paroquial, pronto para pegar as passageiras, com todos os baús amarrados de forma segura na parte de trás, e a maleta de sua mãe (também emprestada para a ocasião) cuidadosamente colocada no interior do veículo, quando a depressão voltou a apoderar — se Arabella. Teria sido difícil determinar se foi o abraço de sua mãe, a bênção de seu pai ou a mão roliça do pequeno Jack acenando adeus, mas foi incapaz de esconder seus sentimentos, e Bertram teve de colocá — la quase à força no coche em meio a um mar de lágrimas. Arabella levou um bom tempo para recuperar — se, e sua companheira não ajudava muito, porque o excesso de empatia talvez agravada pela melancolia natural de uma mulher forçada pelas circunstâncias a encontrar um novo emprego, fez com que a dama de companhia chorasse quase tão amargamente como a jovem na outra extremidade do assento de amplo coche. Enquanto ainda via os lugares familiares através da janela, Arabella não deixou de derramar lágrimas, mas quando o coche começou a percorrer uma paisagem desconhecida, ela estava exausta. Depois de cautelosamente cheirar o frasco de sais oferecido pela mão trêmula de Miss Blackburn, foi capaz de secar o rosto e obter um elevado grau de satisfação com a opulência da grande regalo de peles de foca que ela carregava no colo. O regalo, juntamente com o casaco que ela carregava em seus ombros, tinha sido enviado por sua tia Eliza, a mesma que tinha dado a sua mãe um jogo de roupa íntima de musselina rosa indiano. Apesar de ter sido a primeira vez que ela saía de casa, não poderia se sentir infeliz quando suas mãos estavam protegias por um regalo tão grande quanto aqueles que apareceram em La Belle Assemblée . Na verdade, tão grande que seu pai... Mas não, não era conveniente pensar nele ou em qualquer dos seus entes queridos. Era melhor se concentrar na paisagem e pensar nos prazeres que a esperava em Londres. Para uma jovem que nunca tinha viajado para além de York, quando seu pai a levou juntamente com Sophia para as confirmar na catedral, tudo o que via na estrada provocava — lhe um profundo interesse e exclamações entusiasmadas. Para alguém que estivesse acostumado a passeios em diligência rápida, um passeio em um coche lento e pesado, puxados por dois cavalos, escolhidos mais pela sua resistência do que por sua velocidade, teria sido insuportavelmente aborrecido. Para
Arabella, no entanto, representa uma verdadeira aventura, enquanto que para a Srta. Blackburn, habituada aos horrores de uma diligência, um conforto inesperado. De modo que ambas, não tardaram a apreciar a viagem, elas encontraram excelentes petiscos que eram oferecidos em diferentes paragens, não encontraram nenhum motivo de queixa dos leitos das casas de posta e foram incapazes de conceber uma forma mais deliciosa de realizar uma longa viagem. Elas se sentiram muito bem — vindas em Arksey, onde a tia Emma as recebeu com grande bondade e exclamando que Arabella se parecia tanto com a sua adorável mãe que ao vê — la estivera a ponto de desmaiar.
Passaram dois dias em Arksey antes de retomar a estrada, e Arabella lamentou muito em deixar essa casa grande e desordenada dado ao carinho que a tia Emma tinha professado e a satisfação que demonstraram todos os seus primos. Mas Timóteo, o cocheiro informou que os cavalos tinham descansado bastante e estavam prontos para continuar a viagem, de modo que elas não podiam demorar mais. Elas partiram de novo, e tia Emma e sua família se despediram desejando — lhes boa sorte e acenando — lhes adeus.
Após a diversão e a hospitalidade que tinham desfrutado em Arksey, era um pouco tedioso passar o dia todo sentadas em um coche, e em uma ou duas ocasiões, quando foram ultrapassadas rapidamente por uma chaise, ou um carro de posta ou um cabriolé conduzido por um par de cavalos ágeis, Arabella não podia deixar de lamentar que o carro do squire fosse tão grande e pesado, e que os cavalos não fossem menos resistentes e um pouco mais rápidos. Ela também teria apreciado ser possível mudar de cavalos quando um dos cavalos do tio John perdeu a ferradura, ao invés de ter que esperar na sala de uma estalagem até que ele fosse ferrado. E, enquanto comiam no salão de uma casa de posta, Arabella não pôde deixar de olhar com inveja quando um cupê elegante parou no pátio com os cavalos suados e os empregados se apressarem em levar um par de animais descansados para os impacientes viajantes. Nem poderia deixar de lamentar, depois de ver como o coche dos correios passou rapidamente sem parar por um pedágio, que o tio John tivesse dado ao cocheiro uma arma, que certamente não teria a menor chance ser usada, em vez de uma corneta que poderia fazer soar de forma soberba.
O tempo que em Yorkshire tinha estado frio, mas com o céu claro, piorou quando viajavam para o sul. Em Lincolnshire, choveu, e a paisagem estava encharcada. Não havia muitas pessoas na estrada, e as perspectivas eram tão sombrias que a Sra. Blackburn disse que era uma lástima que não tivessem trazido um tabuleiro de xadrez com o qual, uma vez que elas não podiam se distrair olhando pela janela, poderiam matar o tempo. Em Tuxford tiveram a má sorte que em New Castle Arms não houvesse nenhuma cama livre e elas não tiveram escolha senão ficar em uma pousada muito menor e menos elegante, onde as camas eram tão sujas que Miss Blackburn não só passou a noite toda deitada em um cobertor tremendo, como acordou de manhã com uma dor de garganta e coriza que pressagiavam um resfriado. Arabella, que apesar de sua aparência frágil raramente contraía doenças, a experiência não a afetou, mas seu espírito tinha sido ofendido pela poeira que tinha encontrado debaixo de sua cama e começou a pensar no enorme alívio da sua chegada em Londres. Quando ela tinha guardado suas coisas na maleta de sua mãe e se disponha a abandonar a pousada, achou extremamente irritante descobrir que tinham que reparar uma das correias do arnês, porque haviam combinado em passar a noite seguinte em Grantham, que, segundo o guia de viagem, ficava a cerca de trinta quilômetros de Tuxford. Ela esperava que o cocheiro não decidisse que os cavalos não podiam ir mais longe do que Newark, mas ele era um homem um pouco
déspota que não gostava de viajar às pressas, e provavelmente iria fazê — lo. No entanto, eles logo repararam a correia e chegaram em Newark, em tempo para o jantar. Uma vez lá, e enquanto alimentava os cavalos, o cocheiro discutia com um dos serventes, que perguntou se era coche do rei o que ele dirigia, este comentário o ofendeu tanto que ele estava tão ansioso quanto Arabella para chegar a Grantham naquela noite.
Quando elas deixaram Newark voltou a chuva e o clima era frio e úmido. Miss Blackburn, envolta num xale grande, fungava o nariz com um ar triste, pois com o frio seu resfriado tinha piorado. Mesmo Arabella, que em geral era imune às condições meteorológicas, foi um pouco afetada pelas correntes de ar que penetravam dentro do carro, e movia os dedos dentro de suas botas para evitar dormência.
O carro viajou vários quilômetros em um ritmo lento, e o tédio foi aliviado somente no pedágio Balderton, onde o guarda, percebendo que o cocheiro era um rústico, tentou fazê — lo pagar. Apesar de nunca ter saído dos limites de Yorkshire, Timóteo foi mais teimoso do que qualquer um desses sulistas que ele tão profundamente desprezava, ele sabia que tinha comprado o bilhete na barreira anterior o que o autorizava a passar por todas as barreiras até chegarem à barreira seguinte ao sul de Grantham. Após uma troca de insultos que fez Miss Blackburn emitir débeis gritos de consternação e que Arabella, lamentavelmente, ria baixinho, o guarda teve que ceder, e o cocheiro arrancou com um triunfo volteio do chicote.
— Céus, como estou cansada da viagem! Arabella confessou. Quase agradeceria se um bandoleiro nos assaltasse.
— Querida Miss Tallant, respondeu a sua companheira, estremecendo, por favor, não pense numa coisa dessas. Espero que não soframos qualquer tipo de acidente. Nenhuma das duas mulheres viu os seus desejos realizados, pois, embora não acontecesse nada tão emocionante quanto um roubo, pouco antes de chegar ao pedágio de Marston quebrou o banco do condutor do veículo. O coche do squire tinha ficado muito tempo na cocheira. Depois de se lançar em um longo monólogo desculpando — se, o cocheiro mandou o pontilhão para pedir o conselho do guarda do pedágio, que ficava a oitocentos metros de distância. Quando voltou, o pontilhão informou ao cocheiro que não iria encontrar qualquer tipo de assistência adequada e que deveriam fazer o seguinte: eles deviam buscar ajuda em Grantham, a cerca de dez quilômetros, onde certamente poderia alugar um carro para pegar as senhoras enquanto efetuavam a reparação ou substituição da caixa. Em seguida, o cocheiro sugeriu as suas passageiras que estavam na estrada, voltar para o carro e esperar ali até que fossem resgatadas, enquanto que o pontilhão cavalgava um dos cavalos até Grantham. Miss Blackburn resignou — se humildemente, mas para sua companheira não pareceu uma boa idéia.
— O quê! Pretende que nós fiquemos esperando neste frio terrível pelo transporte? — De jeito nenhum! Ela disse.
— Nós não podemos continuar paradas aqui, na chuva, querida Miss Tallant! Pediu Miss Blackburn. — Claro que não! Estou convencida de tanto uma coisa como outra significaria a sua morte. Tem que haver uma casa por aqui onde nos ofereçam abrigo. O que são aquelas luzes que estão acolá?
Arabella se referia as luzes brilhando nas janelas de uma residência que estava perto da estrada. O pontilhão disse que as havia visto antes de sofrerem o revés.
— Ótimo! Saltou Arabella. Nós vamos andando até ali, Miss Blackburn, e pediremos que nos ofereçam abrigo, até nos virem buscar.
Miss Blackburn, que era uma mulher tímida, protestou fracamente: — Nossa conduta vai parecer muito estranha!
— Por quê? Disse Arabella. No ano passado, um carro sofreu um acidente na frente da porta de nossa casa, e meu pai mandou Harry longo oferecer ajuda aos viajantes. Nós não podemos passar uma hora ou mais tremendo naquele carro horrível, Miss Blackburn, sem nada para fazer. Além disso, eu estou terrivelmente faminta e suponho que os moradores da casa nos ofereçam um lanche, você não pensa assim também? Penso que já passou da hora do jantar. — Ah! Eu não creio que devamos! Foi a única coisa que pode dizer Miss Blackburn, mas Arabella não prestou nenhuma atenção. Pediu ao cocheiro para acompanhá — las até o portão da residência antes de ir para Grantham. Uma vez lá, as mulheres disseram — lhe adeus e começaram a caminhar ao longo da pequena estrada que conduzia à casa. Uma delas foi resmungando protestos desarticulados enquanto a outra não conseguia pensar em nenhuma razão porque não se deveria solicitar uma hospitalidade que em Yorkshire qualquer um teria ficado feliz em oferecer.
* * *
Capítulo 4
Foi nesse momento quando o Lord Fleetwood, um jovem imprevisível, olhou com um movimento alegre o seu amigo e anfitrião, Sr. Beaumaris, e disse em tom de desafio: — Bom! Você me prometeu que amanhã teríamos um dia de caça excepcional (aliás, onde nos conhecemos?), Mas , que distrações você vai oferecer hoje à noite, Robert? — Meu chef é considerado um verdadeiro artista. É francês, e acho que você vai gostar do frango recheado a Davenport. Além disso, eu não sei o truque que ele aplica para sazonar a salsa Benton ...
— Ah! Você trouxe Alphonse de Londres? Interrompeu Lord Fleetwood. — Alphonse? Beaumaris arqueando ligeiramente as finas sobrancelhas. Não, não! Refiro — me ao outro chef. Eu não sei o nome dele, mas eu gosto de como ele cozinha o peixe. Lord Fleetwood riu.
— Eu acho que se você encontrar um chef que sirva a caça de um modo que lhe agrada, você o enviaria ao se pavilhão de caça e lhe pagaria uma fortuna, mesmo que ele não tivesse o que fazer durante os outros três trimestres do ano.
— Sim, eu suponho que sim, admitiu Beaumaris imperturbável.
— Muito bem, acrescentou Lord Fleetwood severamente, mas não vou ser distraído por um chef. Eu vim aqui esperando me ver rodeado de sílfides, deixe — me dizer — lhe, e participar de todos os tipos de orgias surpreendente. Será que acha que beber vinho em crânios e esse tipo de coisas... — É incrível a influência nefasta de Lord Byron na sociedade! Disse com um sorriso desdenhoso Beaumaris.
— Como? Ah, esse poeta que tem causado tanto rebuliço. Em minha opinião, é extremamente vulgar, mas ainda não me decidi. Em fim! Onde você escondeu as sílfides, Robert? — Se tiver alguma sílfide aqui, o que eu não acredito, Charles, eu correria o risco de ser ofuscado por um homem tão bonito como você, certo?
Lord Fleetwood sorriu, mas respondeu:
— “Não me engane com mentiras. Seria preciso alguém com dez vezes o meu encanto para eclipsar ... a ... um Midas como você!
— Se a memória não me falha, tudo o que Midas tocava virava ouro. Eu acho que você quer dizer Creso.
— Não! Eu nunca ouvi falar do tal Creso.
— Bem, infelizmente, a maioria das coisas que eu toco tendem a se tornar lixo, admitiu alegremente Beaumaris, mas com uma pitada de amargura e cinismo em sua voz.
Isso foi demais para o seu amigo.
— Basta, Robert! Não conseguirá me enganar! Se não haverá sílfide... Eu não entendo o que o fez pensar que haveria “interrompeu o anfitrião. — Escute, eu não pensei nada, mas devo confessar uma coisa, meu amigo, as pessoas não falam de outra coisa !
— Deus do céu! Como é possível?
— Eu ignoro completamente. Acho que é porque você não se decidiu a propor matrimônio a qualquer uma das belezas que o perseguem já a cinco anos. Além disso, suas cheres – amies são sempre tão diabolicamente ambiciosas, caro amigo, que todas essas fofoqueiras não sabem o que pensar. Lembre — se da Faraglini!
— Eu prefiro não pensar nisso. É a mulher mais gananciosa que eu conheço. — Sim, mas que rosto! Que figura!
— E que gênio!
— O que aconteceu com ela? Eu não a vi desde que você deixou de lhe oferecer proteção. — Acho que ela foi para Paris. Por que você pergunta? Você quer me substituir? — Não, por Deus! Não seria capaz de pagar os seus caprichos, disse Lord Fleetwood honestamente. Ela teria me arruinado em menos de um mês! Quanto custou aqueles dois cavalos que ela se pavoneava por toda a cidade?
— Eu não me lembro.
— Se você quer que eu diga a verdade, eu não acho que valesse a pena. Embora eu admita que ela seja linda.
— Você tem razão: não valia a pena.
Lord Fleetwood o olhou entre divertido e intrigado.
— Há qualquer coisa que valha a pena para você, Robert? Ele perguntou em tom sarcástico. — Sim! Meus cavalos! E por falar em cavalos, Charles, como diabos você foi comprar aquele cavalo de Lichfield?
— O castanho? Olhe, este cavalo me cativou, disse Lord Fleetwood, o rosto se iluminou de entusiasmo. Que animal! Sério Robert...
— O dia que você encontrar um cavalo como aquele no meu estábulo, disse Beaumaris, impiedoso: Eu vou ter a certeza de que você vai adorar.
Lord Fleetwood protestou com veemência e indignação, quando o mordomo entrou na sala para informar ao seu senhor, desculpando — se, que um coche havia quebrado em frente a sua portas e duas senhoras que estavam nele pediam refúgio na casa por pouco tempo. Os olhos frios e cinzentos Beaumaris não traíram nenhuma emoção, mas por um momento seus lábios desenharam uma expressão dura.
— Certamente, respondeu calmamente. A lareira do salão deve ser acessa. Diga a Sra. Mercey que leve as senhoras para lá.
O mordomo inclinou a cabeça, e ele teria saído se Lord Fleetwood não o tivesse detido ao exclamar: — Mas, Robert! Que maneiras são essas! Eu não vou permitir isso! Como são Brough? Velhas? Jovens? Bonitas?
O mordomo, acostumado às maneiras de Lord Fleetwood, respondeu com absoluta solenidade de que uma das mulheres era jovem e, em sua opinião, muito bonita. — Eu insisto que você ofereça a estas senhoras a cortesia apropriada, Robert, disse Lord Fleetwood com firmeza. Nada de levá — las para o salão! Mande — as vir aqui, Brough! O mordomo olhou para o senhor em busca do seu consentimento, como se duvidasse que esta ordem fosse para ser obedecida, mas Beaumaris disse com sua indiferença habitual: — Tudo bem, Charles.
— Como você é ingrato! Disse Lord Fleetwood quando Brough havia deixado a sala. Você não merece a sorte que tem. Isto é obra da Providência!
— Duvido que eles sejam sílfides. Não é isso que você queria?
— Qualquer distração é melhor que nada.
— Um comentário muito infeliz! Não sei por que eu o convidei para vir. Lord Fleetwood olhou para ele sorrindo.
— Mas, Robert! Você realmente acha que poderia me contentar com qualquer coisa? Pode haver muitos aduladores dispostos a tudo para que você os convide para sua casa (e não iria oferecer — lhes nada mais divertido do que uma mão de Piquet, por sinal), mas ... — Você esquece do cozinheiro.
— ... Mas eu não me incluo entre eles, concluiu Lord Fleetwood inexoravelmente. A aparência habitual de Beaumaris era de frieza e reserva, mas às vezes ele sorria de uma forma que não só abrandava a austeridade de seus traços, mas iluminavam os seus olhos com um brilho de diversão. Não era o sorriso reservado para as reuniões sociais, um sorriso um pouco sarcástico, e aqueles que tivessem a sorte de vê — lo sorrindo assim, teriam que rever as primeiras impressões que tinham de sua personalidade. Aqueles que não conheciam este sorriso tendiam a considerá — lo um homem orgulho e antipático, mas apenas os mais corajosos teriam feito uma crítica em voz alta
de uma pessoa que, além de ter todas as vantagens da linhagem e da fortuna, era uma das pessoas mais influentes da sociedade. Lord Fleetwood, que conhecia bem este sorriso, e o viu florescer naquele momento, sorriu com prazer.
— Como você ousa, Charles? Você deve saber que a única coisa que lhe confere alguma categoria é o fato de eu lhe dar alguma atenção.
Arabella entrou na sala e encontrou os dois homens rindo, assim teve a sorte de ver Beaumaris em um de seus melhores momentos. Não lhe ocorreu que estava muito atraente, com a pele delicada os cachos castanhos belamente emoldurados por um chapéu de penas de avestruz e fitas vermelha amarradas em um nó abaixo de sua orelha, pois nunca as filhas do Sr. Tallant tinham sido encorajadas a pensar muito sobre sua aparência. Ela parou na porta enquanto o mordomo anunciava o seu nome e o de Miss Blackburn, mas ela olhou ao redor com uma curiosidade inocente e sincera. O que ela viu impressionou — a. A casa não era grande, mas Arabella percebeu que era mobiliada com bom gosto e luxo discreto. Com uma rápida olhada notou Lord Fleetwood, que instintivamente levou a mão para arrumar a gravata Belcher que estava usando e em seguida, se fixou em Beaumaris.
Apesar de Arabella ter um irmão que aspirava a ser um dândi e acreditava que tinha conhecido em Harrowgate cavalheiros muito elegantes, soube imediatamente que estava errada: ela nunca havia visto alguém, cujo estilo podia ser comparado com o deste homem.
Beaumaris, ou qualquer um de seus amigos, poderia instantaneamente reconhecer o corte da jaqueta de pano verde oliva superfino, mas Arabella, que desconhecia o nome mágico de Weston, só percebeu que era uma peça feita de forma requintada que parecia se amoldar a forma da pessoa a usava. Que por certo era uma figura muito boa, ela pensou que com aprovação. Não precisava de enchimento, como os que Knaresborough tinha colocado sob os ombros do casaco novo de Bertram. E ele ficaria como inveja das pernas bem torneadas do Senhor Beaumaris, vestido com calças apertadas dobrado dentro de botas lustrosas. As pontas do colarinho de Beaumaris não eram tão altos quanto os de Bertram, mas o laço de sua gravata havia conquistado o respeito da jovem, que em mais de uma ocasião, tinha visto a luta de seu irmão uma relação a um laço muito menos complicado. Arabella não estava totalmente certa se gostava de seu corte de cabelo, mas concluiu que o homem que tinha diante de si, cuja risada foi desaparecendo dos lábios e dos olhos cinzentos, era decididamente bonito.
Beaumaris por um momento ficou parado. Arabella tinha a impressão de que ele a analisou com uma olhada, então ele se adiantou e inclinou a cabeça ligeiramente, implorando em um tom monótono em que poderia ajudar.
— Como está? Disse ela com educação. Por favor, me perdoe, mas o meu coche teve um acidente e ... e está chovendo e muito frio. O pontilhão foi á cavalo para Grantham e suponho que em breve estará de volta com um outro carro, mas ... mas Miss Blackburn estava com frio, e eu ficaria muito grata se permitir — nos esperar aqui.
Quando chegou ao final de seu discurso estava balbuciante e corada. Antes de entrar na casa, parecia muito simples procurar refúgio, mas sob o olhar do Sr. Beaumaris, de repente teve a impressão de que seu pedido era ultrajante. Sim, ele sorriu, mas sua expressão era muito diferente
da que ele tinha quando Arabella entrou na sala. Seu sorriso era limitado a um sorriso fraco, e ainda havia algo que a fez se sentir desconfortável e envergonhada.
— Que infeliz acidente, disse ele com cortesia impecável. Deixe — me enviá — la para Grantham em um dos meus coches, miss.
Lord Fleetwood, que havia permanecido parado, observando Arabella com indisfarçada admiração, reagiu imediatamente.
— De jeito nenhum! Exclamou puxando uma cadeira para mais perto da lareira. Entre e sente — se, senhorita! Deve estar gelada. Está um tempo ruim para viagens. Claro que seus pés estão molhados, e isso é muito inconveniente. Você perdeu o juízo, Robert? Porque você não pede a Brough para buscar um lanche para Miss ... Miss ... para estas senhoras? Com um olhar que Arabella interpretou como de resignação, Beaumaris respondeu: — É o que estou fazendo. Peço — lhe que se sente senhorita.
Mas foi Lord Fleetwood que acompanhou Arabella até a cadeira que tinha aproximado do fogo e disse:
— “Deve estar com fome, realmente acho que gostaria de comer alguma coisa. — Bem... sim, senhor, admitiu Arabella, que estava morrendo de fome. Na verdade é que estou a várias milhas pensando no jantar. O que não é de se estranhar, porque são mais de cinco horas. A ingenuidade dessas palavras fez com que Lord Fleetwood, que nunca se sentou para jantar antes das sete e meia, no mínimo, engasgasse, mas recuperando — se de imediato e respondeu sem pestanejar:
— Não me diga! Então, deve estar faminta! Bem, não se preocupe. Precisamente o senhor Beaumaris estava me dizendo que estavam prestes a servir o jantar. Certo, Robert? — Oh Sim? Eu tenho a memória muito ruim, mas eu tenho certeza que você está certo. Por favor me dê a honra de jantar comigo, senhorita.
Arabella hesitou. Pela expressão angustiada de Miss Blackburn, ela percebeu que preferia aceitar a primeira oferta de Beaumaris, além disso, mesmo o otimista mais inveterado não poderia ter detectar na voz lânguida daquele cavalheiro nada mais do que uma cortesia relutante. Mas a sala aconchegante e bem decorada significou um alívio agradável em comparação com as viagens de carro, e o cheiro de comida que seu nariz havia detectado quando atravessam o salão abriu consideravelmente o seu apetite. Ela olhou com algumas dúvidas para o seu anfitrião. Mais uma vez, era Lord Fleetwood, que, com seu sorriso simpático e seus modos desenvoltos que resolveu o assunto:
— Claro que eu vai jantar conosco! Certo, Miss?
— Não queremos causar nenhum problema, senhor, disse Miss Blackburn com um fio de voz. — Nem por isso, senhorita, eu lhe garanto. Na verdade, nós seremos muito gratos, porque lamentávamos não ter companhia, não é verdade, Robert?
— Certamente, disse Beaumaris. Acabávamos de comentar.
Miss Blackburn, que havia suportado numerosos desdéns e desprezos, rapidamente reconheceu o tom satírico do proprietário da casa. Ela deu — lhe um olhar de desaprovação e de vergonha e corou. Ele também a olhou, e com um tom amistoso, disse:
— Eu acho que não está confortável aí, senhorita! Não quer chegar mais perto do fogo? Ela estava nervosa, e garantiu seu interlocutor que estava muito confortável e que ele era muito atencioso. Brough tinha entrado na sala com uma bandeja com copos e garrafas, que colocou sobre uma mesa para onde Beaumaris se dirigiu, dizendo:
— Suponho que vocês queiram subir com minha governanta e tirar os casacos molhados, mas primeiramente deixe — me oferecer um copo de vinho. Ele começou a servir o Madeira. Coloque dois pratos na mesa, Brough e o jantar deve ser servido imediatamente. Brough pensou nas galinhas Davenport que ainda estavam assando na cozinha, onde o chef francês cuidava delas, e ficou muito nervoso.
— Imediatamente, senhor? Ele repetiu com desânimo.
— “Bem, digamos que dentro de meia hora, corrigiu Beaumaris, mas leve um copo de vinho a Miss Blackburn.
— Muito bem, senhor, disse Brough, e saiu da sala muito preocupado. A Sra. Blackburn tomou o vinho de bom grado, mas Arabella recusou. Seu pai não gostava que suas filhas bebessem algo mais forte do que uma cerveja escura ou um copo do vinho suave que era servido no salão de Harrowgate, e não tinha certeza do efeito que este poderia causar. Beaumaris não insistiu em absoluto e devolveu o seu copo a bandeja, despejou um pouco de xerez para ele e seu amigo e sentou — se junto a Miss Blackburn no sofá.
Entretanto, Lord Fleetwood tinha se sentado ao lado de Arabella, e conversou com ela em um tom alegre e inconseqüente, o que ajudou a jovem a relaxar. O cavalheiro ficou feliz ao saber que Arabella estava indo para Londres, e disse que esperava ter o prazer de vê — la no parque, talvez, ou no Almack´s. Ele sabia muitas anedotas da boa sociedade para distraí — la, e continuou a falar até que a governanta chegou para acompanhar as senhoras para cima. Ela as levou para um quarto no primeiro andar, e uma vez lá, a governanta trouxe água quente e recolheu os seus casacos para secar na cozinha.
— Como é elegante! Disse Miss Blackburn. Mas não devemos ficar para jantar. Tenho certeza de que não devemos fazê — lo, senhorita Tallant.
Arabella também tinha dúvidas sobre a conveniência de aceitar o convite, mas já era tarde demais para voltar atrás, escondeu os seus receios e expressou a firme convicção de que não haveria problema. Ele viu uma escova e pente sobre a cômoda e começou a concertar os cachos desarrumados.
— Eles são muito educados, disse Miss Blackburn para consolar — se. Dois cavalheiros muito elegantes, é claro. Com certeza vieram para caçar: esta casa deve ser um pavilhão de caça. — De caça! Arabella exclamou, assustada. Não é demasiado grande e magnífico? — Bobagem, querida! Eu diria que é pequeno. O dos Tewkesbury, de cujo filho eu cuidei antes de trabalhar para a Sra. Caterham, tinha uma casa muito maior, eu lhe asseguro. Estamos em Melton, como você deve saber.
— Deus do céu! Então, são caçadores? Oh, como eu gostaria que Bertram estivesse aqui! Quantas coisas eu terei para contar! Eu acho que o dono é o Sr. Beaumaris. Quem será o outro? No começo eu pensei que estava fora do lugar, porque o colete é listrado e o lenço em lugar da gravata, o que o faz parecer um novo rico ou algo similar. Mas quando o ouvi falar, percebi que não tinha nada de vulgar.
Miss Blackburn, que pela primeira vez na vida se sentiu superior, riu e disse com desdém: — Não, Miss Tallant! Você vê muitos jovens com roupas elegantes muito mais estranhas do que isso. É o que o senhor Geoffrey Tewkesbury, um jovem moderno, chamado de ” última sensação.” Ela fez uma pausa e disse, pensativa: “Mas devo confessar que eu não gosto desse estilo, e a querida senhora Tewkesbury também não gostava. O Senhor Beaumaris, no entanto, corresponde a minha idéia de um verdadeiro cavalheiro.
Arabella desembaraçou o cabelo com um pente.
— “Bem, pois me parece muito orgulhoso e reservado. E não é hospitaleiro, acrescentou. — Como você pode dizer isso? Não foi muito gentil e hospitaleiro, me convidando para sentar — se perto do fogo? Suas maneiras são requintadas e despretensiosas. Garanto — lhe que fiquei perturbada com a sua condescendência.
Arabella percebeu que Miss Blackburn e ela e tinham visões muito diferentes de seu anfitrião. Ela manteve um silêncio cético, e logo que Miss Blackburn tinha acabado de arrumar os cachos cinzentos no espelho, sugeriu que voltassem para baixo. Então elas saíram da sala e atravessaram o corredor para as escadas. Beaumaris tinha tido o capricho de colocar tapetes nas escadas, um luxo, que a Sra. Blackburn mostrou a sua companheira, apontando com o dedo e dando — lhe um olhar eloqüente.
A porta da biblioteca, com vista para o saguão no piso térreo, estava aberta. A voz de Lord Fleetwood, que falava com grande entusiasmo, chegou aos ouvidos das duas mulheres: — Você é incorrigível! Uma criança adorável cai no seu colo como um presente do céu, e você se comporta como se um usurário tivesse entrado à força em casa.
— Meu caro Charles, respondeu o anfitrião com uma clareza impressionante , quando já tentaram enganá — lo com todos os truques conhecidos da mente feminina, talvez, entenda melhor os meus sentimentos sobre esta situação. Eu tive muitas beldades que queriam casar — se comigo devido a minha fortuna desmaiando em meus braços, eu vi como elas quebravam os laços das botas em frente à minha casa em Londres e como elas torciam o tornozelo quando tinham a certeza do meu
braço para agarrá — la, e agora também vem me perseguir em Leicestershire. O seu coche teve um acidente! Ora! Essa menina deve ter me tomado por um idiota!
Uma pequena mão se fechou em torno do pulso do Miss Blackburn. A dama de companhia, com um olhar de indignação, viu os olhos brilharem no rosto ruborizado de Arabella. Se conhecesse melhor Miss Tallant, ela teria medo desses sinais.
— Eu posso confiar em você, Miss Blackburn? Arabella sussurrou em seu ouvido. Miss Blackburn quis falar com veemência que com certeza ela o faria, mas a mão deixou o seu pulso e cobriu sua boca. Assustada, a governanta aquiesceu. Para sua surpresa, viu Arabella recolher a saia e na ponta dos pés voltar ao topo das escadas. Uma vez lá, ela se virou e começou a descer lentamente, dizendo em alto e bom som:
— Sim, claro! Tenho certeza de que já disse isso muitas vezes, Miss Blackburn. Mas vá em frente, por favor.
Miss Blackburn ficou ainda mais espantada quando o pulso firme da jovem a empurrou pelas costas, fazendo — a avançar.
— Mas apesar de tudo, continuou Arabella, eu prefiro viajar com meus próprios cavalos. O franzir de sobrancelhas que acompanhou estas palavras intrigou a pobre governanta, mas ela compreendeu o que era esperado dela e respondeu com a mesma rapidez, dizendo com voz trêmula:
— Está muito bem, querida!
O cenho de Arabella abriu caminho para um sorriso de aprovação. Qualquer um dos seus irmãos ou irmãs teria implorado que não fisesse nada neste momento, tendo em vista as conseqüências de uma atitude impetuosa, por outro lado, Miss Blackburn, ignorava o principal defeito de Miss Tallant, e se alegrou por não a ter decepcionado. Arabella atravessou o corredor em direção a porta da biblioteca aberta e entrou.
Foi Lord Fleetwood que veio cumprimentá — la.
— Agora você vai se sentir mais confortável, disse ele olhando — a com admiração indisfarçável. É muito perigoso ficar com um casaco molhado. Mas nós ainda não nos apresentamos, miss. Como eu sou estúpido! Me custa muitíssimo recordar a primeira vez que me dizem um nome! E o mordomo de Beaumaris fala tão baixo que ninguém o ouve. Deixe — me apresentar — me. Lord Fleetwood, a seus pés.
— “Eu sou Miss Arabella Tallant disse com um brilho perigoso em seus olhos. Murmurando um agradecimento por ter sido o destinatário da informação, o cavalheiro ficou surpreso com seu tom de voz.
— Sim, sim! A famosa Miss Tallant! Disse Arabella suspirando com um olhar de desdém. — A famosa Miss Tallant? Lord Fleetwood gaguejou sem compreender.
— A rica Miss Tallant! Ela corrigiu.
Lord Fleetwood lançou um olhar perturbado e inquisitivo ao seu anfitrião, mas Beaumaris não o estava olhando, mas olhava para a rica Miss Tallant entre divertido e curioso. — Esperava que pelo menos aqui poderia passar despercebida, continuou Arabella, sentando em uma cadeira um pouco longe do fogo. Ah, e deixe — me apresentar — lhe Miss Blackburn, meu ... minha dame de compagnie !
Lord Fleetwood concordou, e Miss Blackburn, adotando uma expressão inescrutável, inclinou — se ligeiramente e se sentou na cadeira mais próxima.
— Miss Tallant! Repetiu Lord Fleetwood procurando em vão na sua memória. Ah, sim! Claro que sim! Eu acho que eu já tive a honra de conhecer na cidade, certo? Arabella virou o seu olhar inocente para Beaumaris antes de responder. — Oh, então você não sabia! Exclamou ela, apertando as mãos e fingindo um misto de satisfação e consternação. Eu poderia ter evitado revelá — lo! É que quando eu olhei, eu pensei que você fosse como qualquer outra pessoa. Não é desagradável? Meu maior desejo é passar despercebida em Londres.
— Querida Miss Tallant, você pode confiar em mim, se apressou em responder Lord Fleetwood, que, como a maioria dos indiscretos se considerava um modelo de discrição. E sei que o Sr. Beaumaris fará o mesmo neste caso, como sem dúvida compreenderá. Arabella olhou para o seu anfitrião e viu que ele tinha levantado o monóculo preso a uma fita preta para olhá — la. Elevou um pouco o queixo, pois não gostava nada daquele escrutínio flagrante. — Oh, sim?
Não era nada comum as jovens levantarem assim os seu queixos quando Beaumaris as olhava através do seu monóculo, pois sorriam como umas tontas, ou tentavam fingir que não sabiam que ele as estava olhando. Ele notou que havia uma faísca decididamente combativa nos olhos daquela jovem, o que alimentou o seu interesse.
— Sim, certamente. E você? Ele disse gravemente, deixando cair o seu monóculo. — Ai de mim! Disse Arabella. Sou incrivelmente rica! É uma tortura para mim! Você não pode imaginar!
Os lábios de Beaumaris tremeram ligeiramente.
— Mas eu sempre acreditei que a grande riqueza traz consigo algumas vantagens. — Ah, mas você é um homem! Naturalmente, não sabe nada dessas coisas. Você não pode imaginar o que significa ser o objeto de todos os aventureiros que continuamente lhe cortejam e lisonjeiam somente por sua riqueza até o ponto que gostaríamos de não ter um tostão. Miss Blackburn, que tinha suposto que a sua companheira era uma jovem modesta e bem — educada, mal conseguia reprimir um estremecimento.
— Tenho certeza que se subestima, mademoiselle, disse o anfitrião. — Não, absolutamente! Contradisse Arabella. Eu já ouvi muitas vezes me chamarem de “a rica Miss Tallant” para enganar — me, senhor. E é por isso que eu quero passar despercebida em Londres. Beaumaris sorriu, mas como o mordomo entrou para anunciar o jantar ficou em silêncio e apenas ofereceu o braço a Arabella.
O jantar, que consistia em dois pratos, pareceu a Arabella mais suntuoso do que havia imaginado. Em nenhum momento poderia ter imaginado que o seu anfitrião, depois de uma rápida olhada no aparador, estava convencido de que toda a sua reputação bem como a da de sua casa estavam em perigo, nem que o chef francês, depois de cortar, enquanto proferia maldições sacudindo a faca para seus ajudantes, os dois frangos médio Davenport e colocá — los em uma assadeira com um molho branco aromatizado com estragão, tinha decidido deixar imediatamente aquela casa ou ter o desonroso pescoço cortado com a maior faca encontrada na cozinha. A soupe á la Reine foi servida com filé de cherne com molho italiano e de frango com estragão acompanhados por um prato de espinafre com pão frito, presunto esmalte, duas perdizes frias, cogumelos e bolo de cordeiro assado. O segundo prato tinha surpreendido Arabella com uma seleção muito impressionante, tendo, além das cestas de doces, creme de Reno, uma gelatina, um bolo de Sabóia, um prato de salsifí frito com manteiga, uma omelete com torrada e anchovas. A Sra. Tallant sempre tivera orgulho da forma como governava sua casa, mas uma refeição como esta, adornada com acessórios elegantes e molhos sutis, estava além das possibilidades da cozinheira da casa paroquial. Arabella não poderia evitar arregalar um pouco olhos para esta exposição de carnes, mas conseguiu esconder como estava impressionada e aceitar o que lhe foi oferecido com um louvável espetáculo de indiferença. Beaumaris, talvez receoso de depreciar o seu vinho de Borgonha, ou talvez com a esperança vaga e incerta de adicionar um pouco de interesse a alimentos tão comuns , havia ordenado a Brough para servir champanhe. Arabella, abandonado completamente a discrição, deixou — o encher o copo e bebeu, ainda que lhe fosse desagradável. A champagne produziu um efeito estimulante, de modo que informou a Beaumaris que se dirigia a residência de lady Bridlington na cidade, inventou vários tios que tinham por a única finalidade dotar — lhe as suas fortunas, e disso isso como se não existisse nenhum de seus quatro irmãos e três irmãs, que talvez pudessem reivindicar algumas das suas riquezas. Sem se gabar, a ponto de parecer vulgar, deu a impressão que estava fugindo de pretendentes numerosos e persistentes, e seu anfitrião, que escutara com prazer genuíno, disse que Londres era o lugar perfeito para alguém que não queria chamar a atenção.
Enfrentando corajosamente uma segunda taça de champanhe, Arabella comentou que entre a multidão era mais fácil passar despercebido que, na pequena sociedade do campo. — É verdade, concordou Beaumaris.
— Você nunca achou isso! “Disse Lord Fleetwood, servindo — se do prato de cogumelos que Brough estava oferecendo. Você deve saber, senhorita, que, está diante de uma pessoa inigualável. O Senhor Beaumaris é a figura mais proeminente na sociedade desde a morte do pobre Brummel. — Sério? Disse Arabella a Beaumaris com um ar de inocente curiosidade. Eu não sabia. Nunca ouvi o seu nome.
— Minha querida Miss Tallant! Exclamou Lord Fleetwood fingindo horror. Como não conhece o grande Beaumaris, o árbitro da moda? Robert, te deixaram em ridículo. Beaumaris que com um levantar de dedo imperceptível havia feito aproximar — se o vigilante Brough, estava murmurando uma ordem ao seu atento,porém assustado ouvido, não prestou atenção ao seu amigo. O mordomo transmitiu a ordem para o lacaio que estava de pé ao lado da mesa de café, como era muito jovem e, portanto, controlava mal as suas emoções, adotou uma expressão de espanto que de algum modo traía a incredulidade que o envolvia. No entanto, o olhar frio que lhe dirigiu o seu superior imediato, lembrou — o de sua posição, e o jovem saiu da sala para atender a ordem acabara de receber.
Miss Tallant, entretanto, tinha encontrado uma oportunidade para satisfazer seu desejo mais ardente, que era ofender o seu anfitrião até o ponto que ele não poderia se recuperar. — Árbitro da moda? Repetiu em tom inexpressivo. Você não quer dizer que é um daqueles dandi, certo? Eu pensei que ... Oh, por favor me perdoe. Acho que em Londres isso é tão importante quanto ser um grande soldado, ou um estadista ... ou alguma coisa deste tipo. Nem mesmo Lord Fleetwood poderia confundir o tom deste discurso ingênuo, e engasgou. Miss Blackburn, já estava ciente do quão seriamente estava prejudicado o prazer da refeição, rejeitou a perdiz e tentou, em vão, chamar a atenção de seu companheiro. Apenas Beaumaris, que estava desfrutando da refeição, parecia indiferente.
— Sim, claro. Ele pode exercer uma influência transcendental, ele respondeu friamente. — Oh, sim? Disse Arabella com a educação.
— Certamente, miss. Ele pode arruinar completamente sua carreira com apenas uma sobrancelha, ou elevar uma debutante aos níveis mais elevados da sociedade educada, com apenas um gesto de seu braço.
Arabella suspeitou que ele a estava colocando à prova, mas uma estranha euforia tomou conta dela por isso não hesitou em lidar com esse espadachim perito.
— Sem dúvida, senhor, que se eu tivesse a ambição de me sobressair na sociedade, sua aprovação seria essencial, certo?
Beaumaris, famoso por sua esgrima verbal, burlou a guarda de Arabella com um golpe inesperado. — Minha querida Miss Tallant, você não precisa de permissão para ser admitida nas fileiras das jovens mais solicitadas. Mesmo eu não poderia as negar as virtudes de uma pessoa dotada ... se assim posso dizer, de seu rosto, sua figura e da sua fortuna.
Arabella engasgou com o último gole de champanhe e até tentou adotar um ar de superioridade, mas só conseguiu adotar um olhar adoravelmente envergonhado. Lord Fleetwood, percebendo que seu amigo havia embarcado em outro dos seus experimentados flertes, deu — lhe uma olhada furibunda e fez o que pode para atrair a atenção da herdeira presuntiva. Ele estava quase lá quando, de repente, ele se distraiu com o comportamento incomum de Brough: ao servir o prato principal, ele retirou a taça de champanhe e substituiu — a por um copo que começou a encher de líquido de uma jarra alta que para Lord Fleetwood parecia limonada. Foi o suficiente para que a
bebida o deixassem em estupor deixando — o temporariamente sem fala. Beaumaris, bebendo de maneira inócua a mistura branda, aproveitou a oportunidade para retomar a conversa com Miss Tallant.
Arabella ficou contente quando lhe retiraram a taça de champanhe, porque embora não admitisse por nada desse mundo, o vinho espumante era extremamente desagradável e fez com que ela quisesse espirrar. Ele tomou um gole refrescante limonada, e contente ao saber que, nos círculos da moda a bebida era servida com o prato principal. Miss Blackburn, mais versada nos costumes da elite não sabia que opinião formar de seu hospedeiro. Apesar de em diversas ocasiões, ter a convicção de que era um verdadeiro cavalheiro suspeitava de que não era nada mais do que um piadista o que deixou a pobre mulher muito confusa. Não sabia o que pensar, mas foi incapaz de se abster de enviar — lhe um olhar eloqüente de profunda suspeita. Os olhos do anfitrião se encontraram com os da governanta, mas a troca foi tão breve que a Sra. Blackburn foi incapaz de discernir se havia captado uma centelha de diversão ou se era imaginação sua. Brough recebeu uma mensagem na porta e anunciou que o cocheiro da jovem tinha trazido o coche de aluguel e perguntava se ela queria continuar sua viagem à Grantham. — Isso pode esperar, disse Beaumaris novamente enchendo o copo de Arabella. Gostaria de mais creme Reno, Miss Tallant?
— Quanto falta para reparar o meu carro? Ela perguntou, lembrando dos comentários desagradáveis que o anfitrião havia feito ao seu amigo.
— Eu acho que vai precisar de uma vara nova miss. Eu não poderia dizer em quanto tempo isso vai ocorrer.
Miss Blackburn estalou fracamente a língua, indicando que esta informação a havia chocado. — Um acidente muito infeliz, admitiu o anfitrião. Mas por favor não se preocupe. Amanhã eu posso mandar o meu cupê em Grantham, no momento que lhes convier. Arabella agradeceu — lhe educadamente mas declinou a oferta, assegurando que não havia necessidade. Se o reparo demorasse ao ponto de esgotar sua paciência, terminaria a viagem em uma diligência de posta.
— Será uma experiência e tanto! Ela disse sinceramente. Meus amigos sempre reclamam das minhas idéias antigas, e asseguram que se pode viajar nelas com conforto considerável. — Vejo que temos muito em comum, miss, disse Beaumaris. Mas eu discordo que o fato de você não gosta de viajar em coches como sendo ultrapassada. Digamos que somos mais sensíveis que os outros mortais. Ele olhou para o seu mordomo, e disse: — Envie uma mensagem ao carreteiro, Brough, dizendo que faça o favor de reparar o carro de Miss Tallant o mais rapidamente possível. Miss Tallant não podia fazer mais do que agradecer — lhe por sua mediação amigável e terminou o creme de Reno. Então ela se levantou, disse que tinha abusado em excesso da hospitalidade de seu anfitrião e que devia se despedir, reiterando a sua gratidão por sua bondade. — Sou eu que agradeço, Miss Tallant, respondeu ele. Estou feliz por ter tido a oportunidade de conhecê — la e espero ter o prazer de ir visitá — la na cidade em breve.
Essa promessa provocou uma grande emoção em Miss Blackburn. Quando escoltou Arabella para o andar superior, ela sussurrou:
— Como pôde fazer isso? Agora ele quer visitá — la em Londres, e você disse... Oh! O que sua mãe pensará?
— Bah! Respondeu Arabella, diminuindo a importância. Se ele realmente é um homem rico, não se preocupará em me visitar. Eles nem sequer irá se lembra de mim! — Se ele... Deus do céu, Miss Tallant, deve ser um dos homens mais ricos do país. Quando percebi que era o Sr. Beaumaris, eu quase desmaiei.
— Bem, disse Arabella, estimulada pelo álcool, — se é tão poderoso e importante, certamente não tem nenhuma intenção voltar a ver — me. E eu confio que não o faça, porque sinceramente acho que ele é francamente odioso.
Arabella se recusou a corrigir o seu ponto de vista e até mesmo reconhecer que o Sr. Beaumaris, pelo menos, tinha tido um comportamento impecável. Ele afirmou que não o achou atraente e detestava os dândis. Miss Blackburn, apavorada ao pensar que Arabella, em seu estado deplorável de ânimo, poderia trair a opinião que tinha de seu anfitrião ao se despedir dele, pediu — lhe para não se esquecer de tratá — lo com cortesia. Disse que uma palavra depreciativa da parte dele era o suficiente para arruinar a carreira de qualquer jovem, e então lamentou ter feito este comentário, porque o aviso fez surgir novamente nos olhos de Arabella um brilho combativo. Mas quando o Sr. Beaumaris ajudou — a a subir no carro com o sorriso mais atraente, e gentilmente tocando a sua mão com os lábios antes de deixá — la ir, a jovem despediu — se com uma voz tímida onde não havia o menor sinal de desprezo.
O carro se pois em marcha , Beaumaris virou — se e andou vagarosamente em direção à casa. Seu amigo se atirou sobre ele no hall de entrada e perguntou — lhe o que pretendia servindo limonada aos seus convidados.
— Eu acho que a senhorita Tallant não gostou do meu champanhe, disse ele, imperturbável. — “Se não tivesse gostado teria rejeitado, certo? Protestou o seu amigo. Além disso, isso não é verdade. Bebeu dois copos!
— Não se preocupe, Charles. Podemos tomar o porto.
— Idéia maravilhosa! Animou — se Lord Fleetwood. E eu espero que seja o melhor de sua adega! Um par de garrafas de vinho tinto de setenta e cinco ...
— Sirva na biblioteca, Brough. Um desses de barril...
Lord Fleetwood, que era uma presa fácil mordeu a isca sem hesitação: — Mas como? Exclamou ele, empalidecendo. Robert! É sério Robert! Beaumaris arqueou as sobrancelhas fingindo surpresa, mas Brough, com pena dele, disse suavemente:
— “Não se preocupe, senhor. Em nossa adega não existe isso.
— Você merece que te dê um soco, Robert! Exclamou com veemência, Lord Fleetwood, percebendo que tinha sido enganado novamente.
— Se você ousar...
— Não, eu não ouso, confessou Lord Fleetwood, e acompanhou o seu amigo para a biblioteca. Mas a limonada tinha sido um truque. Enrugou a testa, como se concentrando, e acrescentou: Tallant! Você já ouviu esse nome? A mim não me diz nada.
Beaumaris olhou — o por um momento. Depois virou os olhos para a caixa de rapé que havia puxado do bolso. Ele abriu a tampa e tomou uma pitada, com o dedo indicador e o polegar. — Nunca ouviu falar da fortuna dos Tallant? Meu querido Charles!
* * *
Capítulo 5
Graças à mensagem do Sr. Beaumaris, em função da qual o carreteiro ignorou as ordens que tinha recebido de três outros proprietários de veículos acidentados, Arabella teve que esperar apenas um dia em Grantham. Quando o grupo de caça se reuniu ali, naquela manhã, ela podia, através de uma janela da sala de estar privada do Ángel and Royal Inn, ver o aspecto que tinham montados a cavalo. Também poderia descobrir o aspecto que tinha Lord Fleetwood, se ela estivesse interessada, mas curiosamente nem sequer reparou nele. Beaumaris estava impressionante, montado em um lindo puro — sangue, com um casaco longo e ombros bem moldados. Ela decidiu que nunca tinha visto nenhum condutor mais brilhante do que ele. A parte superior de suas botas de caça era de uma elegância que nenhum provinciano jamais teria sonhado. Uma vez que o grupo de caça partiu, durante o resto do dia as viajantes não podiam fazer nada além de caminhar ao redor da cidade, comendo e bocejando, e lendo os únicos livros que encontraram na hospedaria. Mas na manhã seguinte levaram o coche do squire para o Angel, com uma nova vara e os cavalos devidamente descansados, e as senhoras puderam retomar logo cedo à última etapa de sua viagem.
Miss Blackburn estava cansada da estrada enlameada quando o carro finalmente parou na porta da casa de Lady Bridlington em Park Street. A governanta conhecia o suficiente da metrópole para não se interessar pelos vários sons e imagens que fizeram Arabella esquecer seu aborrecimento e preocupação, logo que o carro chegou em Islington. Para um jovem que nunca tinha visto uma população maior do que York, tudo era fascinante e irresistível. O tráfego a deixava tonta, e o som dos sinos, o barulho das rodas sobre as pedras do calçamento das ruas e os gritos estridentes dos vendedores de carvão, argila, tapetes e ratoeiras a deixavam surda. Ela observava o tumulto com os olhos arregalados, e se perguntava como as pessoas podiam viver em um lugar como este, sem perder o juízo. Mas quando o carro, depois de parar uma ou duas vezes para que o cocheiro perguntasse o caminho aos gentis e sempre educados cockneys, entrou, lento e pesado na parte mais elegante da cidade, e o barulho diminuiu e Arabella começou a ter esperança de ser capaz de dormir em Londres.
A casa de Park Street parecia desproporcionalmente alta para alguém acostumada a uma casa de campo de dois andares. O mordomo, que cumprimentou as senhoras em um amplo vestíbulo, onde começava uma grande escadaria, era tão majestoso que Arabella ficou tentada a pedir desculpas por causar — lhe o incômodo de ter de anunciá — la a sua madrinha. No entanto, quando constatou que era ajudado apenas por um lacaio, pode acompanhá — lo com relativa serenidade para o salão no primeiro andar.
As boas — vindas que recebeu fez desaparecer todos os seus escrúpulos. Lady Bridlington, cujo rosto rechonchudo e rosado emoldurado por um largo sorriso, apertou — a contra o peito largo, beijou — a repetidamente, se admirou, como fez a tia Emma, com a incrível semelhança com a mãe e pareceu tão feliz em vê — la que os receios da jovem desapareceram. A bondade de Lady Bridlington estendeu — se até a dama de companhia, a quem se dirigiu com gentileza e cortesia impecáveis. Quando a mãe de Arabella conheceu Lady Bridlington, esta era uma bela jovem, sem muito bom senso, mas com o suficiente e de maneiras tão alegres e simpáticas que nenhum de seus amigos se
surpreendeu quando se casou com um partido tão bom. O tempo tinha aumentado mais a sua figura que o seu intelecto, e Arabella logo descobriu que, sob uma aparência de sofisticação, havia apenas uma grande tola. A senhora lia todas as obras em prosa e verso que estavam em voga, entendia uma em cada dez palavras que lia e comentava sobre a sua leitura, sem escrúpulos, adorava os mais admirados cantores de ópera, mas, apesar de não admiti — lo, preferia o ballet, assegurava que nunca havia visto nada comparável a Hamlet de Kean nos teatros ingleses, mas gostava mais da farsa que era apresentada depois da inquietante atuação. Ela não era capaz de cantar corretamente uma melodia, mas sempre patrocinava concertos de música no início da temporada, e todos os anos visitava a exposição da Royal Academy em Somerset House, onde, embora a idéia de um bom quadro se baseasse em este lhe recordar uma pessoa ou um lugar, nunca falhou em detectar a mão de um mestre em pinturas dos artistas mais destacados. Arabella, impressionada, percebeu que sua vida consistia somente em prazeres, e que o único esforço mental que realizava era para garantir o seu próprio conforto. Mas teria sido injusto chamá — la de egoísta. Ela era muito simpática, queria que todos aqueles ao seu redor fossem tão felizes como ela, porque isto a deixava feliz e não gostava de rostos tristes, pagava bem aos seus servos, e lembrava — se sempre de agradecer a qualquer serviço extraordinário que faziam para ela, como passear com os cavalos por Bond Street por uma hora quando chovia, enquanto ela fazia compras, ou esperar acordados até quatro ou cinco da manhã para ajudá — la depois de uma festa, e desde que não precisasse se preocupar com eles ou fazer qualquer coisa que lhe fosse desagradável, era gentil e generosa com seus amigos.
Da visita de Arabella só esperava coisas boas, e ainda sabia que ao oferecer — se para apresentar a jovem à sociedade estava agindo de forma muito generosa, não se entretinha muito pensado nisso, com exceção de um par de vezes por dia na privacidade do se quarto e não com maldade, mas simplesmente pela sensação gratificante que lhe dava o fato de ser uma pessoa benevolente. Gostava de fazer visitas, compras e entretenimento, gostava de organizar reuniões em sua casa, e raramente ficava entediada, mesmo no mais insípido dos salões. Naturalmente, pois todas as damas elegantes o faziam, queixava — se das reuniões muito concorridas e noites insípidas, mas quem a visse nestas funções, saudando uma multidão de conhecidos, partilhando com eles as últimas fofocas, perscrutando cuidadosamente os novos modelos ou participando de um jogo de whist não teria dúvidas de quanto gostava delas.
Assim, uma recém — chegada para acompanhar em uma série de bailes, festas, saraus, revistas militares e qualquer outro divertimento que poderiam ser oferecidos durante a temporada se encaixava perfeitamente ao seu temperamento. Ela passou grande parte da primeira noite de Arabella em Park Street descrevendo os planos maravilhosos que tinha planejado para distraí — la, e ela mal pôde esperar que a Srta. Blackburn se levantasse e saísse no dia seguinte para pedir para lhe enviarem o coche e mostrar a Arabella as melhores lojas de Londres. Os estabelecimentos de High Harrowgate não podiam ser comparados com aqueles. Arabella teve que controlar — se quando viu os atraentes itens em exibição nas vitrines. A ajudou sua perspicácia nortista, que a fez retroceder ante miudezas que custavam cinco vezes o seu valor real, mas não lhe ajudou em absoluto a sua cicerone, que em toda a sua vida tinha disposto de meios para adquirir o que quisesse, não entendia porque Arabella não queria comprar um chapéu de veludo enfeitado com penas e com um grande véu, cujo preço era superior a todos os chapéus que foram tão habilmente preparado pelos dedos de sua mãe e Sophia. Lady Bridlington admitiu que o chapéu
fosse um pouco caro, mas disse que comprar algo que tanto a favorecida não poderia ser considerado uma extravagância. No entanto, Arabella decisivamente rejeitou e disse que tinha todos os chapéus de que precisava, acrescentando com franqueza que ele não deveria gastar muito, porque seus pais não podiam enviar mais dinheiro do que já tinha sido dado. Lady Bridlington consternada ao pensar que uma menina tão bonita não poderia fazer mais por sua beleza. Isso a entristecia tanto que comprou uma bolsa de malha e um buquê de flores artificiais e deu — o a Arabella. Ela tinha hesitado alguns minutos diante de um lindo lenço de seda de Norwich, mas custava vinte guinéus e, embora não se pudesse dizer que era um preço exorbitante, lembrou — se que tinha um muito melhor, pelo qual havia pago cinqüenta guinéus e que poderiam ser emprestados a Arabella sempre que ela o desejasse. Além disso, mais tarde, teria de pagar o vestido para a apresentação da jovem na corte e pensou que no seu armário podia encontrar muitos itens que podiam satisfazer as necessidades de Arabella, e sem dúvida gastaria muito dinheiro. Voltando a examinar o xale, e se convenceu de que era de má qualidade, portanto, não era o tipo de roupa que daria a sua protegida, assim saiu da loja sem levá — lo. Arabella sentiu um grande alívio, porque, embora, naturalmente, gostasse de comprar o xale, não queria custar muito dinheiro à sua anfitriã.
A franqueza com que Arabella falava de sua situação preocupava um pouco a Lady Bridlington. Não a mencionou de imediato, mas nesta noite, quando as duas mulheres estavam sentadas em frente ao fogo bebendo chá, ela se aventurou a formular algumas das idéias que tinha pensado. — Olhe querida, eu estive pensando sobre a melhor forma de ação e decidi que, tão logo você se acostume um pouco como Londres (e tenho certeza que não vai demorar, porque você é uma garota inteligente) começaremos a introduzi — la com discrição. A temporada ainda não começou, não há muitas pessoas na cidade. E eu penso que isso nos beneficia, pois você não sabe como as coisas funcionam aqui, e um evento discreto (sem dança, apenas uma sessão com a música, talvez, e cartas) será melhor para sua apresentação. Basta convidar alguns amigos, pessoas que você deve conhecer: outras jovens de sua idade e também alguns cavalheiros, é claro. Então, quando eu a levar ao Almack´s ou a algum baile importante, irá se sentir mais confortável, eu lhe garanto. Nada é mais desagradável que estar em uma reunião onde não se conhece um único rosto. Arabella não a pode contestar, assim aprovou este excelente plano. — Sim, por favor, minha senhora! É justamente o que eu gostaria, porque no início não saberei como me comportar, mas estou determinada a aprender rapidamente. — Exatamente! Exclamou a senhora, radiante. Você é uma jovem muito sensata, Arabella, e tenho grandes esperanças de conseguir um casamento respeitável para você, como eu prometi a sua mãe. Viu que a jovem corou e disse: — Eu espero que você não se importe com a minha franqueza, querida, porque sabe como é importante que se estabeleça bem. Oito crianças! Eu não sei como sua pobre mãe conseguirá encontrar bons maridos para suas irmãs. E os homens saem tão caro! Tenho medo de pensar no quanto meu querido Frederico nos custou caro, a seu pai e a mim. Primeiro uma coisa e depois outra.
O rosto de Arabella ensombreceu com o pensamento das muitas necessidades de seus irmãos e irmãs.
— Sim, senhora, ela acenou com a cabeça gravemente, — o que diz é verdade, e eu estou pronta para fazer todo o possível para não decepcionar a minha mãe.
Lady Bridlington inclinou — se, pôs a mão gorducha sobre a de Arabella e apertou — a delicadamente.
— Eu não esperava menos de você. E agora, deixe — me dizer — lhe o que eu pensei. Novamente ele se recostou, brincou com a franja em torno de seu xale e então disse, sem olhar para Arabella: — Sabe querida, tudo depende em grande parte, da primeira impressão. Na sociedade, onde todos estão buscando bons partidos para suas filhas, e onde os homens podem escolher entre muitas garotas bonitas, é importante dizer e comportar — se adequadamente. Porisso eu quero apresentá — la com discrição e apenas quando você estiver familiarizado com a vida em Londres. Porque você sabe, querida, que só os moradores do campo expressaam admiração. Eu garanto que , apesar de não saber porque, mas acredite, as meninas inocentes do campo não são do agrado dos cavaleiros.
Arabella ficou surpresa, porque através dos livros ela tinha aprendido ao contrário. Arriscou — se a dizer isso à madrinha, mas Lady Bridlington abanou a cabeça:
— Não, querida, não é assim. Isso pode funcionar bem em um romance, um gênero que eu amo, mas não tem nada a ver com a vida real, eu lhe garanto. Mas não é isso que eu queria lhe falar. Virou — se para mexer com a franja do xale e com uma rajada de eloqüência continuou: — Se eu fosse você, minha querida, não passaria o dia falando sobre Heythram e a reitoria. Você deve lembrar que é insuportável ver — se abrigada a ouvir histórias sobre pessoas que você não conhece. E mesmo que você não tenha de recorrer a evasivas, eu penso, que é absolutamente insensato que diga a todo mundo qual é a situação de seu pai. Eu não mencionei nada que pudesse levar alguém a supor que você não tenha uma posição confortável, porque eu lhe asseguro Arabella, que nada faria mais dano ao seu futuro do que o conhecimento de que suas expectativas são reduzidas. Arabella estava prestes a replicar mais acaloradamente do que permitia a cortesia, quando se lembrou da sua conduta na casa do Sr. Beaumaris. Ela abaixou a cabeça e permaneceu em silêncio, imaginando se teria que submeter o lamentável assunto à Lady Bridlington, mas finalmente decidiu que era muito constrangedor para confessá — lo.
— Se você tiver sorte de ganhar o afeto de um cavalheiro, se apressou a dizer Lady Bridlington, interpretando mal a razão da confusão da o jovem, minha querida Arabella, você lhe explicará a sua situação, é claro, ou eu mesma o farei. E, nesse caso, com certeza ele não vai se importar com isso. Você não deve acreditar que eu quero colocar em prática qualquer tipo de engano, porque não é assim. Apenas digo que é um absurdo, além de desnecessário, você falar sobre sua situação com todas as pessoas que conheça.
— Sim, senhora, Arabella assentiu com um sussurro.
— Eu sabia que você ia entender! E agora, não há necessidade de se falar mais sobre este assunto, temos que decidir quem vamos convidar para a festa. Você poderia olhar se a minha caderneta está naquela mesinha, querida? E me tragas um lápis, por favor.
Arabella entregou — os e a boa mulher começou a planejar a festa. Como Arabella não conhecia nenhum dos nomes citados, o problema foi resolvido com um suave monólogo. Lady Bridlington
reviu a maioria de seus conhecidos, resmungando que era inútil convidar os Farnworth, já que não tinham filhos, que Lady Kirkmichael dava festas muito mesquinhas, e que alguém decidisse em realizar um baile em homenagem a sua desgraciosa filha, e era pouco provável que convidasse Arabella, que para os Accrington sim, deveria enviar um convite, e também para os Buxton, duas famílias encantadoras que certamente dariam muitas festas nesta temporada. — Eu quero convidar lord Dewsbury e Sir Geoffrey Morecambe, querida, mas não sei se qualquer um deles ... E eu tenho certeza que o Sr. Pocklington passou dois anos procurando uma esposa, embora talvez um pouco mais ... Mas, apesar disso pedirei que venha porque nada de errado há isso. Tenho certeza de que Lady Sefton é importante, porque é uma das patrocinadores do Almack´s, e talvez Emily Cowper possa ... E os Charnwood, e o Sr. Catwick e os Garthorpe, se é que já estão na cidade...
Seguiu enumerando as pessoas, enquanto Arabella tentou mostrar interesse. Mas como não poderia fazer mais nada do que concordar com sua anfitriã, logo se distraiu, e de repente pulou a menção de Lady Bridlington de um nome que Arabella conhecia.
— “E também vou enviar um convite ao Sr. Beaumaris, porque seria ótimo para você, querida, que soubessem que ele veio a sua apresentação, porque é assim que devemos chamá — la! Ouça, se ele se dignar a vir falar com você, ainda que seja apenas alguns minutos, e se ele ficar satisfeito com você, poderíamos considerar um sucesso. Todos seguem o seu exemplo! E talvez venha porque ainda há poucas festas. Em todos estes anos, eu conhecia muito bem a sua mãe, Lady Mary Caldicot, filha do falecido Duque de Wigan e uma criatura belíssima. Além disso, o Sr. Beaumaris já veio à minha casa para uma reunião e ficou uma meia hora. Entenda, não devemos criar muitas ilusões, mas tampouco desesperar.
Ela fez uma pausa para respirar, Arabella, que não tinha sido capaz de evitar corar, aproveitou para dizer:
— Eu... eu conheço um pouco o Sr. Beaumaris, madrinha.
Lady Bridlington ficou tão chocada que deixou cair a caneta.
— Conhece o Sr. Beaumaris? Ela repetiu. Querida, não sei o que você quer dizer. Onde pode tê — lo conhecido?
— “É que... eu esqueci de lhe dizer, madrinha, balbuciou Arabella, muito nervosa, que quando quebrou a vara do coche (isso eu lhe disse!), Miss Blackburn e eu buscamos refúgio em seu pavilhão de caça, e ... e Lord Fleetwood estava com ele, e nos convidou para jantar. Lady Bridlington senhora soltou um grito de assombro.
— Meu Deus, Arabella! Como é possível que não o tivesse mencionado? Na casa do Sr. Beaumaris! Convidou — a para jantar com ele e não disseste uma palavra!
Arabella sentiu — se incapaz de explicar por que ela não tinha comentado sobre esse episódio. Ela disse que na emoção da sua chegada a Londres, ela havia esquecido. — Você esqueceu? Lady Bridlington exclamou. Jantar com o Sr. Beaumaris em seu pavilhão de caça e, em seguida, dizer — me sobre a emoção de chegar à cidade? Meu Deus, menina... Mas não vês?
Você é uma menina do interior, minha querida, eu tenho certeza que não sabia o que isto poderia significar para você. Ele ficou satisfeito? Gostou de você?
Aquilo era demais até mesmo para uma jovem determinada a se comportar de forma impecável. — Acho que não fui muito do seu agrado, minha senhora. Achei — o muito orgulhoso e desagradável, e espero que não o convide para sua festa.
— Como eu poderia não convidá — lo para a minha festa quando, se dignar — se a vir, todos diriam que foi um sucesso? Você deve estar louca, Arabella, para falar assim. E deixe — me implorar — lhe, querida, não se refira dessa forma ao Sr. Beaumaris em público. Eu sei que é um pouco esnobe, mas quem se importa? Ninguém em Londres é mais influente do que ele, porque além de sua imensa fortuna, relaciona — se com a metade das casas na Inglaterra. O Beaumaris são uma das famílias mais antigas do país, e pelo lado da sua mãe é o neto da Duquesa de Wigan (me refiro a Duquesa Viúva de Wigan, que faz com que seja primo do atual duque, e dos Wainfleet e ...) Mas você não entende, é claro! Ela concluiu desesperadamente.
— Lord Fleetwood pareceu muito simpático e cortês, ofereceu Arabella como um paliativo. — Fleetwood! Vou lhe dizer uma coisa, Arabella: não ponhas os olhos sobre ele, porque todo mundo sabe que ele precisa contratar um casamento vantajoso.
— Espero que a senhora, respondeu a jovem, muito animada, não esteja sugerindo que eu olhe para o Senhor Beaumaris, porque eu não faria isso por nada no mundo. — Minha querida, disse Lady Bridlington, francamente, seria em vão. Robert Beaumaris pode escolher entre todas as belezas da Inglaterra. E é o mais hábil sedutor de Londres. Mas peço que você não o coloque contra você, mostrando — se tão rude. Você pode pensar o que quiser dele, mas acredite Arabella: poderia arruinar sua carreira, e a minha, é claro, acrescentou. Arabella descansou o queixo na mão e falou sobre uma idéia interessante. — Eu também poderia me beneficiar, madrinha?
— Claro, se decidir — se a fazê — lo. É uma criatura imprevisível! Poderia achar divertido converter — te na jovem mais atraente da cidade, mas também pode meter na cabeça que não és o seu tipo, e se falar isto apenas uma vez, querida, que homem olharia para você duas vezes a menos que estivesse enamorado, que, depois de tudo isso, não poderíamos esperar? — Querida madrinha, Arabella tranquilizou — a suavemente: Confio que não seja tão mal educada para ser rude com alguém, nem mesmo com o Sr. Beaumaris.
— Eu espero que sim também, minha querida, respondeu a senhora sem muita convicção. — Eu prometo que não vou ser rude com o Sr. Beaumaris, se atender a seu convite. — Fico feliz em ouvir isso, querida, mas temo que não virá, respondeu a madrinha com pessimismo. — Quando nos despedimos ele disse que esperava ter o prazer de me visitar na cidade, disse Arabella com indiferença.
Lady Bridlington pensou por um momento sobre a afirmação de sua afilhada. — Eu não acho que devamos dar muito valor a isso, concluiu ele, sacudindo a cabeça. Seguramente só disse isso por educação.
— Sim, claro. E se o conhecer, eu gostaria de mandar um convite para sua festa para Lord Fleetwood, madrinha, porque ele foi muito agradável e me pareceu muito agradável. — Claro que conheço! Exclamou Lady Bridlington. Mas peço que você não tenha ilusões sobre ele. Ele é charmoso, mas como eu sei, os Fleetwood estão em ruína, e por mais que flerte com você, eu estou convencida de que nunca irá lhe propor casamento.
— Por acaso todos os homens que eu conhecer devem querer casar comigo? Perguntou Arabella esforçando — se para controlar seu tom.
— Não, querida, e tenha certeza que eles não vão. Na verdade, tenho pensado em avisá — la que não tenhas esperanças em demasia. Eu farei tudo que posso por você, mas não se pode negar que os bons partidos não crescem em todos os campos. Acima de tudo, querida (e espero que não fique ofendida porque digo isso) quando você não tem muito a oferecer. Diante da convicção de sua madrinha Arabella se recusou a confessar os seus sentimentos, por isso, permaneceu em silêncio. Felizmente, Lady Bridlington não era uma pessoa muito tenaz, e como neste momento lembrou do nome de uma senhora muito importante para ser incluído na lista de convidados, esqueceu as opções matrimoniais de Arabella e começou a explicar porque seria um grave erro de não ter Lady Terrington na a festa. Elas não voltaram a mencionar o Senhor Beaumaris, pois milady, devido a uma referência que ela mesma tinha feito, começou a descrever para sua afilhada as várias distrações que tinha preparado. Embora ainda não tivesse começado a temporada, elas eram tão numerosas que Arabella quase ficou tonta e se perguntou se, no meio deste turbilhão alegre, a sua anfitriã iria encontrar tempo para levá — la à igreja no domingo. Mas havia julgado muito mal Lady Bridlington ao acreditar que ela não iria a igreja: a madrinha teria achado muito estranho não ser vista na igreja todo domingo de manhã, a menos que, como muitas vezes aconteceu, ele decidisse assistir ao serviço na Capela Real, onde, além de ouvir um bom sermão, podia estar segura que encontraria todos os seus amigos mais distintos e ver muitas vezes um membro da família real. Isso foi o que aconteceu no primeiro domingo que Arabella passou em Londres, uma circunstância que muito interessou a seus irmãos e irmãs em Yorkshire, quando a moça contou — lhes por carta, onde também descrevia com grande habilidade Hyde Park, a Catedral de St. Paul e a imagem nítida da agitação das ruas de Londres.
“No domingo, fomos ao culto de manhã na Capela Real de St. James”, escreveu Arabella com caligrafia elegante em um papel muito fino. Ouvimos um sermão de um excelente texto da Segunda Epístola aos Coríntios. Por favor, diga isso a nosso pai: ao que tinha acumulado muito, nada foi deixado, ao que tinha acumulado o suficiente, nada foi perdido. Em Londres, todavia não havia muitas pessoas “Arabella tinha escutado atentamente a madrinha”, mas havia muitos personagens importantes, e também o duque de Clarence, que depois do serviço veio cumprimentá — las, e foi muito simpático e não era nada arrogante. “Arabella fez uma pausa, mordiscando a ponta da pena refletindo sobre o Duque de Clarence. Talvez seu pai não gostasse que descrevesse a sua Alteza Real, mas tinha certeza que sua mãe, Margaret e Sophy gostariam de saber como ele era e o que tinha dito. Inclinou — se sobre a folha e escreveu com moderação: “Embora não possa ser dito que
seja muito bonito, seu rosto é agradável. Sua cabeça tem uma forma um pouco estranha, e é bastante corpulento. Lembrou — me o meu tio, porque fala igual a ele, é muito forte, e ri muito. Honrou — me com o comentário de que eu usava um chapéu muito bonito e espero que a mãe fique feliz, porque era o de plumas rosas que me deu. “Ela não achava que havia mais alguma coisa a acrescentar sobre o duque de Clarence, mas salvo que falava muito alto na igreja, mas essa informação não agradaria aos moradores da casa paroquial. Ela leu o que tinha escrito e pensou que não satisfaria a sua mãe ou as meninas, e por isso acrescentou: “Lady Bridlington diz que não é tão gordo quanto o Príncipe Regente ou o Duque de York.” Com esta alentadora observação terminou o parágrafo e começou um novo.
“Eu vou me adaptando bem a Londres e eu estou começando a aprender como mover — me pelas ruas, mas é claro que não saio sozinha. Estou sempre acompanhada por um lacaio de Lady Bridlington, como previsto por Bertram, mas tenho notado que algumas jovens atualmente saem sem companhia, embora talvez não sejam da boa sociedade. Isto é muito importante, e vivo com medo de fazer algo inadequado, como passear pela rua St. James’s, onde estão todos os clubes de cavalheiros. Lady Bridlington organizou uma festa para me apresentar a seus amigos. Eu vou ficar muito nervosa, porque todo mundo é muito elegante, mas também muito mais amáveis do que eu esperava. A Sophy vai adorar saber que Lord Fleetwood, a quem eu conheci durante a viagem, como expliquei desde Grantham, veio me visitar uma manhã para saber como eu estava passando, que foi um atitude muito louvável de sua parte. O Sr. Beaumaris também nos visitou, mas nós estávamos andando no parque e ele deixou seu cartão. Lady Bridlington ficou muito animada quando soube, e lhe deu grande importância, o que eu acho que é tolice, mas eu vejo que é assim que funciona este mundo, e isso me faz pensar sobre como nosso pai nos ensinou sobre a frivolidade e o vazio de vida moderna. “Com essa alusão acreditou resolver satisfatoriamente o tema de Beaumaris. Voltou a molhar a pena no tinteiro. Lady Bridlington é um verdadeiro anjo, por outro lado, tenho certeza que seu filho é um jovem muito respeitável e que não se dedica à busca do prazer, como temia nosso pai. O nome dele é Frederico. Ele está viajando pela Alemanha e visitou muitos campos de batalha. Ele escreveu algumas cartas muito interessantes para sua mãe, que tenho certeza agradariam ao nosso pai, por que parece ser uma pessoa de integridade, que reflete sobre tudo o que vê de uma maneira muito edificante, mas se entende em demasia. “Ela notou que tinha pouco espaço na folha e apertando a letra, acrescentou:” Gostaria de continuar a escrever, mas não posso franquear esta carta, e não quero que o papai tenha que pagar seis pences por uma segunda folha. Eu envio meu amor a todos os meus irmãos e irmãs, e meu mais profundo respeito ao meu querido pai. Sua filha que a ama. Arabella “.
Com isso, sua mãe e as meninas teriam tema suficiente para conversação, mas Arabella deixou várias coisas para fora. Era difícil não se gabar um pouco dos elogios que lhe prodigalizou o duque real, ou para não mencionar que um nobre a tinha vindo visitar para saber como ela estava, para não mencionar o grande Senhor Beaumaris, se é que ela se preocupava com essas coisas . Mas era muito modesta até mesmo para revelar a sua mãe com que elegância e bondade todos se comportavam com a insignificante garota de Yorkshire.
Porque assim era. Quando ia fazer compras em Bond Street, ou passear pelo Hyde Park na parte da tarde quando fazia bom tempo, ou ao assistir ao serviço na Capela Real, Lady Bridlington sempre encontrava alguns conhecidos, e em cada ocasião apresentava Arabella. Algumas mães de família da alta sociedade que não tinham porque prestar — lhe atenção se comportavam com ela da forma
mais gratificante, envolvendo — a com a bondade das suas perguntas e sua insistência em que Lady Bridlington as fosse visitar com a sua afilhada. Havia aquelas que apresentaram as suas filhas à jovem e lhes propuseram que fosse com elas passear em Green Park em uma manhã ensolarada, de modo que em pouco tempo parecia ter muito conhecidos em Londres. Os cavalheiros tampouco ficaram aquém: acontecia com freqüência que em uma caminhada no parque abordassem o carro de Lady Bridlington para conversar com ela e sua bela protegida, e mais de um dândi, que ela mal conhecia de vista, ia visitá — la com motivos que até para alguém tão pouco dada a especulações como a senhora Bridlington pareciam uma pobre desculpa.
Lady Bridlington estava um pouco surpresa, mas depois de pensar sobre isso, pode facilmente explicar tanto a cortesia das damas e cavaleiros. Eles estavam ansiosos para agradá — la. E isso a levou de forma natural a crer que o mérito era em grande parte devido a ter anunciando tão bem a visita de Arabella à cidade. Quanto aos cavaleiros, nunca tivera dúvidas, desde o momento que vira sua afilhada, que tinha uma bela figura e um lindo rosto, e provocava imediatamente a maior admiração. Arabella tinha também um sorriso adorável que fazia surgir covinhas nas bochechas e dava — lhe uma expressão marota e sedutora. O mais provável é que qualquer homem, exceto talvez o mais insensível, pensou Lady Bridlington com inveja, se comportaria de forma arrebatadora sob o efeito desta inebriante influência, mesmo que pudesse se arrepender mais tarde. Mas nenhuma dessas conclusões explicava as visitas durante o dia de várias senhoras de renome, cujas relações com Lady Bridlington tinham até agora se limitado a convites para suas festas e cumprimentos silenciosos de seus respectivos carros. A atitude de Lady Somercotes foi particularmente desconcertante. Ela foi a Street Park enquanto Arabella estava andando com as três adoráveis filhas de Sir James e Lady Hornsea, e passou mais de uma hora em companhia da satisfeita Lady Bridlington. Ela manifestou grande admiração por Arabella, a quem tinha conhecido no teatro com a madrinha.
— Oh! Que jovem adorável! É muito educada, e não há nada pretensioso em sua forma de vestir ou no seu comportamento.
Lady Bridlington lhe deu razão, e como não estava muito atenta, sua convidada já havia passado para a observação seguinte, quando lhe perguntou por que alguém esperaria que Arabella fosse pretensiosa.
— Ouvi dizer que vem de uma boa família, não é verdade? Lady Somercotes disse com indiferença, mas perscrutando o rosto de sua anfitriã.
— Sim, claro, disse Lady Bridlington com dignidade. De uma família muito respeitada de Yorkshire. Lady Somercotes acenou com a cabeça.
— Eu já imaginava. Suas maneiras são excelentes e se comporta com decoro perfeito. Fiquei particularmente satisfeita a modéstia de seu porte: não dar o menor sinal de querer se destacar. E o vestido! Este é precisamente o que eu gosto de uma menina. Nada vulgar, como infelizmente vemos muito atualmente. Agora que todas as jovens estão cobertas de jóias, é reconfortante ver um uma com uma simples coroa de flores na cabeça. Somercotes ficou muito impressionado. Além disso, ele foi cativado. Deve levá — la a Grosvenor Square na próxima semana, querida Lady
Bridlington. Nada formal, você sabe: apenas alguns amigos e, talvez, os jovens sejam estimulados a dançar um pouco.
Lady Somercotes se retirou enquanto sua anfitriã aceitava este convite lisonjeiro. A madrinha de Arabella estava muito confusa. Ela era esperta o suficiente para saber que por trás desta homenagem inesperada devia haver mais do que um cumprimento dirigido a ela, porém ignorava os motivos de Lady Somercotes. Ela tinha cinco filhos solteiros, e era sabido que as propriedades dos Somercotes estavam grandemente hipotecadas. Os descendentes dos Somercotes tinham necessidade de se casar com mulheres ricas, e sua mãe estava determinado a buscar uma herdeira. Por um momento Lady Bridlington temeu ter escondido muito bem, no afã de ajudar Arabella, as circunstâncias de sua afilhada. Mas não se recordava sequer de mencioná — las: na verdade, se lembrou que tinha sido muito cuidadosa de nunca fazer isso.
A honorável Sra. Penkridge, que foi visitar sua querida amiga com o propósito expresso de convidá — la e a sua protegida para uma soirée musical, e explicar, com as devidas desculpas, que por causa da estupidez do seu secretário ela não havia recebido o convite, falou de Arabella em termos ainda mais carinhoso:
— Adorável! Francamente adorável! — Disse obsequiando Lady Bridlington com seu sorriso gelado. Ofusca todas as nossas belezas! Sua simplicidade é o que mais chama a atenção. Quero parabenizá — la, Lady Bridlington!
Apesar da confusão que este discurso podia ter deixado em Lady Bridlington, porque procediam dos lábios de uma senhora famosa tanto por sua arrogância como pelo seu sarcasmo, pelo menos, livrou — a das suspeitas que surgiram em sua mente durante a visita de Lady Somercotes. Os Penkridge não tinham filhos. Lady Bridlington, sobre quem a Sra. Penkridge tinha feito mais de uma vez um comentário depreciativo, não a conhecia o suficiente para saber que a única emoção humana que ela já havia expressado era o profundo afeto que sentia por seu sobrinho, Horace Epworth .
Este cavalheiro elegante, de esmerado traje que incluía alfinetes, correntes de relógios, selos, monóculo e lenço perfumado, havia honrado recentemente sua tia com uma de suas raras visitas. Surpresa e encantada, ela perguntou se poderia ajudar com alguma coisa. Mr. Epworth não hesitou em dizer:
— “Você poderia me apresentar a nova herdeira, tia. É uma jovem bonita, e também muito rica. Lady Penkridge aguçou o ouvido.
— A quem você se refere, querido Horácio? Se é a filha dos Flint, eu compreendi que... — Bah! Não, não me refiro a ela! Ele interrompeu com um aceno de sua mão branca e lânguida. Eu não acho que tenha mais de trinta mil libras. Esta jovem é tão rica que ofusca todos os outras. A chamam de lady Dourada.
— Quem a chama assim? Perguntou incrédula sua tia.
Epworth novamente fez um gesto de desdém, desta vez apontando para o que ele pensava vagamente que deveria ser o norte.
Eu não sei. Por aí, em Yorkshire ou outro condado remoto. Eu acho que ela é filha de um comerciante de lã, algodão ou algo similar. É uma pena, mas não importa, dizem que é adorável. — Nunca ouvi falar dela. Quem é? Quem disse que é adorável?
— Fleetwood me disse ontem à noite no Great – Go, explicou calmamente. — Você é um charlatão! Não deveria freqüentar tanto o Watier’s, Horace. Eu já o adverti, e é inútil vir mendigar. Eu não tenho um guineu e não vou pedir ao Sr. Penkridge para voltar a ajudá — lo, pelo menos até ele se esquecer da última vez.
— Apresente — me a essa jovem, tia, e eu nunca mais vou incomodar o Penkridge, disse o sobrinho. Conhece Lady Bridlington não é verdade? Bem, esta jovem está vivendo em sua casa. Lady Penkridge olhou para ele atentamente.
— Se Arabella Bridlington tivesse uma herdeira em casa, ela teria contado para toda a cidade. — Não, você está errada. Fleetwood me disse que ela não quer ser conhecida. Ele não gosta de ser cortejada pelo seu dinheiro. E eu soube por Fleetwood que é de uma beleza impressionante. Tallant é como se chama.
— Tallant? Eu não ouvi esse nome em minha vida.
— Mas por que a haveria de conhecer, tia? Já lhe disse que vem de não sei qual remoto condado do norte.
— Eu não daria nenhum valor a qualquer coisa dita por Fleetwood. — Porém não é ele! Epworth exclamou alegremente. Ele também não sabe nada sobre esta jovem. É o seu amigo, o Incomparable. Está muito informado sobre a família da herdeira e é testemunha de que o que se diz é verdade.
A expressão de Lady Penkridge mudou e um olhar ainda mais perspicaz surgiu nos seus olhos. — Beaumaris? Ela perguntou. Seu sobrinho assentiu. Bem, se ele responde por ela ... É apresentável?
Epworth se surpreendeu.
— Como você pode fazer uma pergunta tão estúpida, tia? Respondeu, indignado. Agora, me responda: você acha que Beaumaris se responsabilizaria por uma jovem que não desfrutasse de uma reputação impecável?
— Não, Não, claro que não, disse ela decidida. Se isso é verdade, e ela não tem parentes vulgares, seria ideal para você, querido Horácio.
— Isso é o que penso tia.
— Vou visitar Lady Bridlington pela manhã decidiu a Sra. Penkridge. — Isso! Faça isso por mim!
— Será um pouco embaraçoso para mim, porque eu nunca tive intimidade com ela. No entanto, isso altera as circunstâncias. Deixe em minhas mãos, meu querido sobrinho! E foi assim que Lady Bridlington foi repentinamente transformada no objeto das atenções da Sra. Penkridge. Como ela nunca tinha tido a honra de receber um convite para um dos seus bailes exclusivos, ficou bastante extasiada, e imediatamente aproveitou para convidar a Sra. Penkridge para a sua festa. A Sra. Penkridge concordou com outro dos seus exíguos sorrisos, e disse que sabia que podia contar com a presença de seu marido, ao mesmo tempo pensando rapidamente em algum tipo de compromisso que dispensasse o seu marido de uma noite aborrecida e proporcionasse um álibi para que o sobrinho pudesse acompanhá — la a festa.
* * *
Capítulo 6
Lady Bridlington não esperava que a festa de Arabella fosse um fracasso, pois era uma boa anfitriã e sempre oferecia os melhores vinhos e refrescos aos seus convidados, porém não tinha imaginado que teria tanto êxito. Havia planejado — a mais com a intenção de apresentar Arabella a outras anfitriãs do que um brilhante evento social; e ainda que tivesse convidado muitos cavalheiros solteiros e descompromissados, como não oferecia o apoio de um baile, nem de um jogo de cartas, tinha poucas esperanças de ver mais do que a metade deles em seus amplos salões. Sua principal preocupação era que Arabella não se apresentasse tão atraente quanto devia, e que pusesse em perigo o seu futuro com algum ato pouco convencional ou alguma referência a aquela lamentável reitoria de Yorkshire. Em geral, a jovem se comportou corretamente, porém em duas ocasiões alarmou a sua madrinha, com um comentário que delatava claramente a humildade de suas origens — como quando perguntou, diante do mordomo, se queria que o ajudasse a preparar as salas para a festa, como se esperasse que lhe dessem um pano para tirar o pó — , bem como algum ato impulsivo que resultasse escandaloso. Lady Bridlington não esquecia a cena que havia tido lugar diante do Soho Bazaar, quando Arabella e ela saíram deste mercado e viram uma pesada carroça parada em frente, e o único animal que a puxava era um esquálido cavalo, que recebia castigos cruéis para que se pusesse em marcha. A recatada jovem que acompanhava lady Bridlington se transformou rapidamente numa fúria que enfrentou o assombrado carreteiro; dando um forte golpe, ordenou — lhe que baixasse imediatamente o chicote — de imediato! — e que não se atrevesse a levantá — lo novamente. O carreteiro, um indivíduo forte como um touro, obedeceu desconcertado e se quedou ali, diante da pequena fúria, mirando — a de quando em quando enquanto ela criticava a sua conduta. Quando o homem se recobrou por fim, tentou justificar — se, porém não conseguir acalmar a jovem. Era um desgraçado cruel, indigno daquele cavalo, e, além disso, um imbecil, porque não se dava conta que a roda estava travada, sem dúvida devido a sua má condução. O homem começou a se enfurecer e a gritar com Arabella, porém dois cocheiros abandonaram os seus veículos, se acercaram da praça e expressaram com marcado acento irlandês, sua concordância com a dama e a sua intenção de saber se aquele carreteiro queria que lhe arrancassem a cabeça. Durante todo este tempo, lady Bridlington se manteve paralisada de horror na porta do estabelecimento comercial, sem saber o que fazer a não ser agradecer que nenhum dos seus conhecidos passava por ali e presenciara aquele assombroso incidente. Arabella advertiu os cocheiros que não queria brigas e pediu ao carreteiro que desatolasse uma das rodas traseiras da carroça. Logo se colocou junto ao cavalo e empenhou — se em soltá — lo. Os cocheiros se apressaram a ajudá — la. Então Arabella dirigiu — se ao carreteiro um conciso e expressivo sermão sobre o quanto era absurdo e injusto zangar — se com os animais, e foi reunir — se de novo com sua madrinha, a quem se dirigiu com serenidade: — Na realidade o fazem por ignorância. E ainda que, quando lady Bridlington reprovou a sua indecorosa conduta em público, a jovem assegurasse que lamentava ter feito uma cena em público, era evidente que não estava arrependida, Disse apenas que seu pai lhe havia dito que em um caso como aquele seu dever era intervir. Porém nenhum protesto formal pôde obrigá — la a expressar o seu arrependimento pela conduta indecorosa que observou dois dias mais tarde, quando entrou em seu quarto e encontrou uma jovem criada, com o rosto inchado, acendendo o fogo. Pelo visto, a criada tinha dor de dente. Pois bem, lady Bridlington não tinha nenhum interesse no fato de seus criados sofrerem de dor de
dente, e se houvessem pedido teria enviado a jovem para que lhe arrancassem o dente. A dona de uma grande casa tem e deve supervisionar o bem estar de seu pessoal. De fato, uns anos atrás, quando era moda vacinar — se contra a varíola, ela mesmo havia inoculado a todos os criados de Bridlington e também a maior parte dos arrendatários de suas terras. A maioria das grandes damas havia feito o mesmo, estava em voga. Porém suplicar que a paciente se deitasse no melhor quarto de hóspede da casa, proporcionando — lhe um xale de seda da índia para que envolvesse a cabeça, e acima de tudo, incomodar sua anfitriã durante a sagrada hora da sesta, irrompendo no seu quarto para pedir láudano, era levar a benevolência longe demais. Lady Bridlington fez o que pode para explicar isso a afilhada, porém esta não lhe prestou a menor atenção. — A pobre jovem está sofrendo muito, madrinha.
— Bobagem. Não te deves impressionar. As pessoas desta classe sempre exageram. Será melhor que amanhã lhe arranquem o dente, se os demais criados puderam passar sem ela e.... — Querida madrinha, asseguro que não está em condições de subir a escada carregada com baldes de carvão – protestou Arabella – Deve tomar algumas gotas de láudano e deitar — se. — Está bem! — disse milady cedendo diante da obstinação da jovem — Porém não é necessário que te alteres tanto, querida. Nem que peça a uma das criadas que se acomode no teu quarto, nem que lhe dê um dos teus melhores xales...
— Não madrinha, eu só o emprestei! — explicou Arabella — . Esta jovem é uma camponesa e creio que os outros criados não a tratam como deveriam. A pobre se sentia sozinha e estava muito triste. A dor de dente piorava tudo, eu creio. Acredito que o que mais necessitava era alguém que se mostrasse carinhosa com ela. Esteve me contando sobre a sua casa, seus irmãos e irmãs pequenos, e...
— Arabella! — gritou lady Bridlington — . Não tens estado a conversar com os criados, não é verdade? — Viu que a sua jovem convidada ficou tensa e apressou — se a explicar: — Nunca deves permitir que as pessoas desta classe te contem a história de suas vidas. Suponho que o faças com as melhores das intenções, porém não imagina os problemas que... — Espero, madrinha — disse Arabella com os olhos brilhantes e o corpo perigosamente rígido — , que nenhum dos filhos de meu pai deixe de atender a uma pessoa necessitada. Lady Bridlington não tardou a compreender que o reverendo Henry Tallant não somente era um grave impedimento para o progresso social de sua filha, como também era uma ameaça cada vez maior para a sua comodidade. Como é lógico não pode expressar esta convicção a Arabella, assim se recostou em suas almofadas e disse em um tom débil:
— Está bem, porém se alguém a escutasse acharia tudo muito estranho, minha querida. Posse o que fosse que os demais poderiam pensar, pode — se observar de imediato aquele episódio havia proporcionado aos criados mais antigos de milady uma idéia muito pobre do nível social de Arabella. A criada pessoal de milady, uma solteirona de lábios finos que sempre havia estado ao seu serviço, e que a criticava sem o mínimo pudor, se atreveu a insinuar, com uma expressão penalizada a sua senhora naquela noite, que era fácil perceber que a senhorita não estava acostumada a viver em uma casa grande e refinada.
Lady Bridlington era muito permissiva com Miss Clara Crowle, mas esta estava indo longe demais. Se os servos, que tinham esse péssimo hábito de falar com cada um de seus patrões, revelassem o segredo para os servos de outras casas, os seus patrões descobririam logo, e então ela estaria em um aperto. Com poucas palavras, circunspectas e bem escolhidas, Lady Bridlington deu a entender a empregada que Miss Tallant vinha de uma mansão sofisticada, e não dava importância às aparências. Para resolver a questão, acrescentou que os costumes vigentes em Londres eram muito diferentes do norte. Miss Crowle, um pouco intimidada, mas ainda com impertinência, fungou e disse:
— Esse foi o meu entendimento, minha senhora. “Então ela olhou para sua patroa no espelho e em um tom obsequioso acrescentou: — Embora eu tenha certeza que ninguém jamais suspeitaria que a moça veio do norte, porque ela fala muito bem.
— É claro, confirmou friamente Lady Bridlington, esquecendo — se que ela tinha experimentado grande alívio quando Arabella a saudou à chegada e ela descobriu que não havia sotaque estranho para estragar sua voz doce. Mais uma vez ela tinha ponderado na possibilidade assustadora de sua afilhada falar com sotaque de Yorkshire. Lady Bridlington não sabia, mas a pureza do acento de Arabella era um mérito do reverendo Tallant, um homem muito exigente e religioso para permitir a negligência das crianças em relação a fala e que, franziu a testa quando ouviu a imitação cômica das conversas dos peões que fizeram Bertram e Harry.
Foi fácil silenciar Miss Clara Crowle, mas a conduta reprovável de Arabella causou grande apreensão a Lady Bridlington, e ela estava se dirigindo à festa com menos calma do que o habitual. No entanto, a partida não poderia ter corrido melhor. Para garantir que, pelo menos na aparência, Arabella a honraria, Lady Bridlington enviou nada menos do que Miss Crowle para dar os últimos retoques em sua preparação. Miss Crowle não gostou que a enviassem para oferecer seus serviços a Arabella, isso acontecia desde que fora enviada para uma jovem que não pôde ajudar, mas ficou animada quando viu o quão bem assentou em Arabella o vestido de crepe amarelo e a elegância com que ela usava um lenço sobre os ombros. No mesmo instante ela percebeu que não poderia melhorar o estilo simples dos cachos escuros reunidos em um coque no alto na cabeça e com alguns cachos soltos na altura das orelhas, mas implorou a Miss Tallant que permitisse arrumar as flores. Com mãos hábeis, colocou o buquê de rosas artificiais, no ângulo certo, e ficou tão satisfeita com o resultado que disse que a senhorita seria a mais bonita da festa, que cabelos castanhos e louros já estavam fora de moda.
Arabella, ignorando a condescendência que Miss Crowle estava demonstrando, apenas riu, e essa amostra de frescor melhorou um pouco a opinião que a Miss tinha dela. Ela estreava em sua primeira festa em Londres, muito animada com a chegada, apenas uma hora antes, do seu primeiro buquê de flores. Ela tinha levado o pacote imediatamente para seu quarto, e quando o abriu, viu um lindo buquê com um cartão de Lord Fleetwood com “Meus agradecimentos” – escrito com grande delicadeza – e amarrado com fitas amarelas, Arabella tinha — o posto sob o espelho. Miss Crowle o viu e ficou impressionada.
Quando Lady Arabella Bridlington fez a revista pouco antes do jantar, ficou encantada e achou que Sophia Theale sempre teve um gosto requintado. Nada mais poderia ter favorecido Arabella que este delicado manto amarelo, aberto na frente, em uma combinação de cetim branco, decorado com estampas de pequenas rosas para combinar com o a decoração de seu cabelo. Ela estava
usando apenas o anel que tinha recebido de seu pai e o colar de pérolas de sua avó. Lady Bridlington ficou tentada em chamar Clara e pedir — lhe para trazer duas pulseiras de ouro e pérolas de sua caixa de jóias, mas decidiu que os bonitos braços de Arabella não precisavam ornamentos. Além disso, iria usar longas luvas, as pulseiras deste modo não seriam vistas. — Você está linda, querida! Ela exclamou. Estou contente por ter lhe enviado Clara. Por Deus! De onde vieram estas flores?
— Foram enviadas por Lord Fleetwood, madrinha Arabella respondeu orgulhosamente. Lady Bridlington ficou decepcionante essa informação e disse com serenidade. — Oh, sim? Nesse caso, certamente o veremos hoje à noite. Olha, querida, não espere muitas pessoas. Suponho que o meu salão estará respeitavelmente completo, mas ainda não começou a temporada por isso não sofra se não vier tantas pessoas como você pensava.
Lady Bridlington poderia ter dispensado aquelas palavras de encorajamento. As dez da noite, suas salas estavam lotadas com convidados, enquanto ela ainda estava ao pé da escada, esperando por aqueles que viriam depois. Ela nunca tinha visto nada parecido. Mesmo Wainfleet, que não tinha esperança de ver, tinha comparecido, e a altiva Lady Penkridge, acompanhada de seu elegante sobrinho, foram um dos primeiros a chegar e cumprimentaram Arabella carinhosamente, enquanto ela era apresentada a Lord Epworth. Lord Fleetwood também tinha vindo juntamente com seu amigo, o Sr. Oswald Warkworth, ele ficou perto de Arabella, muito galante e animado. Lady Somercotes veio com dois de seus filhos, Lord Kirkmichael, Lord Dewsbury e Sir Morecambe Geoffrey tinham comparecido, assim como Accrington, Charnwood e Sefton. Lady Sefton, uma mulher linda, foi muito gentil com Arabella, e mais tarde prometeu enviar um convite para o Almack. Lady Bridlington não cabia em si de alegria. O último convidado chegou depois das onze, quando sua senhoria se preparava para deixar o posto e se juntar a seus convidados nos salões: Mr Beaumaris subia lentamente os degraus. Milady esperava, cheia de orgulho com o seu luxuoso vestido de cetim roxo, e nas mãos segurava o seu leque que abanava ligeiramente sob a influência das vitórias acumuladas da noite. Beaumaris cumprimentou — a com cortesia distante e Lady Bridlington respondeu com uma tolerável serenidade, agradecendo — lhe pela amabilidade com sua afilhada em Leicestershire.
— Foi um prazer, minha senhora, respondeu ele. Espero que a senhorita Tallant tenha chegado à cidade, sem sofrer qualquer acidente.
— Sim, claro. E agradeço — lhe por nos visitar e se interessar por ela. Lamentamos não ter nos encontrado em casa naquele dia. Miss Tallant encontra — se em um dos salões. Está também sua prima, Lady Wainfleet.
Beaumaris cumprimentou — a com um aceno e seguiu para uma das salas. Um minuto depois, Arabella, que estava recebendo as atenções de Lord Fleetwood, Sr.Warkworth e Sr. Epworth, o viu atravessar a sala para falar com ela, parando um par de vezes para cumprimentar seus amigos. Até então ela acreditava que o Sr. Epworth fosse o homem mais bem vestido de todos os que estavam lá, ele ficou impressionado com a delicadeza de sua roupa, e a profusão de anéis, agulhas, chaveiros, correntes que ele ostentava. No entanto, quando ela percebeu a figura alta e máscula de
Beaumaris, percebeu que a ombreiras de Epworth, a cintura de vespa e o colete eram absolutamente ridículos. Não havia nada que pudesse oferecer maior contraste com a sua extravagância do que o casaco e a calça preta de Beaumaris, sua veste branca simples, a corrente de relógio pendurada nela e o alfinete com uma única pérola preso nas pregas intricadas de sua gravata. Nenhuma das roupas que usava foi projetada para atrair a atenção, mas fazia com que os outros homens presentes parecessem demasiadamente enfeitados ou um pouco desalinhados. Beaumaris veio até ela e sorriu, e quando ela estendeu a mão, ele a levou rapidamente os lábios. — Como vai, Miss Tallant? Estou contente por ter a oportunidade de vê — la novamente. — Que azar! Epworth exclamou, olhando maliciosamente para Arabella. Fleetwood e você perderam por uma mão. Que pena!
Beaumaris olhou — o de sua altura superior, como se estivesse tentando decidir se aquela ironia merecia uma resposta, decidiu que não e olhou para Arabella.
— Diga — me o que acha de Londres. É claro que a cidade considera você maravilhosa. Posso oferecer — lhe um copo de limonada?
Este oferecimento pôs Arabella em guarda. Ela já tinha tido tempo para descobrir que retirar o vinho da mesa no final do primeiro prato não era uma prática usual, e tinha sérias suspeitas de que estava sendo testada por Beaumaris . No entanto, ele a estava olhando muito sério e os seus olhos não traiam nenhum indício de escárnio.
Antes que Arabella pudesse responder, Lord Fleetwood cometeu um erro estratégico e disse: — Claro que sim! Claro que você está sedenta, senhorita. Vou pegar um copo de imediato. — Bom Charles, disse cordialmente Beaumaris. Permitam — me que a leve para além de esta aglomeração, Miss Tallant.
Beaumaris deve ter dado a sua concordância como certa porque, sem esperar que ela respondesse, levou — a a um sofá vazio ao lado de uma parede. Arabella não soube explicar como o seu companheiro tinha conseguido encontrar o caminho através da multidão animada de convidados, porque Beaumaris nem sequer precisava pedir para passar. Era suficiente apenas um toque no ombro de um senhor ou um aceno e um sorriso para uma senhora. Ele sentou ao lado dela no sofá, colocando — se um pouco de lado para olhar em seus olhos com uma das mãos na parte de trás do sofá, enquanto com a outra brincava distraído com seu monóculo. — O local é como você esperava, miss? Ele perguntou, sorrindo.
— Londres? Sim, é verdade! Eu nunca tinha ficado tão feliz!
— Estou feliz, disse ele.
Arabella lembrou que Lady Bridlington tinha dito que não devia demonstrar muito entusiasmo, era elegante não se mostrar muito satisfeita. Ela também lembrou que havia prometido não causar uma má impressão ao Sr. Beaumaris, e tão languidamente quanto pôde, acrescentou: — Há muitas pessoas em toda parte, é claro, mas é sempre bom fazer novos amigos.
— Não, não a arruíne! Exclamou ele, rindo. A primeira resposta foi ótima. Ela olhou para ele com desconfiança, mas as covinhas inevitáveis apareceram no seu rosto. — Mas só os provincianos demonstram o seu prazer, senhor!
— Sério?
— Eu suspeito que você não gosta de reuniões como esta.
— Você está errada: Eu gosto da reunião dependendo de com quem eu estou. — Isso, disse Arabella ingenuamente, depois de pensar um momento, é a melhor coisa que me disseram esta noite.
— Então eu suponho, Miss Tallant, que Fleetwood e Warkworth não encontraram palavras para expressar o que sentem em relação a sua requintada imagem. Que estranho! Eles me deram a impressão que estavam dirigindo — lhe todos os tipos de elogios.
Arabella riu.
— Sim, mas apenas disparates. Eu não acredito que nenhuma das palavras que eles falaram. — Espero que acredite no que eu digo, eu falo sério.
O tom casual que ele usou parecia contradizer suas palavras. Arabella achou desconcertante, deu — lhe outro de seus olhares especulativos e decidiu que deveria responder da mesma maneira. — Está demonstrando tanta atenção por mim para que todos possam observar — me, Senhor Beaumaris? Ele perguntou com ousadia.
Ele olhou ao redor da sala lotada, com as sobrancelhas arqueadas ligeiramente. — Acho que você não precisa da minha ajuda, senhorita. Ele viu Lord Fleetwood tentando romper um grupo de pessoas, com um copo na mão, e esperou até que ele atingisse o sofá. Obrigado, Charles, disse ele calmamente tomar o copo para oferecê — la a Arabella. — Você vai me ouvir, pela manhã, Robert! Lord Fleetwood protestou. Este é o ato de pirataria mais descarada que eu já vi. Miss Tallant, porque você não diz a esse indivíduo para lidar com seus problemas? Sua audácia excede em muito que é tolerável!
— Você tem que aprender a não ser tão impulsivo, aconselhou gentilmente Beaumaris. Um momento de reflexão, uma pitada de habilidade, e teria sido eu que iria buscar a limonada, e você, que teria o privilégio de sentar ao lado de Miss Tallant neste sofá.
— Mas quem ganhou a minha gratidão é Lord Fleetwood, porque ele foi muito cavalheiro, disse Arabella.
— Obrigado, Miss Tallant.
— Você recebeu a sua recompensa, assim você pode ir, disse Beaumaris.
— Não conte com isso! Disse milord.
— Quantas vezes eu tive que lamentar a sua falta de tato! Beaumaris exclamou com um suspiro. Arabella, radiante sob a influência da troca de farpas emocionante, aproximou o buquê de flores do nariz, olhou com gratidão para Fleetwood, e disse:
— Estou duplamente grata a Lord Fleetwood!
— Não, Miss Tallant, sou eu quem fico grato, por ter se dignado a aceitar o meu pequeno presente. Beaumaris olhou para o buquê e sorriu, mas nada disse. Arabella, observando o Sr. Epworth, que rondava nas proximidades, de repente, perguntou:
— Mr. Beaumaris, quem é esse senhor que se veste de maneira tão estranha? Ele se virou e disse:
— Há tantos homens vestidos de forma estranha, Miss Tallant, eu receio que não saiba de quem você fala. Talvez o pobre Fleetwood?
— Claro que não! Arabella exclamou indignada.
— Bem, eu tenho certeza que seria difícil encontrar algo mais estranho do que o colete que ele usa. É desanimador, porque eu passei a maior parte do meu tempo para tentar melhorar o seu gosto. Ah, eu acho que sei o que quis dizer! Este, Miss Tallant, é Horace Epworth. De acordo com a sua própria opinião, sem dúvida, encarna uma série de personagens que tenho razão para acreditar, que você detesta.
— É um dandi ...? Arriscou a menina corando.
— Ele gostaria que você pensasse que sim, é claro.
— Bem, se é, disse Arabella, francamente, não há dúvida de que você não é, e perdoe — me por dizer — lhe naquela noite.
— Não fale do seu perdão, senhorita! Cortou Lord Fleetwood. Era hora de alguém o pôr em seu lugar, garanto — vos, foi um duro golpe para ele. Você sabe, o Sr. Beaumaris é considerado um sibarita.
— Um sibarita? O que significa isso? Arabella perguntou.
— Um sibarita, além de ser uma árbitro da moda, é um amante do jogo, um mestre de esgrima, um homem com a arma infalível, um cavaleiro sem igual, um ...
Beaumaris interrompeu o catálogo que ele parodiava em um tom solene: — Se você joga pesado, Charles, eu não tenho escolha, senão explicar para Miss Tallant o que as pessoas querem dizer quando elas te chamam de “cigarra”.
— Então? “Arabella perguntou maliciosamente.
— Um frívolo e um charlatão, miss, que não merece sua atenção, disse Beaumaris pondo — se de pé. Vejo ali a minha prima, vou cumprimentá — la. Ele sorriu, acenou com a cabeça e se afastou. Ficou um par de minutos falando com Lady Wainfleet, bebeu um copo de vinho com Warkworth, felicitou a sua anfitriã sobre o sucesso da festa e depois retirou — se, cumprindo a missão que tinha se proposto: colocar Arabella na escada da notoriedade. A notícia de que a rica Miss Tallant era a última conquista do Sr. Beaumaris não demorou vinte e quatro horas para se espalhar pela cidade. — Você viu Beaumaris cortejar esta bela jovem? Lord Wainfleet perguntou a sua esposa, quando eles voltavam para sua casa no carro.
— Claro que sim! Ela disse.
— Ele parecia fascinado pela jovem, certo? Não é como muitas vezes acontece. Pergunto — me se tem as intenções sérias.
— Robert? Respondeu a mulher dele com desprezo. Se você o conhecesse tão bem como eu, Wainfleet, você teria percebido que ele estava apenas se divertindo. Mas como ele dissimula bem! Alguém deveria avisar a esta garota para não confiar nele. É uma crueldade por parte dele, porque ela não é mais do que uma criança.
— Nos clubes dizem que é multimilionária.
— Foi o que eu ouvi, mas não sei o que isto tem haver. Robert é extremamente rico, e se casar, o que eu começo a duvidar, não será por uma fortuna, eu lhe garanto. — Você está certa, concordou milord. Diga — me, porque fomos à festa, Louisa? Você sabe como essas reuniões me aborrecem.
— Porque Robert me pediu para participar. E admito que estava curiosa para ver sua herdeira. Ele me garantiu que a faria a mulher mais popular de Londres.
— Para mim soa como conto da carochinha, disse milord. Por que ele deveria fazê — lo? — Isso foi o que lhe perguntei! E ele disse que seria divertido. Às vezes, Wainfleet, eu gostaria de dar um tapa em Robert.
* * *
Capítulo 7
A prima de Beaumaris não era a única que abrigava idéias de vingança contra ele. Lady Somercotes, que apesar de adorar os seus filhos não era tão estúpida para acreditar que qualquer um deles poderia ser mais atraente para a herdeira que o Sr. Beaumaris, teria adorado enfiar o longo alfinete de diamante que levava nos cabelos entre as suas costelas, a Sra. Kirkmichael pensava amargamente que Beaumaris, tendo em conta o número de vezes que ela tinha se incomodado em convidá — lo, poderia ter dedicado mais atenção à sua lânguida filha, um gesto que não lhe teria custado nada, e que teria ajudado a pobre Mary a se destacar um pouco na sociedade, o Sr. Epworth, ciente de que por algum motivo inescrutável, Mr. Beaumaris sempre lhe fazia sombra, andou pelos clubes assegurando que ele estava determinado a dar uma lição nele, sua tia, que certa vez tinha discutido violentamente com Lady Mary Beaumaris, afirmava que o rapaz tinha herdado a tendência ao galanteio de sua mãe, acrescentando que ela tinha compaixão da mulher com quem ele acabaria por casar. Mesmo o Sr. Warkworth e Lord Fleetwood sentiam que era muito ruim jogar com a mulher mais desejável da temporada, e vários cavalheiros que copiavam cegamente todos os detalhes da roupa de Beaumaris desejavam vê — lo enterrado. Só teve uma voz que não se elevou para aumentar aquele coro de desaprovação: lady Bridlington desfazia — se em elogios ao jovem. Durante todo o dia seguinte não foi capaz de falar de nada mais. Enquanto Beaumaris estava sentado ao lado de Arabella, nem um sorriso, nem um único gesto escaparam ao olhar ansioso da dama. Beaumaris não tinha prestado atenção a nenhuma outra jovem que estavam presentes e nada tinha feito para dissimular que achava a senhorita Tallant adorável: não havia ninguém em Londres, mais afável, mais educado, mais condescendente ou que estivesse em melhores relações com Lady Bridlington. Sua madrinha não se cansou de repetir a Arabella que tinha o sucesso assegurado; até que diminuíssem um pouco estes primeiros arrebatamentos, não foi capaz de se mostrar bastante racional para fazer alguma advertência à jovem. Quanto mais pensava nas atenções que o senhor Beaumaris tinha prodigalizado à sua afilhada, quanto mais recordava que muitas jovens inocentes tinham caído vítimas do seu charme, mais se convencia de que era necessário pôr Arabella em guarda.
— Estou segura, querida — acabou dizendo — lhe com seriedade e um olhar que indicava certa ansiedade — de que é demasiado inteligente para se deixar enganar. Mas quero que entendas que devo ocupar o lugar de sua mãe, e acho que é minha obrigação lhe avisar de que o senhor Beaumaris é um sedutor implacável. Ninguém poderia se alegrar mais que eu dele ter se fixado em você, mas não convém, minha querida, que te entusiasmes em excesso. Sei que bastará que te faça um comentário, e que não se ofenderá por isso. Beaumaris é um solteiro empedernido. Não imaginas a quantidade de corações rompeu. A pobre Theresa Howden (que anos mais tarde se casou com lord Congleton) sofreu muito dos nervos, e seus afligidos pais pensaram que seria fatal. De fato, acreditavam (e asseguro — te que aquela temporada não se falou de outra coisa) que... Mas não! Não aconteceu nada!
Como Arabella era a jovem mais bela em trinta quilômetros ao redor de Heythram, já sabia distinguir entre um sedutor e um homem sério, de maneira que replicou sem vacilar:
— Sei muito bem que o senhor Beaumaris não quer dizer nada com seus elogios. — Tranquilize — se, madrinha, porque não corro o perigo de que me enganem como a uma tonta. — Assim espero, querida!
— Pode estar segura de que isso não acontecerá. Se não encontra nenhuma objeção madrinha, gostaria de permitir que o senhor Beaumaris me dedique suas atenções, e obter todas as vantagens que consiga. Ele acha que está se divertindo a minha custa; eu penso que posso tirar um bom proveito disso. Mas em relação à possibilidade de que me apaixone... É impossível! — Bom, não podemos confiar em que siga se fixando em ti — disse lady Bridlington com desacostumada cautela — Se o fizesse, seria estupendo, mas afinal de contas não há nada assegurado. No entanto, a festa de ontem à noite bastou para lançar — te, querida, e estou muito agradecida ao senhor Beaumaris. — Deu um extasiado suspiro e acrescentou — Suponho que agora te convidarão a toda parte!
Lady Bridlington estava certa. Em menos de duas semanas encontrou — se na feliz situação de ter cinco festas para a mesma noite, e Arabella viu — se obrigada a usar o presente de cinquenta libras de sir John para renovar seu vestuário. Tinham — na visto passeando pelo parque à hora de maior afluência de público, sentada ao lado do Incomparável em seu faetón elevado; no teatro não a tinham deixado sozinha nem um momento; saudava a toda classe de personagens ilustres; tinha recebido duas propostas de casamento; lord Fleetwood, o senhor Warkworth, o senhor Epworth, sir Geoffrey Morecambe e o senhor Alfred Somercote (para mencionar só os pretendentes mais destacados) se contavam entre os rivais do senhor Beaumaris. Enquanto isso, lord Bridlington tinha chegado do Continente e descoberto que, em sua ausência, sua mãe se dedicava a encher a casa de desconhecidos.
Com tom comedido, declarou que estava muito insatisfeito com as explicações de sua mãe. Era um jovem baixo e corpulento, mais sério do que fazia crer os seus vinte e seis anos. Não era dotado de uma grande inteligência, mas lia muito e tinha adquirido desde pequeno o hábito de acumular informação mediante a meticulosa leitura de volumes autorizados, de maneira que sua memória retentiva possuía grande quantidade de informações que não tinha objeção em compartilhar com seus menos instruídos contemporâneos. A morte de seu pai, acontecida quando ele ainda estudava em Eton, unido à convicção de que sua mãe precisava dos constantes conselhos de um varão, tinham agravado desastrosamente a sua vaidade. Orgulhava — se de seu senso comum; administrava sua fortuna com grande zelo; desagradava — lhe muitíssimo quando a situação fugia do usual; deplorava a frivolidade daqueles que poderia considerar como seus amigos. A euforia que sentia sua mãe por não ter passado nem um dia sozinha em casa nestes últimos dez dias não produziu nele nenhum júbilo. Não entendia que lady Bridlington perdesse tempo com reuniões sociais, nem por que tinha cometido a estupidez de convidar uma jovem tola para sua casa. Temia que o custo daquela confusão resultasse desorbitado; se lady Bridlington lhe tivesse pedido conselho, o que supunha não seria um grande esforço para ela, ter — lhe — ia recomendado que não convidasse Arabella a Londres.
A severidade de Frederick deixou lady Bridlington um tanto abatida, mas como seu finado esposo lhe tinha legado uma importante herança que podia desfrutar, que ela sempre tinha utilizado para compartilhar os gastos da casa de Park Street com seu filho, pôde lhe recordar que os custos aumentados devido à presença de Arabella seriam cobertos por ela, e não por ele. Frederick
assegurou que não tinha intenção de impor nada a sua mãe, mas que seguia opinando que aquele assunto era uma insensatez. Lady Bridlington queria muito a seu único filho, mas o sucesso de Arabella tinha — lhe subido à cabeça, e não estava com humor para escutar sombrios conselhos. Reprochou Frederick por dizer tantas tolices; ele assentiu com a cabeça, apertou as mandíbulas e lhe assegurou que mais tarde recordaria suas palavras, acrescentando que se desinteressava daquele assunto. Lady Bridlington, que não tinha nenhuma intenção de que seu filho fosse vítima dos encantos de Arabella, se debatia entre a exasperação e o alívio ao comprovar que Frederick não mostrava sinais de sucumbir a eles.
— Reconheço que é uma jovem muito formosa — admitiu Frederick — mas seus modos têm uma ligeireza que me desagrada, e esta agitação que lhe impôs não é do meu gosto. — Nesse caso, não entendo por que voltaste correndo para casa — disse sua mãe. — Pensei que era meu dever, mãe — justificou — se Frederick.
— Pois é uma tolice, toda a gente irá considerá — lo muito estranho. Ninguém esperava vê — lo na Inglaterra antes do mês de julho.
Lady Bridlington equivocava — se: ninguém estranhou que lord Bridlington tivesse encurtado sua viagem. A senhora Penkridge resumiu sucintamente a opinião de todos quando assegurou que ela já tinha imaginado desde o início que a intrigante lady Bridlington queria casar a herdeira com seu filho.
— Via — se à léguas de distância! — declarou com um riso amargo e irônico. E a hipócrita fingindo que não esperava lord Bridlington na Inglaterra até o verão! Creia — me, Horace, irão se casar antes que termine a temporada.
— Pelo amor de Deus, tia! Lord Bridlington não é rival para mim! Exclamou seu sobrinho, ofendido. — Então és um tolo? Explodiu a senhora Penkridge — Tudo joga a seu favor! Tem um nome honrado, e um título, o qual deve atrair muito a essa jovem, e ademais conta com a vantagem de viver na mesma casa, de estar sempre disponível para atender a seus desejos, a acompanhá — la a festas e... Ai, vou perder a paciência!
No entanto, desde o momento em que trocaram a primeira saudação, a senhorita Tallant e lord Bridlington tinham sentido uma antipatia mútua que não foi em absoluto mitigada pela necessidade de ambos de se comportar um com o outro de forma complacente e cortês, pois nem Arabella teria entristecido sua anfitriã, por toda a fortuna que achavam que possuía, confessando que não gostava de seu filho, nem o sentido de decoro de Frederick, que o impediria de descuidar de qualquer atenção que exigisse a convidada de sua mãe. Não só valorizava, como também, já que tinha uma mente precavida, aplaudia a ambição da senhora Tallant de situar bem a suas filhas; e como sua mãe tinha assumido a tarefa de lhe procurar um marido, estava disposto a apoiar seus planos. O que o surpreendeu e incomodou profundamente foi descobrir, em apenas uma semana após seu regresso a Londres, que todos os caçadores de fortunas da cidade andavam atrás de Arabella.
— Não consigo entender, mãe, o que tenhas dito para que alguém pense que a senhorita Tallant é uma rica herdeira.
Lady Bridlington, que em mais de uma ocasião se tinha formulado a mesma pergunta, replicou com inquietude:
— Eu não disse nada, Frederick. Não vejo motivo para que alguém tenha podido supor tal absurdo. Tenho de reconhecer que me surpreendeu um pouco que... Mas veja, é uma jovem muito atraente, e o senhor Beaumaris ficou encantado com ela.
Nunca tive intimidade com Beaumaris. Não gosto das pessoas com que se relaciona e nem me parece correto que dirija seus galanteios a uma jovem tão modesta. Ademais, a influência que exerce sobre pessoas que eu supunha que tinham um pouco mais de... — Isso não importa — apressou — se a dizer sua mãe — . Você mesmo me disse ontem, Frederick. Podes pensar o que quiser de Beaumaris, mas nem sequer você pode negar que se acha em situação de fazer famoso a quem queira.
— Sim, mãe, mas duvido de que tenha poder para convencer a homens como Epworth, Morecambe, Carnaby e (devo acrescentar) Fleetwood para que proponham casamento a uma jovem que nada tem a oferecer além de uma bonita aparência.
— Fleetwood não! — protestou lady Bridlington debilmente.
— Sim, Fleetwood! — repetiu Frederick, implacável — . Não digo que ande procurando uma esposa rica, mas todo mundo sabe que não pode se permitir casar com uma jovem sem posses. No entanto, as atenções que prodigaliza à senhorita Tallant são ainda mais notáveis que as de Horace Epworth. E isso não é tudo! A julgar por algumas indiretas que lançou em minha presença, e por certos comentários que me fez diretamente, estou convencido de que a maior parte de nossas amizades acha que a senhorita Tallant possui uma considerável fortuna. Pergunto uma vez mais, mãe: que disseste para que surgisse esse disparatado rumor?
— Não disse nada! — insistiu a pobre lady Bridlington, a ponto de chorar — . E mais, fiz um grande esforço para não tocar no assunto de suas expectativas de herança. E não é verdade que não tenha nem um cêntimo. Como é lógico, com tantos filhos, os Tallant não podem fazer muito para casá — la, mas quando morrer seu pai, e Sophia, porque ela também possui algum dinheiro... — Umas mil libras? — interrompeu — a Frederick com desdém. Rogo que me perdoe, mãe, mas é evidente que mencionaste algo, ainda que seja sem se dar conta, que provocou esta circunstância enganosa. Porque isso é o que é: um engano. Em que situação nos encontraremos se toda essa gente começar a dizer (e dirão quanto se descobrir a verdade) que tens estado a proteger a uma impostora?
Essa terrível perspectiva distraiu momentaneamente lady Bridlington da intensa sensação de injustiça que tinham produzido os comentários anteriores de seu filho. — Que podemos fazer? — perguntou enquanto empalidecia notavelmente. — Confia em que farei tudo que seja necessário, mãe. À mínima ocasião, direi que ignoro como pode ter se espalhado esse rumor.
— Sim, suponho que isso é o que deves fazer — concordou sua mãe, receosa. Mas te suplico, Frederick, que não fales com qualquer um deste assunto. Não há nenhuma necessidade de que entres nos pormenores das circunstâncias da pobre Arabella.
— Seria indecoroso de minha parte, mãe. Eu não sou o responsável pela sua visita a Londres. Devo recordar — lhe que foi você quem se comprometeu (em minha opinião, imprudentemente) em lhe procurar um bom partido. Não é minha intenção pôr em perigo a oportunidade de Arabella de contrair casamento. E mais, como deduzo que pensas em permitir que viva aqui até que algum cavalheiro lhe proponha casamento, alegrar — me — ei de vê — la casada o quanto antes. — Que desagradável és! Exclamou lady Bridlington, e rompeu a chorar. Quando Arabella entrou na habitação de sua madrinha, esta seguia muito incomodada; encontrou — a enxugando as lágrimas com um lenço e assoando o nariz. Consternada, a jovem rogou que lhe revelasse o motivo de sua tristeza. Lady Bridlington, aliviada ao ver que tinha uma audiência compreensiva, lhe apertou a mão em sinal de agradecimento e, sem pensar, desafogou todas suas queixas.
Ajoelhada junto a sua cadeira, Arabella escutava em silêncio, muito preocupada e tendo entre as mãos a mão lânguida da dama.
— Frederick foi muito cruel! — protestou esta. E muito injusto, porque lhe asseguro, querida, que jamais disse nada parecido a ninguém. Como pôde pensar meu filho que sou capaz de fazer algo assim? Teria sido infame divulgar semelhante mentira, além de ridículo e vulgar, e muitas mais coisas horríveis. E não entendo como Frederick possa ter pensado que eu possa ter perdido por completo o sentido do decoro.
Arabella estava destroçada; a vergonha e o arrependimento tinham — na deixado quase aturdida e incapaz de falar. Mal interpretando sua confusão, a sua madrinha ficou com um peso na consciência por ter se aberto para ela num momento de fraqueza. — Não devia ter lhe contado! Frederick tem a culpa de tudo, e estou segura de que exagerou, como costuma fazer. Não deves deixar que isto lhe aflija, minha querida, porque ainda que fosse verdade, seria absurdo supor que a um cavalheiro como o senhor Beaumaris, o jovem Charnwood ou como muitos outros que poderia nomear, se importariam o mínimo que fosse se és uma rica herdeira ou uma indigente. E Frederick encarregar — se — á de esclarecer tudo!
— Que vai fazer para explicar? — conseguiu perguntar Arabella.
— Quando encontrar a ocasião, verá o modo de apagar esses ridículos rumores. Refiro — me a que dirá qualquer coisa para diminuir a importância deste assunto. Nós não temos nada de que nos preocupar, e lamento ter falado disto com você.
Arabella almejava ter coragem para confessar tudo a sua madrinha, mas não tinha. Lady Bridlington seguiu falando, queixando — se da crueldade de Frederick, perguntando — se que motivos ele tinha para pensar que sua mãe fosse capaz de dar patíbulo a semelhante mentira, e desejando que seu pai estivesse vivo para que lhe passasse um de seus famosos sermões.
— É por isso... Que todo mundo foi tão educado comigo, madrinha? — conseguiu perguntar a jovem em tom apagado.
— Claro que não! — contestou lady Bridlington categoricamente — . Já deves ter visto, minha querida, quantos amigos eu tenho em Londres, e acho que te aceitaram pelo respeito que me têm. Com isso não quero dizer... Entretanto, como é lógico, antes que a conhecessem foi meu bom nome que a pôs no bom caminho. — Deu umas consoladoras palmadinhas na mão a sua afilhada e prosseguiu — : E ademais és tão esperta e tão bonita, que não me estranha que sejas tão solicitada. E sobretudo, Arabella, temos de recordar que toda a gente sempre segue o que parece estar em moda, e o senhor Beaumaris te fez famosa se ocupando de você, inclusive passeando com você em seu faetón, o que é uma grande honra, lhe asseguro.
Arabella seguia cabisbaixa.
— Lord Bridlington pensa contar a todos que... que careço de fortuna, madrinha? — Deus dos Céus! — Claro que não, pequena! Isso seria terrível, e espero que meu filho tenha mais senso comum. Limitar — se — á a assinalar que esse rumor é um exagero; o suficiente para afugentar os caçadores de fortunas, mas sem espantar os homens honrados. — Não penses mais nisso, por favor!
Arabella viu — se incapaz de obedecer a essa ordem. Demorou muito para poder pensar em outra coisa. Seu primeiro impulso foi fugir de Londres e voltar a Heythram, mas mal tinha terminado de calcular se ainda tinha dinheiro suficiente para pagar o bilhete na primeira diligência, quando pensou em todas as dificuldades associadas a uma partida tão precipitada. Eram insuperáveis. Não se atrevia confessar a lady Bridlington que a mal educada e infame responsável por aquele rumor era ela, e também não lhe ocorria nenhuma desculpa para voltar a Yorkshire. Menos ainda podia enfrentar a necessidade de contar a seus pais o seu vergonhoso comportamento. Devia permanecer em Park Street até que tivesse terminado a temporada, e se sua mãe se entristeceria ao ver seus planos frustrados, ao menos seu pai nunca culparia a sua filha por ter regressado a casa sem nenhuma promessa de casamento. Estava suficientemente consciente de que, a não ser que sucedesse algo maravilhoso, isso era o que aconteceria, de maneira que se sentia muito culpada. Demorou várias horas para recobrar seu estado de ânimo habitual, mas era jovem e otimista, e depois de um bom choro, seguido de um período de serena reflexão, começou a recuperar a esperança. Ocorreria algo que resolveria seus problemas; o odioso Frederick acalmaria os rumores, e pouco a pouco todos se aperceberiam que tinham se equivocado. O senhor Beaumaris e lord Fleetwood a tachariam, sem dúvida alguma, de vulgar e fanfarrona, mas confiava que não tivessem contado a todo mundo que o responsável por aquele rumor era ela. Enquanto isso, não podia fazer mais que se comportar como se não soubesse de nada, tarefa que, para uma criatura otimista por natureza, não resultava tão difícil como poderia parecer: Londres oferecia — lhe demasiados entretenimentos para continuar deprimida. Quiçá achasse que todos seus sonhos tinham malogrado, mas só uma jovem incomum teria recordado suas dificuldades quando não paravam de chegar à casa ramos de flores e cartões; quando recebia convites para todo tipo de espetáculos que tinham conhecimento as damas londrinas; quando todos os cavalheiros da cidade solicitavam que lhes reservasse um dança; quando o senhor Beaumaris a levava para passear pelo parque com seu par de cavalos de raça e as demais jovens a olhavam com inveja. Fosse qual fosse a causa, o sucesso
social resultava muito agradável, de maneira que era natural e humano que Arabella não pudesse evitar — se de tirar partido.
Esperava haver uma diminuição considerável entre seus admiradores logo que lord Bridlington tivesse explicado que tinham exagerado muito sobre a sua fortuna, e se preparou para suportar essa humilhação. Mas ainda que soubesse por lady Bridlington que Frederick tinha cumprido fielmente com seu dever continuava recebendo convites e os solteiros continuavam borboletando em torno dela. Animou — a pensar que, afinal de contas, a boa sociedade não era tão interesseira como tinha acreditado a princípio. No entanto, nem Arabella nem Frederick tinham a menor idéia do que estava acontecendo: ela, porque era demasiado ingênua; Frederick, porque nunca em sua vida ter — lhe — ia ocorrido pensar que alguém pudesse pôr em dúvida algo que ele tivesse dito. Mas nessa ocasião, o esforço de Frederick resultou completamente em vão. Até o senhor Warkworth, um cavalheiro caridoso, balançou a cabeça e comentou com sir Geoffrey Morecambe que Bridlington estava tentando enganá — los.
— Isso mesmo que eu pensava — concordou sir Geoffrey examinando sua gravata no espelho com um gesto de insatisfação — Que truque tão velho. Achas que o nó da minha gravata parece — se com o novo estilo do Incomparável?
Warkworth dirigiu — lhe uma longa e desapaixonada mirada e respondeu: — Não.
— Sim. Eu também penso que não — admitiu sir Geoffrey, tristemente, mas nada surpreendido — Pergunto — me como irá chamá — lo. Não é exatamente um Coche de Correos, nem um Osbaldeston, eu penso; e ainda creio que se parece um pouco com um Trône d’ amour, mas também não é o mesmo. Todos esses nós eu sei fazer.
Warkworth, cujo pensamento se tinha desviado desse assunto de vital importância, disse franzindo a testa:
— Maldito seja! Que vileza, tens razão!
Sir Geoffrey sentiu — se um pouco doído.
— Tão grave te parece, Oswald?
— Sim – afirmou — . De fato, quanto mais penso nisso, pior me parece. Sir Geoffrey olhou — se com muita atenção no espelho e suspirou.
— Sim, tens razão. Terei que ir a casa e trocá — la.
— Como ? exclamou Warkworth, desconcertado — . Trocar? O que? — Santo Deus! Não me referia a tua gravata! Não diria algo assim nem a meu pior inimigo! Falava de Bridlington! — Ah! — disse sir Geoffrey com alívio — . Sim, é um idiota!
— Não achava que fosse tanto para pensar que também o somos. Te direi uma coisa: não lhe vai fazer nenhum bem enganar a todos com esse conto da carochinha. A senhorita Tallant é uma
jovem muito elegante, e estou convencido de que não aceitaria a proposição de casamento de Bridlington ainda que fosse a única que recebesse.
— Mas não podes esperar que ele o saiba. Não estranharia que não tivesse a mínima suspeita de que é um tolo. — De fato não pode ter! É evidente: se soubesse, não nos castigaria com seus discursos.
Warkworth meditou sobre essa reflexão.
— Não — declarou por fim — . Equivocas — te. Se ele ignora que é um palerma, por que quer afugentar aos demais pretendentes? Tudo isto é muito suspeito. Não gosto nada! Deve — se jogar limpo!
— Não se trata disso. Recorda que a senhorita Tallant não deseja que se saiba que é arquimilionária. Disse — me Fleetwood: está farta de que ser cortejada por sua fortuna. No norte iam todos atrás dela.
— Oh! — exclamou Warkworth, e perguntou com vago interesse — : — De onde ela é? — De algum lugar do norte. Acho que de Yorkshire — respondeu sir Geoffrey enquanto inseria com cautela um dedo entre as pregas de sua gravata e afrouxava um pouco o nó — . Está melhor assim. — Que estranho. No outro dia vi Clayton. Ele é de Yorkshire, e não conhecia a senhorita Tallant. — Não, e tampouco Withernsea. Mas não estou seguro de que seja de Yorkshire. Poderia proceder de outro desses condados infernais, como Northumberland ou algo assim. Sabes o que acredito? — Não.
— Pois não me estranharia que fosse filha de algum comerciante; isso explicaria tudo. — A senhorita Tallant! — — assombrou — se Warkworth — . Não o creio, meu amigo. Jamais lhe ouvi pronunciar uma palavra que delatasse essa origem.
— Pois talvez seja a neta de um comerciante — especulou sir Geoffrey — . Seria uma lástima que tivesse razão, mas vou lhe dizer uma coisa, Oswald: para mim não teria nenhuma importância. Warkworth refletiu e decidiu que para ele também não.
Como essas opiniões eram muito abundantes, Arabella não teve que sofrer a humilhação de ver seus pretendentes deixarem de assistir a próxima reunião do Almack’s. Lord Bridlington acompanhou sua mãe e a sua convidada, pois além de ser muito correto em relação à etiqueta, gostava do Almack’s, e aprovava a severidade das normas impostas no clube por suas imperiosas patrocinadoras. Muitos dos jovens de sua idade afirmavam sem reparos que um baile no Almack’s era o mais tedioso da cidade, mas se tratava de tipos pretensiosos com quem Frederick não tinha muita relação.
A boa educação de lord Bridlington fez que pedisse à senhorita Tallant a primeira dança, circunstância que provocou no resto dos aspirantes a dançar com ela uma troca eloqüente de olhares e que se encarregassem de garantir que lord Bridlington não tivesse nenhuma outra oportunidade de dançar com a jovem. Nem um só deles teria achado que Frederick não desejasse
fazê — lo e preferisse passear pelas salas contando suas viagens no exterior a todos que estivessem dispostos a escutá — lo.
A valsa, que os mais antiquados ainda viam com receio, tinha sido introduzida fazia já algum tempo no Almack’s, mas ainda se subentendia que nenhuma jovem podia dançá — la a não ser que uma das patrocinadoras tivesse expressado claramente sua aprovação. Lady Bridlington tinha — se ocupado em enfatizar essa importante convenção a Arabella, e por esse motivo a jovem recusou todos os pedidos que recebeu quando soaram os primeiros acordes dos violinos. Arabella sabia que seu pai não teria aprovado essa dança: nunca tinha se atrevido a lhe dizer que Sophia e ela tinham aprendido a dançar com suas amigas, as senhoritas Caterham, duas jovens muito arrojadas. Assim que se sentou numa cadeira, ao lado de lady Bridlington, ficou ali se abanando e tentando esconder que lhe teria encantado estar dando voltas na pista de dança. Um par de jovens mais afortunadas que não tinham visto com bons olhos a rápida ascensão da popularidade de Arabella lhe lançaram tais olhares de desdém e superioridade que a jovem teve que recordar as máximas de seu pai para aplacar os indecorosos sentimentos que surgiram em seu peito.
O senhor Beaumaris, que tinha chegado com atraso — de fato, apenas dez minutos antes que as portas se fechassem implacavelmente aos atrasados — , e ao que parece com o único propósito de distrair a esposa do embaixador da Áustria, observou Arabella e interpretou corretamente suas emoções.
— Pode pedir a essa jovem que dance comigo? — perguntou de repente à princesa Esterházy lançando — lhe um dos seus penetrantes olhares.
A princesa arqueou as delicadas e negras sobrancelhas e esboçou um sorriso. — Aqui, meu amigo, não é você a autoridade suprema. Parece — me que não deveria propor — lhe. — Já sei que não deveria — replicou ele, desarmando rapidamente sua interlocutora. — Por isso lhe pedi, princesa, que me apresente antes a jovem como um par conveniente. Ela vacilou: olhou para Arabella, riu e encolheu os ombros.
— Está bem! Afinal de contas, essa jovem demonstrou ser muito discreta e elegante. Acompanhe — me!
Arabella, assombrada ao ver — se de repente abordada por uma das mais imponentes patrocinadoras, pôs — se rapidamente de pé.
— Vejo que não está dançando, senhorita Tallant. Permita — me que lhe apresente o senhor Beaumaris como um par muito conveniente — disse a princesa sorrindo com malícia a seu acompanhante.
A jovem só pôde fazer uma reverência, ruborizou — se e lamentou o baixo instinto que provocava em seu íntimo aqueles sentimentos de ignóbil triunfo sobre as damas que fazia apenas alguns minutos a tinham olhado com desprezo.
O senhor Beaumaris guiou — a até a pista de dança, rodeou — lhe a cintura com um braço e pegou — lhe mão direita com delicadeza. Arabella era uma boa dançarina, mas estava muito nervosa, em parte porque nunca tinha dançado a valsa, salvo na velha sala de aula da casa das senhoritas
Caterham, e em parte porque lhe era muito estranho se encontrar tão perto de um homem. Durante várias voltas, respondeu às perguntas de Beaumaris sem prestar muita atenção, porque estava pensando em seus pés. Era bem mais baixa que ele, de modo que a cabeça só lhe chegava à altura dos ombros, e como era muito tímida, não alçava a vista, apenas olhava com firmeza o seu casaco. Ele, que não tinha por costume dançar com moças tão jovens, achou divertida e inclusive atraente a timidez de Arabella. Quando achou que a jovem tinha tido tempo para se recuperar um pouco, disse:
— É um casaco muito bonito, não é verdade, senhorita Tallant?
Arabella levantou rapidamente a cabeça e deu uma risada. Estava tão encantadora, e seus grandes olhos fixaram — se nos dele com uma expressão tão franca e ingênua, que Beaumaris sentiu algo que não era mera diversão. Mas não tinha intenção de entrar em terreno perigoso por essa nem por qualquer outra jovem formosa, assim que em tom de brincadeira acrescentou: — Veja, o costume é manter uma conversa educada durante a dança. Já lhe dirigi três comentários inofensivos sem obter resposta alguma de sua parte.
— É que tenho que olhar onde piso — confiou — lhe, muito séria.
Sem dúvida alguma, aquela absurda jovenzinha era um sopro de ar fresco comparada com o resto das jovens de Londres. Se fosse mais jovem, refletiu Beaumaris, teria sucumbido facilmente a seus encantos. Era uma sorte que tivesse trinta anos e que já não se deixasse cativar por um rosto formoso ou por uns modos ingênuos, porque sabia que acabariam aborrecendo — o, e esperava algo mais da mulher com que um dia iria se casar. Ainda não tinha encontrado o que andava procurando, e ademais ignorava o que precisava, de maneira que se tinha resignado a seguir solteiro.
— Não é necessário, você dança maravilhosamente. Não pretenderá que eu acredite que esta é a primeira vez que dança a valsa, não é verdade?
A senhorita Tallant não pretendia que ele acreditasse em nada parecido, logo se arrependeu de sua impulsiva confissão.
— É claro que não! — mentiu — . Mas sim é a primeira vez que a danço no Almack’s. — Nesse caso, alegra — me pensar que foi minha a honra de dançá — la com você pela primeira vez. Agora que todos viram que você não põe objeções em dançar a valsa, sem dúvida todos os cavalheiros aqui presentes a assediarão.
Arabella não respondeu, e seguiu estudando o casado do seu par. O senhor Beaumaris olhou — a sorrindo zombeteiramente.
— Como se sente, senhorita Tallant, agora que se converteu na mulher mais famosa da cidade — Desfruta — o, ou preferiria não ser tão popular como o era em Yorkshire? Arabella levantou o olhar, e também o queixo.
— Temo senhor Beaumaris, que revelou o que eu lhe supliquei que guardasse segredo.
— Asseguro — lhe, senhorita Tallant — replicou ele com frieza, apesar do brilho sarcástico de seus olhos — , que só comentei suas circunstâncias com uma pessoa: lord Fleetwood. — Então deve de ter sido ele quem... – Ela se ruborizou, interrompendo — se. — É muito provável — concordou ele — . Mas não deve culpá — lo por isso. Essas coisas sempre acabam se sabendo.
Arabella abriu a boca, para voltar a fechá — la. Beaumaris perguntou — se o que tinha estado a ponto de dizer: se ia dirigir — lhe um de seus comentários educados ou talvez tivesse estado a ponto de lhe revelar a verdade. Na realidade alegrou — se de que ela tivesse pensado melhor. Se confessasse a ele, supunha que se veria obrigado, por piedade, a pôr fim aquele jogo, o qual seria uma lástima, pois lhe estava proporcionando uma excelente diversão. Ter introduzido na boa sociedade uma jovem provinciana completamente desconhecida era um ganho que só uma pessoa que não tinha ilusões sobre o mundo que liderava podia valorizar corretamente. Ademais, o alegrava sobremaneira observar os esforços de seus esmerados imitadores para obter sua mão em casamento. Em relação à Arabella, sentiu um leve escrúpulo, mas passou — o por alto. Sem dúvida, a jovem retirar — se — ia em algum momento a seu remoto rincão no norte, casar — se — ia com algum vizinho de cara vermelha e passaria o resto da vida falando de sua excelente temporada londrina. Voltou a olhar à jovem e pensou que seria uma lástima que se fosse demasiado cedo. Seguramente, antes que terminasse a temporada alegrar — se — ia de vê — la partir, mas por enquanto lhe produzia grande satisfação gratificá — la com um discreto namoro. A música cessou, e o senhor Beaumaris acompanhou a Arabella a uma das salas contiguas ao salão de dança, onde se serviam refrescos. As bebidas eram muito simples: a mais forte que se oferecia era um ligeiro Bordeaux.
— Permita — me agradecer — lhe por estes deliciosos minutos — disse enquanto entregava um copo de limonada à jovem — . Nunca tinha desfrutado tanto de uma dança. Ela limitou — se a esboçar um sorriso e inclinar a cabeça; ambos os gestos denotavam uma incredulidade tão evidente que Beaumaris ficou fascinado. Estava claro que a jovem Tallant não era nem um pouco tola! Ele teria seguido conversando nesse tom, com a esperança da fazê — la falar, mas nesse momento se acercaram dois resolutos cavalheiros. Arabella cedeu aos pedidos do senhor Warkworth e caminhou apoiada em seu braço. Sir Geoffrey Morecambe soltou um lânguido suspiro, mas aproveitou aquele revés para perguntar ao senhor Beaumaris que nome tinha o nó de sua gravata. Teve que repetir a pergunta, porque este se achava observando Arabella se afastar pelo braço de Warkworth e não estava prestando atenção. Mas quando sir Geoffrey a repetiu, olhou — o e arqueou as sobrancelhas.
— O nó de sua gravata! — insistiu sir Geoffrey — . Acho que não o reconheço. É novo? Importa — se de dizer — me como se chama?
— Não, claro que não — replicou Beaumaris num tom sem interesse — . Chamo — o «variação sobre um tema original».
* * *
Capítulo 8
A repentina convicção do senhor Beaumaris de que a jovem Tallant não era nem um pouco tola se manteve nos dias que seguiram. Começou a perceber que ela não corria nenhum perigo de perder a cabeça por ele. Mostrava — se amabilíssima, aceitava suas atenções e, ao que parece, estava decidida a tirar dele o maior partido. Se ele lhe prodigalizava elogios, ela os escutava com um ar de suprema inocência, mas com uma olhada que dava a ele o que pensar. A jovem Tallant não dava nenhum valor a seus elogios. Em lugar de emocionar — se com as atenções que lhe prodigalizava o solteiro mais cobiçado de Londres, se limitava a considerar que estava a participar de um agradável jogo. Se ele flertava com ela, Arabella costumava responder da mesma maneira, consentindo que empregasse seus dotes de caçador, de maneira que se sentia ao mesmo tempo satisfeito e ressentido. Começou a dar — lhe volta a idéia de conseguir que a jovem se apaixonasse por ele seriamente, só para lhe demonstrar que não podia tratar o Incomparável desse modo impunemente. Numa ocasião, quando ao que parecia, ela não estava com humor para galanteios, até teve a desfaçatez do cortá — lo dizendo:
— Rogo — lhe, não insista! Diga — me, quem é esse indivíduo tão estranho que acaba de nos saudar — Por que anda dessa maneira tão ridícula e torce assim a boca — Dói — lhe algo? Beaumaris surpreendeu — se, porque acabava de dirigir — lhe um elogio que pensava que iria conduzi — la a mais extraordinária confusão.
Sorriu, porque tinha tão poucas ilusões a respeito de si mesmo como a jovem que encontrava — se a seu lado, e respondeu:
— É Golden Ball, senhorita Tallant, um de nossos dandis, como seguramente já ter — lhe — ão informado. E não lhe dói nada. Essa forma de andar denota sua importância. — Deus dos céus! Parece caminhar sobre tamancos! Por que se crê tão importante? — É que ainda não sabe que ele ganha nada mais e nada menos que quarenta mil libras por ano — respondeu ele com gravidade.
— Que homem mais detestável deve de ser! Não suporto as pessoas que se crêem importantes por uma razão como essa.
— É lógico — concordou ele.
— A fortuna não faz o homem — apressou — se a acrescentar Arabella, ruborizando — se. — Estou convencida de que estará de acordo comigo, porque, segundo tenho entendido, você é ainda mais rico, senhor Beaumaris, e me permita que lhe diga: você não se dá tantos ares. — Obrigado — disse ele mansamente — Não esperava receber semelhante elogio de seus lábios, senhorita Tallant.
— É de má educação que lhe diga? Rogo — lhe que me perdoe.
— Em absoluto. — Olhou — a — Diga — me, senhorita Tallant. Por que me concede a honra da passear em minha carruagem?
Ela respondeu com enorme serenidade, mas com um brilho nos olhos que ele já conhecia: — Você já deve de saber que me beneficia muito socialmente que me vejam em sua companhia, senhor.
Beaumaris ficou tão surpreendido que soltou por um momento uma gargalhada. Os cavalos saíram galopando, de modo que a senhorita Tallant aconselhou a seu acompanhante que prestasse atenção a seus cavalos. O ginete mais notável do país agradeceu — lhe a recomendação e sujeitou os cavalos. Arabella consolou — o pelo desgosto que pudesse lhe ter causado dizendo que ele conduzia muito bem. Depois de um instante de perplexidade, o homem rompeu a rir. Sua voz tremia perceptivelmente quando replicou:
— Você demasiado bondosa, senhorita Tallant!
— Não diga isso — falou ela com educação — . Pensa em ir esta noite ao baile de máscaras de Argyll Rooms?
— Nunca assisto a essa classe de festas, senhorita Tallant — contestou ele depreciativamente. — Ah, então não o verei ali — observou ela sem que sua alegria diminuísse. Ainda que Arabella não o visse no baile de máscaras e ainda que não tivesse como saber, o senhor Beaumaris se viu obrigado a fazer um grande esforço para não se deixar levar pela sua habitual meticulosidade e se apresentar no baile, o que teria feito que a vaidade de Arabella crescesse. Não apareceu, e confiava que ela tivesse tido saudades. Arabella sentiu sua falta, mas por nada do mundo tê — lo — ia admitido. A jovem, que se tinha sentido atraída pelo Incomparável desde o primeiro momento, estava protegendo com firmeza a sua sensibilidade. Quando viu pela primeira vez Beaumaris, para Arabella ele tinha parecido a personificação de um sonho. Depois, ele tinha dirigido um comentário a seu amigo que tinha empanado o prazer incipiente que ela tinha tido e a tinha obrigado a mentir da maneira mais vulgar. Agora se comprazia em elevá — la entre as belezas da cidade, por motivos que ele conhecia melhor que ela, mas que Arabella suspeitava que devessem ser maliciosos. Não, a jovem Tallant não era nem um pouco tola! Nem por um instante iria permitir — se sonhar que ele estivesse cortejando — a a sério. Às vezes Beaumaris parecia em seus pensamentos, mas logo que se apercebia disso, Arabella afugentava sua imagem com resolução. Em algumas ocasiões pensava que ele não tinha acreditado em nenhuma palavra que ela alardeou naquela noite em Leicestershire das quais nunca se arrependeria o bastante; outras, achava que o tinha enganado tão bem como a lord Fleetwood. Era impossível decifrar as complexidades de sua mente, mas de algo estava segura: de que o grande senhor Beaumaris e a filha do pároco de Heythram não tinham nada em comum, de modo que quanto menos pensasse nele, seria melhor. Não podia negar que era muito galante e atraente, mas Arabella também observado as muitas imperfeições de seu caráter. Era claramente indolente, um menino mimado da sociedade, e não pensava mais do que em prazeres fugazes: um desapiedado e inconsciente árbitro da moda, se entregado ao egoísmo e a todos os outros vícios que a filha de um pároco tinha aprendido a censurar.
Se teve saudades no baile de máscaras, ninguém percebeu. Dançou infatigavelmente toda a noite, recusou uma proposta de casamento do senhor Epworth, que estava um pouco ébrio, caiu cansada na cama a altas horas da madrugada e no mesmo instante se apoderou dela um profundo e aprazível sono.
Acordou — a, muito tarde, o ruído dos atiçadores na chaminé apagada. Como a servente que entrava todas as manhãs em sua habitação para limpar a lareira e acender o fogo realizava sua tarefa em perfeito silêncio, esse ruído era bastante incomum para que Arabella acordasse sobressaltada. Um grito abafado e um gemido provenientes da chaminé fizeram — na acordar de súbito ante a inesperada visão de um pequeno menino, sujo e choroso, encolhido sobre a base da chaminé, morrendo de medo e olhando — a com os olhos muito abertos. — Deus dos céus! — exclamou Arabella — . Quem é você?
O menino encolheu — se ainda mais ao ouvir a voz da jovem, e não lhe respondeu. O sono que embargava Arabella sumiu rapidamente; ao ver a fuligem que tinha no solo e o aspecto subnutrido de seu estranho visitante, a jovem entendeu o sucedido.
— Deves ser um limpador de chaminé! Mas que faz em meu quarto? — Então viu o terror refletido naquela magra e transida carinha, e apressou — se a dizer — : Não tenhas medo! — Perdeste — te nessas horríveis chaminés?
O menino assentiu, apertando as pálpebras, e explicou que o velho Grimsby ia dar — lhe uma boa surra por isso. Arabella, que tinha observado que o menino tinha um lado do rosto inchado e amarelado, perguntou:
— Referes — te a teu patrão? — Te bate?
Ele voltou a assentir e estremeceu.
— Fique tranquilo, não te baterá por isto — disse ela esticando um braço para pegar o robe que estava castamente disposto na cadeira que tinha junto a sua cama — . Espera! Vou levantar — me! Ante o anúncio, o menino reagiu muito alarmado e colou — se contra a parede, olhando Arabella com desconfiança. Ela se levantou da cama, calçou as sandálias, amarrou o robe e avançou lentamente para seu visitante. O menino levantou instintivamente um braço, encolhendo — se ante ela. Estava vestido com farrapos; a jovem observou que tinha os braços chamuscados e queimaduras nas magras pernas e nos pés nus. Ajoelhou — se e exclamou, compugnada: — Pobrezinho! Queimaste — te!
O menino baixou pouco a pouco o braço com que pretendia se proteger, e olhou Arabella com receio.
— Isso me fez o velho Grimsby — revelou.
Arabella conteve a respiração.
— Que barbaridade!
— Dá — me medo subir pelas chaminés — explicou o menino — . Às vezes há ratos. — Ratos muito grandes e ferozes!
Arabella estremeceu.
— E assim que te obriga a subir?
— Sim — confirmou a criança, resignada.
Arabella esticou um braço.
— Deixa — me ver. Não te farei dano.
O menino não acreditava, mas depois de um instante de vacilação pareceu decidir que Arabella não tinha más intenções, porque deixou que lhe pegasse um pé. Surpreendeu — lhe ver que Arabella tinha os olhos umedecidos, porque, segundo sua experiência, o sexo frágil era mais propenso a lhe bater com uma escova que chorar por ele.
— Pobre criança! — Pobrezinho! — exclamou com voz trêmula — . E estás tão magrinho! — Seguramente estás faminto. Tens fome?
— Sempre tenho fome.
— E frio, acredito! — acrescentou ela — . Não me estranha, com esses farrapos que levas! — Que barbaridade! —— Levantou — se de um salto e puxou com energia o cordão da campainha que estava pendurada junto à lareira.
O menino emitiu outro de seus assustados gemidos e disse:
— O velho Grimsby vai me bater! Deixe — me ir!
— Não te vai pôr a mão em cima! — prometeu Arabella, com as faces ruborizadas e os olhos brilhantes e cheios de lágrimas.
O menino chegou à conclusão de que aquela mulher estava ruim da cabeça. — Você não conhece ao velho Grimsby! — lamentou — se com amargura — Nem a sua mulher! Uma vez rompeu — me uma costela!
— Nunca voltará a te romper nada, pequeno — assegurou — lhe Arabella voltando — se para abrir uma gaveta de uma das cômodas. Pegou o suave xale que não fazia muito tinha servido para envolver a cabeça da servente com dor de dentes e o jogou sobre os ombros ao menino. Então disse, com tom persuasivo — : Vêem, deixe — me que te abrigue até que tenham acendido o fogo. Está mais confortável assim, jovenzinho? Senta — te nesta banqueta. Agora mesmo lhe trarão algo de comer.
O menino, com uma enternecedora expressão de suspeita e terror, deixou que ela o sentasse na banqueta. A jovem acariciou — lhe com doçura o cabelo, cor de areia e muito curto, e disse em tom tranqüilizador:
— Não deves ter medo. Prometo — te que não te farei dano e que não deixarei que seu patrão lhe faça. Como se chamas, tesouro?
— emmy — respondeu ele enrolando — se no xale e olhando — a com uma expressão assustada. — E quantos anos tens?
O pequeno não pôde responder, porque ignorava a resposta. Arabella calculou que devia de ter sete ou oito anos, mas estava tão desnutrido que podia ser mais velho. Enquanto esperava a que a criada chegasse ao quarto, seguiu fazendo — lhe perguntas. Ao que parece, Jemmy não tinha notícias da existência de seus pais, e explicou que era um menino da paróquia. Quando viu que essa resposta afligia a sua interlocutora, tentou consolá — la declarando que uma tal senhora Balham lhe tinha dito que era um filho natural. Essa mulher tinha cuidado dele durante alguns anos e depois o tinha entregue a seu atual patrão. Arabella perguntou — lhe como era a senhora Balham e Jemmy informou que era uma grande aficionada nas misturas, e que quando se achava sob a influência desse estimulante era capaz de matar qualquer um.
Arabella não tinha nem idéia a que mistura ele se referia, mas deduziu que a mãe adotiva de Jemmy era adepta às bebidas alcoólicas. Seguiu interrogando ao menino, e ele, cada vez mais confiante, lhe revelou, com a mais absoluta naturalidade, certos detalhes da vida de um limpador de chaminé que a fizeram empalidecer. Falou — lhe, com orgulho um tanto distorcido, do caráter violento de um dos sócios do velho Grimsby, o senhor Molys, um limpador de chaminés que no ano anterior tinha sido sentenciado a dois anos de encarceramento por causar a morte do seu servo de seis anos.
— Só dois anos! — exclamou Arabella, horrorizada por aquele relato de crueldade, tratado com tanta indiferença — . Se tivesse roubado um metro de seda de uma loja o teriam deportado! Jemmy não estava em situação de negar nem corroborar essa afirmação, assim guardou um cauteloso silêncio. Compreendeu que a jovem se achava muito furiosa, e ainda que sua ira não parecesse se dirigir contra ele, a experiência lhe tinha ensinado a não se expor ao risco desnecessário de se ver lançado pelos ares contra a parede. Acomodou — se na banqueta e envolveu ainda mais o xale ao redor do corpo.
Ouviram — se uns discretos golpes na porta, e uma criada, um tanto nervosa e bastante assombrada, entrou no quarto.
— Chamou — me, senhorita? — perguntou sem dissimular sua surpresa. Então viu ao visitante de Arabella e emitiu um grito — . Ai, senhorita! — Que susto me deu esse moleque! E também deve ter lhe assustado! É o garoto do limpador de chaminés. Estão procurando — o por toda a parte. Vêem comigo agora mesmo, moleque!
— Não grites! — disse Arabella pondo uma mão sobre o ossudo ombro do menino — . Já sei que é o garoto do limpador, Maria, e se observares verás que o maltrataram. Desce, por favor, e traz algo de comer para ele. E faz com que venha alguém para acender o fogo.
Maria olhou — a como se Arabella tivesse perdido o juízo.
— Senhorita! — conseguiu articular — . Algo de comer para esse imundo escalador? — Quando o tiver lavado — prosseguiu Arabella com serenidade — , já não estará imundo. Vou precisar de muita água quente, e a banheira, por favor. Mas primeiro faz com que venham acender o fogo, e me traga leite e comida para esta pobre criança.
— Espero senhorita — disse a indignada criada fazendo uma careta — , que não pretenda que seja eu quem lave a essa desagradável criatura. — Não sei o que diria a senhora se soubesse o que está acontecendo!
— Não. De você não espero nada que só poderia esperar de uma rapariga um pouco mais sensível. Vá e faz o que lhe pedi, e diga a Becky que suba.
— Becky — — estranhou Maria.
— Sim, a jovem que tinha dor de dentes. E quando me tiveres trazido a comida (pão com manteiga e também um pouco de carne, mas, sobretudo não te esqueças do leite), podes enviar alguém à lord Bridlington e dizer — lhe que quero falar com ele imediatamente. — Mas senhorita... —— balbuciou Maria engolindo em seco — , o senhor ainda está deitado. — Pois vá acordá — lo! — gritou Arabella, impaciente.
— Senhorita, eu não faria isso por nada do mundo. Deu ordens de que ninguém o molestasse até as nove, e não descerá até que tenha se barbeado e vestido.
Arabella refletiu por um instante e chegou à conclusão de que talvez fosse mais sensato prescindir, por enquanto, da ajuda de lord Bridlington.
— Está bem — concordou — . Nesse caso, vou vestir — me agora mesmo e eu mesma irei falar com o limpador. Diga que me espere!
— Falar com o limpador? E vestir — se? A senhorita, não pode se vestir diante deste rapaz! — exclamou Maria, escandalizada.
— Não sejas boba! — se impacientou Arabella batendo os pés — . — Esta criança não é maior que meu irmão mais novo! — Vai — te embora antes que acabe a minha paciência! Maria obedeceu, mas antes colocou um biombo entre o perplexo Jemmy e sua anfitriã. Então saiu da alcova cambaleante e foi espalhar pela casa a notícia de que a senhorita Tallant tinha ficado louca e que tinha que ser levada o quanto antes ao manicômio. Mas como não se atrevia a desobedecer a uma convidada tão mimada pela senhora, transmitiu a Becky a mensagem de Arabella e se dignou a fazer subir uma bandeja de comida ao quarto. Jemmy, que seguia encolhido na ampla banqueta, estava desconcertado por aquele insólito rumo dos acontecimentos e não entendia que planos lhe tinham reservado. Enquanto isso, conhecia perfeitamente o valor de um prato de carne de vaca e meia porção de pão, e isso fez que seus olhos brilhassem. Arabella, que se tinha vestido de qualquer maneira e recolhido o cabelo num descuidado laço, o deixou desfrutando de sua comida e foi discutir com o temível senhor Grimsby, que a esperava, nervoso, no salão.
A cena, apresentada ao olhar perplexo de um lacaio em mangas de camisa, duas assombradas criadas que não paravam de rir tolamente e o ajudante de cozinha, merecia uma audiência mais seleta. O senhor Beaumaris, por exemplo, teria desfrutado enormemente dela. Grimsby, consciente de que contava com a simpatia dos membros da casa com quem tinha tratado até esse momento, descobriu que seu oponente era só uma jovenzinha, tentou desde o princípio adotar uma postura firme, enumerando rapidamente todos os vícios de Jemmy e implorando a Arabella que não acreditasse em nem uma palavra que lhe havia contado o moleque. No entanto, não demorou em descobrir que o que em Arabella faltava em estatura lhe sobrava em temperamento. A jovem desarmou — o sem dificuldade e advertiu — lhe qual ia ser seu destino definitivo; jogou — lhe na cara as queimaduras e machucados de Jemmy e o intimou a justificá — los se se atrevia. O senhor Grimsby não pôde se defender. Ela lhe assegurou que jamais permitiria que Jemmy voltasse com ele, e quando o limpador tentou alegar os duvidosos direitos que tinha sobre o menino, Arabella o olhou com tal frieza que o homem retrocedeu. Quando Arabella afirmou que se queria falar de seus direitos podia o fazer ante um juiz, o homem abandonou todo vestígio de belicosidade . O funesto destino de seu amigo, o senhor Molys, ainda se achava fresco em sua memória, de maneira que não queria ter nenhum trato com a lei. Não havia dúvida de que uma jovem que vivesse numa casa como aquela devia estar respaldada por gente que, se ela pedisse, podia lhe complicar muito a vida de um pobre limpador. O mais prudente era retirar — se: era fácil encontrar limpadores, e, além disso, Jemmy nunca tinha sido muito bom. Grimsby saiu cabisbaixo da casa depois de tentar assegurar a Arabella que estava tudo certo que ela ficasse com Jemmy e que, apesar do que dissesse o mal agradecido garoto, ele sempre tinha sido como um pai para ele. Ébria pelo triunfo, Arabella voltou ao seu quarto, onde encontrou a Jemmy, que já tinha terminado prato de carne, contemplando com grande apreensão os preparativos do seu banho. Diante da lareira havia uma enorme bacia, na qual Becky estava esvaziando o terceiro de três baldes de água quente. Ainda que não tivesse em grande estima aos limpadores, Becky tinha desenvolvido uma cega adoração por Arabella, e declarou que estava disposta a fazer tudo quanto a senhorita Tallant lhe pedisse.
— Em primeiro lugar — afirmou esta com vivacidade — , tenho que banhar — lhe e lhe aplicar pomada nas pernas e nos pés. Depois devo conseguir roupa para meninos. Becky, sabes onde as posso comprar em Londres?
Becky assentiu com decisão, estalando os dedos, e explicou que uma vez tinha enviado um traje a seu irmão Ben e que sua mãe estava encantada com ele.
— Tens irmãos pequenos — Então saberás o que precisa este menino! — exclamou Arabella — . Uma casaco, roupa interior, uma camisa — Ah! E sapatos e meias! Espera! Vou dar — te o dinheiro para que vás imediatamente comprá — los.
— Se não lhe importa, senhorita — disse Becky com firmeza — , acho que antes tenho que ajudá — la limpá — lo. — E acrescentou com perspicácia — : Acredito que irá resistir, senhorita, porque não deve de estar acostumado a que o banhem.
Becky tinha razão. Jemmy brigou como um tigre para se defender daquele atropelo e não prestou nenhuma atenção às persuasivas e tranqüilizadoras palavras de ambas as mulheres. Mas não foi em vão que aquelas duas jovens que enfrentava tinham ajudado a criar a seus respectivos irmãos menores. Sem deixarem — se impressionar pelos soluços e protestos de Jemmy, tiraram — lhe os
farrapos, meteram — no na bacia e esfregaram — lhe sem piedade cada centímetro do descarnado corpinho enquanto ele distribuía fortes pontapés.
Como era de esperar, os gritos de Jemmy ultrapassaram os limites do quarto e chegaram a ouvidos de lady Bridlington. A boa mulher não podia dar crédito que estes realmente viessem do interior da sua casa, e já se dispunha a tocar a campainha e pedir a Clara Crowle que saísse e reclamasse com esse menino que gritava na rua, quando os gritos cessaram (tinham tirado Jemmy da bacia e o tinham envolvido com uma toalha quente), assim voltou a recostar — se na cama. Pouco depois, a senhorita Crowle entrou discretamente no quarto com a bandeja do café da manhã de lady Bridlington e com a grata notícia de que a senhorita Arabella tinha perdido o juízo e metido a um garoto magricelo em seu quarto, e que não queria deixar sair dissessem o que lhe dissessem. Milady ainda não tinha captado os aspectos essenciais da história quando Arabella se apresentou. Seu aparecimento tornou necessário que a senhorita Crowle reanimasse a sua senhora com uma infusão de estrelas do mar e que queimasse umas tabletes de ervas aromáticas, porque lhe produziu um ataque de nervos de intensidade alarmante. Lady Bridlington inteirou — se então de que sua afilhada não só pretendia que desse alojamento a um menino da rua, como também que perseguisse o seu antigo patrão valendo — se de todos os meios que tivesse ao alcance. Arabella falou da lei e dos magistrados; e de crueldades que fizeram que lady Bridlington mal pudesse beber o café, do que diria seu pai e qual era seu dever numa situação tão terrível. Lady Bridlington emitiu um gemido e disse com um fio de voz:
— Mas não podes! Tens que devolver esse menino a seu patrão! — Você não entende destas coisas! — Eu não posso — exclamou Arabella soltando fogo pelos olhos — . Eu não posso, madrinha — Rogo — lhe que me perdoe, mas é você que não entende. Quando vir as horríveis feridas nas costas que tem essa pobre criatura — e como são marcadas as costelas — Então mudará de opinião! — Não, Arabella, pelo amor de Deus! suplicou sua madrinha — . Não permitirei que o tragas aqui! — Onde está Frederick? Minha querida, já sei que é horrível, e veremos que podemos fazer, mas te suplico, espera que eu me vista. Clara, onde está o senhor?
— O senhor, milady — respondeu Clara deleitando — se — , foi após o dejejum, montar no parque, como de costume. O valete de milord mencionou que a senhorita tinha a um limpador em sua casa, e o senhor disse que devíamos jogá — lo na rua de imediato.
— Não disse isso! — saltou Arabella, decidida.
Lady Bridlington pensou que era muito próprio de Frederick dar ordens dessa forma tão ridícula e deixar que os outros as levassem a cabo, e decidiu adiar qualquer discussão até que seu filho tivesse regressado e pudesse lhe prestar seu apoio. Convenceu a Arabella para que saísse, deu uma olhada de desagrado à sua bandeja de café da manhã e suplicou a Clara, com voz débil, que lhe trouxesse os sais.
Quando lord Bridlington voltou de seu passeio matutino, contrariou — se muito ao inteirar — se de que ainda não tinham expulsado o limpador e que a senhorita Tallant tinha enviado uma das criadas para lhe comprar roupas. Ainda tinha o cenho franzido quando sua mãe desceu, e que ao vê — lo, esteve a ponto de lhe abraçar.
— Graças a Deus, por fim chegaste! Como te ocorreu sair tendo uma revolução em casa?Estou muito transtornada! — Arabella quer que empregue esse menino como pajem! Frederick conduziu — a com firmeza ao salão térreo e fechou a porta ante o interessado mordomo. Então pediu a sua mãe uma explicação do ocorrido, pois assegurou que não o entendia. Ela lhe estava dando quando Arabella entrou no salão; levava Jemmy, lavado e vestido, pela mão. — Bom dia, lord Bridlington! — disse a jovem com tranquilidade — . Alegro — me de que tenha voltado para casa, porque você é a pessoa mais indicada para me ajudar a decidir que devo fazer com Jemmy.
— Efetivamente, senhorita Tallant. O menino deve voltar de onde saiu, eu suposto. — Permita — me que lhe diga que foi muito incorreto de sua parte interferir entre ele e seu patrão. O olhar que lhe lançou a jovem o surpreendeu.
— Não permitirei que ninguém, lord Bridlington, me diga que ajo incorretamente resgatando um menino indefeso da brutalidade de um monstro.
— Não, claro que não, querida! — interveio lady Bridlington — . Frederick não quis dizer isso. Verás, é que nestes casos não pode — se fazer nada. Isto é — Estou segura de que Frederick falará com esse homem e lhe dará o que ele merece.
— Perdão, mãe, mas...
— E Jemmy? — perguntou Arabella — . Que vão fazer com ele?
Lord Bridlington olhou com desagrado ao candidato a receber sua proteção. Arabella tinha lavado muito bem Jemmy, mas nem a mais conscienciosa aplicação de água e sabão tê — lo — ia convertido num menino bem parecido. Tinha a carinha estreita, uma boca muito grande na qual faltava um dente e nariz chato. O cabelo, curto e desgrenhado, era completamente opaco, e as orelhas decolavam — se muito do crânio.
— Não sei o que quer de mim! — exclamou lord Bridlington incomodado — . Se você tivesse algum conhecimento sobre as leis que regulam aos aprendizes, querida senhorita Tallant, saberia que é impossível tirar este menino a seu patrão.
— Quando o patrão de um aprendiz maltrata um menino como maltrataram a este — replicou Arabella, que afinal era filha de seu pai — , podem empreender — se ações judiciais contra ele. E mais, esse homem sabe — o, e asseguro — lhe que não espera que lhe devolvam Jemmy. — Suponho que pretenderá que adote o garoto! — saltou Frederick, rapidamente. — Não, não pretendo isso — replicou a jovem com voz trêmula — . Só acho que poderia mostrar alguma compaixão por uma criança tão tremendamente desgraçada. Frederick se ruborizou.
— É claro que o sinto muitíssimo, mas...
— Sabe que seu patrão acendia o fogo na chaminé para o obrigá — lo a trepar por ela? — interrompeu — o Arabella.
— Bom, não acho que subisse se não... Sim, sim, é terrível, já o sei, mas afinal de contas tem que haver gente para limpar as chaminés, porque se não, que seria de todos nós? — Ai, se estivesse aqui o meu pai! — exclamou Arabella — . Já vejo que é inútil falar com você, porque é um egoísta, cruel e somente se preocupa com a sua própria comodidade. Nesse inoportuno momento abriu — se a porta e o mordomo anunciou duas visitas. Depois justificou seu deslize, argumentando que achava que a senhorita Tallant ainda se achava encima com «esse moleque». Frederick esboçou um rápido gesto para indicar que não queria ver visitas, mas era demasiado tarde: lord Fleetwood e o senhor Beaumaris entraram na sala. Receberam — nos de um modo nada habitual: lady Bridlington soltou um sonoro gemido; seu filho ficou plantado no meio da sala, muito corado, como se estivesse contendo a respiração; e a senhorita Tallant, também muito ruborizada, apertou os lábios, voltou — se, conduziu Jemmy a uma cadeira e lhe pediu com doçura que se sentasse e se portasse bem. Lord Fleetwood contemplou atônito a cena; o senhor Beaumaris arqueou as sobrancelhas, mas não mostrou nenhum outro sinal de surpresa, se limitando a inclinar — se sobre a frouxa mão de lady Bridlington e dizer:
— Como está? Espero não ter chegado em um mau momento. Vim com a esperança de convencer a senhorita Tallant a me acompanhar aos Jardim Botânico. Disseram — me que há flores de primavera espetaculares.
— É muito amável, senhor Beaumaris — disse Arabella de maneira cortante — , mas esta manhã tenho assuntos mais importantes a tratar.
— Minha querida — disse lady Bridlington recobrando a compostura — , disso podemos falar mais tarde. Estou segura de que irá se sentir bem melhor tomando ar. Envia esse... esse menino à cozinha e...
— Obrigado, madrinha, mas não penso em sair da casa até que tenhamos decidido o que fazer com Jemmy.
—— Ah, chama — se Jemmy? — perguntou lord Fleetwood, que tinha estado observando o garoto com franca curiosidade — . É — amigo seu, senhorita Tallant?
— Não. É um limpador que caiu por erro pela chaminé de meu dormitório. — Maltrataram — no terrivelmente, e só é uma criança, como pode ver. Não acho que tenha mais de sete ou oito anos. A ternura de seus sentimentos conferia um inconfundível tremor à voz da jovem. Beaumaris olhou — a com curiosidade.
— É verdade? — — exclamou lord Fleetwood, compreensivo — . — Que vergonha! Alguns desses limpadores são uns brutos. Tinham que os enviar ao cárcere!
— Sim, isso é o que estava dizendo a lord Bridlington, mas parece não o entender — replicou impulsivamente Arabella.
— Arabella! — implorou lady Bridlington — . Não vês que a lord Fleetwood não interessam esses assuntos?
— Perdoe, senhora — tê — lo falado — , mas asseguro — lhe que me interessa qualquer coisa relativa à senhorita Tallant. Assim resgatou a esse menino, não? Santo Deus! Eu acho que fez uma boa obra! E isso apesar de que não é uma criança muito bem parecida.
— Que importa isso? — exclamou Arabella com desdém — . Pergunto — me se você ou eu, milord, seríamos muito atraentes se desde a mais tenra infância nos tivessem criado uma mãe adotiva bêbada, se nos tivessem vendido a um patrão cruel quando éramos apenas umas crianças e se nos tivessem obrigado a realizar um trabalho aborrecido.
Beaumaris acercou — se a uma cadeira que tinha no centro da sala, um pouco separada do grupo, e ficou de pé com uma mão apoiada no respaldo e sem afastar a vista do rosto de Arabella. — Claro, claro! Claro que não! — apressou — se a acrescentar lord Fleetwood. Lord Bridlington cometeu a imprudência de intervir nesse momento: — Não tenho dúvida de que você tem razão, senhorita Tallant, mas este não é um assunto para ser discutido no salão de minha mãe. Permita — me pedir — lhe que...
Arabella voltou — se bruscamente para ele, com os olhos marejados de lágrimas e a voz trêmula de indignação.
— Não penso em me calar! —— exclamou — . Este é um assunto que teria que ser discutido no salão de toda dama cristã! Ai, não quis lhe faltar ao respeito, madrinha! Espero que não acredite nisso — Não o pense, lhe rogo! Se tivesse visto as feridas que tem esse menino no corpo não negaria sua ajuda! Lamento não lhe ter pedido que subisse ao meu quarto quando o tinha nu na bacia! Ter — se — ia emocionado!
— Já estou emocionada, Arabella — protestou sua aflita madrinha — . O que ocorre é que não preciso de nenhum pajem, e esse menino é demasiado pequeno e muito feio. Ademais, o mais provável é que o limpador o reclame, porque ao contrário do que você pensa se era aprendiz dele, como parece que...
— Por isso não se preocupe, madrinha. Seu patrão não se atreverá a reclamá — lo. Sabe muito bem que se arrisca a que o levem ante um juiz, porque assim eu lhe disse, e se deu conta de que falava sério. Ficou acovardado ao ouvir a palavra «juiz», e saiu da casa a toda pressa. — Você falou com o limpador? Senhorita Tallant? — perguntou por fim Beaumaris esboçando um misterioso sorriso.
— Claro que sim! — respondeu a jovem dirigindo — lhe uma olhada rápida. — Temos que o levar à paróquia! — exclamou de repente lady Bridlington, inspirada — . Frederick, acredito que você saberá como fazer.
— Não, não podemos levá — lo à paróquia! — declarou Arabella — . Isso seria ainda pior, porque que supõe que fariam com ele, senão o enviar para realizar o único trabalho que sabe fazer? E dão — lhe muito medo essas horríveis chaminés! Se não vivesse tão longe, o enviaria a meu pai, mas como ia viajar até lá um menino tão pequeno?
— Não, claro que não! — Lord Fleetwood mostrou — se de acordo — . Não podemos fazer isso! — Lord Bridlington, não pode condenar este infeliz a uma vida tão dura como a que levou até agora — disse Arabella estendendo ambas mãos em um gesto suplicante. — Você, que tem tudo o que se pode desejar!
— Claro que não faria isso! — interveio lord Fleetwood — . Diga — lhe, Bridlington! — Mas por que teria que dizer? — disse Frederick — . Ademais, que faria eu com esse moleque? É a maior tolice que jamais ouvi!
— Lord Fleetwood, quer ficar com Jemmy? — perguntou Arabella voltando — se para ele em tom suplicante.
O aludido mostrou — se atônito.
— Não acho que... Como, senhorita Tallant? A verdade é que... Maldito seja, lady Bridlington tem razão! A paróquia! Essa é a solução!
— Que mesquinho Charles! — ironizou Beaumaris.
— Se isso é o que pensa — disse lord Bridlington muito exaltado, voltando — se para Beaumaris — , talvez aceite em ficar a cargo desse maldito moleque.
E então Beaumaris, olhando para Arabella, que tinha as faces ruborizadas e respirava entrecortadamente, surpreendeu a todos e também a si mesmo afirmando: — Sim. Tomo — o a meu cargo.
* * *
Capítulo 9
Essas singelas palavras produziram um efeito devastador na audiência do senhor Beaumaris. Lord Fleetwood ficou boquiaberto; lady Bridlington e seu filho olharam — no de cima a baixo e Arabella observou — o com cara de surpresa.
— Você? — disse a jovem rompendo o silêncio, e por seu tom de incredulidade o senhor Beaumaris inteirou — se do que pensava Arabella de sua pessoa.
— Os lábios de Beaumaris esboçaram um sorriso um tanto compungido. — Por que não?
— E o que pensa fazer com ele? — perguntou a jovem perscrutando seu semblante. — Não tenho nem a mais remota idéia. Espero que me ajude a decidir o que devo fazer com ele, senhorita Tallant.
— Se deixo que o tome a seu cargo, vai enviá — lo à paróquia, como faria Lord Fleetwood — reconheceu ela com amargura.
Lord Fleetwood murmurou um protesto ininteligível.
— Tenho muitos defeitos — replicou Beaumaris — , mas creia — me, nunca falto a minha palavra. Nem o enviarei à paróquia nem o devolverei a seu patrão.
— Deve estar louco! — exclamou Frederick.
— É lógico que pense assim — reconheceu Beaumaris lançando — lhe um de seus olhares depreciativos.
— Tem em conta o que dirá toda a gente? — perguntou Frederick.
— Não, em absoluto. E não me vou incomodar em pensar em algo que me interessa tão pouco. — Se é para valer fique com ele, senhor — disse Arabella com voz débil — , estará fazendo uma boa obra, talvez a melhor que jamais tenha levado a cabo, e... Ah, obrigado! — Sim, com certeza. Será o melhor que jamais fiz, senhorita Tallant — respondeu ele com aquele sorriso irônico.
— Que pensa fazer com ele? — voltou a perguntar a jovem — Não ache que pretendo que o adote, nem nada parecido. É preciso ensinar — lhe um oficio respeitável, mas não sei qual seria o mais conveniente para o menino.
— Talvez o garoto tenha suas próprias opiniões a respeito — sugeriu Beaumaris — . Que gostarias de fazer, Jemmy?
— Sim, o que gostarias de fazer quando fores maior? — perguntou Arabella ajoelhando — se junto à cadeira de Jemmy e falando — lhe em tom persuasivo — . Diga — me!
Jemmy, que tinha estado sumamente atento aquela conversa, não tinha uma idéia muito clara do que sucedia, mas era bastante esperto para ter entendido que nenhum daqueles cavalheiros elegantemente vestidos, nem sequer o mais baixo e robusto, que era o que parecia mais aborrecido, pensavam em lhe fazer algum mal. O medo que aparecia em seu olhar tinha cedido lugar a um ar de considerável gravidade.
— Dar um direto no velho Grimsby! — respondeu à sua protetora sem vacilar. — Sim, tesouro, e algum dia o farás, e espero que faças a mesma coisa com todos aqueles que são como ele — disse ela com carinho — . Mas como gostarias de ganhar a vida? O senhor Beaumaris sorriu, satisfeito, ao constatar que a senhorita Tallant tinha irmãos... Lady Bridlington estava desconcertada e seu filho, indignado. Lord Fleetwood, sem reparar que Arabella tinha revelado sem se dar conta que conhecia o jargão do boxe, olhou Jemmy com gravidade e expressou sua opinião de que o pequeno não tinha a complexão ideal para ser boxeador.
— Eu suposto que não! vexclamou Arabellav. Pensa, Jemmy! Que gostarias de fazer? O menino refletiu, enquanto os presentes esperavam sua resposta. — Varrer uma calçada — declarou por fim — . Assim poderia segurar os cavalos dos cavalheiros. — Segurar os cavalos? — repetiu Arabella, e a expressão iluminou — se — . Gosta de cavalos, Jemmy? O menino assentiu com entusiasmo. Arabella olhou ao redor com um gesto triunfal. — Então já sei o que faremos! Sobretudo, você que vai ficar com dele, senhor Beaumaris. Este se preparou com apreensão para receber o golpe.
—— Tem que aprender a cuidar cavalos, e depois, quando for um pouco maior, poderá se empregar como palafreneiro — opinou Arabella, radiante.
— Desde que depois, creio que sim — assentiu sem vacilar Beaumaris, ainda que considerasse uma loucura confiar o cuidado dos puros sangues a rapazes inexperientes — . E agora que nos ocupamos de seu futuro...
— Mas se você nunca leva palafreneiro! — protestou lord Bridlington — . Ouvi — o dizer muitas vezes...
— Rogo — lhe, Bridlington, que se abstenha de nos interromper com esses absurdos comentários — pediu Beaumaris.
— Mas essa criança é demasiadamente pequena para ser palafreneiro! — observou lady Bridlington. O rosto de Arabella se ensombreceu.
— Sim, é demasiado pequeno — admitiu com pesar — . Mas essa seria uma saída ideal para ele, se soubéssemos o que fazer com ele por enquanto.
— Creio — interveio o adotante — que por enquanto será melhor que o leve a minha casa e o deixar ao cuidado de minha governanta. Então poderemos discutir este assunto em profundidade, senhorita Tallant.
— Não sabia que era tão bondoso! — exclamou a jovem, recompensando — o com um olhar admirativo — . Parece — me uma idéia esplêndida, porque o pobrezinho precisa alimentar — se bem, e estou segura de que em sua casa não lhe faltará comida. Escute, Jemmy, vais com este cavalheiro, que será teu novo patrão, assim te portas bem e faz tudo quanto te ordene. Jemmy, agarrando — se a uma prega do vestido de Arabella, disse que preferia ficar com ela. A jovem agachou — se e deu — lhe umas palmadinhas no ombro.
— Não, não podes ficar comigo, tesouro, e se pudesses, estou segura que não gostarias nem da metade, porque deves saber que este cavalheiro tem muitos cavalos estupendos e asseguro que deixará que os vejas. Veio em seu carro, senhor Beaumaris? — Este assentiu — . Vê Jemmy? — acrescentou Arabella com tom alentador — . Vais andar num carro puxado por dois formosos cinzentos.
—— Hoje estou com os baios — se desculpou Beaumaris — . Sinto — o, mas acho que devo falar a verdade.
— Faz você muito bem — aprovou a jovem — . Aos meninos não se deve dizer mentiras. Baios, Jemmy, uns preciosos cavalos castanhos. — Que bom que vais viajar nesse carro! Ao que parece, estas palavras convenceram o garoto, porque soltou — lhe o vestido e dirigiu sua atenção ao seu novo patrão.
— São bons? — perguntou com desconfiança.
— Muito bons —— afirmou Beaumaris com seriedade.
Jemmy desceu da cadeira.
— É verdade que não me engana? Não me vai levar para o velho Grimsby? — Não, não te vou levar para ele. Vêem ver meus cavalos.
Jemmy vacilou e olhou a Arabella, que o pegou da mão e disse:
— Sim, vamos vê — los.
Quando Jemmy viu os cavalos que esperavam na rua, abriu muito os olhos e soltou um grito de regorizo.
— Que cavalos! São incríveis! — exclamou — . Me deixará conduzi — los? — Não, não te deixarei conduzi — los — respondeu Beaumaris — . Mas podes sentar a meu lado. — Sim, senhor! — disse Jemmy reconhecendo a voz da autoridade.
— Suba! — disse Beaumaris, e levantou o garoto até o cabriolé. Então voltou — se e viu que Arabella lhe estendia uma mão. Pegou — a e susteve — a por um momento.
— Não tenho palavras para lhe agradecer o que fez — disse a jovem — . Espero que me mantenha informada dos progressos de Jemmy.
— Pode estar tranquila, senhorita Tallant — respondeu ele inclinando a cabeça. Pegou as rédeas e subiu ao cabriolé; então olhou com malícia para lord Fleetwood, que os tinha acompanhado à rua e estava se despedindo de Arabella, e acrescentou — : Vamos, Charles! Lord Fleetwood assustou — se e disse atropeladamente:
— Prefiro ir andando. Não te preocupes comigo, querido amigo.
— Vamos, Charles! — repetiu Beaumaris.
Lord Fleetwood, consciente de que Arabella o olhava, suspirou e disse: — Está bem. — Subiu no cabriolé e colocou Jemmy entre Beaumaris e ele. O senhor Beaumaris fez um aceno com a cabeça a sua atônito pontilhão, e fez arrancar aos baios. — Covarde — disse então.
— Não é que eu seja covarde —— protestou lord Fleetwood — . Mas vamos ser a piada da cidade. Não entendo o que se passou, Robert. Não podes ficar com este moleque em Mount Street. Se as pessoas se inteirarem — se, e eu acredito que acabarão por saber, todo mundo achará que é um bastardo.
— Sim, já pensei nessa possibilidade — admitiu seu amigo — . E estou seguro de que não devo me importar. A senhorita Tallant não se importaria.
— Maldito seja, acho que esse palerma, Bridlington, tinha razão uma vez na vida. Ficaste completamente louco!
— É verdade.
— Olha, Robert — advertiu lord Fleetwood olhando — o com certa preocupação — , se não tiveres cuidado, não demorarás muito em te encontrar ante o altar.
— Não tens muito boa opinião de mim. Acho que o passo seguinte deveria ser perseguir a esse indivíduo que chamam de «velho Grimsby».
— Que? — exclamou Fleetwood — . — Ela não te pediu que o fizesse! — Não, mas me parece que é o que espera de mim. — Viu que Jemmy, ao ouvir o nome do limpador, o olhava com uma expressão alarmada, assim o tranquilizou — : Não, não vou te levar para ele.
— Em todos os anos que te conheço nunca o tinha visto fazer algo tão ridículo, Robert — soltou seu amigo com absoluta franqueza — . Primeiro deixas que a senhorita Tallant te embrulhe para que te encarregues deste horrível moleque, e agora falas de se intrometer nos assuntos de um limpador. — Você! — É inaudito!
—— Sim, e o pior é que suspeito que a minha carreira de santo vai resultar extremamente estafante — admitiu Beaumaris com ar pensativo.
— Compreendo — disse Fleetwood depois de observar o perfil de seu amigo uns instantes — . Ofendeu — te tanto que a senhorita Tallant não se tenha apaixonado por você que farás qualquer coisa para conquistá — la.
— Assim é — assentiu o senhor Beaumaris com cordialidade.
— Pois mais vale que tenhas cuidado com o que faz — advertiu seu experimentado amigo. — Eu terei.
Lord Fleetwood dedicou o resto do breve passeio a pronunciar um severo discurso sobre a perfídia daqueles que, sem ter intenções sérias, arrebatavam as jovens mais cobiçadas da temporada de seus amigos, e também acrescentou uma firme repulsa dos cavalheiros empedernidos que tentavam enganar inocentes raparigas do campo.
Beaumaris escutou — o com total afabilidade e só o interrompeu para aplaudir seu último alarde de eloquência.
— Isso foi muito bom Charles, elogiou — o —— . De onde tiraste?
— Ouve! Ouve, se não me aborreço com você. E espero que essa jovem te cause boas dores de cabeça.
— Tenho o pressentimento de que tuas esperanças vão se cumprir. Lord Fleetwood desistiu, e como o senhor Beaumaris não via nenhum motivo para se abrir com ele, dedicaram o pouco tempo para chegar a Mount Street falando das possibilidades de um novo pugilista em sua próxima luta com um famoso campeão.
Beaumaris tinha razão em não confiar a ninguém suas verdadeiras intenções. Nem sequer ele estava seguro delas, mas o que sabia era que tinha ido a Park Street pelas razões que tinha descrito seu amigo, e que ao encontrar Arabella brigando pelo futuro de seu pouco atrativo protegido tinha experimentado uma revelação tão luminosa que quase o tinha privado de seus sentidos. As considerações sobre a conduta apropriada de uma dama esmeradamente educada não a tinham detido. Arabella não tinha se perturbado nem um pouco quando dois elegantes cavalheiros tinham aparecido e a tinham encontrado envolvida nas atribulações de um menino de rua que estava muito abaixo de qualquer aspirante às altas esferas da sociedade. Não, nada disso! Pensou o senhor Beaumaris, exultante; tinha demonstrado o que pensava sobre personagens frívolos como eles. Era evidente que não se importava em absoluto. — Eu poderia convertê — la na zombaria da cidade só relatando essa história, pensou. Sim, claro que podia! E ela o sabia — Teria se importado? — Não, não teria se importando nem um pouco! Agora tinha que impedir que Charles contasse a todo mundo o tinha se passado.
Beaumaris era um caçador suficientemente experimentado para perseguir a sua presa a uma distância demasiadamente curta. Deixou passar vários dias antes de abordá — la, pois não voltou a vê — la até o baile dos Charnwood. Pediu — lhe que dançasse com ele uma das danças rústicas, mas quando chegou o momento de ocupar seus lugares, a conduziu até um sofá e disse:
— Importa — se de sentar um momento comigo em lugar de dançar? Dançando não se pode conversar comodamente, e gostaria de falar com você sobre nosso menino. — Não, claro que não me importo! Tenho muita curiosidade em saber como ele vai. — Sentou — se, com o leque nas mãos, e olhou — o com interesse — . Passa bem? Está contente? — Pelo que pude observar — respondeu Beaumaris escolhendo com cuidado as palavras — não só está recobrando rapidamente uma excelente saúde, como também está se divertindo em ter uma conduta que poderá acabar me privando dos serviços de grande parte de meus empregados. Arabella refletiu. Beaumaris constatou, satisfeito, como ela franzia a fronte. — É muito travesso? — perguntou a jovem.
— Segundo contou — me minha governanta, senhorita Tallant (mas suponho que não devemos acreditar em tudo), é a personificação de tantos vícios que seria impossível enumerá — los. Arabella pareceu encarar essa informação com serenidade, porque assentiu, compreensiva. — Rogo — lhe que não ache que esteja apreensivo com algo tão insignificante como as queixas de uma simples governanta — prosseguiu Beaumaris — . Só a mais imperiosa das necessidades ter — me — ia decidido a lhe falar sobre assunto. — Ela o olhava intrigada — . Veja — explicou — trata — se de Alphonse.
— Alphonse?
— Meu cozinheiro. Se você me pedir, senhorita Tallant, eu o despedirei imediatamente. — Mas devo admitir que sua partida me causaria uma grande preocupação. Não vou afirmar que isso me destroçasse a vida, porque sem dúvida outros cozinheiros sabem fazer um soufflé e não se ofendem tanto pelas destruições causadas na despensa por um menino. — Isso é absurdo, senhor Beaumaris! — disse Arabella com severidade — . Acredito que consentiu a Jemmy todos os seus caprichos! Acredito que o garoto se porta muito mau. É o que faria qualquer menino em sua situação, a não ser que estivesse realmente destroçado, e temos de agradecer que Jemmy não o esteja.
— É verdade! — concordou Beaumaris, encantado com tanta sabedoria — . Irei propô — lo a Alphonse.
Arabella negou com a cabeça.
— Não, não! Acho que isso não serviria de nada. Os estrangeiros — acrescentou — não sabem tratar aos meninos. Que podemos fazer?
— Não sei, mas tenho a sensação de que a Jemmy iria se sentir bem passando uma temporada no campo.
Essa sugestão foi muito bem acolhida por parte de Arabella.
— Sim, acredito que nada poderia lhe servir melhor! — concordou — . Ademais, ele não tem motivos para incomodar a você, estou segura. Mas como poderíamos fazer? Aliviado ao comprovar com que facilidade tinha superado esse obstáculo, Beaumaris disse: — Acaba de ocorrer — me, senhorita Tallant, que se o levasse a Hampshire, onde tenho plantações, sem dúvida encontraríamos algum lar respeitável.
— Claro! Algum de seus arrendatários! Essa seria uma solução ideal! — exclamou Arabella — . Uma granja singela e uma boa mulher que se ocupasse dele. Ainda que tema que teríamos que lhe pagar algo por isso.
— Não, não, senhorita Tallant! Não me negue esta oportunidade de fazer uma obra de caridade, lhe rogo!
Assim Arabella se absteve de impedi — lo, e dedicou — lhe um tal sorriso de agradecimento que Beaumaris se considerou amplamente recompensado.
— Está muito aborrecida com você, lady Bridlington? — perguntou com ar zombeteiro. Arabella riu, mas parecia um pouco arrependida.
— Estava — o — admitiu — . No entanto, como viu que a história não circulou, me perdoou. Estava convencida de que todo mundo iria rir de mim. — Como se me importassem essas coisas, quando a única coisa que fiz foi cumprir com meu dever!
— É claro!
— Veja, tinha começado a achar que na cidade todo mundo... bom, que todas as pessoas importantes eram cruéis e egoístas — confessou — lhe — . Temo que não me mostrasse educada com você; e mais, lady Bridlington assegura que fui incrivelmente grosseira. Mas veja, ignorava que você não era como os demais. Rogo — lhe que me perdoe!
Beaumaris teve a decência de comover — se, e isso o fez dizer:
— Senhorita Tallant, eu o fiz com a esperança de agradá — la.
Então lamentou não ter refreado, porque Arabella se mostrou mais reservada, e ainda que continuasse falando com ele durante um momento, ele percebeu que a jovem tinha voltado a pôr uma distância entre os dois.
Dias mais tarde, Beaumaris teve ocasião de recuperar sua posição e tentou não voltar à pô — la em perigo. Quando regressou de uma visita a suas propriedades, passou por Park Street para dar a Arabella tranquilizadoras notícias de Jemmy, a quem tinha deixado aos cuidados de uma antiga empregada sua. A jovem preocupava — se que um pobre menino abandonado que tinha crescido na cidade se sentisse perdido e triste no campo, mas quando o senhor Beaumaris lhe informou que até onde sabia, Jemmy antes dele sair de Hampshire, tinha soltado um rebanho de bois do campo onde estavam confinados, tinha arrancado as penas do rabo do galo, tinha tentado montar o lombo de um ofendido porco através do pátio e que tinha comido toda uma fornada de pastéis que a sua
bondosa anfitriã acabava de preparar, Arabella compreendeu que Jemmy era duro de lidar, e riu e assegurando que cedo iria se acalmar e aprenderia a se comportar. Beaumaris deu — lhe a razão, e então jogou a sua cartada. Pensou que ela gostaria de saber que tinha tomado medidas para se assegurar o bem — estar dos futuros aprendizes do senhor Grimsby. Arabella mostrou — se muito impressionada.
— Levou — o aos tribunais!
— Bom, não exatamente — reconheceu ele. Como detectou uma ponta de decepção no olhar da jovem, se apressou a acrescentar — : Veja, pareceu — me que a você não gostaria de apresentar — se como testemunha ante um tribunal. Além disso, quando se trata de aprendizes, se enfrenta todo tipo de dificuldades, porque não é fácil arrebatar os garotos de seus patrões. Portanto, pareceu — me mais oportuno falar em particular com sir Nathaniel Conant, o juiz supremo e, casualmente, um velho conhecido meu. O senhor Grimsby não passará por alto a uma advertência de Bow Street, lhe asseguro.
Arabella lamentou que ao senhor Grimsby não fosse mandado para o cárcere, mas como era uma rapariga sensata, aceitou os argumentos do senhor Beaumaris e lhe disse que estava muito agradecida. Ficou refletindo por uns instantes, sob o olhar atento de seu interlocutor, que se perguntava que estaria pensando.
— Deveriam ser as pessoas com meios e dinheiro a que deveriam se preocupar com estes assuntos — disse de repente — . Nesta cidade, ninguém parece se importar com nada! Desde que cheguei a Londres vi coisas tão horríveis, tanta miséria, tanta mendicância e tantos meninos esfarrapados e sem pais nem lar! Lady Bridlington não quer ouvir falar de nada disso, mas eu gostaria de poder ajudar aos meninos tão pobres como Jemmy.
— E por que não o faz? — perguntou ele friamente.
Ela o olhou, e Beaumaris se deu conta de que tinha sido demasiado brusco e de que a jovem não iria lhe revelar a verdade.
— Talvez o faça algum dia — respondeu depois de uma breve pausa. Beaumaris perguntou — se se sua madrinha a teria prevenido contra ele, e quando Arabella não quis dançar com ele na dança seguinte, se convenceu disso.
Mas apesar da advertência que lhe feito lord Bridlington. As atenções que Beaumaris tinha prodigalizado a Arabella, entre elas o extraordinário gesto de adotar Jemmy, tinham feito lady Bridlington albergar as mais disparatadas esperanças, pois não tinha notícia de que nenhuma de suas anteriores aventuras amorosas o tivessem levado a fazer nada parecido. Lady Bridlington começou a forjar ilusões de que suas intenções eram sérias e estava a ponto de escrever à senhora Tallant para o insinuar, quando lord Bridlington rompeu as suas esperanças. — Deverias prevenir um pouco a tua jovem protegida com respeito à Beaumaris, mãe — disse com gravidade.
— Meu querido Frederick, já o fiz, desde o princípio. Mas o senhor Beaumaris lhe prodigaliza tantas atenções, interessa — se muito por ela e se esforça tanto para atraí — la que na verdade é que começo a pensar que quer estabelecer uma relação formal. Imagina se casasse com ele, Frederick! — Asseguro — te que nada me emocionaria mais nem que ela fosse minha própria filha! Porque já sabes que seria graças a mim.
— Espero que não metas essa idéia tão descabelada na cabeça da jovem — contradisse ele atrapalhando o extasiado discurso de sua mãe —— . Advirto — a uma coisa: os amigos mais íntimos de Beaumaris não interpretam desse modo o interesse que ele demonstra pela senhorita Tallant. — Ah, não? — disse lady Bridlington com voz entrecortada.
— Pelo contrário, mãe! Asseguram que o faz só por maldade, porque ela não se interessa por ele mais que por qualquer outro. Tenho de reconhecer que não esperava que a jovem tivesse tanto senso comum. Os homens como Beaumaris, acostumados a que todos os admirem e adulem, se ofendem sobremaneira quando uma mulher os recusa e que não foi tão tola para morder seu anzol. Exaspera — me ver como mimam e lisonjeiam uma pessoa! Mas seja como for, mãe, deverias saber que em no White’s já se está apostando que a senhorita Tallant não agüentará o assédio por muito tempo.
— Que odiosos são os homens! — exclamou lady Bridlington, indignada. Talvez os homens fossem horríveis, mas se estavam fazendo apostas nos clubes, uma dama de companhia séria e aplicada deveria prevenir a sua protegida uma vez mais para que não prestasse demasiada atenção aos galanteios de um consumando sedutor. Arabella assegurou — lhe que não tinha intenção de cair nessa armadilha.
— Não, querida, claro que não — replicou milady — . Mas não podemos negar que o senhor Beaumaris é muito atraente: eu mesma me dou conta! Que porte! Que maneiras! Não obstante, de nada serve pensar em isso. Temo que para ele é uma espécie de desporto conseguir que as mulheres se apaixonem por ele.
— Eu não me vou apaixonar de ele! — declarou Arabella — . Ele é muito agradável, mas como já lhe disse outras vezes, madrinha, não sou tão tonta para me deixar impressionar. Lady Bridlington olhou — a com desconfiança.
— Não, minha querida, espero que não. Tens tantos admiradores que não precisamos contar com o senhor Beaumaris. Suponho (e espero que não te ofendas por eu perguntar) nenhum cavalheiro lhe propôs casamento, não é verdade?
Ainda que vários cavalheiros, bons e maus partidos, tinham — lhe proposto casamento, a jovem negou com a cabeça. Podia absolver alguns de seus pretendentes de abrigar projetos em elação a sua suposta fortuna, mas ao menos dois deles jamais teriam se declarado se soubesse que Arabella não tinha dinheiro; e o galanteio de vários conhecidos caçadores de fortunas impediam — na de achar que os bem intencionados esforços de lord Bridlington tivessem dissipado aquele horrível boato. Tinha a impressão de que se encontrava numa situação muito comprometedora. Faltava muito pouco para a Páscoa, e Arabella tinha tido tempo de sobra, com todas as oportunidades que tinha sido brindada, de cumprir os desejos de sua mãe. Sentia — se culpada, porque sua mãe tinha
gastado muito dinheiro para enviá — la a Londres, assim o mínimo que poderia ter feito uma filha agradecida seria recompensá — la aceitando alguma oferta de casamento respeitável. Mas Arabella encontrava — se atrapalhada. Não lhe interessava nenhum dos homens que se tinham declarado, e ainda que supusesse que isso não devia pesar demasiadamente na balança comparando com os benefícios que iria proporcionar a seus queridos irmãos e irmãs, estava decidida a não aceitar a proposta de nenhum pretendente que ignorasse suas verdadeiras circunstâncias. Talvez ainda fosse aparecer em sua vida o homem com quem pudesse ser sincera, mas por enquanto não tinha aparecido, e enquanto esperava sua chegada, Arabella se refugiava no senhor Beaumaris, pois, fossem quais fossem suas intenções, ele não cobiçava sua fortuna. Por sua vez, Beaumaris punha todo tipo de facilidades para que a jovem estivesse com ele, mas não podia se felicitar pelo seu sucesso. Qualquer gesto galante de sua parte transformava a Arabella da menina confiante e atraente numa jovem disposta a lhe responder com evasivas, mas que não lhe ocultava que não lhe interessavam em absoluto seus experientes galanteios. E após lady Bridlington ter falado a Arabella as advertências de seu filho, sem deixar de mencionar o fato de que os amigos do senhor Beaumaris sabiam que ele só estava jogando com ela, ela se mostrou ainda mais esquiva. Ele então se viu obrigado a empregar um estratagema ignóbil, de maneira que após visitar suas propriedades devido a um assunto de negócios, no seu regresso foi ver a Arabella e lhe disse que queria falar outra vez do futuro de Jemmy. Desse modo, convenceu — a a dar um passeio em seu cabriolé. Levou — a a Richmond Park, e ela não pôs objeções, apesar de que até então nunca tinham ido além de Chelsea. Fazia uma tarde cálida e agradável, e o sol brilhava com tal intensidade que Arabella se aventurou a pôr um chapéu de palha muito favorecedor e a usar uma pequena sombrinha com o cabo muito longo que tinha visto no Pantheon Bazaar e cuja compra não tinha podido resistir. Quando Beaumaris a ajudou a subir no cabriolé, Arabella assegurou que lhe agradecia muito que a levasse ao campo, porque era o que mais gostava no mundo, e porque naquele extenso parque, longe da cidade, podia pensar em suas coisas. — Então já conhece Richmond Park? ?perguntou ele.
— Sim, claro. Lord Fleetwood levou — me ali na semana passada. E os Charnwood organizaram uma saída em grupo, e fomos em três carros. E amanhã, se fizer bom tempo, sir Geoffrey Morecambe me acompanhará para ver os jardins Flórida.
— Nesse caso, devo considerar — me afortunado por ter ido visitá — la num dia que não tinha nenhum outro compromisso.
— Sim, a verdade é que saio muito — disse Arabella. Abriu a sombrinha e acrescentou — : Que queria me dizer sobre Jemmy, senhor Beaumaris?
— Ah, sim! Jemmy! Se me der seu consentimento, senhorita Tallant, vou fazer... bom, na realidade fiz já uma pequena mudança em sua educação. Temo que sob a tutela da senhora Buxton nunca fará nada bom, e ainda temo ainda mais que se continuar ali logo causará a morte dessa boa mulher. Ao menos, isso foi o que ela me contou anteontem, quando fui a Hampshire. — Que amável você é! — exclamou Arabella olhando — o com doçura — . Ir até lá só por esse menino travesso...
Ele ficou tentado a mentir, mas ao olhar a sua acompanhante e perceber o seu olhar inocente, vacilou.
— Não exatamente, senhorita Tallant. Tinha que solucionar uns assuntos. — Já imaginava — respondeu Arabella sorrindo.
— Nesse caso, alegro — me de não lhe ter mentido.
— Como pode ser você tão absurdo — Como se eu quisesse que tivesse tantos incômodos! Que fez Jemmy desta vez?
— Prefiro não lho contar para não entristecê — la. A senhora Buxton está convencida de que o menino está possuído pelos demônios. E além disso, a linguagem que emprega não é ao que ela está acostumada. Lamento ter que dizer que também fez inimizade com os meus guardas, que não conseguiram fazê — lo entender que não deve molestar minhas aves nem roubar ovos de faisão. Não me explicou porque os quer, na verdade.
— Pois é claro que deveriam castigá — lo por isso! Suponho que se aborreça. Temos de recordar que está acostumado a trabalhar, e deveríamos procurar alguma ocupação. Estar completamente ocioso não isso não é favorável para ninguém.
— Tem toda a razão, senhorita Tallant — concordou o senhor Beaumaris com docilidade. Ela não se deixou enganar. Olhou — o fixamente, conteve o riso e disse: — Estamos falando de Jemmy!
— Assim espero.
— Não seja ridículo — lhe censurou — o com um pouco severidade — . Que vamos fazer com ele? — Levei a cabo algumas indagações e cheguei à conclusão de que a única pessoa que tem boa opinião dele é o encarregado de meus estábulos. Diz que a Jemmy se dá muito bem os cavalos. Acontece que sempre que pode escapa para as cocheiras, onde, curiosamente, se comporta de forma inatacável. Wrexham ficou tão impressionado ao encontrar o garoto brincando com um garanhão arisco e que considera sumamente perigoso que veio me sugerir que lhe permitisse ensiná — lo. Ele não tem filhos, e já que se ofereceu a alojar Jemmy em sua casa, pensei que não seria má idéia lhe dar carta branca com seu projeto. Não acho que a linguagem de Jemmy lhe surpreenda, e tenho motivos para confiar, pelo que sei de Wrexham, que conseguirá meter ao garoto nos trilhos.
Arabella aprovou com tanto entusiasmo essa solução que Beaumaris se arriscou a acrescentar com tom melancólico:
— Sim, mas se tudo ficar bem, já não terei pretextos para levá — la a passear. — Deus do céu, tão esquiva me mostrei com você... — perguntou Arabella arqueando as sobrancelhas — . Não sei por que diz tantas tolices, senhor Beaumaris. Não tenha dúvida de que permitirei que de vez em quando me vejam em sua companhia, porque não tenho tanta segurança em mim mesma para arriscar a que se diga que o Incomparável começou a se aborrecer comigo.
— Creia — me, senhorita Tallant: não corre esse perigo. – Esticou as rédeas para fazer uma curva, e não voltou a falar até que tinha saído dela. Então disse — : Temo que me considere uma pessoa desprezível, senhorita Tallant. Que posso fazer para lhe demonstrar que posso ser muito sensível? — Não há nenhuma necessidade de que faça nada: estou segura de que o és — replicou ela com cordialidade.
Após essa troca de palavras, Arabella interessou — se pela paisagem e depois começou a falar de sua iminente apresentação. O acontecimento ia ter lugar na semana seguinte, e já tinha chegado à casa de lady Bridlington o vestido que a habilidosa costureira tinha transformado. Isso ela não disse ao senhor Beaumaris, é claro, mas apenas o descreveu com todo detalhe, e comprovou que era um entendido na matéria. Ele lhe perguntou que jóias ela ia pôr com o vestido, ao que ela contestou com grandiloqüência:
— Oh, só diamantes! — De repente envergonhou — se do que acabava de dizer, ainda que fosse totalmente verdadeiro.
— Tem um gosto excelente, senhorita Tallant. Não há nada mais desagradável para um olhar exigente que uma profusão de jóias. Permita — me felicitá — la pela benéfica influência que exerceu sobre suas contemporâneas.
— Eu? — estranhou Arabella, suspeitando que ele estava rindo dela. — É claro. A absoluta falta de ostentação que caracteriza os seu trajes é muito admirada, e lhe asseguro, que muitas damas começam a copiá — la.
— Está caçoando!
— Não, lhe asseguro que não. Não observou em que a senhorita Accrington já não usa aquele horrível colar de safiras, nem em que a senhorita Kirkmichael já não dissimula as limitações de sua figura com uma profusão de correntes, broches e colares que parecia ter sido colocado a esmo por um agitado joalheiro?
Arabella começou a rir pensando que suas escassas circunstâncias tivessem dado origem a uma nova moda, mas não quis confessar ao seu acompanhante a causa de sua hilaridade. Ele não insistiu para que lhe desse uma explicação, e como já tinham chegado ao parque, sugeriu que caminhassem um pouco pela gramado enquanto o pontilhão se ocupava do cabriolé. Arabella aceitou o convite, e enquanto passeavam, o senhor Beaumaris falou — lhe da casa que tinha em Hampshire. Mas Arabella não mordeu o anzol; a senhorita Tallant limitou seus comentários sobre sua casa a fez várias descrições da paisagem de Yorkshire, e não se deixou enganar para compartilhar com seu interlocutor lembranças familiares.
— Tenho entendido que seu pai ainda vive, não é assim? Lembro que o mencionou no dia que adotou Jemmy.
— Ah, sim — Sim, meu pai ainda vive, e nesse dia falei muito pouco dele, porque é o melhor homem do mundo e teria sabido como agir.
— Espero ter o prazer de conhecê — lo algum dia. Vem com freqüência a Londres?
— Não, nunca.
Não achava que o senhor Beaumaris e seu pai se simpatizariam caso chegassem a se conhecer; ao perceber que a conversa tomava um caminho perigoso, voltou a adotar seu ar de jovem elegante, que manteve durante grande parte do caminho de regresso a Londres. No entanto, quando deixaram atrás os campos e o cabriolé voltou a circular entre as fileiras de casas, de repente abandonou esta aparência. No meio de uma rua estreita, os cavalos se agitaram ao passar ao lado de um carroção cuja andrajosa coberta de lona balançava ao vento. Mal tinha espaço para que o cabriolé passasse, e o senhor Beaumaris, concentrado em seus cavalos, não se fixou num grupo de jovens que estavam inclinados sobre um objeto caído no solo, também não observou no agoniado grito que deu Arabella ao mesmo tempo em que se despojava da fina manta que lhe cobria as pernas:
— Oh! Pare! — gritou, e fechou inesperadamente a sombrinha.
Os cavalos passavam nesse momento, com grande refinamento, ao lado do carroção; Beaumaris freou os cavalos, mas Arabella não esperou a que o cabriolé se tivesse detido de todo para saltar. O cavalheiro sujeitou os animais, que pisoteavam inquietos, com mão férrea ao mesmo tempo em que olhava acima do ombro e via que Arabella dispersava o grupo de jovens em volta da calçada com um golpe da sombrinha.
— Segure — os, seu inútil! — gritou ao pontilhão.
Este, que seguia agarrado na parte de atrás do cabriolé, e que ao que parece tinha ficado atônito ante a estranha conduta da jovem, voltou a si, saiu do carro e correu para sujeitar os cavalos. Beaumaris saltou também do cabriolé e se lançou sobre os jovens. Depois de agarrar a dois dos rústicos pelo cangote, golpear a cabeça do um contra a do outro e agarrar a um terceiro pela gola da camisa e pela cintura das suas largas calças e o lançar à calçada, descobriu o que tinha provocado a ira da senhorita Tallant. Enroscado no solo, tremendo e gemendo, tinha um cãozinho mestiço e de pelagem clara, com a cauda enroscada e uma orelha vergonhosamente caída. — Esses malvados, cruéis, desalmados! — exclamou Arabella com a respiração ofegante, com as faces vermelhas e os olhos brilhantes — . Estavam torturando este pobre animalzinho! — Tenha cuidado! Pode mordê — la! — apressou — se a dizer Beaumaris ao ver que a jovem se ajoelhava ao lado do cão — . Quer que lhes dê uma boa surra?
Ao ouvir essas palavras, dois dos jovens começaram a correr, os dois cujas cabeças tinham se chocado e se afastaram com cautela do alcance do longo chicote do senhor Beaumaris, e o machucado jovem a quem o cavalheiro tinha lançado à calçada gemeu que não estava fazendo nada de mau e que tinha todas as costelas rompidas.
— Fizeram — lhe muito dano? — perguntou angustiada a senhorita Tallant — . — Chora quando eu o toco!
Beaumaris tirou as luvas, deu — as a Arabella junto com o chicote e disse: — Segure isto. Vou ver.
A jovem, obediente, pegou — os e observou, nervosa, enquanto ele examinava o cão. Viu que manipulava o pobre animal com firmeza, mas suavemente, de uma maneira que revelava que sabia o que fazia. O cão gemeu, proferiu uns latidos afogados e se acovardou, mas não tentou mordê — lo. E mais, agitou debilmente sua feia cauda e lambeu — lhe a mão. — Está muito machucado e tem um par de feridas, mas nenhum osso rompido — concluiu Beaumaris levantando — se. Voltou — se para os dois jovens que não tinham fugido e disse com severidade — : De quem é este cão?
— Não tem dono — responderam — . Vive por aí mexendo nos nossos cestos de lixo. E nos da loja do açougueiro!
— Eu o vi em Chelsea com um pedaço de pão — corroborou seu colega. O acusado arrastou — se até as elegantes botas de Beaumaris e esfregou uma das reluzentes botas com uma pata.
— Oh! Olhe como é inteligente! — exclamou Arabella, agachando — se para acariciar o animal — . Sabe que é a você a quem tem que agradecer o seu resgate!
— Se isso que pensa, não o considero muito inteligente, senhorita Tallant — replicou Beaumaris olhando o cão — . É evidente que é a você a quem deve a vida!
— Não, não diga isso! Sem sua ajuda, não teria podido fazer nada. Quer fazer o favor de passá — lo para mim? — disse Arabella, que se dispunha a subir de novo no cabriolé. Ele a olhou; depois olhou o descuidado e sujo cachorro que tinha aos seus pés e disse: — Está segura de que deseja levá — lo, senhorita Tallant?
— É claro! Não pensará que vou deixá — lo aqui para que esses malvados o torturem logo que tivermos ido embora, não é verdade? Ademais, já ouviu o que disseram. Não tem dono, ninguém que o alimente nem cuide dele. Dê — me — o, por favor!
Beaumaris reprimiu um sorriso e disse com absoluta seriedade:
— Como queira, senhorita Tallant! — Pegou o cão pelo pescoço. Viu que ela estendia ambos os braços para receber a seu novo protegido e vacilou — . Veja que ele está muito sujo! — Bah, que importa — Já manchei o vestido me ajoelhando na calçada — assinalou Arabella, impaciente.
Por conseguinte, Beaumaris depositou o cão em seu regaço, pegou o chicote e as luvas, que lhe devolveu Arabella, e ficou de pé, sorrindo e observando como a jovem acomodava o cão, lhe acariciava as orelhas e lhe murmurava palavras tranqüilizadoras.
— Que estamos esperando, senhor Beaumaris? — perguntou ela levantando a cabeça. — Nada, senhorita Tallant! — respondeu ele, e subiu no cabriolé.
Sem deixar de acariciar ao cão, a senhorita Tallant expôs com veemência sua opinião sobre as pessoas que se mostravam cruéis com os animais, e agradeceu calorosamente ao senhor Beaumaris que tivesse esmurrado aqueles repugnantes jovens, um violento recurso que parecia ter merecido a sua aprovação. A seguir dedicou — se a falar ao cão e a informar — lhe do esplêndido jantar que lhe ia dar e do banho quente que, segundo ela, tanto gostaria. Mas ao cabo de um momento ficou pensativa e guardou silêncio.
— Que se passa, senhorita Tallant? — perguntou Beaumaris ao ver que a jovem não dava sinais de romper seu silêncio.
— Veja — disse ela devagar — , estava pensando, senhor Beaumaris — Tenho o pressentimento de que este cachorrinho tão encantador não vai ser do agrado de lady Bridlington. Beaumaris esperou com paciência e resignação que seu inevitável destino caísse sobre ele. — Senhor — disse impulsivamente voltando — se para ele — , você acredita... — Você poderia... Beaumaris olhou a nervosa e suplicante jovem.
— Sim, senhorita Tallant.
— Obrigado! — exclamou a jovem, e seu rosto seu iluminou — . Sabia que podia confiar em você! — Voltou com cuidado a cabeça do vira — lata para Beaumaris e disse — : Olha, este é seu novo amo, que será muito bom contigo! Olhe que inteligente parece! Não tenho dúvida de que entende tudo. Acredito que vai gostar muito dele.
O adotante olhou ao animal e conteve um estremecimento.
— Provavelmente...
— Claro que sim! Talvez não seja muito bonito, mas os cães de rua costumam ser mais inteligentes que os de raça pura. —— Alisou o hirsuto pelo da cabeça ao animal e acrescentou com ar inocente — : Far — lhe — á muita companhia. Não entendo que ainda não tenha cão. — Sim os tenho, mas no campo.
— Ah, mas são cães de caça! Esses são muito diferentes!
Depois de dar outra olhadela a seu futuro parceiro, Beaumaris pensou que estava absolutamente de acordo com essa observação.
— Quando estiver escovado e tiver engordado um pouco — insistiu Arabella, com a serena convicção de que seus sentimentos eram compartilhados — parecerá outro. Estou impaciente por vê — lo dentro de duas semanas!
Beaumaris deteve os cavalos diante da casa de lady Bridlington. Arabella fez um último carinho no cãozinho e deixou — o no assento ao lado de seu novo proprietário, ordenando — lhe que não se movesse de ali. Ao princípio, o cãozinho parecia um tanto indeciso, mas como estava demasiado machucado para saltar à rua, ficou onde estava, gemendo. No entanto, quando Beaumaris, que tinha acompanhado a Arabella até a porta, regressou ao cabriolé, o cão deixou de gemer e o recebeu com efusivas demonstrações de alívio e afeto.
— Teu instinto equivoca — se. Se pudesse escolher, abandonar — te — ia a teu destino. Ou te ataria um tijolo ao pescoço e atirar — te — ia ao rio.
Seu canino admirador agitou a cauda e inclinou a cabeça.
— És tremendamente feio! E o que ela espera que faça contigo? — O animal pôs — lhe uma pata no joelho — . Está bem, mas te advirto que conheço aos de tua laia! És um adulador, e detesto aos lisonjeiros. Suponho que se te enviasse ao campo, meus cães matar — te — iam assim que te vissem. — A severidade de seu tom de voz fez que o animal se acovardasse um pouco, ainda que continuasse olhando — o com a expressão de um cão ansioso por compreender — . Não temas! — tranquilizou — o acariciando — lhe brevemente a cabeça — . É evidente que a dama quer que fiques comigo na cidade. Não parou para pensar que teus modos deixam muito que desejar — Teria em seus devaneios, considerado que é um animal que pode ser admitido na casa de um cavalheiro? — Claro que não! — O pontilhão conteve o riso, e ao ouvi — lo, Beaumaris disse pro cima do ombro — : Espero que gostes de cães, Clayton, porque vais ter que banhar a este exemplar. — Muito bem, senhor.
— E trata — o com cortesia! — ordenou o cavalheiro — . Quem sabe? Talvez se afeiçoe a você. Essa noite, às dez em ponto, o mordomo do senhor Beaumaris, que levava uma bandeja com alguns refrescos à biblioteca, deixou passar a um vira — lata banhado, escovado e alimentado, que entrou pavoneando — se tanto quanto permitia sua esquálida condição. Ao ver o senhor Beaumaris, que se consolava lendo o seu poeta favorito numa cômoda poltrona de orelhas junto à lareira, soltou um agudo ganido de felicidade e se ergueu sobre as patas traseiras, pondo as patas dianteiras sobre os joelhos de seu novo amo, agitando furiosamente a cauda e o olhando com radiante adoração. — Mas que demônios! — exclamou Beaumaris apartando o livro de Horacio. — Clayton trouxe o cão, senhor — explicou Brough — . Disse que o senhor queria saber que aspecto ficou. Pelo visto, senhor, o cão não gostou muito de Clayton, que me disse que ele estava muito nervoso e não parava de gemer. — Viu como o cão metia a cabeça embaixo da mão de seu senhor e acrescentou: É curioso como os animais se sentem atraídos pelo senhor. Agora parece contente, não?
— Deplorável. — Desce, Ulisses! Minhas calças não foram feitas para que sejam pisadas por alguém como você!
— Aprenderá depressa, senhor — observou Brough, deixando um copo e uma garrafa na mesa, ao lado da poltrona de seu amo. Nota — se que é esperto. Deseja algo mais? — Não, só que leves este animal para Clayton, e que lhe digas que estou muito satisfeito com seu aspecto.
— Clayton já foi, senhor. Temo que não entendeu que o senhor pretendia que se ocupasse do animal —— assinalou Brough.
— Queres dizer que se negou a entender — insinuou Beaumaris com gravidade.
— Isso não posso assegurar. Duvido que o cão goste de ficar com Clayton, porque os cães não se dão tão bem com ele como os cavalos. Temo que com ele não ficará tranquilo, senhor. — Deus meu! — resmungou Beaumaris — . — Então leva — o à cozinha! — Sim, senhor. Se me ordena... — replicou Brough, vacilante — . Ainda que Alphonse... — Olhou a seu amo, e pareceu não ter dificuldade para adivinhar a pergunta que este não tinha chegado a formular — : Sim, senhor. Foi muito francês com respeito a este assunto. Parece mentira, mas deve se recordar que os estrangeiros são muito estranhos, e não gostam de animais. — Está bem – resignou — se Beaumaris suspirando — . — Deixa — o aqui! — Sim, senhor — assentiu Brough, aliviado, e saiu da biblioteca.
Ulisses, que enquanto o mordomo e seu amo conversavam tinha estado inspecionando detidamente ainda que timidamente a habitação, se dirigiu de novo para o tapete em frente à lareira e ficou ali contemplando o fogo com desconfiança. Pareceu chegar à conclusão de que não era perigoso, porque passados uns momentos se acomodou em frente ao fogo, soltou um suspiro, apoiou a cabeça nos tornozelos cruzados do senhor Beaumaris e se pôs a dormir. — Suponho que imaginaste que vamos ser parceiros?
Ulisses abaixou as orelhas e moveu debilmente a cauda.
— Se fosse prudente, retirar — me — ia agora.
Ulisses levantou a cabeça e bocejou; depois voltou a apoiá — la nos tornozelos de seu amo e fechou os olhos.
— Talvez tenhas razão — admitiu Beaumaris — . Mas pergunto — me o que fará esta jovem na próxima vez.
* * *
Capítulo 10
Quando Arabella se despediu do senhor Beaumaris diante da casa de lady Bridlington, o mordomo que lhe abriu a porta informou que dois cavaleiros a estavam esperando no salãozinho. A notícia produziu — lhe uma considerável surpresa. O mordomo explicou — lhe que um desses jovens cavalheiros tinha mostrado muito interesse em vê — la, porque era de Yorkshire e a conhecia. Um temor horrível apoderou — se de Arabella: que toda Londres tivesse descoberto a verdade. Com a mão trêmula pegou o cartão de visita da bandeja que o mordomo segurava. Mas comprovou que não conhecia o nome elegantemente impresso nela: não recordava ter ouvido falar de nenhum Felix Scunthorpe, e muito menos o ter conhecido.
— Dois cavalheiros?
— O outro jovem, senhorita, não revelou seu nome — respondeu o mordomo. —— Bem, suponho que terei de recebê — los. Diga — lhes que descerei em seguida, por favor. Ou está lady Bridlington em casa?
— Não, milady ainda não regressou, senhorita.
Arabella não soube se devia se alegrar ou se lamentar. Subiu ao seu quarto para mudar o sujo vestido, uns minutos mais tarde desceu com a esperança de que seu rosto não delatasse o medo que a aterrorizava. Entrou no salão com ar majestoso e decidido. Como lhe tinha prevenido o mordomo, tinha dois jovens cavalheiros de pé junto à janela. Um deles era um jovem de aspecto ligeiramente insosso e impecavelmente vestido, que além de um alto chapéu levava uma bengala de ébano e um elegante par de luvas. O outro era alto e esbelto, com cabelo castanho e encaracolado e perfil aquilino. Ao vê — lo, Arabella emitiu um grito e cruzou correndo a sala para jogar — se em seus braços.
— Bertram!
— Calma, Bela! — censurou seu irmão retrocedendo — . Tem cuidado com o que fazes, por amor de Deus! Minha gravata!
— Ai, perdoa — me, é que me alegro tanto de te ver! — Mas a que se deve tua visita? Está papai na cidade?
— Não, claro que não!
— Graças a Deus! — suspirou Arabella levando ambas as mãos ao rosto. Ao seu irmão não pareceu estranhou em absoluto essa exclamação. — Sim, ainda bem que não está aqui — disse olhando — a com olhar crítico — , porque asseguro que reclamaria por estares vestida assim. Estás muito bonita, Bela! Muito elegante, não é verdade, Felix?
O senhor Scunthorpe, confuso por requerem a sua opinião, abriu e fechou a boca um par de vezes, inclinou a cabeça e fez cara de desespero.
— Disse que estás deslumbrante — explicou Bertram, interpretando esses sinais — . É um pouco envergonhado com as mulheres, mas um grande tipo asseguro — te. Em qualquer circunstância! Arabella olhou com interesse o senhor Scunthorpe, que apresentava a aparência de um jovem muito afável; e ainda que seu elegante casaco não destoasse daqueles que seguiam a moda, pareceu que lhe faltava personalidade. Saudou — o com uma curvatura, que fez que o jovem se ruborizasse intensamente e começasse a gaguejar. Bertram, pensando que sua irmã agradeceria algum tipo de apresentação, disse:
— Não o conheces. Estudava em Harrow comigo. É mais velho que eu, mas tem a cabeça cheia de serragem: — jamais aprendeu nada! Encontrei — o no High.
— No High?
— Em Oxford, Bela! — explicou Bertram com altivez — . Maldita seja, como podes ter esquecido? Fui fazer os exames de admissão!
— Claro que não o esqueci. Sophy escreveu — me que ias a Oxford, e que o pobre James não podia te acompanhar porque teve icterícia. — Que pena me deu! Mas como foi, Bertram? Achas que foste aprovado?
— Não sei. Um dos exames era muito difícil. — Mas não falemos disso agora! O caso é que ali encontrei a meu amigo Felix, que é justamente o homem que precisava. — Ah, sim? — inquiriu Arabella, e acrescentou com um educado sorriso — : Você também foi fazer o exame, senhor Scunthorpe?
Este pareceu estremecer ante aquela possibilidade; negou com a cabeça e emitiu um som que Arabella interpretou como uma negação.
— Pois claro que não! — interveio Bertram — . Não te disse que tem a cabeça cheia de serragem? Tinha ido visitar uns amigos seus que estudam em Oxford. O pobre passou muito mal, não é verdade, Felix? Levaram — no a reuniões onde se viu rodeado de professores e eruditos, e não entendia nem uma palavra do que diziam. Não sei como lhes ocorreu fazer isso, porque era evidente que nessa companhia cairia em ridículo. Em fim, não é disso que desejava te falar. O caso é, Bela, que Felix me vai mostrar todos os lugares interessantes de Londres. Conhece a cidade como a palma da mão, porque vive aqui desde que o chutaram de Harrow. — O pai deu — te permissão? — estranhou — se Arabella.
— A verdade é que não sabe que estou aqui — respondeu Bertram com displicência. — Não sabe que estás aqui? — exclamou Arabella, alarmada.
Scunthorpe pigarreou e disse:
— O enganamos. Não podíamos fazer outra coisa.
Arabella olhou com incredulidade o seu irmão.
— Não, dizer que o enganamos não é exato — completou Bertram um pouco arrependido.
— Nós o ludibriamos —— corrigiu Scunthorpe.
Bertram ia protestar também, mas se interrompeu e disse:
— Bom, suponho que de certo modo é verdade.
— Bertram! Ficas — te louco? — exclamou Arabella, consternada — . Quando o papai descobrir de que estás na cidade e sem permissão...
— É que não irá descobrir — cortou Bertram — . Escrevi uma carta a mamãe dizendo — lhe que tinha encontrado meu amigo Felix e que ele tinha me convidado a passar uns dias em sua casa. Assim não irão se preocupar se vêem que demoro um pouco em voltar, e não saberão onde estou, porque não lhes dei minha direção. E isso me recorda outro detalhe de que queria te prevenir, Bela. Enquanto achar — me na cidade, far — me — ei chamar Anstey, e ainda que não me importe que digas a tua madrinha que sou teu amigo, não deves revelar que sou teu irmão. Ela escreveria a mamãe, e se ia armar uma boa confusão.
— Mas Bertram! Como te atreves? — exclamou Arabella, nervosa — . Nosso pai vai zangar — se muito!
— Sim, eu sei. Vai — me chamar de dandi, mas antes terei aproveitado a grande, e não me importa que depois me dêem um par de bofetadas — admitiu Bertram alegremente — . Já estava decidido a fazer isso antes que você viesse à cidade. Recordas que te disse que talvez te fizesse uma surpresa? Creio que não imaginaste que me referia a isto!
— Não, te asseguro que não! — respondeu Arabella, e desabou em uma cadeira — . — Ai, Bertram, estou muito preocupada! — Não entendo nada! De que viverás enquanto estás na cidade? És o convidado do senhor Scunthorpe...
— Não, não! Não impus essa obrigação ao pobre Felix! É que ganhei na loteria! Imagine, Bela! Cem libras!
— A loteria! Deus meu! Que diria pai se soubesse?
— Bom, por — se — ia feito uma fera, acredito, mas não vou dizer — lhe. E olha, uma vez ganhado esse dinheiro, a única coisa que podia fazer era gastá — lo, porque, como compreenderás, tinha que me livrar dele antes que descobrisse que o tinha. — Viu que sua irmã estava horrorizada e acrescentou, indignado — : A verdade é que não sei por que te incomodas tanto. Pelo que vejo, tu também estás passando a grande.
— Não, não, Bertram. Como podes pensar que me incomoda? — Mas que estejas na cidade, e ter que fingir que não somos irmãos e enganar a nossos pais? — Interrompeu — se, recordando sua própria situação — . Ai, Bertram, que como somos maus!
Scunthorpe se alarmou ante essa declaração, mas Bertram não deu — lhe importância: — Não sejas exagerada! Não mencionar que me viste quando escrever à mamãe não é exatamente mentir.
— Sim, Bertram, é algo pior! — sussurrou Arabella — . Bertram, estou num aperto tremendo.
Seu irmão olhou — a de cima a baixo.
— Num aperto? Que aconteceu? — Viu que Arabella olhava o seu amigo, e disse — : Não te preocupes por Felix: não é nenhum charlatão.
Não foi difícil ela acredita nisso, mas, como é lógico, ela reagia em revelar sua história a um desconhecido, ainda que já tivesse percebido que era confiável, e que o única coisa que podia ocorrer era que ele a delatasse involuntariamente. Scunthorpe aproximou — se do amigo e disse: — Tens que ajudar tua irmã a sair desse aperto, amigo. Podes contar comigo! — Estou — lhe muito agradecida, senhor Scunthorpe, mas ninguém pode me ajudar — disse Arabella com ar trágico — . Só lhe peço que tenha a amabilidade de não me trair. — Claro que não a trairá! — declarou Bertram — . Em que confusão te meteste, Bela? — Bertram, todos acham que sou uma grande herdeira — explicou compungida. Seu irmão ficou olhando — a um momento, e a seguir soltou uma gargalhada. — Que tonta és! Como vão pensar isso? Se lady Bridlington sabe muito bem que vens de uma família modesta! Não me irás dizer que foi ela que divulgou esse conto. Arabella negou com a cabeça.
— Não. — Fui eu! — confessou.
— Você? — Por que fizeste algo assim? Ainda que acredite que ninguém acreditou. — Sim, acreditaram. Lord Bridlington diz que me perseguem todos os caçadores de fortuna da cidade, e — ai, Bertram, é verdade! Já recusei cinco propostas de casamento! A idéia de que pudesse ter cinco cavalheiros dispostos a se casar com sua irmã lhe resultou divertidíssima, de modo que Bertram se escarneceu de novo. Arabella teve que lhe confessar tudo, porque ele não acreditava em nada que lhe tinha contado. Seu relato foi um tanto desconexo, porque ele a interrompia com perguntas; e também se produziu uma importante digressão quando Scunthorpe, depois de olhar com firmeza para Arabella durante uns instantes, de repente se voltou muito loquaz e disse:
— Perdoe — me, senhorita Tallant, mas mencionou o senhor Beaumaris... — Sim. Lord Fleetwood e ele.
— O Incomparável ?
— Sim.
Scunthorpe sufocou um grito e, dirigindo — se a seu amigo, disse:
— Ouviste isso, Bertram?
— Sim, é claro!
— Achava que não. Vês a jaqueta que levo? — Os dois irmãos olharam a jaqueta de Scunthorpe, desconcertados — . Fiz que meu alfaiate copiasse as golas de uma que tinha sido feita por Weston para o Incomparável — admitiu o jovem com orgulho.
— Que tem isso que ver? — perguntou Bertram.
— Pensei que te interessaria saber, desculpou — se o amigo.
—— Não te preocupes com ele — disse Bertram a sua irmã — . É muito próprio de ti, Bela, se ofender e sair com algo assim destrambelhado. Não, não digo que a culpe. E esse tal senhor Beaumaris, tem contado a todo mundo...
— Acho que não o fez, foi lord Fleetwood, porque numa ocasião o senhor Beaumaris me disse que só tinha falado do assunto com ele. Às vezes pergunto — me se não conhece a verdade, mas não posso achar que saiba, porque desprezar — me — ia terrivelmente, estou segura, se soubesse como me comportei, não dançaria comigo em todas as festas (logo ele, que não dança quase nunca!), nem levar — me — ia a passear em seu cabriolé.
Scunthorpe parecia profundamente impressionado.
— Fez tudo isso? — perguntou.
— Sim, é claro.
— Ouviste isso, meu amigo? — Olhou com dignidade para Bertram — . Sem dúvida tua irmã é uma personalidade! Conhece muita gente importante. Passeia no carro com o Incomparável . Teve uma grande idéia ao afirmar que era uma rica herdeira.
— Ai, não! Lamento tanto tê — lo dito, porque agora tenho muitos problemas! — Olha, Bela, não me venhas com tolices! Conheço — a! Não tentes me convencer de que não gostas desta vida que levas, porque não vou acreditar, afirmou Bertram.
Arabella refletiu e compôs um tímido sorriso.
— Bom, sim, talvez goste, mas quando recordo da causa de meu sucesso, lamento ter mentido. Imagina a situação em que me encontro! Se soubessem a verdade, ficaria muito desprestigiada. Ninguém falaria comigo, e asseguro que lady Bridlington enviar — me — ia para casa. E então papai iria saber, e... — Ai, Bertram! Quase prefiro jogar — me no rio a que ele se inteire de algo assim! — Sim, compreendo — te — admitiu seu irmão estremecendo — . Mas isso não vai acontecer! Se alguém me perguntar, direi que te conheço bem, e Felix fará o mesmo. — Sim, mas isso não é tudo. Já não poderei aceitar nenhuma proposta de casamento que me façam, e mamãe irá me considerar tremendamente egoísta. Porque ela confiava em que eu encontraria um bom partido, e lady Bridlington lhe dirá que muitos bons partidos se interessaram por mim. Bertram franziu o cenho, refletiu um instante e disse:
— A menos... Não; tens razão; que situação tão comprometedora! Se aceitares uma proposta de casamento, terias que confessar tudo, e então teu pretendente iria se retirar. És incorrigível, Bela! Não sei o que podemos fazer! Ocorre — te algo, Felix?
— É uma situação muito complicada, — disse Scunthorpe sacudindo a cabeça — . Só se me ocorre uma solução.
—— Qual?
O jovem pigarreou timidamente.
— Acredito que lhe desagradará esta idéia. A verdade é que a mim também não agrada, mas quando uma mulher se encontra num aperto, não posso ficar de braços cruzados. — Mas do que se trata?
— Veja, é apenas uma idéia! — advertiu — lhe Scunthorpe — . Se não gostas, só tens que dizer que não. A mim não me agrada, mas acho que a devo propor. — Viu que os irmãos Tallant estavam muito intrigados, se ruborizou intensamente e disse com voz estrangulada — : Um casamento! Arabella olhou — o com firmeza, e a seguir soltou uma gargalhada.
— Mas como te ocorreu semelhante disparate! — exclamou Bertram — . Tu não queres te casar com Bela!
— Não — concordou o outro — . Mas acabo de prometer que a ajudaria a sair deste aperto. — E além disso — acrescentou Bertram com severidade — , teus tutores não iriam deixá — lo desposá — la, porque ainda não és maior de idade.
— Poderia convencê — los — assegurou Scunthorpe.
No entanto, Arabella deu — lhe um obrigado por seu amável oferecimento e disse que não achava que formassem um bom casal. Scunthorpe não dissimulou seu alívio, e voltou a ficar calado, que era como parecia se sentir mais confortável.
— Me ocorrerá algo — disse Bertram — . Pensarei, prometo — o. Queres que fique para saudar a tua madrinha?
Arabella mostrou — se de acordo. Lamentou que seu irmão tivesse que ficar incógnito na cidade, mas ele lhe confessou com sinceridade que não lhe apetecia participar de todas as festas da boa sociedade.
— Que aborrecimento! Já sei que tens participado de muitas festas desde que veio a Londres, mas eu não gosto.
Então Bertram enumerou os lugares que pensava visitar, e como se tratava de distrações inócuas como o Circo Astley’s, a coleção de animais selvagens da Torre, o museu de cera de Madame Tussaud, o carro de Napoleão, que estava exposto no Museu Bullock’s, uma visita a Tattersall’s, a saída dos carros de Brighton desde o White Horse Cellar e a próxima revista militar em Hyde Park, sua agoniada irmã se tranqüilizou. A primeira vista, tinha — lhe parecido que seu irmão tinha
amadurecido, porque usava um casaco muito sofisticado e um corte de cabelo novo; mas quando lhe falou do espetáculo que tinha visto em Coventry Street e do quanto tinha gostado, e expressou com juvenil entusiasmo seu desejo de assistir ao «O incêndio de Moscou», o maravilhoso espetáculo com equilibristas e exibições eqüestres, compreendeu que Bertram ainda era bastante infantil para não se interessar por outras diversões bem mais perigosas que podiam ser encontradas em Londres. Mas, como Bertram informou confidencialmente a seu amigo o senhor Scunthorpe quando saíram juntos de Park Street, as mulheres pensavam coisas tão ridículas que teria sido absurdo revelar a Arabella que sentia desejo premente de ver um combate de boxe no Fives — court, de fumar com os sibaritas no Daffy Clube, de sondar os mistérios do Royal Saloon e do Peerless Pool, e depois assistir a uma representação da Ópera — não, como se apressou a assegurar a seu amigo, porque quisesse escutar música, apenas porque tinha entendido que passear pelo Fops’ Alley estava muito em moda — . Já que tinha decidido, com muita prudência, hospedar — se numa das pousadas da City, onde, se lhe conviesse, podia cear consideravelmente bem no Ordinary, a preços muito moderados, abrigava esperanças de poder se permitir todas essas diversões. No entanto, deu — se em conta de que antes tinha que comprar um chapéu mais alto e de aba mais elegante, umas botas com franjas, uma corrente para o relógio e talvez um anel, e, quem sabe, um par de luvas amarelas. Sem esses complementos do traje masculino, pareceria um provinciano. O senhor Scunthorpe deu — lhe a razão e aventurou — se a assinalar que, nos círculos mais modernos, se considerava que o abrigo de viagem com só duas capas sobre os ombros não era bem visto. Ofereceu — se para levar Bertram a seu próprio alfaiate, um indivíduo muito astuto, ainda que não tivesse obtido tanta fama como Weston ou Stultz. No entanto, a grande vantagem de ser cliente daquele alfaiate em questão residia na segurança de que estaria disposto a equipar qualquer amigo do senhor Scunthorpe num piscar de olhos, Bertram não pôs nenhuma dificuldade em subir de imediato em um carro de aluguel e ordenar ao cocheiro que o levasse a toda velocidade a Clifford Street. Scunthorpe assegurou — lhe que a habilidade do senhor Swindon conferiria a seu amigo um novo ar, e como isso pareceu muito desejável a Bertram, disse que não podia investir seu dinheiro em nada mais vantajoso. Scunthorpe começou a dar — lhe alguns conselhos úteis, sobretudo prevenindo — o contra as extravagâncias de estilo que pudessem fazer suspeitar que pertencesse a esse grupo de exagerados dandis a quem desprezavam os cavalheiros realmente refinados. Sem dúvida alguma, o modelo ideal que qualquer aspirante devia imitar era o do Incomparável , o que recordou a Bertram algo que tinha estado a inquietá — lo ligeiramente. — Diga — me, Felix, achas que minha irmã faz bem em passar com ele pela cidade — Confesso — te que não me agrada em absoluto.
Scunthorpe dissipou rapidamente seus temores: não tinha nenhum inconveniente em que uma dama passeasse num cabriolé ou em um faetón com um pontilhão na parte traseira. — É claro, não seria bem visto que passeasse num tílburi, — acrescentou. Aliviadas as suas fraternais preocupações, Bertram esqueceu a questão e limitou — se a comentar que daria qualquer coisa para contemplar a cara de seu pai se visse o elegante que se tinha interessado por Bela.
Quando chegaram a Clifford Street, o senhor Swindon os atendeu imediatamente; apresentou em seguida seu cartão a seu novo cliente, e mencionou — lhe os respectivos méritos dos tecidos com que trabalhava. Pensava que seis capas seriam suficientes para um abrigo de viagem ligeira, uma
opinião que coincidiu com a de Scunthorpe, explicando a Bertram que não lhe convinha imitar aos Goldfinch, com sua profusão de capas sobrepostas. A não ser que fosse incomparável com as rédeas, ou um desses admiráveis caçadores de Melton, assegurou que era mais recomendável procurar a delicadeza e o decoro que seguir as últimas tendências. A seguir concentrou — se na seleção do tecido para confeccionar uma jaqueta, e ainda que Bertram não tivesse intenção de comprar uma jaqueta nova, acabou solicitando — a, alentado pela afirmação do senhor Swindon de que um traje com apenas uma fila de botões, preta, com golas largas e botões de prata iriam favorecê — lo muito, além disso, as tranqüilizadoras palavras que lhe sussurrou seu amigo, segundo qual aquele alfaiate sempre dava amplo crédito a seus clientes. Efetivamente, Scunthorpe raramente preocupava — se com a conta de seu alfaiate, porque o astuto empresário sabia muito bem que, como era órfão de pai e menor de idade, sua considerável fortuna era administrada por cuidadosos e restritos tutores que só lhe passavam uma mesada miserável. Durante a sessão em Clifford Street ninguém cometeu a vulgaridade de mencionar o preço ou o pagamento, assim que Bertram saiu do local se debatendo entre o alívio e o temor a se ter comprometido a pagar mais dinheiro do que tinha. Mas a novidade e a emoção de uma primeira visita à metrópoles cedo afastaram esses pensamentos tão inoportunos, e uma aposta afortunada no Fives — court demonstrou ao novato como era fácil juntar algum dinheiro.
Ao observar os figurinos que freqüentavam o Fives — court, Bertram alegrou — se de ter encomendado uma jaqueta e inclusive confessou a seu amigo que não visitaria nenhum lugar de moda até que lhe tivessem enviado a roupa nova. Este considerou uma decisão sensata, e, como era absurdo pensar que Bertram retirar — se — ia à pousada da City onde se hospedava, se ofereceu para lhe mostrar a diversão que podia ser uma festa em ambientes menos elevados. Esse entretenimento, que começou no Westminster Pit, onde o atônito Bertram comprovou que se tinham reunido representantes de todos os estratos da sociedade, desde os sibaritas até os lixeiros, para contemplar uma luta de cães, e que continuou com uma visita aos comércios de Tothill Fields, onde uns intrépidos libertinos bebiam copos de gim em companhia de boxeadores, devotos, carvoeiros, freiras, madames de bordel e verdureiros, até chegar a uma cafeteria, e terminou na prisão, pois o senhor Scunthorpe tinha se tornado belicoso por causa da bebida. Bertram, que não estava acostumado a ingerir tanta quantidade de licor, se achava demasiado aturdido para entender qual era a causa da excitação de seu amigo, ainda que tivesse uma vaga idéia de que estava relacionada a certas insinuações que um cavalheiro vestindo calças Petersham estava fazendo a uma dama que um pouco antes o tinha deixado aterrorizado ao expressar sem reparos a atração que sentia por ele. Mas uma vez iniciada a briga, não cabia a Bertram perguntar pelo motivo da disputa, senão participar na refrega para apoiar o seu cicerone. Dado que Bertram não era, nem um pouco, ignorante na nobre arte da autodefesa, pôde prestar valiosos serviços a Scunthorpe, que não era muito competente. Ao dispor — se a sair do local, os guardas, sacando seus cassetetes, lançaram — se sobre ele e, depois de um animado combate, prenderam os dois criadores de caso e os levaram ao calabouço. Ali, depois de uma longa negociação, dirigida pela defesa do experiente senhor Scunthorpe, puseram — nos em liberdade sob fiança, advertindo — lhes que no dia seguinte tinham que se apresentar em Bow Street antes do meio dia. Então o agente de polícia que estava de guarda os meteu num carro de aluguel, e se dirigiram ao alojamento do senhor Scunthorpe em Clarges Street, onde Bertram passou o que restava da noite no sofá do salão de seu amigo. Acordou umas horas mais tarde com uma intensa dor de cabeça, sem uma lembrança muito clara do que tinha ocorrido, mas com grande temor pelas hipotéticas conseqüências do que temia que tinha sido uma noite muito agitada. No entanto, quando o criado
de Scunthorpe reanimou o seu amo, e este saiu de seu dormitório, não lhe custou muito dissipar esses temores.
— Não deves te preocupar com nada, meu amigo. Levaram — me ao calabouço uma infinidade de vezes. O guarda de turno mostrará um lampião quebrado como prova (sempre fazem isso!); dás um nome falso, pagas a multa e tudo está resolvido.
Este vaticínio resultou verdadeiro, mas a experiência impressionou um pouco o filho do pároco. Isso, combinado com os desagradáveis efeitos secundários da ingestão de inumeráveis copos de gim, fez decidir — se a ser mais circunspecto no futuro.
Passou em vários dias procurando diversões inofensivas, como a coleção de animais selvagens de Holborn, onde exibiam um texugo recentemente adquirido, se apaixonando pela senhorita O’Neill de uma posição segura na platéia ou visitando, pela mão de seu amigo, a exclusiva escola de boxe de Gentleman Jackson’s, em Bond Street. Impressionaram — no muito as maneiras e dignidade do proprietário (cujas decisões em todo tipo de desportos, como lhe informou Scunthorpe, sempre eram aceitas sem titubear tanto pelos patricios como pelos plebeus), e teve o prazer de ver lutar a notáveis amadores como o senhor Beaumaris, lord Fleetwood, o jovem senhor Terrington e lord Withernsea. Praticou esgrima com paus com um dos ajudantes do grande Jackson e teve a honra de receber um pequeno elogio por parte deste em pessoa. Invejou a desenvoltura com que os sócios se moviam pelo clube, caçoavam com Jackson (que os tratava com o mesmo grau de cortesia que mostrava com seus menos elevados pupilos) e até lutaram um pouco com o ex — campeão. Não demorou para notar que nem a posição nem a importância eram suficientes para induzir Jackson a permitir que um cliente lhe pusesse a mão em cima, a não ser que sua habilidade merecesse semelhante recompensa; e ainda que tivesse entrado no salão com um sentimento de superioridade, em seguida notou que no mundo dos sibaritas, a excelência valia mais que a linhagem. Ouviu Jackson recriminar o Incomparável (cujo estilo era muito digno) por não estar em forma; e a partir desse momento combater com aquele mestre sem igual converteu — se em sua maior ambição.
No final de semana, o senhor Swindon, a pedido de Scunthorpe, entregou a roupa nova. Depois de comprar uma longa bengala, uma corrente e um casaco Marseilles, Bertram decidiu exibir — se no parque às cinco da tarde, na hora de maior afluência. Ali teve o prazer de ver lord Coleraine passeando por Rotten Row em seu fogoso corcel; lord Morton, com seu cavalo de longa crina; e, entre os carros, admirar o cabriolé de Tommy Onslow; vários esplêndidos tílburis e caleças; a elegância das damas, e o faetón amarelo do senhor Beaumaris, puxado por quatro cavalos, que ao que parece sabia conduzir por espaços reduzidíssimos onde qualquer outro menos destro não teria sabido passar. Ato contínuo, Bertram não pôde conter o impulso de se dirigir ao estábulo mais próximo e alugar um ostentoso cavalo. Apesar de ter certos defeitos na postura e no estilo, próprios de um jovem do campo, Bertram sabia que era um excelente ginete, e dessa maneira decidiu se apresentar ante a sociedade onde sua irmã já se movia. Quis a sorte que Bertram encontrasse sua irmã no mesmo dia que saía pela primeira vez montado em seu cavalo de aluguel. Arabella achava — se sentada ao lado do senhor Beaumaris em seu esplêndido faetón, descrevendo — lhe com todo detalhe a recepção na corte à que tinha sido convidada. Esse acontecimento a tinha mantido tão ocupada na semana anterior que mal tinha tido
tempo para pensar nas atividades de seu temerário irmão. No entanto, quando o viu montado em seu cavalo, não pôde evitar exclamar:
— Oh! Mas se é... o senhor Anstey! Pare, rogo — lhe, senhor Beaumaris. Este deteve os cavalos, enquanto Arabella saudava com a mão a Bertram. Seu irmão acercou — se do faetón e inclinou educadamente a cabeça, lançando com dissimulação, um olhar inquisitivo à sua irmã. O senhor Beaumaris, olhando — o com indiferença, reparou nesse gesto de cumplicidade, notou na ligeira tensão da pequena figura que ia a seu lado e olhou os dois irmãos. — Como está você? Como vai? — perguntou Arabella estendendo uma mão coberta por uma luva de pelica branca.
— Estupendamente! — respondeu Bertram depois de realizar uma louvável reverência — . Pensava ir visitá — la uma manhã, senhorita Tallant.
— Faça — o, por favor! — Arabella olhou a seu acompanhante, corou e balbuciou — : Apresento — lhe ao senhor Anstey, senhor Beaumaris. É... um velho amigo meu.
— Como está você? — perguntou Beaumaris educadamente — . Você é de Yorkshire, senhor Anstey? — Sim, claro. Conheço a senhorita Tallant desde que éramos crianças — disse Bertram, sorridente. — Nesse caso, você vai causar muita inveja entre os numerosos admiradores da senhorita — comentou Beaumaris — . Está passando uma temporada na cidade? — Só estou de passagem. — Bertram desviou o olhar para os quatro cavalos que atrelados ao faetón, não paravam quietos — . Que cavalos esplêndidos você possui, senhor! — observou com a mesma impetuosidade de sua irmã — . Oh, não preste atenção na minha montaria! É bonito, mas jamais tinha montado semelhante cavalo de pau.
— Você caça, senhor Anstey?
— Sim, nas partidas de meu tio, em Yorkshire. Não se pode comparar com as partidas de Quorn, é claro, nem com as de Pytchley, mas lhe asseguro que não lhes invejamos nada. — Senhor Anstey — interrompeu Arabella dirigindo — lhe uma olhar persuasivo — , parece — me que lady Bridlington lhe enviou um convite para seu baile. — Espero que assista! — Veja, Bê... senhorita Tallant — disse Bertram com uma desastrosa falta de galanteria — , essa classe de espetáculos não me atraem em absoluto. — Ao observar na agoniada mirada de sua irmã, apressou — se a acrescentar — : Quero dizer que... ficarei encantado, é claro! — Sim, sim, prometo — lhe que irei! E espero ter a honra de dançar com você — acrescentou. Ainda que Beaumaris estivesse se ocupando dos cavalos, não lhe passou despercebido o tom ameaçador na voz de Arabella quando disse:
— Se não entendi errado, amanhã teremos o prazer do recebê — lo em casa, não é assim, senhor Anstey?
— Sim, claro! De fato queria passar por Tattersall’s, mas... Sim, é claro. Irei visitá — la manhã.
Então Bertram tirou o chapéu novo, fez uma saudação e afastou — se a médio galope. Arabella pensou que o senhor Beaumaris merecia uma explicação, assim disse com displicência: — O senhor Anstey e eu crescemos quase como... como irmãos.
— Tinha — me parecido — replicou ele com gravidade.
Arabella examinou o perfil de seu acompanhante, que parecia muito concentrado na tarefa de manobrar com o faetón entre um landau e uma elegante carruagem inglêsa com um escudo na traseira. Tranquilizou — se pensando que enquanto ela se parecia muito a sua mãe, Bertram era, segundo a opinião geral, a viva imagem do pároco quando tinha sua idade. — Mas estava lhe falando da festa na corte e da amabilidade que mostrou a princesa Mary comigo. Levava um vestido e um penteado espetaculares. Lady Bridlington diz que quando jovem a consideravam a mais formosa das princesas. A mim me pareceu muito cordial. Beaumaris concordou com essa opinião, sem deixar entrever o quanto o divertia essa inocente descrição da mais admirada das irmãs do regente. E ela, encantadora em um de seus momentos de ingenuidade, continuou a falar do elegante convite de bordas douradas que tinha chegado nesse mesmo dia a Park Street de nada menos que o camarista, onde informava à lady Bridlington que sua alteza real, o Príncipe Regente, as convidava a ela e à senhorita Tallant para uma festa de gala em Carlton House, na quinta — feira seguinte, à que assistiria sua majestade a rainha. Beaumaris disse que a veria em Carlton House, e se absteve de comentar que as festas do regente, organizadas em grande estilo, com um luxo que ofendia o bom gosto dos guardiões da verdadeira elegância como ele, se contavam entre as mais barulhentas da cidade, e que em algumas ocasiões incluíam vulgaridades como uma fonte no meio da mesa do jantar. Beaumaris compartilhou o interesse de Arabella por esse acontecimento bem mais do que o fez Bertram no dia seguinte, quando se apresentou em Park Street. Lady Bridlington tinha — se retirado, como de costume, a seu sofá; precisava recuperar energias, pois essa noite devia assistir a quatro festas diferentes, e Arabella pôde permitir — se o luxo de manter um tête — à — tête com seu irmão favorito. Ainda que admitisse que se alegrava de pensar que a tinham convidado à Carlton House, Bertram disse que supunha que iria um grande número de personagens famosas, e que ele preferia passar a noite de uma forma mais singela. A seguir lhe suplicou que não o obsequiasse com uma descrição do vestido que ela pensava usar. Arabella compreendeu que a seu irmão não interessavam muito seus triunfos sociais, e desviou a conversa para os entretenimentos que o jovem preferia. Bertram foi um pouco evasivo sobre esse assunto, e respondeu com generalidades. Sua experiência com as mulheres tinha — lhe ensinado que nem sequer uma irmã adorável aprovaria que desfrutasse visitas ao Cribb’s Parlour, onde tinha tido em suas mãos a famosa taça de prata do Campeão, que Cribb tinha ganho após seu último combate, alguns anos atrás, contra Molyneux o Negro; o Daffy Clube, freqüentado por jovens promessas do boxe e por veteranos do ring, e decorado com retratos de antigos campeões que somente a menção já acordava a admiração do jovem; ou passando um momento no famoso Salão de Covent Garden, onde os descarados e sedutores olhares das cortesãs que tinham ali seu terreno de caça o impressionavam e aterrorizavam. Também não mencionou que tinha se encontrado com um novo conhecido seu, e que tinham se encontrado em Tattersall’s essa mesma manhã. Bertram tinha percebido em seguida de que o senhor Jack Carnaby era um tipo estupendo — quase um dandi, a julgar por seu traje — , mas algo lhe dizia que a Arabella se horrorizaria em relação a sua iminente introdução numa
pequena casa de jogo sob os auspícios desse cavalheiro. De nada teria servido lhe assegurar que só queria ir ali para satisfazer sua curiosidade e que não tinha a menor intenção de gastar seu precioso dinheiro em apostas. Até seu experimentado cicerone tinha sacudido a cabeça ao inteirar — se de seus planos e pronunciado advertências contra os jogadores e os trapaceiros, acrescentando que seu tio e principal tutor afirmava que a melhor aposta era a que nunca chegava a se fazer. Afirmava que ele mesmo tinha comprovado a veracidade dessa excelente máxima. No entanto, como admitiu, quando Bertram lho perguntou, que nunca tinha ouvido falar mal do senhor Carnaby, Bertram fez pouco caso de seus conselhos. Carnaby levou — o a uma discreta casa de Pall Mall, onde, depois de chamar à porta de determinada maneira, foram inspecionados através de uma fresta e lhes franquearam a entrada. Nada mais diferente do que Bertram esperava encontrar numa casa de jogo do que o decente estabelecimento em que se encontrava. Todos os serventes eram pessoas muito respeitáveis e de maneiras suaves, e seria difícil encontrar um anfitrião mais cortês e obsequioso que o proprietário do local. Bertram, que nunca tinha participado de nenhum jogo de cartas mais arriscado que o whist se limitou, a princípio, a observar; mas quando julgou que tinha entendido as normas que regiam o jogo de dados do hazard, se aventurou a participar nessa mesa, provido de um modesto cartucho de moedas. Cedo compreendeu que Scunthorpe se tinha equivocado ao falar de dados viciados e de mesas preparadas, porque desfrutou de uma excelente partida e se levantou com o bolso tão cheio de guineus já não teria que se preocupar mais com seus gastos. No dia seguinte, uma aposta afortunada em Tattersall’s o pôs em situação de se considerar um entendido tanto nas mesas como no turf, de maneira que já não era de esperar que prestasse muita atenção a Scunthorpe e nas suas funestas profecias de que, depois de ter mordido o anzol, acabariam prendendo — o por não pagar suas dívidas de jogo. — Sabe o que diz meu tio? — perguntou — lhe Scunthorpe — . Que sempre permitem que um principiante ganhe na primeira vez que vai a uma casa de jogo. — Esquece — o, meu amigo! Vão desplumar — te!
— Bah, isso são tolices! — replicou Bertram — . Não sou tão tonto para me deixar levar em excesso. — Olha, Felix, gostaria de jogar só uma vez em Watier’s, se tu pudesses arranjar. — Que? Querido amigo, nunca te deixariam entrar no Great — Go, digo — te por minha honra. — Nem sequer eu joguei ali! É muito melhor que vás aos jardins de Vauxhall. Ali poderias encontrar a tua irmã. Ver a Grande Cascata. Escutar a orquestra de flautas. Isso não lhe fará mal. — Bah, totalmente tedioso! Prefiro provar a sorte numa mesa de faraó!
* * *
Capítulo 11
Qualquer jovem cavalheiro interessado no boxe tinha que passar, cedo ou tarde, no Daffy Clube do Limmer’s Hotel de Counduit Street, o local onde se encontravam os grandes do ring e os sibaritas que os patrocinavam. Bertram dirigiu — se à Limmer’s sob os auspícios do senhor Scunthorpe, que se tinha proposto a afastar a seu amigo de outros estabelecimentos mais perigosos. O jovem Tallant começava a ter amigos em Londres, de maneira que pôde saudar vários cavalheiros que encontrou ali. O senhor Scunthorpe e ele se sentaram a uma mesa, e este lhe assinalou minuciosamente todas as pessoas importantes que viu, entre eles um indivíduo muito extravagante que, como lhe explicou baixinho, quase nunca falhava quando prognosticava quem ganharia uma carreira; ato contínuo se desculpou e foi falar com esse informado cavalheiro. Enquanto, Bertram viu entrar o senhor Beaumaris com um grupo de amigos, e como já tinha conhecido perfeitamente a elevada posição que ocupava o Incomparável , se sentiu muito satisfeito quando, depois de levantar seu monóculo e o olhar através dele por um momento, Beaumaris atravessou o lustroso piso, e sentou — se a sua mesa e disse sorrindo:
— Não nos conhecemos outro dia no parque? Você é o senhor... Anstey, não? Bertram corou ligeiramente e assentiu; mas quando Beaumaris acrescentou com tom despreocupado: «Tenho entendido que você é um parente da senhorita Tallant», se apressou a negar qualquer parentesco com ela, acrescentando que ela provinha de uma família bem mais próspera que a sua. Beaumaris aceitou sua resposta sem fazer comentários e perguntou — lhe onde se hospedava. Bertram não viu inconveniente em lhe revelar sua direção, nem em lhe dizer que aquela era sua primeira visita à metrópoles.
O senhor Jack Carnaby opinava que o Incomparável era um homem arrogante e antipático, mas Bertram não observou o menor sinal de altivez nem de reserva em suas maneiras. Os amigos íntimos de Beaumaris teriam podido explicar — lhe que, ainda que não existisse ninguém mais reservado que ele, também ninguém podia ser — quando ele queria — mais simpático. Em pouco tempo, Bertram, esquecendo sua timidez, estava se abrindo com ele bem mais do que era sua intenção. O Incomparável , que era membro da partida de caça de Melton, o felicitou pela maneira que montava, de maneira que qualquer barreira que Bertram pudesse ter levantado entre ele e o responsável pelo aperto em que se achava sua irmã, desmoronou em um instante. O jovem Tallant começou a descrever a região onde ele caçava, a localidade de Heythram e seus inacessíveis projetos, sem suspeitar que toda essa informação estivesse sendo arrancada habilmente pelo seu interlocutor. Mencionou os exames de ingresso em Oxford e sua intenção de ingressar no Ministério do Interior, e quando Beaumaris comentou, arqueando uma sobrancelha, que não sabia que desejasse se dedicar à política, Bertram lhe revelou sua verdadeira ambição. — Já sei que é impossível, é claro — acabou admitindo com nostalgia — . Mas nada ter — me — ia feito mais feliz que poder entra num regimento de cavalaria.
— Acho que você se encaixaria muito bem num regimento — concordou seu interlocutor, e pôs — se de pé, porque Scunthorpe tinha voltado à mesa — . Por enquanto, não faça demasiados estragos em Londres durante sua visita. — Saudou a Scunthorpe e afastou — se, e este explicou muito entusiasmado a Bertram a grande honra que acabavam de lhe conceder.
No entanto, uma hora mais tarde, o senhor Beaumaris, sufocando as eufóricas saudações de seu admirador canino, disse:
— Se você se importasse realmente, Ulisses, me receberia dando — me pesar e não com estes arrebatamentos gratuitos.
Ulisses, que tinha engordado consideravelmente, tinha a orelha mais caída que nunca e a cauda ainda mais enroscada sobre o lombo. Esticou — se ante seu idolatrado amo e emitiu um alentador latido. Então correu para a porta da biblioteca e convidou Beaumaris a entrar ali e compartilhar com ele de um refresco. Brough ajudou seu patrão a tirar a longa capa, o chapéu e as luvas, e confessou que estava maravilhado da inteligência daquele cachorrinho. — Maravilhoso é o apoio que recebeu de meu pessoal de serviço para continuar me pressionando com sua não desejada presença em minha casa! — replicou Beaumaris com mordacidade. Brough, que estava muitos anos trabalhando para o senhor Beaumaris, se permitiu esboçar um sorriso.
— Se soubéssemos que queria que o mandássemos embora, senhor, teríamos feito tudo o que fosse possível. Ainda que com tanta devoção, duvido que tivesse saído, e por outro lado, me custaria muito afugentar um cão que trata Alphonse como este o faz. — Se este desgraçado animal molestou Alphonse, torcerei seu pescoço! — prometeu Beaumaris. — Ah, não, senhor, nada de isso! Quando está fora e Ulisses desce, se comporta com Alphonse como se estivesse a um mês sem comer, mas não lhe ocorre tocar sequer um pedaço de carne que encontre no chão da cozinha. Como disse a senhora Preston, se há algum cão capaz de falar, é este, porque conseguiu convencer Alphonse de que é o único amigo que tem no mundo. Ganhou a simpatia do cozinheiro, asseguro — lhe. De fato, no outro dia, quando sentiram a falta de duas formosas chuletas de lombo, Alphonse assegurou que o ajudante de cozinha estava acusando o cão de as ter roubado só para encobrir sua torpeza, enquanto Ulisses se achava ali sentado olhando, como se não soubesse o que era uma chuleta. Escondeu os ossos embaixo do tapete de seu estúdio, senhor, mas já os retirei.
— Não só és feio — disse — lhe Beaumaris com severidade — , mas tens todos os defeitos dos plebeus: a adulação, a falsidade e a insolência.
Ulisses sentou — se e começou a lamber uma ferida. Seu dono o repreendeu, e como o cão já o tinha ouvido falar outras vezes com esse tom — como quando lhe tinha expressado sua vontade de não compartilhar o dormitório com ele — , deixou de lamber — se e abaixou as orelhas para apaziguá — lo.
Beaumaris serviu — se um copo de vinho e sentou — se em sua cadeira favorita. Ulisses deitou a seu lado e bufou.
—— Sim, creio — te, mas tenho assuntos mais importantes que resolver que te pôr ungüento nas feridas. Ademais, deverias recordar que não permitirei que voltes a ver a tua benfeitora até que estejas completamente curado. — Ulisses bocejou e apoiou a cabeça sobre suas patas dianteiras, como se aquela conversa o aborrecesse. Seu amo sacudiu — o com um pé — . Talvez isso não seja
verdade — refletiu — . A um mês não tinha nenhuma dúvida. No entanto, permiti que me encarregasse de um menino da paróquia e de um vira — lata (espero que me perdoes por te falar com sinceridade, Ulisses), e agora estou quase convencido de que nenhum dos dois está destinado a ser a mais pesada de minhas responsabilidades. Achas que esse pobre jovem tem suas próprias razões para utilizar um nome falso, ou que o faz para proteger à senhorita Tallant? Não me olhes assim! Já sei que a experiência deveria me ter ensinado algo, mas não acho que seja inteligente tentar persuadi — la para que me aceite. Nem sequer estou seguro de ser atraente à senhorita Tallant. De fato, Ulisses, não estou mais seguro de nada, assim me parece que é hora de visitar a minha avó.
Na manhã seguinte, Beaumaris pôs em prática sua decisão e pediu que preparassem o cabriolé. Ulisses, que tinha compartilhado o café da manhã com seu amo, saiu com ele da casa, subiu ao veículo e se instalou no assento do passageiro como se fosse um cão dos mais aristocráticos. — Não! — gritou Beaumaris. Ulisses baixou acovardado e se prostrou na calçada — . Tenho de cuidar de minha reputação, que seria muito prejudicada por teu vergonhoso aspecto — disse ao vira — lata — . — Não te alarmes! Não me vou para sempre. — Subiu ao cabriolé e acrescentou — : Deixa de sorrir, Clayton, e vamos.
—— Sim, senhor! — disse o pontilhão obedecendo a ambas as ordens e subindo com agilidade ao cabriolé quando este passava em frente a ele.
Um minuto mais tarde, e após olhar um par de vezes por cima do ombro, aventurou — se a informar a seu amo que o cãozinho os estava seguindo.
Beaumaris proferiu um palavrão e freou os cavalos. O fiel cão seguiu trotando, rendido de cansaço e com a língua fora, até atingir o cabriolé, momento no em que tombou na calçada. — Maldito sejas! — exclamou Beaumaris — . Suponho que serias capaz de me seguir até Wimbledon! — Agora saberemos se minha reputação é bastante sólida para suportar que te leve em meu carro. Sobe!
Ainda que Ulisses se achasse sem forças, ao ouvir essas palavras saltou uma vez mais ao cabriolé. Sacudiu a cauda em sinal de agradecimento e sentou — se ao lado de seu amo, ofegante e feliz. Este lhe soltou um breve discurso sobre os perigos da chantagem que pôs a prova a capacidade de autocontrole de sua pontilhão, o repreendeu por latir a um cão que passava pela rua e continuou seu caminho para Wimbledon.
A duquesa viúva de Wigan, que era o terror de seus quatro filhos, três filhas, numerosos netos, seu administrador, seu advogado, seu médico e quantas pessoas tinha a seu cargo, recebeu seu neto favorito com sua costumeira franqueza. Beaumaris encontrou — a ingerindo umas torradas molhadas no chá e intimidando uma de suas filhas, solteira, que vivia com ela. Em seus tempos tinha sido uma mulher muito bela, beleza que ainda se apreciava em suas delicadas feições. Costumava lançar a seus visitantes uma mirada de águia, jamais tinha feito elogios a alguém e desprezava ferozmente tudo que fosse moderno. Seus filhos lhe professavam um respeito reverencial, e viviam com o temor de receber uma repentina ordem de apresentar — se em sua casa. Quando o mordomo acompanhou o senhor Beaumaris à saleta da viúva, esta o fulminou com um olhar.
— Oh! És tu — Por que passaste tanto tempo sem vir me ver?
Inclinando — se sobre sua mão, ele respondeu sem se alterar:
— Em minha última visita, avó, disseste — me que não querias voltar a me ver até que tivesse corrigido minhas maneiras.
— E fizeste — o? — perguntou a duquesa antes de meter outro pedaço de torrada na boca. — É claro, avó. Estou a ponto de converter — me em filantropo. — E voltou — se para saudar a sua tia. — Estou farta de filantropos — disse sua excelência — . Já me revolta bastante o estômago ter que passar horas aqui sentada vendo como Caroline tece para os pobres. Em meus tempos não nos ocupávamos com tantas tolices. Mas não acredito. Toma, Caroline, leva esta papa e toca o sinete. Este chá é uma porcaria. Diga a Hadleigh que traga uma garrafa de Madeira. Do que bebia teu avô, e não essa droga que me enviou Wigan no outro dia!
Lady Caroline recolheu a bandeja e, atemorizada, atreveu — se a perguntar a sua mãe se achava que o doutor Sudbury iria aprová — la.
— Sudbury é uma galinha velha, e tu és tonta, Caroline — respondeu a duquesa — . Vai — te e deixa — me falar com Robert. Não suporto estar rodeada de mulheres. — Enquanto lady Caroline recolhia seu trabalho, acrescentou — : Diga a Hadleigh que me traga uma garrafa de Madeira do bom. Ele já sabe a qual me refiro. E bem, Robert, que me contas agora que por fim te dignaste a vir a me ver? O neto fechou a porta pela qual tinha saído sua tia e expressou com enganosa docilidade sua alegria por encontrar a sua avó em tão excelente humor e com tão boa saúde. — Que sem vergonha és! — disse a duquesa. Olhou de acima abaixo a seu atraente neto e acrescentou — : Tens muito bom aspecto. Ou melhor, terias se não levasses esse traje tão ridículo. Quando eu era jovem, nenhum cavalheiro ter — se — ia atrevido a fazer uma visita sem antes pôr os pós. Teu avô se revolveria na tumba se visse em que todos vocês se converteram, com essas ridículas jaquetas, esses pescoços engomados e sem nada rendado na gravata nem nos punhos da camisa. Faça o favor de sentar, se é que o consegues apesar dessas calças tão apertadas, meias ou como se chamem.
— Claro que posso me sentar — disse Beaumaris, para em seguida tomar assento numa cadeira em frente a sua avó — . Estes calças, como as que tia Caroline presenteia aos pobres, são de lã, e se adaptam razoavelmente bem a minhas necessidades.
— Então pedirei a Caroline que te faça umas para o Natal. — Asseguro que lhe provocará uma síncope, porque jamais conheci a uma mulher mais conservadora! — É provável, avó, mas como estou seguro de que minha tia a obedeceria, por muito que isso ofendesse seu pudor, rogo que não lhe peça. As sapatilhas bordadas que me enviou no Natal passado já me puseram a prova. Que pensou que faria com elas?
A duquesa soltou uma gargalhada.
— Mas se ela não pensa! E não deverias lhe enviar bonitos presentes.
— A você também envio bonitos presentes — murmurou ele — , mas nunca corresponde. — Não, nem deves esperar. Já tens bem mais de que precisas. Que me trouxeste desta vez? — Nada. A não ser que apeteça — lhe acolher um cão de rua.
— Não suporto os cães, nem os gatos. — Tens uma renda de cinqüenta mil libras anuais, no mínimo, e nem sequer trazes — me um ramalhete de flores! — Diga — o já, Robert! A que vieste? — Para perguntar — lhe se acha que seria um marido tolerável, avó. — Que? — exclamou a idosa, endireitando — se na cadeira e agarrando — se aos braços com seus frágeis e adornadas mãos — . Não irás propor casamento à filha dos Dewsbury, não é verdade? — Não, por Deus!
—— Ah, assim existe outra idiota que te vai perseguir, não? — soltou a duquesa, que tinha suas próprias formas de descobrir o que se passava no mundo do qual ela já se tinha retirado — . Quem é? — Creia — me, qualquer dia vais cometer uma loucura!
— Acho que já a cometi — admitiu seu neto.
Ela o olhou nos olhos, mas antes que pudesse acrescentar alguma coisa, o mordomo entrou na sala cambaleando sob o peso de uma bandeja ducal que sua excelência se tinha negado categoricamente a ceder a seu filho, o atual duque, alegando que era propriedade sua e que não deveria ter se casado com aquela idiota que provocava na duquesa dor nas entranhas. Hadleigh depositou a imponente bandeja sobre a mesa, e ao fazê — lo dirigiu um eloqüente olhar ao senhor Beaumaris. Este assentiu para dar a entender que tinha captado a indireta, assim que se levantou e foi servir o vinho. Ofereceu a sua avó um copo cheio até a metade, pelo que ela protestou no mesmo instante, exigindo saber se seu neto era tão impertinente que achava que ela não agüentava a bebida.
— Estou seguro de que agüenta muito melhor que eu — replicou o jovem — , mas sabe muito bem que não lhe convém beber álcool, e também sabe que com suas ameaças não conseguirá animar — me para que consinta seus caprichos. — Então levou a mão de sua avó aos lábios e acrescentou com doçura — : É você uma mulher dominante e cruel, avó, mas espero que viva cem anos, porque a quero bem mais que a qualquer outro de meus parentes.
— Isso não é um grande mérito — replicou ela, encantada pelas audazes palavras de seu neto — . Senta — te e não tentes enganar — me com teus galanteios. Já vejo que estás a ponto de te pôr em ridículo, assim não importa que dissimules. Espero que não tenhas vindo para me anunciar que vais casar com essa descarada aventureira que estavas mantendo na última vez que nos vimos. — Não, nada disso — tranquilizou — a o jovem.
— Ainda bem, porque não toleraria que metesses uma desqualificada na família. Ainda que não ache que fosses capaz de cometer semelhante barbaridade.
— Onde você aprende essas expressões tão horríveis, avó?
— Eu não pertenço a essa tua geração de pusilânimes, graças a Deus. Mas diga — me, de quem se trata?
— Se não soubesse por minha própria experiência, avó, que em Londres não passa nada sem que você se inteire imediatamente, asseguraria que não tinha ouvido falar dela. É (ou em qualquer caso, é o que dizem dela) essa grande herdeira.
— Oh! Referes — te a essa rapariga que a idiota de lady Bridlington hospeda em sua casa? Disseram — me que é uma beleza.
— Sim, é muito formosa, é claro. Mas não é isso o que importa.
— Então o que é?
Beaumaris refletiu um instante e contestou:
— É a jovenzinha mais adorável que jamais conheci. Quando tenta me convencer que conhece à perfeição as normas sociais, consegue aparentar que é uma jovem como qualquer outra; mas se, como ocorre com demasiada freqüência para minha tranqüilidade, alguém acorda sua compaixão, é capaz de fazer qualquer coisa para socorrer o objeto de sua piedade. Se caso — me com ela, sem dúvida alguma esperará que empreenda uma campanha para socorrer a todos os que trepam pelas chaminés da cidade, e é muito provável que converta minha casa num asilo para cães de rua. — Ah, sim? — Olhou seu neto de cima a baixo e com o cenho franzido — . Por quê? — Veja, já me enviou um exemplar da cada categoria. Mas não, quiçá não seja justo falar assim. A Ulisses é verdade que me obrigou a adotar, mas ao inacreditável Jemmy eu ofereci voluntariamente minha proteção.
A duquesa pôs uma mão sobre o braço da cadeira e ordenou:
— Deixa já de me confundir! Quem é Ulisses? E quem é Jemmy?
— Ulisses eu já me ofereci a presentear — lhe — recordou Beaumaris — . Jemmy é um aprendiz de limpador cuja péssima conduta a senhorita Tallant está decidida a corrigir. Teria gostado que a tivesse visto dizer a lady Bridlington que não se interessava por outra coisa que a sua própria comodidade, como o resto de nós; e pedir ao pobre Charles Fleetwood que imaginasse que aspecto teria ele se tivesse sido criado por uma mãe adotiva bêbada que o tivesse vendido a um limpador. É uma pena que não tive o privilégio de presenciar seu encontro com Grimsby, o limpador! Compreendi que o mandou para fora da casa depois de ameaçar denunciá — lo as autoridades. Não me surpreende em absoluto que o tipo se acovardasse ante ela, porque fui testemunha de como dispersava um grupo de rústicos.
— Pelo que dizes, parece uma mulher fora do comum — observou sua excelência — . É uma jovem respeitável?
— É claro. Sem nenhuma dúvida.
— Quem é seu pai?
— Esse é um mistério que confio que você me ajude a resolver.
— Eu? — estranhou sua avó — . Não sei o que esperas que possa te dizer! — Tenho motivos para pensar que vive perto de Harrowgate, avó, e me lembro que você visitou esse balneário não faz muito tempo. Talvez a tenha visto no salão dessa localidade, porque suponho que deve ter um salão em Harrowgate; ou talvez ouvisse falar de sua família. — Pois não! — respondeu a idosa com aspereza — . E além disso, não quero voltar a ouvir falar de Harrowgate. É um lugar frio, feio e muito pouco refinado, com as águas mais repugnantes que provei em minha vida. Não me fizeram nenhum bem, como teria deduzido desde o princípio qualquer um que não fosse tão idiota como essa minha queixosa sanguessuga. Salões! Bah! Como se produzisse algum prazer ver a um grupo de camponeses dançando essa vergonhosa valsa. Dançar? A isso eu chamo de outra coisa!
— Não tenho dúvida, avó, mas lhe rogo que não me obrigue a ruborizar — me. Ademais, para alguém que passa a vida clamando contra as afetações das jovenzinhas de hoje em dia, sua atitude em relação a valsa parece um tanto incoerente.
— Não sei se pareço incoerente, mas sei quando algo é indecente.
— Estamos a desviar — nos do tema — advertiu seu neto com firmeza. — Bom, não conheci nenhuns Tallant em Harrowgate, nem em nenhum outro lugar. Quando não estava tentando engolir uma coisa que ninguém me convencerá de que não a tiraram diretamente das cloacas, me achava sentada vendo como tua tia amarrava as franjas de um lençol no quarto mais desconfortável em que jamais me hospedei. Imagine, tive que levar toda minha roupa de cama!
— Você sempre leva, avó — recordou — lhe o jovem, que em várias ocasiões tinha tido o privilégio de presenciar os preparativos de um das impressionantes viagens da duquesa — . E seu aparelho de jantar, sua cadeira favorita e a sua copeira...
— Não sejas insolente, Robert! Nem sempre tenho que levar tudo necessariamente. — Deu uma volta no xale e acrescentou — : Não me preocupa que decidas te casar, mas não entendo por que persegues a uma mulher rica.
— Ah, não, não acho que possua fortuna alguma — esclareceu seu neto com frieza — . Isso só o disse para me enganar.
Seu excelência voltou a olhá — lo com olhos de lince.
— Para enganar — te? — Dizes que não está desejando te caçar?
— Nada disso. Guarda as distâncias comigo. Nem sequer estou seguro de que senta a menor atração por mim.
— Viram — na com frequência em tua companhia, não é assim? — perguntou sua excelência de repente.
— Sim, diz que a beneficia muito socialmente que a vejam comigo — admitiu seu neto com ar pensativo.
— Ou é uma harpia — disse a idosa com um brilho no olhar — , ou é uma boa rapariga. Deus meu, achava que não existia alguma dessas jovenzinhas modernas e hipócritas que fosse capaz de não adular — te. Achas que gostarei...
— Sim, acho que sim, mas tenho de ser sincero, sua opinião não fará diferença. Surpreendentemente, a duquesa não se ofendeu por esse comentário, apenas se limitou a assentir com a cabeça.
— Será melhor que te cases com ela, a não ser que não seja de uma boa família. Tu não és um Caldicot de Wigan, mas és de boa cepa. Eu não teria permitido que tua mãe se casasse com teu pai se a família dele não tivesse uma boa linhagem. — E acrescentou, nostálgica — : Maria era estupenda. Agradava — me mais que qualquer um dos meus outros filhos. — A mim também — concordou Beaumaris levantando — se da cadeira — . Proponnho casamento à Arabella, arriscando — me a que me recuse, ou me concentro na tarefa de convencê — la de que não sou o conquistador incorrigível por quem ela me tomou?
— A mim é inútil que me perguntes. Não te faria nenhum dano que te dessem um fora, mas não importar — me — ia que em algum dia me apresentasses a essa jovem. — Estendeu — lhe uma mão, mas quando ele a beijou e se dispunha à soltar, sua avó fechou os dedos ao redor e disse — : Desembucha já, Robert! O que tanto te irrita?
— Não é exatamente isso, avó — sorriu seu neto — . É que me encantaria que essa jovem me dissesse a verdade.
— E por que não o faria?
— Só me ocorre um motivo, avó. E isso é o que me irrita!
* * *
Capítulo 12
De regresso a sua casa, o senhor Beaumaris passou por Bond Street e teve a sorte de ver Arabella, acompanhada de uma criada de aspecto severo, saindo da biblioteca Hookham. Parou de imediato o carro; a jovem sorriu e acercou — se do cabriolé, exclamando:
— Oh, como melhorou o seu aspecto! Não lhe tinha dito? Olá, cachorrinho adorável. Lembras — te de mim?
Ulisses agitou a cauda mecanicamente e deixou que a jovem o acariciasse, mas bocejou. — Por amor de Deus, Ulisses! Tens que ser mais educado! — repreendeu Beaumaris. Arabella riu.
— É assim que o chama — Por que?
— Porque pareceu — me que tinha levado uma vida errante, e a julgar pelo episódio que você e eu presenciamos, também repleta de aventuras.
— É verdade! — Arabella observou a adoração com que Ulisses contemplava a seu amo e disse — : Já sabia que se apegaria a você. Como o olha!
— Seu afeto, senhorita Tallant, ameaça converter — se num grave problema. — Não diga isso! Estou segura que você também lhe tem carinho, porque, se não, não o levaria a passear.
— Se é isso que acredita senhorita Tallant, não imagina até onde Ulisses é capaz de rebaixar — se para conseguir seus propósitos. É um mestre da chantagem. Sabe muito bem que não me atrevo a lhe negar nada para não ver prejudicada a pouca reputação que tenho com você. — Que coisas tão absurdas diz! Quando vi como o tratava, compreendi que você sabe tratar com os cães. Alegro — me muito de que tenha ficado com ele.
Arabella fez uma última caricia em Ulisses e voltou à calçada.
— Concede — me a honra de levá — la até sua casa? — perguntou o senhor Beaumaris. — Não, obrigado. Estou acompanhada.
— Não importa. Diga a sua criada que pode ir. Ulisses também lhe suplica. O cão elegeu esse momento para coçar uma orelha, o que fez rir à jovem. — Isso é pura timidez — explicou Beaumaris estendendo uma mão a Arabella —— . Suba! — Está bem. Já que Ulisses pede — me com tanta insistência... — aceitou ela, e pegou a mão para subir no cabriolé — . O senhor Beaumaris irá me acompanhar a casa, Maria. Ele lhe cobriu os joelhos com uma manta ligeira e por cima do ombro ordenou:
— Clayton, acabo de recordar que preciso uma coisa da farmácia. Vá e compra — me uma cataplasma! Podes voltar para casa andando.
— Muito bem, senhor — respondeu o pontilhão com tom inexpressivo, e saltou à calçada. — Uma cataplasma? — repetiu Arabella olhando a Beaumaris com os olhos muito abertos — . Para que o quer?
—— Para o reumatismo — respondeu ele, desafiante, e estimulou os cavalos. — Para o reumatismo? — Está brincando comigo!
— Em absoluto. Só procurava um pretexto para me livrar de Clayton. Espero que Ulisses se comporte como uma boa dama de companhia. Tenho que lhe dizer algo, senhorita Tallant, que não quero que ninguém mais saiba.
Arabella, que estava acariciando o cão, ruborizou — se.
— Que quer me dizer? — perguntou quase sem alento.
— Conceder — me — á a honra de casar — se comigo?
A garota ficou atônita e, por um instante, sem fala. Quando recobrou a voz, disse: — Está a mangar comigo.
— Não, senhorita Tallant.
Arabella estremeceu.
— Sim, por favor, admita que só era isso. Estou — lhe muito agradecida, mas não posso me casar com você.
— Posso saber por quê?
— Por muitos motivos. — Creia — me, rogo — lhe! É impossível! — respondeu com voz trêmula, a ponto de começar a chorar.
— Está segura de que esses motivos são insuperáveis? — perseverou ele. — Sim, estou segura! Ai, por favor, não insista! Jamais sonhei... Jamais me passou pela cabeça... Por nada deste mundo, ter — lhe dado motivos para supor... Ai, por favor, não diga mais nada, senhor Beaumaris!
Ele assentiu com a cabeça e guardou silêncio. Arabella ficou sentada, olhando as mãos entrelaçadas, num estado de intensa agitação, muito desconcertada, debatendo — se entre a surpresa ante semelhante declaração, proveniente de um homem que ela achava que só estava se divertindo em sua companhia, e ao se dar conta, pela primeira vez, de que o senhor Beaumaris era o único cavalheiro com quem gostaria de casar — se.
Depois de uma breve pausa, ele disse com sua acostumada serenidade:
— Acho que as situações como esta em que agora nos encontramos sempre implicam em verdadeiro grau de constrangimento. Temos de tentar que isso não nos supere. — Não acha que o baile de lady Bridlington será um dos mais concorridos da temporada? Arabella agradeceu — lhe por tentar aliviar a tensão do momento, e tentou responder com naturalidade:
— Sim, acredito. Enviamos trezentos convites. Acha que... encontrará tempo para assisti — lo? — Sim, e confio em que ainda que não se case comigo, ao menos possa convencê — la para que me conceda um dança.
Arabella, confusa, respondeu sem saber o que dizia. Beaumaris lançou — lhe uma olhadela ao seu esquivo perfil, vacilou e não disse nada. Já tinham chegado a Park Street, de maneira que ele a ajudou a descer do cabriolé.
— Não me acompanhe até a porta. Sei que não gosta de deixar sozinhos os cavalos — disse a jovem com precipitação — . Adeus!Ver — nos — emos no baile!
Beaumaris esperou a que entrasse na casa, subiu em seu cabriolé e partiu. Ulisses meteu — lhe o focinho embaixo do braço.
— Obrigado — disse seu amo com aspereza — . Achas que é pouco razoável de minha parte desejar que essa jovem confie o suficiente em mim para me revelar seu segredo? Ulisses emitiu um profundo suspiro; tinha muito sono após um dia no campo. — Suponho que acabarei lhe dizendo que sei tudo desde o princípio. E, no entanto... Sim Ulisses, sou muito pouco razoável. Pareceu — te que lhe sou tão indiferente como ela pretende me fazer crer?
Compreendendo que se esperava algo dele, o cão emitiu uma mistura de ganido e latido e agitou a cauda com impulso.
— Achas que devo perseverar? A verdade é que me precipitei. Talvez tenhas razão. Mas se eu lhe importasse não me teria dito a verdade?
O animal bufou.
— De qualquer modo, não tenho dúvida de que gostou que te leve para passear. Seja por essa circunstância, ou pela firme convicção de que Ulisses tinha nascido para passear de carro, Beaumaris seguiu levando — o a passear. Os amigos do Incomparável que o viam com Ulisses, depois de se recuperar de seu assombro inicial, opinavam que ele estava praticando algum misterioso jogo com a sociedade, e apenas um fervoroso imitador chegou ao extremo de adotar um animal de origem humilde para passear em seu carro. Pensou que se o Incomparável estava lançando uma nova moda, em pouco tempo seria difícil encontrar um cão de rua. Mas o senhor Warkworth, que era um pouco mais inteligente, censurou essa atitude por considerá — la precipitada e irrefletida.
— Recordas quando pôs um dente de leão na lapela três dias seguido? — perguntou — . Lembras da revolução que se organizou, quando todos os infelizes da cidade correram às floristas a procura de dentes de leão, que elas não tinham, é claro — É evidente que não se pode comprar dentes de leão! O pobre Geoffrey foi até Esher em procura de um, enquanto Altringham cismou de arrancar meia dúzia de Richmond Park, e brigou com o jardineiro por isso, e depois os plantou nos vasos de sua janela. Não era má idéia, se realmente os dentes de leão tivessem ficado na moda. Um cara rápido, esse Altringham. Mas o Incomparável só estava a bricar conosco, é claro. Quando teve a todos enfeitados com eles, deixou de usá — los, e que jeito pretensioso nós ficamos! Eu acho que nos está enganando da mesma maneira que da outra vez.
A ascensão social de Ulisses só deu lugar a um incidente desagradável. O honorável Frederick Byng, que há anos apelidaram de o “Poodle” por seu costume de ir a toda parte com um cão de raça pura, extraordinariamente arrumado, sentado a seu lado no carro, se encontrou uma tarde com o senhor Beaumaris em Piccadilly.
— Que demônios... — gritou, detendo seus cavalos enquanto observava aquele vergonhoso acompanhante.
Beaumaris freou também os seus e olhou para atrás inquisitivamente. Byng, intensamente ruborizado, fez retroceder o seu cabriolé, atiçando os cavalos com uma violência que delatava o quanto estava alterado. Quando tinha conseguido se colocar ao lado do outro cabriolé, lançou uma fulminante mirada a Beaumaris e exigiu uma explicação.
— Uma explicação de que? — perguntou este — . Se não tomas cuidado, num dia destes vai ter uma apoplexia, Poodle. Que aconteceu?
Byng apontou Ulisses com um dedo trêmulo.
— Que significa isso? — perguntou com agressividade — . Se achas que vou permitir semelhante insulto!
Não pôde terminar a frase, pois os dois cães, que tinham estado se olhando com ar desafiante dos seus respectivos veículos, sucumbiram derrepente a um ódio mútuo, soltaram dois rosnados simultâneos e se lançaram um contra o outro. Como os cabriolés se achavam demasiado afastados para que os cães pudessem se atingir, não tiveram outro remédio além de dar vazão a seus sentimentos com uma série de frenéticas advertências, ameaças e insultos que pôs a perder o resto do acalorado discurso do senhor Byng.
Beaumaris, sujeitando Ulisses pelo pescoço, ria tanto que mal podia falar, o que não contribuiu em absoluto para aplacar a ira do ofendido Byng. Começou a dizer que sabia muito bem como devia reagir ante aquela tentativa de ridicularizá — lo, mas que primeiro tinha que acalmar o seu cão. — Não, não, Poodle! Não me desafie para um duelo! — pediu Beaumaris sem deixar de rir — . Pode acreditar, não era essa minha intenção! Ademais, nos poríamos em ridículo se fôssemos a Paddington ao amanhecer para nos enfrentarmos em um duelo por um par de cães. Byng vacilou; Beaumaris tinha razão e, além disso, era famoso por sua excelente pontaria, de maneira que desafiá — lo para duelo por uma ninharia como aquela teria sido uma insensatez.
— Se não o fazes para ridiculizar — me, por que então? — perguntou receoso. — Esqueça, Poodle, rogo — te! Estás mexendo em terreno delicado — advertiu — lhe Beaumaris — . Não posso mencionar o nome de uma dama no meio da rua.
— De que dama? Não creio nada do que dizes! Por que não fazes calar a esse maldito cachorro? A diferença de seu bem domesticado adversário, que tinha voltado a sentar ao lado de seu amo com ar muito digno e fingindo uma exasperante surdez, Ulisses, convencido de que tinha intimidado aquele desprezível dandi, lhe lançava umas injúrias extremamente ignóbeis. Beaumaris lhe deu um tapa, mas ainda que o cão tivesse se encolhido de medo sob sua vingativa mão, não se arrependeu, e retomou suas ameaças com incólume fervor.
— São apenas gabolices, Poodle! — explicou — . O ódio do vulgo para a aristocracia. Será melhor que nos separemos, não acreditas?
Byng emitiu um furioso ruído e afastou — se. Beaumaris soltou Ulisses, que se sacudiu, assoprou satisfeito e olhou seu amo em busca de aprovação.
— Sim, já vejo que vais ser minha ruína — admitiu Beaumaris com severidade — . Não sou experiente na matéria, mas asseguro que essa linguagem você a aprendeu nos bairros baixos, onde convivias com lixeiros, carvoeiros, bandidos e gentalha do mesmo estilo. Não estás preparado para se mover nos círculos elegantes. — O cão esticou a língua e sorriu — . Por outro lado — acrescentou seu amo cedendo um pouco — , acho que terias feito picadinho daquele animal, e tenho de admitir que te compreendo. Mas o pobre Poodle não me saudará pelo menos durante uma semana, disso não tenho dúvida.
No entanto, passados cinco dias, o senhor Byng se acalmou e adotou uma atitude tolerante para Ulisses. Tinha evitado passar com seu carro ao lado do cabriolé do Incomparável , pois vistos pela frente, provocava entre seus amigos uma hilaridade que precisamente desejava evitar. Beaumaris e a senhorita Tallant voltaram a encontrar — se no deslumbrante esplendor do salão circular de Carlton House, na noite da festa de gala oferecida pelo regente. Ela estava tão impressionada pela elegância das colunas azul céu e ofuscada pelo resplendor por um imenso lustre de luzes de cristal talhado, que se refletia, com suas inúmeras velas, em quatro enormes espelhos, que quase esqueceu o seu encontro anterior com o senhor Beaumaris e o saudou emocionada.
— Como está você? — Nunca tinha visto nada parecido! — Cada visita é mais esplêndida que a anterior!
Ele sorriu.
— Visitou já a estufa, senhorita Tallant? É o carro chefe de nosso real anfitrião, asseguro — lhe. Permita — me que lhe mostre!
Mas então, Arabella já tinha recordado as circunstâncias em que se separaram na última vez, e o rubor tinha tingido as suas faces. Tinha derramado abundantes lágrimas por causa da desgraçada circunstância que a impedia aceitar a proposta de casamento do senhor Beaumaris, de tal maneira que tinha sido necessária a emoção que provocava uma festa em Carlton House para lhe fazer
esquecer por uma noite que era a jovem mais desgraçada do mundo. Vacilou, mas lady Bridlington estava radiante, saudando seus amigos, assim apoiou uma mão no braço de seu acompanhante e atravessou com ele uma série de espetaculares salas, todas elas abarrotadas; subiu uma majestosa escada e cruzou vários salões e antecâmaras. Beaumaris, que saudava seus conhecidos e de vez em quando se detinha para falar com alguém, nos intervalos a distraiu com um relato da briga de Ulisses e o cão do senhor Byng, e isso fez Arabella rir tanto que grande parte de seu nervosismo se desvaneceu. A estufa deixou — a estupefata, e não era de estranhar. Beaumaris olhou — a, divertido, enquanto ela observava em silêncio aquela extraordinária estrutura. Finalmente, a jovem suspirou e fez um de seus assombrosamente ingênuos comentários:
— Não sei por que a chamam de estufa, parece mais uma catedral, e muito feia, na verdade. Beaumaris estava encantado.
— Achei que gostaria — disse fingindo seriedade.
— Não gosto nada — respondeu Arabella, muito séria — . Por que cobriram essa estátua com um véu?
Ele examinou com seu monóculo a Vênus de Dresde, sob um véu de gaze. — Ignoro — o — confessou — . Sem dúvida tratar — se — á de um dos caprichos do regente. Quer perguntar — lhe? Vamos procurá — lo?
Ela se apressou em recusar essa sugestão. O regente, que era um excelente anfitrião, já tinha tido ocasião de falar uns poucos minutos com cada um de seus convidados, e ainda que Arabella apreciasse as refinadas palavras que ele lhe tinha dedicado, e pensasse em descrever a amabilidade do anfitrião para a sua família na sua próxima carta, lhe envergonhava conversar com pessoa tão importante. Assim Beaumaris a acompanhou até o lado de lady Bridlington, e depois de ficar uns minutos com elas, acercou — se um cavalheiro que levava calças justas de cetim para lhe dizer, sibilando, que a duquesa de Edgeware exigia sua imediata atenção. Por conseguinte, Beaumaris saudou Arabella e afastou — se. Ainda que a jovem o visse em várias ocasiões, sempre estava falando com algum amigo seu e não voltou a se acercar a ela. Notou que começava a fazer calor nas abarrotadas salas; a companhia pareceu — lhe sumamente aborrecida e, além disso, a alegre e inquieta lady Jersey, já estava há quinze minutos coqueteando com o senhor Beaumaris, e parecia uma criatura odiosa.
O baile de lady Bridlington foi a outra reunião social de importância. Prometia converter — se num acontecimento de extraordinário esplendor, e ainda que o defunto lord Bridlington, para comprazer a sua ambiciosa esposa, tivesse acrescentado um salão de baile e um jardim de inverno na parte traseira da casa, parecia evidente que os convidados de milady iam ficar suficientemente apertados para que a festa pudesse ser considerada um grande sucesso. Tinham contratado uma orquestra de excelentes músicos e a orquestra de flautas que tocaria durante o jantar. Assim mesmo tinha recorrido a auxiliares extras, avisado aos agentes de polícia e aos carreteiros para que se concentrassem em Park Street e encomendado refrescos em Gunter’s para aliviar o ônus do pressionado cozinheiro de lady Bridlington. Nos dias anteriores a festa, as criadas estavam muito ocupadas mudando móveis de lugar, limpando os lustres de cristal, lavando centenas de copos extras que tinham retirado de um depósito no sótão, contando várias vezes os pratos e
guardanapos, e no geral criando uma atmosfera de irritação e nervosismo na casa. Lord Bridlington, que combinava a tendência à hospitalidade cerimoniosa com um temperamento basicamente frugal, se debatia entre a satisfação por ter convidado à sua casa as pessoas mais destacadas da boa sociedade e a convicção cada vez maior de que o custo da festa seria imenso. Só a fatura das velas de cera ameaçava a ascender a cifras astronômicas, e nem seus cálculos mais otimistas do número de copos de champanhe que seriam consumidos reduziam a enorme quantidade de garrafas que tinha que encomendar a um total que não pudesse contemplar senão com um profundo pessimismo. No entanto, era demasiado orgulhoso para aceitar seriamente a possibilidade de servir o champanhe em forma de ponche. Tinha que ter ponche, é claro, bem como limonada, horchata de amêndoas e outras bebidas mais suaves que as damas gostavam, mas para que ninguém pudesse qualificar a celebração como pouco esmerada, o melhor champanhe devia correr durante toda a noite em quantidades ilimitadas. Já que não estava acostumado a pôr em dúvida sua categoria, a satisfação revelou — se superior a seus receios, e se passou pela cabeça a suspeita de que era a Arabella a quem devia agradecer a gratificante quantidade de pessoas que tinham aceitado o convite para o baile, não experimentou nenhuma dificuldade para a afugentar. Sua mãe, mais perspicaz que ele, atribuiu sim a Arabella o mérito que a jovem merecia, e, num ímpeto de irresponsável progadilidade, encomendou à sua costureira particular um vestido novo para sua afilhada. Mas afinal de contas, não foi tão dispendioso, pois bastou que sussurrasse umas poucas palavras ao ouvido de madame Dumaine para convencer essa astuta negociante de que a divulgação de ter desenhado o traje da famosa senhorita Tallant justificava plenamente que lhe aplicasse um substancial desconto no preço do vestido rendado sobre uma túnica branca de cetim, de manga curta, abotoado na parte da frente com botões de pérola que fazia par com o broche de pérola da capa. Arabella, contemplando arrependida os estragos que uma sucessão de festas tinha causado em suas luvas, se viu obrigada a comprar um novo par de luvas brancas e longas, bem como outras sandálias de cetim e uma estola leve para jogar sobre os ombros à Ariane. A essa altura já não restava muito do maravilhoso presente de seu tio, e quando pensou que por causa de sua insensatez já não poderia corresponder à generosidade de sua família da única maneira ao alcance de uma jovem decente, se apoderou dela um profundo sentimento de culpa e arrependimento, de maneira que não pôde evitar derramar umas lágrimas. Também não foi capaz de não fantasiar sobre a felicidade que teria podido gozar nesse momento se seu mau gênio não a tivesse levado a enganar ao senhor Beaumaris. Esse sentimento de frustração era mais amargo que todos os demais, e se conseguiu serenar — se foi só mediante a decidida aplicação de seu senso comum. Não era lógico supor que o altivo Beaumaris, aparentado com tantas casas nobres, de porte tão distinto, tão cobiçado e adulado, se tivesse fixado numa jovem proveniente de uma paróquia rural, sem fortuna nem relações.
Devido a isso, não é de estranhar que Arabella experimentasse sentimentos contraditórios enquanto aguardava a chegada dos primeiros convidados do baile. Lady Bridlington, percebendo que sua afilhada estava um pouco pálida (e tinha razão, porque após uma semana de preparativos estava com os nervos destroçados), tinha tentado convencê — la para que deixasse que a senhorita Crowle lhe pusesse um pouco — só um pouco! — de cor nas faces. Mas depois de um breve exame do resultado dessa delicada operação, Arabella tinha lavado o rosto e declarado que jamais empregaria esses artifícios para ressaltar sua beleza, pois se seu pai soubesse, perderia para sempre o seu afeto. Lady Bridlington assinalou, muito razoavelmente, que não corria o risco de que seu pai o soubesse, mas como Arabella se mantivesse inflexível e parecia a ponto de romper a chorar, seu madrinha não insistiu mais, e a consolou — a assegurando que mesmo sem a sua boa cor
habitual ela estava linda com o maravilhoso vestido que lhe tinha confeccionado madame Dumaine.
Além de tudo isso, alguns convidados chegaram cedo, porque pensavam em sair antes de terminar o baile para poder assistir a outras festas, e outros só chegaram depois de ir a outras duas (porque relegaram o baile de lady Bridlington ao terceiro lugar de sua lista de festas para essa noite), de modo que a reunião se converteu num caos de constantes entradas e saídas, e durante horas reinou um grande tumulto em Park Street, onde se ouviam os gritos de «O cabriolé de milord!» ou «A cadeirinha de milady!», ou os acalorados agentes de polícia brigando com os estridentes carreteiros, ao mesmo tempo em que os cocheiros insultavam — se uns aos outros; ainda assim, Arabella teve ao menos um motivo de satisfação, pois Bertram chegou às dez em ponto e ficou até que a festa terminou.
Tinha cometido a imprudência de encomendar um traje de noite aos cuidados senhor Swindon, pois considerava que os singelos trajes que tinha trazido de Heythram eram inadequadas para a ocasião. Swindon tinha — se esmerado muito, e quando Arabella o viu subir a escada entre as fileiras de flores que ela mesma tinha ajudado a manter frescas durante todo o dia as aspergindo com água, seu coração se inchou de orgulho. A jaqueta azul marinho de Bertram ajustava — se admiravelmente aos seus ombros; seus calções curtos de cetim não mostravam uma ruga; e suas meias e casaco eram de uma sobriedade admiráveis. Com os escuros cabelos rigorosamente penteados ao estilo Brutus, e aquele atraente e fino rosto, pálido devido ao nervosismo próprio de um jovem cavalheiro que assistia pela primeira vez a uma festa da boa sociedade, parecia quase tão distinto como o Incomparável . Arabella, pegando — lhe fugazmente a mão, dedicou — lhe um eloqüente olhar admirativo, que ele não pôde conter um sorriso tão juvenil e sedutor que fez com que outra convidada, que também fazia sua entrada nesse momento, perguntasse a seu acompanhante quem era aquele jovem tão elegante.
Encorajado pela intensiva preparação que o tinha submetido um renomeado mestre de dança francês, Bertram solicitou a primeira vala a sua irmã e, como era um jovem ágil e elegante que em Harrow tinha praticado diferentes desportos e aprendido a se mover com precisão e a controlar suas extremidades, se desenvolveu tão bem que Arabella não pôde deixar de exclamar: «Oh, Bertram, como danças bem! Vamos organizar uma quadrilha e dançá — la juntos!» No entanto, ele não se sentiu capaz de satisfazer a sua irmã. Era verdade que tinha adquirido os rudimentos das danças mais singelas, mas duvidava de sua capacidade para dançar a grande ronde ou o pas de zéphyr sem fazer má figura. Arabella olhou — o nos olhos e disse que talvez ele também estivesse um pouco nervoso. Perguntou — lhe se encontrava — se bem, e seu irmão lhe assegurou que jamais se tinha sentido melhor, mas se absteve de lhe confiar que a aventura londrina tinha minguado tanto seus recursos que levava várias noites sem poder conciliar o sono pensando em como faria frente a suas dívidas. Como Arabella não o tinha visto desde a manhã em que marcaram um furtivo encontro em Pall Mall, sob a imprecisa vigilância das babás que levavam a seus pupilos ali para tomarem ar e lhes comprar copos de leite recém ordenhados, conferindo um ar rural à cena, não podia evitar estar preocupada com ele. A desenvoltura com que agora se movia Bertram não ajudava a dissipar seus temores, e culpava injustamente o senhor Scunthorpe por levá — lo por um caminho que seu pai teria reprovado. Arabella não tinha muito boa opinião de Scunthorpe, e com a benevolente idéia de que Bertram deveria se relacionar com pessoas mais convenientes para ele, apresentou a seu irmão a um de seus mais desinteressados admiradores, o jovem lord
Wivenhoe, herdeiro de um próspero título de conde, e a quem em Londres quase todo mundo chamava de Bochecha, apelido afetuoso obtido por seu redondo e risonho semblante. Esse alegre e jovem membro da nobreza, ainda que não tivesse proposto casamento a Arabella, fazia parte da corte da jovem, e era um de seus favoritos, pois tinha uns modos ingênuos e uma simpatia transbordante. Apresentou — o a Bertram com toda boa intenção, ainda que se teria privado de fazê — lo se soubesse que o simpático Bochecha tinha sido educado por um tutor sumamente insensato segundo os princípios preconizados pelo defunto progenitor do senhor Fox. Ainda que sua atitude desmentisse — o, o conde de Chalgrove tinha em grande estima pelas máximas de lord Holland, e animava o seu herdeiro a permitir — se qualquer luxo que desejasse, liquidando suas dívidas de jogo com a mesma tranquilidade com que liquidava as faturas que não paravam de chegar a sua mansão, de seu fabricante de carros, seu chapeleiro e uma multidão de outros comerciantes de quem era cliente.
Os dois jovens cavalheiros simpatizaram assim que se conheceram. Lord Wivenhoe era um pouco mais velho que Bertram, mas de mentalidade tão jovem como seu rosto, enquanto as finas feições de Bertram, e sua superioridade intelectual, lhe faziam parecer mais velho. Comprovaram que tinham muito em comum, e quando estavam apenas a alguns minutos conversando já tinham lembrado de ir juntos às corridas.
Enquanto isso, a satisfação que a senhorita Tallant tinha demonstrado ao dançar com seu jovem amigo de Yorkshire não tinha passado inadvertida. Mais de um pretendente que abrigava esperanças de cativar a rica herdeira se consumiu de tristeza, porque nem o mais confiante de seus admiradores poderia se envaidecer de que Arabella lhe tivesse sorrido alguma vez com um afeto tão sincero como o que demonstrou a Bertram, nem de que lhe tivesse falado tanto nem de forma tão confidencial. O senhor Warkworth, agudo observador, surpreendeu — se ao constatar que o casal guardava uma verdadeira semelhança. Mencionou — o a Fleetwood, que tinha sido tão afortunado que tinha conseguido a promessa de Arabella de dançar com ele a quadrilha, e que não estava prestando nenhuma atenção às exigências de outras jovens não tão bem parecidas e que não tinham sido convidadas para dançar a valsa, e que por esse motivo conversavam animadamente entre elas, sentadas numas cadeiras douradas colocadas junto às paredes do salão de baile.
Lord Fleetwood olhou com atenção os irmãos Tallant, mas não encontrou entre eles a menor semelhança, que residia mais em alguma expressão ocasional que em suas feições. — Que barbaridade! A senhorita Tallant tem um nariz bem mais bonito! Warkworth deu — lhe a razão e justificou sua erronia apreciação explicando que só tinha sido uma colocação sem importância.
Beaumaris não chegou até depois da meia — noite, e por esse motivo não pôde dançar a valsa com Arabella. Não parecia estar de muito bom humor e, depois de fazer um grande esforço de dirigir umas poucas palavras corteses a sua anfitriã e de dançar uma vez com uma dama à que lady Bridlington lhe tinha apresentado e outra com sua prima, lady Wainfleet, se dedicou a passear pelos salões falando languidamente com seus conhecidos e observando a movimentação através de sua monóculo com ar de aborrecimento. Passada meia hora, quando se estavam formando dois grupos para dançar uma dança rústica, foi procurar Arabella, que ao finalizar a última dança tinha desaparecido do salão e se dirigido ao jardim de inverno acompanhada por Epworth, que depois de
lhe assegurar que nunca tinha visto um dança tão estafante em Londres se ofereceu para lhe proporcionar um refrescante copo de limonada. Beaumaris nunca chegou a se inteirar se Epworth teria cumprido sua promessa, mas uns minutos mais tarde, quando entrou no jardim de inverno, encontrou Arabella encurralada numa parede, num estado de tremenda agitação, e tentando soltar suas mãos do fervoroso aperto das de Epworth, que se tinha ajoelhado ante ela em romântica postura. Como o resto dos convidados tinha saído do jardim de inverno para ocupar seus lugares nos novos grupos de dança, o impetuoso Epworth, encorajado pelas generosas doses de champanhe de lord Bridlington, tinha aproveitado mais uma vez a oportunidade para se declarar à suposta herdeira. Beaumaris chegou a tempo de ouvir como Arabella murmurava com profunda aflição:
— Não, lhe rogo! — Lhe suplico, senhor Epworth! — Levante — se! Estou muito agradecida, mas não vou mudar de idéia. — Não deveria me pressionar desta forma! Não é próprio de você! — Não sejas tão irritante, Epworth! — exclamou Beaumaris com seu habitual sangue frio — . Vim pedir — lhe que dance comigo a próxima dança, senhorita Tallant.
A jovem estava muito confusa e respondeu incoerentemente. Epworth, envergonhado de que tivesse sido surpreendido naquela postura por uma pessoa cujo desprezo temia, se pôs de pé, resmungou e saiu a toda pressa do jardim de inverno. Beaumaris pegou o leque que Arabella sustentava, abriu — o e começou ao agitar ante seu rosto acalorado. — Quantas vezes ele lhe propôs casamento? — perguntou em tom de enfado — . Que ridículo estava, por Deus!
Arabella não pôde conter o riso, mas disse com tom afetuoso:
— É um homenzinho detestável, e pelo visto pensa que só tem que perseverar para que eu aceite suas proposições.
— Deveria ser mais indulgente com ele. Se Epworth não soubesse que você vai herdar uma grande fortuna, não a molestaria.
— Se não fosse por você — disse ela tomando ar e com voz trêmula — , senhor Beaumaris, nunca ter — se — ia inteirado.
Ele guardou silêncio, em parte por remorso mas também porque sabia que, ainda que tivesse sido Fleetwood quem tinha estendido o rumor, seus imprudentes comentários tinham convencido Fleetwood de que o que dizia Arabella era verdade.
— Vamos dançar? — propôs ela ao cabo de um momento.
— Não, os grupos já devem estar formados — respondeu ele, e seguiu abanando — a. — Oh! Bom, talvez... — deveríamos regressar ao salão de dança de qualquer maneira. — Não se alarme — respondeu Beaumaris com uma ponta de aspereza — . Não tenho nenhuma intenção da importuná — la ajoelhando — me a seus pés.
Arabella voltou a ruborizar — se e, corada, girou a cabeça. Beaumaris fechou o leque e devolvendo — o disse:
— Não desejo ser inconveniente repetindo meus rogos, senhorita Tallant, mas deve saber que continuo pensando o mesmo de que quando lhe propus casamento. Se seus sentimentos experimentam alguma mudança, uma palavra, um olhar seria suficiente para comunicar — me. — Ela levantou uma mão para suplicar — lhe que se calasse — . Está bem, não voltarei a mencionar este assunto. Mas se em algum momento precisar de um amigo, deixe — me assegurar — lhe que pode contar comigo para o que seja.
Essas palavras, pronunciadas num tom fervoroso que Arabella não o tinha ouvido empregar até então, quase conseguiram paralisar seu coração. Esteve tentada a arriscar — se a confessar — lhe a verdade, mas vacilou, porque o temor de ver mudar sua expressão de admiração pela de desagrado apoderou — se dela; olhou — o, e depois levantou — se com rapidez, pois outro casal acabava de entrar no jardim de inverno. Arabella superou esse momento de perturbação; só teve tempo para pensar quais seriam as repercussões se o senhor Beaumaris tratava sua segunda confidencia com o mesmo escasso respeito com que tinha tratado a primeira; mas também para recordar as advertências com respeito ao perigo de confiar demasiado nele. Seu coração dizia — lhe que podia ser sincera, mas sua assustada mente não se atrevia a dar nenhum passo que pudesse deixá — la desprotegida e lhe causar a ruína.
Regressou com Beaumaris ao salão de dança, que a deixou com sir Geoffrey Morecambe, que se acercou para a reclamar. Passados uns minutos, tinha — se despedido de sua anfitriã e abandonado a festa.
* * *
Capítulo 13
A amizade de Bertram com lord Wivenhoe prosperou rapidamente. Depois de passar um dia juntos nas corridas, ficaram mutuamente tão satisfeitos que marcaram outros encontros. Lord Wivenhoe não se incomodou em perguntar a seu novo amigo que idade tinha, e como é lógico, Bertram não lhe confessou que só tinha dezoito anos. Wivenhoe levou — o a Epsom em seu cabriolé, puxado por um par de esplêndidos cavalos, e ao ver que Bertram entendia de cavalos, lhe cedeu as rédeas e o deixou conduzir. Bertram manejava tão bem os cavalos de lord Wivenhoe, e os fazia marchar a um passo tão brioso, demonstrando um excelente julgamento ao dobrar as esquinas e sujeitando a ponta do chicote como lhe tinha ensinado seu tio o squire , que não precisou de nada mais para ganhar a simpatia de Wivenhoe. Qualquer um que fosse capaz de controlar com tanta destreza os excelentes cavalos de milord tinha que ser um grande tipo. Como além disso Bertram conduzia assim sem interromper sua animada conversa, Wivenhoe ficou convencido de que era uma pessoa maravilhosa que merecia todo o seu apreço. Depois de um interessante intercâmbio de episódios eqüestres e de caçadas que lhes permitiram comprovar que compartilhavam seu desprezo pelos caçadores pouco temerários e a convicção de que o lema de qualquer ginete deveria ser «Monta sem que te importes de partir a cabeça», desapareceu toda a formalidade entre os dois, e milord não só pediu a Bertram que o chamasse de Bochecha, como fazia todo mundo, como também lhe prometeu mostrar alguns dos lugares mais interessantes da cidade. Desde que chegara a Londres, a sorte de Bertram tinha flutuado de maneira desconcertante. Sua primeira noite afortunada jogando aos dados tinha — o iniciado numa carreira que alarmara seriamente ao seu mais formal amigo, o senhor Scunthorpe. A sorte que tinha gozado o tinha animado a comprar numerosos artigos em diversas lojas e armazéns onde conheciam o senhor Scunthorpe, e ainda que o chapéu de Baxter’s, as botas de Hoby’s, o anel de Rundell and Bridge e outros caprichos como uma bengala, um par de luvas, algumas gravatas e pomada para o cabelo não fossem excessivamente caros, Bertram tinha descoberto, com certa surpresa, que juntos perfaziam uma cifra considerável. Também devia ter em conta a fatura da pousada, mas como ainda não lha tinham apresentado, por enquanto podia afastá — la de sua mente. O sucesso daquela primeira noite de jogo não se tinha repetido. E mais, devido a uma segunda visita ao discreto estabelecimento de Pall Mall, tinha sofrido perdas substanciosas, e tinha — se visto obrigado a reconhecer que talvez tivesse algo de verdadeiro nas funestas advertências de Scunthorpe. Era bastante inteligente para compreender que tinha sido um pintinho entre os falcões, mas se inclinava a pensar que essa experiência resultar — lhe — ia valiosíssima, pois ele nunca tropeçava duas vezes na mesma pedra. Enquanto jogava bilhar com Scunthorpe no Royal Saloon, acercou — se um afável irlandês que elogiou seu destreza e se ofereceu para acompanhá — lo a um pequeno local onde se podia jogar o faraó e o red or black . Não fez diferença que seu amigo lhe sussurrasse ao ouvido que aquele indivíduo era um trapaceiro: Bertram não tinha nenhuma intenção de fazer caso do persuasivo irlandês, tinha intuído suas intenções assim que o viu, e estava muito satisfeito consigo mesmo por não ser já um ingênuo, pelo contrário: era um tipo muito astuto. Uma amena e cordial noite nas salas de Scunthorpe, com várias mãos de whist seguidas de um excelente jantar, convenceram — no de que tinha talento natural para as cartas, convicção que não se viu em absoluto afetada pelas vicissitudes da fortuna que seguiram a essa iniciação. Era insensato freqüentar as casas de jogo, é claro, mas quando tinha amigos na cidade,
tinha uma infinidade de lugares inócuos onde desfrutar praticando todo tipo de jogos, desde o whist até a roleta. Em geral, Bertram considerava que se defendia nas mesas. E estava seguro de que tinha sorte no turf, porque ganhou várias vezes seguidas. Adquiriu o hábito de passar por Tattersall’s; às vezes limitava — se a ver como os cavalheiros apostavam, mas outras vezes jogava também. Com freqüência acompanhava Bochecha Wivenhoe, fosse para assessorá — lo na compra de um cavalo, para assistir a um leilão de cavalos de alguém que se tinha arruinado ou para apostar em alguma corrida. Uma vez que se habituou a ir a Tattersall’s com Wivenhoe, não pôde resistir a tentação de pagar um guinéu para obter o privilégio de entrar na sala reservada aos sócios; e quando ganhou a confiança do corretor de apostas de milord, pôde se limitar a anotar suas apostas e esperar que chegasse no dia das liquidações para receber os ganhos ou pagar as perdas. Todo aquilo resultava tão gratificante e emocionante que lhe subiu à cabeça, e ainda alguma vezes o pânico se apoderava dele e sentia que começava a cair a uma velocidade que já não podia controlar, a ansiedade desaparecia quanto Bochecha lhe pedia que o acompanhasse para ver um esplêndido cavalo, ou Jack Carnaby o convidava ao teatro no Fives — court ou no Daffy Clube. Nenhum de seus novos amigos parecia permitir que as questões monetárias lhes tirassem o sonho e todos davam a impressão de estar constantemente à beira da ruína, ainda que, graças a alguma aposta afortunada ou a determinado lance de dados, conseguiam levantar cabeça. De maneira que Bertram começou a acostumar — se sem dar — se conta a esta forma de vida, e a pensar que era próprio de provincianos pensar que uma insolvencia passageira fosse algo mais que um simples motivo de zombaria. Não lhe ocorreu pensar que os comerciantes que ao que parecia concediam crédito ilimitado a Wivenhoe e a Scunthorpe não teriam a mesma consideração com um jovem de cuja solvencia não possuíam garantias. A primeira insinuação que formularam referente a essa diferença de opinião chegou na forma de uma insana fatura do senhor Swindon. No princípio Bertram não podia achar que tivesse gastado tanto dinheiro em dois trajes e um abrigo, mas não via a forma de discutir as cifras que lhe tinha apresentado o senhor Swindon. Então com ar displicente perguntou a Scunthorpe que fazia quando não podia pagar a fatura de seu alfaiate e este lhe contestou que simplesmente contratava um novo alfaiate no mesmo instante. No entanto, por muito nas nuvens que estivesse Bertram, ainda conservava suficiente sensatez para saber que esse recurso não podia se aplicar no seu caso. Tentou livrar — se da desagradável pressão que sentia no peito dizendo que nenhum alfaiate esperava cobrar de imediato, mas Swindon não parecia familiarizado com essa norma. Passada numa semana apresentou — lhe a fatura pela segunda vez, acompanhada de uma carta muito cortês que lhe indicava que ficaria muito agradecido que a quitasse sem demora. E então, como se tivessem posto de acordo com Swindon, outros comerciantes começaram a enviar as faturas pendentes a Bertram, de maneira que em pouco tempo uma das gavetas da cômoda do dormitório do jovem transbordava de notas de cobranças. Conseguiu liquidar algumas, o qual o fez se sentir muito melhor, mas quando começava a se convencer de que com ajuda de uma judiciosa aposta ou de uma breve maré de boa sorte poderia saldar por completo suas dívidas, um educado mas inflexível cavalheiro foi visitá — lo, esperando durante uma hora que Bertram voltasse de um passeio pelo parque e então lhe apresentou uma fatura que segundo ele tinha passado por alto. Bertram conseguiu livrar — se do cavalheiro, não sem antes lhe entregar por conta uma quantidade de dinheiro que lhe fazia muita falta, depois de uma discussão que não passou desapercebida ao garçon da taberna da pousada. Na manhã seguinte, apresentaram — lhe a fatura de sua estadia no Red Lion. A situação piorava por momentos, e Bertram só via uma forma de evitar o desastre. Parecia — lhe muito bom que Scunthorpe lhe aconselhasse não apaixonar — se pelas corridas nem pelo jogo: o que seu amigo não entendia era
que o simples fato de se abster desses passatempos não resolveria seus problemas. A Scunthorpe respaldavam — no os tutores que, por muito que o aborrecessem, o tirariam do aperto se alguma vez chegava a uma situação crítica. Ao contrário, era impensável a Bertram que fosse a seu pai a procura de ajuda: antes disso, pensou, cortaria o pescoço, porque não só a mera idéia de apresentar semelhante coleção de faturas ao pároco o horrorizava, como também porque era muito consciente de que seu pai teria tido grandes dificuldades para liquidá — las. Também não teria servido de nada que vendesse seu relógio, nem o anel que tinha comprado nem a corrente que pendurava em sua cintura: de forma inexplicável, seus gastos tinham crescido ainda mais desde que começara a freqüentar a companhia de jovens modernos. Scunthorpe o fez descartar a vaga idéia de visitar a um prestamista assinalando — lhe que, as multas que eram impostas aos que emprestavam dinheiro a juros para menores de idade eram muito severas, nem sequer o rei dos judeus concordaria em adiantar a menor quantidade de dinheiro a um atribulado menor de idade. Acrescentou que ele mesmo o tinha tentado uma vez, mas que os prestamistas eram astutos como raposas e com um único olhar podiam adivinhar sua idade. Preocupou — se, ainda que não ficasse surpreso, quando se inteirou de que Bertram se tinha endividado, e se o trimestre não tivesse estado tão avançado, sem dúvida alguma teria ajudado a seu amigo, porque seus mais íntimos amigos asseguravam que Scunthorpe era uma pessoa generosa a quem não importava emprestar seu dinheiro. Por desgraça, nesse momento achava — se sem nenhum e por experiências passadas sabia que se pedisse um adiantamento a seus tutores só obteria a pouca compassiva recomendação de se retirar para seu sítio de Berkshire, onde sua mãe recebê — lo — ia com os braços abertos. Há que reconhecer que Bertram ter — se — ia mostrado relutante em aceitar ajuda econômica de qualquer de seus amigos, porque não tinha possibilidade de reembolsá — los quando regressasse a Yorkshire. Só tinha uma forma de sair do aperto: recorrer ao turf e às mesas. Sabia que era perigoso, mas como não imaginava que fosse possível se achar em pior situação, valia à pena correr o risco. Achava que o melhor que podia fazer, uma vez saudadas as suas dívidas, era dar por finalizada sua visita a Londres, porque apesar de ter desfrutado muito de certos aspectos de sua viagem, não gostava nada da insolvência, e começava a se dar de conta de que se ficasse continuamente à beira de um desastre financeiro não demoraria em ficar doente dos nervos. Sua entrevista com um implacável credor tinha — o impressionado muito: a não ser que se recuperasse rapidamente, logo iam persegui — lo os agentes da lei, como tinha profetizado Scunthorpe. Justo então aconteceram duas circunstâncias que pareceram lhe devolver a esperança de uma libertação. Uma noite afortunada jogando o faraó com apostas modestas animou — o a pensar que sua sorte tinha voltado a mudar; e Bochecha Wivenhoe, que tinha bons contatos em Tattersall’s, lhe passou o nome de um cavalo que não podia falhar em determinada corrida. Parecia que a Providência se tinha decidido a ajudar a Bertram. Teria sido uma loucura não apostar uma soma considerável nesse cavalo, porque se ganhasse solucionaria suas dificuldades de um único golpe, e Bertram disporia de dinheiro suficiente para pagar o bilhete de regresso a Yorkshire na diligência. Quando Wivenhoe apostou, Bertram o imitou, e tentou não pensar no aperto em que se encontraria no dia das liquidações se aquele infalível jockey se tivesse equivocado, pela primeira vez na vida, ao emitir seu prognóstico.
— Se queres, Bertram, esta noite posso levar — te ao Nonesuch Clube — sugeriu Wivenhoe quando saíam juntos da sala reservada aos sócios — . Causa furor e é muito exclusivo, mas se vens comigo deixar — te — ão entrar.
— Oque se joga ali?
— Bom, sobretudo o faraó e aos dados. Acabam de abri-lo este ano, porque Watier estava se tornando muito aborrecido. Dizem que não durará muito; nunca voltou a ser o mesmo desde que Brummel teve que sair fugido. O Nonesuch é um lugar estupendo, asseguro — te. Para começar, não há muitas normas, e ainda que a maioria dos participantes façam grandes apostas, os donos fixaram a aposta mínima em vinte guinéus, e só há uma mesa de faraó. Ali joga — se limpo, não como em muitos cassinos, e se queres jogar os dados, tu mesmo eleges o crupier entre teus acompanhantes, e sempre há alguém disposto a oferecer as apostas. Não há crupiê assalariados nem porteiros como os que existem no Great-Go, pareça mais um hotel que um clube social. A idéia é convertê — lo num lugar de reunião agradável, sem multidões, e suprimir essas normas e regras que resultam tão tediosas. Por exemplo, a banca é presidida pelos próprios jogadores, por turnos: Beaumaris, Long Wellesley Pole, Golden Ball e Petersham. Asseguro — te que é vais gostar! — Sim, gostaria de ir contigo, mas... Veja, a verdade é que agora mesmo não estou com muito dinheiro. Tive uma má sorte!
— Bah, não te preocupes — disse seu amigo com desenvoltura — . Já te disse que não tem nada que ver com Watier. A ninguém importa se apostas vinte guinéus ou cem. Vamos, anima-te! Para que mude tua sorte, deves perseverar. Esse é um dos conselhos que me deu o meu tutor, e asseguro que tem razão.
Bertram estava indeciso, mas como já se tinha comprometido a cear com lord Wivenhoe no Long’s Hotel, não era necessário que lhe desse uma resposta definitiva ao convite até que tivesse pensado mais demoradamente. Milord assegurou que podia confiar nele, e por enquanto deixaram assim. Era lógico que a prolongada estadia de Bertram em Londres produzisse inquietude em sua irmã. Arabella estava muito preocupada, porque ainda que Bertram não lhe tivesse contado, pelo aspecto de seu irmão não lhe cabia dúvida de que estava gastando bem mais dinheiro do que as cem libras que ganhara jogando na loteria. Quase nunca o via, e quando se encontravam não gostava nada de seu aspecto. Poucas horas de sonho, a bebida e as preocupações estavam cobrando o seu preço. No entanto, quando Arabella lhe assinalou que tinha muito má cara e lhe suplicou que voltasse a Yorkshire, Bertram respondeu, sem faltar à verdade, que ela também não estava muito radiante. E tinha razão: Arabella não tinha tão boa cor, e seus olhos, com marcadas olheiras, começavam a parecer demasiado grandes para o seu rosto. Lord Bridlington, que também o tinha observado, atribuiu esses sintomas às desmesuradas exigências da temporada londrina, e fez um sermão sobre a insensatez das mulheres com excessivas ambições sociais. Sua mãe, que já tinha observado que sua protegida não saía a passear pelo parque com o senhor Beaumaris com tanta frequência, e em que a jovem evitava as visitas do cavalheiro a sua casa, se mostrou mais persistente em suas deduções, mas não conseguiu que sua afilhada confiasse nela. Dissesse o que dissesse Frederick, lady Bridlington estava convencida de que o Incomparável estava sinceramente interessado por Arabella, e não entendia o que podia estar impedindo a jovem de aceitar suas insinuações. Por sua vez, Arabella, vaticinando que seus motivos resultariam inexplicáveis para a sua boa madrinha, preferia não os revelar.
Também ao Incomparável não escapara que sua reticente amada não tinha nem o bom aspecto nem o bom humor de costume, e também se tinha inteirado de que ultimamente tinha recusado três vantajosas propostas de casamento, porque os pretendientes recusados não ocultavam que
suas esperanças se tinham frustrado. Arabella não tinha querido dançar com ele na última vez que se encontraram no Almack’s, mas durante a noite o senhor Beaumaris a tinha surpreendido em três ocasiões seguindo — o com o olhar.
Beaumaris, acariciando cadenciosamente a orelha torta de Ulisses — um processo que reduzia ao cão a um estado de feliz idiotice — , disse, pensativo:
— Na verdade é triste pensar que a na minha idade eu possa ser tão tonto... Ulisses, extasiado e com os olhos entreabertos, soltou um suspiro que seu amo decidiu interpretar como sinal de entendimento.
— E se é filha de um comerciante? — especulou — . É que devo honrar o meu nome, sabes? Poderia ser ainda pior, e sem dúvida sou demasiado velho para perder a cabeça por uma cara bonita! — Beaumaris tinha interrompido seus mimos, de modo que o animal empurrou — o com o focinho. Seu amo seguiu acariciando a danificada orelha e disse — : Tens razão: não é seu belo rosto o que me atrai. Achas que lhe sou absolutamente indiferente? Não se atreve a me confessar a verdade — Não pode ser verdade, Ulisses, não pode ser verdade! Vamos pensar o pior. Ambiciona adquirir um título — Se é assim, então por que lhe dispensou Charles? Achas que aponta ainda mais alto? Não acho que espere que Wivenhoe a peça! E também não acho que tuas suspeitas sejam corretas, Ulisses. — Este, advertido pelo tom severo de seu amo, o olhou com receio. O senhor Beaumaris pegou — lhe o focinho com a mão e agitou — o suavemente — . Que me aconselhas? — perguntou — lhe — . Acho que cheguei ao limite. Deveria... — Interrompeu — se, pôs — se em pé de um salto e deu uma volta pela sala — . Que tonto sou! Claro! Ulisses, teu amo é um idiota! O animal levantou — se, pôs as patas nas elegantes calças e ladrou em sinal de protesto. Aqueles passeios pela sala, quando o senhor Beaumaris podia se dedicar a coisas bem mais interessantes, não eram de seu agrado.
— Desça! — ordenou — lhe seu amo — . Quantas vezes tenho que te dizer que não macules a pureza de minhas calças me tocando com tuas ignóbeis e seguramente sujas patas? Ulisses, tenho que ir! Talvez o cão não entendesse suas palavras, mas deu perfeita conta de que aquele momento de prazer tinha chegado a seu fim, assim tombou em atitude resignada. O que fez Beaumaris a seguir lhe produziu um vago desassossego, pois ainda que não conhecesse a utilidade dos baús de viagem, seu instinto lhe advertia de que não pressagiavam nada de bom para os cães. Mas esses incipientes temores não foram nada comparados com a perplexidade, o desgosto e a consternação que sofreu o impecável senhor Painswick quando soube que seu patrão tinha intenção de sair da cidade sem o apoio e os experientes cuidados de um criado de quarto a que todos os janotas de Londres tinham tentado em alguma ocasião sobornar a fim de que deixasse de trabalhar para ele. Tinha aceitado com tranquilidade a notícia de que seu amo ia a ausentar — se da cidade durante mais ou menos uma semana, e já estava preparando mentalmente a roupa adequada para uma estadia em Wigan Park, ou em Woburn Abbey, ou em Belvoir, ou talvez em Cheveley, quando lhe foi revelado a horrorosa realidade.
— Inclui em minha bagagem camisas e gravatas suficientes para sete dias — especificou Beaumaris — . Viajarei com traje de montar, mas deves meter no baú roupas para trocar, pois vou precisar. Não vais vir comigo.
O significado dessas palavras demorou um minuto inteiro para penetrar na mente do criado de quarto. Estupefato, não pôde fazer mais que ficar olhando o senhor. — Diga que tenham preparado meu cupé e os cavalos às seis em ponto — ordenou Beaumaris — . Clayton pode acompanhar — me nas duas primeiras etapas, e voltar depois com os cavalos. — Entendi bem, senhor? — perguntou Painswick quando recuperou o fala — . Não me vais levar? — Entendeste — o bem.
— Posso perguntar — lhe, senhor, quem o vai atender? — inquiriu Painswick com ameaçadora serenidade.
— Atender-me-ei a mim mesmo — respondeu seu patrão.
Painswick concedeu a esse gracejo o sorriso superficial que merecia. — Ah, sim — E teria a bondade de dizer-me quem vai passar a sua jaqueta? — Suponho que nas casas de posta estão acostumados a passar jaquetas — respondeu Beaumaris com indiferença.
— Se a isso o senhor chama de passar — Se ficará ou não satisfeito com o resultado, senhor, é, se me permite dizer, outra questão.
Então o senhor disse algo tão asombroso que lhe produziu, como contaria mais tarde a Brough, um espasmo muito desagradável:
— Suponho que não ficarei satisfeito, mas não importa.
Painswick olhou — o inquisitivamente. Seu senhor não parecia alguém à beira do delírio, mas não cabia dúvida de que o caso revestia — se de gravidade. Dirigiu — se a ele com o tom de quem pretende tranquilizar a um paciente difícil.
— Creio, senhor, que o melhor será que o acompanhe.
— Já te disse que não preciso. Podes tomar — te umas férias.
— Sabe muito bem, senhor, que não as iria desfrutar — replicou Painswick, que sempre passava as férias atormentado por tenebrosas visões de seu substituto enviando ao senhor Beaumaris a roupa mau passada, as botas sem lustro ou, pior ainda, uma mancha de barro nas bordas da jaqueta — . Não quero lhe ofender, senhor, mas não pode ir só.
— Também não desejo te ofender, Painswick, mas estás excedendo — te em teus cuidados. Posso admitir que te ocupas muito bem de minha roupa (se não o fizesses, não seguiria te empregando), e que o segredo para dar esse brilho as minhas botas, que com tanto estardalhço guardas, faz que não desmereças de todo o ezorbitante salário que te pago; mas se imaginas que não sei me vestir sem tua ajuda, tua capacidade de se auto enganar deve de ser muito maior do que suspeitava. Em algumas ocasiões (e só para te agradar!) permiti que me barbeasses; deixo — te ajudar — me a pôr minhas as jaquetas, e dar — me as gravatas. Mas jamais permiti que me ditasses o que tinha que pôr, nem que me penteasse, nem que dissesses uma única palavra enquanto estava amarrando a
gravata. Me virarei perfeitamente sem ti. Mas tens que pôr no baú suficientes gravatas, caso estrague alguma.
Painswick aguentou os insultos, mas fez uma última e desesperada tentativa de impor sua vontade: — Suas botas, senhor! Não pensará utilizar um descalçador!
— Suposto que não. Um servente as tirará.
O criado de quarto soltou um rosnado.
— Com as mãos sujas, senhor! E só eu sei o quanto custa tirar a marca de um polegar de suas botas! — Obrigar — lhe — ei a usar luvas — prometeu Beaumaris — . Não ponhas meus calções curtos: esta noite vou ir ao Nonesuch Clube. — Para atenuar seu aspereza, acrescentou — : E não me esperes levantado, mas me acorda amanhã às cinco em ponto.
Painswick respondeu com voz trêmula por causa da emoção contida: — Se decide prescindir de mim em sua viagem, senhor, estou seguro de que não sou ninguém para o criticar, e também não vou rebaixar — me tanto para discutir com o senhor, sejam quais forem os meus sentimentos. Mas nada conseguirá me convencer para que me retire de meu posto antes de lhe ter ajudado a se deitar, senhor, e de ter recolhido sua roupa para me encarregar dela. — Faz o que mais te agrade — respondeu Beaumaris, impassível — . Deus livre — me de interferir em tua determinação de converter — te em mártir por minha causa.
Painswick limitou — se a lançar — lhe um olhar de profunda reprovação, pois, como mais tarde confiaria a Brough, temia formular algum comentário fora de lugar. Esteve a ponto, confessou, de renunciar a continuar um dia a mais no serviço de uma pessoa que ignorava quais eram suas obrigações e as de seu criado de quarto. Brough, que sabia perfeitamente que nada teria podido separar seu colega do senhor Beaumaris, se mostrou compreensivo com ele e sacou uma garrafa de porto de seu patrão. As propriedades curativas do porto, misturado com uma quantidade prudente de gim, não demoraram em exercer um efeito benéfico sobre os feridos sentimentos de Painswick, e comentando que não tinha nada como um copo dessa mistura para reanimar alguém, se pôs a discutir com seu companheiro e rival todos os possíveis motivos que podiam explicar a precipitada e indecorosa conduta de seu patrão.
Enquanto, Beaumaris, após cear em Brooks’s, cruzou St. James’s Street para Ryder Street, onde se encontrava o Nonesuch Clube. E quando, um pouco mais tarde, Bertram Tallant entrou na sala de faraó acompanhado de lord Wivenhoe, apresentou — se uma excelente ocasião para valorizar o que vinha fazendo em Londres o emprendedor e jovem parente da señorita Tallant. Duas circunstâncias tinham levado Bertram a decidir — se em visitar o clube: a primeira, a notícia de que aquele seguro ganhador, Vitorioso, não se tinha classificado em sua corrida; e segundo, o achado de uma nota de vinte libras entre a pilha de faturas da gaveta de sua cômoda. Bertram tinha passado uns minutos contemplando — a atordoado, sem perguntar sequer como era possível que tivesse perdido. Tinha sofrido um terrível revés, porque estava convencido de que Vitorioso ia ganhar, e não se tinha preparado seriamente para apresentar — se ante seu credor em Tattersall’s na segunda — feira seguinte se o cavalo não se colocasse. A impossibilidade de apresentar — se
irrompeu nele com um efeito devastador; estava muito assustado e o única coisa que via era a horrível imagem da prisão de Fleet, onde sem dúvida alguma definharia pelo resto de seus dias, pois não lhe parecia que seu pai pudesse fazer mais por um filho tão depravado do que apagar seu nome da árvore genealógica e proibir que voltassem a pronunciar seu nome na reitoria. Destroçado por esse último e devastador golpe, chamou ao camareiro e pediu uma garrafa de conhac. Então inteirou — se de que na taberna tinham dado ordens de não lhe fornecer nenhum licor se não o pagasse na hora. Vermelho de vergonha, sacou o último punhado de moedas do bolsinho da calça e jogou — as sobre a mesa.
— Traga — me, maldito seja! E podes providenciar a mudança!
Esse gesto aliviou — o um pouco, e o primeiro copo de conhac, que tomou de um gole, teve um efeito ainda mais alentador. Voltou a olhar a nota de vinte libras que ainda guardava. Recordou que Bochecha tinha dito que no Nonesuch a aposta mínima era essa quantia. A coincidência imprecionava, sem dúvida, demasiado excepcional para passá — la por alto. O segundo copo de coñac convenceu — o de que tinha na mão sua última oportunidade para se salvar de uma ruína e uma desgraça irreparáveis.
Como não estava acostumado a beber conhac puro, antes de se dirigir ao Long’s Hotel se viu obrigado a beber um copo de cerveja negra para rebater os efeitos do licor. Isso o ajudou a clarear um pouco, e a caminhada até Long’s o deixou — o num estado tolerável para que fizesse as honrsa a umas chuletas maintenon e ao famoso cotovelo Queensberry, a especialidade do hotel. Decidiu deixar — se guiar pelo destino. Apostaria s vinte guinéus em uma carta escolhida a esmo: se ganhasse, interpretá — lo — ia como um sinal de que sua sorte, por fim, tinha mudado, e seguiria jogando até que tivesse coberto suas dívidas; se perdia, sua situação não teria degenerado muito e, no pior dos casos, poderia cortar o pescoço.
Quando lord Wivenhoe e ele entraram na sala de faraó do Nonesuch, Beaumaris, que ocupava nesse momento o posto de banqueiro, acabava de completar uma partilha. Levantou a vista quando um camareiro lhe pôs a sua frente um baralho novo, e olhou para a porta. A partida de dados que estava sendo jogada em outra sala tinha feito sair do recinto privado a todos os decanos do clube exceto um, lord Petersham, que estava mergulhado num de seus momentos de profunda abstração.
Maldito Petersham!, disse Beaumaris, que se encontrava num dilema. Por que terá elegido precisamente esse momento para pensar nas musaranhas?
Esse afável, mas distraído cavalheiro, ao ver lord Wivenhoe, sorriu — lhe com a vacilante expressão de quem parece recordar já ter visto antes determinado rosto. Fixou — se em um jovem desconhecido que tinha entrado no sagrado recinto do clube, mas não deu mostras disso. O senhor Warkworth lançou um olhar fulminante a Bertram, e depois olhou para a cabeceira da mesa. Lord Fleetwood, que estava enchendo seu copo, franziu o cenho e olhou também para o Incomparável. Este ordenou ao camareiro que lhe levasse outra garrafa de borgonha. Teria bastado uma palavra sua para que o desconhecido não tivesse outro remédio que não se despedir e sair da sala com toda a dignidade que pudesse reunir. Essa era a questão: o jovem ficaria humilhado, e não se podia confiar em que esse néscio, Wivenhoe, passasse por alto a rejeição. Era bem mais provável que
armasse um escândalo pela exclusão de um amigo seu, colocando o pobre Bertram numa posição ainda mais intolerável.
Lord Wivenhoe, procurou assentos para ele e Bertram ao redor da mesa, e começou a apresentar a seus vizinhos. Um deles era Fleetwood, que saudou Bertram com uma breve inclinação e voltou a olhar com a fronte franzida ao Incomparável; o outro, como a maioria dos cavalheiros que tinha ali, parecia disposto a aceitar a qualquer amigo de Bochecha sem fazer perguntas. Um dos cavalheiros mais velhos murmurou algo sobre os meninos de colo, mas os recém chegados não conseguiram ouvir.
Beaumaris olhou os presentes e disse com calma:
— Façam suas apostas, cavalheiros.
Bertram, que tinha trocado sua nota por um modesto cartucho, o empurrou com um rápido movimento para a rainha representada no pano. Os outros jogadores estavam apostando; lord Petersham suspirou fundo, empurrou vários cartuchos enormes e colocou — os junto às cartas que tinha elegido; então sacou uma caixa de rapé delicadamente esmaltada do sua bolso e tomou uma pitada de seu melhor rapé. Bertram sentia umas fortes, quase dolorosas pulsações na garganta; engoliu saliva e fixou a vista na mão de Beaumaris, pousada sobre o baralho que tinha a sua frente. «O garoto tem estado fazendo suas estripulias — pensou este — . Não estranharia que se tivesse endividado até as sobrancelhas. Com que demônios teria ocorrido a Bochecha Wivenhoe trazê — lo aqui?»
Todas as apostas estavam feitas; Beaumaris voltou a primeira carta e a poz à direita do baralho. — Voltei a queimar — me! — observou Fleetwood, uma de cujas apostas correspondia à que acabava de extrair o banqueiro.
Beaumaris virou a carta e a pôs à esquerda do baralho. A rainha de ouros dançou ante os olhos de Bertram. Por um instante não pôde senão olhar fixamente para a carta; quando por fim levantou a vista e encontrou os frios olhos de Beaumaris, esboçou um trêmulo sorriso. Esse sorriso indicou a este tudo quanto precisava saber, e não contribuiu para melhorar as suas perspectivas da noite. Pegou o rastilho e empurrou dois cartuchos de vinte guinéus para o outro lado da mesa. Lord Wivenhoe pediu vinho para ele e para seu amigo, e dispôs a se entregar a partida com sua costumeira imprudência.
Durante meia hora, a sorte esteve do lado de Bertram, e Beaumaris começou a abrigar esperanças que sairia da mesa convertido em vencedor. O jovem Tallant estava bebendo muito e a excitação coloria suas faces; tinha os olhos, nos quais se refletia a luz das velas, fixos nas cartas. Lord Wivenhoe, sentado a seu lado, seguia perdendo, ainda que isto não lhe importasse nem um pouco. Não demorou em começar a assinar promissórias e as entregar ao banqueiro. Bertram observou que outros cavalheiros faziam o mesmo. Em poucos momento, o senhor Beaumaris tinha diante de si um montoncito de papéis.
A sorte mudou. Bertram levou a cabo fortes apostas, e a banca ganhou três vezes seguidas. Só lhe sobraram dois cartuchos, que apostou simultaneamente, convencido de que a banca não podia
ganhar pela quarta vez consecutiva. Mas ganhou a banca, quando para sua própria surpresa, Beaumaris levantou uma carta idêntica à anterior.
A partir desse momento, aceitou, com expressão indiferente, as sucessivas promissórias de Bertram. Seria impossível dizer ao rapaz que não pensava aceitar nenhum outro vale seu, nem que o melhor que podia fazer era ir para casa. Ademais, não estava seguro de que Bertram iria aceitá — lo. O jovem achava — se possuído pela fiebre do jogador: apostava de maneira imprudente, convencido a cada vez que tinha um golpe de sorte de que a fortuna voltava a lhe sorrir, quando perdia, de que a má sorte não podia durar muito. Beaumaris duvidava que Bertram tivesse a mais remota idéia de quanto dinheiro já devia à banca.
A noite interrompeu — se antes do habitual, pois Beaumaris tinha advertido a seus camaradas que não ficaria além das duas, e lord Petersham disse, entre suspiros, que essa noite não desejava ser o banqueiro. Wivenhoe, sem deixar-se intimidar por suas perdas, exclamou despreocupadamente: — Voltei a ficar sem nenhum! Quanto te devo, Beaumaris?
Este lhe entregou as promissórias sem fazer comentários. Enquanto milord somava em silêncio as quantidades, Bertram, de cujas faces tinha desaparecido todo rastro de rubor, ficou sentado olhando os papéis que o senhor Beaumaris ainda tinha diante de si. — E eu? — perguntou com voz entrecortada.
— Limpo! Fiquei limpo! — exclamou Wivenhoe sacudindo a cabeça — . Enviar-te-ei um cheque de meu banco, Beaumaris. Esta não era minha noite!
Os outros cavalheiros estavam calculando suas perdas; nos ouvidos de Bertram ressoava sua animada conversa. Comprovou que seus papéis ascendiam a seiscentas libras, uma quantidade que lhe parecia elevadísima, quase incrível. Se recompôs, graças ao orgulho que foi em seu resgate, e se pôs em pé. Ainda que estivesse muito pálido e seu aspecto fosse excessivamente infantil, manteve a cabeça muito alta e disse ao senhor Beaumaris com serenidade:
— Talvez deva fazer — lhe esperar uns dias, senhor. Não disponho de crédito bancário em Londres, mas mandarei alguém a Yorkshire a me procurar fundos.
«Que faço agora? — perguntou — se Beaumaris — . Dizer ao rapaz que sei muito bem que suas promissórias não têm nenhum valor — Não: armaria um escândalo. Ademais, o susto lhe fará bem.» — Não há pressa, senhor Anstey. Saio da cidade amanhã e passarei uma semana fora. Venha ver — me na minha casa na próxima quinta — feira. Qualquer um indicará minha direção. Onde se hospeda?
— No Red Lion, na City, senhor — respondeu mecanicamente Bertram. — Robert! — chamou — o Fleetwood do outro extremo da sala, onde estava discutindo de forma acalorada com o senhor Warkworth — . Vêem a confirmar o que estou a dizer, Robert! Robert! — Vou em seguida — repondeu Beaumaris. Reteve Bertram um momento mais — : Não falhe! Espero — o na quinta — feira.
Considerou inapropiado acrescentar mais alguma coisa, porque estavam rodeados de gente e era evidente que o orgulho do garoto não toleraria uma insinuação de que realmente o senhor Beaumaris pensava fazer com suas dívidas de jogo era as lançar ao fogo. Mas Beaumaris seguia carrancudo quando chegou a sua casa. Ulisses, brincando e retorcendo — se ante seu amo, viu que este não prestava nenhuma atenção às boas — vindas que lhe dedicou, assim latiu. Beaumaris agachou — se e acariciou — o distraidamente.
— Calado! Não estou com humor para estas demonstrações de afeto. Veja — Não me equivoquei quando te disse que não estavas destinado a ser a pior de minhas responsabilidades. Acho que deveria ter tranquilizado ao garoto: com os jovens de sua idade nunca se sabe, e não gostei nada de sua expressão. Estava destroçado, disso não há dúvida. Por outro lado, não penso sair outra vez à rua a estas horas da madrugada. Uma noite de reflexão não lhe fará nenhum dano. Pegou o candelabro da mesa da sala de visita, levou — o ao seu estudo e o pôs sobre o a escrivaninha junto à janela. Ao ver que seu amo se sentava e abria a escrivaninha, o cão expressou seus sentimentos emitindo um profundo bochecho.
— Vá dormir! — ordenou Beaumaris; ato seguido molhou uma pena no tintero e pegou uma folha de papel.
Ulisses se deitou no chão, gemeu um par de vezes, recordou que tinha uma tarefa pendente e se empenhou em limpar meticulosamente as patas dianteiras.
Seu amo escreveu umas breves linhas, espalhou areia sobre a folha, sacudiu o excesso de areia e quando se dispunha a dobrar o papel, se deteve. Ulisses olhou — o, esperançoso. — Sim, em seguida. Temos que enganar o oficial de justiça...
Deixou a folha na mesa, sacou uma grande carteira do bolso da qual extraiu uma nota de cem libras. Dobrou — a junto com a carta, selou a carta com um sinete e anotou a direção. Então se levantou, e para alívio de Ulisses ficou claro que ainda não pensava em se deitar. O animal, que dormia sempre no tapete que tinha em frente a sua porta, e que tinha adotado a rotina de pôr em dúvida todas as manhãs o direito de Painswick a entrar nesse sagrado recinto, subiu a escada na frente de seu amo. Beaumaris encontrou seu criado de quarto esperando — o; a expressão de seu semblante era uma curiosa mistura de sensibilidade ferida, devoção ao dever e prolongado sofrimento. Deu — lhe a carta que acabava de selar e disse com aspereza: — Encarrega — te de que entreguem esta carta ao senhor Anstey, no Red Lion da City, amanhã pela manhã. E que a entreguem em mãos! — especificou.
* * *
Capítulo 14
A notícia da calamidade sobrevenida a Bertram demorou três dias para chegar aos ouvidos de sua irmã. Esta lhe tinha escrito uma nota para lhe pedir que se encontrasse com ela junto à porta de Bath de Green Park, que tinha enviado por um mensageiro. Ao ver que seu irmão não foi ao encontro nem respondeu a seu misiva, começou a se preocupar seriamente, e estava pensando como podia ir ao Red Lion sem informar a sua madrinha quando às três em ponto da tarde o senhor Scunthorpe apresentou seu cartão. Arabella pediu ao mordomo que conduzisse o visitante ao salão e desceu de imediato de seu dormitório para o receber.
A jovem demorou um momento para notar que Scunthorpe tinha um ar prodigiosamente solene. Como estava demasiadamente impaciente para saber algo de Bertram, foi para ele de maneira impulsiva e lhe estendeu a mão enquanto exclamava:
— Quanto me alegro de que tenha vindo a me visitar, senhor Scunthorpe! Estou muito preocupada com meu irmão. Você sabe algo dele — Ai! Não me diga que está doente! Ele a saudou inclinando a cabeça, prigarreou e lhe apertou a mão com nervosismo. — Não, senhorita Tallant — contestou com voz um tanto rouca — . Não está exatamente doente. Arabella lhe examinou o rosto, e percebeu que seu semblante espelhava uma profunda tristeza e de repente sentiu uma funda apreensão.
— Não me irá dizer que está... morto, não é verdade? — — balbuciou. — Não, não está morto — respondeu Scunthorpe em um tom muito pouco tranquilizador — . Suponho que posso afirmar que não é tão grave assim. Mas também não vou negar que possa morrer, se não somos prudentes, porque quando alguém se põe a... Mas isso não importa! — O que não importa? — exclamou Arabella, alarmada — . Mas que passou — Rogo — lhe, diga — me agora mesmo!
Scunthorpe olhou — a com nervosismo.
— Será melhor que pegue os sais — sugeriu — . Não queria desagradar — lhe. Não vai gostar do que lhe vou dizer. Talvez devesse tomar — se uma infusão de camomila. Chame um criado! — Não, não preciso tomar nada! Não chame ninguém! Só me livre da agonia desta incerteza — implorou Arabella agarrando com ambas mãos ao braço de uma cadeira. O jovem voltou a pigarrear.
— Pareceu-me que o mais adequado era vir visitá-la Senhorita Tallant, encantar — me — ia poder ajudá-la, mas não sei o que fazer. Por enquanto, é claro. Temos que resgatar o pobre Bertram do rio!
— Do rio? — perguntou Arabella, horrorizada.
Scunthorpe compreendeu que a jovem não o tinha entendido e se apressou a retificar. — Não, não, não se afogou — asseguro-lhe — . Mas está com água até pescoço! — Que Bertram está com água ao pescoço? — repetiu ela com perplexidade. Scunthorpe assentiu.
— Exato. O pobre está nas últimas. Completamente derrubado.
Arabella estava tão desconcertada que não sabia se seu azarado irmão tinha caído ao rio, se tinha sido vítima de alguma agressão ou se padecia algum tipo de doença. Tinha — lhe acelerado o pulso e os inquietantes pensamentos que a assaltavam a impediam de falar com clareza. — Está muito ferido? Levaram-no ao hospital? — conseguiu dizer.
— Não, não é ao hospital que o vão levar, senhorita Tallant. O mais provável é que o ponham na cadeia.
Arabella evocou a horrível imagem de uma masmorra e esteve a ponto de perder o sentido; ficou olhando de cima a baixo a Scunthorpe e repetiu com um fio de voz: — A cadeia?
— Sim, é possível que acabe na prisão de Fleet — corroborou Scunthorpe sacudindo a cabeça com ar compungido — . Eu já lho adverti, mas não quis me escutar. A verdade é que se tivesse se saído bem, seu irmão teria podido saldar suas dívidas e o assunto teria ficado resolvido. Mas não foi assim. Se quer que lhe diga o que penso, nunca sai bem.
A esencia desse discurso, que Arabella foi digerindo pouco a pouco, lhe devolveu algo de cor a suas faces. A jovem derrubou — se numa cadeira, com as pernas tremendo violentamente. — Está dizendo-me que meu irmão se tem endividado?
Ele a olhou com expressão surpreendida.
— Mas se já lhe tinha explicado senhorita Tallant!
— Deus meu, como podia adivinhar que... — Ai! Já sabia que aconteceria algo assim! Agradeço-lhe muito que tenha vindo me contar, senhor Scunthorpe. Fez você muito bem. O jovem se ruborizou.
— Alegro-me de ter-lhe sido de utilidade.
— Tenho que ir vê-lo! — decidiu Arabella — . Seria tão amável de me acompanhar? Não quero levar a minha criada numa situação dessas, e talvez não seja conveniente que vá sozinha. — Não, é claro que não é conveniente. E mais: não deve ir, senhorita Tallant. Não é um lugar para uma dama refinada como você. É um bairro horrível! Envie — lhe uma mensagem.
— Nem pensar! Acha que não tenho estado nunca na City? Espere — me aqui; só tenho que pegar um chapéu e um xale. Podemos pedir um carro de aluguel e chegar ali antes que lady Bridlington desça.
— Sim, mas... Veja, senhorita Tallant, é que seu irmão não está no Red Lion — disse Scunthorpe, consternado.
Arabella, que se tinha levantado de um pulo da cadeira e se precipitava para a porta, se deteve. — Como que não? Por que deixou a pousada?
— Porque não podia pagar a conta. Entregou seu relógio como garantia. Em minha opinião cometeu um grave erro, porque o relógio poderia ter — lhe sido útil.
— Oh! — exclamou Arabella, horrorizada — . Tão grave assim...
— Temo que sim. Animou — se em excesso jogando cartas, mas... não dispunha de dinheiro suficiente. Teve que assinar várias promissórias, e ficou sem nenhum. — Jogando cartas!
— Efetivamente. O faraó — completou Scunthorpe — . Mas não porque fosse vítima de trapaceiros. Não, não teve armadilhas de nenhuma classe. E isso só piora a situação, porque quando alguém vai ao Nonesuch deve observar uma conduta impecável. É um clube muito exclusivo, asseguro — lhe; frequentam — no os sibaritas, as personagens mais distintas da boa sociedade. Fazem apostas muito altas, muito acima de minhas possibilidades.
— Então não foi com você a esse clube?
— Não, é claro. Eu não sou sócio. Foi com Bochecha Wivenhoe.
— Com lord Wivenhoe! Oh, que tonta fui! — lamentou-se Arabella — . Fui eu quem o apresentou a Bertram!
— É uma lástima — admitiu Scunthorpe sacudindo a cabeça.
— Mas que malvado foi levando a meu irmão a um lugar como esse. Como pôde fazê — lo? — Nunca suspeitei que... Achei que era um indivíduo muito agradável e cortês. — Educadíssimo — concordou Scunthorpe — . Um cavalheiro de uma correção impecável, com muito boa reputação. Estou seguro de que o fez com a melhor intenção.
— Com a melhor intenção? — exclamou Arabella, acalorada.
— Repito — lhe que o Nonesuch é um clube muito exclusivo — recordou-lhe Scunthorpe. — De nada servirá que discutamos sobre esse ponto — disse ela, impaciente — . Onde está Bertram? — Não acho que conheça esse lugar, senhorita Tallant. Está... está perto de Westminster. — Muito bem! Pois vamos lá agora mesmo!
— Não; rogo — lhe! — exclamou Scunthorpe, agitado — . Não posso levar uma dama a Willow Walk! Você não o entende, senhorita! O pobre Bertram... não podia pagar a conta — não tinha nem um peny no bolso. E os oficiais de justiça procuravam — no. Tinha que os enganar! Não sei como o fez exatamente, mas suponho que voltou ao Red Lion quando saiu do Nonesuch, porque tinha com ele seu baú de viagem. Pelo visto levou — o a Tothill Fields. É um bairro lamentável, senhorita Tallant. Seu irmão deveria ter vindo ver — me, pois não ter — me — ia importado de lhe ceder meu sofá. — Deus meu! Por que ele não o fez?
Scunthorpe pigarreou, envergonhado.
— Talvez estivesse um pouco aturdido — aventurou com timidez — . Ademais, devia temer que os oficiais de justiça. A verdade é que se tivesse vindo até a mim teriam — no encontrado facilmente, porque esses miserévais comerciantes sabem que é meu amigo. Em qualquer caso, não veio me pedir ajuda (nem sequer me disse onde estava até esta manhã), suponho que porque se sentia demasiado deprimido. Mas não o reprove: eu teria agido igual.
— Ai! Pobre Bertram, pobre Bertram! — gemeu Arabella apertando as mãos — . Não me importa onde esteja! Preciso vê — lo quanto dantes, ainda que tenha que ir a Willow Walk sozinha! — Deus meu, senhorita Tallant, não o faça! — exclamou Scunthorpe, horrorizado — . Em Willow Walk há uns antros de muito má reputação! Ademais — — Fez uma pausa e acrecentou pertubado — : Seu irmão está muito alterado!
— Pois é claro! Deve estar muito preocupado e desesperado! Não posso abandoná — lo num momento assim! Vou procurar meu chapéu, e iremos ali de imediato. — Senhorita Tallant, seu irmão não vai gostar que vá! — insistiu Scunthorpe — . Asseguro que me mata por lhe ter dito! Não pode ir vê — lo!
— Por que não?
— Por que está um frangalho! E é compreensível. Empunhou muito o copo! — Como empunhou muito o copo?
— Não o reprove! — lhe suplicou o jovem — . Eu não ter — lhe — ia contado se não a tivesse visto tão decidida a ir procurá — lo. Seu irmão estava desesperado, empunhou o copo para se fotalecer, se sentiu melhor, seguiu bebendo — E o resultado é que quando o vi estava feito um bêbado! — Insinua que Bertram tem estado bebendo?
— Assim é. Conhac. Um conhac de péssima qualidade. Aconselhei — lhe que bebesse gim, porque não é tão perigoso.
— A cada nova informação que me proporciona me reafirma na convicção de que tenho que o ir ver!
— Asseguro — lhe que seria muito melhor que se limitasse a lhe enviar algum dinheiro, senhorita Tallant.
— Levar — lhe — ei todo o dinheiro que tenho, mas — Ai! É muito pouco! Ainda não sei o que vamos fazer!
— Crê você que seu madrinha... — sugeriu com delicadeza Scunthorpe alhando o teto. Arabella negou com a cabeça.
— Oh, não! Isso é impossível!
Scunthorpe ficou pensativo.
— Nesse caso, senhorita Tallant, será melhor que a leve até ele. Esta manhã seu irmão dizia muitas barbaridades. Não sei o que seria capaz de fazer.
Ela quase se jogou a correr para a porta.
— Não há tempo a perder!
— Não, não tema! — tranquilizou — a Scunthorpe — . Não há pressa. Não acho que hoje corte o pescoço! Disse à jovem que escondesse sua navalha.
— Que jovem?
Scunthorpe, aturdido, se ruborizou e gaguejou:
— A jovem que enviou a minha casa com uma mensagem. Pelo visto tinha estado cuidando — o. — Oh, que Deus a abençoe! — exclamou Arabella com fervor — . Como se chama? Estou em dívida com ela!
Como a dama em questão se tinha apresentado a Scunthorpe como Peggy das Garrafas, este não teve outro remédio que recorrer a evasivas, confiando em que não a encontrassem em Willow Walk. Assegurou que não tinha entendido seu nome. Arabella lamentou — o, mas como aquele não era momento para se deter em amenidades, não insistiu e correu ao seu quarto para procurar o chapéu e o xale.
Não podiam sair da casa sem que avisasse ao mordomo, mas ainda que este ficasse surpreso, não fez nenhum comentário, de maneira que poucos minutos mais tarde, Scunthorpe e Arabella estavam sentados num desmantelado carro de aluguel que parecia ter pertencido a algum nobre no passado, mas que tinha passado por uma penosa decadência. A cobertura dos assentos estava suja e gastada, e o veículo cheirava a cerveja e a couro velho. Arabella mal prestou atenção a esses detalhes, pois se achava muito agitada. Custava — lhe bastante trabalho manter certa presença de espírito; sentia — se a ponto de desmaiar, e em semelhante estado de agitação não podia pensar em nenhum plano para socorrer Bertram. A única solução que até esse momento lhe tinha ocorrido obedecia ao impulso instintivo de enviar uma carta urgente a Heythram, ideia que descartou em seguida. Sabia que a sugestão do senhor Scunthorpe de ir a lady Bridlington era inútil, pois seu orgulho não lhe permitia causar semelhante trastorno a seu madrinha. Também não podia propor — se seriamente vender os diamantes de sua mãe, nem o colar de pérolas que tinha pertencido à avó Tallant, porque essas jóias não eram suas, assim não podia dispor delas como quisesse.
Sentado a seu lado e entendendo que o ânimo de Arabella requeria apoio, Scunthorpe tentou distraí — la assinalando minuciosamente todos os lugares de interesse pelos que passavam. Arabella mal lhe prestava atenção, mas quando chegaram a Westminster começou prestar atenção em torno, animada pela aparente respeitabilidade do bairro. O carro seguiu adiante, e ao cabo de alguns momentos à jovem custou a acreditar que pudesse estar tão perto da abadia, porque o ambiente era tremendamente sórdido. Numa fracassada tentativa por distraí — la, Scunthorpe assinalou uma feia estrutura de tijolo que, segundo disse, era a prisão de Tothill Fields Bridewell, o que fez estremecer Arabella de forma tão alarmante que seu acompanhante se apressou a lhe informar que estava tão cheia de delinqüentes que já não cabia nem um alfinete dentro de seus muros. O seguinte objeto de interesse era uma fileira de atarracadas casas de beneficência. A seguir tinha uma escola também de caridade, mas a Arabella pareceu que o bairro era basicamente formado por lamentáveis favelas, mansões velhíssimas e muito deterioradas, e uma superabundância de tabernas. Nas soleira de algumas casinhas tinha mulheres de aspecto desalinhado; garotos seminus faziam a ronda pelas sujas calçadas, com a esperança de obter alguma esmola das pessoas suficientemente abastadas para viajar em carros de aluguel; numa esquina, uma mulher gorda, sentada por trás de um calderão de ferro, parecia repartir chá a um grupo de pessoas assombrosamente variadas, entre elas tinha desde pedreiros até jovenzinhas muito enfeitadas; os gritos dos vendedores ambulantes oferecendo carvão e pedindo louças velhas ressoavam pelas estreitas ruas; e a população masculina parecia consistir inteiramente em catadores de lixo, limpadores e sujeitos não identificados que iam barbados e com cachecós em lugar de golas de camisa.
Depois de deixar para trás várias ruidosas vielas, o carro entrou em Willow Walk e percorreu — o até deter — se diante de um lúgubre edifício com roupa pendurada nas janelas, muitas das quais tinham os vidros quebrados. Junto à porta aberta uma idosa sentada numa cadeira de balanço fumava e conversava com outra mulher mais jovem que sujeitava com um braço a uma criança que não parava de chorar, que de vez em quando sacudia, ou lhe dava de beber de uma garrafa negra da que ela também tomava freqüentes tragos. Arabella não tinha forma de averiguar o que tinha naquela garrafa negra, mas estava convencida de que se tratava de licor. Esqueceu — se momentaneamente de Bertram; quando o senhor Scunthorpe a ajudou — a a descer do carro e ela se sacudiu os fiapos de palha que se tinham enganchado no pano do singelo vestido de batista, abriu sua bolsa, procurou um xelim e deixou perplexa àquela mãe lhe pondo na mão e dizendo com ternura:
— Por favor, compre — lhe um pouco de leite para menino! Rogo — lhe, não lhe dê essa coisa horrível!
Ambas mulheres a olharam boquiabertas. A idosa, que era irlandesa, foi a primeira a se recobrar, soltou uma gargalhada e lhe disse que estava falando com Susie la Trancas em pessoa. Isso não esclareceu grande coisa a Arabella, mas enquanto ela ainda estava pensando sobre aquele apelido, la Trancas, se recuperando de sua estupefação, tinha começado a recitar o catálogo de suas penas enquanto estendia uma mão gorda. Scunthorpe, com a frente perolada de suor, encarregou — se de fazer entrar a sua protegida na casa, sussurando — lhe que não devia falar com mulheres de tão má reputação. Susie la Trancas, que nunca deixava escapar uma oportunidade, os seguiu sem interromper seu mendicante lamento. No entanto, ao chegar ao pé de uma desconjuntada escada sem tapete foi repelida por uma jovem robusta, com uma moita de cabelo vermelho sujo e um
rosto em que o gim não tinha desprovisto por completo de encanto; levava um vestido feio, sujo e com o corpete tão acossado que se via parte da suja anágua. Depois de lançar a Susie uma série de observações que Arabella não entendeu, a mulher deu a volta e enfrentou a seus distintos visitantes com um olhar agressivo e os braços em riste. Perguntou ao senhor Scunthorpe, que parecia conhecer, como se lhe tinha ocorria levar a uma madame àquele lugar imundo. — É a irmã! — disse ele com voz estrangulada.
A mulher cravou em Arabella uns olhos ferozes e injetados de sangue e exclamou: — Ah! Então é a irmã!
— É a jovem que me enviou a mensagem! — explicou envergonhado Scunthorpe a Arabella num aparte.
A ruiva não precisava de nada mais para ganhar a simpatia de Arabella. Se esta tinha percebido — e era difícil que não o tivesse feito — o intenso cheiro de gim que vinha Peggy La Botelha , não deu mostras disso; foi para frente, com ambas as mãos estendidas, e disse: — É você a mulher que tratou tão bem do meu irmão — Permita — me que a agradeça! Jamais a poderei recompensar suficiente! O senhor Scunthorpe contou — me que você cuidou de Bertram quando... quando veio a este lugar.
Peggy La Botelha ficou olhando — a com firmeza.
— Encontrei a esse desgraçado estirado no chão — disse em tom apaziguador — , totalmente perdido e dizendo tolices. Ganho pequeno! Que me parta um raio se sei por que me fixei nesse malandro! — Será melhor que subamos, senhorita Tallant — propôs o agoniado Scunthorpe, para quem o vocabulario de Peggy La Botelha resultava algo mais inteligível que para Arabella. — Fecha o bico, múmia vivente! — gritou Peggy — . Deixa — nos a mim e à madame em paz! — Voltou — se de novo para Arabella e disse com aspereza — : Está tremendo. Diz que o querem meter na prisão. Quando o encontrei não levava nem um xelim no bolso. Trouxe — o aqui, mas juro — lhe que não sei por que o fiz. — Assinalou a escada com o polegar e continuou — : Leve — o: esse não faz nada aqui, nem eu também não! Nem sequer come a comida que lhe dou! Por mim pode fazer o que quizer com ele!
Deduzindo por essas palavras que Peggy La Botelha tinha estado alimentando Bertram, Arabella, com os olhos humedecidos, lhe pegou uma mão e lha apertou com fervor, enquanto dizia: — Que boa é você! Muitíssimo obrigado! Meu irmão só é um rapaz, e não quero nem pensar que teria sido dele sem sua ajuda.
— Pois olhe, consegui grande coisa ajudando — o! Muitos resmungos e muita arrogância, mas nem um pêni! Já podem tirá — lo daqui, você e esse almofadinhas que parece um impostor. É a primeira porta da direita. Está bêbado como uma porta, mas ainda não morreu. Depois de pronunciar essas alentadoras palavras, Peggy deu a volta e saiu a grandes passadas da casa, apartando com um empurrão a Susie las Trancas, que tinha cometido a temeridade de se
acercar outra vez à soleira. Scunthorpe apressou — se a guiar a Arabella pela escada, dizendo — lhe com tom de reprovação:
— Não deveria falar com ela, senhorita Tallant! Está muito abaixo do seu nível, lhe asseguro! — Pode não estar no meu nível — Mas tem um grande coração, senhor Scunthorpe! Este, envergonhado, lhe pediu desculpas e a bateu em um dos quartos do andar de acima. Quando se ouviu a voz de Bertram depois da porta, Arabella levantou o maçaneta e entrou rapidamente sem esperar a que seu acompanhante o fizesse.
O quarto, que dava a um sujo pátio por onde rondavam uns gatos esquálidos, era pequeno, escuro e estava guarnecido com uma cama quebrada encostada contra uma parede, uma mesa, duas cadeiras de madeira e um pedaço de tapete ruído. Sobre a mesa viam — se os restos de uam porção de pão e um pedaço de queijo, junto com um copo, uma jarra e uma garrafa vazia; e na cornija da lareira uma xícara descascada com um ramalhete de flores secas que supostamente tinha sido posto ali por Peggy La Botelha . Bertram, que se achava caído na cama, se ergueu se apoiando num cotovelo quando a porta abriu e olhou aos recém chegados com um gesto de apreensão. Estava vestido, mas levava um lenço amarrado ao redor do pescoço, e apresentava um aspecto doentio e desalinhado. Ao ver a Arabella, emitiu algo parecido a um soluço e se levantou fazendo um grande esforço.
— Bela!
Sua irmã arrojou — se em seus braços e, sem poder conter as lágrimas, abraçou — o amorosamente. Bertram cheirava a licor, mas ainda que isso a surpeendesse, não se afastou dele, senão que se aferrou ainda com mais força.
— Que fazes aqui? — perguntou o jovem com voz trêmula — . Felix, por que a trouxes — te? — Já a adverti que isto não te agradaria — se desculpou seu amigo — , mas estava decidida a vir ver — te.
— Não queria que soubesses! — gemeu Bertram.
Arabella soltou a seu irmão, enxugou as lágrimas e sentou — se numa cadeira. — Não digas tolices, Bertram. A quem irias procurar se não a mim — Quanto o sinto! Como deves ter sofrido neste horrível lugar!
— É bonito, na verdade — — disse seu irmão, zombador — . Não sei como cheguei aqui. Pelo visto trouxe — me Peggy La Botelha . Deves saber, Bela, que estava tão bêbado que não me recordo do que se passou quando saí do Red Lion.
— Sim, acredito. Mas não deves continuar bebendo, por favor. Com isso só conseguirás piorar as coisas. Estás muito enfraquecido, o que não me estranha. Dói — te a garganta? Ele corou e levou instintivamente uma mão ao pescoço.
— Dize — o pelo lenço? Ah, não! É que tive que o empenhar tudo, Bela, tudo. Cedo não sobrará nada para me pôr em cima. Mas o que importa?
Scunthorpe, sentado na borda da cama, lançou uma eloqüente olhar a Arabella. — Pois a mim importar-me-ia muito — respondeu com tom de eficiência — . Temos que pensar o que podemos fazer. Diga — me quanto dinheiro deves.
Bertram resistiu — se a revelar — lhe a quantia.
— Minha dívida ascende a mais de setecentas libras — acabou confessando ante a insistência de sua irmã — . Como compreenderás, não tenho nenhuma possibilidade de saldá — la. Arabella ficou estupefata, porque não tinha imaginado que pudesse dever tanto dinheiro. Essa quantia parecia imensa, assim não se surpreendeu quando Bertram, se sentando na outra cadeira, começou a falar de maneira desconexa, dizendo que queria pôr fim a sua existência. Deixou que seu irmão se desafogasse, supondo que isso lhe faria bem em seu desesperado estado, e porque realmente não temia que Bertram pusesse em prática suas violentas ameaças. Enquanto Bertram falava, ela vasculhava o cérebro procurando de uma solução para seus problemas, sem lhe prestar muita atenção mas lhe dando de vez em quando uma tranqüilizadora palmadinha. — Não acho que devas te atirar ao rio — interveio por fim Scunthorpe, dando mostra de grande senso comum — , querido amigo. A tua irmã não gostaria que o fizesses. E todos saberiam. Que pensariam em Oxford?
— Não, claro que não! — concordou Arabella — . Não voltes a mencionar essa possibilidade, Bertram. Seria horrível, já o sabes!
— Bom, suponho que não tirarei a minha vida — replicou ele, um tanto despeitado — . Mas asseguro — te uma coisa: assim não posso me apresentar ante meu pai. — Não, não! — concordou ela — . Setecentas libras! Como é possível, Bertram? — Perdi seiscentas jogando o faraó — explicou seu irmão apertando a cabeça entre as mãos — . O resto... Bom, são o traje, o cavalo que aluguei e o que devo em Tatt’s, e a conta da pousada — Uma infinidade de coisas! Que posso fazer, Bela?
Bertram parecia — se bem mais com o irmão menor que Arabella conhecia quando falou assim, com expressão assustada e uma irracional confiança na capacidade de sua irmã para o tirar do aperto. — As contas não têm importância — declarou Scunthorpe — . Saia da cidade: não te seguirão. Vivias com nome falso. As dívidas de jogo são outra coisa. Essas sim tens que saldá — las, pois são dívidas de honra.
— Já o sei, maldito seja!
— Todas as dívidas são de honra! — interveio Arabella — . Tens que pagar essas contas antes de tudo!
Os dois jovens olharam — se com cumplicidade, expressando sua mútua convicção de que não valia a pena discutir com uma mulher sobre um tema que ela jamais entenderia. — Só se me ocorre uma coisa — suspirou Bertram, passando uma mão pelo rosto — . Já o pensei, Bela, e vou alistar — me com nome falso. Se não me aceitarem como soldado de cavalaria, me
alistarei num regimento de artilharia. Devi fazê — lo ontem, quando me ocorreu a ideia, mas antes devo fazer algo. É uma questão de honra. Escreverei a um pai, é claro, e suponho que ele dirá que não quer saber nada de mim, mas isso é inevitável.
— Como podes pensar assim? — Arabella repeendeu — o, acalorada — . Deve ficar muito triste. Ai, não quero nem pensar! No entanto, ele jamais faria algo tão pouco cristão como repudiar — te. Não, não lhe escrevas ainda! Dá — me tempo para pensar. Se soubesse de que deves tanto dinheiro, estou segura de que pagaria até o último peni, ainda que chegasse a ruína. — Como te ocorre pensar que lhe vou contar — Não! Direi que estou decidido a entrar no exército e que não me importa começar de baixo.
Esse discurso consternou a Arabella ainda mais que a anterior ameaça de Bertram de se suicidar, porque lhe parecia que era bem mais provável que seu irmão se alistasse no exército. — Não! Não! — protestou com voz débil.
— Tenho que fazê — lo, Bela. Estou seguro de que o exército é minha única saída, e não posso me apresentar em casa de nossos pais carregado de dívidas. E menos ainda de dívidas de honra! Oh, Deus meu, em que estava pensando — — Faltou — lhe a voz, e durante um momento foi incapaz de falar. Ao final conseguiu compor um amargo sorriso e dizer — : Que belo par formamos, não? Ainda que teu pecado não seja tão grave como o meu.
— Mas eu também me portei muito mal — admitiu Arabella — . Sou culpada de que te aches nesta situação tão desesperada. Se não tivesse te apresentado a lord Wivenhoe... — Não digas tolices! Tinha ido a outras casas de jogo antes de conhecê — lo. Ele ignorava que eu não estava coberto economicamente como esses amigos seus. Não deveria ir com ele ao Nonesuch. Mas tinha perdido dinheiro numa corrida, e pensei... confiava em que... Bah, falando não se soluciona nada! No entanto, não deves culpar — se.
— Bertram, quem te ganhou esse dinheiro no Nonesuch?, — perguntou sua irmã. — A banca. Foi jogando o faraó.
— Sim, mas quem tinha a banca?
— O Incomparável.
Arabella olhou — o fixamente.
— O senhor Beaumaris — — perguntou, estupefata. Bertram assentiu — . Oh, não! Não me digas isso! Como pôde permitir que você... Não, Bertram!
O jovem não entendia sua aflição.
— Por que afinal não o ia permitir?
— Porque só és uma criança! Ele deveria saber! Aceitar as suas promissórias! Suponho que no mínimo poderia ter se negado a aceitá — las.
— Não entendes — impacientou — se Bertram — . Fui a esse clube com Bochecha. Por que me iria impedir de jogar?
Scunthorpe assentiu.
— Teria criado uma situação muito violenta, senhorita Tallant. Recusar as promissórias de um cavalheiro é um grave insulto.
Arabella não podia apreciar as sutilezas desse código que evidentemente compartilhavam ambos os cavalheiros, ainda que acreditava que imperavam nos círculos masculinos. — Parece — me muito mau que o fizesse. Mas não importa. O caso é que o senhor Beaumaris é... bom, que somos bons amigos. Não te preocupes, Bertram. Estou convencida de que se for vê — lo e lhe explicar que és menor de idade e que não és filho de nenhum ricaço, irá perdoar a tua dívida. Arabella ficou calada, porque a expressão de assombro e desaprovação de Bertram e Scunthorpe não deixavam lugar a dúvidas.
— Pelo amor de Deus, Bela! Qual vai ser a próxima piada?
— Mas Bertram, asseguro — te que o senhor Beaumaris não é orgulhoso nem antipático como muita gente crê. A mim — parece — me particularmente amável e encantador. — Bela! Estamos falando de uma dívida de honra! Tenho que pagá — la ainda que leve toda uma vida, e isso é o que penso em dizer ao senhor Beaumaris.
Scunthorpe aprovou essa decisão assentindo com a cabeça.
— Queres passar o resto da vida pagando seiscentas libras a um homem para o qual essa quantia não significa nada? — gritou Arabella — . Isso é absurdo!
Bertram olhou a seu amigo com gesto de exasperação.
— Não há nada o que fazer, senhorita Tallant — disse Scunthorpe fazendo um grande esforço — . Uma dívida de honra é uma dívida de honra. Não há forma de esquecê — la. — Não estou de acordo! Admito que não gosto de ter que ir falar com ele, mas poderia fazê — lo, e sei que não iria me negar a sua ajuda.
— Escuta — me, Bela! — exclamou Bertram agarrando — a pela mão — . Dou — me conta de que não o entendes, mas se te atreves a fazer algo parecido, te juro que não voltarás a me ver jamais. Ademais, ainda que ele rasgasse as minhas promissórias, eu seguiria me considerando com a obrigação de as pagar. Só falta que sugiras lhe pedir que me pague essas malditas faturas! Arabella se ruborizou, envergonhada, porque justamente acabava de passar essa ideia pela cabeça. De repente Scunthorpe, cujo rosto momentos antes tinha adotado uma expressão cataléptica, exclamou com veemência:
— Ocorre — me uma idéia!
Os irmãos Tallant olharam — no com interesse; Bertram, com otimismo, e sua irmã, sem tanta convicção.
— Já conheces o dito, amigo meu. A banca sempre manda!
— Sim, já o ouvi — replicou Bertram com amargura — . É isso unicamente que querias nos dizer? — Espera! Abre uma! — Viu a perplexidade refletida nos dois rostos que tinha em frente, e acrescentou com um gesto de impaciência — : De farao!
— Que abra uma banca de faraó? — — repetiu Bertram, incrédulo — . Deves estar louco! Ainda que não fosse a maior loucura que jamais ouvi, não posso abrir uma banca de faraó sem capital. — Isso já o pensei — disse Scunthorpe com verdadeiro orgulho — . Irei falar com meus tutores. Agora mesmo. Não há tempo a perder.
— Pelo amor de Deus! Não achas que teus tutores te deixarão tocar teu capital para uma causa como essa, não é verdade?
— Não vejo por que não. Sempre estão tentados a aumentá — lo. Passam a vida dando — me sermões sobre que é necessário melhorar o patrimônio. É uma forma excelente de incrementá — lo; não entendo como não lhes ocorreu. Será melhor que vá em seguida a ver a meu tio. — Não sejas tolo, Felix! — disse Bertram com aborrecimento — . Nenhum tutor deixar — te — ia fazer isso. E ainda que te permitissem, nem tu nem eu queremos passar a vida mantendo uma banca de faraó.
— Claro que não — admitiu seu amigo aferrando-se a sua idéia com obstinação — . Só quero te ajudar a saldar a dívida. Bastaria uma noite de sorte. E então fecharíamos a banca. Scunthorpe estava tão entusiasmado com seu plano que Bertram levou um bom tempo dissuadindo — o da tentativa do à por em prática. Arabella, enquanto isso, permanecia ensimesmada e sem prestar muita atenção à discussão. Até Scunthorpe teria podido adivinhar que os pensamentos da jovem não eram em absoluto agradáveis se não tivesse estado tão envolvido na defesa de seu projeto, porque Arabella não parava de fechar e abrir as mãos sobre o regaço, e seu expressivo rosto a delatava. Mas quando Bertram conseguiu convencer seu amigo de que não pensava abrir uma banca de faraó, Arabella se tinha recomposto o suficiente para não levantar suspeita alguma em seus interlocutores.
Olhou seu irmão, que depois da acalorada discussão tinha mergulhado num estado de profunda aflição, e disse:
— Já ocorreu — me algo. Sei que encontrarei a forma de te ajudar. Só peço que não te alistes, por favor. Ainda não, Bertram. O farás apenas se eu não conseguir.
— Que pensas fazer? Não me alistarei até ter falado com o senhor Beaumaris, e — ter — lhe explicado. É meu dever. Disse — lhe que não tinha fundos em Londres e que devia enviar a alguém para os buscar em Yorkshire, e ele me pediu que o fosse visitar na quinta — feira. Não me olhes assim, Bela! Não podia lhe confessar que estava arruinado e que não podia lhe pagar, porque tinha
muita gente ali que teria podido nos ouvir. Tens algo de dinheiro, Bela? Poderias fazer — me um empréstimo para que recupere minha camisa? Assim não posso ir visitar o Incomparável! Arabella pôs — lhe a bolsa na mão.
— Sim, claro! Se não tivesse comprado estas luvas, e os sapatos, e o lenço — Só me sobraram dez guineus, mas isso bastará até que tenha pensado como posso te ajudar, não — Vais sair desta horrível casa. Pelo caminho vi várias pousadas, e duas pareceram — me respeitáveis. Era evidente que Bertram estava desejando mudar de alojamento, e depois de uma breve disputa em que se alegrou de perder, pegou a bolsa, abraçou Arabella e lhe disse que era a melhor irmã do mundo. Então perguntou com pesar se achava que poderia convencer lady Bridlington de lhe emprestar setecentas libras, com a promessa de reembolsá — la depois de um prolongado período de tempo, e ainda que Arabella respondesse alegremente que não tinha dúvida de poder chegar a algum arranjo similar, seu irmão não parecia convencido e suspirou fundo. Scunthorpe, encabeçando seu comentário com seu típico pigarro de desaprovação, sugeriu que, como o carro de aluguel estava esperando na rua, talvez os irmãos devessem se despedir. Arabella era partidária de ir de imediato em procura de um alojamento adequado para seu irmão, mas a dissuadiram, e Scunthorpe comprometeu — se a ocupar — se pessoalmente desse assunto bem como recuperar a roupa de Bertram da casa do prestamista. Os dois irmãos despediram — se, abraçando — se com tanta emoção que Scunthorpe, comovido, teve que assoar o nariz com grande estrondo. A primeira coisa que fez Arabella ao chegar a Park Street foi subir a toda pressa a seu quarto e, sem parar sequer para tirar o chapéu, se sentar a uma mesinha junto à janela e se preparar para escrever uma carta. No entanto, apesar da evidente urgência da tarefa, quando mal tinha escrito o cabeçalho da carta ficou sem inspiração, abstraída e olhando pela janela enquanto a tinta da pena secava. Ao cabo de um momento suspirou, voltou a molhar a pena no tintero e escreveu duas linhas com decisão. Então se interrompeu, as rejeitou, rasgou a folha e pegou outra nova. Demorou um tempo para conseguir um resultado satisfatório, mas quando por fim tinha cumprido seu propósito, lacrou a carta com um sêlo. Então tocou a sineta, e quando a criada atendeu, Arabella pediu — lhe que fosse procurar Becky. Quando esta chegou, sorrindo timidamente e apertando as mãos sobre o avental, Arabella lhe mostrou a carta.
— Por favor, Becky, acha que poderias escapulir e... e levar esta carta a casa do senhor Beaumaris? Poderias dizer que te encarreguei de uma tarefa, mas... mas ficaria muito agradecida se não revelasses a ninguém do que se trata.
— Oh, senhorita! — suspirou a donzela, pensando em um romance — . Claro que não direi nem uma palavra a ninguém!
— Obrigado. Se... se o senhor Beaumaris encontrar — se em sua casa, gostaria que esperasses que te desse uma resposta.
Becky assentiu e assegurou a Arabella que podia confiar cegamente nela; ato contínuo, saiu. A donzela regressou meia hora mais tarde com ar de cumplicidade, mas com más notícias: o senhor Beaumaris tinha ido ao campo fazia três dias e tinha anunciado que se ausentaria de Londres durante uma semana.
* * *
Capítulo 15
Beaumaris regressou a sua casa de Londres na terça — feira pela manhã a tempo de um café da manhã tardio, depois de estar fora seis dias. Seus empregados tinham considerado possível que se ausentasse durante uma semana inteira, mas como Beaumaris raramente dava informação concreta sobre seus movimentos, não se importava com os gastos e tinha acostumado os seus bem pagos serventes a viver num estado de constante expectativa e a de estarem sempre preparados para lhe proporcionar todo tipo de comodidades fosse apenas ele ou para um grupo de convidados, devido a isso sua chegada prematura não produziu consternação a ninguém. E mais, provocou num dos habitantes da casa um grau de felicidade que raiva o delírio: um desgrenhado Ulisses, que tinha mantido o rabo entre as pernas durante seis intermináveis dias e passado a maior parte do tempo encolhido no tapete em frente à porta de seu amo, recusando todo alimento, inclusive os pratos de comidas sortidas preparadas pelo grande Alphonse, desceu correndo a escada, ladrando fortemente, e reuniu forças para descrever círculos a toda velocidade antes de cair, ofegante e exausto, aos pés de seu amo. O estado depressivo em que esse vergonhoso cachorro tinha caído fez que os membros do serviço se apressassem a exonerar — se de toda culpa, revelando a importância que concediam aos caprichos do senhor. Até monsieur Alphonse subiu de seu reino subterrâneo para descrever — lhe com todo detalhe o caldo de frango, o ragout de coelho, o jarrete de boi e o osso com tutano que tinha oferecido para tentar o perdido apetite de Ulisses. Brough interrompeu seu discurso em francês para assegurar que ele tinha feito tudo quanto era possível para devolver ao animal as vontade de viver, até o extremo de levar um gato de rua para casa com a esperança de que essa ofensa o fizesse reagir, já que não tinha nenhuma simpatia aos felinos. Com um ar de superioridade que ofendeu seus colegas, Painswick incluiu que se o senhor Beaumaris ainda conservava o seu mascote de humilde berço, era graças ao seu entendimento superior dos processos mentais de Ulisses, já que lhe tinha ocorrido a feliz ideia de dar a Ulisses uma das luvas do senhor para que a vigiasse.
Beaumaris, que tinha pego Ulisses nos braços, não prestou atenção a essas tentativas de justificativa, senão quando se dirigiu ao cansado cãozinho:
— Que tonto és! Não, não gosto nada que me lambam a cara, assim te controla. Quieto, Ulisses! Para! Agradeço tua preocupação, mas, como poderás comprovar, gozo de excelente saúde. Gostaria de poder dizer o mesmo de ti. Voltaste a ficar pele e ossos, meu amigo, processo que considero tão injusto como ridículo. Qualquer um que te veja pensará que te nego até as sobras de minha mesa. — Sem alterar o tom de voz nem deixar de olhar o animal que tinha nos braços, acrescentou — : Pelo visto também privaste a meus serventes do mínimo vislumbre de senso comum, pois a maioria deles, em lugar de me trazer o café da manhã que tanto preciso, se dedicam a desculpar — se para fugir das responsabilidades.
Ulisses, a quem o mero som da voz de seu amo tinha levado a um estado de arrebatamento, olhou — o com gesto de adoração e conseguiu lamber a mão que o estava acariaciando. A voz de Beaumaris exerceu também efeito sobre seus serventes, que se dispersaram rapidamente. Painswick foi a preparar — lhe uma roupa limpa; Brough, foi pôr a mesa no salão do café da manhã; Alphonse, foi cortar a toda velocidade várias fatias de um excelente presunto de York e a fritar uns ovos com ervas; e vários subalternos, foram moer café, cortar pão e pôr água para ferver.
Beaumaris, com Ulisses debaixo de um braço, recolheu o monte de cartas que tinha sobre a mesa do apardador e se dirigiu à biblioteca.
Ao entusiasmado e jovem lacaio que se apressou em lhe abrir a porta lhe disse: — Traga comida a este abominável animal!
Ordem que, transmitida rapidamente à cozinha, fez que monsieur Alphonse mandasse o seu ajudante abandonar a tarefa que lhe tinham atribuído e preparar um prato especial para reanimar o desfalecido apetite do mimado Ulisses.
Deixando de lado um monte de convites e faturas, Beaumaris conservou numa nota que não tinha chegado através do correio e que levava a inscrição «Urgente». A caligrafia, sem dúvida feminina, não lhe pareceu familiar.
— Que temos aqui, Ulisses? — — disse rompendo o lacre.
Era curta «Querido senhor Beaumaris — rezava a missiva — , ficaria sumamente agradecida se tivesse a amabilidade de vir visitar — me em Park Street tão logo seja possível, e que pedisse ao mordomo que me informasse de sua chegada. Muito atenciosamente, Arabella Tallant.» Esse exemplo do gênero epistolar, que tanta reflexão tinha exigido à senhorita Tallant e que tantas folhas de papel lhe tinha feito estragar, conseguiu seu objetivo. Beaumaris afastou o resto de sua correspondência, pôs Ulisses no solo e concentrou sua poderosa mente na correta interpretação dessas poucas e sussintas palavras. Ainda estava concentrado nessa tarefa quando Brough entrou na sala e anunciou que já tinha o café da manhã preparado. Beaumaris levou a carta ao salão e apoiou — a na cafeteira com a impressão de que ainda não tinha entendido seu significado mais profundo. Ulisses, a seus pés, consertando com entusiasmo os estragos de seu prolongado jejum, consumia a grande velocidade uma quantidade de comida que poderia ser considerada excessiva para a satisfação do apetite de uma jiboia.
— Esta nota trouxeram — na faz três dias, Ulisses! — observou Beaumaris. O cão, cujo agudo sentido do olfato tinha descoberto os miúdos de frango escondidos no centro de seu prato, limitou — se a agitar a cauda mecanicamente; e quando a seguir seu amo lhe perguntou que podia estar acontecendo, nada mais fez que um sinal em resposta. Beaumaris afastou seu prato de café da manhã, um gesto que pouco depois causaria uma alarmante reação na sensibilidade do artista dos fogões, e despachou a o seu criado de quarto, que acabava de entrar na sala.
— Meu traje de passeio!
— Já o tenho preparado — respondeu Painswick com dignidade — . Só há um detalhe que talvez devesse mencionar.
— Agora não — atalhou o senhor sem apartar a vista da incitante missiva da senhorita Tallant. Painswick fez um reverência e retirou — se. O assunto que queria comentar não era de suficiente importância que justificasse sua intromissão na evidente preocupação de seu amo; também não o mencionou quando Beaumaris subiu para tirar o traje de montaria e pôs a jaqueta azul, os calções
amarelos, o singelo casado e as reluzentes botas com borlas com as quais acostumava deslumbrar às belezas da metrópoles. Essa última abstenção em relação a comentar — lhe o assunto, devia — se, no entanto, mais à sensação de perda irrecuperável que tinha invadido sua alma ao descobrir que faltava uma camisa no deploravelmente ordenado baú de viagem do senhor do que pela abstração deste. Limitou sua conversa a uma série de amargos comentários sobre a moral dos serventes das pousadas e os extremos de depravação a que tinham chegado uns lacios desconhecidos ao tratar as botas do senhor com um betume negro adequado só para o calçado dos habitantes rurais. Não pôde congratular — se de que o patrão prestasse a mínima atenção a seu discurso, enquanto arranjava com destreza as pregas da gravata ante o espelho ou recortava com delicadeza suas bem cuidadas unhas, mas ao menos se desafogou.
Beaumaris deixou o seu criado de quarto consertando o dano sofrido em seu vestuario e a seu fiel cão dormido sob os efeitos de uma quantidade enorme de comida; saiu da casa e foi caminhando até Park Street. Ali inteirou — se de que milord, milady e a senhorita Tallant tinham ido com o cupê ao Museu Britânico, onde se exibiam as polêmicas estátuas de mármore de lord Elgin, numa nave de madeira construída expressamente para as abrigar. Beaumaris agradeceu ao mordomo pela informação, parou um carro de aluguel e pediu ao cocheiro que o levasse a Great Russell Street. Encontrou a senhorita Tallant ante uma lousa esculpida do templo de Nike Apteros, suportando, ensimesmada, um sermão de lord Bridlington, que se achava em seu elemento. Foi lady Bridlington a primeira a atentar em sua esbelta e grácil figura avançando pelo salão, porque como tinha visto a coleção de antiguidades quando se tinha sido exposta na residência de lord Elgin em Park Lane, e outra vez quando a levaram a Burlington House, não se sentia obrigada a voltar à contemplá — la pela terceira vez, e estava entretida vigiando se aparecia algum conhecido seu que tivesse decidido visitar o Museu Britânico essa manhã.
— Senhor Beaumaris! Que feliz coincidência! — exclamou com alegria — . Como está você? Por que não assistiu ontem ao café da manhã veneziano dos Kirkmichael? Foi uma festa deliciosa! Asseguro que teria gostado! Imagine, tinha seiscentos convidados!
— Me agrada saber que entre tanta gente a senhora percebesse a minha ausência, senhora — respondeu Beaumaris bejando — lhe a mão — . Passei uns dias fora da cidade, e cheguei esta manhã. Senhorita Tallant — Bridlington...
Arabella, que tinha dado um soluço ao ouvir o nome do cavalheiro e girado rapidamente a cabeça, lhe entregou a mão com nervosismo lhe dirigindo uma olhada inquisitiva. Ele a tranquilizou com um sorriso, e prestou atenção a lady Bridlington, que estava assegurando que só tinha ido ao museu para mostrar os tesouros gregos a Arabella, que não tinha tido o privilégio de os ver quando foram exibidos pela primeira vez. Lord Bridlington, que não era reacionário ao aumento de sua audiência, começou a expor, com seu tom transcendental, o que achava sobre o suposto valor artístico daqueles fragmentos, um passatempo que sem dúvida tê — lo — ia mantido ocupado durante um considerável momento se Beaumaris não lhe tivesse interrompido dizendo com languidez: — Imagino que os ditames de West, e de sir Thomas Lawrence, devem de ter estabelecido o valor estético destas antiguidades. E quanto à pertinência de sua aquisição, cada um de nós pode manter a sua pr´pria opinião.
— Gostaria de vir conosco a Somerset House, senhor Beaumaris? — perguntou lady Bridlington — . Não sei por que não fomos no dia da inauguração, ainda que ultimamente tivéssemos tantos compromissos que não me estranha que não fôssemos. Arabella, querida, suponho que deves estar cansada de olhar todos estes malogrados fragmentos de friso, ou como os chamem, e que figarás alegre de poder contemplar uns quadros para variar. Admito que eu também estou farta de tanta pedra!
Arabella assentiu e lançou um olhar tão suplicante a Beaumaris, que este aceitou um assento no cabriolé.
Pelo caminho a The Strand, lady Bridlington ia tão ocupada saudando com a mão aos conhecidos com que cruzava para que estes observassem no distinto ocupante de seu cabriolé, que mal pôde conversar. Arabella, sentada com a cabeça baixa, brincava com as fitas do cabo de sua sombrinha; Beaumaris teve ocasião de observá — la e percebeu sua palidez e suas marcadas olheiras. Só sobrava lord Bridlington para entretener ao grupo, o que fez de bom gosto, pois não deixou de falar até que o carro entrou no pátio de Somerset House.
Uma vez no interior do edifício, lady Bridlington, que tinha ambicionado durante um tempo promover o casamento de Arabella com o Incomparável, aproveitou a primeira ocasião que se apresentou para afastar Frederick do interessante casal. Expressou seu fervoroso desejo de ver a última obra de arte de sir Thomas Lawrence, fez com que interromper sua meticulosa inspeção do último e enorme quadro a óleo do Presidente e pediu — lhe que a acompanhasse para procurar o famoso quadro.
— Em que posso ajudá — la, senhorita Tallant? — perguntou Beaumaris baixinho uma vez que ficaram sozinhos.
— Recebeu minha carta? — balbuciou ela olhando — o rapidamente em seus olhos. — Esta manhã. Dirigi — me de imediato a Park Street, e entendendo que o assunto requeria certa urgência, a segui até Bloomsbury.
— Que amável você é! — balbuciou Arabella com o mesmo tom que teria empregado se tivesse dito que o senhor Beaumaris era um monstro cruel.
— De que se trata, senhorita Tallant?
Fingindo admirar com encantamento o quadro que tinha ante ela, Arabella disse: — Suponho que já terá esquecido de tudo, senhor Beaumaris, mas... uma vez disse — me... isto é, teve a amabilidade de me dizer... que se em algum dia mudassem meus sentimentos... Beaumaris interveio com clemência e pôs fim a sua turvação:
— Não, não o esqueci. Vejo que lady Charnwood se acerca, assim nos afastemos um pouco. Está a insinuar — me, senhorita Tallant, que reconsiderou sua decisão?
Obediente, ela se adiantou um pouco para contemplar um quadro intitulado “Idoso pedindo a uma mãe a mão de sua filha”, que reagia em consentir uma união tão dispare.
— Sim — respondeu lacônica.
— Este lugar impede — me de fazer mais que lhe assegurar que acaba de me converter no homem mais feliz de Inglaterra, senhorita Tallant.
— Obrigado — disse Arabella com rigidez — . Tentarei ser uma... esposa complacente, senhor Beaumaris.
Este reprimiu um sorriso e contestou com seriedade:
— E eu, de minha parte, tentarei ser um esposo irrepreensível, senhorita Tallant. — Sim, estou certa que o será — disse Arabella com inocência — . Pergunto — me se... — Se...
— Nada! Oh, olhe! O senhor Epworth!
— Uma rápida saudação bastará para enfriar suas pretensões. E se isso não for suficiente, o olharei através de meu monóculo.
A Arabella deu um pequeno sorriso, mas em seguida voltou a adotar uma expressão séria; era evidente que se esforçava por encontrar as palavras com que se expressar. — Que lugar mais estranho elegemos para nos declarar — observou Beaumaris guiando — a para um sofá vermelho de felpa — . Esperemos que se nos sentarmos e fingirmos estar envolvidos numa interessante conversa ninguém tenha a desfaçatez de nos interromper. — Não sei que deve pensar de mim!
— Acho que será melhor que não lhe diga até que encontremos um lugar mais afastado. O delicioso rubor que cobre suas faces quando lhe faço elogios poderia chamar a atenção dos curiosos. Arabella vacilou um instante, mas voltou — se para ele com determinação e aferrada a sua sombrinha.
— Senhor Beaumaris, é verdade que quer casar — se comigo?
— É claro que sim, senhorita Tallant.
— E... e... é você tão rico que minha... fortuna não significa nada para você? — Não significa nada em absoluto.
A jovem deu um profundo suspiro.
— Então... podemos casar — nos o quanto antes? — perguntou.
«Mas que demônios significa isto? — pensou Beaumaris, estupefato — . Será que esse condenado jovenzinho continuou fazendo travesuras enquanto eu estava fora da cidade?» — Quanto antes? — repetiu ele, imperturbável.
— Sim! — confirmou Arabella, ansiosa — . Verá, é que não gosto nada das... formalidades nem... todo o rebuliço que implica o anúncio de um compromisso. Gostaria de casar — me com muita discrição. Na mais estrita intimidade, de fato, e antes de que alguém tenha suspeitado que... que aceitei seu agradável oferta.
«Esse maldito malandro deve estar mais individado do que eu acreditava — pensou Beaumaris — , e ainda assim ela não ousa me contar a verdade. É sério que pensa levar à prática esta extravagante sugestão — Sem dúvida, diante de uma situação assim um homem virtuoso a faria entender que não há nenhuma necessidade de chegar a tais extremos. Mas que vidas tão aborrecidas devem levar os homens virtuosos!»
— Talvez pareça — lhe estranho, mas sempre pensei que fugir deve ser muito romântico — declarou Arabella com atrevimento.
Beaumaris, cujo principal defeito era, segundo muitos, seu extraordinário gosto pelo ridículo, não prestou atenção ao que lhe dizia o seu senso comum e se apressou a responder: — Quanta razão tem! Não sei como não me ocorreu antes. O anúncio do compromisso de duas pessoas tão destacadas como nós converter — nos — ia no alvo de fastidiosos comentários e felicitações.
— Exatamente! — confirmou Arabella, aliviada ao ver que ele contemplava o assunto de forma tão razoável.
— Ademais, pense no desgosto que teria Horace Epworth — prosseguiu Beaumaris, entusiasmando — se por momentos com aquele plano — . Seus desvarios o tirariam do sério! — Sim, não estranharia.
— Estou convencido disso. Ademais, o formalismo de pedir — lhe a seu pai que me permita cortejá — la está muito antiquado, e podemos prescindir. Ainda que tenha quem considerar que não está certo se casar com uma menor de idade, nós não temos por que nos preocupar. — Pois... não, claro que não — concordou Arabella, vacilante. Você acredita que todos... irão se surpreender muito, senhor Beaumaris?
— Não — respondeu ele com absoluta sinceridade — . Ninguém se surpreenderá nem um pouco. Quando gostaria de fugir? —
— Que lhe parece manhã? — propôs Arabella com inquietação.
Beaumaris teria gostado que sua amada tivesse confiado mais a ele, mas a verdade é que estava se divertindo com aquela conversa. Com Arabella não teria muitos momentos de aborrecimento; ademais, sabia que a suposição, por parte dela, de que ele estaria disposto a se comportar de um modo tão indecoroso surgia de uma inocência que ele achava fascinante. — Parece — me estupendo — respondeu sem vacilar. Se não tivesse recordado que talvez tenha fazer alguns preparativos, ter — lhe — ia sugerido que saíssemos juntos deste edifício agora mesmo.
— Não, isso seria impossível — disse Arabella com seriedade — . De fato, não entendo muito destas coisas, mas me parece que seria muito difícil para mim fugir de Park Street sem que ninguém se inteirasse. Porque tenho que levar, no mínimo, uma bolsa de viagem, além do meu baú, e como conseguiria? A não ser que fuja a noite, é claro, mas teria que ser muito tarde, porque o porteiro nunca se afasta desde que lord Bridlington regressou. E poderia adormecer — acrescentou com renovada inocência.
— Não sou partidário das fugas noturnas — afirmou Beaumaris — . Segundo pude perceber, essas proezas implicam no emprego de escadas de corda, e somente a ideia de que me surpreendessem lançando uma para sua janela me parece tremendamente incômoda. — Eu não desceria por uma escada de corda por nada do mundo! Ademais, meu quarto está na parte de trás da casa.
— Acho que melhor será que eu me ocupe dos preparativos necessários — sugeriu Beaumaris. — Sim, — disse ela, agradecida — . Estou segura de que você, com sua grande experiência, saberá solucionar os detalhes.
Ele suportou essa alusão ao seu passado sem estremecer.
— Efetivamente, senhorita Tallant — admitiu com gravidade — . Acabo de lembrar que amanhã é quarta — feira e, portanto, terá função de gala nos jardins de Vauxhall. — Sim, lady Bridlington pensava levar — me ali, mas depois recordou que é a noite da festa em Uxbridge House.
— Uma festa aborrecidíssima, diga — se logo. Pedirei a lady Bridlington (e a lord Bridlington, é claro) que me concedam a honra de me acompanhar a Vauxhall. Como é lógico, incluirei você nesse convite, de maneira que no momento adequado durante o transcurso da festa, nos escapuliremos juntos até a entrada da rua, onde estará nos esperando o meu cupé. Arabella considerou a proposição e formulou duas objeções:
— Sim, mas lady Bridlington não estranhará que você saia de sua própria festa sem se despedir? Beaumaris não comentou que seguramente lady Bridlington consideraria essa excentricidade o detalhe menos estranho de todo o assunto.
— Tem muita razão. Terá que lhe enviar uma nota após nossa partida. — Sim, suponho que isso será melhor que nada — concedeu Arabella — . Ai! Crê que minha madrina me perdoará algum dia pelo que vou fazer? — Deixou escapar essa involuntaria exclamação. A seguir expôs a segunda objeção — : E em qualquer caso, não poderia levar a bolsa de viagem a Vauxhall.
— Disso também me encarregarei.
— Mas você não pode o pegá — la em Park Street!
— Não, claro que não.
— E eu não vou fugir sem roupa para mudar, e sem minha escova e minha pasta de dente — declarou Arabella.
— É claro que não. Isso seria muito inconveniente. Disso ocupar — nos — emos depois. — Mas você não pode me comprar esse tipo de coisas! — exclamou Arabella. — Asseguro — lhe que não tenho nenhum inconveniente em fazê — lo. — Que horrível é tudo isto! — exclamou ela o olhando fixamente — . Nunca pensei que chegaria a me ver numa situação assim. Estou convencida de que para você é comum, mas para mim — Mas já vejo que de nada serve que lhe ponha reparos!
A comissura da boca de Beaumaris tremeu reveladora e ligeiramente, mas foi controlada no mesmo instante.
— Bom, talvez não seja comum também para mim — exclamou — . Acontece que nunca antes tinha fugido com alguém. No entanto, confio que qualquer pessoa com um grau aceitável de talento não seja impossível pôr em prática semelhante plano. Vejo que a senhora Penkridge tenta chamar sua atenção ou a minha. Acho que deveríamos permitir — lhe, e enquanto ela lhe pede que dê sua opinião sobre esse busto de Nollekens, irei procurar lady Bridlington e pedirei que a leve a Vauxhall amanhã a noite.
— Não; rogo — lhe! Não suporto a senhora Penkridge! — murmurou a jovem. — Sim, é uma mulher muito cansativa, mas creio ser impossível evitá — la. Ao ver que Beaumaris se punha em pé, a senhora Penkridge se dirigiu para ele esboçando uma desagradável sorriso. O cavalheiro saudou — a fazendo uso de sua habitual cortesia, falou com ela durante um minuto e então, para grande indignação de Arabella, deu uma saudação e se dirigiu à sala contigua.
Arabella pensou que a Beaumaris tinha custado muito para encontrar lady Bridlington, ou tinha sido vítima de sua verborrea, porque demorou um longo período para voltar a vê — lo. Quando por fim reapareceu, lady Bridlington caminhava a seu lado, muito sorridente. Arabella se seculpou com a senhora Penkridge e foi reunir — se a sua madrinha, que, muito contente, lhe comunicou que o senhor Beaumaris tinha organizado uma maravilhosa festa em Vauxhall. — Não tive nenhum reparo em aceitar seu convite, querida, porque sabia que iria encantá — la ir. — Sim — admitiu ela com a impressão de que acabava de se comprometer a fazer algo tão irrevogável e censurável que sem dúvida lamentaria toda a vida — . Quero dizer... Oh, claro que sim! Sim, será um prazer!
* * *
Capítulo 16
Ao sair de Somerset House, Beaumaris subiu a um carro de aluguel e dirigiu — se ao Red Lion. O que lhe contaram na pousada colocou muita luz sobre a conduta de Arabella. Como tinha suas razões para achar que fazia muito tempo que tinha ganhado o afeto da jovem, não se sentiu absolutamente ferido ao descobrir que Arabella tinha decidido se casar com ele para resgatar seu irmão do indiviadamento, senão mais bem confortado. Depois de pagar o que devia Bertram na pousada, e após que o dono lhe devolvesse o relógio do jovem, voltou a sua casa em outro carro de aluguel.
O mesmo gosto pelo ridículo que lhe tinha feito levar um dente de leão na lapela durante três dias seguidos sem outro propósito que desfrutar da confusão de seus infelizes amigos e imitadores lhe fez estar profundamente agradecido pela situação em que se encontrava; de maneira que suportou tranquilamente o tédio do trajeto até Mount Street perguntando — se quando ocorreria a sua ingênua amada pensar que a revelação, imediatamente após o casamento, de que precisava o quanto antes que seu novo esposo lhe desse uma grande soma de dinheiro, ia provocar uma situação um tanto violenta. Não podia evitar imaginar a cena, e ainda estava rindo quando chegou a sua casa, atitude que surpreendeu consideravelmente o seu mordomo. — Envie alguém aos estábulos para providenciar o meu tílburi, Brough. E pede a Painswick — Ah, mas se estás aqui — acrescentou ao ver que seu criado de quarto descia pela escada — . Não quero ouvir falar de camisas desaparecidas, um tema aborrecidíssimo que, por tua expressão, vejo que gostarias de discutir em profundidade. No entanto, diga — me, onde está a carta que te entreguei para que a levasses ao Red Lion, a um tal senhor Anstey, e por que não me disseste que não a tinhas levado?
— Talvez recorde, senhor — respondeu Painswick com tom de reprovação — , que quando estava se arrumando, lhe mencionei que tinha um assunto que considerava que era meu dever falar. E o senhor, me respondeu: «Agora não.»
— Ah, sim — Ignorava que fosse tão fácil te fazer calar. Onde está essa carta? — A coloquei embaixo do monte que tinha nessa mesa — respondeu Painswick negando tacitamente toda responsabilidade.
— Nesse caso estará na biblioteca. Obrigado. Nada mais.
Ulisses, que se achava deitado na biblioteca desfrutando do sonho dos que têm saciado completamente o seu apetite, acordou ao ouvir entrar a seu amo, bocejou, se levantou, se sacudiu, espirrou várias vezes, se esticou e indicou com suas torcidas orelhas e sua alegre cauda que já estava preparado para qualquer aventura.
— Alegro — me de ver que recuperas — te teu aspecto habitual — disse Beaumaris enquanto procurava entre a correspondência a carta escrita a Bertram — . Não deveria ter me dissuadido de voltar a sair aquela noite. Olha o que passou! Ainda que... não sei. Não teria perdido a entrevista desta manhã por nada do mundo. Suponho que pensas que me estou a portar muito mau. É
verdade, obviamente, mas ao menos reconhece que essa jovem merece por ser tão adoravelmente ingênua.
Ulisses agitou a cauda. Não só estava disposto a reconhecer o quer que fosse do seu amo, como indicou sua disposição de acompanhá — lo em qualquer expedição que tivesse planejado. — Suponho que de nada servirá que te diga que estás a ocupar o assento de Clayton, não é verdade? — disse Beaumaris pouco depois, ao subir a seu tílburi.
Clayton, sorridente, assegurou que não lhe importava levar o cão em cima dos joelhos, mas seu senhor negou com a cabeça.
— Não, não. Não acho que isso agrade a Ulisses. Não te vou precisar — disse, e saiu comentando a seu atento acompanhante — : Agora nos entregaremos à cansativa tarefa de encontrar o amigo desse insensato jovem, Felix Scunthorpe. Pergunto — me se em tua heterogênea linhagem terá sangue de sabugo.
Dirigiu — se diretamente a casa do senhor Scunthorpe, mas quando lhe informaram que este tinha mencionado que pensava ir a Boodle’s, se encaminhou em seguida a St. James’s Street, e teve a sorte de avistar a sua presa passeando pela calçada. Freou os cavalos e chamou — o com tom imperativo:
— Scunthorpe!
Este se tinha fixado em quem conduzia a perigosa parelha que puchava o tílburi, mas como não esperava que o Incomparável o reconhecesse, se surpreendeu ouvir seu nome. — Eu, senhor? — perguntou, um tanto indeciso.
— Sim, você. Onde está o jovem Tallant? — Viu que Scunthorpe adotava uma expressão cautelosa e acrescentou com impaciência — : Vamos, não seja tão néscio! Não pensará que pretendo entregá — lo aos guardas, não é verdade?
— Está no Cock — confessou Scunthorpe com relutância — . Isto é — corrigiu — se, recordando de repente que seu amigo utilizava um nome falso — , está ali se está se referindo ao senhor Anstey. — Você tem irmãos?
— Não — contestou Scunthorpe olhando — o com estranheza — . Sou filho único. — Que alívio. Felicite seus pais de minha parte.
O jovem refletiu, com a fronte franzida, mas não entendeu o comentário e decidiu esclarecer o assunto.
— Quer dizer a minha mãe. Meu pai morreu quando eu tinha três meses. — É compreensível. Surpreende — me que durasse tanto tempo. Onde é esse Cock de que fala? — O caso é que... não sei se devo lhe dizer.
— Creia — me, Scunthorpe, se não me contar, estará prejudicando gravemente o seu equivocado amigo.
— Está bem — está na esquina de Duck Lane, em Tothill Fields — capitulou o jovem. — Deus meu! — exclamou Beaumaris, e pôs — se em marcha de imediato. Apesar de tratar — se de um edifício pequeno e acanhado, a pousada Cock resultou mais respeitável do que a sua localização tinha levado a crer ao senhor Beaumaris. A calçada de Duck Lane eatava coberta de toda classe de lixo, mas o Cock parecia moderadamente limpo e bem cuidado. Até tinha um porteiro, que saiu do estabelecimento para contemplar o tílburi. Quando o porteiro se deu conta de que o dandi que levava as rédeas não se tinha detido meramente para perguntar o caminho, e ao contrário, queria que se encarregasse de seu carro e seu cavalo, se emocionou pensando na gorjeta que talvez pudesse receber, e se apressou a assegurar aquele nobre cliente que estava disposto a esmerar — se com seu carro.
Beaumaris desceu então do tílburi e entrou na taberna da pousada, onde seu aparecimento fez que um aguador, um cocheiro, dois pedreiros, um trapeiro e o estalajadeiro interrompessem subitamente sua conversa e ficassem olhando — o.
— Bom dia — saudou — os Beaumaris — . Acredito que se aloja aqui um tal senhor Anstey. O estalajadeiro, recuperando — se de sua surpresa, adiantou — se e inclinou várias vezes a cabeça. — Sim, excelência! É verdade, excelência! — E acrescentou — : Joe, tira daqui a esse vira — lata. Se o desejar, excelência?
— Não, Joe, não o tire! — interrompeu — o Beaumaris.
— É seu o cão? — perguntou o estalajadeiro, estranhado.
— Sim, é meu. Uma raça muito rara: sua árvore genealógica surpreendê — lo — ia. Encontra — se o senhor Anstey na pousada?
— Deve de estar em seu quarto, senhor. Passa o dia ali encerrado, senhor. Se sua excelencia quer entrar no salão, irei procurá — lo em seguida.
— Não, prefiro que me indique o quarto. Deixa de procurar ratos, Ulisses! Esta manhã não há tempo para caçadas. Venha aqui!
Ulisses, que tinha descoberto um prometedor buraco num canto da taberna e estava fuçando de forma calculada para manter o seu ocupante morrendo de medo ali dentro ao menos durante as vinte e quatro horas seguintes, obedeceu a seu amo relutantemente, e o seguiu por uma íngreme e estreita escada. O estalajadeiro chamou em uma das três portas que tinha no andar de acima, uma voz lhe disse que entrasse, e o senhor Beaumaris, lhe indicando ao sua guia com uma gesto de cabeça que não precisava dele, entrou, fechou a porta e disse alegremente: — Como está você? Espero que não se importe que tenha trazido a meu cão.
Bertram, que se achava sentado em uma pequena mesa tentando pela enésima vez arranjar uma maneira para solucionar suas dificuldades, levantou rapidamente a cabeça e se levantou, tão pálido como a camisa que levava.
— Senhor Beaumaris! — balbuciou agarrando — se ao respaldo da cadeira com a mão trêmula. Ulisses não deve ter gostado do tom que tinha empregado, porque lhe rosnou, mas seu amo o chamou ao ordem.
— Quantas vezes tenho de te dizer que és um mal — educado, Ulisses? – repreendeu — o com severidade — . Nunca provoques uma briga com um homem debaixo seu próprio teto. Deite — se agora mesmo! — Tirou as luvas e atirou — as em cima da cama — . Você é realmente cansativo! — disse — lhe a Bertram com tom afável.
— Pensava ir a sua casa na quinta — feira, como você me pediu — replicou o jovem Tallant, murmurando e com voz afogada.
— Não o duvido. Mas se não tivesse sido tão tolo e não tivesse abandonado o Red Lion tão — apressadamente, não teria tido necessidade de que se desesperar desta forma. Você não ter — se — ia preocupado até quase enlouquecer e eu não ter — me — ia visto obrigado a trazer a Ulisses a uma localidade que, como pode ver, não gosta em absoluto.
Bertram olhou desconcertado a Ulisses, que estava sentado de maneira insinuante junto à porta. — Você não entende, senhor. Estava... individado. Tinha que escolher entre isso e o cárcere, suponho.
— Sim, eu também o pensei. Na manhã seguinte enviei — lhe uma nota de cem libras junto com minha declaração de que não tinha intenção alguma de lhe reclamar o dinheiro que tinha perdido jogando comigo. Já sei que teria sido muito melhor que lho tivesse dito ali mesmo, e melhor ainda o ter expulsado do Nonesuch Clube assim que o vi entrar. Mas convirá comigo em que a situação era um tanto violenta.
— Senhor Beaumaris — disse Bertram com considerável dificuldade — , agora não po — posso liquidar minhas promissórias, mas dou — lhe minha palavra de que devolver — lhe — ei o dinheiro que lhe devo. Pensava ir vê — lo na quinta — feira para explicar — lhe tudo e — e pe — pedir — lhe que fosse indulgente comigo.
— Parece — me muito bem. Mas não estou acostumado a ganhar grandes somas de dinheiro a custa de colegiais, e não esperará você que altere meus hábitos só para satifazer a sua consciência. Quer que nos sentemos, ou não se fia nestas cadeiras?
— Oh! Perdoe — me, rogo — lhe! — balbuciou Bertram corando — . É claro! Não sei em que estava pensando. Quer sentar — se nesta cadeira? Mas não! Devo... Oh! Posso oferecer — lhe algo para beber? Aqui não têm grande coisa, apenas cerveja e gim, mas se lhe apetece um pouco de gim? — Não, obrigado, e se desde a última vez que o vi tem estado a dedicar — se a isso, não me surpreende que esteja tão magro.
— Não, não tenho — Bom, no princípio sim bebia, mas conhac — Mas não, ultimamente já não — gaguejou Bertram, envergonhado.
— Se tem estado bebendo o conhac que vendem neste bairro e está ainda vivo, é que deve ter uma constituição de ferro. A quanto chega o total de suas dívidas? Ou não o sabe? — Sim sei — o, mas... Não vou permitir que pague minhas dívidas, senhor! — De repente ocorreu — lhe algo horrível; olhou fixamente seu visitante e perguntou — lhe — : Quem lhe revelou meu paradeiro?
— Esse afável cabeça de vento amigo seu, é claro.
— Scunthorpe? — — disse Bertram com incredulidade — . Asseguro que... não foi outra pessoa?. — Não, não foi outra pessoa. Ainda não falei deste assunto com sua irmã, se se refere a isso. — Como sabe que é minha irmã? Não me diga que também foi Scunthorpe quem lhe contou. — Não, deduzi eu mesmo, faz tempo. Conserva suas facturas? Mostre — me. — Por nada do mundo! — se agitou Bertram — . Isto é, estou — lhe muito agradecido, e você incrivelmente amável, mas compreenderá que não posso aceitar tanta generosidade. Mas se mal nos conhecemos! Não entendo como lhe ocorreu fazer algo assim por mim. — Bom, mas não estamos destinados a seguir sendo desconhecidos. Vou casar — me com sua irmã. — Que se vai casar com...
— Assim é. Como compreenderá, isso muda tudo. Não esperará que cobre dinheiro do irmão de minha esposa que perdeu no faraó, nem que leve o estigma de ter um parente na prisão de Fleet. Deveria pensar um pouco em mim, querido amigo.
Bertram tinha os lábios trêmulos.
— Já entendi! Minha irmã foi a você, e por isso...! Mas se acha que caí tão baixo para deixar que Bela se sacrifique só para me salvar da desgraça...
Ulisses, ofendido pelo tom de voz de Bertram, correu junto a seu amo e ladrou ameaçadoramente ao desconhecido. Beaumaris acariciou — lhe a cabeça.
— Sim, Ulisses, este jovem é muito grosseiro — concordou — . Mas não importa. Tem que levar em conta que não é todo mundo que me tem em tão grande estima como tu. — Não me referia a... — balbuciou Bertram, perturbado — . Rogo — lhe que me perdoe! Só queria dizer... Bela não me tinha contado.
— Ah, não? Que reservadas são as mulheres, acredito. Talvez pensou que seus pais deviam ser os primeiros a se inteirar da notícia.
— É possível — disse Bertram com escassa convicção — . Mas como me disse que não podia se casar com ninguém porque tinha feito crer a todos que era uma grande herdeira...
— Eu não o acreditei em absoluto.
— Ah! — disse Bertram com alívio — . Pois bem, senhor, tenho que dizer que me alegro muitíssimo, porque me pareceu que você gostava dela mais do que qualquer outro de seus pretendentes. Desejo — lhe muita felicidade. E, é claro, compreendo que isso justifica que queira perdoar a dívida que contraí com você, ainda que não ache que deva lhe permitir pagar minhas outras dívidas, porque não são assunto seu, e...
— Não voltemos a começar, por favor! Diga — me que pensa fazer se não assumo suas dívidas. — Pensava alistar — me num regimento de cavalaria, se é que me aceitam. Com nome falso, é claro. — Acho que lhe conviria ingressar num regimento de cavalaria — aconselhou Beaumaris — . Mas seria muito melhor para você, e para todos nós, que o fizesse com seu próprio nome e o cargo de tenente. O que gostaria? — Um regimento de hussar?
Essas assombrosas palavras fizeram que Bertram se pusesse primeiro vermelho e depois branco, e que engolisse saliva para finalmente gaguejar:
— Me es...está enganando! Após o que passou! Ai! Fala em sério, senhor? — É claro. Mas entregue — me suas faturas!
— Não mereço que ninguém faça nada por mim! — disse Bertram, acrabunhado. — As faturas!
O jovem, que flutuava já num sonho beatífico, deu um suspiro e disse: — As faturas? Ah! Ah, sim! Tenho — as todas aqui, mas lhe advirto que irá se assustar quando vir quanto dinheiro gastei, e...
— A mim nada me assusta — afirmou Beaumaris estendendo uma mão. Meteu o monte de folhas amassadas no bolso da jaqueta e disse — : Saldarei estas dívidas de maneira que nenhum de seus credores suspeite que não foi você quem as pagou. Deve algo neste bairro? Bertram negou com a cabeça.
— Não, porque Bela me deu todo o dinheiro que tinha quando veio me ver. Temo que você não aprovará que o tenha feito, senhor, e eu também não, mas esse insensato, Felix, a trouxe e... Era um lugar horrível, e devo admitir que foi culpa minha que minha irmã entrasse em semelhante pocilga.
— Deixa — me consternado. Espero que sua irmã não encontrou nenhum indigente com quem achasse que era seu dever travar amizade.
— Não, não o creio. Mas Felix comentou — me que Bela disse a uma mulher conhecida como Susie las Trancas que não alimentasse seu filho com gim, e que lhe deu um xelim para que lhe comprasse leite. E sinto muitíssimo, senhor, eu desejaria que não tivesse encontrado, mas Felix diz que toparam com Peggy las Botelhas, que... que foi quem me recolheu quando me achava tão destroçado que nem sequer sabia onde estava nem como tinha chegado ali. Ela... portou — se muito
bem comigo, a sua maneira, você me entende, e Bela meteu na cabeça que estava em dívida com ela por ter cuidado de mim. Mas isso não é grave, pois dei a Peggy cinco libras do dinheiro que me deixou minha irmã.
— Que Deus nos proteja! Agora irá me pedir que acolha essa bruxa em minha casa! Diz que se chama Peggy las Botelhas — Santo Deus!
— Não, não, senhor! Nada disso! — exclamou Bertram — . Por que minha irmã faria algo assim ? — Porque é o que costuma fazer — replicou Beaumaris com amargura — . Não irá pensar que adotei voluntariamente esse animal, não é verdade?
— Insinua que ele foi indicado por Bela? Como terá lhe ocorrido semelhante disparate! Permita — me dizer que pensei que era um cão um pouco estranho para você, senhor. — Toda Londres pensa exatamente o mesmo. Até o estalajadeiro lá embaixo tentou jogá — lo fora da taberna. — Pegou sua carteira, sacou dela várias notas e as pôs em cima da mesa — . Aqui tem: pague a conta da pousada, recupere quanto tenha empenhado e compre um bilhete para a primeira diligência que saia para Harrowgate. Acho que as diligências que vão para o norte partem uma hora inconveniente da manhã, assim será melhor que passe a noite na pousada de onde partem. Confio que uns dias tomando ar puro consertem os estragos do conhac e lhe permitam que se apresente ante seu pai sem acordar suas suspeitas.
Bertram tentou falar, não pôde, tentou de novo e ao final atinou a dizer com tom áspero: — Não pu...posso fazer como quer, e sei, é claro, que atua assim por Bela. Mas uma coisa sim posso fazer, e a farei. Contarei tudo a meu pai, senhor, e — e se ele me disser que não devo entrar num regimento de hussar após a maneira lamentável que me portei — eu aceitarei! — Sim — admitiu Beaumaris — , essa é uma atitude muito nobre por sua vez, é claro, mas sempre achei que, antes de que um se permita uma orgía de expiação, é conveniente considerar que se eu fosse você, não causaria uma dor desnecessária ao receptor da classe de confissão que você pensa em fazer.
Bertram ficou calado um momento, enquanto assimilava essas palavras. — Não acha que deva explicar a meu pai, senhor?
— Não só não acho que deva lhe explicar, como que lhe proíbo terminantemente que lhe mencione este assunto.
— Não gosto de enganar a meu pai — justificou — se Bertram com timidez — . Veja... — Já sei que não gosta, de maneira que se está decidido a fazer penitência, essa será uma boa maneira. Ficou em Berkshire com Scunthorpe: tenha isso na mente, e esqueça que esteve alguma vez nem a quinze quilômetros de Londres. — Levantou — se e estendeu — lhe a mão — . Agora tenho que ir. Faça o favor de não se atormentar pensando que violou os dez mandamentos. Só atuou como teriam atuado quatro emcada cinco jovens aloucados se os tivessem solto na cidade. E de passagem adquiriu uma valiosa experiência, assim a próxima vez que vir a Londres comportar — se — á muito melhor.
— Jamais poderei voltar a Londres, senhor — disse Bertram com nostalgia — . Mas muito obrigado. — Isso são tolices! Uns anos no exército e convertido a um posto de capitão com um formoso bigode marcial. Ninguém irá reconhecê — lo. Na verdade, não vá visitar sua irmã para se despedir dela, porque hoje está muito ocupada. Lhe direi que voltou a Yorkshire. Ulisses, deixa de coçar — se! Sim, já vamos, mas não é necessário, e também não é de boa educação, que dês esses pulos de alegria. — Recolheu suas luvas, apertou a mão de Bertram e dirigiu — se para a porta, mas então recordou algo e levou uma mão ao bolsinho interior — . Minha relação com este cão (o amigo de todos os ladrões da cidade, não me cabe dúvida) está minando rapidamente meu moral. Tome, Bertram! Seu relógio!
* * *
Capítulo 17
Beaumaris manteve — se muito ocupado horas antes de sua fuga, e ainda que desses instruções precisas a seu cocheiro e a seu pontilhão, e se ausentasse brevemente de Londres, não realizou os trâmites para conseguir a licença necessária para se casar. Por conseguinte, podia deduzir — se que pensava em dirigir — se à fronteira escocesa e celebrar a cerimônia em Gretna Green, o que supunha um desvio do canônico do bom gosto que teria deixado estupefato a qualquer de seus conhecidos que tivesse albergado a menor suspeita de suas ocultas intenções. Mas como ninguém com quem se encontrou detectou nada fora do habitual em sua conduta, ninguém exceto sua futura esposa chegou a especular a respeito do que se passava.
Arabella, como é lógico, dedicou o tempo todo que não esteve ocupada com compromissos sociais às especulações, mas como ignorava por completo as normas que regiam os casamentos precipitados, não se lhe ocorreu pensar na necessidade de uma licença especial. Supunha, é claro, que o senhor Beaumaris levá — la — ia a Gretna Green, e como tinha aceitado esse desagradável requisito, decidiu afastá — lo de sua mente. Por muito romântica que pudesse resultar semelhante aventura, nenhuma jovem que, como era o caso, se tivesse criado num ambiente do mais estrito decoro podia embarcar nela sem sentir que tinha caído numa irreparável depravação. Não sabia como ia explicar sua conduta ao párroco, e só a consolava pensar nas dificuldades de Bertram. Após assistir à ascensão de um balão e antes de vestir — se para um baile espetacular, aproveitou dez minutos para escrever uma carta a Bertram a fim de assegurar — lhe que bastava com que tivesse um pouco de paciência e esperasse no Cock aguns dias a mais, e que ela livrá — lo — ia de todas suas dificuldades.
Não voltou a ver a Beaumaris até que o encontrou nos jardins de Vauxhall, pois ele não tinha assistido ao baile da noite anterior ao seu compromisso, uma circunstância a qual Arabella não tinha sabido se devia se alegrar ou se preocupar.
Talvez fosse uma sorte que os planos de lady Bridlington lhe tivessem deixado tão pouco tempo para refletir. Não pôde se permitir o luxo de passar nem um duas horas sozinha em seu quarto. Por mais que o tentasse, não conseguiu permanecer acordada após aquele esplêndido baile, e na manhã seguinte dormiu até que Maria descerrou as cortinas. Como durante esse dia tivesse inumeráveis compromissos, antes de que pudesse se dar conta já estava se vestindo para ir à festa de Beaumaris nos jardins de Vauxhall.
Desde sua chegada a Londres tinha recebido uma infinidade de convites, mas Arabella ainda não tinha tido ocasião de visitar os famosos jardins. Cruzaram o rio em botes de remo e entraram pelo embarcadouro, que em qualquer outra circunstância, a jovem ter — se — ia ficado extasiada ante tanta beleza. Os jardins, formados por alamedas e colunas, estavam iluminados (como Beaumaris se encarregou de lhe explicar) por não menos de trinta e sete lustres, alguns suspendidos mediante elegantes grinaldas entre os pilares das colunas. A orquestra, que podia se ver do outro lado da alameda principal, se achava instalada num gigantesco quiosque, iluminada com luzes coloridas; tinha um amplo pavilhão, recoberto de espelhos, que formava o restaurante principal para quem não quisessem pagar pelo aluguel de um dos palcos que davam às diferentes colunas; uma rotunda, onde se celebravam excelentes concertos durante toda a temporada; várias esplêndidas fontes; e inumeráveis caminhos por onde os amantes podiam se perder a seu desejo.
O anfitrião recebeu seus convidados no embarcadouro e guiou — os até a rotunda, onde, como eram mais de oito horas, já tinha começado o concerto. Arabella quase não se atrevia a olhá — lo, mas numa ocasião se obrigou a alçar brevemente a cabeça e permitir que seus olhares se encontrassem. Ele lhe sorriu, mas nenhum dos dois disse nada.
Depois da primeira parte do concerto, cerca das dez da noite, soou um som, e os que não tinham muito ouvido musical saíram da rotunda para admirar as maravilhas da Grande Cascata. Apesar de o sentimento de culpa a atormentasse, Arabella não pôde conter uma exclamação de gozo quando se levantou a escura cortina e revelou uma cena rural, feita em miniatura mas assombrosamente fiel, de uma cascata, um moinho, uma ponte e uma sucessão de carros, carroças e outros veículos que passavam com absoluta vero similitude pelo palco. Até o som das rodas e o do rugido da água estavam perfeitos, e Arabella não se surpreendeu que todos visitassem Vauxhall três ou quatro vezes só para contemplar aquela maravilha.
Quando voltou a cair a cortina, Beaumaris propôs a seus convidados que fossem a cenar em lugar de esperar para ouvir a segunda parte do concerto. Todos se mostraram de acordo, assim se levantaram com discrição das cadeiras onde estavam sentados e foram passeando por uma das colunas até o seu reservado. Este estava excelentemente situado, bastante afastado da orquestra do quiosque para que não fosse difícil conversar, e com uma esplêndida vista da alameda principal. Ninguém, é claro, podia visitar Vauxhall sem provar as finíssimas fatias de presunto nem o ponche que tinham feito famosos os seus jantares, mas além dessas magnificências Beaumaris tinha providenciado um sortimento de pratos capaz de tentar até ao apetite mais moderado. Inclusive Arabella, que estava a vários dias muito sem apetite, desfrutou de um frango, cozinhado num fogão ante os comensais; e convenceram — na para que provasse a sopa inglesa. Beaumaris preparou — lhe um pêssego com suas próprias mãos, e ainda que a jovem pensasse que a iminente fuga não era desculpa para que esquecesse os bons modos, também o comeu, sorrindo com timidez e agradecimento. No jantar, não ocorreu a Arabella nada que dizer que não fossem simples lugares comuns, mas esse silêncio passou desapercebido no meio da avalanche verborreica de lord Bridlington. Este teve a amabilidade de explicar às damas o mecanismo das maravilhas da Grande Cascata; esboçou a história dos jardins de Vauxhall; examinou com detalhe sua reivindicação de que os considerassem uma ampliação dos antigos Spring Gardens; e descartou a tradição que vinculava aquele bairro com o nome de Guy Fawkes. Só o interromperam quando surgiu a necessidade de saudar a algum conhecido que passava ao lado do reservado. E como sua mãe murmurava de vez em quando algum comentário alentador e Beaumaris, mostrando um grande autocontrole, se absteve de expressar considerações irônicas, lord Bridlington passou uma agradável noite, e lamentou muito que seu anfitrião propusesse à senhorita Tallant ir ver os fogos de artifício.
Lord Bridlington levou Arabella pelo braço até a parte dos jardins de onde melhor podia se contemplar o espetáculo, e Beaumaris os seguiu escoltando lady Bridlington. Mas apesar de ter encontrado dois lugares adequados observou que o tinham suplantado, e além disso Frederick se viu obrigado a atender a sua mãe, que fez questão de que seu filho lhe procurasse outro assento pois o penteado de uma dama que levava umas altíssimas plumas de avestruz na cabeça estorvava sua visão.
Enfeitiçada por aquele espetáculo, Arabella esqueceu momentaneamente seus problemas, e aplaudiu quando os foguetes explodiram no céu formando uma chuva de estrelas. Beaumaris,
habituado aos fogos de artifício, desfrutou ainda mais observando o olhar que embelezava Arabella. No entanto, após a primeira peça, consultou seu relógio e disse baixinho: — Vamos, senhorita Tallant?
Essas palavras fizeram — na baixar inesperadamente das nuvens. Teve que dominar o impulso de lhe dizer que tinha mudado de ideia e recordar as misérias que devia de estar suportando o pobre Bertram.
— Ah, sim! Já é hora? — perguntou nervosa, apertando a capa de tafetá. Sim, vamos em seguida! Não tiveram nenhuma dificuldade para escapulir sem ser vistos por uma multidão concentrada nas evoluções de uma gigantesca girândola; Arabella posou uma fria mão sobre o braço do senhor Beaumaris e desceu com ele por uma passagem; passaram ao lado da Fonte de Netuno, deliciosamente iluminada, percorreram uma das colunas e chegaram até a entrada principal. Ali tinha vários carros que esperavam a seus proprietários, e entre eles se achava o cupê do senhor Beaumaris, com seu cocheiro e um pontilhão. Nenhum dos dois empregados pareceu se surpreender ao ver a uma dama acompanhando o sua patrão, e ainda que Arabella estivesse demasiado envergonhada para levantar os olhos, se deu conta de que aparentavam estar habituados a situações como aquela. Nada mais observando o seu senhor, puseram mãos à obra: retiraram as mantas que cobriam o lombo dos cavalos, baixaram os estribos do carro, abriram as portas e Beaumaris ajudou a noiva a subir ao luxuoso veículo. Arabella tinha tido que esperar tão pouco tempo na rua que nem sequer olhou para comprovar se tinha sua bagagem atada à parte traseira do carro. Beaumaris só se deteve um instante para trocar umas palavras com o cocheiro, e então subiu ao carro e se sentou ao lado de Arabella num assento com macias almofadas. A seguir fecharam — se as portas, o pontilhão ocupou seu posto e puseram — se em marcha. Beaumaris cobriu as pernas a Arabella com uma suave manta.
— Tenho uma capa mais grossa. Quer que a ponha sobre os ombros? — Não, obrigado! Não tenho frio! — respondeu ela com nervosismo. Ele lhe pegou uma mão e a beijou. Arabella retirou — a ao cabo de um momento, e procurou desesperadamente algo que dizer para aliviar a tensão.
— Que estofados tão confortáveis tem seu cupê, senhor Beaumaris! — conseguiu articular. — Alegro — me de que goste — respondeu ele com o mesmo tom cortês que ela tinha empregado — . Não esqueci, é claro, que ambos detestamos os veículos de aluguel. — Ah, sim? — respondeu ela sem convicção — . Sim, claro...
— No dia que nos conhecemos trocamos nossas opiniões com respeito aos modos de viajar. Não é de estranhar que essa lembrança deixasse Arabella sem fala. Beaumaris, muito atento, absteve — se de pressioná — la para que desse alguma resposta e começou a falar despreocupadamente sobre o concerto que tinham escutado aquela noite. Arabella, que tinha experimentado uns momentos de pânico ao se ver encerrada com seu noivo num cupé, viajando para um destino desconhecido mas seguramente remoto, lhe agradeceu muitíssimo que se
comportasse como se a estivesse a acompanhar a sua casa após algum espetáculo. A jovem tinha temido que ele tentasse cortejá — la. Ela carecia de experiência nesses assuntos, mas tinha pensado que um cavalheiro que foge com uma jovem talvez espere obter alguma mostra de afeto por parte de sua amada. Uma semana antes, a salvo na escuridão de seu quarto, com a face sobre a almofada úmida, Arabella tinha reconhecido que nada a teria feito mais feliz que o abraço do senhor Beaumaris. Agora, atormentada por sua duplicidade, não podia imaginar nada mais exasperante. No entanto, Beaumaris, que sem dúvida era o mais calmo dos noivos fugitivos, não mostrava desejo algum de sucumbir a sua paixão. Ao ver que Arabella só lhe respondia com monossílabos, desistiu de estabelecer uma conversa, e se recostou na ponta do cupé, com a cabeça ligeiramente voltada para os encostos, de maneira que podia ver o rosto da jovem, iluminado pela débil luz de lua que penetrava no veículo. Ela nem sequer se deu conta de que seu acompanhante tinha deixado de lhe falar. Achava — se absorta em seus pensamentos, muito ereta e agarrada à correia pendurada junto a seu assento. Via o pontilhão, oscilando levemente diante dela, e quando deixaram o caminho de calçado mal se apercebeu ter saído das ruas e de estar circulando pelo campo. Não tinha nem idéia de que direção tinham tomado nem onde encontrar — se — ia quando fizessem a primeira parada, nem eram essas as perguntas que a atormentavam. Sabia desde o princípio que sua indecorosa conduta era imperdoável. Mas o que nesse momento a enchia de repugnância era a repentina idéia de que se casava com o senhor Beaumaris sem ter sido sincera com ele o que o estava tratando com uma crueldade que duvidava de que pudesse chegar a lhe perdoar jamais, somada à suspeita de que ele não poderia seguir sentindo afeto por ela. Estava dando voltas a esses melancólicos pensamentos quando lhe escapou um soluço.
— Que se passa, minha querida?
— Nada! Nada! — sussurrou Arabella, perturbada.
Beaumaris pareceu aceitar essa resposta, pois manteve — se em silêncio. A jovem decidiu, tomada pelo remorso, que não podia ter no mundo outro cavalheiro mais nobre, com melhores modos, mais paciente nem mais amável que ele. Foi então que chegou o momento que o senhor Beaumaris tanto tinha esperado. De repente Arabella perguntou — se quanto teria que aguardar, após o casamento, para revelar a seu esposo a notícia de que não só precisava que perdoasse a seu irmão a dívida que tinha contraído com ele, como também devia lhe dar cem libras para que saldasse suas outras dívidas; e com que palavras ia expressar essa urgente necessidade sem o ofender. Não teve que pensar muito para compreender que estas palavras não existiam. Não entendia como podia ter sido tão tola para supor que acharia uma forma de se expressar, nem que poderia fazer semelhante confissão sem que depois lhe resultasse impossível convencer ao senhor Beaumaris de que o amava.
Essas idéias, e outras ainda mais desagradáveis, passavam em sua assustada mente quando o carro começou a reduzir a marcha. O cupé fez uma curva tão fechada que, se não estivesse agarrada à correia, Arabella teria saído sobre o ombro de Beaumaris. O veículo avançou um pouco mais, e depois deteve — se. Arabella olhou seu acompanhante e, quase sem alento, exclamou: — Não posso! Não posso! Sinto muito, senhor Beaumaris, mas tudo isto é um erro! Deixe — me voltar em seguida a Londres, por favor! Por favor, leve — me a Londres! Beaumaris recebeu esse desalentador pedido com um grau considerável de serenidade, limitando — se a dizer ao mesmo tempo em que abria a porta do cupê:
— Não prefere que discutamos este assunto num meio mais íntimo? Deixe — me ajudá — la a descer, minha amada.
— Leve — me a Londres, por favor! Não — não quero fugir! — pediu Arabella com um agoniado susurro.
— Pois não fugiremos — tranqüilizou-a Beaumaris — . Tenho de admitir que considero desnecessário. Vamos!
Arabella vacilou, mas como ele parecia decidido que a jovem descesse do cupê, e como talvez quisesse que seus cavalos descansassem, lhe estendeu uma mão e permitiu que a ajudasse a descer. Encontravam — se diante de um grande edifício, mas não tinha luzes acendidas como era habitual nas casas de posta, e não parecia que o cupê tivesse entrado num pátio. Ao final de um trecho de largos e não muito alto degrau de pedra se abria uma grande porta, e um raio de luz proveniente do interior do edifício permitiu a Arabella divisar os elegantes vasos de flores que flanqueavam a entrada. Antes que tivesse se recuperado da surpresa de se encontrar ante o que sem dúvida era uma residência privada, o senhor Beaumaris a tinha ajudado a subir os degraus e tinha entrado com ela num amplo saguão elegantemente decorado e iluminado pelas velas dos candelabros de parede.
— Boa noite, senhor — disse um idoso mordomo com uma inclinação da cabeça. Um lacaio de libré ajudou o senhor Beaumaris a tirar — se a capa, enquanto outro o despojou de seu chapéu e suas luvas.
Arabella ficou petrificada quando compreendeu o que implicava aquela situação. A tranquilizadora revelação de Beaumaris de que não iam casar se em segredo adquiria agora o mais sinistro significado. A jovem olhou — o, pálida e com expressão de pânico. Ele lhe sorriu, mas antes qualquer um dos dois tivesse ocasião de falar, o mordomo tinha informado a seu patrão que encontraria o Salão Amarelo preparado; e depois tinha aparecido uma governanta de aspecto muito respeitável, com o cabelo grisalho perfeitamente recolhido sob uma coifa, e tinha saudado Arabella com uma reverência.
— Boa noite, senhorita! Boa noite, senhor Robert! Por favor, acompanhe a senhorita ao salão enquanto eu me encarrego de que as criadas desfaçam sua bagagem. Encontrarão o fogo aceso; estou segura de que a senhorita deve de estar congelada após a longa viagem, tão tarde. Dê — me sua capa, senhorita. Em seguida lhe levarei um copo de leite quente; estou segura de que irá se sentir bem.
A promessa de um copo de leite quente, que não encaixava em absoluto com a horrorosa imagem de sedução e rapto que tinha imaginado, tranqüilizou um pouco a Arabella. Um dos lacaios tinha aberto uma porta no fundo do saguão; o senhor Beaumaris pegou — lhe a fria e trêmula mãozinha e disse:
— Quero apresentar — lhe à senhora Watchet, uma velha amiga minha. E mais, uma de nossas mais antigas aliadas!
— Senhor Robert! Alegro — me muito de conhecê — la, senhorita. Não deixe que o senhor Robert a mantenha acordada até altas horas da noite.
O temor de que o senhor Robert tivesse intenções muito diferentes se afastou um pouco mais. Arabella esboçou um sorriso, disse algo com uma tímida vozinha e deixou que o senhor Beaumaris a guiasse até o salão, decorado com extraordinária elegancia e onde um pequeno fogo ardia na soberba lareira.
A porta fechou — se suavemente por trás deles; Beaumaris acercou uma cadeira e convidou Arabella a tomar assento.
— Sente — se, senhorita Tallant. Alegro — me muito de que, após tudo, tenha decidido a não se casar em segredo comigo. A verdade é que há uma circunstância, no mínimo, pela que me custa continuar com você a viagem a Escócia, uma viagem que levaria seis ou sete dias, calculo, até que regressássemos a Londres.
— Oh! — exclamou Arabella, sentando — se com recato na borda da cadeira e olhando o seu interlocutor com gesto de apreensão.
— Sim — confirmou Beaumaris — . Ulisses!
— Ulisses? — repetiu sem compreender Arabella, abrindo muito os olhos. — Sim, esse animal que você teve o cuidado de me oferecer como presente. Desgraçadamente, desenvolveu uma predileção tão marcada por minha pessoa que quando me separo dele mais de uma noite se inquieta muito e deixa de comer. Não queria levá — lo em nossa fuga, porque não acho que exista nenhum precedente a respeito, e não gostaria de qebrar as convenções num momento assim.
A porta abriu — se nesse momento e por ela entrou a senhora Watchet, que levava um copo de leite quente e um prato com biscoitos numa bandeja de prata. Depositou — a numa mesinha junto à cadeira de Arabella, e disse — lhe que quando bebesse e desse as boas noites ao senhor Robert acompanhá — la — ia a seu dormitório. Depois de ordenar com certa severidade ao senhor Beaumaris que não retivesse à senhorita ali por muito tempo falando com ele, fez uma reverência e saiu da sala.
— Senhor Beaumaris! — disse Arabella, desesperada, logo que voltaram a ficar a sós — . De quem é esta casa?
— Trouxe — a à casa de minha avó, em Wimbledon. Deve desculpá — la por não ter descido para recebê — la, mas é muito idosa e se deita cedo. Irá conhecê — la manhã pela manhã. Minha tia, que vive com ela, teria ficado acordada, sem nenhuma dúvida, para a receber, mas está de visita em casa de uma de suas irmãs.
— A casa de sua avó? — — exclamou Arabella, levantando — se de um pulo do assento — . Deus do céu! Por que me trouxe aqui, senhor Beaumaris?
— Veja, pensei que havia a possibilidade de que você pensasse melhor sobre a fuga. Se após consultá — la você continuar achando que deveríamos ir a Gretna Green, lhe asseguro que levá — la — ei para lá, aconteça o que aconteça com Ulisses. Por minha parte, quanto mais penso, mais convenço — me de que seria melhor que nos armássemos de coragem para receber as felicitações
de nossos amigos e que anunciássemos nosso compromisso nas colunas dos jornais de sociedade da maneira habitual.
— Senhor Beaumaris — interrompeu — o Arabella, pálida mas decidida — , não posso me casar com você. — E acrescentou com outro de seus contidos soluços — : Não entendo porque você tenha proposto a se casar comigo, mas...
— Perdi toda a minha fortuna e devo recuperá — la o quanto antes — ele apressou — se a dizer. Arabella levantou — se, trêmula, e decidiu por fim revelar — lhe a verdade. — É que — eu não tenho nem um xelim! — anunciou.
— Nesse caso — replicou Beaumaris sem perder a calma — , não tem você opção: é evidente que deve se casar comigo. Já que estamos sendo sinceros um com o outro, confessar — lhe — ei que minha fortuna segue intacta.
— Mas — não entende — Enganei — o! Não sou uma rica herdeira! — exclamou Arabella achando que não a tinha compreendido.
— Você não me enganou nem um único momento — replicou ele sorrindo de uma forma que a fez tremer ainda com mais violência.
— Eu lhe menti! — gritou Arabella, decidida a fazê — lo entender o alcance de sua iniquidade. — Isso é compreensível. Mas acontece que as herdeiras não me interessam nem remotamente. — Senhor Beaumaris — disse Arabella com seriedade — , todo Londres acha que sou rica! — Sim, e como todo Londres deve seguir acreditando, você não tem outra alternativa, como acabo de lhe dizer, que se casar comigo. Minha fortuna, por sorte, é de tal magnitude que ninguém suspeitará que a sua nunca tenha existido.
— Ai! Por que não me disse que sabia a verdade? — perguntou Arabella retorcendo as mãos. Beaumaris pegou — as com doçura.
— Minha querida Arabella, por que você não confiou em mim, quando lhe assegurei que podia o fazer? Mantive a crença de que acabaria confiando a mim, e já vê que tinha razão. Estava tão convencido de que, quando chegasse o momento, não fugiria comigo desta forma tão absurda, que ontem visitei a minha avó e lhe contei tudo. Ela se divertiu muito, e me ordenou que a trouxesse aqui para passar uns dias em sua companhia. Espero que não tenha inconveniente: todo mundo teme a minha avó, mas você poderá contar com meu apoio para suportar esta dura prova. Arabella apertou as mãos com decisão e voltou a cabeça para ocultar o tremor de seus lábios e as lágrimas que escorriam de seus olhos.
— O assunto é mais infame do que imagina! — disse com voz débil — . Quando souber a verdade, não irá querer se casar comigo. Fui algo pior que mentirosa; fui desavergonhada! Não posso me casar com você, senhor Beaumaris!
— Que contrariedade. Não só enviei a notícia de nosso compromisso à Gazette e ao Morning Pós, como que também pedi consentimento a seu pai para me casar com você. A jovem voltou — se e olhou — o de novo com cara de perplexidade. — Pediu consentimento a meu pai? — repetiu, incrédula.
— É o habitual — explicou Beaumaris.
— Mas você não conhece o meu pai!
— Equivoca — se. Conheci — o na semana passada, e passei duas deliciosas noites em Heythram — esclareceu ele.
— Mas — disse — o lady Bridlington...
— Não, não foi ela. Seu irmão deixou escapar o nome de Heythram numa ocasião, e tenho uma memória excelente. Sinto muito, é verdade, que Bertram tenha passado um mau pedaço durante minha ausência da cidade. Foi culpa minha: devia procurá — lo e solucionar seus problemas antes de partir para Yorkshire. Escrevi — lhe uma carta, mas desgraçadamente ele saiu do Red Lion antes de que a entregassem. No entanto, não acho que a experiência o tenha prejudicado, de maneira que espero que me perdoem.
Arabella tinha as faces coradas.
— Então está inteirado de tudo! Ai! Que pensará de mim? Pedi — lhe que se casasse comigo porque... porque precisava setecentas libras para salvar ao pobre Bertram do cárcere. — Já o sei — admitiu Beaumaris com cordialidade — . Não sei como consegui disimular tão bem. Quando se lhe ocorreu pensar, ridícula criatura minha, que solicitar uma grande soma de dinheiro a seu esposo logo que lhe pusesse o anel no dedo talvez resultasse um pouco violento? — Agora mesmo, no cupé — confessou Arabella tampando o rosto com ambas mãos — . Compreendi que não poderia! Portei — me muito mau, mas quando me dei conta do que estava a ponto de... Sim, soube que jamais poderia fazê — lo!
— Ambos nos portamos muito mal. Eu animei Fleetwood a espalhar o rumor de que era você uma grande herdeira. Até permiti — lhe achar que conhecia a sua família. Pensei que seria divertido averiguar se podia convertê — la na mais famosa debutante de Londres, e me envergonha confessar, minha querida: foi divertido. E não me arrependo em absoluto, porque se não tivesse agido dessa forma tão reprovável, talvez não ter — nos — íamos visto tanto, após nosso primeiro encontro, e talvez não tivesse chegado a descobrir que tinha encontrado a jovem que tanto tempo estava procurando.
— Não, não! Como pode dizer isso? — exclamou ela, a ponto de verter umas grossas lágrimas — . Vim a Londres com a esperança de... de encontrar um bom partido, e pedi — lhe que se casasse comigo porque você é muito rico. Você não poderia se casar com uma pessoa tão infame! — Tem razão: seguramente não poderia. Mas ainda que tenha esquecido que quando me declarei pela primeira vez você recusou minha proposição, eu não o esqueci. Se a riqueza fosse seu objetivo,
não entendo porque me recusou então. Parecia — me que não lhe era do todo indiferente. E depois de refletir um pouco, decidi que devia me apresentar a seus pais sem perder mais tempo. E estou muito contente de tê — lo feito, porque não só passei uns dias muito agradáveis no viricato, como também desfrutei tendo uma longa conversa com sua mãe — Na verdade, sabe que se parece muito com ela — Mais, creio, que todos os seus irmãos e irmãs, ainda que sejam todos muito atraentes. Mas, como ia lhe dizendo, tive ocasião de dar um longo passeio com sua mãe, e o que me contou me animou a pensar que não me tinha equivocado ao pensar que você sentia algo por mim.
— Jamais insinuei a minha mãe, nem sequer a Sophy, que você... que você não me fosse indiferente — assegurou Arabella.
— Bom, desconheço o motivo, mas nem a sua mãe nem a Sophy surpreenderam — se com a minha visita. Talvez mencionasse — me com frequência em suas cartas, ou talvez lady Bridlington contasse a sua mãe que eu era o mais perseverante de seus pretendentes.
Quando Beaumaris mencionou a sua madrinha, Arabella deu um soluço e exclamou: — Lady Bridlington! Deus meu, lhe deixei uma carta na mesa do correio lhe explicando o que tinha feito e suplicando que me perdoasse!
— Não sofra, meu amor: lady Bridlington sabe muito bem onde está. E mais, foi muito amável, sobretudo quando lhe pedi que preparasse sua bagagem para uma breve estadia na casa de minha avó. Prometeu — me que sua criada particular encarregar — se — ia do assunto enquanto escutávamos aquele tedioso concerto. Suponho que já ter dito a seu filho que pode procurar o anúncio de nosso compromisso na Gazette de manhã e que fomos passar uns dias com a duquesa de Wigan. Quando regressarmos à cidade, nossos conhecidos já ter — se — ão acostumado à notícia, e não nos perturbarão com sua perplexidade, seu desgosto ou suas felicitações. Mas acho que deveria permitir — me que a acompanhe a sua casa de Heythram tão logo seja possível: como é lógico, quererá que seu pai nos case, e eu estou impaciente por levar a minha esposa o quanto antes. Minha querida, que disse para fazê — la chorar?
— Ai! Nada, nada! — gemeu Arabella — . É só que não mereço ser tão feliz, e que nu — nunca você me foi indiferente, ainda que tentasse por todos os meios quando achava que só estava jogando comigo.
Então Beaumaris abraçou — a com firmeza e a beijou; Arabella agarrou — se às golas de sua elegante jaqueta e chorou sobre seu ombro. Nenhum dos afagos que fez em seu cabelos que lhe faziam cóssegas no queixo conseguiu outra coisa além de intensificar os amargos soluços de sua amada, por isso terminou lhe advertindo que apesar do grande amor que sentia por ela não podia permitir que ela lhe estragasse a sua jaqueta favorita. Isso transformou as lágrimas em risos, e após enxugar as lágrimas e beijá — la de novo, Arabella recuperou a compostura e pôde se sentar no sofá a seu lado e aceitar o copo de leite morno que ele lhe ofereceu lhe aconselhando que devia bebê — lo para não decepcionar à senhora Watchet. A jovem sorriu com os olhos molhados e bebeu o leite. — E meu pai deu seu consentimento! Ai! Que dirá quando se inteirar da verdade? O que lhe contou?
— Contei — lhe a verdade.
Arabella esteve a ponto de soltar o copo.
— Toda a verdade? — balbuciou consternada.
— Sim, toda. Bom, exceto a de Bertram. Seu nome não entrou na conversa, e ordenei estritamente a seu irmão, quando o mandei a Yorkshire, que não revelasse nem uma única palavra de suas aventuras. Aprecio seu pai, e não acho que lhe faríamos nenhum favor lhe confessando essa história. Contei — lhe a verdade sobre nós dois.
— E ele? mostrou — se muito zangado comigo? — perguntou Arabella com apreensão. — Sim, temo que estivesse um pouco zangado. Mas quando compreendeu que você nunca teria alardeado ser uma rica herdeira se não me tivesse ouvido falar como um tolo a Charles Fleetwood, percebeu de que eu era mais culpado que você do engano.
— Ah, sim? — disse Arabella com receio.
— Beba o leite, meu amor! Sim, asseguro — lhe. Sua mãe e eu conseguimos fazê — lo ver que se eu não tivesse animado a Charles, o rumor nunca ter — se — ia estendido, e que uma vez divulgada o engano, era impossível que você o desmentisse, porque, como é lógico, ninguém lhe perguntou nunca se era verdadeira. Quiçá seu pai dê — lhe um sermão, mas estou convencido de que já a perdoou.
— E também perdoou a você? — perguntou Arabella com temor.
— Fui eu quem fez a confissão — recordou — lhe Beaumaris com ar de virtuoso — . Seu pai perdoou — me sem vacilar. Não entendo por que se surpreende você tanto: pareceu — me uma pessoa encantadora, e poucas vezes passei uma noite mais agradável do que a que decorreu conversando com ele em seu estudo, após sua mãe e Sophy terem deitado. E mais, estivemos a falar até que se consumiram as velas.
A expressão de perturbação de Arabella acrescentou — se.
— De que falaram, senhor Beaumaris? — perguntou, incapaz de imaginar a seu pai e o Incomparável conversando.
— Discutimos certos aspectos da obra Prolegomena ad Homerum de Wolf, que casualmente tinha visto em sua biblioteca — respondeu ele com toda tranquilidade — . Eu comprei um exemplar dessa obra no ano passado em Viena, e me interessava muito a teoria de Wolf de que na redação da Ilíada e a da Odisséia tinha intervindo mais de um autor.
— Trata disso o livro?
Beaumaris sorriu, mas respondeu com gravidade:
— Sim. Ainda que seu pai, que é bem mais erudito que eu, opinava que o capítulo inicial, que fala dos métodos corretos para a recuperação de manuscritos antigos, era o mais interessante. Disso eu não entendo muito, mas espero que suas agudas observações me sejam proveitosas. — E desfrutou você com essa conversa? — perguntou Arabella, impressionada.
— Muitíssimo. Apesar de modos frívolos, de vez em quando gosto de manter uma conversa racional, e posso desfrutar dela tanto como jogando na loteria com sua mãe, Sophy e os pequenos. — Como! Fez isso? — — exclamou a jovem — . Ai, está brincando comigo! Deve ter se aborrecido terrivelmente!
— Em absoluto. Quem se aborrece no meio de uma família tão animada como a sua deve de ser uma pessoa insuportável e incapaz de achar satisfação em nada. Na verdade, se esse seu tio não cumprir sua promessa, nós teremos que ajudar Harry a realizar seu sonho de se converter num segundo Nelson. Não me refiro a esse excéntrico tio seu que morreu e lhe legou toda sua fortuna, mas ao que ainda vive.
— Ai, por favor, não volte a mencionar jamais minha suposta fortuna! — suplicou Arabella abaixando a cabeça.
— Pois terei que falar dela! Porque suponho que a partir de agora convidaremos com freqüência aos diversos membros de sua família a nossa casa, e como não posso fazê — los passar a todos por herdeiros e herdeiras, terei de dar alguma explicação de suas circunstâncias superiores. Sua mãe, que é uma mulher admirável, e eu decidimos que o tio excêntrico nos tiraria deste aperto. Também concordamos, tacitamente, de que seria desnecessário, e também indesejável, mencionar o assunto a seu pai.
— Não, claro, isso não podemos lhe contar! — apressou — se a confirmar Arabella — . Ele não gostaria disso, e quando se enfada com de algum de nós... Ai! Espero que não descubra logo no que se meteu Bertram, e que este não tenha interrompido seus exames em Oxford, como temo que pode ter sucedido, porque não me pareceu que...
— Isso não tem nenhuma importância — interrompeu — a Beaumaris — . Seu pai ainda não o sabe, mas Bertram não vai para Oxford: vai ingressar num bom regimento de cavalaria, onde sentir — se — á bem mais feliz e nos fará sentir orgulhosos.
Ao ouvir isso, Arabella lhe pegou uma mão e a beijou, exclamando com voz comovida: — Que bom você é! Que bom, meu querido senhor Beaumaris!
— Não voltes a fazer isso jamais — repôs ele afastando a mão e abraçando Arabella com tanta urgência que o leite restante no copo se derramou sobre seu vestido — . E não me fales com tanta cerimônia nem sigas me chamando senhor Beaumaris.
— Devo fazê — lo — protestou ela com a cabeça apoiada em seu ombro — . Não posso... não posso chamá — lo... Robert!
— Pois fizeste — o muito bem, e se perseveras, comprovarás que em pouco tempo essa palavra sairá de teus lábios sem nenhum esforço.
— Bom, se isso o faz feliz, tentarei — cedeu Arabella. De repente ficou ereta, como se acabasse de recordar algo, e disse com seu habitual impulsividade — : Senhor... quero dizer... Robert! Nessa horrorosa casa onde fui a ver meu irmão Bertram tinha uma pobre mulher chamada Peggy las Botelhas que se portou muito bem com ele. Achas que...
— Não, Arabella — respondeu Beaumaris com firmeza — . Não!
Arabella desagradou — se, mas disse com docilidade:
— Não?
— Não — repetiu ele, a rodeando de novo com seus braços.
— Pensei que poderíamos tirá — la daquele horrível bairro — sugeriu Arabella enquanto lhe alisava a gola da jaqueta com ar persuasivo.
— Não me agrada em absoluto, amor meu, mas ainda que esteja disposto a receber em minha casa aprendizes de limpador e a cães de rua, não penso fazer o mesmo com uma mulher que responde pelo apelido de las Botelhas .
— Não achas que poderia aprender a ser uma boa criada, ou algo parecido? Já sabes que... — Só sei duas coisas — interrompeu — a ele — . A primeira é que não a vai colocar em nenhuma de minhas casas; e a segunda, e a mais importante, é que te adoro, Arabella. Ela se emocionou tanto que perdeu o interesse por Peggy las Botelhas e se entregou à tarefa, bem mais agradável, de convencer ao senhor Beaumaris de que seus agradáveis sentimentos eram plenamente correspondidos.
Georgette Heyer
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