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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ARARA VERMELHA / José Mauro de Vasconcelos
ARARA VERMELHA / José Mauro de Vasconcelos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Enrolou o cigarro de palha com os dedos grossos e amarelecidos. Em seguida levou-o aos lábios e grudou-o com a saliva escura. Só então, Camura apanhou a faca que ficara depositada no balcão e enfiou-a carinhosamente na bainha. Já com o cigarro colado no canto da boca cantarolou quase em surdina:

"...vem saindo
Iluminando meu coração
Canto moda de viola
Tei-tere-tei do meu sertão..."

- Por que é que tu nunca canta o começo dessa moda, Camura? Quem falava assim era Temisto, o dono do botequim.
- Por quê?... Hum... Já te digo.
Riscou um fósforo e acendeu o cigarro. Baforou demoradamente fazendo que os olhos percorressem uma a uma as garrafas de cachaça desarrumadas na prateleira. Sua vista diminuiu ao defrontar-se com a luz da lamparina, oscilando, parecendo mesmo viva ao marcar o compasso da canção que mal acabara...

 


 


Abriu os lábios num sorriso e debruçou-se sobre o balcão firmando os cotovelos na madeira bruta.
- Como quem lá diz o outro, não gosto da coisa do começo. O que é que saiu iluminando o coração da gente? Só pode ser a Lua, não é?
- Tu tá é besta, demonho! Onde já se viu caboclo do Araguaia num gosta da Lua!...
- Pois lhe garanto que sim. Do que gosto mesmo é das estrelas. Quando a noite fica preta e elas vêm se banhar nas águas do Araguaia. Banhar sem medo de nada, mergulhar no rio, assustando as piranhas...
Tornou a sorrir e soltou um grito estridente conhecido por todos.
- Ih! Camura!...
Tragou o cigarro silenciosamente olhando os rostos conhecidos que não via há algum tempo.
- Não tem nada mais bonito que as estrelas!...
Leó não estava de acordo porque era muito viajado. Antes mesmo de acabar de torcer os fios do bigode avermelhado, perguntou com certo desprezo:
- Você já viu o mar, Camura?
- Nunca.
- Então por que se mete a falar desse jeito? O mar! Não existe coisa como o mar. Deus fez o mundo com os dedos, e, o mar com os olhos.
- Bobagem. Leó, que diferença faz o mar, do Araguaia?
- Simplesmente isso: tem tudo o que o rio tem, e muito mais beleza ainda. O mar tem praia branca e amarelada. O mar tem as águas verdes. O mar tem as águas mornas. O vento é quente e nunca pára. Canta sempre.
- Isso o Araguaia tem.
- Tem nada. Não passa de uma cobra de vidro esticada e se a selva não cantasse, as águas morriam de tristeza.
- E os índios?
- Ah! é?! E os pescadores?
- E os mariscadores? E os garimpeiros?
Leó sentiu um nó na garganta e nem pôde responder. Vencida a emoção, morreu todo o lirismo que rebentara do seu peito. Falou com uma angústia pesada:
- Sim, os mariscadores, uns desgraçados que...
Mas não pôde acabar a frase. Alguém comentou com voz alta chamando a atenção para a entrada da porta.
- Olhe quem vem entrando. Kanaú!... Kanaú sorriu com alegria.
- Boa noite pra todos.
Temisto não se conteve.
- Olha esse danado desse índio com "filosofia!"... só porque passou um ano na cidade já se esqueceu de falar que nem Inan.
Kanaú se aproximou mais e bateu nas costas de Temisto.
- Bem, se você faz questão, falo como índio: Dateriambu!... Temisto respondeu como índio: Arenine!...
- Ih! Camura! - Kanaú estendeu a mão espalmada para Camura imitando o seu conhecido grito.
- Que dizer, Kanaú que tu voltou de novo pra dançar Aruanã, e, andar sem roupa na aldeia?
- Borréto...
- Que borréto coisa nenhuma, desgraçado!... Borréto-num sei, borréto-num sei-Borréto! É só isso que Inan sabe falar?
Kanaú continuava a rir. Já agora se grudara também no balcão. Temisto pegou um copo e derramou um pouco de pinga.
- Bebe, Kanaú?
Leó agarrou a mão do rapaz que se enrodilhara no copo.
- Tás doido, Temisto! Se o Serviço de Proteção aos índios te pega vendendo álcool pra índio é multa na certa!
- Besteira, rapaz. Kanaú veio da cidade. Esteve em São Paulo, no Rio, em Goiânia...
- De mais a mais eu não sou nada. Nem branco, nem índio. Olhe pra minha cara.
Dizendo isso desligou do copo, a mão, e arrancou de um só ímpeto a lamparina de chama trêmula. A luz oscilava sobre o rosto indeciso, e depois, firmou-se para demonstrar aquilo que Kanaú fazia questão de revelar.
O rosto do rapaz tinha se paralisado e a respiração morrera. Sobretudo Kanaú era belo e estranho. Entretanto, não tencionava comprovar esses fatos.
Seu pensamento percorria inquieto uma linha de fogo que o martirizava continuamente.
- Sim, sou isso. Sou assim. Não sou nada. Não sou ninguém. Nem índio, nem branco. Um homem sem culpa. Que pode fazer tudo, e de nada ser culpado. Um mestiço. Nem branco, nem índio. Nada.
Baixou lentamente a lamparina. Seus traços foram desaparecendo no comum do ambiente. A mão voltou a possuir o copo antes abandonado, mas por momento algum a vontade fez com que ele se erguesse até à boca.
Camura sabia e Temisto não ignorava que de agora em diante Kanaú não falaria mais. A noite morrera de tristeza para ele.
Leó disfarçou o silêncio espantando o mal-estar.
- Que é que te traz por aqui, Camura? Faz tanto tempo que tua canoa não visita as areias de nosso porto...
As gengivas avermelhadas apareceram e os olhinhos matreiros de Camura foram se esconder dentro das rugas.
- Saudade, talvez...
Leó riscou o balcão com a unha do dedo grande.
- Você não é poeta pra ter saudade. Conte a verdade, malino.
- Juro que tava com saudade de Leopoldina. Deixei o Registro, porque o rio está muito cheio. Falei pra Rosinha, minha canoa: Vamos dar um bordejo? Ela me respondeu que "sim". Então viemos. Se sabe que rio abaixo nem anjo rema! Vim. Tou aqui.
Fio, um caboclo magro, amarelo, e pelancudo, com uma meia dúzia de fios enroscados que incomodavam mais a vista dos outros, do que seu próprio queixo, se introduziu na conversa.
- Tava eu lá do outro lado atracado pra derruba um pé de mirindiba, quando escutei teu grito na curva do rio. Falei com minha alma: "Lá vem o disgrota do Camura. Hoje na loja do Temisto vai tê nuvidade!" - Foi por isso que eu atravessei o rio assustando com as minhas barba, as pirarara.
Leó soltou uma risada enorme, quando Temisto se comprimia contra o balcão para rir da piada.
- Com tanta barba, Fio, você devia fazer linha de arremesso para pirarara mesmo.
Fio coçou o queixo devagar.
- Num tem pressa. Num tem pressa. Minha barba vai crescer. Camura rebateu orgulhosamente.
- É rapaz. Quando Camura passa até as garças dizem umas pras outras: "Lá vem Camura!" Já ninguém se admira disso. Mas agora o que espanta a gente e eu vou perguntar: "Que é que tu tava fazendo com o pé de mirindiba?"
- Ora essa! Derrubando. Brocando minha roça. Tá nos meus piano prantá mio, mandioca e feijão...
Camura torceu as mãos de alegria.
- Mas isso é milagre!... Milagre dos marmos!... Fio plantando, brocando roça... Então numa hora dessas papagaio tá de novo pousando em Leopoldina, e, capivara não morre mais de fome.
- Ih, rapais tem muita coisa de que tu vai te admira. Tão falando que avião da Cruzeiro do Sul vai fazê parada de linha aqui. Até já começaro a limpeza do campo!
- Devera, Temisto?
Temisto orgulhosamente afirmou com a cabeça.
- Então, a preguiça de Leopoldina sumiu...
- Quem foi que disse que por aqui existe disso mais? Se tu não fosse relaxado e desse uma volta na cidade antes de vir morde pinga, tu teria visto a igreja reformada, o cruzeiro limpo e a praça capinada...
- Desse jeito, até banana brava acaba dando fruta por aqui... Tá vendo Kanaú, daqui a pouco tu nem precisa ir para a cidade...
Camura virou-se para o lado do índio... mas este tinha sumido.
- Está teburé. Foi pra aldeia.
- Esquisito esse rapaz. Que tá fazendo por aqui?
- Não sei. Mandaram ele de novo de volta. Tava no Rio. Diz que vai fazê marisco, arranja dinheiro e vortá para a cidade...
- Quando que chegô?
- Dois dias. Na certa ele irá para Raumaló-Dessé. Aldeia de nascimento, no meio do Bananal. O certo é que ele espera alguém pra fazê marisco.
- Mas marisco ficou troço feio. Encrencado. Num viu o que aconteceu cum Zé Butelo?
- Não. Não soube de nada.
- Ele andou pelo Javaé e fez mal a uma índia Javaé. Agora o Serviço tá em cima dele processando. Tão contando que ele já vendeu em Santa Maria, todos os trens de marisco pro Zé Espanhol. Esse ano Zé Butelo desistiu de marisco.
- Cabra safado!
- E o pior é que os Javaés tão recebendo os mariscadores à bala. Cum som de 44. Vai corrê muito sangue...
Um tiro repercutiu longe...
Houve uma pausa. Todos escutaram.
- Assobio de vinte e dois, comentou Leó.
- Puxa, nem bem se fala e o diabo do tiro se escuta. Outro tiro gritou na noite escura. E logo após mais outro. Um riso largo rasgou a cara de Temisto.
- É Kanaú. Ele trouxe uma vinte e dois, ótima. Ele disse que ia pro lago caça jacaré.
- É mesmo!
Camura se admirou.
- Inda existe jacaré vivo no Araguaia? Mariscador não acabou com tudo?
- Acabou pra nós, os toris, nós, os cristãos. Mas índio Inan sempre descobre os bichos.
Camura pensou: Índio Inan! Dono das águas. Índio. Remeiro. Kanaú passara um ano na cidade e de volta apenas dois dias, já estava descobrindo as feras que nem existiam. O sangue do índio nesse momento devia pesar nas veias do rapaz. Breve ele voltaria a ficar nu, e a ser bronzeado. Retornaria às máscaras de palha, dançando com outro, a monotonia sagrada do Aruanã.
- Aposto que amanhã ele traz dois jacarés de primeira. Couro: cento e vinte cruzeiros.
- Ora, Fio. Quem é besta de aposta...
Camura retornou ao assunto.
- Então Zé Butelo tá encrencado?
- Ora se...
- Capais de quando dá fé acabarem com o marisco.
- Enquanto houve um filhote de ariranha ou um desgraçado dum caititu essa praga não pára. Isso tá pior do que garimpeiro...
- Tu fala assim, mas se aparecê um cunvite, Leó, você aceita.
- Prefiro perde as mãos cum lepra do que me metê nessa judiação. O Araguaia anda de luto, vestido de sangue. Até os colhereiros desapareceram da praia. Tudo se torna cada vez mais feio...
Camura retirou de novo a faca da bainha picando fumo para um cigarro de palha.
- E tu, Camura? Inté agora falou, falou, mais não garantiu para a gente o que veio fazer aqui? A gente sabe que quando Camura aparece, Camura o delegado arigó de Registro... é porque hai qualquer coisa de marma.
- Não. Não é nada. Vim mesmo a passeio.
- A gente num dá crédito, mas se é assim... se você qué...
- De vera, que estou de passeio! Penso em arranjar um inan pra descer o Araguaia até Raumaló-Dessé comigo.
- O dono do remo tá aí e também vai pra lá. Por que não convida Kanaú?
- Ô! Diabo! Parece que tu enxerga o meu pensamento. Camura emborcou mais um pouco de pinga e bocejou de satisfação.
- Agora vou dormir.
- Tás posando aonde?
- Na casa de Raimundão. Desencostou-se do balcão.
- Pra vosmicês, uma boa noite. Atravessou a porta e penetrou no escuro.
A noite era dona de todas as estrelas. Mas as estrelas se desprendiam das suas garras e vinham fazer buracos no rio. Leó não tinha razão. As estrelas eram a coisa mais bonita do mundo.


Camura arrancou a camisa e jogou-se na rede. Suspendeu os braços junto ao punho, e com o pé de quando em vez dava pequenos balanceios.
No quarto contíguo Raimundão roncava.
Do corpo de Camura se escapava um cheiro do qual o olfato já se acostumara: uma mistura de sol e de terra.
Começou então, a pensar: Leopoldina era a mesma coisa, e ele não se enganava. Por vezes surgia um surto de progresso, e, alguma coisa melhorava. Novas casas se erguiam. Pinturas brancas invadiam a povoação. Capinavam toda a região que ia do cruzeiro ao porto. Era o verão. O verão que afugentava a chuva de seis meses, que esmagava a febre e que trazia o frio abençoado. Então, alguns faziam roça. Outros pintavam embarcações para aguardar os turistas. Aqueles bobos que apareciam atraídos pelo canto da selva. E a selva era a mesma, bem diferente do que imaginavam. Uns voltavam às cidades decepcionados porque pensavam que em quinze ou vinte dias, tudo de brutal, monstruoso e sensacional fosse acontecer para os seus olhos. Mas qual o quê! A selva para eles se desabrochava num rio esticado, preguiçoso, onde uns índios viciados com todos os hábitos maus dos brancos lhes vendiam arcos pequenos, trançados, enfeitados, umas bonecas já comercializadas... enfim, pensou Camura. Eles traziam dinheiro e movimentavam o comércio...
Balançou a rede.
O verão estava a caminho de firmar-se. O mês de abril quase se findava. O rio descia. As praias retornavam com a conformação diferente mas sempre brancas. Os garimpos iam funcionar e com eles os crimes. Os roubos...
Estremeceu e sentiu vontade de fumar. Mas o mal-estar dessa última lembrança o conservou deitado.
Melhor seria pensar no verão. O geral logo apareceria naquela suave mornidez, remexendo toda a selva, tocando para longe os mosquitos. E no fim de maio todas as madrugadas seriam frias exigindo às vezes fogo perto do corpo. Então as praias já bem descobertas seriam arranhadas pelas unhas das gaivotas vindas do oceano para desovar. E que algazarra fariam quando delas se aportasse uma canoa. Antigamente também os jacarés vinham desovar na praia. Hoje os mariscadores os tinham afugentado para os lagos pantanosos. Raro era se ouvir o seu gritar revoltado, embelezando a selva...
Os olhos de Camura principiavam a pesar de um modo suave. Amanhã procuraria Kanaú e proporia aquele negócio ao mestiço. Por um momento na escuridão pareceu entrever o rosto do índio. Os olhos castanhos e mongolizados, sempre com uma expressão de tristeza, impossível de se esquecer... Não havia dúvida que aquele rapaz era um desgraçado.
Os olhos pesavam mais ainda.
Mariscadores?... Demônios. E eles surgiam de todas as partes, de todos os cantos, devastando tudo. Dizimando, matando... Aquilo era mais fácil e mais certo do que cansar as costas anos e anos sobre uma bateia ou mesmo se asfixiando ao sabor de um rebojo num garimpo de diamante. E eles vinham em bandos selvagens, armados até os dentes, penetrando por todos os recantos, até mesmo nas terras proibidas dos índios. Carregando em suas levas centenas de índios inans que caçavam para eles em troca de roupas, mosqueteiros e até armas. E o Araguaia já viciado de preguiça se transformava aos poucos no paraíso da fome. De inanição. Tanto as feras como as aves fugiam das suas margens no calor do inverno como deixavam as suas praias no frio cortante das madrugadas de verão.
Camura riu. Agora a sonolência confundia todos os seus pensamentos. Eles como que deslizavam com uma velocidade louca de um para outro.
E aquele doutor que viera da cidade que não se conformava que no Araguaia o inverno fosse quente e o verão frio. Teimava porque teimava que na cidade era o contrário. Como se a cidade tivesse alguma importância para os caboclos do Araguaia. Caboclos-fim-do-mundo... Não, a cidade deveria ter muita importância porque senão os homens de lá não vinham se embrenhar pelas selvas à procura de enriquecer para depois retornar. Até os índios. Haja visto Kanaú.
O ronco de Raimundão se perdendo longe, dava até a impressão de que ele passara a roncar na outra margem do rio.
Amanhã precisava falar com Kanaú. E era um negócio perigoso... De diamantes elas se transformavam em pequenos xibios...
As estrelas começaram a diminuir pelo teto furado da casa.
Isso porque Camura adormecera.
Abriu a porta para o dia. Espreguiçou-se. Como o corpo descansava depois de um dia bem remado!
Dessa vez foi o peito que gritou num deslumbramento:
- Ih! Camura!...
A manhã que nascia era toda uma grande arara vermelha devastando o céu com o sangue das suas asas.
Meu Deus! O Araguaia volta a ser bonito! Dona Chuva! - até para o ano, se Deus quiser...
Baixou os braços.
Raimundão se aproximou bocejando e parou junto de Camura.
Nada disse porque seus olhos também ficaram fascinados de mudez, observando o amanhecer. Só depois de um segundo ele conseguiu balbuciar:
- Que coisa!
Camura despregou-se da paisagem e olhou em volta. Leopoldina despertava. As portas e janelas se abriam também para a vida. Gente se encaminhava na direção do porto para se banhar. Mulheres se juntavam comentando alguma coisa. Raimundão olhou para os pequenos grupinhos das mulheres e maliciou.
- Como em todo canto do mundo o emprego delas é fala mal da vida dos outros...
Um índio inan se aproximava desanimado. A sua roupa suja, ensebada, recendia como a de todos os outros índios que a civilização devorava, a óleo de babaçu misturado com urucu. Passou por eles e falou:
- Dateriambu.
- Arenine.
- Bom dia.
Raimundo perguntou ao inan:
- Coxiaru tá melhor?
- Coxiaru tá ibinare. Coxiaru vai no Leó tomá penicilina.
Saiu, se afastando cabisbaixo, triste e abatido.
- Qué vê uma coisa gozada, Camura? Vamo dá um pulo até o Leó. Inan tem um medo danado de injeção.
- Que é que ele tem?
- Quis banca o tori e pegou doença das nossas. Tá com uma...
- Coitado!
Encaminharam-se os dois pela beira das casas. De fato Leopoldina melhorara nesses últimos tempos. Algumas casas já tinham sido cobertas de telha.
Cumprimentavam os moradores.
O fogo do céu desbotava sendo invadido pelo azul. Chegaram à casa de Leó. Coxiaru olhava de olhos medrosos a seringa fervendo. O barulho do borbulhar teria para ele o significado de um grande banzeiro no Araguaia...
Leó preparava de costas o algodão, embebendo-o em álcool. Depois serrou a ampola lentamente.
Um livor se alastrou pelos lábios do inan. O medo da agulha obrigaria daqui a pouco o corpo forte do índio, a tremer. Leó desvirou-se e deu com Raimundão e Camura presenciando o serviço de enfermagem.
Agora ele retirava o líquido da ampola. Coxiaru tremeu. Raimundão cutucou Camura e comentou baixinho:
- Num te disse?
Leó ordenou a Coxiaru:
- Vire! Desça as calças.
O inan obedeceu.
Camura sentiu um mal-estar. Não porque desgostasse ou o abalasse o fato de aplicar uma injeção. Mas aquilo era humilhante. Triste ver as mãos pequenas do caboclo, tremerem e sem jeito, desabotoarem as calças. Lembrou-se que aquele homem era o dono da terra e estava sendo maltratado. Maltratado desde o início da civilização. Lembrou-se que o homem que se debruçava oferecendo humildemente as nádegas queimadas, fora o dono do rio noutros tempos. Antigamente ele era nu e não se vestia com a roupa ensebada que os brancos obrigavam a vestir roubando-lhes o sol e a saúde. Antigamente não precisaria tremer como o fazia, porque a herança cruel ainda não fora recebida... Raimundão sorria gostosamente.
- Eh! Coxiau, quando em cima de uma ubazinha tu arpoa pirarucu, tu não treme assim. Como é que agora tu pula tanto que parece um saririco!...
A agulha penetrou devagar. O índio estremeceu mais e foi se acalmando aos poucos. O pior passara.
Leó fez uma massagem com o algodão em álcool, de um tapa em Coxiaru e comentou:
- Amanhã você vai ficar bom.
O índio vestiu-se e antes da porta ser transposta falou com voz sumida:
- Coxiaru ficar bom. Pega peixe. Vende e traz mulher. Ela também doente. Arakre!
- Marrani-té, responderam os três.
Camura sentia-se desolado.
- Que é que Coxiaru tem?
- Pegou uma...
- E já transmitiu na mulher?
- Já.
- E não dianta nada tomá uma injeção de penicilina, num acha?
- Sempre melhora um pouco.
Desanimado Leó acrescentou.
- Um dia, toma uma. Outro dia, falta. De outra vez, acaba a penicilina...
Da garganta de Camura mal pôde se escapar um grunhido sem significado, virou-se, e, se dirigiu para o porto. Ia lavar-se.
O dono da mata, o dono do rio, apodrecia. Aquele era o agradecimento do branco. A doação gratuita da miséria a quem lhe cedia a terra, a caça, o peixe e uma preguiça incompreendida...
O Sol já se levantara e crescia no espaço como uma grande árvore sadia.
Um vento irritava as águas do rio, dando impressão de que todo o rio se transformara em ouro respirando.
As canoas amarradas no porto balançavam-se de leve.
Camura desceu pela barranca. Uns homens na beira da praia lamacenta cercavam qualquer coisa soltando exclamações espantadas, e, Camura se aproximou.
- Já viste isso, Camura? Abriram a passagem.
- Nossa Senhora, que brutos!
Dois jacarés enormes estavam estirados na praia. A cauda lhes fora decepada. Em ambos o rasgo do arpão fazia uma brecha vermelha. O sangue escorria ainda fininho e manchava o chão.
- Nesse, o tiro pegou aqui.
- E nesse outro, bem grudado na goela.
- De primeira todos dois. Cento e vinte cada um.
- Foi Kanaú?
- Foi.
- Cadê ele?
- Foi inté na aldeia buscá sal, e disse que já volta.
Camura ajoelhou-se perto das feras. Qualquer coisa de doce e de suave se alastrava em sua alma ao defrontar-se com um bruto destruído. Primeiro suspendeu a boca e examinou as grandes presas. Depois ergueu as pálpebras, e falou com certa ternura, como se a alma do bicho escutasse:
- Taí, bichinho. Se tu tivesse os olhos vermelhos que nem tinga, tu agora tava vivinho. Por que não ficou tinga toda vida?
Quis ser grandão; ter os óios vermelhos... Baixou as pálpebras do animal.
- Ah! Bobo! Se tu tivesse os olhos verdes se encadeando com as lanternas agora tu tava brincando nas águas...
João Milagroso soltou uma risada.
- Que diabo! Você fala tanto sozinho? E é um puxa e encolhe de ladainha que não acaba mais.
- Isso é a cunversa de um mariscador que morreu que falava assim pros jacarés. Eu tava me lembrando...
Camura enfiou as mãos na água morna do rio e começou a lavar o rosto. A água aliviou um pouco a sua tristeza.


De tardinha, Camura foi até à aldeia dos inans. Atravessou a ponte que ligava Leopoldina à maloca. Cães compridos e magros surgiam ameaçando com as dentuças à mostra. Mas vozes vindas de dentro dos ranchos faziam com que eles se encolhessem e desaparecessem por entre as palhas das taperas.
- Dioróssa beixékre!...
Depois dessa frase nenhum cão ameaçou a não ser de longe. Camura caminhava devagar olhando o ambiente. Nem precisaria olhar para saber o conteúdo dos ranchos. Esteiras e misérias. Roupas sujas fedendo a óleo podre, suado, penduradas pelos cantos. Fogo aceso e kalugi cozinhando. Mulheres tecendo decis, enfeites, e os homens ou trançando bordunas, ou fabricando flechas. Breve, meninos pediriam anzol ou rapadura. As saudações vinham de dentro.
- Dateriambu! Tori auire?
- Bom dia. Estou bem obrigado. Diobó Makré Kanaú?
Agora era a voz que respondia num português estropiado:
- Kanaú tá lá. Casa tio dele.
Camura riu. Esse tio tanto podia ser homem como mulher. Foi interrompido nos seus pensamentos por um grito conhecido.
- Eh! Camura-ku Manakeri-ki!
Era Kanaú.
Dirigiu-se ao rancho e penetrou se abaixando pela porta quase rente ao chão.
Kanaú se estirava na esteira preguiçosamente. Junto ao fogo numa atitude comum de acocoramento "seu tio", uma velha cujos olhos nem se distinguiam de tão apagados no rosto vincado de rugas. Seus cabelos ainda eram pretos, mas seus seios se tinham transformado em duas pelancas enegrecidas, sem importância e sem vida.
Camura cumprimentou a velha, mas ela continuou na sua atitude impassível a remexer a panela de kalugi no fogo.
- Sente aqui, Camura.
Camura obedeceu e ocupou um pedaço da esteira junto ao índio.
- Eu precisava muito falá cum você, Kanaú.
- Pois então pode falar.
- Primeiro, cumo você está dois dias aqui em Leopoldina talvez me informasse: você avistou uma canoa de tori descendo o rio?
- Como é que é a canoa?
- Deve ser uma montaria de garimpeiro.
- Quantos toris iam dentro?
Camura pensou um pouco antes de responder. Não podia mentir mas também o índio estava querendo saber demais. Porque afinal de contas bastava que Kanaú respondesse se tinha visto ou não a canoa. Mas confessou o certo.
- Era quatro brancos: dois home e duas muié. Uma delas esperando criança.
- Ahn!
- Você viu?
- Não. De dia tou sempre dentro do rio, pescando, e de noite se passasse uma canoa qualquer, daqui da aldeia, teria ouvido o barulho do remo. Qualquer cachorro teria latido... Não passou não.
Camura sorriu.
- Não tem importância.
- Era só isso que você queria saber?
- Não, eu vim conversar um pouco com você.
Os olhos de Kanaú pareciam penetrar dentro da alma de Camura. Kanaú desconfiava de qualquer coisa. Mas Camura se defendeu retirando a faca da bainha e o fumo do bolso.
- Qué pitar?
- Não fumo, Camura. Só levo fumo comigo pra dar a índio velho.
Kanaú se espreguiçou. Seu corpo moço era muito forte e no momento se encontrava inteiramente nu. Camura notava que o rapaz não amarrava o sexo à maneira dos outros inans.
- Você está mais branco, Kanaú.
- Na cidade, a gente quase não apanha sol.
- E como deixô a cidade?
- A cidade... e o olhar de Kanaú foi tomado por uma nuvem de sonho. A cidade é tudo que vale a pena. A cidade é limpa e bonita. As casas são lindas. Os prédios se amontoam altos. Mas a cidade sem dinheiro também não presta, por isso que eu voltei. No meu rosto não trago a marca circular dos inans, porque os inans acham que não sou um índio. Mas lá os brancos também não me consideram branco. Logo se tiver dinheiro posso passar mais por branco do que por inan. Se quisesse trabalhar na cidade nada arranjava porque sou um índio, melhor dito, um mestiço, que sabe ler e fazer as quatro operações. Mas isso não é suficiente para se ganhar bem. Por isso resolvi voltar e fazer um grande marisco. E juro a você Camura que hei de conseguir. Nem que tenha de roubar, e, de matar. Nem que leve dez anos esperando passar chuva e vir verão, mas voltarei para a cidade. Acho que não me acostumo mais por aqui.
- Mas isso tudo do Araguaia que é tão bonito?
- No começo, quando vi o rio, meus olhos se molharam e veio a vontade de dançar, de caçar, de ouvir coisas de índio...
- Então você vai mariscar?
- Pretendo descer até Raumaló-Dessé, e, esperar um convite pra isso.
- Tua mãe ainda vive na aldeia?
Os traços de Kanaú se endureceram.
- Minha mãe se misturou com a terra há muito tempo.
- Foi morar com os outros inans no fundo do rio?
- Borréto.
Levantou-se e apanhou qualquer coisa dentro de um vaso de barro.
- Coma um pedaço de koteruti.
Camura tomou a batata-doce oferecida. Kanaú tornou a se deitar.
- Eu vi os jacarés que você matou. Você deve tá cansado, Kanaú. Eu já não agüento mais passar uma noite mariscando.
- Não. Já dormi muito. Sou capaz de voltar a mariscar hoje de noite.
- Por que você não leva alguém com você?
- Não gosto de dividir. Bem, Camura, eu quero lhe fazer umas perguntas.
- Pode fazer.
- Você ainda é delegado do Registro?
- Não do Registro. Registro é Mato Grosso. Eu sou delegado de Goiás.
- Então já sei do que se trata. Posso até lhe contar uma história. Quer?
Camura se sentiu abalado. Kanaú era um demônio de esperto. O índio ria astutamente.
- Bem. Se você é delegado de Goiás e procura uma canoa em Goiás é porque houve um roubo em Mato Grosso e eles pretendem... nesse caso são os quatro brancos que vieram se esconder em Goiás. A polícia de Mato Grosso não pode invadir o Estado de Goiás, e comunicaram a você... nem precisa dizer que não, Camura.
Camura coçou o queixo pensativo.
- E se tudo que você falou fosse verdade?
- Bem, aí haveria mais coisas. O que você quer de mim?
- Vamos conversa num lugar onde ninguém escute a gente.
Kanaú levantou-se rápido e enrolou a sua nudez num velho cobertor como era uso entre os inans.
- Vamos conversar no porto. Se tiver algum inan banhando eu mando sair.
Mas não havia ninguém no porto. A não ser velhas canoas negras, sugadas na areia e amarradas em remos fincados no chão.
- Me espere um pouco; eu banho rápido.
Retirou o cobertor e atirou-se n'água. Não demorou. Instantes após vinha com o corpo escorrendo ainda, torcendo as pontas dos cabelos, como era costume entre os índios.
Camura observava o rapaz. Kanaú era de estatura elevada. Bem proporcionado. Ombros largos contrastando mais porque a cintura fina, mostrava os grandes músculos abdominais em relevo. Mas o interessante e que espantava os olhos, era o rosto. Suas maçãs salientes, os olhos mongóis e os cabelos lisos, cortados como os de índio, deixando a franja na frente e demonstrando cruelmente no tom louro avermelhado a sua herança branca ou a sua marca mestiça...
Sentou-se, tornando a embrulhar-se no cobertor amarelado de óleo, junto de Camura.
- Agora podemos conversar.
Camura tomava um cuidado imenso e todas as suas palavras teriam de ser medidas, estudadas. Principiou pensativo. Seus olhos devoravam a paisagem, e atravessavam o rio, como se no momento a única coisa importante fosse o bando de garças que chegavam trazidas pelas asas da tarde.
- Você falô que queria fazer um grande marisco, num foi?
Kanaú confirmou com a cabeça.
- Pois, eu tenho um negócio mais vantajoso. Isso é que eu chamo de marisco. Como você adivinhou, vou logo ao assunto. Roubaram um diamante do garimpo de Cacinunga.
- Aquele garimpo que fica quarenta léguas dentro do Rio das Garças?
- Não tem outro garimpo com esse nome. Foi essa gente da canoa. Eles vêm descendo. Descendo e se escondendo.
- Foi por isso que ainda não passaram por aqui.
- E se passaram? Você não tem certeza nenhuma.
- Não. A gente teria escutado. Eles vêm só viajando com a noite e se escondendo durante o dia.
- Também penso que sim. Mas achava melhor a gente pegar eles em Santa Isabel. Olha Kanaú, isso é importante. É o melhor marisco que se pode dar. Ofereceram-me cinqüenta contos, se eu conseguisse de volta o diamante.
Os olhos de Kanaú se iluminaram.
- Cinqüenta contos?
- Sim. Raimundo me prometeu. Isso além de minha obrigação. E tu sabe, que roubo no garimpo é crime de morte. Temos licença até de matar.
- Licença de matar?...
Kanaú mastigou devagar aquela frase. Sem querer repetiu:
- Licença de matar...
- Você conhece o rio e sabe trabalhar com o remo porque nasceu com o remo e viveu no rio... Conhece as águas, o Araguaia palmo a palmo... eu lhe daria a metade do meu prêmio...
- Com marisco, nunca que eu faria isso num ano. E se eu aceitar?
- Terá que guardar segredo. Não fala nada a ninguém...
- E quando a gente sai?
- Pensava em sair madrugadinha. Hoje à noite a gente prepara as matulas. Arranjava uma beira de carne-seca e abria unha. Porque a gente tem que chegar lá em Raumaló-Dessé antes deles. Quanto tempo você levaria para...
- Qualquer tori gastaria quatro dias. É longe, fica no meio da Ilha do Bananal... Mas se a gente viajar dia e noite, chega lá em dois dias e meio...
A noite desinteressada da conversa, principiava o seu vôo de morcego


Nem bem a madrugada despertara na voz dos galos, Kanaú dava os últimos preparativos na sua canoa.
As estrelas ainda estavam bem vivas na carne da noite que morria. Um vulto embuçado apareceu no alto da barranca do porto.
- Eh! Kanaú, já tás de viagem?
Kanaú suspendeu a vista e deu com João Milagroso que principiava a descer em sua direção.
- Estou já largando, sim. Vou pegar uma estrada boa.
- Vai pra Raumaló-Dessé?
- Vamos. Camura pediu pra que eu agüentasse o jacumã.
- Ainda bem que você só vai até sua aldeia.
- Por quê?
João Milagroso cuspiu no chão.
- Por nada. Caso você embicasse pra Mato Verde...
- Alguma encomenda?
- Não. É um aviso. Tá aparecendo uma aparição na barreira da Cotia.
Kanaú riu.
- Não é à toa que chamam você de "milagroso". Só pensa em milagres, aparições.
- Pode quem quisé dizê que sou doido. Mas todo mundo sabe que tem aparecido um homem na barreira da Cotia.
- A barreira da Cotia tem três léguas. Não penso passar por ela, e por que havia o homem de aparecer justamente para mim?
- Mas se por acaso aparece, Kanaú, tome cuidado...
João Milagroso adquirira um tom na voz que denunciava o começo de um ataque de loucura. Kanaú ficou com pena e não pensou em discutir. Entretanto, algo de estranho perpassou pelo seu corpo. A manhã dava os seus primeiros riscos no espaço e os traços de João Milagroso iam se definindo. Seu olhar adquirira um brilho metálico. E novamente um arrepio de frio percorreu-lhe os membros. A superstição dominou o seu íntimo. As garras do feitiço amedrontaram as suas raízes indígenas.
Indagou com um certo receio.
- E que devo fazer?
- Tome somente cuidado. Quem vê o homem da barreira da Cotia quase sempre fica doido. Diz que foi um garimpeiro que se enforco num pé de canjerana branca... Curixire e a mulhé iam descendo de Raumaló-Dessé, pra Mato Grosso, pois quando avisto ele, até hoje Curixire perdeu a saúde e a mulhé dele fica doida toda lua e se esconde no mato gritando... um dia ela comeu papagaio vivo, arrancando o pescoço, depois as asas...
Kanaú ficou um pouco impressionado, mas logo uma reação branca se manifestou mais forte.
- Se precisar descer pra Mato Verde, vou tomar cuidado, João. Não puderam continuar a conversa porque Camura se aproximava carregando os seus trens.
- Que tal minha canoa, Kanaú?
- Boa. Já arrumei tudo. Fiz uma estiva. Ali estão os trens de comer.
- Então, vamos arrumar este resto e pisar na estrada. Também a gente só pára pra comer e fazer arikukre, mais nada. De noite cada um faz quarto no jacumã. Enquanto um dorme outro rema...
João Milagroso interferiu na conversa.
- Vocês vão dormir dentro dessa ubazinha?
- Dá de sobra pra dormir. Até pra sonhar.
Em cinco minutos a embarcação estava pronta. Camura ficou na proa e como índio inan Kanaú sentou-se bem na ponta da popa com o corpo quase tocando n'água.
- Té logo, João Milagroso.
- Até à vista. Boa viagem. E cuidado com a barreira.
A canoa deslizou.
- Que história de barreira é essa?
- Maluquice dele.
Foram pegando a correnteza no meio do rio. O Araguaia se encontrava no período inicial da grande vazante. As praias brancas invadiam o rio crescendo cada dia que passava. Elas agora se tornavam muito mais alvas porque o Sol se suspendia no céu.
A aldeia inan foi ficando para trás se escondendo na pobreza marrom dos seus ranchos de palha. Leopoldina se distanciava perdida num enfileiramento de casas brancas que iam se confundindo cada vez mais.


Segundo Capítulo - Iroá

"Riuérã-rê... Tanandê tarnarã otara
Riué-rã-rê... Riué conrá
Matukari-rê-rã! Iraquilê
Riueué conrá Irrê-rã..."

Kanaú cantava na popa, sustentando o jacumã. Sua voz saía da garganta como era costume entre os inans, num tom altíssimo que parecia cortar o rio pelo meio, e, perder-se ao longe nas matas.
- Tá contente, Kanaú?
- A gente chega dentro de uma hora!...
- Então já devem ter ouvido a sua cantiga.
Ele mostrou todos os dentes num sorriso branco e rasgado.
- Já. Daqui a pouco não posso mais cantar.
- Por quê?
- Porque inan não pode cantar perto das mulheres. Só longe. Senão quando a gente dançar Aruanã elas sabem quem está cantando dentro das máscaras. É proibido elas reconhecerem. Por isso inan só canta quando pesca, caça ou está longe fazendo canoa...
- Você sempre canta essa canção.
- É que eu gosto muito dela.
- Que quer dizer? Kanaú tornou a rir.
- Borréto!...
Mas, depois, lembrando-se do diamante e de que às vezes se considerava branco, descobriu o segredo da canção.
- É a história de um velho que foi dormir com uma moça e não conseguiu fazer nada.
Camura soltou uma risada gostosa.
Kanaú por dentro se recriminou um pouco. Não devia ter contado a verdade. Todo inan respondia uma coisa diferente quando indagados a respeito de suas músicas e crendices. Enfim...
- Você não está cansado, Camura?
- Um bocado. Também a gente quase não tem dormido. Só remar, remar.
- Onde é que você fica dormindo em Raumaló-Dessé?
- Valentim, aquele preto camarada; é o chefe do Serviço de lá. Ele na certa vai me hospedar. E você? Fica com os brancos ou com os índios?
Uma certa tristeza fez com que a resposta fosse retardada.
- Se a casa de minha mãe ainda estiver em pé, eu fico lá. Eu tenho um irmão chamado Terroloni. Quem sabe fico com ele. Senão vou dormir na casa de Aruanã...
Kanaú sustentou o remo com força e remexeu a água... Seus olhos pareceram perfurar as águas escuras ainda, marcadas pela enchente barrenta; recordou-se quando Chéerá contava para os inans pequenos, que os índios Inans tinham nascido no fundo daquela água... mas agora com certa tristeza confessava a si mesmo que não podia mais acreditar nisso.


O povoado de São Félix ou, simplesmente Raumaló como chamavam os inans, perdera-se na curva do rio. Camura não quisera aportar assim como fizera desde que saíram de Leopoldina. A não ser São Pedro, onde precisaram comprar um pouco de carne-seca, a viagem tinha sido um remar contínuo.
Por um viajante que passasse, ou índio, ou tori, eles pediam as notícias sobre a canoa; mas, ninguém vira coisa alguma. Por certo ela ainda não descera ou se o fazia esperava a sombra da noite. Mas mesmo assim, algum índio teria ouvido pelo menos o ruído dos remos. Nenhuma embarcação estranha com a descrição feita fora avistada.
Kanaú tinha certeza de que chegariam primeiro a Raumaló-Dessé, ou Santa Isabel.
- Virando aquela ponta se avista a aldeia.
Camura sorriu cansadamente.
- Já era tempo. Minhas costas doem como se tivesse levado uma pisa.
A tristeza se pronunciou no íntimo do mestiço. A aldeia de Raumaló-Dessé surgiu no horizonte. Por que voltara? Havia qualquer coisa de monstruoso nele que o atraía para lá e chegando perto, um sentimento confuso fazia que desejasse nunca mais pôr os pés ou avistar o local onde nascera.
As casas de palha se delineavam no bico da canoa. As moradias dos brancos, principalmente a casa do chefe do Serviço de Proteção aos índios surgia alva no alto da barranca. Defronte dela o pé de amarelão permanecia como sempre o vira, desde menino.
O remo entrava n'água com mais força porque Camura tinha urgência em chegar.
Se ele fosse mesmo um inan verdadeiro gritaria o aviso da tribo e todos os índios que estivessem na aldeia correriam para o porto. Homens, mulheres e crianças responderiam infernalmente batendo na boca: "kú-ú-ú."... Mas preferia chegar em silêncio, como se fosse uma canoa de um índio saída de madrugada para a pesca, e estivesse retornando.
Camura recomendou.
- É melhor a gente aportar defronte à casa do Serviço.
Kanaú prendeu o remo com força e a canoa deslizou suavemente para o porto. O choque contra a areia se efetuou macio. Suas mãos se despregaram do remo e falou quase indiferente:
- Chegamos!
Camura se ergueu esfregando os rins.
Moradores tendo descoberto a chegada da embarcação se aproximavam da barranca. Valentim, forte e desdentado veio estender a mão a Camura.
- Que diabo te traz por aqui, meganha?
Abraçaram-se.
- Saudade de você, nego relaxado!
- Veio de onde?
- Viemos sem parar de Leopoldina até aqui. Três dias e três noites.
- Com essa pressa só quem vem atrás da morte!...
Camura riu.
- É quase isso!
Só então Valentim descobriu Kanaú. O índio veio estender-lhe a mão.
- Quer dizer que você não gostou da cidade, raça ruim?
Kanaú riu.
- Deveras que não gostei...
Pessoas da casa de Valentim apanharam a bagagem de Camura, e Kanaú com seu saco foi se dirigindo devagar para a aldeia.
Kanaú parou junto à porteira. Seus olhos percorreram a tabuleta pintada: - "É proibida a entrada". Aquilo era novo. Um desânimo atroz foi se alastrando pelo seu ser. Sua mão perdia a coragem de suspender a tranca da porteira que separava a aldeia dos inans das moradias dos toris civilizados.
Aquele era o momento de sempre: Não estava transpondo uma cancela e sim, a própria vida.
Não lhe era permitido permanecer entre os brancos. Não se sentia feliz junto aos índios.
O desânimo aumentava mais. A dor de se ver colocado num meio. De sentir-se num rio onde não houvesse margem para aportar, onde as barreiras fossem inacessíveis.
Assomava-lhe ao rosto um calor de vergonha por não ser branco. Por certo seus olhos se sentiriam mal quando qualquer velha da tribo reparasse no seu rosto liso e mais claro e nele reclamasse os dois círculos feitos sobre os olhos. Então ele se sentiria mais intruso. Sempre os inans perguntavam quando ele ia fazer a marca da tribo. Mas ele não decidia. Não era bem um inan. O velho Curumaré, o último capitão da aldeia, pouco antes de morrer de feitiço e ainda bem doente, perguntara a ele se tinha vergonha de ser índio. Sentia a impressão constante, quando se lembrava, daqueles dedos grossos e enfraquecidos descendo vagarosamente sobre os seus olhos...
Tinha que entrar. Era proibido aos brancos acolhê-lo. Um zunzum brotara da aldeia. Mulheres, homens e crianças saíam das baixas portas dos retos de palha para espiar Kanaú. Meninos se aproximavam com os sorrisos rasgados para agarrar a sua mão amigavelmente.
Kanaú não ignorava que a notícia da sua chegada fora já transmitida de parede a parede de cada rancho.
Criou coragem e foi erguendo a tranca. A porteira rangeu melancolicamente, como a sua alma.
Caminhou devagar e aceitou humildemente os carinhos dos pequenos inans que se agarravam às suas fortes pernas. Alisou suas cabeças.
A aldeia movimentava-se para ele.
Seus passos eram lentos e seu olhar ia reconhecendo tudo, porque nada mudava. A pobreza da vida rastejava na aldeia como uma chaga velha e incurável.
Tudo aquilo indiretamente se tornava parte de sua vida. Tudo se chamava Raumaló-Dessé.
Foi se aproximando dos ranchos de palha alinhados desajeitadamente. Ali encontrava a casa de Kuranin e Uanadiki a mulher que fazia as bonecas inans mais bonitas. Os aviadores quando paravam perto da aldeia vinham em busca dos itchokós fabricados pelas suas mãos hábeis, e pagavam qualquer preço que ela pedisse. Chegavam a ponto de comprar por trinta ou cinqüenta mil-réis, qualquer bonequinha que Uanadiki fabricasse.
Debruçou-se na porta de entrada. Kuranin fora à pesca e a mulher sentada na esteira, estendia o seio enorme para uma criança mamar.
Sorriu para a índia e Uanadiki perguntou o que naturalmente todos os outros índios iriam perguntar: se vinha para ficar. Se estava bom e se gostara da cidade.
Do rancho de Kuranin passou pelo de Maluá. Maluá raspava um remo e sorriu ao ver o rapaz.
- Você está bonito, Kanaú.
O velho Maluá se alquebrava. A velhice adiantava-se nele, encolhendo os ombros largos, diminuindo-lhe a vista, enrugando-lhe até as mãos. Entretanto sua voz tinha aquela doçura de sempre e seus gestos continuavam finos e delicados.
- Senta, Kanaú.
Maluá parou o trabalho e observou o rapaz mais de perto. O retô de Maluá era o maior da aldeia e sempre se achava repleto de parentes. Agora pelo número de esteiras estiradas no chão, pelo menos doze pessoas, fora as crianças, morariam com ele.
Laureciro, casada com um sobrinho de Maluá, trouxe-lhe batata-doce assada, e uma concha para beber na panela de kalugi.
As mãos de Kanaú não tremeram ao penetrar na panela de barro. A bebida fermentada de milho mastigado e cuspido dentro, não lhe causava repugnância agora. Sua alma começava a descansar e sentir-se melhor entre os inans que pelo menos não lhe fariam mal.
- E Maluaré, cadê? E Herreriá? Maluá respondia devagar e por vez.
- Maluaré, meu filho, está fazendo canoa do outro lado. Herreriá foi pra roça.
Kanaú se impressionava com a luz dos olhos de Maluá que tinha diminuído desde a última vez que o vira. Entretanto, seus cabelos permaneciam negros e brilhantes. Com aqueles cabelos negros todos os índios iam receber a morte.
Maluá sorriu maliciosamente e segurou no pulso de Kanaú com amizade.
- Todos na minha casa estão bem, Kanaú. Só quem vive triste é Tarimaru. - Apontou para uma esteira onde uma virgem se encontrava indolentemente deitada, enrolando o ventre num cobertor amarelado e deixando à mostra os seios túrgidos e morenos. - Ela suspira olhando as águas esperando um inan para marido. E esse homem bem podia ser você que é belo, e ela bem bonita, e forte.
Tarimaru escondeu o sorriso e o rosto, fazendo com que os cabelos negros, repartidos ao meio lhe encobrissem o prazer que sentia ouvindo aquilo.
- Não demora, Maluá. Kanaú precisa casar. Kanaú dessa vez procura mulher e construirá o seu rancho próprio. Kanaú sabe que Tarimaru é bonita, e que não puxará os seus cabelos quando zangada...
Kanaú sabia também que mentia, que não permaneceria muito na aldeia, que viera em busca de uma missão; mas por que desgostar o pobre índio velho?
Levantou.
- Trouxe um pouco de coti pra você, Maluá.
- Isso é bom, porque o fumo que inan tem comprado dos toris é velho e cheira mal. Maluá está velho para fazer roça e plantar fumo. Obrigado.
Kanaú retirou-se e antes de sair ouviu a risada de Tarimaru se misturando com a das outras mulheres.
Kanaú caminhou mais. Já agora muitos índios e índias o cercavam. Entrou na casa de Ataú, Komantari, Uereá e todos os outros retôs que se seguiam. Mas quando parou diante do rancho onde morara sua mãe, seus olhos se encheram d'água.
A palha das paredes tinha cedido e o interior mostrava pedaços de panelas e potes se enterrando na areia; restos de esteira se amontoavam no chão e uma cabaça vermelha e vazia se pendurava numa viga oscilando com os pequenos sopros de vento. No mais tudo era abandono e metade do teto de buriti se encontrava erguido por milagre. Por certo que na próxima chuva, o que sobrara do retô de sua mãe, desabaria.
Se ficasse na aldeia... Mas por dentro sentiu de novo que nunca seria possível se habituar com aquilo. O corpo reclamava algo melhor e seu espírito estava mordido de ambição. Se fosse permanecer, ergueria todo rancho com amor. Subiria no buritizal em busca de palmas verdes para cobri-lo. Arranjaria uma mulher que lhe tecesse esteiras novas para tapar as paredes esburacadas, adquiriria com Uanadiki novos potes decorados para colocar água limpa do meio do rio...
Kanaú pensava... seus olhos marejaram mais fortemente... Tudo aquilo era um sonho cruel e irrealizável. Olhou em volta e descobriu as pedras sujas ainda de carvão, e restos de cinzas onde a velha cozinhava.
Entreviu por um momento o vulto da mãe, sentada na esteira, ralando mandioca com gestos de paciência. Teve a impressão que os seus olhos tão humildes o contemplavam com amor novamente. Para ela Kanaú tinha sido sempre um deus. Um deus branco. Tinha até certo receio do filho. Preparava-lhe o peixe e cantava chorando quando ele adoecia ou se ausentava da aldeia. Ela sabia, e por isso seu olhar adquiria aquela expressão humilde de doçura e encantamento, que o filho não lhe pertencia; que um dia ele partiria para o mundo dos brancos... e que a morte a encontraria triste e só...
Kanaú passou a mão pelos olhos e a dor no peito foi abrandando um pouco...
Virou as costas para as lembranças. Afinal "Kanaú" queria dizer "ontem". Ontem era o passado, e o passado se concretizava em tudo que se fora, morrera ou se esquecera...
Andou lentamente observando a aldeia.
Já agora os inans tinham se acostumado com a sua chegada. Dentro de um dia ele seria tão comum como as outras coisas. Aquela gente era boa, ingênua e bem que podia ser sua gente. Mas seu coração era indefinidamente mau.
As bananeiras surgiam no fundo das casas. Pés de urucus rebentando os pendões em vermelho. E entre os urucus vermelhos e as asas verdes das bananeiras oscilando ao vento, abria-se um caminho proibido às mulheres inans, que chegava até à casa sagrada de Aruanã. Na sombra da casa de Aruanã dormiam as máscaras de palha que levavam em dias de festa aquele cantar monótono que fazia Kanansiu-ê despertar de gozo e adormecer sorrindo.
Kanaú sorriu também. Ele já não acreditava em Kanansiu-ê, o deus dos inans, e também não sabia se poderia crer no Deus dos brancos. Era mais interessante espiar de novo as bananeiras, observar que os inans ainda conservavam o mesmo costume de plantar mandioca entre elas...
Dirigiu-se ao porto. Ali toda topada que desse com a infância não viria recheada de dor, e sim de saudade.
A frente da aldeia, antes de se alcançar o porto se cobria de ramas de cabaça e as cabaças verdinhas e tenras mamavam na ramada como bacorinhos numa leitoa.
Do alto da barranca podia descortinar a paisagem. As canoas amarradas em estacas se tornavam negras porque ao longe as praias brancas que coroavam o rio faziam um contraste de alvor. Rasgos de barro vermelho se transformavam em caminhos para os portos. Cada casa tinha seu porto próprio e cada índio sua canoa. Não era à toa que eles se tornavam eternamente os donos do rio.
Crianças em atitude de silêncio e espera, se encontravam munidas de arcos e flechas feitas de palitos de buriti, flechando odiura que serviria para isca de peixes maiores pegados no anzol.
Ele se viu menino também, junto com Iroá, pescando odiura. Riu docemente. Iroá!... Ainda não o encontrara, mas daqui a pouco iria à sua procura. Aquele índio, feio, baixote, de boca rasgada e que quando ria mostrava todos os dentes, talvez fosse realmente o seu grande amigo na aldeia. Iroá, sempre submisso, se sujeitava às suas vontades. Quando menino, chegava até a judiar dele. Mas Iroá não se importava, ria e voltava como um cão, sem rancor algum.
Mais ao longe inans pequenos se atiravam ao rio com algazarra e quando retornavam à superfície, traziam os cabelos longos e luzidios caindo sobre os olhos. Também na sua infância assim fizera.
Mulheres acocoradas lavavam os rabichos fabricados com casca de gameleira. Até hoje não conseguia compreender como é que de uma madeira esmagada, os inans conseguiam fazer uma peça de indumentária, igualzinha a qualquer fazenda grosseira. Por todo canto da aldeia os varais se encontravam balançando rabichos de gameleira para secar.
índias nuas banhavam-se a todo instante e ele perto parado não servia de estorvo. Acostumaram-se demais, desde meninas à presença de Kanaú.
Retornou do porto. Já agora ninguém o incomodava. Todos sabiam que quando Kanaú passava uma temporada fora, ao voltar, gostava de passear pelos lugares conhecidos para se acostumar de novo. Eram bons os inans, senão, deixariam de compreender as extravagâncias de Kanaú. Respeitavam-no como a loucura que resultava nos índios atacados de feitiço.
Araras vermelhas caminhavam feias e desajeitadas pelo chão. Suas asas e suas caudas se encontravam despidas das belas penas. E elas nem pareciam compreender o ridículo de suas presenças. Mas as araras estavam ali para isso. O destino delas era fornecer enfeites ou para os lóri-lóris, aqueles cocares maravilhosos que deixavam alucinados os olhos dos brancos, ou, para adornar e equilibrar as caudas das flechas.
Kanaú se aproximou das aves que fugiam reclamando:
- Sai, bicho feio!
As araras compreenderam e se afastaram resmungando xingamentos em linguagem incompreensível.
Dos ranchos elevava-se uma fumaça contínua. Nos interiores cozinhavam grandes paneladas de kalugi de arroz.
Ao sol forte, mosquiteiros sujos, enegrecidos secavam de dia, o orvalho da noite. Muitos inans gostavam de passar a noite ao relento. Kanaú também fizera muito assim. Antes de descobrir que nada era, sentia prazer de dormir ao relento. E para ele felicidade maior não existia do que ver as grandes chuvas de inverno passarem, o rio encolher nas suas águas. Depois então vinham as praias aparecendo. E todos os inans abandonavam a aldeia, iam morar na praia, fazer novos ranchos, dançar o Aruanã na areia. Vinha a época da pescaria longa. E eles invadiam o Rio das Mortes, com um desprezo absoluto pelos xavantes, dispostos mesmo à luta, para pescar as grandes tartarugas e as "virações". E como era magnífico o inan sobre a proa da ubá com o arpão suspenso, completamente imóvel esperando a tartaruga que surgia na água cristalina do rio... zás!... e o animal estremecia arpoado... Bonito tudo aquilo!
Kanaú insensivelmente suspirou.
Uma índia velha passou vindo do rio com um pote cheio d'água. Falou sorrindo no rosto enrugado:
- Kanaú-ku!...
- Ku - respondeu-lhe.
Estranho como as mulheres envelheciam tão depressa entre as inans. Estranho como eles também morriam com facilidade... Caminhou mais pela saudade. Quando entardecer vai ser bom! Os homens virão da roça com os paneiros pesados de mandioca, chegando tão cansados que a baba lhes escorre dos cantos da boca. As roças se distanciavam de quatro léguas.
Defronte da casa de Dicorreti, potes secavam ao sol, enquanto ela, sentada perto da porta, trançava um uarabari novo. Nessa época eles renovavam tudo, por isso os cestos velhos se encontravam jogados por todos os cantos desfiando-se inúteis e tristes...
Os cães magricelas às vezes gritavam ao longe; Inan batia neles sem piedade. Mas também quando mordiam um ou acuavam uma onça, rasgavam ferozmente com as presas, devolvendo toda a brutalidade das pancadas recebidas...
Uma menina fabricava itchokó junto a um cabaço d'água. Eram bonequinhas feias, informes; desde pequenas elas começavam a fazê-las para mais tarde se tornarem hábeis naquela arte primitiva-
O mais triste para Kanaú apesar de belo, era todos os índios cobrirem sua nudez com cobertores adquiridos dos brancos; e os corpos vestidos assim se assemelhavam a estátuas e desenhos que vira no Rio e em São Paulo. Antigamente eles morriam menos porque andavam mais nus. Kanaú mesmo já tentara explicar muitas vezes que a roupa suja vestida no corpo saído do banho fazia mal. Mas os inans não compreendiam, como também não compreendiam por que era preciso ter mais de uma roupa. Com eles era usar uma calça e uma camisa até acabar. E a roupa imunda se tornando cada vez mais imunda porque os corpos se defendiam, quando nus, dos mosquitos e muriçocas, com óleo de babaçu e urucu, ia levando para o corpo a doença. O doloroso se encontrava na transmissão de outras moléstias como a gripe, tuberculose, e doenças venéreas. Os brancos só tinham aparecido para fazer mal. Todo o miasmo da civilização os inans iam adquirindo com facilidade. Por isso morriam à toa. Kanaú sentiu-se mal; todo pensamento que tivesse fatalmente se encaminharia para ele próprio. Com desprezo e mordendo os lábios lembrou-se fortemente: Eu mesmo sou um mal dos brancos.
Há dois anos passados ele viu um mariscador seduzindo uma mulher inan. E a mulher vivia bem com o marido. Mas, um vestido, um espelho, umas contas...
Com sua mãe deviam ter feito a mesma coisa.
Não. Não queria pensar.
Caminhou de volta beirando as casas da aldeia. Defronte de um rancho foi obrigado a parar. Uma voz o chamava.
Abaixou-se para penetrar no interior. Era a casa de Curiala, o capitão da aldeia. Um velho cego.
Curiala trazia os braços estendidos para ele.
Emocionado, Kanaú entregou-lhe as suas mãos.
- Sente-se ao meu lado, Kanaú.
Kanaú obedeceu. Enquanto as mãos do velho percorriam o seu corpo, deslizando pelo seu peito, Kanaú olhava com a alma morta o ambiente. Podia morrer mil vezes e não esqueceria o cheiro de um retô inan. A mulher de Curiala, velhinha e enrugada, com os dedos chispados, torcia linha de algodão. A maçaroca do algodão se prendia nos pés pequenos. A cada torcida levantava os olhos para observar a cena.
As mãos de Curiala iam subindo devagarzinho pelos seus cabelos.
- Kanaú, cortou os cabelos como tori...
A mulher olhou para os cabelos de Kanaú.
- Mas, Kanaú vai deixar que eles cresçam de novo como inan. Kanaú vai andar sem roupa pela aldeia, e pintar o corpo com jenipapo e urucu...
O velho desceu as mãos pelos seus olhos e os dedos pararam (como os dedos da morte de Curumaré) sob os seus olhos.
- Kanaú não fez o "omarira" dos inans. Kanaú não tem o círculo dos inans.
A mulher repetiu em eco olhando tristemente os olhos de Kanaú.
- Não tem o círculo de fogo dos inans...
Kanaú precisou conter-se para evitar que as lágrimas descessem. As mãos de Curiala paralisaram-se sobre o seu queixo. Sua voz veio ainda mais magoada e soturna.
- Kanaú não tem o beiço furado como inan.
Os olhos sem luz da velhinha pousaram sobre o queixo de Kanaú.
- ...não tem o beiço furado como inan...
As mãos de Curiala abandonaram o rapaz.
- Kanaú está forte. Kanaú é belo. Mas Kanaú não quer ser inan.
Aqueles olhos invadidos pelo branco da catarata do velho índio foram por um segundo escondidos pelas costas escuras das mãos.
Kanaú tomou-lhe as mãos com carinho, desviando aquele gesto.
- Escute Curiala. Kanaú vai ser inan. Dentro de uma lua ele terá debaixo dos olhos a marca dos inans. Você vai ficar contente.
Um sorriso se abriu na boca velha do índio. Dirigiu-se para a mulher:
- Você ouviu? Kanaú vai ser inan...
A velhinha parou o trabalho e olhou Kanaú com ternura:
- ...Kanaú vai ser inan.
Curiala falou emocionado:
- Eu vi Kanaú nascer. Como não tinha pai, muitas vezes carreguei você no colo. Fiz muito arco para flechar odiura. E a primeira grande pescaria quando você estava ficando rapazinho foi comigo. Você se lembra?
- Não me esqueço disso, Curiala...
- Depois você foi estudar em Conceição e quando voltou Curiala estava cego.
Um nó se atravessou na garganta de Kanaú. A velha repetiu em eco, novamente:
- ...Curiala ficou cego.
O rapaz encostou o rosto de Curiala sobre os seus ombros. Suas mãos alisaram os cabelos melados de óleo.
- Eu trouxe fumo para você, Curiala. Trouxe uma roupa também. Amanhã vou flechar peixe para você.
- Você é bom, Kanaú. Você é bom. O fumo me fará bem e estou muito velho, por isso sempre me sento perto do fogo. Curiala sempre está com frio...
A velha tornou a falar.
- ...Curiala está com frio...
- Então Curiala não fica triste com Kanaú, não é?
- Curiala não fica triste com Kanaú se...
Kanaú sorriu. Sabia que ele pediria alguma coisa mais.
- Se o quê?
- Se ele lutar com os inans de Raumaló-Dessé contra os inans da aldeia de Btondiru e Créran-aúa.
- Por que lutar?
- Você é forte e vai haver uma festa. Daqui a dois dias chegarão os inans de baixo e vai haver luta. Kanaú poderia lutar...
- Eu não sabia da festa. Mas vou lutar sim.
- Festa grande, Kanaú. Dois dias de Aruanã. As mulheres estão preparando bolo e os homens voltarão da roça hoje, com os berrurás cheios de mandioca. Até Valentim vai dar festa entre os toris...
- Então eu vou lutar... Até logo, Curiala. Novamente sua alma continuava a se apaziguar. Quando ia alcançar a porta falou para Curiala:
- Logo que eu abrir meu saco, eu trago pra você roupa e o fumo.
Curiala agradeceu e comentou:
- Kanaú é bom. Kanaú vai ser inan.
Antes de se afastar, Kanaú ainda ouviu a velha comentando:
- ...Kanaú é bom...
Tomado de decisão violenta fechou o punho e esmurrou o próprio peito.
- Eu, Kanaú, juro que não quero mais pensar no que sou. Juro que...
Voltou à realidade e sorriu triste.
- Pelo menos nada importará por esses dias. E é tudo. Eu acharei o diamante. Nem que precise matar. Camura disse que tinha licença de matar. E roubo no garimpo pode ser punido com a morte.
Precisava, no momento, de encontrar o seu irmão. Terroloni não tinha importância alguma para ele, e o mesmo se daria a seu respeito com o irmão.
Caminhou lentamente até à sua casa. Abaixou as costas largas e penetrou no rancho.
Uns papagaios que andavam pelo chão, assustados, subiram pelas paredes de palha e foram se refugiar no teto de buriti.
Terroloni, sentado numa esteira, fabricava um remo.
Levantou apenas os olhos e nenhuma expressão de surpresa se estampou nos seus traços. Por certo já fora avisado da chegada de Kanaú.
Apenas murmurou uma saudação com frieza.
Nem sequer convidou Kanaú a se sentar.
Sempre houvera aquela diferença entre eles. E Kanaú para Terroloni significava tanto quanto um tori qualquer. Desde pequenos se detestavam pela diferença de tipos, e a mãe continuamente intervinha entre os dois tentando não demonstrar a sua preferência pelo mais moço.
Kanaú olhou o irmão que retornara ao trabalho. Aquele era o seu único vínculo de sangue. O único sangue que o ligava à aldeia e que lhe permitia o direito ao rio e à caça.
Mas como por castigo Terroloni era feio, entroncado e triste.
A mulher de Terroloni procurou quebrar aquele mal-estar.
- Kanaú voltou? Kanaú vai sentar?
- Obrigado. Kanaú está bem.
A mulher suspendeu uma criança que se encontrava sentada a seu lado.
- Você não conhecia este. É seu sobrinho.
Kanaú alisou a cabecinha negra já engordurada de óleo de babaçu.
- Como é o nome dele?
- Aratuma.
- Aratuma é bonito e forte.
A índia sorriu com orgulho e acrescentou:
- É gordo também.
Depois ela lhe ofereceu umas batatas cozidas e perguntou se ele não preferia milho assado. Mas nada disso Kanaú aceitou. Apenas perguntou-lhe:
- Você sabe onde está Iroá?
- Iroá foi fazer canoa na praia de baixo. Daqui a pouco, quando o sol for sumindo, ele volta.
- Eu vou ao seu encontro.
Os olhos da cunhada se entristeceram de angústia. Kanaú compreendeu que ela queria convidá-lo a pousar no seu rancho. Mas, Terroloni não oferecendo, ela também teria que se calar.
Sorriu com compreensão.
- Até logo.
Alisou de novo a cabeça da criança; virou as costas e saiu do rancho.
Daquela hora em diante morreu uma pequena esperança nascida quando retornava da cidade: tentar aproximar-se do irmão. Fora tudo inútil. E dessa hora em diante por mais que quisesse o irmão teria para ele o mesmo significado que uma casca de gameleira.


Atravessou a aldeia, transpôs sem sacrifício algum a porteira e caminhou calmo defronte das casas dos brancos. Falou com diversos toris conhecidos. Perguntou se ainda tinha muita muriçoca durante a noite, mas os moradores o tranqüilizaram. A praga nesse ano não fora grande.
Antonhão perguntou uma porção de coisas sobre a cidade e no fim contou a notícia.
- Você se lembra de Henrique-mãozinha?
- Aquele que tinha um braço encolhido?
- Aquele mesmo. Pois ele foi assassinado nos Tapirapés pelos índios Caiapós. Os Caiapós são uns danados, Kanaú. E a gente não pode fazer nada.
- Eles que venham pra cima de mim. Pode ser Xavante, Caiapó ou Urubu, eu descarrego a vinte e dois neles...
- Tu trouxe uma "foblé", muito boa, num foi?
- Ótima. Dá vinte e um tiros de repetição e quinze automáticos.
- Boa pra mariscá, hem?
Kanaú deu de ombros, e continuou a andar.
Entranhou-se por um caminho e foi procurar a Prainha. O Sol descia se apagando aos poucos.
As pedras escuras da Prainha pareciam escutar a conversa das águas do Araguaia. A correnteza ali se tornava forte e borbulhava ininterruptamente.
Quantas vezes seus pés não se postaram naquelas pedras flechando odiura, para fazer isca de anzol? Quantas vezes?... sorriu. E quando era tempo de subida de peixe, que ele apostava com Iroá quem pegava mais? Tudo tão bom na infância! Lembrou-se de uma pirarara fisgada em seu anzol, que quase rebentava a linha de pesca. Foi preciso que os dois se agarrassem na linha e mesmo assim, por pouco não tomavam um banho. Mas valera a pena, porque de noite, na aldeia era só no que se falava...
Entretanto, a vida passara. Não era tempo de subida de peixe. Não havia ninguém e as pedras se achavam em silêncio.
Procurou mais adiante da Prainha, as areias brancas. Cada enchente que passava as areias dali diminuíam. Agora só existia uma nesga. O rio cada ano parecia crescer mais. Era um mistério aquilo. Depois da cheia, depois da chuva, nunca o rio voltava do mesmo jeito e nem as praias apareciam iguais, nos mesmos cantos. Entretanto ainda havia muita areia para os jacarés ou mesmo, pra os inans que brevemente viriam fazer canoa ali.
Deixou a praia para trás e foi procurar um velho pequizeiro que se debruçava sobre o canal. Iroá viria por aquele caminho. Porque além de ser o canal, as águas corriam com menos força. Completamente nu, saltou agarrando um galho e subiu com a sensação feliz de que seu corpo readquiria infância.
Sentou-se no tronco e buscou uma forquilha, sua velha conhecida. Soltou as pernas e reclinou-se voluptuosamente sentindo o cheiro da árvore.
Sua cabeça repousou deliciosamente, e, seus olhos mongóis sem pressa iam pesquisando a tarde que se consumia. O rio se esticava como um espelho. As marrecas pousavam do outro lado. Um bando pequeno de garças voava alto para a noite.
Olhou a árvore amiga. As suas folhas amareleciam e o tronco enrugado parecia se abrir em pequenas feridas marrons. Formigas andavam despreocupadas em todos os sentidos.
O vento da noite se anunciava crispando de leve as águas do rio. As folhas feias do pequizeiro dançaram tristonhas.
Kanaú nem sabia quanto tempo passara nesse enleio. Foi despertado por uma pancada monótona e compassada. Era o remo de Iroá.
No peito sentiu o coração crescendo de alegria.
Saltou da forquilha e procurou um galho debruçado sobre as águas. Tentou fazer o menor barulho possível. Não queria que o inan amigo soubesse de sua presença. E ele não saberia porque o vento estava contra e provavelmente Iroá não o esperava.
O ruído da canoa se aproximava. Kanaú nem podia respirar. A escuridão da tarde permitia que seu corpo não fosse avistado. Dentro em breve as primeiras estrelas bocejariam preguiçosas.
Iroá apareceu. Sentado no fim sustinha o jacumã. Remava calmo e seu vulto escuro vencia a subida com facilidade.
O corpo de Kanaú retesou-se. O amigo estava sob o seu pulo e despreocupado retornava.
Não podia ficar indeciso. Saltou e o corpo passou frente à cabeça de Iroá, indo mergulhar no rio.
Voltou à superfície sacudindo os cabelos e às gargalhadas.
Iroá estava em pé na canoa, e, perdera a fala com o susto. Kanaú nadou e agarrou na borda da ubá. Iroá foi sentando devagarzinho.
- Diabo de inan medroso!...
A emoção foi diminuindo e Iroá pôde balbuciar:
- Kan!...
Sua boca se abriu num riso feliz.
Puxou a canoa em direção à Prainha. Kanaú nadou também para lá.
- Pensou que eu fosse onça, cabra danado...
- Pensei.
Iroá fitava o amigo como se fosse uma visão. Seus lábios não podiam esconder os dentes brancos. Examinava com saudade o amigo forte, bonito, que se criara a seu lado.
De repente investiu contra Kanaú e se atracou. Lutavam para ver quem era o mais forte, como faziam desde pequenos. Os corpos rolaram na areia. Ambos faziam força para encostar as costas, um do outro, no chão.
Kanaú era mais forte, poderia vencer o amigo, mas em paga do susto dado foi fingindo cansaço e deixou-se dominar.
- Você está fraco, Kan... A cidade amoleceu você.
- Remei muito. Estou ainda cansado.
- Não minta. Você está fraco...
Kanaú continuava deitado de costas sem vontade de se levantar. Iroá encheu as mãos de areia branca e esfregou a cabeça de Kanaú:
- Batizo você, como índio de novo. Você é inan.
Findo aquele gesto de amizade, deitou-se também de costas. Kanaú estava feliz.
- Você nem sabia que eu chegava, não?
- Sabia. Sempre que eu sonho com estrela me acontece uma coisa agradável.
- E você sonhou?
- Sonhei que as Sete-Estrelas vinham se aproximando de mim, e que depois elas foram se abrindo e viraram flores de cana...
- Como você mente!...
- Vamos embora? Já é noite.
Kanaú levantou-se.
- Vamos banhar e depois você vai na minha canoa.
- Só se você remar.
- Sempre remei para você, Kan...
- Estou muito cansado. Remei três dias e três noites sem parar.
- Não me engane, Kan. Eu conheço você desde menino, e desde menino você me tapeou. Sempre quem remava era eu.
Mergulharam na água escura. As estrelas invadiam tudo. As águas se iluminavam com mil brilhos.
Tomaram a canoa e Kanaú deitou-se na proa. Iroá remava.
De noite, deitado na casa de Aruanã, Kanaú contou histórias da cidade. Iroá ouvia calmamente. Depois Kanaú perguntou o que acontecera com ele nesse ano.
- Comigo? Nada. Pesquei muito, cacei, remei, senti falta sua e apanhei uma surra danada.
- Surra?
- Foi. Texibré tinha ido pescar no Rio das Mortes, e eu namorei a mulher dele. Contaram a ele na volta, e todos os parentes se reuniram e me deram uma surra. Rapaz, apanhei cada bordunada!
- Por que você não se escondeu no mato?
- Eu não tinha razão. Eles estavam fazendo o que qualquer inan faria e eu tive que apanhar... Vamos dormir?
Kanaú virou-se para o lado e enrodilhou-se no cobertor. Breve o frio viria forte. No céu, Sete-Estrelo tinha perdido o prestígio, porque todas as estrelas comuns se haviam transformado em flores de cana. O céu era um canavial imenso, e iluminado.


Terceiro Capítulo - A Segunda Canoa

- Ande com isso, sua vagabunda. Precisa passar a vida inteira lavando essa porcaria?
Os olhos do homem faiscavam de ódio. Sentia vontade de levantar as botas e chutar com força a mulher encurvada na praia com as mãos mergulhadas na água.
Mas ela não se amedrontou. Ao contrário, ergueu-se um pouco retirando as mãos do serviço que fazia, enxugou-as na saia sugada que lhe deixava as coxas baças, empelancadas e magras, à mostra. Depois, levou a mão direita até à testa e retirou o seu cabelo dourado caído, num gesto de grande calma, e displicência. Os olhos pequenos, escondidos numa maré de rugas fitaram sem medo o rosto que a xingava.
A boca sem dentes e chupada, que constantemente pendia, se movimentou.
- Estou quase acabando, Tenente.
Olhou ainda firmemente o rosto barbado do homem. A barba negra, cerrada, aumentava-lhe o aspecto cruel. Aquele, dentro em breve seria acometido de febre da solidão. Tilde sabia disso. Aquele homem tinha medo. Medo de tudo. Medo da noite, medo da morte.
Baixou os olhos para as mãos fortes do homem erguido à sua frente e viu-as se agitando nervosas.
O homem irritado virou-lhe as costas, e Tilde voltou a enfiar as mãos nas águas para lavar a panela de ferro engordurada. Ouviu as passadas do Tenente se afastando na areia da praia. Sorriu com desprezo na boca mole, enquanto os seus dedos garranchosos esfregavam os restos pegajosos da comida. Cardumes de miguelinhos atraídos pelas sobras, às vezes vinham beliscar as suas pernas mergulhadas.
Tilde pensava daquela maneira, sempre daquela maneira. Com calma e desprezo, porque a vida não tinha muito significado para ela. O Tenente estava com pressa porque a noite se avizinhava, e eles precisavam recomeçar a jornada do silêncio. Com a outra mulher ele falaria doce. Mas também a outra mulher era bonita, era boa, e esperava um filho.
Foi acordada dos seus pensamentos pela presença de novos pés remexendo a areia em sua direção.
- O Tenente mandou eu vir ajudar você!
Tilde espiou o homem. Aquele não era bom nem mau. Somente raras vezes falava e procurava não incomodar ninguém. Nem mesmo com os olhos. Tilde sabia pedaços de seu passado. Sabia que ele matara a mulher e fora preso no garimpo. O Tenente o libertara e o trouxera na jornada. Ele também tinha direito a uma parcela do diamante.
- Já acabei. Se você quer, ajude a levar as panelas.
O homem se abaixou enquanto Tilde se erguia, alisando os rins fatigados pela posição.
- É melhor a gente carregar tudo pra junto da montaria. Daniel apenas respondeu com um grunhido afirmativo.
O Tenente encaminhou-se para onde Sá Lua dormia, procurando não fazer barulho.
Um cobertor fora armado sobre quatro forquilhas de madeira e tinha feito sombra durante o dia para a mulher dormir numa esteira.
Sá Lua calmamente repousava, mas de vez em quando a mão espantava os mosquitos de sobre o rosto.
O Tenente se abaixou com ternura e fitou a mulher. Seus olhos negros foram se entreabrindo.
- Descansou melhor? - Sua voz se tomou de suavidade.
- Eu não estava dormindo. Já está na hora?
- Quase. Aquela vaca como sempre fica rendendo a eternidade e atrasando tudo.
Sá Lua segurou a mão do homem.
- Não trate a pobre assim. Ela também é um ser humano.
- Ser humano?!!!... Aquilo é uma vagabunda à-toa. Um bicho! O desprezo crispou-lhe os lábios e por pouco não cuspia de nojo.
- Não sei onde estava que deixei aquela mulher viajar conosco. Mas Sá Lua fitou com tamanha tristeza o Tenente, que ele compreendeu o que ela lhe dizia na mudez do olhar: - "Eu também sou. Eu também o fui, e no entretanto, você não me trata assim..."
Um desânimo se apossou dele, fazendo-o sentar-se na esteira. Olhou o ventre enorme da mulher que respirava com dificuldade. Mais alguns dias, e aquela criança nasceria. Não obstante isso, as dores e os pés que inchavam, não obstante o desconforto e a praga de mosquitos, ela não reclamava e recebia tudo com um sorriso triste.
Suas mãos estavam mais brancas, e pálido se encontrava seu rosto alvo, como as praias. Seus olhos se tornavam mais negros, mais negros...
- Não posso me conter, e, às vezes tenho vontade de dar naquela mulher. Prometo que farei o possível para me controlar...
Porém, enquanto falava, não conseguia afogar a onda de náusea que lhe devastava o íntimo pensando na mulher. Revia a figura baça, amarelada, vestida naquela roupa, cuja tonalidade se aproximava da pele, as pernas finas, pelancudas, os braços emagrecidos, apresentando um pequeno volume no bíceps... e as mãos, sobretudo as mãos, cujos dedos nunca se encontravam parados. Eram como víboras se deslocando voluptuosamente. Quando Tilde segurava qualquer coisa dava a impressão de cobras se enrodilhando. Quando levava as mãos até os cabelos (a única coisa bela e sacrificada naquele monte asqueroso de podridão), as mãos vinham descendo ondeando como cobras, que se despencassem numa queda d'água. E sempre que podia, ela ficava toda enrascada, quase comprimindo o peito seco contra as coxas descarnadas, a alisar com um velho pente o cabelo de ondas largas e maravilhosamente dourado. E pensar que aquela mulher antes de ser empregada de Sá Lua, vivia num bordel misturada a dezenas de outras ratuínas de sua espécie, ganhando a vida no garimpo. Revi-a quando se tornava necessário fazer a ronda, plantada como uma trepadeira ressequida, pendurando no lábio murcho, um cigarro. Sempre vestida de amarelo, sempre ondulando o cabelo loiro que raspava os ombros no único sintoma de sensualidade, a fazer convites cínicos. E sempre havia quem aceitasse. Os garimpeiros sem alma, e sem estômago, encontravam abrigo para as suas misérias, aconchegando-se na rede, usando contra o peito forte e tostado, os seios pequenos quase informes daquela mulher. Outras vezes ela estava dançando no cabaré, enroscada aos machos, mostrando pela cava das mangas, as axilas amarelentas e mal raspadas. Imunda aquela mulher!
A saliva se avolumou na boca do Tenente, todavia ele se conteve e engoliu-a para que Sá Lua não voltasse a adquirir na flor dos olhos negros, uma nova nuvem de tristeza e nostalgia.
Ao contrário, sorriu docemente e abaixando o tronco ofereceu o pescoço forte, para ajudá-la a levantar-se. Sá Lua contornou-lhe os braços e deixou escapar um gemido pequeno no esforço exigido para erguer-se.
Com o peso da mulher sobre o seu corpo, o Tenente sentiu que o Colt escorregava-lhe sobre a virilha esquerda, e que a guaiaca esticando-se fazia roçar a sua espinha o volume do diamante roubado. Um tremor alastrou-se como fogo ao contacto das garras da consciência.
Sá Lua percebeu e perguntou-lhe enquanto caminhava.
- Estou tão pesada assim? Ele riu sem responder.
- Que pena que logo nesse momento eu seja um estorvo...
- Não diga bobagem. Vamos, a noite se avizinha rapidamente.
Desde o começo, tinha sido estipulado que só viajariam à noite; ou, em caso de desespero eles então avançariam as fronteiras do dia. Não deveriam se aproximar de qualquer povoado. O silêncio selaria cada boca e proibido ficava que se fumasse ou acendesse fogo. A qualquer ruído suspeito encostariam na margem de Mato Grosso buscando sombra. Era preciso que todos escutassem os menores barulhos e que os menores barulhos fossem evitados. Por isso o remo mergulhado dos dois homens se revestiria de gestos de veludo. Nessa época qualquer cuidado ainda se tornava insuficiente. Soara a hora dos mariscadores. De todos os cantos poderia surgir um batelão movido a motor, subindo ou descendo o rio. Ninguém poderia garantir que a notícia do roubo já não se tivesse propagado e nada agradável a ameaça de se tornarem presas de homens barbados e brutos, em cujo rosto o sol fazia morada habitual. Os mariscadores, armados até à alma, se tornavam cínicos e diziam piadas a qualquer embarcação que passasse. Tivessem eles notícias de que uma montaria se encontrava naquelas condições e se dividiriam em grupos cercando o rio, atulhando os canais com armadilhas e sem remorso algum se apossariam do diamante.
Perigosos e mais ainda que os mariscadores, como demônios bronzeados, agitando os remos com a mesma facilidade que movimentavam os braços, os índios inans, donos das águas, dos segredos e dos mistérios poderiam rebentar por milagre, de qualquer parte. O Araguaia imenso se encontrava acorrentado a muitas aldeias inans. Principalmente quando já estivessem viajando nas águas da Ilha do Bananal. Por felicidade os silvícolas naquele semi-estado de civilização continuavam conservando os velhos hábitos. Entre eles permanecia o uso de manejar o remo batendo pancadas ritmadas na borda das canoas. E aquele som cavo, monótono repercutia pela solidão da selva, pela extensão das praias e barreiras, pelos estirões d'água como um tambor de salvação.
A montaria deslizava suave. O tempo ameaçava de esfriar mais e mais. A noite se transformava em enorme redoma de vidro, onde até as estrelas guardavam silêncio. Raro era ouvir a garça ou o manguari assustado percebendo a presença dos viajores, soltar um alarme revoltado.
Já com as gaivotas que vinham de longe procurar praia para a desova, não se dava o mesmo. Viviam em constante alarido rodopiando como sombras brancas no negrume da noite. A elas ninguém ligava.
Até o momento presente tudo favorecera aquela jornada de silêncio. Não fora a gravidez e o parto que poderia se dar a qualquer instante, poderiam até julgar-se protegidos pelos mistérios das matas.
A lua nova ainda demoraria uns oito dias para aparecer, e até que noite a noite fosse se desenvolvendo eles já poderiam ter atravessado as fronteiras de Mato Grosso e penetrado no Pará. Por azar também o Geral viria atrapalhar a viagem, isso se eles estivessem remando durante o dia. Então todo o rio se contorceria em banzeiros intermináveis e a selva seria chicoteada violentamente pela própria selva. Mas o Geral se calava durante a noite e o rio adormecia como sempre picado de estrelas.
Agora a noite estava terrivelmente negra. O rio absorvia a negridez e tornava-se sombrio e ameaçador. Até que a madrugada chegasse as horas deslizariam unidas e a noite escorregaria pelas estrelas sem pressa alguma.
No leme, sustentando o jacumã, o Tenente dirigia a embarcação perscrutando a solidão. Na proa, Daniel fazia o mesmo, e por meio de um cicio, avisava que a canoa deveria tomar para a esquerda. Com dois cicios, o movimento deveria ser ao contrário. Daniel conhecia como velho garimpeiro o Araguaia. Vivera sempre pangolando de norte para sul, de sul para norte, até que...
No centro da montaria, as duas mulheres se ajeitavam como podiam. Tilde sempre enrodilhada e só se movimentando ou para cobrir-se ou para cobrir os pés de Sá Lua.
Sá Lua! Seus olhos dormem parados, parados na flor da noite. Um mal-estar contínuo produz-lhe sensações de fogo sobre o ventre tumefacto. Mas seus lábios estão trancados. Nada diz, nada reclama, acostumada como estava ao fatalismo das prostitutas. Só pensava no filho que ia nascer e entregava ao destino numa melancólica sublimação. O que tinha sido a vida para ela? Nada. Iludir-se. Acreditar nos homens que sempre mentiam, desde o primeiro. O tempo passava, as suas formas se arredondavam e qualquer homem que oferecesse uma certa garantia ela aceitaria porque a velhice se aproximava rápido na carne das mulheres como ela. O Tenente fora o indicado. Aceitara-o por dois motivos: primeiro, porque ele era a lei, e uma biraia não tem grandes direitos num garimpo. Segundo, porque montara-lhe uma casa e fizera com que se afastasse da prostituição. Não podia queixar-se dele, apesar do seu gênio por vezes irascível. Tratara-a sempre respeitosamente. Não custava aguardar com paciência que suas crises de mutismo naturalmente terminassem.
Não era difícil compreender um tenente de polícia impondo a lei num garimpo. E o que não eram os garimpos senão a mesma coisa? Aquela loucura faustosa do dinheiro. Homens achando pedras e bebendo, dando tiros, dançando nos cabarés, onde os pés no chão levantavam uma poeira tão grande que necessário se fazia, interromper a dança de hora em hora para molhar o salão. E quando voltava a sanfona e o clarinete a gemer melodias irritantes, os pés se enlameavam todos, criando crostas de sujeira. Uma imundície! E tudo terminava em briga, em crime, em morte e só a lei conseguia amedrontar os homens que chegavam de toda a parte do Brasil, por vezes cortando regiões de selva bravia e bárbara, com os pés desguarnecidos de sapatos. Eles vinham do Maranhão, do Pará, do Ceará, e do Piauí; cantavam os ABCs que do Piauí apareciam os homens mais cruéis, que infestavam os garimpos. Um ditado conhecido percorria de garimpo em garimpo: "Eu sou é do Piauí, quando mato é pra instrui". - Toda uma vida diferente, angustiosa, cruel, em fronteiras desconhecidas, para as grandes cidades se arrojava sem medo e sem piedade, naqueles homens que iam e vinham buscando a sorte conforme a época do ano. Para eles tanto fazia batear como rachar pedras, cavar a terra em busca do cristal ou peneirar ouro. Indiferente também vestir os escafandros e procurar nos caldeirões do rio a gema afortunada. Gastavam o tempo e a vida, ou bamburrando ou não, até se encontrarem velhos, doentes de febre e de uma mais terrível febre ainda: - a solidão da velhice. Os braços não tinham forças e as mãos se encontravam miseravelmente vazias ante a realidade. E não adiantava pensar no passado, no jogo das horas desperdiçadas, porque tudo se resumia na espera da morte abençoada.
Não era esse o destino que Sá Lua queria para o seu filho. Por isso aceitara a idéia fatal do roubo do diamante. E se o ente que breve seria gerado fosse uma menina, então maior cuidado ainda se fazia. Entre a cidade e a selva, ou entre a cidade e um garimpo, forçosamente preferiria a cidade como mal menor.
Suspirou triste. Uma estrela cadente rasgou a alma da noite. De coração fez um pedido a Deus ou a qualquer Ser superior, para que a criança nascesse bem, e que se o seu destino se parecesse com o dela, ou o do pai, que a levasse cedo para o reino das sombras, onde nunca, por certo, teria o conhecimento da dor e da tristeza.
Perdeu-se no espaço a trajetória luminosa, e o céu voltou a sei comum. Os remos se movimentavam macio criando uma pequena luminosidade nas suas pás, pelo deslocamento da água.
Sá Lua! Seus olhos dormem parados, parados na flor da noite. Pequenos pedaços de sua vida voltavam a incomodar-lhe devagarzinho, tudo em vista da natureza estar reclamando nela o imposto da maternidade.
Cidade! E o que era a cidade, para quem não possuía uma certeza, uma segurança monetária, ou pelo menos uma orientação amiga? O que é a cidade para quem passa fome, para quem nasce do nada, para quem se torna por herança dono de todas as misérias? O que era a cidade para aqueles que gemeram o segundo choro ao relento da roda? Nada. Só o tempo passando a esconder os corpos de outras como ela à sombra do mau humor dos chapelões de religiosas saturadas de Deus, viciadas em Deus... Quando tinham um passeio por mês, saíam acorrentadas: mãos unidas, uma a uma. - A cidade se manifestava imensa. As ruas faziam medo, o povo as olhava penalizado. Os ônibus, os bondes, os letreiros luminosos tudo amedrontando, porque não fora dado a elas o direito de ter nascido como parte natural de uma cidade, e sim, como sobras da vida.
Um destino diferente haveria de aguardar a criança ou senão, Deus, aquele Deus que amedrontava tanto na voz das freiras, aquele Deus chicoteado diariamente pelos terços luzidios, levasse a criança consigo.
Depois Sá Lua se via crescendo. Tornando-se menina, virando moça. Os seios surgindo, aumentando, e ela com medo que as freiras vissem aquilo. A puberdade amedrontando como qualquer coisa da existência. Tudo incidindo num ponto comum: o medo de tudo. O pavor dos primeiros pêlos invadindo o corpo, o terror de outros fenômenos comuns, tão comuns a quem tem o direito da existência.
Um dia estava mulher. Um dia saiu para uma casa. Um dia encontrou o primeiro homem que mentiu. Um dia, outros homens olharam o seu corpo branco como a Lua, e como a Lua, sob a luz de um abajur, adquiria tonalidades azuladas. Seus olhos então se dilataram pela vida falsa, contudo ou pelo menos no começo, mais agradável do que a primeira fase. Conheceu muita alegria, conheceu muita tristeza. Mas o que importava. Percorreu muitas cidades e sempre os homens invadindo o seu corpo branco de lua. - Nem se importava com o seu antigo nome que tanto podia ser Hemengarda, como Aparecida. Sá Lua soava aos seus ouvidos muito mais bonito e suave do que qualquer nome grandão de enjeitada.
O tempo viveu muito e as cidades foram se tornando muito pequenas. Ouviu falar dos garimpos. Veio para eles e foi ficando. Pulando de um para outro, enquanto seu corpo manifestava os primeiros sinais de cansaço.
Durante três anos e pouco agüentou as músicas dos cabarés, as mãos calosas e o hálito morno, recendendo a cachaça, misturada com fumo grosseiro. E o pior era o aroma que escapava do corpo dos machos musculosos: aquela mistura selvagem de suor e de terra.
Então aparecera o Tenente...
A noite foi-se fechando na flor dos olhos de Sá Lua.
Entretanto o pulso forte do Tenente remexia incansavelmente as águas. Não havia tempo a perder. Dentro de quatro horas a madrugada despertaria. Era remar e aguardar a direção pelos cicios de Daniel.
Por vezes uma árvore caída e arrastada pela correnteza fazia um ruído de corredeira, exigindo que eles se afastassem do perigo próximo. Nas margens do rio sempre havia uma anta ou uma capivara mergulhando medrosamente.
No mais a noite se adiantava calma e a viagem prosseguia sem novidades.
O Tenente bocejou fortemente e levou a mão ao rosto alisando a barba dura que queimava o rosto. Nesse movimento a guaiaca desviou-se da cintura e ele sentiu o volume do diamante raspando as suas costas. Um arrepio envolveu-o todo, enquanto pelo pensamento repetia-se a mesma pergunta de sempre: "- Já teriam descoberto?" - Acalmava-se, convencendo a si mesmo: "- O fato do roubo não me traz remorsos..."
Porém não podia mentir para a verdade, negando que tinha medo; medo de ser apanhado: medo de receber a pena que no garimpo é lei para os que roubam: - a morte. Medo de ser descoberto. Medo de perder aquela única chance que apesar de desonesta tinha sido a única a aparecer na sua vida...
Ser tenente num garimpo era jogar com as vidas; tanto a sua como a dos outros. Sua mão ditava sentenças. E disso, sentia cansaço, não arrependimento. Que lhe importava o preço de uma existência a mais ou a menos, se aquela gente não possuía piedade ou outro qualquer sentimento humano e cristão? Eles não matavam por dez cruzeiros? Eles não assassinavam por um quilo de carne ou às vezes por um pequeno gracejo? Não brigavam, não se destruíam como feras? Então por que não tratá-los como simples feras? Não destruí-los e castigá-los como simples brutos? Por acaso eles respeitavam as leis do garimpo? Por acaso eles deixavam de andar desarmados quando a lei proibia o contrário? Então por que ser humano com gente sem consciência, que vivia apenas o momento e o resto não tinha importância...
Por acaso também o tinham mandado para aquelas regiões por ser bonzinho? Não. Fora o escolhido porque ninguém melhor indicado existia. Ele era o tipo dos homens classificados de "macho pra burro". Capaz de tudo. De sanar, limpar, e arejar qualquer podridão tanto nos garimpos velhos como nos em formação ainda. Não se iludira aceitando o cargo; nem que o nomeavam para aquelas brenhas por grandes méritos. Ao contrário, queriam ver pelas costas um homem de gênio péssimo, que enchia de terror a capital velha de Goiás. Davam-lhe um cargo de absoluto poderio para se cientificar de que lá, não haveria melhor presídio para engaiolá-lo. Aliás ninguém ignorava que toda a polícia de Goiás ou Mato Grosso referentes aos paramos das garimpagens era criada daquele jeito. Pegavam os tipos mais salafrários e cruéis e atraíam-nos para a farda, para a lei. Como lei, eles tinham que dar o bom exemplo e vestidos pela farda da vaidade, quase todos passavam a ter um comportamento exemplar.
Daniel na proa avisou que desviasse a canoa para a direita. Mas o pensamento não se desviava.
Dois anos estivera enterrado ali. Perdera a conta dos casos de correria atrás de criminosos por dentro das matas. Perdera a memória a respeito de homens que mandava rio abaixo ameaçando de morte se por acaso voltassem a pisar naquele território. Nem conseguia se lembrar de quantos mandara "deportar". E o que era deportar? Nada menos do que levar um desgraçado com quatro polícias, numa canoa rio abaixo, e longe, onde só houvesse o testemunho dos céus e das matas infindas... meter uma bala na nuca. Depois, o corpo arremessado ao rio onde as piranhas vermelhas guardariam segredo para a eternidade.
Por isso jogava a vida contra outras vidas. E como lei tinha o direito de ser além de mais rápido, mais temido. Quantos revólveres não esbagaçava por semana na polícia? Era só a picareta pontuda amassando tudo. A lei. A lei era ele. E não obstante isso, seus sonhos eram duros como pedra. Seus quadris tinham se calejado de dormir na rede com o revólver e a guaiaca repletos de bala. Raramente a lei tinha um fim decente. Os donos da polícia destinavam-se à mesma morte dos criminosos. Uma bala traiçoeira vindo de qualquer parte; da mata, do rio, uni dia rebentaria os seus miolos ou vazaria o seu coração...
A pergunta renovou-se no seu íntimo: "Já teriam descoberto?" O pensamento deu um salto e o Tenente reviu o comprador de pedras preciosas balançando-se na rede do terraço de Jurema-Pé-de-Anjo. De longe se escutava o violão e a voz agradável do cantador. Ao aproximar-se do bordel de Jurema, a voz se calou e os dedos morreram no bordão. O comprador se encontrava apenas vestido com uma calça de pijama clara, tendo o peito musculoso e queimado à mostra. Depositou o violão no chão e sentou-se na rede. Olhou o Tenente e sorriu. Os cabelos castanhos e encaracolados combinavam bem com o bigode mongol e o cavanhaque levemente pontudo. Olhos castanhos, miúdos e brilhantes, conservavam constantemente uma expressão de cinismo que por vezes adquiria doçura. Os olhos não se tornavam estranhos e sim a sobrancelha bem feita, subindo diabòlicamente pela testa.
O sorriso branco demonstrava audácia e coragem. Foi ele que cumprimentou primeiro o Tenente.
O Tenente achegou-se devagar. Subiu ao terraço e aceitou a cadeira oferecida. Já se fizera noite e todas as casas deixavam escapar pelas portas e janelas entreabertas as luzes de lampião acesas. Logo começaria a vida noturna do garimpo. Breve os cabarés seriam iluminados e os saxofones convidariam os sexos para a dança.
- Já jantou, Tenente?
- Já. Obrigado. Acabei de jantar e estou dando uma voltinha.
- Isso é bom. Isso é bom. Parece que o calor está se despedindo, não?
- A chuva pelo menos parou. E não é sem tempo. Estamos no fim de março. Ela só voltará no começo de outubro ou um pouco mais.
- Que horror! Não sei como o senhor agüenta viver nessas brenhas! Uma vez estive por esses lados no tempo das águas e só faltei enlouquecer com tanto mosquito e tanta chuva.
- Aos poucos a gente se acostuma, se embrutece. O senhor vai se demorar?
- Pretendo passar uma semana. O garimpo aqui está fraco.
Não se vê nada. Muita gente ainda não começou o trabalho. Ninguém bamburra...
- Ainda é cedo. Estamos no começo. As águas do rio se encontram muito sujas. Mais tarde é que o movimento cresce.
- Isso é evidente. Mas, mais tarde também chegam muitos "capangueiros" e a concorrência é mais incômoda pra gente. Eu vim na esperança de que algum felizardo desse um bom bamburro...
- Quando dá fé, talvez o senhor tenha sorte.
O Tenente fez menção de levantar-se, mas o comprador insistiu.
- Ainda é cedo, Tenente. Espere pelo café que não deve tardar. O Tenente voltou a sentar-se. O comprador virou-se para o
interior da casa e gritou:
- Ei, Juju, esse cafezinho ainda demora muito? - Traga duas xícaras que temos uma visita ilustre.
Não tardou muito e apareceu uma biraia de cabelos oxigenados enrolada num pegnoir de lamé róseo, entreaberto no busto, deixando à vista aquela pele embaçada e cheia de pequenas sardas. Deu um boa noite preguiçoso e serviu o café. Esperou um pouco até que os homens terminassem. Colocou as xícaras na bandeja, aceitou um cigarro, colou-o aos lábios aguardando o fósforo aceso. No mesmo mutismo se dirigiu ao interior da casa.
O comprador riu, indicou a mulher com a cabeça, comentando:
- Está guardando as forças para a noite inteira.
O Tenente pensou nas outras mulheres que descansavam nos quartos esperando que as horas se adiantassem. Um sorriso triste andou pela sua alma. Sá Lua fizera isso muitos anos, muitos anos.
Tornou a fazer menção de erguer-se. Novamente o comprador o susteve.
- Foi bom que o senhor aparecesse, porque eu queria conversar uma coisa consigo e não achava jeito.
- De que se trata, amigo. Alguma encrenca?...
- Não. Nada disso. É coisa simples. Eu soube que o senhor gostava de um joguinho. Quem sabe se o senhor não queria fazer uma rodinha de pôquer ou pif-paf?
Os olhos matreiros observavam o homem em frente, indeciso se aceitava ou não. Não chegou a responder porque o comprador o interrompeu prontamente.
- Nós não temos bons parceiros. O senhor compreende, num garimpo... por isso lembrei-me de convidá-lo.
O Tenente repetiu aquele gesto costumeiro de levar a mão até à barba.
- É um joguinho barato. Só para passar o tempo. Temos um caixeiro-viajante muito fino, seu Anacleto enfermeiro, que o senhor deve conhecer bem, e eu.
O jogo era uma tentação. O Tenente olhou o homem que sorria defronte com tanta simpatia. Pensou: "Não faz mal, afinal é um joguinho com pessoas decentes..."
A canoa deslizava. No céu o Cruzeiro do Sul estava quase virado. Aos poucos suas estrelas se transformavam na cruz de São Pedro: de cabeça para baixo.
Um mugido veio de longe assustar os dois homens acordados. Deviam estar passando por algum morador. Fixaram bem os ouvidos para sondar o ambiente. O mugido repercutiu de novo.
Daniel virou a cabeça e comentou baixinho:
- A gente está nas proximidades de Barreira de Pedra. Deve farta umas oito léguas para o povoado de São Félix. Dentro de duas horas pode sê madrugada.
- Quer dizer que amanhã à noite a gente pode passar Santa Isabel?
- Se pode. A gente vai amanhecer amanhã abaixo da aldeia de Fontoura.
Calaram-se. Se conseguissem passar Santa Isabel sem perigo, só haveria um risco e bem perigoso: a garganta do Tapirapés. Ali a junção do Rio Tapirapés e do Araguaia desembocava por uma passagem cercada de ambos os lados por montanhas e a distância entre as duas margens não alcançava trinta metros. Se avisassem sobre o roubo e duas divisões de homens se colocassem em ambos os lados da garganta, eles não escapariam de jeito nenhum. E o pior era saber que os índios Tapirapés que tinham escapado ao massacre dos Caiapós, vieram fixar-se junto aos índios carajás ou inans, sob a proteção do Serviço de Proteção aos índios e os selvagens possuíam um ouvido fabuloso e poderiam dar alarme a qualquer momento, como era hábito entre eles.
Mas eles haveriam de passar. Haveriam de passar...
- O senhor passa, Tenente?
O comprador estava sorrindo com aquele sorriso encantador e movimentando diabòlicamente as sobrancelhas.
- Não. Eu abro.
Jogavam os quatro, no quarto do comprador. Ele arranjara uma mesa e cobrira-a com um cobertor.
Jogaram até uma hora da madrugada. Pararam porque o Tenente tinha que trabalhar cedo. Contaram as fichas: o Tenente perdera, mas o comprador tornou a sorrir.
- Não se incomode, Tenente. Foi um prazer jogar com o senhor. Não precisa pagar hoje. Amanhã o senhor desconta no jogo.
"Amanhã o senhor desconta no jogo..." "Amanhã o senhor desconta no jogo..." Maldita frase. Antes tivesse pago naquela mesma noite. Antes nunca tivesse voltado no dia seguinte.
"Amanhã o senhor desconta no jogo..." "Amanhã o senhor desconta no jogo..." E toda a semana ele ouviu aquela frase com um sorriso. Mas no último dia dessa semana, o comprador ao terminar o jogo comentou fingindo constrangimento:
- Pena que amanhã não possamos jogar mais.
- Como assim?
- Pretendo descer amanhã ao entardecer no motor do Grego. Vou descendo até o Marabá...
O Tenente sentiu um aguilhão por dentro. A soma da dívida era alta e todos os algarismos pareciam escritos a fogo. Onde arranjar tanto dinheiro para pagar? E o jogo era barato! Barato!...
Olhou friamente o comprador nos olhos. Ele sorriu.
- Não se impressione com o que está me devendo. Amanhã passarei na delegacia para conversarmos.
Deu um tapa amigável nas costas fortes do Tenente. Bocejou em seguida suspendendo os braços fortes, remexendo os músculos do peito porque como nas outras noites ele se encontrava sem camisa.


Em casa, o Tenente despiu-se sem fazer ruído, mas Sá Lua estava acordada.
- Pode acender o candeeiro!
Riscou o fósforo e a chama cresceu no candeeiro. Olhou desanimado o ambiente que o cercava. Por fim sua vista descobrira sob o lençol o ventre entufado da mulher grávida.
- Alguma coisa ruim?
Ele grunhiu em resposta. Sá Lua estava acostumada com as suas crises de mutismo; não insistiu em saber os motivos de seu aborrecimento. Virou-se para o lado da parede e fechou os olhos docemente.
O Tenente acendeu o cigarro e foi-se deitando devagar. Não conseguia adormecer. Experimentou fechar os olhos, mas os algarismos do fogo surgiam aos seus olhos como anúncios luminosos. As cifras deslizavam acusadoramente. Não podia dormir.
A manhã veio encontrá-lo de olhos abertos e o chão repleto de pontas de cigarro.
Às oito horas encaminhou-se para a Delegacia. Seus olhos estavam avermelhados e um suor frio morava entre os dedos da mão. Nada de anormal acontecera naquela noite. Nenhuma briga, nem um tiro. Tudo em paz! Mas no momento ele se sentia um criminoso aguardando sérias conseqüências. O que quereria o comprador com ele? Lembrou-se de como observava o jogo, e o desenrolar das partidas se assemelhava honestíssimo. Não podia ter havido trapaça. Ele sim que tinha um azar tremendo. Sempre aquela falta de sorte. As cartas que não entravam e quando entravam sempre surgia um jogo maior.
Só havia uma maneira de resolver tudo aquilo: era esperar a visita do comprador e ver o que ele decidiria. Algo lhe anunciava uma suspeita de uma proposta desonesta por parte do outro homem. Mas não queria antecipar os julgamentos.
Às dez horas em ponto o comprador apareceu. Vestia-se com uma calça creme cujo vinco era impecável. Uma camisa azul-clara de esporte, e um lenço elegantemente colocado no pescoço. A barba bem feita mostrava que ele aparara o cavanhaque. Os cabelos sempre revoltos se encontravam brilhantes.
Riu como só ele sabia fazer. Cumprimentou de cabeça o Tenente e sentou-se perto da escrivaninha.
O Tenente chamou o sentinela e ordenou que ninguém o importunasse, até nova ordem. Trancou a porta e voltou a sentar-se separando-se do adversário pela escrivaninha.
O comprador cujos gestos sóbrios pareciam sempre tão naturais tirou uma cigarreira do bolso, serviu o Tenente e acendeu o seu cigarro. Lançou uma longa baforada que foi se perder no meio das telhas-vãs.
Olhou fixamente. Seus olhos se tinham tornado mais matreiros, que o costume. E sua sobrancelha direita num assomo de ousadia se erguia enquanto a outra esquerda permanecia imóvel.
De repente falou:
- Podemos conversar?
- Claro que podemos.
- Então, o senhor me fará uma fineza, pois não? O senhor tem um lápis e um papel? Por obséquio tome nota.
Foi ditando devagar enquanto o Tenente escrevia.
- Mauro Duarte. Hotel Avenida. Belém do Pará.
- Mostre-me.
Leu o papel. Balançou a cabeça.
- Exatamente isso. Sabe o que significa? Não? Pois explicarei.
Remexeu-se na cadeira e aproximou mais o corpo da escrivaninha.
- Meu caro Tenente, confesso que não gosto de negócios demorados. Confesso que prefiro sempre as coisas mais fáceis e em geral porque tenho sorte ou porque os outros têm azar demais, os meus negócios fáceis dão sempre certo. Às vezes arrisco um bocado. Mas assim sendo, é melhor porque existe sempre a sensação do perigo, que é uma outra espécie de jogo.
O Tenente começava a compreender que aquilo não passava de uma preparação psicológica. Mas até onde iria aquele homem com aquele fraseado pausado?
- Tenente, eu compro pedras preciosas. Diamantes, xibios até. Compro qualquer coisa e de qualquer jeito. Não é segredo. Mas não é a meu respeito que desejo falar. Antes, prefiro tratar o senhor como meu assunto momentâneo. O senhor jogou. Perdeu. Está me devendo e não tem dinheiro para me pagar. Não é exato?
- Exato.
- E dívida de jogo é uma coisa sagrada, pois não?
Antes que o interlocutor respondesse foi continuando.
- O senhor não pode me pagar. Mesmo como poderia chegar a isso com um ordenado miserável de Tenente de Polícia? Isso não é vida. Há coisas melhores. Como por exemplo...
O Tenente fixou-o demoradamente.
- Como por exemplo, como?
- É simples. Abordarei o assunto: Nas suas mãos passam sempre diamantes roubados. Não adianta negar porque conheço bem o negócio. E em todos os garimpos diamantes roubados ficam guardados na Polícia, e até que finalizem os inquéritos, o bicho é trancado no cofre da Delegacia. É ou não é?
O Tenente afirmou com a cabeça.
- Pois bem. Esqueçamos a dívida do jogo... se... se... o senhor ou outro de posse de um diamante desses, "abra a unha" e me procure em Belém do Pará. Pagarei bem e o senhor poderá se libertar dessa vida imunda. Dessa esmola que recebe como carrasco da Polícia. O senhor é moço e simpático. E a vida de um homem não pode rolar sempre nesse esterquismo.
O Tenente ergueu-se devagar apoiando as mãos sobre a escrivaninha.
- O senhor está sugerindo que eu roube?
- Se achar que isso assim possa ser chamado.
- Seus métodos são assim desonestos em todos os garimpos?
- Desonesto é um termo grosseiro. Eu faço de tudo. Inclusive estudo os tipos que me convém, como no seu caso.
- Mas o senhor é um ladrão. Por acaso se esquece que eu sou a maior autoridade nesse garimpo, e que poderei mandar metê-lo nas grades?
- O senhor não faria isso!
O Tenente apanhou o papel com o endereço.
- O senhor se esquece disso aqui. Isso é uma prova contra...
- Isso não prova nada porque a letra é sua. Pode ter sido forjado pelo senhor. E, não seja criança! Caso fosse preso arranjaria testemunhas de que o senhor me deteve porque não me pôde pagar no jogo. Idiota!
Pela primeira vez o comprador se alterou.
- O senhor está em minhas mãos. E se lhe falo claramente é porque sei que não há testemunhas. Foi o senhor mesmo que não as quis. Foi o senhor quem avisou ao sentinela que não queria ser incomodado, e se essa porta está trancada, não fui eu quem a trancou.
Levantou-se e caminhou com as mãos nos bolsos pela sala. Voltou a encarar o Tenente. O queixo do policial tinha caído e seu rosto abatido deslizava para o peito completamente vencido.
- Não seja tonto, Tenente. Tenha mais fibra. Não estou obrigando que pague sua dívida. Nem por sombra. Vim lhe propor um negócio que se o senhor aceitar, melhorará provavelmente o ritmo de sua vida. É um pouco arriscado! Duro mesmo é chegar até Belém do Pará. Mas as coisas arriscadas são as que originam as grandes sensações. Aceite se quiser a chance que lhe proporciono, senão fique apodrecendo nesse calor, nessa chuva, nesse inferno de mosquito. Guarde-se sempre para mandar matar os homens como bichos. Isso... apodreça. Bem... O endereço está aí. Nada mais tenho a conversar. Adeus...
Abriu a porta e saiu imperturbável.
O endereço estava ali sobre a escrivaninha. Mauro Duarte - Hotel Avenida - Belém do Pará... Tudo isso há menos de um mês, e agora...
- Está começando a amanhecer. Precisamos nos esconder de novo.
O Tenente olhou Daniel e respondeu com um aceno de cabeça. Foram derivando a canoa para o lado de Mato Grosso. Entraram num furo, procurando uma praia bastante oculta.
Sá Lua despertou fatigada. Suas faces estavam pálidas e um suor frio lhe inundava a fronte.
Olhou para o Tenente e os seus olhos se encheram d'água.
A voz foi saindo devagar.
- Eu não passarei de hoje...


Quarto Capítulo - Garrafa De Pinga

De agora em diante, a cada dia que se passasse, o rio tornar-se-ia mais seco. A chuva fora embora de uma vez. Em cada canto do belo Araguaia uma praia branca aparecia coroando. No começo guardando os últimos sintomas enlameados. Mas na proporção que baixava o rio, o sol de fogo as ia descolorindo até que elas se tornassem brancas como penas de garças brancas.
Kanaú pensava nisso tudo e receava que a qualquer momento estourasse o vento Geral. Até então não havia indícios de ter descido a outra canoa. Iroá montava guarda durante a noite, dormindo na praia defronte, do outro lado do rio. Algo de muito grave deveria ter acontecido. Eles não poderiam desistir da viagem naquela altura. A única saída, o único escoadouro era ali Ninguém se atreveria a atravessar a pé a Ilha do Bananal e cortar milhares de quilômetros de selva brava para alcançar uma cidade civilizada de Goiás. Isso era tarefa sobre-humana. Na Ilha do Bananal e no furo dos Javaés existiam os índios desse mesmo nome, em estado quase primitivo e com grande sede de vingança por causa dos estragos feitos pelos mariscadores em seus domínios. E na parte de Goiás além da ilha, as terras estavam alagadas e levariam muitos meses para secar. Além do mais aquela região encontrava-se povoada pelos índios canoeiros, que se escondiam como a morte e não perdoavam nenhum encontro com os brancos.
Do lado de Mato Grosso, o perigo se tornava cada vez maior. Quem se atreveria a atravessar as regiões do Rio das Mortes, ou do Roncador? Os Xavantes davam os primeiros indícios de civilização, mas esses sintomas não eram nada positivos ainda. Eles flechavam bois e cavalos sem motivo algum, e os moradores de São Félix viviam aterrorizados com a presença desses índios. Grandes tinham sido até agora os morticínios dos Xavantes. De mais a mais somente aqueles que habitavam nas proximidades de São Domingos é que apareciam no Serviço de Proteção aos índios com resquícios de medo e selvageria; São Domingos distava de 480 quilômetros do desaguamento do Rio das Mortes no Araguaia. Ninguém ignorava de que os Xavantes existiam em grande número e como todo índio dividia-se em muitas aldeias. E que essas aldeias se desdobravam desde o Roncador até às proximidades do Rio Tapirapés. Ninguém ignorava também que esses índios chamados os corredores de campos, devido à pobreza da região que se ia tornando cada vez mais estéril, percorriam a selva em todos os sentidos, organizando grandes acampamentos de caça. Quem poderia pois, escapar com vida, embrenhando-se por milhares de quilômetros numa viagem impossível e diabólica? E mesmo para quê? Caso conseguissem realizar essa travessia, iriam os fugitivos bater em garimpos ou cidades de Mato Grosso e a notícia do roubo nesse Estado seria mais facilmente difundida. A única saída era mesmo pelo Araguaia em busca do Pará.
Kanaú impelia a canoa em direção à outra margem do rio. E quanto mais se aproximava as águas do rio iam se tornando mais limpas e cristalinas, porque faziam parte da caudal do Rio das Mortes. Notava-se bem a diferença das águas. O Araguaia sujo e barrento quase se dividindo ao meio, enquanto as águas que vinham do outro rio, possuíam uma pureza e limpidez absoluta.
Marrecas selvagens começaram a reclamar e em breve levantaram vôo, abandonando poças de lama que ameaçavam secar-se e formar terra comum. Kanaú empurrou a canoa até uma praia. Sugou-a sobre a areia branca que fazia um ruído macio sob seus pés. Foi caminhando rente à água, vendo de quando em vez, arraias de fogo fugirem da beira e sumirem no grosso do rio.
O ruído do machado de Iroá, batia sobre a madeira.
Kanaú aproximou-se e viu o amigo nu, vergado sobre a tora enorme de landi, dando as primeiras formas de uma canoa sobre a madeira.
Seus olhos iam observando o espetáculo e aquilo jamais conseguira ver na cidade. A natureza parecia dotada de cinco cores apenas. Era o céu de um azul puríssimo, a praia branca começando a se alastrar com a morte da cheia, o corpo tostado de Iroá e o vermelho da madeira que ia sendo descarnada. Como fundo, surgiam ao longe pedaços verdes e luminosos da mata que vestia o rio.
Achegou-se um pouco mais e lançou a saudação, à moda inan.
- Iro-ku!...
Ele soltou o machado, ergueu-se e desvirou para onde partia o chamado.
O riso branco apareceu nos lábios e foi com doçura que respondeu à saudação.
- Kanaú-ku!... Sentou-se junto à canoa.
- Vai ser grande.
- Vai, Kan.
Meio desanimado perguntou ao inan:
- Nada até agora?
- Não passou nada. Apontou com a mão uma cobertura feita de folhas de palmeira. Estou dormindo ali, bem na beira d'água. Qualquer coisa que andasse no rio, eu estaria vendo...
- Deve ter acontecido alguma coisa.
Iroá ia apanhar o machado para recomeçar o trabalho, mas soltou-o de novo na areia.
- Tão preparando a festa?
- Estão sim. Amanhã vai ser uma festa grande. Valentim já mandou abrir uma cova pra fazer churrasco. Vão matar um boi. Na aldeia tudo que é mulher está fazendo kalugi, beiju, assando batata e mandioca. Hoje de noite chega inan de baixo. De Fontoura e de Mato Verde...
Um pensamento riscou rápido a cabeça de Kanaú. - Os inans deveriam vir remando dia e noite porque eles gastariam vinte e quatro horas para subir o rio. De maneira, que a segunda canoa se estivesse descendo, seria forçada a ficar escondida para não correr o risco de ser avistada. Os inans deviam dizer qualquer coisa quando chegassem. Nem necessitaria perguntar, porque o índio sedento de contar novidades iria dizendo tudo.
Olhou para Iroá.
- Você quer, eu fico aqui e você vai lutar na festa?
- Isso não, Kan. Você é mais forte do que eu. Curiala pediu para que lutasse. Se você deixasse de lutar a aldeia ficaria triste com você. A turma que vem de baixo é muito forte.
- Você tem razão. Agora eu vou até São Félix.
- Fazer o quê?
- Comprar duas garrafas de cachaça...
- Kan, você vai fazer mesmo aquilo que contou?
Os olhos de Iroá ficaram apreensivos e o sorriso que sempre se encontrava presente nos seus lábios quando se aproximavam de Kanaú desaparecera.
- Vou sim, Iroá. Eu não posso viver mais por aqui. Você me compreende...
Havia tamanha súplica nos olhos de Kanaú que Iroá desviou os seus.
Ficava triste quando Kanaú ficava triste. Sofria quando Kanaú viajava e tornava a ficar triste quando ele voltava porque sabia que a qualquer momento perderia o amigo. Ele não nascera para aquela vida. Iroá compreendia. Chegava mesmo a admitir que se fosse para a cidade. Mas dessa vez tinha medo, muito medo mesmo. Não se conteve e comentou:
- Kan, se falo assim é porque gosto mais de você do que do irmão meu. Mas se esse plano não der certo? Se prendem você?...
- Não tem perigo. A coisa se acontecer como eu pensei, nós vamos ficar ricos. E mesmo, eu sou considerado índio e o índio tem a proteção do Governo. Nós somos como crianças. Você vai ver que não acontece nada.
Iroá pensou abatido. Ele ficar rico? Para quê? índio nenhum podia ficar rico. Rico só tori, branco. E que adiantava ficar rico? Não podia sair da aldeia. Não queria outra vida senão ver o rio, pescar e dançar o Aruanã nas noites de lua. Que pena que Kanaú não pensasse e não sentisse assim! Mas depois lembrou-se das crises de tristeza e mutismo que atacavam Kanaú quando se sentia muito tempo parado em Raumaló-Dessé.
- Tomara que não aconteça mesmo nada.
- Eu vou andando.
- Por que você não vai de canoa?
- Não trouxe zinga, com o remo é muito duro. Prefiro ir a pé.
- Não trouxe sua carabina?
- Não. Só isso. E apontou a faca na cintura.
- Então tome cuidado. Xavante tem andado por perto. Agora é temporada de caça deles.
- Xavante não mete mais medo, Iro.
- É mesmo. Quando eles vêm por aqui, na beira do rio, não fazem mal, mas vá lá para dentro das terras deles...
- Eu inda prefiro Xavante a Caiapó... Iroá deu uma risada.
- Tá doido, rapaz, nem brinca!...
- Arakre, Iro. Eu volto por aqui para apanhar a canoa. Saiu caminhando depressa. Iroá durante alguns segundos ficou com a vista fixa no amigo que se afastava. Viu que enquanto ele caminhava vestia uma camisa que trouxera na mão até àquele instante.
Voltou a descarnar a madeira, sem vontade de pensar nas coisas que o preocupavam. Deixou seu coração puro e selvagem acompanhar o carinho de cada golpe que dava.
Kanaú deixou a praia e procurou o caminho dos brancos. Aquela parte que levava até o povoado de São Félix estava recortada de caminhos. Por ali se ia até o sítio de Raimundo Morais, e era a passagem de cavalos. Os brancos corajosamente fizeram há já alguns anos uma porção de sítios que se distanciavam de São Félix umas seis léguas. Depois disso eles não penetravam mais por causa dos Xavantes. Não podiam negar a coragem daquela gente. No ano passado os Xavantes tinham invadido não só o sítio de Raimundo Morais, como o rancho de João Irineu. Alojaram-se pelo terreiro e avançavam em tudo que lhes caía nas mãos. Facas, machados, panelas, roupas. Se bem que os Xavantes não gostassem de roupas, tinham a mania de carregá-las. Por vezes descobriram que eles carregavam cobertas, camisas, e abandonavam mais adiante; ou, então, faziam os tecidos em tiras para ostentar como pulseiras ou enfeites. Os moradores, principalmente as mulheres, sentiam verdadeiro pavor, se escondendo dentro dos ranchos, quando divisavam pelo quintal aqueles homens bronzeados, completamente nus, ora deitados, ora mexendo em tudo. Mas os Xavantes não tinham ultimamente intenções hostis, porque apareciam desarmados. Só, quando retornavam à selva, não se sabia se por maldade ou prazer flechavam bois e cavalos.
Kanaú pensava nessas coisas enquanto andava. Tinha que vencer uma légua e pouco nos pés descalços, mas aquilo dava-lhe um verdadeiro prazer. Que sabor selvagem em caminhar por entre a mata, vendo as palmeiras de guariroba, os pés de murici, os bichos fazendo ruídos, as rolas silvestres voando pesadas com medo e os tucanos olhando com desprezo para ele, lá do alto das árvores. Outras vezes pegava um trecho mais alagado e os manguaris, as garças, e as marrecas levantavam vôo com gritos irritados...
Pegou uma trilha que cortava caminho até o morro de São Félix. Nesse momento o índio vivia mais nele do que o branco. Desde menino habituara-se a conhecer aquelas rotas. Poderia passar a vida inteira na cidade, mas quando retornasse reconheceria os caminhos e as águas do rio como se nunca tivesse se ausentado dali.
Estacou. Foi abaixando aos poucos com a respiração suspensa. Apanhou um pedaço de flecha quebrada. Ergueu-se e riu. Xavante tinha andado passeando por ali. Iro tinha razão. Foi olhando com mais atenção e descobriu uma porção de passadas de índio. E não eram de inan, porque os inans tinham os pés muito pequenos. Riu de novo. Qualquer branco que encontrasse aquilo desataria na carreira e chegaria esbaforido até São Félix. Mas nada havia a temer, porque as pegadas eram velhas.
Subiu o morro de São Félix e observou a paisagem. Ao longe na enseada ficava a aldeia de Santa Isabel, como chamavam os brancos e Raumaló-Dessé, na linguagem dos índios. A barreira onde se erguia a aldeia e o Serviço tornava-se mais avermelhada, vista assim de longe. As casas dos inans adquiriam um relevo e davam a impressão de que elas se suspendiam no espaço. Lá estava o pé de amarelão que vira desde menino.
Levou a vista em direção a São Félix. O povoado, não obstante a ameaça cada vez maior dos Xavantes, aumentava sempre... Os ranchos ligados, já ofereciam diversas ruas.
Sua vista foi mais além e divisou o Araguaia, que de longe se ia tornando claro, porque as chuvas sumindo, acabavam-se as águas barrentas. O rio imenso, e sinuoso, cercado de praias que nasciam em todas as suas curvas, contrastava com a selva exuberante e verde que lançava para o ar aquele cheiro de húmus se dissolvendo.


Entrou no armazém de Laureano. Foi como que se tivesse caído O diabo da parede.
- Tu, índio desgraçado! Kanaú riu.
- Estou de volta. Laureano deu a mão para ele.
- Chegou quando?
- Ontem.
- Enjoou da cidade, hem, seu peste? Agora vai ficar nu e dançar o Aruanã...
Kanaú continuou rindo.
- Borréto.
Laureano deu um tapa nas costas do rapaz.
- Esse danado não toma jeito. Passa a vida na cidade e quando volta não melhorou nada: tá índio do mesmo jeito.
Mas Bento, que assistia à conversa e que se aproximara para dar a mão ao mestiço comentou:
- índio mesmo ele não quer ser. Cadê que ele se resolve a fazer os círculos debaixo dos olhos!...
Kanaú encarou-o com simpatia.
- Pois você se enganou. Eu dessa vez resolvi fazer o "omarira". Olhou as outras pessoas em volta e tornou a prestar atenção a Laureano que estava atrás do balcão.
Flechas, bordunas, arcos enfeitados, bonecos, capacetes, lanças, potes, pulseiras e outros objetos inans jaziam pelo chão, nas prateleiras, em cima mesmo do balcão. Kanaú mostrou tudo aquilo e perguntou com cinismo:
- Sempre tapeando a gente, não, Laureano?
- Tapeando, não. Teus irmãos trazem essas porqueiras que não valem nada e levam fazenda pra não ficar nus. Isso é a maior droga. Fica tudo encalhado... Você sabe disso.
Mas Kanaú sabia o contrário. Que em Goiânia, na casa Carajá, cada bonequinha daquelas era vendida até por cinqüenta cruzeiros. Cada arco alcançava até duzentos cruzeiros, e no Rio, em Copacabana, vira uma vez na vitrine, uma canoa carajá com três bonecos dentro, ao preço de quatrocentos cruzeiros. Entretanto ali pagavam até três cruzeiros pelos bonecos... Mas não queria discutir. Não viera ali para isso.
- Laureano, eu vim em busca de uma coisa.
- Você aqui manda.
- Tá certo. Eu quero duas garrafas de pinga.
- Pinga?!!!
Laureano enfiou as mãos por dentro dos cabelos já quase embranquecidos.
- Você disse pinga?
- Uéé. Se não quiser, posso dizer cachaça.
Laureano não estava gostando muito daquela compra. Vender pinga para índio. Aquilo era crime. Estava escrito no regulamento, do Serviço de Proteção aos índios, que isso não era permitido. E ainda por cima o Serviço distribuíra um edital ameaçando de uma multa vultosa a quem infringisse essa lei. Ninguém ignorava que Kanaú procedia de branco, mas pela lei também era considerado índio.
- Quando dá fé eu não te posso vender cachaça.
- Não é pra mim. Não gosto de pinga.
- Foi Valentim quem mandou comprar?
- Não. Um outro seu amigo.
Fez uma pausa para gozar a expectativa de Laureano.
- Camura.
- Camura!?...
Os olhos do botequineiro se arregalaram.
- Ele está por aqui?
- Veio comigo de Leopoldina.
- Por que não deu uma parada em São Félix?
- Estava com pressa de chegar.
- Será que ele veio festejar com Valentim o dia dos índios? Ali estava uma coisa que não pensara.
- Parece que veio.
Laureano foi até à prateleira e voltou com duas garrafas. Kanaú enfiou a mão no bolso e puxou o dinheiro para pagar.
- Quanto é isso?
- Nada. Diz pra Camura que foi presente de amigo velho. Um receio dominou o índio. E se Laureano resolvesse visitar
Santa Isabel? Poderia descobrir que Camura não mandara comprar a bebida. Mas, tudo se resolveria ou porque Camura não mandara comprar a bebida, e agradeceria a Laureano de saída ou então ele poderia justificar-se, que queria fazer um presente ao delegado e como sabia que o Serviço lhe negaria a venda da bebida alcoólica, usara o nome de Camura. Era isso mesmo. Não havia o que recear. Todavia para certificar-se fez uma pergunta.
- Por que não faz uma visita a ele?
- Bem que eu queria, mas, nesses três dias não posso. Vou lhe mostrar por quê. Deixe as garrafas aí e na volta você pega.
Laureano contornou o balcão e saiu acompanhado de Kanaú.
- Cada dia São Félix cresce mais!
- Mas a qualquer hora o povo abre a unha. Xavante anda por perto. Ano passado ele comeu toda a roça da gente. Foi duro. Esse ano, ele na certa vem aqui. Se o Governo não faz depressa um posto para ajudar a gente, Xavante leva tudo, roupa, facão, machado e principalmente a roça. E como a gente não está disposta a morrer de fome, nem plantar pra índio, só há um jeito: ir embora.
Laureano falava com uma certa tristeza. Não era sem razão. Porque ele fora um dos fundadores de São Félix. Gastara seus cabelos e força de seus braços. Estragara muita camisa, regando a terra com suor. Suas mãos tinham se encrostecido de abrir roça e suspender casa. Depois de tudo pronto, vinha o índio...
Kanaú pensava nisso tudo, mas adiantava-se um pouco além. Sim, eles fizeram porque quiseram, mas a verdade não negava os direitos do índio. Todo aquele território, era posse dos Xavantes. Por que eles teimaram em edificar, construir num terreno que não lhes proporcionava o menor direito? Entretanto, a solução seria mesmo aquele posto. Porque São Félix era uma esperança de progresso, e triste se o povoado retornasse ao abandono. Àquele mesmo abandono e pobreza, aos mesmos sintomas de inanição que englobavam todos os lugarejos que se banhavam nas águas do Araguaia...
Caminharam em direção ao porto. Crianças sem roupa banhavam-se em algazarra. Mulheres de saia suspensa e presa entre as coxas batiam roupa. Uma ou outra canoa de inan, vinha se aproximando.
Laureano apontou as canoas.
- Você diz que eu exploro, mas são eles que vivem me chateando com arcos, flechas, etc. Isso o dia todo. Esses carajás são uns chatos...
- Eu tava brincando.
- Venha espiar uma coisa no meu porto.
Uma porção de canoas se encontrava amarrada lá.
- Sabe o que é isso?
- Marisco.
- É. Amanhã começo a preparar essas montarias. Estou arranjando mariscador.
Olhou Kanaú firmemente.
- Isso não tenta você?
Mas o índio encarou-o com um sorriso decidido.
- Trouxe uma arma automática, que é especial para marisco. Mas não vou. Estou a serviço de Camura. Mesmo, não gosto de mariscar.
Que outro marisco poderia suplantar a caçada que estava fazendo? Embora seus planos falhassem, teria a garantia dos vinte e cinco contos prometidos por Camura. No mínimo se não pegasse a segunda canoa, os seus dias de trabalho seriam pagos pelo delegado. Mas ele arriscava tudo para fazer o maior marisco do mundo. Uma coisa que deixasse longe todo lucro que as caçadas proporcionassem...
- Pois minha turma vai penetrar no Rio das Mortes para mariscar...
Kanaú não acreditava nisso. Sabia que aquilo era desculpa. Eles não gostariam muito da presença dos Xavantes, e os Xavantes muito menos. Os mariscadores esperariam a noite, cruzariam o rio e invadiriam a Ilha do Bananal. - Região proibida - e quase sempre violada. Com o tempo da seca, o campo de caça era vasto. O porco-do-mato teria se reproduzido bastante e do outro lado, no Javaé, o jacaré, a ariranha e a tartaruga, existiam mais porque a selva protegia os seus mistérios. Mas não comentou sobre isso.
- Você não toparia, Kanaú?
- Não. Eu não posso.
- Por que será que Carajá nenhum aceita mariscar com a gente?
- Inan tá ficando sabido. Eles já ouviram falar que o Serviço vai fazer um sindicato e vocês para levarem inan num marisco têm que fazer um contrato antes, e garantir o preço. Esse negócio de no fim dar um mosquiteiro, uma faca, e outras besteiras, já não interessa ao Carajá.
- Você andou conversando alguma coisa com eles, Kanaú?
- Há muito tempo que eu abro os olhos deles. É um direito nosso, Laureano.
Laureano não discutiu. Eram duas raposas se defrontando. Kanaú aproveitou para lançar a bomba.
- Ouvi dizer que o Governo vai proibir o marisco. Quem não enriqueceu até agora, desista. Você se queixa que Xavante come a sua roça, mas se esquece que isso é um direito deles, desde que você invada o seu território e acabe com a caça aos montes, só para tirar um miserável couro. O Xavante anda magro de fome, porque os mariscadores estão devorando tudo.
- Mas você mesmo já fez muito marisco.
- Isso foi há uns quatro anos. Hoje não. Não sou besta. E mesmo a cana vai ser dura, como se diz na cidade. Zé Butelo andou ofendendo as moças Javaés. Estão abrindo um inquérito. Zé Butelo está apertado. Tanto que vendeu todas as tralhas de marisco, pro Zé Espanhol, lá em Santa Maria.
Kanaú virou as costas para o porto.
- Vou pegar a pinga de Camura, porque preciso ajudar a festa na aldeia.
Kanaú tornou a voltar pelo mesmo caminho. Encontrou ainda Iroá trabalhando na canoa. O inan quando se agarrava nesse mister, costumava passar dias e dias, sem soltá-lo.
Deixou escondidas com o amigo as duas garrafas de cachaça.
- Você não quer comer peixe? Eu pesquei agora, Kan.
Iroá olhou o foguinho aceso e o peixe cozinhando com tripa e sem sal como era o hábito.
- Tá quase pronto.
- Não dá tempo, Iro. Eu preciso conversar com Camura. Empurrou a canoa n'água. Já agora estava completamente nu.
O remo fendeu a água. O sol não só aquecia, mas derramava-se em fogo por suas costas e queimava de luz, toda a natureza. O rio tornava-se transparente, a areia das praias incandescia e a mata brilhava como diamante.
Conseguiu encontrar Camura e convidou-o para dar uma volta. Foram caminhando até à prainha.
Sentaram-se nas pedras olhando o rio que descia ruidoso por causa da vazante que aumentava dia a dia.
- Nem um sinal, Camura. O rio está vigiado. Por aqui ainda não passaram. Deve ter acontecido alguma coisa.
- Não seria melhor a gente descer pro Tapirapés?
- Chamava muito a atenção. Logo agora que a festa vai começar.
- Você viu se alguém já desconfiou em São Félix?
- Não há a menor desconfiança. Laureano está preparando mariscador nesses três dias, por isso não vem ver você.
- Hum!... Ele perguntou o que é que eu vim fazer?
- Perguntou, mas eu disfarcei dizendo que você veio ver a festa do dia do índio.
Um sorriso mostrou as gengivas de Camura.
- Eu não tinha matutado nisso. Taí uma boa desculpa pro Valentim. Ele vive me perguntando o que há.
- Você não disse a ele o verdadeiro motivo?
- Não falei a ninguém. Só quem sabe é você. E você?
- Fiquei mudo como as areias da praia.
- Fez bem. Porque eu estou com medo que aquela canoa tenha escutado alguma coisa a meu respeito e percurado outro rumo.
- Não pode. Eles vêm é por aqui mesmo. Não há outra maneira.
- Lá isso é.
- Camura, eu queria te perguntar uma coisa. Como foi que você soube do roubo?
- Ih, rapaz, é uma história complicada. Parece até "história de raidio".
Tirou a faca da cintura, puxou o fumo do bolso e principiou a picar, como era seu costume quando ia contar uma coisa.
- Se dessa vez eu botar a mão em cima dessa gente, vai ser o meu melhor caso de polícia. Foi o roubo mais audacioso que já saiu de um garimpo.
Grudou o cigarro no beiço, puxou fogo, baforou e seus olhos adquiriram distância acompanhando o dispersar da fumaça.
- Todo garimpo tem um tenente de polícia, num tem?
- Não só tenente, como às vezes, um capitão.
- Mas em Cacinunga é tenente. Pois, o tenente danou-se para jogar. E jogava e perdia. E perdendo, ficou enterrado. Sempre em garimpo há caso de roubo e o diamante fica guardado no cofre da Delegacia. Tem um homem lá chamado Raimundo, que faz meia-praça e é dos primeiros a botar homem trabalhando em Cacinunga. Por vezes como ainda é cedo não consegue pegar nada. O rio está sujo. Mas às vezes ele tem sorte. Foi o que se deu esse ano. O meia-praça dele deu um bamburro bom. Diz que a pedra era bruta, depois de lapidada podia chegar de oitocentos a mil contos. Isso rapaz é muito dinheiro. Traz maldição! O meia-praça, naturalmente, lembrou-se da vida desgraçada que tivera até àquele momento. Devia ser um desses garimpeiros que se enterram moços e vivem pangolando sem ter um bamburro. Ali estava a liberdade...
Camura deu uma tragada e perguntou para Kanaú:
- Que é que tu faria nesse caso?
Kanaú conteve a emoção, e, os seus olhos mongóis revelavam uma calma absoluta, enquanto o sorriso remexeu seus lábios.
- Sei lá. Nunca fui garimpeiro.
- Tu tinha coragem de carregar o diamante?
Kanaú pensou rapidamente. Por que tanta insistência? Teria Camura alguma suspeita, ou perguntava apenas por brincadeira?
- Não sei, se arriscava a tanto. Mas conta o resto. Eu quero saber de tudo.
- Bem, o sujeito olhou em volta. Ninguém vira. Enfiou o bicho no bolso, levou a mão na cabeça e gemeu. Os outros perguntaram o que era. Ele se queixou de dor de cabeça, e disse que ia buscar um remédio. Atravessou a corrutela, apanhou uns trens rapidamente e abriu unha. Mas a turma desconfiou. A Polícia pegou o camarada ainda perto. O diamante ficou guardado na Delegacia. Mas, oitocentos ou mil contos traz muita desgraça, muito sangue. Foi a vez do tenente. Ele estava endividado e a qualquer hora podia estourar a verdade. A lei ficar desmoralizada num garimpo é caso muito sério. E a pedra no cofre brilhando sem saber de nada... Então, o tenente comunicou que ia levar a mulher para dar à luz, em Leopoldina. Chamou um sargento substituto, e fez uma porção de recomendações. Que se ele não voltasse até o dia quinze que era o dia de pagamento da gente da Polícia, que o sargento fizesse o pagamento. Todo o dinheiro estava nos envelopes, no cofre. Ele ia descer, deixar a mulher e retornar logo. Pra isso levava um preso de confiança que podia ajudar no remo, e uma empregada da casa pra ajudar no parto, e fazer companhia em Leopoldina. Tudo isso estava muito bom se Raimundo fosse curau em garimpo, mas ele era cabra velho. A pedra estava no cofre, o tenente saía justo nessa hora. Pensou como ele tinha perdido no jogo. Hum... chamou o sargento e conversou longamente com ele. No começo o sargento ficou meio desorientado. E se fosse mentira tudo aquilo? Era melhor esperar até o dia quinze a abrir o cofre. Mas no dia seguinte Raimundo insistiu: Que diferença fazia? Era só abrir o cofre e espiar... Abriram o cofre e o resto você sabe. Correram a me procurar porque na certa o tenente iria viajando pelo lado de Goiás, porque no lado de Mato Grosso ele podia ser preso a qualquer hora. E como eu sou o Delegado de Goiás, e sempre esses casos vêm parar nas minhas mãos... eu vim o mais depressa possível, na esperança de chegar antes deles em Leopoldina. Mas acho que eles passaram na minha frente com um dia de diferença.
- Quando dá fé, foi. Mas eles, depois de Leopoldina não puderam viajar de dia. Tinham que se esconder. Nós estamos com dois dias no máximo na frente deles. Eles vão passar por aqui hoje ou amanhã. Isso eu garanto. Só se aconteceu alguma coisa... E se você não pegar o tenente aqui em Santa Isabel?
- A gente desce até o Tapirapés. Cerca o lado de Goiás e o Serviço fica do outro lado. A gente fecha a garganta do rio. Entope ela de canoa de índio e pronto...
- Você é um danado, Camura!
- Inda tem mais uma coisa. Dentro de alguns dias vem uma turma de dez homens armados até os dentes, pra ajudar a levar o bicho. Foi a única coisa que eu pedi de garantia.
Kanaú não esperava por essa novidade. Fez um esforço forte para que nada transparecesse no seu rosto. Camura espreguiçou-se e murmurou:
- Ih! Camura... bem que tomava um traguinho de pinga. Virou-se para Kanaú e piscou os olhos.
- Eu fui uma besta. Se soubesse que tu ia até São Félix tinha te pedido para comprar uma garrafa de pinga...
- O Valentim não tem?
- Tem, mas ele só arruma de tiquinho.
- Quem sabe se amanhã eu não arrumo pra você duas garrafas...


Quinto Capítulo - A Praga

Estavam acampados longe da praia. Tinham conseguido abrigar-se sob um pé de imburana, que lançava sobre eles uma sombra pobre, mas sempre uma sombra.
Sá Lua não passaria de hoje. O primeiro sintoma de desânimo se alojara neles. E a viagem não alcançara ainda o meio.
Os olhos avermelhados dos dois homens não conseguiam se fechar. Apenas de vez em quando um bocejo longo aparecia. Mas eles não conseguiam adormecer os olhos vermelhos de muitas noites sem dormir, de muitas noites atravessadas com os nervos à flor da pele, naquela vigília obrigatória, cujo tempo parecia contado pelo remar contínuo.
Daniel conseguira algumas tolhas de palmeira que serviam para amaciar a cama feita de cobertores, onde Sá Lua de olhos fechados repousava. }á que ela não podia usar uma rede...
O dia quente custava a passar; o sol enfiava os pés na areia da praia e caminhava lento, descontando todo o tempo que perdera durante a época da chuva. Um suor pegajoso se alastrava pelo corpo da moça. O seu ventre dava a impressão de ter se agigantado e não pertencer mais ao seu corpo. Os pés estavam inchados, e por vezes um filete de suor frio escorregava da fronte querendo penetrar nos olhos cerrados. A mão paciente levantava-se calma e limpava o rosto umedecido. Ela sabia que o parto viria a qualquer momento. Angústias retalhadas derramavam-se pela alma. Não que tivesse receio da dor próxima. Isso seria o de menos. Mas sim, o medo. O medo e a incerteza de tudo. O receio de que o pequeno ser que iria berrar para a vida são resistisse àquela caminhada de loucura sob o céu de fogo. Aquilo seria tudo o que menos desejara na vida: dar à luz, numa praia deserta, varrida de desconforto, tendo como assistentes dois homens e uma mulher sem prática e a selva inóspita observando tudo curiosa.
Uma ternura mais que doce envolveu-a. Ainda bem que preparara umas camisolinhas e uns sapatinhos. O filho não seria dono de um enxoval completo nem rico, mas possuiria o necessário para enfrentar os primeiros olhares da vida.
Agora a ternura dessas recordações se apagara para ser substituída pelo receio. E se a criança resistisse a tudo mas os seus seios secassem, como iria amamentá-la? Não, consolava-se a si mesma. Os seios volumosos encerravam muito leite. Para certificar-se levou a mão direita e alisou-os de leve. Deus seria misericordioso e não permitiria que tal acontecesse. Sorriu. Uma sonolência amornada veio apossando de todo o seu ser. Ao longe se perdiam os gritos irritados das maracanãs pousadas nas ramas do sarão e os soluços das rolas selvagens se transformavam num acalento maravilhoso.
Encostado na raiz da imburana, o Tenente descansava. Seus olhos tinham adquirido uma dureza próxima à crueldade. A expressão ameaçadora aumentava devido ao negror da barba. Seus olhos se grudavam na figura desanimada e magra de Daniel. Quando desviava a vista do homem à sua frente sentado na areia era para procurar o vulto encarquilhado de Tilde sempre distante, porque ela sabia que sua presença se tornava odiosa. Nem para comer ela se aproximava. Servia-se do que sobrava dos outros e ia comer longe, longe de todas as vistas. Depois, ela apanhava o que precisasse lavar e se encaminhava para a beira do rio, distanciando-se de todos como um animal repugnante.
Daniel. O que pensaria aquele homem? O que pensaria de tudo aquilo?
Depois o remorso vivo nos seus pensamentos, fazia com que suas mãos constantemente se elevassem até à fronte que ardia como brasa. Até o suor rescaldava, escorrendo-lhe pela barba. Como conseguira chegar até àquele ponto? Ao roubo, à desmoralização, à inconsciência de arrastar, por um crime seu, a mulher grávida nos últimos dias?
Relanceava a vista até Sá Lua, e o remorso arrefecia um pouco ao descobrir que ela dormia calmamente, e que por vezes um sorriso com resquícios de felicidade revolvia os seus lábios entreabertos.
E quanto faltava para o término daquilo tudo? A viagem não cruzara o meio, e as provisões se aproximavam do fim. A manta de carne-de-sol exigia sempre mais economia. A farinha não agüentaria até à meta de chegada. E chegariam eles até lá? A magreza de agora em diante começaria a se alastrar neles e os rostos iriam parecer ainda mais abatidos porque o sol escurecia a pele de todos. Só ela, a cobra, não parecia sentir nada, nem sofrer nada. Também o que teria mais a emagrecer aquele bicho nojento?
Sua atenção foi encaminhada para o vulto de Daniel que cochilando resvalara na areia. Ele acordou assustado e voltou à posição primeira.
Aquele era outro enigma. Ninguém sabia se era bom ou ruim. Não falava nada além do necessário. Nunca um sorriso fora visto em seus lábios. Seus olhos guardavam uma tristeza perpétua, como se todas as coisas da vida tivessem perdido o colorido além do interesse. Mas não podia se queixar do homem, que se nada dizia também de nada reclamava. Uma força fatal arrastava-o. Mas arrastava-o para onde? Por que aceitara o convite do Tenente? Por que juntara mais esse crime aos outros que cometera antes? Era simples: um homem daqueles, que trazia nos olhos a sombra da morte, não agüentaria a vida sem cometer mais de um crime. Mesmo que estivesse morto para a vida era preferível arrastar-se perigosamente, embora sabendo que a punição cercaria todos os seus limites, livre de quatro paredes. Teria o céu, o sol de fogo, a fome e a morte perseguindo-o a todos os momentos, mas preferia isso a sentir-se preso. Preso, todos os dias se ligavam amarrados e as horas arrastavam as horas. Preso, o remorso o cercava mais cruelmente. Não queria pensar na mulher que matara, contudo nunca conseguia se libertar desse pensamento. Ela, a garganta branca amassada e seus dedos tremendo de cansaço. A garganta branca, muito branca, tão branca como a parede da prisão. Ou talvez a parede da prisão fosse suja e manchada, cheia de palavras obscenas, riscadas em todos os sentidos. Ou talvez os seus olhos sob aquela impressão da garganta branca transformassem a parede naquela lisura branca... fugindo era melhor. Porque enquanto caminhava o remorso e a consciência afrouxavam mais. O corpo moído pelo esforço dos remos dava-lhe um sono pesado como as rochas e as rochas se tornavam negras, completamente negras.
O Tenente arriscara convidando aquele homem. Mas não ignorava que a liberdade dentro da morte sempre fora preferida por um garimpeiro à vida sem a liberdade. E por acaso não partilhava Daniel do diamante?
O vulto de Daniel tornou a escorregar pela areia e dessa vez não conseguiu erguer-se. O cansaço vencera o homem.
O Tenente considerava-se grato ao companheiro mudo. Sem ele não poderia chegar ao itinerário. Ele conhecia o Araguaia como um mapa. De noite distinguia tudo e não se enganava.
Cacinunga. Aragarças. Registro. Leopoldina. Dumbazinho. As Cangas. Cocalinho. Travessão. Riúna. Lago Rico. São José. Piedade. Montaria. Luís Alves. São Pedro, e agora já tinham passado o Rio das Mortes se avizinhando de São Félix e Santa Isabel... Todos esses lugares Daniel passara durante a noite. Guiando-se pelos ruídos e pelos cálculos. Porque a noite era negra como o remorso.
Os olhos vermelhos do Tenente também £oram-se cerrando apesar da vontade de lutar contra.
...o remo voltou a remexer n'água e eles viajavam durante o dia. Nem podiam respirar direito, e o pior era encontrar-se na canoa acompanhado de Daniel. Sá Lua desaparecera e a cabeça de Tilde encontrava-se decepada. Somente a cabeça com os olhos miúdos e vidrados espiando para ele. Rindo do seu medo. O sangue coalhara-se e as pontas daquele cabelo maravilhosamente doirado se achavam grudadas, formando nódoas avermelhadas.
Daniel virava-se para trás e falava agoniadamente:
- Não pare de remar, Tenente. Senão eles nos alcançam.
Voltou para trás e as canoas dos mariscadores se aproximavam velozes. Estavam perdidos. E as armas? As armas tinham ficado na praia. Era somente fugir.
Daniel perguntou novamente:
- E o diamante, Tenente?
O cansaço quase não deixava que respondesse, mas dominou-se e falou:
- Está ali, debaixo da cabeça da mulher. Ninguém vai desconfiar.
As canoas se aproximavam. Os mariscadores começaram a atirar em volta e a água ficou sendo ricocheteada pelas balas. Tinham que parar. Os remos foram se paralisando. Uma mão forte grudou-se na borda da ubá. Outras mãos seguiram o exemplo da primeira. Os homens tinham o rosto barbado de muitos dias e os seus olhos lançavam chispas de crueldade.
Daniel deu uma risada e falou para os mariscadores:
- É esse o homem. Foi ele que roubou o diamante, e matou as duas mulheres. Podem ver. O diamante tá escondido debaixo dos cabelos daquela mulher morta.
Um ódio mortal assomou em todos os traços do Tenente. Uma única palavra escapou-se-lhe dos lábios como um rugido:
- Canalha!...
A mão correu rápida à guaiaca, mas não conseguiu apanhar o revólver. Os mariscadores o sustinham. Estava perdido. Um cansaço enorme fez que resvalasse para a frente.
E resvalando acordou banhado em suor.
Estivera sonhando. Apalpou o diamante e sentiu-o roçando na espinha. Daniel continuava adormecido comprimindo o rosto sobre a areia. Sá Lua dormia calmamente e ao longe, firmada nas canelas finas, Tilde continuava a mesma, e vinha se encaminhando do rio, trazendo as panelas lavadas. Ela devia ter se banhado porque os cabelos loiros estavam unidos e escurecidos.
Tilde se abaixou junto do fogo, colocou um pedaço de lenha seca e soprou, soprou até que as labaredas se elevassem novamente. Ela equilibrou a fogueira e colocou uma panela de água para ferver.


Sá Lua foi entreabrindo os olhos aos poucos. Deparou com o Tenente reclinado no tronco da imburana. O sono tinha feito com que a cabeça descambasse amolecida até o peito. Adormecido também encontrava-se Daniel. Sorriu com suavidade. Eram aqueles homens cansados que teriam que assistir a seu parto.
Agora respirava com tanta dificuldade. Parecia que o ventre se aquecia mais. Uma ânsia morna achatava-lhe o peito. Mas não queria mais. Precisava deixar que descansassem um pouco. Sem querer recordou-se de May; por que se lembrara agora dela? Ali naquela selva distante e abrupta tão diferente da doçura e das mãos macias de May... May, a velha caftina. A única mulher daquele gênero que fora realmente boa para ela. May, com quase sessenta anos, dona de um bordel em São Paulo. Para todas as outras que viviam aquela espécie a caftina era bondosa.
Reviu o vulto de May, de cabelos oxigenados e crespos, com as roupas espartilhadas usando um busto que não se usava mais. E a força que fazia para não envelhecer superlotando o rosto de cremes?...
Sá Lua sentiu os olhos se umedecerem. E o último amante de May? Aquele homem que devia ter pelo menos a metade dos anos da caftina. Ela tratando-o melhor do que a um filho. Vivendo com ele e satisfazendo a todas as suas vontades. Às vezes dava nela; ninguém vira May se queixar uma única vez. Seus olhos se inchavam ampliando a velhice da face disfarçada, mas ela continuava doce e amiga. Os homens não prestavam mesmo. Ele tinha tudo. Até dinheiro para as outras mulheres. Um dia, tornaram a brigar e ele disse que ia embora. Arrumou tudo e May assistiu impassível. Com ele sumia-se o resto da sua vida. Ele dirigiu-se para a cômoda e May compreendeu. Interpôs-se entre o homem e o móvel. Sua garganta velha protegida pela gola alta de renda estremeceu. A voz saiu rouca.
- Não. O retrato não. Deixe o retrato pelo menos.
A mão forte arrastou-a dali. Apanhou o retrato e o fez em pedaços. Ele dirigiu-se para a janela e atirou os fragmentos na rua. Virou as costas e saiu.
Tremulamente se postou à janela e viu que ele ia se sumindo, se sumindo, se sumindo para sempre.
Encaminhou-se devagar para a porta, saiu à rua e abaixando-se no chão com dificuldade foi apanhando os pedaços do retrato. Mas alguns o vento tinha levado para longe... Tão boa e meiga a velha May...
Um estremecimento maior e dolorido não permitiu que evitasse um gemido. A vida viva dentro de si estava começando a manifestar uma força própria e reclamando um lugar fora do escuro de seu ventre.
O Tenente levantou-se rápido e se aproximou. Daniel ergueu-se também. Tilde apenas desvirou-se para onde partira o gemido. Os olhos de Sá Lua pareciam envolvidos por uma gaza escura. O rosto do Tenente se assemelhava a qualquer coisa que perdia a forma. A vertigem e a tontura vacilavam nela como a chama de uma lamparina.
- Por que está tão escuro? Falava entre gemidos de dor.
- Por que escureceu tão depressa?
Sentiu a mão calosa e morna sobre a sua testa que supurava uma frialdade escorregadia.
Daniel espiou para o céu e viu que ainda era cedo. O sol ainda viveria umas duas horas.
Uma angústia veio abalar os seus nervos. Isso era a criança que estava dando os primeiros sinais de que ia nascer. Penalizou-se daquela mulher que sofria tudo com tanta paciência.
- Por que escureceu tão cedo?
A vertigem continuava, o céu tomava formatos de sombras negras se unindo e se separando. Os rostos dos dois homens se confundiam escuramente, um penetrando por dentro do outro.
Então a dor principiou a falar contorcidamente no fundo do ventre. Aquela eólica apunhalava de uma maneira fina, veio crescendo, crescendo a ponto de a boca descair sem força e a baba grossa começou a escorrer. E não se podia conter. Porque a dor não era mais sua. Por que não morrer? Por que não morrer? Garras de fogo raspavam-lhe a espinha, grudavam-se como pinças em todas as costelas. Tudo se rachava. Tudo se fundia em labaredas líquidas. E a dor caminhava lenta, crescendo, comprida, estourante, cruel. Aquilo era a dor da vida. E ela odiou a vida mais ainda. Por que o preço de um ser custava tanto?
As eólicas iam para voltar maiores e penetrar mais e mais as agulhas no fundo das entranhas. A respiração queimava, a vista turvava-se e o suor descia em fogo líquido pelas costas. Mas a testa gelava-se. Não conseguia ouvir o que lhe falavam. Nem compreender por que tanto demorava o parto.
Perdia a noção de tudo e quando começava a delinear as coisas só avistava os homens apreensivos com os olhos grandes ficando maiores porque a noite era negra e a luz de uma fogueira iluminava os vultos. Tilde se acocorara perto do fogo.
Quantas vezes a vista escureceu, quantas vezes os olhos reconheciam as coisas e se fixavam na fumaça saindo da fogueira, não sabia dizer. O corpo parecia esgotar-se com a dor aumentante das cólicas. As energias extinguiam-se, transformando-se em marés de suor.
Indiferentes, lá em cima as estrelas faziam a jornada noturna em silêncio.
A mão calosa do Tenente afagava o rosto da mulher, enxugava-lhe a testa umedecida. Levantava os olhos súplices para Daniel, indagando se demoraria muito o nascimento. Daniel abanava a cabeça negativamente. Ainda demora! Ainda demorai
Olhava para a noite e via que o Cruzeiro do Sul emborcava indicando que as horas dividiam a noite pelo meio. Até à madrugada ele nascerá. Falara Daniel, mas até lá teriam quatro horas de angústia e desespero.
Por que trouxera a mulher naquele estado?
Reviu a noite da fuga. Noite escura. O garimpo adormecido. A noite passava de meia-noite. As cartas, o jogo, Mauro Duarte. Novas dívidas. A desmoralização. Principalmente quando descobrissem que tinha jogado até o pagamento dos homens da Polícia. O desespero com que voltou à casa e contou tudo para Sá Lua. Seus braços tinham perdido toda energia e a cabeça tombara de desânimo. Precisava fugir. Mas como? Sá Lua naquele estado? A mulher então se revelou notável naquela hora. Tomou-lhe as mãos e ajudou a planejar a fuga e o roubo do diamante. Ela indicara Daniel e insistira para que Tilde viesse também. No estado em que se achava e indo para Leopoldina como fariam crer a todos, uma mulher grávida necessitava de uma empregada. Ninguém melhor do que Tilde para isso; os outros sempre trataram aquele pobre diabo como um animal repelente até que Sá Lua a abrigara em sua casa. Tilde seguiria a patroa como um cão e mais ainda, havia uma parcela do diamante que poderia dar um certo descanso e uma vida melhor para ela. Sá Lua planejara mais do que ele. Até mesmo dizer que viajariam com a noite, porque era melhor para a gravidez, e pegariam menos a dureza do sol... E a gravidez? A criança que poderia nascer a qualquer momento? Mas isso também Sá Lua resolveu garantindo que o filho não viria antes de um mês e que o garoto nasceria em Belém do Pará.
Agora estava ali; a viagem pela metade ainda. Olhou o rosto de Daniel. Seus olhos estavam arredondados e se assemelhavam a carvões acesos quando um lampejo da fogueira incidia sobre eles. Com que calma, naquela noite oferecera uma parte do diamante a Daniel. E com maior calma ainda ele recebeu a notícia. Parecia que já esperava por tudo aquilo. Que o destino tinha reservado aquela oportunidade para fugir. Nem um músculo da face se moveu, nem uma chispa de surpresa perpassou seu olhar. Nem o vestígio de um mais leve sorriso contorceu sua boca. Daniel nunca ria. Daniel não sabia mais rir.
Procurou Tilde com a vista. A mulher se enroscara perto da coivara, e de vez em quando encostava um pedaço de lenha ao fogo e soprava novas chamas.
Tilde não conseguia dormir. Ficava olhando cada movimento dos homens e esperando de longe que eles precisassem dos seus serviços. Julgava-se mesmo de pouca utilidade por não entender e sentir uma certa repugnância pelo parto. Ficava entristecida e sentia pena a cada gemido dado por Sá Lua. E como demorava tudo aquilo. A noite breve estaria por terminar. Um filho demorava mais do que uma madrugada para nascer.
Um grito imenso partiu da mulher. Tilde levou as mãos tentando tapar os ouvidos para não escutar mais. Seus olhos se molharam de aflição.
O Tenente e Daniel se aproximaram da mulher. Estavam se debruçando sobre Sá Lua. Não agüentou mais, virou-se para observar as chamas da fogueira. Mas escutava o que eles diziam.
- Começou...
- Sustente as costas dela. Peça que ela ajude.
E a voz do Tenente rouca, e emocionada falava doce com o rosto colado ao ouvido de Sá Lua.
- Ajude. As convulsões começaram. Força... Força... Daniel chamou Tilde e pediu um pouco de óleo de babaçu.
Tilde trouxe. Daniel sabia que aquele não era o óleo indicado, mas era o único que existia. Ordenou que Tilde preparasse água morna...
Então uma dor maior, como se todo o corpo de Sá Lua estourasse, surgiu violenta. Cortavam-na ao meio. A voz não tinha mais forças para gritar. Os gemidos saíam molhados de saliva. E alguma coisa partiu-se de vez, e deu a impressão de que algo era arremessado bem alto contra o céu. O corpo então foi se dissolvendo, a dor desapareceu de vez. Ou estava morrendo e nada mais sentia? Os ouvidos tinham um zunido bárbaro e as veias da fronte latejavam acompanhando os batidos fracos do coração. Longe, muito longe ouviu a voz de Daniel.
- Custou a nascer porque o cordão do umbigo estava enrolado no pescoço...
E depois a voz veio de novo mais perto.
- É um menino.
Tilde aproximou-se com a água. Seu estômago confrangeu-se. Não pôde mais se conter. Correu para o rio e principiou a vomitar. E de lá mesmo ouviu o primeiro vagido. O ar entrando pela primeira vez no pulmão da criança fazia que ela lançasse contra a vida o desespero da primeira praga...
Agora teriam que permanecer ali por vários dias. Até que Sá Lua se refizesse do parto.
Um desânimo se apossou de todos. O medo começou a preocupar seriamente o Tenente.
Não fazia mais ilusões de que o roubo ainda estivesse por ser descoberto no garimpo. A Polícia de Goiás e de Mato Grosso deveria estar descendo o rio, pesquisando todos os cantos. Talvez que por sorte eles só viessem a dar por falta do diamante depois do dia quinze. Então, teriam uma semana de vantagem. Mas não cria nisso. Era muita coincidência viajar logo quando um diamante fora roubado e estava confiado à custódia da Polícia. O próprio dono do brilhante começaria a suspeitar. Tinha certeza de que já descia gente em perseguição deles e com grandes prêmios oferecidos a quem os pegasse vivos ou mortos...
Olhou Sá Lua que oferecia o seio grande e pujante para a vida nova de poucas horas. A calma tinha voltado para o seu semblante.
Daniel aproveitara para dormir toda a manhã. Agora que o sol caminhava pelas duas horas ele se encontrava na beira do rio, atirando uma linha de pesca para equilibrar a ração da viagem que cada vez mais desaparecia.
O Tenente pensou que distante apenas de poucas léguas se encontrava o povoado de São Félix e que lá, não fora o roubo, a mulher teria alimentação adequada, sombra, e não corria risco nenhum. Só havia um jeito: - esperar e confiar que a sorte continuasse com aquela maré de proteção até agora manifestada.
Encostou-se no pé de imburana e foi cerrando os olhos e como última lembrança guardou na retina um bando de garças brancas que voejavam do outro lado do rio...
Dormiu bastante tempo. Acordou com um gemido queixoso de Sá Lua. Levantou-se rápido. Aproximou-se da mulher. Seus olhos se tinham dilatado, e chamou Daniel.
O rosto da mulher estava coberto de vermelhidão. Todo seu corpo ardia em febre. Ela nem sequer respondia ao que se lhe falava.
- Febre!...
- Alguma infecção!
Acontecia algo que tanto temera. Naturalmente o parto mal feito e brutal naquele corpo em que o sexo passara toda a vida em grandes excessos reclamava o seu imposto de miséria.
E tudo então tomou um aspecto sombrio. Nada tinham a fazer. Deveriam meter a mulher na canoa e descer rio abaixo até um lugar civilizado. Lá talvez alguém tivesse penicilina para debelar a infecção. Mas, o receio de que ela não resistisse à viagem, deixava os dois homens numa terrível indecisão.
Isso não foi apenas o que de ruim estava para acontecer. Tilde aproximou-se correndo, vinha da beira do rio. Vinha tão cansada que a fala não podia sair. Seus olhos tinham crescido dentro das órbitas. A mão esquerda apontou para a direção do rio abaixo e a voz foi saindo aos poucos.
- Vem uma porção de canoas subindo o rio. São caçadores. Daniel e o Tenente murmuraram ao mesmo tempo:
- Mariscadores!
Não podiam se esconder. Se a notícia do roubo já tivesse circulado eles estariam perdidos. Restava apenas esperar e jogar no azar. Talvez que ninguém soubesse de nada.
Já agora se ouviam os remos mergulhando na água com força. E o som se aproximava mais ainda.
Daniel recobrou a calma.
- A gente passa por garimpeiro. Diz que veio de Balisa e que vamos para Marabá.
Um livor se apossara dos lábios do Tenente. Mas ele controlou-se.
As canoas se aproximavam. Eram muitas. Os mariscadores vinham se achegando.
Ouviram quando eles comentaram:
- Uma canoa!...
- Deve haver garimpeiro aportado por aí. Vamos vê?
O ruído da quilha da embarcação arrastada na areia se fez ouvir. Em seguida outra, e mais outras.
Pés remexeram pela areia. E eram muitos. E cada vez se aproximavam mais. Os mariscadores deram então com o triste grupo sentado à volta da mulher doente.
O receio e a humildade morava nos olhos daquela gente. Se apercebendo disso um homem simpático confabulou com os outros mariscadores e se adiantou.
- Boa tarde, minha gente. Não precisa ficar com receio, que a gente é de paz.
Daniel ergueu-se ao mesmo tempo que o Tenente e recebeu a mão espalmada para o cumprimento.
- A gente teve que ficar ilhado aqui. Nasceu essa criança em meio da viagem...
O homem se aproximou, se descobriu e olhou com um sorriso franco que lhe diminuía os olhos numa maré de rugas. Uma onda de ternura perpassou naquele rosto bruto e bronzeado.
- Menino ou menina?
- Menino.
- Vosmicês tão vindo de onde?
- Do garimpo de Balisa.
- Puxa! Aquilo lá é o fim do mundo.
- A gente tinha esperança de alcançar São Félix ou Santa Isabel, antes da criança nascer...
- Quem é o pai da criança?
Daniel apontou para o Tenente. A emoção fez com que o Tenente abaixasse os olhos para encobrir a palidez do rosto. O mariscador bateu amigavelmente nos ombros do homem.
- Primeiro filho?
O Tenente confirmou com a cabeça.
- Por isso! Quando o senho tive meia dúzia cumo eu, não vai senti tanta incomodação.
Sá Lua gemeu doridamente.
Só então, notou o rosto da mulher arroxeando-se. Seus olhos adquiriram uma inquietação denunciadora. Ajoelhou-se junto da cama improvisada com as cobertas e as palhas de palmeira, e colocou a mão grossa sobre a sua testa.
Virou-se espantado para os outros.
- Meu Deus!... Essa mulhé morre de febre! Encarou Daniel com firmeza.
- Pra onde vosmicês pretende ir?
- Marabá...
- Então botem essa mulhé logo na canoa e desçam para Santa Isabel. Nem precisam pará em São Félix. Essa moça tá cum arguma inflamação. Tem necessidade de tomá penicilina. Em São Félix não hai. Mas em Santa Isabel, o chefe do Serviço de Proteção aos índios, chamado Valentim, pode arruma.
Chamou outros mariscadores e recomendou:
- Vamos fazer uma tipóia e ajudá essa gente a carregá essa moça até à canoa. Mas cum muito cuidado purque ela tá bem maluda.
Meia hora depois a canoa do Tenente começava a deslizar. O mariscador tirou o chapéu e gritou com simpatia:
- Boa viagem. Daqui lá são quatro léguas e meia. O sol ainda tá arto, e vosmicês pode chegá lá pras nove horas em Santa Isabel.
A canoa se afastava mais pegando a correnteza. O mariscador comentou com os outros que iam recomeçar a viagem.
- Diabo de vida dessa gente! E mal sabia eles o perigo que tava correndo. Qué vê que nem desconfiaro que é época de caça de Xavante, e que podia ser atacado a qualqué momento...


Sexto Capítulo - A Festa

Camura espreguiçou-se na rede. Upa! Um sono só. Verdade que conseguira adormecer só bem tarde. Porque os chiados dos maracás e o canto agudíssimo dos inans tinham raspado a noite inteira, só parando naturalmente pelo amanhecer. Mas, depois, com os olhos ferrados, dormira tão bem como as águas do rio.
Levantou-se ainda abrindo os braços e murmurou o seu grito conhecido:
- Ih! Camura! Por hoje tu está ainda vivo!
De repente uma súbita tristeza ensombreceu seus olhos. Que besteira, nem sabia por que dissera aquilo!... Uma nova pergunta escorregou por dentro da alma e era a primeira: Será que voltarei vivo dessa vez?... Mas por que estava pensando em tudo aquilo! Nunca fora homem de pressentimento e não era índio para acreditar em feitiço.
Foi interrompido das suas divagações pela fala de Valentim, do outro lado do quarto.
- Ei, nego, tás dormindo numa hora dessas? Tu sisqueceu que hoje é dia de festa?
- Tou indo já. Assim que acabe de enfiar a roupa, vou banhá e espiá o movimento.
Ouviu que Valentim tornava a sair de casa. Abotoou a calça, jogou a camisa enxadrezada sobre os ombros e saiu. No terraço tornou a espreguiçar-se novamente.
Das pálpebras semicerradas pelo bocejo enxergou o dia acordando. Pensou de novo na arara vermelha colorindo a manhã.
Dirigiu-se para o rio. Parou no alto da barreira e descobriu que não havia ninguém, nenhuma mulher se banhando no rio. Desceu aos poucos e sem pressa. Bocejou bem junto das águas. Dentro de um mês ou mais as águas tornar-se-iam tão claras que as tartarugas seriam vistas remexendo as patas no fundo.
Abriu a braguilha e ia principiar a urinar sobre as águas, quando se recordou de que podia haver candiru por ali. Aquele peixinho terrível que sobe pela urina e penetra na bexiga, provocando a morte pela dor e desespero. Haja visto aquele caso que aconteceu no Registro, com a velha Sabará. Ela tinha ido se banhar no rio, e urinou dentro d'água. Candiru aproveitou. Foi preciso arrancar o bicho com uma ponta de tesoura. Por sorte ainda não atingira a bexiga. Mas Camura, nunca se esquecera dos gritos de dor da velha, nem dos olhos esbugalhados, nem da terrível sangria. Tudo isso por causa de um peixinho besta que não era bem peixe. - Urinou calmo sobre o vermelho da barreira.
Depois acocorou-se, e mergulhou as mãos na água. Ficou remexendo devagarinho na água amornada.
Estranho a tristeza que persistia nele, e não podia adivinhar a causa. Medo não era. Afinal um caboclo do Araguaia que levara a vida se amamentando de sangue, não iria ficar nervoso nem perrengue por causa de um roubo a mais ou a menos. Não, não era aquilo. Mas a verdade tinha que confessar: - existia algo dentro dele semelhante ao receio. Chicoteou as mãos contra as águas. Os miguelinhos se afastaram amedrontados. Riu. "Tou é ficando veio e mofino!" Suspendeu as mãos em concha e molhou o rosto, afastando com o suave contacto a preguiça comprida que se agarrara em seus olhos por toda uma noite.
Encheu a boca e começou a bochechar, lavando as gengivas despidas de dentes.
A água ia secando aos poucos da sua pele, mas ele permanecia de cócoras naquela malemolência envolvedora. Espiou o rio. Ali devia estar cheio de piranhas. Aquelas piranhas comeram muito crime. Suspendeu a vista para o lado de São Félix. O Araguaia estava recortado de manchas pretas. Canoas de índio carajá cruzavam em todas as direções. Êta índio danado pra remar!
Nos pequenos ancoradouros da aldeia, outras canoas se espreguiçavam compridamente. Índios banhavam-se, e, meninos buliçosos, irrequietos, armados de pequenos arcos, esperavam que o dia ficasse completamente branco para começar a reinação da pescaria.
Lembrou-se do filho. A tristeza voou para longe. Valério estava do tamanho daqueles pequenos. E como eles, vivia nu na beira do rio. Mais tarde seria um outro caboclo forte do Araguaia. Quer ver que ele ainda demoraria mais de vinte dias para ver o filho? Um arrepio chato contrariou os músculos da sua face. "E se eu nunca mais voltar a ver meu filho? - Tá doido diacho? - Que é que eu tenho hoje? - Estou cheio de besteira!..."
Levantou-se e ao desvirar-se deu de cara com Kanaú que sorria.
- Bom dia, Camura!
- Bom dia. Você estava aí há muito tempo?
- Não. Vim chegando agora.
- Se você fosse uma onça me comia vivo, porque não ouvi nada.
Kanaú foi entrando n'água devagar.
- Cuidado com as piranhas, rapaz!
- Piranha me conhece e tem medo do meu sangue envenenado.
Mergulhou e voltou à tona, sacudindo os cabelos lisos e unidos. Saiu d'água e torceu as pontas do cabelo como era costume dos índios.
- Um mergulho faz um bem danado para a gente. Estava cansado e passou.
- Onde foi que dormiste, Kanaú?
- Dormi só um pedacinho, de madrugada, na casa de Aruanã.
- Quer dizer que dançastes a noite inteira?
- Dancei sim.
Camura coçou o queixo.
- Não compreendo como é que você foi estudar em Conceição com os Dominicanos, volta pra cá e se enfia naquelas más caras nojentas e fedendo a óleo.
Kanaú riu.
- Nem eu. Mas quando a gente enfia aquilo sobre o rosto, quando rodeia o corpo com as saias de palha, quando segura o maracá... dá uma coisa... Você não compreende porque não é índio...
- Você acredita naquilo?
O rosto de Kanaú tornou-se sério e triste.
- Não sei.
Ele estava mentindo. Bem que sabia. Como poderia acreditar no Deus dos índios inans. Kanansiu-ê!... Um deus pobre, sem recursos, que não ajudava ninguém. Mas, como acreditar também naquele Deus dos brancos, que os padres ensinavam? Aquele Deus que inventava inferno, fogo, castigo? Aquele Deus que criava tanta diferença? Fazendo os índios desgraçados e os brancos também desgraçados. E por cima tudo era cheio de ameaça, medo. Não acreditava em nada. E quando morresse não iria como os índios para o fundo do Araguaia, que era de onde todos os carajás tinham vindo. Nem pretendia ir para aquela porcaria de céu, nem de inferno.
Não acreditava que tivesse alma conforme os frades queriam. Quando morresse ficaria misturado com a terra e tudo seria esquecido. Essa era a melhor solução. Por certo ele pensava isso, porque não era branco nem índio. E tinha que se sentir sempre assim deslocado. No meio dos brancos não conseguia dominar o receio de tudo, e, nem de pensar de que nada lhe pertencia por direito. No meio dos índios a não ser no momento em que enfiava as máscaras de palha para dançar ou pescava no rio, a mesma inquietação o martirizava.
Espiou Camura. Um homem tão bom e que de uma hora para outra, se encontrava ameaçado de desaparecer dos vivos. Um homem que se tratava tão bem e que poderia morrer sob suas mãos... Os olhos de Kanaú tornaram-se sombrios. Camura não notou isso, ou se notou, justificou como um pequeno aborrecimento por ter invadido as muralhas da crença do mestiço.
Mas aquele problema não impressionava tanto Kanaú. Ele queria viver. Viver! Ter direito à vida como qualquer outro. Para isso, aquele homem mesmo lhe dissera: - Licença até de matar! E se matasse não sentiria remorso algum. Não sentir remorso era uma parcela de sua condenação: - a prova mais evidente de que em seu sangue a maldita herança selvagem deslizava forte. Remorso não tivera Uaximani quando matou para roubar o coronel Basílio e a mulher. Ao contrário, retornou todo alegre para a aldeia carregando a montaria cheia de quinquilharias. Sentia-se feliz e ao mesmo tempo rico, dono daquelas porcarias todas. Quando perguntaram a ele que fizera das duas pessoas, ele disse calmamente, que derrubara com o remo e que jogara os dois corpos para as piranhas. E ninguém fez nada, porque o índio pelos brancos era considerado menor. Hoje Uaximani vivia na aldeia, livre, alegre e feliz. Pescava, dançava Aruanã, e tinha mania de fabricar flechas. Não existia em seus traços uma única marca de angústia. Lembrava-se por alto que matara o coronel Basílio. Dando a mesma importância a esse fato como à morte de um pirarucu fisgado pelo seu arpão.
Kanaú fixou bem Camura, e por mais que quisesse, não conseguia sentir remorso ou medo do que iria praticar. E a certeza do que "iria praticar" criava-lhe no íntimo uma segurança cínica, que dispersou dos seus olhos as névoas sombrias, repuxou os lábios e desabrochou um sorriso para o homem.
Camura correspondeu ao seu sorriso. Ali estava um índio bom e sincero. Podia confiar naquele rapaz sempre calado e por vezes entristecido. Deu um tapa nas costas de Kanaú. Lembrou-se de alguma coisa.
- Será que você arranja aquilo que me prometeu?
- Quando dá fé, hoje eu vou arranjar. Assim que tiver uma folga vou dar um pulo até São Félix...
Camura retornou ladeira acima. Agora descobrira a causa de seu mal-estar e descontentamento. Quase nada bebera depois que aportara em Santa Isabel. A garrafa de pinga acabara-se na viagem dois dias antes de chegar. E ele sem cachaça não era homem. Perdia a coragem, a vontade e o bom humor. E pinga para ser bom, tem que ser muita. Esse negócio de Valentim lhe arranjar copinhos próprios para tico-tico, não era com ele não. Restava a esperança de que Kanaú cumprisse com o prometido ou Valentim emocionado pelo dia da festa lhe deixasse uma bela garrafa a seu inteiro dispor.


O sino pregado no pé de amarelão repercutiu por três vezes. A festa ia principiar. Valentim consultou o relógio de pulso e viu que marcava sete horas em ponto. Tornou a badalar três vezes o sino.
Uma barulhada cresceu na aldeia. A meninada toda, vestida com uniforme de escola, saiu das casas de palha e veio se aproximando da porteira.
Camura sentado na amurada do terraço da casa de Valentim observava tudo e sorria.
O danado do negro Valentim não parava. Ia, vinha, entrava, sumia, desaparecia, surgia, voltava, sempre naquela diligência, como se o mundo fosse acabar a qualquer momento.
Valentim tinha mandado que todos os homens do Serviço abandonassem os seus trabalhos costumeiros para ajudarem na preparação da festa. Ninguém iria à roça hoje, ninguém ficaria na fazenda por qualquer motivo. O boi morto viera às cinco horas numa canoa. O churrasco começaria às cinco horas da tarde.
Camura passou a mão nos lábios ressequidos. "Como se o churrasco tivesse graça sem um aperitivo. Mas daria um jeito no Valentim. Lá isso daria".
Homens varriam o terreiro defronte às casas dos moradores. Desde a entrada até à barranca do rio. E o trecho era bem grande. Outros, no fundo da casa de Valentim cavavam o chão onde seria assado o boi. Contudo o mais interessante era a garotada que se aproximava agora do barracão do Serviço. Aquele casarão enorme que há muitos anos hospedara o Presidente da República, em visita, servia para tudo.
Para festa (e hoje à noite haveria a festa dos brancos com sanfona e o violão de Querubino) para a escola, onde os meninos e meninas inans levavam a vida inteira aprendendo a ler e os que o conseguiam não entendiam o que liam. Tudo decorado! Também... Camura riu. Também os bugrezinhos eram uns danados. Se aparecia o tempo de subida de peixe no rio, ninguém pisava na escola. Se surgia outro divertimento qualquer, os bichinhos desapareciam e era um trabalho danado para fazer com que se habituassem de novo à dureza naqueles bancos de pau... Além do mais, o barracão ainda era utilizado para hospedar índio que vinha de outras aldeias e que sentia-se envergonhado de se abrigar na aldeia; os brancos que aportavam em Santa Isabel também dormiam no barracão e a farmácia funcionava numa das suas dependências.
Agora a garotada se aproximava da casa de Valentim. Os cabelos que tocavam aos ombros tanto dos meninos como das meninas encontrava-se untado e alisado. Aquilo custara muito tempo. As franjas grudavam-se luzidias de tanto óleo de babaçu. Vestiam um uniforme, onde a blusa era branca e com uma gravata azul. No bolso, as iniciais do SPI tinham sido estampadas. As saias e as calças se assemelhavam às de qualquer uniforme de um grupo escolar civilizado. O interessante era aparecer sobre as blusas colares de miçangas e contas de variadas colorações e pulseiras vermelhas tecidas com algodão e pintadas de urucu; nas pernas enfeites do mesmo jeito diferenciado pelas franjas compridas que abalavam para lá e para cá a cada movimento executado. E como os pés se tornavam pequenos por causa daqueles enfeites...
Valentim solenemente reuniu a garotada índia junto dos meninos civilizados que se vestiam com o mesmo uniforme e colocou-os em fila defronte ao grande mastro.
Índios de toda espécie saíram da aldeia para espiar a solenidade. As mulheres se vestiam com vestidos de chita e fazendas com ramagens espalhafatosas. Os homens se adornavam como podiam. Outros não ligavam importância à festa, e, surgiam enrolados com os cobertores sebentos de todos os dias.
Camura pensou que por certo Valentim se sentiria inflamado e desejaria fazer um discurso, mas adivinhava o desânimo que se apossaria na alma simples do preto. Mas dizer o que para aquela gente? Que hoje, dia dezenove de abril é o dia do "índio"? E que tinha isso? Que importava ao silvícola saber se era ou se não era, se o governo dedicara ou não dedicara um dia a ele?
Camura entristeceu-se pensando mais. A cada viagem que fazia encontrava os índios em menor número e mais doentios. O governo saberia disso ou dedicara uma data a eles somente por dedicar?
Levantou-se. Afinal os índios não o consideravam um mestiço e sim um "tori". E como tori precisava impor respeito e dar o bom exemplo.
Foi se aproximando do grupo. Os índios velhos faziam uma algazarra danada. Parecia que o seu linguajar de certo modo gutural adquiria uma rapidez desusada para que os brancos nada entendessem.
Valentim que entrara em casa voltou sobraçando com respeito a bandeira brasileira dobrada. Aí o silêncio calou profundo.
Valentim achegou-se ao mastro. Seu peito parecia não respirar e seu rosto apossou-se de um brilhar incomum. Atou uma das pontas da bandeira à corda e foi puxando lentamente, lentamente. A bandeira principiou a desdobrar-se e no alto com uma indiferença tranqüila, oscilou preguiçosamente para o vento que a empurrava.
Os índios ficaram espiando sem a mínima emoção além de achar que aquilo era bonito. Valentim encarou a todos emocionado e engoliu em seco. Nada do seu amor à Pátria, nada de compreensão simbólica da flâmula oscilante, nada da imensa ternura que derramava do seu peito poderia ser transmitido àqueles corações selvagens, rudes, nem àqueles olhos mongóis que espiavam a bandeira da Pátria, como quem espia um couro de onça espichado.
Venceu a comoção e bateu palmas dando sinal de que a meninada poderia debandar.
Aquilo sim é que era bom! Uma gritaria louca se efetuou num segundo. Cada qual que quisesse primeiro chegar à aldeia, lutava para atravessar a porteira, sumir-se dentro dos retos e livrar-se daquele incômodo uniforme.
Camura desviou a vista da cena e foi buscar o rio que corria sempre indiferente. O rio que conhecia os mistérios de todas as selvas e compreenderia perfeitamente tanto o que sentia Valentim como o índio amigo...
Canoas agora se aproximavam do porto dos toris. Vinham carregadas de palha de buriti seca. Os inans saltavam e fazendo feixes subiam a barranca.
À distância de dez em dez metros, faziam grandes pirâmides de palha. E esses montes se estendiam desde o começo do povoado dos brancos, e também pela beira do rio até alcançar o final da aldeia. De noite tudo aquilo seria uma maravilha.
Valentim até soltaria uns foguetes de estrelas para embelezar mais a festa.
Mas não só na parte dos brancos existia aquela azáfama. Na aldeia era pior. Parecia que todas as mulheres falavam ao mesmo tempo. Só se viam mulheres correndo com tachos de kalugi, balançando os seios caídos como pêndulos de relógio. Mulheres acocoradas ralando mais mandioca. Crianças se enfeitando de penas, de mais colares, de brincos coloridos também fabricados com penas, de cordões negros com borlas grandes que lhes caíam nas costas... E tudo era feito com algazarra. As araras reclamavam com berros estridentes. Os cães (e como existiam cães) latiam de instante a instante, os papagaios falavam e soltavam gargalhadas.
Mas quem não gostou da barulheira foi o velho jaburu amansado que pertencia a Maluá.
O pobre bicho com o seu aspecto recheado de tristeza caminhou vagarosamente para a beira do rio, afastando-se da balbúrdia. Dentro da água, suspendeu um pé e cochilou calmamente.


De todos os cantos, antes mesmo de o Sol pensar em se esconder veio chegando gente para a festa. Todos os anos era a mesma coisa. Vinham moradores de São Félix, do sítio de João Irineu (na hora da festa eles pouco estavam ligando importância existir xavante ou não), do sítio de Raimundo Morais que era longérrimo... de todo canto, de toda parte chegava gente. A notícia do dia do índio circulara veloz uma semana antes. Uma semana antes foi preciso Valentim mandar emissários convidando índios das aldeias de baixo. A festa prometia ser mais bonita do que a dos outros anos. Valentim estava ali havia oito meses e todo mundo se encontrava satisfeito com o modo de agir e trabalhar do preto. Nego alegre, animado, trabalhador, mão aberta, estava ali...
O churrasco fora posto para assar. E o cheiro de carne se tostando enchia e se espalhava no espaço.
Camura sentia-se feliz. Conseguira convencer o chefe do Serviço que hoje era um dia que não poderia negar nada a ninguém. E disso tudo resultará ser presenteado com uma belíssima meia garrafa de cachaça. Por isso seus olhos se tinham tornado mais miúdos e mais matreiros. Seu andar não se manifestava muito firme e sua fala de certo modo engrolava. Contudo que mal havia nisso? Era um dia de festa, não era?
Olhava para o porto e gritava:
- Ih! Camura! Lá vem mais gente. - E gente chegava.
Às cinco horas Valentim já agora vestido no terno de brim branco e calçado nas botinas novas e lustrosas badalou o sino. A mesma cena da manhã foi repetida. Os índios com os mesmos uniformes reapareceram.
Valentim principiou a descer a bandeira. Os convidados da festa circulavam o mastro. A bandeira preguiçosa veio descendo, descendo...
Todos batiam palmas, mas ninguém se lembrou de cantar o hino nacional. Camura riu. Na certa ninguém saberia cantar o hino. Ele mesmo não sabia. E ali como em qualquer parte do Brasil nem dez por cento dos brasileiros conheceriam a letra inteira do hino e se conhecessem nunca tinham examinado a significação da letra...
De repente um som apareceu no meio do rio. Um silêncio ansioso atacou todos os rostos. Desde o índio até ao branco. Desde o velho ao menino. O som cresceu e se definiu.
Todos gritaram:
- Chibiu!...
- Chibiu!...
- A sanfona de Chibiu!...
Ninguém mais se preocupou com a bandeira que nem fora de toda derreada.
Foi uma debandada geral. Uma correria louca para a beira do rio. Todo mundo queria assistir à chegada do sanfoneiro.
Valentim sozinho recebeu a bandeira nos braços, sozinho dobrou-a com carinho, e sozinho se encaminhou para dentro da casa para guardá-la.
Era uma beleza a sanfona enchendo de música. Ali eles não tinham rádio e viviam numa solidão absoluta. De quando em vez aparecia uma festa daquelas talvez para comprovar que a vida era um pouco mais do que o cabo calejado da enxada, e do que o suor regando a terra salgada.
Chibiu foi recebido com vivas e palmas. Cônscio de seu heroísmo desceu da canoa arrastando o corpo gordo e a sanfona destrinchada.
Levaram-no para o barracão e lá no fundo, numa grande sala que servia para tudo, desde carpintaria até paiol de arroz, desde dormitório até cozinha, fizeram com que descansasse a medalha de seus méritos, que no caso não ia além de uma sanfona descolo-rida e melancólica.
Chibiu depositou-a carinhosamente sobre a mesa de carpinteiro, tirou um lenço de riscado, limpou o rosto umedecido, e colocou as mãos displicentemente nos bolsos. Seus olhos se iluminaram espiando a decoração do salão. Deu um assobio fino de aprovação: correntes de papel de jornal pendiam pelos cantos, ligando as paredes em todas as direções. As portas e janelas se encontravam cercadas de palmas de buriti. E flores roxas de simbaibinha e flores amarelas de ipê-selvagem embaralhadas e colocadas em potes desenhados dos carajás, davam o toque final e artístico ao ambiente.
- Sim senhora!... Está de parabéns!...
Os olhares maliciosos desceram em peso sobre Maria Pomba. Um rubor enfogueceu o rosto da moça. Sem poder conter soltou um risinho nervoso e seus olhos se defenderam procurando os pés calçados na sandália de verniz. E o pé também envergonhado riscou com a ponta o chão batido da sala.
Aí, ninguém agüentou mais. Foi uma risada geral. As amigas abraçaram a alegria da festa. Ninguém dizia nada, mas os pensamentos pensavam:
- Então, ela fez essa lindura porque sabia que Chibiu vinha tocá...
- Eu num disse que Chibiu tinha um rabicho pela jadoma?
- Viu cumo ela ficou vermeia?
- Hum! Que isso termina cum liança no dedo, termina!
E Maria Pomba, a rola moça, sadia e peituda, que tinha as mãos prontas para enfeitar, que era chamada a todo momento para arrumar um altar para um padre que aparecesse, decorar um salão numa festa mesmo improvisada e juntar as mãos enlaçando-as com flores, daqueles que dormissem o último sono... Maria Pomba, agoniada de felicidade mal pôde balbuciar:
- Ora minha gente, me deixe!...
E antes que o riso nervoso se transformasse em lágrimas de ventura, deu uma virada de corpo, atravessou gente e saiu correndo pelo terraço a fora...
Valentim bateu o sino. Aquele era o aviso mais importante. O churrasco ia começar...
Pelo terraço da casa do nego, mesas tinham sido arrumadas. Tábuas juntas e firmadas em cavaletes também faziam uma imitação de mesa, mas as madeiras de ambas estavam nuas de toalha, o que em absoluto não importava, porque o essencial existia: pratos e mais pratos derramando farinha de puba e facas espetadas na carne do boi dividido.
Todo mundo tinha se aprontado para o festim. O terreiro em volta da casa de Valentim encheu-se. E foi um avança geral. Uma promiscuidade absoluta. Braços de todas as cores e de todos os jeitos agarravam no cabo das facas e facas de todas as espécies se enterravam na carne, e a carne fumegante e cheirosa esparramava sangue pela mesa e a mesa soltava gotas de sangue e irrigava o chão.
Todos se misturavam. Roupas vistosas de colorido exagerado roçavam nos corpos nus dos inans. Estes tinham se adornado ao máximo. Os seus corpos foram avermelhados da cabeça aos pés; os mais variados desenhos sobressaíam, riscados pela tinta enegrecida do jenipapo. Os cabelos se tornavam brilhantes de óleo; penas de marrecos novos se grudavam pelas pernas acompanhando traços marcantes e cobrindo de branco numa macia penugem, as nádegas musculosas. E todos os enfeites eram colados ao corpo com resina de almíscar selvagem e aquele odor forte se entranhava provocantemente pelas narinas.
Os pratos de farinha exibiam em segundos os fundos brancos e luminosos; e, novamente cuias de farinha tornavam a enchê-los.
Uma piada, um dito gozado, um chiste, um elogio, se entremeavam na alegria reinante, enquanto os dentes atacavam forte a carne vermelha e as mãos atiravam contra a boca punhados e mais punhados de farinha.
Valentim sorria enlevado. Festa era aquilo! O índio poderia se orgulhar de que tivera um dia bonito mesmo.
Seus olhos alcançaram ao longe, Camura que se aproximava riscando ziguezagues pelo chão empoeirado. Cutucou Chibiu indicando o delegado:
- Ota! Que o fio da mãe hoje toma um porre de mata!


A noite vinha se demonstrando sem pressa. O churrasco chegara ao fim. Todo mundo comera muito. Até demais. Uns eram obrigados a se deitar, outros se encostavam pelos cantos, colando as costas nas paredes. A barranca do rio estava cheia de gente quase em silêncio. Aquele silêncio semelhante ao das jibóias digerindo. Outros se falassem em comida seriam capazes de vomitar até.
Mas os inans não paravam. Levavam ao ombro pedaços de carne e ossos ainda com bastante coisa para a aldeia. Dirigiam-se pra a casa de Aruanã, e guardavam tudo aquilo, para os índios que breve chegariam de baixo. Mensageiros tinham vindo na frente e avisado que eles se encontravam se preparando numa praia distante dois quilômetros apenas de Santa Isabel. Aquele fora o local combinado para que os inans das aldeias de Btondiru e Créran-Auá se encontrassem.
Os cães compridos e constantemente esfaimados dos índios, e os cães dos moradores brancos limpavam o terreiro, carregando nas bocanhas ossos e restos de carne gordurosa. Às vezes os cães se atracavam e deixavam à mostra as presas terríveis e pontudas. Eram verdadeiras feras acostumadas a encurralar onças. E quando se atacavam não tinham piedade. Rosnando de ódio e uivando de dor enquanto sangue novo se ia unir no chão, fazendo companhia ao que sobrara do churrasco. Aquelas brigas animavam um pouco os convivas satisfeitos. Uma chispa de alegria incendiava os olhares, mas era só isso. Ninguém se levantava para separar os animais. Ao contrário instigavam-nos a destruição maior.
Quem não gostava era o dono do cão que precisava levantar-se e descer o pau com força para acabar com a briga. Pior se fosse o índio, porque esse descia a borduna para descadeirar, fosse o cão de quem fosse. A bicharada gania e dispersava em todas as direções, apanhando o que brigara e o que estava perto.
A primeira estrela lacrimejou no céu. Um vento agradável nasceu do rio. Com a coragem da primeira estrela outras estrelas surgiram pressurosas. E a noite negra se debruçou sobre o rio e o rio se tornou liso e escorregadio para não assustar as estrelas que estavam pescando.
Uma expectativa assaltava a todos. Dentro de breves minutos os carajás de baixo iriam chegar. E como nos outros anos a entrada deles em Santa Isabel era um deslumbramento. Uma cena selvagem difícil de descrever.
Um grito carajá estrugiu na noite oriundo da Prainha. Da aldeia um "kou" respondeu ao aviso. O grito veio mais perto dessa vez. A aldeia alvoroçou-se. Dezenas de "kous" repercutiram em coro. O grito aumentou mais próximo. Um pandemônio de gritos se efetuou.
Um inan passou pelo terreiro dos brancos, vindo em desabalada da Prainha.
Parou defronte da casa de Valentim, e comunicou ofegante:
- Inan! Carajá de baixo tá chegando!...
Girou nos pés e recomeçou a correr em direção à aldeia. Valentim apanhou os foguetes e ficou no meio dos moradores que se apinhavam na barreira do rio.
Uma turma de índios se dividiu entre cada pirâmide de palha esperando que eles dobrassem a ponta da baía de Santa Isabel. Uma inquietação angustiosa morava em cada íntimo. Por que eles demoravam tanto a chegar? Os minutos pareciam grudados ao tempo, e o tempo se paralisara. Ninguém falava. Todos os olhares se pregavam em direção ao lugar onde surgiriam os inans de baixo, perscrutando através do negror da noite.
O momento esperado se anunciou. Uma língua de fogo rompeu a escuridão e avançou. A língua se transformou em tocha e a tocha se refletia n'água. A primeira ubá estava vencendo a correnteza em busca de Santa Isabel. Não ficou uma garganta calada. Todos os índios gritavam e entre os gritos se distinguiam palavras de saudação. Os carajás de Santa Isabel estavam dizendo:
- Inan Btondiru! Inan Créran-auá! Manakeri-ki!...
Alguém perguntou para alguém:
- Que é que eles gritam tanto?
- Tão dizendo: Carajá de Fontoura! Carajá de Mato Verde, chegue até aqui!...
Novas tochas rebentaram seguindo a canoa primeira. Agora se ouvia que eles imitavam o canto das gaivotas e de outras aves selvagens. Entre esses cantos eles respondiam ao convite feito.
- Tiokrê, Inan Raumaló-Dessé!... Tiotóitica!...
- Espere, carajá de Santa Isabel! Obrigado!...
Quem perguntava comentou alegre.
- Que danados! Como eles se tratam bem!...
- E tu num sabia que índio é a gente mais bem-educada que existe?
As canoas singravam as águas. As tochas incendiavam tudo. Vinte metros distanciavam os visitantes de Santa Isabel. A gritaria, os cantos de ave tinham crescido frenèticamente.
Um "kou" agudo ordenava que os inans tocassem fogo nos montes de palha de buriti. Em um décimo de segundo, línguas de fogo se infiltravam na palha seca e foram se avolumando. A barranca se iluminou. A noite parecia ter desaparecido, os moradores foram subitamente iluminados. Dos olhos de cada circunstante saíam chispas selvagens. O espetáculo se transmitia com todo barbarismo aos presentes. Aquela excitação por vezes custava dominar um berro semelhante ao do índio que ameaçava romper das gargantas.
As canoas deslizavam. Os gritos aumentavam sempre. Como se fosse impossível crescer mais. Valentim ateou fogo nos foguetes. O chiado se confundiu com o gritar infernal. Estouros vários e lágrimas descendo como estrelas despencadas.
As canoas se mostravam à luz das tochas. Quatro remadores fazendo o remo funcionar e o restante de cada embarcação se colocando em pé. Todos vinham nus, pintados e decorados. Muitos traziam aqueles imensos larretôs sobre a cabeça como se fossem grandes caudas de pavão abertas par a par. Eram soberbos exemplares, musculosos, mais musculosos ainda pela luz tremeluzente incidindo e relevando as musculaturas e o bronzeado do corpo recoberto de óleo de babaçu... as ubás deslizavam como se fossem os gritos que as empurrassem, e não os remos. Vinham em fila e quase se tocavam. De longe quem visse, confundiria aquela linha de fogo com a Buiuna lendária saindo de dentro do rio: A Cobra Grande de fogo...
O cortejo adiantava-se para a aldeia. A barranca circundante ia sendo acesa de instante em instante e os visitores não deixavam de ser iluminados pelas tochas.
Todavia o delírio chegou ao auge, quando a primeira canoa encostou na praia do porto dos carajás. De todas as gargantas estrugiam gritos como se a terra fosse rachar.
No alto da barreira num espaço de dez metros, no chão batido, os índios tinham feito uma imensa circunferência e de metro em metro existiam as pirâmides de palha seca, três vezes maiores que as outras. O fogo fora ateado. As casas mais próximas ficaram completamente clareadas. Ninguém se lembrava de que uma fagulha sem importância arremessada por um bocejo de vento poderia fazer da aldeia uma coivara única e diabólica. Ninguém pensava nisso e Kanansiú-ê nesse momento era tão selvagem quanto eles; não deixaria que aquela loucura selvagem e primitiva cheia de cantos pagãos fosse maldosamente terminada. Para tanto não dava o vento que gerava dos corpos dançando em frenesi.
Tudo era luz. E dois a dois os visitantes vinham subindo a barreira. Entrelaçavam os braços e jogavam o corpo para a frente e para trás, dando a impressão que as suas cabeças se deslocariam a cada momento e que a cada momento os imensos cocares e lóri-lóris fossem buscar repouso no chão.
Da aldeia partiam também de dois a dois, com os braços também se entrelaçando respondendo com os próprios cantos da tribo às saudações e louvores dos recém-chegados. Cada qual queria exibir as mais bonitas e caprichadas frases e essas frases muitas vezes eram substituídas pelo grito mais selvagem de uma ave rara.
A fogueira acesa estava coberta aos olhos dos que chegavam por um círculo de índios cuja vestiaria não ia além das penas brancas. Os carajás de Santa Isabel ostentavam sobre as cabeças lóri-lóris de penas de garça branca e o cocar parecia flutuar a cada balanceio do ombro ou da cabeça.
Depois que os guerreiros dançaram e demonstraram suas habilidades estridentes no cantar, vieram os grotescos e os cômicos. Apareciam dançando o bobo e o atacado de loucura. Da aldeia também surgiam essas figuras tentando vencer em gestos e graças. Por vezes eles se tornavam até pornográficos; contudo as gargalhadas rebentavam francas de todos os peitos. Naquela alegria contagiosa, não fora a luz que agora morria e a nudez mal coberta de penas, ninguém diferenciaria o rir do branco dos demais risos.
As fogueiras se extinguiam com os ruídos. Um cansaço momentâneo dissolveu o aspecto da balbúrdia.
Maluá que tinha sido capitão da tribo, e cuja voz era muito respeitada, encerrou aquela parte das solenidades, ordenando que os visitantes se dirigissem para o banquete na casa de Aruanã. Ostentando pequenos fachos todos rumaram para lá.
Uma súbita tristeza invadiu a todas as mulheres; tanto as brancas como as índias. Aquele lugar era sagrado e mulher nenhuma poderia apreciar a festa dos homens.
Naquela noite Maluá não permitiu que os homens lutassem. Os inans de Btondiru e Créran-auá necessitavam repousar depois daquele enorme estirão vencido pelos braços. Entretanto Maluá não ignorava que eles dançariam a noite inteira; que as estrelas tremeriam irritadas no céu pelo som monótono dos chocalhos e as frases mil vezes repetidas. Quando moço na certa ele também não descansaria e deixaria sem eco um conselho semelhante que lhe fosse dado...


Dentro da casa de Aruanã, Kanaú estava se vestindo. Uma ruga funda cortava-lhe a testa quase totalmente. Um atroz pressentimento fazia com que seus movimentos tivessem adquirido pequenas doses de apatia. As mãos pesavam. Os braços teimavam em não obedecer ao que a vontade ordenava. E não era medo. Antes irritação, porque todos os seus cálculos pareciam estar fadados a um fracasso certo.
Enrolou a última saia de palha em volta dos rins e amarrou-a apertadamente para que não caísse na hora da dança.
"Por que não vinha a canoa? O que teria acontecido? Alguma coisa de muito grave ou Iroá adormecera e a canoa se safara sem vestígios? Não, essa hipótese não seria segura, Iroá..."
Sorriu lembrando-se do amigo, do outro lado do rio, embuçado num cobertor tresandando a óleo, que espiaria com os olhos cheios de desejo o iluminar dos fachos. Iroá estaria adivinhando tudo que acontecia, uma hora pelo canto que atravessava a noite e de outras vezes pelo caminhar de fogo sobre cada novo feixe de palma incendiado.
Dikuria reclamou meio irritado:
- Kan-ku! Eu já estou pronto. Você está perdendo tempo!... Kanaú virou-se para o índio que iria dançar com ele. O seu par já colocara a máscara comprida e cônica, recoberta de penas de arara vermelha, e em cujas mãos estavam colocados os maracás.
- Já acabo, Diku.
Apanhou a máscara de palha e colocou-a sobre a cabeça. Armado com os seus dois maracás saiu de casa.
Postou-se diante de Dikuria; fez uma reverência com a cabeça no que foi correspondido; hesitou um momento e chocalhou o ganzá acompanhando o ritmo da cantiga tirada pelo outro. Viraram-se para o pátio de barro batido e começaram a caminhar em pequenos passos obrigando a cabeça das máscaras a irem para lá e para cá, e as grandes correntes de penas penduradas no alto se movimentarem acompanhando a trajetória da cabeça...

Eh! Jacarériê...
Eh! Jacarériê...
Ê ê ê ê ê ê...
Jacarériê... rerâ...
Iêrran...

A música com o seu fascínio selvagem foi esquentando o peito, o rosto e depois, o corpo de Kanaú. Um enlevo gostoso atacava sensualmente, religiosamente sua alma. Nas veias o sangue de índio gritava reclamando os seus direitos. Um esquecimento brando tomou conta de toda a sua existência e nada parecia existir mais forte nele. Algo que o trouxesse à realidade. Somente quando o cansaço o fosse atacando e os membros e o rosto, e também o cabelo, se sentissem empastados de suor, ele voltaria a mastigar o momento presente.
Agora só existia o que na sua frente se realizava: os outros Diasós revoluteando ao seu lado, caminhando rápidos por trás ou a seu lado. Todos cantando religiosamente, invocando Kanansiu-ê que no futuro seria jogado ao esquecimento e descrença. Entretanto, Kanansiu-ê apesar de emagrecido continuava a emanar os seus poderes, principalmente para os velhos da tribo e para as crianças. Esses porque ou não tinham contacto com os missionários, ou porque não acreditavam em nada daquilo que lhes fosse contado...
Três horas de dança. De passos que iam e vinham. De reverências e curvaturas. O corpo começou a ensalguecer-se de suor.
Fizeram uma pequena pausa e Dikuria que era o tirador das canções pensou um pouco para escolher novo repertório...
O pio do jacurutu repercutiu ao longe.
Kanaú desviou o ouvido dos cantares do Aruanã. O pio dolorido gritou no espaço.
- Ei! Diku-ku!... Você ouviu o jacurutu piar?
- Ele piou son-êre...
- Tem certeza que foi muitas vezes?
- Foi. Há muito tempo que ele está piando. Deve ser uma fêmea procurando um macho.
Kanaú disfarçou um pouco e depois comentou para Dikuria:
- Eu não vou mais dançar. Eu vou pro mato porque estou com vontade de fazer arikukre.
O amigo o admoestou sem rancor.
- Kan está cansado. Kan perdeu o costume de dançar.
Kanaú riu, mas por dentro algo terrível se alastrava como garras, apertando o coração. Ele sabia que tudo aquilo era apenas o medo do começo: que depois de iniciado nada o deteria. Nada...
- Diku, você pode chamar Uereá para dançar com você. Ele canta tão bem como eu.
- Já ia fazer isso.
Retornaram os dois à casa de Aruanã.
Dessa vez os seus movimentos tinham adquirido muita elasticidade. Em um instante a sua roupagem de palha e a máscara encontravam-se penduradas na parede.
Limpou com as costas da mão o suor do rosto. Enfiou uma calça e procurou a alma da noite mesmo antes de vestir a camisa.
Distanciou-se depressa. Os cantos de Aruanã diminuíam aos seus ouvidos. Parou dentro do mato e imitou o pio do macho do jacurutu.
Esperou um pouco e a resposta não tardou em vir. Não se enganara. Iroá o chamou.
Encaminhou-se para o amigo.
- Ih! Kan... Como você demorou!... Há mais de uma hora que chamei...
- Não ouvi, Iro. Aconteceu alguma coisa?
- Muita. A canoa chegou...
Um frio gelou o sangue nas veias de Kanaú. Tudo que imaginara se realizava melhor. Muito melhor. Porque pensara em aprisionar a canoa muito embaixo de Santa Isabel, depois de grande correria pelo rio. Nada disso fora necessário.
- Conte, Iro...
- Eles estão aportados na Prainha. Mulher deu à luz. Passou mal. Foi preciso parar aqui em Raumaló-Dessé pra toma penicilina. Vai demora dois dias. Valentim arrumou a penicilina pra ela. Marido já deu...
Agora Kanaú compreendia tudo. O nascimento retardara a canoa. Sorriu e calculou rapidamente. Dois dias. Tinha que agir rapidamente. Porque os homens de Camura armados até os dentes estavam rumando para Santa Isabel. Se tudo acontecesse como previa, poderiam ficar cinco dias de vantagem no mínimo na frente da Polícia. E em dois dias desses cinco, poderiam também ter passado a boca do Tapirapés sem que ninguém estivesse avisado. Isso.
- E Camura, Iro?
- Eu passei na festa dos toris e vi a dança. Camura está bêbado, e muito. Muito. Já não sabe o que faz.
Kanaú deu um tapa nas costas de Iroá.
- As coisas estão acontecendo melhor do que pensava.
A noite estava muito escura para que Kanaú visse a expressão de tristeza nos olhos de Iroá.
- Se tudo continua do jeito que vai, nós ficaremos muito ricos, Iro.
Mas Iroá não acreditava muito naquilo tudo índio rico? E as conseqüências que teriam se acaso qualquer coisa não desse certo? Depois... para que índio rico? Não existia. Ninguém ficava. Ao contrário, cada dia o branco empobrecia mais e acabava com o índio. Cada vez mais aparecia o tori para dizimar com o pirarucu, o porco-do-mato, e espantar até as garças e os colhereiros que lhes forneciam penas para as flechas e para o lóri-lóri...
Acompanhou os passos de Kanaú. O som da sanfona de Chibiu enchia o salão iluminado pelos lampiões e candeias de querosene.
O chiado das andálias e dos sapatos sobre o chão aumentava sempre. Gente se pendurava nas janelas. A música atacava uma polquinha qualquer. Eles vieram se juntando, procurando disfarçar as presenças, até os espectadores.
A alegria morava em cada face. Valentim não conseguia aprisionar na boca as gengivas escurecidas e esvaziadas. Os olhos estavam brilhando, acompanhando o baile. De vez em quando soltava gostosas gargalhadas, espiando Camura que num esforço engraçado teimava em dançar no salão.
Iroá cutucou Kanaú e apontou aquilo.
Kanaú riu e puxou o amigo pelo braço.
Tomaram de novo o meio da noite e foram se esconder no mato.
- Onde você botou as garrafas, Iro?
- Pertinho daqui.
- Preciso trabalhar ligeiro.
- Espere que eu vou buscar.
Kanaú sentou-se e ficou espiando as estrelas no céu. Devia ser entre onze horas e meia-noite. Longe se ouvia o misturar do canto do Aruanã com a sanfona do branco. E eles não se uniam jamais. Sempre as coisas dos brancos se tornavam mais bonitas e superiores. As coisas dos índios enfraqueciam cedendo terreno. Aquela divisão era como ele, que não se ligava a ninguém, que não pertencia a nada... Mudou de pensar, por não ter forças para modificar os traços da vida.
Os olhos acostumados à escuridão divisaram o vulto de Iroá.
- Estão aqui, Kan.
- Me dê uma delas.
Puxou a faca da bainha e começou a destampar a garrafa.
- Segure essa de novo.
Enfiou a mão no bolso e trouxe para fora um embrulhinho.
- Acenda um fósforo.
Iroá obedeceu. Uma expressão de espanto riscou os olhos do índio. Engoliu em seco.
- Onde você arrumou isso, Kan?
- Da farmácia do Serviço. Aproveitei ontem a confusão e saltei a parede. Eu já tinha reparado que o armário da farmácia não tem chave.
- E se derem por falta do...
- Não se assuste, eu tirei só um pouco de pó. Depois coloquei tudo no mesmo lugar e ninguém me viu.
- E se Camura gritar?
- Traremos ele para cá. Essa quantidade derruba até um boi.
- Kan, você está ficando maluco. E se Camura descobrir o veneno na garrafa?
- Ele é louco por bebida e está muito escuro para que se veja alguma coisa...
Teve uma idéia.
- Segure a garrafa de novo.
Iroá obedeceu. Kanaú riscou um fósforo.
- Ponha a garrafa aqui na claridade. Olhe agora.
Iroá aproximou o rosto.
- Você está vendo alguma coisa?
O índio balançou a cabeça negativamente.
- Se fosse de dia você descobriria, mas numa noite assim como esta...
Iroá murmurou lentamente.
- Rebunan-ni... Veneno... Mas você não disse que fazia a coisa com a faca?
- No começo tinha planejado isso. Assim deste modo é mais fácil. Eu dou o veneno e ele que se mata. A vida de Camura depende de uma só coisa: - da vontade do Tenente. Eu tenho certeza que...
A chama do fósforo consumiu-se. Só ficou uma luzinha minúscula que também estertorava.
- Não vá confundir as duas garrafas.
- Não tem perigo. A outra está tampada e nós só abriremos "depois"...


Sétimo Capítulo - Segredo Da Noite

Os olhos dos dois homens e de Tilde se fixaram fascinados no espetáculo.
- Deus do Céu, que incêndio será aquele!
Santa Isabel, de longe tinha se avermelhado toda; o rio brilhava como um espelho vermelho, refletindo tudo. A calma voltou aos três. Daniel murmurou satisfeito:
- Santa Isabel está em festa. Deve ser de índio. Senão não havia tanta fogueira acesa.
O Tenente sorriu. Aquilo era um sinal de sorte. Sá Lua gemeu e foi erguendo a cabeça. Seus olhos ardiam em febre e a cabeça latejava-lhe. Não compreendia o que se passava; não sabia dizer onde se encontrava. Perdera a noção de tudo. O delírio que a acometera fazia com que fosse dizendo coisas. Ela enxergou o clarão de fogo e gemeu de um modo angustiante, enquanto as palavras iam saindo espaçadamente.
- Não... não faça isso... eu não quero ir... Não me levem para o inferno... eu não quero ir...
O Tenente deixou a canoa derivar um pouco e agarrou a mulher pelos ombros. Fez com que ela deitasse novamente no fundo da montaria.
Ela continuava murmurando roucamente: - Não me deixem...
Não deixem que me levem para o inferno... Eu não quero ir para o inferno... Eu...
O Tenente mergulhou a mão na água do rio e refrescou a fronte escaldante. Falou-lhe docemente:
- Sou eu, Sá Lua. Ninguém vai fazer mal a você. Ninguém... Feche os olhos. Tente dormir...
A mulher foi desfalecendo e sossegou.
O Tenente levantou a vista para a proa da embarcação. A luz da aldeia chegava a dar contorno às coisas até ali. Ele divisou o vulto enrolado do filho, no colo de Tilde. Contraiu os maxilares. Nem naquele momento deixava de sentir a mesma repugnância pela mulher. Só a circunstância obrigava que permitisse àquele cipó nauseabundo se enroscar em volta do filho...
Voltou a segurar o jacumã e aprumou a ubá.
Daniel quebrou novamente o seu silêncio.
- É bom isso. A gente pode descer pelo outro lado e em frente de Santa Isabel cortar o rio. Na Prainha a gente fica acampado sem que ninguém veja.
Tudo acontecera conforme as previsões. Daniel procurara Valentim e conseguira o remédio desejado. Valentim tivera que abandonar a festa para vir visitá-los. Insistiu que os viajantes fossem para o povoado. Mas eles não quiseram. O Tenente agradeceu, justificando que não seria bom estar movimentando a mulher. Agora ela já podia deitar-se na rede à sombra do pequizeiro onde esta se armava; um toldo de cobertor a protegia do orvalho da noite. Mesmo as noites de abril eram secas e sadias. Afinal eles eram "garimpeiros" e preferiam sempre o ar livre a que se tinham acostumado há muitos anos...
Valentim sorriu e deixou emprestada com o Tenente a aparelhagem de injeção. Ainda mais, forneceu café e outros gêneros alimentícios que há muito tempo estavam faltando.
Daniel acendeu uma coivara e se embuçou no cobertor velho. Um desânimo se apossara dele. Talvez o medo de serem descobertos, quando meia etapa estava quase vencida...
O Tenente se aproximou; sentou-se perto. Sá Lua dormia sossegadamente. Dentro de dois dias poderiam recomeçar a jornada.
O grande perigo que poderia aparecer era o desânimo. O Tenente compreendia isso. Entretanto, aquela parada forçada poderia ajudar um pouco a restauração das forças.
Olhou Daniel com simpatia. Viu que os seus olhos miúdos se tinham tornado mais melancólicos que de costume. Teve uma idéia. Chamou Tilde, que se aproximou receosa; ordenou que ela também se sentasse junto a eles. Uma expressão de surpresa contraiu todas as rugas da mulher. Estaria acontecendo algo de muito especial para que ela fosse assim admitida.
O Tenente falava em voz baixa para que Sá Lua não despertasse. A criancinha dormia a sono solto, felizmente. Breve ela sentiria fome e era preciso que Sá Lua mesmo doente a amamentasse...
Daniel olhou para Tilde e viu que os olhos dela indagavam a mesma coisa para os seus.
Primeiro pigarreou, depois principiou a falar:
- Eu sei que a nossa viagem tem sido muito dura e que de agora em diante precisamos de mais coragem e de estímulo. Por isso vou mostrar uma coisa que ajuda a animar a gente.
Desabotoou a guaiaca e trouxe-a para a luz da fogueira. Abriu a bolsa interna onde havia algum dinheiro e um volume. Aquele embrulho que roçava mais a sua alma do que a espinha. Trouxe o embrulho para a frente. Suas mãos tremeram. Os olhos de Daniel e da mulher cresceram. Ninguém respirava. Os dedos do Tenente desamarraram o barbante e foram abrindo o pedaço de couro de mateiro que envolvia. O diamante em sua forma bruta apareceu à luz da fogueira. O brilho rebentou por mil lados.
- Isso anima, não? Faz com que a gente crie nova esperança. Cada um de nós poderá ter um futuro melhor em breve...
Girou a pedra na mão e as facetas irregulares refletiam o fogo em lampejos.
Nenhum dos dois dizia nada. Estavam fascinados pela gema incandescente.
O Tenente emocionado acrescentou:
- Assim como está, na forma virgem, poderá dar de mil a mil e duzentos contos. Depois de lapidado, vendido na cidade... - riu soturnamente - irá na certa para o dedo ou para o colo de uma mulher rica qualquer sem dizer o preço de sangue que custou. Depois de lapidado poderá custar, mais ou...
Não pôde concluir a frase. Uma voz veio do mato e terminou o seu pensamento.
- ...mil e quatrocentos contos.
Viraram-se assustados. O medo lhes paralisou qualquer espécie de defesa. Fosse uma cilada e eles estariam irremediavelmente perdidos.
Kanaú saiu da escuridão e se postou diante deles.
Nenhum gesto de surpresa denotava. Somente o sorriso branco e demoníaco rasgava a boca de um lado a outro numa acusação de vitória.
Os três não podiam desfitar o homem que se aproximava lentamente. Sob a iluminação da fogueira seus cabelos adquiriam um tom avermelhado e seus olhos mongóis quase não apareciam.
A mão que sustinha o diamante procurou abrigo, sem força, sobre as coxas.
O recém-chegado aproximou-se mais e sentou-se ao lado dos visitantes cruzando as pernas como só os índios costumavam cruzar.
Olhou ainda mais o diamante na mão espalmada. O Tenente nem sequer pôde fechar os dedos. A gema permanecia indefesa e perdida na sua palma.
- Eu me apresento, Tenente. Sou Kanaú e nasci na aldeia de Raumaló-Dessé.
A angústia se apresentou da mesma maneira nos três. Como sabia ele que o Tenente...
Mas não tiveram tempo de perguntar, porque o índio foi falando com uma firmeza espantadora.
- Temos pouco tempo para conversar, Tenente. Ou o senhor acredita em mim, imediatamente, ou está perdido. - Indicou o diamante com o dedo. Tem muita gente atrás disso...
Um pouco de calma se estampou nos olhos do Tenente.
- Pelo jeito que falo o senhor já adivinhou que estou de posse de tudo que aconteceu com o diamante. Tudo exatamente, como eu esperava, a não ser o atraso de um ou dois dias, por causa, por causa da criança... Quer saber do resto?
O Tenente abanou a cabeça afirmativamente.
- Torno a dizer que o senhor tem poucos minutos para se decidir. Camura está aqui em Santa Isabel. Eu trouxe ele desde Leopoldina. Não pensamos que o senhor fosse uma caça tão fácil ou que a sorte fizesse o senhor parar tão perto de nós. Camura calculava agarrar o senhor na garganta do Tapirapés.
Os lábios que até então se tinham mantido calados se abriram e vencendo a emoção o Tenente perguntou:
- Como você soube que eu estava aqui na Prainha?
- Gente do outro lado, dormindo na praia.
- Ahn!
- Só eu posso salvar o senhor. Se o senhor me der uma parte "nisso".
O Tenente não sabia o que resolver. Poderia confiar no índio? Não estaria sendo vítima de uma armadilha? E se aceitasse? Algo aconselhava arriscar. Olhou o rosto do índio que sorria. Recordou-se de outra pessoa: Mauro Duarte... Estaria novamente se enganando?... Espiou para Daniel e Tilde, mas as suas expressões continuavam atarantadas e em nada auxiliavam.
- Como poderia você salvar-me?
- Camura está bêbedo e ainda não teve ciência de sua chegada aqui. Muita coisa que me ajuda. Veja: - a mulher doente não pode viajar. Talvez dentro de dois ou três dias. Nesse tempo ou melhor, amanhã Camura ficará bom, e o senhor estará perdido. Se o senhor me aceitar na sua embarcação, só terá vantagens. Eu conheço o Araguaia em todos os sentidos. E de agora em diante a viagem se torna mais perigosa. O senhor sabe disso. Em toda parte tem índio inan. Ou nas aldeias ou na beira das praias que aparecem. A chuva não vem mais. O rio desceu e o carajá começa a sua temporada de verão e caça. Só eu posso varar essa região. Mesmo que o senhor escape de Camura, vem uma escolta de dez homens armados descendo o rio à sua procura...
- E o que faria você para me ajudar?
- Ouça, Tenente. Eu vivi muito na cidade. Não quero acabar meus dias por aqui. Não sou branco nem índio. Sou mestiço. Mas há uma vontade danada me chamando toda hora para a cidade. Eu também quero me libertar dessa vida...
- E daí?
- Eu daria um jeito seguro...
Fez uma pausa. Nenhum traço de Kanaú apresentava receio do que ia dizer. Ao contrário, falou pausadamente.
- Eu posso matar Camura...
O Tenente levou a mão até o queixo coçando a barba cerrada. Mais um crime? Mas a pergunta não era bem essa e sim: - mais esse crime ou tudo perdido. Não havia tempo para indecisão.
- E como você eliminaria Camura?
- Isso é comigo. Decida-se, Tenente. Uma coisa eu garanto: todo mundo pensará que foi morte natural... Meia-noite já vai longe e o baile daqui a pouco acaba. Sim ou não?
- Vou conversar um segundo com os meus amigos.
Fez um sinal aos dois e se encaminharam para as pedras do rio. Não demoraram muito. Eles estavam a par de tudo, e por certo concordaram jogando uma cartada perigosa. Talvez até tivessem combinado qualquer coisa que satisfizesse: longe e quando não mais necessitassem do índio, ele também seria eliminado e atirado às piranhas.
Voltaram.
- Aceitamos. Você terá sua parte. A divisão após a venda será em partes iguais. Cada um terá o seu quinhão. O diamante será dividido em seis partes: eu, você, a mulher, a criança. Tilde e Daniel.
- Está bem. Amanhã Camura não verá mais a luz do dia. Pensou lembrando as frases de Camura. Amanhã ele não verá
mais a arara vermelha da manhã.
Rapidamente Kanaú virou sobre os calcanhares e desapareceu na selva escondida pela noite.
Os três se entreolharam. Estavam nas mãos de um mestiço e nada adiantaria fazer. Só esperar. Se fugissem o mestiço daria o alarme. Mesmo isso era impossível tal a fraqueza de Sá Lua. Se não aceitassem o proposto, amanhã seriam descobertos...
O Tenente desceu até à montaria e apanhou as armas trazendo-as para perto da fogueira.


Aproximou-se da janela. A sanfona rangia e subia do chão uma poeira castanha. Olhou de perto, quase penetrando no salão do baile. Valentim estava radiante, e Camura cada vez mais bêbedo teimava em dançar. Era preciso que de vez em quando alguém abandonasse o par e o sustivesse de pé.
Valentim deu com Kanaú espiando tudo. Kanaú abanava a cabeça reprovativamente. Fez um sinal para Valentim. O negro aproximou-se.
- Não é melhor levar Camura para dormir?
- Taí uma coisa que eu achava bom. Mas ele num vai.
- Vai sim. Eu invento uma mentira e ele vai.
Penetrou no salão e tocou nos ombros do Delegado. Ele voltou-se oscilante e caiu nos braços de Kanaú. O seu hálito fedia a cachaça.
- Kanaú, meu amigo!... meu grande amigo...
- Sim, Camura. Venha até aqui...
Foi puxando o bêbedo para fora do salão e levou-o até o terraço.
- Eu tenho uma coisa para você, Camura...
Ele mexeu com a mão num gesto de contrariedade. Falou pastosamente, enquanto a saliva escorria até alcançar a gola da camisa.
- Se é a porcaria da canoa... num quero saber. Hoje eu estou feliz... num quero saber de desgraça...
- Você está sonhando com canoa, Camura... eu queria lhe dizer é que Laureano lhe mandou duas garrafas de pinga. Mas você já está muito bêbedo e Valentim não vai gostar que eu lhe entregue.
- Que é que... sabe... Valentim disso? Ele num tem nada cum minha vida... Cadê meus presente?...
- Bem, se você quer mesmo, eu entrego. Só que estão escondidas no mato. Eu tinha medo que carajá visse e bebesse...
- Vamo lá.
Com dificuldade Kanaú fazia com que Camura caminhasse a seu lado.
Naquele momento Kanaú também não se comovia. Tinha resolvido dar uma chance de vida ao Delegado. Era difícil que ele aceitasse isso, mas em todo caso proporia. Nenhuma sombra de remorso remordia suas entranhas. Camura começara muito antes de ditar a sua própria sentença: "- Temos licença até de matar... Licença de matar. Não fora ele, Kanaú, quem pronunciara isso primeiro." Arrastou o bêbedo pela mata adentro.
- Onde é que tu guardaste a pinga? Parece que foi perto do rabo da madrugada?
- Estamos chegando. Sente-se aqui.
Camura obedeceu. O índio afastou-se, contudo não demorou muito. Riscou um fósforo e mostrou a garrafa aberta ao Delegado. Os olhos de Camura criaram fagulhas de vida.
- É da boa, Camura. Veja!
Riscou um outro fósforo e iluminou a garrafa aproximando-a dos olhos do Delegado.
Os olhos sumidos nas pálpebras inchadas fuzilaram de vontade. Uma espuma de desejo escorreu da boca sem força de Camura. A fala roufenha gaguejou com esforço.
- Me dê, índio... desgraçado... Isso é meu...
Índio desgraçado? - Kanaú riu por dentro com maldade. Chegara o momento de dar a oportunidade de viver a Camura. Mas pelo jeito, ele não a aceitaria.
Suspendeu a mão. Na outra o fósforo estava no meio. Enquadrou na voz uma mistura de cuidado e repreensão.
- Não beba mais, Camura. Você não agüenta! Você morre de tanto beber...
- Me dê isso, índio ladrão!... Isso é meu...
- Eu dou, mas não diga que eu não lhe avisei... Destampou a garrafa e entregou-a ao Delegado. O fósforo se apagava, mas pôde notar ainda que as duas mãos trêmulas agarravam a garrafa com avidez. De um só golpe encostou a boca ao gargalo e virou a bebida.
Acendeu mais um fósforo. Camura tomou três grandes sorvos e foi descendo a garrafa lentamente. Algo sucedia, pois seus olhos foram crescendo assustadoramente. Os dedos se entreabriram e Kanaú rapidamente saltou aparando a garrafa antes que ela virasse no chão.
Com o salto acabou-se a luz. Um urro de dor e um corpo projetou-se duramente no chão. Provavelmente ele rolava apertando o estômago que ardia em brasa.
Um vulto apareceu e falou baixinho. Mas Kanaú não se apercebeu. Por um momento ficara estatelado de emoção. Foi preciso que Iroá o sacudisse pelo braço.
- Como foi, Kan?
- Ele... está parando. Deve estar morrendo.
Só se escutava o barulho das convulsões que diminuíam sempre.
- Cadê a garrafa?
Kanaú foi-se dominando friamente. Licença de matar! Matar para viver! Era isso...
Entregou a que Iroá lhe pedia e determinou estudadamente.
- Lave no rio onde ninguém veja. Cuidado para que a água não arranque o papel da garrafa. Não demore, Iro.
O outro recebeu a encomenda e ainda perguntou ao amigo:
- Você não vai sair daí, vai?
- Não. Tenho que ficar tomando conta.
Iroá caminhou na sombra. Kanaú sentou-se no mato. Perto, tudo era silêncio. Ao longe se ouvia o arrastar gemente da sanfona e o maracá dolente ritmando a noite a seu modo. Levou a vista para o céu. A Lua aparecia fina como uma adaga de fogo. Estremeceu. Aquilo não era bom prenuncio. Amanhã ou depois a Lua trocaria de quarto. Ficou um instante fascinado pela lâmina amarelenta, depois baixou a vista. Não sentia nada. Somente uma curiosidade mórbida em saber se o outro já morrera. De olhar as suas expressões e de descobrir mesmo a posição em que o cadáver se encontrava. Teria morrido mesmo? Pensou em estender o pé para sondar. Mas no íntimo o medo de "feitiço" desaconselhou-o disso. Não era bom pisar em defunto.
A mão impaciente penetrou no bolso da calça procurando a caixa de fósforos. Era perigoso fazer luz. Podia ser que alguém passasse por ali. Não conseguia dominar a curiosidade. Aquilo era mais forte do que a cautela. Não compreendia por que aquela vontade terrível. Quando deu por si, debruçava-se sobre o Delegado e o fósforo brilhava em suas mãos.
Camura ainda não morrera. O rosto, principalmente a boca se contorcia em esgares impressionantes. Uma mancha escura se alastrava nas maxilas e os olhos davam a impressão de que se tornariam vidrados dentro em breve.
Devia ser o momento da morte. Aquilo que contavam sobre aquela hora. Um retrospecto da vida do Delegado estaria se realizando porque os seus olhos tinham adquirido uma dor profunda. Camura devia estar sabendo que morria e que morria de um modo miserável. Porque senão sua boca não teria se entreaberto num esforço horrível, para murmurar enquanto a saliva pegajosa escorria entre as palavras.
- Por que tu fez isso, Kanaú?...
Não quis fitar o homem que o acusava.
Mas a voz se bem que diminuindo, persistia:
- Eu pensei que tu era bom...
Não queria ouvir, mas impossível seria se afastar nesse momento. Porque Iroá se demorava tanto?...
- Deus vai te cas... ti... gá...
A frase não foi terminada. Camura num último esforço queria ouvir a vida. E a vida era aquilo que se acabava longe por intermédio de uma sanfona velha e um maracá se confundindo.
Espiou para o céu. Bem que pensara de manhã aquilo... Um desespero maior e dessa vez o último colou seus olhos para o alto. O que seria aquilo? Os olhos de Valério que choravam ou todas as estrelas estavam se derretendo na noite? Virou-se para o lado e divisou a Lua. A lua nova que seria em breve anunciava desgraça.
Balbuciou sentindo que os lábios não obedeciam quase.
- Lua no... va...
Teve um estertor maior e tudo silenciou.
Iroá se aproximava com a garrafa limpa e vazia. O rio bebera mais uma vez outra prova do crime. Iroá perguntou amedrontado.
- Morreu?
- Já
Passou a garrafa vazia.
- Onde está a outra?
- Tome.
Com a ponta da faca desarrolhou-a. Passou uma porção de líquido de uma para outra. Aproximou-se do morto. Derramou cachaça pelos seus cabelos e rosto. Não sentiu repulsa. "Ele" não sentia também mais nada daquilo. Banhou a roupa, embebendo-a toda e deixou a garrafa entre o braço e o peito do defunto. A outra com menos de metade, abandonou-a em pé cumprindo o destino de uma vela que o morto não tivera.
- Vamos.
- Onde?
- Dançar Aruanã.
- Sim. Você não tá com sono?
- Estou. Mas a gente dançando, disfarça mais.
- A gente dança meia hora. Quando o galo cantar a gente vai dormir na casa de Aruanã.
- É.
Afastaram-se como duas sombras.
A manhã ainda encontrou os sons do maracá. Porém aquilo durou pouco tempo. Todo o barulho e alegria da véspera morreu num instante. A tristeza foi invadindo tudo, dando até a impressão de que nada acontecera de festivo.
A velha Dicorreti apanhava lenha seca no mato, e foi atraída pelos urubus rondando a proximidade. Ela descobriu o corpo de Camura, rijo e frio, com os olhos esbugalhados fixando duramente a vida para enxergar a morte. Levou pressurosa a notícia para Valentim.
A notícia da morte percorreu todos os moradores e num segundo foi transmitida de casa em casa na aldeia. Toda a população de Santa Isabel convergiu assustada para o local.
Valentim ajoelhou-se emocionado ante o corpo do amigo. Engoliu em seco, observando os olhos duros, parados. O rosto tinha adquirido uma tonalidade baça e arroxeada. Em volta da boca um negror circundava os lábios. Todo o morto exalava cheiro de álcool.
Chibiu que afastara gente para se aproximar do defunto, ajoelhou-se perto de Valentim e vencido o primeiro espanto comentou:
- É a terceira vez que vejo gente morrer assim de bebida. Na certa ele bebeu demais e teve uma "congestão cerebral".
Tocou no ombro de Valentim que se conservava num mutismo impressionante.
- Não era melhor a gente mandar carregar ele para casa? Valentim foi se erguendo aos poucos. Friccionou os rins e murmurou pesaroso:
- Um home tão bom! Veio de tão longe pra assistir essa festa e acabou morrendo desse jeito assim... Cumo vai ser dificultoso expricar a morte dele num relatório.
Fixou novamente os olhos vidrados.
- A gente tem a impressão que ele queria dizê uma coisa antes de morre...
Trouxeram uma esteira e quatro homens puseram o corpo dentro. Caminhavam devagar. Os comentários partiam de todas as bocas.
- Eu bem que via que ele tava bebendo demais...
- Ninguém num güenta bebê como ele bebeu!
Já os índios impressionados pelo rosto escurecido e pelos olhos da morte, tinham principiado a espalhar que aquilo tinha sido "reuri", feitiço de branco.
A mesa grande que na véspera tinha servido para o banquete, agora fora coberta por uma toalha de morim grosseiro, para o festim da morte. Como não tinham velas suficientes, colocaram quatro candeeiros acesos, iluminando o caminho das sombras para o morto.
O silêncio habitara todos os recantos do lugarejo. E ele se agigantava porque na véspera até a terra parecia rachar de tanto ruído.
Maria Pomba já se embrenhara pelos matos próximos em busca de cachos roxos de simbaibinha. Era doído morrer sem flores. Pior era a sensação de mal-estar que dava, quando se lembravam que ele morrera só, no meio do mato, sem viva alma para lhe segurar uma vela na mão. Sem uma mão caridosa para lhe fechar os olhos. Se tivesse alguém perto do moribundo não teria deixado que seus olhos invadissem o outro mundo daquela maneira. Se tivesse... não seria preciso a Valentim praticar o que estava praticando. Nunca ninguém tinha visto aquilo, e os índios arregalavam os olhos de espanto. Valentim munira-se de um toco de vela e pingava cera quente aos poucos sobre as pálpebras de Camura para que elas fossem se fechando. Foi uma operação custosa porque a pele se encontrava ressequida. Aos poucos os olhos se cerraram e uma sensação de bem-estar invadiu os presentes.
Os inans de Btondiru e de Créran-auá não quiseram ficar à espera do enterro. Ninguém gostava da morte, principalmente aquela de que eles tinham certeza de que era feitiço.
Uma a uma as canoas foram buscando a correnteza do rio e deslizavam tristes. Sem tochas nem gritos. Só o ritmar do remo batendo na beira da canoa. Os enfeites de pena se encontravam encolhidos no fundo das embarcações.
De tarde iriam enterrar Camura, do outro lado do rio. Santa Isabel não tinha cemitério, e na certa a alma do caboclo se sentiria feliz em ver o seu antigo corpo guardado na terra dos xavantes.
No velório todos os comentários eram semelhantes.
- Parece até que Valentim tava adivinhando.
- Adivinhando o quê?
- Que Camura ia morre de tanto porre...
- Coitado! Caboco bom tava aí...
E o morto surdo aos elogios ia crescendo em méritos na boca de cada um. Bem que diziam que todo morto, depois de morto, cresce...
Kanaú se encontrava em grande abatimento. Valentim levou-o para a beira do rio e quis saber quem tinha arranjado a cachaça para o Delegado.
- Fui eu.
Valentim encarou o rosto do rapaz. Por dentro ia analisando a tristeza e abatimento do índio. Coitado! Kanaú devia estar sofrendo muito. Não sentia muita coragem de remexer a dor do rapaz, mas era preciso, pois aquilo devia constar no relatório.
- Fui eu sim, Valentim, - engoliu em seco.
Valentim emocionou-se com aquela reação.
- Cumo foi que tu arranjou as garrafas?
- Ele pediu que eu comprasse em São Félix. Eu fui lá e falei com Laureano que a bebida era pra ele. Laureano ficou contente quando soube que Camura estava por essas bandas. Tanto que nem cobrou, mandou as garrafas de presente.
Kanaú fez uma pausa e abaixou a cabeça. Depois levantou os olhos entristecidos e fitou Valentim.
- Você pode perguntar a Laureano.
Valentim deu um tapa amigável no ombro de Kanaú.
- Eu sei que tu não tá mentindo. Mas a gente percisa fazê um relatório...
Voltaram para dentro da casa. A todo instante chegava gente e saía gente. O dia passou-se. A mulher de Valentim substituía o querosene das lamparinas que secavam.
Kanaú sentou-se num canto e caiu num alheamento absoluto. Todo mundo tomava aquilo como "dor". De vez em quando espiava o homem na sua frente. No íntimo sentia uma terrível indiferença ante o crime que perpetrara; acabava de descobrir para si mesmo, que nas suas veias corria muito mais sangue de índio do que de branco. Aquela calma se assemelhava muito à de Uaximani que nada sentira quando matou o coronel Basílio... Matara Camura e mataria muito mais ainda para conseguir o brilhante. Só sentia uma vontade no momento: - era atravessar o rio, e ir dormir bastante com o corpo nu roçando-se na areia cálida e macia. Fazia um esforço enorme para não adormecer. O cansaço o distanciava de tudo, roubando do seu ouvido o sentido das conversas.
Chibiu não se conformava. Não era à toa que ele era artista. Seus olhos estavam avermelhados e o nariz de vez em quando escorria. Mil vezes no dia ele comentou:
- Eu sabia que ia acontecer desgraça. Bem que eu ouvi de noite o pio da coruja chamando a morte...
- Eu também ouvi...
- Será que vocês tavam sonhando? Onde já se viu "escuitá" curuja com a baruiera da sanfona e do Aruanã?
- Pois eu te garanto que sim. Eu tava tocando a sanfona, mas ouvi pelos menos treis veis, a coruja chama a morte...
Como não podiam fabricar um caixão, porque não havia tábua, resolveram amortalhar o corpo numa coberta velha. E naquela velha coberta Camura foi depositado no fundo de uma ubá, coberto de flores roxas e amarelas.
Todas as canoas do porto, tanto as dos índios como as dos brancos soltaram-se das amarras para acompanhar o féretro.
Gente que não viera de São Félix para a festa, chegava agora para o acompanhamento.
Ninguém dizia nada. Somente o barulho dos remos cortando as águas quebrava o silêncio e a tristeza. O enterro foi se afastando das barreiras ainda sujas de palha queimada.
Valentim não podia conter o constrangimento.
A pergunta voltava a incomodar a sua alma simples: - "Cumo é que ele viera de tão longe pra morrer ali?..."
Entretanto maior prostração ainda assaltava Laureano que mandara as garrafas de presente. Uma dor malvada o acusava de que ele fora o culpado. Se não fosse ele, o amigo estaria vivo e rindo... Mas depois se desculpava tristemente. Sempre Camura tivera aquela mania de beber muito. Sempre...
A canoa coberta de flores roxas e amarelas ia na frente puxada por dois remos índios. As outras faziam esforço para não perder o alinhamento porque a correnteza do rio, no meio, era bastante forte.
A tarde morria sem surpresa alguma, no seu comum colora-mento. Da Prainha, os "garimpeiros" observavam o estranho cortejo atravessando o rio. O Tenente tinha a certeza de que estava numa situação muito difícil. As garras de Kanaú eram perigosas. O índio cumprira o prometido. E ninguém desconfiara de nada. Como conseguira ele realizar tudo aquilo de uma forma tão perfeita?
Coçou a barba. Breve teria que ter muito cuidado com aquele demônio. Era preciso que eliminassem o índio antes que ele o fizesse a todos. Naquele momento brotava a semente, a primeira semente da desconfiança. E aquilo cresceria sempre até atingir as proporções de novos crimes...
Uma a uma as canoas encostavam na praia branca. Ergueram o corpo numa tipóia e se encaminharam para o mato. A terra ali ainda guardava os resquícios das últimas chuvas. Não estava totalmente seca. Mas com o entranhamento da mata e o afastamento do rio, o solo se ia tornando endurecido novamente.
Pás cavaram a cova de Camura. O corpo foi descido devagar. Ninguém tinha coragem de dizer um discurso. Maria Pomba lembrou-se de tirar uma prece. Todavia Chibiu de olhos vermelhos impediu isso. Só então repararam que ele tinha trazido a sanfona.
Quando a terra encobriu o corpo, e uma cruz tosca foi fincada em cima... quando as flores se enrodilharam na cruz e se derramaram pelo chão... os dedos de artista de Chibiu se movimentaram no teclado amarelento da sanfona, e foi saindo a música. A música que Camura mais gostava:

"A Lua já vem saindo
Iluminando meu coração
Canto moda de viola
Tei-te-re-tê do meu sertão..."

As lágrimas deslizaram pela face gorda de Chibiu. Ele sabia que só depois de morto, Camura escutaria a canção completa. A canção onde a Lua era mais importante que as estrelas...





SEGUNDA PARTE - BIURASÓ (Amanhecer)


Primeiro Capítulo - "Coaru" - Feitiço De Índio "Reuri" - Feitiço De Branco

Custou um pouco a passar a tristeza de Valentim. Durante dois dias pareceu perder forças e sua cabeça pendia tristemente observando sempre o chão. Era sem vontade que badalava o sino chamando os índios para a escola e sem alegria que ordenava o serviço de Santa Isabel.
Por vezes se sentava na beira do rio e ficava espiando calado o mistério das águas. Dali era chamado para comer, mas a comida engrossava na boca e não descia. O mutismo trancou sua alma e seus olhos estavam falando sempre tristeza.
De noite, à luz do lampião (e havia duas noites que assim fazia) rabiscava as palavras do relatório que precisava fazer sobre a morte de Camura. Como se tornava duro e difícil aquilo! Difícil de duas maneiras: primeiro, por se tratar daquele assunto. Segundo, porque seus conhecimentos precários não permitiam terminar logo o trabalho nem usar termos bonitos que todo relatório exigia.
Pensou a princípio em chamar Kanaú para auxiliá-lo naquela empreitada, mas receava despertar no rapaz o golpe que recebera. Apenas precisava de Kanaú para que assinasse testemunhando.
Abandonava o serviço e ia passear na barranca do rio até se acalmar um pouco.
Não fora o ladrar dos cães na aldeia, o choro de alguma criança ou o canto de uma ave noturna, e a vida parecia ter morrido de silêncio.
Durante muitas noites, os carajás não cantariam. Somente com a chegada da lua cheia eles abandonariam o medo, esqueceriam o feitiço e voltariam a cantar para Kanansiu-ê.
A atenção de Valentim voltou novamente para a folha de papel quase branca. A data do relatório era dezenove de abril - dia dos índios.
Depois vinha o nome de Camura que pouca gente conhecia: Quintiliano da Silva tendo vindo fazer uma visita...
O pulso perdia a energia e ele ficava se lembrando de Camura tão vivo. Gritando, olhando a manhã ou dançando bêbedo na festa. Revia seu rosto pequeno, seus olhos se tornando duas riscas perdidas nas rugas da face e sua boca amolecida pelo álcool deixando à mostra a gengiva escurecida e desdentada. - Ih! Camura!...
Foi erguendo a vista para o lampião onde a chama aprisionada levemente oscilava.
Soltou a caneta e fechou o vidro de tinta. Hoje não conseguiria terminar o relatório.
Saiu para a noite. A lua nova mudara de quarto e oferecia uma lâmina de fogo diminuta, no céu.
Caminhou decidido para a Prainha. Resolvera fazer uma visita aos garimpeiros. Saber como estava passando a moça doente.
Seguiu o trilheiro. Estranho como as árvores tão conhecidas que cercavam o caminho, adquiriam um agigantamento na noite e uma maneira agressiva e sombria!
Poderia andar de olhos fechados e não erraria um só passo.
Ao longe aparecia uma coivara acesa. O rio refletia as línguas de fogo. Estavam fazendo café. O cheiro agradável evolava no espaço.
- Prá vosmices, boa noite!
- Chegou mesmo na horinha, seu Valentim.
Daniel remexeu numa tralha e retirou uma caneca de flandres. Encheu-a e entregou a Valentim que já se acocorara junto à coivara como era costume entre os sertanejos.
Ele sorveu lentamente saboreando e comentou na sua simplicidade:
- Coisa gostosa é café quente quando chega o frio do verão!... Olhou os rostos barbados e sorriu.
- Dentro em breve o frio vai esfriar as madrugadas...
Na luz da fogueira os rostos barbados dos dois homens apareciam duros. Todos os garimpeiros tinham aquela expressão parada de pedra. Era gente habituada a esperar a sorte, às vezes a vida inteira sem que ela aparecesse. Os olhos perdiam o brilho, as rugas do rosto comidas pelo sol insensibilizavam suas emoções. Uma paz cruel os atacava provinda do mais perverso desespero. Suas expressões somente conseguiam sair daquele estado quando a alma engolia fogo e o ódio os excitava ao crime. No mais eles eram bons ou ruins naturalmente. Tanto uma daquelas mãos poderia possuir um gesto de bondade como espremer uma faca contra um peito.
Valentim fixou o tenente.
- Cumo é que vai passando sá Dona?
- Ficou boa. Amanhã de tarde nós estamos com tenção de viajar.
- Home, quando dá fé ainda é um pouco cedo!
- A gente não abusa. Mesmo a estrada é grande!
- Lá isso é. Daqui para baixo tem cada estirão e só existe légua grande.
Daniel serviu-se de fumo e passou o rolo para Valentim. Por sua vez Valentim picoteou um cigarro na palma calejada da mão e retirou do bolso uma palha de milho.
- O senhor conhece bem o Araguaia?
- Eu, propriamente, não. Mas Daniel já pangolou muito moço por aqui.
Um mal-estar perpassou Daniel. Não fosse a noite ser tão escura e a claridade da fogueira disfarçar alguém teria observado a contrariedade que o atingira. Porque o Tenente não prestava atenção no que dizia. Por que "quando moço"? O complexo de culpa o amargurava e o receio o atacava a todo instante como se por qualquer coisa fossem descobrir que os últimos anos de sua vida tinham sido amarrados na prisão...
Valentim como sertanejo queria valorizar o Araguaia.
- Esse disgrota desse rio nunca é o mesmo. Cada ano ele troca a rota dos canais. Precisa sê cabôco muito traquejado e conhecido para não encalha a canoa toda hora. Se eu fosse o senhor...
Riu e continuou.
- Bem, num tou querendo lhe aconseiá. Cada um sabe da sua vida...
- Pode falar, seu Valentim.
- Se eu fosse o senhor tratava de um carajá para ajudar na viaje.
- A gente já esteve pensando nisso.
- Dá muito mais segurança. A gente perde menos tempo. Depois num é só isso não. Daqui pra baixo tá cheio de aldeia de carajá. Tem Fontôra, Mato Verde, Grisosti grande, Grisosti pequeno, Antônio Rosa, Jatobá, Tapirapés... Hum... esses danado desses índio não são muito digno de se confia. Tá tudo num estado de meia civilização. Do lado de Mato Grosso os Xavantes tão fazendo época de caça e sem fala dos Caiapós... O senhor quer mesmo um conseio? Pois nunca viaje pelo lado de Mato Grosso, nem durante o dia, nem pela madrugada. Os Caiapós são um demonhos. Não são gente não...
- O senhor parece que adivinha o que a gente está pensando, seu Valentim. Porque a gente tem até um índio que se ofereceu para remar pra gente.
- Quem é ele?
- Um moço chamado Kanaú.
- Coitado de Kanaú! Ele vinha viajando com o Delegado que morreu de bebida!
- O senhor aprova que ele dirija a gente?
- Se ele não pode, ninguém mais pode. Conhece o rio como a palma da mão e índio trabalhador, bom e honesto tá ali...
O mesmo pensamento perpassou o Tenente e Daniel. Mas eles nada disseram. Apenas ao mesmo tempo levaram a caneca de café à boca.
- Nós temos outro assunto a acertar, seu Valentim.
Valentim mostrou-se surpreso.
- Outro assunto?
- Sim. Eu quero saber quanto lhe devo. Da penicilina e dos mantimentos que o senhor arrumou.
Valentim riu.
- Nem pense mais nisso.
- Não senhor. Não fica direito. Afinal...
- Já lhe disse pra não toca nesse assunto. Aquilo era do Serviço e foi bem aplicado. Se fosse eu que tivesse na mesma situação o senhor faria a mesma coisa.
Guardaram um silêncio mais prolongado.
Passos pisavam no trilheiro. Alguém vinha se aproximando.
- Ô Valentim!...
O caboclo respondeu:
- Quem me chama?
Uma voz conhecida se identificou.
- Eu! Bento da Luz!
O homem se aproximava da fogueira.
- Que diabo tu faiz aqui numa hora dessas?
O homem deu boa noite para todos descobrindo-se e mostrando a cabeça encaracolada, onde o cabelo vivia sempre comprimido pelo uso do chapéu.
- Rapaz! temos encrenca novamente.
- Em São Félix?
- Quase. A gente precisa de você, Valentim. Xavante apareceu no rancho de João Irineu. Ele agora aprendeu o caminho.
- Mas desde o ano passado que ele não aparece.
- Sim. Mas sempre que eles invadem o rancho de João Irineu é no fim da seca. Esse ano eles apareceram bem cedo, não acha?
- É o diabo!
Valentim virou-se para o Tenente.
- Tá vendo o que é a vida da gente? É isso. A gente nunca pára. Agora preciso arrumar facas e machado e sair. Vou drumi em São Félix e madrugadinha a gente sai no rumo do rancho de João Irineu.
- Fica longe de São Félix?
O dedo escuro de Valentim virou-se para o outro lado do Araguaia.
- Naquela direção. Seis léguas quase de São Félix.
Voltou-se para Bento da Luz.
- Tu tem cavalo lá?
- Magro, mas tem.
- Eu vou levar o meu selim. Tou sem costume de andar muito a cavalo e preciso da minha bunda inteira...
Riu.
Daniel ofereceu um pouco de café para Bento da Luz. Ele agradeceu e murmurou.
- Aceito, mas em pé, porque a gente tá cum pressa.
- E João Irineu como está?
Bento coçou a cabeça.
- João Irineu é um problema. Não tem paciência com Xavante; apesar de saber que aquelas terras onde fez as roças é de Xavante. Mas você sabe, João Irineu tem um gênio danado e diz que não está disposto a fazer roça pra bugre comer. Por isso é bom você ir com a gente, distribuir uns presente e dar a entender que o índio deve se retirar para sua aldeia.
- Ainda é aquele cabocão mal encarado o capitão deles?
- Aquele mesmo. Da última vez no ano passado quando eles foram embora flecharam um boi e um cavalo de Laureano. E isso não é bom sinal.
O Tenente perguntou:
- Mas os Xavantes não tinham melhorado?
- Quem pode garantir nada? Esse fato de flechar na saída não é bom sinal.
- O pior é que João Irineu não tem paciência. Pensa que o índio tá é cum manha e que sabe muito bem quando tá errado ou não...
- Com essa idéia muita gente já perdeu a vida...
Valentim ergueu-se. Apertou a mão de Daniel e do Tenente.
- Se na minha volta, não encontrar mais vosmicês, desejo boa viaje e querendo qualquer coisa, estamo aqui...
Riu.
- Desejo que sá Dona fique boa de todo.
O Tenente agradeceu e ficou em pé acompanhando os dois homens que se afastavam. Uma comoção lhe tolhia a garganta. Ali estava um sujeito bom de verdade...
Os passos de Valentim foram se perdendo na noite. Agora ele revivera. Suas energias tinham voltado. A vida reclamava ação e o bravio do sertão pedia trabalho nas suas veias. Ia ver o Xavante, na volta, mais calmo, recomeçaria o relatório da morte de Camura...
Kanaú logo apareceu. Os dois homens se confrontavam. Os olhos de Kanaú fagulhavam na doçura surpreendente e sua fala macia a todo instante era interrompida por um sorriso branco.
Conversava encarando firmemente sem resquício de medo algum dos olhos duros e desconfiados do Tenente.
Pelo cérebro do outro homem, a dúvida persistia sempre. Ora diminuindo ora se alastrando desesperada. Fixava o índio em sua frente. E uma quantidade enorme de perguntas o inquietava. Afinal quem era aquele homem? Aquele mestiço desgraçado? O que estava ele preparando acerca do futuro? Como conseguira eliminar o delegado Camura? Que matara o homem nem se duvidava. Ele mesmo não dissera que faria o outro desaparecer naturalmente? Ou fora apenas uma coisa acidental?
Sentiu necessidade de fumar.
Mas os pensamentos se encadeavam naquele rumo conhecido mil vezes. O que pensaria o mestiço a respeito deles? Seria verdade de que ele só ambicionava a sua parcela sobre o diamante ou estudava um plano para consegui-lo completo? Talvez não. A mentalidade do índio não saberia criar grandes fantasias. Se bem que ele fosse mestiço. Talvez por isso mesmo, sabendo que não cabia mais entre os índios lutasse em desespero de causa para conseguir um dinheiro que disfarçasse a sua presença entre os civilizados. E talvez também que entre os civilizados tivesse aprendido a fazer aquelas malandragens... De qualquer maneira não podia confiar naquele homem.
- Se eu fosse o senhor, fazia o que estou dizendo. É muito mais seguro.
- Mas tem uma canoa assim como você diz?
- Tenho certeza, a velha é dona da melhor ubá de Raumaló-Dessé, isto é, de Santa Isabel.
Fez aquela correção propositalmente. Queria ser delicado com o Tenente e somente o caboclo-tori do Araguaia sabia o nome da aldeia em língua inan.
Mesmo assim o Tenente se mostrava indeciso.
- Ela vai cobrar uma fortuna.
- Sim, ela cobraria; se eu negociar com ela, faço mais barato...
- Quanto ela vai cobrar?
- Se o senhor falar com ela no mínimo lhe pedirá três contos.
- Isso é exploração!
- Claro que é!
Os pensamentos pesaram em Kanaú. Caro! Branco filho do diabo! Caro, sim. Mas muito mais barato do que toda exploração que os toris faziam aos pobres índios. Ladrão! E tudo que os brancos tinham roubado dos carajás? Até as mulheres! E as doenças venéreas? Recordou-se de Coxiaru todo encolhido; da mulher de Coxiaru de olhos empapuçados e cheios de febre; das terras roubadas, da caça acabada... Mas dominou-se e seus olhos voltaram a adquirir a mesma calma doçura.
- Se ela quisesse lhe vender a canoa pediria barato. Mas como é ao contrário, o senhor é quem precisa, ela aproveitará a oportunidade de explorar. Para isso eu falo com ela.
O Tenente pensou nos fatos. Era perigoso descer o rio no batelão. Depois que se espalhasse a notícia... todo mundo reconheceria com facilidade o batelão. E de mais a mais, a montaria era pesada e chata, não cortava a água bem e estava superlotada.
Mesmo assim relutava. Precisava economizar porque ninguém poderia garantir o que o destino estava reservando.
- E se ela não vender?
- Vende sim.
- Mas cabe tudo nela?
- Tudo, não sei, mas a gente leva o que for mais preciso.
- Por quanto ela lhe venderia a canoa?
- No máximo dois contos.
Kanaú riu consigo mesmo. A velha Dicorreti não sabia falar muitos números. E o que aprendera com os brancos não resolveria o seu problema de calcular. Na certa pediria "sorodire" e sorodire na diminuta numerologia indiana tanto podia ser um, dez, cem ou mil.
- E que a gente vai fazer do batelão?
- Depois que conseguir a canoa, eu afundo ele e espalho a notícia de que a gente comprou a canoa porque o batelão afundou.
O Tenente coçou a barba. O índio pensava em tudo.
- Com a canoa mais leve a gente viaja mais depressa e tudo está acontecendo com sorte. Pode ser que os Xavantes embirrem e só saiam do rancho de João Irineu depois de seis ou sete dias.
- E que têm os Xavantes a ver com a gente?
- Tem sim. Valentim vai ficando por lá e se por acaso a canoa da Polícia de Camura, chegar nessa semana, não poderá fazer nada até que Valentim volte...
O Tenente ficou emocionado. Como Kanaú pensava nas coisas! Pela primeira vez uma certa suavidade o envolveu.
- Você parece que quer mesmo se ver livre do Araguaia!...
- Quem não queria se fosse como eu?
Baixou a vista e se confundiu tristemente no seu grande problema. Depois tornou a fixar os olhos do Tenente. Sua doçura voltara.
- Se o senhor quiser ir agora, a gente de tarde pode começar a viagem.
- Então vamos logo resolver isso.
Desceu o chapéu sobre os olhos e andou ao lado de Kanaú.
Entretanto como acontece nos gerais, o pessoal, tanto os índios como os brancos, passada a curiosidade dos primeiros dias, não se importava mais com os garimpeiros. Era comum passar um garimpeiro e aportar ali. Para eles a história do Tenente se resumia assim: Um garimpeiro que viajava e a mulher tivera um filho. Só isso.
As casas dos toris eram pobres. Meia dúzia ou pouco mais. Algumas cobertas de telhas que inundavam a casa na chuva e outras cobertas de palha que também inundavam a sala na chuva. Tudo igualmente triste. Cães grandes e arranhados de onça perambulavam pelos terreiros livremente, assustando as galinhas e os patos e se afastando de alguma arara que passeasse no chão.
Penetraram na aldeia. Vozes vinham lá de dentro dos retos e perguntavam o que queria o branco. Kanaú ia respondendo e num instante a notícia foi transmitida pelas paredes ligadas, de rancho em rancho.
Cães magricelas e hostis rosnavam de longe e arrepanhavam as dentuças afiadas. Vozes gritavam de dentro e eles se encolhiam, provavelmente recordando-se das pauladas que poderiam vir além da voz.
O Tenente desconfiado lançava olhares furtivos para o interior dos retos e divisava o que todo tori costumava ver à primeira vista: índios indolentes dormindo nas esteiras, mulheres fabricando esteiras ou potes e uma ou outra menina que fugira ou que não ia mesmo à escola, amoldando bonecos de barro.
Comentários irônicos e risadas invisíveis chegavam até os seus ouvidos. Por isso ele não fixava as coisas. Não se interessava pelos rabichos que eram fabricados com fibra de gameleira e que secavam ao sol juntamente com mosquiteiros encardidos. Queria sair logo daquele ambiente de sujeira. Antes que aparecesse alguém lhe vendendo bonequinhas feias e disformes, banana e outras coisas. Ou que lhe viessem pedir fumo, anzol e dinheiro.
Mas Kanaú preparara o espírito daquela gente porque de fato ninguém o molestou. Talvez dissesse que ele era um branco perigoso ou mesmo espalhasse que ele pertencia à Polícia, desenvolvendo nas mentalidades primitivas o medo de soldado e de Polícia...
Entraram num rancho pequeno, agachando-se para poderem penetrar pela abertura que servia de porta.
Papagaios selvagens fizeram uma algazarra bárbara e fugiram pelo sapé acima, ficando espiando revoltados o homem que vinha com um índio amigo.
Dicorreti fumava aricocó e desfiava fibra de tucum, levou os olhos pequeninos para o tori e saudou-o:
- Dateriambu, tori!
Kanaú cutucou o Tenente.
- Ela está dando bom dia ao senhor.
O Tenente se sentiu mais incomodado. O cheiro do rancho invadia o seu olfato. Tudo fedia a índio.
- Ela não fala português.
- Falar não fala. Índia velha não gosta de falar português. Ela compreende e responde em inan.
Dicorreti soltou o seu trabalho e coçou os seios secos. Riu para ele e batendo com a palma da mão sobre a esteira, fez um gesto para que o Tenente se sentasse...
Depois ofereceu-lhe uma batata-doce cozida tendo cuidado de enfiá-la antes num casco de tartaruga onde havia um óleo ama-relento.
O Tenente segurou o alimento, cheio de repugnância; foi forçado a levá-lo à boca, porque os olhos da índia velha não se desgrudavam.
Kanaú começou a conversar com a velha sobre o negócio. No começo ela só abanava a cabeça negativamente e sua voz rapidíssima se assemelhava a uma ladainha que não tivesse fim.
- Que tanto ela fala?
- É coisa de inan mesmo. Está contando que é viúva, que não tem mais marido. Que os dois filhos não a ajudam em nada. Que se ela quer tem que andar meio dia para apanhar mandioca na roça, porque ninguém faz isso pra ela. Se precisa de peixe fica na barranca do rio e que ninguém dá nada de graça para ela. Que não pode vender a canoa que é a melhor, maior e mais bem feita de todas as canoas de carajá. E que quem fez foi o marido que já morreu e não poderá lhe fazer outra. Portanto, não vende...
A velha fez uma pausa e voltou a passar a mão encarquilhada sobre os seios. Os olhos sem chama estudavam a feição do Tenente.
Kanaú comentou desinteressado:
- Está negociando, valorizando a mercadoria. É natural. Mas eu vou convencer a velha.
Virou-se para Dicorreti e felizmente o Tenente não estava compreendendo nada.
- Ele está precisando, Dicorreti. Sua canoa é a melhor de todas. Não venda barato. Ele pode. É tori e rico...
A índia engrogolou nova ladainha onde o Tenente escutava repetidamente a palavra "sorodire".
- Não seja boba, Dicorreti. Sorodire é pouco. Peça duas vezes sorodire. E ainda mais. Ele é branco e rico e é mau. Olhe só a cara dele. Peça dois vestidos e uma panela...
A velha sorriu acenando com a cabeça.
Depois ela ergueu o braço fino e tocou com a mão o ombro do Tenente.
- Tori auire, tori auititire! Kanaú traduziu:
- Está dizendo que o senhor é bom e bonito!
Levantaram-se os dois e foram conferenciar fora do rancho.
- A velha é sabida. Está acostumada a alugar a canoa para os mariscadores por bom preço. Dicorreti é a velha mais rica dos inans. Pediu três contos pela montaria.
O Tenente coçou a cabeça indeciso.
- É muito dinheiro para mim!
- Mas eu a convenci a fazer um abatimento. Ela concordou em vender por dois contos contanto que ganhasse dois vestidos usados, uma panela com tampa, um espelho e dois maços de fósforos.
O Tenente continuava indeciso. Mas Kanaú o convenceu logo.
- Por menos ela não fará. E se o senhor quiser com outro inan não poderá, porque ela vai contar para os outros e os outros pedirão muito mais caro. Sendo que ninguém tem canoa tão boa...
O Tenente afrouxou a guaiaca e retirou o dinheiro. Os olhos de Kanaú se fixaram brilhantemente sobre o embrulho de couro de mateiro amarrado com barbante. Mas o Tenente não percebeu a força daquele olhar.


Tornava-se difícil um homem sozinho atravessar o Araguaia num batelão pesado. A corrente de descida aumentava cada vez mais naquela parte, porque a baía de Santa Isabel represava muita água. E com o início da grande descida do rio, a água parecia querer libertar-se com mais rapidez procurando outras paragens ou o mar bem longe. Mais duro ainda era ter que arrastar junto ao batelão uma ubá que teimava em seguir as águas e não as remadas de Kanaú.
Todavia conseguiu alcançar a outra margem. Descansou um pouco para logo apanhar um machado e principiar o que necessitava fazer com urgência.
Dobrou o tronco sobre o batelão e começou a rachar as tábuas do fundo. O fio do machado foi abrindo brechas em todos os sentidos. A água penetrava devagar. Do lado de fora da embarcação os peixes miguelinhos se afastavam com o ruído das pancadas e tornavam a se aproximar medrosos.
Kanaú comoveu-se quando viu a água encharcando a montaria com força. Era triste para um ser do Araguaia praticar aquela ação que doía muito mais do que um crime.
Lembrava-se da dificuldade com que o índio fazia a sua canoa. O landi derrubado na selva e muitas vezes arrastado com esforço sobre-humano para junto de uma barranca. Depois a madeira ficaria secando por toda a temporada de um verão. Viria a chuva e o landi continuaria no mesmo canto até que no outro verão seria arrastado para uma praia. E durante dias e mais dias o corpo do índio se debruçaria sobre o tronco dando-lhe a forma sangüínea de uma canoa. E não era só isso, precisava depois ser puxado até à aldeia, retirado da água para fazer a queimação e alargamento do interior. Tudo isso custando meses de paciência e milhares de machadadas.
A água continuava invadindo o batelão.
Quanta gente no Araguaia não necessitava de um bote como aquele para fazer mascateação? Só era arranjar um motor de popa e pronto... Não adiantava nem pensar que aquelas tábuas cerradas e tão bem pregadas, com uma calafetação ainda bem nova levavam muito mais tempo para serem colocadas no formato de um bote.
Urgia aproveitar o mais rapidamente possível o tempo.
Kanaú soltou a canoa presa ao batelão. Empurrou com esforço a proa do batelão que estava fincada na areia. Esta moveu-se e a embarcação furada foi perdendo o pé na água. O canal atraiu o batelão e este foi-se afastando aos poucos também buscando o sossego do fundo do rio.
Kanaú acompanhou o naufrágio, deixando sua canoa derivar junto. Precisava certificar-se que ninguém poderia mais aproveitar os restos da montaria.
As últimas borbulhas ficaram na superfície como se dessem adeus para a selva ou para o céu. O rio se tornou liso como em qualquer canto e ninguém presenciara nada.
Cansado e com calor Kanaú voltou para a praia. Resolvera banhar-se antes de atravessar o Araguaia de volta.
Vinha tão distraído que ao aportar na areia, não notara que por mera coincidência se encontrava em frente ao lugar onde Camura tinha sido enterrado.
Banhou-se. Torceu o cabelo e enquanto o corpo se secava ao sol foi sendo atraído para o local da sepultura.
Não compreendia por que sentia-se chamado até lá. As pernas caminhavam, arrastando-o.
O sol secara de todo as imediações. A terra cavada e amontoada sobre o corpo emurchecia. As flores estavam mirradas e perdiam a cor para se transformarem em garranchos marrons. A cruz tosca amarrada de liana se desfazia.
Ajoelhou-se junto e amarrou novamente a cruz desfigurada. Contudo algo mais impressionante chamou sua atenção. Sobre a terra, marcas frescas de pés estranhos coalhavam o chão. E não eram os pés dos conhecidos que tinham acompanhado o enterro. Reconheceu nas pegadas o rastro dos Xavantes. Eles tinham andado por ali horas antes ou talvez mesmo minutos.
Pensou em Valentim que fora visitá-los no rancho de João Irineu. Lembrou-se no perigo dos Xavantes que começavam a dar mostras de civilização. Agora era a temporada de caça e eles andariam em bandos pelas margens do Araguaia sempre se ocultando como sombras. Não era bom facilitar com eles, porque ninguém ignorava no Serviço que os Xavantes se dividiam em muitas aldeias e não queriam nada com os civilizados.
Rodou nos pés, apanhou a canoa e retornou apressado.


Somente Iroá assistia à partida deles. Os seus olhos mongóis mostravam-se apreensivos e seu sorriso dessa vez morrera na boca.
Vira todos os preparativos. Kanaú trouxera a sua coberta e seus trens.
Os olhos do Tenente tornaram-se sombrios ao depararem com a automática 22 de Kanaú. Interpelou asperamente:
- Onde você conseguiu essa arma?
- Comprei em Goiânia. Está novinha. Posso dar quinze tiros automáticos e 21 menos de repetição.
- Muito bem. Poderá ser de grande utilidade.
Deixou de observar o índio para voltar a interessar-se na canoa. De fato a embarcação era boa e funda. Cabia quase tudo o que tinham trazido e pesaria muito menos do que o batelão afundado.
Daniel que se mantinha sempre mudo comentou:
- É bom a gente sair logo - apontou o sol que já estava baixo - vai escurecer.
- Não faz mal que escureça. Tem um dente de lua bem bom para a gente viajar de noite.
De novo ia recomeçar a tortura da viagem noturna. Somente que agora eles tinham um bom guia, se bem que não confiassem em Kanaú.
Ninguém esquecia que ele prometera que Camura seria eliminado. E Camura agora estava bem misturado com a areia sem poder explicar a verdade de tudo: se morrera de morte natural ou se fora assassinado...
As ordens foram dadas.
- As mulheres vão no meio, sentadas na estiva. Eu sustento o jacuman. Daniel e você vão na proa. Sendo que você vai mais na frente para orientar a viagem.
Kanaú abraçou Iroá com um sorriso e comentou qualquer coisa para ele em linguagem de índio.
Todos entraram na embarcação e Kanaú ajudado por Iroá foi afastando a proa da areia. Em segundos a embarcação pegava a força do canal.
Kanaú sem querer pregou a vista no outro lado do rio, como se se despedisse para sempre do túmulo de Camura. Depois desvirou-se para olhar a Prainha que se afastava e divisar o vulto de Iroá que diminuía cada vez mais. Pensou consigo mesmo: agora é aguardar o futuro e esperar o que tem que vir. Entretanto uma sensação de liberdade enchia o seu peito e fazia com que o seu sorriso esquecido permanecesse indefinidamente.
Saiu do seu enleio para observar.
- É bom a gente atravessar o rio porque dentro de uma hora o sol vai se esconder e poderemos acompanhar a barreira da Cotia.
O jacuman foi levando a canoa para lá. Remavam em silêncio e a embarcação deslizava bem. O Tenente sentiu-se aliviado porque seus braços agora notavam a diferença daquilo para o batelão.
A monotonia das coisas da selva ao entardecer era apenas quebrada por gritos zangados de jaburus, manguaris ou um bando de colhereiros levantando vôo. O horizonte ao longe apresentava sempre praias enfeitando as paisagens. E quando alcançavam uma já o horizonte oferecia o branco de outras. As garças morenas e as garças brancas da noite estavam voando em círculo, procurando nas árvores da selva que marginavam o rio, um pouso acolhedor.
- Aquela sombra ao longe, é a barreira da Cotia - falou Kanaú.
- É a tal barreira que tem três léguas?
- Dizem que tem três léguas, mas tem muito mais. Légua de sertão nunca é do mesmo tamanho.
Remaram mais.
- É bom o senhor ir encostando mais. Porque a gente tem que seguir a barreira. O canal passa bem rente. A gente vai passar entre aquela praia grande.
O Tenente mostrou-se meio indeciso e Kanaú compreendeu o que se passava no seu íntimo.
- Pode ir encostando sem receio. Xavante essa hora não fica na beirada do rio.
O Sol estava quase adormecido. Somente uma pequena arcada aparecia. Dentro de segundos ele estaria posto. A escuridão vinha se avizinhando, não sem antes alastrar o céu de uma vermelhidão entremeada de ouro.
Daniel perguntou:
- O que é aquilo?
- Onde?
- Lá.
Todos olharam o ponto indicado. Tilde quebrou o seu mutismo.
- Não vejo nada.
- Nem eu - acrescentou Sá Lua.
Mas ante os olhos dos três homens algo estranho se realizava. Imensa fogueira caminhava sobre o rio que escurecia. As labaredas eram enormes e caminhavam, saindo da praia e avançando sempre para o rio.
A canoa se aproximava.
A testa do Tenente porejou. As mãos de Daniel se imobilizaram de pavor e os olhos de Kanaú se foram tornando esbugalhados.
Sua boca se entreabriu e uma frase escapou roucamente.
- É feitiço. Reuri - feitiço de branco. Coaru - feitiço de índio!


Segundo Capítulo - A História De Tilde

A canoa sem direção e completamente desgovernada entrou na areia da praia e a areia rangeu reclamando contra o baque. A criança despertou assustada e chorou com força.
A massa de fogo parou um instante e caminhou para a barreira.
Ninguém podia desviar a vista da visão.
Sem sentir Kanaú repetiu o que lhe dissera João Milagroso na barreira de Leopoldina.
- É o garimpeiro que se enforcou no pé de canjirana branca. Quem vê ele fica doido!...
Tilde se revoltou.
- Cala a boca, miserável. Não fique aí dizendo besteira. Dizendo isso, olhou o chão branco da praia que transparecia
na água, para ver se havia arraia pintada. Enfiou os pés na água e levantou-se.
- É melhor a gente tirar essa embarcação, enquanto tem um bocadinho de luz. Senão a gente fica encalhada e tem que caminhar arrastando essa canoa; é perigoso por causa de arraia de fogo.
Daniel foi o primeiro a obedecer àquela sugestão ajuizada. Ergueu-se e imitou Tilde.
Passara o primeiro momento de estupor.
Um ventinho irritante começou a enroscar as águas do rio.
- Será que vai ser banzeiro?
- Capaz de não.
O Tenente e Kanaú já se tinham juntado aos outros para empurrar. Não se podia duvidar que ambos se encontravam emocionadíssimos.
No Tenente o remorso e o medo de que tudo significasse um mau presságio ficavam bulindo com os seus nervos. Em Kanaú, quase a mesma coisa pesava no seu sangue índio: a impressão de que tudo ruim ou assustador era feitiço.
O vento cresceu mais e levantou a areia branca.
- Esse vento daqui a pouco não vai deixar a canoa viajar. Olharam para a barreira. Quase totalmente enegrecida, o mato e as árvores dali se contorciam com ruído.
Não havia jeito. O Tenente desesperado ordenou:
- Vamos encostar na barreira e esperar que esse vento desgraçado passe.
- É bom. Porque assim o nenê ficará mais abrigado, se ele não passar.


Arranjaram bastante lenha para fazer uma fogueira. O vento aumentara assobiando nas árvores e daquela forma iria consumir muita lenha.
A custo tinham retirado uma rede da canoa que era jogada para todos os lados pela impertinência das águas.
As gaivotas gritavam alucinadas nas praias distantes. Armaram a rede para que Sá Lua descansasse com a criança.
- Esse vento só tem uma vantagem: espanta os mosquitos.
- Será que por aqui ainda tinha praga?
- Tu te esqueceste da Prainha? Lá que era lugar limpo, quando vinha o começo da noite se enchia.
Daniel deu de ombros.
- Prefiro que tenha mosquito em vez de índio...
- Não fale assim para não assustar as mulheres.
As chamas da pequena fogueira eram arrastadas violentamente para um lado só e o fogo fazia uma zoada contínua. O mato em volta se tornava negro. Os homens estavam acocorados junto ao fogo. Com o vento que não passava a noite ia ser fria; mormente agora que o verão se anunciava.
Tilde mantinha-se afastada. Os homens não estavam com muita vontade de conversar.
Olhou os companheiros. Sá Lua se embalava quase na sombra. Para ela nada parecia existir além daquele embrulhinho de carne que mal respirava para a vida. Uma certa ternura invadiu Tilde. Tão bom segurar a criancinha! Seus braços guardavam ainda aquele calor que o nenê irradiara, daquela vez que Sá Lua ficara doente, na canoa...
Dirigiu a vista para os três homens que se aqueciam.
Daniel era bom. Um sujeito calado e triste, mas que não fazia mal a ninguém. O Tenente, aquela peste de maldade! Recordou-se dos maus tratos e do desprezo com que a tratava no garimpo. Era como se ela fosse um bicho asqueroso que merecesse apenas gritos e pontapés. Olhou o rosto barbado do homem que se enegrecia mais à luz da fogueira. E por cima de tudo, abusava da força por ser na realidade um medroso e um covarde. Ela sabia que o Tenente estava tremendo de medo com a aparição que eles diziam ter visto. Três homens tão fortes suando frio com medo de uma visão. Eles estavam era cheios de remorso! Todos não passavam de ladrões e criminosos.
Sua vista grudou-se impassível em Kanaú. Suas pupilas tinham crescido com a sombra da noite e seu cabelo com as chamas mais se tornavam avermelhados. Aqueles olhos rasgados onde só pareciam existir pupilas! Olhos de gato mau. Assassino. Ele podia enganar todo mundo, mas para ela nem o diabo podia parecer tão ruim. Se perguntassem qual dos dois homens era pior ficaria indecisa em escolher Kanaú ou o Tenente. Duas feras de maldade. Mesmo se dissessem, se obrigassem a dizer, qual dos dois deveria morrer, apesar de todo mau trato recebido, achava que o índio seria o escolhido. "A mim ele não engana, porque sei de tudo".
Tornou a encarar os três e um sentimento de nojo buliu com sua alma. "Três homens!" e todos três com medo de assombração. Tanto medo que se esqueciam que os Xavantes poderiam estar por perto. Três homens (que se diziam homens porque tinham uma besteira entre as pernas). Com medo. Um, vira uma fogueira caminhando sobre a água. Outro divisara um garimpeiro de olhos que choravam, com uma corda no pescoço caminhando dentro do fogo. O terceiro vira um índio de costas de fogo que caminhava entre as chamas, amaldiçoando-os...
Virou as costas para os três e foi procurar a barranca do rio. Desceu cuidadosamente e ficou ouvindo o vento e o ruído da canoa que dava estrondos secos, batendo com a popa sacudida de encontro à água do banzeiro. A corda da proa amarrada num pau e esticada como se fosse partir.
O vento parecia não querer parar. Mas ela não tinha medo de vento. Não tinha mesmo medo de nada. Seus cabelos lindos arrastavam-se para trás e chicoteavam-se nas pontas. O rio do outro lado se enegrecia de todo. O rio sim. Era tudo de bom na sua vida. Desde pequena se habituara a ele e compreendia tudo que nele acontecia. Se ele estava com raiva fazia banzeiro, se triste enchia-se de água da chuva e tornava-se sujo e enlameado. Quando namorava com a primavera, fazia com que suas margens se vestissem de flores vermelhas, roxas e amarelas e deixava que as flores coloridas se olhassem no seu espelho ou viajassem devagar nas suas águas cantantes. O rio sim! Que mostrava às pessoas amigas o peixe e a tartaruga nadando no fundo de suas águas cristalinas. Que afastava das pessoas que gostava, as buiunas e os demônios do escuro. Por isso não tinha medo dele.
Sentou-se na proa da canoa e ficou enfiando a ponta do pé nas águas revoltas. Como estava morna! Se fosse numa praia iria na certa se banhar. Mas ali, a correnteza era funda e forte e poderia haver piranha.
A nesga da Lua apareceu amarelada. Dentro de mais dias a Lua estaria grande. E se o vento parasse logo, bem que poderiam viajar pela noite adentro. A verdade é que estava farta dessa vida. Farta. Queria era receber o seu dinheiro. Qualquer dinheiro. Não lhe importava que ele fosse honesto ou proviesse de um meio desonesto. Roubado ou ganho com o suor ele funcionava do mesmo jeito.
Um vulto vinha se achegando da barreira. Um torrão de barro desgarrou-se e mergulhou na água.
Fugiu dos seus pensamentos e ficou aguardando quem seria.
- Não tem medo de ficar assim perto do rio? E se um jacaré aparecesse?
Retirou o pé da água e se firmou na canoa.
O mestiço tinha vindo conversar não sei para quê.
Riu por dentro e resolveu fazer uma maldade.
- Pensa que sou como vocês que andam vendo visagem toda hora?
Kanaú se aproximou e sentou-se junto dela. Enfiou o pé na água.
- Está morninha. Bom para banhar.
Engraçado como ele tivera o mesmo pensamento. Aquilo amoleceu um pouco a sua dureza. Afinal podia ser que o índio não quisesse fazer mal nenhum.
- Eu também pensei assim quando cheguei aqui.
Ele virou o rosto para ela e no escuro perguntou amedrontado:
- Você não acredita no que eu vi?
- Claro que não. Pois se eu estava no mesmo lugar e não vi nada. Cadê que Sá Lua viu alguma coisa?
- Você não acredita, mas eu juro por minha mãe que já morreu.
Sua voz tinha se emocionado.
- Juro que vi. Era um velho de barba crescida e toda branca. Seus olhos choravam e no seu pescoço ainda se encontrava a corda com o nó. Ele andava por entre o fogo e olhava triste para a gente.
- Na certa ele estava de olho no diamante...
- Não brinque com coisa séria. Tem gente que diz que quem avista o homem da barreira fica louco.
- Então vocês todos já estão loucos. Nunca vi fantasma que aparecesse de diversas maneiras. O Tenente diz ter visto ele como se fosse um índio grande caminhando entre as chamas. Daniel só enxergou a fogueira andando sobre a água. Como é que pode ser isso? Se todos três estavam juntos e o fantasma apareceu ao mesmo tempo?
- É feitiço. É castigo. Isso não é bom.
Não pensou em discutir com o mestiço. O que eles tinham era a consciência cheia e em breve coisas ruins iriam se realizar. Desde os últimos dias de viagem que notara como o Tenente estava ficando nervoso. Com aquilo que o povo do sertão chamava de febre de solidão.
Achava melhor voltar para perto dos outros. Não que tivesse medo do índio; não tinha medo da vida. A vida para ela só se resumia naquele cabelo bonito que realçava ainda mais o seu rosto pavoroso, amarelento e repugnante. Era melhor ir se sentar onde viesse um pouco de calor da fogueira. Depois limparia o chão e conforme o sono fosse chegando, tomaria a sua posição predileta de enroscar-se, colocando as mãos entre os joelhos. O sono reparador semelhante à água do rio fazia que tudo fosse esquecido...
Ergueu-se. Mas a mão forte de Kanaú pousou sobre o seu braço.
- Onde você vai?
- Dormir. Pode ser que o vento passe e o Tenente chame a gente a qualquer momento para largar.
O braço continuava preso.
- Você sabe tanto quanto eu que esse vento não passará hoje...
Tilde soltou o corpo na canoa, voltando a sentar-se como antes.
- O que você quer de mim, Kanaú?
Era a primeira vez que chamava o rapaz pelo seu nome.
- Não quero nada demais. Apenas conversar. A gente podia bem ser amigo.
- Que lhe adianta minha amizade?
- Pelo menos você teria alguém em quem confiar.
"Alguém em quem confiar?" E era ele quem lhe propunha aquilo. Felizmente a noite não permitia que o índio divisasse nos seus olhos a imensa zombaria...
Guardou silêncio. Estava curiosa até em que ponto ele chegaria.
- Eu vejo você sempre tão sozinha. Se afastando dos outros...
- Que quer que eu faça? A não ser Sá Lua ninguém gosta de mim porque eu sou nojenta por natureza. Então me afasto para não ser maltratada pelo Tenente.
- Você não gosta do Tenente, não é, Tilde?
Teve vontade de dizer que o odiava. Que sua vontade era pisá-lo no rosto com as próprias botas sujas que sempre usava. Aquela angústia contínua que massacrava a sua alma, por ser feia, por ser como era, sem saber por que, que se enrodilhava toda como cobra para atacar quem quer que a tratasse mal, quase estourou naquele momento, pedindo apoio ao rapaz. Sim, odiava o Tenente, de morte. Odiava toda perversidade e desprezo com que sempre fora tratada. Mas para odiar o Tenente tornava-se necessário esmagar o resto dos homens. Todos eram iguais. Perversamente iguais. Por isso talvez Sá Lua a tratasse com uma certa humanidade. Das suas mágoas somente o rio era conhecedor. Por que confiar naquele homem, que além do mais trazia na pele a marca dos índios? Num sujeito aparecido nos últimos dias e que ela bem sabia de quem se tratava e do que era capaz...
- Quem é você, Tilde?
A voz do índio tinha adquirido um magnetismo sedutor. Talvez não a tratasse mal. Quem sabe? Um índio quando se afeiçoava a uma pessoa se tornava amigo como um cão. A jornada custaria muito ainda e talvez...
- Se você pensa que posso ser sua amiga, só porque tem pena de mim, engana-se.
- Pena de você, por que, Tilde?
- Porque os outros me maltratam, porque eu sou feia, porque pareço sempre um bicho imundo...
- Não. Não se trata disso: apenas queria conversar. Saber quem você é. Por que se chama Tilde. Tilde não é nome de ninguém.
Algo se desmoronava dentro dela. Toda resistência, toda muralha criada para se defender, para nunca mais permitir que alguém se aproximasse de sua alma, toda sua defesa petrificada pelos anos de solidão num segundo estavam sendo abordadas. Pela primeira vez na vida, aparecia um ser que se interessava por ela a ponto de perguntar qual o seu verdadeiro nome.
- Está bem. Se você não quiser conversar, não converse. Se quiser ir, pode ir.
Soltou o braço aprisionado.
Mas Tilde permaneceu. Seu íntimo que se havia esquecido das grandes ternuras, acordava-se deliciado. A voz principiou indecisa e trêmula.
- Eu tenho um nome tão bonito. Me batizaram como Maria Betânia...
Nem sabia se falava para Kanaú ou se conversava com os seus segredos mais íntimos. Tudo se transformava. E ela foi falando, falando.
- Maria Betânia! Um nome tão lindo!
Um nome tão lindo para uma vida tão feia. E a vida rasgou-se de fio a fio, no passado. Os comentários eram comuns.
- Credo! Um nome tão bonito para uma menina tão feia!
Seu ponto de partida era Belém. Em Belém acordara para a vida. Ainda se recordava de como fora carregada pelo padre, da beira do Araguaia. O medo da cidade que era grande. O barulho. A luz elétrica. Carros, bondes, ônibus. As ruas eram largas. Quanta gente! O bairro distante. O padre entregando-a para Dona Francisquinha, que era solteirona e tomava conta da igreja. Barata de sacristia. Trancas longas, ombros finos, busto seco de tanto incomodar a Deus com o coração e com os suspiros.
- Maria Betânia?
Os olhos se arregalando atrás dos óculos de aro grosso.
Disfarçou o desapontamento como se pensasse: "Uma menina tão feia com o nome de Nossa Senhora"...
O padre deixou-a na sala e foi conversar no quintal com Dona Francisquinha. Ficou observando a saleta apertada, onde muitos quadros de santos faziam uma verdadeira invasão. Rosas e outras flores berrantes de papel crepom se penduravam pelas molduras enfeitando a glorificação da santidade. E ela não sabia nada daquilo tudo. Impressionou-se com a vela acesa sobre a cômoda defronte de uma imagem desbotada de São José...
D. Francisquinha retornou à sala munida de uma suave bondade e resignação. Recebera de chofre as palavras santificadas do padre: coitada! - pareciam dizer os seus olhos. - Não tem ninguém no mundo.
Tentou passar as mãos sobre os belos cabelos alourados de menina.
- A primeira coisa que temos a fazer é arranjar uns vestidos mais decentes para você. Esses estão muito curtos.
Pela primeira vez também Tilde notou a diferença entre os seus andrajos e a roupa dos outros. O xadrez arroxeado se descolo-rindo dava-lhe um ar maior de miserável e realçava a sua feiúra.
Dona Francisquinha continuava:
- Esses são muito curtos e você não precisa deixar que todo mundo veja essas compridas pernas de perereca.
De noite a senhora se escandalizou quando Tilde ia tirar toda a roupa para se enfiar nas cobertas.
- Deus do céu! Menino é que dorme assim. Menino e bicho. Arranjou-lhe uma camisola em que cabiam três ou quatro dentro. Afogada naquela maré de fazenda, enroscou-se para dormir.
- Como! Você não reza antes de dormir?
A menina arregalou os olhos amedrontada.
- Que idade você tem? Respondeu que não sabia.
D. Francisquinha tomou-se de descrença, abanando a cabeça e agitando as trancas para todos os lados.
- Você deve ter de sete a oito anos. Meu Deus! que ignorância! Como se pode chegar a essa idade com tamanha cegueira!
Fez com que Tilde se sentasse.
- Na sua idade eu até acompanhava a missa pelo Adoremus. Que velha esquisita! Falando uma porção de coisas que ela não entendia. Será que ela não compreendia que seus olhos começavam a pesar e que o corpo pedia sono, depois de tantos dias de viagem incômoda?
- Não sabe nem o Pelo-Sinal?...
- Não senhora, eu não sei nada.
Pegou na mão da criança e foi riscando a testa, a boca e o peito de cruzes enquanto fazia a menina responder as palavras que dizia.
Tilde só sentia aquele cheiro de naftalina que provinha da manga, do vestido, talvez até da alma da zeladora da igreja.
- Amanhã mesmo vou começar a ensinar você a rezar. Papai do Céu não gosta de meninas que não rezam.
Felizmente abandonou-a e foi para o outro lado do quarto em direção de uma cama maior.
- Agora, vire-se para o outro lado porque vou mudar de roupa.
Tilde apressou-se a obedecer. Era muito mais agradável enxergar a parede branca, cheia de buracos e manchas do que a velha que falava coisas estranhas.
Começou a escutar o barulho de colchetes estalando e saias caindo no chão. Estalos nas vértebras e nas juntas. Novos botões fazendo barulho. Outros colchetes. Os passos da velha indo até o cabide atrás da porta e voltando para a cama. O rangido das molas do enxergão. Um suspiro grande. Cobertas sendo esticadas sobre ossos. A gaveta da mesa de cabeceira se abrindo. O livro de rezas desfolhado. Dormiu.
- Bicho feio! Bicho do mato! Calango! Lagartixa! Bruxa!
- Bruxa é a mãe!
- É a sua.
E Tilde se atracava diariamente na escola pública. Com meninos e meninas. Voltava arranhada com as trancas desfeitas, onde a velha D. Francisquinha teimava em aprisionar os seus cabelos. Esconder a única coisa bonita que lhe prodigalizara a natureza.
O padre aparecia e tinha longas conversas no quintal debaixo da mangueira com Dona Francisquinha. Ela se acalmava e de noite vinha cheia de sermões ternos.
Três anos continuou ali. Mas era impossível viver naquela rua. Todo bairro se inimizava com sua feiúra e seu andar deslizante de bicho.
Não havia menino que não tivesse brigado com Tilde, nem menina que não fora arranhada e apedrejada por ela.
Principiou a odiar a humanidade. Ninguém prestava. Nem mesmo os santos que D. Francisquinha venerava. Porque se prestassem teriam na certa ajudado pelo menos uma vez aos seus pedidos. Qual nada. Santo não devia gostar de gente feia. Porque até os negros conseguiam qualquer coisa com eles.
Viveu para dentro. Não podia nem ouvir a fala da velha zeladora. De noite rezava depressa. Deitava-se mais cedo. Porque o sono fazia esquecer tudo. Quando comia não ligava ao gosto da comida e baixava os olhos tristes para o prato como se contasse todos os caroços de feijão que tinham morrido sem virar planta.
Um dia fugiu da aula e foi passear na beira do cais. Ver os navios. Olhar as embarcações que desciam o Tocantins. Num motor daqueles viera lá de cima do Araguaia. Ah! O Araguaia! Rio grande... Sentiu saudade de ficar na beira do rio com os outros meninos do povoado, pescando peixe. Vendo os índios carajás que se afastavam nas ubás pretas, fazendo pescarias de tartaruga. Sentiu saudade de tudo. Até da chuva que trazia a febre e o mosquito. Do sol, do frio, do verão. Do chão duro onde se encolhia para dormir no frio, perto da fogueira pequena. Da palha do rancho que cheirava a coisa velha e ressecada. Do grito dos bichos da selva...
Deu para fugir todos os dias da aula e vagabundear na beira do rio. Quando fosse maior, voltaria num bote daqueles.
Todo tostão que ganhava, todo dinheirinho, pôs-se a economizar para o futuro bem próximo.
- Arrume o que é seu!
Dona Francisquinha estava possessa. Talvez pela primeira vez na vida suas bochechas tivessem conseguido se colorir.
- Eu pensando que você prestava, sua inútil!
A velha descobrira tudo. Suas folgas na escola e vagabundagens pelo cais.
Não adiantava explicar porque ela além dos santos da parede não entendia mais nada. Que adiantava contar o que sentia? Ela lá poderia compreender? Compreender que o cais de Ver-o-Pêso com milhares de mastros enrodilhando as velas, se erguendo para o céu, tinham muito mais vida e cantavam muito mais a beleza de Deus do que as contas rançosas de seu terço? Não. Guardaria aquele segredo tão grande para sua alma de menina feia. Não contaria para ninguém o que sentia ao ver as águas do rio e os barcos balançando ociosamente ou dormindo de vaidade no espelho do rio. O movimento do mercado com milhares de frutas e ervas cheirosas invadindo os espaços e a alma. O cheiro de maresia que vinha do mar e o céu voando com as gaivotas. Tudo livre. Até o cheiro do povo que andava por ali era salgado...
Não tinha muito o que arrumar. Enfiou tudo em desordem numa sacola. Nem foi preciso mudar o uniforme da escola pública. Parou enfrentando cara a cara, no vão da porta, Dona Francisquinha. Seu olhar perguntava com ódio: "E agora, para onde vamos?"
A testa da velha porejou e seus lábios tremeram. Mas tinha que tomar uma atitude. De nada valeram até àquele momento todas as formas que usara para conquistar o coração daquela menina feia e amenizar o seu jeito de bruto desgraçado.
Todavia continuavam as duas se defrontando. A zeladora indecisa. Naquele momento vinha um certo receio da resolução tomada. Receio dos santos e de que o seu céu fosse diminuído por aquilo. Receio de que não soubesse ter compreendido que a sua cruz era aquela.
Tilde não desistia e seus olhos continuavam faiscando. Não perderia por nada nesse mundo aquela oportunidade de sair dali, daquela casa apertada, daquele bairro odioso, daquela escola onde para ela não era o ensino e sim a dor que se realizava publicamente.
"Sim. Vamos. Que espera? Que eu caia de joelhos e lhe peça perdão? Isso, nunca"...
Caminharam. A rua vivia a mesma coisa, na imundície mal cheirosa das casas se encolhendo. Meninos apareciam amarelos, nas portas com as fraldas das camisas amarradas na barriga e coçando o piu-piu. Mulheres conversavam por todo canto. Quando se distanciassem dos grupos comentariam aquilo e na certa agradeceriam ao céu que a levasse para longe.

O caminho não era ignorado: a casa do padre. E ele surgiu gordo, no pijama desbotado onde as listras avermelhadas tentavam persistir. Pudicamente abotoou a gola para esconder o peito cabeludo e também avermelhado, da virgindade de Dona Francisquinha.
Os três se defrontaram. Os olhares caminhavam em triângulo. Não era preciso dizer mais nada, nem explicar. Num último lampejo de esperança, o padre e a mulher fixaram a dureza do rosto magro e feio de Tilde. Mas ela não se comovia. "Idiotas! Que esperavam? Que se desculpasse? Mas desculpar de quê? E se por acaso o fizesse, pensavam que deixaria de fugir da escola e espiar o rio? Nunca. Talvez que dali fosse enviada para um lugar mais perto do rio"...
As bochechas de Dona Francisquinha tremeram. Sua boca acompanhou a emoção. Como se fosse desabar, levou a mão até o rosto e virando-se rapidamente deixou os dois se analisando como duas acusações.
- Quando sosseguei mais, vi que na minha frente estava um homem de pijama com os olhos cheios d'água...
Tilde parou. O vento continuava irritando o rio. Perdera o sono e sentia sede. Tinha falado tanto.
- Não sei por que estou contando tudo isso a você. Nunca falei disso pra ninguém.
- Conte mais. Estou gostando.
Como todo índio, Kanaú ficaria a noite toda ouvindo uma conversa. Mormente quando aquela história se assemelhava à sua.
- Você não está com sono?
- Não.
- Então, espere que vou beber água.
Saltou da canoa e encheu as mãos em concha aproximando-as da boca. A água morna escorria entre os dedos. Ela não se conteve e comentou:
- Que diferença. A água daqui vem toda do Rio das Mortes e é tão limpa e gostosa. Do outro lado do Araguaia, a água ainda está cheia de terra e pesada!...
- Por causa das últimas chuvas.
- Ué! Mas choveu também desse lado. Kanaú riu.
- Quando dá fé é porque o Rio das Mortes é sempre limpo e transparente mesmo no tempo das águas...
Tilde voltou a sentar-se na canoa.
- Quer mesmo que eu conte?
- Se você não vai dormir...
- O sono foi embora...
Embalada pela própria vida, ela não estava ali, conversando com Kanaú para ela mesma. Desabafava e aquilo como primeira descoberta tinha um sabor de aventura que alentava o coração.
Foi contando. Contando. Tudo que achava interessante. Ou mais trágico como era comum ou engraçado que bem pouco existia.
Contou sua nova vida fora das garras de Dona Francisquinha. Toda ilusão que mantivera, pensando que iria se aproximar mais da liberdade, fora afastada. O padre a levara para uma casa de mulheres católicas. Uma espécie de internato, onde outras moças eram tristes e também caladas e nunca contavam de sua vida. Nem era preciso porque todas as origens deviam ser as mesmas. Pareciam mais sombras que se arrastavam sem ruído. Todas se encontravam emagrecidas e baixavam os olhos por qualquer coisa. Uma ou outra que fosse viva e praticasse qualquer turbulência era repreendida pelo olhar mudo e severo de qualquer daquelas megeras que dirigiam o estabelecimento. Do futuro ninguém falava, a não ser um padre cicioso que fazia o sermão aos domingos na missa. Mas o futuro parecia castigado ou sumamente irreal. Como se tudo dependesse do desfastio ou sobras de Deus. Como uma dádiva que tivesse de ser retribuída com juros ao antigo dono.
Tilde não resistia a tudo aquilo. Seu silêncio crescia ao contrário de suas formas de moça que teimavam em atrofiar-se. No dormitório comum as outras comentavam aquilo. Apesar de magras, elas possuíam um busto e como talvez um dia se casassem, aquilo poderia pendurar a boca de um filho. Pouco se incomodava em não ter formas. O desprezo por ela mesma começara desde cedo. Que diferença fazia em ter laranjas ou limões, se ambos não estremeceriam sobre o coração, porque o coração empedrecia-se de solidão e não alimentava a vida?
Estudava e esse era o único contacto obrigatório com as colegas e as professoras. No refeitório observavam silêncio. E a mesa de mármore branco, comprida e fria se tornava mais fria sob os punhos. Impassível um Cristo branco num crucifixo preto, assistia tudo. Tilde tinha gana de tudo aquilo. Nem se importava que as moscas da tarde, iluminando as asas nos últimos raios de sol, descessem sobre o seu prato e sobre o seu rosto. Irritava-se apenas quando elas pousavam sobre os seus cabelos aprisionados. Aprisionados como o Cristo. Fixava a imagem e era atraída por um desejo de maldade: subir na mesa e tomá-la entre as mãos. Então apertaria, apertaria tanto que o Cristo (ria pensando nisso) botaria a língua de fora. Outras vezes fixava o prego enferrujado que sustinha o crucifixo, na esperança que ele se desgastasse e tudo aquilo tombasse na cabeça da vigilante, comendo de olhos baixos na mesa...
E para elas não havia datas. Todos os dias se assemelhavam. Todas as horas eram iguais. Escutavam sem dúvida, a vida de fora. Quando os fogos estouravam, sabiam que o povo festejava o São João. E o Carnaval trazia os sons proibidos do pecado à distância. Natal, todo mundo sabia. As megeras tentavam se tornar doces, como se fossem elas que dessem à luz o Menino Jesus. Os olhos adquiriam uma bondade de fim de ano. Doces apareciam na sobremesa e a Missa do Galo era cantada por fantasmas e não seres humanos.
Um Natal, Dona Francisquinha, a incompreendida e magoada Dona Francisquinha lhe mandara uma boneca de pano. As outras moças, as que possuíam seios, ficaram enternecidas contemplando o presente. Entretanto aquele traste inútil não tinha significado para ela. As mulheres eram tontas mesmo. Que fazer com aquilo? Se oferecesse para qualquer daquelas bobas, elas não aceitariam. Mesmo não poderia oferecer, porque seria uma dádiva e nenhuma daquelas idiotas poderia ser considerada sua amiga a ponto de merecer um presente. Que fazer com aquilo? Teve uma idéia? Pendurou-a na cabeceira da cama, longe do Cristo obrigatório amarrado por uma fitinha vermelha e deixou que a boneca servisse de porta-agulhas...
Poucos eram os passeios e até o sol da rua tinha o significado de pecado. Já moça, como por milagre, saíram para uma visita ao Museu Goeldi.
Esqueceu-se de tudo e viveu! As jaulas das feras de pêlos lustrosos. A pantera negra caminhando nervosa, arreganhando os dentes, farejando a selva distante. Parando para fixar desesperada as moças que também tinham revivido.
A anta surda deitada na terra, respirando como se a terra respirasse.
As aves levantando vôos impacientes para pousar sempre perto. Garças brancas, colhereiros, papagaios barulhentos, curicas indiferentes.
Tilde foi sentindo uma estranha emoção. Pela primeira vez depois que fora aprisionada se encontrava em frente de elementos que beiravam o despertar da infância. Agora não enxergava as garças aprisionadas e sim as margens brancas do Araguaia se enchendo de sol. O rio chamado por ela. Correndo nas suas veias, cantando para o coração.
Sentiu-se tão desesperada que foi preciso segurar o peito. Como se qualquer coisa o fizesse estourar. Depois, levou as mãos nervosas e finas, sempre finas, até os cabelos presos e nasceu aquela vontade de soltar as trancas, desfazer os cabelos num gesto de liberdade.
Foi-se contendo. Dominou-se. Olhou em volta. As outras estavam tão enlevadas que não tinham observado o seu acesso de angústia.
De noite no dormitório revolveu-se febril, por muito tempo. Fechava os olhos e o rio continuava chamando, oferecendo-lhe as garças brancas. As trancas doíam-lhe de encontro ao travesseiro.
Já não era uma criança. Seu corpo de formas estéreis, mesmo assim, a transformara numa moça. Ia longe o tempo em que deixara a casa de Dona Francisquinha. Admirava-se como pudera permanecer até àquele momento.
Não ficaria mais um segundo. Ergueu-se sem ruído. Sentou-se na cama e fixou por um segundo o vulto da boneca pendurada de cabeça para baixo, sobressaindo na semi-escuridão. Só por castigo amanheceria ali, vendo o vestido desbotado da boneca ou o Cristo amarrado pela fita cor de sangue.
Soltou os cabelos e por um momento correu os dedos nervosos por entre a massa sedosa. Aquilo era dela, só dela.
Vestiu-se sem ruído e foi-se perdendo pela sombra. Caminhou pelo quintal à sombra daquelas mangueiras onde no recreio era permitido que se sentassem, mas onde a proibição existia para os frutos.
Não sentia saudades de coisa nenhuma daquilo tudo. O cão de guarda reconheceu-a e veio lamber-lhe as mãos. Também aquele era outro desgraçado. Envelhecera ali e vivia gemendo, atacado de reumatismo. Acariciou a cabeça do bicho que continuava a acompanhá-la. O muro era alto e difícil se tornava escalá-lo.
Riu, enquanto procurava o desejado. Durante muito tempo, na hora dos recreios sonhara com a fuga. Fazia planos e mais planos. Sua vista se pregava no muro e se encaminhava para uma mangueira. Se um dia fugisse seria por aquele ponto. Subiria nos galhos, desceria sobre o muro e saltaria do outro lado. A sombra da mangueira velha e coscorenta, debruçava-se sobre a rua poeirenta e ninguém veria nada.
Seus dedos estavam com um vigor maravilhoso, seu corpo fremia. Suas narinas absorviam o cheiro da noite impregnado no tronco da mangueira. Tudo aquilo fedia a liberdade. Mesmo que tivesse de ser mais desgraçada, não hesitaria em prosseguir.
O cão ganiu tristemente. Sentiu a rua sob os pés. Precisava apenas afastar-se um pouco daquelas paragens. Lembrou-se que tinha pouco dinheiro, mas daria um jeito.
Foi para os lados de Ver-o-Pêso. Lá estavam os barcos. As barracas de castanha. O cheiro de ar, de sal, de rio, de gente viva.
Sentou-se e esperou a manhã. Ao abrir do mercado comprou uma calça de homem e uma tesoura. Tosou os cabelos bem rente e abrigou a cabeça num chapéu de palha. Mais difícil foi arranjar um canto para trocar de roupa, mas isso também não foi impossível. Tornou-se (riu da descoberta) um menino horroroso. Sua pele amarelenta e doentia. Seus quadris descarnados não fariam desconfiar ninguém do seu verdadeiro sexo. Inventaria que chegara de Manaus e quem poderia saber da verdade?
Por acaso aquelas beatas naftalinosas (riu de novo) iriam à sua procura? Mesmo que voltasse espontaneamente, elas não permitiriam o seu ingresso na casa. Uma moça que passou a noite na rua... De agora em diante ninguém falaria sobre ela. Seu nome seria pronunciado aos cochichos pelas outras. A vigilância seria redobrada. Talvez até arranjassem um cão menos velho.
Imaginou o padre comentando com Dona Francisquinha que estaria mais seca e de cabelos embranquecidos nas têmporas, desabafando um pouco do seu remorso e envernizando de novo a sua cruz da vida.
- Fugiu?!...
O padre abanaria a cabeça e abaixaria tristemente os olhos procurando o solo para firmar a sua tristeza.
- Fugiu, sim.
- Eu sabia que isso aconteceria. Maria Betânia era o diabo!
Imaginou a cruz rápida realizada com o dedão sobre os lábios emurchecidos de rezar... Tilde parou.
- Foi assim. Riu com gosto.
- Talvez não tenha sido bem assim. Mas eu já contei tanto essa história para mim que ela foi ficando muito bem feita.
Olhou a noite e o vento não parava. Kanaú pensava na vida da moça. E, curioso como sempre, perguntou:
- Que foi que você fez vestida de homem?
- Procurei trabalho e só encontrei, minto, eu só fui lá procurar. Encontrei num bordel. Numa casa vagabunda da zona. Trabalhei no começo pela comida. Sabe? Eu tinha tamanho pavor de voltar para aquela casa que procurei trabalho nos bordeis. Queria garantir minha liberdade. Nenhum padre lançaria a mão sobre mim, depois disso. Com o correr dos tempos encontrei uma dona de pensão que não era má e contei minha situação. Virei mulher de novo; uma mulher horrível e sem atrativos. Mas sempre há bêbados e marinheiros. Fiquei como as outras e fui andando. Um dia subi o rio em busca dos garimpos. Só isso.
- E por que você sendo Maria Betânia, virou Tilde?
- Você não acha Maria Betânia um nome bonito?
- É.
- Eu também. Não sentava bem com minha aparência. Um dia um caixeiro-viajante me achou tão horrível, tão nojenta, tão vagabunda, que me disse que eu devia me chamar era Maria Escrotilde. Pegou o apelido. Não liguei. Depois foram abreviando o nome e eu fiquei como Tilde. Pra mim é indiferente qualquer nome.
- E o que pensa você fazer com a sua parte do dinheiro?
- Você se admira, vai ver. Mas penso comprar um botequim, uma quitanda, sabe onde?
Não esperou a resposta. Falou sofregamente:
- Nas redondezas daquele bairro. Bem junto de Dona Francisquinha. Um botequim sempre dá dinheiro e eu quero ter tudo que nunca tive. Vou até poder ler de noite, antes de dormir.
- Mas Dona Francisquinha já deve ter morrido.
- Não estou ligando isso. É uma coisa. Não sei explicar. É uma vontade de morar ali de novo. Sim. Talvez isso.
- Como foi que você veio parar nessa canoa?
- Estava no mesmo bordel que Sá Lua. Você sabe que ela também foi criada num orfanato? Talvez por isso tivesse pena de mim e me levasse com ela quando o Tenente montou casa. Sá Lua viu que como mulher eu não ganharia mais a vida. Tudo duríssimo...
Levantou da proa. Esfregou as nádegas.
- Êta madeirinha dura!...
Kanaú imitou-a.
- Vamos dormir. Que ainda temos um pedaço bom da noite.
- É.
O vento não parava mesmo. Os cabelos soltos de Tilde esvoaçavam de novo para todos os lados.
Subiram a barreira.
Os passos estalaram sobre as folhas secas.
O Tenente e Daniel acocorados junto às achas acesas da fogueira observaram a chegada dos dois.
Nos olhos escuros do Tenente perpassou uma chispa de maldade.
- Porco! Só mesmo um índio procuraria uma mulher dessas!...
Mas os de Daniel tinham adquirido uma suavidade inusitada!
- Ele é moço. Tanto faz!...
Tilde enroscou-se num canto. Trouxe a coberta sobre a cabeça e adormeceu num instante.


Terceiro Capítulo - Os Xavantes

O amanhecer não trouxe diferença alguma. A luz do dia vinha enfear mais os homens e embelezar a vida. Parecia que a luz fora feita para a natureza e não para os mesmos homens. Com inteira indiferença a terra se realizava total. Se precisava de vento, tinha vento. Se necessitava de chuva, banhava-se toda. Enchia-se o rio quando queria encher e vazava quando bem entendesse. Por isso o céu se pintou de uma só cor - azul. Azul-claro lavando todo o firmamento. Não havia canto que não fosse dominado pelo azul. Nem uma fímbria branca da mais diminuta nuvem aparecia. A natureza precisava assim, daquele azul todo. E o vento não parava. Vinha de toda parte. Surgia de todo canto. Como se fosse dono de tudo. Como poderia ventar se não havia uma nesga de nuvem pelo céu? Daniel falou:
- É o vento Geral.
Os olhos do Tenente, rancorosos, fitavam o rio se contorcendo todo como uma cobra imensa se banhando. Maldição! O Geral chegara. Justamente na hora mais inapropriada. Quase o fim da viagem. Teriam que se arrastar por pedaços, aproveitando momentos em que o vento não se manifestasse tão agressivo. Faltavam menos de trinta léguas para atravessarem o grande perigo: a garganta do Rio Tapirapés e no entretanto um dia fora gasto sem que tivessem andado uma légua e meia. Diziam que aquela maldita barreira da Cotia estendia-se por quase quatro léguas. Desse jeito quantos dias levariam para vê-la pelas costas? E se o vento não parasse nunca? Um desespero maior brotou na sua ansiedade. Mas o rio continuava indiferente e o vento soprava sobre as árvores e os arbustos, afugentando para bem longe as curicas e maracanãs. Distante, nas praias abandonadas as gaivotas desovavam.
- Vento filho da mãe!
Olhou de novo o rio e o céu azul ameaçador. E nenhum desses elementos respondeu ao seu desabafo.
Daniel retornou para junto da fogueira, trazendo do rio uma vasilha cheia d'água. Arrumou umas brasas e esperou que a água fervesse para fazer o café.
Sá Lua aproximou-se do Tenente e alisou os seus cabelos emaranhados.
- Precisamos ter paciência. Irritado ele respondeu.
- Paciência! Sim! Paciência. Como se a Polícia que vem atrás da gente vá ter paciência!
- Se a gente não pode viajar eles também não poderão.
Era uma lógica justa, porque o Geral não ventava só naquela parte do rio. Mas se por acaso a Polícia tivesse arranjado um batelão a motor? Ou mesmo uma grande embarcação que sofresse menos o perigo de uma virada com o banzeiro?
Pensou no batelão afundado. De que adiantara aceitar o conselho daquele mestiço idiota?
Sá Lua fitou o rosto do homem. O sol bronzeava e aumentava todas as suas rugas. Seu rosto duro parecia cortado por fundas cicatrizes. A barba negra avolumava-se fazendo que seus olhos escuros adquirissem aquele brilho de ódio doentio. Assustou-se com aquela expressão.
- Você não pode ficar assim. Quem está nessa canoa, veio porque quis. Todos sabiam que estavam arriscando a vida. E ninguém culpa você pelo que está acontecendo. Nesse caso, culpada de tudo seria eu. Não fosse a criança...
O rosto do Tenente amenizou-se um pouco e ele ergueu-se, tocou no ombro da mulher, sem dizer uma palavra. Somente sorriu triste.
Daniel continuava agachado, pronto para fazer o café. Levantou os olhos para o Tenente que chegava.
Comentou sem alterar a voz:
- Esse danado desse vento vai custar a passar. É bom que a gente economize a carne que é pouca.
Não recebendo resposta, voltou a fixar a atenção sobre a água que começava a borbulhar. Mas não deixou de sugerir.
- Com esse vento, ninguém pode caçar. E quando puder... não sei se é bom chamar a atenção dando tiro. Quem sabe se o índio podia pegar algum peixe. A gente não tem anzol, mas ele trouxe arco e flecha.
- Vou falar com ele.
Chamou Kanaú e expôs o que queria.
Kanaú riu suavemente.
- Vou tentar. O rio está bravo, escurecendo a água. Mas quando dá fé, mais pra cima, pode haver algum canto que não esteja tão arruinado. Pode ser também que eu descubra um cardume seguindo o rio.
Deixou o Tenente e encaminhou-se para o rio. Tilde acocorada lavava umas panelas sujas.
Kanaú entrou na canoa. Retirou o arco de pati. Alisou-o. Fora presente de Iroá. Apanhou duas flechas.
- Onde você vai?
- Vou ver se pego algum peixe.
Os olhos da mulher estavam súplices.
- Deixe eu ir com você. Acabando isso aqui e é pouco, não tenho o que fazer.
Calou-se e recomeçou.
- O Tenente me odeia. Não posso ficar o dia inteiro aqui na beira do rio. Você sabe que se eu me aproximar ele fica pior...
- Vamos. Eu espero.
O sorriso feio balançou os lábios sem vida e pendurados da mulher. Suas garras contorcidas trabalharam com mais pressa na panela.
Ouviu-se o barulho da água penetrando no interior da vasilha.
- Pronto.
Ela emborcou o panelão na areia.
- Está limpo.
Ergueu-se, alisou a saia que estivera soerguida e presa entre as pernas. Jogou os cabelos para trás e apertou mais o cinto de couro cru que sempre trazia em volta da cintura.
Subiu a barreira e caminhou ao lado de Kanaú, naquele seu feitio contorcente de andar.
De longe o Tenente viu aquilo e murmurou apertando os dentes.
- Bonita parelha de porcos!
Daniel levantou os olhos e observou em silêncio os dois penetrando no mato.
Tilde caminhava alegre. Nada importava. Sentia o vento sobre o corpo e aquilo dava uma sensação gostosa. Os pés estalavam o mato seco. Tudo se emaranhava, mas ela caminhava bem. Bem melhor do que quando fugira daquela casa e virará homem. Naquela época, usava tanto alpercata que a sola dos seus pés ficara fina. E quando se transformou em homem fora obrigada a andar descalça nos primeiros dias. Parecia sentir agora ainda a dor das machucaduras...
- Que bom que o Geral chegou!
Kanaú comentou.
- Vai atrasar muito a viagem.
No íntimo ele sabia o que a mulher sentia naquele momento. Ela era como ele, e ele como todo bicho do Araguaia. O Geral chegara! Uma festa de alegria para todos da beira do rio. O vento morno não só alisaria as costas dos índios como a plumagem das araras, como o dorso esverdeado do camaleão que comia broto de imbaúba, como o casco quadriculado de riscas avermelhadas do tracajá ou o costado do jacaré velho e coscorento que procurava a praia deserta para aliviar o seu frio.
Hoje em todos os povoados do Araguaia a criançada exultaria gritando: - O Geral chegou! O Geral chegou! O carajá sorriria com alegria para Kanansiu-ê, cuspindo para o céu e benzendo o rio que secava:
- Uêrá, a seca, vêm com o vento que vai trazer o grande frio. Inan vai fazer canoa bonita e pescar tartaruga no Rio das Mortes...
E passado o vento a canoada preta invadiria as águas dos Xavantes. As mulheres brancas e os velhos iriam comentar como sempre a bênção do Geral: - Agora ninguém mais terá febre. Maleita acabou por uns tempos! O Geral vai trazer o frio e o frio vai mata a praga da muriçoca...
Caminhavam com cuidado, bordejando o rio, penetrando na mata. Nem um pio se escutava na selva. Ao longe o grito desesperado das gaivotas repercutia fúnebre no infinito das praias.
O ruído dos passos se perdia na voz do vento que uivava e contorcia tanto as garras dos cipós como a ramaria seca e quebradiça.
De repente os dois pararam ao mesmo tempo. A imobilidade se alastrou pela face de ambos. A sombra da apreensão aguçou-lhes o olhar.
- Escutou, Tilde?
- Sim.
- É um motor.
- E vem bem longe.
Somente um ouvido muito experimentado poderia ter percebido aquele barulho no meio de tanto vento.
Kanaú se acalmou. Suas expressões endurecidas se amenizaram.
- Vem longe. Vai demorar a passar pela gente. Somente de noite.
- Então não se pode fazer fogo hoje. É perigoso.
- É perigoso não somente pela gente que vem do rio, mas também...
Kanaú abaixou-se no chão e afastou umas folhas secas. Algumas marcas de pé permaneciam frescas no chão...
- Eles...
Tilde fitou aquilo com indiferença.
- Os Xavantes andam por aqui.
- Então é melhor a gente caminhar sempre perto do rio. Os Xavantes nessa época estão fazendo caçada. Vamos.
Ergueu-se e caminhou. Guardaram silêncio. Só o vento permanecia na folhagem.
Agora os dois andavam evitando qualquer ruído e com o ouvido mais alerta.
Longe, muito longe o ruído do motor voltou a funcionar. Tilde comentou:
- Estão ainda muito longe...
- Pode ser que não seja gente da Polícia.
- Mas pode ser também que seja gente que traga a notícia do roubo.
- Ah! Isso pode...
Somente ao entardecer regressaram ao acampamento. Achegaram-se à beira da fogueira. Tudo se tinha transformado em cinza. Algo de estranho havia acontecido.
Tilde soltou a fileira de peixe no chão. Os dois se entreolharam significativamente. Correram em direção à barreira e desceram para a praia.
O Tenente estava deitado no colo de Sá Lua e foi soerguendo a cabeça quando os dois se aproximaram. Seus olhos fagulhavam de ódio. O que impressionava era a cabeça envolvida num trapo esbranquiçado onde se viam nódoas vivas de sangue.
Antes que eles indagassem qualquer coisa, sua boca se abriu num ricto de maldade.
- Foi ele. Aquele filho da puta em quem eu confiava tanto. Fez uma pausa e recomeçou.
- Ele é como qualquer de vocês, não presta para nada. Ergueu-se meio entontecido e levou a mão à cintura.
- Estamos perdidos. Ele foi mais esperto do que nós. Olhem. A cartucheira apresentava-se entreaberta...
Tilde levou a mão à boca e conteve o grito. Estrangulou a emoção com uma única palavra:
- Diamante!...
- Sim, sua imunda, o diamante...
Acalmou-se mais e contou o que acontecera. Tinha vindo buscar carne na canoa e quando se abaixara sobre ela remexendo as tralhas, uma sombra pairara sobre seu corpo. Desvirou-se rapidamente mas não tão rápido para aparar o golpe com um remo sobre sua cabeça.
Sá Lua o encontrara emborcado junto à embarcação. Felizmente não caíra dentro d'água, senão as piranhas teriam dado cabo dele.
O Tenente afivelou de novo a cartucheira na cintura e ajeitou o revólver sobre a nádegas.
- O idiota deve ter ficado louco, porque nem sequer pensou em levar a arma e as balas. Apanhou apenas o embrulho do diamante.
Kanaú comentou.
- Pior seria se ele tivesse levado a canoa e deixasse a gente ilhado nessa barreira.
Os olhos de Sá Lua se grudaram na face impassível do mestiço. Nem um traço demonstrava espanto ou angústia. Num momento daquele de grande emoção, numa hora dramática em que ia por água abaixo tudo que lhes poderia garantir o futuro, ele raciocinava com calma e absoluta lógica. Um tremor agitou-lhe o corpo. Só agora pensava bem nas palavras de Kanaú. Se Daniel tivesse roubado a canoa como iriam eles se arranjar naquele fim de mundo? A criança com poucos dias de vida e a solidão e a fome rondando a todos...
Tilde arriscou uma palavra.
- Ele não levou a canoa porque não tinha força de arrastar sozinho...
O Tenente olhou-a com ódio. Tilde afastou-se sem dizer mais nada.
O Tenente então sentou-se na beira da embarcação. Ficou remexendo a areia com a ponta das botas, enquanto o vento que não parava nunca, balançava a ponta ensangüentada da atadura que envolvia sua cabeça.
- Nem tudo está perdido.
Todos se viraram para Kanaú.
- Ele não poderá ir muito longe.
O Tenente pesquisou-o com uma certa esperança no olhar.
- Em que direção ele fugiu?
O Tenente indicou a selva e murmurou uma única palavra.
- Lá.
- Ele não poderá ir muito longe, tornou a repetir Kanaú.
- Como você sabe disso? Por que tamanha certeza?
- Eu sei. De uma coisa que ele não sabia: Os Xavantes estão acampados aqui por perto. Acampamento de caça.
O Tenente ergueu-se rapidamente. Agora nem parecia o homem abatido não só pela agressão como pelo desânimo.
- Então ele está imprensado entre nós e os Xavantes. Você viu alguma coisa?
- Encontrei pegadas deles. Nós poderemos agarrar Daniel... Mostrou com a mão espalmada o Sol que ainda demoraria para desaparecer.
- Temos uma hora para ir atrás dele.
Uma nova vida apareceu no Tenente. Seus olhos negros tinham readquirido o brilho maldoso.
- Então iremos logo.
Kanaú apanhou o rifle 22 e examinou a arma demoradamente. Encheu todo o depósito de balas longas e olhou significativamente para o homem.
- O meu está em ordem.
- Eu levarei apenas o revólver, para não atrapalhar muito na selva.
Sá Lua nada disse. Mas o medo reviveu dentro do seu peito. Os dois homens iam abandoná-las ali. Podia ser que outros Xavantes viessem. Podia ser que os dois homens não voltassem mais. E ficariam as duas. As duas mulheres indefesas e a criança. Não quis perturbar o Tenente com o seu terror. Os homens precisavam de calma e coragem...
Limpou o suor que corria aflitivamente sobre as sobrancelhas. Um medo maior assomou-lhe. Por que aquilo? Tudo tinha corrido bem até alcançarem aquela maldita barreira. Começava a acreditar em feitiço, embora lutasse intimamente para combater qualquer superstição. Entretanto depois que os homens viram o fantasma da barreira o vento tinha aparecido... Agora Daniel praticara aquilo...
Observou os dois que se preparavam para perseguir Daniel. Uma última pergunta e dessa vez mais terrível rasgou sua alma. E se?... Olhou o índio com medo. Medo da descoberta que fizera. E se o índio matasse o Tenente?...
Mas não teve tempo de transpirar a sua dúvida, porque o Tenente se aproximava dela entregando uma carabina.
- Vocês duas ficam aqui perto da canoa. Têm munição à vontade. Quem quer que se aproxime, toque bala.
Chegou-se para Tilde que pareceu se encolher mais ainda.
- E você, sua vagabunda, se abandonar Sá Lua e a criança, quando eu voltar, atiro-a para as piranhas...
Olhou para Sá Lua com aquele jeito de ternura que só para ela sabia ter. Sua voz suavizou-se.
- Fique calma. Nós voltaremos assim que for possível.
Sá Lua ficou parada de braços caídos, como se a força a abandonasse toda. Seus olhos iam se molhando em proporção que os dois homens se sumiam na barreira e penetravam na selva. Ela sabia que um deles não voltaria mais. Agora estava certa da maldição, certa de tudo. O demônio da selva e da loucura principiava a agir. A alma daquele desgraçado diamante, que custara suor e vida de quem o achara, que trazia na sua sombra as garras da cobiça, fedia a fogo e enxofre. Um dos dois, talvez retornasse, trazendo nas mãos a pedra bruta. O mais esperto talvez. E talvez os dois. Mas se isso acontecesse era para que mais tarde houvesse outra tentativa de destruição e morte. Agora cria em fantasmas e se lhe contassem qualquer espécie de bruxaria, não teria mais forças para duvidar.
Os homens desapareceram de todo. Criou ânimo e alisou o cabelo que escorregava para a fronte, empurrado pelo vento. Chamou Tilde e subindo a barreira foi buscar a criança para trazê-la para a praia. Fez em silêncio diversas viagens para o lugar onde estiveram acampados, recambiando todos os trens para junto da canoa. Só então levantou os olhos para o céu e reparou que o sol ainda levaria uma hora para se deitar.


- Ainda temos quase uma hora para andar com a luz do Sol... O Tenente não respondeu. Irritava-o aquele vento que rondava por toda parte como cúmplice do azar.
Kanaú caminhava na frente olhando cada pedaço de selva que pudesse denunciar a passagem de Daniel. De quando em vez, onde o terreno guardava uma lembrança escorregadia da chuva, um rastro aparecia. Dentro em pouco a selva desapareceria e eles iriam desembocar numa planície. Sempre era assim. A mata que parecia compacta na margem do rio, aos poucos diminuía e o campo ainda inundado, todo transformado numa grande lagoa rasa, rebentava numa onda imensa de capim e de pequenas árvores formando clareiras.
- A mata vai acabar.
O Tenente não respondia, engolfado de rancor e medo. Sim, medo. Ele tinha medo. Agora, a fuga de Daniel adquiria proporções gigantescas. O pensamento não o abandonava por mais que não quisesse pensar. O roubo do diamante parecia uma coisa longe, quase sem importância. O essencial era que voltassem com vida para o acampamento onde ficara a mulher com o filho. Seus ouvidos transformavam qualquer som em passo; temia a qualquer momento se ver cercado pelos Xavantes. Cada sombra na mata, cada ruído, provocado pelo vento no arvoredo, cada movimento invisível da selva que se realizava indiferente aos homens, o punha sobressaltado. E depois vinha o medo maior de que os índios derivassem até o acampamento e reduzissem as duas mulheres e a criança a um montão de carne ensangüentada. Muitas histórias dos Xavantes terminavam sempre daquele modo brutal. E como poderiam as duas se defender? Nesse instante um pouco de confiança e era talvez a primeira vez que isso acontecia - confiava naquela mulher horrível que se chamava Tilde. Ela se defenderia. Mas se os índios insistissem muito?...
- Acabou...
O Tenente arrepiou-se. A selva se acabara e o campo dominava tudo. O capim verde se tornava avermelhado com o sol que começava a incendiar o poente. O vento varria a campina de lado a lado como se deslizasse sobre uma onda interminável. Ao longe, pequenos grupos de árvores desequilibravam o comum da paisagem. Mosquitos vorazes invadiam os olhos e os últimos tatuquiras do dia teimavam em penetrar dentro das pálpebras.
- Acabou a mata.
O Tenente continuava parado. Virou-se para Kanaú.
- E agora?
- Estamos na pista certa. Ele não poderá ir muito longe. O lago não demora muito a acabar. Ele só poderá ter ido na direção das árvores para se abrigar.
Enfiaram os pés na água morna e enlameada. A água escura penetrava nas botas do Tenente fazendo um ruído borbulhoso. Ele espiava aquilo e sentia que a água secante a cada dia de sol, reclamava pelo sono calmo da morte, que os homens interrompiam. Tudo era morte. Tudo. Lembrou-se do homem da barreira caminhando entre fogo. Acreditava que ninguém teria um fim feliz naquela desgraceira toda. Rilhou os dentes relembrando a figura de Mauro Duarte, sorrindo, movimentando com os dedos o cavanhaque pontudo.
- "O senhor merece uma vida melhor..."
E a vida melhor era aquela, o crime, o roubo, a fuga, a cobiça e um diamante cruel que fugia entre sangue, de mão em mão. Tudo era morte, voltou a pensar no homem da barreira e pareceu escutar a voz de Kanaú, exatamente como naquele dia:
- "Coaru" - feitiço de índio! "Reuri" - feitiço de branco!... Espantado reparou no índio que seguia um pouco à sua frente, mas ele não dissera nada, nada. Ao contrário, seus traços atentos, tinham adquirido uma mudez sombria. Sua vista não podia se despregar do chão, onde uma pista surgiria em breve.
Um ódio mudo riscou outro plano de maldade no seu cérebro. Bem que poderia matar o mestiço ali. Bastava erguer o revólver e disparar. Ninguém descobriria o corpo e os urubus do céu no dia seguinte cumpririam a sua missão. Mas como disparar? Os Xavantes andavam por perto e depois? Como retornar ao acampamento? Como descer aquele rio imenso e misterioso que não acabava nunca? O rio que adquiria uma eternidade de distância.
Levou a mão e apertou as têmporas com os dedos cansados como para afugentar qualquer coisa que se assemelhasse à morte. Mas tudo era morte. O céu se cobria de riscos vermelhos, como se jorrasse sangue. Sangue! Sangue! Sangue de Sá Lua e a criança mortas por bordunas, na praia branca. Sangue de Daniel que eles matariam daqui a pouco. Sangue de Kanaú estendido junto dele com filetes escorrendo pelo pescoço. Tudo era morte. Tudo era morte. Morte e vento. O vento que vivia somente quinze dias por ano; o vento que para os bons significava, saúde e frio, - que levava para longe as febres dos Gerais...
Tornou a olhar para o índio. Seus olhos estavam mais atentos ainda. Obedecia-o como um autômato e tudo aquilo era desespero. Se o índio parava, ele estacava logo e sentia a respiração opressa. Se o índio caminhava mais rapidamente ele aumentava os passos.
- Está acabando...
O Tenente não respondeu. A lagoa principiava a secar e grandes manchas de terra umedecida estavam se sucedendo. Era mais agradável assim.
Kanaú encarou o homem que o seguia, empunhando nervosamente o revólver. Parecia que seu olhar perscrutador invadia cada pedaço de seu pensamento. Ele sorriu e naquele sorriso, o Tenente compreendeu tudo. Era como se dissesse: - Você não me matará. Ainda não chegou a hora. Sem mim, você é um homem morto. Os Xavantes estão bem perto. E você é um homem corajoso quando tem força e arma. Se pudesse voltar e devolver o diamante você o teria feito, não? E sem mim? Sem mim você teria coragem de vir atrás do que estamos vindo? Olhe esse campo! Além do vento há um perigo escondido em cada canto. Olhe!...
Com a vitoriosa certeza de que não seria morto, Kanaú desviou a vista do Tenente e observou o ambiente. O campo todo tomava uma coloração avermelhada, porque o sol se punha derramando sangue. O capim alto com a água que secara perdera agora o verdor para se transformar num só todo amarelado. Todo aquele verde agora morria e com a volta da chuva no inverno, ressuscitaria.
- O Sol está baixando. Temos pouco tempo de luz...
Kanaú falava baixo para que o vento não espalhasse ao longe suas palavras.
Recomeçaram a caminhar. Até as costas nuas do índio tinham se transformado numa mensagem de fogo do Sol. Indiferente aos mosquitos da noite ele caminhava observando sempre com mais atenção. Felizmente o vento confundia todos os ruídos num só, num gemer imenso, de modo que o capim esmagado pelas botas do Tenente não fazia diferença alguma.
Kanaú estacou como se fosse desferir um bote. Parecia petrificado. Os dedos do Tenente se enroscaram fortemente na coronha do revólver. Sua angústia parecia explodir a cada respirar.
O capim estava amassado e marcas de pés apareciam gravadas no chão lodacento.
- Ele passou por aqui.
No cérebro de Kanaú estranho pressentimento se comprovava. Para onde iria aquele desgraçado que abria os braços à procura da morte? Por que ele caminhava justamente para onde os Xavantes deveriam estar?
Caminharam mais alguns passos e o Tenente estremeceu. Sem querer levantou as mãos sobre os olhos para esconder o que via. Naquele instante o pavor concentrado pelos dias de insônia, pelo nervosismo da fuga, pela tortura da consciência viva, rebentou num uivo enrouquecido. O capim abria-se em bandas e Daniel estava ali.
Todo o homem era o resto do sangue do Sol. Jazia de borco. A cabeça esmagada espargia miolos embranquecidos no capim amarelo. O sangue ainda quente empapava as vestes. Os braços estavam retorcidos apresentando pedaços brancos na carne rasgada. O pior era não existir cabeça e sim uma posta ensangüentada, onde os dentes apareciam também brancos. As bordunas de pati tinham trabalhado bem.
O Tenente recuou e virou a cabeça, mas os seus olhos sentiam necessidade daquilo e o pescoço tornou à primeira posição. Eram os olhos da alma gravando uma cena que jamais esqueceria. O suor escorregou frio pela medula e os dedos deixaram quase o revólver resvalar no capinzal. Foi se dominando e engoliu um gosto amargo.
Kanaú estava impassível. O ódio renasceu de novo na alma do branco. Demônio! Como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
- Os Xavantes estão perto...
Abaixou-se junto ao cadáver e revirou-o. A posta ensangüentada pingou sobre os seus braços; mas não era Daniel que ele revia naquele corpo sem cara. Era outro alguém que ele deixara também contemplando a morte e lhe dizendo algumas palavras tristes:
- "Por que tu fez isso, Kanaú?"
Olhou mais intensamente para a cabeça esfacelada, mas em lugar dela estavam os olhos de Camura, se fechando pela bebida.
- "Eu pensei que tu era bom... Deus vai te castigá"... Soltou o corpo e limpou com os dedos o sangue que se grudara nos braços.
Inquiriu o Tenente em voz baixa.
- A gente precisa revistar o homem, não?
Como o outro permanecesse imóvel e com os dentes rilhando, deitou-se sobre o corpo e vasculhou todos os bolsos de Daniel. Mas não existia nada. Os Xavantes só tinham deixado a bainha da faca de Daniel e o cinto. Aquilo era sagrado e eles não tocavam em couro de boi. A roupa também permanecera porque eles não gostavam de se vestir.
Kanaú deitou-se mais sobre o outro e avançando os braços tocou nas mãos de Daniel. Com custo entreabriu os dedos crispados. Mas entre eles só existia o vazio sinistro da mesma morte.
Sentou-se sem saber o que fazer. Precisava se concentrar um pouco. Se tivesse encontrado o diamante em poder de Daniel, daria um jeito de liquidar o Tenente ali mesmo. Aproveitaria um momento de distração e meteria a coronha de vinte e dois sobre sua cabeça. Se por acaso alguém encontrasse os dois corpos pensaria que tudo era obra da destruição dos Xavantes. Uma ótima solução para livrar-se de toda gente daquela canoa coberta de feitiço. Não sentiria remorsos em abandonar as duas mulheres naquele local sem esperanças. Ou elas morreriam de fome. Ou os Xavantes acabariam descobrindo o acampamento ou os mariscadores entregariam as duas infelizes à Polícia. Todo mundo juraria que ele também fora massacrado pelos Xavantes. Ninguém a não ser os próprios Xavantes e os urubus do céu encontraria os dois corpos.
O Tenente sentou-se também.
Levou a mão sobre a cabeça e pela primeira vez exclamou.
- Minha cabeça arde como fogo...
- É da pancada.
Ele alisou a testa e endireitou a atadura.
- E agora?
- Os Xavantes levaram a pedra...
- Eles sabem o que significa o diamante?
Kanaú pensou um pouco antes de responder.
- Acho que não. Uma vez índio inan se encontrou com eles na caçada e eles não fizeram nada. Mas depois do que aconteceu com Daniel, eles estão zangados.
- E o que irão fazer com o diamante?
- É costume deles fazer um trançado de fibra, enrolam um pedaço de pedra, fazem colar e penduram no pescoço. Já vi Xavante com colar de vidrinho de remédio pendurado assim. Na certa o que apanhou a pedra se enfeitou com ela. É esse que a gente precisa encontrar.
O Tenente reparou no capinzal infindo. Nas árvores aos montes que se enegreciam ao longe. Como descobrir o índio naquele matagal?
Kanaú respondeu ao seu pensamento.
- Não vai ser difícil. Eles estão acampados lá. Apontou um sombreado de árvores. - Quando escurecer mais eles acenderão fogueira. Na temporada de caça eles dançam de noite. Eles pensam que ninguém se atreverá a vir por aqui.
- È se é assim o que eles pensaram de Daniel?
- Eles mataram Daniel por dois motivos. Descobriram que Daniel estava fugindo e depois porque Daniel se aproximou da aldeia de caça. Na certa eles trazem as mulheres e não querem que ninguém veja elas.
- Quer dizer que se eles nos descobrem?...
Kanaú sorriu e empurrou com o pé o corpo de Daniel.
- A gente fica assim.
O Tenente quase não enxergava o rosto do índio. O sol desaparecera de todo e os mosquitos e as muriçocas zuniam em volta deles.
- Precisamos sair daqui.
- Por quê? Ele vai demorar a feder...
Não agradava ao Tenente permanecer mais tempo junto do corpo de Daniel. Tristes recordações retornariam à sua lembrança e sobretudo era o medo. O medo...
- Nós precisamos procurar um lugar onde se aviste o fogo dos Xavantes.
- Aqui é o melhor lugar. Eles não voltarão de noite aqui. Todo índio tem medo de alma e de feitiço. Se a gente sai daqui, pode encontrar uma turma que venha de outro lado, que esteja chegando atrasada da caça.
As muriçocas enxameavam.
Kanaú falou:
- Se a gente pudesse fazia uma fogueira e botava capim verde para espantar os mosquitos.
Mas o Tenente agradeceu aos céus a idéia de não poderem fazer fogo. Não queria estar revendo o corpo espatifado de Daniel, que com a dança das chamas pareceria adquirir movimento. A cabeça esmigalhada com os dentes à mostra, sorriria para eles à luz do fogo.
De novo doeu-lhe a cabeça.
- Penso que ficarei louco de tanta dor. Kanaú humanizou-se.
- Quando a gente voltar o senhor deita na canoa e a dor passa.
O Tenente não acreditava muito em nada.
- Se a gente voltar...
Um arrepio aumentou-lhe a dor. Que bom que não houvesse fogo; pelo menos não estariam despertando o morto e o morto se perdia na escuridão da noite que se fazia forte.
A voz de Kanaú vinha do seu lado. Em dado momento teve a impressão de que o índio sondava a possibilidade de matá-lo. Mas o que adiantava a noite que escondia tudo? Daniel mostrava-se aos seus olhos quase fechados por causa dos mosquitos tal qual o vira no primeiro momento. Sá Lua reaparecia na praia encolhida com a criança nos braços e tendo a vagabunda enrodilhada perto. Outro grave problema recheou os pedaços de seu pensamento. E se os seios de Sá Lua secassem naquele momento? A criança morreria de fome... Olhou a noite e sentiu o respirar de Kanaú junto dele. Sabia que os olhos do índio estariam apertados medindo o seu medo. Nem na noite ele deixava de fazer aquilo...
- O mosquito aumentou.
Foi tudo que conseguiu dizer para estimular-se.
- É porque o vento está parando. Essa noite não vai ventar. Se a gente estivesse no rio, poderia viajar até à madrugada quando o vento retornasse...
O ódio voltou de novo ao Tenente. Era bem feito que Daniel estivesse ali daquele modo. O único em quem podia confiar fizera aquilo e aumentara o risco da jornada trágica. Imundo!
- Não podemos falar muito. Vamos combinar um plano e depois não falaremos mais. Olhe lá...
Ao longe, luzes se erguiam como grandes vaga-lumes voando na noite.
A respiração do Tenente pesava como chumbo.
- São eles...
Kanaú perguntou:
- O senhor tem fósforos?
O Tenente apalpou os bolsos.
- Tenho. Para quê?
- Eu também tenho. Depois lhe digo para quê...


O vento foi parando de todo. E a selva se acalmou. Somente ao longe as gaivotas desovando faziam aquele alarido costumeiro. Sá Lua observava com a criança amparada no regaço, ;is estrelas que se avivavam na superfície agora lisa do rio.
Tilde falou baixinho:
- Que azar! Se os homens estivessem aqui a gente poderia viajar a noite inteira até à madrugada quando o vento voltasse a ventar...
Sá Lua não respondeu. Sentia medo. Com a noite, a barreira se transformava numa cobra negra enorme. Da praia, ela parecia se agigantar mais ainda. Como se tivesse contacto com o céu. A noite dos mil medos na selva. Não sentia nem vontade de conversar. Nem mesmo de responder ao que Tilde lhe dizia em sussurro. Cada palavra de sua boca poderia atrair um índio, um bicho ou qualquer coisa daninha da floresta. Preferia apertar sempre e sentir o calor da criança contra o seu seio; gastar energia apenas em niná-la quando fosse preciso. Qualquer ruído, poderia ser um perigo em iminência. Quando acabariam a viagem? Sentiu a impressão abandonada de estar viajando desde que o mundo fora criado. O nascimento do filho se dera há tanto tempo, que não precisava quando. A aldeia de Santa Isabel, Valentim, o primeiro contacto com Kanaú, tudo morrera na distância. E não obstante, poucos dias a separavam daquelas coisas...
- Se a gente pudesse fazer pelo menos uma coivara. Felizmente não está fazendo frio.
Tilde calou-se um instante, mas logo após prosseguiu no seu monólogo.
- Tenho quase certeza que os homens voltarão logo. Kanaú é um índio experimentado.
O medo enrodilhou suas garras mais fortemente no pescoço de Sá Lua, obrigando-a a engolir em seco. E se os homens não voltassem? Ou se demorassem muito a ponto de os Xavantes descobrirem o esconderijo delas? Consolou-se sentindo a arma que tocava no seu corpo. Em desespero de causa viraria a arma primeiro contra a criança, depois contra sua própria vida. Sentiu vontade de rezar, mas seus lábios não obedeciam. Se a prece adiantasse qualquer coisa, Deus ouviria aquela angústia do seu coração. Teve um sorriso de desalento, porque muito longe, sumido no tempo, existia um pedaço de sua vida, onde os terços e as orações tinham o formato de chicotes bárbaros. Pareceu sentir as mãos das colegas, quando elas passeavam unidas, sem direito a qualquer coisa, caminhando pelas ruas de São Paulo. Não, Deus que via tudo, que lia no coração, não precisava das fórmulas que nem o medo era capaz de recordar. A incerteza de tudo abalava-a a todo instante. Uma vez, sabia que os homens iam voltar, voltar vivos... outras vezes, o sangue pesando nas veias, lhe garantia jamais chegar ao final daquela empresa. Tudo estava perdido. Era apenas questão de tempo... Tilde interrompeu o silêncio novamente.
- Escutei um barulho que vem do rio. A senhora não ouviu? Sá Lua concentrou-se para escutar. Seus ouvidos inexperientes ou talvez o pavor que ia se alastrando nela e que a custo conseguia dominar, proibiam de perceber qualquer som suspeito. Ficou comovida por tornar a ter conhecimento do que devia a Tilde. Não fosse a presença daquela desgraçada, já estaria morta de terror. Mal conseguiu balbuciar:
- Não escuto nada, nada...
- Eu estou prestando atenção...
Calou-se a mulher.
Sá Lua ficou algum tempo à escuta e seus olhos foram se enchendo d'água. Tinha vontade de chorar alto, mas não podia nem sequer despertar a criança adormecida. Queria falar para afastar o medo, mas agora estava proibida disso. Não impediria que Tilde observasse qualquer ruído suspeito. O que seria? Algo se aproximava, embora ela não escutasse. Confiava em Tilde e no seu instinto infalível de bicho do mato. Não ousava perguntar se ela descobrira mais alguma coisa.
Uma estrela cadente percorreu o céu longamente. Levou os olhos molhados para cima e acompanhou a morte da estrela. Tudo estava morrendo. E os homens caminhando na selva e no escuro da noite. Por certo as lágrimas deslizaram mais quentes - por certo eles cometeriam mais um crime, eliminando Daniel para reaver o brilhante. Daniel que parecia um cão obediente; que ajudara tanto no nascimento da criança... morto com um tiro na cabeça. Tudo corria. Era o feitiço. Não duvidava que era o feitiço. Depois do que os outros viram ao entardecer: o homem de fogo, o fantasma de enforcado como diziam, as coisas tinham piorado muito. E pareciam tender sempre a piorar...
- Agora ouvi mesmo.
Apertou a coxa da mulher a seu lado.
- Por Deus, Tilde, o que foi que você ouviu? O que...
Tilde agarrou a sua mão com força, apertando-a.
- Psiu... não fale alto...
Sua voz parecia um sopro de vento; mesmo assim não traía pusilanimidade.
- É uma canoa que se aproxima. Um índio.
Quis perguntar como ela sabia que era índio, mas não tinha forças de controlar a sua voz nem a sua emoção. Melhor seria escutar o que a outra queria dizer e quando fosse possível.
- Só um índio consegue remar com tamanho silêncio. Não se assuste, é um índio bom. Xavante não tem canoa e não sabe nadar. É índio carajá...
Um alívio produziu-se no seu ser. Felizmente, não era tão grande o perigo.
Então deu-se uma coisa extraordinária. Ou porque soube do que se tratava ou porque o medo tinha diminuído, agora percebia bem o remo cortando a água. Depois o deslizar da canoa sobre a praia. Os pés em seguida, se metendo n'água e a canoa sendo suspensa sobre a areia.
A pressão dos dedos de Tilde sobre sua mão continuava mais forte a recomendar-lhe cautela.
A boca de Tilde se aproximou de seu rosto. Sentia o seu bafo forte sobre a face.
- Eu vou ver de perto o que é. Fique calma...
Custou a largar os dedos da mão de Tilde. Mas assim que o conseguiu a outra deslizou sobre a areia como se fosse uma cobra. Nenhum barulho se ouvia. Como podia Tilde conseguir aquilo?
Por um pequeno espaço de tempo ficou sem respirar. O coração latejava forte. Tão forte que seria capaz de acordar a criança. Por isso foi se acalmando e entregou-se à cegueira do destino com a passividade de qualquer bicho.
Uma voz principiou a cantar um grande lamento entrecortado de soluços. As notas fúnebres despertavam mais a tristeza na alma da noite abandonada. A melodia se revestia de uma dor impressionante. O coração de quem cantava devia ter se partido ao meio e extravasar torturas em vez de sangue.
Sá Lua comoveu-se com aquilo e seus olhos de novo se marejaram por aquele que cantava coisa tão triste. A dor de quem quer que fosse naquele infinito de solidão faria com que seus olhos chorassem sempre.
A música aumentava o som cavo de desgraça e depois voltava a se acalmar.
Pelo menos era alguém vivo e humano que se encontrava nas proximidades. Teve vontade de erguer-se e o consolar. Mas não cedeu a esse primeiro impulso. Ninguém deveria saber quem eles eram e nem por que se encontravam ali acampados.
Uma coisa se movia bem perto. Aguçou a vista desvendando o escuro. Era Tilde se aproximando.
Seu hálito morno atingiu-a de novo no rosto.
- É um índio velho... daqui a pouco ele irá embora. Depois eu conto.
O sopro quente afastou-se de sua cara e Tilde deitou-se calmamente no chão.
O índio cantou ainda. O rio se enchia de estrelas. Os homens custavam a retornar.
Os olhos de Sá Lua se enchiam de sono e teimavam em se fechar. A cantiga se perdia distante. Só de vez em quando sua mão se erguia para afastar uma muriçoca que teimava em zunir próximo do ouvido...
Fechou os olhos e o mundo perdeu o valor da existência na indiferença do cansaço.
Despertou com a mão de Tilde sacudindo-a.
A cantiga fúnebre tinha-se calado e a canoa estava sendo empurrada para o rio. Depois o remo fendeu a água e a canoa procurou a correnteza. Descia novamente.
Tilde então explicou.
- Era um índio velho que chorava. Os índios carajás cantam em vez de chorar. Cantam a sua dor. Ele perdeu a mulher. A gente estava bem junto da morte. Eu não lhe expliquei antes porque a senhora poderia sentir medo. Não foi porque ele ouvisse a gente falar. Ele não escutaria nada porque chorava...
- Mas por que o índio chorava?
- Na canoa, estava a mulher dele. Morta de velhice, mas no cantar ele dizia que tinha sido feitiço. Ele contou o casamento. Falou das grandes pescarias que fizera para trazer peixe bom para a mulher. Contou pedaços da vida e no fim disse que quando a mulher se sentiu mal para morrer, pediu para ser levada por dentro do rio. Queria morrer vendo as estrelas e não cercada das velhas da aldeia que viriam chorar cantando ao seu redor. Já que ela teria de morrer e voltar para o fundo do rio, era melhor que morresse na canoa olhando as estrelas. Então ele cumpria sua vontade. Ela morreu e ele cansado descansou na praia.
Tilde calou-se.
- E agora para onde vai ele?
- Vai descer o rio e voltar para a aldeia. Logo ao amanhecer farão o enterro. Depois ele chorará muitas noites. Principalmente quando for noite de lua...
- Como é que você sabe de tudo isso, Tilde?
Tilde sorriu no escuro.
- Sei porque morei muitos anos no Araguaia e tive contacto com os índios inans ou carajás.
- Você compreende tudo o que eles falam?
- Tudo.
- E como nunca me contou sobre isso?
- Não tive oportunidade.
Sá Lua calou-se. Sentiu medo de Tilde. Tilde era uma mulher misteriosa. Criava uma forma nova para ela. Mas não indagou mais coisa alguma.
Já não se ouvia a canoa descendo o rio. Não obstante a voz do índio ainda ressoava nas suas lembranças. Penalizou-se com o velho triste e arrepiou-se lembrando-se da mulher morta e tão próxima. Tudo era morte. E por que os homens demoravam tanto?...
Não era uma só fogueira que queimava na escuridão da noite e sim uma meia dúzia delas, colocadas em círculo
As poucas árvores que rodeavam o local se agigantavam com a projeção da luz das coivaras. Naquele local o terreno tinha sido limpo e pequenas cabanas baixas e redondas se colocavam também em sentido de circunferência.
As mulheres se sentavam acocoradas e em silêncio mastigavam qualquer coisa. Fumo não podia ser, porque os Xavantes não fumavam. Os homens caçadores, esquecidos do esforço de um dia de caça, abraçavam-se entre si, formando uma cadeia bronzeada; batiam com os pés no chão ritmando o canto e caminhavam da direita para a esquerda.

"Rubê Marabaquê... Hum-hum!...
Rubê Marabaquê... Hum-hum!...
Marabaquê!...
Marabaquê!...
Hum-hum!
Marabaquê!...
Marabaquê!...
Hum-hum...

Faziam uma pausa e todos então cantavam com a voz menos gutural:

'' Ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri!
Hum-hum...
Ri-ri-ri-ri-ri-ri!
Hum-hum...

Recomeçavam a cantar rouquenhamente a primeira estrofe.
Kanaú e o Tenente observavam aquilo no maior silêncio escondidos dentro do mato.
Tinham chegado até ali, arrastando-se como cobras. Eles sabiam que qualquer ruído poderia significar morte.
Aquilo devia ser uma canção de guerra; entretanto os Xavantes não traziam a cabeça pintada de vermelho, como era lenda contar-se, quando se sentiam enfurecidos.
Dança pobre, pensava Kanaú. Nenhuma dança de índio se comparava ao Aruanã dos Carajás. Nenhuma era tão rica de melodias e ritmo.
Os Xavantes, os donos dos campos, os terríveis caçadores, o AQUÊN, se achavam emagrecidos de fome. Alguns deles, deixavam à mostra as costelas. Soberbas e fortes, sobretudo bem proporcionadas eram as pernas dos donos dos campos. O que peito desenvolvia no Carajá dono das águas, dono do remo e do nado rivalizava com as pernas dos corredores e caçadores dos campos. Com as pernas eles cruzavam toda a região do Roncador, conheciam todo o mistério do Rio das Mortes e chegavam ao limite de suas terras, abrangendo o Pará. Voltando dali porque perto do Rio Tapirapés, os Caiapós invadiam tudo. Muitas mortes atribuídas aos Xavantes, tinham sido obra dos Caiapós.
O Tenente quase não respirava. Dominava o medo, porque tinha que tentar pelo menos a recuperação do diamante.
Os olhos de Kanaú estavam observando o pescoço de cada um. Depois de não encontrar aquilo que queria dos dançadores, foi pesquisando nos que se encontravam junto às fogueiras. Cutucou o braço do Tenente e indicou um Xavante que se levantara para reanimar uma fogueira. A chama bateu sobre um colar trançado de fibra de babaçu e os brilhos espalharam-se ofuscantes. Ali se encontrava a razão da vida e da fuga deles. O diamante em bruto, enleado num simples cordão enfeitando o pescoço selvagem sem importância maior do que um simples enfeite.
Ele veio caminhando para o centro do terreiro e esperava que houvesse uma oportunidade de se entranhar na dança.
Chegara o momento de executar o plano combinado. Kanaú bateu três vezes no braço do Tenente. Sentiu que ele tremia, mas não podia perder aquele momento.
Retesou-se como um arco e num segundo encontrou-se diante do Xavante desejado.
Houve um terrível momento de estupor. O canto morreu em todas as gargantas. A dança paralisou-se. Um urro semelhante e macabramente soturno rompeu de cada peito. Ninguém sabia de onde aparecera o índio carajá. O peito forte de Kanaú arfava de emoção. Estava banhado de suor.
Sua mão esquerda elevou-se rápida enquanto a direita sustinha a 22. Seus dedos alcançaram o diamante e num repelão brutal arrancou-o do pescoço do Xavante. Aquele então se encontrava mais estupidificado ainda.
Dois tiros partiram do mato. Era o Tenente avisando aos índios que havia mais gente fazendo a cobertura do carajá.
Houve mais medo ainda dos Xavantes. Não era à toa a lenda de que eles tinham verdadeiro pavor das armas dos brancos. Kanaú sem desfitar o índio que atacara foi-se encaminhando de costas para o ponto do mato de onde partira. Colocara o diamante na boca e com as duas mãos apontava para os índios que se tinham amontoado com o rumor dos tiros.
Deu mais três passos. Estava quase a alcançar o lugar... Se os Xavantes não atacassem logo, alcançariam o mato e a escuridão da noite.
Um Xavante grande e mal encarado, saiu do meio deles e veio se aproximando de Kanaú.
Kanaú esperou que ele se aproximasse do índio que fora dono do diamante. Assim que ele igualou terreno sacudiu a arma ameaçando atirar no seu peito forte. Sabia se tratar do imomam - o capitão da tribo.
O imomam parou. Seus olhos também não se despregavam da arma de onde podia vir a mensagem da morte.
Ergueu o braço com dignidade e apontou a direção do matagal.
Sua voz não parecia significar ódio. Parecia mais um conselho.
- Motô!... Motô!...
Seus dedos giraram pelo mato como para advertir as outras pessoas que ele sabia existir escondidas.
- Motô! Uasaí uim!
Engoliu em seco e recomeçou aquela linguagem rouca:
- Uras ukrani me uasá uaximam aumení tuaní corricami.
Bateu no peito com força.
- Aquê xiti airiti! Uarreni initi airiti!...
Indicou energicamente o mato e abriu a boca mais duas vezes.
- Motô!... Motô!...
Abaixou o braço.
Kanaú virou-se de um salto e alcançou o Tenente que já o esperava de pé.
O Tenente atirou mais uma vez.
- Vamos correr.
Kanaú saiu em desabalada carreira acompanhado do Tenente. Correram uns quinhentos metros. Ele ouvia o respirar do Tenente. Mas aquilo não era cansaço e sim medo.
Estancou e ordenou ao Tenente ainda desorientado.
- Agora, os fósforos.
Cada um se abaixou no terreno e juntou um monte de capim seco. Acenderam uma tocha e foram incendiando o mato. O capim estalou e as labaredas cresceram. Iam incendiando o mato em sentido de um grande "V" sem que atrasassem a fuga. O capim começou a estalar e agora o matagal já não era uma língua de fogo e sim um alastrado chamejante.
Pararam um pouco para respirar.
- Se estivesse ventando, seria obra de um segundo. Correram mais um pouco e tornaram a incendiar o capim noutros sítios. O fogo galopava em estalos como um cavalo de sangue.
- Agora podemos correr até à lagoa.
Era mais fácil a volta. E mesmo a claridade vinda pelas costas ajudava muito. Pararam para respirar. O Tenente recuperara a calma.
- Onde está o diamante?
Kanaú pensou ligeiro. Poderia não entregar o diamante e eliminar o homem. Entretanto se errasse o tiro ou se o Tenente custasse a morrer, poderia também ser eliminado. Estavam muito próximos um do outro para que o Tenente errasse o alvo. Abriu a mão esquerda e entregou o diamante.
- Dentro de dez passos já estaremos na lagoa.
Caminharam rapidamente e logo sentiram a água. De novo aquele barulho entrando borbulhoso nas botas do Tenente voltou a funcionar.
- Não há mais perigo.
Contudo não paravam de caminhar depressa. No meio da lagoa, viraram-se para olhar.
O espetáculo era monstruoso. Parecia que a própria noite tinha se incendiado. O reflexo do clarão sobre a lagoa ligava o céu com a terra. O negror da noite aumentava com os rolos de fumaça subindo sempre.
- Eles devem ter fugido para outra parte senão ficarão sufocados.
- Esse fogo quando acabará?
- Vai demorar muito, porque de madrugada quando o sol estiver perto de nascer o vento voltará e o fogo se alastrará muito mais.
Kanaú fez uma pausa. Sentia o corpo picado de mosquitos e molhado de suor a ameaçar cansaço.
Ergueu a arma sobre a cabeça e sentou-se na água lodosa que esfriava com a noite. Ficou um segundo aliviando-se e depois se ergueu. A calça estava escorregada da água suja, mas o corpo adquirira nova vitalidade. Levantou-se e espiou o incêndio.
- Muita cobra vai morrer...
O Tenente não se conteve.
- O que dizia o índio grande?
- Mandava na certa a gente embora. O pior vai ser para os carajás que esses Xavantes encontrarem... Vamos.
Recomeçaram a volta.
Quando alcançaram o começo da selva, olharam o fogo ao longe sempre avançando. Kanaú não se conteve.
- Só um deles não conseguirá escapar.
- Quem?
- Daniel. A essa hora já virou carvão...
O Tenente sentiu o suor escorregar pela espinha.


Quarto Capítulo - Os Mariscadores

A canoa descia o rio novamente. O Tenente, deitado no centro da embarcação, ardia em febre. Não só em conseqüência da pancada como também pela emoção das últimas horas.
Kanaú sentara-se na popa e dirigia a embarcação sustentando o jacuman.
Todos pareciam dormir. No céu, coberto de estrelas, a lua começava a crescer. Kanaú deixava a canoa procurar sozinha o centro do canal, apenas não deixava que deslizasse em bubuia.
Seus olhos queriam fechar, mas agüentava firme para que aproveitassem um pouco do rio sem vento. Também queriam todos se afastar daquele sítio, receosos de qualquer vingança dos Xavantes.
A canoa parecia conhecer o rio sozinha porque ora se aproximava da margem onde grandes árvores ladeavam o rio, do lado de Mato Grosso, ora se aproximava e se afastava das praias brancas da Ilha do Bananal.
Remoia intensos pensamentos e reprovava não ter morto o Tenente na lagoa rasa. Agora até surgir uma outra oportunidade, havia de ser difícil.
Lateni, o deus-bicho do mal, lançava as suas garras destrutivas no coração do mestiço. Ou era Coaru o feitiço dos índios que se alastrava doentemente na sua ambição? Mudava os pensamentos e eles retornavam sempre ao mesmo ponto numa persistência criminosa. Se se tivesse livrado do Tenente, as mulheres seriam presas fáceis...
Dominou a canoa comprimindo o remo; remou duas vezes para afastar o feitiço.
Daniel estava morto. Camura também. Se o Tenente...
Olhou para o céu, o pedaço de lua o fitava como se entendesse tudo quanto pensava.
Passava de meia-noite. O cansaço teimava em pesar os olhos. Dava ligeiros cochilos e quando entreabria os olhos julgava estar deitado entre o capinzal, vendo as árvores negras se elevarem por causa das chamas. Esfregava a vista e reconhecia que apenas a canoa se aproximara demais da margem esquerda e que as grandes árvores da margem eram sombriamente grandes.
Conduzia a canoa para o ponto certo. Os animais que aninhavam por perto gritavam e fugiam espavoridos; garças e jaburus levantavam os pesados vôos e procuravam abrigo na selva menos atingida.
Olhava para a embarcação, todos dormiam. O Tenente às vezes soltava gemidos e murmurava coisas incompreensíveis. Tilde se estendera enrodilhada no lugar onde Daniel se sentava para remar. Pareceu entrever Daniel todo esmagado com os dentes amarelados entre o achatamento da cabeça...
Um vento leve chicoteou a água em volta. Da mata o ruído do vento aumentava. Se conseguissem descer mais, poderiam passar em frente da aldeia de Btondiru que os brancos chamavam de Fontoura. Pelos cálculos estavam a menos de duas léguas da aldeia. Mas o vento não ia permitir isso, porque pequenas ondas batiam agora seguidamente contra a canoa e o remo, atirando gotejos sobre os que dormiam.
A barreira maldita da Cotia ficara muito longe. As praias de Goiás alastravam-se como manchas brancas. Foi dirigindo a canoa para o lado delas. O vento crescia.
Se quisesse virar a embarcação ninguém daria por isso tal era o cansaço provocado pelo medo da última noite.
Procurou um lugar de acesso fácil e embicou a canoa sobre a areia. O costado rangeu e ela desequilibrou-se um pouco e parou. Kanaú enfiou os pés n'água e sugou a proa da embarcação mais para dentro da praia. Uma nuvem de gaivotas gritou amedrontada voando em círculo sobre eles.
Os outros despertaram.
Sá Lua perguntou o que fora e ele apenas comentou:
- É o vento de novo.
Descarregaram as redes e as esteiras. Depois Kanaú ajudou Sá Lua e Tilde a arrastar o homem febril. Depositaram-no sobre a esteira. Ele apenas balbuciava palavras incompreensíveis. Não dava acordo do que estava acontecendo.
Sá Lua sentou-se perto e enrodilhou bem a criança porque o sereno da madrugada esfriava muito os corpos.
Kanaú aconselhou:
- É melhor a senhora dormir um pouco porque esse vento não vai passar. Amanhã de manhã com a luz a gente pode preparar um acampamento num lugar menos desabrigado. Apanhou sua coberta velha e a espingarda vinte e dois.
- Eu vou ficar dormindo ali perto. Qualquer coisa a senhora pode me chamar.
Ia se afastar quando Sá Lua perguntou:
- Que horas são?
Kanaú olhou as estrelas do céu, medindo o tempo.
- Duas horas da manhã.
Sá Lua deitou-se junto ao Tenente e ficou vendo o vulto negro se sentando mais adiante. Tilde acompanhou-o.
Os dois se sentaram na praia e juntaram gravetos secos. Depois uma labareda riscou a noite e Sá Lua divisou os dois se deitando perto um do outro. Quis perguntar se não era perigoso acender fogo ali, mas não ousou. Se Kanaú fazia assim era porque sabia o que estava fazendo. Aconchegou-se ao Tenente para absorver um pouco do calor de seu corpo. O vento lançava pequenas cortinas de areia sobre os corpos. Ela cobriu a cabeça e adormeceu.
Kanaú embrulhou-se na coberta velha e olhou um pouco o céu tão cheio de estrelas. Ali o vento não atirava tanta areia como na beira da praia.
- Kanaú, por que você está fazendo fogo? É perigoso.
- Não se assuste. A fogueira é pequena. Quem olhar de longe pensa que a gente é carajá da aldeia de Fontoura.
- Mesmo assim é perigoso. Se eu fosse você apagava.
- Só um bocadinho para esquentar...
Tilde também ficou espiando o céu. Reparou na constelação de Sete-Estrelas.
- Sete-Estrelas vai passar o mês de maio escondida sem aparecer...
- Por que você fala isso?
- Por nada. É uma história que contavam quando eu era criança...
Calou-se, mas lembrando-se de uma coisa perguntou:
- Kanaú, por que os Xavantes não mataram você?
- Eu estava armado. Eles me viram. Acharam que eu era índio, mas não carajá porque não tenho a marca sob os olhos. Pensaram que eu era outro índio que viera com os brancos... Deve ter sido isso ou o medo da arma que eu tinha na mão. Depois o Tenente atirou de revólver no mato. Eles se amedrontaram. Pra mim, tudo foi sorte. Nem eu acreditava que a gente pudesse achar o diamante de novo.
- Eram muitos?
- Uma porção. A sorte maior foi eles não terem cães. Porque senão eles sentiam o cheiro da gente.
- Conte de novo como estava Daniel.
- Já lhe contei.
- Será que ele se queimou mesmo com fogo?
- Não tinha outro jeito.
- Daniel era bom.
Tilde bocejou.
- Daniel era bom... Ele deve ter ficado com a febre da solidão...
Tilde desvirou-se e se encolheu para dormir.
Um jacurutu piou distante. Kanaú ergueu-se sobre os braços.
- Você ouviu, Kanaú?
- Ouvi. É o corujão chamando a fêmea. Está triste e só.
O jacurutu piou novamente.
Kanaú ergueu-se e respondeu o pio. Tilde perguntou:
- O que está você fazendo?
Kanaú sorriu.
- Nada. Estou torturando o bicho. Ele vai criar esperança de que há uma companheira para ele.
- Isso é maldade.
Kanaú deitou-se e cobriu a cabeça. O cansaço comia todos os seus músculos. Os olhos libertos da vigília a que fora obrigado nas últimas horas fecharam-se pesados.
As labaredas da fogueira iam diminuindo e enquanto não morriam de todo deixavam-se agitar pelo vento que não parava.
Deviam ter dormido uma hora quando Tilde acordou e sacudiu Kanaú.
- Kanaú!... Kanaú!... Acorde.
Ele ergueu-se de um salto.
- Está bem perto.
O ruído vinha forte do meio do rio.
Os dois se aproximaram da fogueira e foram apagando os seus restos, jogando areia com a mão.
- Será que eles não viram?
- Não. Pensarão que foi outra coisa.
A fogueira estava apagada. O som crescia no meio da noite e do rio.
- Eu bem que adivinhava que ele passaria essa noite.
- É um motor dos grandes. Só um motor dos grandes viajaria assim com o banzeiro.
Tilde pareceu se lembrar de uma coisa.
- Eu acho que sei o que é. Ouvi uma conversa em Santa Isabel. Deve ser o São Francisco que estavam consertando na Baliza...
- Se for ele, nossa viagem agora é que vai ser ruim.
Tilde não perguntou, porque sabia que a notícia do roubo viria trazida pelo São Francisco. O único motor que levava passageiros entre a Baliza e Santa Maria do Pará...
Os dois se juntaram a Sá Lua. O Tenente estava sentado na esteira e olhava para onde vinha o som.
- É o São Francisco...
O Tenente com ódio fechou o punho.
- Maldita hora em que consertaram esse desgraçado. Por que o banzeiro do rio não te leva para o meio do inferno?!...
O ronco aumentava dominando o barulho do vento. Todos se deitaram na praia. De longe os seus vultos seriam confundidos com algum tronco encalhado na vazante do rio.
O barco vinha no meio do rio. Ouvia-se o ruído da hélice sulcando as águas. Duas luzes estavam acesas e se refletiam no rio aborrecido e encrespado.
O motor passou diante deles e foi se afastando na noite. Eles continuavam deitados, olhando as luzes que se perdiam. E quanto mais distante se perdiam as luzes, não fosse o colorido, eles poderiam jurar que eram outras estrelas do céu...
- Agora vai ser pior. Porque todo mundo já sabe...
O Tenente levantou a mão até o ferimento da cabeça. A febre com o repouso tinha diminuído, mas a dor persistia.
- Agora vai ser muito pior.
Ninguém comentou mais nada. O resto da noite ficaram desanimados por ali mesmo...


Nunca um dia amanhecera tão belo no Araguaia. O céu, ouro puro. O rio, ouro líquido se movimentando, arrepiado pelo vento. E o vento zunia removendo areia fina em todas as direções.
Kanaú foi o primeiro a acordar.
Deu o alarme.
- Precisamos levantar acampamento.
Tilde bocejou.
- Não dá tempo de fazer um café?
- Não, aqui é perigoso. Quem quiser pode lavar o rosto porque para isso há tempo.
Kanaú deu o exemplo enfiando os pés na água morna do rio que acordava. Os miguelinhos impertinentes com os seus dorsos riscados de vermelho, existentes em qualquer lugar do Araguaia, vieram beliscar os seus pés.
Kanaú banhou-se e sacudiu o corpo para secar-se.
- Vamos, minha gente. Não se pode ficar parado aqui.
O Tenente se erguera meio cambaleante. Sua cabeça parecia pesar a ponto de desequilibrar o seu porte. Seu rosto como que emagrecera e seus olhos mais negros ainda porque a barba crescera bastante, eram apenas duas manchas escuras quase sem brilho. Parecia um autômato obedecendo à voz de Kanaú.
Tilde observou-o como se comentasse em seu silêncio: Esse homem não está nada bom!
Mas abandonou a sua contemplação para ajudar a carregar as tralhas para a canoa.
O vento agitava as águas do rio. No meio, o banzeiro reinava sem peias.
Kanaú observou:
- Agora que estamos perto da aldeia de Btondiru, é melhor a gente pegar um furo e se esconder nele. Desse lado, o encontraremos logo.
Todos se meteram dentro do barco. O Tenente não mostrou nenhuma contrariedade quando Kanaú sem hesitar sentou-se na proa e tomou o leme da canoa.
Sabiam que estavam nas mãos do índio e que só ele lograria chegar aos Tapirapés.
Abandonaram a praia e foram se afastando. O sol se expandia no espaço afastando o pouco frio que sobrara da noite.
Tinham mudado a colocação das pessoas na embarcação. Sá Lua se sentava perto de Kanaú. Tilde se encontrava no meio e o Tenente deitado na proa ficava observando Kanaú com os seus olhos sombrios. Somente Sá Lua lhe oferecia as costas, balançando de quando em vez a criança que choramingava sempre.
Tilde disse para ela:
- Essa criança não está muito boa hoje.
Sá Lua sorriu apenas.
A água do rio atirava-se em filetes contra a canoa. Por vezes numa onda maior borrifava o rosto de algum deles.
O silêncio parecia uma condenação entre todos. O ódio perseguia a viagem como a sombra do mal. Era o feitiço.
A criança choramingava. Sá Lua balançava os braços. O remo cortava a água e quando Kanaú desviava a vista do horizonte, dava com os olhos do Tenente que não se desfitavam de cada movimento seu. Ele só despregava a atenção de Kanaú quando precisava mergulhar as mãos no rio para trazer água para a sua sede. A cabeça já não doía tanto. Pensava apenas. Mas a garganta se encontrava constantemente ressecada. Por dentro do corpo tudo parecia ter adquirido a sede da garganta. Seus movimentos eram secos, os músculos se movimentavam secamente, quase não observando a sua vontade.
Precisava... isso sim, precisava eliminar aquele mestiço na primeira oportunidade. Na certa que ele pensaria o mesmo. Quando transpusessem os Tapirapés, daria um jeito.
Mergulhou as mãos de novo na água. A sede. Aquela grande sede.
Kanaú não perdia nada do que ele fazia. O homem estava com a febre da solidão. Baixou a vista e deu com os olhos de fumo de Tilde analisando os seus traços. Que pensaria ela?
E Tilde fazia uma única pergunta olhando Kanaú. Não era bem uma pergunta e sim uma certeza. Os dois homens tinham mentido. Não acreditava que os Xavantes tivessem matado Daniel. Foram eles. As mãos dos dois estavam cobertas de maldição e sangue. Por isso temiam o feitiço. Não acreditava em uma palavra sequer da história contada. Eles tinham perseguido Daniel no mato e atiraram nele. Depois com medo dos Xavantes que estavam em temporada de caça, regressaram cansados e amedrontados. Por isso, fizeram aquela correria toda, para abandonar a barreira da Cotia... Quem teria dado o tiro definitivo em Daniel? Daniel era bom. A única parte verdadeira de tudo aquilo foi o incêndio do capinzal. Eles queriam acabar com qualquer coisa que depusesse contra o crime. Olhou mais Kanaú. O índio desviara o olhar e procurava desvendar o horizonte. Viu que os seus lábios se entreabriram e uma frase escapava.
- O furo!...
Todos se voltaram para a direção indicada. O rio se abria num braço para a direita.
Uma sensação de alívio abrangeu a cada um. Parecia até que aquele furo era algo como a salvação. Tinha a importância da garganta do Tapirapés. Entretanto aquilo era apenas um abrigo para a noite. Sem o furo eles estariam expostos a tudo. E depois que o motor descera, todo cuidado era pouco.
Kanaú explicou:
- Aquele furo vai sair quase em frente da aldeia de Btondiru. Defronte à aldeia, nesse mesmo lado do rio, tem umas casas de brancos. A gente vai passar, de noite, entre os dois. Mas o rio é largo e cheio como está, os índios ainda não vieram dormir nas praias. Se fosse no próximo mês...
O furo era outra garganta da selva, outro capricho do rio. Entretanto como uma bênção dos céus, aparecia numa hora apropriada.
Kanaú enfiou a canoa na correnteza que chupava e ela deslizou mais rapidamente. Foram penetrando curiosos. O furo fazia uma grande curva inicial e como sempre acontecia nesses pequenos braços do rio, garças e outros voadores se escondiam para se abrigar do homem branco. Eles erguiam os vôos assustados, reclamando contra a invasão do branco.
O vento ali quase não atingia as águas. A calma da natureza era diminuída apenas por um pequeno resvalar das árvores beirantes e pelo respirar mais forte das águas.
Kanaú remou mais duro. Observando os mínimos detalhes da curvatura daquela espécie de canal. Seus olhos esmiuçavam detalhes. Procuravam vestígios da única coisa que temia além do vento: os mariscadores. Mas não contou os seus receios para ninguém. A chuva esse ano se fora mais cedo. Com a ambição do dinheiro, eles também se preparariam, armados até os dentes e viriam mais cedo também. Não havia furo ou lago existentes no Araguaia, tanto do lado de Mato Grosso como o de Goiás que eles não procurassem logo devassar. Conheciam impressionantemente os lugares onde a caça se refugiava. Ainda por cima ofereciam roupa, mosquiteiros e comida aos índios carajás para servi-los como guias.
Nos povoados brancos do rio, como Fontoura, Mato Verde, eles faziam rápidas paradas para reabastecimentos. Geralmente acabavam com o estoque de rapaduras e carne-seca ao sol, sempre em escassez nas pequenas vendas dos lugarejos. Munição e aguardente também se tornavam objetos indispensáveis para eles. O medo de Kanaú era que encontrassem algum bando por essas paragens. Podia ser que o motor desse aviso a algum grupo acampado em Fontoura.
Mas nada parecia existir que denunciasse a presença dos mariscadores.
A criança choramingou. O Tenente saiu da sua apatia.
- Que diabo tem essa criança hoje? Sá Lua ponderou-lhe com ternura:
- O menino está meio desarranjado.
Ninou o bebê com mais calor. Queria defendê-lo contra tudo; até contra as frases grosseiras se fosse possível... Kanaú enviesou a canoa para uma mata de sarão.
- É melhor enfiar a canoa no meio da ramagem. Tem um pouco de mosquito, mas a canoa fica bem escondida. Do outro lado tem uma praia que também fica protegida pelo sarão. Quem passar pelo furo só verá a canoa se estiver avisado.
Todos se agacharam e a embarcação penetrou no meio do sarão.
Quando o furo secasse de todo, aquele sarão ficaria na praia como ramagem seca. Somente quando a chuva retornasse e a enchente do Araguaia fosse crescendo é que ele rebentaria em ramas verdes. O sarão se encontrava cheio de frutos e os pacus do rio quando tudo sossegasse saltariam fora d'água quase um metro para beliscar as frutinhas apetitosas. Kanaú sorriu com a lembrança disso. Já que não poderiam atirar nas caças porque o tiro chamaria a atenção de alguém, pelo menos ele poderia flechar peixe sem perigo de se afastar do local. Por nada, ele se afastaria do grupo. Ninguém confiava em ninguém... e podia bem haver uma grande oportunidade.
A canoa alcançou a areia da praia.
O Tenente ergueu-se. Tilde seguiu-o e enfiando os pés n'água foi receber o menino para ajudar Sá Lua a apear-se. Tomou a criança nos braços com aquele gosto que só uma vez sentira. Olhou o rostinho ainda arroxeado da grande noite no ventre e sorriu. Ninguém sabia ainda como o bichinho ia se chamar. Não houvera tempo para se pensar nisso. Por certo Sá Lua já escolhera o nome, mas ainda não dissera para ninguém.
Sá Lua saltou. Kanaú ergueu-se e caminhou por dentro da canoa. Na praia puxou-a para cima e amarrou a embira da proa no próprio sarão.
- Vamos procurar um lugar ali.
Dirigiram-se para a orla de uma pequena mata, onde ficariam abrigados do sol. Lá também acenderiam o fogo e assariam um pedaço de carne no espeto para acompanhar o café.
Kanaú voltou para ajudar Tilde retirar os trens da canoa.
- Você viu, Kanaú? O Tenente anda esquisito.
Kanaú sorriu e enfiou a mão para apanhar as coisas.
- Não é nada. Ele está tonto com a pancada. Isso passa.
Mentia para Tilde mesmo sabendo que ela não acreditava.
A mulher feia não era tão boba como pensava. Talvez fosse uma presa bem que oferecesse muita resistência. Ela insistia.
- Pois eu acho que ele está piorando.
Kanaú não discutiu e deu de ombros. Ergueu duas panelas na mão.
- Qual delas?
- Nenhuma. Apanhe o bule de café. A gente não vai precisar da panela. Que bom. Só precisa de carne para assar na brasa.
Kanaú percebeu uma ondulação estranha no sarão. Foi primeiro observando com os olhos, depois caminhou devagar pela margem da praia. Andou três passos e fez sinal com a mão para que Tilde o seguisse sem fazer ruído. Tilde parou junto dele.
- Espie que bruto, Tilde!
Um jacaré grande se esquentava ao sol. Pressentindo o homem entreabriu as fauces e soltou um grunhido de raiva. O bafo fedorento a podre escapou da garganta.
Tilde cuspiu no chão.
- Bicho imundo.
Sem pressa o grande sáurio intrometeu-se n'água e se afastou abrindo um sulco e balançando o sarão.
- O bicho estava dormindo. É dos grandes. O couro dava cento e vinte mil-réis.
Tilde reparou a pena com que Kanaú acompanhava o afastar do jacaré.
- Vamos que estão esperando. Voltaram para junto dos dois. Deram a triste notícia.
- É bom cada um comer menos carne. A carne é pouca. Talvez nem chegue até aos Tapirapés...
Entregou a carne a Sá Lua e foi de novo até à beira do rio. Retirou a faca da cintura e cortou uma rama de sarão para fazer um espeto.
Antes de se erguer espiou o rio. Agora não era a existência do jacaré que chamava a sua atenção. O pacu nadava por perto. E como tinha!
Levou a vara para enfiar a carne.
- De noite a gente pode comer peixe. Eu vou flechar pacu-manteiga no sarão.
Tilde encarou-o com ódio. Sempre ele arranjava uma maneira de sujar as panelas.
A criança abrigada na praia choramingou. O Tenente irritou-se com Sá Lua.
- Não será fome?
Para provar o que dizia pôs o seio de fora e tomou o menino nos braços. Ele encostou a boquinha no bico, mas imediatamente revirou a cabeça...
Descansavam. A noite se anunciava no róseo que adquiria a tarde. Os colhereiros vinham voando em direção ao Sol e suas penas tomavam uma tonalidade acentuada de róseo. Os papagaios em bando numa cantoria selvagem, iam atrás da selva para esperar a noite. Garças brancas que não sabiam da presença dos homens pousavam compridamente para se aninhar nas frondes das árvores.
A selva se realizava sem susto. O vento não parava.
- Não fosse o vento, aqui teria muito mosquito.
O Tenente melhorava, mas os seus gestos traduziam intranqüilidade. Notava-se que ele estava doido para que a noite avançasse e que o vento amenizasse para prosseguir na viagem.
- Lá para onze horas poderemos sair daqui.
O Tenente olhou a tarde tão colorida e tão cheia de luz. Onze horas! Grande consolo!...
Sentou-se e levou a mão ao bolso. Mas estava vazio daquilo que procurava.
- Eu gostaria de fumar um cigarro.
Tilde olhou para Kanaú. Sabia que Kanaú tinha fumo.
- Eu também. Mas não tenho fumo.
Encarou Tilde cinicamente e sorriu com doçura. Ela baixou a vista e não se meteu naquele assunto. Os homens se entendiam. E se ela estivesse no lugar de Kanaú provavelmente agiria do mesmo jeito.
Levantou-se e apanhou a panela. Tinha que cumprir aquele maldito encargo. Se ela não o fizesse, Sá Lua seria obrigada a fazer. Era nojento enfiar a mão naquele gordurame. E o pacu andava por ali tão gordo, que nem era preciso colocar banha para cozinhá-lo ou fritá-lo.
Kanaú levantou-se também.
- Vou banhar. Acompanhou a mulher.
O Tenente seguiu-os com ódio.
- Porcos!... Imundos!...
Enquanto Tilde jogava os detritos na panela ele achegou-se e começou a desabotoar a calça afrouxando primeiro o cinto.
- Por que você não deu fumo ao homem?
- Ele me trata como se eu fosse um cão.
Fez uma pausa mas logo em seguida explicou.
- Será melhor para a gente...
Estava completamente nu e seu sexo se encontrava agora amarrado como o dos índios. Meteu o pé na água.
- A água está bem morninha.
- Estou sentindo.
Viu sem emoção alguma o corpo do rapaz começando a se afundar.
- Não tem piranha?
- Tem. Mas eu vou dar só um mergulho.
O corpo sumiu n'água e ergueu-se logo sacudindo o cabelo em todas as direções.
O feitio de Kanaú - pensava Tilde - é todo de índio, embora ele fale como um branco e tente convencer aos outros de que é branco.
Parou a mão no que fazia e ficou observando ele secar-se ao sol. Era sem dúvida um índio belo e viril. Não o desejava. Não desejava ninguém. A verdade é que ela queria somente pegar o dinheiro que lhe cabia no diamante e ter uma vida calma em Belém do Pará. Pela primeira vez teve um pensamento estranho quando mencionou para si Belém do Pará. E se descobrissem o seu paradeiro lá? Acalmou-se. Bobagem. Era muito cedo para pensar assim.
Olhou Kanaú que se vestia e a roupa se molhava toda com o corpo ainda úmido. O que ele queria dizer com aquilo: - Será melhor para a gente? Mas não indagou. Ela também fazia os seus planos.
- Acabe logo com isso, que os jacarés virão atraídos pelo cheiro de gordura.
- Eu sei. Já estou pronta.
Atirou a panela na canoa e ergueu-se apoiando-se na sua borda. Enxugou a mão na saia. Ajeitou o cinto de couro cru sobre os rins e caminhou de volta.
Ficara combinado que o tempo de que dispusessem enquanto ventava, descansariam. O fogo não poderia ser aceso. Não obstante todos fariam esforços para dar alarme por qualquer barulho. O vento amenizava. Mas continuava. Os mosquitos: carapanãs e muriçocas, zuniam em volta. Todos estavam enrolados nas cobertas, tentando se defender contra eles.
Só existia o barulho dos bichos e dos pássaros da noite. O ruído comum da selva vivendo simples.
De repente, Kanaú ergueu-se sobre os braços.
Tilde percebeu e imitou-o.
- O que foi, Kanaú?
- Psiu!... Cale-se...
O Tenente sentou-se e Sá Lua fez a mesma coisa. A noite estava feita.
O pedaço de lua escorregava pelo céu, ainda sem devassar a escuridão da noite e da selva.
As respirações estavam paradas. Os olhares se grudaram no perfil de Kanaú recortado no brilho das estrelas. Ele desvirou-se e sussurrou:
- Enrolem as cobertas e vamos.
Obedeceram nervosamente.
- Não façam barulho.
Caminharam em busca da canoa. Pisaram de leve na água e foram se alojar na embarcação.
- Deitem-se todos.
O Tenente sacou o revólver da guaiaca e deitou-se. Algo de perigoso vinha se aproximando. Sabia que o índio não mentira agora. Deitou-se. Kanaú envergou as ramas do sarão, recobrindo a canoa.
Só então explicou baixinho.
- Vêm duas canoas subindo o furo. Só pode ser mariscador. Na certa eles souberam de tudo e estão varejando essa região. Carajá não é porque a remada é diferente.
Kanaú deitou-se fora da canoa, mergulhando quase todo o corpo n'água.
- Se eles jogarem luz de lanterna elétrica nessa direção, ninguém olhe. Os olhos podem indicar a gente. É pelos olhos que eles descobrem os jacarés.
Calou-se e ficou sentindo a água ondulada pelo vento que diminuía, chocar-se contra o seu rosto. Os miguelinhos mesmo no escuro ficavam a beliscar-lhe o corpo. Mas Kanaú tornara-se insensível. Felizmente ali no raso da praia não havia piranha.
O sarão balançava sobre a canoa, levemente.
O vento ia passar dentro em breve.
Aqueles mariscadores eram seres terríveis. Não temiam nada e tudo que se lhes afigurasse presa fácil à sua cobiça, era imediatamente abordado.
Tilde afiava os ouvidos para descobrir qualquer som suspeito. Mas até agora nada. Recordou-se do grande jacaré entre o sarão, poucas horas antes e no mesmo lugar onde se deitava Kanaú... O índio era corajoso mesmo. Desse pensamento pulou para outro: - não estaria Kanaú imaginando coisas para enlouquecer? Para levar os outros ao desespero e loucura?
Mas não precisou certificar-se disso, porque agora não existia dúvida. Ouviu os remos recortando a água.
Todos percebiam aquilo. Houve um terror mudo pairando sobre eles. Ninguém se mexia. O respirar era curto e arfante. Quantos seriam? E se os descobrissem?
O ruído dos remos foi aumentando, aumentando. E eles nem podiam levantar a cabeça para sondar o perigo. O mosquitos mais abundantes no sarão, invadiam a embarcação e avançavam sobre qualquer parte descoberta. O zunido sobre o rosto era mais cruciante do que a picada.
As canoas se aproximavam. Os remos funcionavam mais alto.
Subiam devagar vencendo a correnteza da subida.
Já se distinguiam as vozes. Pequenos diálogos de vez em quando assustavam a noite. As garças levantaram vôos das árvores, fazendo ruído. Pássaros da noite pareciam xingar aqueles que vinham estragar a paz e a solidão.
E os remos subiam, empurrando as montarias. Estavam bem perto.
O medo quase fazia com que eles denunciassem o seu esconderijo. Da boca de Sá Lua escapava-se uma prece. O Tenente estava com o corpo molhado de suor. Somente Tilde aguardava as coisas com certa calma. Seus ouvidos faziam tudo para compreender o que os mariscadores estavam conversando.
Kanaú nem se movia. Tamanha era a sua imobilidade, que no medo, os outros dele se tinham esquecido.
As canoas estavam perto uns vinte metros. Eram duas somente. Pelo remar seguro e contínuo, pelas pancadas do remo n'água, eles deviam ser quatro homens em cada embarcação.
Estavam quase em frente do sarão.
Uma voz grossa, arroucada, perguntou:
- Nada por aí, Isidoro?
Da outra canoa responderam:
- Daqui nem um sinal.
Outra voz diferente insinuou:
- Experimente a lanterna naquela praia.
Uma luz amarelada passou de relance sobre o sarão e foi se chocar no branco da praia, onde eles tinham estado acampados.
- Tem nada o quê! Eles não se atreviam a pangolar nesse furo.
- Diabo dos infernos! - blasfemou outra voz.
Alguém assobiou, mas foi logo repreendido.
- Fica quieto, Irineu.
O outro riu com bulha.
- Num tão vendo que não tem nada por aqui?...
Riu de novo e exclamou:
- Me dê a garrafa de caninha que tou é cum frio.
- Tás é bebo, desgraçado.
A luz da lanterna tornou a escorrer sobre a praia, relanceou sobre o sarão. Kanaú mergulhou a cabeça. Retirou-a logo porque sabia que a luz não se demoraria sobre aquele mato. Feliz lembrança tivera em esconder a canoa no sarão. Senão agora teriam que receber os mariscadores à bala. E levariam a pior. Porque enquanto eles tivessem vida, os mariscadores não desistiriam de atirar. Suspirou meio aliviado. Aquele diamante custava muito caro... A voz rouca falou desanimada:
- Vou pedir a Zé Butelo uma lanterna melhor. A luz desta não alumeia bem. De vez em quando ela fica lecando.
- Rema, minha gente. Rema. Vamos cabar de subir o furo pra pega a turma que espera na boca do Araguaia.
Os remos se afastavam. O vento trazia para Kanaú o cheiro do corpo suado dos homens. Já teriam subido quinze metros.
De repente a criança chorou.
Sá Lua ninou-a um pouco, cheia de desespero. Ela calou-se um segundo.
Uma voz exclamou na canoa:
- Vocês ouviram?
Ninguém respondeu. Todos estavam escutando. Os remos foram funcionando bem de leve. Mas só havia silêncio. A voz rouca comentou para os outros.
- Parece que eu ouvi um choro de criança.
O que ria sempre tornou a rir.
- Tu está é impressionado. Tá confundindo tracajá em desova cum criança chorando.
- Cala boca, desgraçado!
Sá Lua estava gelada. A criança remexeu-se nos seus braços. Ia choramingar de novo. Choramingou. O Tenente sussurrou nervoso.
- Dê o peito para ela.
Sá Lua respondeu num cicio.
- Já dei; ele não quer.
O menino choramingou mais alto. A voz rouca perguntou.
- Não parece uma criança chorando?
- Acho que não. Agaranto que é tracajá.
- Vamos voltar um pedacinho.
Soltaram o remo e a canoa voltou, descendo devagar, trazida pela corredeira.
A criança movimentou-se de novo. Ia chorar mesmo. Nervosamente o Tenente esticou a mão e colou-a na boca do menino para que não chorasse. Sentiu o respirar fraco na mão calejada.
As canoas estavam perto de novo.
A luz voltou a procurar a praia.
- Você tá é bêbado, Mundinho. Não tem nada por ali. Ficaram um segundo sem remar e tornaram a remar, mas dessa vez com calma, com os ouvidos prontos para qualquer barulho.
- Não tem nada mesmo. A gente confunde muita vez tracajá com choro de gente.
- É; se fosse criança chorava mais outra vez...
- Vamo embora.
O que ria sempre assobiou. Riu e depois comentou com ruído:
- Fura, fura, pra ganha rapadura...
Os remos mergulharam n'água com força e a canoa recomeçou a subida.
Agora todos sentiam o cheiro suado dos corpos. E aquele cheiro acre principiava a se afastar.
O pânico paralisara todos na canoa. Mas ninguém se movia. A canoa se afastou mais. Mais. Mais. Foi-se perdendo na noite o ruído dos remos. Os mariscadores tinham passado.
Esperaram mais de meia hora. Tudo era silêncio. Kanaú retirou o corpo resfriado da água.
- Pronto.
Começou a retirar o sarão de sobre a embarcação. Os vultos se ergueram tremendo.
Tilde alisou o sarão reconhecidamente. Sem ele, não estariam vivos nesse instante. O Tenente perguntou trêmulo:
- E agora? O que vamos fazer? Kanaú aconselhou.
- O vento está passando. É melhor a gente descer o rio. Meia-noite a gente passa na aldeia de Fontoura. Todo mundo estará dormindo.
Sá Lua soluçou brandamente. Depois não se conteve e o pranto rompeu quase em uivos.
O Tenente abraçou-a acalmando. Ele também quase se encontrava naquele estado. Cada dia era uma emoção maior que facilmente poderia levar qualquer um ao auge da loucura.
Deixou que ela chorasse longamente, enlaçando-a como a uma criança.
Kanaú e Tilde não sabiam o que fazer. Apenas esperavam que aquilo passasse.
O Tenente falou suavemente:
- Vamos, me dê a criança, para você descansar um pouco.
Sá Lua parou o pranto e agarrou o menino com mais força. Soltou-se de um safanão dos braços do homem e ergueu-se na canoa.
- Não se aproxime. Ninguém se aproxime.
Ela saltou n'água e caminhou devagar pela praia levando o filho.
Passada a primeira estupefação, o Tenente seguiu a mulher. Kanaú e Tilde parados espiavam a cena.
O Tenente alcançou-a.
- Sá Lua. Espere...
Tocou de leve a mulher no ombro.
Ela virou-se. As lágrimas tinham paralisado e a raiva que a acometera na canoa cedera lugar a uma doçura de morte.
- Deixe-me. Ninguém me tirará a criança...
- Ninguém quer tirar a criança. Só quero segurar um pouco para que você descanse.
Sá Lua sorriu tristemente e falou com aquela doçura que chegava a aterrorizar. Sua voz saiu pausadamente.
- Deixe. Ela está quentinha. Ainda está quentinha...


Sentou-se na praia e não disse nada mais. Muito tempo ficou ninando a criança, numa mudez enternecedora. Ninguém ousava interromper aquele acalento de morte.
Foi Tilde que com muito jeito se aproximou dela, e convenceu-a.
Os dois homens de longe não souberam nunca o que a vagabunda lhe dissera.
Mas repararam que Tilde a ajudava a levantar-se. E que as duas se aproximavam deles.
Tilde carregava agora o fardo morto contra o peito magro.
Dirigiu-se dessa vez sem medo para o Tenente.
- A gente precisa enterrar a criança.
As mãos do homem se ergueram até o ferimento da cabeça e desceram pesadas. Na palma da mão direita ficara registrada a marca do crime. Para o resto da eternidade sentiria aquele respirar fraquinho sobre os calos grossos.
Baixou as mãos pesadamente. Só as mãos pesavam. Só as mãos pesavam...
Sua voz rebentou rouca e desgraçada.
- Eu não quero ver. Eu não quero ver.
Afastou-se caminhando para a praia. O pranto descia dos seus olhos cansados e molhavam a barba crescida e negra. Foi sentar-se na borda da canoa. Olhou as mãos. Não precisava olhá-las para sentir-lhes o peso. Aquelas mãos. Ah! Se nesse momento deparasse com o comprador de diamantes. Se encontrasse agora, agora mesmo com Mauro Duarte. - O homem do cavanhaque que sorria sempre. O homem tão certo de tudo... Então ele veria o que significava o peso da mão assassina. Faria como Daniel que enroscava os dedos no pescoço branco da mulher. Agitaria tanto as mãos que o pescoço todo seria transformado num pedaço macio, sem resistência... mole... mole... morto...
Olhou para o lado em que os outros tinham ficado. Mas não conseguia distinguir os seus vultos.
Kanaú dirigira as duas mulheres para a orla de uma pequena mata. O chão ainda se encontrava molhado das últimas águas.
Ali o ponto era o mais indicado para o enterro da criança.
Kanaú ajoelhou-se; com a faca principiou a cavar a terra.
Sá Lua imitou-o.
- Eu também quero ajudar a cavar.
Sua voz estava calma e seus dedos penetravam sem medo na umidade do terreno. Sentiu que a areia estava morna. Ainda bem que a terra se aquecia para receber o seu filho.
De repente ela sentou-se sobre os pés e deixou Kanaú sozinho abrindo a cova.
- Desde cedo que ele não estava bom. Não queria nem mamar...
Tilde sentiu um constrangimento... Ela não era muito dessas coisas. No entanto agora comovia-se. Habituara-se a segurar a criança com ternura. E agora ela estava morta em seus braços e a mãe falando, falando...
- Demorou tanto para nascer. E num instante...
Kanaú ergueu-se sobre os joelhos e afastou as muriçocas que enxameavam o rosto.
- Já dá.
Mas Sá Lua não parecia ter se apercebido da importância do que dissera, porque ficava falando, falando.
- Não teve nem um nome. Eu queria que ele se chamasse Maurício. Você não gosta desse nome, Tilde?
Tilde respondeu esforçando-se para não chorar.
- É. Maurício é um nome muito bonito.
Só então Sá Lua compreendeu o significado do índio e da mulher parados à sua frente. Sua boca descaiu sem força e a saliva escorregou pelo queixo e pelo pescoço.
- Precisa enterrar, não é?
Como não respondessem, ela se adiantou corajosamente para Tilde.
- Me dê. Eu quero enterrar... Tilde cedeu-lhe o pequeno fardo. Ela encostou-o primeiro ao peito, depois ao rosto. Ajoelhou-se sem pressa e depositou o menino morto na areia. Foi puxando a terra sobre o corpo. A terra estava morna para aconchegar o seu filho.
Kanaú quis ajudá-la, mas ela implorou:
- Só eu. Ninguém mais.
As mãos brancas iam cobrindo, cobrindo. Até que só restou um amontoado de areia.
Ela se sentou de novo sobre os joelhos. Ergueu os olhos suplicantes para os dois.
- Não vai ter nem uma cruz? Não vai ter nenhuma flor?
Tilde ajudou-a a erguer-se.
- Leve a mulher embora para a canoa.
Tilde obedeceu e as duas foram andando sem pressa.
Kanaú apanhou uns galhos grandes e secos abandonados por perto pela enchente e arrastou-os para junto da sepultura. Foi colocando um por um, fazendo uma pirâmide. Agia assim para que os jacarés não descobrissem o corpo e não o devorassem.
Nem bem tinha acabado de fazer aquilo, quando sua vista estremeceu.
Diante dos seus olhos a noite desaparecera e a luz do sol no poente reinava por toda parte. Uma sanfona estava tocando, tocando.
E a música era sua conhecida. Muito sua conhecida. Diante dele Chibiu com os olhos cheios d'água tocava a música completa de Camura.

"A Lua já vem saindo
Iluminando meu coração.
Canto moda de viola
Tei-tê-rê-tê do meu sertão"...

Levou as mãos sobre os ouvidos para não escutar a música.
Estava também ficando louco?
Esfregou os olhos e tudo se encontrava como dantes. A noite era de novo noite e a lua no céu que crescia sempre, não tinha mais formato de uma adaga de fogo.


Quinto Capítulo - A Febre Da Solidão

O vento silenciou e a natureza cansada de ter sido chicoteada tantas horas a fio, adormeceu. O silêncio no céu, onde a lua crescente e as estrelas disputavam brilhos, se propagara em cada coisa da terra. Rara era a vez que um grito morto de abandono vinha quebrar a mudez do ermo.
A canoa deslizava calma, porque as águas do rio abandonadas pelo vento, dormiam e dormindo caminhavam sem pressa.
Kanaú olhou o céu. Pelas estrelas calculou as horas.
Só ele remava. O Tenente na proa agora oferecendo-lhe as costas fitava as águas e seus olhos negros e tristes se adiantavam na noite em frente como se quisesse fazer parte da escuridão. Kanaú sabia o que se passava no íntimo do homem. Todos os seus gestos, mesmo os mais inexpressivos, traduziam medo, arrependimento e remorso. E todos aqueles sentimentos se confundiam ao mesmo tempo para levá-lo ao desespero maior; a certeza de que ninguém sobreviveria àquela jornada sanguinolenta. Desde o início tudo se mostrava de uma aversão aziaga, contrariando os menores planos dos viajantes. Tarde demais se tornava para retroceder. O que poderia esperar o arrependimento? Só a morte. A morte passiva. A entrega do diamante às autoridades e a pena do roubo; a lei do garimpo seria colocada à sua decisão: ou lhe dariam uma arma para que rebentasse a cabeça ou seria conduzido numa canoa para um ponto solitário e quando estivesse espiando a mata ou o céu...
Sorriu de desespero. Mas a loucura não o abandonava mais. O preço da pedra era demasiado grande. Ficou a imaginar se por acaso atravessassem vivos a garganta dos Tapirapés... Sorriu mais nervosamente dentro da noite. Felizmente os outros não enxergavam o adiantamento da sua loucura. Se eles atravessassem a garganta dos Tapirapés que se aproximava finalmente? O Rio Araguaia se alargaria muito de novo. Quantas léguas o afastavam de Belém do Pará? Quantas povoações ainda teriam que transpor às escondidas viajando com a cumplicidade da noite? E quando alcançassem o garimpo de Marabá, o que fariam? Vender a pedra aos capangueiros ou faiscadores desse garimpo seria o mesmo que se entregar à polícia! Pelo menos aquela parte, onde o Araguaia se confundia com o Tocantins, se tornava mais habitada e sulcada de embarcações. Talvez até eles viajassem sem perigo algum. Outros perigos então se entrepunham. As grandes cachoeiras, os travessões caudalosos que arrastavam para a voragem os remadores inexperientes. Só havia o lado da cachoeira oferecendo um canal e fora desse canal tudo era morte. Ali estava o índio para dirigi-los. Então...
Levou a mão até à cabeça. Sentiu as costas da mão roçando sobre a barba que de grande ia-se tornando sedosa. O ferimento quase secara.
A voz de Kanaú advertiu-os.
- Estamos saindo do furo.
Retornou ao fio de seus pensamentos. Só um louco persistiria naquilo. Não queria pensar mas era obrigado. Como o criminoso atraído para o lugar do homicídio. O diamante estava batizado de sangue levando uma mensagem de maldade e qual seria o destino dele? Lembrou-se de um pescoço alvo, tão alvo como o pescoço da mulher estrangulada por Daniel ou uma mão branca tão bonita como a mão de Sá Lua, ostentando a jóia indolentemente. Exibindo-a como uma faceirice da moda, sem desconfiar que o diamante vertia sangue em cada uma das suas facetas. E o dinheiro que ele renderia para os quatro? Só restavam quatro e no fim da viagem talvez, três ou dois. Quanto ao certo o diamante renderia para os que sobrassem? Daria para apagar da memória todos aqueles crimes e remorsos? Poderia devolver aos olhos de Sá Lua a alegria e a luz roubados pela ausência do filho? Por que pensava nisso? Seus olhos se enchiam d'água e as mãos voltavam criminosamente a pesar. A sentir o hálito fraquinho ressonando sobre os calos da mão bruta... Por que pensava nisso? E se ele sofria tanto como não estaria Sá Lua? Nem tinha coragem de voltar-se para ela e estender a mão para consolá-la, para mostrar sua solidariedade naquela dor terrível. Não tinha coragem de voltar-se para não deparar com o rosto duro da mulher, onde as lágrimas pareciam ter cavado um sulco.
Contudo a calma parecia ter penetrado no rosto de Sá Lua. Suas faces estavam limpas e os olhos secos. Completamente secos. Suas lembranças apareciam seguidamente recheadas de ternura embora seu corpo não existisse mais. Sim, seu corpo não existia mais. Não o sentia. Como se a morte caminhasse nele e fizesse um reinado de insensibilidade. O coração batia sem alimentar suas forças. Estava viva e era o mesmo que não estivesse. Também aquilo não lhe fazia diferença. Tentava sentir os braços mas eles guardavam só a ausência do filho que morrera. O peito estava ausente. Os seios pesavam de vazio. Parecia não respirar ou se respirava o ar aspirado penetrava por todos os poros e saía mais fraco por cada canto do corpo. Mil buracos a perfuravam naquela insensibilidade. Era o reino da morte. Não pensava mais no futuro. Não interessava se eles iam chegar a alguma parte. O diamante não existia na sua grande indiferença. Não sentia fome, sede, frio ou medo. Poderia mil vezes passar entre os mariscadores ou deitar-se perto dos Xavantes, porque tudo ficara longe. Longe o dia em que fugiram, longe o nascimento do filho, longe a morte do filho... Tudo perdido e ela mantinha-se calma, sem incomodar ninguém com suas lágrimas. Nem um queixume rebentava-se em seus lábios. A canoa não tinha importância: transformara-se num meio indefinido. Se ela retornasse ou se o rio principiasse a caminhar ao contrário, também não queria dizer nada. Só olhava para a noite, a noite sempre eterna, onde o barulho do remo, indicava a pulsação do tempo que não acabava. Tudo era assim porque devia ser assim. O filho morrera porque uma vez, mas isso fora há tanto tempo, pedira a Deus, ou a qualquer outro ser superior que o levasse. E esse Alguém a atendera, livrando a criancinha daquele despertar de sangue. A criança nascera mesmo no reino das sombras e nas garras da morte. Não poderia escapar de qualquer jeito. Agora ela dormia quentinha na alma da terra. Seria transformada numa flor grande e selvagem de diversos matizes. Por que então chorar? Ela secara-se. Só sentia o ar da noite penetrando na sua morte e desintegrando o que de vivo ainda existia. Pena que ele não tivesse recebido um nome. Maurício. Virou-se docemente para Tilde.
- Maurício não é um nome bonito?
A outra engoliu em seco.
- É. Um nome bem bonito.
Voltou a calar-se e a sua imobilidade acompanhava o rio que descia suave e que dormia.
O remo tornou a martelar o tempo. Tan. Tan. Tan. Tan...
- Olhem lá.
Todos repararam onde Kanaú indicava. Luzes minúsculas ardiam no escuro.
- Está longe. É a aldeia de Btondiru que os brancos chamam de Fontoura. Do lado de cá, está a casa de Antônio Gomes. Moram diversas famílias. Está longe.
Os olhos fascinados não se podiam despregar das luzinhas distantes. Pelo menos era algo diferente a encantar a vista, além das estrelas obrigatórias, das margens negras oferecendo as grandes silhuetas das árvores ou o brancor insignificante das muitas praias. Aos poucos as luzes iriam crescendo e adquirindo contorno.
Kanaú aconselhou que eles se deitassem na canoa e se cobrissem o mais possível. Ele iria passar perto dos brancos porque a noite caminhava adiantada e nessa hora os brancos estavam dormindo. As luzes da aldeia indicavam o início de alguma festa. Seu instinto de índio lembrou-lhe coisas agradáveis. Como pudera se esquecer? Os carajás de Btondiru estavam anunciando a grande festa de maio. A festa de Kotu Rekã. A festa da tartaruga grande. Eles estariam dançando e invocando a Kanansiu-ê as bênçãos das pescas e pedindo fertilidade para a terra. Como seria bom não temer coisa alguma, não fugir como um criminoso e poder encostar a canoa na aldeia? Se isso fosse possível, agora dançaria o Aruanã misturando sua voz à dos outros índios. Uma felicidade terna o invadiu. Mas não queria pensar assim. Pois se estava roubando grande para conseguir se libertar do seu temperamento de índio. Com dinheiro seria branco; e se sentisse saudade? Iroá garantiu que quem nasce junto do rio sempre volta. Se sentisse saudade voltaria um dia. Ninguém sabia nada contra ele. E se soubessem, não ignorava que índio não tem culpa de coisa alguma. Não seria preso e logo esqueceriam do que praticara. Sorriu. Pelo menos para isso servia a quantidade de sangue indígena que veiculava em suas veias.
As luzes se avolumavam dentro da noite. Os cantos aumentavam. O rio ali se alargava muito e se dividia em poucos canais, porque as praias brotavam, rebentando a face do rio em muitos pontos. Quem não conhecesse os canais facilmente encalharia a embarcação em uma delas. Perigoso na noite, seria enfiar o pé dentro d'água: arraia pintada, a arraia de fogo fazia sua cama naquelas paragens novas.
Pela última vez Kanaú recomendou que se deitassem na canoa e que nada dissessem.
Sá Lua parecia não compreender mais nada. Foi preciso que Tilde carinhosamente e com palavras amigas a puxasse para o meio da embarcação. Ela obedecia como uma boneca morta.
Os cantos encheram a noite. Kanaú compreendia o que eles diziam.
Não sabia definir as suas emoções. Mas a cantoria fazia bem à alma e diminuía o perigo dos últimos dias passados.
Os maracás ritmados sacudiam-se ao mesmo tempo e Kanaú sentia o cheiro das máscaras. O cheiro rescendendo a suor da palha umedecida.

'' Kanansi-uê-é-é-é-é
Kanansi-uê-é-é-é-é...
Manakre-ki.
Kalugi auire Kay...
Auire Kay...
Auire Kay..."

Os carajás estavam pedindo a Deus que ele comparecesse entre eles. Que havia a doce bebida do kalugi, o álcool de arroz fermentado para ele. Para que trouxesse a fertilidade à terra e ao rio...
Intimamente Kanaú acompanhava as palavras. Tão bonito aquilo a distância.
Via os pés batendo ao mesmo tempo, a curvatura das grandes máscaras que ondulavam ao vento da dança, as fieiras de penas coloridas.
Fechava os olhos e enxergava tudo, participava de tudo.
Sustentou com força o punho do remo para certificar-se da realidade. O ardor primitivo que o enlevava foi diminuindo-se aos poucos. A consciência do perigo se justapunha ao encantamento.
Não podia remar e sim apenas sustentar o jacuman para que a canoa não descesse em bubuia.
O perfil da casa dos brancos se delineou na barreira. O cheiro de gado e de curral apareceu como uma novidade. Eles precisavam passar quase rente à barreira dos brancos. O canal se grudava na barranca. Era preferível arriscar por ali. Os brancos dormiam. Os canto dos índios e os maracás disfarçavam qualquer ruído.
A casa de Fontoura surgia enorme na sombra. Dava até para se ver uma casa ao lado da de Antônio Gomes, em ruínas, caindo sempre mais a cada chuva que vinha.
A corredeira estrangulada pela canal descia célere. A canoa foi tomada de uma grande velocidade. Ninguém se movia. Nesse momento Kanaú soltou o remo e deitou-se sobre a canoa. Não havia viva alma. A embarcação começou a perder a direção e descer em círculos vagarosos.
Um cão ganiu na barreira. Tornou a latir com insistência.
A canoa se afastava mais. Uma voz perguntou para outra:
- É alguma canoa, Reimundo?
- Nada. Um tronco grande que passou e assustou o bicho... Kanaú sorriu. A escuridão da noite mais uma vez os livrara de um apuro.
Sentou-se e foi travando a canoa para que ela tomasse o rumo certo.
A barreira se distanciara. Lembrou-se de que quando remava aquele pedaço do rio era dos mais difíceis de cortar em subida, por causa da correnteza.
- Vocês já podem se sentar.
Os outros venceram o medo e se ergueram. Kanaú voltou a ouvir o canto e o maracá.

"Kanansi-uê-é-é-é-é...
Manakre-ki..."

O rio principiava a fazer uma grande curva e a aldeia de Btondiru se perdia entre os cantos e a noite. Kanaú consolou os companheiros.
- Esse perigo já passou.
Voltou a remar com energia. Um princípio de fome e sono o atacava. Mas ele remava mais. Tinha a certeza de que dentro de uma hora ou pouco mais seriam obrigados a parar. Na primeira oportunidade que aparecesse embicaria a canoa numa praia abrigada ou num recanto de sarão junto a uma barreira.
Um pouco de paz o dominou. Talvez por se ter livrado do perigo ou porque o coração sempre em guarda fora aliviado pela música de que sempre precisava.
Tilde se enrodilhara toda. O Tenente dava grandes cochilos. Sua cabeça pendia e se erguia sempre como se teimasse a ficar acordado como uma sentinela à própria dor e ao remorso. Somente Sá Lua continuava desperta. Penetrava os olhos apagados na noite sem cansaço como se esperasse alguma coisa que viria.
Kanaú remou muito tempo ainda. Seus olhos reclamavam pelo sono. Com esforço observou o céu. As estrelas confundiam-se todas e pareciam perder a luminosidade.
Foi tomando a direção de Mato Grosso, onde as praias eram menores, mas as barreiras ofereciam mais abrigo. Uma lembrança agradável rasgou-lhe a boca num sorriso. Dentro de dois dias poderiam atingir os Tapirapés. Aquela parte de Mato Grosso que abordava era o resto daquele Estado. Dos Tapirapés para baixo estariam descendo com o Pará dominando pela esquerda.
Atravessou o Araguaia que era largo nessa região. Suas margens distanciavam-se por mais de um quilômetro. E todo aquele vasto lençol se encontrava ligado ao céu pelo contágio fascinante dos milhares de olhos das estrelas.
Foi alcançando a praia. Quantas vezes teria que fazer aquilo? Mas não se assustava. A vida do índio se encadeava naquela mesmice comum de todos os dias. A vida do rio era sempre a canoa atracando na praia e desatracando. A praia tinha tanta importância como a água, como o sol e como a dança.
Procurou um recanto onde a canoa deslizasse bem e pudesse encostar. O remo tocava na areia, pouco mais a proa da embarcação emitiria aquele chiado familiar...
Parou e suspendeu o jacuman e a canoa livre foi aproar na areia branca.
Os outros acordaram assustados.
- Não é nada. Cedo vai amanhecer. O céu vai ameaçar vento logo. É bom a gente ficar nesse esconderijo.
Saltou n'água e foi para proa para suspender a canoa. O Tenente veio em seu auxílio.
Kanaú apontou para um pequeno bosque de árvores baixas no alto da barreira.
- A gente cobre a canoa de mato e passa o dia descansando ali.
O Tenente concordou e foi para junto do sarão ajudar Kanaú a cortar o mato e trazê-lo para junto da ubá.
As mulheres tinham retirado as cobertas e as esteiras; esperavam que os homens acabassem para subir a barreira.
Sá Lua obedecia como uma autômata. Tanto fazia dormir como não. Acompanhava os outros como descia arrastada pela canoa.
Kanaú suspendeu o dorso e arrumou a faca na bainha, endireitando o cinto.
Os outros o acompanharam quando ele subiu a barranca.
Pássaros da noite retiraram-se ruflando asas invisíveis.
Kanaú procurou um lugar de onde eles pudessem vigiar o rio e a embarcação escondida.
Limpou o lugar e fez sinal que aquele era o ponto indicado para descansarem.
Foi o primeiro a enrolar-se no cobertor velho. O cheiro do mato tresandava a almíscar e a umidade que vinha de mais dentro metamorfoseava-se no perfume da vida. Aquilo tinha o mesmo cheiro da chuva quando caía na terra ressecada. Sorveu prazerosamente o resto do odor da noite que morria.
Olhou para o céu antes de dormir. Sempre olhava o céu assim. Era aquele estranho fascínio de sempre. Ainda havia muita escuridão, mas em breve as estrelas também iriam dormir. Como o céu se tornava alto, visto de onde estava! As estréias furavam os galhos das árvores pequenas para observar tudo. As árvores paradas tinham emudecido de silêncio. Nem um ramo oscilava com a mais delicada das brisas. Ele entretanto sabia que bastava adormecer de todo, os galhos viriam a ser agitados pelo Geral e que o Geral ainda repetiria isso por mais dois ou três dias. Depois também descansaria por um ano.
Fechou os olhos. Adormeceu profundamente.
Tilde já se enroscara no seu canto afastado. O Tenente se sentara, encostado num tronco. Sá Lua se afastou de todos. Não queria a aproximação de ninguém. Nem mesmo de Tilde. Foi sentar-se longe e tornou a se perder na noite, dirigindo a vista para o rio.
O Tenente foi descendo a cabeça sobre o peito. O cansaço e a emoção das últimas noites descia como um túmulo sobre cada corpo.
O silêncio da noite aumentava mais a segurança e favorecia o repouso.
Quando a madrugada despertava, o Geral principiou a ventar e ninguém se apercebeu.


Despertou com a claridade sobre os seus olhos. Entreabriu-os. O céu estava todo em vermelho. Sorriu. Nunca Kanansiu-ê fizera uma manhã mais lindai Aquilo não era sol e sim as costas de Kanansiu-ê que se banhava nas nuvens brancas. Kanansiu-ê soltara todas as suas araras de plumagens maiores e mais vermelhas e estava se preparando para a caça de todos os dias.
Dirigiu os olhos para o rio. Sentiu uma sensação esquisita. Fixava o rio como se fizesse uma despedida. Mas não era uma despedida de quem vai e de quem volta. Era algo com aspecto definitivo. Ergueu o corpo sobre os cotovelos para espiar melhor e afastar aquele começo de angústia espezinhante.
O Geral enfiou-se endiabrado pelas franjas de seus cabelos lisos e avermelhados.
Deu com o Tenente caído sobre o próprio ombro, esgotado pela fadiga.
Tilde continuava enroscada na mesma posição que se deitara. Somente havia puxado a coberta sobre os olhos. Distanciou a vista procurando Sá Lua. Ergueu-se de uma só vez. O lugar estava vazio e o cobertor abandonado fora empurrado pelo vento até uma trepadeira selvagem. Ali ficara aprisionado, agitando-se com um estalar macio.
Kanaú sacudiu a mulher. Tilde foi se desenrolando como uma cobra.
Seus olhos miúdos e remelentos indagavam o que havia acontecido.
- A mulher desapareceu.
Ela reparou no cobertor e sorriu feiamente.
- Capaz de ter ido se banhar.
- Pode ser. Mas eu vou ver isso de perto.
Desceu a barreira e caminhou na praia. Não havia nada. Só a praia muito longa, muito esguia e muito branca se esgarçando por todos os lados.
O rio agitado pelo vento parecia esconder um grande mistério.
Tornou para perto dos outros. Tilde voltara a se cobrir e adormecera.
Chamou a mulher meio irritado. Ela sentou-se.
- E agora?
- Desapareceu. Vamos chamar o homem.
Aproximou-se do Tenente e sacudiu-o. Ele acordou estremunhado, com aqueles olhos de medo. Aqueles olhos que sempre pareciam esperar uma tragédia maior.
- A mulher sumiu.
Precisaram repetir duas vezes para ele compreender o significado da frase.
Ele ergueu-se e afivelou a guaiaca. Sua boca estava entreaberta e uma baba escorregou pelos lábios ressecados.
Acompanhou Kanaú e Tilde sem uma única palavra.
Desceram a barranca e penetraram na água ainda morna pela ausência do sol. Atravessaram o pequeno braço do rio e subiram na praia.
Não se tinham enganado. Os pé de Sá Lua estavam impressos na areia. Via-se que ela parará um pouco e procurava a direção que devia tomar.
Foram seguindo as pisadas. Elas atravessaram a praia em busca do grande canal do rio.
Ninguém dizia nada. Só acompanhavam os pés. E os pés iam se sucedendo na areia sempre na mesma direção. Até que chegaram na beira do canal do rio. O rio estava agitado pelo Geral e as últimas marcas principiavam a ser apagadas pelo mais forte do vento próximo o rio. Eles ficaram espiando o rio em silêncio.
O Tenente entreabriu os lábios e balbuciou soturnamente:
- Foi melhor assim.
Virou as costas e retornou ao acampamento.
Tilde se abaixou e ficou espiando a marca do pé na areia. O último pé fora o esquerdo. Um pé tão pequeno. Tão bem feito. O vento aumentando vinha apagar os traços do pé na praia.


Não falou mais. Encostou-se na mesma árvore onde descansara o resto daquela noite e ficou espiando com aquele olhar de louco que atravessava tudo. O brilho das pupilas tinha tomado o aspecto de duas manchas sombrias. Não soltava a mão da guaiaca. E suas expressões denunciavam uma hostilidade para tudo. Parecia que a natureza para ele tinha adquirido um aspecto humano. Odiava o vento e sentia ganas de apontar o revólver para ele e disparar, disparar... Os ramos das árvores eram braços ameaçadores. Os cipós e as lianas se contorcendo viravam dedos negros que remexiam lama e sangue. Tudo virava gente. Gente sedenta de vingança. Só aqueles dois eram bichos. Eram porcos. Porcos imundos que a qualquer momento o matariam. Bem que desconfiava daquela vagabunda. Tão amiga, tão protegida de Sá Lua e agora juntando-se ao índio para virar-se contra ele. Sim. Os dois queriam matá-lo. Se apossar do diamante e dividir o lucro entre eles. Mas isso nunca.
Olhava os dois se ajudando. Juntos. Imundos, ambos de cócoras. Ele segurando o espeto de carne e ela ajeitando o fogo.
O cheiro da carne se tostando não lhe despertava desejos. Aquele sabor amargo que vinha de dentro e se alastrava pela garganta não deixaria que comesse. Não sentia fome. Apesar do cinto cada dia ser apertado mais. Apesar dos braços que perdiam os músculos fazendo com que a pele adquirisse uma tonalidade mais escura, sem brilho e doentia. As mãos criminosas iam ficando desproporcionadas e agora sim, é que pesavam!... Pesavam tanto que ele procurava sentir o hálito da criança sobre os calos grossos e não conseguia...
A criança se transformara numa coisa triste de há muito tempo. Nem parecia verdade que ela existira. Também a mulher que se fora no rio, não era a sua. Não podia ser. Ou ele estava se acostumando ou cansaço e a tristeza eliminavam a realidade das recordações. Nem sequer a cabeça lhe doía. Às vezes convencia-se de que fora outro e não ele, o homem que presenciara o massacre de Daniel pelos Xavantes. Nem sabia quem era Daniel. Se fizera companhia na viagem desde o começo ou se pedira passagem em qualquer daqueles povoados.
Derreou a cabeça e sentiu tonturas. Os olhos formigavam e um tremor desusado remexia pedaço por pedaço os seus músculos. Parecia que a qualquer momento uma grande insensibilidade o impedira de mover-se.
No chão seus olhos descobriram um escaravelho ressecado e recoberto de areia. Seu dorso brilhante tinha iluminações esverdeadas.
Estendeu a mão para apanhá-lo, mas a mão custou a chegar até o bicho morto. Seus dedos endurecidos teimavam em não se fechar. O bicho permaneceu inatingível despendendo brilhos.
Então com desespero e reunindo o máximo dos esforços ergueu as mãos até à fronte e apertou-a doridamente. O sangue pareceu esquentar de novo, os olhos pararam aquele formigamento. Soltou os membros e sentiu-se aliviado porque os músculos obedeciam à sua vontade.
Levantou a cabeça e deu com o dois que o observavam. Uma chispa de ódio perpassou-lhe na quase escuridão das suas pupilas. Viu que a mulher dizia qualquer coisa para Kanaú. Não conseguia se aperceber do que era porque eles falavam baixo. Mas nem precisava ouvir, adivinhava o que diziam. Estavam combinando o momento. Estavam esperando que ele se distraísse para cair em cima dele, destruindo-o e se apossando do diamante. Abutres do inferno!
Quis erguer-se mas sentiu-se muito fraco. Voltou à posição antiga.
- Olhe, Kanaú!
- Estou vendo.
- Será que ele não quer comer alguma coisa? Ele há muito que não come. Está sumindo de fome.
- Se fosse só a fome. Ele está é ficando louco. Qualquer hora em que piore, mata a gente.
Kanaú levantou-se.
- Onde você vai?
- Vou levar um pedaço de carne assada. Talvez ele coma. Tilde acompanhou Kanaú aproximando-se do Tenente. Seus dedos se contraíram apertando a coxa magra. O Tenente com a aproximação do índio sacara do revólver e esperava. Ouvia a voz rouca e que perdia a força.
- O que você quer?
Kanaú não se amedrontou e aproximou-se mais. Distendeu a mão que sustinha o alimento.
- O senhor deve estar com fome.
A mão esquerda do Tenente ergueu-se e de repente tomado de violência bateu na carne. O espeto soltou-se da mão de Kanaú e foi encher-se de areia.

O mestiço não se alterou. Ficou olhando a carne suja. Agachou-se e apanhou-a. Limpou-a com os dedos. Falou humildemente.
- É o nosso último pedaço de carne.
Virou as costas e voltou para o local de onde viera.
Tilde sondava-o com os olhos. Não se conteve e perguntou:
- O que a gente vai fazer?
- Não sei. Ele está completamente louco.
Alguma coisa apareceu nos pensamentos de Kanaú. Seus olhos se iluminaram.
- O que foi?
- Sabe de uma coisa? Aquele homem pode querer matar a gente e eu vou me prevenir. Vou até à canoa buscar minha espingarda.
- Eu também vou. Não fico aqui sozinha com um doido.
Os dois se encaminharam para a praia. Iam em silêncio. O Geral continuava forte. Tilde expressou seu desânimo.
- E esse vento que não pára nunca! Entraram n'água e pisaram na praia.
Um grito medonho fê-los parar. Viraram e deram com o Tenente que os seguia. Estava entrando n'água.
- Parem senão eu atiro.
Kanaú aconselhou:
- É melhor obedecer.
O Tenente cambaleava em direção deles. Parou defronte e sorriu sinistramente. Estava completamente doido.
- Eu sei o que vocês querem. Não me enganam. Vão para a canoa apanhar as armas para me matar. Mas isso vocês nunca farão. Não será assim que vão se livrar de mim.
Caminhou de costas, oscilante, dando a impressão de que cairia a qualquer momento ou que ainda se sustentava em pé pela força da loucura. O revólver achava-se apontado para os dois. O Tenente ria e todas as rugas do seu rosto ampliadas pelo emagrecimento e pelo sol aumentavam como pautas de música numa lente. Contornou a canoa e sempre de frente, gritava para eles.
- Isso. É isso que vocês queriam, não?
Foi, com a mão desimpedida, retirando os ramos que cobriam a canoa, depois os trens, até que encontrou as armas.
Kanaú viu que ele apanhava também a sua vinte e dois. Mas nada podia fazer.
O Tenente retirou tudo e abraçou as armas, espremendo-as com o braço esquerdo contra o peito.
Kanaú distinguia entre elas o cabo amarelado de nogueira, novinho, da sua vinte e dois. Não obstante não se moveu. O homem estava louco e atiraria. Naquele instante só sentia um remorso: por que abandonara a arma na canoa? Não pensara naquilo. Sempre a deixava ali...
O Tenente cambaleando agora mais porque o peso das armas se tornava enorme para o corpo enfraquecido, atravessou a praia e atirou tudo no canal.
Voltou. Seu riso era maior, mais alvar.
- Era isso? Pois bem. Só eu estou armado, porque nem isso... Debruçou-se na canoa e apanhou o arco e flechas de Kanaú.
- Nem isso ficará. Os papéis se inverteram: vocês dois ficarão na minha mão. Apanhou a sacola de munição e repetiu o que fizera com as armas. O arco e as flechas boiaram e foram se afastando na correnteza.
Tilde nada disse, mas sabia o que Kanaú pensava nesse momento. Tinham comido o último pedaço de carne. Não tinham mais armas para se defender. Nem sequer Kanaú podia flechar algum peixe. Além de toda a maldição que rondava a canoa, outro castigo entreabria as garras pontudas: a fome.
O Tenente sempre sorrindo parou perto deles.
- A única coisa que nós temos agora é isso - apalpou a cartucheira. Muito tiro, e um único revólver. Mas é meu. E não se aproximem porque atiro para matar.
Atravessou a praia e subiu a barranca.
- Os olhos dele! - exclamou Tilde - Os olhos dele! Nunca vi uma coisa assim.
Pegou no braço de Kanaú com força.
- Tive uma idéia, Kanaú. Por que a gente não pega a canoa e não desce o rio? Esse homem está louco e vai nos matar. Deixe ele, por aqui. Os bichos acabam com ele.
Kanaú não disse nada. Aproximou-se da canoa, mas seus pensamentos eram outros.
- Não podemos fazer isso, Tilde. Falta pouco.
Foi recolocando as coisas na canoa. Depois voltou a cobri-la com os galhos de sarão. Tinha uma pena enorme da espingarda tão nova, tão cobiçada por quantos a viam no Araguaia. Fora tão difícil, na qualidade de índio, conseguir uma na civilização. Para um marisco não existia arma mais apropriada. Acabou de arranjar a ubá.
- Você vai voltar para perto dele?
- A gente precisa ficar perto dele sim. Não se pode perder nada do que ele for fazendo. A salvação nossa está nisso.
Foram atravessando a água e subindo a barreira devagar.
- E se ele está de tocaia e atira?
- Vamos arriscar. Talvez ele se sentindo em segurança tenha voltado a sentar-se naquele tronco... Quando chegar a hora...
- Você vai fazer isso?
- É claro. Ou a vida dele ou a nossa...


Sexto Capítulo - As Garras Da Selva

Kanaú não errara nos seus cálculos. O Tenente voltara a se sentar naquele tronco. Oferecia as costas para a selva, mas seus olhos doidos permaneciam dirigidos para eles. Por vezes se tornavam tão imóveis como se fossem de vidro.
Nada tinham a fazer senão esperar uma oportunidade. O vento não passava e o sol forte trazia uma sonolência envolvente. Tilde bocejava continuamente, mas esforçava-se para não dormir. Entretanto, os olhos miúdos iam desaparecendo nas pálpebras. Os pensamentos adquiriam um caos de ruídos esquisitos e coisas estranhas. Por segundos via-se envolvida em paisagens e coisas que não conhecia ou que jamais pensara existir. Um mundo flutuante e relativamente calmo deslizava à sua frente. Abria os olhos e tudo se evaporava. Não queria adormecer. Nem deitar-se. Mas o corpo não obedecia. Como gostaria de morrer naqueles momentos. A vida se tornava leve, inconsciente, desvalorizada; morrer agora não tinha importância alguma porque passaria de um sono para uma escuridão maior sem sentir.
Abria os olhos. Reagia. Bocejava. Tentava erguer o corpo. Mas a mornidez do vento e o calor que emanava dolente das profundezas da terra, o sussurro misterioso que provinha da selva, anulavam todas as suas reações. O corpo se enrodilhava cada vez mais. Parecia que estava se entranhando na terra como se fora a raiz de uma grande castanheira. E o sono seu era suave como a terra úmida e sombria.
Ouviu longe a voz de Kanaú.
- Durma um pouco que eu fico tomando conta.
Quis sorrir agradecida, mas não conseguiu. O vulto de Kanaú, seu peito bronzeado e nu se confundia naquela sombra grande de que fazia parte. Adormeceu extenuada.
Kanaú também se deitou e ficou espiando o homem. Os olhos do louco, com o emagrecimento do rosto estavam enormes e se salientavam mais porque a barba negra produzia com as sobrancelhas um brutal e distoante contorno. Se ele dormisse, arrastar-se-ia pela selva e o desarmaria. Esperaria a noite. A noite que encobria tudo...
Ficou naquela posição também lutando contra o vento morno, contra o sono imperioso que o tentava sempre. Mas se ele dormisse tudo estaria perdido. Resistira até ali, por que então dormir? Justamente quando tudo se aniquilava? Pensou no diamante e sorriu. Dinheiro muito. Dinheiro que seria todo dele. Olhou a mulher adormecida, frágil e feia. Aquela? Poderia se desfazer dela com a maior facilidade. O perigo eram os Tapirapés. Estavam distantes do rio apenas por um dia ou pouco mais. Não se iludia que todos os moradores: tanto o Serviço de Proteção aos índios, como os carajás que se abrigavam junto do Serviço e os índios Tapirapés que moravam na vizinhança atemorizados pelos Caiapós, tinham sido avisados. Sabia que todos estavam de sentinela. Um diamante daqueles valia muito. Sorriu lembrando-se de uma coisa: O diamante! O diamante estava ali, a menos de dez passos roçando nas costas, nos rins de um louco e não se podia fazer nada. Mil e poucos contos inutilizados, intocáveis para a sua fraqueza. Mas sentia uma certeza absoluta de que seus dedos apalpariam a gema, num sentido de posse. Apertou os dedos para confirmar os pensamentos. As coisas tinham acontecido numa corrente sangrenta para favorecê-lo. O diamante girava num rebojo de sangue, num redemoinho de crimes, numa voragem de cobiça. Mas até agora ele ebulia no sangue gasto pelos brancos. Parecia um mensageiro de vingança. Os brancos gastavam o seu sangue para que ele Kanaú se libertasse do seu sangue índio. Com dinheiro poderia deixar de ser índio, morar primeiro numa capital do Norte. São Luís, Teresina. Muitos caboclos viviam nessas cidades. Depois adquiriria mais traquejo e procuraria uma cidade maior! Aí, o desânimo crescia. Não iriam descobrir? Não desconfiariam que ele era índio? A cara o traía sempre. Baniu esses pensamentos desagradáveis. Até lá arranjaria uma solução.
Sentiu o braço adormecido e friccionou-o para que o sangue funcionasse livremente.
Menos de um mês e no entanto parecia um século, conseguira tudo. Quase tudo. O destino organizara os planos como se atendesse a todos os seus desejos. Primeiro a recompensa de Camura. Depois algo maior: a partilha do lucro. Com isso eliminara Camura. Não sentia remorso e nem havia perigo que descobrissem o crime. Camura estava morto, bem morto, comido pela terra, de lábios selados. Só ele o poderia acusar. Mas a terra silenciava tudo. Valentim juraria pelos céus que Camura morrera de bebida. O relatório sobre isso já devia ter sido encaminhado às autoridades. Depois, Daniel. O único mal que fizera ao desgraçado fora incendiar o capinzal, mas aí ele estava morto, bem morto e não sentira nada. Depois fora o menino. Até que era uma criança bonitinha! Sá Lua também se desinteressara do diamante; ela mesma buscou a morte, o afastamento dos lucros. Agora...
O Tenente continuava olhando para os dois.
Faltava ele. E depois?...
Reparou no embrulho, na rodela humana que era Tilde. O demônio, o feitiço, Lateni - o deus-bicho do mal - agia sem parar. Não precisava matar aquele farrapo. Mas Lateni ciciava aos seus ouvidos: Por que dividir com ela? O que precisava um bicho daquele na vida? Que iria fazer com o dinheiro? Recordou-se dos seus planos. Abrir um botequim - dissera ela - ou coisa parecida. Sorriu com desprezo. O dinheiro que aquele diamante valia não podia ser aplicado num botequim ou numa venda. Aquela mulher estava louca...
Trocou de posição. Descansando o queixo no outro braço, Nenhum de seus movimentos passava desapercebido ao Tenente.
Fingia não notar sua presença. Um ruído vinha do rio no meio do vento.
Não se conteve, acordou Tilde.
Ela indagou com os olhos:
- Vamos lá.
Levantaram-se e foram para a barranca. Esconderam-se entre os arbustos, deitando-se no chão.
No meio do canal, descia um batelão de homens. Eles cortavam o banzeiro de qualquer jeito.
- São eles.
- Eles quem?
- A polícia. A polícia de Camura.
Pareceu escutar a voz do delegado quando contava que tinha pedido apenas um batelão com dez homens armados...
- Camura tinha me falado deles. São dez.
O batelão se afastava.
- E se a gente desse o alarme?
- Eles viriam até aqui e matariam todos os três. Você não sabe que a lei no garimpo pune o roubo com a morte?
- Mas se a gente dissesse que não sabia de nada?
- Não adiantava. Eles não acreditavam...
- É mesmo.
Ficaram vendo o batelão se perder no rio e no banzeiro.
- Kanaú, o que nós vamos fazer?
Ele olhou-a interrogativamente.
- A carne acabou. Só existe um pouquinho de farinha. O café também e a rapadura só tem um pedacinho... O que a gente vai fazer?
- Eu já pensei nisso. Mas preciso que você me ajude.
- O que você pensa fazer?
- Sabe onde nós estamos?
- Sei. Passamos a aldeia de Fontoura e devemos estar duas léguas de Mato Verde, não é?
- Isso mesmo. Mato Verde é um povoado já bem grande. Quase como São Félix. A gente não pode parar para comprar nada. Mas tem uma salvação para a fome. Em Mato Verde está a aldeia carajá de Creran-auá. Também não se pode parar ali porque os carajás já estão avisados e por dinheiro entregarão a gente. Logo eu, que os inans não gostam porque acham que sou branco e não fiz os círculos debaixo dos olhos...
- E como você se arranja?
- Olhe Tilde, só você pode me ajudar. A gente não pode perder de vista o Tenente. Você fica que eu vou buscar comida.
- Mas em Mato Verde? Tão longe?
- Não. Não é lá. Eu conheço bem o rio e essa gente é minha gente. A uns três quilômetros daqui indo pelo mato, tem um cemitério de carajá. Lá tem comida, porque sempre eles levam comida para os mortos. Pelo menos banana e talvez melancia eu encontro.
- Você vai buscar?
- Se você ficar tomando conta do Tenente.
- E se aquele pessoal do batelão estiver acampado por perto por causa do banzeiro?
- Não penso ir de canoa. Seria mais fácil, mas o mato oferece mais abrigo. Você volta para perto do Tenente e fica deitada como se nada estivesse acontecendo. A gente precisa arriscar... ou então morreremos de fome. Antes de entardecer estou de volta.
- Você não tem medo de ir desarmado?
- Tenho a faca. Vou cortar uma lança de uma boa madeira.
- Então vá logo e não demore...
Tilde voltou para junto do Tenente e tornou a enrodilhar-se.
Uma légua pela selva não significa nada para Kanaú. Mormente a certeza com que conhecia tudo. Às vezes o mato escasseava e ele tinha que caminhar em grandes lagos rasos que nasciam das enchentes do rio e morriam com a vazante. Ali o capinzal era todo verde e ondulava. O rio ainda estava alto. Dentro de alguns dias quando o sol secasse as últimas águas, a lagoa morria e o capim todo se transformava num mar amarelo. Era bonito o vento ondulando tudo. Não havia tragédia naquela verdura toda que respirava. Nada que se assemelhasse ao capinzal ressecado, ardendo na noite da morte de Daniel. A selva vivia na paz da solidão. Uma garça solitária levantava vôo, pressentindo a aproximação de um estranho. Bando de marrecos selvagens erguia o vôo em sobressalto numa debandada infernal.
A lagoa principiou a secar e Kanaú tornou a entrar na mata. Por algum recorte da floresta via trechos do Araguaia ensolarado, revolvendo-se no banzeiro.
A beira do rio estava formando uma elevação. Um pequeno monte pouco maior que uma barreira. Foi caminhando sem se afastar do rio e sem penetrar no profundo da selva.
Penetrou por uma trilha que a cada passo se alargava. Nem precisava notar que subia sempre. Do alto do montículo espiou o rio para ver se alguém se aproximava. Nada. Ninguém. Só havia silêncio. Até o próprio vento cantava o silêncio.
Um sentimento de respeito cresceu ao aproximar-se do local que buscava. Uma clareira rebentou no mato. Árvores secas jaziam derrubadas oferecendo um terreno limpo. Parecia que alguém fizera roça naquela região há muito tempo. E não deixava de ser uma roça: a plantação dos mortos.
Como conhecia aquilo. O sangue índio dominou-o de novo. Era ali que os carajás enterravam os mortos. O sítio parecia abandonado. Pisou de leve porque cada recanto era sagrado. Foi descobrindo emocionado o que pensara encontrar. Há muitos anos atrás tinha passado por ali. Agora retornava e nada mudara. A barreira destruída pelo rio quando enchia deixava à mostra diversos vasos achatados, onde os inans depositavam os corpos. Alguns vasos envelhecidos e quebrados derramavam ossos esbranquicentos pelo chão.
Caminhou mais respeitosamente. Sentia que profanava alguma coisa e o medo do feitiço renasceu mais forte. Jurou consigo mesmo entreabrindo os lábios que só fazia aquilo motivado pela fome. Rezou para as almas que vagavam, que dormiam no fundo do rio ou que habitavam as estrelas e se transformavam em mil olhos na noite, que era a primeira e última vez...
O silêncio de tudo aumentava o seu medo e a sua superstição.
Espiou demoradamente o chão e descobriu rastros novos. Alguém estivera ali, podia garantir, ontem mesmo. Espiou em volta, receoso de que o observassem. Mas circundando o local só os cipós oscilavam ao vento. Estremeceu pensando que as almas sopravam os cipós.
Caminhou mais no meio do cemitério. Só havia abandono. Como a morte era muda para os mortos! Quantos reduzidos a ossos brancos não tinham dançado o Aruanã nas noites de lua?
Mudou o rumo do pensamento. Não podia demorar, porque Tilde se encontrava à mercê do Tenente louco. Receava que o homem num momento de alucinação se atirasse ao rio com o diamante e todo aquele trabalho ficasse perdido.
Dominou-se e caminhou rapidamente entre as jarras chatas de barro. Descobriu o que precisava. A terra tinha sido revolvida e destoava de cor dos outros planos. Haviam enterrado alguém ali. Lembrou-se que Tilde lhe contara da índia velha que não quisera morrer na aldeia. Devia ter sido ela.
Achegou-se mais da cova. Sobre ela havia uma vasilha de kalugi, duas pencas de banana madura e uma grande melancia. Tudo aquilo fora deixado pelo companheiro para que a alma da velha se alimentasse na viagem.
Com os dedos trêmulos apossou-se das bananas e da melancia. Olhou contristado para a terra fofa. Seu coração queria dizer para a morta: Sinto roubar o alimento da sua grande viagem. Mas você era velha e não necessitará de grande coisa para se alimentar. Nós somos dois e não temos armas para caçar.
Retirou-se devagar do sítio. Reparou em volta; ninguém o observava. Só os cipós balançavam-se sem ruído. Não seria nada agradável que o encontrassem a roubar a comida dos mortos...
Retrocedeu por onde viera; tornava-se mais fácil a volta. Até a lagoa pareceu ter diminuído de tamanho.
A tarde se anunciava colorida. Os periquitos cortavam os céus em nuvens; os papagaios naquela algaravia incompreensível procuravam as palmeiras de babaçu para aninhar-se. Colhereiros cor-de-rosa, buscavam o rio para colorir mais as penas no róseo do poente. E o vento soluçava agora, como se cantasse uma cantiga de tristeza.
Atravessou a lagoa e penetrou no mato.
Se tivesse descido de canoa iria demorar mais na volta. Se bem que remar se tornava uma coisa agradável e fácil.
Estava se aproximando do local onde deixara Tilde e o Tenente acampados. Um tiro repercutiu pelo mato. Uma gritaria selvagem irritada respondeu ao eco.
Kanaú parou escutando. Queria ver se o tiro ou quem atirava, repetiria a proeza. Mas nada. O silêncio voltou a ser carregado pelo vento. Não havia dúvida. Tinha sido ele. Correu. Na certa iria encontrar Tilde com a cabeça rebentada ou com um filete de sangue escorrendo do peito. Lamentou ter abandonado a moça perto de um louco armado de revólver.


Os olhos ainda estavam dilatados de pavor. De pequenos eles se tinham transformado em duas brasas acesas, acesas de medo.
Ela se dominou um pouco e foi controlando os finos braços que se agitavam em tremores, chicoteando as coxas. Respirou fundamente e o coração que batia a ponto de agitar as costelas foi aliviando.
Não podia desfitar o quadro em frente. O homem ainda estertorava. O sangue escorria pelo chão, invadia a areia. Na areia também a massa esbranquicenta dos miolos se esparramava. A bala penetrara na boca e destampara o fundo do crânio.
O corpo de borco ainda se movimentou alguns momentos. Depois os braços foram se inteiriçando; as pernas se agitaram num último momento de vida e tudo se imobilizou.
Tilde não conseguia ainda se locomover. Parecia se ter transformado numa raiz presa à terra. O que via era o homem morto. O homem que se chegara próximo a ela. O revólver chispando ao sol. Os olhos, duas manchas negras incendiadas. Ela correu até à barranca do rio. Mas ele a seguia. Cambaleante. Uma espuma escorria pela boca. Ela perdeu as energias. Suas pernas fraquejaram e sentou-se no chão. Muda de medo. Só via o revólver crescer de volume e caminhar para o seu corpo. E Kanaú que estaria perto de voltar, não chegava nunca. O tempo perdera a importância e só existia aquele revólver apontado, parado a seis palmos do seu rosto. Por trás do revólver o homem que babava e que principiara a sorrir. Louco, completamente louco.
Algo de estranho se realizou. Seus olhos negros se desfitaram dela para observar o rio. O sorriso foi morrendo aos poucos e sua garganta engoliu, fazendo que o pomo se movimentasse várias vezes. Seguiu o que ele estava olhando, mas não divisou nada. Apenas a tarde que morria e o vento se espreguiçando no rio. O Tenente levou a mão à garganta e uma voz fraca, rouca, estrangulada se escapou:
- Ele. Ele está me chamando. O homem do fogo. Todos nós estamos enfeitiçados. Foi aquele índio maldito!...
Voltou a encará-la. Um sorriso de escárnio apareceu de novo.
- Você e ele! Pensam que vão me matar? Mas não conseguirão!
Teve um estremecimento e Tilde pensou que ele fosse desfalecer, mas num movimento inesperado, ergueu a arma até à boca e disparou.
O corpo ficou indeciso por um minuto. Andou um passo, resvalou por ela e foi estatelar-se adiante.
Estava ali parado. Um fiozinho escorria pela boca, vermelho. O chão ia se ensopando mais de sangue.
O tiro repercutia bárbaro aos seus ouvidos e a voz do suicida ficava repercutindo cava: Você e ele! Você e ele!...
Conseguiu num esforço levantar-se e agora acalmava os nervos. Paralisava os braços. Uma sensação de alívio contrapôs-se ao medo. Havia mais de três horas trazia os nervos à flor da pele, como que adivinhando aquele momento. Tudo passara e o homem era um morto. Os mortos não fazem mais mal.
Concatenou os pensamentos. Olhou em volta. Só Deus se existisse teria presenciado aquilo. Kanaú não retornara. Criou coragem e ajoelhou-se junto do homem. Os dedos ainda tremeram quando se debruçou sobre ele. Os dedos do homem ainda estavam quentes. Abriu-os com facilidade e apanhou o revólver. O cabo se encontrava umedecido de suor. Enxugou-o na saia. Sentou-se um minuto para armar-se de nova coragem.
O corpo do homem quase não pesava. Desvirou-o, com cuidado para não manchar-se de sangue. Uma sensação de segurança envolveu-a. Todo o medo desaparecera e não sentia pejo algum em tocar naquele homem. Não se amedrontou em deslizar as mãos sobre o morto. Em vida não se aproximava dele. Odiava-o. Contudo o homem morto não lhe causava terror e sim desprezo. Vivo ele era um medroso, um covarde que abusava da força. Morto, passado o grande susto, se transformava numa massa insignificante.
Desafivelou a guaiaca e foi puxando. O couro também estava molhado de suor internamente. A guaiaca rescendia mal. Era como o corpo do homem que exalava um cheiro acre, azedo, de sujo acumulado pelo suor.
De posse do cinturão voltou a sentar-se dois metros atrás do cadáver.
Seus dedos então adquiriram outra espécie de nervosismo. O coração latejou com força. Entreabriu o forro da guaiaca. O coração bateu ainda mais forte. Enfiou o dedo no interior. Sentiu o que procurava. Hesitou um pouco e deixou o diamante no fundo. Queria verificar o que havia no interior da bolsa, antes de espiar o diamante. Trouxe à claridade, a mão recheada de dinheiro. Dinheiro! E era dela! Agora tudo seria dela! Não precisou contar as notas. Eram muitas e quando passassem os Tapirapés, dariam um jeito de comprar comida, roupa e - sorriu - e até um sabonete.
Jogou o dinheiro sobre a saia. Seus dedos voltaram a se enfiar na guaiaca. Foi puxando o diamante para fora. Devagar como se ele pesasse mil quilos. O coração crescia assustadoramente no peito. De um arranco libertou a pedra da guaiaca. Trouxe-a na palma da mão. O sol da tarde rebentou em fulgurações sobre a pedra. A luz se dividia. Era o próprio sol que ela segurava entre os dedos. E no entanto a pedra ainda não fora tratada, lapidada.
Caiu de joelhos sem desfitar a gema. As notas escorregaram da saia e se esparramaram no chão; o vento espalhou-as em todas as direções.
Tilde sentiu após tantos anos os olhos se encherem d'água. Beijou o diamante, encostou-o contra o coração, alisou-o contra a face. Ali estava a vida. O caminho da vida. O diamante era o sol, era vivo, pulsava. Não admirava, sentindo-o entre suas garras feias, que tanta gente se matasse por ele. Mas era a vida! Sobretudo a vida. Agora seria alguém. Poderia respirar, vestir-se e viver! Viver decentemente.
Foi-se sentando suavemente. O coração exultava de alegria. Que importava Daniel, Sá Lua, o menino e o Tenente? Todos mortos. E ela estava viva e respirando. Os outros eram mortos, apenas mortos. Dona do tesouro, podia respirar, vestir-se, viver! Os que morreram não interessavam mais. Nem sequer lhes guardaria uma lembrança grata. Eles deixavam-lhe aquela herança, não por amizade, mas porque tinham deixado de existir e só os mortos morrem. O futuro estava próximo como uma visagem de esperança. Lutaria por ela. Parecia que sempre fora a dona do diamante. Lutaria mais, mais e sempre mais para que tudo ficasse para ela.
Acalmou-se e mirou mais segura do que nunca as cem facetas virgens do brilhante. Fechou os dedos com ciúme e medo do sol. Entreabriu a guaiaca e depositou sagradamente a pedra no interior. Depois ajoelhada, foi engatinhando e juntando as notas espalhadas. Dinheiro! Aquele era até pouco, perto do que o diamante iria lhe proporcionar. Até àquele momento não pensara assim. Não acreditava muito em apalpar o lucro que seria dividido em Belém. Entretanto, apanhando as notas sentia o coração derramar-se de cobiça. Tudo ainda era pouco. Ela queria mais. Faria com que o seu dinheiro rendesse. Seria sempre rica. Nunca seus dedos foram tão carinhosos como quando apanhava o dinheiro, ajoelhada. Ajoelhada ante o sangue dos pobres, o sangue de toda a humanidade podre.
Reuniu tudo num só monte e voltou a guardar no lugar em que sempre estivera. Colocou a guaiaca suada em volta da cintura e afivelou o cinto no último buraco. Não sentia um pouco de repugnância ao apertar-se, ao roçar-se no cinto suado e fétido.
Retirou a bala gasta do revólver e substituiu-a com outra da cartucheira. Enfiou a arma no coldre.
Agora se sentia segura. Foi sentar-se junto a um tronco de árvore e aguardar a chegada de Kanaú.
Contou tudo calmamente e o índio a espiava espantado. Aquela mulher não tinha nervos. Escondeu para ele o medo que sentira e disfarçava um resto de emoção que podia transparecer ao relatar a história.
- Pensei que ele fosse atirar.
E Kanaú espiava o corpo do homem morto.
- Foi o feitiço!
Kanaú estremeceu.
- Só falava: Você e ele! Você e ele!...
Calou-se e observou Kanaú que se sentava meio desanimado. Notou que o mestiço estava com medo. Mas não acreditava nele. O diamante roçando-lhe nos rins advertia-a de tudo. Ele poderia estar fingindo medo para inspirar-lhe confiança. O diamante lhe comunicava ao ouvido: - Você já se esqueceu? Esse índio é falso! Você sabe disso!
Durante uns minutos Kanaú guardou silêncio. Encarava fascinado o homem morto. As últimas moscas da tarde esvoaçavam sobre o rosto tentando penetrar na boca. Mosquitos tatuquiras banhavam-se na saliva e no fio de sangue coagulado. Formigas vermelhas andavam sobre o corpo.
- Dentro de uma hora será noite. A gente devia ir embora desse lugar.
Tilde sorriu.
- E o vento?
- O vento está menor. E agora somos só dois. É mais fácil. A canoa está mais leve.
- Então vamos.
Tilde ergueu-se.
Mas Kanaú permaneceu sentado. Perguntou humildemente:
- Você apanhou o diamante?
Tilde fixou os olhos do índio, procurando desvendar outro sentido naquelas palavras. Todavia não parecia haver nada além do que perguntara.
Bateu com os dedos na cartucheira.
- Está comigo. Aqui na guaiaca.
- Cuidado para não perder. Não seria melhor que eu levasse a arma?
A luta começara. Ela precisava de tato. Não queria que Kanaú soubesse que ela se prevenia contra ele. Fingiu humildade.
- Deixe comigo. Olhe Kanaú a gente é tudo que resta dessa viagem. Você precisa confiar em mim como eu confio em você. Eu fico com o revólver e a pedra. Eu também sei atirar. Depois você já tem uma faca. Eu preciso ficar armada porque minhas mãos estão desimpedidas. Você com o remo não poderá atirar tão bem quanto eu...
- É mesmo.
Levantou-se. Olhou o cadáver.
- A gente não pode deixar ele assim. Os urubus amanhã denunciarão sua presença.
- E se?...
Olhou o rio.
- Era nisso que eu estava pensando.
Achegou-se do cadáver.
- Você me ajuda? O homem está leve. Só tem osso e pele. Ele pegou-o nos braços e ela nas pernas. Foram-no arrastando.
- Cuidado para não se sujar de sangue.
- Não estou me aproximando muito do corpo.
Chegaram na barreira e desceram. Um fio de sangue traçava uma risca avermelhada pelo caminho. Atravessaram a água e o corpo foi deixando manchas na superfície. Alcançaram a praia e pararam para descansar.
Kanaú espiou bem o Tenente. Na última força do sol, o rosto do homem tinha adquirido uma palidez terrível. Os olhos abertos não tinham expressão de dor e sim de loucura. A barba crescida e muito negra guardava vestígios de gotas secas de sangue. A cicatriz da pancada de Daniel, secara de todo e se tornara roxa.
Olhou Tilde pronto para recomeçar a caminhada.
- No mesmo lugar que ele jogou as armas.
Continuaram arrastando o corpo. Alcançaram o canal. Depositaram o corpo para tornar a descansar.
Kanaú retirou as botas e os pés brancos, fedorentos e sujos apareceram. Arremessou as botas n'água.
- Preciso fazer isso - explicou Kanaú. - Não pode ficar nem uma prova.
Debruçou-se sobre o corpo e retirou a camisa. Como o homem fedia a azedo. O busto nu mostrava as costelas. Os ossos largos do homem se denunciavam sob a pele. O peito peludo e as axilas também negras brilhavam no resto do sol da praia. Desabotoou a calça e retirou-a. O homem nu que tinha sido forte encontrava-se totalmente emagrecido. A loucura e a fome tinham-no devastado.
Kanaú amontoou as roupas e com repugnância atirou-as n'água. Houve um borbulho e a roupa boiou um pouco. Depois foi desaparecendo, arrastada pela correnteza.
- Agora ele.
Observou Tilde. Ela estava impassível.
- Se quiser não precisa olhar.
Tilde sorriu. Como se fosse agora se comover com um homem nu. Muito mais magros e muito mais sujos tinha encontrado na vida. Deu de ombros.
Kanaú arrastou o Tenente pela areia e foi empurrando para a beira do canal. Colocou-o em sentido paralelo ao rio e com o pé empurrou-o para a água. O corpo virou sobre o lado e deslizou na água. O sangue da cabeça foi se despregando e enchendo a superfície de manchas lilases.
Houve um estremecimento forte. E não era o vento. Outro movimento apareceu. A água ferveu em borbulhas.
Tilde espiava o corpo puxado em todos os lados, submergindo. Descerrou os lábios.
- Piranha é um bicho danado!
- Se a gente não tirasse a roupa primeiro ia demorar muito...
O corpo desapareceu.
Voltaram. Kanaú com o pé, ia apagando a risca de sangue que marcava a passagem do corpo.


Antes que a noite se completasse toda, a canoa deslizava aflita. O banzeiro se bem que diminuído, não cessara ainda. A proa lutando contra as marolas soltava uns gemidos ameaçadores. Tilde fitava o vulto de Kanaú que parecia agigantar-se contra as estrelas. Aquela felicidade que a possuíra quando apossou-se do diamante persistia. Tudo se realizara fatalmente e estava convencida de que o diamante tinha que ser seu. Ninguém o tiraria nunca. Não gostava de pensar na rota de sangue pontilhada por ele até chegar às suas mãos. Não se importava com Sá Lua, com o menino ou com Daniel. Nada disso parecia ter existido e a viagem só agora tinha importância de fato. O essencial era sentir o volume da pedra contra o corpo. Um calor de vida irradiava-se daquele contacto selvagem. Necessitavam passar os Tapirapés. Amanheceriam perto desse rio. Daqui a pouco, como era de costume, o vento fatigava-se e desaparecia. Então a canoa atraída pela voragem, pelo estrangulamento que se aproximava, porque os Tapirapés comprimiam a água numa minúscula garganta, deslizaria velozmente.
O revólver se encontrava sobre a saia. Mas não era preciso assustar-se pois tão cedo Kanaú não se viraria contra ela. Repousou o corpo no meio da canoa. Kanaú sentado sobre a popa, movimentando o remo cresceu ainda mais. Desvirou os olhos e contou os diamantes do céu que a cada noite se tornavam menores porque a lua crescia. Ainda bem que estavam perto dos Tapirapés. Na próxima noite... Sentiu-se apreensiva. Conseguiriam atravessar a garganta? Sorriu acalmando-se. Dariam um jeito. Kanaú tinha planos que nunca falhavam. Foi fechando os olhos. Não havia perigo; poderia dormir sossegadamente, por enquanto.
O medo estava se avolumando em Kanaú. A noite era para o índio uma mensagem de pavor. A aproximação dos Tapirapés punha-o em constante sobressalto. Coisas estranhas que nunca tinham acontecido antes o assediavam continuamente. Frases voltavam-lhe à mente. Cenas se repetiam a todos os momentos. Por mais que afastasse para longe as lembranças. Nunca fora assim. Tentava compreender e justificar-se. Aquilo tudo acontecia por estar enfraquecido. Frutas e farinha não chegavam para um corpo forte como o seu. Olhava os braços e as pernas, apalpava o estômago e sentia que suas carnes minguavam. Quando passassem os Tapirapés tudo melhoria. Voltou aos seus planos. Nem de noite conseguiriam passar. Os homens da Polícia, os índios: tanto os poucos Tapirapés como os carajás, os homens que trabalhavam no posto do Serviço, já deveriam ter cercado ambos os lados da garganta. O certo seria subir o Rio Tapirapés pela margem esquerda e longe cruzar para a margem direita. Meter-se-iam na selva e fariam uma grande curva. Até alcançar o Araguaia. Furando pela selva, deixariam longe a garganta dos Tapirapés. E apesar do perigo ainda havia outra vantagem: Duas léguas do local do Serviço, existia a roça dos índios Tapirapés. Eles iam todos os dias e voltavam sempre ao entardecer, com medo dos índios Caiapós. Os índios Tapirapés morriam dia a dia. Há bem poucos anos eles possuíam uma aldeia com mais de duzentos índios e viviam da caça e da roça. Exímios na flecha, gostavam tanto da mata como o carajá da água. Os Caia-pós invadiram a aldeia, mataram os homens e carregaram as mulheres. Eles então tinham abandonado a aldeia e vindo morar junto ao Serviço de Proteção aos índios na boca dos Tapirapés. Hoje existiam em número de 46 e morriam com grande facilidade. Kanaú pensou tristemente nisso: os índios tinham mesmo que acabar. Os próprios inans ou carajás cada vez morriam mais. Tanto maior a penetração dos brancos e a aproximação deles com a civilização tanto menor se tornava o tempo de vida dos índios. Os Xavantes e os Caiapós é que tinham razão de bordunar e flechar os brancos. Amanhã estaria perto dos Caiapós. Mas tinha certeza de não cair em suas mãos. Aqueles demônios andavam por todo canto. Viviam numerosamente espalhados desde o Pará até Mato Grosso. Suas regiões não pareciam ter limites para contê-los. Aproximavam-se manhosamente dos ranchos dos brancos. Sorriam, chamavam os sertanejos de paizinho; comiam da sua comida por três ou quatro dias; depois que espionavam os hábitos do rancho, sumiam e voltavam para matá-los à traição. Esperavam que eles fossem para a roça e roubavam tudo. No caso do preto Feliciano foi assim. Eles usaram a velha estratégia e três dias depois fizeram o ataque. O rancho pegou fogo. Até os mantimentos; dois sacos de farinha, eles não podendo carregar, furaram-nos e os espalharam pelo chão.
Kanaú sondou a escuridão. Teve a impressão de avistar luz a distância. Derivou a canoa para o lado de Goiás. Chamou Tilde. A mulher desenroscou-se e sentou na canoa. Falou-lhe com voz sumida:
- Estamos passando por Mato Verde.
Ela atravessou a noite com os olhos.
- Aquelas luzinhas pequenas são fogueiras dos carajás de Creran-auá.
Luzes maiores denunciavam as casas dos brancos. Uma vaca mugiu longe, enchendo a noite de tristeza.
- Não tem perigo, mas é melhor você se deitar.
Tilde obedeceu.
A canoa seguiu velozmente, rente às praias de Goiás. Kanaú imaginou se os moradores de Mato Verde desconfiassem que eles estavam passando. O povo de Lúcio da Luz e outros moradores, desceriam em perseguição.
Nada aconteceu. As luzes foram se perdendo do outro lado do rio e a canoa avançou pela escuridão.
A lua estava quase em meio. Não gostou de espiá-la. A voz de Camura falava pela lua. Mas não era a lua nova.
"- Você, Kanaú. E eu que pensei que tu era bom..." Por que voltava a pensar? Não queria se lembrar de nada. Disfarçou o medo. Falou para Tilde:
- Daqui a quatro horas a gente passa pela aldeia de Grisosti e de madrugada se a canoa correr bem a gente passa a de Jatobá. De manhãzinha se avista as serras dos Tapirapés.
Tilde bocejou e interrompeu.
- Já me contou isso três vezes.
Calou-se, mas logo em seguida perguntou:
- Você está com medo, Kanaú?
Ele sentiu o sorriso de escárnio da mulher. Parecia que adivinhava o seu íntimo. Disfarçou.
- Não é isso. Estou conversando para não dormir.
Não disse mais nada. Precisava com urgência se desfazer de Tilde. Mas ao mesmo tempo o medo lhe aconselhava a ter calma. Só se desfaria dela quando atravessassem os Tapirapés e o grande medo se fosse.
Cochilou um pouco. Sentia-se fraco e cansado. O remo continuava fixo em sua mão, pelo hábito. Reagia contra o sono. Tinham que amanhecer perto dos Tapirapés. Voltava a cochilar. Num desses momentos a figura do homem enforcado da barreira da Cotia surgiu-lhe de relance, envolto em chamas com a barba esbranquiçada caminhando entre o fogo sem se queimar. Viu quando ele parou só para dizer-lhe: - "Você, Kanaú está coberto de feitiço..."
Abriu os olhos estremunhado e o coração bateu muitas vezes até se acalmar. Encheu a mão de água e molhou os olhos. Estivera sonhando. Mas a frase persistia: Você está coberto de feitiço...
Remou mais e mais. E quanto mais remava mais se sentia enfraquecer. Pesava-lhe a cabeça. O remo tão leve se assemelhava a um tronco de sapopema. Teimava em remar, as forças sumiam, os olhos pesavam. O corpo derreou. Dominou-se. Voltou a sentar-se direito. O sono lutou mais forte. Que importava tudo aquilo? Tudo aquilo fedia a morte. O corpo não agüentava. A vontade não o obedecia. Um desespero o cruciava; queria lutar contra tudo e não podia. Escorregou o corpo na canoa e colocou o remo sobre o peito. A canoa perdeu o rumo e desceu toda a noite de bubuia.
Só aos primeiros clarões da manhã, despertou. Sentia ainda o corpo doído e cansado. Forçou os olhos fatigados e sondou o horizonte. Dois seios negro-esverdeados quebravam a lisura da paisagem.
Acordou Tilde.
- Veja! Os Tapirapés...
Os olhos de Tilde ainda guardando a paz de quem vem da noite se molharam levemente. Enxergou a manhã sempre sangüínea, os morros perdendo a tonalidade negra para se incendiarem no cimo com os tons dourados do sol, o rio azulado adormecido na calma branca das praias, a selva ao longe principiando o dia com seus mil vôos e seus mil gritos e o vento Geral despertando com os primeiros sopros o espelho do rio.
- Que beleza!
- Acordei a tempo. Sorte a nossa, a noite ter sido bastante escura. Peguei no sono e não vi quando a gente passou pela aldeia de Grisosti e de Jatobá...
Rumou a canoa para o lado de Mato Grosso. Se remassem mais duas horas, Mato Grosso acabaria e estariam em terras do Pará. Se remassem duas horas mais forçosamente seriam descobertos por um índio que fizesse o verão numa praia daquelas. Kanaú procurou um canto para se esconderem.
A lua ameaçava já. Com um pouco mais de claridade, seriam vistos vogando no rio. Todo cuidado se tornava necessário. O vento redemoinhava zangado como se soubesse que tinha poucos dias de vida. O Geral não tardaria a ir-se embora de uma vez.
Os morros dos Tapirapés se enegreciam na noite, clareando os cimos com as pontas da lua fraca.
A canoa descia.
- Não fale mais. Vamos fazer como combinamos.
Tilde enrodilhou-se como costume no fundo da embarcação. Seus olhos pequenos sondavam o perigo. Agora que se sentia dona do diamante, temia o perigo. Poucos quilômetros, talvez não chegasse a dois, os separavam da liberdade. Transposto os Tapirapés, a vida seria apresentada com outra face.
Tinham planejado descer por um canal pequeno que se intrometia entre as grandes praias dos Tapirapés e as margens de Mato Grosso. Só por um azar perverso, não conseguiriam transpor o canal.
Kanaú não ignorava que ali era raso, mas a canoa se achava leve e o rio ainda não chegara ao natural da seca. Por vezes o remo tocava na areia e se ouvia o chiado. Então Kanaú, para que a ubá não encalhasse saltava n'água e ia puxando a canoa, para aliviar o peso. Naquele momento nem se importava com as arraias pintadas que deviam infestar a região.
- Olhe, Tilde!
A mulher ergueu-se um pouco e fitou o lugar indicado. O rio enraivecido parecia ter pegado fogo. Junto do clarão, as silhuetas de diversos ranchos apareciam. Ouviam-se os cantos de Aruanã. Cães se atracaram em gritaria, vozes repercutiram raivosas e os cães se afastaram ganindo.
- É o acampamento de verão dos carajás. Eles deixaram o porto dos Tapirapés e vieram fazer morada na praia. É tempo de pescaria...
- Eles não nos ouvem?
- Não. O vento está contra. Mas vamos passar bem rente da barreira.
A canoa derivou colada às últimas terras de Mato Grosso. As árvores eram grandes e os encobriam do pedaço da Lua.
Penetraram de todo no canal. A praia ficou longe com os cantos dos índios.
Luzes fracas, surgiam na frente.
- É o posto dos Tapirapés. Agora não vamos mais falar. O vento sopra naquela direção.
O remo cortava as águas com tamanha suavidade, que nem se ouvia. Os olhos dos dois se grudaram na luz das casas que estavam aparecendo. O morro dos Tapirapés ia crescendo. O medo de que a canoa pudesse encalhar e que o canalzinho não oferecesse passagem, acabou. Porque agora o canal crescia cada vez mais e iria desaguar nas águas do Tapirapés.
Continuavam colados à margem de Mato Grosso. Kanaú conhecia bem aquelas paragens. Fizera muitas vezes marisco ali. O rio para cima estava coalhado de lagos e os lagos repletos de jacarés, pirarucus e piranhas. Já dava para se avistar as águas condensadas do Araguaia e do Tapirapés caminhando para a garganta. Os dois olhando aquilo sentiram a mesma emoção. Se ninguém tivesse avisado o Serviço, em dez minutos transporiam aquela fronteira estreita e a vida lhes favoreceria tudo. Era incrível a vida depender de uma extensão de cinqüenta metros. Mas não arriscariam. Os índios estavam de sobreaviso. Os dois lados da garganta se encontravam sitiados. A Polícia teria oferecido dinheiro e presentes aos índios para receber auxílio deles. Para comprovar isso, do outro lado estavam luzinhas de pequenas fogueiras. Kanaú pensou que eles, pelos cálculos, aguardavam a canoa a qualquer hora.
Remou mais pegado a Mato Grosso. Eram os últimos limites, a última terra desse Estado. Talvez nunca mais pusesse os olhos por onde passava. Comoveu-se. Tentou reagir, mas sua alma tinha se contaminado de medo.
O posto do Serviço de Proteção aos índios era visível no alto da ladeira. As casas se mostravam na sombra. As janelas abertas deixavam escapar claridade de lampião de querosene. De um lado existia a aldeia dos carajás abandonada porque a cada verão eles voltavam para a praia; temiam os Caiapós que sempre denunciavam sua presença, embora não tivessem coragem de atacar o posto. Na praia as águas conservavam sempre uma barragem de segurança. Do outro lado a pequenina aldeia dos Tapirapés que se acabavam dia a dia.
Kanaú remava com maior cuidado ainda. Seu corpo estava tão rijo e seus nervos se conservavam tão tensos que dava a impressão de nem respirar.
Mato Grosso acabou. E ele penetrou no Rio Tapirapés. Abeirou-se da margem esquerda para não cair na correnteza. Subiria um pouco mais e penetraria num dos grandes lagos. Mais em cima atravessaria o lago que se encontrava circundado de grandes árvores e voltaria ao rio. Então a correnteza não oferecia muita dificuldade ao organismo enfraquecido e fatigado.


Sétimo Capítulo "Amanôn", A Dança Da Morte

Por todos os lados era a selva. A selva imensa despontando ameaçadora e negra. Galharias gigantescas se contorcendo ao vento. Aves fugindo amedrontadas com grandes gritos. O Tapirapés muito negro iluminado ao centro pela Lua crescente. As estrelas vindo se banhar nas águas escuras e sombrias.
A canoa tocou em terra. O coração de Kanaú estremeceu. Tilde levantou-se. Falou baixinho para ela.
- Já é terra do Pará.
Tilde desceu na margem e esperou. Kanaú sugou a canoa por entre uma moitada grande de mururê. Deixou-a ali semi-escondida e muito bem amarrada.
- Quem sabe se a gente ainda não vai precisar dela.
- Eu espero que não...
Kanaú sentia constrangimento em abandonar a ubá. Olhou-a longamente. Sorriu pensando em quanto trabalho não custara para a sua fabricação.
Recordou-se de alguma coisa e levantando o rosto para o céu piou três vezes, imitando o jacurutu.
Tilde irritou-se com aquele canto lúgubre.
- Por que você está imitando a coruja numa hora dessas?
- Se houver algum índio por certo responderá. Qualquer índio gosta de responder ao chamado do jacurutu...
- Vamos sair daqui.
Teve vontade de pedir-lhe que entregasse o revólver, mas não se aventurou; sabia antecipadamente que ela não o atenderia. E se por acaso insistisse despertaria suspeitas.
- Você conhece mesmo a mata?
- Sei muito bem onde estamos. Não é qualquer um que se arrisca por aqui com o rio muito cheio. Os campos estão cobertos de alagados e pântanos. Não vê que a mata ainda está úmida?
Aquilo despertou o olfato de Tilde para o cheiro forte que vinha da selva respirando a noite. Aquela umidade morna que se desprendia do chão, trazia para o olfato uma confusão de cheiros que se assemelhavam a ervas verdes e troncos se desfazendo, apodrecidos.
A lua que no rio se diminuía insignificante, no escuro da floresta adquiria um papel de relevo. Sua claridade estourava por todos os lados cultivando sombras monstruosas pelo chão.
Kanaú caminhou e Tilde seguiu-o rente aos calcanhares. A selva e a noite se abriram numa misteriosa grandiosidade. Por vezes caminhavam em grandes clareiras, atulhadas de galhos podres que se desfaziam sob os pés, produzindo aquele cheiro contínuo de húmus. Folhas secas estalavam esmagadas. A faca de Kanaú abria caminho entre os cipós e lianas entrelaçadas. Evitavam as palmeiras de tucum e contornavam as moitas de banana brava que significavam alagadiço. As árvores cresciam mais. Era o Pará com toda a sua fertilidade nativa, gigantesco e misterioso. Quanto mais fosse descendo para o noite, mais as selvas se avolumariam.
Kanaú sabia que aquela mata tardaria a se acabar para dar lugar a uma campina. Teriam muitas horas para cortar o aranhol da selva.
Tilde gemeu. O seu hálito esbarrou no pescoço de Kanaú.
- Meus pés não agüentam mais.
- Um pouco de paciência e logo a gente chega na roça dos Tapirapés.
Caminhou, parou e recomendou:
- Não fale e faça o possível para não fazer barulho.
As macambiras que apareciam no escuro do chão arrancavam tacos nos pés da mulher. O próprio Kanaú de vez em quando sentia o peito cortado pela lâmina do capim tiririca. Os mosquitos zuniam à volta do rosto e fisgavam as costas e os braços. Os carapanãs e a muriçoca enxameavam, atraídos pelo cheiro dos corpos.
Lateni, o deus-bicho do mal, começou novamente a rondar os pensamentos. Por que não se desvirava rápido e não aniquilava a mulher? Ficaria dono da pedra. Senhor único e absoluto. Se apossaria da arma e teria mais segurança. Mas acalmava sua maldade, garantindo que ainda era cedo. Por que cometer um crime quando a própria selva se encarregaria de destruir aquela fêmea fraca? Não precisava manchar, lavar o diamante com outro sangue. Depois... tinha medo. Nos últimos dias tinha medo. Não podia esconder isso de si. Para os outros, tentaria disfarçar. A mulher servia de companheira. A selva estava povoada de espíritos maus e vingativos. Não sabia se eles pertenciam a Kanansiu-ê ou se obedeciam aos poderios do Deus branco. Não conseguia afastar o seu próprio mistério. Por que vinha aquele medo todo justamente agora que precisava de toda a sua coragem? Por que o medo se avolumava? De que parte do sangue ele penderia maior? Da sua origem índia ou de sua tara legada pelos brancos? Estremeceu. Por que estaria se lembrando disso, quando a selva exigia-lhe o máximo de atenção, a habilidade de todos os sentidos? Não mataria a mulher. Tinha certeza de que ela não poderia vencer mais distância. Recuperou-se um pouco banindo para longe as garras de Lateni.
A faca na sua mão não parava de abrir a picada. A noite tinha mil olhos e era dona de mil gritos. A selva, mil garras e possuía mil modos diferentes de vingança. Qualquer sombra provocada pelo pedaço da lua dava a impressão de um aviso; o grito de uma guariba perdida na profundidade do ermo significava uma ameaça; o ruflar soturno de uma ave invisível, o guincho funéreo de um morcego, chamava a desgraça para perto.
Kanaú estacou. Não pôde conter um movimento nervoso de seus ombros. Abaixou-se. Apanhou folhas pelo chão e levou-as ao nariz. Havia um cheiro de óleo novo de babaçu misturado com almíscar. Deu para a mulher cheirar.
- Passou índio por aqui há pouco tempo.
- Será que foi Tapirapés?
- Não. Não é cheiro de Tapirapés. Eu já fiz marisco com eles e conheço como cheiram...
- Então...
Não quis traduzir para a mulher os seus receios.
- Não fale mais.
Recomeçaram a caminhada. A selva era a mesma em todos os lados. Tilde sentiu saudades do rio. Os pés sangravam e espinhos se infiltravam neles. Mas estava por pouco. Um começo de fome se misturava ao seu cansaço. Há mais de doze horas que não comia direito. O dia todo fora passado com algumas bananas roubadas do cemitério dos índios e um pouco de farinha. Sentia arrepios de frio a todos os momentos. Consolava-se com a idéia de se aproximarem da roça dos Tapirapés. Devia haver banana, mandioca, cana, batata-doce. Talvez até encontrassem alguns daqueles grandes beijus, abandonados pelo chão. Os índios gostavam de comer aquilo com mel de abelha...
Caminhava mais devagar e desalentada. Quase não se importava em afastar os mosquitos. Gostaria de chegar perto do rio novamente. Um horror desconhecido fez com que levasse a mão à boca para conter o grito. E que faria no rio? Antes de chegar lá, precisava se desfazer do índio. Sim! Não queria se enganar. Precisava matar Kanaú antes que ele fizesse o mesmo com ela. Não se iludia. Os dois não ficariam vivos para dividir os lucros do diamante. E ela queria viver. Viver!... Mas como descer o rio sem canoa? Como beirar a distância que separava o Tapirapés, de Furo de Pedra? Diziam só existir sete léguas até Furo de Pedra. Nas viagens que fizera parecia haver muito mais. A selva bordejava o rio até alcançar a barreira do Rosário. Ficar na barreira e esperar que passasse alguém que a levasse até Furo de Pedra seria a solução. E como também explicar a sua estada na barreira? Se fosse índio carajá, daria dinheiro e poderia descer o Araguaia para bem longe. Assim estaria salva. Mas resistiria à selva até chegar no Rosário? Que pena precisar matar Kanaú; confiava tanto nele que o revólver não saíra uma só vez da sua mão para o coldre.
Kanaú parou para escutar. Tilde obedeceu-o. Ela também percebia um rumor surdo vindo da noite.
- Estamos perto da roça dos Tapirapés. Tem gente lá. Caminharam mais. A selva começava a escassear. Os índios tinham feito a derrubada para a roça e desmembrados muitos quilômetros de mata. Geralmente as roças se distendiam por três ou quatro quilômetros. Era famosa a inclinação dos índios Tapirapés para o plantio.
Um grito de angústia repercutiu na noite assustando os pássaros noturnos. Logo em seguida muito gritos vieram como a pedir socorro.
Tilde tocou no braço de Kanaú.
A voz calou-se.
- Vamos.
Um estranho pressentimento abalou Kanaú, ficou indeciso em contar ou não para a mulher. Mas resolveu falar.
- Os índios Tapirapés estão na roça. Aquele grito parece de Amanôn.
- Que é Amanôn?
- Uma dança de loucura e morte. Eu já vi uma vez eles enterrarem uma mulher viva e ela gritava como aquela voz.
Tilde sentiu um calafrio.
- Mas os Tapirapés não são índios bons?
- São os índios melhores de todos. É cerimônia sagrada. Quando uma mulher não procede bem, eles carregam com ela para o fundo do mato e todos os índios se deitam com ela; depois cavam uma cova e a enterram viva. Deve ser isso. É uma loucura que dá em todos ao mesmo tempo.
- Como o Itianté dos Carajás?
Kanaú virou-se espantado para Tilde.
- Como é que você sabe disso?
Tilde não se sentiu embaraçada.
- Eu sei. Quem vive muito tempo no Araguaia como eu vivi, sabe dessas coisas. Eu já vi em Leopoldina um caso de loucura. Uma índia com Itianté...
Kanaú não insistiu no assunto. Mas Tilde o deixava desconcertado. Só os índios sabiam dessas coisas. Itianté era uma loucura quase que sagrada.
- Vamos.
A selva começou a ficar transparente. A mata derrubada oferecia uma clareira infinda.
- É a roça.
Já agora ouviam-se os cantos fúnebres e o som da dança ritmado cavamente sobre o chão.
Contornaram a roça, saltando as árvores derrubadas com cuidado.
- Espere aí. Eu vou buscar comida. Tilde escorregou no chão e resguardou-se ao tronco de uma árvore derrubada.
Viu que Kanaú se infiltrava no milharal enorme. Nem ouvia barulho dele caminhando. O som da dança e os cantos guturais chegavam até ali. Os pés doíam e o frio da noite tornava a incomodá-la. Começou a alisar os pés. Abandonou o revólver sobre a saia. Sentiu as costas roçando no volume da pedra na guaiaca. Aquilo fê-la sorrir. Aquilo valia toda a sorte de miséria humana. Teve a impressão de que alguém para merecer uma coisa daquelas, precisava gastar meia vida pelo menos. Era o que estava acontecendo.
Levou as mãos aos cabelos. Sentiu-os macios e ondulados. Não tivera tempo de tratá-los. Os dedos escorriam entre os fios de ouro dando-lhe uma sensação de paz. A única coisa bonita que possuía. Quando chegasse em Belém haveria de tratar bem aqueles cabelos que desciam longos sobre as espáduas.
Descansou a mão no chão e sentiu que ela tocava numa coisa visguenta que se movimentou ao contacto. Era um sapo inofensivo.
Olhou o céu e a lua que crescia. As estrelas eram tantas como as brasas de uma grande fogueira. Os olhos começaram a confundi-las. Não sabia quanto tempo estava ali. As nádegas magras formigavam. Mas o medo se fora. O diamante proporcionava-lhe uma segurança feliz.
Fechou os olhos; os sentidos se encontravam alerta. Ouviu um ruído e observou o milharal. A lua se debruçava gulosa sobre o milharal e as folhas se transformavam em mar; o vento do Geral diminuía em pequena brisa.
O vulto de Kanaú se aproximou.
- Achei banana. Trouxe milho e batata. Amanhã, longe daqui a gente pode assar isso. Por enquanto coma banana. Tirei lá de um depósito dos índios.
O cheiro da banana madura aguçou-lhe o apetite. Foi comendo e o corpo adquiria aos poucos nova vitalidade.
- Você foi lá?
- Fui. É Amanôn. Quando você acabar a gente pode ir espiar.
- Não quero.
- Não tem perigo. Eles estão dançando bem no centro da roça em volta de uma grande fogueira. Se não fosse o milharal você daqui avistava os sinais do fogo. Já enterraram a mulher. Agora estão dançando sobre a sepultura para endurecer a cova.
- Nunca pensei que os Tapirapés fizessem isso.
- Só tem uma coisa ruim. É que eles vão dançar até amanhã bem tarde.
- E que tem isso?
- Eles estão tapando o nosso caminho. É perigoso a gente tentar atravessar. Amanôn é dança sagrada de morte. Se eles descobrem a gente, matam e enterram. Nessa hora nem Caiapó bole com eles.
Tilde lembrou-se do cheiro do outro índio, impregnado nas folhas.
- Você acha que foi Caiapó?
- Deve ter Caiapó por aqui, sim. Na certa eles foram ver o Amanôn e se afastaram. Não querem brincadeira.
Tilde acabou de comer.
Kanaú levantou-se e segurou uma penca de bananas e algumas espigas.
- Você leva a batata...
- Onde a gente vai?
- Vamos voltar para a mata. Aqui é muito descoberto e perigoso. Lá a gente se esconde e espera os Tapirapés acabarem o Amanôn.
- Que pena. Aqui quase não tem mosquito!
Tilde sentiu medo de novo. E os Caiapós? Mas riu da idéia. Kanaú fazia aquilo para amedrontá-la. Se houvesse grande perigo de Caiapó ele mesmo não se atreveria a ir.
Procuraram outro ponto da mata. Onde não tivessem ainda passado. Distante se perdera a cantiga funesta do Amanôn. Cantos e gritos, guinchos e grunhidos ameaçavam os dois, vindos da noite, por bocas invisíveis.
Sentaram-se perto. Tilde estava disposta a não dormir. Se o fizesse seria liquidada.
Kanaú recostou-se numa árvore magra e espiou o negrume da selva, invadido em pequenos pontos pelo palor da lua. As árvores tornavam-se quase negras e pareciam ligar-se ao céu. Estava cansado. Amanhã com a luz do sol chegariam de novo ao Araguaia. Pegaria uma porção de alimento na roça e na beira do rio, do outro lado da garganta do Tapirapés então...
Não conseguia coordenar mais os pensamentos. Urgia descansar e reaver as energias. Deixou que os olhos fechassem. Percebeu que a mulher lhe falava, mas não se incomodou com ela. Derreou o corpo e dormiu profundamente.
Tilde o observava. A vista acostumada à escuridão não perdia um só de seus movimentos. Perguntou baixinho:
- Você tem sono?
Não obteve resposta. O corpo de Kanaú descaiu mais.
Ficou muito tempo em silêncio.
Não sentia sono porque seu pensamento remordia uma só coisa. Breve seria a madrugada! Logo seria a madrugada e Kanaú dormia. Por que não se aproveitava agora? Ele dormia. O que esperava? Hoje seria a sua última oportunidade de viver. O momento era aquele! E que esperava? O tempo corria... O corpo insistia em ficar colado ao chão; o revólver pesava-lhe na mão. Não queria fazer aquilo; mas era preciso. Um dos dois estava destinado a morrer. Quando chegasse o momento exato ele a aniquilaria sem piedade. Kanaú tinha tanta certeza de seus projetos que adormecia displicentemente a seu lado. O que esperava? A mão enroscou-se na arma e a arma aquecia-se com o calor de seus dedos. Tinha que se decidir: ou a selva em busca da vida ou a morte e o despojo do diamante. Um surdo ódio remoeu-lhe a mente. O diamante era seu. Ninguém o tiraria dela. Ninguém. Ajoelhou-se sem fazer ruído. Ele dormia. Ouviu o seu ressonar leve. Apanhou um pedacinho de madeira e atirou-o sobre o rosto de Kanaú. Aguardou um momento. O índio estava mesmo cansado. Nem se movera. E se ele fazia aquilo de propósito? Não estava preparando uma emboscada? Mesmo assim era preferível arriscar.
Rastejou pelo chão. Nem respirava sequer. Aproximou-se de Kanaú. Só existia a sua respiração tão pequena que se perdia com o ruído dos grilos do mato.
Ergueu a mão e desferiu o golpe com a coronha do revólver.
O som foi seco e o corpo amoleceu imediatamente, resvalando da árvore.
Ficou pasma da sua coragem. Não receava que ele acordasse de imediato. O índio se encontrava enfraquecido demais. Abandonaria Kanaú ao seu destino. Que a selva fizesse a justiça conveniente. Não se afastaria dali para apanhar cipó no mato. Urgia amarrá-lo. Teve uma idéia. Afrouxou a guaiaca e retirou o cinto de couro cru que sempre usava na cintura. Suspendeu o homem, sentando-o com sacrifício contra a árvore. Puxou as mãos para trás e amarrou-as uma contra a outra, tendo a árvore no meio. Deu uma volta, outra e fechou o cinto bem na fivela. Ninguém teria força suficiente para romper aquilo. E se esfregasse contra a madeira da árvore, aquilo não era corda para se puir.
Voltou a sentar-se onde estivera antes para esperar o amanhecer. Não conseguia dormir. E agora não era o frio da noite que fazia seus membros se arrepiarem.


Os pássaros da manhã anunciavam a luz. Grandes cantos se confundiam com muitos chilros diferentes. Tilde continuava sentada no mesmo canto. Com a claridade que escorregava pelas árvores e iluminava o orvalho, o corpo de Kanaú adquiria delineação. Kanaú ainda não voltara. O sangue descia sobre o olho direito e escorria pelo peito. Como emagrecera. No alto da cabeça o sangue coalhara. O chão e a relva se encontravam salpicados e formigas escuras caminhavam sobre ele.
Dentro em pouco Tilde iria embora. Esperava só que Kanaú despertasse.
Engueu-se e sacudiu o homem. Limpou o sangue do olho. Ergueu-lhe as pálpebras. Nada. Encostou o ouvido no peito, tendo cuidado para que seus cabelos louros não se sujassem no sangue. Não! Não morrera. O coração batia fraco.
Sacudiu o rosto. Chamou pelo seu nome. Um gemido veio miúdo. Ele estava acordando.
Tilde estremeceu. Devia ir embora sem fazer aquilo. Mas a maldade tomava conta de seus atos. Queria explicar. Queria dizer por que fizera assim. Sentia vontade de correr pela mata a fora, distanciar-se do homem amarrado que principiava a despertar, mas não conseguia vencer aquela atração.
Kanaú entreabriu os olhos e um gemido maior saiu de sua garganta. Quis levar a mão para segurar a dor, mas não conseguiu. Aos poucos ia compreendendo que estava amarrado. À sua frente tudo se confundia. Com o movimento, o sangue desceu vivo do ferimento e escorreu sobre a face erguida. Uivou como um animal. Fechou os olhos e tornou a abri-los. As coisas agora iam-se tornando distintas. A sombra sobre o olho e a grande mancha que formava a selva principiavam a se separar. As árvores deixaram de tremer e se fixaram. Defronte, a figura de Tilde apareceu perfeita.
Uma luz se fez em seu cérebro. Compreendia tudo. Abriu a boca. Qualquer movimento provocava novas dores na cabeça.
Murmurou fracamente:
- Você...
Ela o fitava sem responder.
- Por que você fez isso? Dê-me a faca. Corte as cordas do meu pulso... O que espera?
Ela se chegou mais para ele. Sua voz sibilava cruelmente.
- Nunca, Kanaú. Você ficará aí para sempre. A mata é que vai resolver o seu destino. Tenho pouco tempo. Mas eu contarei coisas que você não sabe.
Os olhos de Tilde brilhavam como os de uma cobra enfurecida.
- Eu precisei fazer isso, antes que você fizesse o mesmo comigo. Não minta. Você vai morrer. Negue que você ia me matar! Vamos, negue! Você pensou que eu seria a coisa mais fácil de você acabar? Enganou-se. Existem coisas que nem você nem ninguém sabia a meu respeito. Eu vi coisas que só Deus poderia ter visto...
Fez uma pausa para respirar.
Kanaú dominava a tontura que ia e vinha na sua cabeça. Fazia o possível para não desmaiar. Ferido como estava não ignorava que somente muita calma faria com que a mulher o libertasse.
- Tilde! Você está ficando louca. Está cheia de feitiço. Deve ser por causa da presença de Amanôn. Enquanto é tempo, corte as cordas do meu pulso...
- Não se iluda, Kanaú. Tenho pouco tempo e mesmo assim deixarei você preso. Não acredito em feitiço. Pode ser verdade, mas não para mim. Você ia me matar. Estava só esperando a hora. Mas eu sabia das coisas, de muita coisa. Eu lhe contei minha vida, mas não disse tudo. Nós somos iguais. Você é mestiço e eu também. Seu pai era um branco, o meu era um índio. Eu sinto tudo o que você sente. Mas posso ser branca com mais facilidade que você. Sou feia e desgraçada, mas não trago na cara nada que diga que sou mestiça. Agora serei branca...
Kanaú interrompeu-a:
- Eu não ia matar você Tilde! Por que não me solta? Eu não teria coragem de matar ninguém! Mesmo como você se arranjará nessa selva sem mim? Os Tapirapés estão ainda fazendo Amanôn. Eu não queria lhe contar: os Caiapós estão rondando por perto. Juro. E quem vai lhe levar rio abaixo se você me deixa aqui?
- Tenho mais uma coisa pra lhe contar. Você não me engana. Você ia me matar sim. Eu sei falar e compreendo tudo que inan fala. Eu vi você imitar o pio do jacurutu chamando aquele seu amigo. Vi mais. Eu estava escondida no mato observando você e só Deus e eu sabemos que você envenenou Camura. Vi tudo. E isso é castigo para a sua maldade. Não é feitiço não. É castigo. Você vai morrer.
- Você está louca, Tilde. Eu ficarei aqui. Iroá vem me salvar. E você, vai cair nas mãos dos Tapirapés ou dos Caiapós. Se escapar, a polícia pegará você. Esse diamante cheira a sangue...
Tilde ergueu-se. Kanaú estremeceu.
- Você tem coragem de me deixar aqui amarrado nessa mata? Ela virou as costas.
Kanaú fez um esforço enorme e gritou para a mulher que se afastava.
- Pode ir sua desgraçada! Que adianta um diamante ou dinheiro para um verme como você? Os Caiapós estão por aqui para lhe dar um castigo. Eu hei de ver você comida pelos urubus...
Ela parou e retrocedeu.
- Os Caiapós estão por aqui, não é? Pois bem. Eles poderão me matar, mas antes matarão você.
Suspendeu o revólver e deu três tiros para o ar.
- Se eles estão aqui, virão atraídos pelos tiros. Virou-se para a mata e desapareceu.


Kanaú ficou sozinho. Seus olhos doloridos percorreram a mata onde se encontrava prisioneiro. Com a luz, as árvores readquiriam a sua personalidade. Os pássaros curiosos abordavam os galhos próximos, mas logo erguiam vôo adivinhando um perigo no estranho.
Primeiro reparou que estava amarrado num pé de imburana. Em volta as arvores balançavam-se no Geral. Lá estava um pé de amarelão enroscado de trepadeira silvestres. O landi de casca negra que um dia poderia ser transformado numa canoa vivia sua vida ainda sossegada. O pequizeiro que na primavera se enchia de flores. Palmeiras de tucum. A mirindiba, a castanheira solitária, trazida para ali não sabe como, mais alta e ensombrada do que um pé de cupu. Todas as árvores se unindo por cipós e lianas. Parasitas vermelhas pareciam pingos de sangue nos seus troncos.
ü cheiro de umidade crescia com o aparecimento do sol. O amanhecer na selva era calmo. Diferente do avermelhado que o céu possuía nas proximidades do Araguaia.
Abelhas zumbiam numa simbaibinha, retirando o pólen dourado das flores.
Kanaú baixou os olhos. Nova tontura se manifestou. Estava perdido! Um desespero o invadiu. Uma mulher como Tilde levava a melhor no final de uma sangrenta aventura. Nem era uma mulher aquela vagabunda! Nem possuía carnes ou formas para ser uma mulher. Um bicho. Um verme. Uma minhoca. Forçou os braços meio insensíveis: concentrou a força no pulso. Sentia-se bem amarrado. Com desespero roçou uma mão na outra. Principiou a roçar os pulsos contra a madeira. Descobriu que não era corda; que seu esforço era em vão. Mas queria viver, libertar-se. Friccionou mais. O couro apertava-lhe os pulsos, e ele não parava. Fora-se a tontura. Tudo agora era uma vontade firme de soltar-se. O instinto de conservação o obrigava àquele esforço inaudito. Aquela mulher! Se conseguisse soltar-se estrangularia aquele pescoço, esmigalhando-o. O pulso doía mais. A correia esquentava-se; a casca queimava com a fricção. Mas ele não parava. Os Caiapós andavam rondando perto. Se não se libertasse logo, seria apanhado. Sentiu o corpo fraco molhar-se de suor. Os mosquitos vinham morder por todo canto e ele não se podia defender. Não parava as mãos. Um entorpecimento se avolumava nos ombros. A dor cortava-lhe mais os pulsos. Sentiu qualquer coisa morna escorrendo-lhe pelos dedos. Era sangue. Não adiantava o seu desespero...
Se conseguisse a faca entre os dedos! Mas Tilde a levara. Desfaleceu de esforço. Quando voltou a si, o dia estava mais adiantado. O corpo se enchia de gotinhas vermelhas e inchava. Os borrachudos do dia não perdoavam. Os bizogôs tão comuns em matas do Pará, ferroavam-lhe os membros. Os tatuquiras vinham em nuvem penetrar nos olhos. E ele se defendia abrindo e fechando os olhos. Era o inferno. Melhor seria que a mulher o tivesse matado. Nada mais tinha importância. Por que os Tapirapés não o encontravam e faziam Amanôn com ele? Por que os Caiapós não apareciam logo? Eles viriam. Deviam estar a caminho atraídos pelos tiros...
Uma esperança animou-lhe a angústia. Por três vezes imitou o pio do jacurutu. Mas debalde esperou a resposta. Nada respondia ao seu apelo. Iroá se encontrava longe. Não pensara até agora que o amigo tivesse pela frente todos os perigos por que tinha passado. Para Iroá tudo se tornava mais fácil. A sua canoa era pequena; por todo canto tinha deixado pistas que só os olhos de um índio conseguiriam desvendar. Tinha fé no amigo. Mas chegaria ele a tempo?
Voltou os pensamentos para Tilde. A selva daria cabo dela. E o diamante? Tanto dinheiro junto iria ficar para quem? Os Caiapós sabiam do valor da pedra e se a descobrissem iriam negociar em Conceição do Araguaia ou Santa Maria. Os Caiapós eram verdadeiros demônios. Ficou emocionado e os olhos cheios de mosquitos que esvoaçavam se encheram d'água. O diamante era maldito; na certa pertenceria a quem menos fizera força. Seria dono dele, alguém que desconhecesse a grande sombra rubra que o encobria.
Sentiu um cheiro estranho. Parou de mover-se e concentrou-se naquilo. Gente se aproximava. Lembrou-se do cheiro das folhas. Eram eles. Não tinham mesmo demorado muito. Ouvia o som do mato esmagado sob os pés. Pendeu a cabeça e fingiu-se morto.
O mato se abriu em frente. Os Caiapós espiavam o homem amarrado, morto. Falavam uma língua que ninguém entendia. As cabeças estavam raspadas até à metade numa imitação de calvície. Batoques arredondados pendiam-lhes dos beiços. Riram do homem morto. Não se aproximaram muito.
Falaram novas coisas e riram. Kanaú ouviu que esticavam os arcos em sua direção e sabia que iriam disparar. Qualquer índio gostava de flechar um inimigo mesmo morto. Era como que um certificado de maior poderio. Nesse momento tiros repercutiram na selva. Eles falaram novamente e desferiram os arcos. Não esperaram o resultado do que tinham feito. Nem se interessaram se a pontaria acertara o alvo. Meteram-se de novo na selva. Havia alguém vivo atirando e aquilo se tornava mais interessante.


Para qualquer canto que se dirigisse só encontrava o mato mais cerrado. A virgindade da selva não desejava estranhos. Tilde levou as mãos aos olhos para afastar os mosquitos tatuquiras sempre penetrando nas pálpebras e produzindo uma coceira contínua a ponto de os olhos ficarem sempre marejantes.
Respirou desanimada.
- Estou perdida, meu Deus! Para onde tenho que ir?
Via o amanhecer amadurecendo e sentia-se cada vez mais impelida a caminhar. Se parasse não encontraria salvação. Tinha que utilizar todas as suas energias. Os pés sangravam. Voltava a sentir, a possuir a sensação que tivera ao pisar o chão de Belém quando fugira do reformatório. Não podia ter sido ela a mesma mulher; aquela era outra Tilde. Porque o desânimo convencia-a de que nunca saíra daquela mata infindável, de que nunca se encontrara noutra parte que aquela.
Controlava-se e tentava pensar com lucidez. "Não posso ficar assim. Senão acabarei louca. Preciso me convencer de que não estou sendo atacada pela febre da solidão".
Via um pouco de luz na mata e se infiltrava, muitas vezes agachando-se, ajoelhada, varando cerrados de bambus espinhemos para descobrir e se aprofundar num mundo de árvores imensas. Todas do mesmo jeito, todas com o mesmo aspecto. Como se já tivesse passado por elas muitas vezes. A face da selva se repetia continuamente. Se pelo menos soubesse onde ficava o rio que abandonara ontem! Ou se conseguisse atingir as roças dos Tapirapés! Que importava o Amanôn? Pelo menos saberia que estava morrendo. Não ficaria na incerteza de saber qual seria o seu fim, A selva era o pior. O medo crescia nela como nunca. Falava em seu íntimo: "Daqui a pouco isso passa. Eu me acostumo. Todo mundo que se perde fica assim." Caminhava, arrastava-se, afastava os mosquitos brancos dos olhos, observava o sol pelas árvores se despenhando e o medo recrudescia. Recordava-se que quem se perdia na mata ficava dando círculos inutilmente até encontrar a morte, até avistar um índio, ou ser devorado pelas feras.
Sentiu arrepiar-se a espinha. Olhos invisíveis a observavam. Muitos olhos inimigos. Mas a mata era sombria e não aceitava manifestar-se ao seu medo. Tudo era escondido. Parava e respirava forte. "Estou ficando maluca!" Monologava no espírito coisas terríveis: "Onde está a sua coragem? O seu sangue de índio? Acabou-se só por causa de uma selvinha à-toa? Muito mais ainda esperará por você? Vamos, caminhe! Por que parar? Não era isso que você desejava?"
Sentava-se no chão e alisava os pés sangrando. A lama impregnava-se nas feridas. Os dedos não tinham mais membranas. A selva comia tudo.
- Meu Deus! Para onde irei?
O revólver tremia-lhe na mão. A cartucheira pesava-lhe tanto agora. A guiaca resvalando-lhe pelas nádegas incomodava-a. O volume do diamante espremido contra os rins, magoava-lhe o corpo tão dolorido.
Emagrecera ainda mais. Sua cintura se encontrava tão fina que a guaiaca não tinha onde se sustentar.
Jogava-se de encontro a um tronco e ficava por segundos enrodilhada, com medo de olhar em volta; mas reagia e tornava a caminhar. Mais espinhos e mais dores. Os braços se anavalhavam nas folhas do capim tiririca.
Como não tinha rumo, enveredava pelo caminho mais acessível. Depois era obrigada a retornar porque o caminho terminava em uma barreira de espinho. Encontrava matas e matas de banana brava; afastava-se delas com medo dos alagadiços e dos pantanais.
O remorso distendia os seus tentáculos. Não deveria ter prendido Kanaú. Talvez ele não a matasse. Bem que ele avisara: ninguém atravessaria aquela selva sem um guia.
A guaiaca causava-lhe feridas nas ilhargas. Não tinha mais forças para carregá-la. Retirou algumas balas e refez a carga do revólver. Apanhou o diamante e apertou nos dedos da mão esquerda. Deixou a guaiaca com a cartucheira abandonada no chão.
Precisava andar. Queria viver. A mão respirava fogo. O diamante produzia-lhe a realidade. A vontade de viver. Viver!
Se soubesse voltar ao lugar em que abandonara Kanaú, voltaria. Se ele não estivesse ainda morto, pediria perdão de sua maldade, faria curativo na sua cabeça...
Abanou a cabeça desanimada. Nada disso adiantava agora. O cansaço juntava-se aos ferimentos. O rosto ardia de bater contra as garras da selva. Por vezes erguia as costas da mão e sentia um novo gilvaz. A mão descia com gotinhas de sangue. O revólver pesava. Sentia que o ar que respirava estava morno.
Mas andava sempre. Ouvia ruídos suspeitos à sua volta. Fixava o mato perscrutando com os olhos do pavor. Tudo era silêncio.
Sentou-se de novo e colocou a arma no colo. Descerrou os dedos e trouxe o diamante até junto do rosto. As lágrimas vieram-lhe aos olhos e correram pela face, inundando a pedra.
Que adiantava aquilo? Tantos contos? Tanto dinheiro sem significado... Lutara tanto e não valia a pena. O sangue pedia sangue. Aquele era o preço do diamante. Não guardava ilusões de se salvar. Suspendeu a pedra ao sol e viu que miríades de luzinhas se projetavam em todas as direções. Que brilho maravilhoso! Imaginou quando a pedra estivesse lapidada como não refulgiria. Desceu a mão e cerrou os dedos.
Não queria morrer. Contudo não se enganava mais.
Ergueu-se, como uma sonâmbula, recomeçou a andar. Tanto fazia ir para frente ou para trás. Todos os caminhos conduziam- na à mesma condenação. A morte estava grudada em cada tronco de árvore da selva, aguardando o momento definitivo do ataque. Não sentia forças para levar a arma até os ouvidos e disparar. Talvez mais tarde fizesse isso. Como o Tenente. Arrepiou-se toda relembrando a figura do Tenente morto. O sangue escorrendo pela parte estourada; o corpo se remexendo no rio devorado pelas piranhas vermelhas.
Apertou mais os dedos como a implorar energia ao diamante. Sentiu-o banhado de suor, roçando vivo na palma de sua mão.
Todos morreram por causa da pedra. Não acreditava em feitiço mas o sangue gasto por sua causa, clamava vingança aos céus. Afinal por que somente ela teria de escapar? De todos talvez tivesse cometido o menor crime. E por que morria assim estupidamente? Merecia um fim melhor para compensar uma vida miserável, desgraçada. Ria por qualquer coisa. Ria de desespero. Ria porque se chamava Maria Betânia. Porque a chamaram de Escrotilde. Porque abreviaram-na para Tilde. Porque as pessoas não a consideravam uma mulher. Porque era um bicho, um verme. Por que sendo assim somente a selva serviria para seu túmulo. A selva colocaria o diamante como um diadema sobre os seus cabelos lindos. Levou a mão e alisou os fios de ouro. Seu cabelo era tão lindo que servia para acompanhar o diadema. Riu do seu cabelo. Riu mais alto. Mais ainda. Gargalhava como louca. Ria tanto que não notava que a selva acabava e que um pantanal enorme se distendia pela sua frente. Encaminhou-se para ele, sempre rindo. Poucos passos separavam-na do pantanal e o pantanal indicava a presença do rio.
Ouviu um ruído do mato se abrindo. Virou-se e sorriu. O que seus olhos estavam vendo era mentira. Era o medo que produzia tudo aquilo. Riu do medo; o medo que produzia fantasmas em pleno sol. Não acreditava naquilo. Naqueles homens nus armados de flechas e que tinham batoques arredondados nos beiços; que traziam a cabeça raspada até à metade como se fossem calvos. Viu que eles apontavam os arcos para ela, mas riu.
Um choque arremessou-a contra o chão. Não sentira dor alguma no primeiro instante. Somente os seus movimentos se tinham paralisado com o impacto.
Olhou para o peito e para as coxas magras. E um horror de morte tornou-a consciente do que acontecera. Flechas longas balançavam-se ainda. Fora atirada como um bicho. Um ódio surdo deu-lhe forças para sentar-se. E com sacrifício, porque as suas pernas tremiam como se tivessem adquirido o balançar das flechas. A vista se encontrava turva. Os corpos bronzeados dançavam em frente. Suspendeu o revólver e atirou. Foi atirando. Mas a mão insegura baleou apenas as cascas das árvores. Queria erguer-se e fugir, e não podia. O revólver pesava-lhe tanto e por que carregar aquele peso se não possuía mais balas? Largou-a e rastejou em frente.
Seria a morte que criava também visões assim? Suas mãos tatearam a lama do brejo. A lama! Então estava saindo da selva. Malditos índios! Esperaram até que ela chegasse à beira da salvação, para liquidá-la. E para quê? Somente para ficarem de posse de uma arma. Era assim que eles faziam aos castanheiros e seringueiros. Ouvira falar que os Caiapós matavam para adquirir armas. Com sacrifício revirou a cabeça e descobriu o revólver no mesmo canto que deixara. Ainda não se tinham apossado dele. Felizmente eles não sabiam o que ela tinha fechado entre os dedos. Aquele diamante era seu. Somente seu. Só seria dividido com a morte.
Rastejou mais para o mangue. Queria atingir o rio. Podia ser que alguém atraído pelos tiros viesse até ali e a salvasse. Queria viver! Queria viver para justificar o motivo de ter nascido um dia. Para que soubesse que a vida possuía outros ângulos mais agradáveis. Se a Polícia a encontrasse diria que prendera Kanaú e poderia pelo menos ganhar os vinte e cinco contos de prêmio pela captura da gema.
Arrastou-se mais. Agora sentia que grandes ferroadas comiam-lhe o peito e as pernas. Ouviu novo sibilo e novos choques, dessa vez contra as suas costas. Mas não parou. Queria viver. Foi caminhando para o alagadiço. A água vinha cobrindo o seu corpo. Sua vista não divisava quase nada. Sua única mão livre puxava o corpo para o lamaçal.
As últimas forças gritaram aos seus ouvidos e ela chorou.
- Eu vou morrer! Eu vou morrer!... Agora que tenho o diamante! Agora que encontrei o rio e a salvação. índios miseráveis!...
Caiu de borco. A boca penetrava na água e o cheiro de lama podre, que recordava a morte da última chuva subia pelo seu olfato.
Mas eles não descobriram aquilo. Puxou a mão esquerda e trouxe o diamante até os cabelos. Entreabriu os dedos e a morte ainda deixou que as últimas fagulhas irisadas do diamante povoassem sua visão. A mão descaiu sobre o queixo. O Geral que remexia os miasmas esvoaçou sobre os cabelos lindos arremessando-os sobre a mão.
Houve um último movimento de estertor. Borbulhas apareceram na água imunda e tudo silenciou. A morte resolvera tudo na sua loucura de Amanôn. A morte satisfizera a vontade de Tilde dando-lhe o diadema desejado para seus cabelos: o diamante. O diamante não tinha dono mais. Só a terra o possuía. Voltava de onde viera. A cada ano que passasse, quando as chuvas aparecessem e tudo aquilo se transformasse num imenso igarapé, o diamante iria desaparecendo mais. Até alcançar as raízes da terra e permanecer para sempre, para sempre...


Kanaú vivia. Mas não sabia se era vida ou sonho. Entreabria os olhos e poucos eram os momentos de lucidez. Às vezes pensava que Iroá vinha chegando e o desamarrava. Que estava salvo e vivo. Que nem sequer fora flechado pelos Caiapós. Enxergava as espigas de milho defronte e os grilos do mato roendo os seus grãos. Não sentia fome. Nem mesmo dor. Só aquela sonolência que o aniquilava. Adormecia e acordava. Ora estava na selva morrendo, ora se via na cidade. Chegou mesmo a rever-se menino. Quando os frades o levaram para Conceição do Araguaia e o fizeram estudar. Lembrava-se do adeus de Iroá na barreira de Santa Isabel. O amigo não se conformava com a sua partida. Aliás todas as suas partidas significavam tristezas para Iroá.
Os frades o tinham tratado muito bem. Ensinaram-lhe a ler e fazer as quatro operações. Ensinaram-lhe que ele se um dia voltasse para o meio da tribo, não devia deixar furar o beiço nem cortar os círculos de "omarira" sob os olhos. Esclareceram-lhe que ele não era índio e sim meio branco. Tiraram-lhe a fé sobre Kanansiu-ê, mas não o convenceram que o Deus dos brancos era o verdadeiro. Tornaram-no duro e exigente. Estava certo de que devia ser mais branco do que índio. Os frades bondosos, que o afastaram de Kanansiu-ê desabrocharam-lhe as primeiras ambições. Tiraram-lhe o gosto pela selva e pela vida sã.
Lembrava-se quando retornara já rapazinho. Que o motor tocara a barreira de Raumaló-Dessé, que como branco ele passaria a chamar de Santa Isabel; lembrava-se de Iroá que o esperava igual, puro, com o mesmo sorriso rasgado no rosto moreno e feio...
Estremecia e conseguia voltar à realidade. Morreria se não o viessem salvar logo. Perdera muito sangue e a flecha que atravessara os membros ardia como brasa líquida. Não importava que as moscas lambessem os seus ferimentos ou que os mosquitos zumbissem aos seus ouvidos. Queria era Iroá. Onde estava Iroá que não aparecia?
Iroá estava de novo na sua infância. Querendo saber de tudo; como era Conceição do Araguaia. Como viviam os brancos numa cidade. Queria saber de tudo. Experimentar as suas roupas.
Depois Iroá descobriu que ele estava ficando homem. Que era preciso fazer os círculos sob os olhos, que era preciso raspar a cabeça e pintar o corpo inteiro de preto como costumavam fazer os outros rapazes da tribo. Breve Iroá faria aquilo. Mas Kanaú não ouviu o amigo. Riu daquilo tudo. Afinal ele era branco. Iroá tornou-se triste. Mais triste ainda quando Kanaú ficou com mania de viver entre os brancos. Perdera mesmo o amigo.
Kanaú tornava a abrir os olhos e estava de novo em frente às espigas de milho que iam sendo destruídas pelos grilos escuros, cor de fumo.
Vinha a sonolência e ele se via na cidade. Era o Rio ou São Paulo? Quanta buzina! que movimento de bondes e carros! Revoltava-se com a atenção chamada sobre ele, sobre os olhos mongóis e a pele escurecida de sol. Não era um branco. Não era um branco.
- Você, Kanaú, precisa voltar para o Araguaia. Você é um índio e não tem o direito de viver numa cidade. Há mais de um ano que está aqui e já fez muita besteira.
Quem falava assim era o Chefe do Serviço de Proteção aos índios. Ele ditava o seu desgosto. A sua condenação. Mas tinha que voltar. Ao sair da sala ainda ouviu que o Chefe comentou com o secretário:
- Eles logo adquirem todos os vícios. Os piores vícios dos brancos. "Esse" vive nos cabarés... Bebe como qualquer branco...
Gemeu cansado:
- Por que Iroá não vem?
Sentiu uma lassidão imensa. Os olhos pesavam. Parecia que ia dormir um sono que nunca mais acabaria. Pendeu a cabeça e quando descerrou os olhos, descobriu que a noite voltava para a selva e a selva cantava nas suas múltiplas canções. O vento parará. Sorriu. O Geral se fora de uma vez. Agora só para o ano.
O cheiro da noite trouxe-lhe um certo conforto. A selva estava calma e parecia inofensiva. Apenas pequenos ruídos de bichos invisíveis enriqueciam-lhe a beleza. Estaria sonhando? Escutou bem. Não, não era sonho. O pio do jacurutu repercutia incessantemente. Fez um esforço e respondeu ao grito. O peito doeu e tornou a desfalecer.
O sol do dia descia sobre o seu corpo. Seus olhos não estavam mais vendo a selva em frente. As espigas de milho tinham desaparecido. Enxergava apenas o céu e a galharia das árvores. Encontrava-se deitado no chão. O rosto moreno de Iroá estava rindo sobre ele.
- Sou eu, Kan. Você está me vendo?
Kanaú sorriu fracamente.
A mão de Iroá desceu de leve sobre sua testa.
Kanaú falou fracamente:
- Você... demorou Iroá. Quase não me encontraria mais.
- Não podia vir, Kanaú. Os Caiapós estão em temporada de caça. Tinham cercado você desde anteontem à noite. Eu não podia chegar. Eu estava perto, mas era perigoso. Piei muitas vezes como o jacurutu. Você não ouviu?
- Não.
- É porque você estava muito ferido!
- Estou muito, Iro?
- Está, mas você fica bom. Quando eu cheguei você estava desmaiado. Foi bom. Porque assim eu tirei as flechas sem você sentir. Andei quase toda a noite carregando você. Só parei há duas horas para descansar um pouco.
- Eu não vi.
- Sabe Kan. Eu vou levar você para a praia. O posto do Serviço está cheio de Polícia. Vocês não conseguiriam passar mesmo pelo rio...
Iroá lembrou-se de uma coisa.
- E o diamante?
- A mulher...
- Sei. Não fale muito. Daqui a pouco eu carrego mais você. Os orotis-bedus dos Carajás vão botar remédio nas suas feridas e você fica bom. A gente esconde você e depois volta para Santa Isabel.
Iroá riu para Kanaú como a confirmar as suas esperanças.
- Eu não chego até lá...
Iroá sorriu mais.
- Chega sim. Nós estamos perto do rio. Eu vi a sua canoa na moita de mururê. A minha está amarrada junto. Quer ir agora?
Kanaú disse "sim" fracamente.
Iroá colocou-o cuidadosamente sobre o ombro.
- Dói?
- Quase nada.
Iroá sabia que mesmo que doesse muito Kanaú responderia daquele modo.
Puseram-se a caminho. Ao aproximar-se do meio-dia chegaram ao pantanal. Agora só era descer a selva que beirava o alagado e estariam perto da canoa.
Urubus do céu voavam sobre o pântano.
- O que será aquilo?
Sem soltar Kanaú, Iroá caminhou na lama para espiar aquilo. De longe, as aves levantaram vôo percebendo a presença humana. As flechas estavam apontadas para o céu.
- Olhe, Kan.
Kanaú olhou sem se emocionar.
- É Tilde.
Seus olhos analisaram o corpo todo para certificar-se de uma coisa.
Iroá falou:
- Foram os Caiapós. Eles levaram tudo.
- Levaram tudo sim, Iro.
Kanaú não avistava a arma, nem a guaiaca que guardava o diamante. Sorriu tristemente. Nada importava. Os Caiapós tinham conseguido a melhor presa.
Espiou para os urubus que tinham pousado nas árvores aguardando que eles se afastassem.
Lembrou-se de sua maldição. As palavras que dissera para Tilde quando ela se afastava:
- Hei de ver você comida pelos urubus!... Kanaú fechou os olhos.
Iroá retrocedeu e pegou o caminho que o levaria até à canoa. Os ombros de Iroá estavam molhados de suor pelo esforço. O seu respirar se tornava ofegante.
- Está por pouco, Kan...
Kanaú sem abrir os olhos, comentou para Iroá:
- Iro, você reparou que o Geral parou?
- Acabou por esse ano, Kan. Ano que vem ele volta...


Oitavo Capítulo - Arara Vermelha

Remexeu-se devagar na esteira e sentiu o corpo todo envolvido por uma sensação morna de bem-estar. Aos poucos foi sendo apossado de um descanso incompreensível. Kanaú não ignorava que fora ferido mortalmente e que durante muito tempo teria rolado febril naquela esteira e que aquela esteira adquiria um jeito macio sobre o corpo. Estranhas aquelas sensações. Ou a febre destruía em si toda a capacidade de sentir ou algo se realizava nele como um milagre ou um feitiço, curando-o de todas as dores.
Remexeu-se de novo e o bem-estar continuava. Por certo muitos dias e muitas noites delirara doente e agora estava se refazendo.
O pensamento foi formando um elo e as coisas clareavam em sua mente. Sabia encontrar-se na casa de Aruanã; para isso seus olhos percorreram o teto de palha e na parede lateral descoberta o céu vomitava milhares de brilhos de estrelas. Sob a luz dos astros delineavam-se à sua frente as grandes máscaras sagradas, os imensos Diasós, que levavam as cantorias até os ouvidos de Kanansiu-ê.
Sorriu lembrando-se de Kanansiu-ê. Agora uma grande piedade o invadia. Gostaria mesmo que Kanansiu-ê existisse. Gostaria de encontrar o Kanansiu-ê dos inans repousando na grande rede vermelha, depois de um dia de cansaço na caçada. Então Kanaú sorriria para ele e pediria para desenhar um motivo lindo em suas costas, todo entremeado de riscos escurecidos e vermelhos. Depois pediria para trançar os seus cabelos negros; aqueles cabelos negros que quando Kanansiu-ê dormia demais, se entranhavam na terra e formavam as raízes das árvores; que quando Kanansiu-ê se banhava no rio, cada fio que escapasse de sua densa cabeleira seria transformado em Ramalalá, a cobra grande ou em botos azulados que choravam nas águas fundas...
Era assim que o velho Maluá contava sempre. Era assim que aconteceria quando fosse embora da terra e caminhasse pela selva do céu ou buscasse a calma do rio onde nascera...
Mas por que pensar em morte agora que se sentia tão bem, tão vivo?
O peito comprimiu-se e achou que a casa de Aruanã estava desabando sobre ele; que as paredes se achatavam. Quase não podia respirar. Distendeu as mãos e com surpresa, descobriu que os braços feridos não doíam nada. Com a ponta dos dedos percorreu a fibra trançada da esteira. Contou os nós que estavam ao alcance de suas mãos. Cada amarra daquela tinha sido trabalhada com cuidado por uma mulher Carajá. Reviu as inans debruçadas sobre os feixes de fibra, correndo os dedos rápidos sobre o trançado, encostando os seios sobre o trabalho. E a esteira pronta servia de repouso aos homens cansados da pesca, aos doentes, às crianças que choravam sempre pedindo leite e até às virgens indolentes que esperavam marido.
Tarimaru descortinou-se ante os seus olhos, escondendo o ventre no cobertor ensebado e deixando os seios túrgidos descobertos e livres ondulando a cada movimento que fazia na esteira.
A voz de Maluá o perseguia:
- Tarimaru espera marido. Kanaú. Esse marido bem podia ser você.
Dessa vez Tarimaru não escondeu os olhos entre os cabelos como fazia no retô de Maluá. Ao contrário, ajeitou o colar de miçangas brancas sobre o pescoço bem feito e sorriu para ele nos dentes brancos...
Suspendeu a mão sobre os olhos como a afastar a visão. Seus olhos deram com um vulto debruçado sobre ele. Iroá refletia nos olhos a luz das estrelas e falava baixinho se achegando junto ao rosto.
- Que foi, Kan?
Um sorriso feliz abriu-se nos olhos de Kanaú. Como era bonita a voz de Iroá! Parecia o vento arrepiando o rio no banzeiro. E por que falava assim tão baixo?
Relanceou a vista de lado e teve a noção exata de que o teto de palha vinha mesmo se aproximando sobre a cabeça de Iroá e que os inans que dormiam perto embrulhados nas velhas mantas ensebadas cresciam assustadoramente a cada respirar.
Sentiu a mão morna de Iroá sobre a sua fronte. Certamente o amigo estava falando baixinho para não despertar os outros.
Pequena e diferente aquela casa de Aruanã! Em Raumaló-Dessé, sim! As máscaras de Kanansiu-ê e de Lateni o deus-bicho do mal eram grandes e imponentes. A cada ano os moços da tribo saíam atrás de novas penas e novas fibras para reformá-las. Tiravam tintas do mato para colori-las.
- Que foi, Kan? - tornou a perguntar Iroá.
Os lábios felizes de Kanaú se entreabriram e a voz veio fraca e trêmula. Iroá aproximou o rosto para escutá-lo melhor.
- Hoje... é dia de festa. Eu vou casar com Tarimaru. Você não escuta? As mulheres preparam kalugi. A aldeia está enfeitada. Maluá vai fazer o omarira no meu rosto, não vai, Iro?
A emoção riscou a alma de Iroá. Na semi-escuridão da casa de Aruanã ele percebia o corpo ressequido do amigo e sentia que a vida ia se escapando aos poucos. Sob sua mão a testa escaldava. Mas Iroá conteve sua tristeza e dominou a voz enquanto respondia.
- Eu escuto tudo, Kan. As mulheres fazem festa. Maluá vai riscar o seu rosto e você será um Inan para sempre...
Um gemido escapou-se de Kanaú. As paredes diminuíam e o teto agora se aproximava mais. O peito quase não podia respirar.
- Iro...
- Que foi, Kan?
- Eu queria pedir uma coisa.
- Pode pedir que eu faço, Kan.
- Eu não quero dormir mais aqui. Não me deixe aqui.
A tristeza cresceu maior em Iroá. Ele quase adivinhava o que Kanaú iria pedir.
- Me leve daqui. Eu quero sentir a noite sobre o meu corpo. Você se lembra que quando eu era menino não gostava de ficar doente?...
- Para que as velhas da aldeia não chorassem perto de você, não é, Kan?
- Então me leve, Iro. Daqui a pouco as mulheres virão chorar e cantar...
- Não virão, Kan. Nós estamos na casa sagrada de Aruanã. Mulher não entra aqui.
- Me leve, Iro. Eu quero ver o rio. Eu tenho que voltar ao rio. Quis soerguer-se mas os braços sem força não conseguiram sustentar o corpo.
- Iro, eu estou bom. Completamente bom. Não sinto mais nada. Não doem os ferimentos. Eu só estou fraco.
Suspendeu os braços emagrecidos, onde as ervas do mato colocadas pelo oroti-bedu, o feiticeiro, pareciam avolumar-se.
- Só estou fraco, Iro.
Ameaçou escorregar-se, arrastando-se na esteira. Parou sofregamente.
- Iro, você precisa me ajudar. A casa está caindo. Eu não quero ficar aqui. Quero voltar imediatamente para Raumaló-Dessé e só você pode me ajudar. Senão terei que me arrastar até o rio.
Sua voz suplicava num desespero terrível. Iroá reajustou-o na esteira e falou com doçura.
- Fique quieto, Kan. Eu levo você. Descanse um pouco e logo eu levo você. Feche os olhos.
Kanaú obedeceu porque sabia que Iroá nunca mentira para ele. Sua respiração perdeu aquela aceleração provocada pelo esforço anterior. Seus ouvidos voltaram a ouvir o ressonar dos outros inans que de nada tinham se apercebido.
Iroá debruçou-se sobre ele e falou daquela maneira suave.
- Agora, sim. Coloque seus braços em volta do meu pescoço e veja se consegue sustentar. Assim... Vou carregar você.
Foi erguendo Kanaú da esteira. Algo desalentador devorava todo o seu íntimo. Aquele era seu amigo. Aquilo, o corpo do seu amigo. Uma revolta feroz se alastrava em todo seu desalento. Desgraçados Caiapós que tinham reduzido Kanaú a um feixe sem vida! Um corpo leve! Para o futuro, cada Caiapó que encontrasse regaria com o seu sangue a terra. A terra que se abria como uma flor ansiosa para receber aquele corpo se extinguindo.
Sentiu a carne quente junto ao seu peito forte. Como tinha sido possível tudo aquilo? Onde estava Kanaú que lutara tantas vezes com ele. Kanaú que vencia todo o rio com a força dos seus braços maravilhosos. Que comprimia até às proximidades da asfixia os outros lutadores inans e javaés que se atreviam a lutar com ele? Kanaú era apenas um feixe de vida respirando com dificuldade. Com os olhos se afundando no rosto e as maçãs salientes perfurando a pele queimada...
Saiu. A noite era um canavial de estrelas. Um vento agradável surgia de toda parte e balançava seus cabelos untados. Kanaú se aninhara nos braços de Iroá e Iroá sentia que o amigo se transformava em algo muito triste mas feliz.
Caminhou devagar para que as feridas dele não fossem molestadas.
A noite também caminhava lenta. A aldeia de verão dormia calma. Os ranchos de palha feitos provisoriamente para a temporada do frio eram tão mal acabados como a casa de Aruanã.
Os pés de Iroá chiaram na areia fina da praia. Uma voz saiu de uma casa.
- A mô bô?
- Eu, Iroá.
- Diobô makré uydile?
- Vou dar uma volta no rio.
A voz calou-se. Um cão ganiu ao longe. Depois tudo voltou ao silêncio normal da noite calma.
Iroá parou e viu que Kanaú adormecera. Chamou-o.
- Kan, olhe! O rio.
O amigo ergueu a cabeça enfraquecida e um sorriso branco apareceu cansado. Seus olhos tinham adquirido um brilho que há vários dias sumira. A sombra mortiça das suas pupilas tinha se vivificado.
O rio estava ali. Estaria ali sempre. O rio grande e amigo que matava a sede de todos. O Bêé-Rokan dos Carajás! O Araguaia dos brancos ou toris estava ali, caminhando silencioso. Dividindo a noite em duas partes. Descendo mais devagar porque de noite até as águas dormiam e caminhavam entontecidas de sono. Por isso as estrelas abusavam tanto e se vinham banhar no rio sem medo das piranhas. O rio estava ali. O sorriso foi se fechando aos poucos.
Iroá caminhou com o amigo até à sua canoa. Deitou-o com cuidado na praia. Ajeitou então uma estiva no fundo da embarcação e forrou-a com o cobertor. Não queria que nada incomodasse o doente. Tornou a carregá-lo e depositou-o de costas com a cabeça dirigida para a proa.
Os ouvidos de Kanaú ficaram escutando o ruído da água passando sob o fundo da embarcação.
A canoa desgarrou-se da areia e foi derivando para longe da praia. Só se escutava o remo impelido de leve por Iroá. Cada vez mais se afastavam da aldeia. Nenhum ruído seria mais percebido de lá.
- Que bonita a noite, Iro!
O outro riu. Iroá sabia que Kanaú ia fazer uma longa viagem e queria protegê-lo contra todos. Ninguém faria mal a seu amigo. Queria guardar com ele todas as suas palavras. Seus últimos momentos seriam trancados para sempre no seu coração selvagem e ninguém tocaria naquele grande segredo.
- Que pena que eu não possa remar e ajudar você, Iro! Iroá sorriu.
- Você nunca remava, Kan. Sempre era eu, porque você tinha preguiça.
- Eu tinha preguiça sim.
Calou-se um pouco, mas logo suplicou a Iroá.
- Fale, Iro. Fale comigo.
Mas não deixou que o outro falasse. Ele mesmo começou a conversar.
- Que pena não Iro? Que penal Tudo ia tão bem. A gente poderia ter feito o maior marisco da vida. Quase mil contos...
- Muito mais do que isso! Mas pelo menos você escapou com vida, Kan.
Riu interiormente porque sabia que não viveria muito. Espiou para Iroá e seus olhos se encheram d'água. Estava agradecendo a Kanansiu-ê e ao Deus dos brancos não ter vivido e nem ter possuído o diamante. Porque senão teria que dividir com Iroá e o Lateni em toda a sua crueldade de deus-bicho do mal faria com que ele matasse, eliminasse Iroá para não ter que dividir o brilhante; o amigo era a única e última testemunha do crime. Sim! Ele também mataria Iroá. E no momento da morte, daquela morte que vinha vindo tão meiga e suave, ele divisava o amigo que toda vida se dedicara como um cão. Que remava na noite de estrelas para satisfazer a sua última vontade.
Um sorriso de felicidade lavou toda a maldade de sua alma.
- Foi bom, Iro. Foi bom que os Caiapós tivessem levado a pedra...
Fez nova pausa. O remo cortava fios de luz na água.
- Sabe, Iro? Eu estou completamente bom. Completamente bom.
A voz tinha voltado forte e aquilo era estranho para Iroá. Ele não se queria conformar que Kanaú partiria muito breve e que aquela melhora era a aproximação da largada. Contraiu a boca doridamente e um gosto amargo parecia subir pela garganta. Dominou-se e procurou conversar com calma.
- Uma coisa eu nunca compreendi, Kan. Como é que você sabia que o diamante ia ficar para você. Como você sabia que tudo ia acontecer como aconteceu?
- Eu não sabia de tudo, Iro. Foi Lateni quem resolveu tudo de ruim. Eu pensei que matando Camura ia ser mais fácil.
Lembrou-se num minuto de Camura. Tão bom o Delegado. Ih! Camura! Ele devia ser mesmo índio porque não tinha remorso algum de ter assassinado Camura. Lembrou-se também de Camura quando falava do filho...
- Tudo aconteceu por acontecer. No começo eu queria somente a parte que seria dividida comigo. Depois, foi Lateni quem fez feitiço. Eu não esperava que o Tenente se suicidasse. Não imaginava que Daniel fosse morto pelos Xavantes. Que Sá Lua desaparecesse. Não... - fez uma pausa prolongada. - Não pensava que Tilde fosse mestiça e tivesse escutado a conversa da gente. E ela viu quando envenenei Camura...
- Não faz mal. Agora tudo passou, Kan...
- Tudo acabou pra mim.
- Não. A gente vai voltar para Raumaló-Dessé. Lá a gente pode pescar e fabricar uma ubá nova para a chuva do verão Não é?
Kanaú calou-se.
- Você quer que eu fale ainda Kan?
- Fale, sim. Fale sempre. Conte a história do castigo dos Inans.
- Eu não sei contar como Maluá ou Chêerá, mas vou falar pra você:
"Há muito tempo atrás os inans eram felizes e viviam no fundo escuro de Bêé-Rokan. Não sofriam as privações da fome..."
A voz de Iroá foi-se transformando na do velho Chêerá e diante dos olhos de Kanaú uma maravilhosa transformação se deu: reviu-se menino, deitado na esteira, junto de Iroá, Uereá, Telibré e outros meninos. Chêerá parecia transformado numa estátua, onde somente os olhos flamejavam e os lábios falavam docemente. Até a sua tez enrugada se tornava lisa e brilhante.
Era uma velha história que poderia ser repetida mil vezes e que nunca perdia a emoção para Kanaú. Seu corpo sadio e levado nesse momento esquecia a vida para escutar.
- "Kotu-bené arirubuna Inan kay biroxikre...
Já agora Chêerá tinha desaparecido e sua voz surgia grave de dentro do rio e Kanaú compreendia que Chêerá tinha morrido e voltava para o meio das águas.
- "O Carajá matava o cagado e o comia..."
O Carajá - continuava a voz - não brigava, não matava, nem morria. Era forte, alegre e mais bonito. Um dia fato estranho aconteceu: o filho mais moço do capitão da tribo adoeceu. Chamaram oroti-bedu, o feiticeiro, e de nada adiantou. Todos os seus esforços foram baldados.
Havia no meio dos Carajás dois jovens fortes e corajosos...
Kanaú se viu no meio do rio, caminhando entre raízes oscilantes e feixes de mururê. As canaranas redemoinhavam como serpentes esverdeadas.
A seu lado Iroá passeava como se fosse também uma planta aquática revoluteando.
- Vamos, Iro? Quem sabe? Do outro lado do olho de Bêé-Rokan encontraremos o remédio para o rapaz?
- Não, Kan. O buraco é negro e perigoso. Koboí disse. Koboí proibiu.
- Que sabe Koboí? Koboí é velho.
- Koboí viveu...
...Mas uma noite, os dois apanharam arcos e flechas e semi-receosos transpuseram o olho do Bêé-Rokan...
Kanaú soergueu-se na canoa. A noite cedera seu lugar a um dia maravilhoso. A natureza estava em plena primavera.
Kanaú gemeu para Iroá.
- Você está vendo, Iro?
Iroá estancou o remo e só divisou a noite calma.
- O quê, Kanaú?
- Acabamos de transpor o olho do Bêé-Rokan. Nós vamos buscar o remédio para o filho do capitão da tribo.
Iroá ajoelhou-se junto de Kanaú. Colocou a mão sobre a sua fronte e viu que ele ardia em febre. No delírio ele se transformava no herói da história que estava sendo contada.
- Você está vendo, Iro? Olhe que belo!
Tudo era tão lindo. Os pássaros coloridos sempre se transformando em fogo e sangue. Araras vermelhas voavam em confusão soltando gritos estridentes de vida. As margens do Araguaia de flores matizadas! As simbaibinhas molhavam os galhos roxos na água cristalina do rio. Um cheiro de baunilha e almíscar invadia o ar. Os ingazeiros carregavam-se de vagens amarelas que rebentavam em polpas brancas. Tchu, o Sol, incendiava a vida com seus raios quentes. Tudo tão diferente do fundo escuro do rio onde os inans tinham nascido...
Deles se aproximou Budôé, o cervo. Quiseram matá-lo, mas o veado dourado falou-lhes.
- Não me matem. Vocês querem o remédio que tudo cura? Pois ali está. No tronco seco da palmeira de tucum. É o mel mais doce da abelha.
Eles então apanharam o mel e retornaram pelo olho do Bêé-Rokan.
O filho do chefe da tribo bebeu o remédio e ficou bom.
Iroá então contou as maravilhas do outro lado. Falou de Randô, a Lua. De Tahiná-kan, a estrela-d'alva e de tchu, o Sol.
Nasceu daquela hora em diante, entre os inans, um desejo que dia a dia ia aumentando. Já agora ninguém se contentava com o fundo escuro feio e queriam abandoná-lo.
Koboí abanou a cabeça.
- Não vão! Não vão! Vocês serão infelizes. Vão chorar, sofrer e morrer!...
Ninguém deu atenção a Koboí. Se Koboí era velho... Arrumaram as coisas e partiram em direção ao olho do Araguaia, caminhando em fila, ansiosos. Koboí vinha atrás. Tornou a falar-lhes.
- Não! Não vão!... Vocês vão morrer. Lá existem as palmeiras de tucum que secam: sinal de morte certa...
Mas eles se foram sumindo um a um pelo olho do Bêé-Rokan Koboí tinha lágrimas nos velhos olhos.
- Vão malditos! Vão! Mas que nenhum índio tenha o nome de Koboí de agora em diante.
Koboí ficou só e abandonado.
Os anos se passaram. Os inans não eram mais felizes. Começaram a adoecer e a morrer. Um deles falou:
- Koboí tinha razão. Vamos voltar senão morreremos todos. Retornaram ao lugar onde julgavam encontrar a passagem, o olho do Araguaia. E nunca mais o encontraram. Assim vieram os Carajás da terra. Sofrendo o castigo de sua desobediência e permanecendo para sempre... Nunca mais um índio inan se chamou Koboí. Nas noites de lua, pelos trechos encachoeirados do Araguaia ouvem-se os gemidos de Koboí, lamentando a ingratidão dos Carajás...
- É por isso que quando morre um índio, se é oroti-bedu vai lá para cima e se não é, procura o fundo do rio para descansar e ser feliz...
Iroá calou-se.
Kanaú revolveu-se no fundo da canoa.
Tudo tinha desaparecido. A noite voltara a ser noite e a voz que julgava vir do rio era mesmo de Iroá.
- Gostou, Kan?...
- Gostei, Iroá. Você mais tarde vai ser um grande contador de histórias dos inans... Eu pensei uma coisa...
- Conte o que foi.
- Uma vez... você se lembra? Nós estávamos conversando sobre o que viria depois da morte, com Arutana. Lembra-se?
- Me lembro.
- Então você disse que acreditava que inan quando morresse irá para o fundo do rio. Eu então falei que não. Que todo mundo se misturava apenas com a terra. Então Arutana olhou o rio e o céu e falou: "- Pois eu não. Quando eu morrer vou ser uma estrela no céu..." Você se lembra disso Iro?
- Não me esqueci. Por quê?
- Porque naquela hora eu fiquei certo de que Arutana se morresse poderia ser mesmo uma estrela no céu.

Calou-se um momento e depois recomeçou. Na sua voz havia um tom de lamento.
- E eu, Iro? Para onde irei? Não sou branco para ir para o céu de Deus. Nem índio para descansar no fundo do rio... Toda minha vida foi essa tristeza de não ser nada, nada...
Os olhos estavam cheios d'água.
- Eu nunca fui bom por isso. Nunca compreendi porque era assim.
A voz de Iroá veio com uma ternura imensa. Ele sabia que Kanaú estava começando a partir.
- Você irá onde quiser, Kan. Você sempre foi bom. Se quiser poderá voltar ao fundo do rio e se quiser subirá ao céu como uma estrela. Senão poderá se misturar com a terra e se transformará numa árvore grande. Talvez num pé de landi e esse pé de landi virará uma canoa que nunca saia do rio...
Um estremecimento percorreu o corpo de Kanaú.
- Por que você está falando tão baixo, Iro?
Iroá ficou com os olhos cheios d'água. Ele sabia o que era aquilo. Não modificara um instante o som da sua voz...
- Fale mais, Iro. Fale mais alto porque o banzeiro leva a sua voz para bem longe.
Iroá fitou as águas do rio, que andavam devagar porque dormiam. Nem um sinal de vento. Entretanto Kanaú estava ouvindo o banzeiro.
Falou muito. Foi falando devagar enquanto o remo de leve ia cortando as águas. Subindo sempre o rio, querendo dar a impressão a Kanaú de que estavam subindo em direção de Raumaló-Dessé.
Kanaú caiu em doce sonolência, mas foi despertado pelo ruído da canoa tocando a terra.
- Chegamos, Kanaú.
Na barreira de Raumaló-Dessé todos os inans acorriam dando gritos de saudação. Iroá vinha na popa da canoa e sustentava o remo. Kanaú encontrava-se sentado no centro da embarcação. Seu corpo tinha sido todo pintado de vermelho e suas costas e o peito ostentavam um desenho fabuloso e rico de detalhes negros.
Virou-se e viu Iroá sorrindo para ele.
- Hoje é dia de seu casamento, Kanaú. A aldeia de Raumaló-Dessé está em festa. Tarimaru está toda nua, com o corpo pintado olhando a sua chegada na barreira. Mas não olhe porque é proibido aos noivos. Levante-se de cabeça baixa que Maluá está descendo para cá e vai carregá-lo.
Maluá aproximou-se e enfiou a cabeça sob as pernas fortes de Kanaú, erguendo-o no espaço.
Ele ouvia as aclamações de todos os inans que assistiam à cerimônia mas estava proibido de levantar a vista para divisar tudo. Não podia defrontar-se com a noiva.
Foi carregado até o retô de Curiala, e ali depositado no chão. Curiala se encontrava sentado numa velha esteira junto de sua mulher. Kanaú sentou-se cruzando as pernas como era o costume.
Curiala velho e cego tinha apenas um sorriso para espelhar a alegria de sua alma.
Suspendeu as mãos pelo corpo musculoso de Kanaú.
- Kanaú está forte e todo pintado. Kanaú é bonito. Das gengivas desdentadas partiu a voz da velhinha:
- ...Kanaú está bonito.
As mãos de Curiala ergueram até os seus olhos e os dedos trêmulos encostaram-se sobre os círculos de omarina que tinham sido feitos dias antes.
Kanaú sentiu-se orgulhoso. Agora ninguém na tribo deixaria de o considerar um inan.
- Kanaú, meu filho, que aprendeu a caçar e a pescar comigo agora não tem mais vergonha de ser inan... Kanaú tem os dois círculos da raça...
A velhinha comentou:
- Kanaú tem os dois círculos da raça...
Então Curiala segurou os seus pulsos e os enfiou dentro de uma vasilha de barro. Alisou suas mãos e sua testa, purificando-as com aquela água sagrada.
- Pode olhar sua noiva agora.
Defronte aos seus olhos maravilhosamente nua, com os seios se oferecendo como duas frutas morenas estava Tarimaru sorrindo. E ela era a vida.
Maluá tornou a enfiar-se sob as pernas musculosas de Kanaú. O cortejo de inans o seguiu. Iam levá-lo para o retô onde morara a sua mãe e que agora estava todo reformado.
Foi depositado cinco metros antes da entrada. Caminhou sozinho, sentindo o vento que vinha do Bêé-Rokan alisar o seu corpo nu.
Penetrou na sua cabana. Algo de estranho estava acontecendo. As paredes se tinham alargado e cresciam quase alcançando o céu. Longe, envolvida por dourada claridade, estava uma rede toda branca oscilando.
Aproximou-se e descobriu que em vez de Tarimaru encontrava-se Kanansiu-ê forte e musculoso, com o corpo bronzeado espargindo luz, uma luz vermelha como as asas da arara.
Kanansiu-ê se espreguiçava. E falou-lhe com um sorriso sempre presente, branco e puro na boca rasgada:
- Eu o esperava, meu filho. Eu esperava você, Kanaú, para trançar os meus cabelos!...
Ofereceu os cabelos que eram negros e sedosos e sempre sorrindo comunicou:
- Preciso de um índio forte para caçar hoje comigo...


Iroá remou muito. O cansaço principiou a reclamar os músculos de seus braços. Remara toda a noite. Agora, no lado de leste, Biurasó se anunciava.
O vermelho invadia o nascente. Era Kanansiu-ê que despertava e se banhava no fogo do dia que ia nascer. O vermelho aumentava mais e a manhã aparecia no céu como uma grande arara vermelha.
Encostou a canoa na praia.
Chamou baixinho:
- Kan...
Mas ele não respondia. Insistiu:
- Kan... Só o rio perpassando embaixo da canoa respondia ao seu chamado.
Tocou nos pés do amigo e viu que eles estavam frios, enregelados...
Debruçou-se sobre o seu rosto. De olhos vidrados, Kanaú tinha passado o resto da noite mariscando as estrelas do céu.

 

 

                                                                  José Mauro de Vasconcelos

 

 

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