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Series & Trilogias Literarias
Hob está esperando a mulher na escuridão; esperando logo além do rio, debaixo das árvores, onde o pálido luar não consegue alcançá-lo. Ele fareja o ar duas vezes, explorando-o hesitantemente até o odor acentuado do sangue dela ser levado em sua direção pela brisa. Ele pode agora sentir o gosto dela no fundo de sua língua.
Shola está sozinha. O marido e o filho foram deixados para trás, na casa da fazenda no alto da colina. O menino está dormindo. O marido, Lasar, não pode fazer nada para ajudá-la agora.
A convocação é intensa, mais poderosa do que nunca. Shola precisa atender ao chamado de Hob. Sua vontade a abandona, e ela desce o declive correndo até chegar ao rio. A mulher sabe exatamente aonde ir. Ela tira os sapatos, chutando-os para longe, levanta o vestido até o joelho e penosamente começa a atravessar a água rasa na direção da escuridão das árvores. Em determinado momento, ela quase perde o equilíbrio nas pedras escorregadias. A água está fria e acaricia seus pés, tal como o toque de um lenço de seda, mas sua testa está quente e febril e sua boca está seca.
A mulher está em guerra consigo mesma. Uma parte de si deseja poder permanecer junto à sua família, mas ela rapidamente descarta este pensamento. Se não for quando convocada, Hob subirá a colina até a fazenda e matará o seu filho.
Hob já ameaçou fazer isso.
O marido seria incapaz de defender o menino.
Melhor se submeter à vontade do Hob.
Hoje à tarde, enquanto o sol se punha, Lasar trouxe do sótão um estojo de couro surrado, passou mancando por entre as bandeiras e o colocou em cima da mesa da cozinha. Ele tirou dali duas espadas com cabos ornamentados, cada qual esculpido em forma de cabeça de lobo.
Eram as espadas de Trigladius, as espadas que ele um dia manejara na Arena 13 da cidade de Gindeen, uma eternidade atrás.
— Não vá até ele! — Sua voz estava impregnada de raiva. — Eu vou em seu lugar. Hoje à noite eu vou cortar a criatura em pedacinhos!
— Não! — protestou Shola. — Pense no nosso filho. Se eu não for, Hob vai matá-lo. Ele já me avisou várias vezes. Você sabe que, mesmo que conseguisse matá-lo hoje, outro o substituiria amanhã. Você não pode lutar contra todos eles. Você, mais do que ninguém, deveria saber disso! Por favor! Por favor! Deixe que eu vá até ele.
Por fim, para alívio de Shola, Lasar cedeu e guardou as espadas no estojo de couro. Ele chorou ao fazê-lo.
Agora, ao caminhar afastando-se do luar, ela vê a silhueta do Hob contra o céu. Os olhos dele estão cintilando na escuridão, mais brilhantes do que as estrelas. Ele é imenso, maior do que ela viu em qualquer outro momento.
Ela se detém diante dele, tremendo. Seu coração martelando e a respiração palpitando em sua garganta como uma alma pronta para voar. Ela vacila, mas não cai. Hob se aproxima e a segura firmemente pelos ombros.
Ele só tomará um pouco do seu sangue, diz para si mesma. Seu coração se acelerará durante um tempo e suas pernas tremerão. Sentirá um pouco de dor, mas será capaz de suportá-la. Será exatamente como das outras vezes, vai passar logo, e, então, ficará livre para retornar ao seio de sua família.
Mas há algo diferente hoje. Esse é o momento que ela sempre temeu — a última vez que ele a convocará. Ela escutou as histórias. Sabia que um dia isso chegaria ao fim... A noite na qual Hob não lhe permitiria voltar.
Os dentes dele penetram muito fundo em seu pescoço — fundo demais. A dor é mais lancinante do que nunca. Ele está bebendo seu sangue dando grandes goles vorazes.
Esse é o começo de sua morte.
À medida que sua visão vai ficando turva, lembranças do marido e do filho lampejam em sua mente, e ela é invadida por uma onda de tristeza e saudade. Shola se esforça para bloqueá-las. Lembranças só trazem sofrimento.
E, enquanto mergulha na escuridão, ela vivencia algo ainda mais terrível. É como se uma mão estivesse entrando profundamente nela para arrebatar, torcer e afrouxar, indo além do coração, além da carne, para arrancar sua essência como se faz com um dente.
É como se algo estivesse sugando sua própria alma.
Alguns o chamam de Velho Hob, outros sussurram Tinhoso, para assustar as crianças. Outros ainda o denominam de Goela ou Engolidor. As mulheres o designam de Canino.
Com qualquer nome, ele é uma abominação.
Uma criatura como essa merece ser cortada em pedacinhos e espalhada ao vento.
Mas os homens estão fracos e amedrontados, e aqui Hob governa.
Porque esta é Midgard, a terra de um povo derrotado e morto.
Esse é o Lugar Onde Homens Habitam.
1
Luta de bastão
Bastões e pedras podem quebrar os meus ossos,
Mas verbatis são muito mais fatais.
Compêndio de Antigos Contos e Baladas
Fiquei olhando os dois lutadores de bastão rodeando um ao outro cautelosamente. O garoto de cabelos louros era alto e rápido, um campeão local que encarava quem quer que aparecesse. Eu já o vira derrotar quatro adversários com facilidade, mas esse quinto estava lhe dando mais trabalho. Era atarracado e musculoso, mas demonstrava reações surpreendentemente ágeis.
Os lutadores eram um pouco mais velhos — talvez tivessem dezessete ou dezoito anos — e muito maiores do que eu. Será que eu conseguiria derrotar o campeão? Será que eu era bom o bastante?, perguntei-me.
Alguns golpes já haviam sido trocados, mas nenhum acertara o alvo em cheio. Um golpe no rosto ou na cabeça resultaria em vitória imediata.
Eles estavam lutando em um terreno baldio na periferia da cidade, no meio de um animado círculo de espectadores que davam socos no ar e gritavam, segurando em suas mãos bilhetes de aposta que haviam comprado do agente de apostas que estava assistindo de longe à competição. Em sua maioria, a multidão era jovem — adolescentes como eu —, mas havia pessoas de meia-idade ali também. Elas manifestavam o mesmo grau de entusiasmo, acenando e berrando incentivos ao lutador para quem estavam torcendo.
Apostar contra o campeão era arriscado: você provavelmente perderia o seu dinheiro. Porém, se por sorte você ganhasse, receberia quatro vezes o valor apostado. Eu não teria arriscado uma aposta contra aquele campeão. Apesar da habilidade do adversário, ele parecia estar certo do triunfo.
Mesmo que eu quisesse, não poderia apostar, pois não tinha dinheiro. Estava andando há quase duas semanas e acabara de chegar à cidade de Gindeen. Eu não havia comido nada durante mais de um dia e precisava desesperadamente de comida. Foi por isso que eu vim assistir à luta de bastão. Tinha a esperança de participar. O agente organizava as brigas de modo a ganhar dinheiro com as apostas, mas só pagava ao lutador vencedor.
De repente, o garoto baixinho e musculoso jogou a cautela para o alto e atacou selvagemente, empurrando o adversário para trás. Durante alguns segundos, parecia que a sua agressividade e rapidez prevaleceriam. Mas o garoto alto e louro deu um passo à frente e arrebentou a boca do adversário, batendo forte com o bastão.
Quando a madeira polida tocou na carne e nos dentes, ouviu-se um pesado som de paulada, seguido por um fraco barulho de respingo.
O perdedor cambaleou para trás, cuspindo fragmentos de dente, enquanto o sangue jorrava da sua boca, encharcando a parte da frente da camisa.
Então, era isso: fim. Agora estava na minha vez — ou, pelo menos, eu esperava que estivesse.
Entrei no final de uma pequena fila de espectadores que esperavam para cobrar os seus prêmios. Finalmente, cheguei ao início e levantei os olhos para a agente de apostos. Ele estava vestindo uma faixa azul em diagonal no corpo: a marca do seu negócio — agente de apostas. O queixo pronunciado e os olhos juntos faziam com que ele parecesse durão. Além disso, o nariz fora severamente quebrado e esmagado contra o rosto.
— Cadê o seu bilhete de aposta? — perguntou ele. — Anda logo! Não tenho o dia todo!
Enquanto ele falava, vi seus dentes quebrados e os buracos em que faltavam em sua boca. Supus que ele próprio um dia já fora lutador de bastão.
— Não estou aqui para apostar — respondi. — Quero lutar.
— Você vem lá do sul, né? — Ele sorriu desdenhosamente.
Fiz que sim com a cabeça.
— Novo em Gindeen?
Fiz que sim novamente.
— Já fez luta de bastão antes?
— Sim. — Encarei-o, tentando não piscar. — E geralmente ganho.
— Vai ganhar, hoje? — Ele riu.— Como é que te chamam, rapaz?
— Meu nome é Leif.
— Bom, você tem humor, Leif, tenho de admitir. Então, vou te dar uma chance. Pode entrar na próxima luta. A multidão gosta de ver um pouco de sangue novo!
Consegui a minha oportunidade mais fácil do que pensei.
Ele me conduziu até o centro da área de mato e lama. Ele colocou sua grande e musculosa mão esquerda em cima da minha cabeça apontou para o garoto alto e louro, cujo adversário anterior não estava mais por ali e o chamou para a frente, de modo a ficar do seu lado direito.
— Rob venceu de novo — gritou ele. — Será que esse rapaz nunca será derrotado? Bom, talvez a sua hora tenha finalmente chegado... Este é o Leif, ele é novo na cidade. Ele já lutou antes, lá no sul. Já lutou e venceu. Talvez um garoto do interior possa mostrar a vocês, rapazes da cidade, algumas coisinhas. Então, venham e façam as suas apostas!
Passou um momento antes de alguém reagir. Mais de duzentos pares de olhos estavam me julgando. Alguns dos espectadores estavam sorrindo ironicamente; outros, fitando-me com total desprezo.
Enquanto isso, avaliei o meu adversário. Sua camisa branca brilhava ao sol do fim de tarde e suas calças escuras e botas de couro eram de boa qualidade. Em contraste, a minha camisa verde quadriculada estava manchada de sujeira por causa da viagem e a minha calça estava furada no joelho esquerdo. As pessoas estavam olhando agora para os meus sapatos, cujo solado pendia solto, deixando aparecer os dedos do pé. A minha pele também era mais escura do que a de todos os outros indivíduos presentes. Alguns espectadores simplesmente balançaram a cabeça e foram embora.
Se ninguém quisesse apostar, eu não poderia lutar. Eu precisava lutar e precisava vencer.
Entretanto, para meu alívio, uma pequena fila logo se formou à nossa frente, e as apostas foram feitas.
Quando isso acabou, encarei o meu problema seguinte.
— Não tenho bastão para lutar. Acho que ninguém me emprestaria um... — anunciei ao agente, ajustando o tom da minha voz para que a multidão também pudesse ouvir.
Eu deixara os meus bastões de luta em casa, com um amigo meu, Peter. Não viajara para Gindeen para virar lutador de bastão. Pensei que aqueles dias haviam ficado para trás.
O agente revirou os olhos e praguejou baixinho, e alguns dos que estavam na fila se mandaram subitamente desinteressados. Mas aí alguém colocou um bastão na minha mão direita, e, alguns instantes depois, eu estava encarando o campeão, enquanto a multidão ia formando um círculo ao nosso redor. Imediatamente, percebi que estava diante de mais um dilema. Estávamos no final da tarde, o sol já estava se pondo no horizonte. Eu olhava diretamente para a bola de fogo.
Meu adversário veio na minha direção agachado, uma silhueta escura contra a luz. Apertei os olhos para enxergá-lo, esperando o ataque, e ele deu o bote. O garoto era rápido, e eu evitei o golpe por um triz. Desviei para a esquerda e comecei a rodear, enquanto ele me seguia com os olhos.
A multidão começou a entoar o nome dele:
— Rob! Rob! Rob!
Os apostadores queriam que ele ganhasse. Eu era um forasteiro.
Continuei rodeando até não ficar mais ofuscado pelo sol e encarei o garoto no fundo dos seus olhos azuis. Ele não estava mais agachado, e reparei novamente em como ele era alto. Seu alcance seria muito maior do que o meu. Eu precisava fazer com que ele desse uma investida arriscada e, então, eu me aproximaria.
Meu adversário atacou de novo e me esquivei quando seu bastão passou em um piscar de olhos por cima do meu ombro direito. Ele quase me pegou dessa vez. Meus sapatos não estavam ajudando. A cada passo que eu dava, o solado solto batia no mato molhado e escorregadio.
Concentre-se, Leif, concentre-se, disse a mim mesmo.
Quando o garoto me atacou novamente, não fui ligeiro o bastante. Ele me aplicou um golpe doloroso no braço direito, e eu deixei cair o bastão.
Na mesma hora, a multidão deu um grito alto e exultante.
Uma das regras da luta de bastão é que, aconteça o que acontecer, você não deve largar a sua arma. Se fizer isso, é o mesmo que perder — o adversário pode se aproximar e acertá-lo sem medo de contra-ataque. O golpe atingira um nervo e entorpecera o meu braço direito, que agora estava pendurado inutilmente ao meu lado.
Eu começara relativamente confiante — lembrei-me de todas as vitórias na minha terra natal —, mas talvez eu tivesse julgado mal a situação. Afinal, a cidade era muito mais populosa do que a área rural de onde eu vinha. Parecia lógico que, com mais lutadores de bastão, os padrões seriam outros.
Rob estava sorrindo, com o bastão levantado enquanto se aproximava. Perguntei-me se ele procuraria bater na minha boca — nesse caso, eu provavelmente perderia os dentes.
A multidão começou a entoar novamente, cada vez mais alto:
— Foge, franguinho, foge! Foge, franguinho, foge! Foge! Foge! Foge!
Eles estavam rindo enquanto torciam. Queriam que eu desistisse e fugisse.
Fugir teria sido a coisa mais sensata a fazer. Por que esperar e ter meus dentes arrebentados?
Eu nunca descobri se Rob estava visando a minha testa ou a minha boca. Mergulhei debaixo do golpe e rolei para perto de suas botas, apanhando depressa o meu bastão com a mão esquerda. Eu já estava em pé antes que ele se virasse de frente para mim.
Então, chutei para longe meus sapatos inúteis — primeiro o direito, depois o esquerdo, descalçando-me. O tempo parecia estar passando mais devagar, e eu escutei cada um caindo com um baque no mato. Estiquei os dedos do pé e aderi à superfície coberta de mato. Agora, sim! Em seguida, segurei firme o bastão. Meu braço direito ainda estava dormente, mas não importava. Prefiro a mão direita, mas sou quase tão bom com a esquerda. Consigo lutar com ambas.
Ataquei.
Rob era rápido, mas eu também era — muito rápido. Talvez eu não fosse tão ágil com os pés descalços quanto se estivesse usando um bom par de botas, mas era ágil o bastante. Acertei-o no pulso direito e, em seguida, bem no ombro esquerdo — não suficientemente forte para entorpecer o seu braço e fazê-lo largar o bastão, mas consegui enraivecê-lo, e isso era exatamente o que eu queria.
Eu tinha boas razões para estar furioso também. Havia sido ferido e pouquíssimas pessoas que estavam assistindo queriam que eu vencesse. Apenas umas quatro haviam apostado em mim. Mas um lutador de bastão cuja visão se anuvia de raiva dá um grande passo rumo à derrota. Quando eu lutava, sempre tentava manter a calma, mas podia ver que o meu adversário estava furioso. Sem dúvida, ele raramente era golpeado. Talvez estivesse sentindo vergonha diante de seus torcedores e quisesse vingança. Qualquer que fosse a razão, agora eu o deixara com os nervos à flor da pele, e ele ficou afoito. Veio para cima de mim, brandindo o bastão como se tentasse separar a minha cabeça dos ombros.
Ele errou três vezes, pois eu escapava com cadência, recuando pelo mato. Porém, após sua terceira tentativa, eu subitamente entrei na sua zona de guarda.
Durante um segundo, ele ficou completamente aberto — então, eu aproveitei a oportunidade.
Eu poderia tê-lo acertado na boca — repetindo o que ele fizera com o combatente anterior. Alguns lutadores eram brutais e gostavam de infligir o máximo de danos aos seus adversários. Mas eu realmente gostava de lutar de bastão, preferindo exercitar a habilidade e rapidez que conduziam à vitória do que desferir o golpe que encerraria a briga.
Por isso, eu bati em Rob com uma força mínima; apenas uma ligeira pancada na testa, que nem mesmo fez sangrar.
Foi o suficiente.
Rob parecia atordoado. A multidão ficou em silêncio.
Eu vencera. Era tudo o que importava.
O agente de apostas estava sorrindo quando me pagou.
— Você é bom. Muito rápido! — elogiou ele. — Volte amanhã na mesma hora, que eu vou encontrar alguém ainda melhor para lutar com você.
— Talvez — respondi, com um sorriso, só por educação. Eu não tinha a menor intenção de voltar. Lutas de bastão não estavam nos meus planos.
Agora eu podia comprar comida e tinha um pouco de dinheiro sobrando — o bastante para mandar costurar os meus sapatos.
Naquela noite, dormi em um celeiro na beira da cidade. Acordei ao amanhecer e me lavei em uma bomba de rua, tentando ficar o mais apresentável possível para o encontro que eu tinha em mente — com Tyron, um dos homens mais importantes da cidade de Gindeen.
Eu tinha um bilhete azul premiado. Ele me dava o direito de ser treinado pelo melhor — e o melhor era Tyron.
Eu queria que ele me treinasse para lutar na Arena 13.
2
Tyron, o artífice
Quem os deuses desejam destruir eles amaldiçoam com loucura.
Quem os deuses desejam engrandecer eles abençoam com sorte.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
— Senta, senta! — ordenou Tyron, acenando impacientemente com a cabeça para a cadeira em frente à sua mesa.
Mal eu havia me sentado, ele balançou a cabeça impetuosamente, apontando para a porta aberta atrás de mim.
— Não queremos que ninguém fique sabendo sobre o nosso negócio, garoto.
Ele tinha razão. Aquele era um edifício público, os escritórios administrativos da Roda, e o corredor ali fora estava cheio.
Tendo fechado a porta e me sentado mais uma vez, esperei Tyron falar. Eu estava fazendo o máximo que podia para ser paciente. Eu lhe dera o meu bilhete azul cedo pela manhã, explicando o que eu queria. Agora faltava menos de meia hora para o pôr do sol. Ele tivera um tempão para tomar uma decisão.
O que ele resolveria fazer? Por que levara tanto tempo para se pronunciar?
A sala não tinha janela. Suspenso no teto, havia um candelabro de madeira com três braços e tocos de velas amarelas queimando continuamente no ar parado. Dava para sentir um cheiro de sebo e suor.
Tyron misturou alguns papéis, procurando algo em sua grande mesa com tampo de couro. Minha cadeira era muito mais baixa do que a dele, de modo que, mesmo se eu fosse tão alto quanto aquele homem, ainda assim ele seria capaz de me olhar de cima. Eu tinha certeza de que isso não era por acaso.
Eu poderia ter levado o meu bilhete premiado a qualquer um dos treinadores de Gindeen, mas decidira apresentá-lo a Tyron. Todo o mundo, no país inteiro, parecia pensar que ele era o melhor. Até mesmo na minha terra natal as pessoas reconheciam o seu nome. Seu aspecto era diferente do homem que eu imaginara: ele era robusto, tinha a pele corada e o cabelo grisalho cortado bem curto para disfarçar a calvície. A personalidade estava gravada no rosto: ali estava alguém que vivera muito e sabia das coisas.
— Olha, você ganhou o direito, rapaz — declarou Tyron, segurando o meu bilhete no ar. — Não posso negar. Mas quanto será que ele vale?
Eu não sabia o que ele queria dizer. Não se podia vender um bilhete premiado. Não se podia trocá-lo por dinheiro. E ele só era válido uma vez que tivesse sido verificado e assinado pelo supervisor das casas de aposta. Eu tivera o cuidado de fazer isso, portanto, agora ele só podia ser utilizado por mim.
— Suponhamos que, em vez disso, eu arrume um ofício para você ser aprendiz? — sugeriu ele, desanimando-me. — Um trabalho bom e estável. A cidade está se tornando mais próspera. Você poderia ser pedreiro ou carpinteiro. Quando concluir a aprendizagem, daqui a cinco anos, você pode estar ganhando bem, estar com a vida encaminhada. Tudo o que você precisa fazer é guardar o bilhete no bolso e esquecer essa história toda. Eu até pago pela sua aprendizagem, hospedagem e alimentação — e você não fica me devendo nem um centavo.
Por que ele faria isso?, pensei comigo mesmo. Por que aquele homem queria tanto se livrar de mim, a ponto de se oferecer para me sustentar em outra atividade? Afinal, dar-me o que eu queria não lhe custaria nada. As casas de aposta patrocinavam cinco discípulos a cada temporada. Isso era parcialmente bancado pelos milhares de bilhetes vendidos aos jovens esperançosos. Ou, o que era mais comum: aos pais que os compravam em nome deles. Bilhetes azuis eram caros.
A Arena 13 em Gindeen atraía quem almejava emoção e uma chance de ficar famoso. Era uma oportunidade de ganhar dinheiro para valer, em vez de ter a obrigação de exercer um determinado ofício ou, pior ainda, ficar preso à labuta de um trabalho não qualificado. Era por isso que eu também queria lutar lá, embora tivesse outra razão, mais pessoal, que eu ainda não estava disposto a contar a ninguém, nem mesmo a Tyron.
— E aí, o que você acha? Que ofício você gostaria de praticar?
— Eu quero trabalhar para o senhor — repeti. — Quero aprender a lutar na arena.
— Qual é mesmo o seu nome? — perguntou Tyron.
Respirei fundo e lhe dei a informação pela terceira vez:
— Eu me chamo Leif.
Ele se pôs de pé.
— Olha só, não quero você, Leif. — Sua voz agora estava mais alta e acentuada, com verdadeira raiva. — Por que eu deveria lhe dar uma vaga, sendo que já tenho dúzias de garotos com habilidade comprovada batendo à minha porta? O sistema diz que o seu bilhete premiado lhe dá o direito de ser treinado, mas isso não significa necessariamente ser treinado por mim. Você só está tentando realizar um sonho, assim como muitos outros rapazes do interior. A realidade dessa vida não é aquilo em que você foi levado a crer. Nem um pouco. Aposto que você nunca nem entrou na Roda ou viu alguma das arenas.
Inclinei a cabeça. Ele estava certo. Aquela era a minha primeira visita a Gindeen.
— Cheguei apenas ontem. Ainda não tive oportunidade de ver nada.
— Quem te trouxe aqui? A carroça era de quem?
— Ninguém me trouxe.
— Ninguém? Só falta me dizer que veio andando!
— É, vim. Vim andando.
— O quê? Andando desde lá? De Mypocine?
Fiz que sim.
Tyron levantou as sobrancelhas, espantado. Pensei que ele fosse fazer algum comentário, mas, em vez disso, indagou:
— E o bilhete, garoto? Quem pagou por ele? Seu pai?
— Meu pai está morto, e a minha mãe também.
— Bom, sinto muito por isso. Mas eu lhe fiz uma pergunta. Quando pergunto alguma coisa, aguardo uma resposta.
— Há duas semanas, chegou um comerciante em Mypocine — expliquei. — Ele tinha um grande comboio de cinco carroças, e o pessoal das redondezas percorreu quilômetros para ir lá fazer escambo ou comprar. No final da tarde, o homem começou a beber e se juntou a eles. Depois de um tempo, sugeriu que os rapazes da região deveriam organizar um tipo espetáculo para ele, que ele daria um prêmio ao vencedor. Então, começamos a lutar com bastão, três contra um. Como sempre, eu venci, mas fiquei muito desapontado quando vi que o meu prêmio era apenas um bilhete de loteria azul e...
— Peraí um instante — interrompeu Tyron. — O que você disse?
Achei que tivesse falado com clareza, mas repeti:
— Eu disse que fiquei decepcionado porque só tinha ganhado um bilhe...
— Não, não isso. Foram as outras duas palavras que me chamaram a atenção. Você disse que ganhou como sempre. Ouvi direito?
Fiz que sim com a cabeça. Eu não estava me gabando, apenas dizendo a verdade.
— Eu era o melhor lutador de bastão de Mypocine: o campeão. Desde que completei quatorze anos, só perdi uma única vez. E foi porque estava molhado e eu escorreguei na lama, embora isso não seja nenhuma desculpa. Quando alguém quer ganhar, não escorrega.
— E quantos anos você tem agora?
— Fiz quinze na semana passada.
— Então você costumava lutar sozinho contra bandos de três garotos?
Confirmei, balançando a cabeça.
— Aham. Na maior parte das vezes, era um contra três, igualzinho aos lacs na Arena 13. Mas, de vez em quando, era um contra um.
— Continue contando. Você disse que ficou desapontado com o seu prêmio. Por quê?
— Porque eu simplesmente não tenho sorte — esclareci. — Nunca tive. Somente cinco de todos os milhares de bilhetes comprados todo ano são premiados. Mas o marechal-chefe sorteou o meu no globo de loteria. Eu tinha ganhado! Então, me mandei direto para a cidade. Como disse ao senhor, vim andando desde lá e demorei esse tempo todo para chegar até aqui.
— Esse tal comerciante... descreva-o! — ordenou Tyron.
— Era um homem alto, provavelmente da idade do senhor. Tinha cabelo e barba ruivos.
Tyron deu um suspiro longo e profundo, e a expressão de seu rosto me fez pensar que ele conhecia o homem que eu descrevera.
Houve um silêncio constrangedor, que eu quebrei, falando rápido.
— Eu vim andando lá de Mypocine. Isso não mostra o quanto eu quero estar aqui e lutar na arena? Quero ser treinado pelo melhor, foi por isso que eu escolhi o senhor! Quero ser um dos melhores e mais bem-sucedidos combatentes de todos os tempos. É o meu sonho desde que eu era criança. Por favor, me dê uma chance! Trabalharei como seu criado sem pedir salário até o senhor ver o que eu sou capaz de fazer.
— O que você quer dizer com isso?
— Até o senhor me ver lutar.
— Você não pode lutar antes de ser treinado, e eu já disse que não estou disposto a te treinar. Então, não vou mais gastar saliva. Agora, fora daqui, garoto! Vai incomodar outra pessoa! — vociferou Tyron, apontando para a porta.
Levantei-me e empurrei a cadeira para trás com a intenção de ir embora, tomado por uma mistura de sentimentos. Fitei-o durante um momento, antes de lhe dar as costas e me dirigir para a porta.
— Toma! — gritou Tyron. — Pega!
Quando me virei, ele tirou um objeto do seu cinto de couro e o lançou na minha direção.
Era um punhal.
A arma veio girando, com a lâmina brilhando à luz das velas. Rodopiando, ela se aproximava. Concentrando-me, notei que Tyron havia mirado um palmo à direita da minha cabeça. Ele não queria me machucar, apenas me chocar. Era um teste.
Estiquei o braço e apanhei o punhal no ar, fui até a mesa e o depositei em cima do tampo de couro preto, com o cabo voltado para Tyron. Então, devagar e refletidamente, fiz uma reverência.
Quando levantei a cabeça, o homem estava me fitando no fundo dos olhos. Passou um bom tempo antes que ele falasse.
— Bom, Leif, com isso você merece uma visita à Roda — anunciou ele, finalmente. — Mas é só. Eu tenho um neto de dois anos que consegue pegar punhais tão bem quanto você!
3
O fedor de sangue
A vitória é marcada por um corte ritual no braço do combatente derrotado.
Embora no combate a intenção não seja matar, acidentes acontecem.
Manual de Combate Trigladius
Escurecia enquanto eu seguia Tyron pelas ruas estreitas e desertas de Gindeen, embora a chuva torrencial que vinha caindo desde que cheguei à cidade finalmente tivesse dado uma trégua. Eu estava com o coração pesado feito chumbo. É, seria legal visitar a Roda. Mas eu queria mais, muito mais...
Ainda estávamos no início da primavera. Puxadas por robustos cavalos de carga, carroças haviam rasgado sulcos fresquinhos na cidade o dia inteiro. Estendendo-se ao longo das casas, havia calçadas de madeira, mas muitas delas estavam em mau estado de conservação, com pranchas faltando e tábuas podres; montes de lixo obstruíam alguns espaços entre elas. O que eu pude observar não tinha nada a ver com a cidade grande que eu imaginara. A minha expectativa era encontrar construções impressionantes, ordem e limpeza.
Enquanto esperava Tyron tomar uma decisão, eu passara uma parte do dia assistindo ao fluxo do tráfego. Algumas carroças eram carregadas até em cima com carvão ou madeira, ao passo que outras consistiam em enormes trailers com teto de lona, cada um servindo de moradia para algum combatente esperançoso vindo do interior.
A temporada Trig começava hoje e duraria até o início do outono. Meu pai, que lutara em Gindeen, contara-me que, durante essa época, a população quase dobrava.
O sol ainda não se pusera, mas, do nosso ponto de vista vantajoso na encosta da colina, as ruas pareciam escuras, revelando de vez em quando apenas uma lamparina suspensa em um gancho. Eu tinha a impressão de que estávamos sendo observados das sombras. Talvez Tyron também estivesse com essa sensação, pois ia andando pela cidade a passos largos e rápidos.
De repente, de rabo de olho, vi algo se mexer. À minha esquerda, uma sombra monstruosa atravessou um beco, com um movimento brusco.
Ela parou subitamente. Poderia ser Hob?, perguntei-me.
Congelei, e Tyron se virou, franzindo a testa de aborrecimento.
— Que foi, garoto?
Apontei para a sombra, e as rugas de irritação sumiram de sua testa. Ele deu um passo cauteloso para dentro do beco, fez uma pausa durante uns instantes e então me chamou para o seu lado, indicando uma janela que — agora eu podia ver — era a causa.
Era a única que estava iluminada naquela rua melancólica. Por um vão nas cortinas, vi alguém espiando o beco. O rosto largo era rude e brutal; o nariz, achatado; e a boca, desprovida de dentes, estava aberta. A luz de uma vela projetava a sombra do homem, distorcendo-a em uma figura nem um pouco humana, mas parecida com um ogro grotesco e trevoso. Ele era alto e, embora banguela, não havia deixado a juventude para trás há muito tempo.
A vela estava às suas costas, e ele se virou para pegá-la, tirando-a do castiçal. Puxou-a para perto de sua boca, como se tivesse a intenção de comê-la, mas, então, um súbito acesso estremeceu o seu corpo inteiro. O homem fez um beicinho, encheu as bochechas de ar e soprou a chama, mergulhando na escuridão total o cômodo em que estava.
— Vi uma sombra grande e pensei que fosse o Hob — justifiquei-me. — Desculpa.
— Não precisa se desculpar. Até onde sabemos, poderia ser o Hob — sussurrou Tyron, recobrando o ritmo novamente. — O Hob poderia certamente estar rondando por aí em uma noite como esta — continuou ele. — Circulam muitas histórias a seu respeito. A maioria não passa de superstição, mas, muitas vezes, elas são baseadas em fatos verídicos.
Hob era o djinni que aterrorizava todo o país de Midgard, mas aquela cidade era o foco do terror. Ele vivia em uma cidadela no alto de uma colina bem acima de Gindeen. Era o medo do Hob que forçava as pessoas a desertarem as ruas durante a noite. Não comentei o que Tyron dissera. Eu sabia tudo sobre Hob. Quem não sabia?
Prosseguimos em silêncio.
A cidade fora erguida na encosta de uma grande colina. As construções eram de madeira, assim como quase tudo em Midgard. Na verdade, Gindeen era a única cidade grande do país; Mypocine, bem mais ao sul, onde nasci, abrigava a segunda maior população, mas, comparada com Gindeen, era minúscula. Eu nunca vira tantas casas ou ruas! Ainda assim, eu poderia ter encontrado o caminho da Roda sozinho. Rivalizada apenas pelo imenso bloco sombrio do abatedouro, ao leste, era a estrutura mais impressionante à vista, erguendo-se alto, bem acima da cidade.
A Roda era onde as treze arenas se localizavam. Também era o lugar no qual ficavam as sedes das casas de aposta. O centro da atividade de uma cidade que dependia amplamente dos combates da arena e das apostas para prosperar. Todas as outras riquezas provinham das fazendas nos arredores e do gado que era vendido nas feiras e levado ao abatedouro para alimentar os habitantes da cidade.
A Roda era um vasto edifício circular de madeira. As paredes curvadas empinavam-se para o céu feito um penhasco, coroadas por uma grandiosa abóbada de cobre, que agora estava banhada em um fulgor avermelhado provocado pelos últimos raios do pôr do sol. Era muito maior do que eu imaginara e me deixou sem fôlego. A cidade revelara-se uma decepção, mas aquilo estava além dos meus sonhos mais ardentes.
Acima dela, um grupo de pelo menos vinte abutres pretos voava em círculos de maneira agourenta, pairando em lentas espirais anti-horárias contra o sol. Diziam que os abutres passavam o dia assediando o abatedouro e perseguindo as carroças de carne, mas, à medida que o sol afundava no Oceano Oeste, eles desciam como harpias até a abóbada, voando em bando por ali quando alguém estava prestes a morrer na Arena 13.
Quando me aproximei da Roda, reparei em alguns homens corpulentos, de uniforme azul, parados em ambos os lados da entrada. Eles me lançaram um olhar zangado, embora Tyron simplesmente tivesse entrado confiante, como se eles não estivessem ali.
Foi um choque deixar as ruas frias, quietas e desertas e me ver no interior quente, barulhento e lotado da Roda. Eu quase podia sentir o gosto do suor. Estava cheio de espectadores empurrando e apertando uns aos outros, e o ruidoso burburinho deles ecoava no teto alto acima de nós. Minha cabeça rodopiava de emoção. Eu nunca vira tantas pessoas abarrotadas em um único espaço, todas se esforçando desesperadamente para abrir caminho entre as filas, mas sendo constantemente impedidas pela multidão. A única hora em que alguém parava era para trocar moedas por bilhetes — o que, eu sabia, significava que eles estavam apostando nos possíveis vitoriosos das várias arenas.
Eu parei e levantei os olhos para dentro da abóbada maciça.
Foi um grande erro.
Quando olhei para baixo de novo, Tyron já estava quase fora de vista, deixando-me para trás. Um homem grande e de cara amarrada vestindo uma faixa diagonal vermelha vinha andando na minha direção. O sujeito carregava um porrete em seu cinto, e eu tinha certeza de que ele não estava planejando me dar boas-vindas calorosas.
Era por causa do jeito como eu estava vestido? O homem me olhou com uma expressão zangada, assim como os guardas do lado de fora haviam feito. Eu notara uma fila para entrar na Roda. Talvez, ao contrário de Tyron, pessoas normais tivessem que pagar ingresso.
Bem a tempo, Tyron deu um passo para trás e me agarrou.
O homem lhe fez uma reverência:
— Queira me desculpar. Eu não percebi que ele estava acompanhando o senhor.
Tyron acenou abruptamente com a cabeça e o homem foi embora, satisfeito.
— A faixa vermelha indica que ele é um marechal que representa o Diretório da Roda — explicou Tyron. — Dentro da Roda, eles fazem a lei. Lá fora, como você acabou de ver, é com a Guarda do Protetor, os homens corpulentos de uniforme azul. É com eles que você precisa tomar cuidado.
O Protetor governava o nosso país. Raramente era visto fora de seu palácio. Quem já o avistara dizia que sua aparência era a de um homem de meia-idade, mas havia especulações sobre suas origens: alguns acreditavam que ele era um djinni. O Protetor certamente vivera tempo demais para ser humano.
— Eu não vi muitos guardas na minha vida, até hoje — confessei-lhe.
— Nem veria, suponho eu, lá no interior. Aqui é diferente, muito diferente. Há milhares deles nos quartéis, bem no norte da cidade. Mantenha a discrição e nunca os encare nos olhos, esse é o segredo. Eles vivem entediados, e às vezes essa é a única desculpa de que precisam para arrumar confusão.
Tyron me conduziu por uma porta estreita que dava para uma íngreme escada de pedra.
— Siga-me, garoto — ordenou, começando a descer. — Antes de visitarmos algumas das arenas, quero que você veja outra coisa.
No pé da escadaria, entramos em um vasto porão, uma catacumba grande e sinistra iluminada apenas por uma única vela tremeluzente perto da porta.
Apanhando-a, Tyron se dirigiu para um banco comprido na parede do fundo. Minha boca ficou seca de medo, pois o banco estava posto em cima do que parecia ser um monte de cadáveres.
Será que aquele lugar era um necrotério? Por que Tyron me levara até ali?, perguntei-me. Pensei que estivesse lá para assistir às lutas.
— Esses são alguns dos lacs que eu possuo — informou Tyron, gesticulando na direção do banco. — Eles são utilizados pelos combatentes da Arena 13 que trabalham para mim.
Eu me senti tolo. Claro que eram lacs! Ainda assim, um forte sentimento de mal-estar tomou conta de mim. Vi que alguns deles estavam cobertos com lençóis, mas Tyron me levou até um que estava vestido com armadura completa. Ele estava deitado de costas, trajando cota de malha, elmo, máscara e placas encouraçadas nos ombros, braços, peito e joelhos.
Eu conhecera pessoas em Mypocine que, assim como o meu pai, haviam trabalhado em Gindeen e encontrado lacs. No entanto, as descrições delas não haviam me preparado para o seu aspecto mais perturbador: o quanto elas fediam.
Era uma mistura nojenta de diferentes cheiros: um odor animal que me lembrava cachorro molhado, junto com vegetação podre e palha suja. Também dava para sentir uma leve inhaca de excrementos. Fiquei me perguntando o que os lacs comiam e se eles nunca eram lavados. Havia tanta coisa que eu não sabia!
— Isso é um simulacro, mas todo o mundo usa a abreviação “lac”. É uma criatura moldada à imagem de um homem. A carne é semelhante à nossa: ela sangra quando cortada e se machuca quando golpeada, mas a mente é muito diferente. Ela não é consciente como as nossas. Seu comportamento e suas ações são informados e executados pela linguagem de modelação chamada Nym — uma linguagem controlada pelos humanos.
A maioria das coisas que Tyron estava me contando eu já sabia, mas escutei atentamente, ansioso para obter até mesmo o mais ínfimo conhecimento novo.
— Um combatente humano não é autorizado a vestir armadura na arena — continuou Tyron —, mas, com os lacs é diferente. Aqui, uma peça de armadura importante ainda está faltando. Olha...
O lac tinha um pescoço grosso e musculoso, e, no local que Tyron estava apontando agora, vi uma fenda vertical na garganta nua e um ferimento roxo-escuro aparecendo na pele branca.
— Essa é a fenda da garganta. E isso contém o encaixe que cabe ali dentro... — Tyron se curvou e pegou uma grande coleira. Ele cuspiu no estreito encaixe de metal e o inseriu delicadamente na fenda da garganta da criatura. Quando fez isso, o lac deu um gemido profundo, vindo da barriga.
Uma vez executado esse gesto, ele posicionou a coleira no pescoço largo do lac, prendendo o fecho com um estalo. Ainda havia uma fenda para receber uma lâmina, mas agora ela estava protegida por um revestimento de metal.
— Agora, a fenda está mantida ligeiramente aberta para receber uma lâmina — explicou Tyron. — Por causa daquele revestimento de metal, a carne não pode ser cortada. Geralmente ocorre apenas uma contusão mínima.
“O metal protege a carne macia e facilita uma inserção limpa. Claro, o encaixe se desloca e comprime a goela de certa forma, causando desconforto ao lac. A maioria das pessoas acredita que isso o deixa mais ávido por uma vitória precoce. É sempre a última peça da armadura a ser ajustada. E a primeira a ser retirada.
“Quando uma lâmina é inserida no encaixe da garganta, ela provoca uma completa desativação do sistema nervoso da criatura derrotada. Chamamos isso de “fimencerrado”, mas não significa morte para um lac, como significaria para um humano. É só retirar a lâmina e, com um verbati, o lac pode recobrar os sentidos, pronto para lutar novamente.
Apesar do meu mal-estar, refleti que teria que me acostumar a trabalhar com seres como aqueles se quisesse lutar.
Tyron colocou a palma da mão aberta na armadura de metal que cobria a testa do lac.
— Desperto! — comandou ele, suavemente.
O lac se sentou de repente, esticando seus braços compridos, como um homem acordando de seu sono. Ele deu um profundo suspiro, e, por trás de uma estreita fenda horizontal na armadura do rosto, os olhos cintilaram rapidamente. A criatura parecia ameaçadora, e o meu coração disparou: me vi dando um passo para trás. Por sorte, acho que Tyron não percebeu, pois ainda estava concentrado no lac.
— Autoverificação! — vociferou ele. — Agora eu mandei o lac ficar ocupado verificando sua própria mente e corpo. Ele está examinando os complexos modelos que lhe dão as habilidades de lutar na arena.
Acenei com a cabeça, embora eu não estivesse realmente entendendo tudo o que Tyron estava dizendo. Pela primeira vez desde que saíra de casa, senti-me oprimido pelo desafio que me impusera. A expressão do meu rosto obviamente me traiu, pois Tyron sorriu.
— Com o tempo, os discípulos aprendem a modelar, mas, para começar, eles trabalham com lacs que já foram modelados e treinados.
— Ele está nos vendo? — perguntei nervosamente, estudando os olhos cintilantes do lac.
— Ah, ele está nos vendo direitinho! E é capaz de pensar. Mas são os modelos que realizam o ato de pensar. O lac não tem raciocínio próprio como nós temos. Algumas pessoas acham que eles são chamados de “lacs” porque têm lacunas em termos de sensibilidade e não estão conscientes, mas isso é bobagem. Há quinhentos anos, mestres artífices modelaram lacs que são sensíveis, tão vivos e conscientes quanto você e eu. Não somos mais capazes de fazer isso. Esse conhecimento foi perdido com o tempo, infelizmente. Um lac é mais rápido e mais forte do que um homem, mas, lembre-se sempre de que ele não é sensível, portanto, não vá ficar se preocupando com isso. De qualquer forma, garoto, vamos lá em cima ver algumas arenas agora.
Saímos do porão e subimos os degraus para voltar. Quando chegamos ao topo da escada, tivemos de abrir caminho empurrando a multidão, e eu fiquei inquieto de emoção. Tyron gesticulou para cima.
— Acima daquele teto há um vasto saguão circular. É onde as Listas com os nomes dos combatentes que vão lutar são publicadas. Nesse nível, o andar é dividido, assim como raios de uma roda, em treze zonas de combate — explicou ele. — Dá para acessar cada uma a partir do corredor que passa por dentro dos muros exteriores.
Era difícil ouvir o que Tyron estava dizendo. As pessoas não só estavam nos empurrando e gritando para serem ouvidas enquanto passavam como também dava para escutar um distante rugido de cânticos e torcidas, além de algo que soava como a batida rítmica e regular de um tambor.
Tyron me fez entrar na primeira zona, e eu vi que cada um daqueles raios tinha dois andares. Abaixo de nós estava uma caixa de madeira sem janela, aberta no topo. Os espectadores ficavam acima dela, assistindo à ação lá embaixo.
Juntamo-nos à ralé que se acotovelava por um lugar no balcão de observação inclinado. Os que estavam bem na frente eram intensamente esmagados contra o parapeito metálico de segurança. Eu tinha a impressão de que eles estavam correndo seríssimo risco de quebrar as costelas, ou até pior. Fiquei feliz por Tyron parecer satisfeito em ficar no fundo.
Quase todos os espectadores eram homens vulgares e barulhentos, berrando obscenidades e cuspindo na arena logo abaixo. Surtos de raiva ou agitação ondulavam a multidão, como se ela fosse uma única grande besta com uma profusão de costas, mas com uma cabeça minúscula.
Tyron me forçou a olhar para baixo, para além dos espectadores.
— É ali que mora a ação, garoto.
A pequena arena quadrada lá embaixo não devia ter muito mais do que dez passos por dez. Dentro dela, vi duas figuras enormes vestidas com uma grosseira armadura de bronze se movendo pesadamente. Elas se chocaram, entrelaçando e balançando selvagemente os braços, batendo as cabeças e rugindo alto.
— Você pode ganhar um bom dinheiro aqui na Arena 1 — disse Tyron, berrando no meu ouvido. — Alguns dos meus discípulos se concentram apenas em modelar criaturas como essas. Então, se você tiver jeito para a coisa, não há necessidade de botar os pés na Arena 13. Por que não deixar os lacs trabalharem no seu lugar? Em todas as outras arenas, os lacs lutam uns com os outros. Os homens não se envolvem nem um pouco. É só na Arena 13 que você arrisca a sua vida.
As duas figuras de combate lá embaixo eram criaturas como a que nós acabáramos de examinar no porão. Com a mão no meu braço, Tyron me afastou do balcão de observação e me guiou para retornarmos ao longo corredor curvado. Andamos em sentido horário, passando por portas abertas que davam para outras arenas.
— Siga os ponteiros do relógio — aconselhou Tyron. — À medida que você dá a volta, cada arena representa um nível de habilidade superior. Os novatos nesse jogo começam introduzindo lacs nos níveis mais baixos. Então, gradualmente eles vão galgando degraus. Alguns nunca conseguem — ou querem conseguir —, mas os melhores chegam à Arena 13, onde o método de combate Trigladius tem vigor. — Sua voz agora era quase um sussurro. — Trigladius é uma antiga palavra que significa “três espadas”. Exceto em ocasiões formais, todo o mundo simplesmente diz Trig.
Meu pai me explicara o que lutar na Arena 13 envolvia. Na verdade, eu tinha a impressão de que ele quase nunca parara de falar sobre o assunto até virem os meses difíceis e assustadores que antecederam sua morte, há mais de três anos.
Um combatente humano ficava atrás de três lacs (conhecidos como um tri-glad), no que era chamado de posição mag, enquanto o seu adversário era defendido por um só lac, no que era chamado de posição min. Não parecia justo, mas esse era o jeito como as coisas funcionavam. Obviamente, era muito mais complicado o lac sozinho derrotar os outros três. Portanto, as chances sempre estavam contra ele. Era aí que entravam as apostas. Se você apostasse no combatente min e ele ganhasse, você também ganharia. Ganharia muito dinheiro.
Eu sabia que o meu pai fora um combatente min. Era preciso grande habilidade e rapidez para ganhar na posição min, por isso, era o que eu queria fazer também. Eu queria ser o melhor.
Por fim, Tyron abriu uma porta, e eu respirei fundo quando entramos.
— Aqui estamos.
A Arena 13 era bem maior do que eu estava esperando após ver a primeira arena — cinquenta passos de comprimento por vinte e cinco de largura —, e a inclinação íngreme dos assentos da galeria faziam com que fosse fácil olhar para a área de combate lá embaixo. Aqui, não havia nenhum lugar em pé, mas, ainda assim, cabiam pelo menos dois mil espectadores.
As fileiras de assentos eram ricamente estofadas de couro vermelho e os pilares exteriores eram adornados de esculturas intrincadas. Tochas eram decoradas com ouro e prata, e as paredes curvadas eram de um mogno escuro e suntuoso. O cheiro de madeira e couro estava por toda parte, sugerindo tradição, refinamento e boas maneiras.
A galeria da Arena 13 já parecia estar lotada, mas Tyron desceu, forçando passagem confiantemente até a frente. Aquele sujeito era famoso, e as pessoas acenavam para ele com a mão ou a cabeça enquanto passávamos. Ao chegarmos à frente e abrirmos caminho até os nossos assentos, as pessoas se inclinavam para o lado e davam tapinhas nas costas de Tyron, demonstrando clara cordialidade e entusiasmo, embora me observassem com curiosidade.
Quanto mais perto chegávamos do parapeito, maior era a elegância das roupas trajadas pelos espectadores. Eu não conseguia tirar os olhos das mulheres. Elas estavam vestindo sedas luxuosas como eu nunca vira antes, fosse dentro ou fora da cidade. Usavam fitas sofisticadas nos cabelos, coradas nas bochechas, e todos os lábios estavam pintados de preto. Seus acompanhantes vestiam faixas diagonais de cores diferentes.
— Para que servem as faixas? — indaguei a Tyron, enquanto tomávamos os nossos assentos.
— Algumas indicam classes sociais, mas a maioria constitui apenas faixas formais das várias corporações de ofício: a dos armeiros é verde, a dos açougueiros é marrom, e assim por diante — esclareceu ele.
— Por que o senhor não usa faixa? — perguntei.
Ele apontou para o seu largo cinto de couro e para a fivela, que ostentava um número moldado em bronze:
13
— Isso diz a todo o mundo exatamente quem eu sou, garoto. Este é o meu território. É aqui que a minha equipe de combatentes luta. Eu sou o melhor que há nesta cidade. Não sou arrogante ou convencido. É a pura verdade.
O aroma doce do perfume das mulheres pairava no ar imóvel, misturado com o cheiro de madeira e couro velhos. E havia outra coisa agora. Um odor subjacente de suor, mas algo metálico e azedo também.
Com espanto, me dei conta de que era o fedor de sangue.
4
O ajuste de contas
Ajustes de contas geralmente terminam com a decapitação do perdedor.
Às vezes, apenas corta-se a garganta.
Esses são os métodos preferidos.
Uma morte desordenada resulta de múltiplos cortes pelo corpo.
Manual de Combate Trigladius
Havia agitação por toda parte. Ela zunia no ar, palpitando nos lábios das mulheres e tremulando nas mãos impacientes dos homens. Mas ninguém podia estar mais agitado do que eu. Finalmente olhava para a Arena 13! Meu corpo inteiro tremia de expectativa. Havia tantas perguntas que eu queria fazer, mas não conseguia confiar na minha capacidade de falar. Eu sabia que gaguejaria ou pareceria tolo. Tyron estava me testando. Eu precisava parecer, tanto física quanto oralmente, confiante.
O dinheiro estava trocando de mãos, muito dinheiro. As apostas estavam sendo recolhidas pelos agentes de jogo que percorriam ativamente os corredores, aceitando frenéticos palpites de última hora e emitindo bilhetes vermelhos.
Os nossos assentos eram na primeira fileira. Lá embaixo, na arena, um imenso candelabro que suportava treze tochas estava sendo lentamente abaixado, descendo do teto alto de modo a lançar uma luz amarela e tremeluzente em cima dos combatentes, que já haviam surgido das duas portas — as portas min e mag —, e tomavam suas posições. O primeiro embate estava prestes a começar.
Em algum lugar fora de vista, um bumbo soou. Um ritmo lento e regular feito o batimento do coração de um monstro.
Uma figura alta, vestida de preto e usando uma faixa vermelha, se pôs em movimento em meio aos combatentes. O bumbo parou de repente e um silêncio se abateu sobre a galeria.
— Aquele é Pyncheon, o marechal-chefe — sussurrou Tyron. — Ele tem total controle dentro da Roda, mas, na Arena 13, sua função é basicamente cerimonial. Pyncheon vai sair dali antes da ação começar. Se ocorrer algum problema durante a briga, ele fará a arbitragem que for necessária.
O marechal-chefe circulou entre os dois grupos oponentes. Os lacs estavam vestidos com armadura metálica da cabeça aos pés. As fendas horizontais em seus elmos lhes permitiam enxergar. Eles eram idênticos ao lac de armadura que Tyron me mostrara no porão.
Os dois humanos, que estavam a postos atrás de seus lacs, não estavam usando nenhuma armadura protetora. Eles vestiam calção e colete de couro: o primeiro, cortado bem acima do joelho, e o segundo, perto da axila.
Aquilo era diferente do que o meu pai descrevera. A carne desprotegida deles era o alvo das lâminas dos lacs.
Com as mãos mantidas teatralmente no alto, Pyncheon olhou para cima, na nossa direção. Então, com uma voz sonora, dirigiu-se à galeria:
— Esta é a Arena 13 — pronunciou ele. — Esta é uma luta até a morte. Que aqueles que morrerem, morram com honra. Que aqueles que sobreviverem, lembrem-se deles. Que o combate comece!
Eu ouvira direito? O que estava acontecendo? Eu não podia acreditar! Por que eles estavam lutando até a morte?
Vi que os dois combatentes eram apenas garotos, um pouco mais velhos do que eu. Olhei para Tyron, tentando chamar sua atenção, mas ele estava fitando a arena lá embaixo.
O marechal-chefe se virou e se dirigiu para a porta mag. Ali, parou e levou uma comprida trombeta de prata aos lábios e uma nota alta e estridente irrompeu. Imediatamente, as duas portas se fecharam com um ruído surdo.
A multidão estava completamente em silêncio. Nenhuma das figuras na arena sequer se movera.
— Qual é a cor dos bilhetes vendidos pelos agentes de aposta, garoto? — perguntou Tyron.
Eu nem precisava verificar, pois os notara quando entramos.
— Vermelho — respondi.
— É, vermelho, garoto, e é porque esse é um ajuste de contas. Você ouviu o que o marechal-chefe disse. É uma luta na qual normalmente alguém morre. Foi por isso que eu te trouxe aqui. Eu queria que você visse exatamente como as coisas podem ficar feias.
— Mas por que eles estão lutando até a morte? Qual seria a possível razão disso?
— Às vezes, é uma disputa por mulher. Hoje, é pura estupidez. Eles se embebedaram uma noite e trocaram insultos. A coisa saiu de controle, e muitas palavras amargas foram proferidas. Então, eles decidiram resolver a questão aqui. Agora, sangue vai ser derramado.
Os combatentes se atracaram com força, produzindo um barulho ensurdecedor de metal contra metal. Rapidamente, o combatente min parecia estar em apuros. Seus pés começaram a bater desesperadamente nas tábuas, transmitindo novos movimentos ao seu lac sozinho, que estava passando por maus bocados para defendê-lo das lâminas que estavam tentando cortar a sua carne.
Meu pai, na verdade, lutara naquela arena. Ele me contara que um combatente dizia ao seu lac o que fazer batendo no chão com as botas. Era um código sonoro, um sistema chamado Ulum.
— O lutador humano em apuros é Kanus — disse Tyron, balançando a cabeça. — E ele não vai durar muito, do jeito que está se saindo... Sandor é bom demais para ele.
Era óbvio que o seu adversário, lutando atrás de três lacs, estava muito mais bem preparado. A princípio, a briga estava bastante unilateral, pois Kanus era regularmente obrigado a recuar. Aí, por fim, as coisas mudaram: Kanus pareceu recuperar um pouco de controle, e a batalha ficou mais empatada.
Uma dança rápida e intrincada começou. Modelos passaram a se formar. Eu estava quase hipnotizado pelo ritmo de ascensão e declínio. Lâminas afiadas resplandeciam à luz das tochas. O suor brilhava nas testas dos dois combatentes humanos, cada qual dançando cautelosamente atrás dos lacs de armadura que os protegiam.
— Vale a pena assistir. — Tyron interrompeu os meus pensamentos, com a voz animada. A configuração na área de combate mudara novamente. — Observe os três lacs de Sandor. Eles estão formando uma posição conhecida como “pilha”.
Sandor agora se encontrava entre dois lacs defensivos, um na frente e outro atrás, feito um sanduíche. Eles se tornaram o diâmetro de uma roda que passou a girar, primeiro em sentido anti-horário e depois em sentido horário. Enquanto ela rodopiava, o terceiro lac de Sandor lançou um ataque feroz, tanto que Kanus foi empurrado de volta para a cerca do fundo.
E então um gongo soou, atordoando-me quando o barulho reverberou pelo chão. Em resposta, os combatentes se separaram e mudaram de posição.
Agora os dois combatentes estavam posicionados na frente de seus lacs, e não atrás deles.
O que estava acontecendo? Eu tinha certeza de que o meu pai nunca me falara sobre aquilo!
— Agora vai ficar ainda mais perigoso, garoto — avisou Tyron. — Depois de cinco minutos lutando atrás dos lacs, os combatentes devem se enfrentar diretamente, tornando-se vulneráveis às lâminas de seu adversário e do lac ou dos lacs dele!
Quando a luta recomeçou, parecia-me impossível que os dois combatentes humanos pudessem sobreviver mais do que alguns segundos, afinal, os lacs estavam usando armaduras, e os rapazes, somente calções e coletes. Certamente a carne deles seria cortada em pedacinhos...
Mas parecia que, embora os dois rapazes estivessem desesperadamente tentando cortar um ao outro, eles nunca conseguiam chegar perto o suficiente.
Os braços dos lacs eram bem mais compridos do que os dos humanos. Os dois rapazes dançavam com as costas quase tocando o peito de seus lacs, que usavam seus braços longos para alcançar a frente e deter qualquer ataque.
Continuou assim durante vários minutos. Quanto tempo demoraria até que um deles fosse gravemente ferido?, pensei.
O pensamento mal me passou pela cabeça, e uma espada investiu vigorosamente, forçando Kanus a recuar e esbarrar em seu lac. Eles agora estavam sendo empurrados direto para a cerca da arena.
Kanus foi cortado novamente e deu um grito ainda mais estridente do que a trombeta tocada pelo marechal-chefe. O berro parecia alto demais para ter saído de uma garganta humana. As espadas estavam relampejando e eu vi uma lâmina afundar no encaixe de garganta do lac de Kanus. Então, eles já estavam fatiando o corpo do rapaz de novo, espirrando sangue para todo lado.
Os espectadores urravam e torciam na maior agitação. A maioria se pusera de pé com um salto. Enquanto isso, Tyron e eu permanecemos sentados. Fiquei sem fala diante de tanto horror, ao mesmo tempo em que ele balançava a cabeça diante do espetáculo na arena.
Juntos, o lac de armadura e o rapaz deslizaram cerca abaixo. Mas, muito antes de eles despencarem, formando uma pilha no chão, as espadas traçaram arcos descendentes, cortando a carne de Kanus, que continuava gritando.
O sangue começou a fazer uma poça debaixo de seu corpo, espalhando-se para fora nas beiradas, e seus gritos gradualmente se tornaram mais fracos.
Por fim, a multidão se calou. Tudo o que eu conseguia ouvir eram queixas quase inaudíveis do combatente moribundo, que, após alguns segundos, cessaram completamente.
Não pude deixar de notar as reações dos espectadores ao nosso redor. Alguns fitavam a cena de boca aberta e olhos arregalados de animação, quase babando diante do espetáculo da morte do rapaz. Já outros, como o velho homem à minha esquerda, simplesmente balançavam a cabeça com tristeza. Escutei-o murmurar a palavra “desordenada” para si mesmo.
Abaixo de nós, o vitorioso ergueu as mãos para receber os aplausos, enquanto o rapaz morto era arrastado para longe sem cerimônia. Um rastro de sangue marcou sua saída da arena.
— As lutas desta noite estão longe de terminar, mas acho que você já viu o suficiente por hoje — anunciou Tyron, pondo-se de pé e me mandando segui-lo. Ele abriu caminho para deixar a arena, subindo as fileiras de assentos alinhados até chegarmos à saída.
— Morrem homens na Arena 13... — disse ele, devagar e refletidamente. — Não é uma regra, mas acontece. Você viu aquelas manchas no chão. É sangue. Algumas são muito antigas. Outras datam apenas da última temporada. E mais manchas em breve surgirão.
Ele parou e se virou de frente para mim, encarando-me nos olhos:
— Você ouviu a voz da razão e mudou de ideia, garoto?
Abri a boca para responder, mas, antes que eu pudesse falar, ele deixou escapar um longo suspiro.
— Dá para ver na sua cara! Seus olhos estão brilhando de animação. Mesmo depois do que eu disse e das coisas que viu, você ainda não deu o braço a torcer, não é?
Balancei a cabeça:
— Quero lutar na Arena 13.
— Você é teimoso, garoto, tenho que admitir. E, apesar dos meus esforços, nada do que eu disse te dissuadiu. É uma coisa que eu faço com todos os meus potenciais discípulos, pois preciso ter certeza de que eles estão comprometidos de corpo e alma.
Senti uma onda de esperança. Será que ele tinha a intenção de me aceitar?, perguntei-me, otimista.
Tyron apontou para baixo.
— Certo, garoto, vamos para a minha casa. Está com fome?
Confirmei com a cabeça.
— Bom, você vai ter um bom jantar hoje à noite. Todos os meus discípulos comem bem.
5
Duas regras importantes
Os deuses recompensam a ambição,
Pois sem ela somos apenas poeira.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
À medida que nos aproximávamos da casa de Tyron, percebi que as ruas haviam mudado. Estávamos subindo, e eu já notara que as calçadas de madeira apresentavam um estado de conservação muito melhor aqui. Depois de um tempo, elas foram substituídas por blocos de pedra, quando as ruas lamacentas deram lugar a vias pavimentadas mais largas. Logo entramos em uma avenida de árvores com folhas verdes que haviam brotado recentemente. Ali era onde moravam os habitantes prósperos da cidade.
Poucas das casas de madeira daquela área tinham mais de um andar, mas a de Tyron se revelou diferente.
Ela tinha quatro andares e era a casa mais alta que eu vira em Gindeen. Ele pegou uma chave no bolso e abriu a porta, entrando e depois se virando de frente para mim, como se quisesse barrar o meu caminho.
— Vou te dar um mês de teste — disse. — Os dias serão longos e incluirão tanto habilidades de combate práticas quanto teoria Nym seguidas, no final do dia, por matemática básica. Também haverá noções de outros assuntos, incluindo história.
Agora ele confirmara tudo, sem sombra de dúvida. Eu ia ganhar a oportunidade com a qual estava sonhando!
— Há três regras importantes a serem lembradas. Primeiro: eu não permito que os meus discípulos bebam. O álcool deixa a mente e o corpo mais lentos, o que é a última coisa de que um combatente da Arena 13 precisa. Se eu te pegar bebendo, te boto no olho da rua. Segundo: você tem que prestar um juramento antes de entrar na arena pela primeira vez. É a lei. Você terá que jurar, diante do marechal-chefe, que nunca usará uma lâmina de aço como arma fora da arena. Porém, eu levo isso ainda mais longe e proíbo luta de bastão também. Essa é uma regra minha para quem trabalha para mim. Entendeu? Ou será que é demais para o melhor lutador de bastão de Mypocine engolir? — interrogou ele secamente.
— Posso perguntar por que o senhor proíbe luta de bastão?
Tyron ergueu as sobrancelhas e, por um momento, pensei que ele fosse me dar uma bronca. Mas aí o seu rosto relaxou.
— Para ser bem-sucedido em lutas de bastão, é preciso rapidez e habilidade. Mas muito desse tipo de combate é espontâneo. Você não pode se dar ao luxo de lutar assim na Arena 13. É necessário ter disciplina para trabalhar em parceria com lacs. Lutas de bastão criam maus hábitos que podem custar caro a um combatente na Arena 13. Nem todo o mundo pensa do mesmo jeito que eu, mas eu imponho essa regra à minha equipe. Então, vou perguntar de novo, Leif: você vai obedecer à ela?
Confirmei com a cabeça.
— Vou seguir as regras do senhor — afirmei, com o coração batendo surdo de emoção. — Eu me desfiz dos meus bastões antes de vir para a cidade. Obrigado por me dar uma chance de provar o meu valor. Prometo não decepcionar o senhor.
— Bom, garoto. O seu treinamento começa amanhã, mas, agora, está na hora de jantar. Suas roupas do corpo vão dar para o gasto, por enquanto, mas arrumarei algo melhor pela manhã.
Entramos no que era obviamente a sala de jantar e vi que a comida já estava sendo servida. Tyron era claramente um homem rico e podia pagar criados, que agora se apressavam em torno da mesa comprida, colocando pratos de carne e de legumes quentes e fumegantes no centro. O cheiro era delicioso. Minha boca começou a salivar.
— Este é o Leif. — Tyron se dirigiu aos que estavam sentados à grande mesa, apontando para mim. — É o meu novo discípulo. Infelizmente, o pai e a mãe dele estão mortos, então, Leif fez a viagem até aqui sozinho. Tenho certeza de que vai se sair bem. Vamos fazer com que ele se sinta bem-vindo!
O anúncio foi acolhido com sorrisos, mas ninguém falou. Tyron se sentou à cabeceira da mesa e me indicou o lado oposto. Enquanto esperávamos os criados terminarem de servir, ele fez as apresentações.
— Esta é minha filha, Teena — disse, acenando com a cabeça na direção da moça sentada à sua direita. — Ela é casada há quatro anos e já me presenteou com meu primeiro neto. Você só o verá amanhã, pois ele já foi levado para a cama.
— Muito prazer, Leif — exclamou ela, sorrindo para mim com simpatia. — Espero que você seja feliz aqui. Somos a sua família, agora.
Teena era uma mulher muito atraente, com cabelos louros e olhos azuis. Eu podia dizer, só de olhar, que era afetuosa e generosa, além de muito sincera. Gostei dela imediatamente.
— E este é o marido dela, Kern — continuou Tyron, colocando a mão no ombro do homem sentado na frente de Teena. — Kern está prestes a começar a sua quinta temporada lutando na Arena 13. Este ano ele deve consolidar os seus sucessos anteriores e subir muito na tabela de classificação. Você vai conhecê-lo bem, pois ele se encarregará de uma parte do seu treinamento.
Kern era um homem alto, com cabelos pretíssimos. Parecia ser tão franco e simpático quanto sua esposa.
— Estou animado para trabalhar com você, Leif — declarou ele, parecendo realmente estar dizendo a verdade.
Comecei a relaxar, mas, quando Tyron dirigiu sua atenção para os outros, a atmosfera não permaneceu tão calorosa assim. Havia dois rapazes mais ou menos da mesma idade ou um pouco mais velhos do que eu, me encarando, com as sobrancelhas erguidas.
— Todos os meus novos discípulos passam a primeira temporada debaixo do meu teto. Depois disso, estabelecem residência na Roda. Este é o Palm — disse Tyron, apontando para o garoto de cabelos mais claros, cortados curtinhos, e costas rijas. Se nós dois estivéssemos em pé, tenho certeza de que ele me olharia de nariz empinado, pois tinha um ar de superioridade. — Palm é o mais velho e mais experiente. Já tem vários meses de treinamento nas costas e quer lutar atrás de três lacs. Por sorte, o pai dele pode bancar isso, pois é muito caro comprá-los e mantê-los.
Palm acenou com a cabeça na minha direção esforçou um sorriso, mas somente com a boca, não com os olhos. Eu podia sentir que a minha presença não lhe era bem-vinda.
O outro garoto, menor, foi apresentado como Deinon. Tinha cabelos castanhos mais escuros e era muito magro. Parecia nervoso e não seguro de si. Embora parecesse mais simpático do que Palm quando me cumprimentou, seus olhos manifestavam desconfiança.
— Muito bem, vamos começar. Sirvam-se! — convidou Tyron, olhando diretamente para mim. — É uma prática ruim treinar de estômago cheio, então, tomamos um café da manhã leve e fazemos apenas um lanche na hora do almoço. Portanto, coma bem, pois essa é a principal refeição do dia.
Não precisei de um segundo convite: enchi meu prato com fatias de carne e um monte de batatas e legumes, regando tudo generosamente com molho. Havia água para beber, mas eu notei que, apesar de sua regra para os discípulos, Tyron estava tomando vinho tinto.
Havia riso e conversa na outra ponta da mesa. Eu teria preferido bater papo com Tyron, Kern e Teena. Os dois garotos ao meu lado estavam ocupados demais comendo para conversar. Temi que seria difícil conhecê-los melhor.
Um tinido na porta chamou a minha atenção. Levantei os olhos do prato por um momento e vi outra pessoa entrando na sala e tomando um assento ao lado de Teena. Era uma menina morena mais ou menos da minha idade. Ela estava vestindo calças largas amarradas com fitas pretas nos tornozelos, acima do que parecia ser o mesmo tipo de botas usado pelos combatentes na Arena 13. Seu cabelo estava preso em um coque, fazendo com que seus traços parecessem duros e angulosos.
— Esta é minha filha caçula, Kwin, que cultiva o hábito de chegar atrasada para as refeições. — Tyron lançou um longo olhar penetrante à sua filha. — Kwin, este é meu novo discípulo, Leif.
Kwin nem se deu ao trabalho de fingir um sorriso. Encarou-me com olhos castanhos severos e hostis. Para minha surpresa, vi uma cicatriz na sua bochecha esquerda que ia da parte logo abaixo dos olhos até quase o canto da boca. Embora a cicatriz não tivesse distorcido seu rosto, suas feições, que, caso contrário, seriam atraentes, estavam retorcidas —retorcidas de raiva por causa da minha presença.
Mas, pelo menos, ao contrário dos dois discípulos, ela era honesta.
Havia três pessoas na sala que claramente não me queriam ali.
Depois do jantar, a mando de Tyron, segui Palm e Deinon para o nosso dormitório no andar de cima.
As três camas estavam dispostas em fileira ao longo do quarto comprido e estreito. Ao lado de cada cama, havia uma pequena cômoda com apenas uma vela tremeluzente. À esquerda ficava a única janela. As longas cortinas verdes já estavam fechadas.
— Essa é a minha cama, aquela é a do Deinon. E essa é a sua — disse Palm, apontando para a cama mais longe da janela. Havia outra porta fechada ao lado dela. Notei que tinha um buraco de fechadura, mas nenhuma maçaneta.
Algo atraiu os meus olhos: uma pintura emoldurada pendurada acima da cama de Palm. Era uma cena da Arena 13. No primeiro plano, um combatente estava virado para frente; às suas costas, vinha um lac. O homem mantinha os braços bem abertos no ar, com espadas brilhando em suas mãos. Atrás dele, o lac estava segurando as espadas em um ângulo de quarenta e cinco graus. Portanto, juntos, eles pareciam uma única criatura com quatro braços: uma entidade poderosa e perigosa lançando um desafio diretamente para mim.
— Gostou? — perguntou Palm. — Custou muito dinheiro mandar pintar isso. Sabe quem é esse cara...? — Ele apontou para o combatente.
Balancei a cabeça.
— É o Math, grande herói da Arena 13. Ele derrotou o Hob quinze vezes!
Contemplei o quadro e engoli seco. Minha boca estava muito ressecada. De repente, senti que estava prestes a desmaiar, então, fui me sentar na beira da minha cama.
Eu mal me sentara, e uma onda de exaustão me invadiu: a viagem até ali e a adrenalina do dia finalmente me dominaram. Porém, meus dois companheiros de quarto obviamente não estavam dispostos a me deixarem dormir. Eles me fitavam como se estivessem esperando que eu me pusesse a falar. Eu não conseguia pensar em nada a dizer, e o silêncio parecia se eternizar.
— Você vem de onde? — indagou Palm finalmente.
— Eu morava ao sul de Mypocine.
— Você certamente tem aparência e jeito de falar de alguém que veio lá do sul.
Ele falava com o sotaque claro e rebuscado do norte. Minha primeira impressão estava certa: cada sílaba sua estava impregnada de superioridade. Ele se referia ao meu sotaque, com vogais mais acentuadas, e à cor mais escura da minha pele. A expressão no rosto de Palm dizia que as pessoas deviam sentir pena de mim.
— O que o seu pai fazia? — perguntou ele.
— Ele era fazendeiro.
— Meu pai possui uma das maiores fazendas no norte de Gindeen — devolveu Palm, como se não tivesse levado em consideração o que eu acabara de dizer. — Vou lutar atrás de um tri-glad e o Tyron prometeu que ele próprio vai modelá-lo para mim. Inclusive ele já começou o trabalho. Os três lacs devem ficar prontos daqui a algumas semanas. Vou ter tempo de adquirir bastante prática antes do TD. Você já ouviu falar no TD, né?
O garoto estava obviamente demonstrando o quanto era mais experiente do que eu. Eu não precisava dele para saber disso, mas balancei a cabeça: era melhor ser sincero.
— É o que chamamos de Torneio dos Discípulos. Perto do final da temporada, é organizado um torneio para todos os discípulos, e eu vou vencer. Apesar de ser novato aqui, você também vai ter de participar. É obrigatório. Você vai lutar na posição min?
Fiz que sim, notando, enquanto ele falava, um fraco estalo no fim de algumas palavras. Perguntei-me se não tinha algo errado com a sua mandíbula.
Palm me lançou aquele olhar compadecido novamente.
— O Deinon também vai — disse ele, dando um sorrisinho malicioso para o outro garoto. — Mas é difícil ganhar de um bom tri-glad, então, é melhor você ir se acostumando com as derrotas. O Deinon sabe muito bem disso.
Ele subitamente se pôs de pé e foi até a parede, colocando a palma da mão direita bem esticada contra ela, logo acima da cabeceira da minha cama.
— Essa parede está quente! — declarou ele ruidosamente, dando um sorrisinho malicioso de novo. — Vem cá, Leif! Vem sentir e me dizer o que você acha!
Eu tinha certeza de que aquilo era algum tipo de pegadinha, mas precisava entrar no jogo. Sabia que ia passar muito tempo com Palm e Deinon, portanto, não queria parecer hostil no nosso primeiro encontro. Devia fazer um esforço para ser simpático e me dar bem com eles. Fui até lá e encostei a mão esticada contra a parede, do jeito que Palm acabara de fazer.
— O que você acha? Estou ou não estou certo?
A parede de madeira de fato estava moderadamente morna, mas nada além disso.
Antes de eu ser forçado a dar a minha opinião, Palm me fez outra pergunta:
— Por que você acha que ela está tão quente?
Encolhi os ombros.
— É porque uma garota dorme no quarto aqui ao lado. É por isso. Ela faz as paredes ferverem! — acrescentou ele, com um sorrisinho mais malicioso do que nunca.
— Quem é ela? Que garota? — indaguei.
— Como assim? A Kwin, é claro, a filha mais nova do Tyron. O que você achou da cicatriz dela?
— Como ela se feriu?
— A Kwin é fanática pelo Trig. Ela nunca para de praticar as etapas. É uma perda de tempo, claro, porque mulheres não são autorizadas a participar, não podem nem colocar os pés no chão da arena. Mas ela não escuta, treina como se realmente acreditasse que vão permitir que ele lute lá. É um absurdo. Mesmo assim, um dia ela desceu ao porão e ativou um lac. E não era nem um lac de treino! Era um que havia sido preparado para a Arena 13. Ela lutou com ele, espada contra espada, e quase perdeu um olho. Sorte que o Tyron chegou bem a tempo para salvar a vida dela. A Kwin podia ter sido morta.
Palm ainda estava dando aquele sorrisinho malicioso, e eu comecei a ficar vermelho. Qual a graça de quase ser morto? Senti vergonha e raiva. Tudo o que ele dissera até então não passara de uma longa piada à minha custa. E por que Deinon estava tão calado? Será que ele não tinha nada a dizer por sua vez? Seu silêncio começou a me irritar.
De repente, na parede, acima da minha cama, ouvimos uma batida forte, seguida por mais duas.
— Eu sou o número um, o Deinon é o número dois, e você é o número três. Três batidas! Significa você! — gritou Palm, exultante. — A Kwin está te chamando. É melhor não deixá-la esperando!
Olhei para ele com espanto.
— Não faça essa cara de sofrimento — zombou ele. — A Kwin pode ser divertida. E, se quiser continuar em bons termos com o Tyron, você precisa cair nas graças dela. Essa garota vive brigando em público com o pai, porque gosta de ser vista como uma rebelde. Mas, pode acreditar, eles são muito chegados. Cruze o caminho dela, e você acabará fora daqui.
Coloquei-me de pé.
6
Kwin
Os pés dela ensaiam um passo de dança aprendido na rua.
Como uma mosca de patas longas por cima do riacho,
A mente dela se move por cima do silêncio.
Compêndio de Antigos Contos e Baladas
Uma chave girou na fechadura e eu vi a porta ao lado da minha cama se abrir lentamente, permitindo que um feixe de luz amarela emitido por uma vela entrasse no quarto.
Senti os olhos de Palm e Deinon me observando.
— Vai logo! Não a deixe esperando! A Kwin se irrita muito fácil — advertiu Palm.
Por um momento, hesitei. Será que Kwin também estava na brincadeira? Será que todos os três em breve estariam rindo de mim?
Decidi consentir com aquilo. Tinha importância? Era certamente só um pouco de farra; provavelmente algum tipo de rito de iniciação pelo qual todos os novos discípulos passavam. Portanto, ainda me sentindo um tolo, fui até lá, abri a porta e entrei no quarto ao lado.
— Você demorou! — reclamou Kwin, com uma expressão irritada no rosto. Ela passou rápido por mim para fechar a porta e girou a chave na fechadura mais uma vez.
Olhei de relance para a sua cara zangada e esquadrinhei brevemente o quarto. Não parecia nem um pouco o quarto de uma garota. Um par de espadas cruzadas estava preso à parede, bem acima de sua cama, e a parede do fundo estava coberta de desenhos que claramente eram cenas da Arena 13. Eles imediatamente chamaram a minha atenção, e eu fui até eles para examiná-los.
— São ótimos! — elogiei. — Foi você que desenhou?
Kwin fez que sim com a cabeça. Um sorriso iluminou o seu rosto e ela imediatamente pareceu bem diferente da garota que me olhara de cara emburrada na hora do jantar. Para começar, ela estava usando um vestido roxo e justo, caindo-lhe como uma segunda pele. Era curto também, com botõezinhos pretos de couro na frente e cobrindo apenas até os joelhos. As mangas compridas iam quase até a ponta dos polegares. Seus cabelos estavam soltos, suavizando suas feições. Do lado direito, o cabelo era bem comprido, mas, do lado esquerdo, fora cortado muito mais curto, quase como se quisesse chamar a atenção para a cicatriz.
Mas a coisa mais admirável eram os lábios de Kwin.
Eu vira as mulheres na Arena 13 mais cedo, todas tinham os lábios pintados de preto, parecia ser a moda. Mas somente o lábio superior de Kwin estava preto. O lábio inferior estava pintado de vermelho vivo, como o do sangue arterial.
Ela chegou bem pertinho de mim e agarrou o colarinho da minha camisa, esfregando-o entre o polegar e o indicador, como que para sentir a textura.
Kwin estava tão perto que dava para sentir o calor de seu corpo e quase provar o cheiro de sua pele na minha língua. Prendi a respiração e o meu coração começou a bater mais rápido. Fiquei intensamente atraído por ela, mas estava com vergonha das minhas roupas. Eu sabia que estava fedendo a suor.
— Você está sujo — disse ela. — Gosto disso. É autêntico. Alguns dos moleques rasgam as roupas e não tomam banho, mas é tudo teatro.
— Eu estou viajando há mais de duas semanas — expliquei. — Vim para cá a pé desde Mypocine. Seu pai disse que arrumaria umas roupas limpas para mim amanhã.
— Que pena! Tente não fazer muito barulho. Meu pai tem o sono leve, mas essa escada não passa pelo quarto dele.
Sem maiores explicações, Kwin me conduziu para fora do quarto e, logo em seguida, eu estava descendo a escada na ponta dos pés atrás dela. Instantes depois, saímos de casa e andamos pelas ruas em ritmo acelerado.
— Para onde estamos indo? — perguntei.
— Para a Roda, é claro — retrucou a garota. — Para onde mais você iria a essa hora da noite?
Fiquei pensando por que ela estava me levando para lá.
— Eu acabei de voltar da Roda. Seu pai me mostrou tudo.
— Vou te mostrar o que ele não te mostrou. Tem uns lugares lá aonde ele nunca iria — revelou ela.
Decidi deixá-la me guiar no momento. Aquela garota conhecia bem a cidade. Havia uma porção de coisas que ela podia me ensinar sobre Gindeen. Além do mais, eu precisava aprender tudo o que pudesse.
Agora que o sol se pusera, a abóbada da Roda estava invisível. Sem Kwin à minha frente, eu teria penado para encontrar o caminho. Tomamos um rumo sinuoso que nos levou através das ruas mais escuras e estreitas. Parecíamos ser as únicas pessoas andando por ali. Pensei no perigo do Hob e comecei a ficar nervoso.
Nos cruzamentos entre as ruas estreitas, lamparinas pendiam de postes de madeira cobertos, mas, para minha surpresa, as luzes já haviam sido apagadas. Qualquer coisa poderia estar nos espreitando da escuridão. A certa altura, pensei ter ouvido passos nos seguindo.
Aquela era a única cidade de Midgard e as ruas não estavam iluminadas. Até mesmo na minha terra natal, em Mypocine, as tochas queimavam até muito depois de meia-noite.
— Não fique para trás! — chamou Kwin, e eu percebi que só conseguia discernir vagamente a sua silhueta à minha frente. Corri, conseguindo recuperar a distância entre nós antes que ela virasse a esquina seguinte.
— Você não tem medo do Hob? — indaguei. — Ele pode estar em qualquer lugar, preparando uma emboscada nas sombras.
— Talvez seja você quem devesse estar com medo! — Kwin riu entre os dentes. — O Hob é um djinni metamorfoseador. Ele pode estar vivendo despercebido entre nós. Cuidado! Eu posso ser o Hob!
Sua resposta petulante me irritou, e me arrependi de não ter batido o pé e me recusado a acompanhá-la.
— Você acha que o Hob é uma piada? — perguntei, zangado.
Kwin revirou os olhos e não respondeu, simplesmente apressou o passo.
Em vez de nos dirigirmos para a entrada principal da Roda, como eu fizera com Tyron, Kwin me fez dar a volta até os fundos. Havia pessoas reunidas do lado de fora, e vi que ela tinha razão: ali era o lugar aonde os residentes de Gindeen iam para se socializarem à noite. Do meio do grupo maior, uma voz masculina e grave a chamou.
Era um rapaz alto e musculoso, talvez alguns anos mais velho do que eu, mas Kwin o ignorou completamente. Olhei de relance para ele enquanto a seguia através de uma porta estreita e vi que o rapaz pareceu magoado e desapontado. Fiquei pensando qual seria a história entre os dois.
Uma vez do lado de dentro, ela se virou e me disse:
— Este é o andar imediatamente abaixo das arenas. Podemos descer ainda mais, até a Comunalidade, mas é perigoso a essa hora da noite.
— O que é a Comunalidade?
— É onde a maioria dos lacs fica guardada. Tem luta de bastão lá embaixo quase toda noite. Apostas sérias e tudo mais. É muito grande, fácil de se perder. Você precisa ir com um grupo grande para realmente ter segurança lá. Quem sabe você não pede para o Palm e o Deinon te levarem junto com alguns dos outros discípulos?
Eu não conseguia imaginar Palm fazendo amizade comigo e não tinha certeza se queria ser amigo dele. Quanto a Deinon, ele nunca abria a boca, logo não seria uma boa companhia. Não comentei o que Kwin dissera e continuei seguindo-a por um corredor comprido e largo, com portas a cada vinte passos. A maioria delas estava fechada, mas finalmente a garota parou do lado de fora de uma porta aberta.
Dei um passo para dentro, mas Kwin me agarrou e me puxou de volta.
— Que foi?
Ela só me encarou como se eu não estivesse me dando conta de algo óbvio.
Espiei a sala vasta e fracamente iluminada. Parecia ser uma espécie de bar mobiliado com imensas cadeiras e sofás estofados com couro marrom. Garçons de paletós roxos iam e vinham carregando bandejas de comida e bebida para os clientes.
— Parece caro — opinei.
— Claro que é caro, mas quem entra pode bancar. Esse não é o motivo pelo qual não podemos entrar. — A voz de Kwin expressava raiva.
De repente eu percebi o porquê.
— Não tem nenhuma mulher aqui — falei. As mulheres não eram autorizadas a terem uma profissão, nem como artífices, nem como combatentes. — Você não pode nem entrar como cliente? — perguntei.
— Não! Então me diz o que você acha, Leif — desafiou-me Kwin. — Por que as mulheres não deveriam lutar na Arena 13?
Eu não conseguia pensar em nenhuma resposta. Ficamos olhando constrangidos durante um tempo. Aí, Kwin balançou a cabeça, obviamente tão indignada comigo quanto com o resto do mundo. Eu estava me esforçando para achar as palavras certas diante daquela garota, ainda mais depois da pergunta que ela me fez em seguida:
— O que você acha do meu corpo?
Abri a boca, mas não saiu nenhuma palavra.
— Estou dando duro para aperfeiçoá-lo. Olha!
Para minha surpresa, Kwin começou a desabotoar a frente do vestido, de baixo para cima, partindo da área sob a cintura. Olhei para a esquerda e a direita: para meu alívio, não havia ninguém. Agora ela já desfizera três botões e abrira bem o vestido, revelando a barriga.
Consegui acenar com a cabeça. Os músculos eram visíveis e estavam ali, sem sombra de dúvida.
— Também sou rápida. Muito rápida! Mesmo que você treine o ano todo, não vai adiantar nada. Ainda assim serei mais rápida do que você.
Seus olhos estavam faiscando. Não pude resistir e respondi:
— Talvez devêssemos tirar isso a limpo.
Ela levantou as sobrancelhas.
— Eu contra você, então! — provocou ela. — Vamos ver quem é o melhor lutador de bastão?
— Se é o que você quer... — retorqui, curtindo a ideia de algo que me era familiar. Porém, eu mal concordara, e a proibição de Tyron me veio à lembrança. Eu não era autorizado a lutar com bastões agora que estava sendo treinado por ele. No entanto, eu não queria que Kwin pensasse que eu era patético. Eu me precipitara em concordar, e agora era tarde demais para voltar atrás na palavra dada.
Ela me estendeu a mão, e eu hesitei apenas um momento antes de apertá-la.
— Então está combinado — aprovou ela. — Mas não agora.
Senti uma estranha mistura de alívio e decepção.
— Não podemos lutar esta noite. Vem, vou te mostrar o outro salão — chamou ela, conduzindo-me por um lance de escada.
O tal salão mais parecia um porão, certamente menos elegante do que o bar que eu vira lá em cima. Havia pelo menos duzentas ou trezentas pessoas ali. No fundo, dava para ouvir tambores, em um ritmo constante cujo volume aumentava e diminuía. Era aquele tipo de tambor que força você a mudar a cadência dos seus passos, tornando difícil andar.
Todos pareciam estar bebendo, dançando ou ambos. Uma garota girava descontroladamente em cima de uma mesa, como se suas pernas fossem um borrão, de tão rápido que rodopiavam, ao som distante da batida do tambor e dos aplausos dos espectadores. Dando um guincho, ela se atirou no chão duro de madeira como se estivesse mergulhando na água. Foi habilmente amparada, e outra mulher cheia de entusiasmo foi erguida para tomar o lugar da anterior.
— Vai lá comprar alguma bebida para mim! — gritou Kwin no meu ouvido. Senti-la tão perto de mim me fez perder a fala de novo. — Uma taça de vinho tinto.
— Não tenho nenhum tostão — consegui balbuciar, ficando vermelho de vergonha.
Esse lembrete de outra das regras impostas por Tyron me avisou de que eu não deveria ter ido para lá. Era emocionante e interessante estar em um lugar como aquele, eu nunca vira nada igual antes. Mas eu também estava me sentindo incomodado. Tinha certeza de que Tyron ficaria furioso comigo se soubesse.
Kwin me empurrou para uma mesa vazia em um canto, como se eu fosse uma criança, e, em seguida, foi abrindo caminho até o bar. Sentei-me e, alguns instantes depois, ela voltou, trazendo duas taças pequenas de vinho tinto.
Ela colocou uma na minha frente e se sentou diante de mim, levando sua taça até os lábios. Após o terceiro gole, ela se inclinou na minha direção. Tive de ler os seus lábios.
— Qual o problema? Por que você não está bebendo?
— O seu pai não permite! — gritei de volta.
— Uma tacinha não faz mal a ninguém! — O canto de sua boca se contorceu, achando graça.
Dei de ombros, e, quando ela viu que eu não mexi sequer um dedo para pegar o vinho, estendeu o braço e apanhou a taça, colocando-a ao lado da sua. Dez minutos depois, ambas as taças estavam vazias e Kwin se pôs de pé, andando abruptamente, sem nem lançar um olhar para mim. Por um instante, pensei que ela estivesse indo buscar mais vinho, mas, quando vi que ela se dirigia para a porta, apressei-me em segui-la.
Ouvindo-me atrás dela no corredor, Kwin parou e se virou para me encarar, falando como eu tinha feito exatamente o que ela sempre soubera que eu faria. Perguntei-me se aquilo tudo não fazia parte dos mesmos ritos de iniciação pelos quais Palm e Deinon haviam passado com ela quando eram novatos na casa de Tyron. Eu não sabia qual era o sentido daquilo, mas havia algo que me atraía naquela garota. Eu queria que a opinião dela sobre mim fosse boa.
— Você lida bem com alturas? — perguntou Kwin agora.
— Bom, eu já subi em um monte de árvores na minha casa — respondi, tentando fazer piada com a questão.
— Estou falando de algo muito mais alto do que árvores, Leif. Vou te mostrar a vista do topo da abóbada. Vem comigo! A menos que você esteja com medo...
Obviamente, fui atrás dela. Não podia deixá-la achar isso de mim.
Ela me conduziu ao longo de corredores e através de portas, utilizando uma chave ornamentada para abrir as que estavam trancadas. Finalmente iniciamos uma subida longa e cansativa por uma escadaria que nos levou até uma estreita abertura no teto, através da qual saímos rumo a escuridão da abóbada no alto da Roda. Foi quase impossível seguir o ritmo de Kwin na espiral íngreme. A atmosfera era densa, com um cheiro sufocante de poeira e madeira antiga.
Após cerca de cinco minutos, ela parou e se virou para me olhar impacientemente. Então, vi gotas de suor em sua testa também. Aproveitei a pausa para baixar os olhos e ver o salão circular que ficava em cima das arenas, muito distante, sob os nossos pés, onde as pessoas corriam afobadas feito formigas.
— Ainda temos um bocado para subir, mas pelo menos lá fora estará mais fresco. — Kwin nos apressou, continuando sua ascensão.
Fiquei aliviado quando enfim despontamos no ar frio daquela madrugada de início de primavera. Olhei para cima e vi que uma lua cheia estava iluminando a cidade. Do lado de fora da abóbada, com apenas um corrimão fino para nos apoiarmos, prosseguimos a nossa subida até chegarmos ao cume, onde um mastro quebrado se projetava para o céu como a ponta de uma lança.
Contemplei a cidade, maravilhado com o fato de estar ali, no topo da abóbada da Roda, de ter sido aceito por Tyron. Tantas coisas já haviam ocorrido de acordo com os planos... Mas eu rapidamente lembrei a mim mesmo que só dera alguns pequenos passos em uma estrada muito longa.
Bem lá no alto, os abutres ainda voavam em círculos, mas meus olhos foram atraídos para o oeste.
Dali, eu podia ver a cintilação escura do mar e, atrás dela, um pedaço da Grande Barreira que circundava Midgard, isolando-a do mundo exterior. Parecia uma muralha de névoa ou nuvem, mas não era um fenômeno natural. Ela fora colocada ali há muito tempo atrás pelos inimigos da humanidade, erguida após a última batalha pelo djinni que destruíra o Império Humano.
Kwin gesticulou em direção à cidade.
— Essa é uma vista que poucos têm o privilégio de contemplar.
Era de tirar o fôlego. Apesar da hora tardia e das ruas desertas que tivemos que percorrer para chegar ali, eu podia ver finas colunas de fumaça se elevando das forjas e, atrás do amontoado de telhados de madeira, via o formato xadrez desenhado pelos currais. Muito acima do abatedouro, um pássaro marinho solitário pairava no ar. Julgando pela enorme envergadura das asas, devia ser um aulburte. Eles eram capazes de voar durante semanas sem pousar. Algumas pessoas até acreditavam que tais pássaros conseguiam pairar acima da própria Barreira.
Durante toda a minha vida tive a curiosidade de saber o que se escondia por trás da Barreira. Será que a paisagem mudara tanto que era impossível reconhecê-la? Como eram os djinnis e como eles haviam modelado o mundo que lhes pertencia? O que faziam? Como viviam? Certamente nem todos eram iguais ao Hob, que oprimia a terra de Midgard de modo tão cruel a partir de sua cidadela na colina acima de Gindeen. Ou será que eram?
— Aquele é o palácio do Protetor — disse Kwin, apontando para o norte, na direção de uma construção alta com pilares na entrada. — É a única construção da cidade que não é feita de madeira. Aquele alpendre com pilares de mármore é chamado de pórtico. Não existe mármore em lugar algum de Midgard, portanto, a pedra deve ter vindo lá do outro lado da Barreira. Os quartéis ficam em algum ponto atrás do palácio.
De rabo de olho, percebi que Kwin estava me fitando, mas, quando me virei para vê-la de frente, ela desviou o olhar. Senti uma forte atração por aquela garota. Talvez ela tenha sentido o mesmo. Fiquei pensando por que ela me levara até aquele lugar.
Continuamos contemplando a cidade por algum tempo sem dizermos mais nada, apenas sorvendo a magnífica vista. Após um momento, Kwin chamou a minha atenção para o oeste, onde a cidadela de pedra e bronze se destacava no pico da colina. Seus treze pináculos de bronze, com alturas variáveis, brilhavam ao luar, alguns estranhamente torcidos. Ela apontou o indicador para eles.
— Sabe o que é aquilo?
Eu sabia o que era. Todo o mundo sabia. Mas não respondi. Queria ouvir da boca de uma habitante da cidade.
— É a cidadela do Hob — sibilou Kwin. — É o covil do djinni que aterroriza esta cidade.
Sim, eu sabia tudo sobre Hob. Fizera questão de aprender tudo o que podia.
— Para responder à sua pergunta anterior — continuou Kwin, irritada —, não, eu não acho que o Hob seja uma piada. Mas é preciso rir e brincar, senão o medo enlouquece a gente, entendeu? No inverno, durante as horas de escuridão, as pessoas ficam enclausuradas dentro de casa, com as portas trancadas. Bom, eu não fico! Faço o oposto: saio! O perigo é real, Leif. Com frequência, ocorrem assassinatos. O Hob mata as pessoas. Suga o sangue delas. Garotas às vezes desaparecem por semanas. Elas voltam sem danos no corpo, mas com as mentes completamente inexpressivas, iguaizinhas aos lacs novinhos em folha vendidos pelo Comerciante. Toda a memória delas some. Algumas retornam incapazes de falar.
O horror do que ela estava me contando me encheu de ódio. Minhas mãos começaram a tremer.
— O Hob rouba a alma delas. E as pessoas têm razão de ficarem assustadas. Mas elas recorrem a rituais supersticiosos que não funcionam. Os fazendeiros respingam sangue de porco ao longo das cercas que delimitam suas propriedades para manter o Hob à distância. Alguns habitantes da cidade acreditam que ele tem medo de arbustos espinhentos e pontas de prego fincadas na porta de entrada de suas casas.
Eu não disse nada, apenas esperando Kwin prosseguir. Minhas mãos ainda estavam tremendo, e eu me sentia incapaz de falar.
— Que foi? O gato comeu a sua língua? Você não tem nada a dizer?
— Posso ser novo na cidade, mas eu sei, sim, sobre o Hob... — Respirei fundo para manter a voz controlada. — Ele já aterrorizou pessoas no sul, em lugares tão longes quanto Mypocine. E matou gente de lá também.
— Posso te perguntar uma coisa?
Fiz que sim com a cabeça.
— Por que você veio para cá? Ansioso para lutar na Arena 13, né?
— Claro! É o que eu mais quero na vida. Foi por isso que eu fui embora de Mypocine.
— Você precisa saber que o Hob representa um perigo em especial na Arena 13. Meu pai nem sempre diz isso aos novatos, mas acho que você deveria ser avisado. De vez em quando, o Hob aparece por lá e desafia um combatente min. Ele faz uma enorme aposta, e as casas de jogo são obrigadas a aceitá-la. Nesses dias, o Hob sempre vence... Morto ou vivo, o perdedor é levado para o covil do Hob e nunca mais é visto. Um dia, esse pode ser o seu destino... Ainda quer lutar lá?
Na pior das hipóteses, o que Kwin acabara de me dizer me deixou ainda mais determinado.
— Sim, ainda quero lutar na Arena 13. O perigo do Hob não vai me fazer perder a coragem.
— Eu sinto exatamente a mesma coisa. Gostaria de poder lutar lá — desabafou Kwin.
7
Uma leve decepção
“Pilha” é o termo utilizado para uma sequência de código Nym.
Um modelador pode acrescentar ou subtrair dela.
Novos códigos sempre são posicionados no topo de uma pilha.
Manual de Nym
Saímos das alturas da Roda, mas não descemos até a escada. Kwin me levou por uma porta diferente.
— Estamos agora no telhado das treze arenas — disse ela, apontando para o grande salão circular. Vi um imenso poste de madeira que se elevava verticalmente a partir do centro, perdendo-se na vastidão sombria e escura da abóbada, em algum ponto bem acima das nossas cabeças.
— Aquilo é chamado de Onfalo — declarou Kwin, indicando o grande poste. — É o centro da Roda. Alguns dizem que é o próprio centro de Midgard.
Pregada no grande poste, havia uma série de avisos cobertos de nomes e números.
— São as Listas? — perguntei, enquanto andávamos em direção ao Onfalo. Lembrei que Tyron me dissera que elas ficavam no andar no qual estávamos.
— São — respondeu Kwin. — Novas listas saem toda semana. Ali agora está divulgada a ordem dos combates desta semana. É a primeira semana da temporada da Arena 13 deste ano. Alguns são desafios publicados, outros foram colocados ali pelas autoridades que decidem quem deve lutar contra quem, dependendo da classificação dos lutadores. Olha aquela ali... — Ela apontou para uma que continha apenas dois nomes em um papel com uma espessa borda preta. — Significa um ajuste de contas, uma luta que terminará com alguém perdendo a cabeça ou sendo cortado em pedacinhos!
— Eu vi um ontem — contei, balançando a cabeça. — Não posso acreditar que eles façam isso. Não faz sentido!
— Tem gente que é idiota. — sibilou ela. — Acontece duas ou três vezes em cada temporada. Um cara que luta na Arena 13 cisma com você e o desafia para um combate até a morte. Se aceitar, a sua vida corre um risco. Essa é outra coisa que o meu pai não permite. Nenhum dos combatentes dele é autorizado a lutar em ajustes de contas. Na minha opinião, é uma das regras boas que ele impõe.
Sorri e concordei com a cabeça. Voltamos para a escada e, alguns minutos depois, chegamos de novo ao térreo, saindo na sombra da imensa Roda, com suas altas paredes de madeira se curvando diante e atrás de nós. O ar da noite estava fresco.
— Você foi uma leve decepção. Não é nem um pouco o que eu estava esperando — confessou Kwin, enquanto íamos andando.
— O que você estava esperando? — perguntei com raiva, pego de surpresa.
Pensei que estivéssemos nos dando bem. Kwin parecia ter se aberto comigo no topo da abóbada, mas ela era totalmente imprevisível.
— Eu estava esperando alguém legal que correria riscos e tornaria a vida neste quinto dos infernos mais interessante. Mas você tem tanto medo do meu pai, que nem se atreveu a tomar um gole de vinho! Garotos que obedecem a regras são chatos, sabe?
Simplesmente dei de ombros e deixei para lá.
Por que entrar em uma briguinha insignificante e dizer coisas de que eu me arrependeria mais tarde? De que adiantaria?
Alguns grupos de pessoas ainda estavam vadiando por ali e eu via agora umas grandes carroças estacionadas nas proximidades. O ânimo entre nós azedara. Kwin apertou o passo nos blocos de concreto e eu a segui em silêncio, com os sapatos fazendo um ruído de trituração enquanto eu andava.
De repente, vinda das sombras entre as carroças, uma figura entrou no nosso caminho, indo na direção de Kwin. Perguntei-me se ela não a conhecia, mas a tensão de seus ombros me fez duvidar. Embora o rosto do homem estivesse na escuridão, dava para ver que era grande. Ele se aproximou titubeando um pouco, até parar bem na frente de Kwin. Mesmo de trás, eu conseguia sentir o cheiro de cerveja azeda no hálito dele. Não parecia ser uma abordagem amigável.
Comecei a avançar com a intenção de me colocar entre ele e Kwin, mas não tive a oportunidade.
Quando o homem se atirou para cima dela, vi algo brilhar ao luar. Kwin estava segurando uma faca na mão direita.
Houve uma rápida agitação, e, em seguida, tudo já tinha acabado. Kwin deu o bote e o homem caiu, estatelando-se de costas no chão. Ele gemeu e se levantou desajeitadamente, e eu vi o sangue escuro escorrendo pela sua testa e descendo pelos olhos. Kwin deu outro passo na direção do homem, ameaçando-o com a faca.
— Você cometeu um grande erro. Ou piora as coisas ou cai fora! A escolha é sua! — sibilou ela.
Ele levantou as duas mãos e recuou, esvanecendo-se rapidamente nas sombras.
— Você cortou o cara! — deixei escapar, espantado.
Kwin balançou a cabeça, sorrindo provocativamente:
— Não, apenas bati na testa dele com o cabo. Ferimentos na cabeça sangram muito. Parecem muito mais graves do que são. Sendo lutador de bastão, você deveria saber disso.
— Você sempre carrega uma faca? — perguntei.
— Sempre! Essa tem uma lâmina Trig. Eu me sentiria nua sem uma faca.
Observei-a deslizar a faca dentro da manga comprida do vestido.
— Carregue uma você também. Um dia, vai precisar — aconselhou ela.
— Não posso, tenho que jurar que nunca vou utilizar nenhuma lâmina fora da arena.
— Bom, eu não preciso me preocupar, já que eles não me deixam prestar esse juramento — retrucou Kwin, amargamente.
Voltamos para a casa de Tyron andando em silêncio. Segui Kwin até o seu quarto e, depois, passei para o meu, pela porta contígua. Quando ela a trancou às minhas costas, ouvi uma risada vinda da escuridão à minha direita.
— Ih, vocês voltaram cedo! Não espere um segundo convite — debochou Palm.
Ignorei-o e me deitei na cama. Demorei muito até conseguir cair no sono.
— Este quarto está fedendo a meia suada! Hora de acordar!
Abri os olhos e vi as cortinas sendo puxadas, inundando o quarto com a luz do sol. Em seguida, a janela foi aberta com um estrondo, e eu senti o ar frio bater no meu rosto.
O rosto de Teena sorriu para mim.
— Bom dia, Leif. Coloquei uma muda de roupa no pé da sua cama — avisou ela.
Antes que eu pudesse lhe desejar bom dia também, a moça sumiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
— Ela nunca bate antes de entrar — resmungou Palm, arrastando-se para fora da cama. — A gente não tem a menor privacidade neste lugar!
Não sei por que ele estava resmungando. Teena era realmente legal. Era bom ter uma mulher assim, agradável e atenciosa, por perto. Senti uma súbita pontada de dor ao me lembrar da minha mãe e de como ela me amara e cuidara de mim. Às vezes eu achava que acabaria aceitando a morte dela, mas aí a tristeza voltava do nada com uma intensidade que era quase insuportável.
— Para onde a Kwin te levou ontem à noite? — perguntou Palm.
— Para a Roda — respondi.
— O que ela te mostrou?
— Fomos a um bar onde tinha gente dançando. Aí, depois de irmos bem ao topo da abóbada, ela me mostrou o Onfalo.
Palm não fez nenhum comentário. Simplesmente me encarou, com uma expressão de espanto no rosto. Talvez ele não tivesse passado pela mesma iniciação que eu.
Vesti as roupas que Teena deixara para mim. Eram grandes demais, mas, pelo menos, eram limpas e novas. Minhas roupas sujas e surradas haviam desaparecido. Provavelmente não valia a pena lavá-las.
Antes que eu pudesse amarrar os sapatos, Palm saiu do quarto. Eu nunca vira ninguém se aprontar tão rápido.
— Qual a pressa? — perguntei a Deinon.
Houve um longo silêncio. Pensei que ele não fosse responder, mas, então, ele se pôs a falar.
— Não temos muito tempo para o café da manhã. E, se você descer atrasado, não come... — De repente, ele me abriu um sorrisinho. — Você acabou de aborrecer o Palm. A Kwin leva todo novo discípulo à Roda, mas nem o Palm, nem eu tivemos o privilégio de subir ao topo da abóbada. Ela deve ter usado uma das chaves do pai.
Vi Tyron em pé perto da porta, enquanto eu seguia Deinon até a sala de jantar. Se a comida fosse tão deliciosa como no jantar da noite anterior, então, eu queria me certificar de receber o meu quinhão.
— Quero ver todos vocês na área de treino em dez minutos — anunciou Tyron. — Não se atrasem! Você vai precisar tirar os sapatos e as meias antes de entrar, Leif. Pés descalços proporcionam maior aderência. Vou te arrumar botas Trig no final do mês. Isto é, se você ainda estiver conosco.
Dito isso, ele se retirou.
Palm, já sentado à mesa, nem se deu ao trabalho de disfarçar seu prazer ao ouvir o comentário mordaz com o qual Tyron se despediu de mim, e uma onda de raiva me invadiu. Ele me relembrara de que eu estava ali apenas em período de teste. Até aí, tudo bem. Mas eu subitamente me dei conta de que Palm queria que eu me desse mal.
O café da manhã consistiu meramente em torradas e alguns ovos cozidos, mas eu estava com fome, e cada bocado estava gostoso.
Palm engoliu o seu café e saiu apressado sem dizer uma palavra.
— Ele gosta de ser o primeiro a chegar, para ser bem visto pelo Tyron — explicou Deinon. — Mas não faz diferença, pois o Tyron é justo. Contanto que você não fique enrolando no café da manhã, acho que ele não liga para quem desce primeiro.
Sorri para Deinon e acenei com a cabeça. Ele falara sem ser solicitado. Talvez fosse tímido. Seria apenas questão de tempo para conhecê-lo melhor.
A área de treino não tinha janelas e era iluminada por tochas presas no alto das paredes, e não em um candelabro. Também não havia uma galeria ou as duas imensas portas através das quais os combatentes entravam. Fora isso, era uma réplica exata da Arena 13: cinquenta passos de comprimento por vinte e cinco de largura, ocupando todo o primeiro andar da casa de Tyron. Era incrivelmente impressionante, e eu fiquei animadíssimo com o que estava me esperando.
Tyron e Kern estavam parados um ao lado do outro. Palm estava diante deles, com as mãos juntas nas costas. Em um canto, vi um lac em pé e perfeitamente imóvel, com a cabeça inclinada. Sua armadura estava arranhada e amassada, como se tivesse participado de muitas lutas, provavelmente no campo perdedor. Havia um corte profundo no elmo, bem acima dos olhos, como se alguém tivesse utilizado um machado para tentar partir a sua cabeça ao meio.
Segui Deinon pela área e fui me posicionar ao lado de Palm.
— Esta é a melhor área de treino da cidade — disse Tyron, orgulhoso. — Você vai dar um duro danado aqui, mas o esforço será recompensado mais tarde. Os meus dias são muito cheios, e eu passo bastante tempo na Roda treinando os meus combatentes e modeladores adultos, além de trabalhar no meu escritório no edifício administrativo. Então, Kern será o seu principal treinador aqui. Você terá o prazer da minha companhia nas quintas-feiras. Agora, Leif — continuou ele —, tenho uma pergunta para você: quais são as regras quando se luta na Arena 13? Você viu o Trig em ação. Agora, diga-me sucintamente do que se trata.
— Três lacs lutam juntos contra um único lac... — Escolhi as minhas palavras com cuidado, reprisando na minha mente a luta que eu vira na noite anterior. — Um combatente humano fica atrás de três lacs na posição “mag”, e o seu adversário é defendido por um lac solitário na posição “min”. Depois de cinco minutos, sinalizados pelo gongo, os combatentes devem se colocar na frente dos seus lacs e passar a lutar ali. Derramar sangue humano significa vitória. Normalmente, isso é realizado no final do confronto, com um corte ritual seguro no combatente derrotado. Mas, em um ajuste de contas, o objetivo é matar.
— Boa explicação, Leif — elogiou Tyron. — Agora, você tem alguma pergunta a me fazer?
— Por que, afinal, precisamos dos lacs? Por que os combatentes humanos não lutam simplesmente uns contra os outros cara a cara, assim como nas lutas de bastão?
Houve um longo silêncio, e, de rabo de olho, pude ver Palm dando um sorrisinho afetado. Senti um calor queimar o meu rosto. A minha pergunta de repente pareceu tola. Era só o jeito como as coisas sempre haviam sido. Talvez Tyron fosse me considerar como um idiota.
Mas a sua resposta foi inesperada.
— Por que você não reflete cuidadosamente sobre a questão, Leif, e encontra a sua própria resposta? No final do seu mês de teste, antes de eu decidir se te mantenho como discípulo ou não, você pode me dizer as suas conclusões, e eu dividirei as minhas com você. Agora, o seu treinamento vai começar.
Ele foi em direção à porta no canto da sala, mas, em vez de ir embora, encostou-se na parede, para nos observar. Obviamente queria ver como seria a minha primeira sessão de treinamento, pensei eu, com uma ponta de angústia.
O que aconteceu nos minutos seguintes iria desempenhar um grande papel na hora de decidir o resultado do meu mês de teste.
8
A reverência
Um verbati é a unidade básica da antiga linguagem de modelação chamada Nym.
Verbatis contêm outros verbatis.
Chamar um verbati é chamar tudo o que está integrado nele, tanto o manifesto quanto o oculto.
Manual de Nym
Kern sorriu para cada um de nós. Finalmente, seus olhos se fixaram em mim.
— Seja bem-vindo, Leif. A maior parte do que veremos nesta primeira aula obviamente será novidade para você, mas, para Palm e Deinon, será revisão. Tenho certeza de que eles não se importam.
Ele foi se postar na frente do lac de armadura.
— Acordado! — ordenou Kern, fazendo o lac erguer a cabeça, com os olhos cintilando por trás da fenda horizontal na armadura do rosto.
Senti um leve mal-estar se agitar em mim, mas menor do que na primeira vez em que me deparei com um lac. Isso era um bom sinal. Eu precisava me sentir à vontade perto daquelas criaturas. Iria trabalhar muito com elas.
Kern virou-se novamente de frente para mim e explicou:
— Esse comando, “Acordado”, é só um verbati em Nym. Nym é o nome da linguagem que empregamos para modelar os lacs. Anote a ortografia: v-e-r-b-a-t-i. Não se deve confundir com v-e-r-b-e-t-e, que se refere a unidades da fala humana comum. Agora que o lac está acordado e receptivo, vou mandá-lo verificar a sua prontidão para o combate e, depois, me relatar a sua condição.
— Autoverificação — ordenou Kern e, alguns instantes depois: — Relatório!
— Pronto — informou o lac.
Eu nunca ouvira um lac falar antes. Sequer sabia que eles eram capazes disso. A voz que saiu de trás da máscara de metal era áspera e gutural.
— Postura de combate! — disse Kern.
O lac obedeceu. Kern virou as costas e foi até a coleção de armas e peças de armadura que estavam penduradas na parede. Ele estendeu o braço e tirou duas facas Trig de lâmina curta de suas bainhas de couro.
Ele passou energicamente pelo lac, segurando as facas com as pontas viradas para o chão. Com um gesto quase desleixado, ele deixou a faca da mão esquerda cair. A ponta se cravou no chão de madeira e vibrou à luz tremeluzente das tochas. O lac não se mexeu.
— Pegar arma — ordenou Kern suavemente. Porém, quando o lac se curvou para obedecer, ele empurrou o cabo maliciosamente para baixo, com o pé, até a faca se envergar, quase tocando o chão. Em seguida, retirou o pé de súbito, fazendo com que ela saltasse feito uma mola e ficasse balançando loucamente. Por três vezes, os dedos da criatura tatearam desajeitadamente buscando a faca. A arma já estava quase parando quando, enfim, o lac conseguiu pegá-la.
Kern se virou para nós:
— Como vocês podem ver, as reações dele foram deliberadamente ajustadas de modo a ficarem mais lentas, para fins de treinamento, para que seja mais fácil para vocês. Mas não tão fácil — acrescentou, sorrindo sinistramente.
Vi que Palm estava dando aquele sorrisinho afetado de novo. Deinon também estava arreganhando os dentes. Eles sabiam o que iria acontecer nessa sessão de treinamento e, sem dúvida, estavam esperando para ver como eu lidaria com as situações. Tyron ainda estava lá, observando. Ele também permaneceria ali me julgando.
Kern se virou novamente de frente para o lac, levantando a faca da mão direita na direção dele. Com o punho esquerdo fechado, ele bateu forte no próprio peito.
— Procurar alvo! — ordenou ele. — Cortar carne humana!
Quando o lac ergueu a faca e avançou ameaçadoramente, Kern deu dois passos para a esquerda e dois para a direita, arrastando os pés. Parecia um passo de dança.
Mas depois, ele começou a recuar, movendo-se diagonalmente para a direita, com as botas tamborilando com ritmo no chão. A criatura atacou de repente, investindo com a faca na direção do peito de Kern. Porém, no momento em que ela avançou para cima dele, Kern já invertera sua posição. A lâmina de sua arma relampejou subitamente ao refletir a luz das tochas.
Ele deu um impulso e enterrou a faca no encaixe da garganta do lac. A criatura desabou imediatamente, produzindo uma cacofonia de metal retinindo, e sua pesada queda reverberou pelo chão de madeira.
— Fimencerrado — disse Kern, virando-se de frente para nós. — “fimencerrado” é um verbati que deixa um lac inconsciente. Nós o chamamos automaticamente quando uma lâmina é inserida no encaixe de garganta. Como eu disse, rapazes, este é um lac que foi modelado para treino. De qualquer forma, observem de novo o que eu fiz...
Lado a lado com Palm e Deinon, imitei Kern enquanto ele dava dois passos para a esquerda e dois para a direita, executando-os lentamente, consciente de que os olhos de Tyron estavam me examinando.
— Esta sequência permite que você mantenha uma margem de manobra. A diagonal inversa pode ser feita para a esquerda ou para a direita, mas vou fazê-la para a direita novamente, do mesmo jeito que antes...
Mais uma vez, as botas de Kern retumbaram nas tábuas, e nós, os três discípulos, o imitamos. Então, ele retrocedeu, retornando quase ao mesmo ponto, e deu uma punhalada para cima com a faca.
— Nas lutas da Arena 13, o seu adversário e o lac ou lacs que o defendem conhecem esses modelos. Eles tentarão prever qual você utilizará em seguida e exatamente onde tais modelos te posicionarão na área de combate. Dançando com o seu próprio lac, você deve tentar enganá-los ou despistá-los. O seu objetivo é estar em outro lugar quando eles atacarem. Aí você contra-ataca, posicionando o seu lac onde ele puder causar o máximo de estrago. Os passos são muito velhos, Leif... — Ele olhou diretamente para mim. — São os princípios básicos de modelos muito mais complexos. Você vai praticar esses passos até eles estarem perfeitos, mesmo que tal perfeição demore muito para ser alcançada. Os seus colegas sabem disso por experiência própria.
Vi pelas expressões nos rostos de Palm e Deinon que Kern os fizera repetir os passos mil vezes até eles enjoarem.
— Agora — continuou Kern —, vamos fazer uma brincadeirinha. Não há o menor risco de sair gravemente ferido. Considere isso meio que como um desafio.
Ele se abaixou e retirou a faca do encaixe de garganta do lac, que continuou imóvel.
— Acordado! Em pé! — ordenou ele. Enquanto a criatura se levantava desajeitadamente, ele foi guardar a adaga na bainha e pendurá-la na parede. Kern voltou trazendo uma bola de couro mais ou menos do tamanho de uma cabeça humana.
Ele a jogou na minha direção sem avisar. Entrando rapidamente em ação, peguei-a, afundando os dedos no couro. A bola era macia, mas pesada, e eu notei que ela tinha uma alça de couro costurada de modo que uma mão pudesse ser enfiada ali.
— Por enquanto, o lac vai utilizar isso, em vez de uma faca. Mesmo assim, se o seu desempenho for ruim, você acabará tendo uma dor de cabeça. Você primeiro, Palm. — Kern entregou a faca a ele e deu a esfera de couro ao lac.
Palm executou os passos impecavelmente, com os pés tão leves quanto os de Kern. No final da diagonal direita inversa, ele golpeou para cima com a faca. Aquele garoto era bom. Muito bom. Fiquei preocupado. Sua superioridade se fundamentava em habilidade. Voaram faíscas quando a ponta da lâmina se chocou contra a borda do encaixe de garganta em metal, mas ela não entrou.
Palm tentou se esquivar — e quase conseguiu —, mas o lac balançou a bola de couro e lhe desferiu um golpe oblíquo no lado da cabeça. O exercício terminara.
— Muito bom. Parabéns! Daqui a pouco você chega lá — disse Kern, sendo generoso em elogios. — Não vai demorar muito para você conseguir.
Palm deu um sorrisinho forçado, mostrando os dentes. Ele ficou obviamente satisfeito de ouvir aquilo.
Deinon simplesmente provou o quão bom Palm se revelara. Ele era relativamente desajeitado ao se movimentar, e a pesada bola de couro esbofeteou o seu rosto com tanta força, que o pobre coitado foi arremessado no ar. Atordoado, ele se sentou com dificuldade, e Kern teve que ajudá-lo a se levantar, enquanto Palm ostentava um sorrisinho ao fundo. Pacientemente, Deinon balançou a cabeça para tentar desanuviá-la enquanto se colocava de pé, lançando um sorriso amargo para mim.
— Então tá, Leif. Vamos ver o que você consegue fazer... — disse Kern, entregando-me a faca.
Peguei a arma e me posicionei de frente para o lac, com o coração martelando forte dentro do peito. Eu estava me sentindo constrangido, consciente de que os olhos de todos naquela sala estavam me observando com a intenção de ver do que eu era capaz. A presença de Tyron era a que mais me incomodava.
No entanto, ninguém estava me perscrutando tão atentamente quanto o lac, cujos olhos assustadores brilhavam por trás da fenda horizontal preta na armadura facial.
Encarei de volta aqueles olhos estranhos, respirei fundo e me desloquei de acordo com o modelo da dança, concentrando toda a minha atenção nela. Dois passos para a esquerda. Dois passos para a direita.
O lac já estava vindo na minha direção, mas, em vez de recuar, dei mais dois passos para a esquerda. Eu estava apenas agindo, não pensando. Meus pés estavam guiando a mente. Comecei a recuar diagonalmente, mas para a esquerda, em vez da direita.
O lac veio rápido atrás de mim, já começando a balançar a bola de couro. Retrocedi subitamente, com os pés descalços batendo forte nas tábuas. Esquivei-me, e a bola passou muito perto do alto da minha cabeça. A corrente de ar provocada pela sua passagem me deu a impressão de dedos alisando o meu cabelo, mas ela não me acertou.
Aproximei-me do lac e dei uma punhalada na direção do seu encaixe de garganta. A lâmina se inseriu com dificuldade, sacudindo a minha mão, e o choque percorreu todo o meu braço, chegando até o ombro. E esse foi o fim.
Quando o lac caiu, a faca foi arrancada do meu poder. A criatura desmoronou com um baque quando o verbati fimencerrado foi chamado, resposta automática provocada pela modelação na mente do lac.
Exultante, fiz uma profunda reverência perante o lac. Isso era algo que o meu pai fazia quando lutávamos com bastão e que eu adotara e passara a fazer automaticamente após cada luta de bastão. Depois de um tempo, a moda pegou, e todos os rapazes da minha terra natal se puseram a segui-la também.
Ouvi a porta se fechando, deixando um silêncio na área de treinamento. Quando me endireitei, vi que Tyron fora embora. Kern estava me fitando com espanto, Deinon também. Mas, nos olhos de Palm, ardiam apenas inveja e ódio.
Eu acabara de ganhar um inimigo.
9
Para completos iniciantes
Artífices são adeptos com a habilidade de modelar os verbatis em Nym.
Os primeiros artífices eram ur-humanos.
Eles desenvolveram o poder deles até o auge na Era Secundária do Império.
Manual de Nym
A manhã transcorrera bem. Eu estava com um verdadeiro sentimento de triunfo por ter feito o lac se ajoelhar aos meus pés. Era uma coisa que Palm não conseguira fazer, apesar de ter sido treinado durante meses, enquanto eu era um completo novato.
A tarde foi dedicada à habilidade de modelar. Este era um exercício que eu não estava nem um pouco animado para praticar, pois tinha certeza de que acharia difícil.
Cada um de nós tinha uma pequena sala de estudos na qual podíamos trabalhar. Kern me deu um fino manual: uma introdução à modelação em linguagem Nym para completos iniciantes.
Ele me deu um tapinha nas costas e sorriu.
— Apenas dê uma lida nas primeiras páginas e assimile o máximo que puder, Leif. Mesmo nesse formato simples, não é fácil. Então, não se preocupe. Simplesmente dê o melhor de si. Se não entender alguma coisa, podemos conversar mais tarde.
Kern me deixou sozinho, então, abri o livro e comecei a ler.
DICIONÁRIO DE NYM
O DICIONÁRIO TOTAL de Nym (informalmente denominado “Nym Gordo”) está continuamente crescendo. Ele não existe em um único local e é potencialmente infinito. Também é amplamente distribuído. Veja a seguir alguns locais nos quais podem ser encontrados segmentos dele:
1. Verbatis estão integrados em cada simulacro comprado do Comerciante.
2. Novos verbatis são criados combinando verbatis existentes.
3. Novos verbatis podem ser criados a partir de primitivos por um modelador hábil.
4. Alguns verbatis são criados por modeladores e, até serem integrados em um simulacro, existem apenas no cérebro deles.
O DICIONÁRIO ESSENCIAL de Nym (informalmente conhecido como “Nym Magro”) existe na mente de cada simulacro comprado do Comerciante.
Li essa primeira página cerca de três vezes, tentando entendê-la. Depois, virei para a segunda página, temendo o que encontraria.
Era ainda pior.
COMO CRIAR UM NOVO VERBATI
Esta é a maneira de marcar o início da definição de um novo verbati.
Começar com : expresso por Dois pontos
Terminar a definição de um novo verbati com ; expresso por Ponto e vírgula
Veja a seguir uma lista de alguns verbatis existentes, que podem dar forma e orientar o movimento de um simulacro:
PassoF1 {significa dar um passo para a frente}
PassoD3 {significa dar três passos para a direita}
PassoE2 {significa dar dois passos para a esquerda}
Procuraralvo {significa decidir qual é o alvo mais acessível (lac adversário ou combatente humano) e atacar}
Cortarcarne {modifica o comando anterior e dirige o lac para atacar o combatente humano}
Agora, veja abaixo a criação de um novo verbati, “Temerário”, que combina a seleção dos verbatis preexistentes acima. Observe a utilização do * para ligar os verbatis dentro da definição.
: Temerário — PassoE2 * PassoD3 * PassoF1 * Procuraralvo * Cortarcarne ;
O segmento acima denomina o novo verbati de “Temerário”. Ele ordena ao lac dar dois passos para a esquerda, três passos para a direita e depois um passo para frente, seguido por um ataque direto ao adversário humano.
O novo verbati precisa ser COMPILADO:
Pronuncie o verbati COMPILAR {que integra o novo verbati no cérebro do lac em uma forma que possa ser Chamada. Chamar um verbati é ordenar que o lac o coloque em prática}.
Agora CHAME o verbati. O verbati é chamado simplesmente pronunciando o seu nome (Temerário). Obviamente, isso não é dito em voz alta durante o combate. O verbati é sinalizado ao lac usando o ULUM, um código tamborilado pelas suas botas no chão da arena.
Dei um suspiro...
Deinon estava começando a se mostrar um pouquinho mais comunicativo e, na hora do almoço, explicou o “Ulum” para mim, enquanto Palm, emburrado, comia na outra ponta da mesa.
Os lutadores não falavam com seus lacs durante o combate como Kern fizera na nossa sessão de treinamento. Em vez de gritarem um verbati para controlar o movimento deles, batiam no chão da arena com as botas. O jeito com que o faziam era um código que era preciso desenvolver por si próprio e memorizar; um código que o adversário e os lacs deles não pudessem entender. Então, entendi a ideia geral. Mas, quanto ao resto, fiquei totalmente desmotivado. Era difícil pra caramba! Eu sabia que nunca me tornaria um modelador, porém, mesmo sendo um combatente, ainda precisaria de um nível de competência básico em modelação. Precisava entender como funcionava.
Será que algum dia eu conseguiria? Parecia um baita obstáculo para concluir o meu treinamento com êxito.
Um depois do outro, descemos para a nossa aula particular com Kern. Deinon voltou de sua aula e deu umas batidinhas na porta para me dizer que estava na minha vez. Agradeci e desci as escadas.
O escritório de Kern tinha o dobro do tamanho da minha sala de estudos. Na parede, estava pendurado um quadro de Teena segurando o filho deles no colo. Ela sorria no retrato e parecia muito feliz. Era uma imagem extremamente realística.
Sentei-me de frente para Kern, do outro lado da mesa de madeira. Ele sorriu para mim afetuosamente.
— O que você achou do manual?
Não fazia sentido fingir que captara tudo, portanto, lhe disse a verdade.
— Achei muito difícil. Não consegui entender nada em algumas partes. Aquele verbati exemplificado... Por que ele se chama “Temerário”? — perguntei.
Kern sorriu.
— O manual está sendo levemente espirituoso. Se você ordenasse ao seu lac “Cortarcarne”, tal como definido ali, na posição min, seria quase certamente derrotado em segundos. Haveria três lacs defendendo o seu adversário, mas o seu lac ignoraria todas as medidas defensivas e partiria diretamente para cima dele. Seria estupidez fazer isso. O manual só estava demonstrando como um novo verbati é composto.
“Olha, não fica se preocupando com isso, Leif. Você talvez nunca se torne um modelador. Pouquíssimos têm a capacidade de desenvolver essa habilidade ao nível máximo. Eu, certamente, não tenho. Mas você não precisa necessariamente modelar verbatis, só precisa saber usar os que foram criados para você. Eu sei o suficiente para te ensinar os princípios, mas, se você tiver bastante talento, então o Tyron teria de assumir as rédeas em um estágio seguinte. Ele é provavelmente o melhor modelador da cidade”.
Esse não era nem um pouco o jeito como eu queria que as coisas se dessem. Eu queria lutar e a minha expressão devia ter me entregado, pois Kern continuou:
— Pelo que eu vi mais cedo, julgando pela sua rapidez e agilidade, suponho que você tenha mais probabilidade de acabar lutando na arena. Mas, nunca se sabe, só o tempo nos dirá. Enquanto isso, você precisa, ainda assim, aprender algumas habilidades e saber de que se trata a linguagem Nym. Então, vou começar com uma pequena história hoje.
— Vou precisar fazer anotações? — Seguindo as instruções, eu trouxera o meu material de escrita comigo.
— Você terá de escrever trabalhos e redações sobre as coisas que discutiremos, mas eu desaconselharia tomar notas agora — disse Kern. — É melhor se concentrar e memorizar o que você vai aprender. Treine utilizar o seu cérebro desse jeito. Os melhores modeladores e artífices guardam na cabeça sequências inteiras de verbatis. Dessa forma, você os possui e nunca precisa ir pesquisar. Eles ficam imediatamente acessíveis. E pode me fazer quantas perguntas quiser enquanto eu for contando a história. Você precisa assimilar tudo direitinho na mente.
Fui direto ao ponto.
— Não entendo muito bem a função dos artífices. Qual a diferença entre eles e os modeladores? — perguntei. Eu me sentia mais à vontade fazendo perguntas a Kern. Ele não tinha nada da rispidez brusca de Tyron.
— Os artífices são mestres modeladores, extremamente habilidosos na linguagem Nym. Muitas vezes, assim como Tyron, eles contratam vários outros e têm uma equipe inteira de combatentes, dos quais alguns têm habilidade para modelar, e outros, para lutar. Vamos começar agora considerando a Nym e como ela se desenvolveu. Os antigos atribuíam um nome diferente aos modeladores. Eles os chamavam de “programadores” ou “codificadores”. Acredita-se que eles costumavam utilizar os dedos de determinada forma para modelar máquinas de combate móveis que eram feitas de metal. Não se sabe como isso funcionava, mas supõe-se que era algo do tipo. Eles modelavam em uma coisa chamada “teclado”.
Kern fez uma demonstração colocando as mãos uma ao lado da outra em cima da mesa e tamborilando ritmadamente com os dedos na madeira.
— Claro, hoje utilizamos uma IAU, que significa Interface Áudio de Usuário. Nós empregamos as nossas vozes e dizemos palavras diretamente aos lacs, palavras que eles podem ouvir, assimilar e depois encaixar nos modelos básicos que eles já têm dentro de si.
— Como os lacs foram inventados? — indaguei. Gostaria de ter passado mais tempo questionando o meu pai sobre esse assunto, de modo a ficar mais bem preparado. Havia tantas coisas que eu queria lhe perguntar! Mas agora era tarde demais.
— Boa pergunta, Leif. Até onde sabemos, os responsáveis foram os militares. Eles começaram programando máquinas de guerra em metal chamadas “ibots”, mas, depois, as substituíram por lacs, que são realmente protótipos djinnis, porém, inferiores até mesmo à mais medíocre daquelas criaturas. Finalmente, os djinnis foram gerados. Considera-se como provável que a carne tanto dos lacs quanto dos djinnis foi cultivada em grandes tanques. Ela às vezes é chamada de “carne falsa”. Por volta daquela época, a linguagem de modelação chamada Nym foi desenvolvida. Ela evoluiu a partir de várias linguagens de programação, mas, principalmente, da “FORTH”, que foi criada há muito tempo por um programador chamado Charles H. Moore.
“O resto é história, embora haja diversas versões dos acontecimentos reais, dependendo de qual historiador você ler. A crença mais comum é que, após as guerras entre as nações de humanos, eles passaram a utilizar os djinnis para lutar no lugar deles. Os djinnis se rebelaram e, então, lutaram contra os humanos, até nós sermos derrotados. Em seguida, essas criaturas construíram a Barreira e aprisionaram os poucos humanos sobreviventes ali dentro. Eles nomearam um protetor para governar Midgard em nome delas. Muito conhecimento foi perdido. Não pudemos mais cultivar os nossos próprios lacs, mas fomos autorizados a comprar lacs do Comerciante. Somente ele pode transpor a Barreira para lá e para cá. No entanto, não temos mais a habilidade de fazer com que os lacs que compramos se tornem sensíveis.”
A aula foi encerrada com Kern tentando me ensinar alguns dos Nym primitivos, as peças fundamentais da linguagem. Ele era um bom professor e tinha muita paciência, mas eu era um péssimo aluno. Nunca tivera jeito para linguagem e leitura, e aquilo era a coisa mais complexa que eu já tentara aprender na vida. Alguns dos verbatis eram difíceis de pronunciar e eram expressos com o sotaque rebuscado e claro do norte. O meu sotaque do sul só complicaria as coisas. Se eu não conseguia nem dizê-los corretamente, como eu poderia esperar falar com um lac e modelá-lo?
Talvez eu não fosse adquirir nunca as habilidades necessárias para concluir o meu treinamento...
Naquela noite, quando eu estava prestes a me despir, escutei três batidinhas vindas do quarto de Kwin.
Deinon deu um sorrisinho e ergueu as sobrancelhas para mim, mas o queixo de Palm caiu quase até as suas botas. Ele não esperara que Kwin me convocasse novamente. Ele não trocara sequer uma palavra comigo desde a nossa manhã na sala de treinamento, e, agora, os seus olhos quase mudaram de azul para verde com a intensidade da raiva que ardia neles.
Perguntei-me qual era o problema. Fazia sentido que ele estivesse se sentindo irritado por eu ter derrubado com sucesso o lac na sala de treinamento, enquanto ele não conseguira, mas qual era o problema agora? Será que Palm gostava de Kwin? Talvez ele tivesse esperado apenas uma batida, significando que ela estava convocando a ele?
Simplesmente dei de ombros, como se não estivesse dando a mínima. Ainda estava aborrecido com Kwin pelo jeito como ela me agredira após a nossa saída à noite, mas não consegui reprimir um arrepio de emoção.
Postei-me próximo à porta antes mesmo de a chave girar na fechadura. Kwin era imprevisível e agressiva, mas eu não podia ignorar o fato de que queria vê-la de novo.
Mais uma vez, entrei em seu quarto. Só que, dessa vez, ela não estava usando vestido. Suas calças estavam presas aos tornozelos com fita preta, acima do que eram definitivamente botas Trig, e o seu cabelo estava puxado para trás firmemente. Mais uma vez, seus lábios estavam pintados de preto e vermelho. Até mesmo a sua cara emburrada era idêntica à que ela fizera na primeira vez em que eu a vira.
— Eu contra você, Leif. Uma luta de bastão para ver quem é o melhor. Ainda quer lutar? — desafiou. — Ouvi dizer que você deu um belo show na sala de treinamento hoje de manhã. Vamos lá, quero te ver em ação!
Fiquei apreensivo.
— Seu pai disse que não permite — declarei, arrependendo-me do trato que fizera com ela na noite anterior. — Posso acabar sendo expulso.
— É só discurso! Ele não se atreveria. Não se preocupe. Se um dia ele descobrir, consigo fazê-lo comer na palma da minha mão.
— Tem certeza? — perguntei. Eu estava preocupado, e com razão. O meu sonho de lutar na Arena 13 parecia bem mais perto de se concretizar após o meu primeiro dia de treinamento, embora a parte teórica tivesse sido difícil. Eu não queria pôr tudo em perigo.
— Tenho tanta certeza disso quanto de derrotar você...
Respirei fundo. Não tinha como Tyron descobrir. Kwin conhecia bem a cidade, e eu podia aprender com ela. Apesar de aquela garota ser complicada, eu gostava de tê-la por perto... E certamente não estava ganhando a amizade de Palm. Além disso, eu achava impossível resistir a um desafio. Uma parte de mim queria lutar e pôr Kwin no lugar dela. Eu sabia que era capaz de derrotá-la e estava doido para ver a cara dela quando isso acontecesse.
Acenei com a cabeça.
— Se é assim que você quer... Mas eu não tenho bastão. Dei os meus para um amigo. Achei que não fosse mais usá-los.
Peter era um bom lutador e um amigo bem próximo. Eu sentia falta dele e dos outros garotos com quem eu andava. Achava meio difícil acreditar que algum dia encontraria aquele tipo de camaradagem nesta cidade.
A expressão de Kwin ficou mais serena, e ela quase sorriu. Ela pegou uma trouxa de couro e me propôs:
— Pode escolher um dos que eu tenho aqui. Vamos lá lutar!
10
A sala dos ossos
Um golpe na cabeça significa vitória; apenas os maliciosos e cruéis visam os olhos ou a boca — um golpe desse tipo é desonroso.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
E lá estávamos nós cruzando a cidade novamente, com a lua minguante ainda quase cheia e muito grande e brilhante no horizonte. Tomamos um caminho diferente do da noite anterior, e, quando comentei isso, Kwin me disse que estávamos nos dirigindo para o abatedouro, e não para a Roda. As casas deram lugar a uma colcha de retalhos formada pelos currais, dos quais a maioria estava vazia, enquanto, lá no alto, o bloco sombrio do imenso edifício estava começando a preencher o céu, encobrindo a lua e devorando as estrelas. Dava para sentir um cheiro sufocante de estrume e suor animal que me obrigou a respirar pela boca, em vez de pelo nariz.
— Com certeza tem lugares melhores do que este para lutar — opinei.
— Lá dentro é bem iluminado e tranquilo a essa hora da noite — disse Kwin, notando a minha repulsa. — Depois do pôr do sol, é um dos lugares mais seguros de Gindeen. Ninguém vai nos importunar. Se lutarmos em outro lugar, vamos chamar a atenção.
À medida que nos aproximávamos, vi alguns empregados vestidos com aventais ensanguentados, mas eles nem repararam em nós, e ninguém veio nos questionar.
O fedor de sangue e excrementos ficou muito pior, e quase insuportável, quando entramos.
— Eles matam o gado ali — disse Kwin, apontando para uma imensa porta, que estava aberta para o céu da noite. Havia poças de sangue no chão e dois enormes martelos apoiados contra a parede. Do teto, uma corrente comprida pendia, com ganchos afiados. Ela ia até a parte de cima em um ângulo de quarenta e cinco graus, desaparecendo através de um grande buraco lá no alto. Havia uma corrente idêntica perto da parede do fundo.
— Tudo é feito bem rápido — explicou Kwin. — Uma pancada, e eles morrem. Dois segundos depois, as carcaças são arrastadas até ali, e eles cortam as gargantas. Aí, a corrente começa a se mover, transportando-as para os açougueiros no andar de cima. Mas nós vamos subir mais ainda. Aqui embaixo, eles nunca limpam direito, e o chão sempre fica escorregadio.
Kwin parecia estar se deleitando ao me fornecer todos os detalhes macabros. Dava para ela ver, pela minha cara, que eu não estava gostando. Será que a sua intenção era me causar um mal-estar e me pôr em desvantagem?
Senti gosto de bílis na garganta e engoli com dificuldade, brigando para controlar o meu estômago. Esperando não passar a vergonha de vomitar, segui Kwin até um canto no fundo da vasta sala, e começamos a subir. Não era tão alta quanto a abóbada da Roda, mas o caminho foi longo até chegarmos ao último andar.
— Esta é a sala dos ossos. Quando os animais chegam aqui, não resta nem um pedaço de carne neles. Tem uns tanques grandes nos quais os caras a cozinham. Uma parte vira patê ou sopa. É comida barata para os lacs — disse Kwin.
No meio da escuridão, vi ossos por toda a parte, amontoados em pilhas tão altas, que quase encostavam no teto. Alguns já estavam secos e amarelados, visivelmente velhos.
O cheiro de morte não era tão forte ali, e o meu estômago estava começando a voltar ao normal. Segui Kwin por entre as pilhas de ossos, até alcançarmos um canto no fundo. Ali, um amplo raio de luar brilhava através de uma grande abertura no teto, iluminando o suficiente para que pudéssemos nos enxergar claramente.
Kwin indicou uma larga canaleta de madeira ali perto e explicou:
— Os ossos descem dois andares. Uma parte é moída para fabricar cola, mas a maioria vira fertilizante. Nada é desperdiçado aqui.
Ela se ajoelhou, desamarrou a trouxa de couro que vinha carregando e a abriu no chão.
— Escolha um bastão — ofereceu.
Dentro da trouxa havia quatro bastões, muito parecidos com os que eu costumava usar em Mypocine. Ligeiramente mais compridos do que uma espada Trig, eles eram grossos na ponta e arredondados para diminuir as chances de ferimentos graves. Mesmo assim, lutas de bastão eram perigosas. Eu conhecia um garoto que perdera um olho. Ajoelhei-me, escolhi um bastão e esperei Kwin escolher o seu também.
— Então, o lac que você derrubou hoje... — disse ela, enquanto se levantava para me olhar de frente. — Foi muito bom você ter conseguido isso no primeiro dia, mas não será o suficiente. Eu também já derrubei um, mas o meu era de verdade, porque já estava pronto para a arena. O seu estava modelado só para treino. Era lerdo.
— Foi esse lac que cortou o seu rosto? — perguntei, pousando os olhos demoradamente na cicatriz dela.
Kwin fez que sim com a cabeça e comentou:
— Mas valeu a pena. Os homens que lutam na Arena 13 só têm cicatrizes nos braços. Eu arrumei uma melhor. O lac errou o meu olho porque eu me esquivei rápido demais para ele...
Essa versão era diferente da que eu ouvira de Palm (segundo a qual o pai chegara bem a tempo para salvá-la), mas ela, obviamente, não iria dizer mais nada sobre o assunto.
— Vamos até lá. — Ela indicou um lugar longe da canaleta. — Tem mais espaço e está mais claro. Ninguém vem aqui em cima durante o turno da noite. Não seremos incomodados.
Kwin me encarou durante um tempão antes de sair andando. Meu coração batia forte.
Segui-a até o raio de luar, que traçava uma área iluminada no chão.
Por mais extraordinárias que fossem as circunstâncias, uma onda de adrenalina me invadiu, como sempre acontecia antes de qualquer briga. Era estranho estar lutando contra uma garota, mas isso não mudava em nada a coisa mais importante: eu sempre lutava para vencer.
— Preparado? Melhor de três? — perguntou Kwin.
Confirmei com a cabeça, mas, então, sem avisar, ela atacou.
Eu ficara pensando sobre o que realmente acontecera quando Kwin enfrentara o lac. Em quem eu deveria acreditar, em Kwin ou Palm?
Em segundos, obtive a resposta.
Eu estava em uma luta para valer, e Kwin era rápida. Mais rápida do que todos os garotos com que eu já lutara antes.
Ela partiu para cima de mim, visando a minha cabeça. Quando desviei, perseguiu-me dançando, dando giros e mais giros, e desferiu um golpe na direção da minha têmpora esquerda. Esquivei-me para a direita.
Tarde demais, percebi o meu erro. O bastão estava agora na sua mão esquerda e me acertou acima do olho direito, fazendo-me ajoelhar. A pancada foi vigorosa e me embrulhou o estômago.
Kwin deu dois passos para trás.
— Primeiro sangue para mim — decretou.
Ela tinha razão. Eu me dei conta de que estava escorrendo sangue entre os meus olhos. Limpei a testa com o dorso da mão e me preparei para o próximo ataque.
Dessa vez, observei-a mais atentamente. Ficar passando o bastão de uma mão para a outra era uma tática que eu nunca vira antes, mas eu não cairia nessa armadilha de novo.
Kwin sorriu e passou o bastão rapidamente da mão direita para a esquerda e depois de volta para a direita. Era algo esperto, realmente habilidoso. Ela devia ter passado horas e horas praticando o movimento.
Concentrei-me intensamente, registrando tudo a seu respeito: a dança dos seus pés, a postura do seu corpo e depois os seus olhos; principalmente os seus olhos.
Eu estava pronto para o seu próximo ataque.
Kwin deu uma investida, procurando o meu queixo. Andei para trás, saindo do seu alcance, e então, retrocedi. Ela era veloz, mas eu era o melhor lutador de bastão de Mypocine.
Kwin não recuou depressa o bastante, e eu a atingi na testa com uma rápida pancada oblíqua, bem acima do seu olho direito. O ferimento era quase idêntico ao que ela me infligira. A garota cambaleou, mas não caiu. O sangue já estava pingando entre os seus olhos.
Ela sorriu para mim.
Sua silhueta estava sendo diretamente iluminada pelo raio de luar, e, quando sorriu, seu rosto se transfigurou. Uma vez, quando eu era muito novo, minha mãe me mostrara a imagem de um anjo em um livro. O anjo tinha asas imensas e majestosas, mas foi o rosto dele que ficara guardado na minha memória. O rosto de Kwin manifestava a mesma beleza sobrenatural agora, enquanto ela se regozijava com a emoção da luta.
O terceiro round foi o mais acirrado. Demorou muito tempo... Kwin estava obviamente desesperada para vencer. Mas, até aí, eu também estava. Medi forças com ela passo por passo e golpe por golpe. Por duas vezes, ela furou a minha guarda, e apenas a minha rapidez conseguiu me salvar.
Às vezes, executávamos passos copiados do Trig, mas, na maior parte das vezes, fazíamos movimentos tirados das ruas.
O final, quando veio, foi quase uma decepção.
Sem percebermos, acabamos nos deslocando até a extremidade do espaço iluminado daquele andar. Fui forçando Kwin a recuar cada vez mais e então dei o bote, visando a sua têmpora esquerda.
De repente, ela pisou em alguns ossos e perdeu o equilíbrio. Se não tivesse escorregado, provavelmente teria evitado completamente o meu golpe. Porém, como o seu corpo estava fora de prumo, em vez de acertá-la na têmpora, o meu bastão a atingiu bem na boca.
Ela tombou e esbarrou em uma pilha de ossos, que desmoronaram em cima de sua cabeça e em seus ombros. Quando a puxei para tirá-la dali debaixo, vi que sua boca estava sangrando muito, com os lábios já começando a inchar.
Encolhi-me, sem graça, ao ver o seu ferimento, e o júbilo da vitória imediatamente deu lugar ao arrependimento. Eu estava indignado comigo mesmo. Não só por ter odiado ver Kwin sentindo dor, mas porque eu tinha certeza de que a pancada causaria danos irreversíveis. Eu não conseguia acreditar que a sua boca um dia voltaria a ser bonita. Com a mesma rapidez, os meus pensamentos se tornaram mais egoístas. Quais seriam as consequências para mim? O que Tyron diria e faria quando visse o rosto de sua filha? E o que aconteceria quando ele descobrisse que eu era o responsável?
No entanto, os olhos de Kwin estavam brilhando.
— Acho que um dos meus dentes está solto — disse ela, passando o dorso da mão pelos lábios ensanguentados.
— Poxa, desculpa. Não valeu. Você escorregou.
Ela balançou a cabeça com firmeza.
— Não. Se você escorregar na arena, já era! É cortado em segundos. As mesmas regras se aplicam aqui. Você venceu.
Enquanto vencedor, fiz uma reverência, exatamente como os combatentes da Arena 13 faziam.
— Nunca vi um lutador de bastão fazer reverência, Leif. Eles faziam isso lá onde você morava?
Confirmei com a cabeça.
— Meu pai lutava na Arena 13. Ele me ensinou a lutar com bastão, e a gente costumava fazer uma reverência quando vencia. Peguei esse hábito quando lutava com os outros garotos. A moda pegou e logo depois todos nós passamos a fazer o mesmo.
Pensei que Kwin fosse ficar chateada por ter sido derrotada, mas toda a amargura parecia ter evaporado do seu rosto. Ela parecia estar meio contente. Até torceu a boca ensanguentada para dar outro sorriso.
— Obrigada por ter lutado comigo, Leif. Adorei!
O jeito como ela disse o meu nome e a expressão nos seus olhos me fez sentir um calor por dentro. Ficamos olhando fixamente um para o outro durante um tempo.
Só uma coisa estragava tudo.
Kwin era filha de Tyron.
11
Não se luta contra uma garota
Alguns acreditam que a própria Nym é sensível, que ela é a soma de todos os modelos em existência.
Outros acreditam que a Nym é uma deusa, uma divindade que escolhe um mortal para ser seu campeão.
Todos estão certos.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
— O que você andou fazendo? Veja só o seu estado!
A voz zombeteira me arrancou de um sono profundo e sem sonhos. Olhei para cima e vi Palm mostrando os dentes para mim. Sentei-me lentamente. Minha cabeça estava doendo, e, quando toquei na testa, meus dedos ficaram pegajosos de sangue. Meu travesseiro estava ensopado. Os acontecimentos da véspera voltaram rapidamente à minha memória em uma torrente de imagens.
— Como você se machucou? — perguntou ele. — Está com uma cara péssima...
Os outros dois garotos estavam dormindo quando eu entrei furtivamente no quarto, ao voltar de madrugada.
— Lutando com bastão — contei, tentando desanuviar a mente. Estava difícil pensar. Minha cabeça começou a pulsar.
— Parece que você perdeu — concluiu ele, presunçoso.
— Não. Foi uma melhor de três — respondi sem pensar, irritado por ele estar tentando me rebaixar.
— Você lutou contra quem? A Kwin te levou lá para a Comunalidade?
Balancei a cabeça.
— Não, fomos a outro lugar. Lutei contra a Kwin.
Imediatamente percebi que cometera um erro ao contar tudo para ele.
Nunca me esquecerei da expressão que surgiu no seu rosto. Era uma mistura de espanto e algo que parecia ser triunfo. Então, lentamente, mudou para desprezo.
— Você lutou contra a Kwin...? Contra uma garota?
Fiz que sim. Quando eu mexia com a cabeça, doía. Tudo doía.
— Não se luta contra uma garota — disse Palm, balançando a cabeça e olhando para Deinon, como se não pudesse acreditar. Deinon evitou completamente os meus olhos.
Eu supusera que Kwin lutara contra ambos, bem como os levara para ver a Roda. Talvez eu tivesse me enganado e Kwin não os tivesse desafiado nenhuma vez.
— Espere até a fofoca se espalhar! — debochou Palm. — Você vai ser a chacota da cidade. Devia ter vergonha! Você já era aqui. Já era antes mesmo de ter começado! Não tem como você conseguir esconder isso do Tyron.
Tendo dito isso, ele saiu do quarto, sem dúvida planejando ser o primeiro a descer para o café da manhã, como sempre.
Olhei de relance para o quadro com o combatente da Arena 13 acima de sua cama.
Eu provavelmente joguei fora a minha oportunidade de lutar lá, pensei com tristeza.
A previsão de Palm logo se confirmou. Eu já era, e o final veio ainda mais rápido do que eu esperava. Eu mal me vestira, e um criado me trouxe um recado.
Tyron queria conversar comigo lá embaixo. Estava esperando no quintal atrás da casa.
Assim que eu vi a sua cara, soube que estava encrencado. Quando saí sob o sol do início da manhã, ele estava me esperando em pé, virado de costas para mim. Notei a trouxa de roupas amarrada com um barbante aos seus pés e fiquei com um nó na garganta. Reconheci a camisa que eu usara durante a viagem desde Mypocine.
Quando ele se virou de frente para mim, Tyron parecia mais triste do que zangado.
— Você me decepcionou, garoto. Eu não permito lutas de bastão. Você sabia disso. Não escutou o que eu disse? Não fui claro o bastante?
— Sinto muito — escutei-me pedir desculpas, sabendo que não faria a mínima diferença. Por que eu deixara Kwin me convencer a lutar contra ela? O meu sonho estivera ao meu alcance, mas eu o perdi por causa de uma luta de bastão idiota.
— Sente muito? Você sente muito? E como você acha que eu me sinto? Você tem talento, garoto, mas jogou tudo por água abaixo. A sua carreira no Trig acabou sem nem ter começado direito. Quando você for embora da minha casa, ninguém mais vai querer te aceitar. Já é lamentável ter traído a minha confiança, mas é dez vezes pior tê-lo feito com a minha própria filha. A garota já é suficientemente insensata sem receber incentivo de você.
Ele pegou a minha trouxa de roupas e a atirou para mim. Então, sem mais uma palavra, entrou em casa, batendo a porta às suas costas.
Fiquei ali, parado no quintal, durante vários minutos, incapaz de me mexer. Não conseguia acreditar no que acontecera. Fiz o maior esforço para impedir as lágrimas de escorrerem pelas minhas bochechas.
Finalmente, respirei fundo e, sem saber mais o que fazer, catei a minha trouxa de roupas e saí para a rua. Não lançando sequer um olhar para a Roda, dirigi-me para o sul. O que mais eu podia fazer?
Havia poucas pessoas andando por ali, e eu me senti no fundo do poço. Ainda não estava muito longe quando ouvi alguém correndo atrás de mim, com os passos se aproximando cada vez mais. Quando me virei, vi que era Kwin.
— Desculpa, Leif, foi mal mesmo — disse ela, lutando para recuperar o fôlego.
— Suas desculpas não bastam! Pensei que você tivesse dito que tudo se acertaria, sabe? Que o seu pai comia na palma da sua mão, né?
— Eu nunca vi o meu pai com tanta raiva! Ele simplesmente não quis me escutar. Acho que foi por causa disso — justificou ela, apontando para a boca inchada. — Tentei ficar fora do caminho dele hoje de manhã, eu nem desci para tomar café, mas o Palm já tinha dedurado a nossa luta. Aí, ele subiu até o meu quarto soltando os cachorros.
Palm... É claro! Que burrice a minha contar para ele a verdade sobre o ferimento na minha testa!
— Neguei tudo, mas ele não quis acreditar em mim. Olha, por favor, não vá embora. Dê-me só mais um tempinho para eu fazer a cabeça dele. Vou convencê-lo, prometo. Confie em mim. Vou conseguir.
— E o que eu vou ficar fazendo até você conseguir?
— Arrume um trabalho. O abatedouro contrata gente durante o dia. Você é grande e forte pra sua idade, eles vão te aceitar. Aí, quando o meu pai ficar mais calmo, vou saber onde te encontrar...
Eu não podia desistir do meu sonho se ainda houvesse uma chance. Portanto, menos de uma hora depois, entrei em uma fila de homens à procura de emprego do lado de fora do abatedouro.
Arrumei um bico que consistia em recolher vísceras em grandes baldes e despejá-las em um tanque. Fiquei preso a essa tarefa ingrata durante aquele longo dia. Era um trabalho sujo, fedorento e que dava dor nas costas. A inhaca de sangue e excrementos estava por toda a parte, e, quando terminei, muito tempo depois do pôr do sol, eu ainda carregava aquela catinga no corpo.
À medida que os dias transcorriam, tentei não pensar no curto período que passei sendo um dos discípulos de Tyron. O contraste com à minha presente ocupação era doloroso demais. Aquilo fora o paraíso, e agora eu estava no inferno. Eu não podia acreditar que me mostrara tão tolo a ponto de jogar tudo no lixo.
Toda manhã, eu precisava ingressar na fila para ser contratado de novo. Alguns dias, eu não conseguia trabalho e, por isso, tinha pouca coisa para comer. Às vezes, quando estava com sorte, arrumava um turno da noite, que pagava melhor. Com ou sem dinheiro, era obrigado a dormir no meio dos currais. Por causa da temporada Trig, não havia nenhuma hospedagem sobrando na cidade.
Acostumei-me gradualmente com o fedor e comecei a achar o trabalho mais fácil. Eu podia sentir que estava me tornando mais forte, criando músculos e entrando em uma rotina.
Uma noite, o capataz me levou até uma área de armazenamento para me mostrar quais baldes de vísceras precisavam ser esvaziados primeiro. Ouvi um movimento em um dos cantos escuros e dei uma espiada, supondo que fosse mais um rato. Havia um montão desses bichos por lá, grandes, com bigodes cinza e vorazes. Eles se alimentavam bem no abatedouro.
Mas o capataz franziu a testa e subitamente saiu andando a passos largos em direção ao barulho, arrancando uma tocha da parede no caminho. Intrigado, fui atrás dele. Nunca me esquecerei da cena com a qual nos deparamos: uma garota, toda esfarrapada, estava ajoelhada na frente de um balde de vísceras. Ela estava comendo aquela imundície crua, enchendo as mãos juntas em forma de concha com aquela porcaria, e o sangue escuro e espesso pingava de sua boca. Eu não podia acreditar no que estava vendo.
— Dê o fora daqui! — gritou o capataz, erguendo o punho.
A garota se pôs de pé e abriu a boca, como se quisesse falar. Mas, então, ela deixou escapar um guincho estridente e uma sequência de sons que podiam ter sido palavras, mas que saíram como uma mistura de gemidos e balbucios.
— Xô, vai embora, ou eu te enfio a mão na cara, sua coisa imunda e nojenta! — berrou o homem, dando um passo na direção dela.
Fiquei horrorizado com a garota, porém, ainda mais forte foi o meu instinto de querer ajudá-la. O que lhe acontecera para reduzi-la àquela desgraça? Aproximei-me, mas ela pareceu assustada e saiu correndo, sumindo na escuridão e deixando apenas pegadas ensanguentadas para trás.
O capataz, irritado, cravou os olhos em mim.
— Ela é um parasita e provavelmente está infestada de doenças. A garota foi tocada pelo Hob, então, trate de ficar bem longe.
— Tocada?
— O Hob sequestra meninas nas ruas. Sem dúvida, essa aí foi tola o bastante para ficar na rua depois do anoitecer. E, é isso mesmo, ele as toca, suga a alma do corpo delas. Tudo o que resta é uma casca vazia.
Aquela era uma das garotas sobre as quais Kwin me falara.
— E a família dela? Essa menina não deveria estar junto com os pais? — perguntei.
— Ela não é mais a filha deles. É um animal sem raciocínio. Mas não se preocupe, rapaz, ela não ficará nas redondezas por muito tempo. Os borlas virão recolhê-la. É assim que as coisas funcionam.
— Quem são os borlas? — perguntei. Nunca tinha ouvido falar neles.
— São os criados do Hob — respondeu o capataz. — Às vezes, eles andam pela cidade após o anoitecer. Essa é mais uma razão para procurar abrigo depois que o sol se põe. Alguns foram modificados pelo Hob e não são mais totalmente humanos. Eles são feios como o capeta e você não acreditaria no quão rápidos e fortes eles são. Quando os borlas rondam à solta, ninguém está seguro.
Achei difícil me concentrar no trabalho pelo resto daquela noite.
Nunca mais vi aquela garota.
12
A sua laia
Os verdadeiros genthais podem ser reconhecidos por suas tatuagens faciais.
Os verdadeiros genthais são guerreiros.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
Certa manhã, quando o sol estava nascendo, saí do abatedouro e encontrei alguém me esperando.
Por um instante, não o reconheci. Talvez fosse porque ele normalmente trazia uma expressão triste e nervosa no rosto e agora estava sorrindo. Esfreguei o sono dos meus olhos e olhei de novo. Era Deinon.
Senti uma súbita onda de esperança. Será que ele viera me levar de volta para a casa de Tyron?, perguntei-me. Será que Kwin conseguira convencer o pai a mudar de ideia?
Mas Deinon rapidamente reduziu a pó as minhas esperanças.
— A Kwin me pediu para trazer uma mensagem — anunciou ele. Só de ouvir o nome dela, senti uma agitação dentro de mim. Eu pensava frequentemente naquela garota, oscilando entre raiva e outra coisa que eu não estava totalmente disposto a admitir. — Ela me pediu para te dizer que o pai está lentamente se deixando influenciar pela opinião dela. Disse que é para você não desistir, que ela vai dar um jeito.
Quanto tempo eu conseguiria continuar fazendo aquele trabalho? Suspirei.
— Diz pra ela que eu agradeço pela tentativa — respondi.
Eu estava prestes a empurrar Deinon para seguir em frente. Não queria que ele me visse daquele jeito, emporcalhado de esterco da cabeça aos pés. Mas ele continuou:
— Sinto muito por isso ter acontecido, Leif.
Parei e o encarei. Ele parecia sincero.
— Você não merece isso. Eu disse para o Palm que ele errou ao te dedurar.
Eu sabia que devia ter custado muito a Deinon confrontar o outro garoto daquela forma e apreciei o seu gesto, embora não tivesse me adiantado de nada.
— Você não foi o único a lutar contra a Kwin. Eu e o Palm também lutamos, mas não teve repercussão nenhuma. Não do jeito que aconteceu com você. No meu caso, o Tyron nem descobriu. Ele ficou sabendo quando o Palm lutou, mas o garoto mandou o pai ir lá conversar com o Tyron e acertar as coisas. O cara é um homem rico. Sem dúvida, deu mais dinheiro para a aprendizagem do Palm.
Fui dominado pela raiva da injustiça deste mundo e, de repente, senti-me completamente exausto. Só queria dormir.
— Obrigado por me contar isso, Deinon.
O garoto acenou com a cabeça.
— Espero te ver de novo em breve.
Dito isso, ele retornou ao conforto da casa de Tyron, enquanto eu buscava um canto tranquilo onde pudesse dormir.
Os dias se tornaram semanas, e, apesar da mensagem enviada, Kwin ainda não fora me procurar. Comecei a perder as esperanças.
Eu certamente não queria ir para casa. Seria bom reencontrar os meus amigos, mas eu não poderia mais trabalhar em fazendas agora que vira como o resto da minha vida poderia ser. Uma possibilidade que eu vinha considerando era retomar as lutas de bastão aqui na cidade. Eu me sentia confiante e pensava ser bom o bastante, mas não tinha certeza de quanto dinheiro poderia ganhar. E seria uma traição com relação ao meu sonho de ser bem-sucedido na Arena 13. Se eu começasse a lutar com bastão, seguiria por um caminho sem volta. Tyron nunca mais me aceitaria.
Certa noite, fui andar em torno da Roda, e escutei os gritos e torcidas vindos lá de dentro. Eu me sentia mais deprimido do que nunca.
Quando estava retornando ao abatedouro, com pensamentos sombrios, vi à minha frente três membros da Guarda do Protetor, vindo justamente na minha direção. Um, montado a cavalo, era claramente um oficial, pois trazia uma espada comprida na cintura. Os outros dois estavam a pé, com adagas nos cintos, cada um carregando um longo bastão e uma tocha tremeluzente.
Lembrei-me do conselho que Tyron me dera de nunca encará-los nos olhos, nunca lhes dar motivo para que me atormentassem. Portanto, baixei a cabeça para fitar a rua lamacenta e continuei andando.
— Aonde você pensa que vai? — intimou-me uma voz.
Mantive a cabeça abaixada, mas levantei os olhos para ver o seu rosto.
O oficial estava empertigado em cima do cavalo, com o uniforme azul imaculado e os olhos azuis impregnados de desprezo. Ele nem tentou disfarçar o que pensava de mim. Eu sabia que estava um lixo. Apesar de vestir um avental, todo dia eu acabava coberto de sangue e vísceras. O fato de dormir ao relento tornava difícil lavar o meu corpo e a minha roupa e, à medida que o tempo passava, eu ia fazendo cada vez menos esforço para me limpar.
— Estou voltando ao trabalho — falei, com a maior educação possível. — Estou no turno da noite.
— Não está, não. Não tem trabalho para gente da sua laia aqui. É pra lá que você está indo — ordenou ele, com um sorriso desdenhoso, apontando para o sul. — Pra casa, onde é o seu lugar.
Os outros dois homens vieram para cima de mim em um segundo, surrando-me com os bastões. Eu não tive energia nem para tentar me defender. Fugi.
Eles me perseguiram rua abaixo durante um tempo, com o oficial rindo atrás deles. Consegui despistá-los, mas, ao diminuir a velocidade até um ritmo normal, continuei caminhando na mesma direção. Para o sul.
Fisicamente, eu não estava seriamente machucado. A maioria dos golpes havia acertado as minhas costas. Mas eu me sentia mais humilhado e envergonhado do que nunca.
Estava na hora de admitir a derrota.
Eu estava indo para casa.
Caminhei para o sul até deixar a cidade para trás e, então, ao amanhecer, parei para descansar. Virei-me e olhei para Gindeen, assistindo ao sol nascer às suas costas, guardando na memória a maneira como os raios fulgurantes iluminavam a cidadela do Hob. Eles resplandeciam nas treze espirais de bronze distorcidas. Um novo dia estava começando, mas, naquela noite, quando o sol estivesse se pondo, os raios projetariam suas sombras deformadas e ameaçadoras na direção leste por toda a cidade, obscurecendo os telhados e chegando até a Roda.
Muitas vezes eu ficara observando aquelas sombras pontiagudas. Elas eram como espadas escuras sitiando as vidas e as próprias almas dos habitantes de Gindeen.
Era preciso deter o Hob de alguma forma...
Alguém precisava fazer isso. Era preciso detê-lo. Depois de tudo o que acontecera, após vir de tão longe, eu não podia desistir tão fácil, pensei comigo mesmo. Simplesmente não podia.
Então, dei meia-volta e refiz o caminho inverso até o abatedouro.
*
Era tarde demais para arrumar trabalho naquele dia, mas, na manhã seguinte, logo após o amanhecer, eu estava esperando na fila quando alguém veio até mim.
Era Kwin. E ela estava sorrindo.
Era mesmo o que eu estava pensando? Com certeza, ela não estaria ali por nenhuma outra razão, né?
Kwin agarrou o meu braço e disse:
— Vem! O meu pai mudou de ideia. Vai te dar uma segunda chance.
Aturdido, deixei-a me arrastar para longe do abatedouro. Eu não podia acreditar que estava realmente voltando para a casa de Tyron. Kwin conseguira de fato convencer o pai. Toda a raiva e o ressentimento que eu vinha sentindo por ela sumiram, e começamos uma conversa agradável.
— Você está fedendo — comentou ela, fazendo uma careta.
— Pensei que você gostasse de sujeira — gracejei, sorrindo atrevidamente. — Você demorou para convencer o seu pai. Quase desisti e fui para casa.
— Fiz o máximo que pude, mas nunca imaginei que ele fosse tão teimoso! Quando lutei contra o Palm, ele não fez metade desse estardalhaço todo. Aí, ontem, de repente mudou de ideia. Procurei por você em tudo quanto era canto, mas não te encontrei. Então, decidi tentar de novo hoje. Sinceramente, não tinha certeza se você tinha aguentado tanto tempo.
— Você derrotou o Palm quando lutou contra ele?
— Claro, né? — respondeu ela, com um sorriso. — Você não reparou naquele barulhinho quando ele fala?
Lembrei-me do estalo que eu notara quando o vi pela primeira vez.
— Ele usa dentadura. Quebrei todos os dentes da frente dele — contou Kwin.
— Mas aí o pai dele foi lá e resolveu tudo, né?
— É. Meu pai também expulsou o Palm durante um ou dois dias, mas aí o pai dele apareceu. Rolou um dinheiro. A Teena descobriu através do Kern e me contou. Meu pai é rico, mas é louco por dinheiro. Parece que ele nunca tem o suficiente e sempre quer mais.
Ao nos aproximarmos da casa, comecei a ficar nervoso. Eu tinha de acertar as coisas com Tyron. Ele precisava saber que podia confiar em mim novamente.
O artífice estava esperando no quintal quando chegamos. Ele e Kwin trocaram um aceno de cabeça, e, então, ela entrou direto em casa, dando um apertão no meu braço antes de nos deixar.
— Sinto muito por ter decepcionado o senhor — falei, imediatamente. — Isso não vai se repetir.
Eu estava esperando um sermão ou, pelo menos, algum tipo de advertência. Mas Tyron não disse nada. Simplesmente me olhou de cima a baixo.
— Vá se limpar. Vou pedir para a Teena arrumar uma muda de roupa para você. Tome um bom café da manhã. Não faz mal se você chegar atrasado dessa vez à primeira aula.
Fiz exatamente o que ele mandou, lavando o rosto e as mãos antes de ir para o quarto trocar de roupa. Em seguida, fui para a sala de jantar, onde comi sozinho, saboreando cada pedaço e ficando satisfeito em questão de segundos.
Finalmente, entrei na sala de treinamento, assim como fizera no meu primeiro dia, tantas semanas antes.
Os outros dois discípulos claramente não haviam sido avisados do meu retorno e ficaram surpresos ao me verem de volta. O queixo de Palm quase bateu no chão.
— O Tyron te aceitou de novo? Não acredito! — exclamou ele.
Encarei-o sem fazer nenhum comentário e comecei a tirar os sapatos e as meias, pronto para treinar. Eu não tivera tempo de preparar o que diria quando visse Palm novamente. Ao ouvir a sua voz arrogante, minha raiva começou a crescer. De repente, não pude mais contê-la. Uma explosão de palavras saiu da minha boca:
— Não por sua causa! Você não pôde esperar e foi contar tudo pra ele, né? Engraçado, você não mencionou que já tinha lutado contra a Kwin também. Me diz aí: é difícil mastigar usando dentadura?
Palm me lançou um olhar fulminante, e um rubor se espalhou por suas bochechas, traindo seus sentimentos. Mas ele não respondeu e simplesmente foi para o outro lado da área de treinamento batendo os cascos.
Deinon me lançou um sorriso mordaz.
— Que bom que você voltou, Leif! Não seria justo se não te dessem uma segunda chance.
— Obrigado, Deinon. Mal posso esperar para recomeçar a treinar.
Logo depois, Kern veio testar as nossas habilidades. Fora um breve “seja bem-vindo novamente”, ele me tratou como se eu nunca tivesse me ausentado.
Eu poderia ter dito mais coisas naquele dia, mas, como Palm não me disse mais nada, permaneci calado também.
Porém, toda vez que ele respondia a Kern ou murmurava algo a Deinon, era difícil não sorrir.
Agora que os meus ouvidos estavam antenados no barulhinho, eu não parava de escutar o estalo da dentadura dele.
13
Westmere Plaza
No início era o verbati,
E o verbati se fez carne.
Foi o maior erro já cometido.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
No decorrer da semana, rapidamente me acostumei com a rotina dos meus dias sob o teto de Tyron.
Depois do café, passávamos a manhã aprendendo habilidades práticas sob a supervisão de Kern. Era bem puxado, e as horas que eu passava dançando em cima das tábuas atrás de um lac me davam câimbras e pontadas de dor em músculos das pernas que eu nem sabia que existiam.
O que me deu a maior satisfação foi que eu conseguira enfiar a faca no encaixe de garganta do meu lac de treino em outras duas ocasiões, enquanto Palm não conseguira nenhuma vez. Ele estava ficando cada vez mais frustrado.
Eu gostava muito mais dos exercícios práticos do que das aulas da tarde, pois penava para assimilar os princípios básicos da modelação em Nym. Tyron fazia questão de que Palm, Deinon e eu trabalhássemos sozinhos em uma das pequenas salas de estudo adjacentes ao nosso quarto. Cada um de nós era convocado para uma aula particular de uma hora com Kern. Era ainda pior nas quintas-feiras, quando Tyron ensinava a teoria. Eu tinha vergonha dos meus erros e comecei a ficar com medo de não ser inteligente o bastante. Eu certamente seria reprovado ao final do meu mês de teste.
As tardes sempre terminavam com uma corrida para nos ajudar a desenvolver tanto energia quanto rapidez. Guiados por Kern, descíamos correndo rumo à Roda. Após dois percursos em torno daquela imensa construção em velocidade constante, dávamos gás nos dois circuitos seguintes. Então, depois de cinco minutos recuperando o fôlego, apostávamos corrida entre nós: três percursos rápidos, terminando na entrada principal. Era uma competição que eu vencia toda tarde. Kern me botava pressão, mas eu era mais veloz. Ele sempre sorria e me parabenizava. Havíamos construído um relacionamento especial e eu começara a considerá-lo quase como um irmão mais velho. Palm e eu não faláramos um com o outro diretamente desde que eu voltara a treinar. E o fato de ser rebaixado ao terceiro lugar nas nossas competições cotidianas não ajudava em nada para nos tornarmos amigos. A única coisa que estragava o meu prazer era que, como Palm chegava em terceiro lugar, Deinon era relegado à quarta posição.
Depois disso, voltávamos caminhando para a casa de Tyron, já com água na boca pensando na melhor refeição do dia.
— Estou morrendo de fome — disse Deinon.
Eu andava ao seu lado. Palm ia na frente, conversando com Kern.
— Eu também, mas por essa comida vale a pena esperar. Muito melhor do que o que eu comia em Mypocine. Nunca tinha o suficiente. O fazendeiro para quem eu trabalhava não me deixava comer junto com a família dele. Ele me trazia um prato no celeiro, onde eu dormia. Sempre fazia frio lá.
— Pelo visto, você tinha uma vida dura.
Fiz que sim com a cabeça.
— O trabalho era pesado, mas eu tinha alguns amigos. A gente se encontrava nos finais de semana e ia lutar com bastão. E você, Deinon?
— Eu também trabalhava em uma fazenda, mas era do meu pai, então, pelo menos, eu tinha uma cama decente para dormir à noite. Tenho dois irmãos mais novos. Todos nós tínhamos que arregaçar as mangas igualmente, para ajudar o meu pai, trabalhando desde o raiar do sol até o entardecer. Isso aqui é melhor! Mas preciso ter sucesso, senão, acabarei trabalhando na fazenda de novo.
— E os seus irmãos? Eles também virão pra cá treinar luta?
Deinon balançou a cabeça com tristeza.
— Meu pai só pode bancar o treinamento para um de nós. É muito difícil conseguir honrar os pagamentos. Eu sou o mais velho, então, por acaso, sou eu. Tenho que me sair bem. Não quero decepcioná-lo.
A cada duas noites, como parte do nosso programa de treinamento, Tyron nos levava à Roda para que pudéssemos aprender assistindo aos combates na Arena 13. Um dos melhores momentos foi quando eu vi pela primeira vez o Epson lutar.
Tomamos os nossos assentos bem a tempo para a primeira disputa da noite. Os combatentes e seus lacs já estavam posicionados.
Atrás do lac solitário, vinha um homem de cabelos brancos e barba curta. Seus braços nus eram riscados de velhas cicatrizes entrelaçadas.
Eu nunca vira alguém tão velho lutando na Arena 13. Muito antes dos cabelos começarem a ficar grisalhos, a maioria dos combatentes era forçada a se aposentar, muitas vezes por causa de lesões. Era uma atividade para homens jovens, era preciso estar no auge. À medida que a mobilidade e a rapidez diminuíam, lutar se tornava cada vez mais difícil.
— Aquele velho esquisitão não vai durar nem cinco minutos — ironizou Palm. — É mais provável ele morrer de velhice antes mesmo de o combate começar.
— Aquele é o Epson — disse Tyron, coma voz impregnada de respeito e lançando um olhar fulminante para Palm. — Ele foi ferido e não lutava desde a última temporada. Mas todo o mundo o conhece. Subestimá-lo pode te custar caro, Palm. Ele é um veterano da Arena 13 e uma lenda para quem entende do assunto. Talvez ele não seja mais tão forte e rápido como já foi um dia, mas é um lutador sagaz tanto na posição min quanto na mag, o que é muito raro. A maioria dos combatentes se especializa em uma ou em outra. Eu apostaria o meu dinheiro no Epson. Olha só todas as cicatrizes nos braços dele.
— Cada cicatriz significa uma briga que ele perdeu? — perguntei. Estava chocado pelo fato de haver tantas marcas.
— Cada cicatriz representa uma derrota honrosa — corrigiu Tyron. — Mas, para cada uma delas, houve pelo menos cinquenta vitórias. Dizem que ele vai se aposentar no final desta temporada. Ele sofre de câimbras nas pernas agora, um problema crônico que muitos lutadores mais velhos adquirem, e de uma crescente perda de força nas costas. Mas eu não duvido nada de que ele esteja espalhando boatos negativos sobre si mesmo com o objetivo de aumentar suas probabilidades: desse jeito, ele ganharia um prêmio maior quando apostasse em si mesmo como vencedor. Agora, olhe o rapaz que ele vai enfrentar. O nome dele é Skule e ele obteve uma ótima classificação nas Listas, embora essa seja apenas a sua terceira temporada. Ele luta pela equipe do Kronkt, como indica o símbolo da águia na parte de trás do colete. O cara faz o maior sucesso entre as mulheres.
Dava para ver por quê. Skule tinha cabelos louros, um rosto bonito e um corpo musculoso. Percorri os olhos pela galeria e notei que havia mais mulheres do que de costume na plateia naquela noite. Algumas, na primeira fileira, estavam se debruçando sobre o parapeito e gritando o seu nome, em uma tentativa de chamar a sua atenção. Uma moça finalmente o conseguiu: ele olhou para cima, sorriu e acenou com a mão. Nisso, ela deu um gritinho agudo e enterrou o rosto nas mãos.
— O Skule é bom pra caramba! — comentou Palm. — Já o vimos lutar antes. Ele ganhou fácil nas duas vezes, não ganhou?
Tyron fez que sim com a cabeça.
— É, o Skule ainda vai longe, mas, hoje à noite, acho que ele vai ter uma surpresa.
Eu, por minha vez, estava mais interessado em Epson. Era um homem que trilhara uma carreira longa e bem-sucedida na Arena 13.
— O Epson pertence à equipe de quem? — indaguei, pois notara que ele não trazia nenhum símbolo na parte de trás do colete.
Palm estava sentado do outro lado de Tyron, e vi que ele sorriu de modo afetado ao ouvir a minha dúvida. Ele obviamente sabia a resposta e sempre se deleitava com qualquer manifestação da minha ignorância.
— Muitos gostam de lutar em uma equipe como a minha, que oferece um bom suporte a um lutador, mas nem todo combatente segue esse caminho — explicou Tyron. — O Epson possui, mantém e treina com seus próprios lacs. Alguns combatentes agem assim, porque leva muito tempo para acumular capital suficiente para se elevar ao meu cargo. Alguns, como o Epson, escolhem não lutar em nenhuma equipe. Ele poderia fazê-lo, mas prefere trabalhar por conta própria. Ele gosta mais de lutar do que de se preocupar em treinar e dirigir outras pessoas.
— Acho que eu teria decidido fazer o mesmo — observou Deinon, à minha esquerda.
Tyron sorriu.
— É uma coisa sobre a qual cada um precisa refletir e chegar às suas próprias conclusões. Mas, para vocês, rapazes, decisões como essa ainda estão no futuro.
Apesar do que ele dissera, eu já sabia o que queria fazer e achava improvável que mudasse de ideia. Faltava-me a habilidade de modelar no mais alto nível, portanto, eu nunca poderia virar outro Tyron. Mas eu era rápido, e as minhas reações eram excelentes. Eu queria lutar na arena, lutar e vencer até me tornar o melhor combatente min da Arena 13.
Após soar a trombeta, avisando que o combate teria ter início, Pyncheon, o marechal-chefe, deixou a arena, e a disputa começou. Skule se mantinha bem agachado atrás dos seus três lacs. Seus braços, assim como os de Epson, estavam nus, mas muito menos cicatrizes eram visíveis neles.
De repente, os pés de Skule tamborilaram nas tábuas de madeira, reproduzindo o código sonoro Ulum para dizer aos seus lacs o que fazer.
Reagindo prontamente, os lacs de Skule começaram a se movimentar com cautela, com as seis espadas cintilando ameaçadoramente. Skule foi atrás, dançando muito perto das costas do seu lac central.
Em resposta, Epson bateu nas tábuas ritmadamente, e, então, deu um passo ligeiro para trás, em uníssono com o seu lac solitário.
Ouvi um murmúrio surdo, que rapidamente se tornou um rosnado crescente de expectativa. Estava claro que Skule já cometera um erro. A multidão já havia percebido a investida arriscada do rapaz.
Quatro pares de espadas relampejaram quando o lac solitário de Epson avançou rodopiando, enfiando as lâminas — direita, esquerda e direita de novo — nas gargantas dos três lacs que se opunham a ele. E, subitamente, o tri-glad de Skule virou um amontoado confuso e inerte, jogado em cima das tábuas — um pouco antes — assim me pareceu —, de eu ouvir o estrondo metálico de sua queda.
A rapidez do lac de Epson fora incrível, embora o velho homem mal tivesse se mexido. Fiquei boquiaberto e, de relance, vi que, ao meu lado, Deinon e Palm haviam tido a mesma reação. Epson ainda estava agachado na mesma posição, com um sorriso no rosto.
Sem a proteção dos seus três lacs, a dança de Skule se reduzira a uma repentina imobilidade. Agora, a silhueta ameaçadora do lac solitário de Epson estava apontando as espadas na direção do rapaz.
Diante de um coro de queixas e guinchos de consternação proferidos pelos torcedores de Skule, o lac de Epson fez um corte pequeno e preciso no braço do seu adversário. Era o ritual que marcava a derrota do jovem. Estava tudo encerrado.
As portas se abriram novamente e alguns empregados, dirigidos por Pyncheon, retiraram os lacs caídos na arena, enquanto bilhetes amarelos — os recibos de aposta de quem apostara em Skule —, voavam nervosos de mãos decepcionadas.
Rapidamente, as pessoas deixaram seus assentos e engrossaram uma onda humana pelos corredores acima, em direção aos agentes de aposta vestidos com faixas azuis, que agora haviam ocupado posições próximas à parede do fundo da galeria.
— Epson mal se mexeu — comentei, ainda perplexo pelo que acabara de acontecer. — Pareceu uma vitória fácil.
— De fato. Uma vitória alcançada antes mesmo de ele pisar na arena — disse Tyron, com um sorriso. — Assista e aprenda, garoto. Aquele lac foi modelado com perfeição. Epson se mexeu dentro da mente dele e lhe ordenou exatamente o que fazer: um passo para trás e, então, atacar. É difícil um combatente na posição min vencer: o seu lac está em minoria, são três contra um. Mas quem é habilidoso e corajoso pode conseguir. Um homem como Epson não cansa de vencer. Um tri-glad precisa ser perfeitamente coordenado e, algumas vezes, pode dar errado, como você acabou de ver. E não é só isso: o combatente mag pode ser levado ao erro e cair em armadilhas.
Dei-me conta de quanto eu ainda tinha a aprender antes de estar pronto para botar os pés na arena.
*
No final da minha primeira semana completa de treinamento na casa de Tyron, tive uma surpresa.
Sábado era o nosso dia de folga. Ficávamos livres para fazer o que quiséssemos. Eu teria preferido mais um dia de treinamento e estava planejando praticar mais um pouco sem Palm por perto.
Porém, quando acordei naquela manhã, Deinon estava sentado no pé da cama dele, vestindo as meias. Nem sinal de Palm.
— Bom dia! — Deinon sorriu para mim. — Algum plano pra hoje?
Balancei a cabeça.
— Pensei apenas em dar um passeio pela cidade e depois praticar um pouco — respondi.
— Você já foi ao Westmere Plaza?
— Não... Nem sei o que significa uma plaza. Com certeza não tem nenhuma em Mypocine.
— Este bairro todo é chamado de Westmere por causa de um lago aqui perto. “Plaza” é só um nome chique para dizer “grande praça pavimentada”, eu acho. Tem uma feirinha de um lado e lojas e cafés do outro. Posso te levar pra visitar, se você quiser...
— Boa ideia. — Eu tinha a impressão de que eu e Deinon estávamos começando a virar amigos. Queria ter pensado em chamá-lo para fazer algo naquele dia.
— Vamos logo depois do café da manhã?
Vinte minutos depois, estávamos no ar fresco da rua. Uma leve brisa soprava e o sol aquecia o meu rosto. Eu ficara desapontado ao não ver Kwin no café da manhã e me perguntei onde ela passaria o sábado, mas não queria parecer interessado demais nela e, em vez disso, perguntei a Deinon:
— O que o Palm costuma fazer no sábado?
— Ah, a família dele vem, o busca e o leva para almoçar fora. O garoto vive se gabando do tamanho dos filés que ele enfia goela abaixo e do molho especial com que rega a carne até dizer chega.
Era típico de Palm. Eu não ligava para o fato de ele ter nascido em uma família rica e receber o melhor de tudo. Era a vida, né? Sorte de uns, azar de outros. Mas eu odiava o seu ar de superioridade e constante fanfarrice. No entanto, agora eu estava fazendo força para tirá-lo da cabeça e me concentrar em aproveitar o meu dia de folga.
— Esta com certeza é a melhor parte de Gindeen — observei. Eu passara o meu período de exílio da casa de Tyron no outro lado da cidade, nunca me aventurando por aquelas paragens por medo de topar com Palm ou Deinon, ou até mesmo com o próprio Tyron, portanto, tudo era novo para mim. Ainda caminhávamos pelas calçadas pavimentadas e em meio às casas grandes, das quais algumas tinham até jardinzinhos plantados com arbustos e brotos de flores.
— É aqui que moram os melhores artífices e os executivos das casas de aposta. Pyncheon tem uma casa neste bairro, assim como alguns dos mercadores e fazendeiros ricos, pra quando eles vêm à cidade. É isso aí, chegamos! — anunciou Deinon, quando viramos a esquina. — O que você acha?
Estávamos de frente para o que eu adivinhei ser a plaza. Eu nunca vira nada igual: uma vasta praça pavimentada, com árvores plantadas nos quatro lados. A oeste, havia dúzias de barracas de feira cobertas com toldos coloridos agitados pela brisa. A leste, ficava uma fileira de lojas e cafés com mesas do lado de fora. E, por toda a praça, aglomeravam-se grupos e casais conversando ou passeando ao sol. Todos eles estavam vestidos de maneira muito elegante, sem dúvida com suas melhores roupas. Tudo o que eu tinha era a camisa e as calças mal ajustadas fornecidas por Tyron.
— Vamos tomar alguma coisa? — sugeriu Deinon.
Senti o sangue fluir para o meu rosto.
— Foi mal, não tenho nem um centavo — confessei.
— Não tem problema. Pode me pagar depois. Ou simplesmente comprar alguma coisa pra eu beber da próxima vez que viermos.
— Então vou precisar arrumar algum tipo de trabalho. Será que dá pra encontrar algo aos sábados aqui?
— O Tyron não ia querer que você trabalhasse aos sábados. Ele acha que nós devemos dar duro a semana inteira e tirar um dia de folga para nos revigorarmos. Além disso, ele vai te dar dinheiro na última sexta-feira de cada mês. Todo discípulo ganha uma pequena mesada.
— Ele me disse isso, mas eu pensei que só seria suficiente para cobrir coisas básicas, tipo roupas.
— Não é muito, mas dá pra comprar algumas bebidas e lanches. As roupas que você recebeu quando começou são de graça, assim como o seu primeiro par de botas Trig, mas, depois disso, você paga por tudo. Então, você vai precisar economizar uma parte.
Deinon nos levou até o que parecia ser o maior dos cafés, e nos sentamos a uma mesa sob o sol quente, observando a multidão que se acotovelava diante das barracas de feira. Várias mesas ao nosso redor estavam ocupadas por jovens rapazes.
— Os discípulos costumam vir aqui. Este café fornece comida pra eles, por isso os preços são um pouco mais baixos — explicou Deinon.
— Você conhece algum deles?
— Conheço alguns de nome, mas nunca falei com eles. A maioria está no segundo ou terceiro ano. Normalmente eles não se dignam a conversar com calouros como a gente.
— E os calouros que trabalham para os outros artífices?
— Você não vai ver nenhum aqui por um motivo: eles não tiram dia de folga. No único dia em que não treinam, os mestres deles os usam como criados para fazer faxina e serviços ocasionais. Tyron é diferente. Ele é um bom artífice pra se ter como mestre. Somos bem vistos depois.
Alguns minutos depois, uma jovem garçonete atendeu nossa mesa e anotou os nossos pedidos. Ela estava usando um vestido azul até o joelho e um chapeuzinho branco engraçado com uma fitinha azul combinando. Tinha uma aparência muito chique, assim como todos os jovens sentados ao nosso redor. Eu sabia que estava parecendo um estranho no ninho. Com certeza teria de economizar a minha mesada para comprar algumas roupas novas. Depois de pagar o que devia a Deinon, essa seria a minha prioridade.
Ambos pedimos suco de maçã. Deinon mandou trazer pãezinhos amanteigados. Só de pensar neles, fiquei com água na boca, mas fingi que não estava com fome. Não queria ficar devendo a Deinon mais do que o necessário. Então, fui bebericando o meu suco, enquanto ele se empanturrava de pãezinhos.
Não consegui mais resistir e indaguei a respeito de Kwin, embora tenha tentado fazer com que a minha pergunta parecesse desinteressada.
— O que a Kwin faz aos sábados? Ela também não dá muito as caras durante a semana. Trabalha em algum lugar?
— Durante a semana, ela trabalha no escritório de Tyron, ajudando na administração e passando encomendas de alimentos e equipamentos. Não sei direito o que ela está fazendo hoje, mas com frequência você pode encontrá-la sentada aqui. Está vendo aquele cara na mesa perto da janela? Então, é o namorado dela.
Meu queixo caiu. A hipótese de que ela pudesse ter um namorado nunca me passara pela cabeça. Ela nunca o mencionara. Fiquei de coração partido.
14
As botas vermelhas
Os diferentes tipos de djinni são mais numerosos do que as estrelas. Mas, de todos eles, o mais fatal é o djinni malévolo, que deixou de ser subserviente ao verbati que o moldou.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
Olhei de relance e lembrei que já vira aquele rapaz antes. Fora ele quem chamara o nome de Kwin na noite em que ela me levara à Roda, mas a garota o ignorara. Contei isso a Deinon, que concordou com a cabeça.
— É, eles vivem terminando o namoro. A garota tem um gênio forte e sabe o que quer, isso ninguém pode negar. O único problema é que ela adora mudar de ideia.
Deinon tomou um gole de suco, olhando para mim por cima do copo.
— O Palm é louco pela Kwin.
Fiquei chocado.
— Não brinca!
— Ele está perdendo tempo. A Kwin e o namorado brigam muito, mas ela sempre volta pro cara. Além disso, não seria uma boa ideia um dos discípulos do Tyron se envolver com a filha do mestre, né?
Cauteloso, fiz que sim com a cabeça, esperando que os meus sentimentos não se manifestassem no meu rosto.
— O que aconteceu quando você lutou contra ela? — perguntei, mudando de assunto.
Deinon riu.
— A Kwin ganhou os dois primeiros rounds, então, não precisamos fazer um desempate no final. Foi uma boa e verdadeira derrota. Eu simplesmente não pude superar a velocidade daquela garota. Depois, ela disse que eu tinha sido um tédio. E nunca mais bateu na parede pra me chamar. Mas eu não ligo. Por um lado, foi um alívio. Ela tem a obsessão de querer lutar na arena, mesmo sabendo que é impossível. Isso a deixa chateada e amarga.
Permanecemos sentados em silêncio durante alguns minutos, tomando o nosso suco aos poucos. Percorri os olhos pela plaza e me pus a pensar que aquele lugar não tinha nada a ver com as áreas mais rústicas de Gindeen, cheias de ruas lamacentas e calçadas podres.
— Você está animado pra lutar na posição min? — perguntou Deinon, repentinamente.
Fiz que sim.
— Estou, é o que eu realmente quero. Eu nunca me veria lutando atrás de três lacs.
— Lutar atrás de três oferece uma chance maior de vencer — opinou Deinon. — Essa seria a minha escolha. Você nunca teria de enfrentar o Hob. Mas é preciso ter um pai rico pra possuir três lacs. A posição min é uma maneira mais barata de começar. Aposto que artífices como Tyron também a preferem. Ele dirige uma equipe grande e precisa fornecer os lacs pra iniciantes como nós. Mesmo que eu pedisse pra lutar atrás de três lacs, acho que ele não me deixaria.
— Então você não está animado?
— Eu simplesmente vou ter que tirar o melhor proveito disso. Alguns combatentes min se saem bem. Veja o Kern, por exemplo: ele deslanchou de forma impressionante nesta temporada, vencendo todos os dez combates iniciais que travou. Dizem que ele vai ser o campeão da Arena 13 este ano. Eu só acho que nunca vou ser bom o bastante pra ter sucesso na posição min. Gostaria de me tornar modelador.
— Você é bom em modelação? — perguntei, surpreso. — Acho uma tarefa difícil à beça.
—Tenho de meter a cara nos livros, mas estou progredindo regularmente. O Tyron não é muito de elogiar, mas ele disse que eu comecei os meus estudos de forma muito promissora.
Sorri.
— Então você talvez vire modelador um dia. Pode acabar no cargo de Tyron, o artífice mais bem-sucedido de Gindeen, com a maior equipe de combatentes!
Deinon sorriu alegremente para mim.
— Nunca pensei seriamente em ter a minha própria equipe, mas um brinde a essa ideia! — disse ele, bebendo o resto do suco. — Quer ir ver o lago? Não é longe. Mas primeiro vou procurar a garçonete pra pagar.
Sorri e agradeci de novo. Eu detestava ficar devendo dinheiro, mas gostava de Deinon, e isso fez com que fosse mais fácil aceitar a sua generosidade.
Após ele pagar a conta, andamos ao longo da fileira de lojas. De repente, Deinon parou diante de uma grande vitrine cheia de artigos à venda.
— Essa loja é especializada em objetos para a Arena 13 — observou ele.
Estavam à mostra coletes, calções e botas que os combatentes vestiam, bem como espadas e cintos de couro com duas bainhas.
— A maioria das coisas é réplica, com os símbolos das várias equipes. O público-alvo são os fãs. Não são de verdade. Artífices como Tyron sempre recorrem aos melhores artistas da cidade para pintar os símbolos deles. Mas olha ali... — Deinon apontou para o fundo da vitrine. — Aqueles artigos de segunda mão se destinam aos novos combatentes, a quem está apenas começando, com um orçamento apertado e sem o apoio de uma equipe. Os símbolos foram apagados, e a maioria das botas está gasta no salto. Todas, menos um par em especial.
Ele não precisava nem me dizer qual era. Todas as botas eram feitas de couro preto ou marrom. Todas, com exceção de um par, que era vermelho.
— Você quer dizer as botas vermelhas! — exclamei.
Deinon sorriu.
— Aham! Parecem novinhas em folha, tirando as solas. Na noite em que bateu na parede pra me chamar, Kwin me falou sobre essas botas. Ela as tinha experimentado, e as botas couberam certinho, mas Tyron não quis comprá-las pra filha. Disse que ela já tinha ideias malucas demais na cabeça e que ele não ia incentivá-la mais ainda. As botas são caríssimas. Não tem como ela arrumar tanto dinheiro.
“Palm está planejando comprar as botas pra ela no final da temporada. O pai dele prometeu a maior grana se o filho vencesse o TD. Não que isso vá fazer alguma diferença, é claro. Acho que ela nem as aceitaria se viessem dele.”
Não gostei da ideia de Palm dar um presente como esse para Kwin e esperava que Deinon tivesse razão: que, mesmo que ele tentasse, ela recusasse. Gostaria de poder comprar aquelas botas para Kwin. Isso não mudaria os seus sentimentos com relação a mim — ela já tinha um namorado —, mas a deixaria feliz. Porém, isso era impossível, e eu tirei esse pensamento da cabeça.
Andamos até o final da plaza e, depois, continuamos por ruas arborizadas até a ladeira gramada que levava ao grande lago de formato oval, com águas calmas refletindo o azul do céu. Barcos a remo estavam amarrados a um píer de madeira. As casas acabavam ali. Mais além, dava para ver uma floresta. Poderíamos estar no meio do nada, e, de repente, pela primeira vez desde que chegara a Gindeen, tive uma verdadeira sensação de paz.
Deinon e eu andamos em sentido horário em torno do lago, com uma cumplicidade silenciosa, e depois nos sentamos na grama ao lado de um pequeno riacho, que era um dos dois afluentes do lago.
— Você frequentava a escola em Mypocine? — perguntou Deinon. — Vi um dos seus trabalhos em cima da mesa do Kern. A sua letra é bem legível. Ele vive reclamando que a minha é um garrancho.
Eu não tinha falado muito a respeito da minha vida antes de chegar a Gindeen.
— A nossa fazenda era longe demais da cidade — contei. — Minha mãe costumava me dar aula.
— Ela deve ter sido uma mulher inteligente. Aqui tem escolas aos sábados que algumas crianças das fazendas frequentam. A nossa fazenda fica pertinho de Gindeen, foi por isso que eu pude receber instrução. Era difícil acompanhar o ritmo, porque eles passavam muito dever de casa. Eu tinha de fazer o meu depois de trabalhar o dia inteiro na fazenda. Palm, é claro, tinha um professor particular. Só o melhor pra ele.
Acenei com a cabeça. Tudo fora fácil para Palm. Ficamos sentados em silêncio durante um momento, contemplando o lago e aproveitando o sol.
— Aqui nem parece a mesma cidade — comentei. — Os bairros em torno do abatedouro e da Roda são totalmente diferentes.
— É. Aqui é onde os ricos moram. Eu gostaria de comprar uma casa neste bairro um dia — meditou Deinon. — Enfim, quer ir remar um pouco no lago? É baratinho, eu pago.
Enquanto nos dirigíamos para o píer, ouvi um grito. Ainda estávamos longe demais para eu entender as palavras, mas o tom me dizia que estava acontecendo algo muito ruim.
Uma pequena multidão se aglomerara onde os barcos estavam atracados. Todos estavam olhando para a água. Quando nos aproximamos, estremeci. A brisa ficara mais forte, e, de repente, parecia estar mais frio.
— Essa não! — gritou Deinon, ao ver o que as pessoas estavam olhando. Um segundo depois, cheguei até onde ele estava e, sentindo um enjoo, vi um corpo boiando de bruços no lago.
Ao seu lado, havia um homem se esforçando para tirá-lo da água, mas era pesado demais para ele.
— Me ajudem! — berrou ele, mas a multidão ficou só olhando, ninguém se mexeu.
Eu queria ajudar e estava prestes a sair correndo, quando Deinon disparou na minha frente e mergulhou no lago. Imitei-o, com a água gelada me fazendo arquejar. O corpo estava rígido e inchado de água, o que o tornava extremamente difícil de manejar. Mas demos um jeito de arrastá-lo até a margem e o viramos de barriga para cima.
Era o corpo de uma moça, provavelmente não mais do que vinte anos e uma brancura cadavérica no rosto. O homem a rolou para colocá-la de bruços novamente, virou a cabeça dela para o lado e começou a pressionar as costas ritmadamente, enquanto a multidão se aproximava para assistir.
Esguichos de água jorraram da boca da garota, e fui invadido por uma súbita esperança de que aquilo a trouxesse de volta à vida. Mas ela não reagiu mais e, por fim, o homem parou e balançou a cabeça.
O que acontecera? Será que ela caíra de um dos barcos? Ou o seu rosto pálido significava que ela já estava na água há algum tempo?
Estremeci novamente e olhei para cima quando uma nuvem encobriu o sol. Deinon chamou a minha atenção e balançou a cabeça com tristeza.
Ouvi engasgos de susto e alguém gritou. Forcei-me a olhar para a garota de novo e notei o que provocara a reação: duas feridas profundas e roxas no pescoço.
— O sangue dela foi sugado — sussurrou Deinon.
Em um piscar de olhos, a multidão em torno do cadáver se dispersou, correndo ladeira abaixo rumo às casas mais próximas e à plaza além delas. Quando o homem que tentara ressuscitá-la passou por nós, vi sua expressão de pânico.
— Precisamos dar o fora daqui agora! — disse Deinon apressadamente. Ele pareceu apavorado ao espreitar ladeira acima, na direção das árvores.
Olhei para ele interrogativamente.
— O Hob a matou, e agora os borlas virão recolher o cadáver — explicou ele.
— Quê? Eles virão agora... neste minuto?
— Talvez não agora. Sem dúvida, em menos de uma hora. Eles provavelmente têm um espião escondido ali no meio das árvores. As pessoas fugiram e a área está deserta. Então eles chegarão em breve, pode ter certeza. Vamos embora antes que seja tarde demais!
Sem mais uma palavra, descemos a colina voando. Eu corri no encalço de Deinon.
Quando alcançamos a primeira quadra de casas, consegui recuperar a distância entre nós e coloquei a mão no ombro dele.
— Pra onde estamos indo?
— Pra casa de Tyron. É mais seguro lá. Todo mundo está indo pra casa trancar as portas e embarreirá-las. Precisamos fazer o mesmo.
— Vou ficar. Quero ver como são os borlas — falei.
O rosto de Deinon mostrou instantaneamente o que ele pensava da minha ideia.
— É perigoso, Leif. Arriscado demais. Se eles te virem observando, podem te levar também. O mais sensato é dar o fora daqui.
— Aquela pobre garota está morta! — retorqui, com a raiva crescendo dentro de mim e fazendo as minhas mãos tremerem. — Eu realmente gostaria de impedi-los de levar o corpo. Eu sei que não podemos evitar que eles façam isso, porque eles vêm em grande número, mas me sinto um covarde fugindo. Vou ficar e ver como são os nossos inimigos. Está vendo aquele monte de arbusto e mato alto? — Apontei para a esquerda. — Posso me esconder ali. Ficarei fora de vista e estarei seguro o bastante. De que lado eles virão, da cidade ou das árvores?
— Provavelmente das árvores — respondeu Deinon. — Às vezes eles perambulam pelas ruas da cidade, mas só depois do anoitecer.
— Então vou ficar pra ver. Não precisa se arriscar. Vai pra casa do Tyron. Eu vou ficar bem, pode deixar.
— Se você ficar, Leif, então, eu também fico. Você é novo na cidade e Tyron me pediu pra ficar de olho em você. Nunca vi os borlas em plena luz do dia antes. Uma vez eu avistei alguns perto da Roda, mas eles estavam a uma certa distância. Também quero ver os nossos inimigos.
Dirigimo-nos até o canteiro de arbustos e nos postamos ali, escondidos de qualquer um que descesse a colina em direção ao lago.
— Acho que daqui vamos ter uma boa visão — comentei.
Quando a espera começou, senti-me curioso, porém calmo. Minha raiva diminuíra, e eu não tinha a menor noção do perigo. Certamente estaríamos seguros ali, não estaríamos?
Mas, à medida que o tempo passava, meus sentimentos gradualmente mudaram. Comecei a me preocupar. Tyron não aprovaria isso. Diria que estávamos correndo um risco desnecessário. Olhei para trás, na direção da fileira de casas mais próxima. As portas estavam trancadas e as cortinas, fechadas. Todo mundo estava seguro dentro de casa, menos a gente. As pessoas da cidade sabiam exatamente do perigo dos borlas. Elas não correriam nenhum risco.
Esperamos e espreitamos em silêncio, enquanto cada vez mais dúvidas fervilhavam na minha cabeça. Após cerca de meia hora, Deinon começou a ficar inquieto, rastejou para perto de mim e sussurrou:
— Tyron vai começar a ficar preocupado. A notícia do que aconteceu já deve ter chegado até lá. Ele próprio deve estar trancando suas portas.
Deinon tinha razão. Tyron devia estar nos esperando agora. Eu não queria ficar mal de novo com ele. Senti algumas gotas de chuva no rosto e estremeci de frio. As minhas calças ainda estavam encharcadas por causa do nosso mergulho no lago. Tínhamos que voltar para casa logo.
— Vamos esperar só mais dez minutos, então, vamos embora. Tudo bem pra você? — perguntei.
Deinon fez que sim com a cabeça, e continuamos espreitando e esperando. Eu tinha certeza de que os dez minutos já tinham se esgotado, mas nenhum dos dois se mexeu para ir embora. Estava chuviscando agora, e a fina garoa estava atrapalhando a nossa visão.
Mas eu estava enxergando o suficiente.
Meu coração disparou quando os borlas saíram de repente do meio das árvores, galopando feito um bando de ratos cinza gigantes. Contei-os rapidamente. Havia pelo menos uns trinta. O líder era grande, talvez tivesse o dobro do tamanho de um homem, e corria de quatro. Os outros tinham tamanhos diversos. Alguns avançavam de quatro, a maioria se mantinha ereta, mas corria de um jeito estranho, que estava longe de parecer humano. Eles se deslocavam rápida e silenciosamente sob mantos cinza encapuzados que se arrastavam pela grama. Se descessem a colina nos procurando, pensei, eles nos pegariam em segundos.
Os borlas se juntaram ao redor do cadáver da garota, mas um deles, que estava na beirada do grupo, subitamente levantou a cabeça. Seu rosto era tão descarnado, que parecia quase uma caveira, com buracos ocos e pretos no lugar dos olhos. Ele dava a impressão de estar nos fitando diretamente.
Meu coração começou a martelar de medo. Certamente ele não poderia estar nos enxergando. Ou poderia? Talvez conseguisse sentir a nossa presença de alguma outra forma? Sem ser notado pelo resto do bando, ele se pôs a saltar colina abaixo, bem na direção do nosso esconderijo.
Deinon olhou para mim, com os olhos arregalados de pavor e começou a se levantar, como se estivesse prestes a se virar e sair correndo. Agarrei o seu braço e balancei a cabeça. Se entrássemos em pânico e fugíssemos, toda a horda de borlas nos perseguiria pelas ruas desertas. Não haveria ninguém para nos salvar. Seríamos caçados e levados para a cidadela do Hob. Nunca mais seríamos vistos.
O borla solitário parou perto do canteiro de arbustos. Estava olhando justamente na nossa direção, mas não se mexeu. Meu coração estava batendo tão forte, que tive certeza de que ele devia estar ouvindo. De repente, a criatura farejou ruidosamente, como se estivesse percebendo a nossa presença, e deu um rosnado que vinha do fundo da garganta. Será que ela era capaz de sentir o nosso cheiro? Talvez tivesse os sentidos mais aguçados do que as outras, que estavam interessadas apenas na garota?
O rosto do borla estava parcialmente nas sombras e, a princípio, pensei que ele tivesse uma barba, mas aí ele deu outro passo à frente, e vi que o seu rosto inteiro era coberto de pelos.
Ele rosnou de novo, e eu pensei que fosse nos atacar, mas aí ouvi um estranho assobio vindo dos outros borlas.
O líder gigante estava recolhendo o cadáver da garota e carregando-o para o alto da colina. O resto seguiu no seu encalço, e o borla perto da gente, talvez não querendo ser deixado para trás, saiu pulando atrás deles.
O momento de perigo passara, e os borlas logo desapareceram do nosso campo de visão.
— Para que eles querem o corpo dela? — perguntei a Deinon, deixando escapar um suspiro de alívio ao me dar conta do tamanho do risco que acabáramos de correr.
Deinon encolheu os ombros.
— Para entregar ao Hob, suponho. Ele matou a garota, agora, ela lhe pertence. Provavelmente chupou o sangue dela ontem à noite e a deixou boiando entre os juncos na margem do lago. Já aconteceu antes.
— Desculpa por ter te metido nessa — falei.
— Foi uma decisão minha também, Leif, então tenho tanta culpa quanto você. Essas criaturas normalmente caçam quando está escuro. Devíamos ter imaginado que elas não confiam apenas nos olhos. Aquele borla solitário não podia nos ver, mas sabia que estávamos escondidos aqui. Nós nos safamos desta vez, mas pode ser que no futuro não tenhamos tanta sorte. Vamos apenas torcer para que Tyron não descubra o que acabamos de fazer.
Fomos embora com um passo apressado, enquanto eu ruminava o que acabara de acontecer. Eu não conseguia entender aquele lugar... Por que deixavam isso acontecer em uma cidade que contava com forças armadas para proteger os habitantes?
— Por que ninguém faz nada a respeito? O Hob pode matar pessoas durante a noite, mas por que os borlas são autorizados a entrar na cidade e pegar o cadáver? Estamos em plena luz do dia, cadê a Guarda do Protetor?
— Eles nunca interfeririam nos assuntos do Hob. E hoje é sábado. Com exceção de alguns guardas deixados de plantão, a maioria está nos quartéis, entornando o caneco feito porcos, que é o que eles são. As coisas são assim, Leif. O Hob é quem manda.
— Mas tinha tantos borlas! Parecia um bando de animais selvagens — comentei.
— Sim, eles caçam em grandes bandos. E devia ter outros espiando nas árvores — disse Deinon.
Voltamos andando até a casa de Tyron. A plaza estava deserta, e começava a chover forte. Eu me sentia revoltado com o que acabara de testemunhar. Mais cedo naquele mesmo dia, tínhamos tomado suco sentados ao sol. Todos estavam se divertindo... E, durante todo aquele tempo, sem ninguém saber, o cadáver de uma garota estava boiando no lago, só esperando ser encontrado.
Hob e seus criados podiam fazer o que bem entendessem.
Que lugar terrível!
15
A lenda de Math
Comecei a me sentir como a expressão de um poder mais elevado, um aspecto de Nym, deusa de todos os modelos, movimentos e danças.
Eu não estava simplesmente dançando os modelos do Trigladius.
De certa forma, eu me tornara aqueles modelos.
O Testemunho de Math
Senti-me distraído no jantar. Não conseguia tirar da cabeça o rosto branco daquela pobre garota e fiz o maior esforço para acompanhar a conversa à mesa. Como sempre, Palm estava se gabando, tagarelando sobre os três lacs que Tyron prometera modelar para ele. O garoto nunca estabelecia contato visual comigo, mas Deinon estava escutando com uma expressão educada no rosto.
Dava para ouvir a conversa na outra ponta da mesa, na qual Kern, Tyron, Teena e Kwin estavam falando sobre a garota morta. Só uma coisa melhorou um pouco o meu humor: a certa altura, os meus olhos cruzaram os de Kwin, e ela sorriu. Era provavelmente apenas um sorriso amigável, mas o meu coração pulou de alegria.
Então, no final do jantar, Kern veio falar comigo.
— Tyron quer conversar com você no escritório dele daqui a uns cinco minutos. É o cômodo que fica lá no último andar da casa. É fácil de achar.
Fiquei apreensivo. Será que ele descobrira o encontro que eu e Deinon tivéramos com os borlas? Kern deve ter percebido a angústia no meu rosto, pois me deu um sorriso gentil e um tapinha nas costas.
— Não se preocupe Leif. Você não está encrencado. Mas não o deixe esperando!
Subi as escadas até o escritório de Tyron. Era a primeira vez que eu ia lá em cima. Apesar das palavras tranquilizadoras de Kern, eu estava muito nervoso. Também seria a primeira vez que falaria direito com Tyron desde que ele me aceitara de volta.
Bati de levinho, mas não houve resposta. Estava prestes a bater de novo, quando Tyron abriu a porta.
— Entre, Leif, e sente-se ali perto da lareira.
Sorri e tomei o assento que ele me indicara, dando uma olhada no escritório ao meu redor. Com painéis de mogno escuro e polido, era mobiliado com cadeiras de couro, e peles de lobo branco estavam dispostas sobre o piso de tábua corrida em frente à lareira. Era claramente o refúgio de um homem muito rico.
Enquanto percorria os olhos pelo lugar, pensando em como era diferente da casa na qual passara a infância, uma coisa chamou a minha atenção: na parede, havia uma caixa de vidro selada. Ela continha uma única prateleira, em cima da qual, sustentados por pesados suportes de livros talhados em forma de lobo, alinhavam-se seis ou sete volumes encadernados, de couro macio marrom. Pareciam muito antigos.
Tyron atravessou o cômodo até uma mesa no canto do fundo, pegou um decantador e se serviu uma taça de vinho tinto. Ele voltou com a taça na mão, se sentou na cadeira à minha frente, tomou um gole e sorriu para mim.
O sorriso foi tranquilizador e fez com que eu me sentisse mais à vontade.
— Kern me contou que você está se saindo bem. Disse que muitos dos passos te vêm naturalmente, como se você já os conhecesse. Quem te ensinou?
Hesitei antes de responder.
— Meu pai passou um tempo nesta cidade e sabia os passos do Trig. Ele me ensinou alguns movimentos. Como já contei, eu era um lutador de bastão.
— Muitos rapazes perderam os dentes da frente?
— Alguns perderam. Era um risco que a gente corria.
— Espero que a minha filha consiga poupar os dela — resmungou Tyron. — Já vai ser difícil conseguir casá-la do jeito que está, imagina sem! Sei que você e a Kwin são amigos, mas essa amizade traz certa responsabilidade. Entende o que eu quero dizer?
Será que o mestre estava prestes a me avisar para ficar longe da sua filha? Foi por isso que ele me convocara ao seu escritório?
— Olha, a Kwin é desmiolada. Ela aproveita qualquer oportunidade e é obcecada pela Arena 13. Eu sei que foi ela quem tomou a iniciativa de combinar aquela luta de bastão entre vocês. Sem dúvida, a minha filha venceu as suas resistências e te influenciou. Mas você também pode influenciá-la. O que vale para um vale para o outro. Tente enfiar um pouco de juízo na cabeça dela de vez em quando. Você faria isso?
Eu não tinha a mínima ideia de como fazer isso, mas fiz que sim e dei a resposta que eu achei que ele estava esperando.
— Claro, vou fazer o que puder. A Kwin tem pensamento próprio, mas vou tentar.
— É tudo o que eu te peço, Leif. Está sentindo falta de lutar com bastão?
Pensei nos garotos que eu conhecia lá em Mypocine. Nós éramos loucos para lutar na Arena 13 um dia. Era um sonho, algo que nos amparava enquanto dávamos duro para tirar o nosso sustento da terra.
A vida era diferente para quem trabalhava nas fazendas perto de Gindeen. Ali, o solo agrícola era fértil, o gado engordava e os fazendeiros se enriqueciam fornecendo carne e leite à cidade. A loteria só sorteava cinco vagas por ano. A grande maioria era comprada diretamente por pais ricos — eles podiam se dar ao luxo de bancar vagas de treinamento para os filhos junto aos melhores artífices. Foi assim que Palm arrumara a sua vaga. Era assim que ele seria capaz de manter três lacs e lutar atrás de um tri-glad.
— Eu gosto de treinar para a Arena 13, é muito melhor do que lutar com bastão. Não vou decepcionar o senhor novamente. Não precisa se preocupar.
Tyron aquiesceu. Pensei que ele estivesse prestes a me mandar descer, quando, de repente, fez uma pergunta que me pegou de surpresa:
— Você conhece o Math? — Ele me lançou um olhar penetrante.
Fiz que sim com a cabeça, mantendo o rosto inexpressivo.
— Sabe o que aconteceu com ele?
— Mais ou menos.
— Se souber o que aconteceu com o Math, você vai entender o Hob. Que foi, rapaz? Você está com uma cara estranha.
Mudei de assunto.
— Eu e o Deinon estávamos no lago quando eles encontraram a garota morta. Foi horrível. Não consigo tirar isso da cabeça.
— Então, você sabe o que esta cidade tem sofrido. Aquela garota morta no lago é só uma parte da tirania do Hob. Agora, vou te contar a proeza que o Math realizou na Arena 13. É uma coisa que você precisa saber. Se eu começar pelo começo, ainda estaremos aqui amanhã de manhã. Portanto, vou começar pelo fim do segundo ano do Math. No final daquela temporada, ele foi classificado em primeiro lugar nas Listas, e os fãs já estavam dizendo que ele era o melhor que já pisara nas tábuas da Arena.
“Ele se registrou com o nome Mathias, porém, todos o conheciam como Math. Ele pertencia à equipe de um cara chamado Gunter, que, naquela época, era quase o melhor artífice de Gindeen. Gunter, o Grande, assim o chamavam. Eles trabalhavam bem juntos. Gunter tinha muito jeito para modelar e Math tinha rapidez e era um ótimo lutador. A Arena 13 não viu ninguém que se igualasse àqueles dois desde então, e talvez nunca mais veja. Era uma verdadeira parceria.”
Tyron ergueu a taça e tomou um longo gole de vinho. Estava olhando para o nada, como se estivesse vendo um fantasma ou algo do passado. Encabulado, mudei de posição. Será que ele me chamara ali só para me contar velhas histórias?
— Na última noite da segunda temporada de Math, o Hob foi à Roda, trazendo consigo um tri-glad. Ele lançou o desafio de sempre, e um combatente min era moralmente obrigado a responder.
— O senhor estava lá? — perguntei.
Tyron confirmou com a cabeça.
— Eu era um dos combatentes min. Estava parado tão perto de Math, que eu poderia ter esticado o braço e encostado nele.
“Reunimo-nos na sala de espera embaixo da arena. Pyncheon, o marechal-chefe — ele era jovem naquela época, o mais novo que já tinha ocupado aquele cargo —, chegou carregando o globo de loteria feito de vidro fosco, que continha os palitinhos prateados. Quem tirasse o palitinho mais curto lutaria com o Hob. Havia dezenove palitinhos naquela noite, um para cada combatente min que tinha lutado nas Listas daquele dia. Obviamente, eu estava nervoso. Qualquer um de nós podia ser escolhido, o que significaria morte na certa.
“O Epson — você já o viu lutando —, puxou o primeiro palitinho. Até todos os palitinhos terem sido sorteados, era impossível saber qual era o mais curto, porém Epson parecia estar salvo. Mas aí, de repente, Math entrou a passos largos no centro do grupo e esbarrou violentamente no globo de loteria que estava nas mãos do Pyncheon. O globo de vidro caiu no chão e se espatifou, espalhando os palitinhos restantes em meio aos cacos. Math se ajoelhou rapidamente e escolheu um palitinho.”
— O palitinho mais curto — sussurrei.
Tyron me fitou durante um tempo antes de continuar.
— Houve um silêncio total na sala. Até o marechal-chefe o olhava fixamente, sem saber o que dizer. “Eu peguei o palitinho mais curto, então, o direito de combater é meu”, disse Math.
— Pyncheon não deve ter gostado, né? Math estava quebrando as regras descaradamente! — falei.
Tyron fez uma pausa para tomar um gole de vinho e me deu um sorriso.
— É, ele estava quebrando as regras. Todos nós esperamos em silêncio, chocados. Ninguém podia adivinhar como o marechal-chefe reagiria. Mas ele simplesmente fez uma reverência e aceitou o Math como desafiante. Math já tinha vencido uma luta contra o Hob. Ao quebrar o globo e se apoderar do palitinho mais curto, ele estava forçando o djinni a enfrentar o melhor adversário que a Roda tinha a oferecer: ele próprio. O Hob queria alguém para lutar; Math se ofereceu. Pyncheon aceitou e mandou todos os outros lutadores irem para os seus lugares.
“Naquela noite, nós, os dezoito combatentes sentados na galeria, observamos, angustiados, o tri-glad do Hob entrar na arena. Os lacs estavam vestidos de armadura preta e se movimentavam com uma rapidez e graça inacreditáveis. O Hob vinha logo atrás.
— Como era a aparência dele? — perguntei.
— Quando o Hob luta na arena, ele parece muito um combatente humano — respondeu Tyron. — Mas é maior do que a maioria, e seus braços são extraordinariamente compridos, iguais aos braços de um lac, e completamente sem pelos. Ele costuma usar um elmo de bronze que cobre a cabeça inteira, indo até embaixo, no queixo. Como a garganta fica acessível a uma lâmina, ninguém nunca pensou em reclamar — e, de qualquer forma, ninguém se atreveria.
“Não consegui acreditar nos meus olhos quando Math entrou na arena seguindo o seu lac e tomou posição de combate atrás dele. Ele estava usando um elmo prateado moldado à imagem de um lobo e segurando duas espadas. Até aquele momento, nenhum combatente humano tinha entrado na Arena 13 segurando espadas. Elas tinham uma função meramente cerimonial e eram carregadas no cinto. E, quanto ao elmo, por que não? Se o Hob podia, por que o Math não poderia? Sabe por que o elmo tinha a forma da cabeça de um lobo?”
Fiz que sim com a cabeça e disse:
— Porque ele era genthai...
— Isso mesmo. Ele era genthai.
A palavra significava “o povo do lobo”.
— Hoje temos alguns deles lutando no Trig, mas o Math foi o primeiro representante do seu povo a competir, mudando de nome para obter uma licença. É claro, mais para o sul, perto de Mypocine, você não morava longe das terras tribais dos genthais. Você via exatamente como as pessoas podem ser discriminadas. Não é mesmo, rapaz?
Encolhi os ombros.
— Rola muito comércio lá no sul. As pessoas provavelmente sofrem mais discriminação aqui em Gindeen.
Tyron me olhou intensamente e prosseguiu.
— No início, Math apenas esperou. Até mesmo quando o tri-glad do Hob lançou o primeiro ataque e ouvimos o choque de lâmina contra lâmina, nem assim ele se mexeu.
— Igual ao Epson no combate da outra noite? — perguntei.
— Exatamente. Mas aí o lac de Math deu dois passos ligeiros para frente, reforçando a sua vantagem, e o Math pisou onde ele tinha pisado e se agachou novamente, esperando. Os lacs adversários atacaram mais uma vez, mas, dessa vez, dois do tri-glad distraíram o lac solitário, e o terceiro, vindo do lado, deu uma arrancada repentina, procurando a carne dele. Math rodopiou para enfrentá-lo e investiu para frente. O seu lac deu meia-volta para protegê-lo, mas era tarde demais: ele já estava comprometido. Ele evitou a primeira das espadas, mas a segunda o acertou bem na têmpora, um golpe que teria rachado o seu crânio ao meio...
— O elmo do lobo o salvou — falei. — Onde ele o arrumou?
Tyron ignorou a minha pergunta. Suspeitei que ele estivesse ficando irritado pelas minhas interrupções.
— Math estava curvado, recuperando-se da pancada que tinha recebido na cabeça, mas, para nossa surpresa, ele subitamente se endireitou, metendo sua lâmina no encaixe de garganta do lac de Hob. O lac caiu para o lado e para trás, quase arrancando a espada da mão do Math, mas ele a segurou firme.
“Foi impressionante! Eu mal conseguia ouvir os meus próprios pensamentos, de tão alto que foi o barulho da multidão. Um combatente humano tinha derrubado um lac! Isso nunca tinha sido feito antes. Era inédito! Mudou a maneira como pensamos sobre as lutas na arena. Math mostrou que era possível, e, embora seja difícil de realizar, isso agora acontece uma ou duas vezes a cada temporada.
“Claro, o combate ainda não tinha acabado. Math foi para trás do seu lac e se manteve muito perto das costas dele. Modelado pelo brilhante Gunter, ele era capaz de lidar com os dois lacs restantes do Hob. O combate certamente terminou antes de o gongo chamar Hob e Math para lutarem na frente dos seus defensores. Math tinha vencido, e todos os torcedores na galeria foram à loucura.
“Tínhamos acabado de vivenciar um momento muito significativo. Contra o Hob, sempre era uma luta até a morte, mas, até então, sempre era o combatente humano que morria. Às vezes, eles ficavam gravemente feridos, sendo reivindicados pelo Hob, levados para a cidadela e nunca mais eram vistos. Mas, agora, o jogo tinha virado. Um silêncio se abateu sobre a arena.
“O que Math faria? Será que ele ousaria liquidar o djinni? O Hob ainda estava segurando suas espadas. Será que ele resistiria ou aceitaria a derrota insinuada pelo fimencerrado dos seus lacs?
“Logo descobrimos. Math partiu para cima, e o Hob não ofereceu resistência. Então, com capricho, Math fez uma incisão na garganta dele, deixando a cabeça presa ao pescoço. O Hob caiu de joelhos, com os braços compridos e sem pelos pendendo inertes ao lado do corpo, e desmoronou de cara no chão. Mas todos os nossos olhos estavam voltados para o sangue que jorrava da sua garganta. O líquido era carmim, tinha uma cor muito mais viva do que o sangue derramado de qualquer homem ou animal. As pessoas ficaram falando sobre aquilo durante dias.”
— Então Math venceu — falei, arquejando.
Mas Tyron balançou a cabeça sinistramente.
— Você chama isso de vencer, Leif? Uma vitória? Não, não foi uma vitória nem de longe! Aquele era apenas um dos seus corpos djinnis, um dos seus muitos eus. Aquele foi somente o primeiro round.
— Então o Hob voltou à arena na noite seguinte? — perguntei. Eu tinha a impressão de que Hob sentiria sede de vingança.
— Não, o Hob retornou muito mais tarde, na temporada seguinte. Dessa vez, o marechal-chefe nem se deu ao trabalho de pegar o globo de loteria. Seus olhos se fixaram nos de Math, que, com um breve aceno de cabeça, ofereceu-se voluntariamente para o combate. E, para quem teve coragem de se sentar na galeria e assistir, parecia que o Hob estava ainda mais terrível do que da outra vez.
“Ao atacarem Math, nenhum lac arriscou a própria garganta. Em vez disso, eles se concentraram no lac solitário, encurralando-o tanto, que foi um tremendo esforço manter-se no centro da arena. Mas Math lutou com grande disciplina.
“Dessa vez, o combate durou quase vinte minutos, Leif, com ambos os combatentes lutando na frente, vulneráveis às lâminas. Porém, mais uma vez, Math venceu. Mais uma vez, o sangue rubro vivo do Hob manchou as tábuas da arena.
— Por quanto tempo as lutas se repetiram? Palm me disse que o Math derrotou o Hob quinze vezes.
— Isso, exatamente quinze. Foi assim durante semanas. Mas quanto tempo uma situação dessas pode continuar, rapaz? Tinha de dar em alguma coisa.
— O que o senhor quer dizer? — perguntei.
— Pense um pouco. Quantos dos seus o djinni estava disposto a perder na arena? E lembre-se: o Math tinha somente um corpo e uma vida. A coisa não podia continuar para sempre, né? Foi uma noite, na metade do verão, que se mostrou decisiva. O dia todo, uma tempestade vinha ameaçando cair, e, no começo da noite, o céu foi subitamente rasgado por um imenso raio branco em forma de tridente. O trovão que retumbou logo em seguida parecia anunciar o fim do mundo. Logo depois, a tempestade desabou, enfurecida, como se os deuses estivessem atirando raios em cima das nossas cabeças.
“Mas isso não perturbou a multidão de torcedores, que se precipitaram para dentro da Roda, dirigindo-se à Arena 13. Havia gente demais para caber na galeria. Eles se juntaram animadamente em torno do Onfalo, no andar acima das arenas, desesperados para obter notícias sobre a chegada do Hob. E os agentes de apostas estavam deitando e rolando, né?
“As pessoas apostavam se o Hob daria as caras ou não, quando exatamente o golpe vencedor seria desferido, se era provável Math repetir a façanha de abater um lac com a sua espada ou não e em que momento, de fato, o próprio Math sucumbiria ao tri-glad do Hob. Havia até mesmo apostas sobre como Math reagiria se fosse derrotado pelo Hob e levado vivo da arena.
“Dessa vez, a luta estava bem equilibrada. Durante certo tempo, parecia que Math seria estraçalhado pelos ataques violentos e ferozes do Hob, mas aí o gongo soou, e ambos os combatentes se posicionaram na frente dos seus lacs.
“Como você sabe, os combatentes normalmente são mais cautelosos a essa altura do campeonato, mas Math jogou a cautela para o alto. Com passos rápidos demais para olhos inexperientes, com as espadas relampejando ele estava bem no meio do tri-glad de seu inimigo.
“Alguns dizem que o Math derrubou, com suas lâminas, os três membros daquele tri-glad. Já outros afirmam que foi somente um e que o lac solitário esticou seus braços compridos por cima dos ombros e da cabeça dele para acertar as contas com os outros dois. Eu estava lá, mas tudo aconteceu rápido demais para os meus olhos conseguirem ver e, até hoje, não tenho certeza.
“De qualquer forma, essa vitória trouxe uma mudança. Daquele dia em diante, o Hob passou a visitar a arena com menos frequência, mas, a cada vez, era derrotado mais facilmente. Porém, à medida que as probabilidades anunciadas pelos agentes de aposta se mostravam cada vez mais a favor de Math, as pessoas começaram a ficar assustadas. O medo se transformou em um terror irracional e sombrio, e elas se puseram a abandonar a cidade.”
— E quantos dos seus o Hob tem? Alguém sabe? Quantos o Math teria que derrotar para alcançar uma vitória final? — perguntei.
— O Hob é um djinni, criação dos melhores artífices que já existiram. Sua tecnologia está além do alcance do nosso conhecimento. Ninguém sabe quantos estão escritos nos verbatis que o governam, então, não se sabe quantas vezes é preciso matá-lo para destruí-lo completamente — explicou Tyron. — Como eu disse, as pessoas estavam fugindo da cidade. A princípio, foram apenas os fazendeiros e negociantes voltando mais cedo para suas casas distantes, mas aí os próprios habitantes de Gindeen começaram a ir embora.
— Mas não faz sentido! — deixei escapar, apesar da advertência de Tyron. — Math estava vencendo, então, por que eles estavam assustados?
Pensei que o mestre fosse ficar aborrecido com a minha interrupção, mas ele simplesmente suspirou e respondeu à minha pergunta.
— Eles temiam mais um Hob derrotado do que um Hob vitorioso, porque ele é um djinni, com todos os poderes obscuros de tal criatura. É perigoso acuá-lo contra a parede. Que horrores ele poderia soltar na cidade se ficasse desesperado?
“Foi o Hob que finalmente quebrou o impasse, propondo um combate definitivo para decidir as coisas. Caso fosse derrotado, ele nunca mais visitaria a Arena 13. Em troca, pediu para Math passar o combate inteiro na frente do seu lac solitário, enquanto ele próprio lutaria atrás do tri-glad. Era uma proposta revoltante e injusta, mas, para alívio de todos, Math aceitou. Agora as pessoas estavam com medo. Até os amigos do combatente genthai queriam que a situação se resolvesse.
“Ninguém imaginava que o Math pudesse vencer aquele décimo-quinto combate. Ao entrar na Arena 13 naquela noite, ele devia estar se sentindo completamente sozinho.
“Porque, sabe, dois dias antes daquela luta, Gunter morreu subitamente enquanto ceava. Dizem que ele foi envenenado.”
— O Hob poderia ter feito isso? — indaguei.
Tyron encolheu os ombros.
— Ele certamente pode ter tramado o assassinato, mas isso nunca foi provado. Porém, apesar de as probabilidades estarem contra ele, Math venceu aquele combate final, embora isso lhe tenha custado caro. Ele ficou gravemente ferido e perdeu muito sangue. Sua perna esquerda sofreu danos irreparáveis, e ele passou a mancar. Por causa disso, nunca mais pôde lutar na Arena 13. Imagina só! Aquela era a vida de Math, e agora ele tinha perdido tudo para sempre.
“No entanto, o Hob não cumpriu sua palavra. Ele ainda visita a Roda para lançar desafios, e isso ainda é o fim para alguns infelizes combatentes min. O Diretório da Roda sofre uma perda financeira considerável. Isso pesa no bolso de todos nós, porque os combatentes e artífices são obrigados a arcar com a taxa que é arrecadada para compensar o déficit. Então, cada um paga de acordo com os seus ganhos. O que eles cobram de mim é tão exorbitante, que afeta o que eu posso me permitir gastar em lacs naquele ano.
“No fim das contas, o Hob foi o vencedor. Math perdeu o que ele mais amava: lutar na arena. Alguns dizem que foi tudo em vão, mas eu não concordo. Math e Gunter inspiraram toda uma geração de artífices e combatentes. Eles nos mostraram o que era possível fazer.
“Assim, Math foi viver o resto dos seus dias com a tribo genthai. Dizem que ele morreu lá, em paz, em meio ao seu próprio povo.
Tyron levou a taça aos lábios e bebeu o resto do vinho. Quando me encarou novamente, seus olhos estavam severos e sisudos.
— Mas eu e você sabemos mais do que isso, né, rapaz? Ambos sabemos onde a lenda acaba e a vida do homem continua. Então me diga, Leif, filho de Math: o que leva um filho a renegar o próprio pai?
16
A covardia de Math
Quem dá os primeiros passos raramente dá os últimos.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
— Como o senhor descobriu? — perguntei.
— Comecei a suspeitar na segunda vez em que nos encontramos — disse Tyron, atravessando o escritório para encher novamente a sua taça com vinho. — Não foi só o jeito como você pegou a faca que eu atirei na sua direção. Foi o jeito como você fez uma reverência depois: a postura do seu corpo, o instante de hesitação antes da reverência e depois a inclinação do seu ombro esquerdo um pouquinho antes do direito. Faça isso na arena, e qualquer um que tenha visto o seu pai lutar reconhecerá que você é filho dele.
Ele voltou para a sua cadeira e, após tomar um gole de vinho, continuou:
— Foi exatamente a mesma coisa quando você enfiou a lâmina no encaixe de garganta do lac de treino e fez uma reverência depois. Você tem a mesma arrogância, a mesma autoconfiança do seu pai. Ambas são qualidades vitais quando se deseja alcançar sucesso na Arena 13.
“E, claro, se eu prestar atenção, consigo enxergar as feições dele nas suas. Quando se sabe o parentesco, fica claro como água. Eu queria ter certeza, por isso, mandei alguém ir até Mypocine para descobrir a verdade. Ele conversou com o fazendeiro para quem você trabalhava e voltou há cinco dias, confirmando o que eu já suspeitava.”
Minha mente voltou no tempo.
— Foi por isso que o senhor me deu uma segunda chance...
— Foi. Mas essa chance depende de você me dizer a verdade agora.
Dizer a verdade não era fácil. Eu nunca contara a ninguém a história toda, nunca nem insinuara nada a ninguém naquela cidade. Era difícil forçar as palavras a saírem, mas era preciso fazê-lo. Meu futuro com Tyron e minha esperança de lutar na Arena 13 dependiam disso.
— O Hob assassinou a minha mãe. E o meu pai simplesmente se manteve à distância e deixou isso acontecer. Depois, ele se matou.
— Esse é só o resumo da ópera. Ou você acrescenta música ou vai procurar outro artífice! — vociferou Tyron, com os olhos soltando faíscas.
— Meu pai não voltou para o povo dele. Ou, se voltou, não ficou muito tempo por lá. Ele comprou uma pequena fazenda no sul de Mypocine. Logo depois, conheceu a minha mãe, Shola. Ela não era genthai. Nasci dois anos depois. Fui o único filho deles.
Apesar da amargura que eu estava sentindo agora, não pude deixar de sorrir ao recordar a minha infância. Meu pai gostava de trabalhar na fazenda, e eu sabia o quanto ele me amava e amava a minha mãe. Nós éramos felizes, muito felizes. Com frequência, penso que nunca mais serei tão feliz como eu fui.
Tyron me arrancou das minhas reflexões.
— E foi com o seu pai que você aprendeu alguns passos do Trig? Math não guardava segredo com você, sobre o passado dele?
— Sim e não. Ele me mostrava as espadas com cabos em formato de cabeça de lobo, mas nunca falava muito sobre a época em que lutava lá. Nunca me contou o que o senhor acabou de me contar. Eu nem sonhava que ele era tão bom até ver o quadro acima da cama de Palm e ele me contar que era Math. As quinze vitórias contra o Hob foram um choque total para mim. Eu e a minha mãe o chamávamos pelo seu nome genthai, Lasar. Ele nunca me contou que tinha lutado contra o Hob.
“Aí, quando eu tinha apenas onze anos, aquilo começou. Havia pessoas morrendo até lá, mais ao sul, mas eu nunca pensei que o Hob visitaria a nossa fazenda. Foi horrível... Aconteceu ao longo do verão e continuou no início do outono. Ele vinha toda semana e sempre depois do anoitecer. Minha mãe descia a colina e atravessava o riacho para encontrá-lo na floresta. Ela não conseguia resistir, eu sei... Ele controlava a mente dela. No início, meus pais esconderam de mim a situação e tentaram fingir que não havia nada de errado, mas eu logo percebi tudo quando vi minha mãe saindo de casa sozinha tarde da noite. Então, ouvi algumas das coisas que eles diziam um ao outro, e o nome Hob vivia sendo mencionado. Minha mãe chorava. Meu pai gritava. A situação se tornou insuportável.
“Eu não tinha a menor ideia da razão pela qual o Hob tinha nos escolhido, a menor ideia de quem o meu pai realmente era. Implorei para ele fazer alguma coisa, qualquer coisa. Mas ele nem tentava. Em vez disso, dava murros de frustração na parede até seus punhos sangrarem. Dizia que não podia fazer nada, senão o Hob viria matar todos nós. Então, não importa quem o meu pai tenha sido na arena, porque depois daquela época ele mudou. O senhor fala sobre o meu pai como se ele fosse um herói, mas eu vi o outro lado dele. Era um covarde que deixou a minha mãe morrer.
“Toda vez que voltava da floresta, ela vinha um pouco mais pálida e fraca. O Hob estava chupando cada vez mais o sangue dela. Aí, uma noite, ela simplesmente não voltou. Logo após o amanhecer, desci a colina seguindo o meu pai. Os sapatos da minha mãe ainda estavam na margem do riacho. O corpo dela jazia entre as árvores.”
Minha garganta ficou apertada, e eu solucei, com o corpo inteiro tremendo.
— Vá com calma, Leif. Pode levar o tempo que quiser para me contar — reconfortou-me Tyron.
Demorei um tempo antes de conseguir continuar.
— Meu pai chorou durante um tempão, mas depois ficou com muita raiva. Eu nunca o tinha visto assim antes. Até aquele momento, ele nunca tinha encostado um dedo em mim, mas aí começou a me bater, afugentando-me da fazenda.
“Voltei mais tarde, me escondi e observei à distância ele queimar o corpo da minha mãe. Foi somente quando ele pôs fogo na casa que eu entendi o que ele estava pretendendo fazer. Desci a colina correndo, mas ele já estava morto. Pela soleira da porta, vi o corpo dele deitado no chão, coberto de sangue. Por fim, as labaredas me obrigaram a recuar. Não havia nada que eu pudesse fazer.”
Relembrei toda a cena, e lágrimas rolaram pelas minhas bochechas. Quando virei o rosto de constrangimento, Tyron pousou a mão brevemente no meu ombro. Finalmente, pude prosseguir.
— Um vizinho, o Barrow, me acolheu. Ele tinha uma fazenda um pouco mais longe, lá embaixo, no vale. Fiquei com ele durante três anos, até ganhar aquele bilhete azul. Ele me fazia trabalhar pesado. Um prato de comida e um teto acima da cabeça eram o meu único ganho. Tirando os bastões que eu usava para lutar, tudo o que eu possuía eram as minhas roupas do corpo.
“Mas o Barrow me contou, sim, que o meu pai tinha lutado na Arena 13 com o nome Math, embora nunca tenha me dito o quanto ele era bom.”
— Você enfrentou mais tormentos do que a maioria dos rapazes da sua idade e conseguiu superá-los. Por isso, merece ser parabenizado, Leif — disse Tyron, com o semblante mais suave. — E agora você está aqui, alimentando a esperança de se tornar um combatente na Arena 13, assim como o seu pai foi. Ou tem mais alguma coisa? Vamos lá, rapaz, seja sincero comigo. Quero ouvir você dizer a verdade.
— Mas eu fui sincero. Não contei nenhuma mentira! — gritei, com as emoções me dominando. — Nenhuma mentira, mesmo!
— Você pode mentir por omissão — observou Tyron, com a voz muito calma. — Mentir deixando coisas não ditas. Você não foi totalmente franco comigo. Então me diga: por que está aqui nesta cidade? O que você realmente quer alcançar?
Apesar da insistência, sua expressão estava amável. Minha raiva esmoreceu. Respirei fundo, e então as palavras que eu vinha guardando dentro de mim há muito tempo saíram em uma torrente:
— Um dia eu quero lutar contra o Hob na arena. Quero matá-lo! É por isso que estou aqui.
Tyron suspirou e esvaziou a taça.
— Eu bem que pensei que essa seria a sua intenção. Você não escutou nada do que eu disse esta noite? Foi por isso que eu descrevi exatamente o que aconteceu com o seu pai. Mesmo se você vencer, o Hob simplesmente voltará. Ele pode lutar inúmeras vezes, mas você só pode perder uma vez e depois já era! Já era para sempre!
— O senhor acha que eu não sei? Mesmo depois que o meu pai se aposentou da arena, o Hob o perseguiu e fez a minha mãe de vítima. Ele é vingativo e implacável. Não tenho ilusões sobre o que poderia acontecer comigo depois se eu perdesse. Mas valeria a pena correr o risco. Eu gostaria de matá-lo infinitas vezes. Meu pai o derrotou quinze vezes. Farei o mesmo, quantas vezes forem necessárias, até ele não ter mais nenhum sobrando! Não aceitarei nenhum trato com ele. Nunca lutarei na frente do meu lac durante um combate inteiro, como o meu pai fez, e nunca deixarei o Hob seguro atrás do tri-glad. Vou acabar com ele!
Tyron balançou a cabeça, cansado.
— Olha, rapaz, quero que você me prometa uma coisa. Se um dia você for sorteado no globo de loteria para lutar contra o Hob, então, que assim seja. Era para acontecer. Mas o que o seu pai fez com o globo, escolhendo a si mesmo deliberadamente para o combate... Isso eu não admito de jeito nenhum. Entendeu?
Fiz que sim com a cabeça.
— Você promete então?
— Prometo.
— Muito bem. E tem mais uma coisa. Você escondeu de mim a identidade do seu pai, então, pelo menos por enquanto, esconda isso de todo o mundo. Eu confio que o homem que mandei a Mypocine ficará calado, mas a verdade vai acabar vazando, o que deixará as coisas muito mais difíceis. Você sofrerá muita pressão. Não será só a expectativa de provar que você é outro Math. O seu pai tinha tanto amigos quanto inimigos. Qualquer um com tanto sucesso sempre faz inimigos. Então, você pode atrair atenções indesejáveis.
“E a sua identidade poderia afetar as probabilidades estabelecidas pelas casas de aposta. Sabe, se você provar que é tão bom quanto eu acho que você será, podemos ganhar uma boa quantia... mas só se tivermos a vantagem da surpresa. Entende o que eu estou dizendo?
Eu dissera a Tyron coisas que nunca revelara a ninguém antes e me sentia exausto e esgotado após a nossa longa conversa. Mas também estava inteiramente disposto a acatar os seus desejos. Meu coração estava martelando de emoção. O mestre tinha fé em mim! Lembrei o que ele acabara de dizer — tão bom quanto eu acho que você será — e fiquei radiante de alegria.
Quando fiz que sim com a cabeça novamente, Tyron deixou escapar um profundo suspiro. Então, inclinou-se para frente e pousou a mão no meu ombro mais uma vez.
— Vou concluir com algo para você pensar a respeito. O Math que eu conheci foi o homem mais corajoso que já encontrei na vida. Nós treinávamos juntos na equipe do Gunter quando éramos garotos. Você está esquecendo onde você, filho único dele, entra nessa história toda. E se a sua mãe tivesse insistido para que Math não fizesse nada porque ela temia por você? Temia que o Hob lhe matasse? Então, depois que ela morreu, ele te afastou... E você ainda está vivo. O Hob sempre acaba sabendo tudo um dia. Através de você, ele teria encontrado um jeito de punir o Math ainda mais. Mas o seu pai se matou e queimou a casa na fazenda, para que todos os vínculos entre vocês dois desaparecessem. Ele te libertou, te deu uma chance de viver. Enfim, é o que eu penso.
17
Dinheiro
Gunter era o meu professor. Eu o considerava muito melhor do que um dia eu seria. Minhas pernas eram apenas os instrumentos de dança que serviam sua mente sagaz.
Mas, então, isso mudou.
A Nym apareceu para mim em uma visão.
O Testemunho de Math
Palm se mostrara dócil desde o meu retorno, mas, na manhã seguinte, voltou a ser aquele garoto irritante e presunçoso. Toda vez que o via, eu o detestava ainda mais. Havia uma raiva crescendo lentamente dentro de mim.
— Tyron prometeu que o meu novo tri-glad ficaria pronto antes do final do dia — anunciou ele, enquanto estávamos nos vestindo. — Terei três meses inteiros para me preparar para o Torneio dos Discípulos. É tempo mais do que suficiente.
Palm deu um sorriso afetado e cheio de si, esperando alguém dizer alguma coisa. Mas, como ninguém respondeu, veio gingando cheio de marra até mim. Eu estava sentado no pé da minha cama, calçando as meias.
— Que tal uma aposta? — sugeriu ele. — Imagine um desafio, só entre eu e você?
O que Palm estava tramando?
— Não tenho dinheiro — retruquei.
— Não tem problema. Você vai ganhar dinheiro um dia. Pode ficar me devendo.
— Qual é a aposta? — perguntei.
Ele deu um sorrisinho ainda mais afetado.
— Só isso: que você não vai vencer nenhum combate no TD.
Levantei os olhos e encarei-o fixamente, sentindo o ódio ferver. Era verdade que eu não teria muito tempo para me preparar. Poderia ser sorteado contra um combatente mag como Palm, que já recebera mais meses de treinamento do que eu. Ou então poderia enfrentar outro novato. Meu bilhete de loteria fora premiado. Será que eu teria sorte uma segunda vez? Afinal, a primeira fase da competição era uma liga na qual os lutadores acumulavam pontos. Só mais tarde ela se tornava uma competição eliminatória. Então, eu tinha dois rounds garantidos. Com certeza conseguiria vencer um deles...
— Quanto? — perguntei.
— Mil decs!
Era uma quantia absurda. Equivalente ao que um negociante ganhava em um ano de trabalho pesado. Dava quase para comprar um lac com tanto dinheiro.
— O valor é muito alto — reclamei.
— É pegar ou largar — intimou ele, lançando-me um olhar condescendente.
— Negócio fechado! — vociferei, desesperado para fazer sumir aquela expressão da cara dele. Mas a que se seguiu foi tão desagradável quanto a primeira.
Parecia que ele sabia algo que eu não sabia.
— Você pode ser rápido — disse ele —, mas isso não vai contar muito na Arena 13. Não é igual a lutas de bastão e nem um pouco parecido com o treinamento. São os lacs que decidem um combate, e eu terei os melhores que o dinheiro pode comprar. Meu pai é rico; você, nem pai tem. O dinheiro dele vai pagar os meus lacs e o salário do Tyron. O mestre ficará inteiramente ocupado preparando o meu tri-glad, então, não terá muito tempo sobrando para satisfazer as suas necessidades. Você já perdeu antes mesmo de começar.
Olhei de relance para o quadro do meu pai. O de Palm tinha dinheiro; o meu estava morto. Era verdade. Mas o meu pai fora o melhor lutador que a Arena já vira. Eu parecia ter herdado sua rapidez e habilidade. Mas, de que adiantaria contra os lacs superiores de Palm?
— Isso é o que nós veremos. Você pode acabar tendo uma surpresa. — retorqui.
Minhas palavras soaram fracas e vazias, e Palm simplesmente continuou sorrindo de modo afetado. Dei-me conta de que eu fora manipulado a aceitar uma aposta idiota que provavelmente perderia. O mundo era dividido entre ricos e pobres. Eu estava claramente em desvantagem ali, mas disposto a dar o melhor de mim para provar que Palm estava errado.
O café da manhã normalmente era silencioso, mas, hoje, em vez de dar apenas um curto aceno de cabeça, como de costume, em direção à ponta da mesa em que nos sentávamos, Tyron foi até lá e deu um tapinha amigável nas costas de Palm.
— O seu tri-glad ficará pronto por volta da hora do almoço. Vou descer e supervisionar eu mesmo a sua primeira aula — anunciou o mestre.
Era isso que significava ter um pai rico. Em vez de delegar a tarefa a Kern, Tyron deixaria de lado suas obrigações na Roda e ajudaria Palm.
Assisti àquela aula, sentado no banco ao lado de Deinon, enquanto Tyron apresentava a Palm o seu tri-glad e começava o processo de fundi-los em uma unidade de combate. O rosto de Palm era uma imagem de prazer e orgulho, e, no fundo, eu não podia criticá-lo. Os três lacs eram impressionantes. Não era só o fato de eles estarem vestindo armaduras novinhas em folha, que brilhavam à luz das tochas. Eles se movimentavam com uma rapidez e fluidez que não se comparavam a nada que eu já vira na arena. Fiquei observando com inveja.
Após cerca de uma hora, Tyron fez uma pausa e botou o tri-glad para dormir, mandando Palm se juntar a nós no banco. Então, chamou Deinon.
— Agora, vamos dar um jeito em você, rapaz — disse ele.
O mestre atravessou a sala, foi até um banco do outro lado e retirou a capa de um lac. Ele cuspiu em um encaixe e o inseriu na garganta da criatura.
— Acordado! Em pé! — ordenou.
Embora o pai de Deinon não fosse rico o bastante para pagar um lac novo, Tyron se mostrara generoso ao lhe fornecer um. Aquele ali tinha um aspecto muito bom. No entanto, notei que o mestre só dedicara cerca de vinte minutos de seu tempo a Deinon. Mesmo assim, o garoto ficou claramente satisfeito e, no final daquela curta aula, seu rosto inteiro estava radiante de alegria. A certa altura, ele se virou para mim e fez um sinal de aprovação, com o polegar para cima.
Depois, foi a minha vez. Tyron retirou a capa de outro lac e pronunciou os dois primeiros comandos de sempre: Acordado, Em pé.
O lac se levantou do banco e ficou a postos na frente de Tyron.
— Autoverificação! — ordenou ele, virando-se então para mim. — Muito bem, rapaz, este será o seu lac até que eu diga o contrário. Por enquanto, ele dá para o gasto, por isso, você o utilizará no torneio.
Meus olhos avaliaram os arranhões e amassados da armadura, além da fenda profunda no elmo, logo acima dos olhos. Era o lac de treino que todos nós usávamos durante as aulas. Fiz um esforço para esconder a minha decepção.
Escutei um riso abafado de deboche às minhas costas. Olhei de relance para trás e vi Palm lutando para segurar as gargalhadas. Quando o encarei, ele se controlou, mas parecia triunfante. O estado do meu lac provava que o garoto estava certo. Virei-me novamente de frente para a criatura e, de rabo de olho, vi Tyron me fitando.
— Tente se mostrar um pouquinho mais entusiasmado — repreendeu-me ele, balançando a cabeça. — Tem um antigo ditado que diz: Em cavalo dado não se olham os dentes.
Fiz que sim com a cabeça.
— Ótimo. Então, sabe o que estou querendo dizer — disse Tyron. — Você não está pagando por ele, está? Tudo o que você tem de fazer é pôr as pernas para trabalhar e ficar pronto para a arena.
— Mas é o lac de treino! — exclamei, incapaz de esconder a minha decepção. — É lento demais!
— Era lento. Agora, não é mais. Para olhar direito os dentes deste cavalo dado, seria preciso analisar a modelação dele. Se você tivesse a habilidade de ler Nym, veria que ele foi modificado e preparado para o combate.
Aquiesci, mas devo ter me mostrado descrente, pois Tyron foi até a parede, tirou uma espada Trig da bainha mais próxima e a entregou a mim.
— Uma ação vale mais do que mil palavras, por isso, vou demonstrar a diferença.
Ele levantou a bola de couro que usávamos nas sessões de treinamento e sorriu, virando-se de frente para o lac.
— Relatório! — comandou ele.
— Pronto — esganiçou-se o lac.
— Postura de combate! — Tyron entregou ao lac a pesada esfera de couro. — Quando estiver pronto, rapaz — continuou ele, retirando-se.
Aproximei-me do lac e comecei a dança. Dois passos para a esquerda, dois passos para a direita.
Dessa vez, fiz uma diagonal inversa para a direita. Recuei tão rápido quanto pude. Agora que eu estava em ação, sentia-me muito melhor. Mostraria a Palm o quanto eu era rápido. Enquanto dançava, percebi o meu corpo começando a pensar no meu lugar. Quando o lac veio atrás de mim, parti direto para cima dele com a espada, visando o encaixe de garganta. Eu estava me sentindo confiante. Não podia errar!
Um segundo depois, senti uma tremenda pancada na cabeça e me vi sentado no solo da área de treinamento. Tentei falar, mas a minha mente estava entorpecida, e nenhuma palavra saiu. A espada Trig estava no chão, fora de alcance.
Escutei Palm dar uma gargalhada alta. Quando olhei de relance, vi lágrimas de diversão rolando pelas suas bochechas. Até mesmo Deinon estava sorrindo.
Tyron me pôs de pé.
— Foi tão rápido, que nem deu para ver de onde vinha! Talvez isso faça você se sentir melhor — disse ele.
Eu estava me sentindo mal por ter sido jogado no chão, mas, ao mesmo tempo, isso mostrava que o meu lac tinha a rapidez necessária para enfrentar um combate na arena. Refleti que o riso fora merecido e acenei com a cabeça, arrependido.
— Desculpa. Eu fui um todo. Obrigado por ter deixado o meu lac tão rápido — agradeci.
Palm podia rir por enquanto, mas, no fim das contas, talvez ele não fosse ganhar a aposta.
Para minha surpresa, Tyron permaneceu conosco pelo resto da manhã. Ele nos deu uma aula de modelação, principalmente em meu benefício. Disse que seria revisão para Palm e Deinon e exigiu total concentração deles.
Deinon parecia satisfeito, pois gostava de modelar, mas dava para ver pela cara de Palm que ele não estava contente. Não era só que estivesse entediado. Ele se sentia claramente superior àquilo tudo e estava irritado por ter de aturar essa aula em meu benefício.
Em contraste, eu estava finalmente começando a entender muito do que Tyron estava dizendo. Eu nunca me tornaria um bom modelador, mas agora já conseguia acompanhar os conceitos básicos. E, quanto mais entediado Palm se mostrava, mais eu apreciava o gostinho de sua irritação e incômodo.
— Cada artífice usa a Nym de um jeito ligeiramente diferente — explicou Tyron —, mas alguns verbatis são comuns a todos. Eles podem ser chamados para introduzir sequências de modelos pré-construídos na ação.
“Ao chamar um verbati, você chama vários ao mesmo tempo. Vejam bem, a Nym é o que chamamos de “linguagem extensível”. Cada modelador pode ampliá-la criando e adicionando novas variações ao dicionário. Verbatis estão integrados em outro maior, portanto, há verbatis dentro de verbatis. Se você chamar um, outros virão a reboque.
“E alguns deles são ferramentas — continuou Tyron. — O chamado Novt é um dos importantes, que é uma forma especializada do verbati chamado Salamandra. Ele é utilizado para explorar a mente de um lac e investiga profundamente os confins sombrios da memória, relatando o que encontra. A mente de um lac é um labirinto emaranhado, capaz de uma complexidade cada vez maior. Se conhecer as voltas e reviravoltas dela, você pode adicionar meandros que você mesmo criou.
No final da tarde, pela primeira vez, fui autorizado a ficar sozinho durante uma hora na área de treinamento.
Privacidade era essencial. Eu estava ali para começar o lento processo de utilizar o Ulum para desenvolver um entendimento com o meu lac. Eu diria à criatura o que fazer, tamborilando com os pés no chão. Eu ainda não tinha botas Trig, por isso, por enquanto, bater com as solas dos pés teria de bastar.
Tyron me dissera para manter a simplicidade. Eu trabalharia com isso durante anos. A sofisticação viria com o tempo.
O meu lac estava adormecido, deitado de costas em cima de um banco na beira da área de treinamento. Fui até ele e pronunciei o primeiro comando:
— Acordado!
Seus olhos se abriram, cintilantes, e me observaram sem piscar. Por um instante, senti receio. Lacs ainda me deixavam nervoso.
— Autoverificação! — ordenei.
Menos de um segundo depois, a criatura respondeu com sua voz rouca e gutural:
— Pronto.
O lac fora preparado por Tyron, portanto, sua armadura, incluindo o encaixe de garganta, já estava no lugar. Eu só precisava fazê-lo se levantar e começar.
— Em pé!
Ele obedeceu imediatamente, erguendo-se do banco e ficando em pé na minha frente, com os olhos vermelhos me observando de modo penetrante. Ele parecia estar me encarando estranhamente, o que me deixou preocupado. Lacs teoricamente não eram para ser criaturas conscientes, mas aquele ali definitivamente parecia ser. Será que ele estava pensando sobre mim?, fiquei me perguntando. Nesse caso, o que estava passando pela cabeça dele?
Agora, eu tinha de lhe dizer que iríamos desenvolver e praticar o código sonoro, construindo uma comunicação entre nós que não fosse entendida por mais ninguém. Não era exatamente o caso, pois o Ulum composto por um novato era tão simples que a maioria dos espectadores conseguia entendê-lo em minutos. Levaria anos para garantir que as minhas instruções ficariam verdadeiramente ocultas dos observadores.
— Iniciar modo Ulum — ordenei.
— Modo iniciado.
Disseram-me para começar com a manobra básica, que era chamada “Básico1”. Ela consistia em dois passos para a esquerda, dois passos para a direita, seguidos por uma diagonal direita inversa. Dei a instrução:
— Básico1 = Primeiro sinal.
Eu já decidira qual seria o meu sinal para esse movimento, então, bati forte duas vezes com o meu pé esquerdo descalço nas tábuas e depois dei uma batida curta e brusca com o direito.
— Entendido — confirmou o lac.
— Sair do modo! — ordenei, esperando que ele reagisse agora em condições de combate. — Postura de combate!
O lac deu um passo para frente na área de treinamento, como se estivesse enfrentando um adversário, e eu me posicionei atrás dele. Então, bati com os pés nas tábuas para fazer o sinal da manobra básica.
Meu lac reagiu, dando os passos que eu indicara. Infelizmente, fiquei tão concentrado em tamborilar com os pés que ele saiu andando rápido demais para eu acompanhar. Durante um segundo, fiquei exposto ao adversário. Na arena, eu teria sido cortado em pedacinhos. Era preciso acompanhar o lac muito de perto.
Assim, repeti a instrução e tentei de novo. Após ensaiar cinco vezes, eu era capaz de dar o sinal e depois quase acompanhar certinho. A essa altura, decidi acrescentar outro sinal. Duas pancadas fortes com o pé direito e uma batidinha leve com o esquerdo significavam o oposto, e eu terminaria com uma diagonal esquerda inversa.
Pratiquei durante cerca de meia hora, dançando atrás do meu lac, até ficar todo suado de tanto esforço. Era um trabalho difícil, lento e frustrante, mas eu começara a progredir um pouco. Foi quando que eu ouvi três batidas fortes na porta. Fiquei surpreso. O tempo sozinho na área de treinamento era estritamente limitado e não costumava ser interrompido.
Quando abri a porta, vi Kwin parada do lado de fora. Fiquei feliz por vê-la. Sorri por dentro. Três batidas deveriam ter-me dito quem era.
— Quer uma ajudinha? — propôs ela.
— Com o Ulum? Pensei que esse código fosse para ser confidencial...
— E é confidencial — respondeu ela, com um sorriso afetuoso —, mas não tem muita importância nos estágios iniciais do treinamento. Você só está tentando obter um pouco de coordenação com o seu lac. E, sejamos realistas, você não vai me enfrentar na arena. Eu poderia dar uma mãozinha, mas depende de você...
Sorri de volta.
— Entra, então. Eu preciso de toda a ajuda que puder receber — convidei.
18
A Comunalidade
Cuidado com o que fica embaixo,
Porque você colhe o que planta.
Amabramdata: O Livro Genthai de Profecias
Cinco semanas depois, eu estava realmente começando a entrar em uma rotina e a gostar do meu treinamento.
Àquela altura, Palm e eu estabelecêramos uma situação constrangedora de hostilidade silenciosa. Nunca falávamos um com o outro, a menos que o nosso treinamento assim o exigisse. Mas Deinon e eu nos dávamos muito bem, e eu vivia esperando impacientemente os nossos passeios pela cidade aos sábados. A nossa amizade irritava Palm, que raramente falava com Deinon agora.
Durante a semana, o treinamento era exaustivo, e eu geralmente caía no sono assim que encostava a cabeça no travesseiro.
Entretanto, na terça-feira à noite da sexta semana, eu mal tivera tempo de me despir quando ouvi três batidas fortes na parede.
Hesitei. Da última vez, eu fora expulso por ter atendido àquelas batidas, porém, seria legal ir bater um papo com Kwin. Ela vinha me ajudando com o treinamento do código sonoro do meu lac duas vezes por semana. Eu adorava ficar junto dela, mas não queria acompanhá-la em mais uma de suas aventuras noturnas pela cidade. Mesmo assim, não consegui me obrigar a ignorar suas batidas. Decidi ir explicar como eu me sentia.
Palm me olhou de cara feia, mas Deinon sorriu. Acenei para ele com a cabeça, abri a porta do quarto de Kwin e entrei, fechando-a atrás de mim. A garota estava usando suas botas, e seus lábios estavam pintados de vermelho e preto, como se ela pretendesse ir à galeria da Arena 13.
Fiquei apreensivo.
— Hoje à noite, vou te mostrar uma coisa que o meu pai nunca nem menciona — anunciou Kwin.
Não gostei nada do tom dela. Se Tyron nunca tocava no assunto, é porque devia haver uma boa razão. Era algo que provavelmente me deixaria em apuro novamente.
— Isso significa que vou acabar trabalhando no abatedouro de novo? — perguntei, lançando um sorriso cansado a Kwin. Reuni minhas forças para dizer a ela que eu não iria. Ela não gostaria da minha resposta, portanto, eu tinha a intenção de dar a notícia com gentileza.
Ela balançou a cabeça e disse:
— Se o meu pai soubesse aonde você foi, ele não ficaria contente, mas não haveria nenhum problema sério.
— Foi o que você disse na última vez: que ele sempre faz o que você manda. E olha só no que deu!
— Confia em mim! Dessa vez é diferente e vai abrir os seus olhos. Vamos para a Roda de novo, mas hoje visitaremos a Comunalidade embaixo da Roda, lá, onde são guardados lacs de proprietários que não podem se dar ao luxo de alugar alojamentos particulares.
— Desculpa, Kwin, mas não vou me atrever a arriscar. O seu pai me deu uma segunda chance, e eu não quero decepcioná-lo.
— Não seja bobo, Leif! Você conhece as regras: é proibido lutar com bastão e beber. Não vamos desobedecer a nenhuma delas esta noite. É só para te mostrar uma coisa que ninguém vai te mostrar. Isso vai te dar outra ideia de como as coisas funcionam por aqui. Você topa ou não?
Eu estava prestes a dizer não e voltar para o meu quarto, quando Kwin fez algo completamente inesperado. Ela pegou e apertou a minha mão. Em seguida, ainda segurando-a, chegou muito perto de mim e me beijou na bochecha. Os nossos corpos estavam quase encostando um no outro, e a minha respiração ficou ofegante.
Não era na boca, mas era definitivamente mais do que um simples beijo maternal. Quando seus lábios tocaram na minha bochecha, ela acariciou suavemente a palma da minha mão com o polegar, e eu senti perfume de lavanda em sua pele.
Quando ela apertou a minha mão com ainda mais força e me puxou para segui-la, não consegui resistir.
Kwin foi andando do meu lado, segurando a minha mão, enquanto atravessávamos a cidade, e só a largou quando chegamos ao início das ruas pavimentadas nos arredores da Roda. Entramos pela porta que conduzia ao subsolo das arenas.
Dessa vez, havia poucas pessoas nas paragens. Uma mulher sozinha estava andando de um lado para o outro ali fora, com os braços cruzados na frente do corpo, como se quisesse se proteger do frio.
Logo depois, descemos degraus de pedra, com os passos ecoando na escuridão. Continuamos cada vez mais fundo por uma estreita escada em espiral, sendo envolvidos por uma penumbra crescente, pois as tochas eram cada vez menos frequentes nas paredes.
— Pensei que fosse perigoso aqui embaixo... Que a gente precisasse descer em grupo... — comentei.
De repente me dei conta de que eu talvez tivesse cometido um grande erro. O fato de Kwin ter me beijado e segurado a minha mão roubara o meu bom senso.
— O que seria a vida sem um pouco de perigo? — disse ela, por cima do ombro.
Os degraus terminaram e Kwin saiu correndo por um túnel. Fui atrás e notei algo estranho acima de nós. Crescendo no teto do túnel havia uma colônia de fungos, com seus frutos globulares brancos suspensos em cachos grossos.
— Ei, Kwin, o que é aquilo? — perguntei.
Ela se virou e olhou para onde eu estava apontando.
— É de comer? Esse negócio me lembra duma iguaria que dá em um penhasco alto bem no norte de Mypocine, mas os frutos são vermelhos, e não brancos. Os alpinistas arriscam a vida para colhê-los, mas ganham muito dinheiro vendendo-os na feira.
— Se comer esse troço, você vai cair durinho em um minuto — retorquiu Kwin. — Chama-se “skeip” e é extremamente venenoso. Antigamente, ele só crescia nos níveis mais baixos da Comunalidade, mas agora está se espalhando para cima. Dizem que ele se alimenta do sangue que pinga nessas cavernas vindo da Arena 13. Besteira supersticiosa, claro, mas, aqui embaixo, a superstição procria mais rápido do que ratos cinza sarnentos. Mas de uma coisa eu sei: nunca se deve ficar parado diretamente abaixo de um cacho. Quando o skeip está maduro, às vezes pinga veneno dele.
Com um sorriso sinistro, Kwin se virou e seguiu em frente, até que finalmente chegamos a um pequeno espaço aberto. À nossa frente, vi as entradas de três túneis.
— Não importa muito qual deles a gente escolher — disse Kwin. — Todos os três levam ao mesmo lugar. A Comunalidade é um labirinto de cavernas e túneis que se estendem muito além do perímetro da Roda, descendo dentro da própria rocha. Quando estiver aqui embaixo, siga sempre os túneis que estiverem iluminados por tochas. Isso significa que eles passam regularmente por manutenção. Se você se perder, não vai demorar muito para alguém te encontrar. Enfim, vamos por esse aqui. É um caminho mais longo, mas eu quero te mostrar onde os lacs são guardados.
Embora o túnel estivesse iluminado, havia grandes intervalos entre as tochas, e algumas partes eram muito escuras. Refletindo, concluí que ficar perdido ali embaixo no escuro seria, de fato, assustador.
Kwin estava andando rápido, distanciando-se cada vez mais à minha frente. Por que a pressa?, perguntei-me. Chegamos a uma parte muito escura do túnel, e, de repente, não consegui mais enxergá-la nem um pouco.
Parei. Dava para ouvir água pingando em algum lugar bem próximo, mas não havia nenhum som de passos adiante. Será que ela virara em algum túnel lateral enquanto eu simplesmente seguira reto? Por um momento, senti uma ponta de pânico e respirei fundo para me acalmar.
Então, recebi um tapinha no ombro, e o meu coração pulou até a boca. Virei-me para trás, sentindo a presença de alguém (ou de alguma coisa) parado bem perto de mim. Por um instante, fiquei apavorado, mas aí senti aquele perfume de lavanda e ouvi Kwin dar risadinhas.
Fiquei furioso. Aquele não era o meu estilo de piada.
— Levou um susto, né? — disse ela, baixinho. — Talvez eu deva segurar a sua mão de novo para ter certeza de que você não vai se perder!
Ela me guiou escuridão adentro, e, enquanto íamos andando de mãos dadas de novo, toda a raiva se evaporou do meu peito.
Em seguida, o túnel começou a se estreitar. Kwin apertou a minha mão e sorriu.
— Estamos chegando a um dos dormitórios agora — anunciou ela.
Atravessamos um pequeno arco de pedra. Olhei para cima e fiquei tonto, pois, de cada lado, vi um caleidoscópio de catres de pedra forrados com finas camadas de palha, fileira após fileira, empilhados uns em cima dos outros, indo do chão até o alto teto encurvado. Centenas de lacs podiam ser armazenados ali.
Eu já havia passado um tempo trabalhando com o meu lac e superara a maior parte do medo e incômodo que eu experimentara quando vira pela primeira vez o pequeno dormitório de lacs na Roda. Mas agora eu tinha ficado impressionado com o que estava diante dos meus olhos.
A maioria das prateleiras estava ocupada, e eu vislumbrei cabeças raspadas, solas amareladas de pés calosos, barrigas e peitos brilhantes de suor e bocas moles abertas para o ar rançoso que fedia a urina e cachorro molhado. Sem falar nas fendas de garganta, com suas bordas rosadas e o vestígio desconcertante de um roxo mais escuro ali dentro.
Havia tantos lacs! Lacs para caramba! Eles estavam muito perto, mas, agora, apenas dormiam, colocados em um profundo transe para fins de armazenamento.
— Não é uma visão bonita, né? — disse Kwin.
— É meio desconcertante ver tantos lacs juntos assim — respondi.
Ela concordou com a cabeça.
— É algo que a maioria dos espectadores nunca tem a oportunidade de ver. É um pouco como o abatedouro: as pessoas devoram um bife e apreciam o sabor, mas não querem pensar sobre o animal vivo que é massacrado e desmembrado para que elas possam encher a pança. É isso que os lacs sofrem. Eles lutam e treinam, mas, na maior parte do tempo, dormem.
Eu não me senti à vontade até termos deixado para trás, sãos e salvos, o dormitório e continuarmos seguindo pelo túnel.
— Há quantos dormitórios aqui? — perguntei.
—Três — respondeu Kwin. — Os artífices mais bem-sucedidos, como o meu pai, possuem seus próprios locais de armazenamento no nível imediatamente inferior às arenas, mas a maioria guarda os lacs aqui embaixo. A maior parte dessas criaturas luta nas Arenas 1 até 12. Mas também tem, claro, os lacs ferozes e...
— Ferozes?
— Quero dizer lacs selvagens, sem dono.
— Você está brincando!
Os lacs usados na Arena 13 eram comprados do Comerciante com essa finalidade. Lacs selvagens fora do controle humano era algo que eu jamais poderia imaginar.
— Você vai ver. Não é muito longe.
Kwin estava me deixando nervoso. Será que havia realmente lacs ferozes mais adiante no nosso caminho ou será que era mais uma de suas piadinhas?
Para o meu alívio, chegamos apenas até uma grade de ferro que barrava a entrada de um escuro túnel lateral, que descia com uma inclinação íngreme.
— Olha ali — disse Kwin, apontando para uma parte da grade. Ela fora recentemente consertada. O resto estava enferrujado e era muito mais velho. — Esse túnel foi lacrado, e por uma ótima razão. Há lacs lá embaixo, ninguém sabe quantos, fora de controle e sobrevivendo como podem, provavelmente comendo ratos e uns aos outros. As partes perigosas foram lacradas assim. O problema é que nem mesmo o Cyro sabe a localização de todos os túneis. Como eu disse, siga sempre os que estiverem bem iluminados.
— Quem é Cyro?
— É o oficial responsável pela Comunalidade, que é toda esta zona subterrânea. Há cozinhas aqui embaixo, áreas de treinamento e até mesmo zonas de combate ilegais. O Cyro governa tudo isso. Vou te mostrar quem ele é daqui a pouco.
Ela se virou e foi me guiando por outro túnel. Em seguida, alcançamos uma elevação, e sob os nossos pés, havia uma grande descida. Estávamos olhando para um anfiteatro natural cercado de tochas. Até então, não tínhamos visto nenhuma alma viva, portanto, fiquei surpreso com a quantidade de pessoas reunidas ali. Centenas de pessoas estavam sentadas em volta de uma arena, e dava para ouvir um burburinho surdo, que parecia uma colmeia de abelhas sonolenta em uma tarde quente de verão. O ar estava abafado, úmido e muito parado, com cheiro de suor rançoso.
Nos fundos, os assentos eram elevados. Estava claro que as fileiras mais altas ofereceriam a melhor vista. A iluminação não era boa, aquela arena carecia do imenso candelabro da Arena 13, sendo dependente da luz das tochas dispostas ao seu redor. O resultado disso era que muitos dos assentos ficavam no escuro.
A arena propriamente dita era iluminada apenas por pares de tochas cruzadas, posicionadas no alto de pilares em cada canto. As beiradas eram marcadas simplesmente por uma ligeira depressão no solo. Em vez de lutarem dentro de um espaço delimitado por paredes, assim como nos combates da Arena 13, eu tinha a impressão de que os combatentes ficariam constantemente saindo do ringue.
— Olha o chão da arena — disse Kwin, como se soubesse o que eu estava pensando. — Olha a areia.
A área de combate estava forrada com uma espessa cobertura de areia, e também havia montes de areia ao lado de cada pilar.
— Eles colocam areia para absorver o sangue. Lacs lutam uns contra os outros aqui embaixo e não usam nenhuma armadura. Eles só têm o encaixe de garganta. Teoricamente, obtém-se vitória por fimencerrado, igual nas lutas da Arena 13, mas, em geral, o perdedor morre. É um negócio sangrento, sério! — explicou Kwin.
— O que os impede de sair da arena? — perguntei.
— Espere para ver. Você vai ficar chocado.
De repente, o burburinho aumentou de volume e ecoou no teto e nas paredes da caverna. Um homem entrou na arena e levantou os braços, pedindo silêncio. Ele era gordo, e sua barriga pendia por cima do largo cinto de couro.
— Aquele é o Cyro — sussurrou Kwin. — Vem, vamos ficar para assistir ao primeiro combate. Todo esse negócio me dá nojo, mas acho que você deveria ver, porque aí vai se dar conta de como algumas realidades são repugnantes nesta cidade. Essa é a única coisa boa que eu posso dizer em favor do meu pai. Apesar da ganância, ele não tem nada a ver com o que rola aqui embaixo.
— Se é ilegal, então, por que ninguém põe um ponto final nessa história? — indaguei.
— Porque é tudo uma questão de dinheiro — respondeu Kwin, torcendo a boca para baixo, em desgosto. — Lacs morrem aqui toda noite, mas ninguém faz nada a respeito, porque é lucrativo para todos os envolvidos, principalmente para as casas de aposta. Cyro também tira uma quantia que é ainda mais gorda do que a barriga dele. Só os lacs sofrem, e, aqui embaixo, quem liga para as necessidades deles?
Fitei-a, espantado. Estava claro que essa prática a afetava profundamente.
— Mas eu achava que eles não eram conscientes como nós — observei.
— Isso é o que todo o mundo diz, mas eu não acredito nem um pingo nisso, você acredita? — perguntou Kwin.
Lembrei-me do jeito como o meu lac olhara para mim, quase como se estivesse me avaliando.
— Eles podem não ter o mesmo raciocínio que a gente — continuou Kwin —, mas com certeza tudo o que se mexe e respira tem algum tipo de consciência, né? E não venha me dizer que eles não sentem dor! Na Arena 13, eles são protegidos pela armadura, mas, aqui embaixo eles sofrem ferimentos graves.
Cyro saiu da arena e, instantes depois, dois lacs entraram, posicionando-se um de frente para o outro, cada um empunhando duas espadas compridas. Dava para ver os anéis de metal que circundavam o pescoço deles, mantendo o encaixe de garganta no lugar. Porém, com exceção de tapa-sexos — um vestia azul, e o outro, verde —, eles estavam pelados. Não estavam usando nem botas. Pela primeira vez, eu estava vendo corpos de lacs em posição ereta e em movimento.
As cabeças eram completamente carecas. De fato, eles pareciam não ter pelo em lugar nenhum. A pele deles fora untada com óleo e brilhava à luz das tochas. As costas, ombros e braços eram extremamente musculosos. Os braços pareciam ainda mais compridos sem a armadura, mas as pernas me surpreenderam. Pareciam quase finas demais para suportar os corpos volumosos. Então, me dei conta de que elas haviam sido projetadas para alcançar rapidez.
Subitamente, ouvimos um assobio estridente, e um círculo de lâminas compridas, cada uma com mais de um metro de altura, com os gumes virados para dentro, brotaram do solo para marcar os limites da arena.
Kwin tinha razão. Eu fiquei chocado. Sabia o que aquilo significava para uma carne nua.
A demarcação assinalava o início do combate, e os dois lacs começaram a rodear um ao outro cautelosamente.
De uma só vez, eles deflagraram a ação, rodopiando e retalhando com suas espadas. Fiquei impressionado com a rapidez deles. Os movimentos eram muito mais rápidos do que tudo o que eu já vira na Arena 13. Talvez as regras do Trig e a tarefa de defender combatentes humanos os deixassem mais lentos.
Eu quase não vi a espada que fatiou o bíceps do lac de tapa-sexo azul. O sangue espirrou para cima, provocando vivas e gritos animados da plateia. Um segundo depois, o lac ferido contra-atacou, rasgando o peito do adversário vestido de verde, que cambaleou e quase caiu.
Eles recuaram e ficaram rodeando um ao outro novamente, com o sangue pingando na areia.
Mais uma vez, eles se engalfinharam violentamente, em uma confusão de punhaladas e cortes. As espadas acertavam os alvos sem parar. O sangue esguichava e escorria, cintilando feito chuva vermelha à luz das tochas.
Era horrível de ver. Eles estavam cortando um ao outro em pedacinhos. Eu só queria que aquilo terminasse.
Mas o final foi ainda pior.
O lac de azul foi empurrado para trás, em direção à beira da arena. Não havia nenhuma parede para detê-lo, e ele não estava perto de nenhum dos quatro pilares. Foi forçado a recuar até as lâminas. Ele deu um giro contra elas, e suas pernas foram cortadas em pedaços. Em seguida, ele caiu em cima das lâminas, enquanto o outro lac não parava de estraçalhá-lo.
Os espectadores estavam em pé agora, gritando e batendo o pé de satisfação diante da carnificina. Suas vozes se elevaram em um grande rugido que ressoou pela caverna. Mas, por cima dessa algazarra, era possível ouvir um ruído terrível: o guincho agudo e agonizante do lac morrendo no meio das lâminas.
Kwin se virou de costas, dobrou o corpo, e eu a escutei vomitar. Eu também sentira náusea por causa do espetáculo e, no momento em que senti o cheiro do vômito dela, fiquei enjoado, e o meu estômago se agitou com espasmos rápidos e dolorosos.
Quando terminei, olhamos um para o outro sem dizer nada. Então, nos retiramos e voltamos para o túnel. Kwin estava andando ainda mais rápido do que antes.
— Isso precisa acabar! — declarei, com raiva, mas ela não comentou. — Para onde estamos indo agora?
— Para a luta de bastão — respondeu ela. — Ah, não esquenta não! Meu pai te proíbe de participar, mas não de assistir.
Dez minutos depois, descemos e entramos em uma pequena gruta, na qual um combate já estava acontecendo. Havia poucos espectadores, provavelmente não mais do que uns cinquenta, o que era uma sorte, pois a gruta era minúscula e tinha um teto baixo, quente e claustrofóbico.
Eu só vi um agente de apostas vestindo faixa azul ali, encostado na parede com uma expressão de tédio no rosto. As regras pareciam ser as mesmas de Mypocine. Não havia nenhuma arena claramente definida, e a luta corria solta, andando para trás e para frente, usando todos os limites do espaço disponível, empurrando a multidão, que se dispersava e se contraía de acordo com as investidas.
Mas eu reparei que eles estavam lutando um contra um, algo que raramente fazíamos na minha terra natal. Em Mypocine, geralmente era um contra três.
Paramos um pouco à distância, e eu avaliei os lutadores. Logo ficou óbvio que só poderia haver um vencedor. Talvez fosse por isso que o agente de apostas parecesse estar tão entediado. Um dos lutadores estava claramente brincando com o adversário, tirando proveito do combate para exibir suas habilidades. Ele era alto e musculoso, tinha cabelos escuros, e eu tinha certeza de já tê-lo visto em algum lugar antes.
— Quem é aquele? — perguntei.
— É o Jon — respondeu Kwin —, um combatente da Arena 13. Luta na posição min pela equipe do Wode. Está no terceiro ano e está se saindo muito bem, mas nunca será tão bom quanto o Kern. Ele é bom mesmo, nisso aqui: luta de bastão. É o melhor lutador de bastão da cidade.
A última frase de Kwin mexeu comigo, e eu senti uma agitação dentro de mim. Era como um desafio. Será que ele era bom mesmo?, fiquei me perguntando. Talvez eu fosse melhor. Mas certamente não podia nem sonhar em lutar contra ele.
— Ele é autorizado a praticar ambas as lutas?
— Claro que é. O Wode não liga. Essa é apenas uma regra do meu pai. Um monte de combatentes jovens vem aqui embaixo para lutar. Lutas de bastão são permitidas. O Diretório da Roda não interfere. É melhor do que lutar com facas. É o que eles costumavam fazer antes de a proibição entrar em vigor. Muitos rapazes eram mortos todo ano neste mesmo lugar.
O combate acabou subitamente quando Jon furou a guarda do adversário e bateu de revés na têmpora esquerda dele. O golpe foi dado com pouca força, demonstrando um comedimento que eu nunca vira em Mypocine. O bastão nem derramou sangue.
Jon fez uma reverência ao adversário e foi o fim do combate. Os espectadores se precipitaram até o rapaz e lhe deram tapinhas nas costas. Ele era claramente muito popular, mas, enquanto estava sendo parabenizado, seus olhos estavam esquadrinhando a multidão, como se estivessem procurando alguém. Um instante depois, ele sorriu e se pôs a caminhar bem na nossa direção.
Seu sorriso parecia se destinar a mim, e eu fiquei confuso, mas logo percebi que ele estava olhando para Kwin. E aí eu o reconheci. Eu já vira aquele rosto duas vezes. A segunda vez foi quando Deinon o apontara no café da plaza.
Era o namorado de Kwin.
Eles se abraçaram e, quando Jon recuou um pouco, com o braço direito ainda apoiado nos ombros de Kwin, notei como o corpo dela se inclinava na direção dele, e ambos se olharam no fundo dos olhos, como se não houvesse mais ninguém ao redor. Senti uma súbita pontada de ciúme.
Por que ela pegara a minha mão?, fiquei me perguntando. Será que ela estava brincando comigo? Ou apenas me provocando? Ou talvez fosse o jeito que ela tinha de demonstrar amizade? Afinal de contas, o beijo que ela me dera fora apenas na bochecha, e não na boca.
— Jon, este é o Leif, o novato do meu pai — disse Kwin, por fim.
Era verdade. Enquanto último recruta da equipe de Tyron, eu era oficialmente o “novato”, mas não gostava da palavra.
— Todo amigo da Kwin é amigo meu — declarou Jon, com sua voz grave. Eu me lembrava dessa voz desde a minha primeira visita à Roda. Naquela vez, ele parecia triste e magoado. Agora, estava radiante de alegria, como se tudo estivesse certo no mundo e ele fosse a pessoa mais feliz do universo.
Acenei com a cabeça e tentei sorrir, mas achei difícil.
— É uma pena que você esteja trabalhando para o pai da Kwin — disse Jon. — Ela me falou muito sobre você. Acha que você poderia ser um oponente de verdade.
— Concordo, mas ele já me expulsou uma vez, então, não quero arriscar — respondi.
— Fiquei sabendo também — disse ele, sorrindo. — Enfim, Leif, você nos dá licença um instante? Preciso trocar algumas palavras em particular com a Kwin. Não vamos demorar.
Eu me senti magoado, mas sabia que estava sendo tolo. Fiquei imaginando que aquele beijo era uma coisa que na verdade não era. Eu estava prestes a ir embora, mas Jon manteve o braço em volta dos ombros de Kwin e se afastou, guiando-a através da multidão, para um túnel lateral e fora de vista.
Enquanto esperava que eles retornassem, assisti a duas outras disputas, mas não estava concentrado. Não gostei de Kwin estar com Jon. Não era nada pessoal, eu não tinha nada contra ele. Eu só não gostava da ideia de Kwin estar com alguém.
Kwin voltou sozinha e não parecia contente.
— Vem, vamos embora — esbravejou ela, conduzindo-me de volta à superfície por um caminho mais rápido.
Logo depois, estávamos trançando o nosso itinerário pelas ruas escuras da cidade, e Kwin andava a passos largos em um ritmo furioso.
— Que foi? — perguntei.
— Nada! Não me pergunte. É pessoal! — disse ela, curta e grossa.
Fiquei aborrecido com o tom dela. Era óbvio que ela brigara com Jon.
— Olha, eu não quero me meter na sua vida pessoal, mas não venha descontar os seus problemas em cima de mim! — retruquei, com raiva.
Ela não respondeu, e, quando chegamos ao seu quarto, nem demos boa-noite um ao outro.
Então, lá estava eu de volta ao meu quarto, achando impossível cair no sono.
19
Os borlas
Os borlas são iguais aos nós franjados na bainha da capa de Hob.
Cada um está impregnado de veneno.
Vamos dá-los de comer ao mestre deles.
Amabramdata: O Livro Genthai de Profecias
Bati na porta do escritório de Tyron no edifício administrativo, na mesma sala na qual conversamos pela primeira vez. Eu havia solicitado um encontro, e ele estava me esperando. O meu mês de teste terminara algumas semanas antes, e ele ainda não me dissera se eu passara ou não.
Será que ele me aceitaria definitivamente como discípulo?
O mestre acenou com a cabeça para o assento de couro, sentei-me de frente para ele, do outro lado da mesa grande. Minha boca estava seca. Dei o melhor de mim... mas terá sido o suficiente?, pensei.
— Você pediu para me ver, então, o que posso fazer por você? — disse Tyron, sorrindo.
— Estou aqui por dois motivos. Primeiro, para perguntar se eu passei no meu período de experiência, e, segundo, para responder à pergunta que eu fiz no meu primeiro dia de treinamento. Eu perguntei por que não lutávamos na Arena 13 somente homem contra homem. Perguntei por que precisávamos dos lacs. O senhor me disse para tentar tirar uma conclusão sozinho.
— Então, vá em frente, Leif. Me diga a resposta que você encontrou.
— Não cheguei a uma única resposta clara. Pensei em várias razões, mas a maioria delas é apenas um palpite — declarei.
— Não tem problema, Leif. Apresente as suas hipóteses, sou todo ouvidos.
Eu pensara sério durante um tempão sobre o que eu diria a ele. Portanto, respirei fundo e comecei.
— Acho que a maneira como lutamos tem muito a ver com tradição e geração de riqueza. Quando as pessoas fazem as coisas de um jeito durante um tempo suficientemente longo e isso dá certo, elas simplesmente continuam fazendo tudo igual. Os combates da Arena 13 são uma indústria. Eles proporcionam trabalho aos artífices, aos combatentes e àqueles que lhes prestam serviços. As casas de aposta criam mais emprego e riqueza. Mas eu acho que o combate Trigladius — três espadas — data de uma época ainda mais antiga, de coisas que aconteceram antes da derrota do homem e da construção da Barreira. Naquele tempo, algo aconteceu, talvez alguma forma de combate ou diversão, e é isso que a Arena 13 imortaliza. Mas o que nós fazemos hoje pode ser apenas uma imagem pobre do que ocorreu naquela época.
Olhei para Tyron e vi que o seu rosto estava impassível.
— E pode haver também indícios na crença genthai, da qual o meu pai me falou. Quando eu tiver oportunidade, estou planejando ir visitá-los, porque assim talvez eu possa aprender mais sobre os rituais deles.
Tyron encolheu os ombros.
— Você claramente refletiu sobre a sua resposta, Leif — concluiu ele, sorrindo. — Ela é tão boa quanto o que a maioria das pessoas consegue imaginar. Eu mesmo penso muito sobre a questão. Um dia, espero aprender mais, então, estou ansioso para ouvir o que você vai descobrir com os genthais. — Ele fez uma pausa e sorriu para mim. — Com exceção da luta de bastão, você começou com o pé direito. Passou no seu mês de teste. Parabéns!
Tyron esticou o braço para baixo, pegou um embrulho atrás da mesa e o jogou para mim.
— Abra! — ordenou ele.
Era um par de botas Trig. Elas eram de excelente qualidade e exalavam o agradável cheiro de couro novo. Agora, eu tinha as minhas próprias botas, não haveria mais treinamento com os pés descalços. Isso melhoraria o meu desempenho e era mais um passo em direção à concretização da minha ambição de lutar na Arena 13.
— São as melhores botas que se podem comprar, mas elas precisam de um pouco de uso para serem amaciadas. Pode esperar algumas bolhas no início. Você ainda tem muito trabalho pesado pela frente, mas eu sei que você não vai me decepcionar — disse ele.
Era sábado à tarde e eu estava sentado com Deinon numa mesa do lado de fora do nosso café habitual na plaza. Haviam caído pancadas de chuva repentinas a semana toda, e as ruas pavimentadas estavam úmidas. Nuvens se acumulavam ameaçadoramente no horizonte, e um vento forte fazia as árvores se contorcerem. Havia menos pessoas por ali do que de costume.
Estávamos tomando suco e batendo papo. Era a minha vez de pagar. Eu tinha dinheiro no bolso e estava começando a economizar. Foi então que eu vi Kwin atravessando a plaza na nossa direção, junto com o namorado, Jon.
Desde a nossa visita à Comunalidade, ela vinha evitando os meus olhos durante o café da manhã e até mesmo quando nos cruzávamos pela casa. Eu não conseguia entender por que ela estava se comportando daquele jeito. Afinal de contas, eu não fizera nada de errado. Mas o orgulho não me permitiria dar o primeiro passo. Eu me sentia injustiçado. Pensava que Kwin devia pedir desculpas, embora soubesse que ela não faria isso.
Eles passaram bem perto da nossa mesa, e eu tive certeza de que ela nos vira, mas nem olhou de relance na nossa direção. Entretanto, Jon sorriu e acenou com a cabeça, e eu acenei para ele com a mão. Eles se sentaram juntos a algumas mesas de distância.
— Você e Kwin tiveram alguma briga? — perguntou Deinon. — Espero que você não se importe de eu perguntar, mas não pude deixar de notar que ela tem te ignorado. Pensei que vocês fossem bons amigos.
Dei de ombros.
— Ela brigou com o namorado, eu acho, e aí começou a se comportar de um jeito esquisito. Foi grossa comigo, e eu dei uma bronca nela. Ela não gostou e não falou mais comigo desde então. Vinha me ajudando com o meu código sonoro na área de treinamento, mas isso também parou.
— As garotas às vezes são estranhas. Quem consegue entendê-las? — Deinon balançou a cabeça.
— Bom, eu certamente não entendo.
— Talvez seja você que deva quebrar o gelo — sugeriu ele.
— Como?
— Pedindo desculpas, ué!
— Mas eu não fiz nada de errado!
— Desculpa é só uma palavra. Você sabe dizê-la. Aí vai ficar tudo bem.
— Você fala como se fosse fácil, Deinon.
— Mas é! Ela provavelmente quer pedir desculpas também, só que o orgulho dela não deixa. Você pode mostrar que está acima disso tudo. Tem dois peões na fazenda do meu pai que não se falam há mais de trinta anos, mas as pessoas dizem que eles um dia já foram bons amigos. Esse é o tempo que a briga deles tem durado. Aposto que eles nem lembram o motivo da desavença. Se um deles tivesse pedido desculpas, eles ainda seriam amigos hoje.
Ao voltarmos para casa, passamos pela loja que vendia parafernália do Trig, e eu sorri ao observar que as botas vermelhas ainda estavam em exposição na vitrine.
Não tive oportunidade de tomar a iniciativa de ir pedir desculpas. O longo silêncio entre nós terminou naquela mesma noite com três batidas fortes na parede — batidas que, excepcionalmente, vieram muito tarde da noite, acordando-me de um sono profundo.
Ignorei o chamado de Kwin. Eu sabia que não estava sendo convidado para ir ao seu quarto pedir ou receber desculpas. Ela sempre queria alguma coisa. Na primeira vez, quis saber como era o novo discípulo. Na segunda, quis lutar e me derrotar. Na terceira... para que foi? Será que ela simplesmente quis uma desculpa para ir ver Jon na luta de bastão?
As três batidas se repetiram, mas eu não me mexi. Escutei Palm chiar, sem dúvida irritado tanto pela perturbação quanto pelo fato de Kwin estar me convocando.
Ela bateu de novo. Três batidas muito fortes na parede.
— Lembra sobre o que conversamos hoje à tarde? — disse Deinon, no escuro. — É a sua chance, Leif.
Então, saí da cama e, com raiva, enfiei a camisa, as calças, meias e botas. Meu humor mudara desde a conversa com Deinon. Não seria eu quem pediria desculpas. Eu iria ver o que Kwin queria uma última vez e depois lhe diria que nunca mais batesse na parede para me chamar. Eu seria frio. Frio como gelo.
No entanto, quando a vi, minha resolução começou a amolecer. Seus olhos estavam inchados e vermelhos de tanto chorar. Ela estava vestindo calças e botas Trig, com os lábios pintados em seu estilo habitual, mas também estava enrolada em um cobertor, e eu percebi que ela estava tremendo da cabeça à ponta dos pés.
O que significava aquilo? Uma parte de mim pensava que devia ser alguma espécie de pegadinha, uma artimanha para me levar a fazer o que ela queria. Mas havia lágrimas escorrendo de seus olhos agora. Era de verdade.
— Leif, você precisa me ajudar. Você é o único que pode me ajudar — implorou ela.
— O que houve? — perguntei, temendo a resposta. Eu sabia que devia ser algo muito ruim.
— É o Jon. Os borlas o pegaram. Daqui a pouco será tarde demais. Antes do amanhecer, eles vão levá-lo ao Hob.
Tentei dar sentido ao que ela estava dizendo. Como era possível?
— Não estou entendendo — respondi. — Para começar, como o Jon se envolveu com os borlas? Eles entraram na cidade?
Lembrei-me de como eles desceram galopando pela ladeira gramada para irem apanhar o cadáver daquela garota. Será que eles tinham ido à Comunalidade depois do anoitecer? Mas por que Jon fora levado?
— O Jon foi até eles — explicou Kwin. — Era um desafio que envolvia uma aposta alta. Muito, muito dinheiro. Se ele tivesse vencido, estaria feito para o resto da vida e poderia comprar quantos lacs quisesse. Mas perdeu para o borla campeão. Ainda assim, devia ficar tudo bem, pois outros patrocinadores da cidade estavam participando da aposta. Mas aí eles se recusaram a saldar a dívida. Isso significa que a vida do Jon foi confiscada. Os borlas vão entregá-lo ao Hob.
Eu não estava entendendo o que teria de fazer. Parecia uma situação que deveria ser relatada ao Diretório da Roda ou a alguma outra autoridade. Os borlas não passavam de foras da lei. Isso era ainda pior do que o que acontecera no lago. Como poderiam deixá-los se safarem dessa história?
— Você contou para o seu pai? — perguntei a Kwin.
Ela balançou a cabeça, e lágrimas escorreram por suas bochechas.
— Conta pra ele. Com certeza ele poderá fazer alguma coisa... — aconselhei.
— Ele não pode fazer nada. Ninguém pode. Os borlas são os criados do Hob, e ninguém se atreve a interferir nos negócios do djinni. Se eu contar para o meu pai, ele vai nos impedir de tentar ajudar. Só tem um jeito de ajudar o Jon.
— Como eu posso ajudar? O único dinheiro que eu tenho é o que o seu pai me deu.
— Alguém tem de lutar contra o borla campeão de novo. É igual a uma luta de bastão, em certos aspectos, mas é espada contra espada. É por isso que você é o único que pode me ajudar. Você ainda não prestou o juramento e é rápido o bastante para vencer.
— Você quer que eu lute? — perguntei, mal acreditando no que estava ouvindo.
Kwin fez que sim com a cabeça.
— E se eu perder?
— Não se preocupe, eu já negociei as condições, mas tem de acontecer esta noite. Se você vencer, o Jon fica livre. Se perder, eu serei confiscada, e não você.
Eu não conseguia acreditar nos meus ouvidos.
— É uma burrice! Se alguma coisa acontecer com você, eu não seria só expulso, o seu pai me mataria!
— Agora já era, Leif. Eu já fiz o trato. Se eu não voltar com você agora, vou morrer de qualquer forma...
O que ela estava querendo dizer? Em que enrascada eu estava me metendo?
Fiquei parado ali, tentando entender o que acontecera. Então Kwin desprendeu o cobertor dos ombros e o jogou na cama. Ela estava vestindo um colete curto e sem manga, e eu vi um corte comprido e recente em seu ombro esquerdo. Embora não fosse profundo, ele parecia inchado, inflamado e amarelo-verde nas pontas.
— O borla campeão usa lâminas envenenadas, que são embebidas em bagas de skeip. Existe um antídoto, mas só vou recebê-lo se retornar imediatamente. Sem ele, estarei morta antes de amanhã de manhã.
Minha garganta deu um nó de emoção. Eu não suportava a ideia de que alguma coisa poderia acontecer com Kwin. Vê-la ferida daquele jeito me afetou mais do que eu acreditava ser possível. Meu corpo se pôs a tremer, e eu não consegui falar.
Mas aí o sentimento passou e foi substituído por uma onda de fúria gelada que me invadiu da cabeça aos pés. Ninguém machucaria Kwin enquanto eu estivesse por perto. Eu não podia virar as costas para aquilo, custasse o que custasse.
— Claro, eu tive de amenizar a dívida com dinheiro — continuou Kwin.
Uma bolsinha de lona, que permanecera escondida sob o cobertor estava presa ao seu cinto. A garota deu umas palmadinhas nela com a mão direita.
— É ouro. Pertence ao meu pai. Se pegarmos de volta antes do amanhecer, ele nunca vai ficar sabendo que ficou faltando. E aí, vai me ajudar?
Minha mente deu voltas e mais voltas, tentando encontrar uma solução. Claro, eu lutaria para proteger Kwin, mas será que não havia outro jeito?
— Você não poderia simplesmente pedir para o seu pai quitar a primeira dívida? Com certeza ele faria isso, em vez de deixar você se arriscar...
— Meu pai é rico, mas nem mesmo ele tem tanto dinheiro assim. Quem tirou o corpo fora são figurões, banqueiros das casas de aposta que deviam dividir o grosso do custo se o Jon perdesse. Mas agora eles não querem liquidar a dívida. É parte do conflito entre o Hob e alguns dos homens de dinheiro desta cidade. Nem todos estão sob o controle do Hob, e eles não estão dispostos a pagar o preço de perder desta vez. O que o Jon tinha chance de ganhar não é nada em comparação com o que eles ganhariam.
Comecei a andar de um lado para o outro ao longo da cama, tentando pensar.
— Você é capaz de vencer, Leif. Confia em mim! Você é mais rápido do que o borla campeão. Eu sei que você consegue — disse Kwin.
— E o Jon? Ele perdeu. Eu também posso perder.
— Ele não estava em sua melhor forma — justificou ela. — Foi o juramento, sabe? O Jon jurou que nunca utilizaria lâminas fora da arena. Quebrar a promessa o fez se sentir culpado. Ele foi derrotado antes mesmo de começar. Na cabeça dele, já tinha perdido a luta. Brigamos por causa disso durante dias.
— Brigaram? Você quer dizer que você queria que ele lutasse, e ele não queria?
Kwin balançou a cabeça.
— Não! Claro que não, justamente o contrário! Eu nunca quis nem um pouco que ele se envolvesse. Aí, quando descobri o quanto ele estava se sentindo mal por ter quebrado o juramento, fiz o máximo que pude para convencê-lo a se retirar da disputa. Mas ele não quis escutar. Nunca escuta uma palavra do que eu digo. É por isso que estamos sempre brigando. Mas ele não merece morrer por causa do erro que cometeu. Ninguém merece ser entregue ao Hob. Então, por favor, Leif! Por favor, ajude-o!
Franzi as sobrancelhas, mas agora estava determinado.
— Vou lutar — declarei.
Era ou isso ou vê-la morrer.
*
Cruzamos a cidade, seguindo para o norte. Logo deixamos para trás as últimas habitações e subimos por uma trilha lamacenta em direção ao acampamento dos borlas.
A lua crescente estava brilhando através de um furo nas nuvens, e, sob o fraco luar prateado, eu podia ver apenas as espirais da cidadela de Hob elevando-se acima do topo da colina. Olhei para trás e vi lá embaixo os telhados de Gindeen, lares repletos de famílias comuns.
Uma casa triste e em ruínas se destacou diante de nós. As janelas estavam quebradas, e a porta da frente pendia, entreaberta, em um ângulo absurdo. Uma figura encapuzada surgiu sob o luar e nos chamou, e nós saímos da trilha. O mato denso era irregular, e eu não parava de tropeçar em grandes tufos. Houve uma hora que dei uma topada com o dedão do pé em uma pedra e, quando grunhi de dor, ouvi uma gargalhada cacarejante vinda de algum lugar bem atrás de nós.
Aí eu me dei conta de que havia dois deles, um na frente e outro atrás. Dois? Eu estava me iludindo! Era ali que eles viviam. Aquele lugar estava infestado deles. Então, vi os borlas encapuzados esperando silenciosamente, reunidos na escuridão da encosta nua e sombria.
Devia haver uns duzentos ou trezentos. A arena era um pedaço de terra descampado com uma ligeira inclinação, mas ela estava seca e coberta com cinzas finas, que faziam um ruído de trituração sob os pés.
Eu estava justamente me perguntando se teria de lutar na escuridão quando uma tocha subitamente ardeu à minha esquerda. Em alguns instantes, uma dúzia de tochas foram acesas, cada uma sendo empunhada por um borla.
Rostos me observavam, alguns encapuzados, outros mostravam todo o seu aspecto hediondo, com feições quase inumanas e distorcidas de crueldade.
Nem todos os borlas se mantinham eretos. Alguns pareciam se encolher e recuar diante das tochas. Estes últimos eram pequenos, tinham uma forma bizarra e rastejavam de quatro.
As criaturas se separaram quando nos aproximamos, mas depois cerraram fileiras atrás de nós, trancando-nos dentro de um círculo.
Havia um ditado que era repetido pelos habitantes da cidade: Quem ceia com um borla deve usar uma colher comprida.
Bom, seria impossível seguir o conselho desta vez.
Uma figura alta e encapuzada estava nos esperando no centro. Seu rosto estava na escuridão, e, quando ele falou, sua voz estava impregnada com uma mistura de autoridade e desprezo.
— É este o escolhido? — perguntou ele a Kwin, inclinando o rosto na minha direção.
A garota fez que sim com a cabeça.
— Ele era lutador de bastão em Mypocine, mas não possui nenhuma espada.
— Você trouxe o dinheiro?
Kwin lhe entregou a bolsa de lona. Ele a abriu e despejou as moedas na palma da mão, antes de contá-las minuciosamente.
Então ele acenou com a cabeça, e um borla veio à frente, carregando um jarro pequeno. Kwin se aproximou e ele mergulhou os dedos no conteúdo do jarro e começou a esfregar uma pomada escura no corte do braço dela. Era o antídoto ao veneno do skeip. Kwin prendeu a respiração bruscamente e fez uma careta de dor.
Agarrei sua mão e ela apertou a minha. Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Está tudo bem, Leif. A dor vai passar daqui a pouquinho.
Depois, o borla alto gesticulou para os dois à sua esquerda.
— Prepare-os — ordenou ele.
Enquanto ele ia embora, um borla veio até mim com uma corda curta. Para minha surpresa, ele se ajoelhou aos meus pés e começou a amarrar uma ponta da corda no meu tornozelo direito.
— O que é isso? — perguntei a Kwin.
— Eles vão atar as nossas pernas — explicou ela. — A sua perna direita junto com a minha perna direita. A corda é exatamente comprida o bastante para me deixar ir atrás de você. Você é o meu lac. Eu sou o alvo. Se ele me cortar, perdemos. Foi assim que eu recebi o corte no meu ombro.
20
Lutando por instinto
Acima de tudo, evite cair. Isso traz o risco de ferimentos ou morte.
Manual de Combate Trigladius
— Você não me falou nada sobre isso! — acusei Kwin, olhando para a corda. — Você não me contou que eu teria que lutar assim!
Eu estava furioso. O que mais Kwin deixara de me revelar? Agora, o borla estava amarrando a outra ponta da corda no tornozelo dela.
— É problema meu. Não se preocupe, vou acompanhar você passo a passo.
— Ele vai defender alguém? — perguntei, indicando o borla com a cabeça.
Kwin fez que não.
— Como vencemos? — indaguei.
— Faça com que seja impossível ele continuar.
A voz de Kwin manifestou uma monotonia fria quando disse isso. Ela estava claramente tentando não pensar no que poderia acontecer. Acho que ela percebeu a consternação do meu rosto, pois agarrou firme o meu braço esquerdo e colocou os lábios perto da minha orelha.
— Se você lhe der a menor chance, isso é o que ele vai fazer com você! — sibilou ela. — Se o borla te parar, ele pode me cortar. Simples assim.
— As lâminas então envenenadas?
— As dele, sim. As suas, não. Mas o veneno tem ação lenta, nada com o que se preocupar por agora. É só uma coisa que os borlas usam para terem certeza de que os adversários não vão deixar de pagar uma aposta. Vencendo ou perdendo, se você for cortado, receberá o antídoto contanto que respeite as condições deles.
Havia um cobertor estendido no chão. Em cima dele, cerca de uma dúzia de espadas. Nenhuma era igual à outra. Escolhi com calma, pesando cada uma cuidadosamente e testando sua aderência. Todas elas eram pesadas demais.
— Você teria mais vantagem com as espadas do Jon — concluiu Kwin, mas, quando ela as pediu aos borlas, a resposta foi não.
Então, fiz o melhor que pude, escolhendo as duas mais leves. Peguei na mão direita a menos pesada das duas. Ela teria de dar conta.
Minha raiva de Kwin foi subitamente substituída por medo. Eu estava apavorado. Aquilo não tinha nada a ver com luta de bastão. Eu seria atrapalhado pela corda, que me faria mancar. Podíamos cair, embolar a corda e tropeçar, e, aí, seríamos cortados.
Uma vez que eu estava armado, a multidão de borlas recuou para marcar os limites da arena, uma área oval atravessando a encosta. Então, o nosso adversário desceu para nos enfrentar. Ele era muito alto, estava nu até a cintura, e seu corpo brilhava de gordura. Era, de fato, o mesmo borla que estivera no comando antes.
A luta começou desastrosamente. Ele atacou rápido, e, apesar da promessa que Kwin fizera de me acompanhar a cada passo, as nossas pernas se enroscaram na corda, e nós caímos feito chumbo. Lutamos freneticamente para salvar as nossas vidas, rolando sem parar pelas cinzas, enquanto as espadas do borla traçavam círculos para baixo com selvageria. De alguma forma, sobrevivemos e nos pusemos em pé de novo.
A rapidez do borla me alarmou. Tudo o que podíamos fazer era recuar desesperadamente, enquanto ele corria pelas cinzas feito um inseto. Mas era o seu torso engordurado e brilhante que representava a maior ameaça. Ele se dobrava da cintura para cima como se os ossos fossem macios e maleáveis. Era isso ou então ele tinha articulações duplas, permitindo que seus braços compridos golpeassem a partir de ângulos incomuns.
Estávamos sendo gradualmente empurrados colina abaixo. Eu já estava bufando muito, com o ar raspando ruidosamente a garganta, o suor escorrendo pelo rosto e as palmas das mãos úmidas, o que tornava difícil segurar direito as espadas.
Dei algumas investidas na direção do borla, mas todas foram lentas e desajeitadas, e ele não hesitou nenhuma vez em seu avanço impiedoso. Somente o seu corpo recuava minimamente, apenas para fugir do alcance da ponta das minhas espadas.
Eu podia ouvir os borlas zombando e vaiando atrás de nós. Eu sabia o que aconteceria se fôssemos forçados a recuar no meio deles — as mesmas coisas que ocorriam em Mypocine. Alguém agarrava a sua manga no escuro. Pés tentavam dar uma rasteira em você. Ou você podia até ser agarrado e lançado para frente, em direção ao bastão do seu adversário, que estaria à espera.
Só que aqui eram espadas...
Agora eu estava aterrorizado. Meu coração martelava no peito. Algo dentro de mim já estava derrotado. Eu temia por Kwin e Jon, sabendo que as vidas deles seriam confiscadas. Mas também temia pela minha vida. Lembrei o que Kwin dissera:
Faça com que seja impossível ele continuar.
Era isso o que o borla estava tentando fazer comigo. Espadas podiam matar. Espadas também podiam mutilar. Mesmo que eu sobrevivesse, a minha vida podia nunca mais ser a mesma.
Foi quando aquilo aconteceu.
Por algum motivo, parei, interrompendo a nossa retirada. Respirei fundo e esperei ali, com as espadas empunhadas à minha frente, e o borla parou também. Seus olhos estavam fitando os meus de modo penetrante, mas ele não se mexeu.
Um silêncio parecia ter tomado conta. Então, ouvi os pés de Kwin triturando as cinzas atrás de mim.
Duas triturações firmes com o pé esquerdo, seguidas por uma batidinha curta, rápida e leve com o direito. Ela estava indicando a manobra básica, usando o código sonoro que desenvolvêramos juntos: dois passos para a esquerda, dois passos para a direita, seguidos por uma diagonal direita inversa.
Ela estava tão perto que eu podia sentir o calor da sua respiração na minha nuca. Feito um lac, obedeci, e nós dançamos lentamente pelas cinzas, esquerda, depois direita, executando os modelos do Trig, transmitidos pelo Ulum que praticamos juntos. Parecia algo tão distante no passado agora!
O borla não gostou disso. Dava para ver dúvida em seus olhos. Quando começamos a recuar, ele não seguiu.
Não tinha importância. Atacamos mesmo assim, andando para frente ao longo da mesma diagonal, investindo com rapidez e coordenação. E, pela primeira vez, nós nos movemos como uma única criatura, dando passos em uníssono.
O borla perdeu terreno, e fomos atrás dele. E avançamos muito, muito rápido. Mais fluíamos do que andávamos, voando para frente, com os pés mal parecendo encostar nas cinzas.
Agora as minhas mãos obedeciam ao meu cérebro, golpeando sem esforço, descrevendo arcos velozes que obrigavam o borla a se inclinar para trás da cintura para cima. Meu terceiro golpe quase o cortou, e foi apenas a velocidade das pernas dele que o salvou. Elas ainda estavam correndo pelas cinzas, mas agora elas o levavam para trás, enquanto o perseguíamos encosta acima.
Kwin não precisou usar o Ulum de novo, ainda bem. O tempo que passáramos ensaiando os modelos sonoros juntos fora relativamente curto, e o nosso repertório era limitado. Mesmo assim, ele cumprira o seu propósito, sacudindo o meu medo para fora do meu peito, dando-me tempo para pensar e recuperar o fôlego.
Nesse momento, com uma confiança crescente, passei para o estágio seguinte, no qual eu lutava por instinto, e nenhum pensamento era necessário. Cada movimento que eu fazia era espontâneo. Eu voltara a ser um lutador de bastão, acreditando no meu corpo, transferindo rapidez e habilidade para os meus braços e pernas, enquanto a minha mente permanecia desconectada do que estava acontecendo, como um frio observador calculando estratégias, notando as fraquezas do meu adversário.
E eu não estava sozinho. Kwin me acompanhava a cada passo. Até quando se deslocava, ela estava tão perto que eu ainda podia sentir sua respiração quente na minha nuca. Era quase como se eu pudesse ouvir o seu coração batendo no mesmo ritmo acelerado que o meu, como se dividíssemos um único sistema circulatório, com as artérias e veias dela ligadas às minhas.
Era estimulante, e, na verdade, eu comecei a curtir aquilo. Mas o fim estava chegando rapidamente.
A primeira chance que eu tive foi pequena, mas Kwin provavelmente nem percebeu. Ela não reparou porque não sabia do que eu era capaz. Quando nós dois lutáramos, ela me testara rigorosamente, mas eu sabia que podia elevar o meu desempenho a outro nível, que eu alcançara talvez apenas uma ou duas vezes em combate. E, agora, sob a pressão de lutar contra o borla, vislumbrando todas as consequências sombrias de uma derrota, eu alcançaria aquele nível de novo.
A segunda oportunidade foi óbvia, e, quando eu a deixei passar, Kwin reagiu imediatamente:
— Acabe com ele! Acabe com ele agora! — sibilou ela no meu ouvido.
Mas eu não consegui. Aquilo não era nem um pouco parecido com luta de bastão. Para encerrar, eu tinha de cortá-lo com as minhas espadas. Eu precisava cortá-lo tão feio, que ele não pudesse continuar. De alguma forma, o borla deve ter sentido o que estava passando dentro da minha cabeça. Ou talvez tenha se dado conta de que eu perdera a minha chance. Fosse o que fosse, ele subitamente passou a lutar com energia e ferocidade renovadas. Mais uma vez, começamos a perder terreno, sendo empurrados para trás colina abaixo.
No final, eu acabei encerrando, sim. Venci porque o resultado de perder era terrível demais para encarar.
O borla se comprometeu, dando um passo desnecessário, com o corpo inclinado para a frente a partir da cintura e a espada procurando ceifar a minha garganta como uma foice.
Ele era rápido, mas eu era mais rápido e furei sua guarda, golpeando-o com a minha espada direita, sentindo a corda se retesar no meu tornozelo quando Kwin hesitou um pouco. Ela reagiu bem a tempo de evitar nos derrubar em cima das cinzas. A tempo de me permitir terminar o serviço.
Mas eu não cortei o borla. Virei o pesado cabo da espada na sua direção e soquei a sua boca, quebrando seus dentes.
Usei a espada na minha mão esquerda de um jeito parecido, feito um taco, acertando sua têmpora direita. Ele ficou inconsciente antes mesmo de cair no chão.
Pensei que tivesse vencido, mas me enganei. Os borlas aguardavam ansiosamente. O oval se tornou um círculo quando eles começaram a se juntar.
— Você ainda não terminou! Quando ele se levantar de novo, vai continuar — disse Kwin.
Eu soube, então, o que eles estavam esperando de mim. O borla estava deitado de costas, com a garganta acessível à minha espada. Essa era uma das maneiras de encerrar a luta. Outra opção era cortar os tendões de suas pernas, de modo que ele não pudesse mais andar.
Não pude fazer nenhuma das duas. Eu não podia cortá-lo assim, a sangue-frio.
Mas eu fiz um corte, sim.
Como em um pesadelo, agi sem pensar. Cortei a corda que me unia a Kwin. Imediatamente, ela enterrou o rosto nas mãos e deu um grito de desespero.
Só aí eu me dei conta da gravidade do meu gesto. Ao cortar a corta que nos unia antes de matar ou mutilar o meu adversário, eu encerrara a disputa.
Mas também a perdera.
Eu fora derrotado.
Agora, as vidas de Kwin e Jon pertenciam a Hob.
21
Genthais
Somos o Povo do Lobo.
Nosso deus se chama Thangandar
E ninguém deve se opor a nós.
Amabramdata: O Livro Genthai de Profecias
Os borlas formaram um círculo estreito em torno de nós. Dava para sentir a opressão daquela barreira viva. Não tínhamos a menor esperança de escapar. Instantes depois, Jon foi empurrado para dentro daquele espaço pequeno e claustrofóbico para se juntar a nós.
Kwin imediatamente o abraçou e começou a chorar. Ele fez carinho nas costas da namorada e sussurrou no ouvido dela. Mas aí um dos borlas lhes deu um empurrão agressivo, e nós fomos conduzidos colina acima. Eles nem se deram ao trabalho de nos amarrar. Cada mão estava segurando uma espada ou lança.
Depois, começaram a apagar as tochas, e passamos a caminhar em meio ao breu. Supus que os borlas fossem capazes de enxergar muito bem no escuro. Eu não conseguia ver nada, mas de vez em quando sentia os golpes das criaturas. Por duas vezes, meu ombro esquerdo foi esmurrado com força. Armas espetavam as minhas costas, pés chutavam a parte traseira das minhas pernas. Fora isso, os borlas se mantinham silenciosos, o que, de certa forma, fazia com que todos eles parecessem ainda mais ameaçadores.
Continuávamos subindo, e ficou claro que estávamos sendo levados para a cidadela de Hob. Eu não sabia exatamente o que aconteceria conosco lá, mas certamente encontraríamos a morte. Ou talvez algo pior. Às vezes, combatentes derrotados eram levados vivos e nunca mais voltavam, então, o que acontecia com eles?
Ou será que o djinni roubaria as nossas mentes e devolveria os nossos corpos? Lembrei-me da garota que eu vira comendo vísceras no abatedouro, reduzida àquele estado animal desesperador. Será que esse seria o nosso destino?
Apesar das promessas de Kwin, eu sabia que, por ter cortado a corda, agora sofreria a mesma desgraça que ela e Jon.
Diante de mim, Jon e Kwin estavam andando abraçados. Depois de tudo o que eu arriscara, ela ainda preferia o namorado a mim. Ela só me usara para tentar salvá-lo, pensei, com raiva. Eles podiam consolar um ao outro, enquanto eu estava prestes a morrer sozinho. Senti-me magoado e abandonado.
Respirei fundo e tentei parar de ficar com pena de mim mesmo. Que importância tinha isso agora? Nós três estávamos condenados. Olhei para o chão, com a mente entorpecida, evitando pensar naquilo.
A lua foi obscurecida por nuvens sombrias, e, durante cerca de dez minutos, subimos em meio às trevas, até que as maciças muralhas exteriores e as espirais retorcidas da cidadela de Hob surgissem à nossa frente, mais negras do que o céu noturno.
A lua apareceu brevemente, iluminando as muralhas. Elas haviam sido construídas com enormes blocos de pedra, de um tipo que eu não reconheci. Eram pedras que cintilavam, distorcendo o luar, como através de um prisma, transmudando-o em uma nuance nova e sutil de bronze.
Momentos depois, mergulhamos na escuridão novamente, mas eu já havia esquadrinhado o lugar e notara que a maioria dos borlas havia se dispersado pela encosta, deixando cerca de quarenta como guardas.
Nos aproximamos da cidadela, e eu pude finalmente entrever os sólidos portões de bronze. Mas aí ouvi outra coisa, algo que arrepiou os pelos da minha nuca.
Três silhuetas colossais estavam paradas entre nós e os portões. A princípio, pensei que pudessem ser emissários de Hob. Escutei o bufar de uma besta e um tinido metálico, e, nesse momento, a lua crescente se destacou, saindo de trás de uma nuvem, e conjurou uma aparição, clareando-a com uma luz prateada e brilhante diante dos meus olhos perplexos.
Bem na nossa frente, vi três cavaleiros vestidos de cotas de malha, com duas imensas espadas presas às selas de cada um. Que cavalos! Eu nunca vira criaturas iguais. Não eram os animais corpulentos e atarracados utilizados para puxar barcaças ou carroças. Eram puros-sangues lustrosos, esbeltos e empinados, com pescoços arqueados e patas feitas para alcançar rapidez.
Para meu espanto, os cavaleiros pareciam genthais. Eles tinham pele escura, nariz aquilino, maçãs do rosto salientes e cabelos compridos. Um tinha um bigode espesso que cobria sua boca. Mas eu nunca vira genthais daquele jeito.
Então reparei outra coisa. Os rostos deles estavam pintados com linhas compridas e finas; padrões de curvas e espirais que seguiam os contornos das feições.
Aqueles ali não eram homens da floresta, nem se assemelhavam àquelas figuras tristes e desgrenhadas que comercializavam e às vezes mendigavam na periferia de Mypocine. Eles eram guerreiros.
O homem que estava no meio dos três desembainhou a espada, atiçou o cavalo para frente, os nossos guardas deixaram as armas a postos. Alguns dos borlas brandiam espadas curtas, outros, empunhavam lanças, enormes cimitarras com ganchos ou varas compridas, nas quais cruéis lâminas de dois gumes haviam sido amarradas com barbante. Porém, quando os genthais partiram para cima de nós, os borlas se dispersaram. Caí de joelhos e olhei para cima, quando os cascos dos cavalos passaram retumbando feito um trovão perto da minha cabeça.
Foi uma batalha curta e desigual. As seis espadas lampejaram e cortaram até o ar se encher de gritos. Os borlas fugiram ganindo e uivando noite adentro. Alguns desceram a colina, outros conseguiram se arrastar para dentro de túneis estreitos do outro lado dos grandes portões de bronze.
Em segundos, com exceção de poucos corpos ensanguentados espalhados por ali, não havia nenhum borla à vista. Levantei-me e fui ficar ao lado de Kwin e Jon. Os genthais estavam subindo a colina a cavalo na nossa direção, e o de bigode estava apontando a espada para os portões de bronze da cidadela.
Eles passaram bem perto, mas sequer olharam de relance para nós. O líder cavalgou até os grandes portões e os esmurrou com o cabo da espada.
Ele repetiu inúmeras vezes seu desafio estrondoso. Depois, berrou no meio da noite, fazendo suas palavras troarem e ecoarem nas muralhas altas.
— Venha aqui fora lutar contra os genthais! Saia daí e enfrente os homens! — desafiou ele.
Mas não houve resposta. As muralhas de pedra se destacavam bem acima das nossas cabeças, resplandecendo com um fogo de bronze sob o pálido luar. Mas ninguém veio atender. Nada reagiu às intimações dele.
Mais uma vez, o líder espancou a porta, bradando um desafio:
— Estamos aqui, Hob! Venha nos enfrentar! Saia daí e lute, se tiver coragem!
Porém, mais uma vez, não houve resposta.
— O Hob tem medo de nós! Devíamos arrombar a porta! — gritou um deles.
No entanto, o homem de bigode, que era o líder, discordou, e sua voz estava impregnada de autoridade.
— Não esta noite, irmão. Tenha paciência. A nossa hora logo chegará.
Dito isto, ele virou sua montaria e os conduziu de novo colina abaixo, parando diretamente na minha frente.
— Você lutou bem, irmão — disse ele baixinho, com os dentes quase invisíveis por baixo do bigode. — Estávamos assistindo.
Não respondi, mas senti minha boca se alargar em um sorriso. As palavras seguintes retiraram esse sorriso do meu rosto:
— Mas um verdadeiro guerreiro teria matado aquela criatura. Você tem muito o que aprender.
Ele se virou, gesticulando para que o seguíssemos, e nós descemos a encosta atrás dos três cavaleiros rumo a Gindeen. O que eles estavam fazendo não precisava de explicação. Os genthais estavam nos escoltando, protegendo-nos de qualquer borla que ainda estivesse espreitando na escuridão.
Nenhum de nós falou. Kwin e Jon ainda estavam andando abraçados. Ela ainda estava chorando baixinho.
Quando nos aproximamos das primeiras casas, os três homens fizeram os cavalos pararem, enquanto Kwin e Jon seguiam em frente, com os braços entrelaçados na cintura um do outro.
Ergui a mão para saudá-los, em um gesto de agradecimento, e comecei a seguir o casal, mas o líder me chamou:
— Espere, irmão.
Eu virei, dei alguns passos subindo a ladeira e parei diante do homem. Ele empregara a palavra “irmão” pela segunda vez. Na primeira ocasião, eu não pensara muito sobre isso, supondo que fosse simplesmente um termo comum para se dirigir a alguém, mas, na segunda, o tom de voz me dizia que ele reconhecera o meu sangue genthai.
Então reparei em uma coisa. As marcas em seu rosto não estavam pintadas, afinal. Eram tatuagens. Aquelas espirais e linhas lhe davam uma aparência feroz e perigosa.
— Como você se chama? — perguntou ele.
A resposta escapou dos meus lábios involuntariamente:
— Leif, filho de Mathias — declarei rápido, tarde demais para morder a língua.
Olhei de relance colina abaixo, temendo que Kwin e Jon pudessem ter ouvido, mas eles já estavam a certa distância agora e pareciam totalmente absortos um pelo outro.
— Mathias? Você quer dizer o Mathias que lutou contra o Hob na arena da cidade? Aquele cujo verdadeiro nome genthai era Lasar?
Confirmei com a cabeça.
— Ele era um homem corajoso e habilidoso, mas escolheu o caminho errado. Não cometa o mesmo erro. Venha conosco agora e lute pelo seu povo — aconselhou o cavaleiro.
— Lutar contra quem? — perguntei.
— Primeiro, precisamos reconquistar esta terra, tomando-a do traidor que se autoproclama Protetor, e limpá-la de abominações como o Hob. Feito isso, cavalgaremos mais além, ultrapassando a Barreira para derrotar aqueles que nos confinaram aqui — respondeu o guerreiro genthai.
Meu queixo caiu de espanto. O que ele dissera era impossível! Mesmo que os genthais tivessem guerreiros suficientes para derrotar o Protetor, que chances eles teriam contra aqueles que estavam à espera atrás da Grande Barreira? Mas ele falou calmamente, com as palavras repletas de certeza. Não era bravata, mas sim uma declaração de vontade. Algo que ele realmente acreditava que podia ser realizado.
— Sinto muito, mas eu ainda tenho uma coisa para fazer aqui na cidade. Uma coisa que eu jurei que realizaria — esquivei-me.
Torci para ele não me perguntar mais nada. Será que ele daria risada se eu lhe dissesse que a minha intenção era derrotar e matar Hob na arena? Eu já dissera mais do que deveria.
— Essas coisas acontecerão enquanto você ainda estiver vivo. Você não gostaria de fazer parte do que estamos fazendo?
— Quando a minha missão aqui estiver concluída, terei prazer em me juntar a vocês.
— Primeiro, faça o que tiver de fazer. Depois, viaje para o sul e embrenhe-se na floresta profunda. Meu nome é Konnit. Quando alguém te questionar, peça para me chamarem. Em breve me tornarei o líder do meu povo. Então, as coisas sobre as quais falei se concretizarão.
Com estas palavras, Konnit fez o cavalo dar meia-volta e reconduziu os outros cavaleiros colina acima. Eu continuei descendo a ladeira atrás de Kwin e Jon. Não havia nenhum sinal deles, então, me dirigi para a casa de Tyron, com a cabeça confusa.
Eu sabia que o chefe dos genthais era mulher. A tribo era matriarcal e sempre fora governada por mulheres. Então, como um homem poderia chefiá-la?
Vi uma sombra escura ocultando-se na calçada ao lado de casa. Era Kwin. Jon já tinha ido embora. Ela pegou a chave e abriu a porta dos fundos, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Eu meio que esperava que Tyron estivesse nos aguardando lá dentro, mas a casa estava silenciosa e escura.
Uma vez de volta ao seu quarto, Kwin não perdeu tempo e abriu a porta contígua.
— Tenha uma boa noite de sono — sussurrou ela. — Amanhã vai ser muito confuso. Os borlas ficaram com o dinheiro do meu pai, então, vou ter de contar o que aconteceu. De qualquer forma, ele logo descobriria, por isso, é melhor que ouça da minha boca. Vou tentar deixar você fora dessa história o máximo que puder. Mas, aconteça o que acontecer, ele não vai te expulsar de novo, eu te prometo.
Acenei com a cabeça e forcei um sorriso. De que valia aquela promessa? Afinal de contas, ela fora incapaz de me salvar da ira do seu pai na última vez.
De volta ao meu quarto, tirei a roupa e caí na cama. Apesar de todas as afirmações de Kwin, eu não alimentava nenhuma ilusão sobre o dia seguinte. Já estava esperando levar parte da culpa, provavelmente o bastante para acabar com a minha posição de discípulo de Tyron.
Eu estava me sentindo amargo e furioso. No dia seguinte, lá pelo meio-dia, talvez estivesse pegando a estrada para o sul de novo, com o meu sonho arruinado. Porém, agora, pelo menos, eu tinha para onde ir. Partiria para as terras genthais.
Um criado veio me chamar um pouco antes do amanhecer. Trouxera ordens para eu me vestir rapidamente e descer as escadas. Tyron estava me esperando, com o semblante carrancudo. Ele fez um gesto na direção da porta dos fundos e eu saí atrás dele na escuridão, estremecendo ao contato do ar frio.
A raiva explodiu dentro de mim quando me lembrei da enrascada em que eu fora metido na noite anterior. Cada músculo do meu corpo estava dolorido e tenso. O esforço de lutar contra o borla me afetara, por fim. Eu não tinha sido cortado, mas estremeci ao pensar no que poderia ter acontecido. Eu poderia ter sido mutilado ou morto.
Estava esperando encontrar uma trouxa com os meus pertences me aguardando no quintal, mas Tyron saiu andando a passos largos pela cidade, e eu me precipitei no seu encalço. O céu estava ficando mais claro, e logo se tornou óbvio que estávamos nos dirigindo para o edifício administrativo. Um dos criados de Tyron estava esperando diante de uma porta lateral.
— E aí? — perguntou Tyron, com impaciência.
— Ele concordou, meu amo. Mas, por causa da inconveniência do horário matinal, está pedindo o dobro do dinheiro que o senhor ofereceu. Está aguardando lá dentro.
Tyron acenou com a cabeça bruscamente e deixamos o homem perto da porta. Em seguida, andamos por um corredor que eu reconheci, pois já o atravessara para ir ao escritório de Tyron. Àquela hora, o local estava deserto.
Eu queria questionar o mestre e descobrir até onde Kwin lhe contara, mas senti o seu mau humor e segurei a língua. Aquele era o momento de ficar calado.
Continuamos até o finalzinho, onde chegamos a uma grande porta. A placa pregada na parede ao lado dizia que ali era o escritório do marechal-chefe. Tyron bateu à porta e uma voz lá dentro nos convidou a entrar.
Pyncheon estava em pé atrás da mesa. Para minha surpresa, ele estava usando a faixa vermelha do Diretório da Roda e vestido de maneira formal como se estivesse presidindo a Arena 13.
Em cima da mesa havia um livro grande aberto e, ao seu lado, uma esfera de vidro fosco com orifícios na parte de cima. Compreendi que aquele era o globo de loteria usado quando um combatente tinha de ser selecionado para enfrentar Hob. Meu pai devia ter quebrado um parecido, derrubando-o das mãos do marechal-chefe quando teimou em lutar contra Hob.
— Nome? — perguntou Pyncheon, fitando-me severamente.
Antes de eu poder abrir a boca, Tyron respondeu por mim:
— Leif, filho de Tyron.
O marechal-chefe escreveu o meu nome no grande livro, acrescentando-o ao final da Lista. A princípio, não entendi por que Tyron me dera o seu nome. Então, lembrei que ele queria manter o meu verdadeiro nome em segredo, de modo a aumentar as probabilidades oferecidas pelas casas de aposta.
— Ponha a mão no globo e preste o juramento — ordenou Pyncheon. — Repita estas palavras depois de mim.
Obedeci, escutando atentamente o que ele dizia, e em seguida repeti suas palavras:
— Eu, Leif, filho de Tyron, juro solenemente nunca empunhar nenhuma arma com lâmina fora da jurisdição do Diretório da Roda.
— Certo, garoto, retire a mão do globo. Você está sob juramento agora. Se quebrá-lo, nunca mais lutará na Arena 13. Entendeu?
Fiz que sim com a cabeça. Então, o dinheiro trocou de mãos e, logo depois, percorremos o caminho de volta pela cidade, com o criado de Tyron no nosso encalço.
— Isso significa que o senhor vai me manter como discípulo? — perguntei, temeroso.
Tyron confirmou com a cabeça. Ele parecia estar refletindo profundamente.
— O senhor sabe o que aconteceu ontem à noite? — continuei.
Ele olhou de esguelha para mim e praguejou baixinho.
— Claro que sei! Levei quase uma hora para arrancar a história toda daquela minha filha cabeça-dura. Por que você acha que eu te trouxe aqui a esta hora ingrata? Por que você acha que eu acabei de gastar mais do meu dinheiro, sendo que ontem à noite já me custou uma fortuna? — vociferou ele.
— Sinto muito — desculpei-me.
— É a minha filha desmiolada que deveria estar sentindo muito. A Kwin podia ter feito todos vocês morrerem, ou algo ainda pior! De qualquer forma, o que está feito está feito. Você prestou o juramento na primeira oportunidade e por uma boa razão. Em breve a cidade inteira ficará sabendo o que aconteceu ontem à noite, e você receberá propostas para lutar com espadas. Propostas que teriam sido difíceis de recusar. Agora, você pode dizer não. Pode recusar com honra, porque está sob juramento.
“Pelo menos, eles ainda não sabem o seu verdadeiro nome. Foi por isso que você prestou o juramento usando o meu. A breve cerimônia com o Pyncheon também valeu como inscrição. Agora você figura oficialmente nas Listas de combatentes da Arena 13. Muitos artífices têm combatentes que lutam sob o nome deles, então, ninguém vai reparar. Isso vai nos dar algum tempo. Tempo para recuperar uma parte do dinheiro que eu perdi.”
Não houve sinal de Kwin no café da manhã, e, para minha surpresa, em vez de nos cumprimentar com seu aceno de cabeça rotineiro, Tyron veio até a nossa ponta da mesa.
— Hoje de manhã, a programação de treinamento normal está suspensa — anunciou ele. — Palm e Deinon, vocês passarão o dia tendo aula com Kern para melhorar a modelação de vocês. A área de treinamento estará em uso. Vou ficar trabalhando sozinho com Leif.
A expressão no rosto de Palm quase valeu tudo o que eu sofrera na noite anterior.
Logo após o café da manhã, desci para a área de treinamento, a fim de encontrar Tyron.
— Muito bem, rapaz, vamos pôr mãos à obra naquele seu lac. Não quero que você se mostre bom demais cedo demais. Eu geralmente prefiro que os meus discípulos percam feio no início. É a primeira lição que você tem que aprender. Saiba como perder, e vencer se tornará muito mais fácil.
Ele sorriu lugubremente e continuou:
— Mas eu fiquei sabendo daquela aposta entre você e o Palm. Eu converso com a minha caçula de vez em quando, sabe, e ela está com medo de que você dê o pontapé inicial na sua carreira com uma dívida colossal a pagar. Bom, no tempo que temos à disposição, é o máximo que eu posso fazer. Se você fosse enfrentar o Palm na primeira rodada, perderia. O tri-glad dele é simplesmente ultrapotente. Mas vamos ver quanta sorte você realmente tem. Vamos ver o que a loteria vai dar dessa vez.
Em poucas horas, Tyron transformou a minha parceira com o lac. Eu inventava um sinal para uma sequência específica de passos, e Tyron o traduzia em Nym, integrando a reação no cérebro do lac. Depois, praticávamos o sinal Ulum e o movimento coordenado subsequente inúmeras vezes. No final da segunda aula da tarde, eu estava me movendo atrás do lac com uma confiança nova.
De vez em quando, eu notava que o lac estava me fitando. Era uma sensação estranha ser observado daquele jeito.
— Ele não para de me olhar — comentei com Tyron.
Ele me deu um de seus raros sorrisos.
— Bem, isso é ótimo, Leif. Ele tem mais consciência do que alguns outros. Os lacs variam nesse aspecto. O fato de ele estar te olhando significa que ele te acha interessante. Você chamou a atenção dele. O bicho vai lutar bem melhor por causa disso.
— Tudo bem. Eu só espero que ele não esteja me olhando porque está com fome e ache que eu sou um lanchinho gostoso!
— Acho que você não precisa se preocupar com isso — respondeu Tyron, sorrindo. — Já houve alguns casos isolados de canibalismo praticado por lacs, mas foi devido a modelações incompetentes. Acho que eu sou bom o bastante na minha arte para manter você fora do cardápio.
*
Naquela noite, quando voltei para o nosso quarto, fiquei chocado: carpinteiros haviam trabalhado ali e a porta que dava para o quarto de Kwin fora tapada com pranchas de madeira.
Eu não a vira o dia todo. Ela não estivera presente no jantar. Sem dúvida, ainda estava sofrendo os efeitos da ira de Tyron e estava trancada de castigo no quarto dela.
Palm fez um gesto em direção ao lugar onde a porta de Kwin estivera antes, balançou a cabeça e disse:
— Não vai ser a mesma coisa de agora em diante.
Olhei para ele, espantado. O garoto estava de fato falando comigo!
— Mas eu só vou ficar aqui até o final da temporada — continuou ele, lançando-me um sorriso malicioso. — Depois vou me mudar para um novo alojamento. E só me falta fazer uma coisa antes de ir embora: vencer aquele torneio!
22
O Torneio dos Discípulos
A morte muda tudo.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
O verão em Gindeen era curto: mal se estendia por cinco meses, que também era a duração da temporada Trig. Depois disso, os trabalhadores temporários deixavam a cidade e voltavam para suas casas de inverno nas províncias.
Porém, aquele último mês era o mais empolgante de todos para os discípulos do primeiro ano, porque, no início, ocorria a competição na qual teríamos a chance de lutar na Arena 13.
O TD começou ao meio-dia, quando fomos arrebanhados para dentro da sala verde debaixo da Arena 13, no intuito de presenciarmos o sorteio.
Eu só visitara aquela vasta sala retangular uma vez antes, e, naquela ocasião, ela estava vazia. Quando Tyron a mostrara para mim, eu ficara surpreso ao ver a cor dela. Os combatentes ocupavam assentos contra as paredes, enquanto esperavam sua vez de lutar. No centro, havia uma grande mesa coberta com um pano rústico marrom. O piso era decorado com um carpete marrom surrado, e as paredes e o teto estavam pintados de um marrom desbotado.
— Por que eles chamam este lugar de sala verde? — perguntei.
— Ninguém sabe, rapaz. A razão se perdeu nas brumas do tempo. Mas pode ir se acostumando, porque esse é o nome dela.
Agora, a sala estava apinhada, com todos os assentos ocupados pelos garotos que iriam lutar no torneio. Eu já estava vestido para o combate, trajando um colete de couro que me fora emprestado por Tyron. Era ligeiramente grande demais, mas obedecia às regras do Trigladius. Na parte de trás, havia o símbolo do lobo, que representava a equipe de Tyron. Fiquei orgulhoso de estar vestindo-o.
Meus braços nus me fizeram perceber que, embora os duelos fossem ser travados por iniciantes, ainda assim eles seriam de verdade. A maioria das regras da Arena 13 se aplicaria. Meus braços estavam expostos para as lâminas.
Quando Pyncheon ergueu o globo de loteria acima da mesa, o vidro brilhou intensamente, refletindo a luz das velas, e dava para sentir a empolgação no ar. O globo continha palitinhos com os nossos nomes escritos. Ele era opaco, e os nomes só se tornavam visíveis quando tirados por Pyncheon. Os palitinhos mag eram pintados de vermelho. Os palitinhos min eram azuis.
Pyncheon o colocou na ponta da mesa e se preparou para sortear o primeiro palitinho vermelho. Toda vez que ele tirava um combatente mag, o nome que se seguia era de um oponente min.
Peitos arfaram quando o marechal-chefe anunciou o nome escrito no primeiro palitinho. Era o de Palm. Por ele ser claramente o favorito para vencer o torneio, cada combatente min na sala estava prendendo a respiração, torcendo desesperadamente para não ser sorteado em seguida.
Quando o próximo nome foi chamado, deixei escapar um suspiro de alívio. Eu o evitara!
Palm, que agora ostentava um imenso sorriso afetado no rosto, lutaria contra Deinon.
Virei-me para o meu amigo, fazendo uma careta, e sussurrei:
— Que azar!
Deinon apenas deu de ombros, não parecendo aborrecido com a perspectiva de lutar em um combate no qual ele não tinha a menor esperança de vencer.
Parecia muita coincidência, mas já haviam me dito que não era incomum dois combatentes da mesma equipe serem sorteados um contra o outro. Mesmo assim, isso não agradaria a Tyron. Com mais de trinta discípulos no sorteio, cada artífice tinha a expectativa de que os de sua equipe chegassem o mais longe possível na competição. Rivalidades nasciam já nesse estágio. Depois, as casas de aposta faziam os cálculos minuciosamente, classificando as equipes para a cidade toda de Gindeen ver.
Claro, as coisas eram mais complexas do que pareciam à primeira vista. O orgulho podia ser sacrificado com outra finalidade. Tyron já me dissera que, por um lado, era bom para um discípulo promissor começar mal. Isso aumentava as probabilidades contra ele e significava que, no futuro, quem estivesse por dentro poderia ganhar dinheiro.
Escutei os nomes sendo sorteados. Finalmente, o meu palitinho foi tirado, e o meu nome foi lido em voz alta por Pyncheon, enquanto o meu coração batia surdo de emoção.
— Leif, filho de Tyron!
Meu adversário era Marfik, um novato que lutava para um artífice chamado Wode, que tinha uma das maiores equipes de combatentes em Gindeen. Então, pelo menos, eu tinha uma chance. Até onde eu sabia, nunca nem vira Marfik antes.
Virei-me para Deinon novamente e sussurrei:
— Qual deles é o Marfik?
Ele me indicou com a cabeça um jovem ruivo e alto que estava no outro lado da sala e se levantara de sua cadeira para se apoiar na parede com os olhos fechados. Ele parecia completamente relaxado, enquanto o meu estômago estava embrulhado de ansiedade.
— Ele está treinando há apenas alguns meses — disse Deinon, mantendo a voz baixa —, e a fazenda do pai dele é bem pequena. O Wode fornecerá a ele um tri-glad utilitário, nada de especial. Você tem chance de vencer.
— Que pena que você caiu com o Palm — observei.
Deinon sorriu.
— Tudo bem, Leif, isso me tira a pressão dos ombros. Vou dar o melhor de mim, mas não tenho nenhuma esperança de vencer. Ninguém poderá me culpar se eu perder para o Palm.
— Vou subir para a galeria e assistir à sua luta. Boa sorte, Deinon!
Os combatentes lutavam na ordem em que eram sorteados no globo de loteria. Isso significava que Deinon lutaria primeiro. Eu estava marcado para lutar na oitava disputa. Dispunha de tempo mais do que suficiente para assistir a Deinon lutar contra Palm e depois retornar à sala verde para me preparar.
A galeria estava apenas metade cheia. O TD apresentava naturalmente grande interesse para os competidores, treinadores e agentes de aposta, que estavam ali para avaliar as capacidades dos futuros combatentes da Arena 13. Porém, com exceção de alguns aficionados e poucos fãs entusiasmados, o público em geral não era atraído pelo espetáculo de novatos inseguros lutando de acordo com regras que haviam sido modificadas para protegê-los.
A verdade era que os espectadores gostavam de ver sangue e mortes ocasionais. Era por isso que os bilhetes vermelhos eram tão populares. As regras do Torneio dos Discípulos faziam com que tal desfecho fosse muito menos provável.
A primeira mudança de regra importante era que nenhum gongo soaria para indicar que os combatentes deveriam lutar na frente de seus lacs. Aqui, cada disputa seria travada inteiramente atrás dos lacs, o que era, obviamente, muito mais seguro.
A segunda dizia respeito ao corte ritual feito no braço do combatente derrotado. Nos combates integrais da Arena 13, as lâminas dos lacs eram revestidas com uma substância chamada kransin, que intensificava a dor do corte. Eu já vira muitos combatentes aceitarem aquele corte ritual sem nem pestanejar e nunca adivinhara a agonia que eles estavam sofrendo. Segundo Tyron, era por isso que os espectadores ficavam quietos naquele momento. Eles observavam atentamente para julgar a bravura do perdedor. Às vezes, um pequeno grito era dado ou o rosto se contorcia de dor.
Portanto, não haveria nada de kransin revestindo as espadas e nada de bilhetes vermelhos, o que significava que tínhamos uma plateia restrita.
Porém, apesar dessas modificações nas regras, naquele dia houve, de fato, uma morte na arena.
A primeira fileira estava ocupada por artífices e pelos discípulos que não lutariam nos combates iniciais. Sentei-me ao lado de Tyron bem a tempo de ver Palm e seu tri-glad entrarem na arena pela porta mag. Ele estava ostentando um sorriso convencido no rosto quando olhou para cima em direção à galeria. De repente, uma garota berrou o seu nome, e ouviram-se alguns gritinhos de aprovação que o fizeram dar um sorrisinho idiota.
Compreendi que, com sua boa aparência, Palm atrairia um monte de fãs. Ele com certeza fora feito para o papel e seus lacs reluzentes eram visivelmente caros. Eram os melhores que o dinheiro podia comprar e modelados por Tyron, o melhor artífice da cidade.
Instantes depois, Deinon entrou pela porta min. Ele parecia nervoso, franzindo as sobrancelhas e fitando suas próprias botas, em vez de olhar para nós lá em cima.
Pyncheon andou a passos largos entre os combatentes e seus lacs e fez um breve discurso para marcar o início da competição. Eu mal escutei o que ele disse. Estava observando o coitado do Deinon e sentindo pena dele. Lá embaixo, na sala verde, ele dera uma de valentão, dizendo que não tinha problema, porque ninguém alimentaria expectativas de ele vencer. Mas eu sabia que tinha problema, sim. Quem dera que Deinon pudesse tirar um truque da cartola e derrotar Palm!
O marechal-chefe estava chegando ao final do seu discurso:
— O que veremos aqui, ao longo dos três próximos dias, é o futuro da Arena 13. Alguns desses combatentes trilharão seus caminhos e farão nome na profissão, dominando com maestria as habilidades do Trigladius para trazer sangue novo e honra a esta casa. Gostaríamos de lhes desejar carreiras longas e bem-sucedidas. Que comece o torneio!
Assim que ele saiu da arena, o som estridente de sua trombeta cortou o ar, as duas portas se fecharam com um ruído surdo e a disputa teve início. Os lacs de Palm e Deinon se atracaram, com as espadas relampejando, enquanto os dois garotos dançavam atrás deles.
Meu coração veio até a boca, mas Deinon estava se saindo bem. O tri-glad de Palm estava, na verdade, batendo em retirada.
Mas aí uma espada foi enterrada no encaixe de garganta do lac de Deinon e o estrondo metálico de sua queda encheu a arena, rapidamente seguido por vivas, aplausos e gritinhos de prazer das garotas que estavam torcendo para Palm.
Foi o fimencerrado. A disputa durara menos de trinta segundos.
— Coitado do Deinon! — lamentei, com tristeza, vendo-o aceitar o corte ritual no braço. Ele estava com um leve sorriso no rosto e não pestanejou.
— O garoto fez o que pôde, não havia a menor chance de ele derrotar Palm — disse Tyron. — Ele lutará de novo amanhã e aí terá outra chance. Mas não importa realmente se o Deinon será um combatente bem-sucedido nesta arena ou não. Ele é um rapaz muito inteligente e tem bastante jeito para ser modelador. Começará modelando lacs para as outras arenas, mas, dentro de cinco anos, trabalhará com os que lutam na Arena 13, sem nunca ter que pisar nela. Escreva o que eu estou dizendo, Leif: um dia o Deinon será artífice e possuirá sua própria equipe de lutadores. Então, não fique com pena dele. Concentre-se no que você tem que fazer.
Aquiesci e comecei a me levantar da cadeira, mas Tyron balançou a cabeça.
— Pode assistir à próxima disputa. Vai ser melhor para você do que ficar lá embaixo roendo as unhas.
Então, sentei-me de novo, contente por Tyron ter uma opinião tão boa de Deinon. Eu contaria mais tarde ao meu amigo o que o mestre dissera. Isso levantaria o moral dele após aquela derrota.
— Acho que vale a pena assistir a esta luta — disse Tyron. — O garoto atrás do tri-glad se chama Scripio. Ele é da mesma equipe do rapaz que está marcado para lutar contra você. O Wode me disse que é o discípulo mais competente que ele já teve. O Scripio está enfrentando o Cassio, que também é um jovem combatente promissor da safra deste ano. Então, preste atenção. Você pode aprender alguma coisa.
A disputa apresentou rivais do mesmo nível e durou cerca de quinze minutos. Não foi emocionante, pois ambos os combatentes eram muito prudentes. Eles procuravam não correr nenhum risco, e os espectadores estavam, em sua maioria, silenciosos, aplaudindo de vez em quando diante de alguma demonstração de habilidade que eu ainda não conseguia captar.
Tyron assistiu ao duelo atentamente, mas eu tinha de me forçar para ficar concentrado. A expectativa da minha primeira aparição na Arena 13 não parava de me dar frio na barriga.
Com os pensamentos longe, perdi o que estava acontecendo no final. Devia ter assistido com mais atenção. Parecia-me que o lac solitário de Cassio, o combatente min, dera uma investida, oferecendo a primeira verdadeira demonstração de agressividade. Ele atacou com violência o tri-glad de Scripio, que caiu para trás vertiginosamente. Um dos lacs tropeçou em Scripio, e o humano e o lac caíram em um emaranhado de pernas e braços.
Fiquei me perguntando por que Cassio não estava tirando proveito de sua vantagem. Em vez disso, ele deu um passo para trás, com uma expressão horrorizada no rosto. Nenhuma espada encontrara o encaixe de garganta do lac caído para chamar fimencerrado, e a criatura rapidamente se pôs de pé.
Durante um momento, a arena ficou totalmente silenciosa, mas, então, à esquerda atrás de nós, alguém começou a gritar, chorando de angústia. Olhei para a arena, tentando entender o que acontecera.
O garoto caído não se levantou. Seus olhos estavam abertos e vidrados, e sua cabeça estava posicionada em um ângulo impossível. Seu pescoço estava quebrado.
O pobre Scripio estava morto.
Quando Palm e Deinon retornaram à galeria, o corpo já tinha sido retirado da arena, mas eles tinham ouvido a notícia e se sentaram com expressões chocadas nos rostos. Os espectadores estavam quietos — com exceção de algumas garotas, que estavam soluçando ou sentadas com as caras escondidas nas mãos. Fora um acidente terrível, que me fez perceber exatamente o quanto a Arena 13 era perigosa. Apesar da mudança de regras, um garoto morrera.
Ninguém se mexeu para ir embora, e fiquei me perguntando quanto tempo permaneceríamos sentados ali. Eu estava chocado e precisava ir lá fora tomar um pouco de ar fresco. Não me saía da cabeça a imagem de Scripio deitado no chão da arena com o pescoço naquele ângulo terrível.
Finalmente, o marechal-chefe entrou e levantou os olhos para a galeria.
— Nossos pêsames à família e aos amigos do pobre Scripio — disse ele, com um tom de voz moderado, mas facilmente ouvido no silêncio absoluto. — Um garoto muito promissor foi tirado de nós. O torneio está suspenso por vinte e quatro horas.
Quando ele deixou a arena, as pessoas começaram a se levantar de seus assentos. Fomos para casa seguindo Tyron em silêncio.
Por causa da ameaça representada pelos borlas de Hob, o corpo de Scripio foi cremado naquela mesma noite, e uma cerimônia fúnebre foi realizada em uma das poucas igrejinhas de Gindeen. A família quis que o funeral fosse íntimo, portanto, nenhum amigo ou colega do rapaz morto pôde participar.
— Essas coisas acontecem — disse Tyron, já em casa. — Toda vez que você pisa na Arena 13, coloca a sua vida em jogo. Mas temos que seguir em frente mesmo assim. Ainda dá tempo de ter as aulas de teoria antes do jantar. Mantenham a cabeça ocupada, é o melhor jeito de evitar ficar remoendo as coisas. O torneio vai recomeçar amanhã à tarde. Sugiro irem dormir cedo.
Quando entrei no escritório de Kern, fiquei surpreso ao ver que ele não estava sozinho. Seu filho estava sentado no seu colo, rabiscando energicamente uma folha de papel.
— Peço desculpas por isso — disse ele, fazendo carinho na cabeça da criança. — A Teena está passando meio mal, então, estou cuidando do Robbie.
Sorri e me sentei. O menininho me observou com olhos curiosos. Ele tinha cabelos encaracolados e claros como a mãe, em vez de escuros como o pai. Era grande para uma criança de dois anos.
— Robbie, fala “oi” para o Leif — pediu Kern.
— Oi! — disse o menininho, logo voltando sua atenção para o desenho.
— Como você está se sentindo? — perguntou Kern.
— Foi um choque. Eu pensava que o TD era seguro.
— Nada é seguro naquela arena. Deve estar sendo horrível para a família do garoto. A Teena ficou chateada. Ela está sempre pensando sobre o nosso próprio filho, preocupada com o futuro. Às vezes, isso a deixa muito indisposta. Ela diz que a primeira palavra do Robbie foi Mama, a segunda, Dada, e a terceira, fimencerrado. Ela está brincando, claro, mas a ideia é essa.
Kern estava sorrindo, porém vi preocupação em seus olhos. Ele nunca se abrira sobre sua vida pessoal antes. Estava claro que a morte na arena o afetara profundamente.
— O problema é que isso está no nosso sangue, é um negócio de família — continuou ele. — Tyron lutou na arena e, se tivesse tido um filho, ele também teria lutado. Em vez disso, sou eu, o genro. É natural que o Robbie siga a tradição. Pelo bem da Teena, espero que ele se revele um modelador brilhante, assim como o avô, e ganhe a vida assim futuramente.
Robbie ainda estava ocupado desenhando, com o rosto contorcido de intensa concentração. Ele fez uma pausa e começou a chupar a ponta do lápis.
— Bom, alguma dúvida antes de examinarmos alguns verbatis novos?
Essa era a maneira como Kern dava início às suas aulas, por isso, eu sempre tinha uma pergunta pronta.
— Sei que gladius significa “espada”, mas ainda não entendo por que eles chamam a modalidade de luta da Arena 13 de Trigladius. Não tem três espadas! Cada lac tem duas espadas, e há quatro lacs, o que dá um total de oito, sem contar as armas dos lutadores humanos.
— Você não é o primeiro novato a fazer tal observação, Leif. Mas o nome vem do fato de que o combatente min enfrenta três lacs que procuram cortar a carne dele. Eles representam as três espadas.
— Acho que faz sentido...
— O que você desenhou? — perguntou Kern, virando-se novamente para o filho. — Deixa eu ver. Vamos mostrar para o Leif o seu desenho?
Ele o pegou e me mostrou.
— Talvez ele vire artista — comentou o pai, sorrindo e dando um beijo no alto da cabeça do menininho.
O “desenho” era apenas um rabisco de linhas entrecruzadas feito a lápis.
— Quer dizer, talvez não! — concluiu Kern, com um sorriso forçado.
23
Arena 13
Aprenda como perder, para, mais tarde, poder aprender como vencer.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
Na tarde do dia seguinte, eu estava de volta à sala verde, esperando, nervoso, a minha vez de lutar.
Durante o que me pareceu um século, fiquei sentado junto aos outros, em silêncio. Eu nunca imaginara que seria daquele jeito, que os combatentes dividiam a mesma sala antes de subirem para lutar. E será que a sala ficava tão quieta assim com os combatentes seniores? Ou será que às vezes eles trocavam farpas raivosas?
Eu sabia que existiam algumas rivalidades amargas no Trig, mas, obviamente, as bainhas no cinto de cada competidor ficavam vazias. Ninguém era autorizado a entrar nos vestiários ou na sala verde carregando lâminas.
Fiquei me perguntando como o terrível acidente da véspera afetara o estado de espírito dos competidores. A morte do garoto diminuíra a minha empolgação de finalmente estar tendo a chance de lutar na Arena 13. Eu já testemunhara uma morte na arena — aquele ajuste de contas ao qual eu assistira na minha primeira visita —, mas a morte acidental de Scripio me fizera perceber como o Trig podia ser perigoso.
Finalmente, chegou a minha vez. Segui um marechal mal-encarado ao longo de um corredor, até chegarmos à porta min. Fiquei surpreso ao ver Tyron esperando ali, mas grato por ele ter se dado ao trabalho de descer para me desejar boa-sorte. O mestre me entregou as espadas que ele me emprestara, e as embainhei prontamente, tomando posição atrás do meu lac, que já tinha sido trazido para ali, a fim de esperar na frente da porta que dava para a Arena 13.
Tyron me deu um tapinha nas costas.
— Apenas dê o melhor de si, rapaz. Se fizer isso e perder, ninguém poderá te criticar — incentivou ele.
Quando a porta se abriu com um ruído surdo, entrei na Arena 13 seguindo o meu lac. Meu adversário e o tri-glad dele já estavam esperando. Foi uma sensação estranha ficar parado ali. Eu estava tremendo de nervoso.
Agora não tinha como voltar atrás.
Levantei os olhos para a galeria. Ali na arena, o grande candelabro emitia um círculo de luz intensa. Fora dele, relativamente na escuridão, os espectadores eram formas indistintas. Ouvi os aplausos das pessoas, aplausos contidos e educados, muito diferentes da gritaria e do bater de pés para saudar os competidores que eu presenciara na galeria. Isso me fez lembrar que éramos apenas jovens discípulos. Eles não tinham muita expectativa sobre nós.
Pyncheon entrou na arena, e ambos fizemos uma reverência para ele. O marechal-chefe se retirou e ficou parado bem na frente da porta mag. Um assistente lhe entregou a trombeta e ele tocou uma nota estridente.
Depois, as duas portas se fecharam com um ruído surdo e o tri-glad começou a avançar na direção do meu lac, que permaneceu imóvel. Eu não ouvira o Ulum do meu adversário. Será que ele tamborilara instruções enquanto a trombeta estava tocando?
Eu me vi dando o sinal da sequência clássica de abertura. Dois passos para a esquerda, dois para a direita e depois fiz a diagonal inversa para a direita. Eu estava apenas reagindo convencionalmente ao ataque, em vez de tomar a iniciativa de algum movimento decisivo por conta própria. Mas isso era o que eu decidira antes de entrar na arena. Era a manobra recomendada para um combatente min que estivesse enfrentando um desafiante com habilidade desconhecida.
O tri-glad investiu com ímpeto, brandindo seis espadas ameaçadoras, enquanto Marfik dançava perto das costas de seu lac central, aparentemente relaxado e confiante, enquanto a minha boca estava seca de nervoso. Pressionados, fomos obrigados a recuar na direção da parede min.
O tri-glad partiu para cima de nós, e eu não reagi rápido o bastante. Meu lac deu um passo para trás, esbarrando em mim e tirando o ar dos meus pulmões. Tropecei e senti uma ponta de medo, recordando como Scripio morrera. Apoiei um joelho no chão, temendo que o meu lac caísse em cima de mim com todo o peso do seu corpo vestido de armadura.
Mas ele manteve sua posição exatamente pelo tempo necessário, permitindo que eu me levantasse de um pulo. Respirei fundo, tentando me acalmar.
Pense! Pense!, disse a mim mesmo, enquanto estávamos sendo empurrados novamente contra a parede.
Dei um breve sinal com a bota direita, e nós nos deslocamos rapidamente para o mesmo lado, após as minhas costas resvalarem na parede.
Era um dos movimentos preferidos de Kern, uma tática que ele nos ensinara durante as sessões de treinamento. Eu a praticara cuidadosamente, mas ainda me sentia muito longe da maestria que ele demonstrava. No entanto, a manobra nos livrou dos ameaçadores golpes circulares das espadas e nos levou de volta ao centro da arena, antes que o tri-glad pudesse dar meia-volta.
O fato de executar esse movimento com sucesso fez com que eu me sentisse melhor. Minha autoconfiança estava voltando.
Aí, as coisas melhoraram ainda mais. Meu lac atacou, dando um passo em direção ao oponente mais próximo. Ele deu uma punhalada com o braço direito e, para minha surpresa, enfiou a espada até o cabo no encaixe de garganta do lac.
O lac de Marfik caiu para trás e bateu nas tábuas, produzindo um forte ruído metálico. Eu dera o primeiro passo rumo à vitória!
Obviamente, tal passo não dependera muito de mim. Até então o meu desempenho se mostrara banal. A habilidosa modelação de Tyron é que era responsável. Agora, eu precisava manter a cabeça fria e me concentrar. O corpo inerte do lac era um obstáculo que permaneceria ali até o final da disputa. Eu tinha de usá-lo a meu favor.
O que eu planejei não era uma maneira bonita de alcançar a vitória. Eu já vira isso ser feito na Arena 13 antes, provocando um coro de assobios e vaias da multidão. Mas a tática era simples. Tudo o que eu precisava fazer era ficar andando em círculos, usando o lac caído como barreira. Isso significava que somente um dos lacs restantes do tri-glad poderia nos atacar a qualquer momento, a menos que ambos se afastassem de Marfik com um movimento em pinça, deixando-o sozinho e perigosamente exposto.
Foi exatamente o que aconteceu. Continuei fazendo sinal de direita e esquerda, brincando de gato e rato, um jogo que, em uma disputa sênior, poderia ter continuado por um bom tempo. Houve breves choques de espadas, mas nada além disso.
A brincadeira não podia durar muito tempo. Marfik era um novato assim como eu e, quando os resmungos de desaprovação vindos lá de cima se tornaram vaias de chacota, levou a zombaria para o lado pessoal e mandou um lac lançar um ataque desesperado pela esquerda.
Agora, eu estava totalmente relaxado. Meu nervosismo desaparecera. Eu sabia que estava prestes a vencer. Já vira o meu lac em ação e tinha confiança de que Tyron fizera um excelente trabalho. A criatura estava pronta e reagia rápido. O segundo lac de Marfik desmoronou em uma confusão de pernas e braços.
Então, viramos os caçadores, e foi a vez de Marfik dar o sinal de bater em retirada. Alguns instantes depois, conseguimos encurralá-lo, e suas costas estavam contra a parede. Quando seu último lac foi derrubado, ele ficou esperando, com os olhos repletos de medo.
Observei o meu lac se aproximar dele, erguendo a espada na mão esquerda. Eu sabia como Marfik estava se sentindo. Enquanto combatente derrotado, ele tinha de aceitar o corte ritual no braço. A incisão foi feita rapidamente, e uma linha de sangue fina e vermelha apareceu.
Em seguida, ele sorriu de alívio, e a galeria deu uma salva de palmas calada, reconhecendo a minha vitória. Eu vencera a minha primeira disputa na Arena 13, mas a multidão estava aplaudindo de má vontade.
Mesmo assim, que importância tinha? Eu também ganhara a minha aposta com Palm. Não somente evitara uma dívida colossal, mas agora ele teria que me pagar. De repente, me dei conta de que poderia comprar um lac de boa qualidade só para mim.
As casas de aposta haviam elegido Palm como favorito. Tudo com base em estatísticas complicadas e recolhimento de dados. Elas conheciam a competência de cada modelador e a relativa qualidade dos lacs. Eram muito boas em prever o resultado de uma disputa.
Como Kern explicara em uma de suas aulas, as casas de aposta ajustavam as probabilidades de modo que fosse difícil para um jogador ganhar valores altos, garantindo, assim, o lucro delas. E não era preciso ser um gênio da matemática para chegar à conclusão de que Palm seria o provável campeão: ele tinha o melhor artífice para modelar o seu tri-glad e tinha os melhores lacs que o seu pai pudera comprar.
O torneio prosseguiu. Normalmente, o perdedor era eliminado após cada luta, mas, em geral, como era o combatente mag que vencia, havia um dispositivo para garantir que um min enfrentasse um mag na disputa final. Era um sistema de pontos que assegurava que nem todo mag vencedor passaria para a próxima fase. Dependia de quão rápido ele vencesse. Era do interesse de todo competidor mag fazer mais do que apenas vencer. Ele tinha de terminar a luta o mais breve possível para ganhar os pontos que lhe permitiriam continuar no TD.
Isso me ajudou a vencer a minha segunda disputa. O meu adversário, desesperado para acumular pontos, estava com pressa demais para acabar comigo. Ele foi imprudente, e eu venci de novo.
Entretanto, na minha terceira luta, a primeira da fase eliminatória, fui sobrepujado e derrotado em três minutos. Ainda assim, o meu desempenho geral no torneio me encheu de alegria. Eu vencera duas vezes, enquanto uma única vitória teria bastado.
Eu não apenas chegara suficientemente longe para melhorar a posição da equipe de Tyron na tabela de classificação, mas também ganhara a reputação de ser um combatente um tanto quanto medíocre e entediante. Portanto, Tyron saíra ganhando duas vezes. Obteríamos boas probabilidades quando eu lutasse no futuro.
E as casas de aposta mostraram que até mesmo elas próprias às vezes erravam.
Na disputa final do TD, Palm perdeu.
Esse resultado lhes custou muito dinheiro, e elas tiveram de pagar grandes quantias àqueles que haviam assumido um sério risco apostando contra Palm. Foi a maior surpresa do torneio.
Deinon e eu estávamos passeando na plaza. Era uma tarde de sábado ensolarada, mas a brisa estava meio fresquinha. O outono estava se aproximando, e o sol já estava perdendo um pouco do seu calor.
Deinon estava de bom humor. Vencera sua segunda disputa e ainda estava inebriado pelo resplendor daquela vitória.
— O que você vai fazer no final da temporada, Leif? — perguntou ele.
— Vou para o sul, mas ainda mais longe do que Mypocine. Quero visitar as terras genthais e ver onde o meu pai nasceu — respondi.
— Legal! Muito mais emocionante do que o que eu tenho pela frente: um inverno gelado trabalhando na fazenda.
Eu contara a Deinon que o meu pai era genthai, mas não revelara, obviamente, que ele era Math.
— O seu pai contou para você muita coisa sobre o povo dele?
— Não muito. Só um pouco sobre as crenças genthais. Eles veneram um novo deus chamado Thangandar, uma divindade-lobo, mas também têm deuses ancestrais chamados Maori, que teoricamente vivem em cima de uma nuvem branca e comprida.
— Como os genthais ganham a vida? Alguns vêm para Gindeen fazer comércio. Vendem esculturas de madeira — comentou Deinon.
— Esses genthais não fazem parte da tribo principal. Tem alguns assim que moram em barracões no limite de Mypocine. Eles são pobres, bebem muito e perdem na jogatina o pouco dinheiro que ganham. Mas as tribos da floresta sulista são diferentes. Elas conservam as velhas tradições, caçando e pescando. Também são guerreiras.
— Guerreiras? Elas lutam contra quem?
Pensei no que o genthai chamado Konnit me dissera após espantar os borlas e bater nos grandes portões da cidadela de Hob:
Precisamos reconquistar esta terra, tomando-a do traidor que se autoproclama Protetor, e limpá-la de abominações como o Hob. Feito isso, cavalgaremos mais além, ultrapassando a Barreira para derrotar aqueles que nos confinaram aqui.
Os genthais estavam se preparando para futuras batalhas que eles certamente não teriam chances de vencer. Mas eu não contei isso a Deinon.
— Eles provavelmente lutam uns contra os outros — respondi. — De qualquer forma, isso é uma parte do que eu quero descobrir.
Continuamos andando em silêncio, e, então, Deinon mudou de assunto.
— Percebi que a Kwin voltou a falar com você.
Fiz que sim.
— Mais ou menos. Ela dá um cumprimento com a cabeça e sorri quando passamos um pelo outro, mas não tem oferecido muita coisa no quesito conversa.
— O normal seria que ela demonstrasse mais gratidão depois de você arriscar a própria vida para lutar contra o borla. Mas sempre é difícil entender o que se passa dentro da cabeça da Kwin.
Chegamos à longa fileira de lojas e paramos do lado de fora da que vendia parafernália do Trig. Vi que as botas vermelhas ainda estavam na vitrine.
— A derrota na final abaixou a crista do Palm — observou Deinon. — Mas ele não merecia vencer, né? Foi ficando imprudente. Todas as outras vitórias subiram à cabeça dele. O cara não parava de olhar para aquelas garotas histéricas lá na galeria. Ele já pagou a dívida?
— Me deu um cheque ontem à noite, entregou-o sem dizer uma palavra. Agradeci, mas ele simplesmente virou as costas e foi embora.
— Está amargurado com o que aconteceu. Não se esqueça: o Palm perdeu duas vezes. Teve que lhe pagar e, por não ter vencido o torneio, os pais não vão dar dinheiro para ele comprar aquelas botas para a Kwin.
Ambos olhamos para as botas vermelhas.
— Ela vai acabar comprando as botas — comentou Deinon, com um sorriso. — A garota sempre convence o pai. Sempre consegue o que quer, no fim das contas.
24
Hob
Todo djinni é o verbati que se fez carne.
Manual de Nym
Era a última noite da temporada. Custei a acreditar que ela passara tão rápido.
Eu estava sentado na galeria da Arena 13. Aquela era uma ocasião especial. Kern fizera uma campanha brilhante. Se conseguisse vencer a disputa daquela noite, terminaria em primeiro lugar na tabela de classificação.
Portanto, na expectativa de uma comemoração, Tyron comprara lugares na primeira fileira para si mesmo, Teena, Kwin e seus discípulos do primeiro ano, mas ele ainda não tinha chegado.
Eu estava vestido com as minhas melhores roupas, compradas para eventos como aquele. No meu cinto, estavam presas duas espadas Trig fornecidas por Tyron. Agora que eu figurava nas Listas, tinha o direito de fazer isso. Eram boas espadas, mas não pude deixar de notar as no cinto de Palm. Tinham cabos ornados de prata, cada um incrustado com um grande rubi.
Sentei-me ao lado de Kwin. Mal nos faláramos desde a noite em que eu lutara contra o borla. Não que ela estivesse me ignorando, mas ela mantinha distância, dando-me apenas sorrisos superficiais. Decidi tentar quebrar o gelo. Porém, quando me virei para o seu lado, ela falou primeiro.
— Parabéns! Você lutou muito bem no torneio. Meu pai disse que você é “astucioso”, o que é um elogio e tanto vindo dele! O que você pretende fazer com todo aquele dinheiro que ganhou do Palm?
— Comprar um lac muito bom, acho eu.
— Não haverá a menor necessidade disso — disse Kwin, sorrindo. — Meu pai vai cuidar de tudo para você. Nunca o vi tão entusiasmado com um novo discípulo!
— Ele nem sempre me demonstra esse entusiasmo todo — comentei, franzindo as sobrancelhas. Era a pura verdade! No dia a dia, Tyron relutava em elogiar. Sempre parecia mais interessado no bem-estar de Palm.
— Meu pai guarda muita coisa dentro de si, mas, pode ter certeza, ele tem uma ótima opinião sobre a sua habilidade — revelou Kwin. — Eu até poderia entender essa opinião se você tivesse um pai rico igual ao do Palm. Ele deve estar planejando algo especial para você. Não consigo acreditar que até te inscreveu sob o próprio nome dele!
— Seu pai disse que era uma prática comum...
— É verdade para a maioria dos artífices, mas você foi o primeiro que ele inscreveu dessa forma.
Foi muito legal ouvir essas palavras. Elas me fizeram pensar que Tyron tinha fé em mim, apesar de todas as encrencas em que eu me metera. Talvez aquele gesto significasse mais do que apenas uma tentativa de manter a identidade do meu pai em segredo.
— Como anda o Jon? — perguntei.
— Anda bem, mas está com medo de perder a licença de lutar. Até agora, ninguém levantou nenhuma acusação, mas o que ele fez é de conhecimento geral, e as autoridades podem entrar com um processo a qualquer hora. Jon logo vai descobrir se tem algum inimigo ou não.
— O que ele faria se isso acontecesse?
Kwin deu de ombros.
— Ainda não conversamos sobre isso. De qualquer forma, não o tenho visto ultimamente. Nós terminamos. Meu pai me mantém em casa a maior parte do tempo, menos quando estou trabalhando no escritório. Estou proibida de sair depois do anoitecer, a não ser em ocasiões especiais como esta.
— Lamento.
Mas, por dentro, eu não lamentava nem um pouco. Ah, eu sabia que era duro para Kwin não ser autorizada a sair de casa, sabia o quanto ela gostava de ir à Roda depois que escurecia. Mas meu coração pulou de alegria com a notícia de que o relacionamento dela com Jon terminara. Será que eu podia ousar esperar que agora eu teria uma chance?
— Não precisa lamentar — disse Kwin. — Não é culpa sua. O Jon não deveria ter se envolvido como se envolveu. De qualquer forma, daqui a pouco as coisas melhoram. Eu conheço o meu pai. Ele começa sendo super-rígido, mas, no final, sempre acaba cedendo. Em breve vou vencê-lo pelo cansaço! — acrescentou ela, sorrindo.
Um silêncio se abateu sobre nós, enquanto eu penava para encontrar algo alegre a dizer. Lá embaixo, na arena, as duas portas ainda estavam fechadas, mas não demoraria muito para a luta ter início. Tyron ainda não aparecera, e eu estava começando a temer que ele perdesse a disputa de Kern, que estava marcada para cedo nas Listas daquela noite.
Subitamente, sem avisar, as tochas tremeluziram, e nós fomos mergulhados em uma escuridão total. Gritos de angústia e aflição se elevaram dos espectadores ao nosso redor.
Outra tremulação, e as luzes, tanto nas paredes quanto no candelabro central, acenderam-se novamente, como se nada tivesse acontecido.
Olhei para cima. As tochas estavam agora produzindo uma luz contínua, mas, enquanto eu estava observando, começaram a tremeluzir mais uma vez, como se estivessem sendo sopradas por um vento frio — embora o ar estivesse absolutamente parado. Não havia explicação óbvia para o que estava acontecendo.
Fomos mergulhados de novo no breu, e gritos e prantos rasgaram o ar. Então, quando as luzes voltaram, os espectadores começaram a se levantar das cadeiras e a se precipitar para os corredores, com pressa de fugir. Um sentimento de pânico e terror se espalhou pela galeria enquanto eles corriam desembestados para as portas do fundo.
— O que é isso? — perguntei a Kwin. Ela não respondeu. Em todo caso, era uma pergunta idiota. Eu já adivinhara o que aquilo significava: a pior coisa que poderia acontecer.
Hob chegara para lançar um desafio.
— Kern! Cadê o Kern? — perguntou Teena, inclinando-se na nossa direção. Seus olhos estavam arregalados, e sua boca, aberta de pavor.
— Tem vinte e sete combatentes min nas Listas hoje à noite, então, a probabilidade de ele ser escolhido é pequena — disse Kwin, para consolar a irmã. — Prometo que não vai ser ele...
Virei-me e percorri os olhos pela galeria. Momentos antes, o lugar estivera lotado, com cerca de duas mil pessoas sentadas ali, mas, agora, só restavam alguns gatos pingados.
Fiquei quieto. Meu coração estava disparado, pois eu sabia o que estava acontecendo. Sob a arena, os combatentes min estavam sendo reunidos na sala verde. O marechal-chefe certamente estava se aproximando deles com o globo de loteria.
Aquele que deveria lutar contra o Hob estava sendo escolhido naquele instante.
Com um ruído surdo e grave, as duas portas começaram a se abrir simultaneamente, e o tri-glad de Hob entrou na arena. Os três lacs estavam vestidos com armaduras negras feito ébano e tinham uma forma nem mais, nem menos humana do que a dos lacs com os quais eu estava acostumado. Então, um quarto combatente entrou atrás deles.
Pela primeira vez, pus os olhos em Hob.
Senti uma onda de raiva me invadir, e o meu corpo inteiro começou a tremer. Aquela era a criatura que assassinara a minha mãe e causara a morte do meu pai. Estar tão perto dele, incapaz de fazer alguma coisa, era quase insuportável.
Do pescoço para baixo, ele não parecia nem um pouco diferente de qualquer outro combatente da Arena 13, mas estava usando o elmo de bronze sobre o qual Tyron me falara. A placa facial não tinha feições humanas, mas havia uma larga fenda preta no lugar em que os olhos normalmente ficam em um rosto humano.
Foi nesse momento que o combatente min entrou na arena pela porta diretamente abaixo de nós. Com um choque, vi o emblema prateado do lobo gravado na parte traseira do colete de couro.
Teena deu um pequeno grito e escondeu o rosto nas mãos, curvando-se para frente até apoiar a cabeça no parapeito de segurança.
Contra todas as probabilidades, aquilo acontecera: o palitinho de Kern fora sorteado no globo de loteria para lutar contra Hob.
Dei uma espiada em Palm e Deinon. Ambos fitavam a arena com uma clara expressão de choque nos rostos. Deinon olhou para Teena, abriu a boca como se estivesse prestes a dizer alguma coisa, mas aí pensou melhor e se virou para o outro lado.
Kwin se inclinou para frente e colocou a mão no ombro de Teena. Soluços profundos estavam sacudindo o corpo de sua irmã.
As regras pareciam ter mudado. O marechal-chefe entrou na Arena 13 apenas brevemente, no intuito de acenar com a cabeça para os dois combatentes, e não houve toque de trombeta para indicar o momento exato de quando o combate deveria começar.
As portas se fecharam com um tremor e houve uma demora enquanto os combatentes se preparavam para a batalha, tomando suas posições e fazendo manobras a fim de se reunirem para o primeiro ataque.
Estava prestes a começar.
Kern avançou lentamente em direção aos seus oponentes, dançando muito perto das costas do seu lac. Seu rosto estava tenso de concentração, não de medo. Ele arrastou os pés para a esquerda, depois para a direita, e começou a tamborilar com os calcanhares para dar o sinal da forma de ataque.
Não consegui acompanhar todos os detalhes daquela sequência de sinais, mas já o vira treinando várias vezes para entender a ideia geral. Kern estava lançando a ofensiva. Era a maneira como ele costumava lutar. Tyron a chamava de “agressividade controlada”. Não havia nada de temerário nisso, fora tal estratégia que o alçara ao topo da tabela de classificação do Trig.
Era impossível avaliar como Hob se sentia, pois sua cabeça estava completamente coberta pelo elmo. Será que ele estava frio e inexpressivo?, pensei. Ou será que estava sorrindo e cantando vitória por antecipação?
Não gostei da ideia de o djinni estar usando um elmo, enquanto Kern não tinha nenhum. Meu pai tivera razão de usar seu elmo em formato de lobo. Por que os outros combatentes desafiados por Hob não fizeram o mesmo? Será que agora era proibido?
O primeiro ataque de Kern foi habilidoso, e ouviu-se um ruído estridente de metal contra metal quando a espada de seu lac por pouco não acertou o encaixe de garganta do membro do tri-glad de Hob mais próximo. Mas aí, por sua vez, Kern ficou sob pressão e foi forçado a recuar contra a parede da arena. Seu lac estava tentando desesperadamente servir de escudo para protegê-lo das espadas que desferiam golpes circulares na direção do seu corpo.
Usando a parede de madeira a seu favor e empregando seu truque preferido, Kern foi resvalando nela com ritmo, abrindo caminho ao longo das tábuas, enquanto seu lac, embora seriamente pressionado, agora pelo poder combinado dos seus adversários, esforçava-se para defendê-lo.
Mais uma vez, Kern lançou a ofensiva. Durante um tempo, ele se manteve no centro da arena. Ele era bom e, naquela noite, lutou melhor do que nunca, elevando-se a um nível jamais alcançado. A certa altura até encurralou Hob e seu tri-glad no canto do fundo. — Parecia haver uma verdadeira chance de ele vencer.
A pequena plateia começou a gritar e a torcer, e, depois, a tamborilar com as botas no chão da galeria, demonstrando satisfação. Kern era um combatente muito popular. Todo mundo tinha a expectativa de que ele encerrasse a temporada como campeão. As pessoas tinham fé nele. Kern era o melhor e elas desejavam que aquele ídolo obtivesse vitória em cima do odiado Hob.
A luta estava veloz e furiosa, mas Hob gradualmente começou a dominar, até que, mais uma vez, Kern foi forçado a recuar.
Então, o gongo soou. Eu não conseguia acreditar que cinco minutos já haviam transcorrido. Agora, ambos os combatentes deviam lutar na frente dos seus lacs.
Eles fizeram uma pausa, separaram-se e tomaram novas posições.
Agora, a plateia estava quieta. Dava para sentir a ansiedade no ar. Hob era rápido e implacável, mais terrível do que um lac. Kern o enfrentaria espada contra espada. Os braços compridos de seu próprio lac se estenderiam por cima de seus ombros para tentar protegê-lo, mas será que seria suficiente?
Hob atacou ferozmente, e Kern recuou.
Teena cobriu o rosto com as mãos, incapaz de assistir. Deinon estava roendo as unhas.
— Afaste-se da parede, seu tolo! Afaste-se da parede! — gritou Tyron, ao se sentar na cadeira ao lado de Teena. Ele estava ofegante.
As palavras de Tyron pareciam duras demais. Era óbvio que Kern estava tentando desesperadamente desviar da parede, mas estava sendo impedido pela absoluta ferocidade do ataque de Hob. Suas costas estavam imprensadas contra a armadura do peito de seu lac. Ele não tinha para onde ir. O Hob estava bem na sua frente, e o tri-glad estava fechando o cerco por todos os lados.
Mas eu sabia que Tyron amava Kern como se fosse seu próprio filho. Era simplesmente o medo de que o genro perdesse a vida que o levara a dizer aquelas palavras.
Teena levantou a cabeça do parapeito e se apoiou contra o pai, que segurou as duas mãos da filha. Ela estava olhando fixamente para a arena, como se estivesse hipnotizada pelo que estava acontecendo.
Subitamente, horrivelmente, chocantemente, a luta se encerrou.
O lac de Kern foi derrubado com uma espada socada em seu encaixe de garganta.
Kern cambaleou para o lado, parecendo atordoado. Ele já tinha sido cortado por Hob. Havia sangue em seu rosto, e uma mancha mais escura lentamente se espalhou pelo lado direito de seu corpo, escorrendo por dentro do colete de couro. Enquanto eu olhava, Hob cravou outra espada na carne dele.
Senti um enjoo no estômago. Aquilo não podia estar acontecendo! Era cruel demais. Ele estava sendo assassinado na frente da esposa, e ninguém podia fazer nada para salvá-lo.
Ele balançou, mas não caiu, embora estivesse claro que estava seriamente — e, de modo provável, fatalmente — ferido. De acordo com as regras normais de combate, o lutador e seu tri-glad deviam recuar no momento em que o sangue era derramado. Os lacs eram projetados para fazer apenas isso, a menos que tal modelação fosse anulada pelos ditames de um ajuste de contas ou por regras diferentes que pareciam se aplicar no caso presente. Eles então se afastaram, mas, para Kern, já era tarde demais.
O ídolo fora derrotado e, morto ou vivo, agora pertencia ao Hob.
Observamos, em estado de choque, Kern se retirar da Arena 13. A galeria inteira estava silenciosa. Ele foi embora corajosamente, mancando na frente de Hob e seus lacs, tentando se manter em pé, com o rosto contorcido de dor e resignação. Ele deixou um rastro de sangue atrás de si e, na entrada da porta mag, parou e cambaleou.
Pensei que Kern fosse cair, mas ele se virou para a galeria. Estava olhando para Teena, vendo o rosto de sua esposa à distância pela última vez.
Teena berrou o nome dele, e a angústia em sua voz soou terrível em meio ao silêncio. Então, Kern atravessou a porta, e nós o perdemos de vista.
Deixamos a galeria imediatamente. Tyron e Kwin estavam segurando firme os braços de Teena, enquanto ora a levantavam, ora a arrastavam para subir os degraus. Os espectadores permaneceram sentados para nos deixarem passar pela porta. Observaram-nos em silêncio, com os rostos manifestando toda uma gama de emoções: pena, raiva, pesar, lástima e consternação.
O corpo de Teena estava tenso, e ela tremia da cabeça aos pés. De volta à casa de Tyron, os criados, sempre ligeiros e eficientes, vieram ajudar. Um médico foi chamado e Teena foi enrolada em cobertores e colocada perto da lareira. Ela estava tendo calafrios agora; a primeira onda de choque passara, deixando-a lúcida e calma.
— Ajude o Kern, pai! — implorou ela baixinho. — Por favor, ajude-o! Eu sei que o senhor pode fazer isso.
Tyron balançou a cabeça e andou a passos largos pela sala, feito um animal enjaulado.
— Compre o meu marido de volta! Por favor... Se o senhor der dinheiro suficiente ao Hob...
Tyron continuava indo e vindo, e mais minutos preciosos e irrecuperáveis iam se passando.
— Deixe-me oferecer a minha alma no lugar dele. Por favor, pai!
O médico chegou, e eles tiveram de segurar Teena à força, enquanto o doutor a obrigava engolir o remédio que trouxera. Quando ela ficou inconsciente, dois criados carregaram-na para o quarto, e Kwin os seguiu. Só então Tyron parou de andar de um lado para o outro. Ele estava muito calmo, e aquele olhar decidido que eu conhecia tão bem relampejou em seus olhos.
— Já para a cama! — vociferou ele, cravando os olhos no limiar da porta, onde eu estava esperando junto com Palm e Deinon.
Porém, quando virei as costas para ir embora, Tyron me chamou.
— Você não, Leif! Você vem comigo.
Fui atrás dele para os fundos da casa e, depois, até o porão. Havia uma portinha de metal incrustada na pedra. Eu já a notara antes, mas nunca dera muita bola para ela. Quando Tyron a abriu, compreendi que era um cofre.
Ele tirou uma bolsa dali de dentro e a entregou para mim. Era pesada, muito maior do que a que Kwin dera aos borlas.
— É ouro — disse Tyron. — A única moeda que o Hob aceita.
Saímos no ar frio da noite. Tyron se dirigiu para uma grande carroça de madeira. Um grupo de seis cavalos estava parado na frente dela, já atrelado.
Ele estava indo visitar o Hob — e me escolhera para acompanhá-lo. Senti-me honrado, mas também nervoso. Por que eu?
Tyron subiu na carroça e tomou as rédeas. Mas, antes de darmos a partida, virou-se para mim e perguntou:
— Você sabe onde estamos indo?
Fiz que sim com a cabeça.
— Você não precisa vir. Se estiver com medo, pode entrar em casa.
— Não estou com medo — respondi.
— É porque você não nasceu nesta cidade. Se soubesse mais sobre o Hob, estaria com medo. Você sabe o que aquele djinni fez com a sua mãe, mas isso é apenas uma fração do que ele é capaz de fazer. Esta é uma das razões pelas quais estou te levando comigo. Quero que entenda o que você está pretendendo enfrentar. E tem outra razão. É porque você está aqui e eu confio em você. Confio em você, assim como confiava em seu pai. Ninguém deve entrar sozinho na cidadela do Hob. Então, quero comigo alguém com quem eu possa contar.
— Estaremos em perigo lá em cima? — perguntei, apontando para a colina.
— Não esta noite. Não se você mantiver o controle e fizer exatamente o que te mandarem fazer.
— Será que ele vai ouvir? Será que vai devolver o Kern?
— Talvez — respondeu Tyron, com um sorriso deprimido. — Mas tenho a impressão de que o pobre Kern já estava morrendo antes mesmo de deixar a arena. Não, estamos subindo lá com a esperança de devolver o corpo do Kern para a Teena, embora não haja quase nada que eu não daria para poder trazê-lo de volta inteiro. Estamos subindo lá por outro motivo...
— Outro motivo?
— Sim — disse Tyron, sinistramente. — Espero comprar de volta a alma de Kern.
25
Quem você ama?
Iniciar uma guerra é fácil,
Mas algumas guerras não têm fim.
Amabramsum: O Livro Genthai de Sabedoria
A lua já havia nascido e estava quase cheia, mas ainda estava escondida atrás da colina. Portanto, o céu estava muito escuro, salpicado apenas por estrelas frias e muito distantes.
Imagens não paravam de percorrer a minha mente. Inúmeras e incontáveis vezes, revi Kern moribundo se virando e levantando os olhos para Teena pela última vez. Ao evocar essa lembrança vívida, dei um profundo soluço vindo do peito. Tyron me olhou de relance, mas não disse nada. Lutei para tirar a cena da cabeça e me concentrar no mundo ao meu redor.
Gradualmente, o caminho entre as casas de madeira foi ficando mais íngreme, e os cavalos diminuíram o passo. Eu sabia que Tyron preferia cavalos a bois, pois geralmente eles eram mais velozes, mas, quando a inclinação aumentava, começavam a puxar os arreios com esforço, e o suor empapava os flancos deles. Não havia muita dúvida de que bois teriam sido mais adequados a uma tarefa como aquela.
Quando saímos de Gindeen, as casas se tornaram mais esparsas, e as poucas pelas quais passamos apresentavam um aspecto abandonado e em ruínas. Naquela noite, entretanto, não havia sinal de borlas na encosta descampada e sombria. Em algum lugar, no alto da próxima subida, ficavam as treze espirais, mas estávamos nos dirigindo para uma cidadela cujas defesas iam muito além de suas muralhas de pedra cinza.
Eu me sentia ao mesmo tempo nervoso e curioso sobre o que estava nos esperando mais adiante. Queria indagar Tyron sobre o Hob. Apenas uma coisa me impedia de fazê-lo: a estranha referência que ele fizera à alma de Kern. Isso me deixou com medo de fazer mais perguntas — como se as respostas pudessem revelar um Tyron diferente do que eu respeitava e admirava: um estranho supersticioso que eu mal conhecia.
Como era possível comprar de volta a alma de um homem?, fiquei me perguntando.
Ao avançarmos colina acima, o ar se tornou mais frio e, do nada, uma névoa densa formou um redemoinho à nossa frente, enrolando-se feito serpentes, com uma única finalidade: impor uma muralha de brancura impenetrável. Era como se tivéssemos penetrado em uma nuvem baixa — embora eu não tivesse visto o menor vestígio de nuvem antes. E, em uma noite de final de verão como aquela, com o ar ainda quente, o espesso manto branco que nos envolvera sem avisar certamente não podia ser natural.
Então, de forma igualmente repentina, a névoa ficou para trás, feito um colar branco circundando a encosta abaixo de nós. Acima dela, toda a paisagem estava banhada pelo luar. As grandes muralhas e as treze espirais retorcidas da cidadela do Hob se empinaram à nossa frente como uma besta negra.
Tyron fez os cavalos pararem e pulou no chão, dando uma ordem brusca:
— Traga a bolsa!
A bolsa de dinheiro, embora simplesmente amarrada com um cordão, estava presa ao laço comprido de uma corrente de segurança. Após descer da carroça, pendurei-a em volta do pescoço. A bolsa era pesada, e eu me esforcei para acompanhar Tyron, que estava andando a passos largos do lado de fora do que logo se revelou ser uma muralha encurvada. Tirando o fato de ser de pedra, e não de madeira, podíamos pensar que estávamos contornando a beirada exterior da Roda.
Havia uma quantidade de pequenas aberturas escuras em intervalos, ao longo da muralha, pelas quais mal dava para passar um homem. Cada uma descia em um ângulo íngreme, e o mato em volta delas fora remexido até virar lama, como se as passagens fossem frequentemente utilizadas por borlas. Na noite em que os três guerreiros genthais haviam nos resgatado, eu vira alguns dos borlas escaparem deslizando em túneis como aqueles. Passamos pelos grandes portões nos quais os genthais haviam batido, mas, sem nem olhar de relance para eles, Tyron continuou andando ao longo da muralha.
Finalmente, chegamos a um enorme arco. Nenhum portão barrava o nosso caminho, e Tyron virou e entrou nele sem hesitar, cruzando um pequeno pátio pavimentado e penetrando em um túnel escuro. Não havia nenhum pontinho de luz adiante, e, se não fosse pelo som dos passos de Tyron ressoando nos blocos de pedra, eu teria dado meia-volta.
Visitar aquela cidadela tenebrosa em si já parecia uma loucura, e entrar nela na calada da noite era incrivelmente temerário. Mas, então, pensei em Kern, a razão pela qual viéramos àquele lugar ameaçador, e tentei expulsar da mente os meus próprios medos. Eu precisava ter confiança de que Tyron sabia o que estava fazendo e de que algo bom viria daquilo.
Uma coisa agora era certa, sem sombra de dúvida: Tyron sabia exatamente onde estava indo. Ele já visitara a cidadela do Hob antes.
Da escuridão do túnel, saímos em um grande espaço iluminado por centenas de velas tremeluzentes. Algumas estavam presas às paredes, outras, encaixadas em imensos candelabros de ferro apoiados no chão. Apesar da luz, o pé-direito era tão alto que o teto se perdia nas trevas. Tanto à direita quanto à esquerda, havia fileiras de pilares, além dos quais reinavam sombras sinistras e vestígios de outros pilares mais longe.
O piso era feito de mármore e decorado com um desenho intrincado, representando criaturas fantásticas entrelaçadas. Era um mosaico complexo e resplandecente, composto de vermelhos vivos, amarelos e roxos reais suntuosos. Tyron avançou depressa, e então eu vi que, no fundo da sala, três degraus conduziam a uma plataforma elevada que sustentava um imenso trono.
Quando fixei os olhos nele, os pelos da minha nuca se arrepiaram.
Aquele trono estava ocupado...
A princípio, pensei que a figura sentada fosse um gigante, com talvez o triplo ou o quádruplo do tamanho de um homem. Mas, à medida que fomos chegando mais perto, percebi que era apenas uma ilusão de ótica criada pelo tamanho do salão e pelo posicionamento dos pilares.
Era certamente muito eficiente, sem dúvida calculada para provocar assombro em quem quer que se aproximasse do trono. E, enquanto cruzávamos o salão, tive a impressão de estar sendo observado por todos os lados — um sentimento que foi reforçado por um barulho perturbador de sussurros e murmúrios, quase inaudível de tão fraco.
Dei uma rápida espiada para a esquerda e a direita, sondando os espaços entre os pilares, mas não havia sinal de ninguém além da figura sentada no trono.
Por que não havia nenhum criado presente? E será que aquele era, de fato, Hob, meu inimigo, ou simplesmente o guardião de alguma antessala que escondia algo ainda mais grandioso por trás, algo até então invisível?
Minha pergunta foi imediatamente respondida, pois, para minha tristeza, Tyron de repente se atirou ao solo, primeiro de joelhos e depois de cara no chão, diante do trono. Ele permaneceu de bruços durante vários segundos, enquanto eu tentava processar o que estava vendo.
Será que aquele era realmente Tyron, o maior artífice de toda a Gindeen? Tyron, que era respeitado de cabo a rabo da cidade? Levantei os olhos para o trono, tentando entender o que podia tê-lo levado a se comportar daquele jeito. Foi então que Hob virou lentamente a cabeça na minha direção e me encarou de modo fixo.
Ele já não estava mais usando o elmo de bronze. Será que aquela era, de fato, a criatura que acabara de assassinar Kern na arena?, perguntei-me.
O djinni tinha a forma de um homem. Suas roupas eram escuras e não apresentavam nada de extraordinário, mas seus braços eram tão grandes quanto os de um lac. Ele vestia com um casaco curto de manga comprida feito em couro de boa qualidade e suas calças eram talhadas por um alfaiate de primeira. Pendurado no espaldar do trono estava um manto com borlas compridas, cada qual enfeitada por uma esfera preta na ponta. Era daí que vinha o nome dos seus criados.
Mas aí reparei nas suas botas, feitas para lutar na Arena 13, leves e bem ajustadas, com cadarços que subiam até o tornozelo. Tyron uma vez me dissera que, cerca de dez anos antes, era moda na cidade os fãs usarem tais botas, imitando os combatentes para os quais torciam. Porém, esse não era mais o caso: com exceção de Kwin e outros lutadores de bastão, somente verdadeiros combatentes usavam hoje aquele tipo de calçado fora da arena.
As botas pareciam novas, mas estavam respingadas com pequenas manchas escuras. Estremeci quando me dei conta de que era sangue da Arena 13.
Sangue de Kern.
Enquanto Hob continuava me encarando, meus joelhos começaram a tremer. Primeiro, foi apenas um leve tremor, mas, por algum motivo, dei um passo para trás, e ele se intensificou, deixando minhas pernas mais fracas, até elas ameaçarem perder as forças. Mais um segundo, e eu teria caído. No entanto, bem a tempo, o olhar fixo de Hob foi dirigido novamente para Tyron, que se pusera em pé.
— Meu lorde, estou aqui para implorar um grande favor — suplicou Tyron.
Hob acenou de maneira quase imperceptível com a cabeça, como se estivesse dando permissão para Tyron continuar. Livre de seu olhar fixo, pude analisá-lo mais uma vez.
Sua cabeça era ligeiramente maior do que o normal e completamente careca. Não havia o menor vestígio de pelos faciais. O nariz era avantajado e adunco, de modo que ele parecia uma daquelas grandes águias predatórias que planavam acima das Montanhas do Sul durante a primavera.
— Meu lorde, o jovem que você derrotou na arena esta noite era o marido da minha filha — continuou Tyron. — O senhor me permitiria comprar os restos mortais dele?
Ao ouvir a palavra “restos mortais”, fiquei gelado. Ele estava falando de Kern, que recentemente estava tão cheio de vida e esperança, tão feliz com a esposa e o filho, tão orgulhoso de sua habilidade em rápido desenvolvimento no Trig.
Houve uma longa pausa antes de Hob falar. Em vez de responder à pergunta de Tyron, ele fez outra pergunta.
— A sua filha mais velha está bem?
— Está, meu lorde — disse Tyron. — Ela está com saúde. Mas temo que o que aconteceu destrua a sanidade mental dela, a menos que o senhor seja indulgente.
— Quanto você trouxe? — perguntou o Hob.
Tyron se virou e fez um gesto para eu avançar. Então, retirei a corrente do pescoço e coloquei a bolsa no chão de mármore ao seu lado. Tyron imediatamente se ajoelhou na frente dela, desamarrou o cordão e tirou um punhado de moedas de ouro, deixando-as caírem por entre seus dedos de maneira um tanto quanto teatral, formando uma cascata dourada entre suas mãos e a bolsa.
— Isto é apenas um adiantamento, meu lorde. Darei ao senhor o dobro desta quantia pelos restos mortais de Kern.
— Isto incluiria a alma dele? — perguntou Hob.
Houve um longo silêncio. Finalmente, com os olhos cravados no chão, Tyron fez que sim com a cabeça da forma mais modesta possível.
— Então temos um acordo — decretou o djinni. — Pelo dobro do que você colocou na minha frente, pode obter os restos mortais como combinado. Pode levá-los agora, mas o preço total deve estar comigo antes da lua nova.
Uma figura encapuzada surgiu vinda dos pilares à nossa esquerda. Era um borla carregando uma grande caixa de madeira preta. Ele parou na frente do trono e fez uma reverência a Hob, depositando a caixa no chão diante de Tyron. Após outra reverência ao seu mestre, ele se retirou em meio às sombras atrás dos pilares.
Hob gesticulou, e Tyron imediatamente se ajoelhou em frente à caixa. Embora ela não tivesse nenhuma dobradiça ou fecho, ele rapidamente levantou a tampa e puxou o painel frontal, como se já conhecesse bem tais objetos.
Eu só pude olhar horrorizado o que agora estava claramente visível dentro da caixa.
Era a cabeça de Kern.
Senti gosto de bílis na garganta e me esforcei para segurar o conteúdo do meu estômago.
Um horror pior ainda estava por vir, pois ficou claro que a cabeça ainda estava viva. Ela era sustentada por um emaranhado de tecidos fibrosos que pareciam raízes ou fungos, e o rosto estava horrivelmente em movimento, contraindo-se como se estivesse sofrendo espasmos. Mas as feições de repente se acalmaram, os olhos se abriram e encararam Tyron diretamente. Instantes depois, o olhar se deteve em mim, e eu percebi, sem sombra de dúvida, que a cabeça estava consciente. Que Kern, mesmo naquela condição pavorosa, ainda estava vivo e lúcido, ainda era capaz de nos reconhecer.
Lágrimas estavam escorrendo pelas minhas bochechas agora. Por que haviam permitido que uma coisa tão terrível acontecesse com Kern? Lembrei-me de como ele era um professor paciente, dele segurando a mão da esposa e sorrindo para os olhos dela, beijando o filho em seu colo.
A boca de Kern começou a se mexer. Nenhum som saiu, mas uma espuma cor-de-rosa se formou em seus lábios. Tyron gentilmente colocou a mão na cabeça dele, assim como um pai faria com o filho.
Fiquei observando tudo, tomado de tristeza e horror. Agora, voltando-me para olhar Hob, revi os sapatos da minha mãe jogados no mato alto perto da margem do rio. Revi seu cadáver, esvaziado de sangue. Revi os olhos furiosos do meu pai quando ele usou seus punhos contra mim, me afugentando. Revi a nossa casa queimando e senti novamente o cheiro da carne carbonizada dos meus pais.
Eu saíra da casa de Tyron assim como entrara, vestido para a galeria e, da mesma forma que Tyron, ainda estava carregando duas espadas no cinto. Naquele momento, o meu desejo de matar o Hob foi tão avassalador que, antes mesmo de perceber o que eu estava fazendo, empunhei as minhas espadas e dei três passos em direção ao trono.
Hob não reagiu, mas o próprio tempo pareceu congelar. Lentamente, muito lentamente, tomei consciência da gravidade do meu gesto.
O ato de sacar as espadas fora uma reação instintiva, provocada por emoções profundas que agora estavam fervendo na minha garganta, roubando a minha fala. Algo dentro de mim aspirava a acabar com a vida daquela criatura sinistra no trono, o djinni chupador de sangue que cometera atrocidades tão indescritíveis.
Porém, agora, não era só comoção que estava tirando a minha capacidade de falar. Os olhos de Hob estavam me observando, e eu nunca vira olhos iguais antes. O branco deles era excepcionalmente grande, e a pequena íris escura estava acomodada acima do centro de cada globo ocular. Eu já escutara a expressão “raiva cega”, utilizada para descrever um olhar fulminante. Tinha um pouco disso aqui, mas, se era fúria o que estava sendo dirigido a mim, era de um tipo com o qual eu nunca me deparara antes.
Isso porque os olhos eram frios e me fitavam sem piscar, como um grande peixe predatório das profundezas mais sombrias do oceano, insensíveis e impiedosos, encarando um cisco de vida que caíra em seu domínio. Não havia emoção nenhuma por trás daqueles olhos, compaixão nenhuma. Eles eram janelas através das quais algo completamente hostil perscrutava o mundo dos humanos, e eu lutei para me livrar de um grande peso que estava me arrastando para baixo, rumo a profundezas de trevas indescritíveis.
De rabo de olho, vi Tyron me olhando: uma série de emoções relampejou em seu rosto, mas era impossível interpretá-las. Eu causara mais problema. Deveria ter controlado meus sentimentos. Ele ficaria furioso.
O mestre dissera que eu era alguém com quem ele podia contar e, naquele, momento eu o decepcionara.
De repente, Tyron se ajoelhou novamente, prostrado diante do trono, e, enquanto falava, começou a bater com a testa ritmadamente no chão de mármore.
Foi difícil dar sentido ao que ele balbuciava, mas era claro que Tyron estava agora implorando pela minha vida. Fiquei ali parado feito um idiota, incapaz de falar ou mesmo de me mexer, até que, finalmente, ele se levantou, aproximou-se de mim e, agarrando as minhas mãos, guardou as espadas de novo nas bainhas.
Aí, Tyron passou os braços em volta de mim como um pai, e, com um súbito choque, vi que ele estava chorando. Finalmente, pareceu se controlar e passou a falar mais devagar e com cautela.
— O garoto é jovem e tem a cabeça quente, meu lorde. Eu não deveria tê-lo trazido aqui. Ele não sabe o que faz. Mas eu lhe ensinarei. Dê-me apenas tempo, meu lorde. O senhor verá como ele pode mudar.
— Talvez — reconheceu Hob —, mas, antes de eu decidir o que deve ser feito, farei uma pergunta. — Ele dirigiu seu olhar gélido para mim novamente. — Quem você ama? — perguntou ele lentamente.
Era uma pergunta estranha. Eu não queria responder, mas sabia que, se me recusasse, nunca sairia vivo daquele lugar. E eu também sabia que, dentro daquelas paredes, coisas mais terríveis do que a morte estavam à espera.
Tentei responder, mas fiquei confuso. Eu não tinha pai, nem mãe para amar agora. Hob fora responsável pela morte deles. Deinon era um amigo. Porém, no que dizia respeito a emoções, Kwin era a pessoa de quem eu me sentia mais próximo desde que chegara à cidade. Eu me sentia muito atraído por, mas meus sentimentos não podiam ser descritos como amor. Em todo caso, ela gostava do Jon, e, a partir do instante em que descobri isso, procurei me distanciar dela. E, embora gostasse de Tyron como um amigo e tutor, eu não o amava como um dia amara o meu pai.
Portanto, só havia uma resposta que eu podia dar:
— Eu não amo ninguém.
Pela primeira vez, Hob sorriu.
— Pode levar as duas almas com você, Tyron — disse ele. — Mas o preço será dobrado, e o total ainda deve ser pago antes de a lua minguar para nova.
Tyron começou a balbuciar palavras de gratidão, mas Hob o calou com um gesto. Ele estava olhando para mim novamente.
— Você se atreveu a me ameaçar, garoto, e, por isso, deve pagar um preço. Deve ser punido. Um dia, quando chegar a hora, você vai mudar. Aprenderá a nutrir pelos outros a emoção que os homens chamam de amor. Um por um, quando você for envelhecendo, o número daqueles que você ama aumentará, e a intensidade desse amor também aumentará. Então, um por um, vou tirar de você aqueles que você ama. Pedaço por pedaço, vou tirar de você todos os seus entes queridos até restar apenas você. Só então vou te matar. Só então vou devorar a sua alma — avisou Hob.
Mais uma vez, as minhas mãos pareceram criar vida própria e tiveram o impulso de sacar as espadas pela segunda vez. Mas Tyron já levantara a caixa de madeira e me envolvera com o outro braço, apertando-me com uma mão de ferro. Ele estava me virando e me forçando a atravessar o salão de mármore rumo à porta dos fundos.
Quando chegamos à carroça, Tyron tomou as rédeas e atiçou os cavalos para descerem a colina, enquanto eu ia sentado ao seu lado, sem palavras. O horror da condição de Kern era um grande fardo que pesava na minha alma como um caixão de chumbo.
Mas o suplício ainda não tinha terminado. Percebi que Tyron não estava seguindo o caminho que nos levava diretamente de volta à cidade. Logo depois, chegamos a uma encosta arborizada, cercada de todos os lados por árvores novas. Ali, o mestre parou a carroça, pegou a caixa e saltou em cima da relva.
Fui atrás, mal sabendo o que esperar. Estávamos em uma pequena clareira, e a lua, quase invisível entre as árvores, irradiava um fraco luar branco, lançando sombras espectrais pelo mato.
Encarei Tyron, já esperando vê-lo lívido de fúria por causa do que eu fizera. Ele dissera que confiava em mim, mas eu deixara as minhas emoções me dominarem. Eu o decepcionara novamente. Entretanto, ele parecia triste e à beira de lágrimas.
Tyron colocou a caixa no chão entre nós e a abriu rapidamente. Em meio às sombras, as feições de Kern não eram claramente visíveis, mas pude ver seus olhos se revirando nas órbitas.
Observei Tyron pousar a mão com delicadeza na testa de Kern, com os dedos cobrindo os olhos, e murmurar simplesmente:
— Paz...
Uma espada cintilou e, com dois golpes céleres, Tyron decepou os tecidos fibrosos abaixo da cabeça. Ele fechou as pálpebras dele e suspirou. Depois, voltou à carroça e retornou, instantes depois, com uma pá.
E entregou-a para mim.
— Cave fundo — ordenou.
Comecei a cavar. A certa altura, olhei de relance para o mestre: ele estava sentado de pernas cruzadas diante da caixa. Por toda parte, ao nosso redor, o silêncio era total. Exceto pelo choro de Tyron.
Em determinado momento, curvei-me para trás, apoiando-me na pá, e perguntei se o buraco era fundo o bastante.
— Precisa ser mais fundo do que isso, rapaz. Duas vezes mais fundo — respondeu ele.
Quando ficou pronto, Tyron colocou a caixa aberta dentro do buraco. A cabeça agora estava imóvel. Misericordiosamente, toda a vida parecia tê-la abandonado. Tyron foi de novo à carroça e retornou, instantes depois, com uma lata de óleo lubrificante espesso. Regou generosamente o conteúdo no buraco e, em seguida, o incendiou.
Houve um barulho de sopro, uma língua de fogo e depois um cheiro enjoativo de carne carbonizada. Mais duas vezes, ele regou o buraco. Mais duas vezes, fez as chamas arderem até o alto, lambendo o céu noturno.
— Não podemos correr nenhum risco. Você não acreditaria no que o Hob é capaz de fazer — disse Tyron.
Então, sem mais explicações, ele pegou a pá e começou a tapar o buraco com terra. Por fim, balançou a cabeça pesarosamente e pisou na terra com força.
Voltamos em silêncio. Minha mente estava entorpecida.
26
Dignidade
Nosso imperador está na tenda, onde mapas espalhados estão.
Com os olhos fixos no nada, o queixo apoiado na mão.
Como uma mosca de patas longas por cima do riacho,
A mente dele se move por cima do silêncio.
Compêndio de Antigos Contos e Baladas
Uma vez em casa, murmurei um boa-noite e me dirigi ao dormitório. Supunha que Tyron quisesse ficar sozinho com sua família, mas, para minha surpresa, ele fez um gesto me chamando.
Obediente, subi as escadas atrás dele até o escritório, já esperando receber uma bronca enorme. Um fogo crepitava na lareira. Sem uma palavra, Tyron me indicou a poltrona diante dela. Sentei-me e fui deixado sozinho durante cerca de meia hora.
Tyron voltou com um decantador de vinho tinto escuro e duas taças. Colocou os três objetos em cima da mesa, e fiquei pasmo ao vê-lo encher ambas as taças até a borda. Ele as trouxe até onde eu estava e se sentou antes de me servir uma.
— A Teena está em um sono profundo. O médico está planejando mantê-la sedada por pelo menos vinte e quatro horas — disse ele.
— O que o senhor dirá à sua filha? — perguntei.
— O mínimo possível — respondeu Tyron, bruscamente. — Direi que obtive os restos mortais de Kern e os cremei. Direi que ele está em paz.
— Por que não recebemos o resto do corpo?
— Porque os borlas são canibais.
Estremeci e baixei os olhos, horrorizado. Devia ser por isso que eles haviam ido buscar o cadáver da garota no lago. Ficamos sentados em silêncio durante um bom tempo, antes de eu conseguir me forçar a beber.
Tomei o vinho aos poucos e com hesitação. Ele tinha um gosto amargo, mas deslizava pela garganta suavemente, proporcionando uma sensação instantânea de calor.
— Esta casa é um dos lugares mais seguros da cidade — comentou Tyron. — Ela possui portas robustas e reforçadas. Além disso, vários dos meus criados são capazes de se defender e lutar com armas. Os borlas raramente entram nas partes mais ricas de Gindeen. Aquele incidente no lago foi excepcional. Eles preferem as ruas escuras perto da Roda. Mas, se Hob decidir perseguir você, não haverá nada que eu possa fazer.
— Estou correndo perigo? Pelo que ele disse, é com o futuro que eu preciso me preocupar.
— Verdade, mas não se deve confiar em nada do que o Hob faz ou diz. Com o tempo, ele pode esquecer. Mas, ao mesmo tempo, pode não esquecer. O período mais perigoso pode ser os próximos dias. Devemos ter o bom senso de adiar a sua estreia na Arena 13 por pelo menos um ano: para depois da temporada que vem ou talvez ainda mais tarde do que isso.
As palavras de Tyron me aturdiram. Normalmente, os discípulos do segundo ano lutavam em poucas disputas travadas uns contra os outros. Os melhores às vezes até eram selecionados para enfrentar combatentes com altas classificações, que já tinham muitos anos de experiência. Fazia parte do processo de aprendizagem. Eu vinha contando os dias que restavam até o final do meu primeiro ano, ansioso para lutar na Arena 13 de novo.
— Por quê? — perguntei.
— Acredite em mim — disse Tyron. — É melhor você ficar bem quieto. Na primeira vez em que você for lutar para valer, o Hob pode visitar a arena te procurando. E coisas estranhas podem acontecer com aquele globo de loteria. Entretanto, talvez eu consiga negociar com ele para te deixar em paz durante um tempo, de modo que você possa desenvolver as suas habilidades na arena. Vai me custar caro, mas é uma possibilidade.
— Não podemos fazer nada sem temer o Hob? — perguntei, com a voz impregnada de amargura. — Não pode haver paz ou dignidade?
Vi Tyron se encolher ao ouvir a palavra “dignidade”, como se eu o tivesse atingido. Olhei de relance para a sua testa e, mesmo na penumbra, notei a contusão causada pelas pancadas no piso de mármore da sala do trono.
— Dignidade? Você quer dignidade, rapaz? — retorquiu ele, furioso. — Bom, há um pouco de dignidade preciosa a ser tida agora mesmo. Ainda vai demorar muitos e muitos anos antes de nos darmos ao luxo de ter dignidade. Você não ficou bastante impressionado, admito, com o meu comportamento esta noite, né? Pois é, eu tive de pagar por duas almas. Se você tivesse ficado quieto, eu precisaria pagar apenas por uma.
“Isso me custou os lucros de quase uma temporada inteira. Mas não foi a primeira vez que eu subi aquela colina. Não foi a primeira vez que entreguei ouro suado ao Hob. Não foi a primeira vez que queimei e enterrei carne humana para mantê-la longe dele. Afinal de contas, o que é ouro em comparação com o tormento de um homem?”
Fiquei estupefato com esse desabafo. Pressenti que ali havia muito mais do que Tyron estava dizendo, coisas que eu ainda não entendia.
— Você acha que eu queria abaixar a cabeça para aquela criatura? Por que você acha que eu fiz isso? Diga-me! — exclamou Tyron.
— Por Kern e por mim — respondi, pateticamente.
— Isso mesmo, pelo coitado do Kern e por você e também por outra coisa. Você ainda não entendeu o quanto o Hob é poderoso e perigoso! Sem a tolerância dele, eu não estaria onde estou hoje. Mesmo agora, ele poderia acabar comigo, se quisesse. Então, eu abaixo a cabeça e engulo aquilo que você chama de dignidade. Faço isso porque tem uma coisa crescendo aqui. Uma coisa cujo centro se encontra nesta casa e no que eu e outros fazemos no Trig.
“Sabe, rapaz, estamos melhorando. Está melhorando de forma lenta, mas certeira. Estamos subindo aquela longa escada de volta à dignidade. Um dia os homens já governaram a totalidade deste mundo e não havia nenhuma Barreira de névoa e medo para nos confinar neste lugar amaldiçoado chamado Midgard: é o que dizem os livros antigos.
Ele fez um gesto na direção da estante e balançou a cabeça.
— Talvez não estejamos prontos para governar a nós mesmos, que dirá este mundo... Mas vou te dizer uma coisa: se não governarmos, então, outros governarão. Coisas sombrias como o Hob. E coisas ainda mais sombrias vindas de trás da Barreira: criaturas que apoiam aquele dito-cujo, o nosso Protetor, que nos mantêm no nosso lugar e nos obrigam a fecharmos as portas à noite, pois tememos pela segurança das nossas mulheres e filhos.
Eu estava olhando para o chão agora, começando a entender sob uma nova luz o que acontecera no covil de Hob.
— Tome o seu vinho, rapaz, mas não se acostume. Enquanto meu discípulo, esta única taça é tudo o que eu te permitirei tomar. Quero que você se lembre deste momento, quando você ficou sentado bebericando vinho com o velho Tyron, que te contou a verdade sobre o que ele está tentando fazer, uma verdade da qual nem a própria filha dele está ciente. Ela acha que eu sou um fominha por dinheiro e, em certos aspectos, está perfeitamente certa. Dinheiro é importante para mim, mas eu preciso dele por uma razão. Preciso dele para comprar lacs do Comerciante, lacs da melhor qualidade possível. Preciso dele para comprar verbatis, verbatis que um dia possam transformar os melhores dos meus lacs em outra coisa.
“Sabe, garoto, apesar do que aconteceu com o pobre Kern, ainda estamos aqui. Ainda estamos vivos. E você vai lutar na Arena 13. Só que vai precisar de um pouco mais de paciência, só isso. Você gostaria de lutar atrás de um lac completamente sensível?”
Levantei os olhos para Tyron, mal conseguindo acreditar no que estava ouvindo. Encarei-o no fundo dos olhos e vi que ele estava sendo totalmente sincero.
— Você sabe o que isso significaria? — perguntou ele. — Não seria mais necessário tamborilar nas tábuas para um lac cabeça-oca. Ele seria completamente consciente. Saberia os modelos tão bem quanto você, entendendo todas as variações. Vocês poderiam usar o Ulum juntos. Um lac como esse poderia tomar a iniciativa e fazer sinais para você! Você poderia falar com ele. Dar ordens táticas verbalmente.
“Imagine a sua rapidez e instintos associados a um lac desse tipo. Talvez chegue um dia em que acolheremos de braços abertos uma visita do Hob. Lembre-se do Gunter e do seu pai, lembre-se do que eles alcançaram... Bom, vamos ver o que o Tyron e o Leif podem fazer juntos!”
— O senhor poderia realmente modelar sensibilidade completa em um lac? — perguntei.
— A neve derrete na primavera? O lobo uiva para a lua? — perguntou Tyron, sorrindo. — Estou perto, Leif. Muito perto. Talvez não este ano e talvez não ano que vem, mas muito, muito perto. Foi por isso que eu bati a cabeça no chão: para mantê-la em cima dos ombros. — Ele apontou para a testa. — Fui treinado por Gunter: Gunter, o Grande, que foi o melhor artífice que Gindeen já viu. O seu pai foi o melhor combatente da Arena 13 que ele treinou, e eu era o melhor discípulo modelador do Gunter. Esta aqui é uma mente esperta, embora eu seja suspeito para falar. Gostaria que houvesse outra tão esperta quanto a minha morando nesta cidade agora. Com a minha cabeça e as suas pernas, bem podemos fazer algo um dia, e quero dizer não apenas na Arena 13.
Tyron tomou um gole de vinho, e, em meio ao silêncio, tentei entender o que ele estava dizendo.
— Lembra o que o Hob te disse? — continuou ele. — Pedaço por pedaço...
— Talvez fossem apenas ameaças...
— Aham, eram ameaças, sem dúvida! Ameaças as quais ele é vingativo o bastante para concretizar. Mas ele tem um número limitado dos seus eus. Ah, eles podem ser repostos, mas leva tempo. É assim que o djinni pode ser destruído: é isso o que faremos com ele. Pedaço por pedaço, vamos enfraquecê-lo. O coitado do seu pai devia ter estado tão perto, tão perto mesmo! O Hob estava desesperado. Foi por isso que ele o desafiou para lutar na arena na frente do lac durante a disputa inteira.
— O senhor quer dizer que, se ele continuasse, poderia ter finalmente enfrentado Hob pela última vez? Derrotado o último dos eus dele?
— Talvez... — respondeu Tyron lentamente. — Mas lembre-se: as pessoas estavam fugindo da cidade, aterrorizadas. Com as costas contra a parede, quem sabe o que o Hob poderia ter feito? Existem antigas armas que são chamadas atômicas, capazes de queimar uma cidade e assassinar milhares de habitantes. Quem sabe o que um djinni melévolo como o Hob tem guardado nos cofres da sua cidadela? Não, tem outro jeito: pegá-lo de surpresa.
“Primeiro, poderíamos enfraquecê-lo na arena. Esta seria a sua missão. Depois, quando o tivéssemos feito ir aonde queríamos que fosse, poderíamos atacá-lo no covil dele. O Hob não esperaria isso. Pode dar certo, principalmente se usarmos lacs sensíveis para conduzir o ataque.
Fiquei boquiaberto de espanto. O que ele estava dizendo parecia inacreditável. Vindo da boca de qualquer outra pessoa, teria sido somente uma fantasia, um sonho oferecendo refúgio em face da dura realidade da vida naquela cidade. Mas Tyron estava falando muito sério, e eu acreditei que ele era capaz de fazer exatamente o que estava dizendo.
Ele sorriu e continuou:
— Portanto, aperfeiçoe a sua arte e tente fazer o seu cérebro acompanhar essas suas pernas aí. O Comerciante visita o Portão Marinho no início da primavera. Vou te levar comigo. Isso vai te dar uma ideia melhor do que estou tentando fazer.
Aquiesci, tomei o último gole do meu vinho e pousei a taça vazia em cima da mesa.
Tyron reencheu a sua própria taça, mas ignorou a minha. Cinco minutos depois, eu estava na cama, mas não dormi direito. Não conseguia tirar da cabeça os acontecimentos da arena e a visita à cidadela de Hob. Não parava de relembrar como Kern levantara os olhos para encontrar os de Teena pela última vez. E, depois, revia sua cabeça posta naquela caixa.
27
A cerimônia de homenagem póstuma
Esta é a época de esperar.
Esta é a época em que as mulheres governam.
Mas em breve isso terminará.
A lua escurecerá, enquanto o sol brilhará mais forte.
Então, Thangandar retornará para nos levar à vitória sobre o maldito djinni.
Amabramdata: O Livro Genthai de Profecias
Gindeen era predominantemente uma cidade ateia, com poucos locais de culto, dos quais nenhum era grande o bastante para acolher mais do que algumas dezenas de pessoas.
Portanto, a cerimônia de homenagem póstuma a Kern foi organizada na Arena 13. Ele tinha sido muito popular, tanto junto aos espectadores quanto aos colegas combatentes, e a galeria estava lotadíssima. Todos estavam sentados em silêncio, esperando Pyncheon fazer sua aparição e começar as formalidades. As faixas usadas naquele dia eram todas pretas e as mulheres estavam vestidas de roxo e cinza, as cores tradicionais de luto, sem pintura nos lábios.
Eu estava sentado na primeira fileira junto com Deinon e Palm à minha esquerda. Imediatamente à minha direita estava Tyron, com Teena sentada entre ele e Kwin.
Antes de sairmos de casa, Tyron dera instruções rígidas, principalmente dirigidas a Kwin — embora seus olhos tenham se detido brevemente em mim. Todos podiam falar durante a cerimônia, mas ninguém podia aproveitar a oportunidade para atacar Hob. Pronunciar-se dessa maneira traria desgraça para a família inteira.
O grande candelabro desceu, iluminando a arena com uma luz amarela e tremeluzente, e a porta mag se abriu lentamente com um ruído surdo. Pyncheon, usando uma faixa preta e segurando o cetro de autoridade cerimonial, andou devagar até o centro da arena e levantou os olhos para a galeria.
— Estamos aqui reunidos para homenagear a vida de Kern e lamentar sua morte — exclamou ele. Suas palavras ecoaram nas paredes da galeria. — Ele morreu com bravura, da mesma forma como viveu. Também era um combatente de extrema habilidade. Se tivesse continuado, teria se tornado um dos maiores lutadores que esta arena já viu. Quem mais gostaria de falar sobre o Kern?
Em resposta, várias mãos foram levantadas na galeria. Pyncheon bateu três vezes com o cetro no chão e depois o apontou para um rapaz à nossa direita.
— Crassius vai falar — chamou ele.
Crassius era um dos combatentes min de Tyron e acabara de concluir seus três anos de treinamento. Eu só o encontrara uma vez, visto que agora ele residia na Roda. O rapaz era ruivo e sardento e, ao se levantar, ficou vermelho feito um tomate com a perspectiva de falar diante de um público tão grande.
— Além de ser um combatente habilidoso, Kern era um excelente professor — começou Crassius. — Era gentil e paciente, e devo muito a ele. Deu-me confiança quando eu não tinha nenhuma. Fez-me acreditar que eu tinha a capacidade de obter sucesso. Vim para esta cidade sozinho e sem amigos. Kern e Teena, esposa dele, me ajudaram. Teena, meus pêsames. Todos nós dividimos o seu pesar, mas a sua tristeza deve ser maior do que a de qualquer um.
Quando ele se sentou, uma lágrima escorreu pela bochecha de Teena, mas ela sorriu para Crassius e depois levantou a mão.
A viúva se pôs de pé, mas demorou um tempo antes de conseguir falar, e eu temi que ela estivesse exigindo demais de si mesma. Porém, Teena respirou fundo e começou:
— Eu amava, amo agora e amarei para sempre Kern. Sinto tanta falta dele! Mas a maior perda de todas é a que o nosso filho sofreu, pois o menino nunca conhecerá o pai. Eu me lembrarei de Kern e direi ao nosso filho que o pai dele foi um grande homem.
Depois disso, Tyron falou de maneira extremamente formal e foi seguido por mais uma dúzia de oradores, em sua maioria combatentes, com exceção de Wode, um artífice amigo de Tyron, e um representante da maior casa de aposta de todas.
Mas ninguém, naquela cerimônia, disse o que deveria ter sido dito. Ninguém expressou ultraje em face do que fora feito com Kern. A derrota era aceitável: algo que acontecia normalmente naquela arena. A morte também era algo a se esperar. Afinal de contas, uma luta entre um combatente da Roda e Hob era o equivalente de um ajuste de contas, uma luta até a morte.
Não, o que me chocou foi o que acontecera depois. Uma onda de raiva me invadiu e o meu corpo inteiro tremeu. Hob e seus borlas eram autorizados a levar um adversário derrotado vivo ou morto da arena. Em algum lugar, nos confins sombrios daquela cidadela de treze espirais, a cabeça foi decepada do corpo e mantida viva, enquanto o corpo era comido pelos borlas.
Como aquilo podia ser tolerado?
Como uma coisa tão desprezível podia permanecer incontestada?
— Alguém mais gostaria de acrescentar algo ao que já foi dito? — perguntou Pyncheon.
Houve um silêncio. Então, reparei em um movimento à minha direita. Kwin estava levantando a mão.
As mulheres não eram autorizadas a pisar na arena, mas podiam falar a partir da galeria. Nenhuma outra mulher além de Teena fizera um discurso até então, mas agora Kwin queria dar a sua palavra. Senti uma onda de júbilo, mas podia ver consternação no rosto de Tyron.
Pyncheon bateu com o cetro e depois apontou para Kwin, nomeando-a como a oradora seguinte.
Ela começou a se levantar, com as feições distorcidas pela fúria.
— Não! — disse Tyron, estendendo o braço por cima de Teena para deter sua filha caçula. Mas ela se livrou com ímpeto e se pôs de pé.
Subitamente, Teena esticou o braço para cima e agarrou a mão dela.
— Por favor! Por favor, não faça isso! — pediu ela baixinho.
As duas irmãs se fitaram durante um momento, e então Kwin acenou com a cabeça, acatando o desejo da irmã. Acho que somente Teena, a viúva do pobre Kern, poderia tê-la impedido naquele dia. Kwin certamente não teria escutado o pai.
— Eu amava o Kern como se fosse o meu próprio irmão — disse ela, com uma voz distinta e aguda. — Ele era feroz no combate, mas um homem gentil e afetuoso na vida privada. As lembranças fazem de nós o que somos, moldam a nossa consciência e dão uma direção às nossas vidas. Vou cultivar com carinho as lembranças que tenho de Kern.
Ao se sentar, Kwin acrescentou algo bem baixinho, de modo que somente nós pudemos ouvir:
— E vou viver para vingar a morte dele!
Um breve discurso de conclusão foi feito por Pyncheon em seguida, e então a cerimônia de homenagem póstuma terminou.
Após a refeição noturna, Tyron me pediu para ficar mais um pouco na sala de jantar.
— Só quero conversar um pouco — disse ele.
Assim, esperei Palm e Deinon subirem para o nosso quarto, para fazerem suas malas, pois ambos iriam embora para casa no dia seguinte.
— O que você vai fazer nos próximos três meses, mais ou menos, é decisão sua, garoto — declarou Tyron. — A maioria dos discípulos volta para junto de suas famílias, mas, como você não tem essa opção, será mais do que bem-vindo se quiser ficar aqui conosco.
— Obrigado pelo convite, mas decidi viajar para o sul e ir visitar as terras genthais. Quero ver como o povo do meu pai vive.
— É uma boa ideia, Leif. Acho que todos nós precisamos voltar às nossas origens. Conheço uma pessoa que está prestes a viajar para o sul. Se estiver disposto a esperar alguns dias, posso organizar uma carona para você na carroça, pelo menos até Mypocine. Depois, o resto da viagem é por sua conta. Mas você precisa estar de volta pelo menos três meses antes do início da próxima temporada para começar a treinar. Está claro? O nosso trabalho continua.
Fiz que sim com a cabeça, e Tyron apertou a minha mão. Sem mais uma palavra, deixamos a sala de jantar.
Quando fui lá para cima, meus dois colegas de quarto estavam arrumando as coisas deles. O quadro de Math já tinha sido retirado da parede. Deinon deu meia-volta e sorriu para mim.
— Vou me despedir de você agora, Leif. Vou embora amanhã bem cedinho, antes do café da manhã. Meu pai vem me buscar.
— Eu ainda vou ficar aqui mais alguns dias antes de voltar para Mypocine. Tyron vai arranjar uma carona para mim. A gente se vê de novo quando o treinamento de pré-temporada começar! Boas férias até lá!
De rabo de olho, vi Palm nos observando. Pensei que ele fosse fazer algum comentário sarcástico ou perguntar por que eu iria voltar para Mypocine, já que não tinha nenhum parente lá, mas ele segurou a língua. Então, pensei em ser educado. Virei-me para ele e disse:
— Boas férias para você também, Palm. Esta é a sua última noite neste quarto, né?
Ele confirmou com a cabeça.
— É, eu comecei a treinar antes do final da última temporada, então, residi aqui bem mais de um ano. Está na hora de seguir em frente. Meu alojamento será na Roda ano que vem. Mas sem dúvida nos veremos. Um dia nos encontraremos na arena!
Havia um tom desafiador na sua voz. Era claro que Palm estava doido para me derrotar na Arena 13. Eu simplesmente sorri de volta para ele.
Sim, sem dúvida eu o enfrentaria na arena um dia. E, apesar daquele tri-glad implacável que ele possuía, eu estava determinado a vencer. Mas ficaria feliz de me ver livre dele por enquanto. Sentiria saudades do quadro — embora o artista não tivesse conseguido obter uma boa semelhança com o rosto do meu pai.
Os dois dias seguintes foram calmos demais. A casa parecia ter perdido a sua agitação e razão de ser. Teena ficava no quarto dela, Tyron e Kwin passavam o tempo todo no escritório do edifício administrativo, e Palm e Deinon haviam ido embora. Eu não tinha nada para fazer. Tentei estudar modelação, mas não conseguia me concentrar. Por fim, dei muitos passeios pela cidade.
No final da tarde do segundo dia, acabei indo caminhar pela plaza. Meus pés sabiam aonde estavam indo. Eles pararam em frente à loja que vendia parafernália do Trig.
Naquela noite, consegui encontrar Kwin sozinha depois do jantar.
— Toma, é para você. — declarei, com o coração disparado. Eu não sabia como ela reagiria.
— O que é? — perguntou ela, fitando-me enquanto aceitava o embrulho desconfiada, pegando-o e examinando-o por todos os lados.
— É só um presente. Uma coisa para te agradecer por ter me mostrado a cidade quando eu tinha acabado de chegar.
— Eu não mereço agradecimento por isso — disse Kwin. — Primeiro, fiz você ser expulso e depois quase causei a sua morte.
Ela rasgou o embrulho e apenas cravou os olhos nas botas vermelhas.
— Não posso aceitar! — vociferou ela. Sua voz estava impregnada de verdadeira raiva.
— Por que não? — perguntei, de coração partido. — O Deinon me disse que você adorava essas botas!
— Elas são caríssimas, Leif! Você gostou muito! — Ela arregalou os olhos, e uma lágrima solitária escorreu pela sua bochecha esquerda. Depois, virou as costas e foi embora sem nem me agradecer.
Fiquei um pouco magoado, mas, pelo menos, pensei eu, Kwin não jogara o presente na minha cara. Levara as botas consigo.
Na manhã seguinte, bem cedo, eu estava no portão esperando pela carroça que devia me levar para o sul até Mypocine. Despedira-me de todo o mundo durante o café da manhã, então fiquei surpreso ao ver uma figura sair pela porta lateral e vir na minha direção.
Era Kwin.
— Boa viagem, Leif. — desejou ela, com um sorriso. — Gostaria de poder ir com você. Seria legal visitar as terras genthais.
— Eu também gostaria que você viesse. Seria ótimo ter uma companheira de viagem.
— Eu bem pedi para o meu pai, mas ele ficou roxo de raiva, pensei que fosse ter um ataque histérico! — disse ela, rindo. — Quem sabe um dia não vamos para lá juntos?
— Sim, eu iria gostar muito.
Ouvi o rumor da carroça se aproximando.
Kwin subitamente veio para perto de mim. Seus olhos estavam sérios, e ela me beijou na bochecha delicadamente.
— Obrigada pelas botas, Leif. Foi o melhor presente que eu já ganhei.
Em seguida, virou as costas e foi correndo para dentro de casa.
Fiquei olhando para ela, espantado. Será que aquilo fora somente um beijo fraterno ou algo mais?
Torturando-me sobre a questão, joguei minha bolsa na traseira da carroça e subi ao lado do condutor.
Eu sentiria saudades de Kwin e já estava ansioso para retornar à casa de Tyron, a fim de começar o meu treinamento de pré-temporada. Mas também estava empolgado com o sentimento de aventura. Eu iria a Mypocine ver Peter e os meus outros amigos, mas depois viajaria mais para o sul. Estava animado com a perspectiva de visitar os genthais.
Queria ver como era o povo do meu pai.
Joseph Delaney
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