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ARMADILHA ESPACIAL
ARMADILHA ESPACIAL

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O HOMEM estava postado tranqüilamente diante daquela mesa de tampo espelhento. Era esbelto e aparentava ter mais que trinta e cinco anos. Seu rosto magro permitia deduzir que tinha passado a maior parte de sua vida no espaço. Além disso, possuía aquele algo mais, que distinguia os astronautas: uma tensão latente, pronta a explodir a qualquer momento numa ação fulminante. Sua altura devia beirar um metro e oitenta; os olhos eram castanhos e o cabelo da mesma cor, cuidadosamente escovado sobre a testa. Observava calmamente os rostos dos dois homens, que estavam sentados por trás da mesa à sua frente. Finalmente, um deles disse:

— Bem, major, então está tudo claro, não está?

O comandante Cliff Allistair McLane deu um breve aceno:

— Mais uma vez, está — respondeu, irritado.

 

 

 

 

Seu interlocutor era o marechal Wamsler; enorme, massudo e negro, estava plantado na sua poltrona como uma esfinge, recordando um fato que, no íntimo, causava-lhe uma sensação desagradável: há quase um ano, McLane havia sido removido, em caráter punitivo, da frota para o serviço na Patrulha Espacial. E, desde então, McLane e sua tripulação vinham enfrentando as missões mais arriscadas, realizando, por mais de uma vez, façanhas incríveis. E isto só serviu para reforçar as lendas tecidas em torno da sua figura.

— Que quer dizer com isso: "mais uma vez"? — perguntou o marechal.

McLane ergueu a mão e respondeu:

— Esta é a segunda vez em doze missões que o senhor me manda correr atrás daqueles malditos espórios, supostamente carregados pela pressão de radiação. Até hoje não se encontrou nem sombra deles, e acho que é hora de o senhor se convencer que nunca vamos encontrá-los.

Wamsler retrucou:

— E daí? Eu por acaso tenho culpa disso?

— Mas é do senhor que recebo as minhas ordens — protestou McLane. O outro homem, ao lado de Wamsler, permitiu-se exibir um sorriso meio irônico. Cliff McLane controlou-se e conseguiu ignorá-lo.

— Acontece que a Divisão de Pesquisas Interplanetárias e o Centro Científico estão tremendamente interessados nessas coisinhas! — explicou o marechal.

— Estou começando a me sentir como um botânico — disse McLane, aborrecido.

— Como se sente ou deixa de sentir, não é coisa que interessa às Formações de Reconhecimento Espacial de Terra — respondeu Wamsler, ainda calmo e disposto a discutir com McLane. Não podia externá-lo, mas tinha um fraco por gente como McLane e sua tripulação que, com suas proezas, quebravam a monotonia do serviço.

— Sei disso — respondeu McLane — mas o senhor não ignora que o estado de ânimo é fator dos mais importantes. Consulte as estatísticas. Os acidentes de conseqüências mais graves foram todos provocados por comandantes que se encontravam em crise psicológica.

— Por favor, Cliff — disse Wamsler. — Não dramatize a coisa tanto assim. Afinal, que mais poderia fazer, do que percorrer o universo com sua Orion?

— Nada — respondeu o major. — Aí, é que está o busilis.

— Alguma vez já ouviu falar na teoria da panspermia? — perguntou o outro homem. Cliff virou a cabeça e dignou o ajudante Spring-Brauner com um olhar, que teria causado o mais vivo pânico em outras pessoas. Mas Spring-Brauner, o homem mais bem-apanhado da tropa de Wamsler, nem reparou esse olhar.

Evidentemente Cliff conhecia essa teoria, mas sabia também quão inseguras eram as premissas nas quais se baseava. Com seriedade fingida respondeu:

— Ainda não ouvi falar. Mas não caberia em mim de contente se me deixasse compartilhar seus profundos conhecimentos.

Spring-Brauner não percebeu o olhar de comiseração com que Cliff o contemplava, nem tampouco que o comandante estava com toda a intenção de ridicularizá-lo; afinal, ainda havia aquele caso das ordens trocadas, que tinha lançado Cliff e sua equipe no caldeirão do diabo.

— Essa teoria ou, se preferir o termo, doutrina, parte do pressuposto que a vida não se originou em Terra — começou Spring-Brauner e levantou-se.

— Mas isso é por demais excitante! — disse Cliff. — Então, onde se originou?

— A vida em Terra pode ter vindo de um outro planeta, de algum corpo num outro sistema solar. Talvez abrigada nas frestas de meteoritos, ou impelida pela pressão de radiação, ou, ainda, arrastada por tempestades luminosas do cosmos. E é claro que seria sumamente interessante descobrir a verdadeira procedência da vida terrana.

— Simplesmente fascinante — sussurrou Cliff, aparentemente embevecido.

— Não é mesmo? Agora, se o senhor ou um dos seus colegas nos pudessem trazer uma amostra da região por onde passa aquela torrente de espórios...?

— Quer mesmo que eu tente? — quis saber Cliff, com magistral hipocrisia.

Spring-Brauner franziu a testa, numa expressão de surpresa; não sabia como interpretar essa pergunta.

— Sim, é claro que eu quero que o senhor tente. Não devia?

Cliff mal conteve uma risada.

— Pode ser que as amostras porventura capturadas ou a inutilidade dos nossos vôos venham a demonstrar que a teoria panspérmica está totalmente errada.

Spring-Brauner acenou vivamente.

— Uma prova ao contrário não deixa de ser uma prova — disse ele. — Vê algum significado especial nisso, major McLane?

— Vejo, sim — respondeu Cliff. — Se ficar demonstrado que essa teoria é infundada o senhor vai ficar privado para o resto dos seus dias do único assunto de conversa, do qual parece entender alguma coisa!

O marechal Wamsler, que conhecia a profunda antipatia que aqueles dois homens nutriam um pelo outro, começou a rir estrondosamente e largou as mãos carnudas sobre as coxas.

— Muito engraçado, major — respondeu Spring-Brauner, hesitou por um instante e prosseguiu: — Realmente, muito engraçadinho, mesmo.

Com esforço, o marechal Wamsler dominou o acesso de riso e observou:

— Também considero as suas piadas algo fora de propósito diante da seriedade da missão, McLane.

— Por quê? Humor pode salvar vidas — disse Cliff. — Ainda outro dia li isso numa novela.

— Está bem, está bem. Mas agora se mande para a base e decole logo. De minha parte desejo-lhe uma boa pescaria. Traga bastante espórios!

Cliff arrepiou-se quando se lembrou daquelas redes de arrastão, afixadas nos setores da casca inferior da nave e que se assemelhavam a asas dobráveis. Na sua opinião, avacalhavam a sua vistosa Orion, emprestando-lhe o aspecto de um cruzador-laboratório meio manquitola.

— Obrigado, marechal — disse assim mesmo, fez uma continência displicente e dirigiu-se à barreira eletrônica.

Mal Cliff tinha virado as costas, Spring-Brauner começou a fazer sinais furtivos ao marechal, e finalmente disse baixinho:

— Marechal... a mensagem radiofônica do comandante-em-chefe!

O marechal recordou-se de sopetão, inclinou-se para a frente e gritou:

— Espere um instante, McLane, me esqueci de um pormenor; é uma coisinha de nada que... — Wamsler vacilou e parecia inseguro.

— Estou ouvindo! — disse Cliff, a cara petrificada.

— Não é que quase me esqueci mesmo desse detalhezinho? — começou o homem de ombros largos, cabelos ralos e olhos negros. — Olhe, o comandante-em-chefe pede-lhe por meu intermédio que lhe preste um pequeno favor.

Surpreso, Cliff recuou um passo.

— O chefão pede um favor a mim? — perguntou, espantado.

— Pede, sim. O nome de Pieter-Paul Ibsen lhe diz alguma coisa? — indagou Wamsler, na espreita.

— Pieter-Paul Ibsen — repetiu McLane, baixinho, refletindo. — Momentinho... creio que já ouvi falar nesse nome. Acho que esse sujeito escreve, ou estou enganado?

Spring-Brauner acenou.

— É isso mesmo. Ibsen é um dos autores mais conhecidos de romances futurísticos. Portador do Prêmio Utopia.

Agora McLane se lembrou.

É curioso, pensou, que ele, McLane, dava tão pouca importância às concepções sobre o futuro de Terra e dos homens, que Ibsen descrevia com tanta precisão. É que McLane considerava os romances futurísticos como uma série de experiências mentais que poderiam se tornar realidade ou não. E até agora a vida tinha percorrido caminhos bem diversos que as idéias dos autores. Não obstante, McLane possuía várias obras de Ibsen em sua estante.

— Então o cavalheiro é este! — disse Cliff, finalmente. — Nós, astronautas, o chamamos de Pie-Po. Sim, li umas duas ou três das suas publicações.

— E o que achou delas? — quis saber Wamsler.

— Não me dei o trabalho de lê-las com espírito crítico — respondeu McLane. — Sei que alguns dos meus colegas acham aquilo tudo uma besteira congênita, mas não creio que a coisa seja tão ruim assim. Afinal, esse camarada desenvolveu algumas teorias bem plausíveis.

— Os romances utópicos de Ibsen gozam de fama mundial! — disse Spring-Brauner, quase aborrecido. — Não perco um único!

— Quer dizer que os aprecia? — perguntou McLane.

— E como! — retrucou Spring-Brauner. — Só para citar um exemplo, ele afirma que a grande maioria dos comandantes de naves espaciais é composta por sujeitos encantadores. Neste ponto, ele diverge da realidade.

Cliff deu um aceno bem-educado.

— Pelo que parece não escreve nada a respeito de ajudante-de-ordens?

Spring-Brauner manteve-se calado.

— Fora de brincadeira — disse Wamsler. — É voz corrente que as obras de Ibsen são famosas no mundo inteiro.

— O que não é exatamente lisonjeiro para o mundo — retorquiu McLane. — Mas o que têm romances futurísticos e Pieter-Paul Ibsen a ver comigo?

Wamsler só respondeu após uma breve pausa, como se não tivesse coragem de dar a pílula amarga a McLane:

— O comandante-em-chefe pede-lhe que leve Ibsen a bordo durante o seu vôo para Umbriel, e que tome conta dele.

McLane olhou estarrecido para Wamsler; estava para lá de perplexo.

— Levar Ibsen a bordo da Orion...? Wamsler fez que sim, com uma aguda sensação de mal-estar. McLane sacudiu a cabeça, e sentiu que os cabelos na sua nuca se eriçavam. Era o máximo: embalar um escritor através do universo!

— Nunca! — disse McLane e sentou-se, abalado.

— Ora! Faça-me o favor! — observou Spring-Brauner, que não ocultou sua satisfação pelo efeito que a surpresa tinha surtido. Cliff reparou isso claramente e apontou para o ajudante.

— Não ficaria admirado se soubesse que está metido em mais essa — observou, desconfiado. Spring-Brauner sacudiu a cabeça e respondeu:

— Pieter-Paul Ibsen é noivo da filha do ministro para assuntos extraterranos.

McLane engoliu em seco e perguntou:

— E por que não faz disso sua profissão principal?

Spring-Brauner e Wamsler encolheram os ombros, num gesto significativo.

— Por sua vez, o ministro foi colega de turma do comandante-em-chefe.

— Já entendi — comentou McLane — não há nada como ter boas relações.

— Certo — respondeu Spring-Brauner. — E Ibsen externou o seu desejo de participar de uma missão no nosso domínio espacial. Quer conhecer de perto as dificuldades; considera isso material inestimável para um novo romance.

McLane largou a mão na mesa.

— Ah, é? — disse, com raiva mal contida. — Pretende coletar material para um novo romance? Ele que nem pense nisso!

Devia comprar uma assinatura para doze vôos em torno de Marte. Dinheiro é o que não lhe deve faltar.

Wamsler inclinou-se um pouco para a frente e murmurou:

— Quanto a isso, tenho lá minhas dúvidas. Não sabia que os autores de ficção científica são muito mal pagos?

— Então, devia datilografar os protocolos da frota! — sugeriu McLane, amargurado. — Talvez seja mais lucrativo!

Spring-Brauner deu um sorriso perfunctório e disse:

— Está confundindo a situação, McLane. Escritores não são datilógrafos. O problema é outro; Ibsen quer passar por uma aventura!

— E logo a bordo da Orion, não é? — perguntou McLane, furioso.

— Vai ver que alguém disse a ele que essa era a melhor pedida. Afinal, o senhor é um homem famoso, McLane.

McLane contorceu a boca num sorriso malévolo.

— Para o senhor, continuo sendo o comandante McLane, Spring-Brauner.

Visivelmente ofendido, Spring-Brauner retrucou:

— E para o senhor, continuo sendo o tenente Spring-Brauner, comandante!

Cliff já se tinha virado para Wamsler e indagou:

— E se eu me recusar a levá-lo a bordo? Wamsler encolheu os ombros e fez uma cara meio espantada. Abriu uma pasta e retirou uma foto grande, que impeliu por cima do tampo espelhento da mesa. McLane aparou a foto habilmente com o dedo, e a virou. No verso, leu: "A um dos meus fãs mais encantadores, dedico esta em cordial amizade. Pieter-Paul Ibsen." A assinatura era floreada e psicologicamente interessante, pois um arabesco generoso encimava o "i" em "Pieter", denotando os processos mentais fantasiosos do signatário.

— E se eu me recusar? — insistiu Cliff.

— Pode fazê-lo. Mas... — respondeu Wamsler.

— Sim? Estou ouvindo.

— É um direito que lhe assiste. Pode fazê-lo, se quiser me colocar numa situação mais que embaraçosa. Pense duas vezes, major, antes de se decidir. Leve-o consigo. Faça isso por mim.

— E o que eu vou ganhar com isso?

— Um exame bastante benevolente do seu caso, para ver se é justo mantê-lo por mais tempo na Patrulha Espacial. Afinal, daqui a pouco vamos festejar o nosso primeiro aniversário, não é mesmo?

McLane limitou-se a acenar.

— É uma vergonha inenarrável para toda a repartição, queimar um homem fora de série como esse na Patrulha! — observou Spring-Brauner, com mordacidade.

— É algo que nunca vai poder acontecer consigo — respondeu o major.

— Como é? Vai levar Ibsen ou não? — perguntou Wamsler tranqüilamente.

— Se eu comunicar isso ao meu pessoal, vai haver motim a bordo! — respondeu McLane.

— Hasso é calmo e comedido. Vai tomar conhecimento disso e ponto final — disse Wamsler. — Atan vai fazer alguns comentários jocosos, ao menos na opinião dele. Quanto às duas senhoritas encantadoras, que o senhor leva a bordo, tenho certeza de que vão discutir com Ibsen a respeito da importância da literatura trivial no século do consumo em massa. Já De Monti vai lhe passar uma carraspana, de vez em quando. Cabe a si, McLane, apresentar Ibsen da maneira apropriada.

McLane acenou, aborrecido.

— Por cima de tudo, ainda esperam que cumpra formalidades sociais! Apresento quem a quem?

— Sempre deve apresentar os cavalheiros às damas! — elucidou Spring-Brauner, obsequioso.

— Conhece Ibsen pessoalmente? — quis saber Cliff do marechal.

— Apenas superficialmente. Não é tão mascarado quanto a maioria dos literatos, mas não deixa de ser vaidoso, como todos os que ganham a vida escrevendo. Mas esse defeito o senhor vai conseguir corrigir em três tempos. Basta incumbi-lo de uma tarefa, na qual ele fracasse. Garanto que isto cura o convencimento de qualquer literato, fazendo-o voltar à normalidade, ou àquilo que os meios literários consideram o estado normal. Entendeu?

— Perfeitamente! — respondeu Cliff. — Ave Wamsler, morituri te salutant! (Salve, Wamsler; os que vão morrer te saúdam!)

— Viu? — disse o marechal — já está até citando um texto de um colega de profissão de Ibsen!

Ambos riram.

McLane levantou-se e acenou.

— Está bem — disse, estendendo a mão para Wamsler. — Vou levar Pieter-Paul Ibsen e iniciá-lo nos segredos dos cosmos. Espero que depois desta missão ele pare de confundir os planetas com os sóis, e se convença que a nebulosa de Andrômeda não fica colada na órbita de Plutão.

Os dois homens trocaram um aperto de mão. Cliff ignorou a fotografia do escritor, que continuava em cima da mesa, e dirigiu-se à barreira eletrônica. Segundos depois, as torrentes de elétrons reativadas ocultaram-no da visão de Wamsler e Spring-Brauner. Cliff McLane acenou para as moças bonitinhas na ante-sala, enveredou por um largo corredor e pegou o elevador, que o levou para a superfície de Groote Eylandt, onde se encontrava o seu bangalô. Partiria daqui a vinte e quatro horas.

 

No dia seguinte: O disco reluzente da Orion VIII pairava dez metros acima do solo, sustentado pelos raios antigravitacionais. Círculos luminosos no piso de concreto delimitavam os trechos mortíferos, sobre os quais esses raios incidiam. A tripulação já estava a bordo. Cliff torceu o nariz quando viu os grandes dispositivos retangulares, afixados à parte inferior da sua nave. Destinavam-se a captar e filtrar a poeira cósmica, e eram capazes de reter qualquer corpo estranho que medisse mais de um micromilímetro. Concluída a missão, essas partículas seriam entregues ao Centro Científico, que se submeteria a um minucioso exame.

Cinco rostos atentos aguardavam McLane na cabina de comando da Orion, um deles na tela do videofone: Hasso Sigbjörnson encontrava-se na sala de máquinas.

— Minha cara e estimada tripulação — começou McLane. — A rigor, a surpresa já devia ser do conhecimento geral.

— Ouvi falar em "surpresa"? — perguntou Mario de Monti, que estava sentado diante da unidade de entrada do computador.

— Ouviu direito. Fomos contemplados com um hóspede.

Tamara notou que os outros olharam para ela e sorriu; estava novamente recostada naquela escora inclinada, seu lugar predileto.

— Não — disse — não sou eu. Certamente o comandante McLane não me consideraria um hóspede, não é?

No que dizia respeito a Tamara, a consciência de Cliff não era das mais limpas. Só raramente e a contragosto lembrava-se de certos acontecimentos no planeta Chroma.

— Tem razão; se me referisse à sua pessoa, teria dito: um hóspede especialmente caro a todos nós! Mas acontece que a senhora faz parte da Orion como as máquinas e as telas de imagens, queridíssima Tamara.

Hasso estava ficando impaciente. Sua voz alta veio dos alto-falantes:

— Diga logo, comandante; quem é o nosso hóspede?

Cliff estendeu os braços num gesto de resignação e disse:

— PIETER-PAUL IBSEN! Pasmado, o astronavegador de cabelos negros sussurrou:

— Que idéia mais maluca, Cliff!

— Não é minha; é do comandante-em-chefe — desculpou-se McLane.

— Isso é uma piada. E não das melhores!

Mario calcou, com raiva, uma tecla na unidade de entrada.

— Uma piada digna de um literato! — comentou, acerbamente.

McLane encolheu os ombros e respondeu:.

— Alguém já viu o comandante-em-chefe fazer uma pilhéria? Não, meus amigos, isto não é uma piada; trata-se da realidade nua e crua. Temos a súbita honra de viajar em companhia de um cavalheiro agraciado com o Prêmio Utopia!

— Ai! — gemeu Helga — nesse caso, suponho que vai se apresentar de blazer com um brasão desse tamanho!

— Será que a falta de gosto dele chega a tal extremo? — conjecturou Atan.

Mario de Monti, o subcomandante de ombros largos e expressão flegmática, queixou-se:

— É de lascar! Parece que criaram o hábito de largar tudo quanto é abacaxi nas mãos da gente!

McLane absteve-se de dar resposta.

— Pie-Po! — resmungou Atan Shubashi, agitado. — Podem escrever: é o sujeito com a imaginação mais fértil e despropositada da nossa geração! Nos romances dele, os homens dominam o salto tempo-espaço, conhecem não sei quantas raças estranhas, e percorrem o universo em naves maiores que antigos condados terranos! E é com um cara desses que vamos ter que passar nossos dias no cosmos!

Inquietado pelas notícias alarmantes, Hasso abandonou seu posto na casa de máquinas e subiu para a cabina de comando. Postou-se diante de Cliff e disse:

— Uma coisa é certa: se esse sujeito tentar aproximar-se dos meus propulsores, vou recebê-lo de HM-4 na mão!

Helga Legrelle, a telegrafista da Orion, rompeu o silêncio que se seguiu às palavras de Hasso:

— Não sei para que essa exaltação toda. Esperem ele aparecer... vai ver, que é até muito bonzinho...

Atan Shubashi soltou uma daquelas suas risadinhas nervosas.

— Bonzinho! Desde que o primeiro livro de Moisés foi escrito, não apareceu mais um só literato bonzinho! É um bocado de otimismo de sua parte! Um poeta-futurólogo!

— Eu também acho essa história um pouco estranha — comentou Tamara. — Ao menos deviam ter avisado o Serviço de Segurança!

— Se é só isso que a preocupa nessa maçada, então eu me pergunto... — começou Mario, enfurecido, mas Cliff cortou-lhe a palavra com um gesto da mão.

— Prestem atenção — disse, em tom calmo. — Concordei em levar Ibsen para livrar Wamsler de uma situação embaraçosa. Portanto, peço que o tratem com amabilidade, está bem? Estou mais preocupado com outra coisa.

— Posso saber o que é? — perguntou Hasso, esperançoso. Em vez de responder, Cliff consultou o cronômetro de bordo.

— Hora de partida menos quatro minutos — constatou. — Vamos decolar pontualmente. Se Ibsen não aparecer a bordo dentro de duzentos e quarenta segundos, vai ficar a ver navios.

Mario de Monti observou:

— É, mas a bagagem dele já está no camarote!

 

— Já terminou a programação, Mario? — perguntou Cliff, três minutos mais tarde.

Mario acenou afirmativamente.

— A primeira fase do vôo já está programada.

Hasso estava recostado na mesa do transmissor, ao lado de Helga, e lançou um olhar pensativo pela sala de comando.

— Então vamos cair fora, Cliff. O que estamos esperando?

Cliff olhou novamente para o relógio. Ainda faltava um minuto.

— Vamos decolar na hora prevista. Não quero que depois digam que sabotamos a operação "Literatura no Cosmos". Vou esperar até o último segundo. Se aí o grande poeta não aparecer, partimos sem ele.

Shubashi riu alto.

— Vai ver que ainda está procurando uma rima.

— Não se preocupe, astronavegador Shubashi — disse uma voz estranha. — Acabou de encontrá-la.

Seis pares de olhos fitaram, surpresos, a porta do elevador. "Ele" entrou na cabina de comando.

— Oh!

Helga não conseguiu conter essa exclamação, baixinha, mas bem audível. Cliff exibiu um sorriso maroto e viu que Helga corou; a situação até que era cômica. E lá, parado no elevador, estava Pieter-Paul Ibsen; um homem de boa aparência e talvez trinta e cinco anos de idade. Contemplou os membros da tripulação com um sorriso radioso, não isento de um ligeiro traço de orgulho. Trajava um jaquetão, confeccionado de um tecido no qual predominavam os fios metálicos. Cliff constatou, aliviado, que não ostentava o brasão da Ficção Científica. Com o sorriso consciente de um escritor que viu as suas obras em exposição na banca do porto espacial, Ibsen dirigiu-se a McLane, fez uma continência perfeita e disse numa voz, que não tinha nada de desagradável:

— Pieter-Paul Ibsen apresenta-se a bordo, comandante!

Cliff não teve escapatória e trocou o aperto de mão oferecido; a tripulação começou a se aproximar lentamente.

— Olhem aqui — disse Ibsen, orgulhoso, e exibiu um livro alongado e fino — o primeiro exemplar do meu novo romance... praticamente, acabou de sair do prelo. Fiz questão de trazê-lo, daí o meu atraso. Devem saber que o autor é sempre o último a receber suas próprias obras. Primeiro, enviam exemplares aos jornais e aos críticos

— por pouco, Ibsen não soltou um palavrão

— depois, abastecem o comércio e só então consigo botar os olhos no meu livro. Acabei de comprá-lo. Foi por isso que me atrasei.

Tamara Jagellovsk havia acompanhado essa verborragia com atenção e respondeu, em tom seco:

— Diante das justificativas apresentadas, desculpamos o seu atraso!

— Ótimo! — disse Ibsen e estendeu o livro a McLane. Cliff viu uma capa horrorosa e um título, que devia ser uma jóia literária.

— Peço-lhe que aceite esta insignificante lembrança, comandante — disse Ibsen, e acrescentou, com mal velada ansiedade: — Prefere o livro com ou sem dedicatória?

Não constituía exceção à regra: como todos os autores, Ibsen estava possuído pela obsessão de oferecer obras de sua lavra apenas com dedicatórias.

Cliff não deu resposta e limitou-se a sacudir a cabeça.

— Podíamos decolar, major McLane — disse Pieter-Paul Ibsen, ainda radiante e cheio de si, ostentando o livro na mão direita, como se fosse um objeto exorcístico.

O comandante perguntou laconicamente:

— Me disseram que sua bagagem já se encontra a bordo.

Ibsen acenou.

— Certo. Encontra-se no camarote número nove, que me indicaram por telefone.

— Foi o senhor mesmo quem a levou para lá? — perguntou Cliff, espantado.

— Claro!

— Conhece as instalações internas da minha nave?

Ibsen vislumbrou uma oportunidade para demonstrar seus conhecimentos e respondeu sem titubear. Helga Legrelle estava meio irritada e não conseguia desprender o olhar de Ibsen, examinando, repetidamente, aquele jaquetão reluzente, as calças bem talhadas, e as botas leves.

— Eu me preparei exaustivamente para essa missão, major. Por isso, estudei minuciosamente as plantas-baixas da nave.

Como o senhor sabe, já se encontram à venda nas bancas; custam uma ninharia. São mal desenhadas, é verdade, mas nem por isso deixam de ser um bocado instrutivas. Claro?

Surpreso, Cliff virou-se para Tamara.

— Pode-me explicar isso? — perguntou, perplexo. — Pensei que plantas das naves pertencentes às forças armadas espaciais só poderiam ser publicadas com autorização expressa do SSG.

Tamara encolheu os ombros e respondeu:

— Parece que a editora tem relações de que nem suspeitamos...

— Além disso — intrometeu-se novamente Ibsen — a imprensa começou a se interessar pelas aventuras da Orion. Já publicaram algumas reportagens. Daí o meu interesse especial na sua pessoa, major McLane, na sua tripulação e na sua nave.

Depois de digerir a enxurrada verbal, McLane disse:

— Já que é assim, certamente gostaria que lhe apresentasse os membros da minha tripulação, não é, mister Ibsen?

Com uma expressão radiante, Ibsen ergueu a mão, num gesto grandiloqüente.

— Pode me chamar de Pie-Po, comandante! Afinal, é assim que se referem a mim, quando não estou presente!

— Muito bem; então vamos às apresentações. Vamos começar pela tenente de l.a classe Tamara Jagellovsk, do Serviço de Segurança Galático... — disse McLane e apontou para Tamara, que o encarou com um sorriso irônico e estendeu a mão estreita para Ibsen.

Ibsen apertou a mão de Tamara, virou-se e explicou ao comandante perplexo:

— Mas não há necessidade alguma de me apresentar o seu pessoal um por um, major. Conheço sua tripulação perfeitamente bem através de numerosas reportagens e programas videofônicos. Procurei me informar o mais detalhadamente que pude. Além disso, vi o senhor e sua equipe não sei quantas vezes quando realizava os meus estudos ambientais.

Mario de Monti encostou-se no metal frio da unidade de entrada e enterrou o rosto nas mãos. Estava abalado, e murmurou, por entre os dedos:

— Estudos ambientais? Que maravilha!

— Onde os realizou? — perguntou Cliff, pasmado.

— No Cassino Starlight, major! — foi a resposta.

— Se estudou tudo com tanta minúcia — perguntou o subcomandante, agora em voz alta — não vejo que vantagem poderia tirar desse vôo. O senhor já conhece e sabe tudo. Vai ver que além disso, ainda é psicólogo diplomado.

Com amabilidade genuína, Ibsen respondeu:

— Teoricamente, sou. Mas na prática, qualquer astronauta leva uma grande vantagem.

— Correto! — exclamou Hasso, que não conseguiu mais se conter. — Os astronautas apresentam a vantagem de saber se limitar a relatórios verbais concisos. Não escrevem, ou se o fazem, escrevem pouco.

— Se bem que poderiam, Hasso — comentou Atan.

— Claro! — respondeu o engenheiro de bordo de cabelos brancos e dirigiu-se ao elevador. — Claro que poderiam; você, principalmente!

McLane acabou com a discussão.

— Então vamos partir — disse. — Já nos atrasamos três minutos.

Depois, mais alto, em tom de comando:

— Ocupem seus postos! Ligar controles. Acionar máquinas! De Orion para base: estamos prontos para decolar.

Em seguida, a voz do computador de partida iniciou a contagem regressiva, durante dez segundos. Os anteparos protetores sobre o cilindro de aço se recolheram, e no Golfo de Carpentária começou a se formar aquele grande remoinho.

— Dez... nove... oito... sete... seis... Silenciosamente Ibsen aproximou-se de

Cliff e perguntou:

— E eu posso me sentar aonde, comandante?

— Tenente Jagellovsk? Tenciona estabelecer medidas de segurança especiais em relação à pessoa do escritor Ibsen?

Tamara encolheu os ombros encantadores e lembrou-se daquela aventura em Chroma.

— O chefe é o senhor, major! — respondeu em tom sério.

Cliff conectou o computador e o piloto automático aos seus instrumentos e sinais luminosos. Lentamente, à razão de alguns metros por segundo, a Orion VIII elevou-se do piso da base submarina na ponta setentrional da Austrália.

— Fico satisfeito em ver que finalmente reconheceu isso, tenente Jagellovsk — disse Cliff. Recostou-se e apontou para a poltrona vazia diante do outro painel de instrumentos, do qual também se podia manobrar a nave. — Desculpe a falta de melhores acomodações, mister Ibsen, mas por enquanto vai ter que se contentar com o lugar de Hasso. Vamos decolar!

A nave espacial Orion estava iniciando uma nova missão, desta feita com um hóspede a bordo. Cliff sabia que se tratava de mais um desses vôos rotineiros, durante os quais dificilmente ocorria algo de interessante. Nutria, porém, a esperança de poder entabular uma conversa proveitosa a respeito de literatura — ou daquilo que Ibsen imaginava ser literatura.

"Como se sabe, viajar também é cultura", pensou o comandante, e chamou à memória aqueles acontecimentos em Chroma. De resto, fazia votos para que não ocorressem novamente eventos totalmente inesperados.

A Orion lançava-se vertiginosamente espaço adentro. O cérebro de Ibsen parecia registrar o mais débil clique dos instrumentos com a precisão de um gravador magnético. Cliff observou-o com o rabo dos olhos e reparou que Ibsen estava se concentrando. McLane começou a simpatizar um pouco mais com aquele homem. Mas teria que conviver com ele durante um longo período, e a missão mal tinha sido iniciada...

Realmente, a tarefa a cumprir não passava da mais pura rotina, tão excitante como, por exemplo, uma descida de elevador de Groote Eylandt para os escritórios de Wamsler. A tripulação da Orion e seu hóspede, o poeta do espaço cósmico Ibsen, estavam ocupando tranqüilamente os seus lugares. McLane agarrou o microfone:

— Do comandante para livro de bordo — disse a meia voz, enquanto Helga se apressou em calcar uma tecla larga.

— Decolagem normal. A Orion está saindo da faixa controlada pela Estação Avançada IV e dirige-se às coordenadas do cubo espacial Dois-Norte 101. Desligo.

— Permite-me uma pergunta, comandante? — disse Ibsen.

— Pois não, desde que não seja difícil demais para responder!

— Está realmente satisfeito com o seu computador digital? — quis saber o escritor.

— Estou, sim; por que não haveria de estar? — respondeu o comandante, admirado.

— Porque dentro de uns dez a quinze anos essa instalação não vai passar de um montão de ferro velho — profetizou Ibsen.

— O que lhe faz afirmar isso? — indagou Cliff e reparou a expressão indignada de Mario.

Em tom professora! Ibsen disse:

— Acompanhando de perto a evolução tecnológica, não tenho dúvidas que, dentro desse prazo, vão conseguir num único bloco energético a instalação de força, o mecanismo de acionamento e o comando programável.

Aborrecido, Mario de Monti murmurou:

— O senhor é quem sabe, Pie-Po.

Ibsen exibiu o sorriso condescendente de um cientista, para o qual a descoberta de métodos novos, assustadoramente revolucionários, não apresentava dificuldades maiores que a fabricação de uma torradeira. Pôs-se a explicar sua afirmação:

— A evolução tecnológica vai ter que seguir obrigatoriamente esse rumo. Querem uma prova disso? Acabei de observar as suas manobras, comandante McLane. Não seguiu as instruções de operação previstas para este tipo de nave, efetuando, por conta própria, o acoplamento de posto de comando, piloto automático e computador original.

McLane recostou-se e perguntou, espantado:

— Certo. Com isso conseguimos reduzir o trabalho de cálculo ao mínimo indispensável, evitando as computações desnecessárias. O que tem isso de tão notável?

Ibsen ergueu as sobrancelhas e sorriu.

— O que tem de notável? Apenas a genialidade da solução que o senhor encontrou! Estou desconfiado, comandante, que o senhor mesmo nem notou isso! Uns seis meses atrás, tive ensejo de descrever esta solução no meu livro "Os Homens da Estação Espacial".

Ibsen examinou suas unhas bem feitas.

— Se agora me derem licença, vou me refrescar um pouco e pôr no papel algumas idéias que me ocorreram.

Levantou-se, fez uma breve mesura e dirigiu-se ao elevador com os passos elásticos de um celebrado ator de TV, que tinha acabado de receber seu polpudo pagamento. A porta semicircular girou nos gonzos e estalou ao encaixar-se nos fechos. O que Ibsen deixou na cabine de comando, foi uma tripulação mais que perplexa.

— Eta ferro! — exclamou Atan Shubashi, abalado. — Que sujeito mais arrogante!

Helga girou a poltrona e apontou para o astronavegador.

— De bobo ele não tem nada, Atan — observou, não sem um traço de admiração.

— Ninguém afirmou isso — disse McLane, algo irritado. — Um homem, que consegue ficar no mercado de livros durante anos a fio, não pode ser bobo. Muito pelo contrário. Tem que ser ambicioso, obstinado e, vez por outra, até mesmo gentil. Como agora.

Com a voz arrastada de uma atriz cinematográfica enfadada, Tamara comentou:

— Acho ele até bastante divertido, meus amigos!

— Um sujeito encantador! — concordou Helga, quase sem fôlego.

Mario fez uma cara chorosa. McLane refletiu durante alguns instantes e depois disse:

— Até chegarmos ao campo de operações, a presença das distintas senhoras na cabina de comando é perfeitamente dispensável. Que tal se fossem descansar um pouco nos camarotes?

Helga e Tamara entreolharam-se e começaram a rir gostosamente.

— Estão rindo de quê? — quis saber Atan, enfurecido.

— Estamos contentes — explicou Tamara com um sorriso indulgente e desceu do seu lugar cativo — em ver que a presença desse homem encantador já produziu um efeito muito salutar. Quer nos parecer que os demais cavalheiros a bordo estão ligeiramente enciumados. Isso é ótimo!

Em bela harmonia, as duas dirigiram-se ao elevador e desceram ao convés, no qual se encontravam os camarotes e a cozinha. Um silêncio embaraçoso reinou na cabina durante alguns momentos, depois Mario de Monti disse, desalentado:

— Será que o mau gosto das mulheres não conhece limites?

O sorriso de McLane saiu meio forçado.

— Ainda outro dia, me fiz a mesma pergunta.

— Quando? Onde? Por quê? — perguntou o subcomandante rapidamente.

— Quando eu vi você no Cassino Starlight em companhia de duas pequenas lindas de morrer!

De Monti ergueu a mão e advertiu:

— Não seja invejoso, comandante!

— Não tem perigo — respondeu Cliff.

 

Helga Legrelle estava folheando o exemplar da última obra de Ibsen com um ar sonhador.

— Deve ser uma sensação fabulosa — disse, embevecida — saber que se é capaz de inventar uma história dessas!

Quando foram "convidadas" a se retirarem da cabina de comando pela indireta de Cliff, Tamara e Helga não tinham a menor intenção de se recolherem a seus camarotes. Resolveram bater papo com Ibsen, e agora se encontravam no camarote deste, sorvendo chá e discutindo animadamente vários aspectos da ficção científica. Um assunto praticamente inesgotável, na opinião de Ibsen. Com a habilidade comum a todos os autores, tinha conseguido, em questão de minutos, que a conversa versasse apenas sobre o seu tema predileto. E isso, para ele, era duplamente proveitoso: não só lhe satisfazia a vaidade, como também lhe permitia lançar uma pequena campanha publicitária das suas obras. Não o fazia, porém, de maneira ostensiva. Ocultava as suas verdadeiras intenções por trás da fina ironia com que descrevia a sua profissão: nada tinha de especial em relação a tantas outras, como afirmava. E isto encantava a quantos o ouviam.

— Pode crer que escrever um livro desses no fundo não passa de uma trabalheira insana! — confidenciou a Helga, como se estivesse discorrendo sobre a construção de um anteparo contra o Overkill.

— Espere um pouco! — objetou Tamara, sorrindo. — Com uma imaginação fértil como a sua, isso não pode ser tão difícil assim!

Ibsen lembrou-se das longas e acaloradas discussões com os redatores e revisores nos escritórios da editora.

— Quer me parecer, minha cara — disse, em tom sério — que a senhora tem uma concepção bastante romântica de como se escreve uma novela. Posso lhe garantir que é um trabalho estafante, que nada tem de romântico. Além disso, de todos os fatores envolvidos na produção de um livro, o mais fácil de ser substituído é o autor, não importando se se trata de uma obra "standard" sobre psicologia ou de pura beletrística. Lembra-se do que conta a mitologia a respeito da Hidra de Hércules? Pois bem, a mesma coisa acontece com os escritores. Um autor se desilude e pára de escrever, e imediatamente surgem cinco ou seis concorrentes para lhe tomar o lugar. É nisso que reside a miséria dessa profissão.

— Mas, não há limites para sua fantasia — contrapôs Helga. — Pode inventar coisas e também destruí-las à vontade.

— Mesmo isso nada representa além de um trabalho árduo — insistiu o mestre e recostou-se, assumindo uma postura de grande efeito decorativo. — É como na navegação espacial. A gente imagina que vai viver uma aventura eletrizante e, no fim das contas, constata que o vôo realizado não passou de uma combinação de tecnologia requintada com destreza humana...

E assim continuaram a discutir animadamente. Na cabina de comando, Hasso, Cliff, Atan e Mario estavam postados diante da mesa do comandante, olhos fitos na tela do videofone, e acompanhavam, em silêncio, a edificante conversa entre as duas moças ávidas de saber e o afamado autor, que exibia um sorriso bonachão. Vez por outra, Mario sacudia a cabeça.

— ...e nem sempre se tem o privilégio de viajar em companhia tão encantadora quanto a sua. Portanto, navegar pelo espaço também não deixa de ser uma atividade bastante monótona. A missão, que ora iniciamos, corrobora a minha afirmação: caçar espórios na vastidão do cosmos!

O comandante ergueu a mão e golpeou, de leve, um botão no painel seletor do intercomunicador de bordo. O botão era o de número nove: o número do camarote de Ibsen. Os sulcos que atravessavam a testa de Cliff denotavam sua profunda irritação.

— Não dá nem para discutir! — desabafou Mario. — Então nossa atividade é monótona, é?

Cliff encolheu os ombros e olhou para Hasso. Poucos minutos separavam a nave do mergulho no hiperespaço.

— Precisa bolar alguma coisa, chefe!

Algo que torne o vôo menos monótono para esse paspalhão fantasioso. Que tal se você provocasse um pequeno incêndio no camarote dele?

Cliff sacudiu a cabeça e exclamou:

— O diabo que vá!

— E por que não? — pediu Atan. — O que esse cara precisa, é uma sensação de perigo. Basta um tiquinho de nada!

— É só" o que faltava no rol dos nossos pecados: meter em perigo a preciosa vida do genro de um ministro! Vamos passar o resto dos nossos dias como faxineiros de bordo!

— Uma constatação irrefutável! — concordou Mario de Monti. — Não valeria a pena tentar.

— Tenham um pouco de paciência — disse Cliff. — Vamos descobrir um macete perfeitamente legal, para lhe pregar uma peça.

— Agora confiamos na sua fantasia, Cliff! — disse Hasso. E pouco depois a Orion VIII mergulhou no hiperespaço. Curso: Dois-Norte 101.

 

"É IMPRESSIONANTE", pensou a jovem ordenança feminina, "como uma sala pode mudar de aspecto, sem que uma única poltrona sequer tenha mudado de lugar."

Um refletor substituiu a luz do dia, que normalmente iluminava o gabinete através da janela panorâmica submersa. A claridade chegava até o compartimento por meio de um complicado sistema de espelhos variáveis.

— Confidencialmente, marechal Wamsler, houve uma briga feia lá em casa.

O ar surpreso do marechal condizia com o seu tom de voz.

— Foi mesmo? — perguntou.

— Infelizmente! Pouco antes da decolagem da Orion, na qual se encontra o meu genro. E passando bem, espero eu!

Spring-Brauner fez um gesto tranqüilizador.

— Tenho certeza de que está passando bem. A Orion é uma das nossas naves mais seguras, e McLane não é homem de fazer algo impensado. Mormente com uma carga tão delicada a bordo como uma agente do SSG e o seu estimado genro, senhor ministro.

Spring-Brauner tomou fôlego e viu o alívio estampado no rosto do ministro.

— Minha filha não queria deixá-lo partir! — disse o ministro.

— Quem? McLane?

— Não. Pieter-Paul. O senhor sabe como são as mulheres... imaginam um sem-número de sustos, aventuras e perigos que, afinal, nunca chegam a se concretizar.

Wamsler colocou as mãos na mesa, entrelaçou-as e encarou o ministro com um olhar franco.

— Esta missão não oferece o menor perigo, senhor ministro! — afirmou, com ênfase.

— Nenhum perigo! — confirmou Spring-Brauner, solícito.

Algo vacilante, o ministro disse:

— Mas, como se sabe, a tripulação da Orion é... como direi... mista. Há duas moças a bordo...!

Wamsler liquidou os receios do ministro com um gesto grandiloqüente. Riu abertamente.

— Quanto a isto, pode ficar inteiramente tranqüilo, senhor ministro! — disse e deu uma cotovelada nas costelas de Spring-Brauner. O ajudante-de-ordens apressou-se a acompanhar a gargalhada do seu superior, mas o fez com uma nítida expressão de dor no rosto.

— Se estou bem informado — disse o marechal, bem-humorado — Helga Legrelle, a telegrafista, está perdidamente apaixonada pelo major Cliff McLane. Secretamente, é claro; extra-oficialmente, por assim dizer, se bem que todo mundo na base 104 está cansado de saber disso.

O ministro fez um gesto vago. Ainda não se deu por satisfeito.

— Mas ainda há aquela outra moça que, pelo que me consta, Villa destacou em missão especial... — começou, preocupado.

O gesto de Spring-Brauner não podia ser mais desdenhoso. Repetiu-o por várias vezes.

— A camarada Jagellovsk! — murmurou, em tom mordaz.

— Quanto a Tamara — continuou a explicar Wamsler — bem, até hoje a tripulação masculina da Orion está na dúvida, se ela é realmente uma mulher ou apenas um robô feminino de aspecto bastante apetitoso.

— Ah, sei! Diga-me, marechal, seria possível estabelecer uma ligação radiofônica com a Orion?

O que Wamsler mais gostaria poder fazer naquele momento, era levantar-se e ir para casa. Balançou o crânio enorme e disse:

— Não sei bem, se vai ser possível.

— Devolveria a tranqüilidade à minha filha, se pudesse contar a ela que consegui falar com Pieter-Paul.

— Como é que é? — perguntou Wamsler a seu ajudante.

— Infelizmente, no momento não há condições de estabelecer esta ligação — asseverou Spring-Brauner, num tom de voz que soava genuinamente lamentoso. Exibiu um sorriso amável. — Acontece, senhor ministro, que a comunicação hiperradiofônica com a Orion foi interrompida por perturbações cósmicas. Nossas mensagens não passam.

O ministro levantou-se sobressaltado e exclamou:

— Mas isto é... isto é simplesmente pavoroso! O que é que eu vou contar à minha filha?

Wamsler disse, em tom tranqüilizador:

— Isso acontece a toda hora, senhor ministro; não é nada de excepcional. Esses campos de perturbação cósmica fazem parte do nosso dia-a-dia, e não oferecem o menor perigo. Prometo-lhe chamar Cliff McLane assim que essas interferências cessarem; depois transferimos a ligação para o seu aparelho.

O ministro acenou, ainda deprimido. Em tom quase suplicante, disse:

— Peço-lhe encarecidamente, marechal, que me mantenha a par dos acontecimentos. Em qualquer caso! Só faço votos que consiga restabelecer a ligação o mais breve possível!

Wamsler, que ansiava pelo fim da conversa como pelo dia da sua aposentadoria, levantou-se e estendeu a mão carnuda ao ministro.

— Mas é claro que vou mantê-lo informado de tudo! — apressou-se em assegurar.

— Conto com isso. Caso contrário, é bom que saiba, vou me encontrar numa situação sumamente desagradável. E não posso conceber que o senhor vai deixar que isto aconteça, marechal!

— De forma alguma isto vai acontecer!

— prometeu Wamsler.

— De forma alguma, senhor ministro!

— ecoou Spring-Brauner.

O ministro despediu-se e desapareceu por trás da barreira eletrônica. Durante alguns instantes Wamsler e Spring-Brauner entreolharam-se em silêncio. Por fim, o ajudante perguntou:

— Gostaria de saber, de que este cavalheiro tem mais pavor: da língua da sua filha ou de um acidente no cosmos?

— É claro que morre de medo da filha. Está colhendo os frutos da educação que resolveu dar a ela. Quem mandou ele enfiá-la num desses caríssimos internatos luxemburgueses!

E Spring-Brauner deu um aceno significativo.

 

Quarenta e oito horas e alguns minutos após a partida, a Orion VIII emergiu do hiperespaço. Pairava no cubo espacial Dois-Norte 101, uma região isenta de estrelas, mas permeada de massas gasosas em constante movimento, e que eram emitidas por um sol distante. Campos magnéticos se encarregavam de dar um formato mais definido a essas massas amorfas, transformando-as em torrentes de forma tubular que se deslocavam em direção ao centro da esfera espacial com uma velocidade que correspondia à do vento solar.

Hasso encontrava-se na casa de máquinas; os demais membros da tripulação, inclusive o ilustre autor, estavam reunidos na cabina de comando.

— Nada ainda? — perguntou Cliff.

— Nada — respondeu Helga Legrelle — nem um pio, chefe. Estamos completamente isolados!

— Muito estranho! — comentou Atan Shubashi.

— Isso só pode ser devido aos campos de perturbação cósmica — lembrou Cliff. — Não é a primeira vez que afetam a nossa comunicação radiofônica. Bem, o que há de se fazer? Não recebemos perguntas e, portanto, não precisamos das respostas.

Puxou o microfone para perto e disse, a meia voz:

— Do comandante para livro de bordo! Reiteradas tentativas de estabelecer contato com F.R.E.T. por radiofonia hiperespacial, pois estas fracassaram. Interferências cósmicas impossibilitam comunicação. Nave Orion chegou ao campo de operação. Baixamos filtros e iniciamos a procura de espórios. Desligo.

Cliff dirigiu-se à tripulação e disse em voz alta:

— Está tudo pronto, amigos?

As diversas confirmações vieram pelo intercomunicador de bordo.

— Vamos voar através daquela torrente cuja direção Atan determinou. Inicialmente o gás interestelar será filtrado pelo processo magnético. Se tivermos sorte, pegamos tantos daqueles benditos espórios carregados pela pressão de radiação, que o Centro Científico tem um ano de análises pela frente. O que para nós significa menos doze meses de missões idiotas.

Ibsen apontou para um pequeno ponto fluorescente na tela de imagem.

— Posso lhe fazer uma pergunta, comandante?

Cliff nem se mexeu e disse:

— Faça quantas quiser, mestre das teclas!

Atan não se conteve e soltou mais uma daquelas suas risadinhas irritantes.

Ibsen apontou novamente para aquele pontinho e disse:

— Aquilo lá é um minúsculo asteróide; pelos meus cálculos, deve distar uns duzentos mil quilômetros de Umbriel.

McLane acenou, concordando.

— Sei disso — respondeu. — Quer comprá-lo?

Ibsen sorriu e disse, sem qualquer traço de ironia ou sarcasmo:

— Há séculos que este pedaço de rocha está pairando aí, bem no meio do trajeto do vento solar. Por que vai se dar todo esse trabalho com a nuvem de gás? Para aspirar algumas partículas? Para conseguir coletar meia dúzia de amostras?

— Vai rir se eu lhe contar — disse Mario de Monti. — Mas foi única e exclusivamente para este fim, que viemos para cá. E lhe garanto que conheço no mínimo uns cem lugares, onde preferíamos estar agora. Não é mesmo, Atan?

Shubashi acenou, sem proferir palavra.

— A atração exercida por aquele asteróide sem nome é muito superior à da Orion e todos seus apetrechos. Então por que ainda continua a boiar aqui com filtros baixados e tudo? — insistiu Ibsen.

— Por uma razão muito simples — disse Cliff e deu um sorriso de superioridade. — Porque esses espórios, se é que existem, não podem ser caçados como, por exemplo, borboletas exóticas, prezado mestre!

Ibsen arreganhou os dentes numa expressão da mais pura ingenuidade e disse, calmamente:

— Uma única lasca de pedra daquele asteróide vai lhe poupar dias de trabalho, se o senhor for lá e tirá-la.

A estupefação de McLane era autêntica. Pesou a proposta daquele homem ao seu lado, que nunca antes tinha voado pelo espaço e que parecia conhecer coisas, que um astronauta experiente só descobria após longas reflexões. Cliff percebeu os olhares consternados da sua equipe.

— Não deixa de ter razão — comentou. — Realmente, isso faz sentido!

— Parece que a minha presença a bordo não é de todo inútil, comandante — respondeu o escritor. — Isso me deixa muito satisfeito, e me fez perder a inibição de externar um pedido.

Cliff olhou para Ibsen com um ar de surpresa.

— Deseja alguma coisa?

— Desejo, sim. E não faz idéia quanto este desejo me atormenta, comandante!

A expressão de McLane era marota como quê quando respondeu:

— Sinto muito, meu caro, mas vai ter que sofrer mais um pouco. No momento, as damas a bordo estão de serviço!

Atan Shubashi começou a rir. Ibsen aparou a observação maliciosa de Cliff com um sorriso suave.

— Não se trata disso, comandante. Meu desejo é de outra natureza. Ao menos uma vez na vida, gostaria de dirigir uma Lancet, e nunca estive tão perto de realizar esse sonho. Depende apenas da sua permissão, major McLane!

Cliff levantou-se bruscamente e exclamou:

— Ficou maluco?

Ibsen remexeu no bolso da sua reluzente jaqueta e finalmente mostrou um pedaço retangular de plástico, que apresentava um retrato seu e uma infinidade de carimbos. Bastou olhar de relance, para McLane saber que documento era esse.

— Ouça, por favor! — disse Ibsen em tom quase humilde. — Algumas semanas atrás me inscrevi num curso de pilotagem automática, e consegui ser aprovado com distinção!

Cliff sacudiu a cabeça energicamente e respondeu:

— Isso não passa de pura teoria. Seu treinamento se resumiu em pular para meia dúzia de pontos dentro da atmosfera, e isso é uma tarefa elementar que qualquer um pode realizar.

— Perdão, comandante. O senhor sabe muito bem que o princípio básico não muda. Só quero experimentar a sensação de voar sozinho pelo espaço.

McLane olhou de esguelha para Tamara, viu a expressão de expectativa dela e disse categoricamente:

— Pode experimentar quantas sensações quiser, mas essa não!

— Peço-lhe encarecidamente que atenda ao meu pedido, comandante — insistiu o literato. — Seria o melhor presente de aniversário que já recebi. Depois de amanhã, vou fazer trinta e seis anos.

Mario de Monti soltou o seu possante barítono:

Happy birthday to you...

Durante alguns segundos, a cabine de comando ressoou da gargalhada geral, da qual, para espanto de McLane, o próprio Ibsen participava a plenos pulmões. Depois, o escritor ficou novamente sério e aguardou a próxima pergunta de Cliff.

— Sabe mesmo manejar um troço desses? — quis saber McLane, desconfiado.

— Comandante! — disse Ibsen, quase ofendido — já nas minhas primeiras obras, coisas do gênero da Lancet são lembradas apenas como pertencentes ao ferro-velho!

— É verdade! A evolução descrita em seus livros é realmente espantosa. Até a desmaterialização já não constitui problema algum para os seus heróis, não é mesmo? — retorquiu Cliff.

Ibsen ignorou essa observação fora de propósito e continuou a pedir insistentemente que McLane lhe confiasse uma Lancet.

Cliff, que por uma questão de princípios desconfiava de tudo e de todos, não tirava os olhos do rosto de Ibsen. Finalmente, chegou a uma conclusão e disse:

— Vá lá que seja!

— Obrigado, comandante! — exclamou Ibsen e agarrou a mão de McLane.

— O tenente De Monti vai acompanhá-lo — acrescentou Cliff.

— Não, comandante... por favor, deixe-me voar sozinho! — pediu Pieter-Paul.

Cliff soltou uma risada e fez um gesto inequívoco.

— E uma responsabilidade que não posso assumir! — disse, em tom incisivo.

Ibsen parecia não ter entendido a resposta; estava começando a devanear:

— Voar sozinho pelo espaço... sem ninguém ao meu lado para auxiliar... cara a cara com as estrelas, com um sol distante, com um pequeno asteróide... esse é o meu sonho!

— Além de tudo ainda é romântico! — constatou Cliff, em tom repreensivo.

— Nós, literatos, somos os últimos românticos desse século tecnológico — explicou Ibsen. — Revelamos a beleza que se oculta por trás da aparente frieza das coisas materiais, e a relacionamos aos anseios da humanidade.

Cliff estava encostado na escora da mesa do transmissor, cheio de dúvidas quanto à permissão que havia concedido. A voz um tanto impertinente de Helga arrancou-o das suas reflexões:

— Acho que um pouquinho de romantismo bem interpretado não faria mal a ninguém.

Sem olhar para ela, Cliff respondeu, em tom gélido:

— Tenente Legrelle! Suas obrigações a bordo resumem-se na vigilância espacial e no estabelecimento de contatos radiofônicos de toda a espécie. Portanto, queira guardar a análise critica de charme masculino para as suas horas de folga!

— Como eu sou feliz — retrucou Helga sem o menor respeito — por não possuir um gênio detestável como o seu!

Ibsen cortou a cena voltando a suplicar:

— Por favor, comandante, não me estrague esse prazer! Afinal, não há o menor perigo!

— Estou vendo que não vai sossegar o pito enquanto eu não lhe deixar voar sozinho. Muito bem, então voe! Mas o risco é todo seu; previno-o pela última vez, alto e em bom som, entendido?

Com uma expressão da mais completa felicidade, Ibsen balbuciou:

— Não sei como lhe agradecer, comandante! Muito obrigado! Muito obrigado, mesmo!

— Vai vestir um traje espacial, está claro? Mario, ajude-o, por favor!

Mario acenou em silêncio. Dava para notar que considerava a permissão de McLane inteiramente desnecessária, além de perigosa.

Cliff ordenou:

— Aprontar Lancet I! Preparar câmara de ejeção para ignição! — virou-se para Atan e disse: — E você vai vigiar o vôo dele, entendido?

— Entendido, Cliff.

Ibsen não fez o menor empenho em esconder a alegria verdadeiramente infantil de que estava possuído. Lentamente Tamara Jagellovsk aproximou-se do comandante, postou-se rente a ele e perguntou, em tom tranqüilo:

— Pelo visto, major McLane, não lhe ocorreu a brilhante idéia de consultar o encarregado da segurança, ou seja, a minha humilde pessoa?

Com voz calma, Cliff respondeu:

— Pensei nisso, sim. Acontece que tive que reformular as minhas idéias a seu respeito, depois que o nosso ilustre hóspede pôs os pés na Orion.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Tamara asperamente. Estava pálida.

— O que eu quero dizer com isso, é que a senhora... ora bolas, vamos deixar isto pra lá!

Cliff interrompeu a si mesmo e disse, em tom conciliador:

— Peço que me desculpe a observação irrefletida. Realmente os seus sentimentos não são da minha conta.

Virou-se e fixou o olhar na tela central. Por isso, não viu a expressão no rosto de Tamara; era óbvio que o ciúme manifestado pelo comandante lhe causava intensa satisfação. Parecia que ela o conhecia melhor que ele a si próprio.

— Lancet I pronta para partir!

— Está bem, Mario. Pode ejetar a nave auxiliar. Boa viagem, mister Ibsen!

Mario iniciou a contagem regressiva.

— Cinco... quatro... três... dois... um... zero!

A silhueta esférica da Lancet desprendeu-se do disco da Orion à qual os filtros disformes, baixados, emprestavam um aspecto mais que esquisito. Durante alguns instantes, os tripulantes ainda viram as luzes dos instrumentos e o vulto do escritor no traje espacial por trás das pequenas cúpulas de Plexol. Depois a Lancet reduziu-se a um ponto, que se deslocava velozmente em direção a um outro, algo maior.

— Quais são as nossas coordenadas? — perguntou Tamara, enquanto os homens observavam os mostradores.

— Dois-Norte 101 — disse Atan, sem levantar o olhar.

— Major McLane, sabe o que se encontra nesse cubo espacial?

Cliff estranhou o tom ominosamente baixo da voz de Tamara. Olhou para ela, surpreso e sacudiu a cabeça. "Não sei, não!"

— Está vendo aquele sol lá na frente? Bem perto dele, Mura desloca-se através do espaço!

— Com mil diabos! — exclamou Cliff. — Logo Mura!

Claro que todos sabiam o que era Mura, e o que representava. E bastou que se lembrassem disso para, sem exceção, sentirem uma súbita sensação de mal-estar. Cliff mais que os outros.

 

MCLANE estava postado imóvel diante da mesa de comando, absorto em pensamentos nada agradáveis. Mario havia ouvido a conversa na câmara de ejeção através do intercomunicador de bordo, e apressou-se em subir. Ficou parado na porta do elevador, a testa franzida. Helga acompanhava a trajetória da Lancet na tela central, enquanto Tamara e Shubashi controlavam os instrumentos rastreadores na mesa do astronavegador. Um silêncio ameaçador reinava na Orion. Todos falavam baixinho; o canal radiofônico permanentemente aberto garantia a Ibsen a possibilidade de um contato imediato com a cabina de comando.

— Não deveria ter deixado ele voar, comandante — disse Tamara, em tom de censura.

— Não me venha com essa agora! — respondeu Cliff, a meia voz. — Realmente, não vejo o menor perigo. A ligação radiofônica está estabelecida em caráter permanente, e além disso a Lancet está voando guiada por um raio-piloto, do qual não vai conseguir se desprender.

No mesmo segundo, ouviram a voz de Ibsen.

— Alô, comandante?

— Estou ouvindo! — respondeu Cliff, em voz alta.

— Devo confessar que estou um pouco desapontado.

— Por quê? Está achando a Lancet muito lenta? — quis saber Cliff, sarcasticamente.

— Isso não. Mas o senhor me prendeu num raio-piloto! E sei muito bem que a Lancet pode percorrer o espaço, guiada apenas por esse raio. Tornei-me, portanto, uma figura meramente decorativa a bordo!

— Tive lá minhas razões para isso — respondeu Cliff, imaginando o que o frustrado literato iria fazer agora. Não se enganou. Pieter-Paul Ibsen estava sentado diante da pequena mesa de comando da Lancet. Com os movimentos um pouco tolhidos pelos largos cintos de segurança, empurrava e puxava, inutilmente, as alavancas dos controles, que não lhe obedeciam. Finalmente, resignou-se a observar os instrumentos e a pequena tela à sua frente. Mas isso era tão frustrante quanto mexer nos controles inoperantes. Ibsen deu um suspiro e resolveu olhar para fora, para o universo imóvel que se estendia diante das pequenas cúpulas de Plexol da Lancet. E o que foi que viu?

Viu um sol antiqüíssimo, cuja luz suave banhava o pequeno asteróide. E longe, atrás desse asteróide, distinguiu o contorno foiciforme de um grande corpo, talvez um planeta, que acabava de penetrar na luminosidade do sol; pairava no meio daquelas névoas gasosas que a Orion havia sulcado, e que aqui se apresentavam algo mais densas. Uma sensação curiosa, indefinível, apossou-se do escritor.

Havia, porém, um traço de tristeza nos seus pensamentos, pois pouca diferença tinha constatado até agora entre teoria e prática. Cá estava ele, um homem de trinta e seis anos, pela primeira vez na vida sozinho no espaço. Apesar das suas maneiras um tanto afetadas, Ibsen não era nada simplório e muito menos um sonhador. Mas para descrever, numa novela, as emoções por que passa um cosmonauta, era preciso experimentar as mesmas sensações; se possível, com a mesma intensidade. Sem isto, qualquer diálogo soaria falso, a narrativa careceria de autenticidade, a descrição das sensações jamais poderia ficar impregnada do poder de convicção de quem as tinha efetivamente experimentado. Já a esta altura, poucos minutos depois da excitante decolagem, Ibsen julgava-se possuidor de um rico cabedal de experiências pessoais. Sabia de antemão o que iria procurar. E tinha certeza de que sua busca não seria em vão. Procurava a aventura. A aventura autêntica, única, que tinha que ser vivida pessoalmente. Não poderia admitir que precauções exageradas frustrassem seu intento.

Ibsen agarrou o microfone e disse, desapontado:

— Comandante McLane! Peço-lhe que pare de me tratar como um recém-nascido! Eu agora vou desligar o automático e assumir pessoalmente os controles da Lancet. O alvo já está perfeitamente enquadrado.

E desligou uma chave, que se distinguia das demais pelo seu botão vermelho.

McLane começou a berrar como um louco e os alto-falantes na Lancet estalavam, supersolicitados.

— Não se atreva a fazer esta besteira, ouviu, Ibsen? Entendeu o que eu disse?

Ibsen manteve-se calado. Cliff aguardou alguns segundos; depois voltou a berrar:

— Religue imediatamente o automático, ouviu?

Nunca Ibsen havia sentido taquicardia tão forte. Identificou-a prontamente como o primeiro sintoma da grande aventura no cosmos que teria início daqui a instantes. Respirou profundamente e respondeu:

— Não se preocupe, comandante. Não vou me afastar das coordenadas.

Imprimiu maior velocidade à Lancet e a fez seguir uma trajetória curvilínea em direção àquele minúsculo asteróide, que se destacava nitidamente do fundo fracamente luminoso das massas de gás impelidas pelo vento solar.

Shubashi apontou para uma das suas telas de radar. Rapidamente agruparam-se em torno da mesa do astronavegador e observaram o seguinte quadro: torrentes de partículas de um sol desconhecido atravessam a tela de lado a lado. Talvez estivessem arrastando consigo germes estranhos, encapsulados, e imobilizados pela temperatura cósmica de zero graus Kelvin. Nos fundos, longe, havia um sol, apenas um disco luminoso. À sua direita, talvez a uns 180 mil quilômetros de distância, a tela mostrava o impulso de um corpo rochoso, que pairava no meio da corrente gasosa. E à esquerda, quase na margem da tela, delineava-se parte da superfície de um planeta. MURA!

— Olhem! Está se desviando! O sujeito está se desviando do curso! — exclamou Atan, alarmado. — Esse poeta de uma figa acaba me arrancando os últimos cabelos!

McLane explodiu:

— Esse idiota! — agarrou o microfone e berrou: — Que maluquice é essa? Não se afaste das coordenadas, entendeu, Ibsen?

— Se ele não conseguir manter o curso — observou Mario, inseguro — pode acontecer que a Lancet seja atraída por Mura. E com essa velocidade, isso vai ocorrer dentro de poucos minutos!

— Mura... eta lugarzinho gostoso e acolhedor! É só o que nos faltava na nossa coleção de coisas impossíveis — disse Cliff.

Depois gritou novamente no microfone:

— Ibsen! Está me ouvindo?

A esta altura já estava mais do que arrependido de ter levado Ibsen nessa missão. Certo, tinha concordado em prestar esse favor a Wamsler, para livrar o marechal de uma situação embaraçosa. Mas jamais Wamsler se viria em tamanho apuro como Cliff, agora. O comandante amaldiçoou livros, literatos e editores em geral e a administração em particular. Coisas estranhas se apresentavam nas telas de radar de Atan...

Em vez de seguir mais ou menos a reta entre a Orion e o asteróide, a Lancet descrevia uma curva ampla, desviando-se para a esquerda, e aumentando ligeiramente a velocidade. O impulso na tela tornava-se cada vez mais débil, e ninguém sabia dizer para onde Ibsen estava levando a nave auxiliar. Apenas uma certeza: não era em direção ao asteróide. Mas isto, o próprio Ibsen não sabia. Estava sentado na sua poltrona, traje espacial aberto, e falava ao microfone.

— Estou lhe ouvindo, comandante! Ficou sem resposta.

— Parece que este negócio, que o senhor teve a gentileza de me confiar, apresenta algumas manhas. Estou me desviando do curso, mas não sei a que atribuir isso. Continua me rastreando?

Ibsen cerrou os olhos e concentrou-se, mas os alto-falantes permaneceram mudos, mesmo aqueles bem à sua frente.

— Alô... McLane! Está me ouvindo? Silêncio.

— Calcule um novo curso; vou religar o automático.

Nada.

— Alô... Por que não responde mais?

Pronto. Agora estava vivendo a aventura com que tanto tinha sonhado. Sem poder se comunicar com a Orion, vagando meio desamparado através do espaço com controles emperrados e velocidade cada vez maior...

Ibsen voltou a sentir a palpitação violenta do seu coração e começou a imaginar as passagens empolgantes que esta situação inesperada lhe permitiria engendrar para as próximas novelas. "Perdido no universo!, Pairando desgovernado entre as estrelas!, Flutuando ao sabor das torrentes de gás interestelar, ou, quem sabe?... intergaláctico!" Por outro lado, Ibsen sabia que a Lancet dispunha de boas reservas de ar, alimentos e energia de propulsão. Só lamentava que não houvesse uma única arma a bordo, pois isto o impedia de realizar o desembarque com a espetaculosidade que havia imaginado. Ele, Ibsen, descendo a escada da Lancet com ar altaneiro e uma possante HM-4 na mão enluvada a garantir-lhe a posse da conquista...

Realmente, sem o detalhe da arma empunhada, a cena perderia muito do seu efeito dramático. Paciência. Desembarcaria desarmado, mas com o mesmo ar de altivez, e fincaria os pés naquele solo nunca dantes pisado por botas de astronautas. Nem por um instante, o fantasioso escritor desconfiou que pudesse estar redondamente enganado. Mas estava.

 

Ibsen sentia-se completamente indefeso, tão desamparado quanto uma criança.

Talvez mais ainda, pois uma criança poderia chorar de desespero. Mas Ibsen estava longe de desesperar. As peripécias do vôo haviam despertado nele forças interiores que ele mesmo desconhecia. Forças que evitaram que entrasse em pânico. Conseguia raciocinar com lucidez e por isso sentiu o efeito produzido por outras forças. Mas essas eram externas e agarravam a Lancet com punhos de aço. O planeta aproximava-se com alucinante rapidez, ocupando, de uma hora para outra, todo o campo de visão. A imagem na tela parecia explodir. A Lancet estava sendo implacavelmente atraída para o lado claro do planeta. Após tantas tentativas fracassadas, Ibsen já não nutria mais esperanças de poder recuperar o controle da pequena nave. Tanto maior foi sua surpresa quando constatou que, ao mexer mais uma vez nos comandos, estes voltaram a lhe obedecer. Imediatamente, fez os propulsores impelirem a Lancet "para baixo", portanto, em direção à superfície do planeta, e quando o altímetro indicou uma altura de vinte e cinco quilômetros, incrementou o empuxo das máquinas. Instantes depois, sentiu o efeito da aceleração negativa, o que o deixou aliviado, pois acreditava ter eliminado o perigo de se espatifar naquela massa amarelada lá embaixo. A Lancet começou a baixar lentamente. Ibsen olhou para fora, à procura de um local de pouso apropriado. Não sabia, porém, que essa escolha não seria sua.

Por mais que quebrasse a cabeça, Ibsen não conseguia descobrir quem o havia colocado nessa situação desgraçada. Mas tinha certeza de que sairia dela tão airosamente como um dos heróis antológicos das suas histórias: um pouco combalido mas indomado, e ostentando o sorriso desdenhoso do vencedor entediado. Resolveu tentar mais uma vez estabelecer contato com a Orion:

— Aqui fala Pieter-Paul Ibsen, a bordo da Lancet I. Estou chamando a Orion VIII. Comandante McLane, está me ouvindo?

Não recebeu resposta. A superfície do planeta aproximava-se vertiginosamente. Ibsen podia influir no desempenho das máquinas, mas o sistema direcional não lhe obedecia. Limitou-se a realizar todas aquelas manobras que havia exercitado milhares de vezes, em Terra. Incrementou o efeito frenador, baixou os suportes de pouso e, poucos minutos depois, pousou num areai do tamanho de um campo de pólo. Em seguida, respirou profundamente.

— Pieter-Paul Ibsen gravando no livro de bordo da Lancet — disse a meia voz e girou uma chave. — Causas inteiramente desconhecidas fizeram a Lancet se afastar do curso. Acabo de pousar num mundo igualmente desconhecido. Vou tentar decolagem de retorno à Orion, segundo as coordenadas já programadas!

Desligou o livro de bordo magnético e examinou os instrumentos no painel semicircular.

— Está tudo em ordem — murmurou. — Portanto, vamos tentar!

Puxou a alavanca, que acelerava as máquinas, dando início à operação "decolagem". A Lancet saltou para cima e por uma fração de segundo, Ibsen foi imprensado contra o seu assento. Depois, parecia que cabos elásticos estavam retendo a nave auxiliar. A Lancet não chegou a se erguer mais que dez metros quando foi puxada de volta ao solo. Os amortecedores hidráulicos dos suportes de pouso chiaram violentamente, como que protestando contra essa aterrissagem inábil. Ibsen olhou para fora, através das cúpulas transparentes, mas não descobriu nada de suspeito.

Encolheu os ombros. Uma sensação extremamente desagradável começou a se apossar dele. Ligou novamente o gravador:

— De Ibsen para livro de bordo. Primeira tentativa de decolagem fracassou. Máquinas funcionam normalmente, mas algo me puxou de volta ao solo. Vou tentar de novo, desta vez recorrendo à instalação de partida de emergência. Desligo.

Um minuto depois, Pieter-Paul Ibsen voltou a ligar o livro de bordo. Forçou-se a exibir um sorriso desdenhoso, e conseguiu imprimir um tom ligeiro à sua voz, quando disse:

— Ibsen, mais uma vez. Já que persiste a incomunicabilidade radiofônica com a Orion, continuo a relatar as ocorrências para o livro de bordo:

"A tentativa de decolagem mediante o acionamento do dispositivo de emergência também falhou. Parece que o corpo, em que pousei, apresenta características razoavelmente semelhantes às de Terra. Ao menos no que diz respeito aos valores referentes à pressão e teor de oxigênio, conforme marcação nos instrumentos externos. Assim, vou desembarcar com o traje espacial fechado, a fim de examinar a consistência do solo. Talvez consiga descobrir as causas que frustraram as tentativas de decolagem. De minha parte, acredito estar sujeito aos efeitos de uma influenciação externa. Vou me empenhar ao máximo para não desmerecer a confiança em mim depositada. Desligo."

Ibsen soltou os cintos de segurança e levantou-se. Depois, colocou o capacete espacial transparente na cabeça e o atarraxou firmemente no anel de encaixe. Por fim, deu um puxão final nas luvas, mexendo vivamente com os dedos da respectiva mão: era um gesto que possuía algo de marcante, de tão marcante, que Ibsen jamais havia deixado de incluí-lo em suas histórias...

Ibsen contornou a mesa de comando e desceu habilmente a escada que levava à pequena eclusa da Lancet. Transpôs a primeira comporta que se fechou novamente atrás dele. Abriu a comporta externa e baixou a escada dobradiça; certificou-se que a extremidade inferior estava firmemente apoiada no areai e começou a descer. Imediatamente teve que se agarrar aos degraus da escada, senão teria despencado. Sentiu-se totalmente inseguro sob o efeito inicial da gravidade, que aqui era inferior à da Terra. E assim desceu cautelosamente, de costas para o planeta, numa postura bem menos dignificante do que havia imaginado, não fazia muito...

Finalmente chegou ao solo. Virou-se lentamente e... deu de cara com os canos de quatro projetores energéticos, inequivocamente apontados para a sua cabeça.

Ibsen estacou no meio do movimento. É realmente um fato curioso que se passa com homens dotados de imaginação fértil: formam com a maior facilidade uma imagem mental perfeita do que está para acontecer, e depois ficam pasmos quando a realidade lhes apresenta um quadro inteiramente discordante. E foi por isso que a reação de Ibsen não correspondeu em absoluto à atitude desassombrada e displicente com que, em sua imaginação, costumava enfrentar situações como a presente. Ibsen estava pura e simplesmente com medo. E essa sensação, tão elementar e nada fantasiosa, reduziu a frangalhos a concepção que vinha nutrindo há tanto tempo a respeito do seu comportamento heróico.

Lívido, desfigurado pelo terror, Ibsen mal conseguiu balbuciar:

— Quem são vocês?

Olhou para aqueles rostos estranhos, abrigados por trás dos visores. Os alto-falantes no capacete de Ibsen transmitiam claramente a respiração dos seus captores; portanto, deviam ter ouvido a sua pergunta.

— O que querem de mim? — insistiu Ibsen.

Mas os quatro homens naqueles trajes espaciais cinza-claro continuaram mudos.

Dois deles avançaram e agarraram Ibsen firmemente pelos braços. Aos empurrões, fizeram-no galgar uma pequena elevação, do alto da qual se via, a menos de um quilômetro de distância, uma curiosa construção rasa, constituída por um sistema de cúpulas transparentes interligadas. Ibsen surpreendeu-se com a existência dessa edificação, pois não a havia notado durante seu pouso forçado. Já algo mais controlado, voltou a perguntar:

— Para onde estão me levando, assim, sem mais nem menos...? Ficaram malucos?

Um dos quatro homens desferiu-lhe um violento soco nas costas.

— Hei! — gritou Ibsen. — Exijo uma explicação! Afinal, quem são vocês?

Porém, mais uma vez não lhe deram resposta.

Ibsen caminhava trôpego, tentando desvencilhar-se dos seus captores. Mas aqueles homens pareciam ter punhos de aço e o arrastavam impiedosamente para diante. Ibsen resolveu mudar de tática. Acompanhou-os sem oferecer resistência por alguns metros. De repente, retesou-se e jogou-se para trás. Conseguiu livrar-se do sujeito à sua direita, mas imediatamente um dos dois outros acertou-lhe uma coronhada seca na altura dos rins. Por pouco, Ibsen não desfaleceu de dor.

Começou a cambalear, e mal se deu conta de que já se encontrava bem perto daquelas construções cupulares. Atravessaram um trecho pontilhado de pedregulhos, por trás dos quais o vento havia amontoado verdadeiras dunas de areia seca e amarelada, e finalmente seguiram por um caminho constituído por elementos plásticos indentados, perfeitamente encaixados uns nos outros. Pararam diante de um edifício de uma porta pré-fabricada. A comporta externa abriu-se para dentro e para cima, sem o menor ruído e sem que alguém tivesse dado um sinal. Mais um empurrão violento, e Ibsen se encontrava no interior da eclusa.

As pontas de duas HM-4 continuavam apontadas para seu peito. Os rostos que Ibsen distinguia por trás dos visores denotavam que esses homens estavam dispostos a tudo... pensando bem, era essa a expressão de alguém que não tinha mais nada a perder. Mas como é que esses sujeitos vieram parar aqui, nesse planeta desconhecido? Desconhecido? É que Ibsen não sabia da existência de Mura. MURA — o mundo dos banidos.

 

COM os filtros retangulares ainda baixados, a Orion continuava a pairar no espaço, a pouco menos de uma unidade astronômica do pequeno planeta Mura.

— Aposto o que vocês quiserem — disse Mario, encolhendo os ombros — que esse poeta maluco só está querendo nos pregar um susto.

As respostas de Helga estavam se tornando cada vez mais mordazes. Parecia que nesse vôo tinha descoberto os segredos da ironia.

— Não acredito que Pieter-Paul possua uma mentalidade tão infantil quanto a sua! — retrucou.

O subcomandante disse, em tom queixoso:

— Basta a gente dizer uma palavrinha contra o ilustre senhor literato, e pronto — Helga o defende como uma leoa a sua cria!

— Helga... o cavalheiro ficou noivo da filha do ministro para assuntos extraterranos. E ela não está para brincadeiras, o ministro que o diga! — comentou Hasso, que vinha acompanhando a conversa através do intercomunicador de bordo.

Shubashi observou:

— O cara deve ter despertado o instinto maternal de Helga!

— Instinto gozado, esse! — murmurou Mario, com uma expressão enigmática no rosto. — Esse gajo vai fazer trinta e seis anos amanhã! Você acha mesmo que ele ainda precisa de paparicos maternos?

McLane largou a mão espalmada sobre a mesa de comando e gritou:

— Parem de se comportar como cadetes enciumados! Algum motivo ele tem, para não entrar em contato conosco. Afinal, já demonstrou que não é burro e deve saber perfeitamente que estamos preocupados como quê!

Cliff amaldiçoou a hora em que disse "sim!" a Wamsler. Fungando de raiva, olhou para os rostos ao seu redor. Agora só faltava que Tamara também se manifestasse. E não deu outra coisa.

— Raciocinou com uma lógica arrebatadora, major McLane — disse ela, em tom cáustico. — Mas que motivo o nosso querido hóspede tem, para não responder aos nossos chamados?

Cliff encolheu os ombros.

— Talvez esteja com cãibra na musculatura do queixo, ou sofrendo de paralisia das cordas vocais. Eu sei lá!

Tamara não sorriu quando respondeu:

— Seu delicioso senso de humor parece-me um pouco impróprio face â seriedade da situação, caro comandante. O que propõe? O que podemos fazer?

— Calar a boca! — vociferou Cliff.

Em seguida, agarrou novamente o microfone, girou o potenciômetro de emissão até o batente e gritou:

— Orion VIII chamando Ibsen! Ibsen... responda!

Os alto-falantes continuaram mudos.

 

Pieter-Paul Ibsen estava em vias de assistir a uma seqüência de cenas tão empolgantes quanto as que costumava descrever em suas obras. "Assistir" talvez não fosse bem o termo, "participar" seria mais apropriado, pois o papel do ator principal havia sido reservado para ele. Mas isto Ibsen só ficaria sabendo daqui a instantes, para profundo desgosto seu.

Ibsen nada conseguia reconhecer na sala para a qual o tinham levado. Estava envolvido pela mais completa escuridão, e seus esforços para devassá-la foram baldados por um possante foco de luz, que incidia frontalmente no seu rosto. Ofuscado, cerrou os olhos e pôs-se a esperar, angustiado. Seus ouvidos registraram um ligeiro zumbido. Em seguida, uma voz fria atravessou a escuridão:

— Onde se encontra a Orion?

— Nas proximidades de Umbriel — respondeu Ibsen, falando com dificuldade, pois um cinto largo, preso ao espaldar da poltrona, comprimia-lhe a garganta. Não estava revelando segredos, pois sabia que mesmo uma aparelhagem das mais simples conseguiria localizar a Orion.

— Onde? Quero saber as coordenadas exatas!

— Essas eu desconheço. A nave se desloca constantemente.

Aquela voz continuou a falar. Soava estranhamente impassível, mas pertencia sem dúvida alguma a um homem de meia-idade.

— Se estiver mentindo, vai se ver em maus lençóis!

Ibsen não respondeu. A pergunta seguinte não se fez demorar.

— Quantos tripulantes leva a bordo?

— Além de mim, mais seis — disse Ibsen, procurando mover as mãos, que estavam firmemente atadas aos braços da poltrona por meio de largas faixas metálicas. Ibsen só conseguiu mexê-las alguns milímetros.

Em torno dele reinava a noite, a escuridão, o negrume total... e desse negrume emanavam os ruídos causados por respiração e movimentos ligeiros. Portanto, devia estar rodeado por outros homens, provavelmente armados. Ibsen lembrou-se que os heróis das suas histórias nunca paravam de provocar o adversário, aguardando pacientemente que cometesse um descuido que lhes possibilitaria a fuga. Talvez ele também pudesse agir dessa maneira.

— Quem está no comando? — voltou a perguntar aquela voz.

Ibsen esboçou um sorriso fraco e respondeu:

— Nem a própria tripulação sabe isso ao certo — disse, louco para cocar o olho, no qual aquela grande gota de suor havia finalmente escorrido da sobrancelha.

— Como devo entender isso?

— Além do comandante, há um tenente do SSG a bordo. E os dois brigam o tempo todo.

— Quem é o comandante? E que posto ocupa?

— O comandante é o major Cliff Allistair McLane — disse Ibsen. — Sofreu uma punição disciplinar e foi removido para o serviço na Patrulha Espacial.

Aquela voz não mudava nem de intensidade nem de tom, e continuou a formular perguntas com a impassividade de uma gravação.

— Major McLane... aquele que tempos atrás comandava uma nave das Formações de Combate Rápidas?

— O próprio. Um sujeito encantador, que precisava apenas... mas que mais está querendo saber? Por acaso acha que tenho cara de dicionário?

Ibsen considerou sua resposta deveras espirituosa e resolveu complementá-la com um sorriso de superioridade. Só que não pôde mirar-se num espelho.

— Limite-se a responder às minhas perguntas. Nada de comentários irrelevantes. Agora quanto à Orion, ela pode ser considerada uma nave de combate de grande porte?

— Creio que sim. Realmente é uma nave bastante grande — respondeu Ibsen. — Mas não sei absolutamente nada a respeito do armamento de que dispõe.

— A que tipo pertence?

— Se não me engano, ao tipo alpha III; foi equipada com um dispositivo especial para a coleta de espórios. A tripulação ficou um bocado aborrecida quando soube que teria que percorrer o cosmos com aqueles troços disformes e feios pendurados no casco inferior.

Silêncio. Depois aquela voz prosseguiu:

— Isso é bom... isso é até bom demais! O senhor agora vai falar com a Orion. Só para sua informação: sabemos em que freqüência opera e fomos nós que cortamos a ligação radiofônica entre a Orion e a sua ridícula nave auxiliar.

— Ah! Então foi o senhor?

— Duvida disso? — perguntou a voz, que vinha de algum lugar bem em frente a Ibsen.

Ibsen sacudiu a cabeça.

— Ainda bem. Então o senhor vai contar ao major McLane que se viu forçado a realizar um pouso de emergência em Mura por causa de um defeito nos controles manuais.

— Mura? — quis saber Ibsen. — Quem ou o que é Mura?

— Este planeta. Chama-se Mura.

— E o que fazem aqui?

O dono daquela voz deu uma risada curta e contida.

— Eu faço as perguntas — disse. — O senhor apenas responde.

— Com imenso prazer! — retrucou Ibsen, já meio rebelde. Espantou-se que não houve revide à sua provocação.

— Agora preste atenção! Explique ao major McLane que a Lancet não está em condições de decolar com força própria. Depois peça-lhe para pousar em Mura a fim de recolhê-lo a bordo. Entendeu isso direitinho?

Durante alguns instantes, Ibsen manteve-se em silêncio. Em seguida respondeu, algo relutante:

— Entendi, sim; afinal não sou nenhum analfabeto!

— Qual é a sua profissão?

— Sou escritor.

Alguém soltou uma breve risada e aquela voz fez uma observação injuriosa que, isso Ibsen jurou a si mesmo, não passaria impune. Esta ofensa clamava por vingança e, assim que as circunstâncias o permitissem, Ibsen iria se vingar de uma maneira terrível... a voz havia dito: "E desde quando isso é considerado uma profissão?"

Qual uma aranha pendurada no seu tênue fio, um microfone desceu da escuridão acima de Ibsen, e parou rente aos seus lábios. O suor lhe escorria pelo rosto e era absorvido pela gola da reluzente jaqueta.

— Está disposto a falar?

Ibsen encolheu os ombros fracamente.

— Muito bem, então vai falar. Mas antes que comece é preciso que fique a par de mais um pequeno detalhe — disse a voz. — Dois projetores de raios Omicron estão apontados para o seu crânio. Uma vez ativados, estes finíssimos raios, que não deixam qualquer vestígio, vão lhe causar dores cruciantes. São especialmente eficazes para irritar os nervos subcutâneos. Quer uma pequena demonstração?

O dono da voz estalou os dedos. Dois aparelhos esféricos aproximaram-se lentamente pelos lados da cabeça de Ibsen, até que as curiosas protuberâncias de que eram providos estavam quase encostadas nos ossos malares do apavorado escritor. Um leve zumbido emanava das duas esferas e fazia vibrar os tímpanos. Por um breve instante, dois raios finos e esbranquiçados saltaram das extremidades dos projetores e tocaram levemente a pele de Ibsen. Uma dor quase insuportável varreu-lhe o rosto. Sentiu o violento tremor convulsivo do nervo trigêmeo e teve a impressão que todos os seus dentes tinham-se transformado em magnésio incandescente. Ibsen soltou um gemido alto, e ouviu novamente aquela voz:

— Quentinho, não é? E olhe que os projetores ainda estavam a quinze milímetros da sua pele. Mas isso pode ser facilmente corrigido.

Ibsen estava sentindo frio; o suor na sua testa tornou-se gélido.

— Vou falar com McLane — sussurrou, com a boca em brasas. — Falo tudo que o senhor quiser.

Os dois projetores afastaram-se do rosto de Ibsen.

— Ótimo! — disse aquela voz odiosa. — Então estamos entendidos. Creio que não preciso salientar o que vai acontecer se tentar prevenir Cliff McLane.

 

Um silêncio inquietante reinava na cabine de comando da Orion. As seis pessoas que ali se encontravam, entregues a pensamentos sombrios, já haviam enfrentado um sem-número de perigos, e vencido todos os desafios. Mas agora estavam se defrontando com um inimigo que não conheciam e, portanto, não podiam atacar. Cliff sacudiu a cabeça, desalentado.

— É totalmente inútil insistir! — disse, em tom decidido.

— Você sabe — respondeu Mario calmamente — que eu topo qualquer parada. Já resolveu o que vai fazer?

— Alguma coisa deve ter acontecido a ele durante o pouso.

Atan acenou com a cabeça, concordando:

— É bem provável.

— Vamos buscá-lo — decidiu Cliff. — Atan! Quero as coordenadas exatas de Mura! O astronavegador procurou os dados no manual e os forneceu ao subcomandante, que já estava postado diante do teclado do computador digital.

— Hasso?

— Sim, o que é? — o rosto estreito do engenheiro de bordo apareceu na tela do videofone.

— Como é que estão os propulsores?

— Na mais perfeita ordem: tanto os meus quanto os da nave!

Cliff esboçou um leve sorriso. Helga Legrelle notou o sinal luminoso na sua mesa e rapidamente ligou um amplificador.

No mesmo instante, voltaram a ouvir a voz de Ibsen, alta e clara; não havia mais a menor interferência.

— Pieter-Paul Ibsen chamando a Orion VIII. Comandante McLane... por favor, responda!

A tripulação entreolhou-se, surpresa. Cliff deu um suspiro de alívio e respondeu, quase gritando:

— Até que enfim, Ibsen! O que foi que aconteceu? Ficou uma eternidade sem dar sinal de vida!

A voz de Ibsen soava diferente. Ao menos não denotava mais aquele tom autoconfiante, ao qual a tripulação já se havia habituado.

— Sinto muito, comandante, mas vou ter que lhe pedir para pousar em Mura. As coordenadas relativas neste cubo espacial são dezessete-quatro-oito.

A revelação contida nessa resposta acabou com a sensação de alívio de McLane.

— Que diabo está fazendo em Mura? — berrou. — Como é que foi parar aí?

— O controle manual emperrou, comandante. O senhor precisa vir me buscar.

McLane começou a ficar desconfiado.

— Espere um pouco! — gritou. — Por acaso está ferido? Por que fala de maneira tão esquisita? Há algo de errado?

Um sucessão de imagens passou diante do seu olho mental: Ibsen, suando em bicas, procurando consertar algum defeito... Ibsen, levemente ferido, tentando sair de baixo dos escombros da Lancet... decididamente, algo de anormal estava se passando. Por que Ibsen hesitava toda vez que ia dar uma resposta? E por que não parava de ofegar? Ao menos uma das muitas dúvidas podia ser dirimida logo, e McLane perguntou:

— Ibsen! Está falando de onde? Da Lancet?

Desta feita, a voz de Ibsen soou calma.

— Não, comandante; estou falando da Administração Central da colônia em Mura.

Cliff lançou um olhar significativo para Tamara. A agente do SSG acenou e fez um gesto desolado com a mão.

— Há mais alguma coisa, Ibsen? Ou está tudo bem?

Mais uma vez Ibsen hesitou. O que McLane não podia ver, e muito menos imaginar, foi isto: aqueles projetores redondos voltaram a emergir da escuridão e se aproximaram novamente do rosto de Ibsen, lançando pequenas descargas faiscantes pelos minúsculos bocais... longe ainda do seu alvo, mas chegando cada vez mais perto...

Antes que fosse tarde demais, Ibsen apressou-se em responder:

— Está tudo em ordem, comandante. Desligo.

Imediatamente os projetores pararam de soltar faíscas e desapareceram de novo na escuridão. Com uma frieza espantosa, a voz disse:

— Meus parabéns, Ibsen! Portou-se esplendidamente!

— Obrigado, seu patife! — gemeu Pieter-Paul.

Por um instante, parecia que aquele homem estava rindo. Depois, disse em tom ríspido:

— Já que colaborou satisfatoriamente, merece uma pequena pausa. Podem levá-lo!

Alguém acendeu a luz. Finalmente Ibsen teve ensejo de examinar o local do seu padecimento. Viu que se encontrava numa sala de forma octogonal, cuja parte central era ocupada por uma instalação, também octogonal: todo o contorno externo era formado por uma rampa, pela qual se podia subir facilmente à parte interna, uma plataforma anular que se erguia talvez meio metro acima do chão. O vazio no centro dessa plataforma dava acesso a um rebaixo no piso e sobre esse piso rebaixado estava colocada a poltrona à qual Ibsen tinha sido amarrado. Com este arranjo, a poltrona ficava bem abaixo do nível da plataforma, e este fato incitou a curiosidade inata de Ibsen. Mas não teria tempo para tentar descobrir a razão de ser dessa estranha disposição.

Dois dos homens, que o haviam feito prisioneiro, estavam agora tratando de desamarrá-lo. Ibsen reconheceu-os imediatamente, apesar de não trajarem mais os ternos pressurizados, que tinham substituído por uma espécie de uniforme negro. Porém Ibsen jamais esqueceria aqueles rostos empedernidos. Arrancaram-no violentamente do assento, mas logo viram que aquele homem não estava em condições de caminhar sozinho. Ibsen atravessou a sala com passos trôpegos, amparado pelos dois verdugos. A dor, que martelava as suas têmporas, recrudesceu; seu rosto parecia arder em brasas, mas quando o apalpou, verificou que estava gélido. Ibsen não se lembrava mais da atitude impecável dos seus heróis imaginários, com os quais costumava se identificar. Não passava de um indefeso ser humano, à mercê do terror.

 

McLane encontrava-se no camarote de Tamara, fitando-a com ar pensativo.

— Não ia me fazer uma pergunta? — lembrou ela, a meia voz.

— Dê uma olhada nas prescrições do SSG, e depois me diga se posso ou não pousar em Mura.

Tamara não teve necessidade de consultar o regulamento; conhecia-o de cor e salteado.

— Fez bem em perguntar, major. Com exceção dos órgãos do Serviço de Segurança e das naves de abastecimento, ninguém mais pode pousar em Mura, a não ser que disponha de uma autorização especial expedida pela chefia e endossada pelo próprio coronel Villa. O texto não dá margem a qualquer dúvida: sou obrigada a lhe proibir o pouso em Mura.

Cliff passou a mão pelos cabelos, refletindo.

— Obrigado — disse, pausadamente — era isso que eu queria saber.

— Por outro lado, Villa vai se encarregar pessoalmente de me arrancar a cabeça, se voltarmos sem Ibsen. E o senhor também não vai ter muitos motivos para rir.

— Menos do que tenho agora, é impossível — respondeu Cliff, acenando sombriamente. — Nas circunstâncias, quais são as suas ordens, tenente?

Aborrecida, Tamara disse:

— Só respondo a perguntas objetivas, comandante!

— Muito bem. Então vou lhe fazer uma: nós a bordo não sabemos praticamente nada a respeito da vida em Mura. Se dermos crédito aos boatos, deve ser um inferno. É verdade isso? Dizem que Mura não passa de um vasto estabelecimento penal, no qual os detentos ficam sujeitos a uma disciplina férrea, sofrendo as mais severas restrições, etc., etc.

Tamara manteve-se calada, e depois apontou para a tela que havia sido instalada na parede externa do seu camarote, na abertura normalmente destinada à vigia. Viram a superfície do planeta, que se aproximava lentamente: seca, amarelada e muito pouco hospitaleira.

— Bem — começou Tamara. — Na verdade, o lugar não é lá dos mais atraentes, mas as condições de vida dos deportados são bastante boas. Têm tudo de que precisam, e podem circular livremente por todo o planeta. Até uma espécie de administração própria lhes foi concedida. Em resumo, recebem um tratamento humano.

McLane balançou a cabeça; discordava dessa afirmação.

— Considera humano, banir os homens do seu torrão natal, de Terra?

— Antigamente eram simplesmente executados ou então trancafiados em penitenciárias para o resto das suas vidas. Em comparação, viver como expatriado num outro planeta deve ser até um prazer. Pessoalmente, preferia estar em Mura do que morta.

— Acabou de afirmar que antigamente esses indivíduos eram condenados à morte ou à prisão perpétua. Quer dizer que esse adorável lugar está fermentado por bandidos da pior espécie?

Tamara sacudiu a cabeça com veemência.

— Lá não há apenas criminosos na acepção corriqueira da palavra. Há também elementos indesejáveis, pessoas capazes de colocar em perigo a ordem interna. Infelizmente, existe um grande número de celebridades entre os deportados, gente que não conseguiu se enquadrar e usou sua inteligência para fomentar a discórdia e coisas do gênero.

Cliff disse por cima do ombro:

— Então Ibsen está no lugar certo! Não lhe faltam qualificações para ser admitido nessa agremiação, senão vejamos: uma celebridade ele é, sem dúvida alguma; e um indesejável também, ao menos a bordo da Orion, basta lembrar o que passamos nestas últimas horas!

De repente, o rosto de Atan Shubashi apareceu na pequena tela do intercomunicador de bordo.

— Cliff?

— Sim, Atan, o que há? — perguntou Cliff rente ao microfone.

— Estamos nos aproximando da zona de segurança e temos que pousar. A Lancet e parte da colônia já estão nas telas.

Cliff abriu rapidamente a porta e gritou:

— Aprontar para o pouso! Já estou indo!

Em seguida, saiu na disparada em direção ao elevador.

Obedecendo aos comandos inaudíveis do computador digital, a nave se aproximou lentamente da superfície do planeta e baixou ao solo, bem perto da Lancet. Ninguém a bordo podia imaginar que este pouso fosse representar algo mais que uma mera operação de rotina. Cliff virou a chave principal e, com isso, desligou todo o sistema propulsor.

— Muito bem — disse — primeiro recolhemos a Lancet e depois vamos apanhar o poeta lá na Administração Central.

— Entendido — respondeu Hasso e Mario, quase que ao mesmo tempo.

 

— MANOBRA de pouso concluída! — avisou Shubashi.

— OK, Atan, obrigado! — disse Cliff. — Atenção, tripulação! Vestir trajes espaciais! Baixar elevador telescópico! Preparar desembarque! Atan e Helga, vocês vão ficar a bordo como vigias. Os demais...

Neste instante, Helga Legrelle o interrompeu, apontando para o aparelho radiofônico.

— Cliff! Parece que alguém quer falar com a gente!

McLane calcou uma tecla na sua mesa, conectando todos os alto-falantes ao receptor, inclusive aqueles embutidos nos capacetes.

Uma voz fria e impessoal fez-se ouvir.

— Administração Central Mura chamando comandante McLane a bordo da Orion VIII! Está me ouvindo, major?

McLane respondeu em voz alta:

— Recepção perfeita! Pode falar!

— Por favor, ligue também as telas; sintonize as telas; sintonize o canal 90. Temos algo para lhe mostrar!

Surpreso, Cliff ajustou o seletor no canal indicado e depois ligou a tela de reserva do videofone. E no mesmo instante Cliff recuou, espantado. De repente, o impacto da imagem que se estabilizava à sua frente quase o derrubou. Ibsen! O rosto daquele homem enchia praticamente a tela toda. Os olhos injetados estavam cravados nas lentes da câmara. O suor que brotava na testa escorria lentamente pela face, contornando o nariz saliente e a boca distorcida. Ibsen respirava com dificuldade e notava-se que o menor movimento devia causar-lhe dores cruciantes. Dois estranhos projetores, que pareciam flutuar de um lado e do outro da sua cabeça, emitiam finos e faiscantes raios esbranquiçados, que mal lhe tocavam a pele do rosto. Mas isso devia ser o suficiente, pois ao mais leve contacto, Ibsen voltava a estremecer de dor. Seus gemidos baixinhos adquiriram um tom agonizante.

— Ibsen! — sussurrou McLane, atônito. — O que...?

Aquela voz incisiva e fria interrompeu-o imediatamente.

— Major McLane, sem dúvida já percebeu em que situação pouco invejável se encontra o seu hóspede. O senhor e a sua tripulação vão agora desembarcar da Orion. Desarmados e um de cada vez. E sem oferecer a menor resistência, é claro. Basta um movimento suspeito, e seu amigo aqui vai se consumir em brasas. Ao menos, terá essa impressão. Entenderam as instruções? Estou esperando!

— Uma pergunta, antes que me mexa: quem é o senhor? — perguntou Cliff com voz dura.

Os outros membros da tripulação acotovelavam-se atrás dele e fitavam horrorizados aquele quadro que os canais radiofônicos transmitiam.

— Nada de discussões! — avisou aquela voz incisiva.

— Mas... — insistiu McLane.

— E não tente deixar alguém escondido a bordo. Graças à pequena instalação, que está tendo o privilégio de ver em pleno funcionamento, obtivemos todas as informações que julgávamos necessárias. Sabemos, portanto, quantos são. E agora chega de conversa; andem logo! — os alto-falantes estalaram e a imagem se extinguiu. Por entre os dentes cerrados, Cliff disse:

— Do comandante para a tripulação: desembarquem como ele ordenou; um de cada vez, e sem armas. Não tentem resistir. Eu vou por último.

Em silêncio dirigiram-se ao elevador e desceram. Pouco depois, a plataforma do elevador telescópico tocou o solo de Mura e a comporta interna começou a se abrir. Ninguém falava. McLane estava possuído por um ódio frio, e jurou a si mesmo que, na primeira oportunidade, esmagaria aqueles vermes sem a menor contemplação. Apesar de tudo, havia um certo ar solene a revestir aquela cena: a Orion VIII pairava majestosamente dez metros acima do solo, com aqueles filtros disformes recolhidos. Qual uma tromba metálica, o elevador telescópico havia baixado sobre o pequeno areai, em que, poucos minutos atrás, ainda se encontrava pousada a Lancet, a esta altura já abrigada novamente no bojo da nave.

Doze homens em trajes espaciais leves, de cor cinza-claro, formavam um semicírculo em torno da nave, as armas apontadas para a comporta externa da pequena eclusa do elevador. Estava escurecendo rapidamente mas o crepúsculo difuso ainda fornecia luminosidade suficiente. Nos alto-falantes dos capacetes, a tripulação ouvia o murmúrio dos homens que os esperavam lá fora. A um sinal de Cliff, Mario apertou um botão e a comporta externa abriu-se lentamente. Tamara foi a primeira a pisar naquela areia escura.

— Mãos ao alto! — ordenou uma voz. Tamara ergueu os braços, mãos à altura da cabeça. Um dos doze homens avançou, agarrou-a pelo ombro, encostou-lhe a ponta da arma nas costas, e empurrou-a em direção a um ponto de luz nos fundos, que cintilava fracamente através da penumbra.

— Eu disse: mãos ao alto! — repetiu aquela voz.

Um atrás do outro, e cada qual acompanhado por dois guardas armados, dirigiram-se àquele foco de luz. Quando chegaram perto, viram que era o refletor central de uma cúpula, sob a qual proliferavam plantas terranas.

A porta metálica se abriu. A tripulação procurou se comunicar por meio de olhares e gestos furtivos; mas logo viram que qualquer tentativa de reação fracassaria, pois mal conseguiam se mexer naquela apinhada câmara de pressurização. E assim, os poucos segundos preciosos passaram inaproveitados. Depois, a comporta interna se abriu, desvendando um corredor largo e baixo, iluminado por luminárias embutidas nas paredes laterais, e em cuja extremidade oposta se delineava a porta de um elevador. Homens em uniformes pretos e fortemente armados estavam postados de ambos os lados da porta. Mantinham-se em silêncio e não davam a impressão de serem meras figuras decorativas.

Aos empurrões, a equipe da Orion foi obrigada a entrar no elevador. Com os guardas que a acompanharam, havia talvez umas doze pessoas na cabine, que começou a descer rapidamente. Segundos depois, parou e a porta se abriu com um chiado agudo. Até agora, os membros da tripulação não haviam proferido uma única palavra. Estavam gravando na memória todo passo que davam, todo marco característico que viam, para que, mais tarde, não errassem o caminho de volta.

Escoltados por dois guardas armados, um de cada lado, os seis prisioneiros começaram a percorrer uma extensa galeria. Assim, caminharam uns quarenta metros, quando receberam ordem de parar, em frente à entrada de um corredor secundário, que ramificava para a esquerda. Cliff era o último da fila e viu Hasso se virar rapidamente para ele, com um olhar alarmado. No mesmo instante, Hasso recebeu um golpe nas costas que o fez cambalear.

— Cliff! — exclamou, ofegante — estão querendo nos separar!

Novamente o guarda o golpeou, desta vez com maior violência.

— Seus patifes miseráveis! — esbravejou Hasso — vou mostrar a vocês com quem estão lidando!

E com uma rapidez espantosa para um homem da sua idade, desferiu um tremendo soco no estômago do guarda à sua direita. O homem tropeçou e se chocou contra a parede. Lentamente escorregou ao chão. Antes que Hasso pudesse esboçar qualquer reação, foi atingido na altura dos rins pelo pesado projetor do outro guarda. Hasso quase desfaleceu de dor.

— Não resista, Hasso! — gritou Cliff. — É inútil!

Depois perdeu sua tripulação de vista, pois os homens que o vigiavam obrigaram-no a penetrar naquele corredor secundário. Cliff reparou que se tratava de uma passagem estreita e mal iluminada; além disso, o traçado curvo não permitia ver para onde levava. Os homens estavam com pressa e caminhavam a passos largos. Cliff ia na frente, sob a ameaça constante daquela arma que um dos homens mantinha firmemente pressionada contra sua espinha. McLane ainda vestia o pesado traje espacial por cima do macacão de bordo. Mas como lhe haviam ordenado que soltasse o capacete e desligasse os pequenos agregados supridores, ficou sujeito às condições da atmosfera ambiente e começou a suar profusamente. Sentiu-se algo aliviado quando, finalmente, avistou uma espécie de ante-sala, na qual aquela passagem curvilínea terminava. Dez metros separavam Cliff daquela larga porta de correr, em direção à qual o estavam empurrando, quando a porta ao lado se abriu. Antes que Cliff pudesse lançar um olhar naquele recinto, teve o campo de visão obstruído por três vultos que, por um instante, ocuparam o vão da porta. Dois daqueles vultos eram guardas que, com a arma na mão, impeliam o terceiro para diante. Cliff estarreceu quando viu que era Ibsen, um Ibsen alquebrado, cambaleante, que mal conseguia manter-se em pé.

— Ibsen...! —cochichou McLane.

— Comandante.

Cliff percebeu a dificuldade com que Ibsen sussurrava. Bastou um relance para notar que este homem tinha chegado ao fim de sua resistência. Não apresentava o menor ferimento visível, mas McLane sabia que os raios Omicron eram capazes de infligir torturas terríveis ao sistema nervoso. Praticamente não havia sensação que não pudesse sugerir ao cérebro: calor e frio, ferimentos de todos os tipos. E isto sem deixar qualquer vestígio na pele que mal tocavam. O olhar que Ibsen lançou para McLane fez o comandante estremecer. A expressão daqueles olhos revelava toda uma gama de emoções, todas as sensações angustiantes de que era possuído: desespero profundo, sentimento de culpa e a consciência de ter fracassado. Com um violento empurrão, obrigaram Ibsen a retomar sua caminhada trôpega.

— O que foi que vocês fizeram com ele, seus covardes? — disse McLane com voz rouca. Sua garganta ardia e somente um diminuto resto de autodomínio impediu que Cliff se lançasse a distribuir socos e pontapés a torto e a direito. Sabia que isto não teria melhorado a sua situação em nada.

— Cale a boca! E vá andando!

"O vocabulário desses verdugos não parece ser dos mais ricos", pensou McLane num leve acesso de humor macabro.

Pressentia que, dentro de alguns minutos, ficaria sabendo mais a respeito dessa extorsão misteriosa. Não se enganou... Flanqueado pelos dois guardas, McLane parou diante de uma escrivaninha. Por um instante, ainda ficou olhando, curioso, para aquela estranha instalação que lhe havia atraído a atenção assim que entrou nessa sala octogonal: com a parte externa em rampa, uma plataforma anular circundava, meio metro acima do piso, um rebaixo no qual havia uma cadeira de espaldar alto com braços reforçados. Cliff encolheu os ombros e encarou seu vis-à-vis.

O homem refestelava-se na sua poltrona, as pernas esticadas sob a mesa. Em cima dela, só havia um videofone e uma barra de teclas de controle. Os dois homens estudaram-se em silêncio, frios e calmos, como duas feras antes da luta fatal. Mas por trás desse diálogo mudo ardia a brasa do ódio. McLane não deixou que a emoção lhe turvasse a lucidez do raciocínio. Agora conhecia seu inimigo: um homem que já não era tão poderoso como antes, quando o anonimato o tornava praticamente intangível. Devia ter uns cinqüenta anos. O cabelo, bastante ralo, apresentava fortes entradas, que se estendiam além das orelhas. O que cedia expressão extremamente inteligente àquele rosto eram os olhos cor de âmbar, nos quais fulgia o brilho do fanatismo. O homem trajava uma jaqueta escura, de corte bastante simples, e calças da mesma cor. Um colarinho alto cobria-lhe o pescoço.

— Bem-vindo a Mura, comandante McLane!

McLane não respondeu e mais uma vez fitaram-se em silêncio.

— Quem é o senhor? — perguntou Cliff, finalmente, a meia voz.

O homem parecia achar graça na pergunta e ergueu as sobrancelhas.

— Meu nome é Tourenne.

Cliff recordou-se que, muitos anos atrás, este homem fora banido de Terra por ter se envolvido num rumoroso incidente. Na época, o caso tinha causado o maior alvoroço; disso, Cliff também se lembrou. Só não conseguiu se lembrar do que realmente tinha ocorrido.

— Seu nome não me diz muita coisa — observou, calmamente.

— Vai mudar de opinião, isso eu lhe garanto! — prometeu o outro com um sorriso diabólico nos lábios retorcidos.

— Para que serve tudo isso aí?

Com um gesto breve, Cliff apontou para as paredes da sala octogonal e para aquela estranha instalação no centro.

Os dois guardas ajudaram-no a despir o traje espacial e Tourenne pôs-se a examinar a plaqueta de identificação que Cliff ostentava no lado direito do macacão de bordo.

— Tenha a bondade! — disse Tourenne, de leve.

Cliff não se deixou iludir pelo agradável tom de conversação que aquele homem ardiloso estava empregando agora. Tourenne fez um gesto rápido com a mão.

— Por favor, sente-se!

Cliff virou-se e descobriu, encaixada num recorte da rampa externa, a segunda cadeira daquela instalação.

Sentou-se devagar e com cuidado. Examinou por instantes aquelas largas fitas de aço e depois recostou-se.

Tourenne prosseguiu:

— Seu amigo Pieter-Paul passou algumas horas bastante desagradáveis nessa poltrona; tenho certeza de que foram as mais desagradáveis que já passou em toda a sua carreira literária. Sentiu na própria carne um pouco daquilo que faz os seus heróis sofrerem a toda hora. Se aprendeu a lição, nunca mais vai esquecer a bruta diferença que existe entre teoria e prática.

Com um sorriso sarcástico, Cliff observou:

— Possui uma voz extraordinária, meu caro senhor Tourenne.

Tourenne respondeu com uma mesura irônica.

— Uma voz — continuou McLane — que, pelo visto, o senhor não se cansa de ouvir. Porque até agora só falou, falou, falou, e não disse nada.

Tourenne engoliu o insulto, sem mudar de expressão. Apenas o brilho daqueles olhos frios tornou-se mais ameaçador. Voltou a falar:

— Estou certo de que não precisamos submetê-lo a esse tratamento, major; afinal, é reputado como um homem inteligente.

McLane manteve-se em silêncio. Estava pensando num meio de provocar Tourenne. Este homem era tudo, menos um fanfarrão presunçoso. Ao contrário, era um adversário temível, que urdia seus planos com uma lógica cristalina. Era preciso desnorteá-lo de alguma maneira; caso contrário, a Orion não tinha a menor chance de escapar incólume desse lugar.

— O que lhe dá o direito de nos aprisionar e ameaçar nossa integridade física? — perguntou McLane rispidamente.

— Devagar, comandante, vamos com calma. Já disse que me chamo Tourenne; mas isso agora não vem ao caso. Tenho imenso prazer em poder dar-lhes as boas-vindas.

— Pare com essa baboseira — disse McLane.

Começou a vislumbrar, vagamente, o que Tourenne queria e, também, para quê.

— O que está se passando aqui? Por enquanto ainda estou inclinado a considerar seu procedimento como uma pilhéria de extremo mau gosto. Pelo que me consta, o planeta Mura é uma colônia de desterrados e não um depósito de armas.

Tourenne sorriu e disse, concordando:

— Tem inteira razão; pode falar sem rodeios, major. Mura é um mundo dos banidos, dos expatriados.

Cliff encolheu os ombros e respondeu em tom provocador:

— E quem são esses banidos que aqui gozam de ampla liberdade e condições de vida humana? São homens que, pelos crimes que cometeram antigamente, teriam sido condenados à morte ou à prisão perpétua.

Tourenne concordou novamente; apenas seu sorriso tornou-se mais gélido.

— Seja como for, fato é que Mura continua sendo uma colônia de exilados. Mas não mais por muito tempo.

McLane apontou para a HM-4 de um dos guardas.

— Como conseguiu apoderar-se dessas armas?

Tourenne deitou a cabeça no ombro e entrelaçou as mãos em cima da mesa.

— Uma pergunta inteligente, comandante.

— Quisera poder dizer a mesma coisa das suas explicações, Tourenne!

Cliff reparou que tinha subestimado o adversário. Não era tão fácil abalar o autodomínio desse homem. Ele, Cliff, já teria reagido violentamente. Portanto, era preciso reforçar a dose.

— Realmente, essa foi a maior dificuldade que tive que resolver durante a minha longa vida. Levamos anos para descobrir um ponto de penetração nas repartições de Terra. Mas um belo dia, encontramos o homem certo: um chefe de seção na Secretaria Geral do Abastecimento Planetário.

— Então não entendo por que não requisitou logo uma porção de naves espaciais! — a ironia dessa observação não produziu o efeito que Cliff esperava, pois Tourenne respondeu com a maior seriedade.

— Bem que tentamos, mas infelizmente nosso homem não tinha competência para tanto.

Com um sorriso insolente, McLane disse:

— Fez tudo errado. Devia ter começado na cúpula, não no escalão inferior. Qualquer homem medianamente inteligente sabe disso. Mas vai ver que suas faculdades mentais não são lá essas coisas.

Recostou-se e riu abertamente na cara de Tourenne.

Com ar pensativo, Tourenne disse:

— Admiro a sua coragem, comandante. Se bem que, no momento, não vejo o que espera conseguir com suas intermináveis provocações.

— Modéstia à parte, mas todos os astronautas são terrivelmente corajosos — respondeu Cliff, impassível. — Mas... continue a contar sua história. Estou fascinado!

— Descobrimos que esse homem era venal, além de viciado. Assim, começamos a suborná-lo com pílulas de euforita, em troca das quais deveria nos fornecer armas energéticas. Mas quando chegou a hora de agir, ficou com medo e quis tirar o corpo fora. Porém, percebeu que já era tarde demais para recuar. Sabia que bastava uma palavra nossa para que ele próprio fosse deportado para Mura. Diante dessa alternativa nada agradável preferiu continuar a prestar sua valiosa colaboração.

McLane prometeu, em tom severo:

— Esse sujeito não vai lhe enviar suprimentos por mais muito tempo. Nem mesmo rações enlatadas. Assim que pousar em Terra, vou agarrá-lo com minhas próprias mãos!

— Creio que isso vai ser um pouco difícil! — respondeu Tourenne, com um sorriso de infinita superioridade. — Não posso imaginar que seja tão ingênuo, a ponto de acreditar que vou deixá-lo voltar belo e fagueiro para Terra! Se foi isso que pensou, pense de novo, pois jamais vai rever aquele maldito planeta de carrascos!

Cliff não tinha certeza de coisa alguma, mas conseguiu emprestar um tom confiante à sua voz quando respondeu:

— Pra falar a verdade, um pouso em Terra nos próximos dias faz parte dos meus planos imediatos. Sabe o que arrisca se nos manter presos aqui?

— Justamente isso não oferece risco algum!

— Não consigo acompanhar seu raciocínio — disse o comandante.

— Presos como estão, o senhor e sua tripulação não representam qualquer ameaça para mim. Portanto, não estou arriscando nada, mantendo-os como prisioneiros. Por outro lado, se eu os libertasse, aí sim, eu estaria arriscando tudo. E sem a menor necessidade. Acha mesmo que eu cometeria uma besteira dessas?

— Afinal de contas, o que pretende fazer? — perguntou Cliff e cruzou as pernas.

Seguiram-se alguns momentos de profundo silêncio. Depois Tourenne disse, os olhos fixos num ponto à distância:

— Hoje é um dia memorável. Para mim e para Mura. Nossos esforços não foram em vão. Trabalhamos com perseverança na elaboração do nosso plano, um plano que tornaríamos realidade quando o dia, tão ansiosamente esperado, chegasse. Finalmente, chegou. E considero um sinal alentador do destino que tenha sido justamente o senhor, major McLane, quem caiu na nossa armadilha!

— Socorro! — exclamou Cliff. — Acaba me estourando os tímpanos com sua espantosa loquacidade! — depois, perguntou baixinho: — Afinal, o que quer de mim?

— Pensei que já soubesse. A Orion VIII, é claro!

Cliff começou a rir.

— Mais nada?

— Não. Só queremos a nave.

— Continue, sou todo ouvidos — Cliff sacudiu a cabeça, incrédulo.

— Naturalmente não foi nada fácil convencer meu pessoal que, para atingir o nosso objetivo, era preciso que nos armássemos de muita paciência e evitássemos qualquer ação irrefletida. Disse-lhes que provavelmente a espera seria longa, e expliquei-lhes porque não fazia sentido algum tentar capturar uma das naves de abastecimento que nos visitavam a intervalos regulares.

Tourenne parecia sentir um prazer diabólico em relatar os detalhes do seu misterioso plano a um estranho. Cliff convenceu-se que tinha diante de si um louco. Não um demente e sim, um louco inteligente. Tourenne prosseguiu:

— Só poderíamos iniciar a operação planejada na hora em que, por obra do acaso ou pela lei da probabilidade, conseguíssemos deitar as mãos numa nave espacial moderna e de grande porte. Portanto, só nos restava esperar... esperar. E ficar à espera de alguma coisa em Mura é uma experiência enervante. Mas valeu a pena. Conseguimos apresar a nave que queríamos. E logo a Orion VIII! Confesso que jamais sonhei com essa possibilidade!

— Para que precisa da Orion? — perguntou Cliff, controlando-se com dificuldade.

— Para empreender uma viagem, major McLane. Apenas uma viagem de ida. A não mais ver, entendeu?

Cliff tentou argumentar.

— Pode se esconder onde quiser, Tourenne; garanto que a frota vai descobrir seu paradeiro!

— Não vai, não, major, isso eu garanto! Em breve Mura vai voltar a ser o que era, antes de se tornar o exílio dos cidadãos indesejáveis de Terra: uma insignificante bola parasita perdida na vastidão do universo.

— Parece que já leu as obras completas de Ibsen! — comentou Cliff, com ironia.

— Não foi preciso. Entendeu meu plano?

— Afinal, para onde pretende ir? Para a nebulosa de Andrômeda? Se for o caso, desista. Nem mesmo a Orion consegue chegar lá. Não pense que vai ter êxito onde homens infinitamente melhores que o senhor fracassaram. Até hoje, todos tiveram que voltar com o rabo entre as pernas.

— Para Terra não passamos de lixo... — começou Tourenne.

— O que é perfeitamente compreensível!

— ...talvez reconheçam o nosso valor em outras paragens. Não tenho a menor dúvida de que oferecemos um preço de compra bastante convidativo. Afinal, um cruzador ligeiro...

Cliff estarreceu de pavor.

— Não está insinuando que vai procurar os extrater...?

Tourenne acenou afirmativamente.

— Estou, sim, McLane. E por que não? Cliff respirou profundamente, estendeu os dedos e começou a enumerar:

— Não temos nada em comum com esses extraterranos. Isso está mais do que provado e é do conhecimento geral. Ninguém sabe de onde vieram e onde vivem. Só sabemos que infestam o espaço além das regiões da esfera espacial que constitui o domínio de Terra. Sabemos ainda que conseguem viver no vácuo ou em atmosferas isentas de oxigênio, pois esse gás os mata instantaneamente, enquanto que para nós, para mim e para o senhor, Tourenne, ele se constitui na própria fonte da vida.

"Não falam o nosso idioma. Quanto à sua tecnologia, continua sendo um mistério para os nossos cientistas, apesar dos esforços incríveis com que vêm tentando, já faz mais de ano, desvendar os segredos daquelas naves espaciais que capturamos em MZ-4.

"Seja sensato, Tourenne! Como pretende entabular negociações com eles, se não lhes conhece a língua? Se conseguir enviar uma única palavra que eles entendam, será um milagre!"

A argumentação de Cliff não surtiu o menor efeito. Tourenne continuou tão seguro de si próprio como antes. Retomou a palavra:

— Eu sei, major, que para o senhor e gente da sua laia seres extraterranos não passam de feras e animais repelentes. Até de "sapos" já foram chamados!

— Criaturas que colocam um planeta em chamas num curso de colisão com Terra, não são bem aquilo que eu chamaria de "amigos", Tourenne!

O outro ignorou a réplica; contrariava seu ponto de vista; portanto, não houve resposta.

— Nós em Mura aprendemos a pensar de outra maneira. O ódio que Terra nutre pelos extraterranos, nós nutrimos pelos terranos.

— Quer dizer que pretende se passar para o lado dos estranhos? — perguntou Cliff. — Está firmemente decidido a concretizar seu projeto?

— Correto!

— Então não resta dúvida que está doido varrido, Tourenne!

Tourenne empertigou-se bruscamente. O olhar que lançou para Cliff parecia pregar o comandante ao assento.

— Uma vez, lá em Terra, afirmaram que eu era louco. Só que se enganaram. Aliás, duvido que chegaram a descobrir o quanto estavam enganados.

De repente McLane lembrou-se daquela ocorrência, tão intimamente ligada ao nome desse homem. Ainda surpreso pela súbita recordação, exclamou:

— Tourenne!... Não foi o senhor que...?

— Sinto-me lisonjeado, McLane. Sinceramente, não esperava que conseguisse se lembrar de tudo, devido à sua pouca idade. Sim, naquela época, eu era a maior autoridade no assunto, uma celebridade. Meus ensaios com os raios paralisantes eram uma sensação mundial e hoje ainda o seriam.

McLane concordou, amargurado.

— É. Mas esqueceu de acrescentar que durante esses ensaios a vida de milhares de pessoas correu o mais sério perigo.

Tourenne não respondeu; apenas fez um gesto displicente com a mão. Esse aspecto da coisa era o que menos lhe interessava. Cliff concluiu:

— E é por esta razão que está aqui em Mura!

Desta vez Tourenne respondeu. Cheio de ódio, disse:

— Sim. Estou aqui. Apenas um proscrito há muito esquecido. Um homem condenado a passar o resto dos seus dias nesse desolado planeta a mais de noventa parsec de Terra. Vegetando como um leproso na antigüidade. E por quê?

— Sim, por que será que fizeram essa maldade com você, seu patife? — perguntou Cliff, sem o menor traço de ironia na voz.

— Por quê? — Tourenne mostrou-se espantado. — Porque a minha concepção da ética não coadunava com a daqueles falsos guardiães da moral em Terra. Não se interessaram pelos meus raios paralisantes! Mas Terra vai ter que se interessar por eles, e muito, quando se encontrarem nas mãos dos extraterranos! Só que aí já vai ser tarde demais. Entendeu agora, o que pretendo fazer, comandante McLane?

Cliff acenou, profundamente abalado.

— Sim, entendi tudo. O senhor só deseja colocar sua terrível arma nas mãos ou tentáculos daqueles estranhos; mais nada. Tem certeza de que sabe o que está dizendo?

— Certeza absoluta! Ninguém me manda para o exílio em Mura impunemente!

Desesperado, Cliff começou a exortar Tourenne.

— Por maior que seja o ódio que nutre por Terra, justificado ou não, isto não altera o fato de que é um homem, um ser humano, Tourenne! Não é possível que, de sã consciência, possa desejar tão ardentemente o extermínio da sua própria raça!

Tourenne sacudiu veementemente a cabeça.

— Aqui em Mura ninguém tem o menor motivo para lamentar o ocaso de Terra, major!

Para McLane tudo estava claro agora. Tourenne queria se apoderar de Orion e fugir para os estranhos, acompanhado dos seus asseclas. E levaria o projeto dos raios paralisantes. Mais cedo ou mais tarde, toparia com os extraterranos no cosmos longínquo e, a partir daquele instante, Terra estaria condenada. Esse homem era um doente. Sofria de uma doença altamente contagiosa. McLane teria que impedir por todos os meios que Tourenne pusesse os pés na Orion. O problema era como conseguir isso, e Cliff não via a menor chance de poder tomar alguma iniciativa, o que o levou às raias do desespero. Com ele, todos os membros da tripulação haviam sido aprisionados e agora provavelmente se encontravam trancafiados em celas severamente vigiadas. No momento, só podia tentar ganhar tempo, prolongando aquele diálogo macabro.

— Realmente foi de uma crueldade sem par, condená-lo ao desterro — disse em tom amável e com um sorriso forçado. — Deveria ter sido executado logo, ou paralisado com seu próprio raio!

— Uma santa idéia, comandante! — respondeu Tourenne. A esta altura dos acontecimentos encontrava-se a um passo do triunfo, e poderia ser desastroso, se perdesse a calma justamente agora que iria pôr em execução a fase final do seu plano demoníaco. Não, McLane poderia insultá-lo o quanto quisesse que ele, Tourenne, o virtual vencedor dessa contenda, não se deixaria abalar, não perderia o controle.

— Foi apenas uma idéia sensata — respondeu Cliff — que infelizmente não ocorreu ao pessoal em Terra naquela época.

— Por falar em idéias, estou tendo uma agora que promete um efeito espetacular, meu caro comandante!

Meio desconfiado, Cliff perguntou:

— Uma idéia envolta em mistério; não pode ser mais explícito?

— Não é preciso. Sabe muito bem de que se trata!

Cliff fitou os olhos daquele louco à sua frente, imóveis e frios como os de um réptil.

— Não sei de nada — respondeu.

— Não tenho escolha, McLane. E olhe, pode não acreditar nisso, mas acho uma pena ter que matá-lo. Vi que é um homem inteligente e capaz, e para mim foi um prazer poder discutir com o senhor. Bem que poderia me ajudar. Seria o auxiliar ideal.

Cliff respondeu sem titubear, e cada palavra era um pingo de ironia:

— Acha mesmo? Então vou fazer força para não desapontá-lo. Prometo executar qualquer tipo de serviço com rapidez e perfeição!

Tourenne permaneceu impassível e depois continuou a expor seu raciocínio.

— Acontece, porém, que o senhor já se tornou um herói, um símbolo. McLane e sua tripulação são verdadeiros ídolos em Terra. E ídolos são perigosos. Defensora intransigente dos princípios terranos, a equipe da Orion representa uma ameaça permanente para os meus objetivos, e por isso tem que ser eliminada.

— Receio que não posso impedi-lo de cometer mais este crime!

Pela primeira vez, Tourenne deu um sorriso que não denotava ódio ou sarcasmo.

— Tem razão. Não há nada que possa fazer. E o que empresta uma conotação tragicômica à sua morte, é o fato de que o famoso major McLane cai vítima da própria fama!

Tourenne estava visivelmente satisfeito por ter feito esta observação macabra. Cliff lançou mão de um novo argumento:

— Não precisa assassinar nem a mim nem a minha tripulação. Não acha muito mais simples cair fora e nos abandonar aqui em Mura?

Tourenne respondeu sem querer refletir, o que evidenciava que já tinha analisado esta alternativa.

— Não posso fazer isso. O senhor sabe demais, e é mais do que óbvio que, era três tempos, as autoridades de Terra ficariam a par de tudo. Não, McLane, quanto menos souberem agora, tanto melhor para mim. Vão ter que descobrir sozinhos que eu, por assim dizer, passei a trabalhar para a concorrência.

Cliff inclinou-se ligeiramente para a frente, e perguntou:

— Por que então me expôs as suas estúpidas idéias com tanta minúcia? Se era tão mais seguro para o senhor, me manter na mais completa ignorância?

Cliff reparou que, com um movimento rápido, poderia se apoderar do projetor do guarda que estava ao seu lado. Avaliou o tempo que levaria para surrupiar a arma, soltar por cima da plataforma e vencer os poucos metros que o separavam da mesa de Tourenne. Chegou à conclusão que tinha uma boa chance de dominar aquele louco, antes que os guardas pudessem se refazer da surpresa e esboçar qualquer reação. Voltou a olhar rapidamente para Tourenne quando este respondeu:

— Se eu não lhe tivesse revelado meus pequenos segredos, McLane, teria me privado de um prazer pessoal, de uma alegria toda especial!

— Prazer? Alegria? Cliff reexaminou sua avaliação anterior e retesou os músculos.

— Isso mesmo. Não pode imaginar o prazer que senti ao ver o pavor estampado na sua cara. Só aquela expressão dos seus olhos quando descobriu a verdade, já me compensou pelos longos anos que fui forçado a passar nessa solidão cósmica.

Cliff arrancou a arma da mão do guarda e galgou a plataforma com um só salto.

— Então foi por isso, seu grande miserável!? — berrou a plenos pulmões.

Lançou-se sobre a rampa e já estava engatilhando a HM-4 quando o terceiro guarda, que ele não tinha visto, vibrou-lhe um violento golpe nas costas. Cliff estatelou-se no chão e os três homens o arrastaram de volta à cadeira. Desta vez, o amarraram. A tentativa de fuga havia fracassado.

Tourenne exibiu o sorriso indulgente do vencedor e disse, com ironia:

— Mas o que é isso, major McLane? É assim que agradece o tratamento benevolente que lhe dispensei até agora? Tenho a maior admiração pelo senhor e por isso mesmo resolvi matá-lo de uma maneira toda especial que, para seu enlevo, é absolutamente indolor.

— Obrigado! — resmungou Cliff com raiva e tentou romper as fitas de aço que o prendiam.

Nem se mexeram.

— Mas é claro que posso mudar de idéia a qualquer momento! — finalizou Tourenne e levantou-se.

 

O CARGO que o marechal Wamsler exercia na Suprema Comissão Espacial era de suma importância estratégica e abrangia uma vasta esfera de influência. Mas, apesar do poder e do prestígio que este posto conferia ao seu ocupante, ninguém o cobiçava. Wamsler não estranhava esse aparente contra-senso. Realmente, era preciso ter uma paciência de Jó para conseguir conciliar tantos interesses conflitantes. E a tarefa ingrata, com que Wamsler se defrontava todo santo dia, era exatamente essa: procurar agradar a gregos e a troianos. Encontrava-se, por assim dizer, entre dois fogos. O Alto Comando soterrava seu gabinete sob uma avalancha de regulamentações novas, instruções normativas e ordens específicas para alguma operação; e cabia a Wamsler examiná-las e discuti-las uma por uma, para depois transmiti-las aos seus comandados. E estes, por seu lado, queixavam-se amargamente a ele quando recebiam uma missão que lhes parecia por demais estapafúrdia. Muitas vezes tinham inteira razão.

No momento, Wamsler encontrava-se numa situação nada invejável: diante dele, estava sentado o futuro sogro de Pieter-Paul Ibsen que evidenciava um estado de espírito dos piores.

— E tem a coragem de me dizer uma coisa dessas? — vociferou após ouvir o relato de Wamsler. — A Orion está no universo e há seis dias o senhor não tem notícias dela?

Wamsler baixou o enorme crânio num gesto de resignação, e perguntou:

— Preferia que eu lhe contasse uma mentira?

— E a minha filha? O que é que eu vou dizer a ela?

Wamsler permitiu-se uma breve risada.

— Uma pergunta, senhor ministro — disse a meia voz, e Spring-Brauner estremeceu. — Tem medo de ser agredido fisicamente por sua filha, quando lhe contar que perdemos o contato com a Orion? Furioso, o ministro fez que não.

— Não chega a esse ponto, graças a Deus; mas me enche a paciência de uma maneira que... bem, o que é que eu posso fazer? Não tive a felicidade de poder escolhê-la a dedo! Agora, foi uma leviandade imperdoável de sua parte, confiar o meu futuro genro logo a esse McLane!

O sangue afluiu ao rosto de Wamsler, que se irritou profundamente com esta observação. Começou a gaguejar ligeiramente.

— Perdão, senhor ministro, mas essa idéia não foi minha! Foi o senhor mesmo quem insistiu nesse ponto, já que Ibsen fazia questão total de voar com McLane e sua tripulação!

Em silêncio, o ministro olhou alternadamente para Wamsler e Spring-Brauner. Finalmente disse, e parecia um pouco cansado:

— É. Mas o senhor não deveria ter dado ouvidos ao meu pedido!

Wamsler apoiou o queixo largo na mão e fitou o ministro. Sentia uma vontade louca de responder aos berros, mas controlou-se e disse, num tom calmo e baixo:

— Veja bem, senhor ministro! Telefonou para mim e me pediu que não poupasse argumentos para convencer McLane a levar a bordo da Orion a figura mui estimada do seu futuro genro. Me expus ao perigo de ser considerado um desmiolado por um dos meus melhores homens, só porque me atrevi a externar um pedido tão despropositado. Pedi a McLane que o fizesse por mim, porque, caso contrário o senhor despejaria sua ira sobre a minha atormentada cabeça. Pois bem, consegui persuadir McLane a levar seu genro e a partir daquele momento não tive mais um único segundo de sossego. McLane já realizou um sem-número de missões das mais malucas; mas invariavelmente conseguiu sair da enrascada e voltar são e salvo. Então por que a Orion haveria de sofrer um acidente justamente agora, espatifando-se contra um asteróide ou coisa parecida? Só por que Ibsen se encontra a bordo? Acho que está sendo muito injusto comigo, senhor ministro!

O futuro sogro de Ibsen acenou lentamente, mais do que aflito.

— Mas o senhor conhece esse tal de McLane melhor do que ninguém. Era sua obrigação alertar Ibsen e fazê-lo abandonar sua idéia fixa!

Wamsler acenou sombriamente e disse:

— É verdade. Eu conheço McLane. É o melhor homem que eu tenho!

Spring-Brauner estremeceu; era extremamente susceptível a afirmações como essa. Mas era também um homem prudente e absteve-se de fazer o comentário sarcástico que, a seu ver, a asseveração do seu chefe pedia.

— Faço votos que o senhor tenha razão, marechal — concluiu o ministro. — Vamos ver se esse homem é tão bom como o senhor afirma.

Despediu-se de Wamsler com um aperto de mão, acenou para Spring-Brauner e deixou o gabinete. Um homem velho e cansado. Um ministro de Estado que participava das decisões que norteavam o destino de Terra. Mas que, no momento, não passava de um homem temeroso do inevitável acesso de cólera da sua própria filha. Wamsler agradeceu aos céus nunca ter se casado.

 

A cela tinha o formato de um favo, com dois diâmetros diferentes. Uma moldura espessa, hexagonal, guarnecia uma porta sextavada cujas faces laterais, bastante largas, estavam voltadas para o interior do cubículo. A pesada placa de aço, que completava a estranha configuração, era inteiramente lisa, sem qualquer vestígio que indicasse onde se encaixava a complicada fechadura. No centro das faces superior e inferior, destacavam-se as saliências dos pequenos mancais que sustentavam os eixos grossos e curtos, em torno dos quais essa porta podia girar. Dois catres duros, colocados ao longo das paredes longitudinais, constituíam a mobília dessa cela desprovida de qualquer conforto. À direita da porta, na parte superior do trecho inclinado da parede, via-se a aparelhagem do sistema de comunicação e vigilância. Reunidos numa só peça, o microfone, o alto-falante e o teclado formavam a parte central da instalação. À direita encontrava-se a tela de imagem e, à esquerda, um jogo de lentes móveis, uma delas do tipo grande-angular; a respectiva focalização era feita por meio de controle remoto. Um zumbido alto e fino emanava do alto-falante. Tamara sentou-se num dos catres e lembrou-se de uma outra cela, bastante parecida com esta... lá em Chroma... mas já pertencia ao passado, a um passado infinitamente longínquo... Tamara murmurou:

— Acho que está enganada, Helga... Helga acomodou-se no outro catre e fitou os olhos de Tamara.

— Será?

— Acho que sim. Não creio que estejam interessados em nós duas. O que eles querem é a nave.

Após alguns instantes de silêncio, Helga perguntou:

— Digamos que tenha razão. Pode me dizer para que querem a Orion?

Tamara sacudiu a cabeça.

— Não faço a menor idéia; só sei que naquela confusão toda alguém mencionou o nome da Orion. Estou tentando me lembrar quem foi. — e pôs-se a refletir.

A primeira coisa de que se lembrou foi que havia um microfone aberto por cima da porta. Mas, no momento, isso não tinha a menor importância: dessa conversa podia se inteirar quem quisesse. A coisa mudaria um pouco de figura, se ela e Helga tivessem que discutir um assunto mais recatado. Nesse caso, a agente do SSG lançaria mão de um ou dois dos numerosos truquezinhos que conhecia... Por fim, Tamara se lembrou:

— Foi Ibsen, Helga! Sussurrou qualquer coisa relacionada com a Orion no meu ouvido, quando passamos por ele naquele corredor. Só que não deu para entender tudo, pois aqueles sujeitos nos separaram imediatamente com seus delicados empurrões. Devo estar cheia de equimoses.

— Vou lhe aplicar uma massagem daquelas! — prometeu Helga. — Sabe o que pensei no primeiro momento, quando nos pegaram?

Tamara deu um breve sorriso.

— Provavelmente a mesma coisa que eu, Helga. Quer ver? Mura... colônia penal... tremenda escassez de mulheres... não foi isso? Pois é; e eu estava certa de que Ibsen já tinha revelado a existência de duas moças a bordo da Orion. Depois de ligar uma coisa à outra, eu ainda poderia ter alguma dúvida quanto à intenção desses caras? Claro que não! O que eles mais queriam, era carregar a gente: duas mulheres, um presente literalmente caído do céu! Só comecei a ficar desconfiada de que o objetivo principal deles talvez fosse outro, quando ouvi Ibsen mencionar a Orion, naquela fracassada tentativa de me segredar algo importante.

Helga sacudiu a cabeça.

— Se eles realmente querem a Orion, é porque pretendem alcançar algum objetivo de natureza política. E quando homens acima dos quarenta tratam de assuntos políticos, não têm cabeça para pensar em mulheres. Com raras exceções. Quer me parecer que o caso não é bem esse.

Tamara estremeceu.

— Bem, não deixa de ter razão — murmurou. — Chegou a notar o olhar daqueles dois guardas que nos trancafiaram aqui?

A telegrafista acenou.

— Se notei! Nunca na vida senti tanto arrepio!

— É. Uma sensação das mais agradáveis — ironizou Tamara. — Mesmo assim, tive pena de um deles. Um sujeito tão moço, e no entanto já é expatriado! Gostaria de saber por que o condenaram.

Helga enrolou uma mecha de cabelo no dedo e disse, com um toque de sarcasmo:

— Vai ver que infringiu regulamentos demais! Quem sabe? E por causa disso está vegetando aqui em Mura!

— É, mas parece que o padecimento dele está chegando ao fim — disse Tamara sobriamente. — Como eu vejo a coisa, esse pessoal pretende dissolver a sociedade. Precisam da Orion como meio de transporte.

Helga ergueu a cabeça e cravou o olhar nos olhos de Tamara.

— Tem alguma idéia? — perguntou Tamara, sussurrando.

Helga respondeu, lançando um rápido olhar para a tela de imagem.

Tamara examinou a cela detidamente e depois cochichou:

— Perto da porta, há um lugar ótimo pra gente conversar à vontade. Se falarmos baixinho, não vão conseguir entender uma só palavra. Os microfones dessas instalações são muito pouco sensíveis.

— Então vamos.

Tamara levantou-se, aparentemente indecisa, e depois caminhou com a maior naturalidade para aquele lugar junto à porta, que seu olho treinado lhe havia revelado como o mais apropriado para uma conversa sigilosa. Meio minuto depois, Helga juntou-se a Tamara.

— Se precisam tanto da Orion, se dão tanto valor a ela, então não acha que podemos usar a nave para fazer uma chantagem com eles? — perguntou Helga, o espírito empreendedor brilhando nos seus olhos.

— Sim, mas como?

Helga apontou para a parede à sua direita.

— Hasso e Mario foram trancados nessa cela aí ao lado. Temos que lançar mão de um ardil.

— Está pensando numa fuga simulada?

— Isso mesmo; vamos fazer de conta que a senhora fugiu.

— Ótima idéia!

Com um gesto, Tamara deu a entender a Helga que esperasse mais um pouco. Sabia de que lado da porta giratória ficava aquela fechadura invisível. Tamara tinha prestado atenção no detalhe ao ser trancafiada: ficava à sua esquerda, portanto, à direita de quem estivesse olhando a porta do lado de fora. Com um sorriso de satisfação, a agente do SSG postou-se na cavidade daquela estranha porta sextavada, amoldando o corpo às faces laterais o quanto pôde. Constatou que, nessa posição, estava fora do alcance das lentes do monitor.

— Entendeu o que pretendo fazer? — perguntou apressadamente.

Helga acenou em silêncio e colocou-se bem em frente do videofone. Calcou uma tecla. Segundos depois o rosto atento do guarda surgiu na tela de imagem. ""

— O que é que há? — perguntou, em tom aborrecido.

— Estou chateada, não tenho com que me distrair! — respondeu Helga, com um sorriso provocador.

— Trate de ficar quieta! — resmungou o guarda.

Helga o contemplou com um sorriso sedutor.

— Tenho algo muito importante a comunicar! — disse a meia voz e passou a ponta da língua nos lábios.

O guarda, que era o mais moço daqueles dois que haviam aprisionado Helga e Tamara, disse, em tom desdenhoso:

— Deve ser uma revelação estarrecedora!

Helga inclinou a cabeça ligeiramente para o lado e continuou a sorrir para aquelas lentes.

— Acertou em cheio, meu jovem!

O vigia estava começando a se divertir com esse diálogo, mas era óbvio que nem pensava em abandonar o seu lugar junto aos monitores. Respondeu:

— Deixe-me em paz. Detestamos mulheres abelhudas.

Helga sacudiu a cabeça e observou:

— Será que todos aqui são tão mal-educados assim? Se for este o tratamento que dispensam a jovens damas, então não me admira que tenham sido banidos!

Uma leve expressão de interesse apareceu nos olhos do guarda, e Helga resolveu insistir no assunto, pelo visto, o ponto fraco desse sujeito.

— Não existem damas aqui em Mura!

— E eu? Por acaso não sou uma dama? — perguntou Helga, em tom agressivo. A expressão de interesse apagou-se bruscamente. Conversar em tom amável não parecia ser o forte dos homens empedernidos no planeta dos expatriados.

— Afinal o que quer de mim? — perguntou o guarda.

— Bem... — disse Helga e não completou a resposta.

— Não posso perder tempo com suas besteiras. Estou de serviço. Se não ficar quieta, vai receber uma dose reforçada do paralisador.

Helga arreganhou os dentes num sorriso insolente.

— Vai se encarregar disso pessoalmente?

O guarda não pôde conter o riso.

— Até que a senhora é uma mulher gozada, sabia? — disse em tom bem menos irritado. Ficou pensativo e acrescentou: — Estou ficando com pena da senhora. Realmente, é uma lástima. Mas o que é que eu posso fazer?

— Descer e me fazer companhia — respondeu Helga sem titubear.

Desta vez o guarda não riu e observou:

— Daqui a pouco, o seu senso de humor não vai adiantar mais nada!

— Empregou "seu" no singular ou no plural? — quis saber Helga, com uma expressão ingênua e depois acrescentou, com ironia: — Vou reformular a pergunta em termos menos difíceis: estava se referindo ao meu senso de humor ou ao de todos os membros da tripulação da Orion?

O guarda amarrou a cara e respondeu, irado:

— Claro que me referi a todos!

— Tem certeza de que ainda estão todos aí? — perguntou Helga, num tom impertinente.

O guarda olhou para ela com uma expressão alarmada.

— O que quer dizer com isso? — rosnou.

— O tempo todo tentando lhe contar o que aconteceu, seu sabichão. Minha colega fugiu. Eu estava pensando que talvez o senhor pudesse interceder por mim, já que lhe relatei o fato.

Os olhos do guarda começaram a se acomodar de uma maneira diferente; Helga sabia que ele estava ajustando o monitor para vasculhar a cela com a grande-ocular. Claro que não conseguiu ver Tamara.

— É impossível! — exclamou.

— Tamara Jagellovsk pertence aos quadros do Serviço de Segurança Terrano — disse Helga. — O senhor não faz a menor idéia da quantidade de truques que ela conhece. É capaz de quebrar fechaduras com a mesma facilidade que nozes ou corações masculinos.

— Vou aí correndo! — gritou o guarda. A tela se apagou. Helga postou-se do lado direito da porta e acenou para Tamara. Trocaram um rápido sorriso e depois prestaram atenção aos passos apressados que ressoavam lá fora, no corredor. Cessaram e, em seguida, ouviu-se o zumbido da fechadura. A porta começou a girar. Tamara lançou-se com toda a força contra a pesada chapa de aço, aumentando-lhe a velocidade de rotação. O guarda recebeu um violento impacto nas costas e cambaleou para dentro da cela. O cano de sua arma desviou-se e apontou para o alto. Helga agarrou o homem pelo braço, dobrou o joelho e puxou forte. O vigia foi projetado como um petardo por cima da cabeça da telegrafista e estatelou-se num dos catres, que se despedaçou com um estalo ensurdecedor. Atordoado, o guarda sacudiu a arma no ar. Enquanto isso, Tamara já havia encostado novamente a porta, para que ninguém pudesse suspeitar de alguma anormalidade.

— Pronto. O resto faz parte do seu ofício — disse Helga e entregou a arma a Tamara.

Rapidamente Tamara regulou o pesado projetor para a potência de tiro mínima e o apontou firmemente para a cabeça daquele homem estonteado.

— Nem um pio e nada de movimentos bruscos, senão eu atiro! E pode acreditar que não estamos brincando, tão pouco quanto vocês. Não temos mais nada a perder. Entendeu isso?

O guarda limitou-se a acenar em silêncio. Sentia-se completamente desmoralizado. Nunca tinha visto duas mulheres agirem com tamanha rapidez.

— Quantos homens há lá fora, no corredor?

O homem parecia ter dificuldade em articular as palavras. Respondeu lentamente:

— No momento, não há ninguém lá fora.

— Vai abrir a cela ao lado ou não? Mais uma vez a resposta resumiu-se num aceno silencioso.

— Então vamos!

Tamara encostou a ponta aguçada da HM-4 firmemente na espinha do guarda, impelindo-o para o corredor. Helga os seguiu e trancou a porta.

Não viram ninguém. Em questão de segundos, venceram os dez metros que separavam aquela porta da seguinte. Tamara aumentou a pressão e o guarda abriu o complicado mecanismo com três movimentos rápidos e precisos. A porta começou a girar lentamente. No mesmo instante Hasso acordou e pôs-se de pé, sobressaltado. Levou alguns segundos para alcançar o verdadeiro sentido daquela invasão inesperada. Quando viu Tamara de arma na mão, sua expressão apreensiva transformou-se numa de surpresa e incredulidade. Tratou de acordar Mario, que estava dormindo o sono dos justos. O subcomandante piscou e levantou-se com a calma do flegmático. Inteirou-se da situação e contemplou as duas moças com um sorriso de aprovação. Depois fechou o punho, mas Hasso o agarrou pelo braço, impedindo que Mario nocauteasse o guarda apavorado.

— Helga... Tamara... o que vocês...? — perguntou Hasso, ainda não refeito da surpresa.

Helga apontou para a porta e disse, precipitando as palavras:

— Depressa! Caiam fora! Procurem chegar à Orion sem demora!

Tamara entregou o projetor a Hasso, pois Mario já se havia plantado ameaçadoramente atrás do guarda, e Tamara conhecia a força descomunal do subcomandante.

— Levem a arma. Esse sujeito pode servir de refém ou de escudo, pouco me importa. Mas, pelo amor de Deus!, depressa! Eles querem é a Orion! Entenderam? Querem capturar a Orion! — balbuciou Helga, aflita. — O tempo todo só estavam pensando na nave! Vocês precisam chegar lá antes deles! Depois vocês podem empregar até o Overkill, para mim tanto faz como fez!

— Entendido! — resmungou Mario. — Vamos indo, Hasso!

Deu um empurrão no guarda, que fez o infeliz atravessar a cela de ponta a ponta, e rosnou em tom ameaçador:

— Nós temos os nossos trajes espaciais. Você não. Mas uma corridinha através desse ar rarefeito não vai lhe custar a vida. Portanto, vamos embora!

Impelindo o prisioneiro para diante, saíram apressadamente da cela. Era uma corrida contra o tempo. Mas Mario e Hasso conheciam o caminho que levava ao elevador. Ao serem levados para a cela, retiveram na mente o trajeto que os guardas percorreram. E este fato se constituiu agora numa vantagem inestimável: chegaram ao elevador sem terem parado uma única vez para se orientarem naquele intrincado sistema de corredores. Ganharam segundos preciosos. Entraram no elevador, que subiu velozmente. Depois parou e a porta se abriu.

Não viram ninguém; o caminho até a abertura em frente estava desimpedido, o que aliviou um pouco a tensão nervosa.

— Venha! — disse Hasso, num tom surpreendentemente brando. Correram em direção à comporta interna.

Enquanto a leve escotilha começou a deslizar para o alto, Hasso disse, ofegante:

— Se você abrir a boca, nem que seja para tossir, vai se juntar a seus antepassados bem mais cedo do que imaginou. Só não sei se vão ficar contentes em conhecer um descendente tão malcriado.

Fecharam os trajes espaciais e ligaram os sistemas do suprimento interno. Mario colocou o indicador nos lábios, pedindo silêncio. Os aparelhos de rádio permaneceram desligados. Depois correram através da noite em direção à Orion.

 

O AMBIENTE que dominava aquela sala desprovida de qualquer atrativo era de pura ameaça. Cliff continuava sentado na cadeira de torturas, fortemente amarrado e vigiado por três guardas, mais do que atentos. Tourenne havia se levantado e agora estava caminhando nervosamente para lá e para cá por trás da sua escrivaninha.

De repente, deu um quarto de volta e olhou fixamente para o comandante. O rosto do deportado contorceu-se numa careta indefinível. Tourenne disse:

— Devo confessar, comandante, que estou até me divertindo com esse nosso bate-papo.

Impassível, Cliff respondeu:

— O senhor elaborou um plano até os mínimos detalhes, mas não levou em consideração o fator mais importante. Passou inteiramente despercebido!

Uma expressão de interesse apareceu nos olhos de Tourenne.

— A saber? — perguntou laconicamente.

— Como pretende levar uma nave do tipo da Orion VIII para o campo de operações dos extraterranos, se não dispõe de uma tripulação devidamente adestrada?

O espanto de Tourenne parecia autêntico. Riu baixinho e disse:

— Vejo que não tem a menor noção do grande número de especialistas que se encontram aqui em Mura. Gente perfeitamente habilitada e que está doida para voltar a dirigir uma nave espacial.

A risada de McLane era nitidamente injuriosa.

— E quando foi a última vez que um dos seus pretensos especialistas teve ensejo de manobrar uma nave de grande porte dessa classe, se me permite a pergunta?

Tourenne refletiu durante alguns segundos e depois respondeu:

— O melhor homem que eu tenho chegou aqui faz três anos.

— Qual o crime que cometeu?

Com a maior naturalidade, Tourenne respondeu:

— Estava morrendo de ciúmes do seu astronavegador e aí resolveu jogá-lo num dos pântanos de fósforo.

Cliff riu e depois contemplou o líder dos banidos com uma expressão da mais profunda comiseração:

— Três anos atrás! Deve estar mais maluco do que eu pensava, Tourenne! Se esse sujeito começar a brincar com os controles da Orion e fizer apenas duas ligações erradas: está perdido. E a nave também. E isto, se não me engano, deve alterar ligeiramente os seus planos. Pelo fato de ter representado uma única vez o papel do comandante, um ator de TV pode ser considerado um perito em navegação espacial? É mais ou menos isso que está tentando fazer, Tourenne!

Visivelmente irritado, Tourenne retrucou:

— Está querendo blefar!...

— Escute — disse Cliff, emprestando um tom entediado à voz. — Sei muito bem em que situação me encontro. Não tenho mais nada a perder. Mas se existe uma coisa que eu detesto, é gastar meu latim à toa. Se quiser, pode me mandar para o além com auxílio desses seus aparelhinhos encantadores. Sabe o que vai acontecer então? Vou voltar. Voltar como manda o figurino: plantado numa nuvem cor-de-rosa, tocando harpa, e tal e coisa. Só para assistir ao estonteante espetáculo pirotécnico com que seu renomado especialista vai liquidar o senhor e sua cambada de vagabundos ainda dentro da atmosfera de Mura. O único senão é o fim inglório daquela linda nave.

A argumentação de Cliff era por demais convincente para que Tourenne se preocupasse com os floreios irônicos e insultuosos de que vinha enfeitada. Para levar a efeito o seu plano, Tourenne precisava de uma nave de grande porte. E esta, ele já tinha. Mas as observações de McLane davam o que pensar. Se as insinuações desse major insolente não passassem de pura invencionice, não haveria problemas e o pessoal de Tourenne se encarregaria de conduzir a nave ao seu destino. Por outro lado, se correspondessem à realidade, representavam um novo obstáculo à concretização do plano: Tourenne dispunha da nave mas não dos homens capazes de dirigi-la. O banido considerou a primeira possibilidade apenas por um desencargo de consciência, pois, em momento algum, chegou a admitir que McLane talvez estivesse exagerando ou contando uma mentira deslavada. Não, este homem tinha falado a verdade, Tourenne estava convencido disso. Passou a mão pela testa franzida e perguntou, pensativo:

— Será possível que modificaram as instalações de maneira tão radical assim?

McLane encolheu os ombros e perguntou num tom cansado:

— Algum dos seus facínoras sabe como se estabelece um campo de gravitação artificial?

Tourenne mostrou-se surpreso e inquieto.

— Gravitação artificial...? Isso não existe!

— Não só existe — respondeu Cliff — mas é exatamente do que vai precisar, se quiser chegar ao esconderijo dos seus amiguinhos.

Pela primeira vez, Tourenne não acreditou numa afirmação de McLane. Furioso, respondeu:

— É mentira! É tudo mentira!

Com um ar de desprezo, Cliff retorquiu:

— Está se exaltando à toa! Espere, que vai ver por si mesmo!

— Parece que está nos subestimando, comandante! — advertiu Tourenne e fitou longamente os olhos de McLane.

— Não estou, não — respondeu o major. — Sei muito bem com quem estou lidando. Aliás, o senhor me faz lembrar aquele infeliz que quis demonstrar que chumbo era mais leve que água. Vestiu um colete de chumbo e pulou no mar, num lugar bem profundo.

— Se pensa que não estamos atualizados, está redondamente enganado — disse Tourenne. — Nossas fontes de informação são das melhores.

Obstinadamente McLane procurou despertar novas dúvidas na mente do seu adversário. E tudo que alegava correspondia à mais pura verdade. Esse fato contribuiu decisivamente para tornar suas palavras ainda mais convincentes.

— Aquela maquineta de cálculo que levamos a bordo é a última palavra em matéria de computador digital. Possui um equipamento periférico dos mais sofisticados e uma memória com capacidade para armazenar 640 bilhões de dígitos. Esse aparelho é tão sensível que vai ficar inteiramente biruta se um dos seus serventes começar a brincar no teclado. Por que não desiste de vez, Tourenne?

— De jeito nenhum, comandante!

— Sei que pode me matar na hora que bem entender...

— Correto!

— ...mas não consegue me impressionar. Agora me convenci que o senhor não passa de um sujeito tapado, bronco e limitado.

Tourenne virou-se com incrível rapidez, disposto a revidar esta injúria com os punhos cerrados. Conseguiu dominar o ímpeto, mas custou a recuperar o autocontrole. Olhou para McLane em silêncio e com uma expressão impenetrável.

— Vai pagar caro por isso. Jamais vou lhe perdoar esse insulto!

— Vejam só! — ironizou Cliff. — Que palavras patéticas! Conversou demais com o nosso poeta do espaço, não foi?

— Ainda bem que eu sou um homem comedido — disse Tourenne, baixinho.

— Pena, que o senhor seja um homem limitado. Duvido que aqueles estranhos possuam senso de humor; já os enfrentei algumas vezes e não vi o menor sinal disso. Mas se tiverem apenas um tiquinho de nada, vão se divertir em demasia com o senhor e seu bando. Vai levar uma vida ótima, Tourenne, como animal doméstico ou coisa que o valha.

Cheio de ódio, Tourenne sussurrou:

— Pela última vez, McLane...

— Agora, o mais lamentável nisso tudo é que o senhor jamais vai chegar àquelas regiões além da décima zona de distância, seu velho ridículo, peçonhento.

Tourenne estacou sob o impacto dessa ofensa. Por um instante parecia que, desta vez, o ódio prevaleceria sobre a razão. Tourenne fez menção de se lançar cegamente sobre Cliff, doido por massacrar a cara daquele atrevido. Porém conteve-se no último segundo, com um esforço quase sobre-humano. Um único pensamento lúcido o deteve naquele momento de raiva irreprimível: era preciso manter a calma, agora mais do que nunca. E fazer com que ele, Tourenne, perdesse a calma, outro não havia sido o objetivo das intermináveis provocações daquele maldito major. Mas a hora da vingança não tardaria a chegar...

Tourenne voltou à sua poltrona por trás da escrivaninha e fez um gesto rápido com a mão direita. Quase no mesmo instante, a sala ficou às escuras. Alguém acendeu um refletor. Um ofuscante feixe de luz arrancou o rosto de McLane da escuridão. A voz contundente de Tourenne fez se ouvir:

— Esquentem ele, rapazes!

Os dois projetores esféricos emergiram das trevas e pararam a poucos centímetros das faces de McLane. Com um movimento brusco, um dos guardas fechou a argola metálica em torno do pescoço de Cliff, prendendo-a no espaldar da cadeira.

Um leve crepitar! Os raios Omicron irromperam dos minúsculos ejetores e banharam a cabeça de Cliff numa claridade pálida.

— Talvez esta maneira de conversar lhe agrade mais, comandante. Não pense que me sinto perdido diante de gente tão arrogante como o senhor!

Cliff manteve-se em silêncio e cerrou os dentes.

— Aproximem mais esses raios! —vociferou Tourenne.

Cliff fechou os olhos e começou a sentir nas orelhas e nos ossos malares aquele calor escaldante que estava sendo sugerido aos nervos. Suava e arfava, porém não proferiu uma única palavra.

— Está escuro, McLane, mas eu posso vê-lo! — sussurrou Tourenne.

Cliff não respondeu e tentou ignorar aquela dor intensa.

— Não está vendo nada, McLane, mas eu sim; estou vendo os mínimos detalhes!

A dor começou a se alastrar pela musculatura do rosto.

— Vejo o pavor nos seus olhos; está fazendo feio, McLane, tão feio como algumas horas atrás aquele ridículo poeta do cosmos. Comandante McLane... sua vida de herói está chegando ao fim!

— Não tente bancar o literato, seu crápula inculto! — murmurou Cliff, só para desviar o pensamento daquela dor.

Tourenne riu baixinho.

— Está com medo! Admite que está com medo?

Até agora Cliff tinha conseguido suportar o suplício sem soltar um único grito. Sabia que, a partir de um determinado momento, qualquer dor, por terrível que fosse, não significaria mais nada. Cliff ansiava por este momento.

Tourenne parecia disposto a tirar o máximo proveito da sua tortura sádica; sussurrou em tom insistente:

— E não pense que vai ter uma morte rápida, McLane! Ao contrário, vai morrer aos poucos, bem devagarzinho, e sofrendo horrores!

Uma nova onda de dor varou o cérebro de McLane. Tourenne não tirava os olhos do rosto contorcido do comandante e ofegou, agitado:

— Vai confessar agora que está com medo?

Enquanto o suor lhe escorria profusamente pelo rosto, McLane respondeu lentamente, com fôlego pesado:

— Sim, estou com medo; com medo de um velho ridículo e venenoso, cujo único prazer consiste em torturar gente indefesa.

Tourenne ficou fora de si e berrou:

— Encostem os projetores! Encostem os aparelhos na cara dele!

O zumbido dos projetores tornou-se insuportável e as crepitações daqueles raios pareciam reverberar no crânio de Cliff. Várias coisas aconteceram quase que ao mesmo tempo, mas a mente atormentada de McLane só registrou esses fatos por alto.

Um estalo ensurdecedor emanou dos alto-falantes. Em seguida, o videofone na mesa de Tourenne iluminou-se, e uma voz gritou:

Alarma!

Um guarda aproximou-se correndo de Tourenne e disse em voz alta:

— Dois tripulantes da Orion conseguiram fugir!

Os projetores afastaram-se na mesma hora. Os nervos fustigados da pele só se acalmavam muito lentamente, mas os véus diante dos olhos de Cliff se dissiparam em poucos instantes. Alguém acendeu novamente a iluminação da sala.

— Chefe!

— Sim, o que é? — gritou Tourenne e virou uma chave.

— O culpado só pode ser Henry, porque também sumiu. Creio que se deixou enganar pelas duas moças, e aí foi obrigado a acompanhar os dois caras que fugiram. O diabo é que não os encontramos em parte alguma. Simplesmente desapareceram. Acha que devíamos insistir na busca?

Tourenne fez que não, e levantou-se. Cliff esforçou-se para manter uma expressão impassível. Dois dos seus homens tinham conseguido escapar e Cliff sabia que podia confiar na sua tripulação. E Helga e Tamara? Já tinham sido recapturadas? Ou ainda estavam livres, ocultas em algum canto daquele sistema de corredores? Tourenne aproximou-se de McLane e disse com um aperto na voz:

— Bem, McLane, reconheço que seu plano deu certo. Prolongou a nossa conversa o quanto pôde, só para ganhar tempo. O suficiente para seu pessoal poder descobrir uma saída. Muito bem, obteve pleno sucesso.

— Minha intenção foi exatamente essa — respondeu Cliff, com voz áspera.

— Só que não vai lhe adiantar coisíssima nenhuma!

— Acha mesmo? — perguntou Cliff, num tom mordaz. — Como eu conheço a minha turma...

— Muito pelo contrário. — Tourenne ignorou a resposta de McLane. — Isso me deu uma idéia luminosa!

Visivelmente excitado, Tourenne contornou a sua mesa e depois parou novamente diante de Cliff.

— Talvez tenha razão. Pode ser que eu realmente precise do senhor e da sua tripulação para chegar ao campo de operações dos extraterranos. Mas existe alguém que eu posso dispensar com a maior tranqüilidade: aquele seu escritor de araque!

Preocupado apenas com a fuga dos companheiros, Cliff não se havia lembrado de Ibsen. Agora as palavras de Tourenne desvaneceram por completo em sua última esperança. Nem tentou ocultar seu profundo desânimo.

— Ibsen vai morrer! — disse Tourenne com voz dura.

— Por quê?

— Para servir de exemplo ao senhor e seus comandados.

— Seu sádico nojento!

Tourenne engoliu mais esta injúria e continuou a expor sua idéia macabra:

— E assim, toda vez que fizerem algo para obstruir o meu plano, um tripulante da Orion vai morrer. E vai morrer de uma maneira lenta e muito pouco agradável, se me entende. É claro que não vou matá-los indiscriminadamente. Já considerei o grau de importância de cada um, comandante. Por isso Ibsen vai primeiro: é o mais prescindível. A segunda vítima deverá ser aquela agente do SSG; aquela outra moça será a terceira e assim por diante. E só lá no finzinho vai chegar a sua vez. Que acha dessa medida? Afinal, foi idealizada por um velho ridículo e venenoso!

McLane cravou os olhos cheios de ódio naquele rosto sádico e triunfante. Se não estivesse amarrado, teria estrangulado aquele demônio sem ligar para a própria sorte. Manteve-se calado. Tourenne deu uma ordem:

— Rapazes!

Dois dos homens deram um passo à frente.

— Arranquem aquele literato cósmico da sua cela e tragam-no para cá. Depois amarrem o bestalhão naquela cadeira!

Apontou para a cadeira de torturas ultramoderna. Quatro homens cercaram Cliff para soltá-lo e, ao mesmo tempo, impedir que atacasse Tourenne. Por enquanto a partida estava empatada.

Mas, já estavam buscando a vítima. No momento, ainda se podia tentar descobrir uma saída, mas o assassinato de Ibsen modificaria tudo. Cliff começou a refletir febrilmente; ainda nutria a débil esperança que uma providência salvadora ocorresse a um dos companheiros...

 

A ORION pairava na paisagem noturna de Mura sem qualquer ligação com o solo. Há poucos instantes Hasso Sigbjörnson e Mario de Monti haviam recolhido o elevador telescópico e agora entraram correndo na cabine de comando. Exaustos e ofegantes, jogaram-se nas poltronas.

— E o nosso hóspede de Mura? — perguntou Mario.

— Está trancado na câmara de amostras, gozando as delícias do sono crioterápico.

— Ótimo! Esse sujeito é importante para nós, como testemunha. Já imaginou se não tivéssemos ele para corroborar a nossa história? Ninguém acreditaria em nós, como de hábito. Se eu penso como Wamsler deve estar possesso agora... mas, vamos logo, Hasso! Prepare a partida de emergência!

Hasso sacudiu a cabeça energicamente e levantou-se.

— Você ficou maluco? — perguntou com sua voz grave. — Eu não saio daqui sem os outros!

De Monti postou-se ao lado da unidade de entrada do computador e disse:

— Mas essa é a nossa única chance, seu idiota!

Hasso voltou a sacudir a cabeça; Mario tentou argumentar:

— Quando perceberem que caímos fora, não vão se atrever a cometer mais algum desatino. Ou você acha que eles não sabem que em três tempos a Primeira Frota Tática vai escurecer o céu de Mura?

Hasso murmurou:

— Considero isso arriscado demais. Mario lançou um olhar de espanto para o companheiro e começou a programar o curso de retorno a Terra. Hasso observou:

— Não duvido nem um pouco que eles matem Cliff e os outros por ódio, após a nossa decolagem. Parece que o chefe deles, esse tal de Tourenne, é louco. Você ouviu o que os guardas disseram?

— Bem; admito isso. Mas então o que podemos fazer?

Hasso começou a andar para lá e para cá, entre a mesa de comando e o transmissor. Refletiu longamente e depois pediu a Mario:

— Ligue o aparelho radiofônico. Estou começando a me sentir melhor. Sua falta de imaginação continua a mesma, pelo visto, e isso acalma os meus nervos como quê. Quer me ajudar? Então procure estabelecer uma ligação audiovisual com a colônia penal. Preciso falar com o manda-chuva dessa joça. Quanto tempo você acha que leva para aprontar o Overkill?

Mario refletiu um instante.

— O alvo já está enquadrado. Digamos... ao todo, uns dez minutos. Você pretende...?

— Ainda não sei. Vou tentar fazer uma chantagem com eles.

Mario sentou-se na poltrona de Helga diante do transmissor e, em poucos segundos, conseguiu estabelecer a ligação que Hasso havia pedido. A tela do videofone se iluminou e...

 

Havia um intenso movimento naquela sala octogonal. Todas as luzes estavam acesas e os homens da tropa de Tourenne, trajados de negro, corriam agitados de um lado para o outro, aparentemente a esmo. Pelo visto, McLane devia ser considerado homem da maior periculosidade, pois estava cercado por um verdadeiro cinturão de guardas, todos fortemente armados. Os dois "rapazes" de Tourenne voltaram com o prisioneiro. Arrastaram Pieter-Paul Ibsen através da sala e o prenderam à cadeira, fechando as argolas metálicas em torno dos pulsos e do pescoço. Somente agora Ibsen reparou que McLane estava presente, e mais uma vez olhou para o comandante com aquele olhar profundamente angustiado e perplexo de um animal ferido. Tourenne fez um sinal aos seus homens, que se afastaram da cadeira de torturas.

— Comandante! — disse Tourenne em voz alta. — Peço-lhe que acompanhe nos mínimos detalhes a cena que vai se desenrolar daqui a instantes. Procure vivê-la, identificando-se com o ator principal. Um homem vai morrer. Certamente isso não representa nada de especial para o senhor; creio poder afirmar que, na sua vida de cosmonauta, houve inúmeras ocasiões em que o senhor se viu obrigado a assistir à morte de um homem. Mesmo assim, solicito o favor da sua atenção; garanto que o espetáculo não vai entediá-lo.

— Seu verme nojento! — chiou Cliff.

Impassível, Tourenne prosseguiu:

— Por assim dizer, vai poder assistir à sua própria morte. É a sua pré-história. Em outras palavras: terá o privilégio de morrer duas vezes. Além do senhor, quem mais pode se gabar disso?

— Não acha — disse Cliff, a garganta seca — que está mesmo doido varrido?

— De modo nenhum — respondeu Tourenne. — Pelo contrário.

Os homens deviam ter terminado os preparativos para uma nova aplicação dos raios Omicron, pois um deles fez um sinal para Tourenne.

Durante alguns segundos o olhar de Tourenne se deteve em Ibsen que ainda não dava mostras de perder o controle. Depois Tourenne olhou novamente para Cliff e disse:

— Tempos atrás, um poeta afirmou que somente na hora da morte o homem é capaz de sentir a verdadeira essência da sua vida. Ao pé da letra, isso significa que lhe estou concedendo a vida duas vezes.

Exibiu um sorriso sardônico, e acrescentou:

— Não acha que a minha generosidade merece a sua gratidão?

Com a voz apertada, McLane respondeu:

— Se merece! E se algum dia eu conseguir escapar daqui com vida, vou bolar algo todo especial para você, Tourenne. E lhe garanto que vai ser tão fascinante, que, em comparação à morte de Ibsen, não passará de um ato de misericórdia.

Tourenne riu como se Cliff tivesse contado uma piada das mais picantes.

— Excelente idéia! Pena que jamais vai poder realizá-la. Tudo pronto, rapazes?

O guardas acenaram. Tourenne voltou à sua mesa e girou uma chave. Os dois projetores aproximaram-se do rosto de Ibsen, emitindo aquele zumbido nefasto. Cliff viu que Ibsen retesou a musculatura do queixo. Este homem já havia se conformado com o inevitável e agora aguardava em silêncio a chegada da morte. No mesmo instante, uma voz ressoou pela sala.

 

— Posto externo para chefe. Mensagem radiofônica da Orion! Rápido!

Tourenne desligou os projetores e apertou uma barra abaixo do videofone. O rosto de Hasso se estabilizou na tela. Cliff e Ibsen não podiam vê-lo, mas reconheceram imediatamente aquela voz. Cliff pensou que fosse desmaiar de alegria.

— Quero falar com o patife-mor! Aquele que se intitula chefe desses canalhas! Apresente-se, Tourenne! Ah! Resolveu aparecer, seu bandido megalomaníaco?

Cliff ficou pasmo. Jamais desconfiou que Hasso fosse capaz de falar desse modo; seu velho amigo estava blefando como quê.

— O que quer? — perguntou Tourenne, alarmado.

— Antes de mais nada quero saber se estou realmente falando com o aborto da natureza número um de Mura?

Tourenne ergueu as sobrancelhas, profundamente indignado.

— Responda logo, senão meia dúzia vai voar pelos ares já, já!

"Overkill", pensou Cliff, quase estourando de contentamento.

— Aqui fala a administração central de Mura, Tourenne ao microfone. O que deseja?

Hasso devia estar seguindo um plano cuidadosamente traçado; pois sua resposta foi rápida e clara.

— Como já sabe, estamos a bordo da Orion. Aprontei a nave para a decolagem e ativei a pilha atômica. Dispomos de um aparelhinho que atende pelo nome de Overkill. Sabe o que isso significa?

Tourenne assustou-se, enquanto Cliff mal conseguia conter o riso.

— Fale! — murmurou Tourenne, visivelmente preocupado. — O que pretende fazer?

— A nave está abarrotada de energia. Se eu virar uma certa alavanca, o projetor Overkill começa a funcionar e em três tempos a nave explode. Considerando o nosso potencial energético, isso vai lhe custar mais ou menos a metade do planeta. Bem entendido: aquela metade, na qual se encontra esse seu depósito de imundície.

— Dentro de alguns minutos, meu pessoal vai chegar aí...

A risada de Hasso era contundente.

— Dentro de alguns minutos eu vou ligar o projetor. Se dentro de dez minutos a totalidade da tripulação da Orion não estiver sã e salva a bordo, metade desse planeta malcheiroso vai pelos ares. Se for sensato, vai dispensar uma demonstração; garanto que lhe proporcionaria muito pouco prazer. Entendeu tudo?

Tourenne mordeu os lábios e recuou lentamente da mesa.

— Escute... meu pessoal...

— Escuto coisa nenhuma! — respondeu Hasso, num tom incisivo. — Daqui a exatamente quinze minutos eu faço explodir a Orion. E olhe que a precisão do cronômetro de bordo é de um milésimo de segundo!

— Estabelecemos uma zona de bloqueio em torno da Orion — disse Tourenne. — Eu posso...

Hasso devia estar sacudindo a cabeça, pois luz e sombra se alternavam no rosto de Tourenne.

— O que o senhor pode, eu lhe digo depois. Se a tripulação não estiver a bordo dentro de quinze minutos, a nave vai pelos ares. E é só.

A tela se apagou. Cliff teve que se controlar para não soltar um berro ou praticar um outro desatino qualquer. Parecia que Hasso, o velho Hasso, havia conseguido salvar a situação. Tourenne olhou longamente para Ibsen e depois se dirigiu a McLane, falando lentamente, como se precisasse catar as palavras uma por uma:

— Só me resta reconhecer que ganhou este round, McLane. Pode ir! Mas fique sabendo que a luta ainda não terminou!

Incrédulo, McLane levantou a cabeça e viu que os guardas estavam soltando Ibsen. O escritor ergueu-se da cadeira e conseguiu manter uma boa postura; apenas os seus joelhos tremiam.

— Pois vá, McLane, e leve sua tripulação!

Cliff ainda não estava acreditando no que tinha ouvido.

— Está falando sério? Estamos livres? — perguntou, inseguro.

Tourenne acenou.

— Estão, sim. Apenas reformulei minhas disposições. Talvez mais tarde venha entender melhor. Agora pode ir. Garanto a sua segurança. O senhor e sua tripulação não serão molestados.

McLane consultou o relógio e juntou-se a Ibsen. Colocou o braço no ombro de Pieter-Paul e os dois se dirigiram à saída daquela sala octogonal tenebrosa. Não viram o ar enigmático de Tourenne...

 

Sigbjörnson e De Monti sorviam café quente e observavam o avanço inexorável dos ponteiros triangulares do cronômetro de bordo.

— Uma coisa eu não entendo! — disse Mario e apertou um botão, acionando os servo-motores do elevador telescópico, que começou a baixar.

— O quê? — perguntou Hasso.

— Por que será que não vigiaram a nave?

Hasso olhou novamente para os ponteiros.

— Provavelmente não contaram com a possibilidade de que alguém pudesse escapar daquelas celas. Além disso, não deve ser muito do agrado deles, passar a noite ao relento.

— É, deve ser isso.

— Faltam quatro minutos! — disse Hasso, olhos fitos no triângulo negro do ponteiro dos segundos.

Duas lâmpadas começaram a piscar; Mario reconheceu o significado desse sinal e berrou:

— Hasso! Estão chegando!

Hasso ergueu-se rapidamente e disse, baixinho:

— Deu certo, Mario! Conseguimos libertá-los!

Segundos depois, o pequeno elevador interno trouxe a primeira leva: Helga, Tamara e Ibsen. Sem perda de tempo, Helga correu para a mesa do transmissor, enquanto Ibsen se largou na primeira poltrona que encontrou. Cliff e Atan chegaram em seguida. Hasso lançou um olhar significativo para Cliff e desceu rapidamente para a casa de máquinas.

— Do comandante para todos! — gritou Cliff. — Ocupem os seus lugares! Aprontar partida de emergência!

— Computador programado! — avisou Mario laconicamente.

— Precisamos decolar antes que aquele miserável mude de idéia. Tudo pronto? Ligar geradores! Ultra-impulso!

O videofone se aclarou e o rosto de Hasso apareceu na tela.

— Tudo pronto, chefe! — disse Sigbjörnson.

Cliff sentou-se diante do painel de instrumentos e começou a mexer em alavancas e botões como um possesso.

— Atenção, Hasso! Agora!

Apertou o botão de decolagem. O computador digital havia sido programado para realizar todas as operações necessárias para lançar a nave verticalmente para o alto, partindo da posição de pouso dez metros acima do solo. Os neutralizadores de gravitação começaram a uivar, combatendo o tremendo empuxo da aceleração e evitando que a tripulação fosse esmagada nas suas poltronas. A Orion decolou abruptamente, lançou-se verticalmente, mas estacou. Da casa de máquinas, vieram os silvos agudos de motores supersolicitados. Combatiam aquele fenômeno a plena potência, mas a nave permaneceu imóvel a uma altura de cinqüenta metros. Cliff interrompeu o processo de decolagem e a Orion baixou lentamente até ficar novamente pousada no sistema de raios antigravitacionais. A intensidade dos ruídos decresceu imediatamente. Cliff olhou para a tela do videofone e perguntou:

— Hasso, o que é que há com os nossos propulsores?

Hasso respondeu, irado:

— Não há nada; estão na mais perfeita ordem. Só que estavam em vias de se derreterem. Por que você freou?

De Monti viu as lâmpadas de aviso acesas nos instrumentos do computador e exclamou, perplexo:

— Que diabo significa isso?

— Mas por que razão não conseguimos nos desprender? — quis saber Atan, confuso, mexendo a esmo nas suas aparelhagens.

Ibsen já tinha recobrado a voz e apressou-se em dizer:

— A mesma coisa aconteceu comigo na Lancet: tentei decolar duas vezes, mas só consegui subir uns poucos metros. Algo me reteve preso ao solo, mas não sei o que foi.

Hasso e Cliff entreolharam-se.

— Você iniciou a manobra de decolagem corretamente? — perguntou Hasso, desconfiado.

Cliff limitou-se a acenar em silêncio. Depois, disse:

— Vamos tentar mais uma vez. Libere toda a energia de que você possa prescindir.

Hasso balançou a cabeça grisalha e resmungou:

— Liberar a energia latente tão perto do solo é loucura final, Cliff!

— Não temos alternativa, Hasso! Vamos ter que correr esse risco!

No mesmo instante, Atan gritou:

— Hei! Já descobri o que nos prende. Estamos mergulhados num campo de força eletromagnético dos mais estranhos. Parece inacreditável, mas é a mais pura verdade: esse campo está usando a própria Orion como fonte de energia!

E apontou para um instrumento, cujo ponteiro havia atingido uma marcação vermelha, em cima da qual parou, oscilando ligeiramente.

— Estamos perdendo energia! — gritou Hasso, agitado. — O nível da reserva está baixando com uma rapidez assustadora e olhem que não estamos consumindo praticamente nada! A nossa decolagem desencadeou esse processo!

Hasso tinha razão. Os instrumentos no painel de McLane acusavam inequivocamente aquele escoamento inexplicável.

— Mario, vá ao posto de combate e verifique a reserva de energia do Overkill!

Mario saiu na disparada.

— Isso é uma armadilha para naves espaciais! — disse Pieter-Paul Ibsen e levantou-se. — Há alguma coisa que eu possa fazer, comandante?

— Pode, sim — respondeu Cliff. — Guarde suas observações espirituosas. Gostaria de não ouvir mais nenhuma hoje.

Desligou todas as máquinas e só manteve ativados os raios antigravitacionais, que impediam que a nave pousasse diretamente no solo. Aquele ponteiro, que Atan havia apontado, deslocou-se e fixou-se na marcação zero.

— O próximo lance pertence a Tourenne! — observou Helga.

Pelo visto, Tourenne ainda guardava algumas surpresas. A tripulação manteve-se em silêncio, à procura de uma explicação para aquele estranho fenômeno. Depois Mario de Monti retornou à cabine de comando. E o que relatou não era nada encorajador.

 

Não restava dúvida que Tourenne havia feito um lance decisivo nesse jogo de vida ou morte. Era louco, mas só no que tangia ao objetivo do seu plano desvairado. O plano em si era de uma simplicidade genial. McLane agarrou o microfone e disse em voz alta:

— Do comandante para a tripulação: controlem-se e não percam a cabeça. Vamos usar a massa cinzenta para descobrir uma saída para essa enrascada. Lembrem-se de que até hoje sempre nos ocorreu a idéia salvadora. Quando chegar a hora, precisamos agir em frações de segundos. Cada qual deve prestar a máxima atenção naquilo que o outro disser. E se disser algo que lhes pareça estranho, não deixem isso passar. Pelo contrário, agucem o raciocínio e procurem decifrar o significado dessa observação. Pode ter uma importância fundamental.

— Entendido — disse Hasso. — Está pensando em algo específico?

— Não estou, não — respondeu Cliff. — Não sei de nada. Só sei que vamos ter que aguardar o próximo lance de Tourenne.

Ibsen, que se considerava membro da tripulação, também disse "entendido".

— É incrível, Cliff: todos os instrumentos acusam a mesma coisa! — disse Mario.

Cliff ergueu as sobrancelhas.

— Acusam o quê, Mario?

— A pilha atômica está produzindo energia em grande quantidade. Só que não vai nada para os acumuladores, que estão a zero. Tudo o que a pilha gera, se escoa na mesma hora.

— Isso por acaso significa — quis saber Tamara, baixinho — que o pessoal de Mura descobriu um processo que lhes permite roubar a nossa energia lá de fora, sem qualquer ligação direta com a pilha?

McLane olhou para Tamara e acenou.

— É o que está acontecendo. Vamos tentar mais uma vez. Será que dá, sem que a pilha entre em ebulição?

— A propósito: a energia para o nosso armamento, inclusive o Overkill, também está se escoando.

— Entendi. Já bloqueou tudo?

— Evidentemente! — respondeu Mario, em tom ofendido.

Parecia querer acrescentar alguma coisa, mas depois resolveu não sobrecarregar mais ainda a mente já bastante atormentada do seu chefe.

Ibsen postou-se ao lado de Cliff e disse:

— Comandante... caímos numa armadilha espacial. Lá fora deve haver uma instalação que, por assim dizer, suga a nossa energia e que utiliza essa mesma energia para erigir uma campânula por cima da nave. Quanto mais energia produzimos, tanto mais esse pequeno campo é reforçado, mantendo-nos presos ao solo.

— É — disse Cliff. — A coisa deve ser mais ou menos essa. E isso explica a tranqüilidade com que Tourenne nos concedeu a permissão para voltarmos a bordo.

— E se empregarmos o Overkill...? — perguntou Helga. Notou pelas reações de Cliff e Mario que sua sugestão não tinha sido das melhores.

— Se ativarmos o projetor, isso nada mais significa do que ceder energia de uma outra forma. Vai se escoar do mesmo jeito, sem causar o menor dano. Aliás, se conhecêssemos o princípio de funcionamento daquela instalação, disporíamos de uma proteção maravilhosa contra o Overkill.

— Então só resta uma coisa a fazer! — gritou Atan Shubashi e ergueu-se de um pulo.

— O quê? — perguntou o comandante.

— Desembarcar e procurar! Precisamos encontrar e destruir a fonte eletromagnética daquela instalação!

Cliff deu uma risada meio rouca.

— E você acha que esses caras vão nos deixar perambular por aí? Não vão ficar de braços cruzados enquanto liquidamos com o seu segredinho!

— É, besteira minha! — Atan voltou cabisbaixo ao seu lugar.

— Cliff!

O comandante virou-se e olhou para Helga.

— Vai entrar um chamado audiovisual. Aperte a tecla número quatro!

Cliff já imaginava quais seriam os próximos passos de Tourenne. Calcou a tecla com o polegar e fitou o rosto de Tourenne na tela do videofone. Tourenne contemplou Cliff com um ar de superioridade.

— Olá, McLane, como tem passado? Cliff ia estourar de raiva, mas controlou-se e respondeu em tom afável:

— Muito bem, obrigado. Principalmente depois que fiquei privado da sua agradável companhia. Mais alguma coisa que possa fazer?

— Pode sim. Que tal uma tentativazinha?

Cliff manteve-se calado. Mais uma vez, os dois homens travaram um duelo silencioso com os olhares. Por fim, Tourenne soltou uma curta risada.

— Não quer tentar decolar?

Silêncio. Tensa e amargurada, a tripulação acompanhava esse estranho diálogo. Lembraram-se das recomendações do comandante e puseram-se a refletir.

— É muito sensato de sua parte, pois seria totalmente inútil. Estou convencido de que ficou bastante impressionado com o segredo tecnológico da minha armadilha espacial.

— Correto — disse Cliff.

— O que mostra que os homens especialistas não são tão atrasados como andou imaginando, não é?

— Inventou mais uma maneira de atormentar as pessoas, seu sádico?

— Está me lisonjeando, McLane! — respondeu Tourenne.

— Por que nos fez voltar a bordo se já sabia que não ia nos deixar decolar?

Com ar sério Tourenne respondeu:

— Isso foi uma brincadeira que bolei. Uma espécie de gato e rato, entende? Afinal, eu não podia tolerar que aquele moleque, aquele seu mecânico de bordo grosso como quê...

— Hasso! — interrompeu Cliff. — Espero que você também se lembre disso!

— Pode ficar tranqüilo — respondeu Hasso da tela do outro videofone — que eu não vou esquecer coisa alguma!

— ...fizesse voar pelos ares a bela Orion VIII. E agora seja razoável, McLane. Vou lhe propor um negócio.

— E quem é que vai sair lucrando?

— Nós dois — disse Tourenne, solícito. — Com sua permissão, um grupo dos meus homens vai subir a bordo e aí o senhor lhes explica as instalações técnicas da nave. Em troca, prometo que não vou mais matá-los. Nós partimos, e deixamos vocês aqui em Mura.

— Acha que sou tão ingênuo a ponto de acreditar numa só sílaba do que diz? — perguntou Cliff. — Como vou saber que vai cumprir sua palavra?

— Se acredita ou deixa de acreditar, é problema seu. Não tem alternativa, McLane!

Tamara devia estar pensando num plano qualquer, pois disse, baixinho, atrás de Cliff:

— Não temos escolha, comandante! | Aceite a proposta!

Cliff não respondeu. Mas três segundos depois, disse, com evidente relutância:

— Está bem, Tourenne. Mande seu pessoal.

— Ótimo! — foi a resposta. — Já estamos a caminho. Ah! Antes que me esqueça, pode-se poupar o trabalho de procurar suas armas. Estão em nossas mãos!

A tela se apagou. Hasso esperou até que Helga tivesse cortado a ligação e depois ergueu o braço direito. Empunhava uma reluzente HM-4.

— Todas menos essa! — disse Hasso. Mario murmurou amargurado:

— O idiota se esqueceu desse detalhe! McLane acenou.

— E isso vai lhe quebrar o pescoço. Prestem atenção... precisamos separá-lo dos outros. Vou tentar fazer isso, quando o levar ao posto de combate!

Shubashi não concordou.

— Não, Cliff, lá não. Procure fazê-lo no elevador. No interno, bem entendido, não no telescópico. Esse nós podemos bloquear com um simples aperto de botão.

— Você tem razão, Atan! — disse Cliff McLane. — Vocês têm que me empurrar junto com ele para dentro da cabine. Aí vai levar tanto safanão que em três tempos manda abrir essa maldita armadilha.

— Isso pode funcionar — disse Tamara, pensativa — desde que ele não traga um batalhão de guarda-costas.

Helga lembrou um pormenor importante:

— Creio que vai dispensar os capangas, pois deve achar que estamos completamente desarmados.

— Parece que essa vai ser a nossa última chance — disse Mario, sombriamente — vou empregar meus punhos com imenso prazer.

Ibsen abriu os olhos e apontou o indicador estendido para o alto.

— Comandante — disse lentamente — sinto necessidade de me redimir perante todos e a minha própria consciência. Permite que eu faça uma das minhas observações espirituosas?

Cliff dirigiu um olhar benevolente para Ibsen. Aquele homem não tinha passado pelo treinamento brutal dos comandantes e no entanto havia suportado as dores mais cruciantes com um estoicismo digno de todos os louvores. Não, não havia por que condenar Pieter-Paul Ibsen.

— Pois não! — disse Cliff.

— Considerem o seguinte problema: um homem deve arremessar um objeto frágil, de grande valor, através de uma placa de vidro duro e resistente sem, no entanto, danificar aquele objeto... reparem que o nosso problema é semelhante. E o que é que esse homem tem a fazer? Primeiramente, estilhaçar aquele vidro com uma pedra, ou seja, um objeto sem valor algum. Depois poderá lançar seu objeto precioso pela abertura, sem destruí-lo. Entenderam a comparação?

Cliff olhou para Ibsen com ar radiante.

— Claro que entendi! Obrigado, Piepo! Mario!

— Entendi!

— Os demais... entenderam?

Todos tinham entendido. Ao menos assim afirmaram. Hasso subiu da casa de máquinas e entregou a arma a Cliff.

— Olhe o sinal luminoso! — avisou Helga. — Baixe o elevador telescópico!

Cliff acenou e acionou uma chave. O dispositivo hidráulico entrou em funcionamento, baixando a tromba metálica ao solo.

— Chegaram! — disse Helga, sem necessidade alguma.

Realmente, de bobo Tourenne não tinha nada. Descobriu imediatamente como ligar o interfone na cabine do elevador ao sistema geral de bordo, e agora sua voz fria ressoava dos alto-falantes:

— Atenção, McLane! Vamos subir! E nada de bobagens. Lembre-se de que estão desarmados, o que não é bem o nosso caso!

Cliff fez um sinal para Mario e o subcomandante fez o elevador subir. Tourenne e seus capangas chegaram ao corredor circular na parte inferior da nave e levaram alguns segundos até descobrirem o elevador menor que os levaria à sala de comando. Mario sussurrou:

— Parece que vai dar certo! O banido não está lembrado da arma!

Cliff acenou, tenso.

— Calma! — recomendou, baixinho. — E esperem até que eu dê o sinal!

Permaneceram nos seus lugares, olhos fitos na porta do elevador. Tourenne apareceu, seguido de perto por dois guardas fortemente armados. Mais três homens surgiram na pequena porta; deviam ser os "especialistas". Os dois guardas plantaram-se diante de Cliff, apontando os projetores para o peito do comandante. Ninguém falava. Tourenne examinou rapidamente a instalação da cabine de comando; parecia ter encontrado o que havia imaginado. Interrompeu bruscamente seu passeio de inspeção e parou a menos de um metro de Cliff.

— E agora, meu amigo — disse em tom benévolo — certamente vai me dizer, quem ficou com a arma que surrupiaram daquele garoto avoado?

Cliff franziu a testa e perguntou com ar inocente:

— Que arma?

— Deixe de besteira, major! — respondeu Tourenne. — Acha mesmo que eu sou tão bobo assim? Nem por um único segundo me esqueci daquela arma!

— Que arma? — Cliff repetiu a pergunta com uma expressão de espanto. A tripulação prendeu a respiração.

— Eu sabia o que essa arma representava para o senhor — disse Tourenne, com um sorriso malicioso. — Por isso mesmo não dei a entender antes, que me lembrava do pormenor. Sei lá se essa revelação prematura não o teria levado a cometer um ato desesperado. Agora não corro mais esse perigo. Agora estou aqui para impedir que tal coisa aconteça.

Mais uma vez, Cliff estava encurralado. Imóvel, fitava Tourenne e seus acompanhantes silenciosos. Esse homem parecia falar por todos os deportados deste mundo; talvez fosse isso mesmo que o obrigava a falar ininterruptamente.

— Como é? — disse, já em tom mais ríspido. — Vamos logo! Quem ficou com ela?

McLane ainda vacilou. Tourenne lançou um rápido olhar para Helga e Tamara e disse, em tom gélido:

— Se não disser imediatamente onde se encontra essa arma, vou mandar arrancar a roupa de todos, até ficarem nus em pêlo. Receio que isso possa vir a ser algo embaraçoso para as duas senhoras!

McLane deixou a arma escorregar da manga, agarrando-a delicadamente pela co-ronha. Impassível, entregou o pesado projetor a um dos guardas. Bem-humorado, Tourenne exclamou:

— Bravo! Trata-se de um cavalheiro!

Nada mais nos impede de começar com a demonstração. Por favor, comandante McLane, a palavra é sua.

Cliff começou a falar, só para ocultar seu desapontamento sem fim.

— Tourenne — disse, controlando a voz com dificuldade — estamos mais uma vez à sua mercê. Mas aqui a bordo o senhor é apenas um estranho e exijo que se comporte com um mínimo de decência, senão vou contar lorotas tecnológicas aos seus homens. E aí acaba por destruir a nave no duro. Portanto, está avisado: quero muito respeito!

— Não precisa me dar lições de boas maneiras, major — respondeu Tourenne, num tom displicente.

Cliff virou-se e apontou para sua poltrona.

— Bem, creio que devíamos começar pelas coisas mais simples. Vou mostrar como se realiza uma decolagem normal. Preste atenção nas manobras e acompanhe as diversas funções nos instrumentos desse painel. Qual dos senhores é o astronavegador?

Dirigiu-se aos três técnicos, que até agora vinham mantendo um silêncio total.

— Eu! — disse um deles, lacônica- I mente.

— Então me faça o favor e fique ao lado do meu subcomandante; lá o senhor pode observar os trabalhos no elemento de entrada do computador. Perfeito, Mario?

— Vou programar um curso hipotético para Umbriel, está bem assim?

O segundo técnico observou o colega que se afastava e depois disse a Tourenne:

— Quero ir à casa de máquinas.

— Hasso — disse Cliff e reparou o aceno do engenheiro — queira ter a bondade de dedicar sua atenção a este cavalheiro.

— Com todo o prazer! — asseverou Hasso, em tom suave.

O terceiro dos técnicos resolveu externar seu pedido:

— E eu quero me familiarizar com a técnica das manobras.

Com um gesto Cliff o chamou para junto de si e perguntou a Tourenne:

— E o senhor, não tem também um desejo especial?

Tourenne sacudiu a cabeça.

— Eu não. Se não tiver objeção, vou ficar grudado no senhor e observar todos os seus movimentos.

Cliff nada respondeu, e depois deu uma ordem:

— Do comandante para a tripulação: ocupar posições para decolagem.

Um dos técnicos dirigiu-se à casa de máquinas; claro que conhecia as plantas de uma nave espacial e encontrou o caminho com facilidade. Cliff sentou-se, mas não afivelou os cintos de segurança.

— A propósito, Tourenne: meus parabéns pela campânula energética que erigiu por cima da nossa nave. É verdade que serve a um fim execrável, mas não deixa de ser uma obra-prima. Qual é o diâmetro dela?

Desconfiado, Tourenne respondeu com outra pergunta:

— Para que quer saber isso?

— Olhe, daqui a instantes vai assistir a uma decolagem. Mas eu preciso saber até que altura eu posso deixar a nave subir, para que não esbarre no fecho da sua campânula. Isso implicaria num superaquecimento dos propulsores que se derreteriam na mesma hora. Aliás, será uma ótima oportunidade para observar a precisão dos nossos freios automáticos.

Tourenne dirigiu-se ao técnico que se encontrava ao lado de Cliff.

— Isso interessa a você, Joe?

O homem acenou com veemência e respondeu com uma voz desagradável:

— Claro que interessa, chefe!

Sem poder esconder o orgulho, Tourenne explicou:

— Essa campânula tem um diâmetro de quinhentos e oitenta metros; o vértice, ou fecho, já que parece preferir esse termo, encontra-se a oitocentos e sessenta metros acima do solo.

Cliff chamou a atenção de Atan e disse:

— Atan, calcule o ângulo de ataque e a potência necessária para a subida até o fecho!

Atan não entendeu o que Cliff tinha em mente. Mas depois lembrou-se da comparação que Ibsen havia feito, e percebeu o olhar insistente de McLane. Rapidamente pôs-se a operar na sua calculadora de mesa e segundos mais tarde entregou os resultados ao comandante.

— Shubashi! — alertou Tourenne, — Daqui por diante, faça logo o que lhe mandam. Não vá pensar que vou tolerar resistência passiva!

Atan resmungou algo ininteligível e dedicou-se novamente às suas telas e chaves. Desconfiado, o técnico perguntou:

— Para que precisa saber o ângulo de ataque?

McLane virou-se para Mario, que estava esperando ansiosamente por uma deixa.

— Para a neutralização dos campos de força...

Mario entendeu imediatamente. Agora McLane dirigiu-se a Ibsen, perguntando:

— Diga-me uma coisa. Já explorou a idéia do equilíbrio de forças nos seus vôos literários?

— Vez por outra — respondeu Ibsen, em tom alegre. — Esse fenômeno físico permite bolar uma série de coisinhas que tornam a narrativa bem mais interessante.

"Tomara que a turma tenha entendido tudo", pensou Cliff, mais tenso do que nunca. Ouviu Tourenne dizer:

— Pare com essa lengalenga! Quero ver logo essa decolagem!

Do fundo da sala de comando, veio o matraquear do computador.

— Terminou a programação, Mario? — perguntou Cliff.

— Tudo pronto, chefe!

Cliff agarrou o microfone do intercomunicador e disse:

— Do comandante para casa de máquinas e primeiro sistema de segurança: cinco segundos após o inicio da contagem regressiva, abastecer LA Um com carga total. Está claro isso?

— Está claro! — responderam Hasso e Mario, em tom indiferente.

— O que significa LA Um? — quis saber o técnico.

— É a nossa abreviatura para o primeiro dispositivo de Lançamento Automático — disse Cliff, mostrando os dentes. — Estou dizendo que vai longe com esses seus especialistas, Tourenne! Talvez consigam percorrer um quilômetro, se tanto.

— Foi por isso que o contratei, McLane! — retrucou Tourenne sarcasticamente.

— Vamos logo, continue!

— Do comandante para o segundo sistema de segurança: tudo pronto?

Lá do computador Mario respondeu:

— Mas...?

Cliff virou -se rapidamente e berrou:

— O que você ainda está fazendo aí? Vá imediatamente ao seu posto!

Mario fez uma porção de gestos apaziguadores, dizendo sem parar:

— Está bem... está bem... está bem... já estou indo!

— Ocupem as posições!

— Um momento! — disse Tourenne a Mario, que já tinha agarrado a maçaneta da porta do elevador. — Onde pensa que vai?

Mario apontou para baixo.

— Para o posto de observação no sistema de segurança, é claro!

— E para quê?

McLane olhou de relance para o cronômetro de bordo e depois se virou para Tourenne. Sacudiu a cabeça lentamente, como se estivesse profundamente entristecido e disse em tom quase amigável:

— Está lembrado do que eu lhe disse a respeito da evolução tecnológica nos últimos três anos? Aí tem um exemplo disso. Naves de grande porte, do tipo da Orion, passam por um momento dos mais críticos na primeira fase da decolagem. Para ser mais preciso, na hora em que se desprendem do solo. É preciso controlar constantemente o consumo de energia e as diversas manobras. Para maior segurança, esse controle é realizado por dois sistemas completamente independentes um do outro. E é por isso que alguém tem que ficar na sala de controle. Situa-se no convés inferior, onde, aliás, confluem todas as demais redes energéticas de bordo. O meu subcomandante não quer outra coisa, senão ocupar esse posto, de vital importância.

— Está bem — disse Tourenne — faz sentido.

Chamou um dos guardas:

— Você vai com ele, para impedir que cometa algum desatino!

— Lógico, chefe! — respondeu o homem carrancudo.

Mario e o guarda deixaram a cabine de comando. Pouco depois, se encontravam na câmara de ejeção da Lancet e Mario começou a explicar as inúmeras operações necessárias para a realização de um controle perfeito da decolagem. Apontou a esmo para diversos instrumentos e mostradores e, de passagem, ligou o intercomunicador de bordo. Finalmente abriu o diafragma de vedação acima do poço de lançamento da nave auxiliar. Uma lâmpada de aviso acendeu-se na mesa de Cliff.

— Hasso... está tudo entendido?

— Tudo claro! — respondeu Hasso, aparentemente mal-humorado. — Propulsão pronta para a partida!

Atan ligou o computador.

— Cinco segundos para a contagem regressiva! — avisou.

Algo perplexo, Tourenne observou:

— Pensei que a contagem regressiva fosse realizada pelo seu computador digital, por meio de impulsos automáticos.

— Claro! — respondeu Cliff. — É só prestar bem atenção, que vai entender tudo num instante.

Uma voz impessoal começou a contar:

— Dez... nove... oito...

A tripulação da Orion retesou os músculos. Sabiam o que iria acontecer quando a contagem regressiva chegasse a cinco. Estavam em vias de realizar uma decolagem, mas nem de longe a "decolagem normal" que Cliff havia prometido a Tourenne...

— ... seis... cinco... quatro...

A contagem de "cinco" um leve abalo percorreu a nave. No mesmo instante, a cabeça de Mario desapareceu do videofone que Cliff e Tourenne estavam observando. A tela se apagou.

— Droga! — rosnou Cliff. — Volta e meia essa tela idiota pifa! Depois vou ligar uma outra...

— ...dois... um... zero!

Ao quinto impulso, Mario puxou a alavanca de ejeção. Como uma bala, a Lancet, abarrotada de energia, foi projetada verticalmente para cima e atingiu a campânula energética exatamente no fecho, onde os campos de força dos diversos projetores confluíam. Um ofuscante clarão rasgou o céu.

O anteparo se desfez e antes que os projetores pudessem produzir energia em quantidade suficiente para reconstituí-lo, a Orion se lançou pela abertura, atravessando a chuva de escombros da Lancet e desapareceu na escuridão.

 

O RELUZENTE disco prateado continuou a subir, acelerando incessantemente. Ouvia-se o zumbido grave dos absorvedores. Qualquer que fosse a aceleração imprimida à nave, essas máquinas possantes eram capazes de manter constantemente em 1g a gravitação no interior da Orion. Tenso como uma mola de aço, McLane estava sentado diante da mesa de comando, observando a tela que mostrava o planeta. Mura afastava-se continuamente, tornava-se cada vez menor, até se transformar num corpo esférico perdido no espaço. Aflito, Tourenne perguntou:

— O que foi isso?

— Uma decolagem experimental! — respondeu Atan, lá da mesa do astronavegador. Seu rosto denotava o estado de tensão em que se encontrava. Tourenne apontou a arma para as costas de McLane.

— Isso não foi uma simples demonstração! O que está fazendo McLane?

Friamente Cliff respondeu:

— Se me matar agora, comete suicídio. A nave explode feito uma bomba!

Nem se virou e disse no microfone do intercomunicador de bordo:

— Do comandante para casa de máquinas: bloquear energia latente! Rápido! Desligar todos os absorvedores... evitar inundação energética!

Todos entenderam. McLane e sua tripulação sabiam o que aconteceria em seguida. Os absorvedores seriam desligados temporariamente e, com isso, a gravitação artificial a bordo deixaria de existir. E como os propulsores estavam trabalhando em ponto morto, não imprimindo qualquer aceleração à nave, tudo se tornaria imponderável por um curto período de tempo. Agarraram-se da melhor forma possível. Uma violenta pancada sacolejou a Orion.

O abalo pegou Tourenne, o guarda e o técnico de surpresa. Perderam o equilíbrio e começaram a girar. Bruscamente Hasso reativou os absorvedores. A oportunidade era ótima. McLane levantou-se e viu que a arma não estava mais apontada para ele e sim, para o teto da cabine. Sem perda de tempo desferiu um violento soco, que atingiu Tourenne abaixo do esterno. Cego de dor, o deportado começou a cambalear. Tamara aproximou-se de lado e desarmou Tourenne com um certeiro golpe de caratê. A arma resvalou pelo piso, pois Hasso estava alterando constantemente a posição da nave, manejando os controles de emergência na casa de máquinas, ora aumentando ora diminuindo a potência dos absorvedores. A Orion bamboleava loucamente através do espaço, enquanto a luta a bordo continuava acirrada. Tamara chutou a arma, que desapareceu de vista. McLane agarrou Tourenne pela gola da jaqueta e ergueu o punho.

— Com as mais cordiais recomendações da tripulação da Orion! — disse e desferiu o golpe sem a menor contemplação.

Tourenne deu um gemido rouco, girou em torno do próprio eixo e estatelou-se no chão.

Tamara soltou um grito lancinante:

— McLane! Cuidado!

Cegamente Cliff lançou-se para a frente. O guarda, que Helga e Atan estavam tentando dominar, conseguiu livrar o braço e apontou a arma para o comandante. O tiro passou chiando rente à cabeça de Cliff, estilhaçando algum instrumento nos fundos. Agora Ibsen resolveu intervir. Deu um salto por cima da poltrona, à qual se tinha agarrado durante as manobras audaciosas de Hasso, e parou, avaliando rapidamente a distância. Com o canto da mão, acertou o guarda na carótida. O homem tombou pesadamente ao chão, sem um gemido sequer, A cabine de comando estava libertada.

— Vamos, Atan, para a câmara da Lancet. Ajude Mario e Hasso!

Shubashi saiu na disparada em direção ao elevador. Cliff olhou ao redor. Pelo visto, Ibsen tinha feito o serviço completo. O outro técnico também jazia no chão e não se mexia. Pieter-Paul Ibsen esfregava a mão e riu para Cliff.

— Vou para a sala de máquinas — disse Cliff e fez menção de seguir Atan.

A voz de Hasso o fez parar.

— Não é preciso, Cliff, meu amigo já está dormindo.

Cliff entrou no elevador junto com Ibsen e os dois correram para a câmara de ejeção da Lancet...

Não foi à toa que Tourenne havia destacado o mais forte dos seus guardas para acompanhar Mario. O páreo ia ser duro. Meio segundo após a ejeção da nave auxiliar, Mario conseguiu agarrar a arma daquele brutamontes trajado de negro. Inutilizou o pesado projetor, entortando o cano com a maior facilidade e agora estava engalfinhado num violento corpo-a-corpo.

Mario acertou um soco no peito do adversário e não teve que esperar muito pelo troco. Levou uma violenta pancada no ouvido e bateu com a cabeça contra a luva de uma tubulação que corria ao longo da parede. Ouviu passos... Ibsen, Cliff e Atan entraram correndo na câmara de ejeção. Ibsen terminou a luta, torcendo o braço do guarda para trás e aplicando mais uma vez aquele golpe na carótida. Este devia ser seu golpe predileto. Resfolegando, Mario desencostou-se da parede e sacudiu a cabeça aturdida.

— Se o senhor escrever tão bem... — murmurou e agarrou a mão do escritor — como luta caratê, então é perfeitamente possível que algum dia receba o Prêmio Nobel!

Riram um para o outro.

— Muito bem — disse Cliff. — Ainda não é hora de descansar. Primeiro temos que coletar aqueles cavalheiros, manietá-los como manda o figurino e depositá-los nas celas apropriadas. Depois vamos estabilizar essa nave maluca, programar um curso preciso rumo a Terra e entregar tudo ao piloto automático.

Daqui a pouco a Orion mergulharia no hiperespaço. Todos os instrumentos funcionavam normalmente. O planeta Mura e o sol Umbriel jaziam longe na distância. McLane girou a poltrona.

— Acho que agora todos nós merecemos um generoso gole de whisky.

Olhou para Pieter-Paul Ibsen. O escritor estava feliz; isso se notava de relance. Esparramado na poltrona, contemplava o comandante com um largo sorriso. Que mais poderia querer? Tinha vivido sua grande aventura, e agora estava aqui, numa nave espacial das mais modernas, em cujo interior havia descoberto coisas que iriam influenciar decisivamente as suas obras futuras.

— Merecemos, sim, comandante! — respondeu, em tom quase fervoroso.

— Não se esqueça, Atan — repetiu Cliff — temos que voltar o mais rapidamente possível!

O pequeno astronavegador, de cabelos negros, limitou-se a acenar.

E depois a Orion mergulhou no hiperespaço.

 

Em condições normais, o vôo da segunda zona de distância para o centro da gigantesca esfera espacial de 900 parsec de diâmetro durava aproximadamente dois dias. Desta vez, porém, o retorno à base 104 não levaria mais de trinta e seis horas, pois McLane solicitou os propulsores ao máximo, lançando mão de toda a energia disponível.

Cinco horas antes do pouso a tripulação estava reunida na cabine de comando. Sentado na poltrona, Cliff McLane balançava um enorme copo na mão e trocava risos e olhares com seu pessoal.

— O que mais me aborreceu foi sua total inaptidão para a pescaria, meus amigos! — disse o comandante, ainda rindo.

— Pescaria...? — perguntou Tamara, perplexa.

— Foi o que eu disse, sim senhora! — respondeu McLane.

— Não pode explicar isso um pouquinho melhor? — sugeriu Hasso.

— Tá vendo? Bem que eu disse que vocês não dão para esse esporte! Está acontecendo de novo! Poxa, gente, vocês levaram uma eternidade até pescar o que eu realmente queria! Fiquei com um medo dos diabos que esse Tourenne desconfiasse de algo, se eu falasse em termos mais claros!

Mario parecia ofendido, mas isso talvez pudesse ser atribuído ao consumo alcoólico.

— Eu acho — respondeu lentamente — que nós entendemos tudo até bem depressa!

Tamara apontou para Ibsen e disse:

— Para ser honesta: até agora não entendi bulufas!

O ambiente a bordo não podia ser mais descontraído. Uma farta refeição e algumas horas de sono haviam contribuído consideravelmente para que todos se refizessem do susto por que tinham passado. O resto correu por conta do êxito alcançado. Ibsen escrevia febrilmente, anotando cenas e mais cenas. Pelo visto, lançaria não um livro, mas sim, toda uma série após esse vôo. Com a língua enrolada, começou a explicar:

— Ora, caríssima camarada Jagellovsk, mas isso é tão óbvio! Se nós enchemos uma Lancet de energia e depois a lançamos sob um ângulo de noventa graus de encontro ao fecho da campânula energética, criamos, no momento do impacto, uma justaposição de campos de força, que se neutralizam.

— Que coisa mais fascinante! — exclamou Mario de Monti, com um sorriso maroto.

— Está querendo me gozar? — quis saber Ibsen.

— Longe de mim tal coisa! Afinal, a idéia foi sua!

Ibsen engoliu e levantou-se. Com o copo na mão direita, fez aquele gesto grandiloqüente, que todos conheciam, e prosseguiu:

— Por um instante, a armadilha espacial se abriu, nesse mesmo instante... sssssst!

Imitou uma série de barulhos que, na sua opinião, denotavam perfeitamente o processo da decolagem.

Todos caíram na gargalhada.

— Uma idéia genial! — finalizou Ibsen. Secamente, McLane retrucou:

— Pena, que não foi minha...!

— Mas é tão boa, que seria digna do senhor, comandante! E vou aproveitá-la na minha próxima novela...

Olhou ao redor e encarou um por um os rostos sorridentes da tripulação.

— ...se vocês, meus amigos, não fizerem objeção!

McLane comparou o seu soldo com os honorários de um literato e respondeu:

— Só se me der participação nos seus lucros!

— Vou oferecer um jantar! — prometeu Ibsen, ligeiramente tonto.

Atan deu uma risadinha como sempre i dava quando achava que ia dizer algo engraçado.

— Sei a quem ele vai oferecer participação nos lucros! — disse e lançou um olhar malicioso para Tamara, que se acomodara numa das enormes poltronas e não desviava os olhos de Ibsen. O escritor recuou alguns passos, tropeçou e derramou um pouco de whisky. Caiu de costas na poltrona. Tamara virou a cabeça e, por sua vez, olhou para Helga Legrelle.

— Receio que a felizarda seja outra, Atan!

Ibsen não sabia do que se tratava e retomou o assunto que mais lhe interessava.

— Uma idéia genial! O herói do meu livro, e já sei com quem vai se parecer, romperá aquela armadilha espacial exatamente da mesma maneira como nós fizemos com tamanha displicência! Igualzinho!

Hasso começou a rir estrondosamente.

— Cliff! — exclamou. — Cuidado! Ibsen é capaz de escrever um livro sobre Cliff McLane! Imagine só, você, herói de um livro! Essa eu não agüento! Morro de rir, só de pensar nisso! — fez um gesto para Ibsen. — Ei! O senhor aí! Seu escritor! Pelo que eu sei, a ficção científica trata de coisas que ainda não existem. Mas aquela armadilha idiota existiu. Como é que explica isso? Afinal, o senhor é o perito em assuntos futurísticos, não é?

Com um gesto grandioso, Ibsen fez que não.

— Deixei de ser!

— O queeeeê? — a exclamação escapou da boca de Tamara. Parecia não acreditar que o ídolo dessa missão pudesse deixar de escrever de uma hora para a outra. — Ib- ' sen, não pode fazer uma coisa dessas! Não i deve estar falando sério!

— Vou escrever sobre vocês! — anunciou em tom triunfante. — Vocês são muito mais fascinantes que o futuro!

Levantou-se e cambaleou perigosamente. Depois ergueu o copo e brindou os membros da tripulação um por um. Tamara virou-se para Cliff e disse:

— De tanto falar em Ibsen, acabamos negligenciando nossas obrigações, comandante! Lembre-se de que devíamos entrar em contato com Wamsler!

— Com mil diabos! — disse Cliff. — Não é que eu me tinha esquecido disso!

— E olhe que já estamos com sete dias de atraso! — lembrou Tamara.

— Será que nesse estado deplorável você consegue estabelecer uma ligação com o gabinete de Wamsler? — perguntou Cliff, com grossura total.

Helga, a quem Cliff havia dirigido a pergunta, não respondeu de imediato. Ainda estava ocupada em observar Ibsen que, sob o efeito do álcool, afundava cada vez mais na poltrona. Segundos depois, começou a roncar. Helga virou-se para Cliff:

— Em resposta à sua pergunta pouco galante, major McLane, posso lhe assegurar que estou apta a cumprir as suas ordens. Nem que eu tivesse bebido o dobro!

— Então, faça-me o favor!

— Agora mesmo, comandante!

— Sim, agorinha mesmo!

Enquanto Helga procurava estabelecer a ligação, Cliff recostou-se e começou a refletir.

Tinham conseguido frustrar o intento de Tourenne na última hora. Mas, se houvessem falhado, o que teria acontecido? Cliff admitia a possibilidade de que a inteligência privilegiada desse homem pudesse encontrar uma maneira de estabelecer contato entre os terranos e os estranhos. E nesse caso o adversário ficaria de posse da nave.

Teria à sua disposição os homens e seu saber, o que lhe daria condições para se inteirar facilmente de tudo que se passava naquela esfera espacial. E teria em suas mãos o segredo do Overkill, a única arma eficaz com que Terra podia se defender contra a tecnologia superior dos inimigos. Daqueles inimigos misteriosos, dos quais se sabia apenas que não recuavam diante de nada.

Por que motivo os extraterranos queriam ver Terra destruída? Por que tencionavam exterminar bilhões de seres humanos? Que vantagem esperavam tirar disso, se todos os mundos habitados, colonizados ou explorados pelo homem não apresentavam as condições de vida de que necessitavam?

A poucas horas do pouso na base 104, Cliff estava inquieto. Talvez alguém em Terra pudesse elucidar esses pensamentos contraditórios. Cliff assustou-se ao ouvir a voz de Helga:

— Cliff, consegui estabelecer a ligação!

 

O MARECHAL Wamsler já havia passado por tantas situações enervantes na sua longa vida, que nada mais podia irritá-lo a ponto de ter um ataque histérico. Ou quase nada, pois uma coisa o marechal detestava acima de qualquer outra: a incerteza. E, no momento, não tinha a menor certeza a respeito da sorte da Orion. Wamsler estava furioso, e falava em voz tão alta, que o ministro não podia deixar de notar a insegurança do marechal.

— Ainda não há qualquer motivo para ficar preocupado, senhor ministro!

O ministro para assuntos extraterranos fuzilou Wamsler com os olhos.

— Há sete dias que o senhor afirma isso. Essa história está mal contada! Exijo uma resposta clara!

Wamsler apontou para a tela do videofone e disse duramente:

— Eis a minha resposta clara: não sabemos o que aconteceu à Orion. Ninguém sabe!

— Não faz nem idéia do que possa ter ocorrido?

— Sinto muito — respondeu Wamsler — mas não sou vidente. Talvez sirva para tranqüilizá-lo um pouco, se eu lhe revelar que, certa vez, McLane esteve sumido durante dezessete dias. E no décimo oitavo retornou belo e fagueiro, como se nada de especial tivesse ocorrido. Colocou em cima desta mesma mesa um jogo de transistores do mais alto valor para os nossos técnicos, e ainda quis saber como andava minha pressão sangüínea.

Amargurado, o ministro observou:

— Um homem espirituoso!

— Além de ser um homem espirituoso, senhor ministro, McLane é um comandante excelente!

O ministro debruçou-se ligeiramente, olhou de relance para Spring-Brauner e depois perguntou, baixinho e em tom confidencial:

— Diga-me uma coisa, marechal... É verdade que McLane adora tomar umas e outras?

Wamsler empertigou-se e fitou o interlocutor com ar severo. Não brincava com um assunto desses.

— Está querendo insinuar que McLane é um pau-d'água? — explodiu.

Spring-Brauner manteve-se na expectativa.

— É exatamente isso que eu quero saber.

— Sim; McLane é capaz de ingerir uma quantidade espantosa de álcool. Mas só o

I faz quando não está de serviço. E é isso que

i me interessa.

O ministro acenou lentamente com a cabeça. Mostrava-se tão abatido como se tivesse recebido a notícia de que sua filha havia desmanchado o noivado.

— Era só o que faltava! — disse em tom lamentoso. — Quer dizer que o senhor confiou o futuro esposo da minha própria filha a um alcoólatra! É inacreditável! Ibsen, o escritor de fama mundial, entregue à irresponsabilidade de um beberrão inveterado!

O rosto de Wamsler começou a mudar de cor, tingindo-se de um vermelho doentio.

— Não é nada disso! — gritou. — É rigorosamente proibido ingerir álcool a bordo durante as missões!

— E antes e depois das missões?

— Até hoje não ocorreu um único acidente em toda a frota espacial, cuja causa tivesse sido o consumo de bebidas!

Wamsler estava em vias de sofrer um colapso nervoso, quando a cigarra do videofone ressoou pelo gabinete. A tela se aclarou e mostrou a imagem tridimensional da ordenança feminina, que estava de serviço na ante-sala, e agora contemplava o marechal com um sorriso solícito.

— O que é? — gritou Wamsler, agitado.

— Entramos em contato com a Orion. Chamado de McLane.

Surpreso, Wamsler hesitou por um instante e depois fez um gesto rápido para a moça:

— Transfira a ligação para esse aparelho, aí.

— Entendido; só um segundo.

A sigla da Estação Avançada IV apareceu na tela tremeluzente. Depois a imagem se estabilizou, e Wamsler, Spring-Brauner e o ministro viram o meio-corpo de um Cliff McLane muito bem disposto.

"Podia ter escovado o cabelo um pouco mais", pensou Spring-Brauner, que fitava atentamente os olhos sérios do comandante.

McLane fez o seu relato dentro do mais rigoroso formalismo militar:

— Cruzador espacial rápido Orion VIII anuncia regresso sob comando do major McLane. Acabamos de passar pela estação retransmissora e já iniciamos manobras para pouso na base 104.

Wamsler começou a berrar; estava com raiva, mas ao mesmo tempo sentia um alívio incomensurável.

— McLane! Onde foi que se escondeu esse tempo todo, homem de Deus? Ficou sete dias sem dar sinal de vida; quase nos mata de tanta preocupação. O que foi que houve?

— Nosso atraso corre por conta de uma lamentável estadia forçada em Mura.

— Mura? Que diabo andou fazendo em Mura?

— Tivemos que pousar lá, para apanhar Ibsen. Essa operação deu origem a uma série de pequenos incidentes que, infelizmente, nos obrigaram a permanecer em Mura um pouco mais do que esperávamos.

Durante alguns segundos, a imagem ficou distorcida; depois estabilizou-se novamente.

— Mas, as suas ordens...! Cliff acenou.

— Tenho certeza que vai achar as nossas aventuras sumamente interessantes, marechal! Assim que pousar, vou dar um pulo aí, para apresentar um relato completo. Posso adiantar que a coisa não foi fácil.

Wamsler resolveu não fazer mais perguntas e aguardar pelo relatório. Conhecia Cliff bem demais, para se deixar .enganar pelo tom displicente do comandante, nem tampouco por aquela meia dúzia de observações jocosas. O marechal sabia que por detrás delas se ocultava algo muito sério. Sem dúvida alguma, McLane não se havia limitado a procurar espórios no espaço cósmico...

— McLane, como é que está passando o meu genro? — perguntou o ministro, aflito.

— Da última vez que o vi, estava passando bem.

O ministro arregalou os olhos, sobressaltado.

— O que quer dizer com isso... quando o viu da última vez? Quero falar com ele agora mesmo!

Cliff sacudiu a cabeça.

— Sinto muito, mas não vai ser possível.

— E por que não?

— É que, lamentavelmente, o senhor seu genro no momento não está em condições de fazer bom uso da voz.

— Bobagem! Insisto em falar com ele!

— Está recolhido ao leito, no seu camarote.

O ministro emudeceu de susto. Relacionou recolhimento ao leito pouco antes do pouso com doença, e doença adquirida no universo com agonia... quase chegou a se sentir mal diante de perspectivas tão sombrias.

— Ele está... está doente? — perguntou, balbuciando.

Cliff caiu numa ruidosa gargalhada e depois disse, com toda nitidez:

— Doente, não; só bêbado como um gambá! Desligo!

A tela se apagou. Perplexo, o ministro se virou e viu que Wamsler e Spring-Brauner se entreolhavam em silêncio. Ia dizer alguma coisa, mas antes que pudesse abrir a boca, o marechal e seu ajudante-de-ordens desataram a rir estrondosamente. O ministro levantou-se lentamente e deixou o gabinete.

Uma hora mais tarde Cliff apresentou-se a Wamsler e convenceu o marechal a acompanhá-lo até a superfície, onde poderiam conversar mais à vontade, sem serem interrompidos a toda hora. Agora, os dois estavam sentados debaixo do toldo daquele enorme terraço que se estendia por cima da praia. Afora o murmúrio das ondas e dos passos distantes de um garçom, tudo era silêncio. Cliff relatou o que se tinha passado durante os últimos dias.

— E suas vítimas, ainda se encontram a bordo?

Wamsler mexeu o líquido no seu copo e olhou para a imensidão do Golfo de Carpentária.

— Estão a bordo, sim — respondeu McLane. — Trancados nos camarotes e bem amarrados. Não têm como escapar.

— Muito bem. E esse tal de Ibsen, que tipo de sujeito é?

Pensativo, Cliff disse:

— Não é exatamente um durão, mas a verdade é que se comportou com uma dignidade surpreendente. Na minha opinião, abraçou a profissão certa.

— E a campânula energética de Tourenne, como funciona?

Cliff apontou para o rádio de pulso.

— Acho que devia informar o coronel Villa sem delongas, marechal. Só que Tamara já deve ter feito isso. O que importa é que Villa consiga obter o projeto dessa instalação. Seria de grande utilidade para nós.

Wamsler concordou plenamente.

— Vou avisar Villa, assim que estiver de volta ao meu gabinete. Tem mais algum pedido a fazer, algum desejo?

Wamsler observou Cliff de lado, enquanto o comandante mantinha a cabeça baixa, absorto em pensamentos.

Cliff começou a cocar o queixo e disse:

— Andei refletindo um pouco, durante o vôo de retorno. Receio que estamos na iminência de sermos envolvidos num conflito gigantesco. Mas parece que ninguém desconfia disso. Tenho a impressão que os extraterranos estão tramando mais uma das suas; têm-se mostrado calmos demais ultimamente, não acha?

Wamsler acenou sombriamente.

— É, todos nós aqui temos essa impressão.

— Nesse caso, há uma porção de coisas que eu simplesmente não entendo.

— Por exemplo?

Cliff silenciou por alguns instantes, depois respondeu:

— Se essa calma momentânea realmente só for a calmaria antes da tempestade, então estou achando que todos nós, comandantes, astronavegadores, etc., estamos muito mal informados. Teríamos que ser praticamente onipresentes, pois não sabemos como e onde o inimigo vai atacar...

Wamsler sorriu ao reparar o entusiasmo com que Cliff expunha seu ponto de vista.

— O que lhe autoriza a pensar que ainda não elaboramos um sem-número de planos dos mais minuciosos, nos quais cada nave vai exercer um papel bem definido, inclusive a Orion?

— Pode ser; mas lembre-se, marechal, que eu liquidei um planeta em brasas e me recordo, quão pouco Terra estava preparada para este ataque inesperado!

— Isso foi dez meses atrás, McLane!

— E hoje?

— Hoje temos um plano para rechaçar uma invasão. O coronel Villa e sua equipe do Serviço de Segurança passaram os últimos meses coligindo dados e mais dados, e acabaram por bloquear o Centro de Computação durante trinta dias com seus cálculos e programas.

— Está convencido de que Villa tem condições de repelir um ataque em grande escala?

McLane estava céptico como sempre.

— Sim, estou convencido disso — disse Wamsler. — Se há uma coisa em que eu confio, é na capacidade de Villa. Henryk é um perfeccionista do maior gabarito.

— Não sei, não... — disse Cliff, cheio de dúvidas.

Após alguns instantes voltou a perguntar:

— O que pretende fazer com Tourenne e seus capangas? Claro que era o sujeito mais inteligente e perigoso naquele planeta dos banidos. A propósito: quantos deportados vivem em Mura?

Wamsler ergueu a mão.

— Calma, McLane, uma coisa de cada vez. De acordo com as estatísticas, a população de Mura é de aproximadamente quarenta mil, entre homens e mulheres.

Cliff começou a rir.

— Eu estava crente que Tourenne tencionava fugir com todos que vivem lá! Realmente, quarenta mil é um pouco demais para caber na Orion e nas Lancets!

Wamsler pediu mais um drinque, e depois debruçou-se sobre a mesa. Seu rosto largo estava sério quando prosseguiu:

— Primeiro Tourenne e seu pessoal vão ser interrogados pelos especialistas de Villa. Depois, vamos agarrar aquele sujeito que lhes arranjou as armas. Um processo será instaurado. Mas não sei se Tourenne vai ser deportado novamente para Mura. Talvez o trancafiem aqui em Terra ou num dos planetas maiores, onde não possa mais causar mal algum.

— Muito bem. E o que é que eu ganho por ter entregue o bicho, vivo, embrulhado e tudo?

Wamsler tentou fazer uma cara surpresa ao mesmo tempo que indignada; a tentativa foi um fracasso.

— Está querendo algo em troca, Cliff?

— Mas é claro; todo serviço tem sua paga!

— Deve ter algo em mira. Quer ser reincorporado à frota? Não vou conseguir isso!

— O mínimo que o senhor pode fazer por mim, marechal, é tomar as devidas providências para que a boa Orion não volte a levar um escritor a bordo e nem seja requisitada para realizar tarefas idiotas!

Wamsler continuou a se fazer de bobo.

— O que precisamente considera uma tarefa idiota, Cliff? — perguntou.

— Esse negócio de coletar espórios, por exemplo.

— Vou me empenhar ao máximo, para livrar a Orion de missões desse tipo. Desde já, vou mandar desmontar aqueles filtros.

— Muita gentileza de sua parte, marechal! — disse Cliff, sem qualquer euforia.

Wamsler acenou.

— Gostaria de lhe fazer uma pergunta, comandante McLane.

— Faço votos que seja uma pergunta que eu possa responder com a consciência tranqüila — disse Cliff, algo vacilante.

— Pode respondê-la, sim — Wamsler sorriu maliciosamente. — Agora, se com a consciência limpa ou não, isso eu não sei.

Cliff encolheu os ombros.

— O que há entre o senhor e Tamara Jagellovsk?

Cliff olhou para Wamsler com uma expressão de puro espanto.

— Acho que não entendi bem a sua pergunta, marechal — respondeu. Começou a refletir febrilmente, tentando descobrir o quanto Wamsler sabia. Será que ele estava a par do que tinha acontecido naquela cela em Chroma? E por que perguntava?

— Faz pouco mais de um ano que o Serviço de Segurança Galático destacou um oficial de segurança a bordo da Orion. A função de Tamara Jagellovsk era impedir que o senhor continuasse a cometer terríveis indisciplinas também no serviço da Patrulha Espacial.

Cliff sufocou toda uma série de imprecações.

— Ainda não estou entendendo a sua pergunta, marechal! — disse a meia voz.

Wamsler exibiu um sorriso insolente.

— Com base nas minhas observações bem como nos boatos que circulam por aí, creio poder afirmar que o senhor está mantendo uma ligação amorosa com Tamara. Sabe muito bem que isto também é proibido a bordo, tanto quanto o álcool!

Cliff sacudiu a cabeça.

— É perfeitamente possível, marechal, que o senhor tenha ouvido algum boato nos corredores lá embaixo. Também não ficaria admirado se o meu caro amigo Spring-Brauner colocasse em circulação manchetes apropriadas, como por exemplo: "McLane apaixonado!" ou então: "Comandante da Orion acometido de delírio amoroso". Só posso dizer uma coisa: nada disso corresponde à verdade!

Wamsler cravou o olhar nos olhos de McLane.

— Pode jurar que não é verdade?

— Depende — disse Cliff com sangue-frio. — Acha mesmo que vou me sentar diante dos controles, de mãozinhas dadas com meu oficial de segurança, enquanto a minha tripulação morre de rir?

Wamsler não conseguiu conter o riso.

— É; acredito que não faria uma coisa dessas; mas ainda não respondeu à minha pergunta. Afinal, não existem apenas naves espaciais.

Cliff levantou-se e disse:

— Com todo o respeito que lhe devo, marechal, mas o senhor não tem o menor direito de meter o nariz na minha vida particular.

Wamsler manteve-se impassível.

— Não estou perguntando por uma questão de curiosidade pessoal, McLane, e sim, por razões estritamente oficiais!

— É; o teor das perguntas era mais ou menos esse — respondeu Cliff, com sarcasmo.

— Não se torne mordaz; não lhe fica bem!

Cliff retorquiu:

— Engraçado! Tourenne fez a mesma observação!

Durante alguns segundos, só se ouvia o tilintar dos cubinhos de gelo; depois Wamsler perguntou, em tom mais calmo e menos agressivo:

— Eu não queria ofendê-lo, McLane. Eu só lhe fiz esta pergunta, para atender a um pedido insistente do coronel Villa!

— Acabo ficando maluco! Villa?

— Ele mesmo; fez uma porção de indagações a respeito do seu caráter. Tive a satisfação de poder tranqüilizá-lo. Ele parecia ter razões para considerar o senhor um sujeito intragável.

— Ah, é? Que razões?

— Pelo que consegui deduzir, alguém se queixou do senhor.

— Quem foi?

— Alguém que o senhor conhece muito bem.

— Meu caro e estimado marechal! Peço-lhe com todas as formalidades de praxe que me revele quem se queixou a ele. Foi algum membro da tripulação? Não, isso é inconcebível!

— Mas foi!

— O quê?... Diga-me quem! Wamsler respondeu calmamente, mas por uma razão que ele desconhecia, sua resposta abalou Cliff McLane profundamente:

— Tamara Jagellovsk pediu a Villa que a desobrigasse da sua função de oficial de segurança da Orion. Alegou que lhe era humanamente impossível continuar a suportar a vida a bordo. Não disse, porém, o porquê. "Wamsler", pensei com meus botões, "atrás disso está McLane, o eterno apreciador da beleza feminina."

— E qual foi a reação de Villa?

— Recusou o pedido. Tamara vai continuar a bordo da Orion como agente do SSG.

O marechal Winston Woodrov Wamsler levantou-se e deu um aceno de despedida para um Cliff McLane completamente aturdido.

 

 

                                                                                                    Hanns Kneifel

 

 

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