- Parabéns pra você! Parabéns pra você!
Ellen tapou as orelhas. Detestava esse tal "Parabéns pra você". E mais do que isto, detestava a menina que estava aniversariando.
Seu vestido lilás.
Seus sapatos de verniz cor de lavanda. Suas fitas púrpuras nos cabelos.
- Vou vomitar, mano - gemeu Ellen, encostando-se à parede.
- Você não vai querer perder os fogos, vai? - perguntou Edgar. E espiou por trás das cortinas onde a irmã e ele estavam escondidos.
Os olhos de Ellen se estreitaram quando olhou para o seu dedo mindinho esquerdo em que faltava uma unha - perdera-a em um incidente que envolvia a cabeça da boneca favorita de Stephanie Knightleigh e um martelo. A garota ganhara outra boneca. A unha de Ellen não voltara a crescer.
Mas quando Ellen olhou para a caixa vazia amassada em sua mão direita, sorriu.
O cozinheiro entrou na sala com um bolo caprichosamente enfeitado, que alvoroçou os muitos convidados que cantavam. Treze velinhas chiavam, soltavam faíscas e estalavam sobre a camada superior do bolo. Em pé, à cabeceira da mesa, a aniversariante aprovou com um aceno de cabeça quando o cozinheiro colocou o bolo a sua frente.
- Parabéns, querida Stephanie...
Edgar agarrou as cortinas, puxando o pesado tecido para com ele abafar suas risadinhas. Ellen torceu uma trança com o dedo mutilado.
Stephanie tomou um fôlego e se curvou para o bolo.
Fsssbum!
O glacê explodiu em todas as direções e florzinhas de açúcar voaram pela sala como minúsculas balas de canhão. Tarde demais os convidados horrorizados ergueram as mãos para se proteger da chuva de glacê. O cozinheiro berrou.
Stephanie continuou parada à cabeceira da mesa, bolo de chocolate cobrindo seu vestido de aniversário e o glacê espesso escorrendo dos seus cachos ruivos. A aniversariante fixava o lugar onde estivera seu lindo bolo, o rosto mortalmente pálido.
Na loucura que se seguiu à explosão, Edgar e Ellen deslizaram cautelosamente de trás das cortinas e saíram pela porta de entrada da casa.
Há muitos anos, quando as velas eram tão importantes quanto as lâmpadas são hoje, um homem chamado Nod construiu uma fábrica de cera. Muitas pessoas vieram trabalhar em sua fábrica e quando ela se tornou a maior fornecedora de cera da região e a notícia do sucesso de Nod espalhou-se, surgiu uma povoação às margens do rio Corrente. Assim nasceu a pequena cidade de Nod's Limbs.
No começo, Nod's Limbs não passava de um agrupamento de casas localizadas rio acima a partir da fábrica. Depois de um longo dia, os operários iam para a taberna local, onde podiam fazer uma refeição quente, contar uma boa história e participar de competições de força e astúcia. À medida que suas famílias foram aumentando, aumentou também o desejo de ter uma vida melhor, e eles quiseram uma cidade de verdade, com um governo que lhes desse tudo que operários esforçados merecem.
Nod, porém, não tinha o menor interesse em dirigir uma cidade, queria administrar sua fábrica. Para ele a vida dos operários parecia mesquinha e sem graça. Pagava seus salários, generosamente, e fim. Mas, outro homem mais popular estava ansioso para governar a cidade nascente, então o povo elegeu Thaddeus Knightleigh, o comunicativo taberneiro, para primeiro prefeito de Nod's Limbs. A escolha provou-se nefasta porque até hoje o prefeito é um Knightleigh.
O primeiro mandou construir muitos prédios dignos de atenção, como uma grande sede para a prefeitura onde os cidadãos se reuniam para ouvi-lo discursar, um teatro onde o público assistia ao espetáculo do dia, uma torre com relógio para que todos sempre soubessem a hora e sete pontes cobertas para as pessoas poderem atravessar o rio que corta a cidade. A mulher de Thaddeus Knightleigh, que descendia de uma família de chapeleiros franceses, queria importar cultura e sofisticação para essa comunidade rural, por isso organizou peças e abriu um ateliê de costura que produzia roupas da última moda de Paris.
Para sua tristeza, Thaddeus Knightleigh nunca conseguiu convencer seus concidadãos a mudar o nome da cidade para "Knightleighville", porque o povo se sentia no dever de demonstrar respeito pelo homem que pagava seus salários.
Desde os primeiros tempos, o povo de Nod's Limbs levou uma vida simples e despreocupada, e se sua vida fosse tão simples e despreocupada quanto a dos Nod's-Limbsenses, você provavelmente teria a mesma boa disposição que eles. Lá os sorrisos nunca afrouxavam; ninguém xingava, brigava nem reclamava do tempo, mesmo quando a chuva inundava os porões e a neve ultrapassava a altura das janelas.
Que lugar terrivelmente agradável.
A população expandiu, as famílias proliferaram, os bebês nasceram e, inevitavelmente, as pessoas morreram de doença e velhice. Chegou então o momento de Nod's Limbs construir um cemitério. Mas Thaddeus Knightleigh não queria que uma coisa tão sombria maculasse sua encantadora cidade.
Mais ou menos na mesma época, os montes de lixo, até ali uma inconveniência, passaram a ser uma visão agressiva e os cidadãos exigiram a demarcação de um lixão onde pudessem despejar as coisas que não lhes serviam mais. Thaddeus, que não entendia a razão de reaproveitar uma coisa usada quando se podia comprar outra nova, tinha a mesma opinião sobre lixões e cemitérios.
Então, em uma manobra genial, ele juntou os dois. Mandou limpar uma pequena parte da floresta ao sul, a uma boa distância da prefeitura, do teatro e da torre do relógio, e destinou-a para o cemitério e o lixão de Nod's Limbs. Durante muitos anos, Nod's Limbs cresceu e foram surgindo bairros mais afastados do centro da cidade, mas a área em torno do cemitério e do lixão permaneceu deserta. Bem, quase deserta.
Havia uma casa estreita e incrivelmente alta, que se erguia mais alta que o cemitério e o lixão. Do telhado dessa torre de pedra cinzenta projetavam-se espetos de ferro e a casa em si parecia sugar toda a cor dos arredores. Duas janelas em forma de meia-lua vigiavam atentamente os raros passantes e, logo acima, uma janela redonda engastada na cúpula parecia piscar intermitentemente em meio à névoa espessa como um terceiro olho. Venezianas rachadas e partidas batiam contra suas molduras tortas a menor rajada de vento, e acima da porta de entrada escura havia gravada a palavra schadenfreude, que significa "prazer obtido com o sofrimento alheio". Um lema apropriado para as duas únicas pessoas que moravam na alta mansão: os jovens gêmeos Edgar e Ellen.
Edgar e Ellen estavam se escondendo do sol em uma linda manhã de primavera. Na sala de recreação, o menino trabalhava febrilmente em uma nova idéia, desenhando seus pia-nos sobre um tabuleiro de xadrez escalavrado e pregando-os já prontos na parede com dardos enferrujados. Em cima, na cozinha, Ellen cuidava de uma panela no fogão de ferro. Ela fisgou um pequeno frasco do fundo de uma estante de temperos e despejou o seu conteúdo na tigela de mingau de Edgar.
Depois, apanhou uma lata pendurada em uma mangueira de jardim por cima do tanque e gritou para dentro do objeto:
- Mano! O almoço está pronto!
Sua voz ecoou pela mangueira e se propagou até outra lata pendurada na sala de recreação.
Edgar tinha construído secretamente este telefone improvisado no ano anterior estendendo uma série de mangueiras e latas pelos treze andares da casa. Certa noite, quando Ellen achou que o irmão estava fora apagando vaga-lumes, Edgar falou com ela pelo telefone, fingindo que sua voz retumbante e fantasmagórica era a de um tio distante que morrera por causa da peste. Embora a princípio assustada, a menina logo percebeu a rara oportunidade de aprender sobre a vida no além. Assediou o tio com perguntas até que as respostas revelassem a impostura. "Não há irmãs aqui" foi uma pista certeira - e Ellen deixou o irmão preso no subporão por duas horas.
- Já estou indo, estou indo. - A voz de Edgar ressoou na cozinha. Ele juntou seus papéis e levou-os para a sala de jantar ao lado onde a irmã estava comendo mingau. - Como você pode ver, mana, temos aqui os planos iniciais para a Operação Chibatada.
A menina examinou o esboço de um enorme ventilador virado para os patinadores no Rinque Roly-Poly Rainbo. No desenho, alguns patinadores se chocavam uns com os outros e com as paredes do rinque. O menino detalhara caprichosamente os cortes e hematomas resultantes.
- Será como nos carrinhos bate-bate - Pam! Pum! Catapum! Então ninguém voltará ao rinque e ficaremos com o espaço todo só para nós. Temos aquela turbina lá no porão: só ficam faltando coisas para fazer as vezes das pás - disse Edgar, examinando os planos enquanto engolia uma colherada de mingau.
Uma sensação dolorosa e ardida espalhou-se por sua garganta fina, como se cem zarigões o mordessem, e ele começou imediatamente a sufocar. Com lágrimas nos olhos, o menino ergueu a cabeça e viu Ellen sorrindo e segurando um frasco com um rótulo "URTIGA". Estava vazio exceto por um restinho de espinhos no fundo.
Tossindo e se debatendo, Edgar correu à cozinha para buscar um copo de água.
Ellen foi até a janela.
- Pás de ventiladores... pás de ventiladores. Ora, então teremos de fazer uma visita aos nossos vizinhos.
Ela olhou para os túmulos cobertos de mato e enegrecidos por anos de exposição ao relento. Seu olhar se deslocou do muro baixo de ardósia aos fundo do cemitério para a montanha de lixo logo além.
- E que sorte a nossa ter uma vista tão bonita - suspirou ela, enquanto o irmão se aproximava sorrateiramente por trás dela segurando um ovo podre nas mãos.
Depois de ter raspado a gosma fedorenta dos cabelos, Ellen desceu com Edgar os vários lances de escadas até a porta da rua, os pés dos seus pijamas rotos batendo nos degraus. Os gêmeos altos e magricelas raramente usavam outra coisa exceto os pijamas confortáveis, e as listras vermelhas e brancas originais há muito tempo tinham desbotado para um ferrugem e cinza encardido.
Eles saíram da penumbra do hall de entrada apertando os olhos, seus cabelos negros oleosos brilhando ao sol. Atravessando o jardim em direção ao cemitério, costearam a fileira de túmulos mais ao fundo - "EM MEMÓRIA DE BERTEL HERRINGBOTTLE, MORTO POR UMA INFESTAÇÃO DE VESPAS, 1823" era um dos epitáfios favoritos dos gêmeos - e desapareceram nas profundezas do lixão.
A princípio os habitantes de Nod's Limbs usavam o lixão como uma espécie de brechó. Descartavam ali as tigelas velhas, as colheres de pau, as machadinhas cegas e os vidros de tinta vazios, e talvez encontrassem uma roca ainda em condições de fiar para levar para casa. Mas, à medida que os anos foram passando, o lixo se acumulou e menos gente vinha procurar alguma coisa, e, por fim, o lixão se transformou em um esparrame de bicicletas enferrujadas, pneus usados, rádios-transístores mudos, vasos de plantas lascados e outras inutilidades abandonadas.
Havia tantos cacos de vidro e metal espalhados que as mães proibiam os filhos de se aproximarem do lugar, e um prefeito antigo mandou afixar letreiros de "PERIGO" e "CUIDADO" na entrada da área.
Mas ninguém proibiu Edgar e Ellen de se aproximarem do lixão por que seus pais estavam ausentes em uma viagem de "férias ao redor do mundo", segundo o bilhete que deixaram há anos quando partiram. Os gêmeos não consideravam os objetos do lixão nem imprestáveis nem perigosos, ou melhor, não perigosos para eles. O sótão de sua casa estava cheio de objetos que eles foram descobrindo ali ao longo dos anos, uma coleção de que dependiam para se inspirar. Edgar encontrara o material para o sistema de telefones internos ali e ele sempre carregava uma grande mochila surrada cheia de coisas do lixão para usar nas emergências. Os gêmeos até rebatizaram carinhosamente o local de "Cemitério de Utilidades".
Edgar trepou pelos montes de entulho, hesitando por um momento no alto de cada um antes de escorregar até o chão. Nesse meio tempo, Ellen ia atirando porcas e parafusos no irmão enquanto caminhava cautelosamente para os fundos do lixão. Aninhada no côncavo de um velho estrado de cama, uma planta se embebia de sol.
- Olá, Berenice - disse Ellen. - Vamos ver o que temos em sua lancheira hoje.
Berenice era mais uma razão por que os gêmeos gostavam do Cemitério de Utilidades. Ellen descobriu-a quando era apenas um broto encimado por dois calombinhos cor-de-rosa que lembravam lábios, e a menina ficara fascinada ao ver a planta engolir um mosca que voava ao seu redor. Durante anos ela tentara criar uma espécie carnívora no jardim, mas as plantas se recusavam a vicejar no clima de Nod's Limbs. Como é que uma brotara no lixão, a menina jamais conseguiu explicar, mas encarregou-se de cuidar de Berenice e de construir uma armadilha para pegar insetos forrando um velho balde por dentro com papel adesivo.
Berenice mostrou ser uma carnívora particularmente faminta e alimentá-la tornou-se um dos maiores prazeres dos gêmeos. Até Edgar, que nunca tivera jeito para jardinagem, adorou alimentar a planta com moscas, besouros, pequenas aranhas e outros insetos que encontrasse.
Ellen apanhou o balde e tirou as vítimas, uma a uma, do papel adesivo, colocando-as cuidadosamente nos lábios bulbosos de Berenice. A garganta da planta chiava e estalava como bacon na frigideira enquanto digeria os bichinhos. Mas Ellen precisava ter cuidado. A boca de Berenice era revestida de sementes duras e brancas que lhe davam um sorriso dentuço. Certa vez Edgar metera um dedo entre suas mandíbulas e foi preciso o esforço conjunto dos gêmeos para conseguir reabri-las. O menino ainda trazia a cicatriz da perfuração que a planta fizera no seu dedo indicador.
Ellen contemplou as vagens murchas que juncavam o chão sob o estrado da cama. Toda noite as sementes caíam da boca da planta, deixando Berenice desdentada, e toda manhã novas sementes apareciam em seu lugar. Isto era apenas mais um dos mistérios de Berenice.
- Eu não entendo, mano - comentou Ellen. - Plantei toneladas de sementes da Berenice e nenhuma delas germinou. Talvez ela não esteja recebendo bastante nutrientes.
- É pouco provável, por que você a empanturra todos os dias - respondeu Edgar de trás de uma máquina de lavar. - Você vai pôr a planta para arrotar também? Deixe ela em paz e venha trabalhar!
Ellen atirou um pesa-papéis lascado na direção de Edgar e começou a cavoucar o lixo à procura de possíveis pás para o ventilador. Mostrou ao irmão uma porta velha de carro, mas Edgar achou-a pesada demais.
Os gêmeos olharam embaixo de canos furados e em cima de andaimes desconjuntados, foram de pilha em pilha por todo o lixão e enquanto procuravam, iam cantando:
Por trás dos túmulos dos mortos Há montes de lixo cheios de graxa Que abandonados descansam em paz Até virmos fazer a festa. Quadros e colheres de cobre, Ameixas podres e enrugadas Um taco vira um ótimo arpão - Ah, que bela tarde teremos! Uma mina de peças a pregar - Quem descartaria tudo isso?
- Que tal esta prancha de surfe? - perguntou Ellen.
- Hummm... talvez.
Edgar estava avaliando a descoberta da irmã quando ouviram-se vozes vindas do lado do cemitério.
- Um enterro! - sussurrou Ellen para o irmão. Mas as vozes se aproximavam do Cemitério de Utilidades, e os gêmeos se esconderam atrás de uma torre de pneus de trator descartados.
Edgar e Ellen raramente viam alguém perto do lixão. Espiaram por trás dos pneus e, para sua surpresa, viram o prefeito Knightleigh parado à entrada da área.
O terno azul-marinho a custo segurava sua barriga que se avolumava por cima do cinto largo. A seu lado, parecendo pequena por comparação, vinha a filha mais velha, Stephanie.
- Que é que ela está fazendo aqui? - perguntou Ellen entre os dentes cerrados, puxando a orelha de Edgar.
- AI! Estou vendo, estou vendo! Me solta! - disse Edgar dando um tapa na mão da irmã.
O prefeito Knightleigh inspecionou a área coberta de lixo e ao se curvar para abrir sua maleta de couro, saltou-lhe um botão da camisa. Ele não reparou. Abriu um grosso caderno de anotações e escreveu algumas palavras.
- Aonde foi o Miles? - perguntou.
- Não sou a guardiã do meu irmão, papai - respondeu Stephanie, contudo voltou-se para o cemitério e chamou:
- Miles! Miles, vem para cá.
Um menino, pequeno para seus nove anos, de sardas e os cabelos louros caindo no rosto, surgiu correndo com um bloco de papel e alguns creions.
- Stephie! Olhe! Fiz o decalque de um túmulo! - disse Miles orgulhoso. E ergueu o desenho de um crânio com a legenda "AQUI JAZ NATHANIEL FORTES-QUE; NÃO FAÇA O QUE ELE FEZ OU PERDERÁ SUA CABEÇA TAMBÉM".
- Miles, você é tão mórbido - disse Stephanie. - Não se meta em confusão e não se suje.
Miles ergueu o polegar concordando e se afastou depressa. Stephanie sacou uma máquina fotográfica e tirou algumas fotos enquanto o pai continuava a fazer suas anotações. Ela parou um instante, franzindo o nariz para o cheiro de decomposição que havia no ar e alisou a saia do seu vestido lilás.
Ellen enrugou a testa. Por princípio odiava cores pastéis e Stephanie usava diariamente algum tom claro de roxo. Sentiu o impulso de atirar um punhado de terra na garota quando um grito de alegria vindo dos fundos do lixão a fez congelar no meio do arremesso.
- Uau! Que planta é essa?
Miles vagara pelas entranhas do lixão e topara com o estrado de cama enferrujado onde Berenice se reclinava. Ele estendeu a mão para tocar em seus lábios rosados. Berenice aguardou ansiosa. Os gêmeos também.
- Espero que ele não queira aquele dedo! - disse Edgar. Ele sorriu e estalou as juntas dos dedos.
- Miles! Que é que você está fazendo? - berrou Stephanie, espiando-o pela lente da máquina. Correu para o irmão, agarrou sua mão estendida e só então deu uma boa olhada no que o fascinara.
- Irque! Por que você quer pegar numa coisa dessas?
- É legal - disse Miles em voz baixa. O menino não tirou os olhos do chão enquanto a irmã o arrastava para junto do pai.
Os gêmeos suspiraram desapontados. Berenice abocanhou uma mariposa.
- Muito bem, Stephanie - disse o prefeito fazendo as últimas anotações. - Basta por hoje. Você tirou as fotos?
- Tirei, papai. Vamos embora. Este lugar é nojento.
- Ah, não será assim por muito tempo, minha querida. Não por muito tempo. - O prefeito abriu a maleta e guardou o caderno. Uma página solta flutuou até o chão, mas nenhum dos Knightleigh viu.
- Papai - perguntou Miles -, que é que você vai fazer com este lugar?
- Ora, embelezá-lo, filho. Torná-lo útil. - O prefeito cruzou as mãos sobre a barriga contemplando os montes de refugo. - E os meus planos farão uma coisa que o meu tataravô Thaddeus nunca conseguiu fazer: tornar o nome Knightleigh mais famoso do que o de Nod.
Miles chutou a terra.
- Mas você não vai se desfazer daquela planta, vai? - perguntou o garoto.
- Claro que sim, Miles! Esta planta, aquela outra... vão tomar o mesmo caminho que todo este lixo. As plantas bichadas deste monturo não cabem nos meus planos, não se eu puder impedir, e eu sou o prefeito, portanto, posso impedir!
Stephanie concordou com a cabeça, mas Miles continuou encarando o chão.
- Mas papai... - começou o menino.
- Miles, chega! Não quero mais falar nisso. - O prefeito segurou o filho pelo braço. - Vamos. Sou muito ocupado e não posso ficar aqui o dia todo.
Ele e Stephanie saíram decididamente do lixão, arrastando Miles atrás deles. Quando desapareceram no cemitério, os gêmeos saíram do seu esconderijo.
- Ellen - perguntou Edgar -, do que é que eles estavam falando? Que é que os Knightleigh poderiam querer com o nosso Cemitério de Utilidades?
- Aquela Stephanie, que é que ela entende de plantas? Juro para você que da próxima vez que a vir, vou fazê-la engolir um daqueles cachinhos... - disse Ellen.
- Por que estariam tirando fotografias? Que é que o Knightleigh quis dizer quando falou "vão tomar o mesmo caminho que todo este lixo"? Que é que ele está planejando?
- ...e vou picar aquelas fitas idiotas em pedacinhos!
- Ellen! Pare de se preocupar com a Stephanie! - disse Edgar, puxando uma das trancas da irmã. - Temos de descobrir o que o prefeito vai fazer!
Ellen virou-se para encarar o irmão.
- Como é que eles se atrevem a ameaçar Berenice? Plantas bichadas, francamente. Ela é uma das plantas mais bonitas do planeta. Que é que você está pensando em fazer, mano?
Edgar não respondeu. Apanhou a página que o prefeito deixara cair e examinou-a rapidamente, soltando uma risada dura e curta antes de entregá-la à irmã.
- Que pena, a Operação Chibatada terá de esperar, mana. Veja!
Encimado pelo selo oficial da prefeitura, lia-se um aviso:
No dia seguinte, ao meio-dia, os gêmeos estavam rastejando por uma tubulação de ar-condicionado escura e apertada.
- Ai. Pare de empurrar.
- Então anda mais rápido! Onde é o escritório? Edgar estava usando um capacete de mineiro com lâmpada para iluminar o caminho. Parou para examinar uma planta baixa do prédio da prefeitura. Os gêmeos tinham penetrado o sistema de ventilação por um duto de exaustão que existia no telhado. Navegar pela tubulação apertada era uma tarefa sombria e suja. Como convinha aos gêmeos.
- Estamos chegando. Deve ser aqui em cima para a esquerda - anunciou ele.
- Anda logo! Temos de entrar e sair antes que o prefeito termine.
- Bom, então temos o dia todo, não é? Aquele falastrão adora ouvir a própria voz. - Muito devagar Edgar dobrou um canto e parou diante de uma grade por cima da escrivaninha do prefeito. Ellen esbarrou no irmão.
- Cuidado! - disse ele, verificando mais uma vez a planta. - Tudo bem. Deve ser aqui. - Ele apanhou uma chave de fenda na mochila e desparafusou a grade. A peça caiu no chão com estrépito.
- Chiii! - sibilou Ellen.
- Por que está tão preocupada? - perguntou Edgar. - Todo o mundo na cidade está lá fora ouvindo o discurso. - Os gêmeos pularam para o gabinete do prefeito. Por uma janela aberta, ouviram o rumor da multidão e o assobio de um microfone sendo instalado.
Os dois examinaram a sala espaçosa. No centro havia uma grande escrivaninha de carvalho, com uma placa em que se lia "PREFEITO KNIGHTLEIGH, HONRADO E QUERIDO CHEFÃO". Havia dois quadros a óleo pendurados em paredes opostas. Um mostrava o prefeito Knightleigh e, o outro, o imperador Napoleão; porém, olhando melhor, Edgar percebeu que o segundo quadro era na realidade o prefeito Knightleigh vestido de Napoleão.
Estantes cobriam as paredes e estavam cheias de prêmios e troféus reluzentes em que se via inscrito o nome do prefeito Knightleigh. Na parede por trás da escrivaninha havia um grande mapa de Nod's Limbs. Vários alfinetes roxos assinalavam pontos importantes da cidade, como a torre do relógio e o Museu de Cera.
- Para que são todos esses alfinetes? - perguntou Edgar.
- Para que é este aqui? - perguntou Ellen. No mapa, ao lado da propriedade dos gêmeos na periferia da cidade, no terreno rotulado "Cemitério & Lixão", destacava-se um grande alfinete vermelho.
- Tenho a sensação de que esse prefeito faroleiro está tramando coisa ruim - comentou Edgar.
- Concordo - disse Ellen. - Talvez a gente possa encontrar alguma pista aqui em algum lugar.
Havia, em um canto do escritório, um pequeno arquivo, e foi o que Ellen atacou primeiro, abrindo a fechadura com uma chave de patins tirada da mochila de Edgar. O garoto examinou uma pilha de papéis na mesa do prefeito. Eles ouviram mais ecos do que acontecia lá fora e então a voz do prefeito:
"Sejam bem-vindos meus concidadãos de Nod's Limbs! A luz das minhas muitas realizações como prefeito desta bela cidade e do sucesso de minhas campanhas sem adversários nos últimos três mandatos, solicitei a sua presença hoje, na escadaria da nossa prefeitura, para fazer uma importante comunicação. Planejei mais um programa de extraordinárias proporções e grande alcance para Nod's Limbs, que renderá ainda mais benefícios para nossa cidade do que as minhas bem-sucedidas iniciativas do ano passado. O programa injetará os recursos muito necessários à economia local, aumentará o número de construções e empregos, ao mesmo tempo que nos deixará mais orgulhosos desta nossa comunidade historicamente importante e até aqui progressista. Este programa colocará Nod's Limbs no mapa do país!"
Ellen puxou com força a gaveta do arquivo e gemeu:
- Vou levar uma eternidade para examinar tudo isso! - E correu os dedos pela fileira de pastas suspensas, destacando uma a uma.
Lá fora o prefeito continuava:
"Certamente vocês devem estar se perguntando: que programa excepcional e fenomenalmente interessante para nossa amada cidade é esse? Pois podem parar de se perguntar porque não têm a resposta. Eu, prefeito Knightleigh, é quem a tenho!
Vou começar uma série de emocionantes festivais e desfiles para comemorar os costumes culturais da nossa cidade. Por que se há uma coisa que Nod's Limbs possua em abundância é uma cultura e sofisticação que remontam à época do nosso primeiro e estimado prefeito, Thaddeus Knightleigh."
- Não sei se um museu de cera conta como cultura e sofisticação - comentou Edgar examinando os papéis. Não encontrou menção alguma ao lixão, mas uma pasta parda chamou sua atenção.
No alto da pasta o título "TOUR DE VIPs" e logo abaixo, em letras vermelhas "CONFIDENCIAL". Edgar abriu depressa a pasta e leu o seguinte:
MEMORANDO CONFIDENCIAL
Ao: Prefeito Knightleigh, Chefão
Da: Comissão Interna de Iniciativas Turísticas
Resumimos abaixo a nossa pesquisa básica sobre as pessoas convidadas para o tour e o festival. Os seguintes VIPs se enquadram no perfil solicitado. 0 apoio desses indivíduos deverá convencer o Registro Nacional do Patrimônio Histórico a aprovar a sua solicitação, o que certamente transformará o seu projeto em um sucesso.
- Certamente transformará o seu projeto em um sucesso? - repetiu Edgar. - Ele está convidando as pessoas a fazer um tour aqui? Por que uma pessoa muito importante iria querer vir aqui? - E continuou a ler:
NILS E NORA DE GROOT
Equipe de casal de arquitetos. Número um em design - há trinta anos. Ocupam atualmente o trigésimo oitavo lugar (os trinta e sete primeiros tinham compromissos ou não responderam ao seu convite). Projetos realizados incluem uma área de recreação para uma escola na Islândia em vime durável e uma cabine telefônica flutuante para plataformas de petróleo no golfo da Tailândia. Têm esperança de que o próximo contrato possa recolocá-los em evidência. Estão dispostos a desenvolver suas idéias. Pediram que todos os quadros em seu quarto de hotel sejam cobertos com musselina de algodão que "liberta o nosso cérebro dos grilhões mundanos".
BLAKE GLIDE
Herói das telas. Estrelou filmes como 0 destruidor e a seqüência de Golpe fatal de 1 a 9. Sua única tentativa de interpretar Shakespeare, RoboHamlet, fracassou. Nos últimos anos, tem dado preferência a representar "obras sérias sem conteúdo explosivo". Quer investir em um hotel, restaurante ou balneário com café-teatro onde ele possa ser a atração regular. Segundo boatos, tem-se envolvido com muitas atrizes principais, mas no momento não está comprometido. Sua biografia distribuída à imprensa informa que seus passatempos são voar de asa-delta e praticar sky boarding, desafiando a morte.
MARY FEEMORE
Escritora free-lance ligada a uma companhia de guias de segunda linha. Enviou uma carta ao seu gabinete solicitando um lugar no tour. Disposta a pagar a própria despesa. Sem informação. Histórico não disponível.
ALEX SAI
Repórter de turismo premiada e editora-chefe de turismo do Capital Times. Sua coluna é publicada nas principais revistas do país. Não tem marido, nem filhos, nem bichos de estimação. Trabalha na cidade de Nova York, mas possui apartamentos em Londres e Rio de Janeiro. Muito influente, sua opinião é considerada decisiva sobre os lugares que são "quentes" e os que não são. Sabe-se que é viciada em café expresso.
Edgar devolveu a pasta à mesa.
- Curioso - murmurou.
Lá fora o prefeito continuava:
"Os turistas virão fazer cavalgadas emocionantes e turismo informativo em nossa encantadora cidade. Para isto, eu planejei um tour inaugural a Nod's Limhs para VIPs e celebridades, cujo apoio certamente convencerá o Registro Nacional do Patrimônio Histórico a aprovar nosso pedido de reconhecimento como cidade histórica. Já é tempo de o mundo descobrir Nod's Limbs."
Ellen continuava a examinar as pastas em ordem alfabética. "Fugas de presos" - leu.
"...e para a fantástica inauguração, eu... quero dizer, nós iniciaremos... a-hã... relembrando os antepassados franceses da família Knightleigh, que ajudaram a construir a nossa grande cidade; para o Primeiro Festival Anual da Torrada Francesa de Nod's Limbs, teremos um concurso gastronômico, um desfile e a revelação da minha surpresa ultra-secreta!"
Os gêmeos ouviam os "ahs" e "ohs" da multidão.
- Então, estão vindo turistas famosos a Nod's Limbs. Ainda não sei como foi que Knightleigh os convenceu a visitar a cidade. O Hotel Motel é nossa única acomodação para hóspedes e tem mais ratos que o barraco do Heimertz! - disse Edgar.
Heimertz era o zelador da casa e da propriedade dos gêmeos, e embora nenhum dos dois tivesse visto o interior do barraco, o exterior não parecia nem um pouco hospitaleiro.
- AHA! - exclamou Ellen.
A garota puxou do arquivo uma pasta intitulada "PROJETO DE RECONSTRUÇÃO DO LIXÃO" e apanhou dentro um luxuoso desenho de um edifício ainda mais luxuoso.
A garota perdeu o fôlego.
Eram imagens de um edifício alto com duas janelas em meia-lua e uma cúpula. Uma fileira de bandeiras de Nod's Limbs encimava o telhado e todas as janelas tinham venezianas imaculadamente brancas. Roseiras roxas cercavam o impecável gramado verde e o edifício estava pintado de lilás-claro.
Edgar foi ver.
- Parece a nossa casa, Ellen... mas em um pesadelo. - Jamais vira algo tão aterrorizante.
- Acho que é disso que trata o programa turístico, Edgar - Ellen apontou para os dizeres no pé de página, "O HOTEL KNIGHTLORIAN, NA ÁREA DO ANTIGO LIXÃO".
- Knightleigh quer construir um hotel grã-fino sobre o Cemitério de Utilidades e precisa de hóspedes para ocupar os quartos!
- Ele não pode fazer isso! É nosso! - disse Edgar. - Vamos perder os nossos suprimentos. Você faz idéia dos planos que tenho na cabeça?
- Olhe! - gemeu Ellen. - Fontes com cupidos no jardim. E isso aqui... não são margaridas? Que nojo!
Só de pensar em flores alegres Ellen gelou e lembrou-se de outra coisa.
- Edgar - disse a garota -, isto matará Berenice. Os gêmeos olharam fixamente para os papéis que tinham à sua frente e depois se entreolharam.
"Daqui a uma semana vamos oferecer a eles o primeiríssimo tour, na manhã do Festival da Torrada Francesa. Para Guia Turístico Oficial de Nod's Limbs, nomeei a meritosa acadêmica srta. Stephanie Knightleigh, que recentemente recebeu nota A + em seu trabalho intitulado 'A história completa de Nod's Limbs'!"
A menção do nome de Stephanie Knightleigh sacudiu Ellen do seu estupor. Ela foi até a janela e olhou de cara feia para Stephanie, que estava ao lado do pai vestida com um conjunto lilás e fazia uma reverência teatral. Em meio a breves palmas, o prefeito sorriu orgulhoso.
"A minha iniciativa ê o resultado de muitos meses e longas horas de reflexão, ponderação e contemplação. Peço a vocês, honrados cidadãos de Nod's Limbs, que se juntem a mim nesta cruzada para trazer para nossa cidade o aplauso internacional e a fama e a boa sorte avassaladoras que eu mereço, quero dizer, que a cidade merece."
Edgar e Ellen eram pontinhos escuros na claridade do sol quando voltaram em silêncio para casa, acabrunhados. Saindo da Estrada Ricketts para entrar na ruazinha sem nome que levava à sua casa, os gêmeos sentiram um aperto ao avistarem o seu querido lixão.
Eles cruzaram lenta e penosamente a porta da casa, penetraram no hall sombrio e subiram as escadas. Em cada patamar, passaram por objeto atrás de objeto resgatado do Cemitério de Utilidades: uma coleção de olhos de vidro empoeirados, os restos de um vestido de noiva amarelado que Ellen usou para assustar criancinhas e uma lanterna a óleo com que os gêmeos tinham explorado os esgotos. E, finalmente, chegaram ao quarto andar onde Bicho se refestelava em um sofá roto.
Edgar e Ellen tinham achado Bicho no subporão há anos e resolveram criar o pequeno monte de pêlos embaraçados e sem pernas. A única particularidade de Bicho era um único olho amarelo que se arregalava no alto daqueles pêlos todos. Ele era vagaroso demais para desaparecer discretamente, e Edgar agarrou-o pelo cangote imundo e apertou-o.
- Knightleigh vai destruir o Cemitério de Utilidades, mana. Vai arrancar Berenice da terra e levá-la para um... monturo desses - disse o menino girando o braço com que fazia arremessos. Ellen esperou o irmão atirar. Os gêmeos muitas vezes encenavam a sua versão de beisebol quando estavam ruminando alguma idéia; Bicho era a sua bola favorita.
Zum.
Bicho caiu nas mãos estendidas de Ellen.
- O prefeito disse que o tour inaugural é na semana que vem. Não tem a menor possibilidade de construir um hotel até lá.
O olho amarelo leitoso de Bicho girava para cá e para lá, visível apenas entre os vãos estreitos que separam os dedos. Ellen deu as costas para Edgar e arremessou Bicho por entre as pernas. Bicho saiu rodopiando pelo ar como um ioiô peludo.
Zum.
Edgar agarrou Bicho com uma das mãos.
- Verdade - disse ele com um brilho nos olhos. - E ele só poderá construir o hotel dele se muitos turistas quiserem visitar a cidade. É por isso que precisa que as celebridades venham - aqueles arquitetos famosos construirão o hotel, o ator pagará a conta, e os jornalistas dirão às pessoas para passar as férias em Nod's Limbs! - Edgar atirou Bicho de volta para Ellen, fazendo de propósito um lançamento curto.
- Então - disse a menina mergulhando para apanhar a bola de pêlos e ralando os joelhos no tapete - só precisamos impedi-los. - Mas não sei por que Knightleigh pensa que alguém consideraria Nod's Limbs um patrimônio histórico nacional - disse ela, jogando Bicho com uma das mãos.
- E quanto à "meritosa acadêmica"? - perguntou Edgar estufando a barriga para imitar o prefeito. - Stephanie Knightleigh vai conduzir o tour.
Ellen ergueu uma sobrancelha.
- Seria uma pena se Stephanie chegasse tarde demais. - E colocando-se em posição mirou o Bicho bem na testa de Edgar.
Plafe.
- Não seria, mano? - perguntou ela.
- Com certeza, mana, seria uma grande lástima - disse Edgar, esfregando a testa. - Que pena, quem iria conduzir aqueles pobres turistas?
- Aqueles pobres turistas que deverão amar a nossa encantadora comunidade? E se eles não amarem? E se eles nunca mais na vida quiserem voltar? - perguntou Ellen.
- Não haveria necessidade de um novo hotel - disse Edgar.
- Nem necessidade de acabar com o lixão... ou arrancar Berenice - concluiu Ellen.
Bicho, que tinha quicado na testa de Edgar e caído no chão, arrastou-se para debaixo do sofá enquanto os gêmeos saíam da sala.
Nesse meio-tempo, o restante de Nod's Limbs estava se preparando para a chegada dos visitantes e o Festival da Torrada Francesa, transformando sua cidade no centro de sofisticação urbana que todos sempre pensaram que poderia ser.
Inspirado pelos jardins reais de Versaüles e armado com tesouras de poda novas, cortesia do fundo de cercas da prefeitura, o sr. Poshi projetou uma forma elaborada para as moitas de arbustos na frente de sua casa. A vizinha do lado, sra. Jackson, estava fazendo uma poda muito pessoal. Cortou os pêlos do seu basset hound, Roxy, procurando modelar sua pelagem à imitação de um poodle francês. Roxy não estava gostando nada da experiência.
Por toda cidade, as pessoas aparavam os gramados, pintavam as casas com cores mais vivas e alegres e plantavam flores ao longo das calçadas. No centro, lojistas varriam as entradas das lojas e completavam os estoques de suas prateleiras. O sr. Barbarino, proprietário de um dos restaurantes mais freqüentados de Nod's Limbs, incluiu torrada francesa nos cardápios do almoço e do jantar, e a srta. Gomez exibiu fotos de sofisticados cortes de cabelo europeus em seu salão.
A movimentação, ao redor da prefeitura em particular, fascinava a todos. Um enorme tapume com vários andares de altura fora construído em torno de uma grande área à esquerda do edifício. Avisos de "ULTRA-SECRETO" e "ENTRADA PROIBIDA" estavam pendurados por todo lado, e a cidade ouvia operários, máquinas e ruídos de coisas batendo por trás do tapume a todas as horas.
Seja o que for que ele escondesse, era grande, e o prefeito se encarregava de manter seus cidadãos bisbilhoteiros mal informados.
Os gêmeos passaram a maior parte da semana na biblioteca. Não a biblioteca pública de Nod's Limbs, mas a de sua casa, que ocupava todo o oitavo andar. Edgar e Ellen achavam o aposento muito útil: a biblioteca oferecia excelentes esconderijos para os seus traiçoeiros jogos de esconde-esconde e a fuligem na lareira era ideal para deixar marcas nos carros, casas e janelas da vizinhança.
Os livros na biblioteca, porém, eram outra história. Além do exemplar de Guerra e paz que de tempos em tempos Ellen gostava de deixar cair em cima dos pés de Edgar, a maioria dos volumes mofados permanecia intocada.
Irmão e irmã sentaram-se lado a lado a uma enorme escrivaninha de mogno, cercados de pilhas de livros. Edgar tinha roubado o programa do tour no escritório do prefeito, por isso eles sabiam exatamente quando e onde Stephanie planejava levar as celebridades, mas os gêmeos tinham idéias próprias para tornar estes pontos turísticos inesquecíveis.
A seu lado Ellen pusera o Marcos e história de Nod's Limbs e Curiosidades sobre Nod's Limbs e enquanto folheava suas páginas, não conseguia acreditar que alguém tivesse gasto tempo para escrevê-los. Em outra pilha, havia livros bem mais interessantes, como o Frankenstein, de Mary Shelley; o Drácula, de Bram Stoker e O guia grotesco de filmes de horror.
Bem diante de Edgar estava uma enferrujada máquina de escrever Underwood Standard, preta com letras douradas, que surgira em uma viagem particularmente proveitosa ao Cemitério de Utilidades. Enquanto Edgar datilografava, Ellen lia em voz alta descrições dos marcos de Nod's Limbs, temperando os verbetes do guia com idéias inspiradas pelos livros dos outros autores. A garota então procurou ilustrações em livros sobre monstros, vampiros e outros habitantes da noite e colou-as ao lado do novo texto.
Ellen se curvava sobre Edgar para supervisar seu trabalho.
- Você escreveu "bucanero" errado. Falta o "i".
- A culpa é sua por me ditar uma palavra tão difícil. Toda hora tenho de recomeçar... não tem "retrocesso" nessa máquina.
- O serviço tem de parecer profissional. Não vou sair por aí com um guia turístico malfeito, por isso continue tentando até fazer direito. Ellen tornou a se virar para seus livros, e examinou ilustrações particularmente vividas de esqueletos.
Quando os dois se deram por satisfeitos com o seu trabalho, Ellen encadernou as páginas e criou uma capa para o livro que intitulou Evite Nod's Limbs.
Com todos esses preparativos, a semana passou depressa. Na véspera do dia programado para o festival, o prefeito Knightleigh aguardava à porta do Hotel Motel, puxando, ansioso, os punhos do seu paletó e acertando a gravata. Stephanie estava na recepção atrás dele segurando um prato de croissants frescos, cortesia do Buffy's Muffins (que agora se chamava Buffy's Patisserie no espírito da cultura e sofisticação). Uma pequena multidão movimentava-se pelo estacionamento e sete cidadãos seguravam cartazes com uma mensagem de amizade, idêntica à das grandes pinturas feitas nas sete pontes cobertas da cidade: "BEM-VINDO AMIGO A NOD'S LIMBS. FIQUE CONOSCO."
Com uma freada brusca e um tremor do motor a diesel, um ônibus aerodinâmico parou diante do hotel. A um sinal do prefeito, o comitê de boas-vindas começou a dar vivas e a acenar.
A porta do ônibus se abriu e Nils de Groot desembarcou à claridade do sol com passos longos e ágeis. Usava um terno preto com uma suéter de gola role e seus cabelos prateados caíam pelos ombros como fiapos de fumaça. O renomado arquiteto abriu bem os braços e passou pela mão estendida do prefeito sem se deter.
- Tive uma visão - exclamou, contemplando o hotel barato. - É claro como uma gota cristalina de orvalho em um copo-de-leite: é aqui que o vilarejo de Lob's Limbs deve construir um relógio de sol invertido. De níquel maciço! Será a sua maior realização.
- Não, não, Nils! - Nora de Groot parou de pernas abertas e pés plantados no degrau superior do ônibus, as mãos em luvas brancas pousadas nos quadris. - Você não está vendo, Nils? A claridade da luz, o ângulo das montanhas, essas estruturas modestas; o vilarejo decididamente está pedindo um posto de bombeiros em forma de sino! Esculpido em alabastro e decorado com malhas de tinta preta. - Enquanto falava, ela desceu rapidamente, seu vestido branco rodado e o lenço da cabeça esvoaçando.
Os arquitetos entraram no hotel discordando animadamente, sem dar atenção ao prefeito.
- Nod's Limbs é oficialmente maior do que um vilarejo - gritou o prefeito quando passaram por ele. - Somos uma cidade.
Acompanhando os de Groot em seu desembarque, Mary Feemore, uma mulher miúda, apertava um bloco de notas amarelo nas mãos. O prefeito fora informado de que ela colaborava com várias companhias que vendiam guias de viagem nas paradas de ônibus das estradas, mas ele não lia esses guias nem visitava paradas de estrada. Pelo menos a companhia pagara sua viagem; a prefeitura estava financiando o tour para os demais VIPs, e somando a viagem e a hospedagem o custo era bem alto.
Mary Feemore parecia cansada, mas seu rosto se iluminou quando viu o prefeito e Stephanie.
- Olá, sr. Prefeito. Permita que me apresente - disse ela, apertando a mão dele ainda estendida no gesto de boas-vindas.
- É, o tempo está ótimo, não? - disse ele olhando para além do ombro de Mary sem lhe dar atenção.
O prefeito se concentrou na figura que apareceu a seguir à porta; e ele não foi o único: a multidão que aguardava começou a gritar e a apontar e a brigar para ver melhor. Era Blake Glide, o famoso ator de Hollywood. O astro de trinta e tantos filmes de ação de grande sucesso parou nos degraus do ônibus e inclinou a cabeça, permitindo que os fotógrafos mais próximos tivessem uma visão mais clara do seu perfil inconfundível. Tirou o boné e passou os dedos pelos cabelos cuidadosamente desalinhados, dando um sorriso faiscante.
Depois de cumprimentar o prefeito com um caloroso sorriso, Blake Glide encaminhou-se para o enxame de fãs e curiosos. Apertou mãos e ergueu muitas vezes o polegar sinalizando que estava tudo bem, até que uma garota muito pálida de queixo pontudo e uma peruca loura abriu caminho às cotoveladas em sua direção, e empurrou papel e caneta na cara de Blake Glide.
- Pode me dar o seu autógrafo?
- Faço qualquer coisa para a minha fâ número um - disse ele com uma piscadela. - Que é que você quer que eu diga?
- Para Edgar: Você fede como um passarinho, morto, inchado e podre.
Blake Glide começou a escrever, mas parou abruptamente.
- Ah. Sei - disse ele franzindo ligeiramente a testa.
- Vou apenas assinar o meu nome. Que tal?
- Como quiser. - A garota tirou a caneta e o papel das mãos dele e disse ao se afastar. - Muito obrigada mesmo. Eu sempre quis o autógrafo de um motorista de ônibus.
O público de adoradores continuou a exigir a atenção de Blake Glide, deixando o prefeito sozinho para cumprimentar o VIP mais influente de todos.
- Quero ser o primeiro a lhe dar as boas-vindas à histórica Nod's Limbs, sra. Sai - disse ele quando a última personalidade desembarcou.
- Muito obrigada - rosnou Alex Sai, descendo para a rua. - É emocionante estar em uma cidade menor do que o meu apartamento.
Ela usava óculos azuis sem aro, um fone de celular em uma das orelhas e uma caneta atrás da outra. Lançou ao prefeito um olhar como se o dispensasse e olhou para os cidadãos de rostos frescos que acenavam e aplaudiam. Bocejou.
Stephanie interrompeu o silêncio constrangedor.
- Bem-vinda a Nod's Limbs, sra. Sai. Gostaria de provar um croissant? - perguntou ela, lançando um olhar preocupado ao pai.
- Não como açúcar nem farinha processados industrialmente - respondeu Alex Sai com frieza.
- Naturalmente; deve ser assim que mantém esse corpo fantástico - disse o prefeito, dando o seu melhor sorriso de campanha. - Também não gosto de nenhum processo no meu açúcar.
Alex Sai deu uma olhada na barriga volumosa do prefeito.
- Ceeerto - disse.
- Nod's Limbs é uma cidade de notável herança e tradições culturais. Temos muitos eventos maravilhosos planejados para a senhora - disse o prefeito.
Ela olhou por cima dos óculos para o Hotel Motel.
- Que bom, espero que uma dessas coisas seja um expresso duplo.
Aquela noite Edgar e Ellen se encontraram no sobre-sótão para conferir sua lista de materiais.
- Tinta vermelha.
- Aqui.
- Corda.
- Aqui.
- Chave inglesa.
Ellen não respondeu; em vez disso, virou-se para espiar pelo grande telescópio às suas costas. Era o único objeto no sobre-sótão e sua posição diante de uma escotilha no telhado oferecia-lhes uma vista genial de toda a Nod's Limbs. Embora estivesse ficando muito escuro, Ellen pôde ver as pessoas da cidade ocupadas com os preparativos para o desfile e o festival do dia seguinte.
- Chave inglesa - repetiu Edgar. Ellen continuou a não responder. Manteve um olho colado na lente, abaixou o ângulo do telescópio e olhou diretamente para o quintal da casa até ver o que precisava: a caixa de ferramentas de Heimertz fora deixada à porta do seu barraco.
- Chave inglesa. Aqui. Você só precisa descer e pegar.
Edgar e Ellen sentiam uma coisa por Heimertz que não sentiam por mais ninguém: pavor. O zelador, que não parecia jamais zelar por nada, tinha o sinistro costume de aparecer ninguém sabia de onde. Os gêmeos odiavam o seu olhar fixo, que parecia atravessar pensamentos, e seu sorriso de gato careteiro sequer tremia. Mas Heimertz jamais condenava ou comentava os malfeitos dos gêmeos. Na verdade Heimertz jamais lhes dirigira a palavra.
A idéia de andar sorrateiramente em volta do barraco do zelador fez Ellen se arrepiar, mas se a caixa de ferramentas continha uma chave inglesa alguém teria de roubá-la. A menina se afastou do telescópio para deixar o irmão ver com os próprios olhos.
- Você ficou maluca? - gritou ele. - Pelo que a gente sabe ele pode estar dormindo no barraco neste minuto!
- Mais uma razão para você ir agora - respondeu Ellen calmamente.
- Eu? Por que eu?
- Você é o Houdini - disse a irmã erguendo a voz. Edgar gostava de praticar as técnicas do maior artista do mundo em fugas e suas habilidades tinham vindo muitas vezes a calhar.
- É verdade. Sou um mestre. - Ainda assim hesitou um momento antes de descer nas pontas dos pés os lances de escadas circulares e sair da casa escura para a noite ainda mais escura.
Quando Edgar se aproximou cautelosamente da caixa de ferramentas, seus pés produziram ruídos de sucção contra a terra macia e molhada. Ele ouviu roncos surdos e prolongados vindos do barraco. Ajoelhou-se então ao lado da caixa de ferramentas e levantou sua tampa devagarinho.
Crrreeeeeque!
Edgar sentiu um aperto no estômago. Parou para escutar com atenção, mas os roncos de Heimertz continuaram sem interrupção. Edgar prendeu a respiração e revistou as ferramentas sem fazer barulho. Seus dedos encontraram uma forma conhecida quase no fundo e, agarrando a chave com força, ele fugiu.
Em sua pressa de se afastar, Edgar não reparou que os roncos de Heimertz tinham parado e que o barraco do zelador estava silencioso como uma noite sem grilos. Ele tampouco viu o sorriso luminoso que flutuava atrás da janela única e rachada do barraco.
Ainda faltando horas para amanhecer, os gêmeos saíram escondidos do quintal para o labirinto de casas adormecidas do bairro. Edgar abastecera a mochila com novos suprimentos e Ellen levava no ombro uma pá cheia de crostas. Os dois carregavam latas de tinta e pincéis. Andando pelas sombras densas em direção ao centro da cidade, os dois passaram sem ser vistos pelos poucos cidadãos que ainda varriam as calçadas e regavam os canteiros.
Eles viraram uma esquina e depararam com as sebes da família Poshi recentemente podadas. Réplicas folhosas do sr. Poshi, da sra. Poshi e dos pequenos Timmy e Pepper acenavam alegremente para os gêmeos. Até uma framboeseira fora aparada para reproduzir o cocker spaniel da família.
- Nenhuma planta merece esse tipo de humilhação - comentou Edgar. - Sinto que é nosso dever acabar com o sofrimento dessas sebes. - Ele apanhou a tesoura de poda que fora esquecida no gramado.
Enquanto o irmão atacava os arbustos, Ellen avistou Roxy, o basset hound da sra. Jackson com o corte de poodle, dormindo na casa vizinha fora do canil recém-decorado. A menina desamarrou a fita roxa na cauda de Roxy, tomando cuidado para não acordar o cachorro, e voltou para a companhia do irmão. Ele quase terminara a poda.
- Sabe, mana - disse ele cortando perversamente a mão erguida de Pepper - só tem um problema com o nosso plano: Stephanie. Ela poderia estragar tudo.
- Só precisamos mantê-la ocupada com outras coisas - disse Ellen, deixando cair a fita com displicência em cima dos galhos cortados pelo irmão. - Anda depressa, Edgar. Ainda temos de fazer muitas paradas e a noite não vai durar para sempre.
Eles se separaram ao chegar ao rio e Ellen rumou para o Hotel Motel. A menina guardou seu equipamento no saguão e entrou na ponta dos pés pelos corredores escuros enfiando bilhetes embaixo das portas dos turistas.
Um vulto se movia no fim do corredor. Ellen se ergueu e ficou imóvel. Uma mulher alta e esguia materializou-se das sombras, os pés calçados com chinelos tocando silenciosamente o carpete. Ellen desejou que o irmão estivesse ali; ele sempre tinha querido ver um fantasma.
- Você não está vendo? - perguntou a fantasma. Enquanto ela deslizava ao encontro de Ellen, apontando graciosamente para objetos invisíveis, a menina percebeu, desapontada, que aquele vulto fantasmagórico era de carne e osso. Nora de Groot estava sonambulando.
E falando dormindo.
- Você não está vendo? - perguntou, desta vez mais alto.
- Chiiii - fez Ellen.
- Você não está vendo?
Ellen receou que essas perguntas acordassem os hóspedes do hotel antes que ela terminasse suas entregas, então procurou lembrar uma canção de ninar para fazer Nora de Groot voltar para a cama. A maioria das canções de ninar a deixava com vontade de vomitar, mas o pensamento em uma Berenice torturada fortaleceu sua decisão; conseguiu lembrar de uma que Edgar cantava para Bicho quando eles eram mais novos. Ellen começou a cantar baixinho ao mesmo tempo que conduzia Nora de Groot pelo corredor.
Nana, neném, trepado na árvore,
Não tropece ou vai despencar daí.
Que está jazendo, tentando voar?
Vai flutuar e vai navegar,
Mas por fim vai cair e morrer.
Cantando baixinho a nota final do seu acalanto, Ellen empurrou a sonâmbula de volta ao quarto.
Nesse meio-tempo, do outro lado da cidade, Edgar repôs a chave inglesa de Heimertz na mochila e examinou o seu trabalho no Museu de Cera.
Olhou por cima do ombro para os manequins imóveis.
- Você talvez queira tirar o paletó - disse a uma estátua próxima. - A temperatura por aqui vai subir.
Rumou para o sul e se juntou à irmã no parque.
- Está tudo pronto no museu. Algum problema no hotel? Ellen? Ei, pés bexiguentos!
Ellen estava olhando fixamente para o lado oposto da rua.
- Olha só para aquilo - disse.
Perto da prefeitura uma cerca de arame protegia um enorme tapume de madeira.
- Quanto mais alta a cerca, melhor é o segredo - disse Edgar, fitando os avisos de "ENTRADA PROIBIDA". Vamos ver o que o Knightleigh planejou para o Festival da Torrada Francesa.
Os gêmeos rondaram a base da barricada. Escalá-la estava fora de questão - não somente era demasiado alta, mas a equipe de Knightleigh passara graxa na parte inferior da cerca para desestimular os curiosos.
- Que pena aqueles passarinhos não poderem nos dizer o que tem lá dentro - comentou Ellen, olhando uns pombos empoleirados no alto da cerca, arruinando e sacudindo as penas.
- Se ao menos tivéssemos uma catapulta - disse Edgar.
- Poderíamos arremessar você lá dentro - concordou Ellen.
Eles examinaram o portão da cerca, que não era tanto um portão mas uma porta pesada de aço com três fechaduras e nove cadeados.
- Não tenho chaves suficientes na mochila para todos esses cadeados - reclamou Edgar.
- Como é que vamos entrar? - perguntou Ellen. - Daqui a pouco o sol vai nascer e ainda temos muito que fazer.
Edgar estalou as juntas dos dedos e então lembrou-se da pá da irmã.
- Faremos um túnel - disse ele.
Eles procuraram um trecho desigual de chão nos fundos da obra. Ellen mal começara a cavar quando os latidos de um cão assustaram os gêmeos. Irromperam pela noite e vieram se aproximando.
- Será que o prefeito tem cães de guarda por aqui? - cochichou Edgar.
Antes que Ellen pudesse responder, um cão pastor peludo surgiu aos saltos de um dos lados da cerca e parou diante dos gêmeos. Calou-se e começou a rosnar.
- Dudley! Volte aqui. Cadê você? - Uma mulher dobrou a esquina atrás do cachorro.
- Ah.
Os gêmeos reconheceram Nancy Weedle, uma colaboradora do Nod's Limbs Gazette.
- Que é que crianças como vocês estão fazendo a esta hora, com uma pá, cavando na área ultra-secreta do prefeito?
- Consertando a tubulação. Estamos finalizando as coisas - disse Ellen dando um puxão no pijama do Edgar enquanto ele recolhia seus pertences. - Um bom passeio para a senhora. Bonito vira-lata o seu. - Os gêmeos deixaram a mulher confusa e o cachorro rosnador junto à cerca.
- Finalizando as coisas? - interpelou-a Edgar. - Quero ver o que tem aí dentro.
- Cavar vai levar a noite inteira! - respondeu Ellen. - Além disso, temos os nossos próprios planos, e eles vão superar qualquer coisa que o prefeito tenha escondido nessa fortaleza. Anda, vamos voltar ao trabalho.
Os gêmeos deixaram a prefeitura e foram caminhando ao longo do rio Corrente. Sete pontes cobertas brilharam ao luar e quando eles chegaram à ponte mais a oeste, puderam ler a mensagem pintada nos sete telhados virados para eles: "VOLTE À NOD'S LIMBS AMIGO E CUIDE-SE".
- Há! - exclamou Ellen, armando-se com um pincel. - Ninguém voltará aqui tão cedo.
Os gêmeos treparam pela lateral da primeira ponte e puseram mãos à obra. Horas mais tarde, depois de terem subido nas sete pontes e visitado os últimos locais necessários em Nod's Limbs, tudo ficou finalmente no lugar. Os primeiros raios de sol romperam o céu noturno e embora estivessem cansados, Edgar e Ellen voltaram aos pulos para casa, sacudindo a areia dos pijamas rotos.
Por volta das 8h30, os turistas tinham se reunido no saguão do Hotel Motel.
- Que tipo de brincadeira esse tal Knightleigh está fazendo? - perguntou Blake Glide inflamado, sacudindo na mão um dos bilhetes de Ellen. - Põe isto embaixo da porta no meio da noite, nos dizendo para estar aqui meia hora antes do programado? No set de filmagem ninguém ousa me chamar antes das dez da manhã!
- Mais alguém reparou no tipo de energia estranha que há nos quartos? - perguntou Nils de Groot. - Tivemos de soprar os nossos sininhos de vento quarenta e cinco minutos para fazer fluir energia positiva.
- Não reparei em nenhuma energia - comentou Alex Sai. - Mas isto explica o tilintar importuno que não me deixou adormecer. - Ela olhou com desaprovação o papel de parede descascado no saguão através dos óculos azuis. - Onde está meu expresso? - perguntou irritada. Alex Sai tinha a paciência muito curta antes do café da manhã. E tinha a paciência muito curta mesmo depois do café da manhã.
Somente Mary Feemore parecia mais animada e desperta.
- Simplesmente adoro as manhãs, você não? - perguntou ela à jornalista. Alex Sai lançou-lhe um olhar antipático.
As portas do saguão se abriram.
E entrou Ellen usando um chapéu escuro e um crachá em que se lia "GUIA TURÍSTICO". A menina segurava um livreto em uma das mãos e um ponteiro na outra. Na verdade, o objeto mais parecia um esfregão sujo do que um ponteiro; era Bicho amarrado na ponta de um velho ancinho. Edgar acompanhava a irmã, carregando sua mochila.
- Vamos nos apressar, gente - saudou Ellen. O grupo sonolento reagiu lentamente, então ela tocou o apito que trazia pendurado ao pescoço. Com isto obteve a atenção de todos.
- Escutem - recomeçou a menina. - Hoje sou sua guia oficial e este aqui é o meu assistente. - E apontou para Edgar. - Ele nos garantirá uma travessia segura de um ponto a outro, porque naturalmente não queremos que o grupo sofra nenhum acidente infeliz.
- Meus cumprimentos - disse Edgar.
- Acidentes? - indagou Alex Sai. - Essa cidade não parece tão perigosa assim.
- Ah, a senhora ficaria surpresa - respondeu o menino.
- Ele não parece grande coisa como guarda-costas, não acha, querido? - murmurou Nora de Groot para o marido.
- Para que serve o esfregão? - perguntou Blake Glide.
- Para os senhores poderem me ver no meio da multidão - respondeu Ellen. - Precisamos ficar juntos.
- E o que é essa coisa amarela na ponta? - perguntou Mary Feemore.
- É um olho, para que eu sempre possa ver os senhores na multidão.
Mary Feemore estremeceu.
- Repugnante - comentou Alex Sai.
- Temos muito terreno a cobrir, portanto é melhor nos pormos a caminho para não desperdiçar mais o meu tempo. - Ellen tornou a tocar o apito. - Andando, andando.
As pessoas do tour se enfileiraram e acompanharam Ellen pela porta do hotel.
- Onde está o nosso ônibus? - perguntou Nora de Groot.
- Ah, hoje não haverá ônibus - disse Ellen.
- Quê? Mas isto é muito inconveniente! - exclamou Nils de Groot. - Os sapatos finos que calcei são feitos à mão na Itália por um famoso sapateiro e não são próprios para caminhar.
- Os senhores verão que Nod's Limbs é melhor visto ao nível do chão - disse Ellen. - De outra forma os senhores perderiam detalhes ocultos, as pequenas coisas que fazem a cidade pulsar... pulsar... pulsar.
- Mas sou famoso - protestou Blake Glide. - Nunca vou a pé a lugar nenhum.
- Francamente não sei o que é pior: se os tours de cidades pequenas ou os turistas de cidades pequenas - comentou Alex Sai. - Vamos acabar logo com isso.
- Em marcha! - comandou Ellen.
- Se construirmos um hotel aqui, vou debitar um par de sapatos na nossa conta reembolsável - disse Nils de Groot.
Edgar e Ellen levaram o grupo pela vereda Copenhague, cantando em voz baixa uma canção para se animar.
Vamos levar nossos convidados
Num tour de arrepiar;
Vamos chocar esses VIPs famosos
Até fazê-los endoidar...
Esses ingênuos visitantes
Nem suspeitam de sabotagem.
Verão uma cidade rábica
E jamais ousarão voltar!
Menos de uma hora depois de Edgar e Ellen assumirem o tour, Stephanie Knightleigh entrou muito segura no saguão do Hotel Motel. Ficou surpresa de encontrá-lo vazio. Será que todos os turistas tinham dormido demais?
- Celebridades - resmungou. - Talvez os Elines saibam onde estão todos.
Os Elines eram o casal idoso que diriga o Hotel Motel. Stephanie encontrou-os sentados na varanda dos fundos.
- Onde estão os turistas?
- Ora, com os guias, é claro - disse a sra. Elines com um fiapo de voz. - Posso lhe servir um chá? - perguntou.
- Como assim "estão com os guias"? Eu sou a guia. Estão vendo o meu crachá? - E, de fato, ela estava usando um crachá de papel onde se lia "GUIA OFICIAL DE HISTÓRIA".
- Eram diabretes gêmeos, querida, vestindo pijamas listrados - explicou a sra. Elines.
- QUE? - berrou Stephanie, e os Elines se sobres-saltaram. - A senhora está me dizendo que aqueles dois seqüestraram o meu tour? - Seu rosto assumiu um tom rosa-vivo. - Aquela assassina de bonecas encrenqueira está tentando arruinar minha vida!
- Lembro que a menina carregava um esfregão. - disse a sra. Elines. - Tem certeza de que não quer um bom chazinho de camomila para se acalmar?
- Eles vão me pagar! - exclamou Stephanie, sacudindo os punhos para o alto antes de sair pela Copenhague em passos decididos.
- Que menina estranha - comentou a sra. Elines.
- Hum, é - respondeu o marido.
Hoje em dia, quando contemplamos a feia praia de Nod's Limbs, é difícil imaginar que no passado tenha sido um reduto resplandecente de bucaneiros. Isto mesmo - espadachins ferozes do mar! Antigamente o rio Corrente realmente corria e navios piratas carregados de butim navegavam por suas corredeiras e, muitas vezes, paravam para um breve descanso nas margens de Nod's Limbs. Os acampamentos eram dominados pelos capitães ao mesmo tempo maus e brutais, e uma terrível sina aguardava qualquer estranho que se atrevesse a se aproximar. À medida que os piratas e seus prisioneiros começaram a desaparecer, cada vez menos navios escolhiam esse ponto do rio para ancorar. Ninguém sabe o que aconteceu àqueles piratas, mas uma lenda local atribui seu desaparecimento a um tal "Monstro sem pernas". Se a pessoa encostar o ouvido na areia, algumas vezes ainda pode ouvir os seus gritos mal-assombrados.
A praia de Nod's Limbs não era tanto um balneário fluvial, mas uma pequena extensão de areia grossa surgida há alguns anos quando uma carroça puxada por cavalo perdeu uma roda e acidentalmente despejou um monte de areia ali. O prefeito gostou da idéia de uma praia em Nod's Limbs e mandou trazer mais carroças de areia, imaginando que os cidadãos poderiam gostar de construir castelos de areia, tomar banho de sol e surfar. Surfar era um problema porque o rio Corrente não tinha ondas e nem mesmo muita água, mas construir castelos e tomar banho de sol tornaram-se muito populares no verão.
Atualmente ninguém se deitava na areia e todos os castelos de areia tinham sido destruídos.
Quando os visitantes se aproximaram, Nora de Groot virou-se para o marido e disse:
- Você não está vendo, querido? Esta praia pede um balneário hexagonal esculpido com areia e sustentado por seis pilastras termoplásticas externas. Acho que vermelhas.
- O seu balneário de areia não se desmanchará quando chover? - perguntou Mary Feemore.
- Essa é a idéia - disse Nora de Groot. - As pilastras resistiriam, como as montanhas. É um comentário sobre a impermanência da sociedade.
- Não ligue para ela, minha bela - disse o marido. - O seu gênio não foi feito para ser compreendido por todos. - O casal se entreolhou com carinho.
Ellen fez o grupo parar na calçada à pequena distância da praia e apitou.
- Bem-vindos à praia de Nod's Limbs - disse. - No século dezenove, piratas saqueadores usavam este local para descansar entre suas viagens. Talvez os senhores devam andar com cuidado.
Ela apontou Bicho, cujo olho único agora estava coberto por uma venda de couro, para uma tabuleta denteada em que se lia: "CUIDADO COM LESSIE - NÃO NOS RESPONSABILIZAMOS POR VOCÊ." Havia um chapéu em frangalhos caído ao pé da tabuleta.
- Ah, uma vítima recente - comentou Ellen. - Coitada.
- Isso é uma brincadeira? - perguntou Alex Sai.
- Alguém caiu aqui hoje de manhã? - perguntou Blake Glide.
- Alguém foi arrastado para cá hoje de manhã - respondeu Ellen. - Diz-se na cidade que uma criatura misteriosa vive na areia movediça. Acredita-se que o Monstro Sem Pernas é uma fera com corpo de serpente que ronda a margem do rio à procura de carne humana.
- Não quero saber de lendas urbanas... nem suburbanas... nem de lendas em que caipiras acreditam - disse Alex Sai. - Preciso de fatos.
- Deveríamos chamar uma ambulância - exclamou Mary Feemore.
Ellen suspirou.
- Claro que não; não tem sentido chamar uma ambulância agora. A infeliz já se foi há muito, muito tempo.
Um silêncio de aturdimento se abateu sobre o grupo.
- Espere aí: aonde foi o seu assistente? - perguntou Mary Feemore, procurando Edgar com o olhar.
- O monstro pegou-o! - ofegou Blake Glide.
- Talvez - disse Ellen. - Mandei-o na frente para procurar sinais da velha Lessie. Estragaria a viagem dos senhores se fossem comidos por uma fera assassina.
Os turistas tornaram a se calar. Pareciam inseguros quanto à maneira de reagir a essa informação.
- Não se preocupe, sra. Sai - disse Blake Glide finalmente. - Já lutei com lagartos venenosos e assassinos no meu filme Emoção no Vale da Morte. Com certeza posso cuidar de um bicho sem pernas. - E deu uma piscadela teatral.
- Provavelmente não - alertou-o Ellen. - Não conhecemos sobreviventes dos ataques de Lessie. Sua capacidade de matar é lendária. Os piratas que no passado navegaram por estas águas faziam os seus prisioneiros caminharem sobre a prancha de olhos vendados, não para cair no rio, mas na toca do bicho nas areias movediças, uma morte bem pior. As vezes quando se escuta com atenção, ainda se pode ouvir os gritos de agonia das vítimas.
O grupo silenciou, mas só o que ouviram foi o rumorejo do rio.
De repente, ouviu-se um lamento baixo vindo da praia.
- Socorro... me salvem... não quero morrer... - A voz foi sumindo em um gemido abafado.
- Que foi isso? - perguntou Blake Glide. E deslocou rapidamente sua atenção de Ellen para a praia e da praia para Ellen.
- Fantasmas - vozes dos mortos - eles falam comigo! Vocês também os ouvem? - perguntou Nora de Groot.
- Imagino que todos possamos ouvi-los. Esta confusão está me dando dor de cabeça - comentou Alex Sai.
- São as almas penadas, vítimas de Lessie - explicou a menina -, sempre tentando atrair outros para as garras da fera.
- Claro que não são! - contestou Mary Feemore.
- Não vou cair nessa - disse Blake Glide, que ainda assim deu um passo atrás.
Alex dirigiu-se a Ellen:
- Se esse lugar é tão perigoso, por que ninguém capturou esse monstro e mandou retirar a areia movediça?
- Ah, o prefeito acha que é útil para cuidar dos sonegadores de impostos - respondeu Ellen.
- O prefeito...? - admirou-se Mary Feemore.
- E os pais acham o monstro útil para ameaçar as crianças desobedientes - continuou a menina.
Os lamentos haviam recomeçado.
- Mãe, para onde você foi? Onde... ?
- Horrendo! - exclamou Nora de Groot com a voz trêmula. - Não vou construir balneário nenhum aqui. O equilíbrio cármico foi perturbado.
Mary Feemore escreveu furiosamente em seu bloco. Mas Alex Sai pisou desajeitada na areia.
- De onde está vindo essa voz? - perguntou.
- Aaaaaííiiiiii!
O grito agudo cortou o ar e ecoou nos pedregulhos enfileirados na praia. Alex Sai tampou os ouvidos e recuou alguns passos.
- Insisto que partamos imediatamente - falou Nils de Groot, se afastando.
- Não tem sentido perder tempo - disse Blake Glide, colidindo com o arquiteto ao recuar ligeiro.
- Claro que não. Temos muito mais para ver - falou Ellen. - Vamos companheiros! - Ela desceu decidida a Copenhague. Alex lançou um último olhar à areia e acompanhou o grupo que se retirava.
Quando Ellen se afastou com os turistas, Edgar saiu de trás dos pedregulhos. Segurando uma lata, foi acompanhando a mangueira presa à lata até o meio da praia, desenterrou-a e enrolou-a no ombro. Na outra ponta da mangueira, uma segunda lata acabara de aflorar da areia.
Edgar repôs o telefone improvisado em sua mochila, virou a tabuleta sobre a Lessie e se escondeu atrás da pedra para esperar.
Não demorou muito, uma Stephanie sem fôlego chegou correndo à praia, mas nada encontrou exceto o chapéu de praia abandonado e uma tabuleta com os dizeres: "DESVIO: SESSÃO DE FOTOS COM OS VIPs POR AQUI."
- Por que não me informaram de uma sessão de fotos? - perguntou ela. - Este é o meu tour! Eu deveria aparecer nas fotos! - E prosseguiu aborrecida na direção indicada pela flecha.
- Há! - exclamou Edgar. - Isso foi mais fácil do que agarrar o Bicho. - E saiu depressa no encalço de Ellen e do grupo.
Nesse meio-tempo, Stephanie seguiu pela via Nassau procurando os turistas. Mas até chegar ao fim da rua não viu sinal deles. A via Nassau levou-a diretamente à prefeitura, onde ainda havia muita atividade por trás da enorme barricada. Uma multidão de curiosos se reunira em torno dela, tagarelando.
- Aposto como é um placar eletrônico para as O-limb-pí-a-das de Nód's Limbs. O velho Barger sempre cochila nas arquibancadas e esquece de trocar manualmente os resultados.
- Não, provavelmente é um trepa-trepa para a escola primária. O meu pequeno Adam vai ficar felicíssimo. É tanta gente que os meninos têm de fazer rodízio para brincar.
Nesse instante, o prefeito Knightleigh saiu da área ultra-secreta, conversando com um empreiteiro. Avistou a filha.
- Stephanie! - exclamou. - Que está fazendo aqui? - Puxou-a para um lado e sussurrou: - Onde estão os nossos convidados importantes?
- Ah... bem... ah... os turistas estão... - gaguejou Stephanie.
- Mocinha, será que preciso lembrar-lhe como o dia de hoje é crítico? O nosso pedido de reconhecimento ao Registro Nacional do Patrimônio Histórico depende desses VIPs - principalmente da Alex Sai. A nossa inclusão na lista do patrimônio trará milhares de turistas para cá.
- Eu sei, papai. Está tudo sob controle. Eu só... ah... queria lhe informar que está tudo correndo bem. Não precisa se preocupar. Mas vou voltar para os nossos convidados imediatamente - disse Stephanie.
- Faça isso, minha filha. Lembre-se de que você é uma Knightleigh, e este nome será mundialmente famoso quando construirmos a Knightlorian! Quando sua mãe voltar da viagem de negócios na semana que vem, ficará feliz de saber que você está contribuindo para projetar o nome da família. Não quero tornar a vê-la até o desfile e o Festival da Torrada Francesa!
O prefeito voltou sua atenção para o empreiteiro e, furiosa, Stephanie refez o seu caminho pela via Nassau.
Enquanto Edgar e Ellen conduziam o tour pela vereda Copenhague, os residentes chegavam à porta de suas casas sorrindo e acenando. Blake Glide sorria e retribuía os acenos.
- Essa boa gente tem muito bom gosto! - comentou ele. - Será uma honra me apresentar para eles. Teremos sessões todas as noites no nosso teatro e duas aos domingos!
Alex Sai não compartilhou de sua animação.
- Não posso acreditar que deixei o meu chefe me mandar para cá: "As cidades grandes têm tudo em excesso, Alex. Os valores das cidades pequenas são tão vitais, Alex..."
Uma garotinha saiu correndo de casa para cumprimentar os turistas. Mas parou de chofre quando viu quem era a guia.
- Que é que vocês dois estão fazendo? Pensei que a Stephanie era a guia do tour - disse Annie Krump.
- Nada de autógrafos agora - disse Edgar. - Vai dando o fora. - Ellen brandiu o seu ponteiro na cara de Annie. A menina deu um guincho agudo e voltou correndo para casa.
Quase no fim do quarteirão, os turistas pararam diante de um letreiro em que se lia "A FAMÍLIA POSHI LHES DÁ AS BOAS-VINDAS". O sr. Poshi estava parado no extremo do gramado, fazendo uma barulheira. Trajava um macacão de vinil e uma máscara protetora e empunhava um grande pulverizador de pesticidas. Atrás dele, sua sebe cuidadosamente podada agora exibia corpos macérrimos e enormes cabeças redondas.
- Quem faria uma coisa dessas? - exclamava ele, agitando os braços. Mas a máscara abafava sua voz e suas palavras saíam engroladas: "Em ria sas sas!"
- A direita - disse Ellen, fazendo o grupo parar e gesticulando com o seu ponteiro -, os senhores verão a casa da família alienígena de nossa cidade.
- Ah, alienígenas - diz Nils de Groot. - Esta cidadezinha curiosa abriga muitas nacionalidades? Parabéns!
- Não. Esses alienígenas vêm do planeta Narshamp - explicou Ellen, enquanto o sr. Poshi continuava a esbravejar incoerentemente ao fundo. - Pelo menos é o que eles dizem. Há anos a família Poshi tem dito que o seu povo teletransportou-os para Nod's Limbs para preparar os terráqueos para a invasão narshampiana. Eles batem de porta em porta, pregando os costumes narshampianos e distribuindo panfletos cheios de mapas e diagramas. Temos um aqui neste momento, ao lado de um exemplo clássico da arte topiária narshampiana. Acho que ele está tentando contatar outros em seu planeta de origem enquanto falamos. Pode parecer uma algaravia para os senhores, mas em narshampiano acho que quer dizer... - Ellen hesitou um instante - "Como vão as coisas por aí?"
Nora de Groot ergueu uma sobrancelha e encarou Ellen.
- Queridinha, você não acreditou nos delírios desse coitado, não é?
- Concordo. Ele parece apenas uma pessoa normal usando um macacão de vinil - disse Mary Feemore. - Será que não poderia inventar um traje alienígena melhor?
- Talvez a senhora tenha razão - disse Ellen encolhendo os ombros. - Ele é muito convincente quando descreve como os narshampianos se apossam de um corpo humano para usá-los como veículos aqui na terra. Dizem que os macacões ajudam os parasitas alienígenas a controlar seus hospedeiros humanos.
- Eu combati parasitas alienígenas em Perdido no espaço - disse Blake Glide. - Acabei com todos. Se esse cara incomodá-la, sra. Sai, é só me dizer. Acabo com ele também.
Alex Sai revirou os olhos e se voltou para Ellen.
- Os vizinhos não ficam preocupados com esse comportamento duvidoso, talvez por representar uma ameaça? - perguntou.
- Ah, não - respondeu Ellen. - Muitos vizinhos começaram a vestir trajes iguais e a distribuir livretos.
- Quê? - exclamou Mary Feemore. - Ele está até fazendo conversões a esse culto delirante?
- Eu disse que o estilo de vida de Narshamp acaba conquistando a gente - disse Ellen. - A maioria deles é pacata, a não ser que não se acredite em sua história. Então eles se enfurecem um pouco. Humm. Talvez fosse melhor continuarmos, parece que está na hora de ele divulgar o seu evangelho.
O sr. Poshi lançou um olhar alucinado ao seu redor e começou a avançar em direção aos turistas, sacudindo as tesouras de poda e gritando:
- Quem fez isso? Quem fez isso à minha família? - Mas com a máscara tampando o rosto saía um som assim "Que quez nha mília!"
- Nossa, Nils! - exclamou Nora de Groot. - Não deixe ele encostar em mim.
Quando os visitantes recuavam para fugir do alucinado jardineiro, outro indivíduo zangado passou como um trator pelos vizinhos reunidos em torno do jardim dos Poshi.
- Impostora! - guinchou Stephanie apontando para Ellen.
- Vândala! - berrou Ellen apontando de volta.
- QUE? - gritou o sr. Poshi, palavra que soou como "EH?"
Edgar acenou displicentemente para a base das sebes onde havia entre os galhos cortados uma fita de seda roxa.
- Acho que o culpado esqueceu alguma coisa aqui. O sr. Poshi parou para recolher a fita do chão, examinou-a e em seguida olhou para fitas semelhantes nos cabelos de Stephanie e olhou de volta para a primeira. Tentou então falar, mas enfurecido, só conseguia dizer um "ARRRQUE!", que atravessando a máscara soava como um "ARRRQUE!".
- Foi você! - ergueu a voz sua vizinha, a sra. Jackson. - Seu pai vai saber disso, mocinha.
A multidão se virou para encarar Stephanie enquanto ela se afastava do dedo acusador do sr. Poshi.
- Eu não fiz nada. Nem sei do que estão falando - exclamou para os vizinhos que sacudiam a cabeça.
- Tsc, tsc, Stephanie. Devia ter vergonha - ralhou a sra. Jackson.
- Não fui eu! Foram esses gêmeos! - defendeu-se Stephanie, procurando Edgar e Ellen a sua volta. Mas os gêmeos já tinham levado embora os turistas, que pareciam ansiosos para fugir desse contato imediato.
O sr. Poshi e seus vizinhos rodearam Stephanie, impedindo-a de seguir os integrantes do tour. Com uma prova tão convincente nas mãos, não estavam dispostos a deixar a responsável pelo crime escapar.
Se você estiver aguardando a próxima oportunidade para ir às compras ou está querendo uma especialidade local, vá ao centro da cidade. Mas, cuidado, consumidor! Os descendentes dos piratas que navegaram o rio Corrente controlam o comércio de Nod's Limbs há gerações, e seus restaurantes e lojas varejistas darão as boas-vindas à sua carteira com os braços abertos e os dedos ágeis. Portanto, quando aquela sopa de "couve-de-bruxelas em um pratinho de pão" lhe parecer caríssima e você comentar com o seu companheiro de almoço "Isto é um assalto!", não se preocupe - é mesmo!
Edgar e Ellen apressaram o seu grupo a dobrar a esquina da rua Brisbane e seguir para o restaurante do sr. Barbarino, onde o dono os esperava à porta.
- Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos - disse ele. - Entrem e venham experimentar o "Prato Especial de Hoje" no Barbarino's. - Ele usava um avental de xadrez vermelho e segurava um prato de sanduíches. Todos o rodearam ansiosos (a mudança de horário não permitira que tomassem o café da manhã).
- Com licença, sr. Barbarino, mas acho que o grupo gostaria de um café - disse Ellen. - Este rapaz vai ajudá-lo a servir a comida. - Ela indicou Edgar. - E a propósito, mais uma rodada de sanduíches seria bem recebida pelos meus amigos famintos.
- Sem a menor dúvida! Qualquer coisa para agradar os nossos importantes convidados - disse o dono do restaurante.
- Vou buscar mais em sua cozinha - disse Edgar, e desapareceu no interior do prédio.
O sr. Barbarino puxou Ellen para um lado para dar uma palavrinha.
- Ah... onde está a filha do prefeito? Pensei que ela iria conduzir esse tour.
- Ah, coitada da Stephanie, recentemente foi atacada por cães selvagens e está em casa convalescendo. Foi uma sorte podermos substituí-la tão em cima da hora - disse Ellen.
- Cães selvagens! Sério? - indagou o sr. Barbarino. - Que coisa mais inesperada!
Voltando sua atenção para os convidados, ele anunciou.
- Não deixem de guardar espaço para os premiados no Festival da Torrada Francesa hoje à tarde - a minha receita especial estará no bufê!
Edgar reapareceu com a bandeja e ofereceu-a a cada um dos turistas, que engoliram vorazmente os sanduíches. Até Alex Sai sentia fome suficiente para comer mais um, com pão e tudo. Edgar e Ellen se abstiveram de comer; do alto do seu poleiro, Bicho não tirava os olhos da comida.
- Ah, sabores sutis mas insinuantes - entusiasmou-se Nora de Groot. - Preciso pedir a receita para passá-la ao nosso nutricionista.
- Uma forte sugestão de temperos exóticos com um toque mediterrâneo - concordou Nils de Groot, secando os lábios com o guardanapo. - É a interpretação moderna de um clássico.
Nora de Groot concordou com a cabeça.
- Querido, não há dúvida de que você está apreciando esses petiscos; desistiu da sua dieta de ameixas?
- Nunca. Mas você sabe como é essencial experimentar a cozinha local. Faz parte das tradições folclóricas que respaldam a paisagem construída - respondeu o marido. - Que é que você acha que inspirou o meu revelador de fotos para motoristas em forma de picles em Cleveland? O pepino para conservas de Ohio!
Ellen informou:
- O sr. Barbarino é conhecido por usar apenas ingredientes fresquíssimos.
- Bondade sua. É um prazer servir pessoas importantes como os senhores - disse o dono do restaurante. - Vou buscar o café. - E ele se dirigiu à cozinha.
- Qual será o ingrediente que produz esse barulhinho maravilhosamente crocante nos sanduíches - indagou Mary Feemore.
Ela baixou a cabeça para examinar o dela e viu uma baratinha sair correndo de sua mão. Uma carreira de formigas pretas seguiu a barata, subindo pelo seu pulso e o seu braço.
- Aah!
- Que aconteceu? - perguntou Alex Sai virando-se para ver.
- AAAAH! - Mary Feemore tornou a gritar, sacudindo violentamente a mão e lançando a barata e as formigas em sua colega jornalista.
- Que é que você está fazendo? - gritou Alex Sai, sacudindo os insetos de sua blusa. Só então ela observou o que estava fugindo do seu próprio sanduíche.
- AAAAH! - guinchou Alex Sai.
Os demais convidados fizeram coro aos gritos enquanto os insetos saíam de sua comida e cuspiram o que segundos antes tinham elogiado. O rosto de Blake Glide adquiriu um tom esverdeado e Nora de Groot raspou a língua com as unhas.
Quando o sr. Barbarino reapareceu com o bule de café, alarmou-se de ver os seus convidados saírem correndo porta afora.
- Esperem! Esperem! Os senhores esqueceram do café! - gritou para eles.
- Não queremos o seu café, seu pervertido! - gritou Alex Sai em resposta.
Os turistas fugiram rua abaixo e entraram em um parque próximo ao centro da cidade, um local agradável onde compristas e operários paravam para descansar e admirar a vista do rio. Havia bancos à volta do belo jardim e uma fonte, que Mary Feemore, engasgando e apertando o estômago, foi a primeira a avistar. Os turistas enfileiraram-se para lavar o horrível almoço de suas bocas.
Os gêmeos se deixaram ficar para trás.
- Fantástico, mano. Os turistas não virão a Nod's Limbs para comer esse petisco local. - disse Ellen.
- Com os cumprimentos da lancheira da Berenice, mana - respondeu Edgar. - Sanduíche de dedinhos de insetos: "La Spécialité du Cemetière des Gadgets."
Perderam nossa melhor cuisine:
Pena, baratas ao feijão verde!
Inda assim, que belos tons verdes
Espalhou-se por seus rostos.
E decerto não retornarão
Depois de um lanche formigante.
Inda seremos donos do lixão;
Que vão buscar outras paragens.
Quando Alex Sai se apoiou na fonte ofegando e enxugando a boca, ela reparou em um bando de pombos que mergulhava no ar e ia aterrissar em uma imponente estátua do lado oposto do parque.
- Quem é aquele? - perguntou com a voz rouca. No alto de um grande pedestal de concreto, havia uma escultura que parecia fundida em ouro maciço. Um homem régio, de colete, que se sentava empertigado em uma cadeira ornamentada. Os turistas se boquiabriram diante daquele brilho dourado, mas em seguida se concentraram em outra característica ainda mais intrigante. A estátua não tinha braços nem pernas.
- Aquele é o Nod - respondeu Ellen -, o fundador de nossa cidade.
- Que aconteceu com seus braços e pernas? - perguntou Mary Feemore.
Ellen hesitou. A estátua não fazia parte do tour e ela não preparara nenhum comentário, e para dizer a verdade, ninguém sabia a história do que acontecera aos membros de Nod. Inventou então uma versão pessoal.
- Conta a lenda local que quando Nod fundou a povoação chamou-a de Nod's Bod. Mas seus braços e pernas se cansaram de sempre fazer o que ele queria. Nod era um tipo mandão e um dia seus membros tomaram uma decisão e foram embora. Bem, os braços tiveram de rastejar. As pernas saíram andando pela cidade divertindo a população com passinhos de dança, enquanto os braços acenavam e apertavam as mãos das pessoas. Braços e pernas terminaram por alcançar mais popularidade do que o próprio Nod, então os cidadãos mudaram o nome da povoação para Nod's Limbs, ou seja, "Os membros de Nod".
- Então por que não há uma estátua dos braços e pernas de Nod? - perguntou Mary Feemore.
- Porque um dia eles simplesmente desapareceram. E só restou um Nod sem membros para posar para o escultor.
- Isso não faz o menor sentido - comentou Alex Sai.
- Ah, nem tente procurar o sentido - respondeu Ellen. - Muitos cidadãos já enlouqueceram assim.
Blake Glide cochichou para Alex Sai:
- Quem sabe foi isso que aconteceu com o narshampiano.
No pedestal da estátua, havia uma placa com os dizeres: "NOD: FUNDADOR DE NOD'S LIMBS, 1742."
- Por que não há data de morte? - perguntou Alex Sai.
- Ele também desapareceu - disse Ellen. - Se morreu, ninguém jamais encontrou o corpo. Mas houve quem visse seus braços e pernas. Eles vagueiam pela Floresta Negra, sempre procurando o corpo de Nod para poderem se reunir como um todo.
- Se o encontrarem, ele terá mais de duzentos anos - disse Alex Sai com uma risada seca. - E ele era um alienígena também?
Os turistas deram risadinhas nervosas. Ellen simplesmente sorriu e em seguida soprou o apito com força, fazendo Alex Sai franzir o rosto.
- Chega de perder tempo, gente. Temos um museu para ver.
Quando retornavam à rua, Ellen viu um risco roxo entrando pelo portão principal do parque.
Depois de escapar do sr. Poshi e seus vizinhos furiosos, Stephanie correu para o Barbarinos. Quando o aflito dono do restaurante lhe contou que os VIPs já tinham ido, ela rumou direto para o museu de cera, a próxima parada do tour. Mas não encontrou ninguém ali. O museu estava fechado para o público para que os convidados especiais pudessem fazer uma visita particular.
- Eles não podem já ter vindo e ido - resmungou a menina e sentou-se para esperar à porta do museu.
Mas Stephanie não estava sozinha.
Edgar tinha se antecipado ao tour para verificar o museu e, ao olhar por uma janela do segundo andar, viu-a subindo o morro em direção à entrada do edifício.
- Humm... meio adiantada - murmurou. Ele apanhou uma corda na mochila e atirou uma ponta no ar de modo a enganchá-la em uma trave. Abriu então a janela e meteu a cabeça para fora.
- Ei, Stephanie! Ouvi falar que você perdeu uma coisa hoje de manhã! - E ele tornou a se esconder no edifício.
- Aaah! Seu traidor! - rosnou Stephanie. Ela correu atrás de Edgar, abandonando seu posto à porta no momento em que Ellen começou a subir o morro.
Uma grande atração no centro é o Museu de Cera de Nod's Limbs, um monumento à arte de infligir dor. O prédio original abrigava a galeria, o tribunal e a cadeia onde se dispensavam os castigos pelos grandes e pequenos malfeitos. A cidade aboliu a antiga prática de obter confissões dos infratores mergulhando-os em cera quente quando algumas dessas "exposições temporárias" acidentalmente se transformaram em parte da "coleção permanente".
- Estou ansiosa para ver esse museu - comentou Mary Feemore. Ouvi dizer que mostra algumas das realizações mais ousadas da região na arte da cera.
- Não me importa se mostra algumas das realizações mais ousadas em sonegação de impostos; só quero participar de um tour normal a um museu normal - respondeu Alex Sai.
O museu de cera de Nod's Limbs era a instituição mais apreciada pela comunidade. Ao contrário de outros museus de cera que exibem réplicas de celebridades, personagens históricos e criminosos notórios, o museu de Nod's Limbs continha réplicas da cidade de Nod's Limbs. Por apenas dez dólares - crianças pagam apenas metade! -, os visitantes podiam ver imitações de cera do que tinham acabado de ver do lado de fora. Por exemplo, uma sala era dedicada à escola primária da cidade. A professora da quarta série, srta. Croquet, muitas vezes levava seus alunos ao museu para ver a versão em cera dela própria diante da classe e dos vinte alunos de cera sentados às suas carteiras também de cera. A renda do museu era gerada principalmente pelos cidadãos que vinham admirar suas réplicas em cera.
- Por aqui - disse Ellen depois de um forte apito. - Não temos o dia inteiro.
Ela abriu as portas e um bafo de ar quente saudou o tour. Havia alguma coisa horrivelmente errada.
A primeira mostra estava na sala dos prefeitos, que em geral exibia duas fileiras de homens bem-vestidos com olhinhos pequenos, redondos e brilhantes - modelos em cera de cada um dos Knightleigh que governaram Nod's Limbs, desde Thaddeus até o prefeito atual. Mas diante dos turistas não havia réplicas de cavalheiros distintos de eras distantes, mas formas humanas desfiguradas e borbulhantes. Os rostos haviam derretido, formando massas ferventes onde havia apenas olhos de vidro no topo de um monte de cera escorrida. Os dedos haviam amolecido e virado cones gotejantes pendurados em pulsos esqueléticos.
Edgar, com a ajuda da chave inglesa de Heimertz tinha regulado o forno para a temperatura máxima. As estátuas em tamanho natural lembravam velas no fim de um longo jantar festivo. A cera escorria pelos ternos de tecido dos prefeitos e caía pelo chão, empoçando ao lado de cartolas e chapéus de passeio.
- Ah, o museu de arte contemporânea - suspirou Nils de Groot. - Finalmente um lugar com que posso me comunicar.
- É - concordou Nora de Groot -, não vejo arte moderna assim desde... desde... nossa, nunca vi arte moderna igual. É bem instigante... quase perturbadora.
- Ora, que quer dizer com isso? - perguntou Ellen. - Este é o Thaddeus Knightleigh, o primeiro prefeito de Nod's Limbs e o mais duradouro. - Ela ergueu o guia que levava na mão para todos verem. Ao lado da descrição do primeiro prefeito, havia uma ilustração do Monstro da Lagoa Negra saindo do pântano, copiado do Guia Grotesco de Filmes de Horror. Todos se amontoaram para ver melhor o livro.
- Eu não fazia idéia quando concordei em levar em consideração este projeto que Nod's Limbs tinha uma população tão, ah, singular - disse Nils de Groot. - Ela realmente propõe alguns desafios para o arquiteto.
- De fato - disse Ellen -, os cidadãos de Nod's Limbs têm uma longa história de disfunções genéticas.
Em seguida o grupo entrou na sala de aula do primário onde os olhos da srta. Croquet tinham afundado em seu nariz. Seus lábios tinham formado uma grossa ruga que pendia até os ombros. Seus alunos pareciam imagens congeladas em um espelho de parque de diversões.
- Esta é uma das professoras mais queridas de Nod's Limbs. Tem grande influência nas vidas das crianças.
- Que aconteceu com ela? - perguntou Mary Feemore.
- Ninguém sabe ao certo - respondeu Ellen -, mas correm boatos.
- Que ótimo, mais contos da carochinha - disse Alex Sai.
- Contam que quando jovem a srta. Croquet foi uma cientista genial - uma especialista em doenças tropicais - e teria ganho o Prêmio Nobel se uma de suas experiências não tivesse dado terrivelmente, horrivelmente errado.
- Errado em quê? - quis saber Alex Sai.
- Ela criou uma nova doença - disse Ellen.
- Você quer dizer que ela descobriu um nova doença? - perguntou Mary Feemore.
- Não, ela criou uma nova doença - repetiu Ellen. - E se inoculou. É uma doença da pele contagiosa. A experiência deixou-a mentalmente desequilibrada e agora ela está tentando encontrar uma fórmula para se curar. Como os senhores podem ver, os alunos colaboram em sua pesquisa.
- Você está dizendo que ela faz experiências com... com... os alunos dela? - indagou Mary Feemore.
- Bem, vamos dizer que esses alunos não entraram na escola assim - disse Ellen. - Na realidade é um privilégio para eles. Afinal, a sra. Croquet foi indicada para o Prêmio Nobel.
Nesse meio-tempo, Stephanie chegara à galeria do segundo andar que representava um dia na piscina pública. Normalmente, cidadãos de cera tomavam sol e se divertiam na água de cera, mas agora pedaços de tubos e equipamento para apnéia passavam boiando pelo trampolim derretido. Stephanie não tinha motivo para olhar para cima quando havia tanta coisa destruída à sua volta. Se tivesse olhado, teria visto Edgar empoleirado em uma trave.
Com um grito agudo de "PARA AS PROFUNDEZAS!" Edgar segurou sua corda e mergulhou em direção à menina assustada.
Ela não teve tempo de correr, não teve chance de se desviar. Edgar derrubou-a de cabeça na piscina de cera derretida.
O barulho trouxe os turistas correndo para o andar de cima. Edgar largou a corda balançando e ficou à espera do grupo.
- Estão gostando do tour? - perguntou com ar inocente.
Ouviu-se uma agitação borbulhante na piscina e Stephanie apareceu à superfície tentando chegar à escada. Estava coberta da cabeça aos pés com pedaços de cera azul.
- Céus, que é isso? - berrou Blake Glide. E recuou tropeçando em Alex Sai.
- Calma - disse Ellen. - É só... a Prunella Crudley, uma das ex-alunas da sra. Croquet. Ela é professora aqui e faz tours de imersão nas coleções do museu. Parece que está querendo mostrar o acervo aos senhores. Não é isso, Prunella?
Lutando para sair da cera, Stephanie tentou falar, mas a cera colara os seus lábios.
- Qual é o problema, Prunella? Está com cera nos ouvidos? - caçoou Edgar.
- Este lugar... este lugar... que é que há de errado com este lugar? - exclamou Nora de Groot.
Blake Glide estava colado à parede.
- É melhor ela não se aproximar de mim! Minha pele está segurada, mas a filmagem de Letalmente Bonitão começa na semana que vem!
- Vamos andando - disse Ellen. - Ainda não sabemos qual é o grau de contágio de Prunella. É só uma precaução; não é nada para se preocupar. - Ninguém notou que Edgar saíra de mansinho, tomando um atalho para o andar seguinte.
Os turistas, mantendo-se agrupados, não precisaram de nenhum convite para descerem em fila e sair do museu rapidamente.
Stephanie conseguiu chegar à escada e sair da piscina. Abandonada na galeria, desceu pesadamente as escadas até a sala de aula à procura de uma toalha, deixando um rastro de cera derretida e suja por onde passava. Quando Stephanie viu o próprio reflexo em uma janela, gemeu. Não parecia muito melhor do que a professora de cera.
- Ai de mim, que me aconteceu?
Stephanie se virou e viu o sr. Hirschfeld, há anos zelador do museu, parado à porta.
- Srta. Knightleigh... é a senhorita não? Que foi que fez? - perguntou penalizado, levando a mão à testa. - Olhe para isso! Levei décadas cuidando desta coleção de obras-primas e agora - que lástima - em um dia ficou perdida para sempre. Não por descuido... velhice... mau uso... Mas pela maldade de uma criança.
O homem ajoelhou-se diante da professora derretida.
- Aqui ficava a querida educadora que eu espanava nem sei com que freqüência. Onde estão os seus bons conselhos agora? A sua genialidade discreta?
Ele se levantou e se virou para Stephanie.
- A obrigação de um museu é servir o público! A senhorita se julga dona deste lugar, só por que é uma Knightleigh? É uma piada para a senhorita estragar o que custou o trabalho suado de alguém? Vi o que fez à sebe dos Poshi!
Stephanie tirou cera suficiente da boca para responder.
- Não fui eu! - protestou. - Foram aqueles gêmeos horríveis naqueles pijamas sujos! Eles seqüestraram o meu tour!
- Mocinha, a senhorita devia se envergonhar de jogar a culpa nos outros. Não há mais ninguém aqui! Alguém precisa lhe dar educação. A senhorita vai me ajudar a limpar esta bagunça.
O sr. Hirschfeld entregou a Stephanie um balde e uma raspadeira.
- Pode começar!
Se os seus joelhos grossos de cera lhe permitissem dobrá-los, ela talvez tivesse fugido da sala, mas estava demasiado coberta de crostas para conseguir se evadir.
A atração mais interessante do trecho da avenida Cairo, conhecida pelos habitantes locais como "a parte mais sem graça da cidade", é a famosa "Macieira Brava". Há alguns anos o avô do atual prefeito, que era tão irritante quanto o seu neto, salvou a árvore do lenhador. Muito antes e desde então, seus galhos retorcidos e a densa cobertura de folhas ofereceram sombra e abrigo a gerações de adeptos de piqueniques e de criminosos fugitivos.
Ellen conduziu o grupo à movimentada avenida Cairo. Parou a centímetros do fluxo veloz de tráfego e apontou para uma árvore nodosa que parecia ter brotado diretamente do chão da rua. A um olhar mais atento, porém, os visitantes poderiam ver que da avenida de duas pistas se bifurcava na árvore uma pista fazendo uma curva fechada para a esquerda e a outra para a direita.
A Macieira Brava era a árvore mais famosa de Nod's Limbs: contava a lenda que o próprio Nod certa vez amarrara ali o seu cavalo. Anos antes, quando o projeto original para a avenida Cairo exigiu a remoção da árvore, o apoio da comunidade àquele ponto de referência foi tão grande que o prefeito decretou que a avenida deveria contorná-lo. Então a via foi construída literalmente em torno da árvore.
Carros e vans passavam em alta velocidade e os turistas se afastaram do meio-fio. Os motoristas em Nod's Limbs raramente excediam os limites de velocidade; porém, quando era permitido por lei acelerarem até sessenta quilômetros por hora (o que podiam fazer na avenida Cairo), eles aproveitavam a oportunidade.
- Ouçam aqui - disse Ellen sobrepondo-se ao ruído do tráfego. - Pisem onde eu piso e pulem onde eu pulo e vocês conseguirão chegar à árvore inteiros.
- Você está maluca? Não vou correr atrás de você no meio do tráfego! - disse Alex Sai.
- Bem, então por mim podem ficar aqui... na rua... sozinhos. Tenho certeza de que Prunella vai chegar a qualquer minuto para lhes fazer companhia.
O grupo abalado se virou para olhar o museu. Não vinha ninguém - ainda.
- Precisam realmente me acompanhar. Do contrário irão perder algo muito especial. Agora, por favor, tenham cuidado - alertou Ellen. - A equipe de limpeza tem de retirar os cadáveres dos infelizes que não atravessam bastante rápido. Eu detestaria ter de chamá-la para retirar um dos senhores.
E dizendo isso disparou pelo tráfego.
- Será que esses malucos ainda não ouviram falar em semáforos? - berrou Alex Sai.
- Que péssima urbanização! - gritaram os de Groot, encolhendo-se abraçados.
- CADÁVERES! - berrou Blake Glide.
O grupo seguiu Ellen o melhor que pôde, andando em cauteloso ziguezague entre os carros. Muitos dos motoristas buzinaram e acenaram quando reconheceram as celebridades desviando-se dos seus carros.
- Adorei você no Golpe Fatal 4! - gritou para Blake Glide o motorista de uma van que se aproximava. O ator ergueu corajosamente o polegar ao mesmo tempo evitando por um triz uma morte certa.
- Isso foi sem dúvida indigno - disse Nils de Groot, quando finalmente conseguiram alcançar a segurança da árvore.
- Pelo menos ela nos esconderá daquela professora doente. Eu realmente sinto pena dela - disse Nora de Groot, encostando o rosto na Macieira Brava. - Vamos agradecer por termos saúde e a proteção da natureza.
- Diga-me outra vez por que estamos parando aqui? - pediu Alex Sai. - Para ver uma árvore no meio da rua? - O grupo exausto não parecia impressionado. Era apenas uma macieira brava comum.
- Como podem ver, esta árvore é famosa - informou Ellen indicando com o seu ponteiro-Bicho uma placa gravada ao pé da árvore.
NOSSA QUERIDA MACIEIRA BRAVA
Aqui Nod amarrou seu cavalo ao concluir a primeira travessia do rio Corrente e ter a visão do seu império de cera.
- Querem árvores famosas? Puseram uma placa nas árvores em que me pendurei no meu filme O meu criado Tarzan. Fui o meu próprio duble naquele filme - disse Blake Glide. - Gostaria de subir, sra. Sai? Parece que os seus sapatos não foram feitos para subir em árvores, mas eu poderia carregá-la.
- Não, obrigada, canastra - respondeu Alex Sai, olhando para Ellen por cima das lentes azuis dos seus óculos. - Não viajei até Nod's Limbs para ver uma árvore. Nem consigo acreditar que tenho de escrever sobre este manicômio que se intitula uma cidade - um artigo desses não merece ser impresso. Podemos prosseguir, por favor, para que eu possa encerrar o dia?
Enquanto Alex Sai falava, Mary Feemore olhou para a copa da árvore e viu alguma coisa se mexendo entre os galhos.
- Senhorita... hum, Guia, tem alguém trepado na árvore.
- Com certeza é apenas um esquilo - disse Ellen.
- Mas poderia jurar que é listrado - tornou Mary Feemore.
- Sei o que está pensando - disse Ellen. - Mas, posso lhe garantir de que o que viu não é um fugitivo da prisão de segurança máxima fora da cidade.
- Fugitivo? - perguntou Blake Glide. - Que disse?
- Os boatos são verdadeiros - admitiu Ellen com um suspiro. - O carcereiro da noite às vezes cochila durante o expediente. Ele é primo do prefeito, por isso jamais será despedido! Criminosos fugitivos muitas vezes procuram esta árvore porque é uma fonte conveniente de comida e abrigo.
- Epa! - exclamou Nils de Groot.
- Não se preocupem. Quando foge um, o nosso prefeito se encarrega pessoalmente de tocar a sirene do lado de fora da prefeitura. Mas é raro ocorrerem fugas. Já faz semanas desde a última.
- Que situação! - exclamou Nora de Groot. - Onde está o clamor de indignação dos cidadãos? Eles não se enfurecem com essa penitenciária mal guardada no meio da cidade?
- Ah, não, eles até gostam dos fugitivos - respondeu Ellen. - São divertidos. A maioria dos nossos afáveis cidadãos aguarda ansiosa uma visita ocasional de um malfeitor misterioso armado de machadinha.
No alto da macieira brava, Edgar agarrava-se ao tronco fino, segurando uma longa mangueira de aspirador de pó, recolhida no Cemitério de Utilidades. Ele ergueu o braço acima dos galhos mais altos e começou a rodar a mangueira. À medida que a rodava, a mangueira começou a zumbir e depois a uivar. Quanto mais rápido ele a rodava, mais ela parecia um uivo. Finalmente à velocidade máxima, a mangueira produziu um uivo de furar os tímpanos.
- A sirene! - gritou Blake Glide.
- Gente, gente, por favor. Não é preciso entrar em pânico - tranqüilizou-os Ellen. - Tudo está sob controle.
- Onde está o nosso guarda-costas? - quis saber Nils de Groot.
- Talvez fosse melhor irmos andando - sugeriu Mary Feemore. Ela escreveu impetuosamente em seu bloco de notas enquanto lançava olhares ansiosos à árvore.
A sirene parou de repente.
- Estão vendo? Não há absolutamente nada com que se preocupar - disse Ellen. - Se um fugitivo assassino estivesse lá em cima, já teria nos atacado.
De súbito uma chuva de maçãs bravas desabou sobre os turistas. Eles ergueram os braços para se proteger.
- Corram! - gritou Nora de Groot, e todos se precipitaram pelo tráfego, desviando-se das buzinas e das freadas na avenida Cairo o melhor que podiam.
- Não quero que o meu investimento seja devastado por criminosos fugitivos! - exclamou Blake Glide enquanto corria.
- Última parada: a torre do relógio de Nod's Limbs! - disse Ellen em voz alta para o grupo que chegava à calçada. Ela tocou o apito. - Prometo que lá não haverá prisioneiros. Eles nunca se escondem na torre do relógio.
É melhor conhecer a torre do relógio de Nod's Limbs em um dia nublado ou à noite, quando o sol não pode dissipar a atmosfera de horror das execuções que ocorreram ali nos tempos antigos. Mas, mesmo em uma manhã ensolarada de verão, ainda vale a pena ir à primeira construção de vários andares da cidade e passar os dedos pelas manchas de sangue que persistem no local onde ficava a guilhotina.
Ellen forçou os turistas a atravessarem mais uma vez o rio em direção à última parada do dia. A toda volta, os cidadãos corriam em febril expectativa, pendurando bandeirolas e faixas em postes de luz e acenando para os VIPs. Mas as celebridades massageavam suas contusões e só viam marginais que acolhiam criminosos.
Nora de Groot estava furiosa:
- Srta. Guia, já vi o suficiente desta cidade. Não encontrei nada exceto discórdia e desequilíbrio desde que o tour começou. Por favor, leve-nos de volta ao nosso hotel.
- É, fui ameaçado por parasitas espaciais, exposto ao contágio de doença de pele e atacado com frutas - disse Nils de Groot. - Se não nos levar de volta, encontraremos o caminho sozinhos.
- Concordo - disse Mary Feemore. - Aquelas maçãs bravas mancharam minha blusa. Quero sair daqui agora mesmo.
Ellen encarou os convidados.
- Quem atirou aquelas maçãs bravas pode vir em nosso encalço - alertou ela. - Não sejam tolos. Fiquem comigo. Vou levá-los em segurança até a última parada do nosso tour. - E ela rumou para a torre do relógio.
Os cinco turistas se entreolharam, como se testassem quem tinha coragem suficiente para voltar sozinho para o hotel.
Os cinco turistas saíram apressados para alcançar a guia.
Ellen ouviu-os correndo atrás dela e girou o seu ponteiro-Bicho descrevendo um amplo arco acima da cabeça e fazendo a pupila única de Bicho oscilar para frente e para trás como um pino de boliche.
- Pare de sacudir essa coisa: a senhorita está atraindo a atenção dos nativos - sussurrou Nils de Groot.
Ellen fingiu não ouvir.
- Eis aqui a famosa torre do relógio de Nod's Limbs, onde se realizavam as execuções semanais - disse Ellen quando chegaram ao edifício.
- Execuções? - admirou-se Mary Feemore.
- Ah, sim - respondeu Ellen. - Nod's Limbs é famosa por sua história de intolerância por intrusos. Muitos foram condenados a ser decapitados.
Blake Glide instintivamente levou as mãos ao pescoço.
- Intrusos como aqueles fugitivos? - perguntou Mary Feemore.
- Não, o pessoal daqui gosta dos presos porque eles contribuem para o charme incomparável da cidade. Estou me referindo aos visitantes que não pensam positivamente sobre a nossa interessante cidadezinha... - Ellen fez uma pausa, deu de ombros e então sacudiu a cabeça. - Vamos subir a escada estreita e mal iluminada à minha direita para aproveitar melhor a vista maravilhosa - disse Ellen, conduzindo os visitantes pela entrada. Relutantes, começaram a subir as escadas em fila indiana na hora em que Edgar apareceu para vigiar a entrada do edifício. Ellen continuou: - Quando chegarem ao telhado, ainda poderão ver as manchas de sangue nas paredes e no chão no local em que ficava a guilhotina, até mudarem-na para o porão.
Uma confusão de manchas surgiu aos pés dos turistas. Elas brilhavam um pouco como se ainda estivessem molhadas.
- É muito sangue - comentou Blake Glide. - É mais sangue do que o que derramei em Golpe fatal 7, antes de ressuscitar com as forças restauradas.
- Por que não limparam isso? - perguntou Mary Feemore.
- Bem, as manchas de sangue são uma forma de arte por aqui, que só perde para a escultura de cera e a topiária que os senhores tiveram o privilégio de ver. Os proprietários mais elegantes de Nod's Limbs procuram obter o mesmo efeito nas entradas de suas casas.
- Finalmente uma tradição local que posso descrever - disse Alex Sai. - Quando foi que pararam de executar intrusos?
- Quem disse que pararam?
- CUIDADO, ESTAMOS SENTINDO CHEIRO DE CARNE FRESCA DE TURISTA - disse Nils de Groot.
- Querido, a sua capacidade olfativa está falhando - disse Nora de Groot ao marido. - Estou sentindo cheiro de capim-limão e jasmim.
- Não, mulher. Olhe!
As outras pessoas do grupo se viraram. Contrastando com o seu interior lúgubre, a vista da torre do relógio era esplêndida. Os pombos voavam velozes, subiam e desciam ao longo dos trilhos do trem que levavam à fábrica de cera; em outra direção, os turistas divisavam o teatro e a leiteria. Abaixo, viam todo o trecho do bulevar Florence que a equipe do prefeito fechara para o desfile daquela tarde. Do alto, eles apenas vislumbravam o interior da área ultra-secreta, onde alguma coisa metálica refletia o sol. O ponto alto da paisagem eram as interessantes pontes cobertas da cidade, que normalmente tinham uma breve saudação pintada em seus telhados.
Hoje as pontes mostravam uma mensagem diferente.
- Obviamente eu não estou cheirando à carne. Estou usando uma colônia cara! - protestou Blake Glide.
- Quem escreveu aquilo? Que coisa horrível... e vulgar... e revoltante! - exclamou Mary Feemore. Os outros turistas concordaram com veemência.
Ellen sorriu. Nada de turistas, nada de hotel. Ela estava descendo os degraus estreitos com o grupo quando Edgar viu um vulto correndo em direção à torre do relógio.
Stephanie Knightleigh fugira do sr. Hirschfeld enquanto ele estava ocupado consertando o termostato, mas seu breve período como zeladora do museu a deixara ainda mais cheia de cera. Embora ela tivesse descascado uma boa parte que cobria a pele, Edgar pôde ver que seu vestido outrora lilás agora exibia espirais de cera azul da piscina e seus cabelos estavam completamente empastados. A cada passo que dava, desprendiam-se pedaços de cera de suas roupas.
- Temos companhia, mana - disse ele baixinho quando Ellen passava pela porta.
- Depressa, vamos tirá-los daqui e levá-los para a Floresta Negra - disse Ellen. - Ela nunca nos seguirá se entrarmos lá.
- Quem se atreveria?
A Reserva da Floresta Negra formava as divisas sul e oeste de Nod's Limbs, estendendo-se até a antiga fábrica de cera. Do lado de fora, parecia qualquer outra reserva florestal, com altos pinheiros e bichos selvagens engraçadinhos correndo para cá e para lá.
Mas não era chamada Floresta Negra à toa. Quando a pessoa se embrenhava nela, tornava-se cada vez mais escura e densa. As árvores eram tão altas e cresciam tão juntas e seus galhos se alongavam tanto que se entrançavam, formando uma abóbada lenhosa que bloqueava qualquer esperança de claridade solar. Mesmo em um dia desanuviado, uma pessoa que saísse para dar um passeio na floresta não conseguia ver o suficiente para saber onde pisar. Não havia muita gente que passeasse na floresta, temendo jamais encontrar o caminho de volta.
Exceto os gêmeos. O tempo gasto em casa com pesadas cortinas vedando as janelas e lâmpadas queimadas deixava-os à vontade no escuro. De tempos em tempos, eles exploravam a floresta quando se cansavam de brincar dentro de casa ou no Cemitério de Utilidades. Era um grande criadouro de minhocas e lagartas para esconderem na cama um do outro. Contudo, ainda que tivessem perambulado pela maior parte do sul da floresta, cuja divisa era pouco além da rua Ricketts defronte à sua casa, o lado oeste era praticamente desconhecido deles.
- Por aqui, tropa - disse Ellen, indicando a reserva com o seu ponteiro-Bicho. O olho do Bicho brilhou quando viu aonde estavam indo. Alvoroçou-se brevemente em seu poleiro.
- Desculpe - interrompeu Mary Feemore -, tenho certeza de que viemos daquela!
Ela apontou para o bulevar Florence, mas não viu Stephanie Knightleigh vindo em direção ao grupo.
- É verdade, mas há um lindo atalho que corta pela mata e sabemos que os senhores devem estar cansados - disse Ellen. - Queremos devolvê-los aos seus quartos o mais cedo possível. - O rosto de Blake Glide iluminou-se diante dessa promessa de conforto e segurança. Os de Groot já foram em direção às árvores.
- O caminho mais curto possível, por favor - murmurou Nora.
Os gêmeos conduziram os turistas pela mata sombria.
Menos de três minutos depois, Stephanie chegou à orla da floresta. Ela hesitou, examinando a primeira camada de vegetação. Depois, dando um profundo suspiro, mergulhou na mata.
- É a minha vista ou está ficando mais escuro por aqui? - Blake Glide indagou entre dentes.
- Não me diga que o grande herói da ação tem medo do escuro? - falou Alex Sai.
- Não seja ridícula - respondeu ele fazendo uma careta quando alguma coisa farfalhou por cima de suas cabeças.
- Que foi isso? - perguntou Mary Feemore, com um ligeiro tremor na voz.
- Uma grande variedade de plantas e bichos vivem na Floresta Negra - explicou Ellen. - É por isso que a cidade fez dela uma reserva há muito tempo - para proteger seus animais raros como a preguiça devoradora de homens e o morcego vampiro.
- Morcegos? Odeio morcegos! - guinchou Blake Glide encolhendo-se contra Alex Sai.
- Ah, você tem de estar brincando comigo - exclamou ela, empurrando-o para longe. - Provavelmente são as pernas perdidas de Nod passeando por aí.
- Ah, não! Eu já tinha esquecido completamente o Nod ! - respondeu Blake Glide.
O grupo continuou às cegas pela floresta.
- Que é que estamos fazendo aqui?
Não tem sequer uma trilha - disse Alex Sai, quando um galho fino chicoteou seu rosto.
- Psiu! Você vai perturbar os morcegos! - sibilou Blake Glide.
- Meus sapatos estão se abrindo: eu talvez precise de cuidados médicos! - disse Nils de Groot. - Chamem um podólogo!
- Alguma coisa acabou de bater no meu pé! ALGUMA COISA ACABOU DE BATER NO MEU PÉ! - berrou Blake Glide. Atrás dele os outros turistas congelaram. - Deixa para lá, está tudo bem. Foi só o meu outro pé.
Ellen se virou.
- É só um atalho, se não pararmos.
Uma vez que Bicho nunca resistia realmente, Ellen não o amarrara com muita firmeza no ancinho. Assim, quando ela se virou, o ímpeto do seu movimento empurrou Bicho para a frente, livrando-o finalmente das cordas. Ele voou do seu poleiro, direto para a cabeça do astro de cinema.
- Ihhh! É uma preguiça devoradora de homens! ELA ME PEGOU! - gritou Blake Glide.
O astro arrancou Bicho de sua cabeça e atirou-o longe. Ele aterrissou com um baque surdo alguns passos atrás do grupo. Edgar mergulhou para agarrá-lo, derrubando Alex Sai em uma moita de freixo espinhoso.
Os outros saíram aos tropeços em direção à claridade na orla da floresta, fazendo coro aos gritos de Blake Glide.
Alex Sai mancava quando se levantou. Um pé dos seus sapatos desaparecera no mato rasteiro.
- Meus sapatos favoritos! - choramingou, mancando atrás do grupo, esfregando seus arranhões.
Infelizmente para Bicho, Edgar conseguiu agarrá-lo antes que pudesse desaparecer entre as árvores. Ellen balançava a cabeça enquanto amarrava-o de novo ao ancinho, desta vez mais apertado.
- Que vergonha, que vergonha, Bicho. Onde é que você iria nesta floresta? - Bicho piscou e pareceu eriçar muito brevemente os pêlos.
- Muito bem, mano - disse Ellen -, foi uma empreitada muito bem-sucedida.
- De fato, mana. Acho que podemos presumir sem medo de errar que nenhum desses turistas vai se gabar de sua visita a Nod's Limbs tão cedo.
- Que pena para o Knightleigh - disse Ellen.
- E que bom para nós. Vida longa para o Cemitério de Utilidades! - exclamou Edgar.
- E Berenice! - acrescentou Ellen. Enquanto saíam da floresta, ela e Edgar entoaram uma canção:
Assim os azares dos turistas
Os fez inimigos da cidade!
Vão preferir perder um dedo
Do que voltar a Nod's Limbs!
Os tesouros do Cemitério
Serão nossos para sempre
E os planos de Knightleigh
Serão o hotel que nunca haverá.
Os gêmeos seguiram muito atrás do grupo e cumprimentando-se pelo trabalho bem feito com valentes palmadas nas costas. Logo poderiam retomar o planejamento da Operação: Chibatada.
Stephanie caminhou um bom pedaço para dentro da floresta. Um galho mais baixo prendeu um cachinho encerado e ela parou para desenredá-lo e apertar a fita lilás antes de continuar caminho.
- Alô, pessoal do tour! - chamou ela, tropeçando em uma trepadeira. - Alô! Onde é que vocês estão? Sou Stephanie, a guia oficial do tour!
Plantas espinhosas agarravam em seu corpo e sua única companhia eram os sons de bichos que saltitavam e pássaros que piavam. Ela chegou a uma parte de árvores muito juntas e chamou mais uma vez; estava quase absolutamente escuro.
De repente um atropelo de gritos e pés a correr romperam a escuridão. O ar ficou preso na garganta de Stephanie; o ruído parecia vir dali perto, mas ela não viu nada até alguma coisa branca lampejar ao longe.
- Grupo do tour? São vocês que estão aí? - Ela caminhou insegura em direção ao lampejo, mas parou abruptamente quando bateu em uma grossa árvore
- Ai! - gritou.
Dera uma topada no pé. Stephanie apalpou em volta da árvore e o lampejo branco reapareceu. Desta vez, porém, estava a centímetros do seu rosto. Ela viu que era um sorriso dentuço e descobriu que a árvore era, bem... não era uma árvore.
- Aaah! AAAAAAAH! - Stephanie fugiu correndo e gritando de susto para longe do sorriso largo e luminoso, em direção à claridade distante.
Na orla da floresta, ela parou e olhou para trás. Não havia ninguém à vista. Nem o homem sorridente, nem os gêmeos, nem os turistas. Levou a mão ao seu coração disparado. E respirando com dificuldade, saiu para a rua.
Os VIPs estavam parados a alguns metros. Eram uma ilha de gente que tremia perplexa cercada por uma grande agitação, uma tempestade de metais e tambores e botas que marchavam. Começara o grande desfile do Festival da Torrada Francesa.
Todo o mundo gosta de um desfile, mas os bons cidadãos de Nod's Limbs decididamente os adoravam. A popularidade do prefeito Knightleigh devia-se em parte à sua habilidade na arte de organizar um grande desfile, e seu gabinete os patrocinava em feriados como o Dia dos Amigos da Terceira Idade, Dia dos Técnicos de Manutenção de Computadores e de Outros Prestadores de Serviços Igualmente Salvadores e o Dia de Levar Sua Pasta para o Trabalho.
Então não foi surpresa que nesta oportunidade a administração Knightleigh estivesse decidida a criar o melhor espetáculo já realizado. O desfile do Festival da Torrada Francesa não era apenas solene, era magnífico.
Quase todos os comerciantes da cidade patrocinaram um carro alegórico com flores. A Magoos nunca estivera tão ocupada atendendo encomendas e quando chegou a manhã do festival, todas as flores da loja tinham sido vendidas.
Na loja de artigos para festas esgotaram-se as serpentinas, balões e fitas no dia em que a srta. Croquet anunciou um concurso para a decoração de bicicletas e o prefeito Knightleigh deu permissão para todos os candidatos saírem no desfile.
Mas os dias de desfile tinham maior importância para a banda escolar de Nod's Limbs, que ensaiava incansavelmente preparando-se para se exibir em público. Pelo menos os jovens músicos gostavam das luzes dos refletores; a maioria dos mais velhos tinha calos permanentes de anos de apresentações.
Todo o bulevar Florence estava fechado ao tráfego e as pessoas apinhavam as calçadas. Fileiras de dançarinos vestidos de torrada desfilavam, cantando, de braços dados chutando as pernas para o alto durante o percurso, e grandes frascos de calda ladeavam as torradas acenando para a multidão. Em seguida vinha a banda marchando orgulhosamente, tocando o já clássico "Setenta e seis torradas francesas abrem o grande desfile". Depois, fazendo malabarismos, vinha o corpo de porta-bandeiras e, por fim, um batalhão saltitante de equilibristas.
Annie Krump e seu melhor amigo, Miles Knightleigh, vestidos respectivamente de pote de geléia e pelota de manteiga, acompanhavam as equilibristas. Os dois estavam encantados de ter papéis tão destacados no desfile, mesmo que seus trajes fossem um pouco incômodos. Em seguida vinha um conversível levando a sra. Torrada Francesa, a mulher cuja receita fora vencedora no bufê. Ela usava uma tiara de garfos e facas cravejados de brilhantes. Atrás do carro, vinha uma formação de escoteiros, equipes de atletismo e escolares carregando faixas com mensagens como "Nós Amamos Nod's Limbs" e "Nod's Limbs Balança!"
Os próximos eram dois grandalhões dirigindo motocicletas muito pequenas e os carros alegóricos ornados de flores em que vinham os cidadãos mais velhos e mais jovens de Nod's Limbs, atirando pétalas no povo. O carro alegórico da Magoo s era uma simples caixa de madeira sem enfeites em que haviam pintado apressadamente a mensagem "MAGOO'S FLORES SAÚDA A COMUNIDADE".
Depois dos carros, desfilaram os vencedores do concurso dos Bichinhos de Estimação. Donald Bogginer levava o seu gato Chancey, cujos olhos desiguais tinham conquistado para ele o primeiro prêmio no ano anterior, mas absolutamente careca depois do encontro com uma pitonisa. Fechando o grande desfile vinha um porta-bandeira segurando a bandeira de Nod's Limbs com faixas das cores da cidade, amarelo ouro e ervilha.
Nesse meio-tempo, em toda a extensão do bulevar Florence, voluntários distribuíam utensílios para os expectadores.
- Garfos e facas! Apanhem os seus garfos e facas aqui! - gritavam. - Não podem comer torradas sem garfo!
Foi esse o espetáculo que saudou os turistas quando eles emergiram aos gritos da reserva florestal.
Os cidadãos de Nod's Limbs avistaram seus convidados famosos e deram gritos de alegria, vivas e bateram palmas ainda mais alto do que antes. Os trombeteiros tocaram variações e os sons metálicos de seus instrumentos se destacaram em meio ao vozerio. As pessoas mais próximas aos VIPs correram ao seu encontro, bombardeando-os com amabilidades.
"Estão se divertindo no tour?" "O Museu de Cera não é encantador?" "O meu filho Bertie está lá! E a srta. Croquet - que bela professora!"
"Barbarino serve excelentes sanduíches, não? Os melhores de Nod's Limbs?"
"Que acharam da vista da torre do relógio?"
Os turistas procuravam ficar juntos. Uma mulher mais velha vestida de frasco de calda gritou alguma coisa ininteligível para Blake Glide.
Alex Sai foi a primeira a avistar o garfo na mão ossuda da mulher.
- Que é que esses malucos estão fazendo? - perguntou ela. - Estão todos armados!
- Onde estão os nossos guias? Eles nos abandonaram! - choramingou Nora de Groot. - Me leve para casa, Nils. Quero ir para casal
- Não estou gostando do jeito com que eles estão sacudindo os talheres - respondeu o marido. - E por que estão nos olhando desse jeito?
- Deus nos ajude! - ganiu Blake Glide. - Carne fresca de turista: eles vão nos devorar!
Mary Feemore guinchou e agarrou o braço de Blake Glide.
- Olhe! - chamou.
Stephanie Knightleigh os avistara.
- Finalmente encontrei os senhores! - gritou, procurando se sobrepor ao barulho reinante. - Venham comigo: vou levá-los aonde precisam ir!
Mas os visitantes não reconheceram a mocinha bem-vestida que os recebera à porta do Hotel Motel segurando um prato de croissants. Em vez disso, viram a estudante infectada que tentara atacá-los no museu de cera. Ela parecia mais ameaçadora que nunca, coberta de raminhos e folhas e gritando histericamente.
Alex Sai falou apenas alto o suficiente para ser ouvida pelos outros turistas.
- Se todos agirmos com calma, talvez consigamos sair vivos desse tal Festival da Torrada Francesa. Ninguém entre em pânico.
- Isso mesmo! Ninguém entre em pândito! Quero dizer, pânico! - gritou Blake Glide.
Ele começou a abrir caminho por um ajuntamento de caçadores de autógrafos munidos de garfo e faca.
- Isso! - gritou a multidão. - Isso, entrem no desfile! Os nossos convidados de honra devem participar da parada! - A maré de gente impeliu os VIPs para o meio da banda escolar. Incapazes de resistir, os turistas foram arrastados pela rua como se fossem pedaços de madeira no rio.
- Onde estão os nossos guias? - tornou a choramingar Nora de Groot, mas o seu lamento se perdeu na onda de excitação ao seu redor.
Na verdade, os guias do tour tinham acabado de sair da floresta e estavam parados na rua a um lado, apreciando a cena.
- Que espetáculo horroroso - disse Edgar.
- Eles se fantasiaram de torrada - comentou Ellen, apoiando-se no ponteiro-Bicho. - Como será que os nossos turistas estão se virando? Vamos, eu quero estar presente quando eles disserem a Knightleigh como Nod's Limbs é desagradável.
Caminhando entre a multidão, os gêmeos passaram por Stephanie que, pela terceira vez aquele dia, tinha perdido o tour. Quando viu os dois, seus lábios crisparam e seus olhos estreitaram.
- Stephanie, você está com uma cara horrível - gritou Edgar. - Teve um dia cansativo?
- Você não precisa se preocupar com as suas celebridades - acrescentou Ellen. - Acho que Nod s Limbs deixou nelas uma impressão duradoura!
- Aaaaaaaaaaaaaah, demônios!
Stephanie avançou na garganta de Ellen, mas os gêmeos escapuliram como enguias. A garota tentou persegui-los, mas uma vida de contorções para sair de lugares apertados e alçapões davam a vantagem a Edgar e Ellen. Eles rapidamente se livraram dela na procissão que serpeava em direção à prefeitura.
Cidadãos, músicos da banda, equilibristas, turistas e os grandalhões (depois de estacionarem suas minimotos) acorriam para a área gramada em frente à prefeitura. O prefeito Knightleigh estava parado diante de um microfone nos degraus da entrada. E bateu palmas quando viu os VIPs.
A multidão se aquietou e os visitantes se agruparam muito juntos, sensíveis a qualquer movimento súbito do povo aparentemente faminto. O microfone emitiu um guincho e ouviu-se a voz possante do prefeito:
"Senhoras e senhores, meus conterrâneos de Nod's Limbs! Bem-vindos ao Primeiro Festival Anual da Torrada Francesa!"
A horda aplaudiu e bateu os talheres. Os turistas estremeceram.
"Dentro de instantes, revelarei a minha surpresa ultra-secreta! Mas primeiro quero agradecer aos nossos distintos convidados por nos brindarem com a sua distinta presença. Na qualidade de consumidores sofisticados de oportunidades turísticas mundiais, os senhores certamente concordarão que Nod's Limbs merece um lugar no Registro Nacional do Patrimônio Histórico!
A esta altura, os senhores já viram tudo que Nod's Limbs tem a oferecer e sinto no íntimo que o tour de hoje - conduzido pela melhor juventude de Nod's Limbs - irá perdurar para o resto de suas vidas. Será uma honra tê-los no jantar desta noite!"
Ao ouvir a palavra jantar, os olhos de Blake Glide reviraram e ele desmaiou por cima dos Groot.
Outro estrépito de talheres e uma mulher berrou:
- Trouxe o meu próprio açúcar em pó! - Ela atirou um punhado de açúcar no ar, e o confete doce caiu sobre os espectadores. Crianças pularam para aparar o açúcar na língua como se fossem flocos de neve.
Todo o tempo, Edgar e Ellen estiveram escondidos atrás de alguns foliões fantasiados de torradas próximos à primeira linha dos espectadores, divertindo-se com os rostos assustados dos visitantes e, em particular, com o desmaio de Blake Glide. Então eles repararam na enorme cortina à esquerda da prefeitura onde, há apenas algumas horas, havia um tapume.
Enquanto o prefeito prosseguia na sua lenga-lenga, os gêmeos escapuliram para espiar.
Edgar e Ellen passaram por baixo da cortina e Edgar instintivamente agarrou a trança da irmã.
- Olha!
Diante deles havia uma colossal torrada francesa, lustrosa e dourada, ligeiramente mais escura nas bordas. Do lado havia uma enorme jarra feita de placas de metal rebitadas de, no mínimo, dois andares de altura, com um rótulo: "CALDA DE BORDO"
- É uma baita torrada! - exclamou Ellen. Seu estômago roncou.
De olhos na calda, Edgar tirou a chave inglesa de Heimertz da mochila e apertou-a contra o peito.
- Uma confusão com que até agora eu só tinha sonhado - murmurou ele, e se aproximou do rebite mais próximo.
Para construir a jarra, o prefeito havia contratado uma equipe especial de projetistas de utensílios de cozinha. Uma equipe de construção tinha gasto toda a semana atrás do tapume trepada em escadas, guindastes e andaimes, rebitando enormes placas de metal e armando um sistema de polias que permitisse ao prefeito despejar a calda sobre a torrada.
Edgar pôs-se a trabalhar retirando os rebites um a um. Toda vez que ele conseguia extrair um com a chave inglesa, um grosso fio de calda escorria pela lateral da jarra.
- Pegue isso e me ajude - disse Edgar, atirando para a irmã uma das cordas penduradas nas bordas da jarra. Ellen puxou a corda para mantê-la esticada e Edgar subiu, retirando os rebites que encontrou pelo caminho.
De costas, Ellen não viu uma cabeça coberta de cristas de cera surgir por baixo da pesada cortina.
- Vocês - rosnou Stephanie. - Seus monstros, vocês arruinaram tudo.
Ela se atirou contra Ellen, que largou a corda, defendeu-se de Stephanie com o ponteiro-Bicho e correu para trás da jarra. Edgar ficou balançando desamparado, colidindo repetidamente contra a parede de metal.
- AI! - gritou ele, batendo o cotovelo.
A filha do prefeito contornou com cautela o perímetro da gigantesca jarra.
- Vi vocês dois entrarem aqui escondidos. Você se acham muuuuito espertinhos, não é mesmo?
Ela roçou na parede metálica e sentiu uma coisa melada.
- Ah, agora vejam o que fizeram - exclamou, examinando os buracos na jarra. - Seus cretinos, estão tentando acabar com o festival?
- Rebite por rebite melado - declarou Ellen aparecendo por trás da enorme torrada.
Stephanie correu para Ellen e derrubou-a. Edgar, pendurado lá no alto, gritou:
- Ei, eu sou o único que pode surrar a Ellen!
A briga barulhenta das meninas não passou despercebida. Edgar viu a cortina de veludo mexer e uma pelota baixa e gorda de manteiga entrou aos tropeços.
- Que é que está acontecendo aqui! - perguntou Miles Knightleigh. Seu rosto sardento projetava-se de uma abertura no meio da fantasia.
- Psiu... Socorro! Socorro! - gritou Edgar para baixo. Stephanie estava esganando Ellen fora de vista, atrás da enorme torrada francesa.
Miles olhou para o alto e viu um garoto de pijama listrado pendurado na borda da jarra.
- Qual é o problema?
- É a Stephanie! Ela caiu na calda e não consegue sair!
- Ah, não! - exclamou Miles.
- Não posso salvá-la! - gritou Edgar. - Você pode: a sua fantasia pode boiar!
- Vou fazer o possível! - Miles viu uma escada encostada na jarra que chegava até a borda. Gingando em sua incômoda fantasia, ele gritou:
- Já estou indo, Stephie!
Miles começou a subir.
- Por favor, depressa! Cada segundo conta! - gritou Edgar para o menino.
Uma vez seguro de que Miles estava subindo, Edgar procurou chegar na borda da torrada para ver como Ellen estava se saindo. Stephanie segurava-a pela trancas e empurrava seu rosto contra a crosta da torrada.
- Você vai ganhar a primeira dentada! - gritava esganiçada. Ellen tentava atingi-la às cegas com o ponteiro-Bicho, sem sucesso.
- Com licença, Stephanie - gritou Edgar. - Não é o seu irmão ali em cima? Parece que ele vai se meter em uma baita encrenca. - Ele abriu as pernas finas e apontou para a escada com um pé.
- Ah, não! - exclamou Stephanie. - Miles! Que é que você está jazendo?
Miles estava muito absorto e não ouviu os gritos da irmã. Embora Stephanie não demorasse a alcançar a escada, Miles já chegara ao topo e estava parado à borda do tonel de calda. Ele olhou para o líquido brilhoso, mas a luz do sol produzia um reflexo tão intenso que era impossível ver alguma coisa.
Apertando o nariz, Miles pôs um pé na borda da jarra e saltou.
Que pelota de manteiga corajosa.
Despercebido do drama que se desenrolava por trás da cortina, o prefeito Knightleigh recapitulava os acontecimentos do dia, congratulando a sra. Torrada Francesa e sorrindo para os trêmulos VIPs.
Mas o povo estava se impacientando.
"Que há por trás da cortina?", começaram a gritar.
O prefeito ergueu as mãos para acalmar a multidão. Um estalo de seus dedos gorduchos trouxe um pequeno grupo de pessoas aos degraus da prefeitura, cada uma delas trajando um macacão de borracha amarelo e uma máscara de papel.
- Narshampianos! - exclamou Blake Glide. E quase desmaiou uma segunda vez, mas Nils de Groot deu-lhe um tapa para reanimá-lo.
"Estes senhores são do Grande Livro dos Recordes Universais. Convidei-os a comparecer aqui hoje para documentar o triunfo de Nod's Limbs ao estabelecer um novo recorde, o jeito que coroa qualquer Festival da Torrada Francesa. Com vocês... a maior torrada francesa na história do universo!"
Com mais um toque de clarins, as cortinas foram descerradas para revelar a torrada. As pessoas exclamaram e até os turistas ergueram os olhos.
"Agora peço à equipe de verificação que meça a nossa magnífica realização recordista, depois do que, eu digo: Saboreemos a torrada!"
Knightleigh fechou os olhos e se recostou orgulhoso, à espera dos aplausos ensurdecedores. Silêncio.
O prefeito abriu um olho e viu os espectadores olhando boquiabertos para a jarra de calda, onde uma garota sarapintada acenava aos gritos e um garoto de pijama pendurava-se na borda da jarra com uma corda.
- Quem é aquela garota? - perguntou Mary Feemore.
- Parece a... a... - disse Nils de Groot.
- PRUNELLA CRUDLEY! - berrou Blake Glide.
- Ela está perseguindo o assistente do nosso tour! Ah, olhe ele ali pendurado - lamentou Nora de Groot - como uma patética minhoca presa em um anzol...
- Grande guarda-costas - resmungou Alex Sai. O prefeito olhou para a jarra.
- Stephanie!
Stephanie debruçou-se na borda da jarra, tentando agarrar pela roupa o irmão que se debatia.
- Stephanie! Em nome de Nod, que é que está acontecendo?
- Nada, papai - respondeu ela entre dentes. - Está tudo sob controle. Miles, depressa, me dê a sua mão.
- Desça daí imediatamente, mocinha, ou não vai haver... eh... não vai haver torrada francesa para você!
De repente, a multidão ouviu um rangido alto e prolongado e a gigantesca jarra estremeceu. Stephanie foi sacudida e quase perdeu o equilíbrio.
Ora, se alguém quisesse comer a maior torrada francesa do universo, precisaria de muita calda de bordo para umedecê-la. Depois de meticulosos cálculos, os engenheiros do prefeito concluíram que precisariam do equivalente a 513.080 frascos de calda para empapar a torrada a contento. Uma vasilha do tamanho de um caminhão de lixo não teria capacidade suficiente. Até mesmo uma do tamanho de uma betoneira não seria suficiente. Então Knightleigh encomendou uma jarra que coubesse tanto líquido quanto uma piscina. Assim, 513.080 frascos de pura calda de bordo pressionavam as paredes internas da jarra, agora enfraquecida por Edgar com sua chave inglesa.
E enquanto Miles continuava a se debater e Stephanie continuava a balançar na ponta da corda, a jarra deixou escapar baixinho um último gemido metálico.
Ta-plaaam!
Sem rebites suficientes para mantê-las juntas, as placas de aço cederam e se soltaram. A jarra se rompeu com a força de um trovão, e uma cascata de melado jorrou sobre a torrada e as pessoas que estavam embaixo.
Stephanie apenas conseguiu agarrar uma ponta da fantasia de Miles e quando a calda irrompeu incontida, o mesmo aconteceu com a pelota de manteiga, arrastando a irmã para a segunda nadada daquele dia.
- Uiiiiii! - berrou Miles, cavalgando a onda.
- Por que euuuuu? - guinchou Stephanie, ao se ver arrastada também.
Tarde demais, os espectadores tentaram correr. Nada puderam fazer porque a calda pegajosa escorria para todos os lados, batendo contra os tornozelos e canelas de todos. Os que se viravam para fugir perdiam o pé e caíam na poça crescente, levando seus vizinhos junto.
Edgar precipitou-se sobre a torrada num emaranhado de cordas e polias. Ellen caiu no pão inchado a uns poucos passos do local onde Stephanie a largara. Os gêmeos lamberam os lábios e dedos com voracidade e então contemplaram a multidão.
Ninguém conseguia se mexer; cada rosto estampava um misto de choque e calda. Os carros alegóricos tinham sido melados e buquês e margaridas afundavam na tela de arame que antes os mantinha aprumados. Os membros da banda escolar olhavam desamparados para o líquido que escorria das campânulas dos trompetes e das varas dos trombones. As baquetas grudavam nas mãos das tamborileiras e o cão pastor de Nancy Wheedle, Dudley, era indistinguível de Roxy, o basset hound da sra. Roxy.
Mas os turistas tinham levado a pior. Em sua tribuna de honra, eles eram os mais próximos da torrada francesa quando a jarra estourou. A calda teve o efeito de um cimento doce, colando-os ao chão e entre si.
Stephanie caiu em cima do pai, mas, felizmente para ela, o corpanzil do prefeito amorteceu sua queda.
Próximo, uma pelota de manteiga se debatia.
- Papai? - disse Miles. - Estou preso.
Grunhidos e gemidos se espalharam pelo ar enquanto os bons cidadãos de Nod's Limbs tentavam se livrar daquela prisão de calda de bordo.
Edgar e Ellen, nesse meio-tempo, encontravam dificuldades para se desvencilhar da torrada francesa - era muito grossa e agora estava mole e empapada. A cada passo, as perninhas finas dos dois desapareciam no pão esponjoso. Por fim, eles se atiraram por uma beirada e se esconderam atrás de um grande vaso de planta nas escadas da prefeitura.
Dali eles ficaram espiando o grupo de turistas tentar se desgrudar um do outro, embora longos fios melosos ainda os ligassem. Os gêmeos observaram Blake Glide passar os dedos pegajosos pelos cabelos ainda mais pegajosos e Alex Sai esfregar os óculos escuros salpicados.
- É melhor eu ligar para o meu agente - gemeu o ator. - Esses malucos não têm capacidade para apreciar um teatro sério ao jantar.
Nils de Groot limpou a calda em sua testa e tentou soltar seus preciosos sapatos.
- Deveríamos imaginar que essa visita seria uma desgraceira, Nora. Os sininhos de vento não mentem.
O prefeito Knightleigh arrastou-se de volta ao microfone e contemplou os seus eleitores perplexos. Tentou salvar a situação:
"Meus conterrâneos! Meu povo! Isto foi apenas um contratempo menor. A maior torrada francesa do universo ainda é a nossa! Não vamos esquecer a razão de nos reunirmos aqui para comemorar. Senhores, comecem a fazer a medição!"
O prefeito Knightleigh, aplaudindo, voltou-se para a equipe de verificação protegida pelos trajes de borracha.
Uma dos personagens de amarelo tirou a máscara do rosto.
- Lamento, sr. Prefeito. Não podemos medir a sua torrada francesa. Absorveu uma considerável quantidade de calda que fez seu miolo expandir. O seu registro na subseção de Pães e Amidos, na categoria dos maiores alimentos do universo fica, portanto, desqualificado.
As outras máscaras sinalizaram sua concordância.
A multidão gemeu.
Edgar e Ellen sorriram.
O prefeito retorquiu com rispidez.
- Que querem dizer com esse "desqualificado"? - guinchou ele. - Uma realização obtida com tanto esforço! Uma honraria muito merecida. Os senhores vão medir essa torrada agora mesmo!
Os membros da equipe do Grande Livro dos Recordes Universais balançaram a cabeça.
Knightleigh bateu os pés e chutou o pódio. Arrancou o microfone do suporte e atirou-o contra os espectadores. Quando um assessor tentou acalmá-lo, o prefeito quase o empurrou escada abaixo. Por fim, simplesmente caiu de joelhos e enterrou o rosto nas mãos.
Alguns momentos depois, Mary Feemore se aproximou do prefeito.
- Prefeito Knightleigh?
- Está tudo arruinado - gemeu ele, sem lhe dar atenção.
- Sr. Prefeito, eu...
- Agora, Nod's Limbs jamais terá um lugar no mapa. Jamais veremos outro turista!
- Meu nome é Mary Feemore.
- Que bom - disse olhando por cima do ombro da moça.
Ela prosseguiu.
- Na realidade, não escrevo para uma companhia de guias de viagem.
- Ah, que pena.
- Sou uma inspetora do Registro Nacional do Patrimônio Histórico.
Agora o prefeito encarou de frente Mary Feemore.
- Hum? A senhora é o quê? Mas e os guias...? - gaguejou ele.
- Fui enviada para fazer uma avaliação sigilosa da sua solicitação para a cidade adquirir status de patrimônio histórico, e só queria que o senhor soubesse que quando eu terminar o meu relatório, a sua cidade certamente será incluída no mapa, senhor...
- Verdade? - Os olhos do prefeito Knightleigh brilharam.
- Como um local perigoso! - continuou ela, olhando para os seus sapatos encharcados de calda e seus braços arranhados. - Vou encaminhar este caso ao Conselho Federal de Investigação para verificar os atos de natureza suspeita. De minha parte, acho que toda a sua cidade devia estar em um asilo de loucos.
O prefeito Knightleigh balançou a cabeça.
- Não! Foi o meu dia de azar! Hoje foi meu dia! Todos os meus planos! Todo o meu trabalho! Ah, por que eu?
Enquanto ele torcia as mãos diante de Mary Feemore, o céu ensolarado da tarde escureceu e uma nuvem negra se espalhou pelo horizonte.
- Ah, que ótimo - disse Alex Sai. - Era só o que precisávamos para encerrar este dia interminável: chuva.
Nem mesmo Edgar e Ellen poderiam ter planejado o que aconteceu a seguir. Uma nuvem negra realmente cobriu a prefeitura, mas não era uma nuvem de chuva. Era uma nuvem de pombos.
Ora, os pombos passam a maior parte da vida cacarejando, arrulhando, andando para cá e para lá e atrapalhando o caminho das pessoas. São de um modo geral aves esfomeadas e pedinchonas e acham que ficar zanzando nos pés das pessoas vai fazer com que elas deixem cair migalhas de pão ou até uma barra de doce. Mas eles raramente recebem mais do que migalhas, porque os transeuntes preferem comer suas barras de doce sozinhos, então os pombos continuam a gaguear e a arrulhar andando para lá e para cá esmolando.
Mas os pombos são também aves vorazes, e quando há uma festa do tamanho da maior torrada francesa do universo, eles param de pedinchar e passam a saquear.
Um enorme bando de pombos sobrevoou a prefeitura, fazendo sombra sobre as pessoas reunidas em baixo; os que ergueram os olhos só tiveram apenas um instante para se preparar para o ataque. Um pássaro, depois outro, e logo centenas mergulharam sobre a confusão de gente, instrumentos e bichos de estimação. Os pássaros não escolhiam onde mergulhar. A calda lustrosa que cobria a torrada e a multidão atraia-os como um farol.
Que pandemônio!
A primeira onda de pombos mergulhou sobre a poça de calda mais funda na base da escadaria da prefeitura. Um aterrissou na cabeça de Mary Feemore e se enredou em seus cabelos. Blake Glide, lembrando-se do recente encontro com animais carnívoros na floresta, protegeu sua peruca e gritou para Alex Sai:
- Mais devoradores de homens! É melhor se abaixar! - Ele se atirou ao chão e ficou de cara para baixo em uma pocinha pegajosa.
Nils de Groot rebateu os agressores alados. Infelizmente ele calculou mal a trajetória e a velocidade dos pombos e não conseguiu acertar nenhum. Sua mulher, muito sensatamente, correu a se abrigar sob uma tuba abandonada.
Alex Sai nem gritou nem fugiu. Em vez disso, sentou-se imóvel e calada naquele caos e com isso foi ignorada pelo bando de pombos.
Para além do grupo de turistas, as aves bicavam os uniformes reluzentes do corpo de porta-bandeiras. Aglomeravam-se em torno dos instrumentos da banda, das fantasias de frascos recobertos de calda e dos dançarinos vestidos de torradas francesas.
Alex Sai apreciou o espetáculo, seu sapato perdido, a pelota de calda que ela não conseguia limpar dos seus caros óculos escuros, e essa bizarra cidadezinha que ela sentira tanta relutância em visitar. Então ela soltou uma gostosa e sonora gargalhada.
Riu tanto que seu corpo dobrou-se, tanto que doeu e as lágrimas rolaram pelo seu rosto. Ela descalçou o sapato restante, atirou-o para o lado e de pés nus afastou-se devagarinho do assalto dos pombos.
Nesse meio-tempo, a maioria dos pombos encontrara o prato principal: a gigantesca torrada francesa. A peça que antes fora um petisco dourado para o café da manhã era agora uma massa cinzenta e coberta de penas, e, apesar da enormidade do pão inchado de calda, a horda de pombos era ainda maior. E realmente muito esfomeada. Logo sobraram apenas migalhas da torrada francesa que outrora fora, oficiosamente, a maior do universo.
Stephanie Knightleigh, agachada perto da escadaria da prefeitura, tentava ajudar Miles a se levantar. A pelota de manteiga - agora pingando doçura - era um alvo convidativo e ele e Stephanie se viram no centro de uma frenética comilança. Por vezes, em lugar de um petisco melado, os pombos enchiam o bico de tecido crostoso de cera ou, provocando dor, de um lóbulo carnudo de orelha. A roupa de Miles protegeu-o de grande parte das bicadas e arranhões, mas Stephanie ficou à mercê das aves.
- EU... ODEIO... ESSES... GÊMEOS! - berrou ela, mas o ruído das bicadas e das asas batendo abafava sua voz. - Papai - UI!
Edgar e Ellen saíram dançando de trás do vaso de plantas.
- Você realmente não devia alimentar os pombos, Stephanie - gritou Ellen, sacudindo o seu ponteiro-Bicho num gesto de censura. - Eles nunca mais vão parar de seguir você.
Edgar olhou atentamente a imensa confusão que causara.
- Anda. Acabou o espetáculo - disse ele. - Vamos embora.
- Que dia tivemos! O projeto de Knightleigh fracassou! Nunca mais alguém pensará em visitar Nod's Limbs.
- Não haverá necessidade de quartos de hotel se não há hóspedes para ocupá-los. O Cemitério de Utilidades está salvo! - disse Edgar.
- E a Berenice também - disse Ellen. - Missão cumprida. - Os dois deram palmadas um no outro, felizes da vida.
E porque não há pombos maus que bem não tragam, os gêmeos entoaram uma cançãozinha de vitória a caminho de casa. Ellen sacudia o seu ancinho para cá e para lá marcando o compasso da música.
Para lá das covas em que moram os mortos
Dançaremos sobre um tesouro crescente
Vivam as velharias que muito nos servem!
Abaixo o novo hotel do Knightleigh!
A coisa saiu melhor do que esperávamos -
Com cobertura de calda e bicadas de pombos,
E sem Knightleigh jamais suspeitar
Do terror que fomos capazes de instaurar.
Que risos, que diversão, que grandes tours!
Que peças pregamos!
A vitória foi nossa!
Enquanto a tarde ia virando noite, Edgar e Ellen se equilibravam em cima de pilhas de ferro-velho, absorvendo a paisagem do seu Cemitério de Utilidades.
- O dia de hoje não lhe parece excepcionalmente magnífico? - comentou Edgar.
- Tudo está em seu lugar e tudo continuará a estar em seu devido lugar - disse Ellen.
Com suspiros de satisfação, os dois desceram das pilhas e saíram à procura de Berenice.
Ellen alimentou-a e só porque se sentia muito feliz deixou que Berenice mordiscasse o seu dedão do pé.
- Então, mano, que vamos fazer amanhã?
- A Operação: Chibatada, é claro - foi a resposta. Ele tirou a chave inglesa da mochila e se ocupou em soltar a porta de um velho guarda-roupa das dobradiças.
Ellen pegou o Bicho, ainda amarrado ao ancinho.
- Isso pode esperar, Edgar. Por ora, façamos um brinde. - Ela ergueu o ponteiro-Bicho. - A torrada!
- E aos pombos! - exclamou Edgar, batendo com a chave inglesa no ancinho.
O sol ainda não se pusera, mas uma sombra se alongou sobre os dois. Pelo calafrio que sentiram nos ossos, os gêmeos sabiam de quem era a sombra; viraram-se lentamente para encarar Heimertz.
O zelador avultava, com aquele seu sorriso demente e assustador. Ellen engoliu em seco. Edgar piscou os olhos. Nenhum dos dois fez o menor ruído. Com um movimento súbito, ele tirou de Edgar a chave inglesa com uma das mãos e com a outra arrebatou o Bicho de Ellen. Em silêncio, ele pôs o ponteiro-Bicho ao ombro, deu meia-volta e se afastou pesadamente.
Na quietude do Cemitério de Utilidades, os gêmeos se entreolharam nervosos demais para falar.
Foi então que ouviram um som como o de uma trovoada se aproximando. Cada vez mais próximo.
Tendo concluído o seu banquete, os pombos estavam voltando aos seus ninhos, suas barriguinhas inchadas de torradas com calda de bordo. E, como fazem os pombos, precisavam se aliviar da refeição anterior para abrir espaço para a próxima. Para horror dos gêmeos, seu amado Cemitério de Utilidades estava diretamente no trajeto dos pombos.
Começou lentamente.
Plof!
Plof! Plof!
E então choveu. Plof! Plofl Plof! Plof!
- Iiiiiiiiiiiiih! - Edgar e Ellen correram aos berros para casa. Pela primeira vez em muitos meses, o banho pareceu iminente.
Charles Ogden
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