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Armadilha para um detetive / Erle Stanley Gardner
Armadilha para um detetive / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Armadilha para um detetive

 

Lisboa-1986   Atravessei a sala de recepção de «COOL & LAM, INVESTIGADORES», e abri a porta do meu gabinete particular. Elsie Brand, a minha secretária, levantou a cabeça, com uma expressão que já aprendera a conhecer.

         - De que se trata, Elsie? É bom ou mau?

         -O quê?

         -O que me queres dizer.

         -Como adivinhaste que tinha qualquer coisa para te dizer?

         -Pela expressão da tua cara.

         -Não tenho segredo nenhum para ti, então? Sorri-lhe. Elsie corou e murmurou, embaraçada:

         -Se tivesses tempo para ir ao fundo do corredor comigo, eu... eu queria mostrar-te uma coisa.

         -Tenho tempo, claro. Vamos.

         Saímos do meu gabinete, atravessamos a sala de recepção e o vestíbulo e paramos junto dos armários que serviam de arrecadação. Elsie pegou numa chave, abriu a porta do armário número oito e acendeu a luz.

         Os armários ficavam numa sala interior, sem janela, e o nosso servira, até então, de depósito a toda a tralha sem serventia, que devia ser deitada fora. Agora, porém, estava muito bem dividido em prateleiras, nas quais se alinhavam livros de recortes.

         -Que diabo...

         Elsie olhava-me, com os olhos trasbordantes de orgulho.

         -Quis fazer-te uma surpresa, murmurou.

         - Não há dúvida de que o conseguiste! Agora explica-te.

         - Bem, tenho recortado todas as notícias de crimes, como me recomendaste, mas era difícil arquivá-las por ordem.

         -Não queria que as arquivasses, mas apenas que as tivesses à mão, para poder consultar, se fosse preciso, as mais recentes.

         -Agora poderás encontrar todas as que quiseres. Por exemplo, no «Volume A» estão arquivados crimes de violência. Do número um a cem, são assassinatos motivados por ciúme; do cem ao duzentos, são assassinatos relacionados com assaltos à mão armada, e assim sucessivamente. Há dez divisões, ao todo. Tenho ainda um índice secundário, relativo às armas: assassinatos com armas de fogo, com facas, com veneno... O «Volume B» refere-se a roubos, o «C» a assaltos, o «D» a......

         -Que diabo se passa aqui?-perguntou, atrás de nós, a voz áspera e azeda de Bertha Cool.

         Elsie Brand soltou uma exclamação abafada e eu virei-me para a minha irritada sócia, cujos olhos cintilavam, de cólera, e cujo rosto estava rubro e congestionado.

         -A minha biblioteca de consultas.

         - Para que diabo precisa de uma biblioteca de consultas?

         -Para a consultar.

         Bertha soltou uma espécie de relincho de desdém.

         - Disseram-me que você e a Elsie tinham vindo para o fundo do corredor e eu perguntei a mim mesma o que estariam a tramar...

         Bertha pegou num dos volumes, folheou-o e disse à minha secretária:

         - É, então, com isto que tem passado todo o seu tempo...

         Elsie fez menção de dizer qualquer coisa, mas eu meti-me entre ambas e declarei:

         - É isso que tem feito no seu tempo livre. Caso se tenha esquecido, lembro-lhe que o fato de possuirmos informações acerca de crimes importantes e insolúveis já nos permitiu cooperar com a Polícia e nos ajudou a sair de uns dois apertos.

         - Você anda sempre a meter-se em apertos - explodiu Bertha. - Depois safa-se por uma unha negra e...

         - E a nossa conta bancária fica em melhor estado do que estava antes - interrompi-a, também furioso. - Se tem reclamações a fazer, vá para o seu gabinete, registre-as num memorando e entregue-o à Elsie. Arquivá-lo-emos na seção de reclamações, que é... o cesto dos papéis!

         -Não seja assim, Donald.

         -Assim como?

         -Está a ficar furioso.

         -Estou a ficar furioso? Estou furioso, que é diferente!

         -Não seja difícil, Donald. Procurava-o por um motivo especial e fiquei impaciente quando liguei para o seu gabinete e ninguém respondeu.

         -A Elsie estava a mostrar-me o novo sistema de arquivo.

         -Causa muito má impressão quando tenho um cliente no gabinete, quero apresentar o meu sócio e não o consigo encontrar. Não me responde a secretária, não me responde o sócio, não me responde ninguém. Tive que sair e vir procurá-lo. Deixei um cliente no gabinete, Impaciente como o raio que o parta, e vocês a arrulhar na arrecadação!

         -Não estávamos a arrulhar - protestei.

         - Mas podiam estar. Pela maneira como vocês dois olham um para o outro...

         -Ouça lá, se tem no gabinete um cliente à espera, cheio de impaciência, não será melhor ir atendê-lo? Se deseja fazer uma reclamação acerca das nossas relações pessoais, registre-a num memorando...

         -Está bem, está bem!-cortou Bertha, irritada.- Venha. Elsie, feche esse maldito armário. Donald, vamos falar com o nosso cliente. É de trabalho como este que precisamos, de trabalho respeitável.

         Bertha virou-me as costas e afastou-se pelo corredor fora, oitenta quilos bem pesados de tenacidade canina, ganância e observação astuta, numa combinação explosiva que uma lealdade subjacente, quando as coisas se complicavam, tornava menos detestável.

         Com tudo isso, a nossa sociedade ter-se-ia,  com certeza, desfeito havia muito tempo, se não fosse tão proveitosa. O dinheiro no banco constituía, para Bertha, o argumento mais persuasivo, e quando acontecia alguma coisa e surgia uma ameaça de dissolução, a minha sócia conseguia, sempre, dominar a sua irascibilidade. Quando a alcancei, informou-me:

         -Trata-se de uma companhia de seguros, que nos trás há algum tempo debaixo de olho. Nestes negócios é que está o dinheiro, Donald, e não nesses trabalhos detetivescos em que você se compraz.

         - E que nos têm dado dinheiro a ganhar, recordei-lhe. - Muito dinheiro.

         - Demasiado -resmungou. - Assusta-me. Corremos riscos excessivos. Este trabalho que o Hawley tem para nós será o primeiro de muitos.

         - Pois sim. Quem é o Hawley? Bertha parou à porta e elucidou-me, antes de girar o puxador.

         - Lamont Hawley é chefe da Secção de Reclamações da «Consolidated Intern Insurance». Ele explicar-lhe-á tudo. Seja simpático, Donald; é de trabalhos assim que precisamos.

          - Cem dólares por dia e despesas, com a garantia de um mínimo de dez dias, e forneceremos todo o pessoal que for preciso para tratar do assunto.

         - Por esse preço, quantas pessoas acha que podemos fornecer?

         -Uma, respondeu de olhos fixos nos meus.- Você. E arranje-se de maneira a não precisarmos de mais ninguém!

         Bertha abriu a porta, atravessou a recepção e entrou no seu gabinete pessoal.

         O homem que se levantou, ao ver-nos entrar, era alto e magro, tinha olhos astutos e cara comprida. Via-se que era indivíduo habituado a minúcias e a ordenados elevados, capaz de coordenar fatos, números e pessoas e encontrar respostas certas.

         -O meu sócio, Donald Lam -apresentou Bertha Cool.-Donald, este senhor é Lamont Hawley, da «Consolidated Inter Insurance».

         Trocamos um aperto de mão. Os dedos compridos do visitante enroscaram-se na minha mão. Os seus lábios sorriam, numa concessão, vazia de significado, às convenções, mas o sorriso não se refletia nos seus olhos.

         -Tenho ouvido falar muito de si, Mr. Lam.

         - Bem, mal ou assim-assim?

         - Bem, muito bem, mesmo. Tem causado excelente impressão. Esperava um... um homem mais forte.

         - Não perca tempo com rodeios - disse Bertha Cool, e deixou cair o corpanzil na cadeira giratória, que gemeu sob o seu peso. - O Donald engana toda a gente. É jovem e pequeno, mas o patife tem miolos. Já lhe expliquei do que se trata e ele acha bom. Eu encarrego-me do lado financeiro do negócio; ele superintende no trabalho exterior. Vá, diga ao Donald do que se trata.

         Hawley não deixava de me medir de alto a baixo, como se relutasse em aceitar-me pelo que aparentava. Por fim sentou-se, tirou um dossiê da pasta e colocou-o sobre os joelhos, mas não o consultou. Expôs os fatos e os números de memória.

         -Cárter J. Holgate, um inteligente negociante de bens imóveis, uma máquina de fazer dinheiro, vive no terror de ser processado por causar danos num acidente e segurou-se na nossa companhia contra todos os riscos. No dia 13 de Agosto, seguia de automóvel para o norte, em Colinda, quando o deteve um sinal vermelho. Admitiu que estava fatigado e talvez fosse distraído. Seguia um carro ligeiro, havia já um bocado, e ao aproximarem-se de um cruzamento o sinal mudou para vermelho e o carro da frente parou, segundo Holgate muito bruscamente (o que não pudemos comprovar por qualquer outro testemunho).

         «O carro de Holgate bateu na retaguarda do automóvel da frente, conduzido por Vivian Deshler, residente no apartamento 619, Edifício Miramar, Colinda, Califórnia, uma loura de 26 anos, um metro e sessenta e dois de altura, aparentemente divorciada e a viver de uma soma substancial, que lhe foi paga pelo ex-marido e está quase toda gasta. O seu carro era um veículo rápido,  esporte, baixo e leve. Afirma ter sofrido, no pescoço, a lesão conhecida por «chicotada». Como sabem, esta lesão é o pesadelo das companhias de seguros. Não há dúvida nenhuma de que pode ser muitíssimo séria e de que os sintomas podem aparecer só ao fim de algum tempo. Por outro lado, não existe virtualmente nenhum modo de confirmar ou negar a sua existência. Se uma pessoa diz que tem uma dor de cabeça, como se prova que não a tem’? É impossível.

         «Também não existem dúvidas quanto à responsabilidade do nosso segurado. Estava fatigado e confessou-nos, confidencialmente, ter acalentado esperanças de uma ultrapassagem. Saiu da mão e acelerou, para ultrapassar, verificou a impossibilidade da manobra e voltou à mão, numa velocidade muito maior que a dos outros veículos. Por um triz não via a luz vermelha, no cruzamento. O seu tempo para reagir ficou reduzido e, como conseqüência disso, chocou com a retaguarda do carro da frente, que para maior azar tinha de ser um veículo leve.»

         -Muito bem-comentei.-E qual será o nosso papel, em tudo isso?

         -Em lesões deste gênero, tentamos sempre saber alguma coisa dos antecedentes da pessoa lesada. Gostamos de saber quem é, de onde vem, o que faz, e esforçamo-nos sobretudo por averiguar como se coadunam as suas atividades diárias com a possibilidade de lesões graves. Por outras palavras, uma mulher jovem e atraente senta-se no banco das testemunhas e mostra ao júri uma superabundância de nylons... Sorri e começa a descrever os sintomas. A sua voz traduz sofrimento, o seu sorriso demonstra que encara corajosamente a perspectiva de uma vida arruinada. Fala de dores de cabeça, de períodos de insônia, de nervosismo crescente e de tudo o mais.

         «No entanto, se a conseguirmos contra-interrogar e lhe dissermos: «Examinemos, Miss Deshler, um dia normal da sua vida, 19 de Setembro do ano corrente, por exemplo. Queixa-se de que não dorme, mas só foi buscar o leite e o jornal, à porta, às dez horas e um quarto. Depois, às onze e dez, saiu do apartamento e foi à praia. À tarde nadou, na rebentação, e à noite foi a um baile, com o seu companheiro. Saíram do baile, meteram-se no automóvel e pararam na estrada marginal, a ver o oceano. Ao fim de duas horas e meia o seu companheiro levou-a a casa, entrou e saiu passada uma hora e quarenta e cinco minutos...» Depois mostramos filmes dela a correr, na areia, de roupa de banho justo, a virar a cabeça e a sorrir, tentadora, ao companheiro, mostramo-la na rebentação, mostramo-la na praia, a exibir a figura... No fim do contra-interrogatório e do filme, os jurados estarão convencidos de que a vida da jovem não ficou arruinada, que as suas atividades não ficaram muito circunscritas...”

         - Um momento - interrompi. - Quer que comece a seguir a pequena, que a fotografe quando vai à praia, que veja a que horas abre a porta e recolhe o leite e o jornal, que vigie o seu namorado...

         - Não, não! Isso é trabalho de grande especialização. Temos os nossos métodos de obter essas informações e as nossas máquinas especiais, com teleobjetiva. Lembre-se também, Mr. Lam, do modo como abordei o assunto: «Examinemos um dia normal da sua vida.» Depois disto, enumeraríamos uma série de coisas acontecidas nesse dia. Repare que não perguntaríamos à queixosa se o dia em questão foi um dia normal da sua vida. O nosso advogado diria «examinemos um dia normal da sua vida», e enumeraria todas as coisas acontecidas nesse dia. Daria, assim, a impressão de que vigiáramos minuciosamente as suas atividades, desde a apresentação da queixa até ao julgamento. Na realidade, talvez não tivéssemos mais do que o resumo de dois dias e estes fossem, por simples acaso, dias de uma atividade fora do normal. Mas causaríamos a impressão à queixosa se o dia em questão foi um dia normal da sua vida», ao projetar os filmes e ao apresentar todos os dados colhidos. Além de causarmos a impressão que nos convinha, assustaríamos a testemunha, que ficaria na dúvida quanto à amplitude dos nossos conhecimentos. Por outras palavras, recearia, talvez, que tivéssemos vigiado as suas atividades dia a dia, minuto a minuto, noite a noite;

         - Compreendo.

         - Não me olhe como se tirássemos doçes de crianças, Lam - disse-me Hawley, com um sorriso magnético e astuto.-Estamos perante uma extorsão, um modo desonesto de ganhar dinheiro-o qual, diga-se de passagem, se tornou muito especializado. Repare, por exemplo, nesta Vivian Deshler. Talvez seja a pessoa isolada, individual, a que de momento dedicamos a nossa atenção, mas lembre-se de que, na realidade, não está isolada. Tem atrás de si uma organização completa. Tem um advogado que...

         - Quem é esse advogado? - interrompi-o.

         -Não sei; ainda não nos processou. Requereu uma indenização e, naturalmente, gostaríamos de a satisfazer sem ir para tribunal. Mas o que pretendo fazer-lhe ver é que ela tem um advogado, embora ainda não saibamos quem ele é. Será, com certeza, algum que se especializou a representar queixosos  vítimas de acidentes de automóveis e é membro de uma organização que se entreajuda. Por exemplo, sempre que um advogado descobre um truquezinho capaz de arrancar a um júri um veredicto mais grave, comunica-o aos membros da associação. Se uma pessoa obtém um veredicto de respeito por uma perna partida, a informação é comunicada ao grupinho e, ato contínuo, a indenização por uma perna fraturada passa a ser maior. E assim por aí fora.

         - Portanto, pretendem combater o demônio com fogo,-comentei.

         - Não vemos as coisas exatamente desse modo. Pretendemos, apenas, proteger-nos. Se assim não fizéssemos, acabaria por não haver seguros de automóveis, os prêmios subiriam tanto que as pessoas não se poderiam dar ao luxo de ter seguro.

         -Voltemos ao que desejam que eu faça.

         - Desejamos que localize Vivian Deshler.

         -Mas o senhor disse que ela morava...

         -Sabemos onde ela mora, mas não sabemos onde se encontra, agora. Apresentou um pedido de indenização e foi muito prestável, concordou em que o nosso médico a examinasse e permitiu-nos radiografá-la. Cooperou muito, com toda a boa vontade, e declarou que, de momento, não desejava fixar o montante da indenização; tinha muito tempo para isso, antes que o prazo estipulado pelo estatuto de limitações prescrevesse. Queria ver como a lesão reagia ao tratamento, etc.

         - Parece ser muito razoável.

         -Sim, muito razoável. Na realidade, tem um toque suave, diria, até, um toque profissional. Declarou-se disposta a aceitar um pagamento de trinta mil dólares e a deixar as coisas ficar por aí, e depois desapareceu, pura e simplesmente. Não sabemos para onde foi. Temos muito empenho em a encontrar; inquietamo-nos, quando acontecem coisas deste gênero. Compreenda, Mr. Lam, que este é um daqueles casos em que temos de admitir a nossa responsabilidade. É tudo uma questão de se decidir quanto teremos de pagar, para arrumar o assunto. Por isso queremos que a sua agência encontre Viviam Deshler.

         - Vocês têm uma seção de investigações muito boa,-lembrei-lhe.-Porque não a utilizam?

         -Estamos ocupados com outras coisas e... Francamente, Lam, já recorremos aos processos usuais e não obtivemos resultados. Continuamos sem saber onde ela está e precisamos de a encontrar.

         - Mas vocês estão habituados a este gênero de trabalho, são especialistas! Como querem que nós encontremos a rapariga, se com uma organização como a vossa não conseguem, sequer, encontrar-lhe a pista?

         -Achamos que, neste caso, vocês estão melhor equipados do que nós.

         Bertha quase se derreteu, toda sorrisos.

         -Troque isso por miúdos,-pedi.

         - Perdão?

         - Explique em termos que eu possa compreender.

         -Temos uma pista em relação a Vivian Deshler:

         é amiga de uma rapariga que, por acaso, mora no mesmo prédio que ela, no Edifício Miramar, em Colinda. Chamas Doris Ashiey e é uma morena de vinte e oito anos e excelente figura, aparentemente sem quaisquer rendimentos. Pelo menos, não conseguimos descobrir-lhe nenhuns. Doris Ashiey entende-se muito bem com Dudey H. Bedford, homem dos seus trinta e cinco anos, que consta ter  ganho bom dinheiro no negócio de compra e venda de propriedades.

         «O pessoal da nossa organização é promovido pelo seu mérito e antiguidade, e como o cargo de investigador requer muita experiência e tato, não é desempenhado por homens novos. Todas as tentativas de contatar com Doris Ashley falharam e... enfim, efetuou-se uma reunião na qual se decidiu que um homem mais novo e mais apresentável, sem qualquer relação conhecida com a nossa companhia, teria maiores probabilidades de obter as desejadas informações.

         Hawley sorriu-me.

         -Meu Deus, se soubesse a influência que o Donald tem nas mulheres!-exclamou Bertha Cool.- Choram no seu ombro, desabafam com ele... Se quer uma rapariga virada do avesso, este patifório está indicado para isso.

         -Tenho a certeza de que assim é, -redarguiu-me Hawley.

         - Parece-me que não vou gostar dessa história - resmunguei.

         -Vai adorar!-exclamou Bertha.-É um desafio, Donald!

         -Ouça-disse a Hawley, sem deixar de olha-lo-, se aceitar o trabalho, será para o fazer à minha maneira. Querem localizar Vivian Deshler, não é?

         -É.

         - Não se importam da maneira como a localização seja feita, desde que seja feita?

         -Esgotamos todas as possibilidades - lembrou-me.

         -Compreendo tudo isso, mas somos contratados para encontrar Vivian Deshler, não é?

         - Muito bem. Só me interessa trabalhar nas seguintes condições: tentarei encontrá-la, mediante o pagamento de cem dólares por dia e despesas, mas se em qualquer altura não me agradar continuar, teremos toda a liberdade de desistir.

         -Não nos agradará dessa maneira, Lam...

         - E a nós não nos agradará de nenhuma outra. Bertha fez menção de dizer qualquer coisa, mas um olhar meu obrigou-a a remeter-se a um silêncio relutante.

         -Está bem, seja-resignou-se Hawley, com um suspiro.

         -Agora fale-me de Doris Ashley.

         Hawley consultou, pela primeira vez, as suas notas.

         -Guia um Oldsmobile e do ano passado, com a licença RTD 9-13, um coupé de duas portas largas. Abastece-se no supermercado de Colinda e cozinha no apartamento, exceto quando a convidam para sair à noite -o que sucede quase todas as noites.

         -Dudey Bedford?

         Hawley acenou afirmativamente.

         -O Edifício Miramar tem garagem?

         - Não. Há um terreno vago, ao norte do prédio, e os inquilinos utilizam-no como parque de estacionamento improvisado. Defronte do edifício, também costuma haver lugar para estacionamento.

         -Doris Ashley dorme até tarde?

         -Até muito tarde. Levanta-se um pouco antes do meio-dia, todos os dias, vai às compras cerca das duas e meia, aparentemente depois de almoçar. Pouco conseguimos apurar a seu respeito. Aliás, há em todo este caso uma atmosfera de segredo, de mistério, que nos preocupa. Francamente, Mr. Lam, estamos dispostos a gastar um pouco mais do que esperamos poupar na indenização, em virtude de não gostarmos do aspecto que as coisas têm. Desagradam-nos os casos que não obedecem a um padrão. Todo o nosso negócio tem por força de se basear em médias; é assim que calculamos os prêmios, e é assim que gostamos de liquidar os nossos prejuízos.

         - Compreendo.

         Hawley levantou-sie e deu-me um aperto de mão.

         -Já dei a Mrs. Cool o meu número de telefone particular, que não vem na lista. Pode contar com toda a colaboração possível da nossa organização, mas recomendo-lhe, evidentemente, que evite qualquer contato visível conosco. A outra parte podia sabê-lo e lá se ia toda a vantagem do nosso contrato.

         - Compreendo perfeitamente - declarei. - Obrigado, e fique descansado que começaremos a trabalhar sem demora.

         Inclinou a cabeça a Bertha, encaminhou-se para a porta, mas parou, antes de sair, e observou:

         -Acho que devo adverti-lo, Lam, de que pensamos existir um elemento de perigo.

         - Pessoal?

         -Sim.

         - Por que chegaram a tal conclusão?

         - Recebemos um interessante aviso anônimo, pelo telefone, -respondeu-me, a sorrir.-Aconselho-o a ter cuidado.

         Saiu e fechou a porta.

         -Não é maravilhoso, Donald?-perguntou-me Bertha Cool, com a cara toda franzida num sorriso.-Trata-se de uma importante companhia de seguros, com os seus serviços de investigação privativos, mas achou que devia recorrer a nós, quando lhe surgiu um caso realmente difícil...

         Não disse nada.

         -Claro que nós não somos tão parvos que acreditemos na explicação do motivo por que estão dispostos a gastar dinheiro para obter a informação desejada... - prosseguiu.-Há qualquer coisa que os preocupa. É evidente que tentaram contactar com a rapariga, mas aconteceu fosse o que fosse que os assustou.

         -Sem dúvida-concordei.-Bem, vou explorar o terreno.

         - Mantenha-me informada. Este caso é importante. E não assuste o cliente com as exorbitantes notas de despesas que costuma apresentar. Pode cortar...

         Saí e fechei a porta, sem ouvir o resto da frase.

         Fui a uma agência de aluguer de automóveis, escolhi um conversível, baixei a capota e segui para Colinda.

         Andei pelas imediações do Edifício Miramar até localizar o automóvel de Doris Ashley, escolhi um lugar para estacionar e fiquei à espera.

         Cerca das duas e meia da tarde, uma morena interessante, com um andar impaciente, como se as suas pernas bonitas tentassem afastar o passeio do caminho, saiu do prédio e meteu-se no automóvel, desembaraçadamente.

         Segui-a até ao supermercado de Colinda.

         Por enquanto, limitava-me a proceder de improviso, sem nenhum plano antecipado. Tinha de arranjar maneira de meter conversa com a pequena, mas não sabia como. O velho truque de enfiar uma roda do meu carro das compras entre uma roda do dela, talvez resultasse. Dependia da disposição da rapariga. No entanto, mesmo partindo do princípio que resultaria, mais tarde ela poderia pensar no assunto e encontrar muitos pormenores suspeitos na «abordagem», risco que não me convinha de modo nenhum correr.

         Disse não sei quem que existem mil maneiras de travar conhecimento com uma rapariga bonita, mas nenhuma vale nada se ela não estiver com a disposição conveniente.

         O espaço para estacionamento, perto da entrada do supermercado, estava cheio. A maioria dos lugares vagos ficavam no outro extremo do recinto. Doris conduziu devagar, a avaliar a situação, e acabou por estacionar precisamente ao fundo do parque, junto a um muro, do lado direito. Abriu a porta da esquerda e apeou-se, deixando-me entrever uma boa quantidade de meia e de perna.

         Bateu com a porta, sem olhar sequer para trás, e dirigiu-se para o supermercado, com os seus passos curtos e rápidos.

         Havia uma vaga no lado esquerdo, e eu arrumei o meu carro tão perto do dela que lhe seria impossível abrir a porta desse lado. Do lado direito também não o poderia fazer, por causa do muro.

         Um homem alto e desengonçado arrumou um Ford ao lado do meu carro. Meti as chaves na algibeira e fui esperar a um canto, à sombra.

         A espera não foi muito longa.

         Doris saiu com um saco de papel cheio de mercearias, dirigiu-se apressadamente para o lugar onde deixara o automóvel, começou a insinuar-se entre o seu carro e o meu conversível, viu o aperto em que estava metida, hesitou, deu a volta para o lado direito e tentou entrar por aí... Mas a porta larga não abria o suficiente para ela passar.

         Olhou à sua volta, de testa franzida. Percebi que estava furiosa.

         Pousou o saco das compras no chão, aproximou-se do meu conversível, deu-lhe uma vista de olhos, estendeu o braço para o volante e buzinou.

         Aguardei uns momentos, antes de me aproximar, com ar despreocupado, como se procurasse alguém. Ao ver Doris, virei a cabeça.

         -Este carro é seu?-perguntou-me, abespinhada.

         -Não, minha senhora. Franziu a testa.

         -Porquê?-indaguei.-Há alguma complicação.

         -Se há alguma complicação! Olhe como este estúpido estacionou! Não consigo abrir a porta do meu automóvel e estou cheia de pressa.

         - Imagine! -exclamei, compadecido. Olhou-me, de alto a baixo, e explodiu:

         -Sentir-me-ia muito melhor se dissesse, com todas as letras, o que penso deste grandíssimo idiota. Você nem imagina o que seria capaz de dizer! Haverá alguma maneira de desviarmos a maldita campana? Podemos empurrá-la para trás?

         -Talvez o dono esteja no supermercado e consigamos encontrá-lo...-sugeri.

         - Talvez, mas teríamos de o chamar pelo altifalante e perderíamos tempo. O supermercado está cheio de gente. A minha vontade... a minha vontade era furar-lhe os pneus!

         -Eu podia desviá-lo se...

         -Se quê?

         -Enfim, não me convém ser apanhado.

         -Ser apanhado a fazer o quê?

         - Uma ligação direta.

         Olhou-me novamente de alto a baixo e perguntou:

         - Quanto tempo levaria?

         - Uns dez segundos.

         - Então? - perguntou-me, com o mais encantador dos sorrisos, - Porque espera?

         -Se me apanhassem... voltaria... Mostrou-me os dentes brancos e certinhos, entre os tentadores lábios vermelhos, e pestanejou, lentamente.

         -Por favor-pediu-me.-Oh, por favor! Aproximei-me do carro, olhei furtivamente por cima do ombro e saltei para o lugar do motorista. Raspei o material isolante de dois dos fios, com o canivete, tirei um bocado de fio da algibeira e fiz a ligação. Recuei o carro e sorri à rapariga.

         - Está bem assim, minha senhora?

         Doris abriu a porta do seu automóvel, arrumou o saco, hesitou um momento e depois, deliberadamente, puxou a saia curta e justa, para se sentar, e brindou-me com uma superabundância de cenário.

         Ligou o motor e saiu em marcha-ré.

         Repus o carro alugado na posição anterior, abri a porta do lado esquerdo e saí.

         Doris chamou-me, com um aceno, e perguntou-me:

         -Como se chama?

         - Donald.

         - Chamo-me Doris - apresentou-se, com um sorriso sedutor. - Você é um amor, Donald. Como aprendeu a fazer aquilo?

         -Aprendi numa escola dura, minha senhora.

         - Doris - corrigiu-me.

         - Doris-repeti.

         -Correu um grande risco ao fazê-lo por mim, não correu?

         -Corri.

         -É um amor-repetiu, e sorriu-me de novo.- Que está fazendo aqui, Donald? Não veio às compras... Está à espera de alguém? A sua mulher está lá dentro, a aviar-se?

         - Não tenho mulher.

         - Namorada?

         - Não tenho namorada.

         -Porquê, Donald?

         - Não tive oportunidade de estabelecer quaisquer contactos... ainda.

         -Alguma coisa o tem detido?

         -Circunstâncias que não esteve na minha mão governar.

         -Talvez eu o possa ajudar, Donald. Que faz por aqui, hem?

         Hesitei e só passados momentos respondi:

         - Preciso de falar com um dos caixas, mas não quero que me vejam e eles estão muito atarefados, lá dentro.

         - Estarão muito atarefados ainda durante um bom bocado. Porque não fala com ele quando sair?

         -Creio que não terei outro remédio.

         -Quer uma carona para a parte alta?-perguntou, e os seus olhos eram lagos convidativos.

         -Oh, obrigado!

         Contornei o carro, abri a porta e entrei. Doris pegou na saia com o polegar e o indicador e puxou-a para baixo, talvez um décimo de centímetro.

         -Vou para o Edifício Miramar-informou.-Vai para esses lados?

         -Onde é o «Edifício Miramar»?

         -Chestnut, 314.

         -Creio que sim... Quero dizer, qualquer lado me serve.

         Saiu do recinto de estacionamento em marcha-ré, torceu o volante, afrouxou na rua principal e incorporou-se na fila de carros que passavam.

         -Está em baixo de sorte, não está, Donald?

         -Acertou.

         -Como explica que soubesse fazer a ligação direta de um carro?

         - Aprendi...

         -Já alguma vez a fizera?

         -Não-respondi, de olhos baixos.

         - Não precisa de me mentir, Donald. Trazia aquele bocado de fio na algibeira, andava pelo parque de estacionamento... Conte-me tudo, Donald.

         Baixei ainda mais a cabeça.

         -Seja franco, Donald. Já alguma vez esteve metido em confusões?

         - Não.

         -Conheceu nalgum lugar o caixa com quem deseja falar? Talvez nalguma instituição?

         - Não.

         - Do que não há dúvida, Donald, é de que sabe algumas coisas... esquisitas. Se o dono daquele carro tivesse aparecido e o apanhasse a fazer a ligação, estaria em muito maus lençóis, não estaria?

         Acenei afirmativamente.

         - Porque se arriscou, então?

         -Porque... porque você sorriu.

         -Os meus sorrisos impressionam-no tanto assim, Donald?

         -Os seus sorrisos, a sua figura, as suas pernas...

         -Donald!

         Olhei para trás, por cima do ombro. O Ford conduzido pelo tipo alto e desengonçado vinha dois carros atrás de nós.

         De súbito, agarrei no puxador da porta e gaguejei:

         -Se não se importa de parar... preferia apear-me aqui, minha senhora.

         - Chamo-me Doris.

         - Preferia apear-me, Doris.

         -Vou para o «Edifício Miramar», Donald. É aí que moro.

         Um pouco adiante acendeu-se uma luz vermelha.

         Doris apoiou o pé pequeno e arqueado no pedal do freio e repetiu:

         - É aí que moro.

         -Adeus, Doris - despedi-me. - Foi maravilhosa.

         Saí e bati com a porta.

         Doris começou a dizer qualquer coisa, mas a luz mudou e o motorista do carro seguinte buzinou, ao de leve. A rapariga olhou-me um momento, pesarosa, e depois arrancou.

         O motorista desengonçado do Ford olhava para um lado e para o outro, à procura de um lugar para estacionar. Mas não encontrou nenhum e não teve outro remédio senão continuar a seguir o cortejo de carros à sua frente.

         Regressei a pé ao supermercado, meti a chave na ignição do conversível, fui devolvê-lo à agência e telefonei a Bertha.

         - Onde está agora? - perguntou-me a minha sócia.

         -Estive em Colinda, mas agora estou de novo na cidade.

         -Donald, há algo de estranho neste caso...

         -Só agora é que o descobriu?

         - Não arme em esperto. A sua secretária e os recortes que você a manda guardar...

         -Que se passa?

         - A Elsie tem estado a estudar com atenção todos os anúncios pessoais... Meu Deus, aquela rapariga adora o chão que você pisa! Que diabo faz você às mulheres? Quais são as suas idéias? Casar com ela? Era o melhor que fazia...

         -Casarei, se você insistir. Claro que, nesse caso, ela se tornaria sócia da firma...

         -Se tornaria o quê?!-gritou Bertha, pelo telefone.

         -Sócia da firma.

         -Vá para o Inferno! Não consentirei que nenhuma pelintra de nenhuma secretária case com o meu negócio!

         -Está bem, não casarei com ela. Mas, afinal, que descobriu a Elsie?

         -A companhia de seguros anda a publicar um anúncio anônimo.

         -A dizer o quê?

         -A oferecer cem dólares a quem tiver testemunhado uma colisão de automóveis ocorrida no cruzamento das Seventh e Main Streets, em Colinda, no dia 13 de Agosto.

         -Como sabe que o anúncio é da companhia de seguros?

         -Tem de ser. Mais ninguém se lembraria de oferecer logo cem dólares a uma testemunha.

         - E para que precisaria a companhia de seguros de testemunhas? Estão dispostos a aceitar a responsabilidade, pois não terão outro remédio.

         -Está bem, quis apenas dizer-lhe o que o jornal publicou-resmungou Bertha.-Acho melhor consultar o jornal de Colinda e ver se traz também, alguma coisa.

         -Boa ideia, consultarei. Agora tenho uma novidade para si Bertha.,

         -Que novidade?

         -Têm-me seguido.

         -O quê?!

         -Ouviu bem.

         -Onde esteve?

         -Fui a Colinda e voltei.

         -Como sabe que o seguiram?

         -Graças aos retrovisores e ao meu dom de observação.

         -Que diabo haverá neste malfadado caso, Donald?

         -Não sei... por enquanto.

         - Parece-lhe que tenham seguido o Lamont Hawley, quando ele veio ao nosso escritório?

         - Eu não sei, mas ele deve saber.

         - Deve haver qualquer trampolinice no fundo desta história... Tenha cuidado, ouviu?

         -Para quê? Este é um daqueles belos trabalhos muito respeitáveis, uma daquelas maravilhas que você acha adequadas para nós.

         -O diabo, é que é!-berrou a minha sócia, pelo telefone. - Esta história está carregada de dinamite, e você sabe-o muito bem! Porque carga de água parou o Hawley e lhe disse haver um! elemento de perigo no caso? Que demônio pretendia ele?

         - Evitar que eu me lançasse de olhos fechados numa coisa que mie podia sair cara.

         - Então por que não nos avisou quando disse o que pretendia, porque não nos explicou o que se passava?

         Tive o cuidado de esperar que Bertha concluísse a tirada, para ter a certeza de que ela me entenderia bem:

         - Porque, se tivesse sido franco conosco, você estipularia um preço condizente com o montante de trabalho e de perigo inerentes. Assim, levou-a à certa e ficou-se a rir com uma remuneração nominal. Pagaria com tanta facilidade dez mil como apenas mil, e...

         O rugido que ouvi do outro lado da linha só podia significar uma coisa.

         Desliguei devagarinho, antes que os berros de indignação de Bertha fundissem os fios do telefone.

         Meti-me na carripana da agência e pus-me a caminho do meu apartamento, sem pressas e de olho atento ao retrovisor. Ninguém me seguia.

         Dei uma vista de olhos pêlos jornais, dedicando especial atenção aos anúncios. Lá vinha o que me interessava, mas tinham aumentado a parada: «Pagam-se 250 dólares a quem tenha assistido à colisão nas Seventh e Main, em Colinda, em 13 de Agosto, às 3.30 h. da tarde. C. P. 694-W.

         Recortei o anúncio, colei-o numa folha de papel e escrevi, em baixo: «Telefonar Mayview 6-9423 e perguntar por Donald.» Enderecei o sobrescrito com o número da caixa postal indicada no anúncio e meti-o numa caixa de correio.

         Mayview 6-9423 era o número do telefone particular de Elsie Brand, a quem telefonei a seguir:

         -Como vai isso, Elsie?

         - Ótimo, Donald. Onde estás?

         - Na cidade.

         -Querias alguma coisa?

         -Queria, Elsie. Se alguém telefonar e perguntar por Donald, procede com; um bocadinho de manha. Diz a quem’ quer que for que ora estou ora não estou, mas que podes tomar conta de qualquer recado. Se quiserem quaisquer informações ou perguntarem qual é o meu apelido, diz que sou teu irmão.

         -Supõem que moras neste apartamento, Donald?

         - Talvez.

         -Não seria um pouco inadequado viver com um irmão num apartamento tão pequeno?

         - Está bem, então diz que sou teu marido.

         - Isso ainda seria mais embaraçoso.

         -Que preferes, adequado ou embaraçoso?

         -E tu, Donald?

         -Parece-me melhor ficarmos pelo inadequado... por consideração para com os teus sentimentos. Diz-lhes que sou teu irmão.

         - Como queiras.

         -Dorme bem-desejei-lhe, antes de desligar.

         No dia seguinte, voltei à agência de aluguel e escolhi um Chevrolet, no qual segui para Colinda.

         Tanto quanto me foi dado avaliar, ninguém mostrava o mínimo interesse pelos meus movimentos. Sem contar com o trânsito normal, tinha a estrada toda para mim. Umas vezes conduzia depressa, outras devagar, mas não via ninguém atrás de mim.

         Quando cheguei a Colinda comprei um jornal.

         Na página dos anúncios ninguém pretendia contactar com uma testemunha do acidente do dia 13 de Agosto.

         Fui à seção de trânsito da Polícia local e dei uma vista de olhos pelos registros.

         Havia um relatório feito por Carter Jackson Holgate, no dia seguinte ao acidente, no qual comunicava que colidiram com a retaguarda de um veículo, no cruzamento da Seventh e Main Streets, às três e meia da tarde; que o carro avariado tinha a licença TVN 626 e pertencia a Vivian Deshler, residente no Edifício Miramar; que os estragos da frente do carro de Holgate estavam avaliados em cento e cinquenta dólares; que os estragos causados na retaguarda do outro veículo eram praticamente nulos.

         Meti-me no automóvel e dirigi-me para o «Edifício Miramar”. O carro de Doris Ashley estava no parque de estacionamento.

         Pouco depois das duas horas, Doris saiu do prédio e encaminhou-se, em passos rápidos e curtos, para o lugar onde deixara o carro.

         Esperei que estivesse de costas para mim, segui para o supermercado, estacionei e entrei no estabelecimento.

         Doris chegou, muniu-se de um carro, fez algumas compras e encaminhou-se para a caixa.

         Antecipei-me e interpelei um dos caixas:

         -Ouça, amigo, interessava-me abrir uma conta...

         -Só vendemos a dinheiro-respondeu-me, a abanar a cabeça.

         - Precisava apenas de um crédito a curto prazo. Só queria ter...

         Abanou de novo a cabeça.

         - Lamento muito, mas não concedemos crédito a ninguém. Nem ao presidente dos Estados Unidos o concederíamos, se ele o pedisse. Trabalhamos a dinheiro. Se quiser descontar um cheque, muito bem; recomendá-loei ao gerente. Mas quanto a crédito, nada feito.

         -Nem mesmo um crédito de cinco dólares?

         Abanou enfaticamente a cabeça.

         Endireitei-me e vi Doris a olhar-me e a avaliar a situação. Não devia ter ouvido a conversa, mas viu o homem abanar a cabeça e veio-me falar.

         - Donald! - chamou.

         - Olá - cumprimentei, tristemente.

         -Espere por mim, Donald. Quero falar consigo. Aproximou-se do balcão do caixa e disse, apressada:

         -Confira isto depressa, por favor, e dê-me o troco.

         Pôs vinte dólares à frente do empregado, despachou-se e deu-me o braço.

         -Por que me fugiu ontem, Donald?

         -Eu... bem, receei não me saber dominar.

         - Não se saber dominar? Que quer dizer?

         -Saiu-me pela boca fora uma coisa que não tencionava dizer...

         - Acerca do seu passado? Não me disse nada.

         -Não. Acerca... acerca das suas pernas.

         -Que têm as minhas pernas, Donald?-perguntou, a rir.

         -São maravilhosas.

         -Tonto! Julga que não sei que tenho pernas bonitas? Fazem; parte de mim, sirvo-me delas para andar e quando quero impressionar alguém... Deixei-o admirá-las bem. quando foi simpático comigo, não deixei?

         -Não está zangada por...

         - Ficaria zangada se não as tivesse admirado.

         O caixa interveio:

         -São três dólares e doze cêntimos. Aqui tem o troco dos vinte dólares.

         Doris estendeu a mão para o saco de papel. Hesitei, apenas durante o espaço de tempo que me pareceu adequado, e depois perguntei:

         - Dá-me licença?

         Peguei no saco e levei-o para o carro.

         - Ponha-o no banco de trás, Donald. Arrumei o saco e abri a porta do automóvel, para ela entrar.

         -Que tenciona fazer agora, Donald?

         -Voltar para S. Francisco.

         -Falou com a pessoa com quem desejava falar?

         -Falei.

         -Consegui  o que pretendia?

         - Não.

         - Entre.

         -Eu...

         -Entre. Dou-lhe uma carona e desta vez não me fuja.

         Entrei no automóvel.

         A saia curta de Doris dava-lhe pelo canhão da meia, mas desta vez a minha nova amiga não fingiu que a puxava para baixo.

         Quando saímos do parque de estacionamento, vislumbrei o indivíduo alto e desengonçado, que vira na véspera ao volante de um Ford. Desta vez conduzia um Plymouth sem características especiais, com muito uso.

         Doris incorporou-se no fluxo de trânsito e o Plymouth fez o mesmo, quatro carros atrás.

         -Sente-se solitário, não sente, Donald?

         - Talvez.

         -E faminto de companhia feminina?

         - É possível.

         - Mas se for para S. Francisco mete-se em apuros. Você queria arranjar qualquer coisa, aqui... O que era, Donald? Um emprego no supermercado?

         -É possível.

         -E, como não o conseguiu, abandonou a ideia de levar uma vida decente. Porque resolveu voltar para S. Francisco?

         -Conheço lá alguém.

         - Homem ou mulher?

         - Mulher.

         - Nova?

         -Assim-assim.

         - Atraente?

         - Sim.

         -Já a conhecia antes?

         -Antes de quê?

         -De se meter em confusão.

         - É possível.

         -Sabe o que acontecerá, Donald. Precisará de dinheiro, encontrar-se-à  com alguém do velho grupo e, às duas por três, mete-se outra vez em confusão e volta para lá.

         -Para onde?

         -San Quentin (1).

         Observou-me de lado, perscrutadoramente, mas eu baixei a cabeça e não disse nada.

         -Quero que faça uma coisa, Donald.

         -O quê?

         -Venha ao meu apartamento.

         - Hem?! - perguntei, admirado.

         - Desejo apenas conversar consigo, saber coisas a seu respeito. Talvez o possa ajudar. Tem fome?

         - Não tenho muita.

         - Mas tem alguma?

         - Comia.

         -Tenho um belo filet mignon no frigorífico. Cozinhá-lo-ei para si, enquanto você se senta e se acalma. Pressinto que está a viver sob uma tensão qualquer, e isso incomoda-me. É tão simpático que seria uma lástima cruzar os braços e deixá-lo arranjar confusões outra vez .

         - Está a confiar demasiado.

         -Às vezes, as pessoas precisam de confiar umas nas outras.

         Fiquei calado, a vê-la conduzir o carro.

         -Gosta delas hoje, Donald?

         -De quê?

         -Das pernas.

         -São maravilhosas.

         Doris sorriu.

         Seguimos em silêncio até ao terreno vago, onde ela arrumou o carro.

         Pelo canto do olho, vi o tipo desengonçado arrumar o Plymouth junto do passeio, meio quarteirão atrás.

         Apeei-me, contornei o automóvel e abri a porta, para Doris sair.

         -Tire o saco das compras, Donald-disse-me, enquanto tirava os joelhos debaixo do volante e deslizava para o chão.

         - Sim, minha senhora.

         - Doris.

         -Sim, Doris.

         Peguei no saco e fechei a porta do carro, Entramos no prédio e subimos no elevador.

         Doris introduziu a chave na fechadura, abriu a porta, entrou e disse-me:

         -Instale-se à vontade, Donald. Quer uma bebida?

         -Não me parece aconselhável...

         -Ainda é um pouco cedo. Vou preparar-lhe um belo bife.

         -Não se incomode. Eu...

         -Caluda. Você senta-se naquela cadeira, confortavelmente, e conversamos, enquanto o bife grelha.

         Sentei-me confortavelmente, na cadeira por ela indicada.

         Doris cirandava de um lado para o outro, rápida e eficiente.

         - No capítulo de vegetais não ficará muito bem servido, mas garanto-lhe que se regalará com um ótimo bife, pão com manteiga, batatas fritas e café. Como gosta da carne? Bem passada, mal passada...?

         - Mal passada.

         (1) Presídio para sentenciados por crimes graves nos E. U. A. (N. do T.)

         - Ótimo.

         -E você?

         -Tomei o pequeno almoço não há muito tempo. Além disso, tenho de olhar pela minha figura...

         -Também eu...-comecei, mas calei-me, constrangido.

         -Olhe à vontade, Donald?-respondeu-me, a rir. -Acredite que não me importo.

         Ligou a máquina do café, pôs o bife na grelha, votou para a sala e sentou-se no braço da minha cadeira.

         -Anda à procura de emprego, Donald?

         -Ando.

         -Talvez me possa fazer uma coisa...

         -O quê?

         -Um trabalho.

         -Adoraria.

         -Talvez seja... bem, um pouco arriscado.

         -Não me importo de correr riscos por si.

         - Não fuja de mim, Donald. Não o mordo.

         - Tenho medo...

         - De quê?

         - Do que poderei fazer.

         E que poderá você fazer?

          -Não sei.

         -Sente-se só, Donald. Deve estar há tanto tempo privado de mulheres que esqueceu como as deve tratar. Passe o seu braço pela minha cintura... Assim.

         Agarrou-me no braço e passou-o pela sua cintura.

         Apertei-a.

         Deslizou da cadeira para o meu colo e abraçou-me pelo pescoço. Uniu os lábios aos meus, entreabriu-os, ; devagar, e pareceu derreter-se nos meus braços.

         -É maravilhoso, Donald - murmurou, passados instantes.-Tenho de ir ver o bife.

              Levantou-se do meu colo e virou a posta de carne  com um garfo de cabo comprido. Voltava para a cadeira, de olhos brilhantes e lábios entreabertos, quando a campainha tocou.

              Por momentos, pareceu assustada e incrédula. | Depois exclamou, baixinho:

         -Não, oh, não! A campainha soou de novo.

         Doris correu para mim, agarrou-me na mão e obrigou-me a levantar.

         -Depressa, Donald!-murmurou.-Meta-se dentro deste armário. Deixe-se ficar. São apenas alguns minutos. Depressa!

         -O seu marido?-perguntei, apreensivo.

         -Não sou casada, tonto. É... Entre depressa. Era um armário comprido, de ponta a ponta da sala, cheio de vestuário feminino, de um lado, e com uma cama que se fechava como uma porta, do outro.

         Meti-me entre os vestidos e Doris fechou o armário. Depois ouvi-a abrir a porta do apartamento.

         - Que estás a cozinhar? - perguntou uma voz de homem.

         - Estou a fazer café - respondeu-lhe, a rir. Ouvi-a entrar e fechar a porta, ouvi os seus movimentos e, de novo, a sua voz:

         - Esta cadeira está quente.

         - Claro que está quente! - redarguiu Doris, sempre a rir.-Estive lá sentada... e eu sou uma pessoa quente. Ou não sabias?

         - Sabia.

         Decorridos alguns instantes de silêncio, o homem perguntou:

         -Que andaste a fazer, Doris?

         - Compras.

         - Alguma novidade?

         -Ainda não.

         - Deve surgir qualquer coisa, muito em breve.

         -Sim...

         Ouvi Doris andar de um lado para o outro, na cozinha, chegou-me às narinas o aroma do café e, a seguir, ouvi uma chávena bater num pires.

         -Reparaste que subiram a parada?

         - Qual parada? - perguntou Doris.

         -A gratificação que oferecem às testemunhas do acidente. Ontem eram cem dólares, mas hoje o jornal anuncia duzentos e cinquenta.

         -Oh!

         Novo intervalo de silêncio, desta vez mais prolongado.

         - Não ouviste nada? - perguntou o homem.

         - Não, Dudd. Se tivesse ouvido algo de novo, ter-te-ia dito logo.

         - Estou com medo daquela maldita companhia de seguros. Se continuam a bisbilhotar, deitam tudo a perder.

         - Parece-te que continuarão a investigar?

         -O mal é desconfiarem! O pior é que não dispomos de muito tempo. É preciso malhar o ferro enquanto ele está quente, de contrário... Que diabo está para aí a queimar-se?

         -A queimar-se?

         -Sim. Cheira a esturro, a carne queimada.

         -Oh, meu Deus!-exclamou Doris, e a seguir ouvi os seus passos apressados.

         -Mas que diabo vem a ser isto?-gritou o homem.

         O cheiro a carne queimada chegava até ao armário.

         -o ouviste?-insistiu o indivíduo.

         - Esqueci-me de que estava a grelhar um bife. Tinha-o no grelhador, mas com a tua vinda esqueci-me.

         -Para que raio estavas a grelhar um bife?

         -Tinha fome.

         -E se te explicasses? Que partida estás a tramar?

         - Nenhuma. Já te disse que estava a grelhar um bife, mais nada. Meu Deus, não terei o direito de grelhar um bife, no meu próprio apartamento?

         Ouvi passos pesados e autoritários, passos beligerantes.

         -Pois sim, minha linda, vou dar por aí uma olhadela. Quero ver com os meus próprios olhos o que se passa.

         Ouvi uma porta abrir-se e fechar-se, a voz de Doris -«Não, Dudd, não!»-e o choque de um corpo com a parede, quando o valentão empurrou a rapariga, para a afastar do seu caminho.

         Aproximaram-se passos do armário onde me encontrava escondido, o que me decidiu a abrir a porta e a sair.

         O tipo parou bruscamente.

         - Procurava-me? - perguntei-lhe.

         -Pode ter a certeza de que sim!-respondeu, e avançou de novo na minha direção. Fiquei parado, imóvel, a olhá-lo.

         -Por favor, Dudd, deixa-me explicar-pediu Doris.

         Mas ele continuou a avançar, de olhos fixos nos meus e lábios arqueados, numa expressão de cólera. Percebi que me ia esmurrar, mas não tentei esquivar-me. Se o primeiro soco não me apanhasse, o segundo apanharia, com certeza. Aguentei-me, por isso, e os fados cumpriram-se...

         Senti-me cair para trás, o teto girou, a descrever um semicírculo, e a minha nuca bateu em qualquer coisa. Apaguei-me como uma vela.

         Quando recuperei os sentidos, o cheiro a queimado ainda não se dissipara. Doris falava, em voz rápida e assustada. As suas palavras pareciam vir de muito longe e, embora os meus ouvidos as registrassem, não diziam nada ao meu cérebro.

         -Não compreendes, Dudd? Este é o homem que procurávamos. Podemos servir-nos dele. Travei conhecimento com ele e estava a tentar saber coisas a seu respeito. Assim que tivesse a certeza de que podíamos confiar nele, entregar-te-ia. Agora precipitaste-te e estragaste tudo.

         - Quem é ele? - perguntou o tipo, em voz ríspida, ainda desconfiado.

         -Como queres que saiba? Sei apenas que se chama Donald e que deve ter saído há pouco tempo de San Quentin. Veio ver se arranja emprego no supermercado. Um dos caixas esteve preso com ele e o Donald pensava que o ajudaria, mas o indivíduo recusou-se. Vi-o dar com o nega ao Donald... Foi então que entrei em cena e...

         -Como sabes que esteve em San Qéntin?

         -Vê-se bem que esteve preso. Ele nega, mas não podem restar dúvidas a esse respeito. Arranjou alguma confusão e não saiu da prisão há muito tempo. Vê-se que está sedento de companhia decente.

         -E que género de companhia lhe ias proporcionar?

         -Já que queres saber, ia fazer com que não se sentisse só.

         -Aposto que eras capaz disso...

         -Tencionava informar-me a seu respeito e depois, se me parecesse que valia a pena, dizia-te.

         - Como sabes que ele esteve em San Quentin?

         - Pela maneira como travou conhecimento comigo.

         -Como foi?

         -O meu carro estava imobilizado por outro, no parque de estacionamento do supermercado, e ele efetuou uma ligação direta, no automóvel que me impedia a passagem, e resolveu o assunto. Creio que é ladrão de automóveis profissional. Estava armado e equipado com um bocado de fio, para o que desse e viesse.

         -Com os diabos, não tentes fazer as  coisas sozinha!- praguejou o homem, passados momentos.-Já te disse que quem trabalha com os miolos, nesta operação. sou eu. Bem, vai buscar uma toalha turca, ensopada em água fria, para tentarmos reanimá-lo.

         Continuava com a impressão de que as suas vozes vinham de muito longe e de que eles discutiam um assunto que não tinha nada a ver comigo.

         Ouvi os passos do homem, senti cair-me água na testa e, depois, porem-me uma toalha fria na cara. Um deles puxou o fecho de correr das minhas calças, levantou-me a camisa e pregou-me com a toalha fria no estômago.

         Os meus músculos abdominais contraíram-se, involuntariamente, arquejei e abri os olhos.

         O calmeirão estava debruçado sobre mim, com um ar de intrigada curiosidade.

         - Pronto, já está - resmungou. - Levante-se. Fiz duas tentativas, que falharam, e o tipo agarrou-me pelos ombros e puxou-me, até ficar sentado. Depois agarrou-me numa das mãos, com uma enorme manápula, e obrigou-me a pôr de pé.

         Olhou-me de alto a baixo e desatou a rir.

         -Que se passa?-perguntei, admirado.   - Meta a camisa nas calças e puxe o fecho da braguilha.

         Apanhou a toalha molhada, que caíra para o chão, e atirou-a na direção da casa de banho. A toalha caiu no soalho encerado, Doris apressou-se a apanhá-la, entrou com ela na casa de banho e voltou logo a seguir.

         -Sente-se bem, Donald? - perguntou-me, apreensiva.

         -Não sei-respondi, e tentei sorrir.

         -Nada de ressentimentos-  disse o homem.- Chamo-me Dudley Bedford. E você?

         -Donald.

         -Qual é o apelido?

         - Lam.

         -O quê?

         -Lam.

         -L-a-m-b? 1(1)

         - Lam - repeti. - L-a-m.

         Bedford olhou-me um momento, e depois atirou a cabeça para trás e desatou de novo a rir.

         -Anda «pirado», hem?2

         - Não. Lam é o meu nome.

         -Tem carta de condução?

         -Ainda não.

         - Há quanto tempo saiu? Não respondi.

         -Vamos, homem, há quanto tempo saiu?

         -Não estive preso-afirmei, e desviei os olhos dos dele.

         -Está bem, seja como quer. Que diabo está aqui a fazer?

         -Não sei. Essa rapariga teve a gentileza de me oferecer um bife...

         -Sente-se ali- ordenou Bedford.-Quero conversar a respeito consigo.

         - Mas eu não quero conversar consigo. Acabou-se. Não sabia que ela era casada.

         -Ela não é casada... e é rapariga que chegue para você, para mim e para mais seis como nós! Não sou dono dela nem ela é minha dona. Trabalhamos juntos, apenas. O que pretendo saber é o seguinte: quer trabalhar conosco?

         - Não.

         - Não? Que quer dizer?

         -Quero dizer que não.

         -Ainda não sabe qual é a nossa proposta.

         -Claro que sei.

         -Sabe como?

         -Você disse-me.

         -Que lhe disse eu, homem?

         - Perguntou-me se queria trabalhar com vocês dois, e eu respondi que não.

         -Ah,  sim, compreendo! Muito esperto... Nem mais, nem menos, hem?

         - Nem mais, nem menos. Sei o que não quero.

         - E o que quer?

         -Quero uma oportunidade de arranjar um emprego respeitável.

         -Como sabe que não lhe íamos oferecer um emprego respeitável?

         - Não me abordou como devia.

         - Muito bem, tentarei abordá-lo de outro modo.

         - Experimente - respondi.

         -Sabe quem eu sou?

         -Não. Sei apenas que disse chamar-se Bedford.

         -Sabe como vim aqui ter?

         -Tocou à campainha.

         - Esperto, espertíssimo. Demasiado esperto. Com tanta esperteza, arrisca-se a outro murro no focinho.

         -É possível.

         - Para sua informação, sempre lhe digo que sou o dono do carro em que ontem mexeu... da maneira que sabemos. Vi-o sair do meu automóvel e entrar no da Doris, e, como a conheço bem, resolvi vir averiguar que diabo fazia ela na companhia de um tipo que efetuara uma ligação direta no meu carro. Agora é a sua vez, Donald Lam. Pode falar.

         -De que... de que quer que fale?

         - Pode falar do que lhe apetecer. Mas se eu fosse você e me encontrasse na situação em que se encontra, começaria por apresentar uma razão de peso, que me convencesse a não informar a Polícia de que o vi a mexer no meu automóvel. Na eventualidade de o desconhecer (mas eu creio que tal não sucede), fique sabendo que é crime mexer, como você mexeu, nos carros alheios. Aqui tem do que eu falaria, se estivesse no seu lugar.

         Olhei para Doris, sorrateiramente, e ela piscou-me o olho.

         -Muito bem-murmurei, resignado.-Que queria que fizesse? O seu automóvel bloqueava o desta senhora, que não podia sequer abrir a porta e meter lá dentro o saco das compras...

         - Bastar-lhe-ia entrar no supermercado e perguntar por mim. Teria desviado o carro.

         - Não havia tempo para isso.

         -Devia estar com muita pressa.

         -Ela é que estava.

         - Creio que não aceito essa explicação.

         - É a única que existe.

         Depois de meditar durante alguns momentos, disse-me:

         -Você podia fazer-me jeito, sabe? Fazia-me um trabalho e ficávamos quites. Que tal?

         - Que gênero de trabalho?

         - Uma coisa que exigiria um pouco de ousadia, um pouco de tato e um pouco de prudência. No fim, ficaria com as suas contas todas arrumadas e, se tivesse feito bom trabalho, cem dólares na algibeira. Que lhe parece?

         -Os cem dólares na algibeira parecem-me bem, mas não creio que me interesse o trabalho.

         - Porquê?

         -Parece...

         - Parece o quê? - insistiu, ao ver-me hesitar.

         -Parece tratar-se de uma coisa que você tem medo de fazer pessoalmente.

          Desatou a rir.

         - Não seja parvo! Não tenho medo de fazer seja que trabalho for. Acontece, apenas, que não posso fazer este.

         - De que se trata?

         -Ah, agora começa a falar! Começa a cooperar. Levou a mão à algibeira interior do casaco, tirou uma carteira e extraiu desta um retângulo de jornal dobrado, que me estendeu.

         Tratava-se de um anúncio, envolto num círculo vermelho, a oferecer duzentos e cinqüenta dólares a quem tivesse testemunhado o acidente ocorrido às três e meia da tarde, do dia 13 de Agosto,  no cruzamento das Seventh e Main Streets, em Colinda.

         -Que quer isto dizer?-perguntei.

         -Você foi testemunha do acidente.

         -Fui?

         -Exatamente.

         Abanei a cabeça.

         -Não estava cá, no...

         -Fala de mais, quando devia ouvir-interrompeu-me. - Escute-me com atenção, percebeu?

         - Percebi.

         -Assim, sim. Você estava aqui, em Colinda. Descia a rua, a pé, e viu o acidente. Um Buick grande, conduzido por um homem que não parecia prestar muita atenção ao trânsito, chocou com a retaguarda do carro da frente, um automóvel ligeiro, esporte, baixo e veloz, conduzido por uma boneca. Não está certo quanto à marca do veículo, mas viu a cabeça da pequena ser violentamente arremessada para trás, como conseqüência do impacto. A pequena viajava sozinha, era loura, tinha cerca de vinte e seis anos e era bonita e de estatura e peso médios. Vestia bem. Viu tudo isto porque ela se apeou do automóvel, compreende? Ela e o motorista do outro carro conversaram e mostraram um ao outro as respectivas cartas de condução. Você seguiu o seu caminho, pouco interessado. O acidente não parecia grave. Essa deve ter sido, também, a opinião dos implicados, pois no cruzamento seguinte viu passar os dois carros. O Buick tinha o radiador furado e a pingar água, mas o outro tinha apenas uma amassadela, na retaguarda. A rapariga também não parecia ferida.

         -Que quer dizer? Não parecia ferida?

         -O seu aspecto e a sua atitude eram perfeitamente normais.

         - Eu ia a pé ou de carro?

         -A pé.

         -Que fazia em Colinda?

         -Que fazia você em Colinda, hem?

         -Eu... não sei. Tenho de pensar em qualquer coisa.

         -Comece a pensar.

         Bedford voltou-se para a rapariga e perguntou-lhe:

         -Tens  papel?

         Doris abriu uma gaveta da secretária e estendeu ao indivíduo uma folha de papel de carta.

         -Tens cola?

         -Tenho um tubo de cola celulósica.

         -Deixa ver.

         Doris deu-lhe o tubo da cola. Bedford cortou o anúncio, colou-o à folha de papel e disse:

         -Agora precisamos de uma morada.

         -Pode ficar no «Perkins Hotel» - sugeriu a rapariga.

         -Sim, o «Perkins Hotel» serve.

         -Para isso preciso de dinheiro para despesas-  lembrei.

         -É fácil- respondeu-me o homem, e acenou despreocupadamente com a cabeça.- Escreva o que lhe vou ditar.

         Peguei na caneta que me estendia.

         -Sente-se à mesa.

          Obedeci.

         -Agora escreva: «Chamo-me Donald Lam. Vi o acidente mencionado. Podem comunicar comigo no «Perkins Hotel». Assine: Donald Lam.

         - Um momento. Isto não me vai causar problemas?

         -Não, se fizer exatamente o que eu lhe ordenar.

         -E depois, que sucede?

         -Depois alguém se comunica consigo.

         -E depois?

         -Você conta a sua história.

         - E eles apanham-me!

         -Se eles o apanharem, parto-lhe todos os ossos do corpo! - ameaçou Bedford.

         - E se a minha história não se coadunar com os fatos?

         -Os fatos coadunar-se-ão com a sua história- afirmou-me, sorridente.-Quero que se lembre do que eu lhe disse. Viu o homem que conduzia o Buick, achou-o com aspecto de fatigado e pareceu-lhe que não prestava muita atenção ao que fazia. Tentou uma ultrapassagem, viu que não conseguia e voltou à sua mão, mas em velocidade maior do que a dos carros que iam à frente. O sinal do cruzamento da Seventh e da Main mudou de cor e os carros da frente abrandaram e pararam. O indivíduo do Buick foi demasiado lento nos seus reflexos e chocou com o veículo da frente. Agora preste atenção, pois este foi um pormenor em que reparou de modo especial: viu a cabeça da rapariga saltar para trás, como conseqüência do choque. Muito para trás, percebe? Parou um bocado, a observar a cena, viu os outros carros contornarem os que tinham chocado e seguirem o seu caminho, viu o homem e a rapariga apearem-se e mostrarem as cartas de condução e viu o tipo observar os estragos sofridos pela frente do seu automóvel, de cujo radiador pingava água. Depois cada um voltou para o seu carro e você afastou-se.

         -Onde é que estive parado? Hão- de querer saber o ponto exato.

         -Venha comigo, para lhe mostrar o ponto exato. Mas primeiro assine esta declaração.

         - Posso mandá-la pelo correio?

         - Eu encarrego-me disso. Vamos descer a rua, para lhe mostrar onde esteve parado e onde se deu o acidente. Depois iremos ao Perkins Hotel», reservar um quarto com banheiro... Tem alguma roupa?

         - Não.

         -Comprará uma máquina de barbear, uma escova  de dentes e a roupa de que precisar. Ficará no quarto.

         -Quanto tempo?

         -Até eu o mandar sair.

         -Posso sair para comer e...

         - Sim, com os diabos, pode sair para comer! Pode sair e dar uma volta, pode vir visitar a Doris, se lhe apetecer, mas mantém-se em contacto com o hotel. De hora a hora, mais ou menos, pergunta se alguém telefonou para si.

         -E se telefonarem?

         - Diz que viu o acidente.

         -A quem?

         -A quem perguntar.

         -E que ganho com isso?

         - Imunidade por mexer no meu carro, o quarto no hotel e este dinheiro para despesas.

         Tirou um maço de notas da algibeira e estendeu-me uma de vinte e outra de dez dólares.

         - No fim do trabalho, recebe mais cem dólares.

         - E os duzentos e cinqüenta mencionados no anúncio?

         -Esses  não recebe.

         -Quem os recebe, então?

         - Não é você. Agora deixemo-nos de conversa fiada, pois não tenho tempo para delicadezas. Quer fazer o trabalho ou prefere que pegue no telefone, chame a Polícia, diga que apanhei o homem que me mexeu no carro e mostre os fios cortados por você?

         -Eu assino o papel.

         -Assim entendemo-nos. Escreva aqui o seu nome.

          Obedeci.

         -Vamos-ordenou, enquanto dobrava o papel e o guardava na algibeira.-Mostrar-lhe-ei onde se encontrava, quando viu o acidente.

         Bedford levou-me pela Main Street abaixo, até chegarmos ao relógio existente entre a Seventh e a Eigth Streets.

         -O acidente verificou-se ali, no cruzamento-  anunciou.

         Parei um momento, a olhar, mas ele não me deixou:

         -Não, não, continue a andar, Lam. Iremos até à esquina, viraremos à direita, atravessaremos, viraremos à esquerda e seguiremos na direção da Sixth Street. Pararemos a ver uma coisa qualquer, retrocederemos, voltaremos à esquina da Seventh e da Main, viraremos à direita, depois à esquerda e seguiremos para o «Perkins Hotel». Assim terá ensejo de ver tudo.

         «Lembre-se de que iam dois ou três carros à frente do que foi atingido. Não pode garantir quantos eram, ao certo, mas sabe que o da pequena não era o que se encontrava junto do sinal de trânsito. Tinha reparado no carro conduzido pelo Holgate, embora, no momento, não soubesse quem o indivíduo era, e notara que ele parecia impaciente e guinara para a esquerda, a fim de tentar uma ultrapassagem. Deve ter percebido que não o conseguia, pois mudou de opinião e guinou de novo para a direita, a fim de se incorporar outra vez na fila de carros que seguiam junto do passeio. Ia, no entanto, com muita velocidade. A luz do cruzamento virou para vermelho, os carros pararam e...»

         -Se a memória no me falha- interrompi-o -, a luz virou primeiro para amarelo. O carro da frente podia ter passado, antes de a luz vermelha se acender, mas o motorista preferiu travar.

         Bedford deu-me algumas palmadinhas no ombro, como um treinador a encorajar um cão esperto.

         -Donald, você é esperto! Espanta-me, homem! Vá, diga-me o que sucedeu a seguir.

         - Bem, todos os outros carros tiveram de parar com um poucochinho de precipitação, mas o Buick, conduzido por um indivíduo que, sei-o agora, se chamava Holgate, não parou. Continuou a rodar, até se encontrar a cerca de um metro ou metro e meio do carro da frente, e então, aparentemente pela primeira vez, Holgate reparou que o trânsito se imobilizara, à sua frente. Travou tão a fundo que ouvi os pneus chiar, talvez durante uma fração de segundo, e depois deu-se o choque.

         - E que sucedeu a seguir?

         -Os outros carros passaram o cruzamento, mas estes dois pararam e a rapariga que conduzia o carro de desporto, com o qual o Buick colidira, apeou-se, a apalpar a nuca com a mão. Parecia um bocadinho  atordoada. Começou a encaminhar-se para  a frente do carro, mas depois virou-se e dirigiu-se para a retaguarda, onde Holgate se lhe juntou. Demoraram-se um instante, trocaram nomes e moradas, copiados das respectivas cartas de condução, e depois a rapariga meteu-se no automóvel e partiu. Holgate observou a frente do seu veículo, cujo radiador pingava água, abanou a cabeça, sentou-se ao volante, pareceu surpreendido por o carro pegar e partiu também. Creio que todo o  episódio não demoro mais de um minuto. O tempo suficiente para o sinal mudar uma vez, ou duas, no máximo.

         Chegamos ao cruzamento e esperamos a nossa vez de passar.

         -Ótimo - comentou Dudd. - Se o acidente se verificou entre o terceiro e o quarto carros da fila, a partir do cruzamento, o carro atingido devia estar...

         -Mesmo defronte da entrada do cinema- declarei - Pelo menos é assim que me lembro.

         -E o outro?

         -Bem, o outro estaria, naturalmente, cerca de quatro metros e meio atrás, ou seja, o comprimento de um automóvel.

         -Ouviu o barulho do choque?

         -Ouvi, mas o ruído foi muito pequeno e confundiu-se com os outros ruídos do trânsito. Creio que se fossem dois carros que chocassem de frente o barulho teria sido maior.

         -Atraiu muitas atenções?

         -Algumas pessoas olharam, mas seguiram  o seu caminho.

         - E você?

         -Bem, eu parei, até ver o tipo meter-se outra vez no carro.

         - Porquê?

         -Porque se meteu ele no carro?

         -Não. Porque parou você?

         -Não sei. Curiosidade natural, creio. Além disso, a pequena era muito interessante. Perguntei a mim mesmo se estaria bem, pois vi-lhe a cabeça ser violentamente sacudida para trás, quando se deu o impacto. Devia seguir com o pescoço descontraído, a julgar pela maneira como a cabeça lhe saltou.

         Atravessamos a rua, para a direita, e Dudley Bedford disse-me:

         -Não precisa  de virar a esquina comigo, Lam. Retrocedemos, deste lado da rua, paramos, quando chegarmos ao cinema, e vemos o que estão a exibir.

         Atravessei a rua com ele, virmos à direita e retrocedemos, do outro lado da Min Street. Paramos à entrada do cinema, a ver os cartazes, e Bedford perguntou-me, em tom sereno:

         - Está bem certo da cena do acidente?

         -Claro que estou. Vi tudo. Foi na tarde do dia 13 de Agosto, cerca das três e meia.

         Deu-me nova palmadinha no ombro e afirmou:

         - Donald, você é esperto! Muito bem, sigamos para o «Perkins Hotel», que fica a quarteirão e meio daqui. Deve ser o melhor da cidade... No se afaste, pois deve receber um telefonema daqui a uma hora, mais ou menos.

         - E depois disso?

         -Depois disso, deve ter de ir falar com o homem.

         -Quem me telefonará? - perguntei, inocentemente.-Alguém de uma companhia de seguros, um advogado ou...?

         -Não-  interrompeu-me.-Como terá de o saber, mais cedo ou mais tarde, posso dizer-lhe já: quem lhe telefonará será Cárter J. Holgate. É negociante de imóveis e tem um sócio chamado Chris Maxton. Mexem,  os dois, uma infinidade de cordéis...

         -Tenho visto o nome deles com muita freqüência -observei.

         -É natural, dado o gênero de negócios a que se dedicam. Olhe, aquele caminhão é deles. São eles próprios que transportam a madeira que compram.

         Vi passar ruidosamente um grande caminhão, com o nome HOLGATE & MAXTON» escrito num dos lados.

         -Têm atividades aqui perto?

         - Presentemente, estão a construir um bairro a cerca de cinco quilômetros de Colinda - respondeu-me

         Bedford, agarrando-me num cotovelo e guiando-me pela rua abaixo. - Não nos convém que nos vejam por aqui parados, Donald.

         Acompanhei-o, dando cerca de passo e meio por cada passo dos seus.

         - Lamento ter-lhe dado aquele murro - confessou-me. - Perdi a tramontana...

         - Não pense nisso.

         -Espero não ter batido com muita força...

         -Nem por isso... Creio que só estive desmaiado uns quinze ou vinte minutos.

         -Qual quê! Foram apenas minuto e meio ou dois minutos, se tanto. Mas, repito, lamento.

         - Não tem importância.

         - Hei -de arranjar maneira de o compensar.

         - Não pense nisso.

         -Falemos, agora, de Doris. Perdi os trambelhos, é certo, mas isso não significa que a queira numa redoma. Quero que vocês sejam amigos. Você deve sentir-se só e... bem, atire-se para a frente, assim que terminar o trabalho. Pode vê-la as vezes que quiser. Provavelmente estarei uns  dias ausente da cidade.

         -Quanto  tempo ficarei no «Perkins Hotel»?

         -Ficará lá até receber o telefonema do Holgate.

         - E depois?

         - Depois sai e vai ter com ele. Fala-lhe do acidente.

         - Foi ele que pôs o anúncio  a prometer uma gratificação às testemunhas?

         - Está a fazer muitas perguntas, Donald, e não as deve fazer. A si compete-lhe relatar os fatos, mais nada.

         - Está bem.

         -Pode ficar no hotel esta noite e amanhã... Porque não vai visitar a Doris? Ela simpatiza consigo e é boa pequena. Explicar-lhe-á o que quero que você faça, depois, mas desde já lhe digo que o principal é manter-se em contato comigo. Claro que não nado em dinheiro, mas tentaremos arranjar qualquer coisa que você possa fazer.

         -Isso seria formidável - murmurei.

         Descemos a rua até ao Perkins Hotel». Bedford estendeu-me cem dólares e disse:

         - Pronto,  Lam, deixo-o entregue a si mesmo. Isto é para despesas. Quando acaba o trabalho dou-lhe outros cem. Simpatizo consigo.

         Bateu-me novamente nas costas e foi-se embora. O empregado da recepção do hotel mediu-me de alto a baixo.

         -Boas tardes -saudei.-Chamo-me Lam, vim à cidade tratar de um negócio e a coisa está a levar-me mais tempo do que calculava. Na realidade, ainda nem sei quando verei a pessoa que me interessa... Preciso de um bom quarto com banheiro e quero ter a certeza de que me informarão de todos os telefonemas que chegarem para mim. Não tenho bagagem...

         Tirei algumas notas da algibeira.

         -Muito bem, Mr. Lam-disse o homem, passado um momento.-Queira assinar o registro, aqui.

         Tínhamos uma sucursal em S. Francisco, com a qual trocávamos amabilidades, e isso deu-me a idéia de escrever o meu nome e, a seguir, o endereço dessa agência. Gratifiquei o mandalete que me conduziu ao quarto, descalcei os sapatos, estendi-me na cama e descansei.

         Passada uma hora, o telefone tocou.

         Uma voz de homem perguntou, quando levantei o fone:

         -Mr. Lam?

         - Exatamente.

         -Fala Cárter Holgate, da «Holgate & Maxton».

         -Como está, Mr. Holgate?

         - Consta-me que presenciou um acidente no cruzamento das Seventh e Main Streets, na tarde de 13 de Agosto.

         -É verdade, Mr. Holgate,  presenciei. Mas não compreendo como soube que...

         - Gostariaa de falar consigo.

         -Bem, estarei aqui...

         - Ouça, Mr. Lam,  neste momento não posso ausentar-me daqui, mas mandarei um carro buscá-lo. Demorar-se-á apenas alguns minutos e depois levá-lo-ão ao hotel. Que lhe parece?

         -Acho que está bem.

         -Estará aí um carro daqui a vinte minutos, ou talvez daqui a quinze, penas.

         -Esperarei no átrio. Pode descrever o motorista?

         -Será uma motorista: a minha secretária. Chama-se Lorraine Robbins e é uma ruiva dos seus... Bem, é melhor não dizer nada acerca da idade, pois ela está sentada defronte de mim ...

         Consultei o relógio e respondi:

         - Daqui a um quarto de hora, exatamente, estarei defronte da porta do hotel, na Main Street. Esperarei até ela chegar.

         - Combinado. Fixe o nome: Lorraine Robbins.

         -Não me esquecerei.

         Arrumei-me, esperei dez minutos, desci no elevador, acenei ao empregado da recepção, saí e desci a rua em passo rápido. Depois de dar a impressão de que fora a qualquer lado, cheio de pressa, retrocedi e esperei junto da entrada do hotel, mas chegado para um lado da porta giratória, para que o empregado não me visse.   Lorraine Robbins chegou cerca de dois minutos depois, num grande Cadillac reluzente, que conduzia com a maior das facilidades, como se fosse um carrinho ligeiro.

          Encostou-o ao passeio, com um ágil virar de volante, travou, deslizou ao longo do banco, abriu a porta e parou, ao ver-me.

         Era um prato de respeito.

         Sentada na borda do banco, preparada para descer, com a saia subida e uma expressão inteligente e atenta,  olhava-me, a sorrir. Chegou-se de novo para o lado do volante, ao ver-me avançar.

         -Que espetáculo, hem?! - exclamou. - Estas saias modernas não se sabem comportar em carros baixos como este... Mas, espere, acho melhor começarmos por esclarecer as coisas. É Donald Lam?

         -Sou.

         - Eu sou Lorraine Robbins. Se  está pronto, vamos.

         -Estou pronto - respondi, instalei-me a seu lado fechei a porta do carro.

         Lorraine olhou para o retrovisor, acendeu o sinal de virar à esquerda, olhou de novo para o espelho, a fim de se certificar, arrancou para a esquerda e infiltrou-se na fila de carros que seguiam na mesma direção.

         - Mora aqui? - perguntou-me.

         -Temporariamente, apenas. Venho cá de vez em quando.

         -Viu o acidente, não é verdade?

         -Vi, sim.

         - Mr. Holgate quer que estenografe o que você disser.

         - Agora?

         -Não, meu Deus! Agora estou a guiar o carro. Mais tarde, quando falar com ele.

         -Por mim, acho bem.

         -Que faz, Mr. Lam.

         - Quase tudo. Não tenho complexos de pudor. A rapariga riu-se e redarguiu:

         - Não era bem a isso que mie referia. Desejava saber qual é a sua ocupação.

         - Neste momento, estou num intervalo, entre um trabalho e outro - respondi, sem me comprometer.

         -Ah!

         Acendeu a luz sinalisadora da direita, virou para a First Street e acelerou. Conduzia o carro com tanta perícia que parecia nunca precisar de se servir dos freios. Contava com as abertas potenciais, antes de estas se materializarem. Não havia dúvida, percebia daquilo.

         -É a secretária de Mr. Holgate?

         - Dele e de Mr. Maxton. São sócios. Negócio de imóveis.

         - Muita correspondência?

         - Correspondência, telefonemas contratos, opções, recibos, cálculos de juros, notas dos pagamentos a prazo, recados um balanço das vendas, de quando em quando...

         - O bairro que estão aqui a fazer é grande?

         -Trata-se de um projeto ambicioso. Presentemente, ocupa o tempo todo a toda a gente. Mas não admira; neste gênero de negócios é sempre assim. Num dia trabalha-se a toda a velocidade, no outro tem-se uma sobrecarga de cinqüenta por cento, no seguinte trabalha-se o dobro... e eu gosto.

         - Parece ser boa nesse trabalho.

         -Tento ser boa em tudo quanto faço. Creio que uma rapariga tem essa obrigação para consigo mesma e para com os seus patrões. Neste mundo vive-se de concorrência; só se vence quando se presta. Se queres fazer alguma coisa, fá-la de modo que se torne notável -eis a minha divisa.

         -É uma excelente filosofia - declarei.

         -Obrigada. Eu, pelo menos, gosto.

         Virou o volante para a esquerda e depois para a direita, num caminho semicircular, parou diante de uma construção com as características típicas dos escritórios de agentes de bens imobiliários e anunciou:

         -Cá estamos.

         Um grande letreiro dizia: «HOLGATE & MAXTON. Mais abaixo, em grandes letras vermelhas com uma cercadura verde, lia-se: «TERRAS DE BREEZEMORE TERRACE».

         Desci e parei um instante, a admirar, ostensivamente e com um ar de profunda admiração, o que me rodeava. Na realidade, porém, procurava sinais da pessoa que me andava a seguir.

         Não vi ninguém.

         No recinto destinado a estacionamento viam-se meia dúzia de carros e, um pouco adiante, dois vendedores mostravam planta do loteamento a possíveis compradores. Uns duzentos metros acima avistei três ou quatro grupos, na encosta, a ver os terrenos.

         Lorraine Robbins saiu do carro pela esquerda, foi ter comigo e perguntou-me:

         -Que lhe parece?

         -Muito bem, sem dúvida. É um lugar bonito.

         -É a melhor zona residencial suburbana do país. É uma pena que ninguém a tenha urbanizado mais cedo, pois existe uma tremenda pressão populacional nesta área. Por muito que lhe custe a acreditar, o matuto a quem isto pertencia teve aqui um estábulo durante cinqüenta anos.

         -Quer dizer que ninguém o abordou para...

         - Lá abordar, abordaram, mas ele não deu ouvidos. Herdara isto como um estábulo e, com mil raios, um estábulo continuaria a ser: «Quem julgam que eu sou, com os demônios?»

         A voz maleável de Lorraine modificou-se, numa imitação perfeita da de um velho teimoso.

         - Mas ele morreu... - murmurei.

         -Sim, ele morreu e os herdeiros, quando viram  a avaliação da terra em termos de direitos de transmissão, deram-se pressa de comunicar com a «Holgate & Maxton». Ou melhor, apressaram-se a comunicar com três empresas diferentes, mas nós fizemos a melhor oferta. Quer entrar?

         -Isto aqui fora é tão bonito que...

         - Mr. Holgate está à sua espera. Depois tem outros compromissos.

         -Vamos, então - respondi-lhe, a sorrir.

         Entramos numa sala de paredes forradas de fotografias e mapas. Havia meia dúzia de secretárias, a três das quais vendedores ultimavam transações, passavam recibos e aceitavam cheques.

         Numa porta, à direita, lia-se o nome de CHRISTOPHER MAXTON; noutra, à esquerda, o de CÁRTER J. HOLGATE.

         Ao fundo da sala de entrada viam-se três mesas com máquinas de escrever, alguns telefones e fichários. Uma morena bonita escrevia à máquina.

         -A minha ajudante -disse Lorraine, por cima do ombro, ao encaminharmo-nos para o escritório de Holgate.

          A moreninha levantou os grandes olhos românticos e sorriu-nos, a mostrar os dentes certinhos como pérolas entre os lábios rubros. Levantou-se e foi ao nosso encontro. Era uma moça graciosa, de pernas compridas e formas esculturais, que ganharia sem dificuldade nenhuma um concurso de beleza, com desfile em traje de banho.

         -É este o...

         Mas Lorraine não a deixou acabar:

         -Para Mr. Holgate -cortou.-Vamos entrar. Abriu a porta, sem bater, e deixou a moreninha parada, a olhar-me. Os seus lábios continuavam a sorrir, mas o sorriso desaparecera-lhe dos olhos.

         O gabinete de Holgate era uma grande sala suntuosa, com uma mesa comprida cheia de maquetes,  construídas em escala e colocadas em loteamentos dispostos numa encosta de papier mâché, onde não faltavam estradas, relvados simulados com tinta verde e árvores artificiais, aqui e ali. As casinhas estavam nos lotes inferiores e podiam ser deslocadas de lote para lote. Os seus telhados vermelhos brilhavam, banhados pelo sol artificial do potente projetor montado no teto.

         A enorme secretária de Holgate estava atravancada de bugigangas & papelada.

         Holgate, que devia ter perto de cinqüenta anos e era um indivíduo forte, sorridente, de manhosos olhos cinzentos, fala um pouco arrastada e possuidor da afabilidade fácil de um vendedor afortunado, levantou-se  estendeu a mão.

         Parecia um texano alto, de « Pendletons» e botas de cowboy. Devia medir mais de um metro e oitenta e cinco e tinha uma daquelas caras que se abrem todas em sorriso, ao mínimo pretexto.

         -Como está, Mr. Lam, como está? Foi muito amável em ter vindo. Sente-se, por favor.

         Tinha um bigode curto e grisalho, que lhe emprestava força à boca.

         Apertei-lhe a mão, disse-lhe que tinha muito prazer em o conhecer, que o sítio era bonito e que parecia destinado a ter grande êxito.

         -Claro que está, claro que está-afirmou Holgate.-Possuímos alguns dos melhores loteamentos deste ponto do país, mas temos ainda mais do que isso, .Lam: temos a possibilidade de dar ao público o ensejo de ganhar dinheiro. Aqui, por exemplo, estamos a vender bem, a repartir com os nossos clientes os lucros potenciais. Confesso-lhe que gosto de trabalhar depressa. Chego a um sítio, faço o que tenho a fazer, vendo os lotes e vou-me embora. Não gosto daqueles trabalhos que se arrastam, em que se passa uma ou duas semanas inteiras sem vender nada. Isso não me serve. Compro as propriedades e apresso-me a dividir os lucros potenciais com os meus clientes. Passado pouco tempo,  tenho quase tudo vendido e, se é preciso, entendo-me com uma empresa financiadora para a colocação dos lotes que restam e vou para outro lado. Bem sei que, assim, tenho uma margem de lucro pequena, mas realizo dinheiro depressa. Eu... Com a breca, Lam, até parece que lhe estou a querer vender um lote! Não estou... mas se você quisesse empatar dinheiro num deles, acredite que não encontraria melhor maneira de duplicar, triplicar e quadruplicar o seu capital, com toda a segurança! Mas lá me estou, outra vez, a deixar arrastar pelo entusiasmo. Deformação profissional... Queria falar consigo acerca do acidente.

         -Às suas ordens.

         -Importa-se de me dizer exatamente o que viu, Mr. Lam?

         -Eram cerca de três e meia da tarde do dia 13 de Agosto...

         Holgate acenou com a cabeça a Lorraine Robbins, que se sentou numa cadeira, tirou um lápis e um livro de apontamentos de cima da mesa e começou a estenografar rapidamente.

         -Se não se importa, a minha secretária toma umas notas, para tudo se fazer como deve ser feito - disse-me Holgate.-São tantas as coisas que se passam por aqui que tento tomar nota de tudo, para não me esquecer... Creio que a minha memória já não é o que era. E a sua?

         - Parece trabalhar bem.

         -É novo, assim deve ser. Mas onde íamos nós?

         -Três e meia da tarde do dia 13 de Agosto -respondeu-lhe Lorraine.

         -Ah, sim! Quer fazer o favor de continuar, Mr. Lam?

         - Caminhava a pé pelo lado oeste da Main Street. na direção do cruzamento com a Seventh. No lado este, por onde seguia o trânsito para norte, deslocavam-se quatro ou cinco carros uns atrás dos outros... Talvez fossem quatro. Prestava atenção aos sinais luminosos do cruzamento porque tencionava atravessar para o lado este da Main Street e não queria perder a oportunidade de o fazer.

         «A luz mudou de verde para amarelo. O primeiro carro da fila, o que estava mais perto do cruzamento, podia ter passado, mas o motorista travou e o automóvel de trás quase chocou com ele. Guiava o terceiro carro uma mulher nova, muito interessante... Um momento,  creio que era o terceiro carro. É possível que tivesse três à frente, até ao cruzamento, mas pensando bem creio que eram só dois...

         Fechei os olhos, como se tentasse recordar a cena, e Holgate incitou-me:

         -Sim, sim continue.

         -Era um automóvel ligeiro. Não sei se a marca era: estrangeira, se não, mas sei que se tratava de um carro  esporte e levava a capota descida. Lembro-me, porque pude ver a moça, quando se deu o choque. O seu pescoço saltar para trás... quero dizer, vi a cabeça saltar para trás...  -Sim,  sim continue-insistiu Holgate.

          O carro de trás era grande... enfim, não seria dos maiores, mas era um automóvel de bom tamanho, Buick, se a memória não me atraiçoa. Bem, o homem não parou a tempo... Devia ter-se afastado para a esquerda, evidentemente para tentar uma ultrapassagem, pois quando reparei nele pela primeira vez guinava a direita, a fim de se incorporar de novo na fila e...

         -Sim, sim, sim -cortou Holgate.-Viu o homem, a ponto de o poder reconhecer?  Abanei a cabeça e respondi:

         -Nessa altura, não vi.  Holgate franziu um pouco a testa, e eu acrescentei:

         -Mas depois, a seguir ao acidente, vi-o descer.

         - Reconheceu-o, então?

         -Então não o reconheci, porque não o conhecia, mas reconheço-o agora. Era o senhor. Iluminou-lhe  o rosto um enorme sorriso.

         -Na  sua opinião, de quem foi a culpa?

         -Meu Deus, a esse respeito não pode haver a mínima dúvida! Lamento dizê-lo, Mr. Holgate, assim Como detesto testemunhar contra o senhor, mas a culpa foi toda sua. Chocou com a retaguarda do carro da frente... começou a travar a fundo cerca de um metro ou metro e meio da retaguarda do outro automóvel, o um bocado o impacto. Foi, até, surpreendente o pouco barulho  que o choque produziu. No entanto o carro atingiu o outro com força suficiente para...  enfim, eu vi a cabeça da rapariga ser violentamente atirada para trás.

         -Sim, sim. E depois, que sucedeu?  o senhor desceu, mostraram um ao outro as cartas de condução e tomaram notas.

         -Como lhe pareceu a jovem, quando se apeou?

         - Como que atordoada. Levava constantemente a mão à nuca, e quando o senhor lhe mostrou a carteira de motorista e ela tomou nota do nome, esfregou o pescoço com a mão esquerda.

         - E depois?

         - Depois voltou para o carro e afastou-se.

         -Sabe o ponto exato onde se deu o acidente?

         - Foi no lado leste da Man Street, antes de chegar ao cruzamento da Seventh Street, mais ou menos defronte da entrada do cinema.

         -Vou-lhe pedir que faça uma coisa, Lam.

         -O quê?

         - Um depoimento assinado.

         - Porque não?

         Holgate sorriu à secretária e pediu-lhe:

         - Datilografe-o textualmente, Lorraine. Escreva as palavras que ele disse.

         A rapariga acenou com a cabeça e atravessou o gabinete.

         -É uma jovem extraordinária  - comentei, depois de ela sair.

         - Uma das secretárias mais eficientes que jamais tive. Eficiência é uma qualidade sem a qual não posso passar.

         -Também deve ser das mais bonitas... e a ajudante não é, igualmente, nada para desprezar.

         -Fachada, Lam - respondeu Holgate, a sorrir.- Preciso de empregadas bonitas. Já alguma vez comprou um lote de terreno, Lam?

         - Não.

         -Alguma vez será a primeira. Aconselho-o a comprar um, neste sítio, se quer ganhar bom dinheiro. Como compreende, não lhe posso dar dinheiro pelo seu depoimento, pois isso o tornará nulo, mas podia dar-lhe uns conselhos acerca de um dos nossos lotes e... Oh, como eu falo! Não resisto nunca à tentação de tentar efetuar uma venda. De que estávamos a falar, Donald?

         - De secretárias.

         -Ah, sim! Devia ver a outra! É uma loura maravilhosa.

         -Tem três secretárias?

         -A Lorraine tem duas ajudantes. A outra está de folga, hoje. Mas o que queria dizer, Donald, era que, se alguma vez comprasse um terreno a um vendedor; e depois fosse ao escritório a fim de tratar da papelada,perderia a vontade de fazer negócio se a empregada fosse feia e rabugenta. Eu exijo beleza. Duas das  minhas empregadas ganharam concursos de beleza.

          São encantadoras e eu recomendo-lhes que se mostrem amigáveis. Temos uma maneira muito especial de proceder. Desde que o cliente chega ao recinto até que sai, esforçamo-nos por lhe insuflar um sentimento de importância, para lhe provocar a disposição adequada para se decidir a comprar. Repare, por exemplo, no  modo como as pequenas descem de um automóvel. Não sei se alguma vez viu uns filmes que ensinam às raparigas o modo recatado de sair de um automóvel... | Para o diabo com o recato! Aqui, quando descem de um automóvel, invertemos o sistema... se estão a | tratar com! um homem, evidentemente. Se o cliente é  uma mulher o caso muda de figura, como é natural.

            -E quando se trata de um casal?-perguntei.

              -Quando se trata de um casal têm de se servir  da cabeça, de descobrir quem é que usa calças, na família, quem assinará a escritura. Acontece uma coisa singular com os homens, Donald. Na praia, vêem as  pernas das raparigas até onde há pernas, e limitam-se a olhar. Mas se vêem uma garota descer de um automóvel e, acidentalmente, ela lhes deixa vislumbrar,  apenas, a mercadoria... Meu Deus, perdem de todo a cabeça, convencem-se de que viram qualquer coisa! Repare agora no caso do ponto de vista das mulheres, observe a psicologia da coisa. Se estão de meias e saia e um tipo lhes vê as pernas acima do canhão da meia, consideram-no um intrometido, um bisbilhoteiro.

          Quanto a calcinhas, meu Deus, é terreno sagrado! Mas, se a saia é teatral e as calcinhas são do mesmo ; tecido, desaparecem todos os tabus e acham muito bem  despir a saia e exibir-se em calças. Palavra que não percebo! É uma espécie de psicologia feminina que...  Mas, Donald, eu sirvo-me dela, com os diabos! Para vender, sirvo-me de todas as psicologias! Bem lá vamos nós...

         |    Interrompeu-se, pois a porta abriu-se. Lorraine Robbins  voltou e entregou-me duas folhas de papel e uma cópia a Holgate.

         O trabalho datilográfico, feito com uma moderna máquina elétrica de escrever, estava perfeito, limpo e impecável. Parecia impresso. Não havia uma apagadela, nem uma letra pisada, nem a mínima irregularidade.

         Quanto ao texto, era a reprodução integral, palavra por palavra, do que eu dissera.

         - Importa-se de assinar? - perguntou-me Holgate.

         -Absolutamente nada.

         Estendeu-me uma caneta e eu assinei na linha tracejada.

         - Está disposto a jurar? É apenas para tornar o depoimento oficial, Lam.

         -Pois sim.

         Holgate olhou para Lorraine Robbins e ela disse-me:

         - Levante a sua mão direita, Mr. Lam. Levantei a mão direita.

         -Jura por Deus que as declarações contidas no documento que assinou são verdadeiras?

         - Juro.

         Trazia um selo de notário escondido na mão esquerda, um daqueles objetos niquelados que os notários públicos levam consigo, quando vão fazer qualquer trabalho fora do cartório.

         Puxou o documento para si, assinou como notária pôs o selo no ponto onde dizia: «Assinado e jurado perante mim, neste dia 5 de Outubro.» Depois entregou o documento a Holgate, que acenou com a cabeça, se levantou e me estendeu a mão, a significar que a entrevista terminara.

         - Muito obrigado, Lam. É maravilhoso verificar que existem cidadãos capazes de prestar voluntariamente declarações relacionadas com acidentes por eles presenciados. A Lorraine vai levá-lo ao escritório...  a não ser que você prefira ver algum dos nossos lotes. Se desejar, ela terá prazer em o acompanhar e...

         - Noutra ocasião - interrompi-o. - Estou... ou melhor, presentemente não estou habilitado a fazer investimentos. Não disponho de capital que possa empatar.

         -É pena, é pena...-murmurou, e deu uns estalinhos com a língua, compadecido.-Mas, paciência, a vida é assim. Às vezes, surgem-nos oportunidades de conseguir um lucro garantido, mas não dispomos de dinheiro para investir. Se for preciso, aceitamos uma pequena entrada inicial e...

         Abanei a cabeça, firmemente.

         -Está bem, está bem, não insisto, Donald. A verdade é que me sinto tão grato que gostaria de lhe proporcionar qualquer lucro, desde que o pudesse fazer lealmente... Lorraine, leve ao hotel e... Um momento, Donald. A sua morada não está na declaração que assinou.

         -Está no registro do hotel.

         - No entanto, será melhor dizer-me, para acrescentar uma nota no depoimento. Onde poderei comunicar consigo?

         Indiquei-lhe a morada de S. Francisco,  Holgate aproximou-se, apoiou uma grande manápula no meu ombro esquerdo e apertou-me vigorosamente a mão.

         -Obrigado, Donald, muito obrigado. Se em qualquer altura precisar de alguma coisa relacionada com negócios de imóveis, não hesite em me consultar. Sabe o que vou fazer? Escolher um dos nossos melhores lotes - não lhe direi qual, pois isso não seria leal-e reservá-lo-ei para si, para o caso de lhe interessar dentro de... digamos, dentro dos próximos trinta dias.

         -Mr. Holgate, deixe-me repetir-lhe, para que não haja mal-entendidos entre nós, que a culpa do acidente foi sua.

         -Eu sei que foi, sei que sou responsável. A culpa foi minha. Só espero que a pobre rapariga não tenha ficado seriamente ferida.

         -Também eu. Era muito atraente, -Repara nessas coisas, não repara, Donald?

          Olhei para Lorraine e respondi:

         - Reparo, sim.

         -Leve-o ao hotel. Lorraine- disse Holgate, a rir. A rapariga sorriu-me e perguntou:

         -Pronto, Mr. Lam?

         - Pronto.

         Saímos. Comecei a contornar o carro, para lhe abrir a porta do lado esquerdo, mas ela abriu a do lado direito, entrou e deslizou pelo banco, para o volante.

         Sentei-me ao seu lado, fechei a porta e partimos.

         -Que impressão lhe causou Mr. Holgate?

         - Boa - respondi.

         -É um homem maravilhoso, um excelente patrão.

         -E Mr. Maxtor»?

         O meio segundo de silêncio pode ter-se devido ao fato de Lorraine concentrar a sua atenção no cruzamento que se aproximava. Mas também se pode ter devido a qualquer outra coisa.

         -Também é bom.

         -Em resumo, parece que o seu emprego é excelente.

         -Pois é.

         - Gosta dele?

         - Adoro-o.

         -Gosta de muita ação, não gosta?

         -Ação é vida - respondeu-me-; inação é morte. Detesto a monotonia, o ramerrão, e adoro a variedade. Desejo que surjam circunstâncias novas, todos os dias, para que me possa servir da minha individualidade, da minha iniciativa e dos miolos que porventura possua.

         - Deve sair-se muito bem de tudo isso.

         -Obrigada, Donald. Já alguém lhe disse que é muito simpático?

         -O Holgate disse, mas creio que desejava vender-me um lote...

         -Sai-se com cada uma, Donald!-exclamou, a rir. -Quanto tempo conta demorar-se na cidade?

         - Não sei.

         - Conhece alguém daqui?

         - Umas pessoas, poucas.

         -Homens ou mulheres?

         - Homens e mulheres.

         - Não viva solitário.

         - Não viverei.

         -Acredito-replicou, a olhar-me de soslaio-, mas se... Bem, quando quiser, pode comunicar comigo. O meu nome vem na lista telefônica.

         -Tentaria vender-me um lote?

          Riu-se de novo e respondeu:

         - Provavelmente.

         Seguiu calada durante dois ou três minutos, e quando parou defronte do hotel sorriu e disse-me:

         - Mas também lhe poderia dar muita coisa, Donald. Despediu-se de mim com um aperto de mão rápido e impulsivo, sorriu-me novamente e esperou que fechasse a porta do automóvel.

         Mal o fiz, consultou o retrovisor e partiu a toda a velocidade.

         O empregado do hotel informou-me de que não havia nenhum recado para mim. Disse-lhe que ia dar uma vista de olhos pela cidade, saí, meti-me num táxi, dois quarteirões adiante, e pedi ao motorista que me levasse ao supermercado.

         Entrei no automóvel alugado que deixara no parque de estacionamento, regressei ao hotel e fiquei por lá até escurecer.

         Ninguém parecia ter o mínimo interesse por mim. O indivíduo desengonçado não dava sinais de vida, não chegavam telefonemas nem recados, ninguém se importava que eu entrasse ou saísse.

         Pouco antes de escurecer telefonei para o apartamento de Doris Ashley.

         Ninguém respondeu.

         Fui a uma cabina telefônica e liguei para o apartamento de Elsie Brand.

         -Olá, Elsie. Como vai isso?

         -Donald!

         -Que se passa, pequena?

         -Telefonou para cá um indivíduo, diversas vezes, e parece perigoso.

         -É fácil parecer perigoso pelo telefone. Que quer ele?

         -Trata-se de um acidente que tu viste. Ele parece muito... Bem, está um bocado aborrecido.

         -Sim? Quantas vezes telefonou?

         -Três vezes, na última hora. Meu Deus, fiquei sem saber que lhe dizer! Afirmei-lhe ignorar se alguém do meu apartamento lhe indicara o número do meu telefone, e disse-lhe que o meu irmão me viera visitar e o esperava em breve.

         -Tem calma, chegarei aí num instante.

         - Donald, trata-se de alguma coisa... bem, perigosa?

         - Como queres que saiba?

         -Estou assustada.

         -Não tens motivos para isso. Estarei aí.

         - Quando?

         - Daqui a uma hora.

         -Oh, Donald, eu... Terás cuidado, não terás?

         -Estou a estranhar-te. Geralmente recomendas-me que seja bom, agora dizes-me que tenha cuidado... Elsie riu-se, nervosamente.

         -Queres que te faça jantar?

         -Talvez seja boa idéia. Daria ao apartamento um ambiente familiar.

         -Que queres?

         - Champanhe e filet mignon.

         - Sou uma rapariga de trabalho.

         - Debitarei os gastos na conta de despesas.

         - Pronto, será champanhe e filet mignon! Queres a carne grossa?

         - Grossa.

         - Mal passada?

         - Mal passada.

         - Batatas?

         -Assadas. Não te canses nem penses em saladas ou sobremesa. Comeremos apenas bife, batatas assadas e, talvez, uma lata de ervilhas, e beberemos champanhe. Eu cozinharei os bifes, quando chegar. Quando esse tal pássaro telefonar de novo, tenta saber o seu nome. Diz-lhe que me demorei mais do que tencionava, mas que telefonei a dizer que chegaria dentro de uma hora, para jantarmos. Se quiser estar aí daqui a hora e meia, falarei com ele.

         - Faz o possível por chegar antes dele, Donald.

         - Está descansada. Compra a carne e o champanhe, mas guarda as contas, para eu as poder apresentar a Bertha.

         -Esfarrapa-se toda, quando souber...

         - Isso far-lhe-á bem. Espera com calma, não me demorarei.

         Desliguei. Como havia menos aglomeração de trânsito do que esperava, cheguei ao apartamento da minha secretária quarenta e cinco minutos depois.

         Elsie tinha o champanhe no gelo, dois bifes, grossos, preparados para grelhar, uma lata de ervilhas e batatas a assar no forno. Tinha também um pão francês cortado em fatias e amanteigado, pronto para entrar no forno, e um boião de pasta de alho, para espalhar nas torradas.

         -Lar, doce lar!-exclamei.

         Elsie começou a dizer qualquer coisa, arrependeu-se e corou muito.

         -Tens as contas?-perguntei-lhe. Estendeu-as.

         -O nosso homem voltou a telefonar?

         -Telefonou segundos depois de tu teres desligado.

         - Disseste-lhe que viesse?

         - Disse.

         -E ele?

         - Respondeu que viria e recomendou-me que dissesse ao «meu irmão» que o assunto não era para brincadeiras e que o aconselhava a ter muito cuidado e a dizer a verdade pura.

         -Que respondeste?

         -Que o meu irmão dizia sempre a verdade; era uma mania da família.

         -Muito bem! Talvez seja melhor darmos a tudo isto um ambiente fraternal...

         Despi o casaco, arregacei as mangas da camisa, desapertei a gravata e desabotoei o colarinho, e procurava qualquer coisa para fazer quando a campainha tocou.

         -Atende-disse a Elsie.-Informa o tipo de que o teu irmão acaba de chegar e pergunta-lhe como se chama. Quando me apresentares, tem o cuidado de não aludir ao apelido. Limita-te a dizer: «Este é o Donald.» Percebeste?

         - Percebi.

         -Avante, então.

         O indivíduo atarracado e de aspecto agressivo que se encontrava à porta tinha sobrancelhas hirsutas e cabelos abundantes por cima das orelhas e ralos no alto da cabeça. Vestia um traje caro, mas os sapatos precisavam muito de uma engraxadela.

         -O seu irmão está...? Ah, sim, estou a vê-lo! Fez menção de entrar, mas Elsie deteve-o e perguntou-lhe:

         -Como se chama, por favor?

         -Harry Jewett- respondeu, e entrou no apartamento, sem esperar que o convidassem.-Você é o irmão? - perguntou-me.

         -Sou o irmão - respondi, a empunhar o garfo comprido, com o qual me preparava para espetar os bifes. - Na minha terra, as pessoas não invadem os apartamentos alheios sem esperarem que as convidem.

         - Peço desculpa; creio que fui um pouco impulsivo. Estou... quero dizer, isto é importante, para mim.

         -As boas maneiras são importantes, para mim, e a minha irmã é uma senhora.

         - Quem disse que o não era?

         - Insinuou-o o seu procedimento.

         -Calma, Júnior. Quero falar consigo.

         - Não me chamo Júnior. O meu nome é Donald. Saia imediatamente e espere lá fora que o convidem a entrar, pois de contrário não falará com ninguém.

         -Já esperava isto.

         - Isto o quê?

         -Armou em teso, mas agora não quer falar.

         - Eu julguei que tinha falado, julguei que tinha dito qualquer coisa. Não o mandei sair?

         Avancei para ele, de garfo em punho.

         O tipo endireitou os ombros e preparou-se, mas depois reconsiderou, voltou as costas, saiu e bateu à porta.

         Elsie, que estava imobilizada à entrada, olhou para mim, à espera de instruções.

         -Boas noites, minha senhora - cumprimentou o indivíduo.-Sou Harry Jewett. Peço desculpa de a incomodar a esta hora, mas trata-se de um assunto importante. Creio que o seu irmão presenciou um acidente de viação, há cerca de dois meses, e gostaria muito de falar com ele a esse respeito.

         Elsie colaborou na brincadeira:

         -Como está, Mr. Jewett? Sou Elsie Brand. Não quer entrar? O meu irmão acaba de chegar.

         -Muitíssimo obrigado - agradeceu Jewett, e entrou.

         Foi ter comigo e perguntou-me:

         -Que tal?

         -Foi melhor, mas chegou cedo. Ainda não jantei.

         -Não se quer sentar?-convidou Elsie.

         - Obrigado.

         Os seus olhos mergulharam, perscrutadores, nos meus, sob as hirsutas sobrancelhas.

          -Importa-se de me dizer o que viu?-perguntou-me.

          -Creio que há uma recompensa?  Duzentos e cinqüenta dólares.  -Não gosto de dar nada, quando o outro tipo pôs uma etiqueta de preço no que pretende.

          - E eu não gosto de pagar uma coisa que não posso utilizar. Convença-me de que viu o acidente e receberá duzentos e cinqüenta dólares.

         -Parece-me justo.

         -Muito bem, comece a falar.

         -Eram cerca de três e meia da tarde. Encontrava-me em Colinda e seguia pelo lado esquerdo da Main Street, na direcção norte, entre a Eigth e a Seventh Street. Para ser mais preciso, aproximava-me do cruzamento da Seventh Street e olhava para o sinal de trânsito, pois queria atravessar para o outro lado da Main Street e tentava orientar-me pela luz.

            -Continue.

          -Uma fila de carros - creio que eram uns quatro aproximavam-se do sinal, quando a luz mudou de verde para amarelo. O carro da frente podia ter passado facilmente, antes de aparecer a luz vermelha, mas o motorista não se quis arriscar e meteu frios, no fundo. E o carro parou quase instantaneamente. O motorista do segundo travou, também, apenas com a margem necessária  para não chocar com o primeiro. O terceiro veículo era um carro esporte, com a capota descida e conduzido por uma rapariga muito interessante, e o quarto que vinha com muita velocidade. Era evidente que o motorista guinara para a esquerda, a fim de tentar uma ultrapassagem, pois...

         - Como o sabe?

         -Quando o vi, guinava para a direita, com muita velocidade.

         -Que sucedeu?

         -Pouco mais. O quarto carro, um grande Buick, chocou com o terceiro, conduzido pela garota. Deu-lhe um encosto valente. O automóvel atingido estava parado havia talvez uns dois segundos, no momento do choque.

         -A jovem pareceu magoada, de alguma maneira?

         - Deu-me apenas a impressão de que lhe doía o pescoço. Levava constantemente uma das mãos à nuca.

         - Compreendo.

         - Levou uma grande sacudidela, pois o choque apanhou-a absolutamente desprevenida. Vi-lhe a cabeça saltar para trás, como impelida por uma mola.

         - Ela parou?

         -Estava parada antes do «toque».

         - Muito bem. E depois?

         -Apearam-se ambos e conversaram, um momento. Depois a moça partiu e o homem observou a frente do Buick, encolheu os ombros, meteu-se no carro e partiu também. Creio que tinha o radiador furado, pois deixou um rasto de água na rua. Foi tudo quanto vi. Julgo ter perdido um ou dois sinais de trânsito, enquanto observei a cena.

         - Copiou os números das placas de matrícula?

         - Não.

         - Reconheceria qualquer dessas pessoas, se as voltasse a ver?

         -Sim. Vi-as bem.

         - Descreva o homem.

         - Era um tipo alto e forte, com ar de texano. Vestia traje castanho e camisa desportiva.

         - Idade?

         -Bem... quarenta... quarenta e dois ou quarenta e três...

         - Altura?

         - Um bom metro e oitenta e cinco. Tinha um ar bonacheirão e bigode curto. Vi-o sorrir, apesar de ter ficado com a frente do carro amassada.

         -Que horas eram?

         - Umas três e meia, mais minuto, menos minuto.

         - Data?

         -13 de Agosto.

         -Vou-lhe mostrar uma fotografia, que pode dizer-lhe ou não alguma coisa. Sei, evidentemente, que é difícil reconhecer um homem por uma fotografia, mas quero que tente.

         -Puxou de uma carteira, da qual tirou uma fotografia de Cárter Holgate. Era um instantâneo razoável, que mostrava Jewett e Holgate ao lado um do outro, à entrada do novo bairro, sob um letreiro que dizia: HOLGATE & MAXTON- TERRENOS DE BREEZEMORE TERRACE.

         -Reconhece algum desses indivíduos?

         - Reconheço. O da direita, é você.

         - E o da esquerda?

         -O da esquerda é o homem que conduzia o automóvel que chocou com o da moça- respondi, com firme convicção.

         -Tem a certeza?

         -Tenho.

         Jewett guardou a carteira, lenta e relutantemente.

         - Como poderei comunicar consigo?

         -Por intermédio da Elsie. Estou sempre em contacto com ela.

         -Ficará aqui?

         -Creio que não. Ela dar-me-á guarida durante um ou dois dias, enquanto não sigo o meu caminho.

         -Para onde?

         - Não sei ao certo.

         Jewett hesitou, um momento, e depois tirou da carteira duas notas de cem dólares e uma de cinqüenta, e estendeu-as.

         -Que devo fazer agora, em troca deste dinheiro?- perguntei-lhe.

         -Absolutamente nada. Absolutamente nada, ouviu?

         - Posso saber o nome do homem que está ao seu lado, na fotografia?

         -Para quê?

         -Para lhe poder dizer que vi o acidente.

         -De quem foi a culpa?              ..

         -A culpa foi dele.                     

         -Parece-lhe que ele gostaria de ter uma testemunha capaz de jurar, em julgamento, que a culpa foi dele?

         Passei os dedos pelos duzentos e cinqüenta dólares e respondi:

         -O que me parece é que existe alguém ansioso por ter uma testemunha.

         -Respondeu ao anúncio e recebeu os duzentos e cinqüenta dólares. Agora esqueça o assunto.

         - Esqueço o assunto? Que quer dizer?

         -O que lhe disse: esqueça tudo.

         Levantou-se da cadeira, com o à-vontade de um atleta treinado, dirigiu-se para a porta, voltou-se e mediu Elsie Brand de alto a baixo.

         - Obrigado - agradeceu. - Lamento tê-la incomodado e ter sido grosseiro. Lamento sinceramente.

         Saiu e fechou a porta.

         Elsie olhou-me de uma maneira que me disse que os seus joelhos tremiam.

         -Quem era ele, Donald?

         -Não sei. Mas apostava que sei te dizer quem não era.

         - Quem não era, então?

         - Não era Harry Jewett.

         - Porquê?

         -A inicial dos seus botões de punho era um «M» e tinha um «M» bordado na gravata. A fotografia mostrava dois homens debaixo de um letreiro que dizia HOLGATE & MAXTON», e um deles, um homenzarrão, era Holgate. O outro era o que esteve aqui e que, na minha opinião, deve ser Christopher Maxton.

         -Oh!

         Estendi-lhe os duzentos e cinqüenta dólares.

         -Toma, Elsie, compra meias.

         -Mas, Donald, que...

         -Este dinheiro é de um gancho. Compra meias.

         -Mas, Donald, tens de lançar isso...

         -Lançar isto como?

         -A crédito.

         - A crédito de quê?

         - Enfim, das despesas que fizeres e debitares. Abanei a cabeça.

         - Não, Elsie. Repito, isto é dinheiro à parte. Compra umas meias bonitas, de nylon fino, usa-as no escritório e sê o mais generosa possível.

         - Donald! - exclamou, e voltou a corar. Continuei a estender-lhe as notas e, passados instantes, aceitou-as.

         Eram nove e quarenta e cinco quando regressei a Colinda e encontrei lugar para arrumar o carro, a cerca de um quarteirão do hotel. Inclinei a cabeça ao recepcionista da noite, que me perguntou:

         - É Mr. Lam?

          -Sou.

          -Chegaram dois recados para si. Estão na caixa da chave. Quer?

          -Com certeza.

         Entregou-me dois papéis, nos quais estavam escritos os recados chegados pelo telefone. Um, recebido às oito horas, dizia: «Mr. Lam, faça favor de me telefonar assim que chegar. Carter J. Holgate.» O outro, chegado às nove e meia, dizia: «Chegue às horas que chegar, é absolutamente necessário que fale comigo. Estarei à espera, no escritório. É importantíssimo. O número é  Colinda 6-3292. Não se esqueça de telefonar, Holgate.”

           -Parecia muito inquieto, Mr. Lam -informou-me , o recepcionista. - Garanti-lhe que os recados lhe seriam entregues assim que o senhor viesse. O último chegou há poucos minutos.

          -Como me reconheceu?

         -O meu colega descreveu-o e disse-me que o senhor tinha muito empenho em receber sem demora quaisquer recados que chegassem para si.

         -Obrigado.

            Fui para o meu quarto e marquei o número indicado por Holgate. Não atenderam. Liguei para o apartamento de Doris Ashley, mas o resultado foi o mesmo. Desci e disse ao empregado:

          -Vou beber um café. Se mais alguém telefonar, diga que estarei de volta daqui a meia hora, pouco mais  ou menos.

           Meti-me no automóvel e segui para Breezemore Terrace, onde cheguei cerca de oito minutos depois.   A ala direita do edifício, onde ficava o gabinete de Chris Maxton, estava às escuras, mas na ala esquerda  onde ficava o gabinete de Holgate na sala de entrada havia luz.

           Arrumei o carro, subi os degraus, entrei e chamei:

          -Tem alguém aí?

            O silêncio era absoluto, sepulcral. O escritório, com tudo quanto caracteriza os negócios modernos  secretárias, máquinas de escrever elétricas, iluminação indireta, fochários etc.-, estava silencioso e deserto. Todas as máquinas de escrever estavam protegidas por uma cobertura de plástico,exceto uma, à qual fora tirada a cobertura e que tinha uma luzinha acesa, a indicar que estava ligada à corrente.

         Dirigi-me ao fundo da sala e observei a máquina. O motor elétrico trabalhava suavemente-e devia trabalhar havia algum tempo, pois a máquina estava quente.

         Aproximei-me da porta do gabinete de Holgate e bati.

         Não obtive resposta.

         Hesitei, um instante, e depois abri a porta.

         No interior reinava uma balbúrdia dos demônios:

         uma cadeira caída e partida, a maquete de papier couché arrancada da mesa, todas as casinhas espalhadas pelo chão e algumas delas pisadas e desfeitas, a janela que dava para a rua aberta e a deixar entrar uma brisazinha, que agitava os cortinados...

         As gavetas da secretária abertas e o fichário despejado e virado, eram indícios seguros de que alguém procurara apressadamente qualquer coisa.

         No chão via-se uma malinha de senhora, com uma asa partida e a armação de metal torcida, uma caixa de pó de arroz, aberta e esmagada, montes de pó e bocados de espelho partido.

         Apanhei um pouco de pó, espalhei-o nos dedos e cheirei. Era cor de rosa claro e cheirava a cravo.

         Também no chão, meio oculto pela maquete de papier mâché, estava um sapato de mulher. Levantei a maquete e tirei o sapato, para o examinar: era de crocodilo, tinha a marca de uma sapataria de Salt Lake City e a sua forma estreita e elegante denunciava classe. Devia ter custado bom dinheiro e assentar como uma luva num pézinho elegante e arqueado.

         Aproximei-me do fichário, a fim de dar uma vista de olhos ao monte de papéis caídos no chão.

         A maior parte dos documentos estavam metidos em pastas de papel castanho, mas muitos tinham sido arrancados das pastas e espalhados pelo chão, por alguém que procurava qualquer documento especial, ou caído das gavetas do fichário. Tratava-se de opções, contratos e recibos referentes a pagamentos de entrada. Quase todos eram impressos.

         Houve, no entanto, um papel que despertou a minha atenção: era uma folha fina, de seda, uma cópia tirada a papel químico vermelho, com palavras datilografadas.

         Eu  Conhecia muito bem aquele tipo de papel, utilizado por muitas agências de investigação, nos relatórios que enviavam aos clientes.

         Afastei os outros documentos e puxei a folha de  papel de seda, atrás da qual vieram outras duas.      O relatório dizia o seguinte:

          -   «De acordo com as instruções para vigiar a referida  pessoa, achou-se aconselhável não perder de vista o seu  automóvel, a fim de se saber quando saía, visto não  existir nenhum modo prático de vigiar o seu apartamento, a não ser colocando um homem no corredor, o que contrariaria a recomendação de vigilância sub-reptícia feita pelo cliente.

          «Portanto, quando se verificou que outra pessoa vigiava, também, o automóvel, o cliente foi informado por um telefonema de longa distância e ordenou-nos que vigiássemos igualmente a nova pessoa, a fim de se saber a sua identidade.

              «As 2.25 h., Doris Ashley saiu do apartamento e  entrou no seu automóvel, no qual seguiu para o supermercado, como costuma fazer todos os dias.

          «O homem que estivera a vigiar-lhe o carro seguiu também para o supermercado e arrumou o automóvel  tão perto do dela que a impossibilitou de entrar com as compras no veículo. Mais tarde, o mesmo indivíduo, fingindo que o carro não era dele, procedeu a uma ligação direta da ignição, aparentemente como pretexto para travar conhecimento com Doris Ashley, o que conseguiu, pois ela convidou-o a acompanhá-la no seu automóvel.

         «Num ponto perto da Eleventh e da Main, o referido indivíduo apeou-se bruscamente, e o nosso agente só no dia seguinte o conseguiu localizar de novo, e seguir.

         «O carro em que o indivíduo fizera a ligação direta tinha sido alugado pela Continental DriveYourself Agency », mas não foi possível averiguar, imediatamente, a identidade de quem o alugara.

         «No dia seguinte, o homem foi novamente localizado e seguido até ao supermercado. Aí dirigiu-se a um dos caixas, precisamente quando Doris Ashley se aproximava para pagar as suas compras. Esta reconheceu-o e pareceu gostar de o ver. Aparentemente a seu pedido, o indivíduo acompanhou-a de novo, no automóvel, desta vez até ao seu apartamento. Averiguou-se que o homem fora para o supermercado num carro também alugado à Continental DriveYourself Agency », e desta vez, a pretexto de que o veículo estava relacionado com um acidente, o nosso escritório na cidade conseguiu saber a identidade do cliente: Donald Lam, sócio da agência de detetives «COOL & LAM».

         «Esta agência trabalha de modo muito pouco ortodoxo e pouco se pode saber a seu respeito, pois em vez de prestar serviços a clientes normais parece dedicar-se mais à investigação de casos complicados e raros.

         «Donald Lam é considerado um detetive muito engenhoso e cheio de recursos, ousadíssimo e, às vezes, capaz de fechar os olhos à ética profissional, a fim de obter para os seus clientes vantagens reais ou imaginárias.

         «De acordo com as instruções recebidas, comunicamos imediatamente a informação ao cliente, pelo telefone.

         «Entretanto, Donald Lam encontrava-se no apartamento de Doris Ashley.

         «Ao ser informado da identidade da referida pessoa, o cliente ordenou-nos que suspendêssemos toda a vigilância, que encerrássemos o caso, apresentássemos a conta e não fizéssemos mais nada.

         «De acordo com tais instruções, o agente foi chamado ao escritório na cidade e o assunto encerrado.

         «ACE HIGH DETECTIVE AGENCY. J. C. L., gerent.

         Sucursal de Los Angeles.»

         Observei o relatório, um instante, e depois dobrei-o e guardei-o na algibeira do casaco. Olhei à minha volta, mas não encontrei nenhuma pasta ou sobrescrito de onde me parecesse que tivesse caído.

         Vi uma porta entreaberta, que levava a um lavabo. Aproximei-me, abri-a toda para trás, e ia a entrar quando ouvi passos, na sala de entrada.

         Corri para a janela e espreitei. Estava um automóvel estacionado, atrás do meu. Não o pude ver bem, mas percebi que era grande e reluzente.

         Afastei as cortinas e saltei para o chão, pela janela. Dirigi-me, a passo, para o meu carro, mas reconsiderei e desatei a correr. Saltei para dentro do automóvel e liguei o motor, o mais silenciosamente que me foi possível.

         Ouvi alguém gritar e vi o vulto de um homem,, recortado contra a luz do escritório, na janela por onde me escapara.

         - Eh, volte cá! - Gritou-me. - Pare onde está!

         Pisei o acelerador.

         Vi vagamente o indivíduo saltar pela janela e correr na direção do seu automóvel. Virei ao fundo do caminho, meti pela estrada pavimentada e acelerei mais.

         Só depois de percorrer cerca de oitocentos metros vi os faróis do meu perseguidor, pelo espelho retrovisor.

         Exigi ao carro tudo quanto ele podia dar.

         Vi uma luz vermelha, à minha frente, mas passei a

         toda a velocidade, fiz uma curva, com os pneus a chiar,

         encontrei uma reta e, mais adiante, outra luz vermelha.

         Vi os faróis do outro carro aproximarem-se, buzinei e segui para a frente.

         Durante uma fração de segundo fui encandeado pela luz dos faróis de um carro que vinha da esquerda, a menos de nove metros, mas consegui desviar-me e ter tempo para descrever uma volta completa, afrouxar e retroceder, paulatinamente.

         Estava no cruzamento quando o automóvel que me perseguia passou a toda a velocidade, também sem querer saber para nada das luzes.

         O motorista ia tão absorto no seu objetivo que nem reparava nos carros que vinham em sentido contrário.

         Juntei-me aos outros veículos, segui pela estrada principal para Los Angeles, parei numa estação de serviço e telefonei para o apartamento de Bertha.

          - Que temos desta vez? - perguntou-me a minha sócia em tom irascível.-E por que diabo não apresenta relatórios e não me informa do que faz? O nosso cliente quis saber se descobriu alguma coisa e eu vi-me forçada a recorrer ao velho truque de responder que fazíamos progressos e estávamos tão atarefados que nem tínhamos tempo para redigir um relatório.

         - Fique sabendo que não foi truque nenhum. Eu fiz progressos, e eu estive tão atarefado que não tive tempo para relatórios. Agora preciso de falar consigo.

         -A que respeito?

         -A respeito dos progressos.

         - Estou deitada.

         - Levante-se. Aliás, não se devia deitar tão cedo.

         -Vá para o diabo que o carregue, Donald Lam!- gritou-me. - Sabe muito bem que me deito cedo e leio até adormecer...

         - Agora leia para acordar, pois estarei aí em menos de meia hora.

         Bertha Cool abriu a porta do apartamento assim que toquei. Vestia pijama, tinha rolos no cabelo e estava furiosa.

         -Quer fazer o favor de me dizer a que vem tudo isto? - perguntou-me, mal entrei e me sentei.-Por que diabo não foi ao escritório e datilografou a história toda, para eu a poder apresentar ao cliente? Também podia ter chamado a sua maldita secretária. Pela maneira como ela o olha, toda embeiçada, não custa a crer que ficaria encantada se a fizesse levantar da cama e lhe começasse a ditar... Talvez nem precisasse de a fazer...

         - Isto é muito importante para recorrer a soluções dessas Bertha- interrompi-a.

         -Importante porquê?

         - Fui identificado.

         -Por quem?

         -Pela «Aoe High Detective Agency ».

         -Mas quem os mandou meter-se no nosso caso?

         - Eles não se meteram no nosso caso: têm um caso deles. Foram contratados para não perder Doris Ashley de vista e vigiar tudo quanto fizesse. Por isso, quando eu apareci em cena e comecei a vigiar-lhe o carro, o agente da « Ace» descobriu-me e informou o cliente, por um telefonema de longa distância.

         -É alguém daqui?-perguntou Bertha, de olhos semicerrados.

         -Eu disse longa distância, Bertha, de Colinda para outro lado. Veja isto.

         Entreguei-lhe o relatório da « Ace ».

         - Macacos me mordam! - explodiu Bertha, quando acabou de ler.-Acha que o Lamont Hawley tinha outra agência a trabalhar no caso? Onde arranjou isto, Donald?

         Contei-lhe o que se passara.

         - Nesse caso, o Hawley deve ter-nos atraiçoado.

         - De que outra maneira estaria a «Ace em campo? -perguntei.

         Os olhinhos gananciosos de Bertha cintilaram.

         -É isso, Donald, pode ter a certeza de que é isso. O filho de uma cabra contratou duas agências de investigações, a «Ace» e a nossa, e atirou-as uma contra a outra. A Ac devia estar a trabalhar havia dias, sem obter resultados e alguém falou à « Consolidatdd Interinsurance » a seu respeito e da sua maneira de lidar com as mulheres. Isso explica por que motivo mandaram a «Ace» encerrar o caso, assim que descobriram que você estabelecera contacto pessoal com Doris Ashley.

         - Fosse qual fosse a razão, acho que devemos esclarecer este assunto. Não gosto de ser tomado por trouxa e ainda me agrada menos que um cliente só me comunique parte dos fatos. Chamemos o Lamont Hawley ao escritório e ponhamos os pontos nos «ii».

         -Assim mesmo é que é, Donald!

         De súbito, porém, Bertha começou a pestanejar.

         - Um momento, Donald, mais devagar! Não temos nada em que basear as nossas afirmações, exceto o relatório da «Ace»... e o Hawley quererá saber onde o arranjamos e...

         - Não lhe diremos onde o arranjamos. Ele que puxe pela cabeça.

         Bertha pensou, um instante, e depois sorriu, encantada da vida.

         -Estou ansiosa por ver a cara que esse filho de uma cabra faz, Donald! O espertalhão, atirar uma agência de investigação contra a outra! Encarregou a «Ace de estabelecer contacto, não teve sorte nenhuma e contratou-nos a nós. Entramos na dança, estabelecemos contacto, logo de caras, e descobrimos o papel da outra agência e as instruções que lhe dera... Quando me ouvir, até fica com o cabelo encarapinhado!

         -Está bem Bertha -murmurei.-Agora diga-me:

         de onde veio o relatório?

         - Disse-me que o encontrou no escritório do Holgate. ..

         - Certo. E como o arranjou o Holgate?

         -Ele... Oh, macacos me mordam!-praguejou a minha sócia, e mergulhou num silêncio profundo.

         - Deu-lhe uma mulher que foi ao escritório dele - declarei.-Pouco depois, chegou mais alguém e foi o bom e o bonito... Ou o Holgate e a mulher entraram na refrega, ou o homem que chegou e desencadeou o baile levava uma mulher consigo.

         -Como sabe?

         Contei-lhe o achado do sapato.

         - Ela voltaria atrás, para reaver o sapato - afirmou Bertha. - Uma mulher não pode andar com um sapato de salto alto, num pé, e nada no outro.

         -Talvez descalçasse o outro sapato e fosse em palmilhas de meias - sugeri.

         -É possível... - admitiu - ...se, por qualquer razão, achou que seria perigoso voltar atrás e reaver o sapato. Muito bem, mas que se passou? Disse que se travou luta. Quem ganhou?

         -O intruso.

         - Como sabe?

         - Lembre-se de que quase espatifou o escritório, à procura de qualquer coisa.

         -Deste relatório?

         -Qual relatório, qual carapuça! Este relatório foi lá deixado, e não me admiraria muito se tivesse sido levado pelo intruso, quem quer que ele fosse.

         -Como chegou a essa conclusão?

         -O intruso entrou no escritório e começou a falar com o Holgate. Depois tirou o relatório da algibeira e estendeu-lhe, para ele ver. Foi isso, provavelmente, que desencadeou a refrega. O escritório estava num estado lastimoso. A rapariga, quem quer que fosse, participou na sarrafusca, pois deu com a malinha na cabeça de alguém, com tanta força que torceu a armação e espalhou o conteúdo da mala no chão. quando saiu, deixou ficar a mala, porque da maneira que estava não a podia fechar, mas levou as coisas que queria levar, provavelmente enroladas numa toalha.

         - Porquê numa toalha?

         - No  banheiro contíguo ao escritório não havia toalhas no toalheiro, mas estava uma caída no chão.

         - Bem, não nos podem acusar de nenhuma dessas coisas.

         -Não sei-murmurei.-É isso que me preocupa.

         - Preocupa-o porquê?

         - Porque chegou um carro, enquanto eu lá estava, e entrou um homem no escritório. Tanto pode ter sido um guarda da noite como um polícia. Não sei quem era. Saltei pela janela e fugi. Perseguiu-me, de carro, mas escapei-lhe, num ponto em que pude dar a volta e despistá-lo.

         -Bem, o que importa é que lhe conseguiu escapar.

         -Suponha que o indivíduo copiou o número de matrícula do automóvel... Tinha abandonado o carro da agência e guiava o nosso, que está registrado no nosso nome.

         -Para que diabo fez uma coisa dessas? Meu Deus, se o tipo copiou o número...

         - Fiz isso para reduzir as despesas.

         Bertha pareceu rebentar de fúria, e eu sorri-lhe.

         -Não é nosso dever comunicar essas coisas à Polícia?-perguntou a minha sócia, passados instantes.

         -Que coisas?

         -Quando o escritório de um homem é assaltado e...

         -Como sabemos que foi assaltado? A porta do escritório estava aberta. É um lugar público, talvez o Holgate tenha convidado a pessoa a entrar...

         - Pois sim, mas deixaram tudo de pernas para o ar, roubaram papéis e...

         - Como sabemos que roubaram papéis? Sabemos apenas que alguém procurou qualquer coisa, nos fichários, e o fez de modo muito descuidado. Não abriu e fechou as gavetas do fichário, sucessivamente, como é costume; abriu uma gaveta após outra, e quando estavam todas abertas o peso da papelada que continham deslocou o centro da gravidade e o armário caiu. Os papéis espalharam-se e a pessoa que causou o incidente endireitou o armário. Como sabemos se levou alguma coisa?

         Bertha meditou na minha explicação.

         - Por outras palavras - prossegui -, não sabemos se foi cometido algum crime e, portanto, não temos o dever de comunicar nada. Como podemos comunicar um crime que não temos a certeza de se ter verificado?

         -Você é um salafrariozinho muito esperto- resmungou Bertha.-Eu não me atreveria a patinar em gelo tão fino, mas se você pensa que se pode safar vá para a frente.

         -O pior é que gostaria de saber o que sucedeu ao Holgate.

         -Que quer dizer?

         -Terá esperado que os intrusos, quem quer que fossem, saíssem e...

         -Não lhes chame intrusos - Interrompeu-me Bertha-; chame-lhes visitantes. Agrada-me a sua idéia de que o escritório é um lugar público e Holgate os convidou a entrar e provavelmente lhes tentou vender um lote.

         -Seja feita a sua vontade.Quando os visitantes saíram, Holgate foi atrás deles ou...

         - Claro que foi atrás deles - interrompeu-me nova mente Bertha. - O carro dele não estava lá. Lembra-se de ter dito que, quando chegou, não havia caros nenhuns no parque de estacionamento?

         Acenei com a cabeça.

         -Ele não ia a pé para o escritório- continuou a minha sócia. - Os visitantes partiram, no carro em que se tinham transportado, e depois Holgate partiu também no seu próprio carro.

         -Antes ou depois de me telefonar

         - Provavelmente antes.

         -Esperemos que sim- murmurei.

         -Não lhe parece que fosse assim?

         -Não sei, Bertha. Visto estes saberem quem eu sou, esta coisa pode complicar-se um bocado Acho Que devíamos chamar o Lamont Hawley. Tem algum número de telefone que nos permita comunicar com ele de noite

         - Não, não me indicou nenhum número para comunicar com ele de noite. Supunha-se que se tratava de um negócio respeitável... Indicou-me o número do seu telefone particular, mas não creio que...   Meu Deus Donald, não sei que se passa consigo! Sempre que começa a trabalhar num caso, o danado transforma-se numa emergência qualquer e, de vez em quando, aparece um cadáver!

         - Esperemos que esta vez seja a exceção que confirma a regra...

         -Que quer dizer?

         -Quero dizer que se aparecesse agora, um cadáver, podia ser mau negócio.

         Bertha pestanejou, perplexa.

         - De que diabo está a falar?

         - Estou a falar do que aconteceria se aparecesse um cadáver.

         - A quem se refere?

         - Holgate.

         - Não seja parvo!

         - Por que seria parvo? Bertha pestanejou outra vez.

         - Macacos me mordam! - praguejou. Passado um momento, fitou-me e disse:

         -Falou na possibilidade de alguém ter visto o número de matrícula do seu carro, mas que me diz a respeito de impressões digitais? Saiu de lá numa grande pressa, deve ter deixado...

         - Deixei impressões digitais por toda a parte - interrompi.-Não seja idiota, remediarei isso.

         -Como? Não pode voltar lá e apagar todas as impressões digitais. Não sabe, sequer, onde as deixou!

         -Claro que não sei, mas posso voltar e deixar mais impressões digitais.

         - Explique-se, sim?

         - É um dos truques mais velhos do mundo. Quando não nos podemos livrar das impressões digitais que deixamos na cena de um crime, arranjamos pretexto para lá voltar, com uma testemunha, e tocamos em tudo quanto estiver à vista. Quando a Polícia encontra uma impressão digital, não tem maneira de calcular a data em que a mesma foi deixada. O único elemento de tempo, neste caso, pode ser fornecido pelo pó de arroz que se entornou da caixa. Mexi-lhe com os dedos e depois toquei em certas coisas. Não me esquecerei de fazer o mesmo, quando lá voltar pela segunda vez.

         - E quando será isso?

         -Agora mesmo. Ouça, Bertha, ponha-se em campo e tente localizar o Lamont Hawley. O tipo tem um telefone qualquer, e a companhia de seguros dispõe de um serviço de investigação, que deve ter um piquete a trabalhar de noite. Apanhe o Hawley e diga-lhe o que se passa. Pode ficar com o relatório da Ace»; não o quero levar comigo. Contém uma pista. Repare que uma parte da segunda folha está rasgada, mas ainda se vê uma nota de despesas, com menção de uma chamada telefônica de longa distância, que custou um dólar e noventa cents. O sapato de mulher que encontrei foi vendido em Salt Lake City, o que me inspira o pressentimento de que o referido telefonema foi feito para Salt Lake City e de que era aí a morada da cliente. Assim que a cliente da «Ace» descobriu que eu era detetive, meteu-se num avião e seguiu para...

         -A cliente?

         -O sapato Bertha.

         -Ah! Está a tomar muitas coisas por certas, Donald. Continuo a pensar que o cliente era o Lamont Hawley.

         -Eu começo a pensar que pode ter sido uma mulher de Salt Lake. De qualquer modo, é conveniente que o Hawley saiba o que se está a passar.

         - Raio de sorte, precisamente agora que me começava a sentir confortável! Livrei-me da maldita cinta e afinal tenho de a ir vestir outra vez. Gostaria que você fosse capaz de resolver os assuntos como os outros; não existe nenhum motivo que nos impeça de ter uma agência decente e respeitável, com o gênero de clientes adequados e...

         -Você arranjou, agora, um cliente adequado... Isto é, disse-me que era um cliente respeitável, quando fechou o negócio com ele.

         - Bem, já não estou tão certa disso como estava há dois dias. Se ele contratou uma agência de detetives e depois contratou outra... Macacos me mordam, darei uma lição àquele pássaro!

         - É todo seu Bertha, dê-lhe a lição que quiser. Levantei o telefone, liguei para as informações e disse:

         - Desejava saber o número do telefone de Lorraine Robbins, de Colinda, por favor.

         - Um momento - respondeu-me a telefonista, e pouco depois informou-me:-O número é 3249243. Pode ligar daí.

         -Obrigado-agradeci, e marquei o número. Pouco depois, ouvi a voz calma e eficiente de Lorraine:

         - Estou.

         - Lorraine, fala Donald Lam.

         - Diga, Donald.

         - Preciso de falar consigo esta noite, acerca de um assunto muito importante.

         - Francamente, Donald! O que lhe disse, esta tarde, foi de brincadeira...

         -Que foi que me disse?-perguntei, inocente mente.

         -Disse que lhe podia dar muito... Ouça, Donald, é tarde, vou-me deitar e... enfim, não gosto de homens que precisam de metade da noite para ganhar coragem e...

         - Trata-se de um assunto sério - interrompi-a. - Pode ser importantíssimo para si e para o seu patrão.

         - Não pode esperar pelas horas normais de serviço?

         - Não.

         -Que quer?

         - Falar consigo.

         -Está bem’, far-lhe-ei a vontade. Mas escute, Donald, pois vou-lhe falar com toda a franqueza. Se tudo o que me disse não passa de um pretexto, perde o seu tempo. Não me agrada que um indivíduo me telefone a esta hora da noite, a pretexto de ter surgido uma emergência importante, e depois aproveite a desculpa para começar com atrevimentos. Está quatro horas atrasado, para isso. Nem cocktails, nem jantar... Se a sua intenção é ser atrevido, diga-o já e...

         -Trata-se de negócios, Lorraine. Se assim não fosse não a teria incomodado.

         -Não me parece que esteja sendo muito lisongeiro...

         - Queria dizer que não a incomodaria a esta hora. Telefonar-lhi-ia mais cedo.

         - Porque não o fez?

         -Estive ocupado.

         - Cada vez melhor, Donald. Ia me deitar, mas vou ficar esperando você. Sabe onde moro?

         -Não.

         -Miramar Apartaments, 212.

         -Irei até lá.

         -Quanto tempo se demora?

         - Pouco mais de meia hora. Estou falando da cidade.

         - Estarei esperando.

         Quando desliguei, vi Bertha a observar-me, com expressão velhaca.

         -Quem era?-perguntou-me.

         -Lorraine Robbins, secretária da firma Holgate & Maxton.

         -Não há duvida de que vai longe- replicou, a abanar a cabeça.

         -É para isso que me pagam, Bertha- respondi, virtuoso.

         - Vai longe com as mulheres - acrescentou, secamente.

         Como não valia a pena responder-lhe, saí e fechei a porta do apartamento.

         Lorraine Robbins abriu-me a porta mal toquei. Envergava um sóbrio traje de saia e casaco e tinha um ar muito eficiente, como de costume.

         -Entre, Donald. Que temos?

         - Perguntava a mim mesmo se toda a gente de Colinda moraria no «Edifício Miramar»...

         - Porquê?

         -Conheço outras pessoas que também moram aqui.

         -Quem?

         -Oh, não tem importância!- exclamei, a sorrir. - Pareceu-me, apenas, que toda a gente morava aqui.

         -É o prédio de apartamentos, destinado a raparigas empregadas, mais elegante da cidade. É novo, moderno e tem excelente serviço. Talvez lhe custe a crer, mas a verdade é que os apartamentos são quentinhos, no Inverno, graças ao bom funcionamento do aquecimento, e o ar condicionado funciona à maravilha, no Verão. Além disso, os aluguéis não são excessivamente caros. A dificuldade é entrar aqui. Têm uma lista enorme, de pessoas interessadas... Mas diga-me, Donald, de que se trata, afinal? Não se quer sentar?

         Sentei-me. Lorraine fez o mesmo, do outro lado da sala, e teve o cuidado de conservar os joelhos unidos e a saia puxada para baixo.

         - Preciso de falar com Mr. Holgate, esta noite, e quero que você esteja presente.

          -Você quer que eu esteja presente!-exclamou, indignada.-Se Mr. Holgate quiser que eu...

           -Calma- interrompi.-Trata-se de um assunto  muito importante.

           -Para quem? Para si ou para nós?

           -Para todos

          -A respeito de quê?

          -Do acidente com o automóvel. Parece-lhe existir alguma possibilidade d Mr. Holgate ter mentido?

         -Em primeiro lugar, Mr. Holgate não mente; em  segundo lugar, não tinha motivos nenhuns para mentir. Admitiu a sua culpabilidade e a história que contou  coincide com a sua.

           -Tenho razões para crer que uma agencia de  detetives anda a investigar o assunto.

          -Pois com certeza que anda, tolinho!- replicou, ela a rir. - Está uma companhia de seguros metida no caso e, naturalmente, tenta averiguar a natureza e a amplitude dos danos sofridos pela rapariga. Espere, era nela que você estava a pensar! Ela também aqui mora, no «Edifício Miramar»... ou melhor, morava. Creio que já  não está aqui.

            - Confesso que tenho a impressão de que se passa algo muito fora do normal e que me sinto um tanto ou quanto alarmado.

         - Em que baseia essa impressão e porque me procurou para falar dela?

         Tirei da algibeira um recorte do anúncio, que cortara do jornal, e lhe estendi -Suponho que vocês são responsáveis por isto?

         -Por isto o quê?

         -Por oferecer duzentos e cinqüenta dólares a quem tenha visto o acidente.

         Levantou-se, tirou-me o recorte do jornal da mão, leu-o e depois olhou-me e afirmou:

         - Não fomos nós, Donald. Não sabemos nada a tal respeito

         -O meu carro está lá em baixo. Vamos falar com Holgate.

         - Primeiro tenho de tentar localizá-lo. Sei dois números, para onde posso telefonar de noite...

         -Ele está no escritório.

         -Como sabe?

         - Passei por lá, de caminho, e vi as luzes todas acesas. Ainda pensei parar e dizer-lhe que esperasse, enquanto a vinha buscar, mas achei que seriam apenas mais dez ou quinze minutos e...

         -Talvez entretanto tenha saído. Devia ter parado, para lhe pedir que esperasse. Telefono-lhe num instante e...

         -Não-cortei, a olhar para o relógio.-Não há tempo para isso. Vamos, tenho a certeza de que ele lá está.

         Por instantes, Lorraine pareceu desconfiada.

         -Você está a tramar qualquer coisa, Donald. Não sei de que se trata, mas aconselho-o a ter cautela. Se é um pretexto para me levar ao escritório e quando lá chegarmos estiver tudo às escuras e você tentar algum atrevimento, mude de idéia, pois garanto-lhe que se arrependerá. Quando um homem me corteja, gosto que o faça francamente; detesto subterfúgios.

         - Está bem, vamos.

         Apagou as luzes do apartamento e respondeu-me:

         -Estou pronta.

         Descemos, metemo-nos no meu carro e partimos, em silêncio. Via observar-me, cuidadosamente, e encolher os ombros.

         - Que diferença! - murmurou.

         -A que se refere?-perguntei-lhe.

         -Quando o fui buscar ao hotel, era você que me observava e se perguntava até onde eu iria.

         - E então?

         -Agora é você quem conduz e eu quem o observo e me pergunto até onde terá ido.

         -Cobri muito terreno.

         -Diabos me levem se não o acredito! Oxalá a sua história seja verdadeira, pois de contrário ver-se-á em apuros. Se pensa que consegue arrancar duzentos e cinqüenta dólares ao Holgate, espera-o uma grande surpresa. Ele não sabe nada do anúncio e não lhe pagará um centavo.

         - Nem eu quero que pague.

         -Quem me dera saber o que você quer, realmente... Do que não restam dúvidas é de que pretende tramar qualquer coisa... Estava disposta a gostar de si quando o conheci... e, diabos me levem, ainda gosto!

         -Obrigado.

         -Não tem nada que agradecer. É tudo uma questão de química. Comigo, ou gosto, ou não gosto. Fui sempre assim. Compreendo, logo ao primeiro contacto; com o magnetismo masculino, se gosto ou não gosto. Consigo gostei e continuo a gostar, mas terei o cuidado de me certificar exatamente onde quer pôr os pés, antes de lhe dizer que salte.

         -Acho justo. -Voltou o silêncio.

         Quando virei para a estrada principal, Lorraine viu  as luzes acesas, no escritório.

         -Bem, é uma surpresa- comentou, e recostou-se no lugar.

         -Não esperava?

         -Confesso que não. Pensava que, quando me apanhasse lá, sugeriria que entrássemos e tentássemos localizar Mr. Holgate pelo telefone do escritório.

         -Disse-lhe que o escritório estava iluminado. Vi que assim acontecia, da estrada.

         -Mas... não tem aqui, nenhum automóvel!

         -As luzes estão acesas, portanto deve estar alguém lá dentro.

         -Não percebo... Se lá está alguém, devia estar aqui um automóvel. A não ser que se tenha ido embora...

         -Não iria sem apagar as luzes, pois não?

         -Não.

         -Então é porque ainda lá está.

         Levei o carro para diante da porta principal e tentei estacioná-lo exatamente no mesmo ponto onde o arrumara antes.

         Lorraine apeou-se, muito depressa, e correu para a porta.

         Entrou na sala da frente, olhou para um lado e para outro e, de súbito, parou.

         -Quem se serviu da minha máquina de escrever? - perguntou.

         - Alguma novidade?

         -A máquina está destapada e tem o motor a funcionar.

         Aproximou-se e tocou na máquina com a mão, no que a imitei.

         - Deve estar ligada há um bom bocado - comentei. - Está quente. Talvez se tenha esquecido de a desligar, esta tarde, quando saiu.

         -Não diga asneiras! Esteve aqui alguém, que se serviu da máquina.

         Voltou-se, encaminhou-se para o escritório de Holgate e agarrou na maçaneta da porta. Deteve-se, porém, e bateu, primeiro, antes de a abrir e entrar.

         Fui atrás dela.

         - Meu Deus! - exclamou. Paramos, a observar a desordem.

         -Uma caixa partida- observei.-Isto é pó de arroz, não é?

         Peguei num torrãozinho e estendi-lhe.

         -É, Caiu da caixa- confirmou, enquanto cheirava, pensativamente, o pó.-Provavelmente era de uma loura.

         Dei alguns passos e anunciei:

         -Está aqui um sapato de mulher. que significará isto?

         Estendi-lhe o sapato.

         - Deve ser de alguma rapariga que se tentou defender. Descalçou o sapato e serviu-se do salto como arma.

         - Quereriam violentá-la?

         -Se quiseram, não foi o Holgate.

         -E o sócio, Chris Maxton?

         -Que sabe de Maxton?

         -E você?

         - Desconheço os seus hábitos sexuais, se é a isso que se refere.

         - Bem, do que não há duvida é de que se travou aqui uma grande luta. Deve ter entrado alguém pela janela.

         - Porquê pela janela?

         -Está aberta.

         -Não terá, antes, saído pela janela?

         -É uma idéia- admiti.-Vamos ver. Sentei-me no parapeito, deixei-me escorregar para o chão e demorei-me alguns momentos, enquanto ela inspecionava a papelada espalhada pelo chão. Depois saltei de novo para o parapeito.

         -Era, de fato, possível sair pela janela- declarei.-Mas porque o fariam?

         - Não mo pergunte a mim. Quero saber o que se passou aqui e o que aconteceu a Mr. Holgate.

         -E à mulher- acrescentei.

         - Bem, se ela perdeu a batalha, é fácil calcular o que lhe aconteceu. De qualquer modo, desapareceu.

         - Faltam alguns papéis?

         - É isso que tento descobrir. Há, sobretudo, um documento que me interessa.

         -O quê?- perguntei, a caminho da casa de banho.

         Lorraine não respondeu logo. Continuou a mexer na papelada, até encontrar um sobrescrito grosso. Abriu-o, inspecionou o interior e depois estendeu-me.

         - Veja.

         -Não tem nada-disse-lhe, depois de olhar.

         - Leia o que diz Na face do sobrescrito. Obedeci. Mão feminina escrevera, numa caligrafia certa e elegante: «Depoimento jurado de Donald Lam, testemunha do acidente de Mr. Holgate.»

         - É só o que falta - disse Lorraine, e estendeu a mão para o telefone.

         - Espere!

         -Porquê?

         -Que vai fazer?

         -Avisar o xerife.

         - Porquê?

         -Porquê?! - repetiu, incrédula. - Meu Deus, Donald, olhe para esta desordem!

         -Pois sim, mas que levaram?

         -Já lhe disse, levaram o seu depoimento.

         - Dito-lhe outro.

         -Aonde quer chegar?

         - Não levaram nada de valor, pelo menos que você saiba. O escritório está numa desgraça, partiram uma cadeira e revolveram os arquivos. Se a Lorraine telefonar ao xerife, aparecem aí e começam a recolher impressões digitais. Depois o caso chega ao conhecimento dos jornais, que lhe darão uma publicidade desenfreada. Lembre-se de que é empregada da firma Holgate & Maxton ». Acha que gostariam dessa publicidade?

         - Não sei.

         -Talvez seja melhor averiguar, antes de tomar alguma iniciativa de que venha  a arrepender-se.

         Passado um momento, Lorraine murmurou, pensativa:

         -Talvez me tenha dado um excelente conselho, Donald... Tem, mais alguma sugestão a fazer?

         -Tentemos imaginar quem poderia desejar o meu depoimento tanto ao ponto de Vir aqui e deixar isto neste estado. Quem terá travado a luta que se adivinha?

         -Não faço idéia.

         - Este é o gabinete de Holgate e houve luta.

         - Isso é evidente.

         - Uma luta significa a existência de duas pessoas com interesses ou objetivos opostos, que recorrem à violência a fim de protegerem esses interesses ou esses objetivos - comentei.

         - Continue.

         - Podemos partir praticamente do princípio de que uma das pessoas participantes na luta foi Holgate. Este é o seu gabinete. Ou ele já cá estava quando os intrusos chegaram, ou os intrusos chegaram primeiro e depois veio ele. Holgate não achou conveniente avisar as autoridades. Portanto, não há motivo nenhum para que o façamos nós.

         - Já me convenceu, Donald.

         - Gostava de descobrir o que motivou a desordem e o que há no meu depoimento que seja tão importante ao ponto de levar alguém a entrar por aqui dentro e tentar apoderar-se dele.

         -Vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém, Donald. Mas, para isso, far-lhe-ei uma pergunta, para a qual peço uma resposta franca.

          - Diga-me o que tem a dizer e depois faça a  pergunta.

         -Não, Donald. Primeiro farei a pergunta e só depois lhe direi o resto.

         - Como quiser, Lorraine.

         -Está absolutamente certo acerca do acidente de viação?

          -Claro que estou! Foi no dia 13 de Agosto.

         -A que horas?

         -Cerca das três e meia da tarde, mais minuto, | menos minuto.

         -Tem a certeza das horas?

         Eu  olhei-a, muito sério.

          -Eu... bem, é possível que esteja um bocadinho enganado... Você sabe como são estas coisas, quando fazemos um depoimento jurado. Não nos atrevemos a  dizer que foi cerca, ou mais ou menos, ou a admitir que talvez estejamos enganados. Se o fizéssemos, o advogado contrário atirar-se-ía a nós, no contra-interrogatório, e deixar-nos-ia feitos em farrapos.

         Lorraine acenou afirmativamente com a cabeça.

             -Mas que há, afinal, acerca das horas? - perguntei.

         Deve haver um erro qualquer.

         -Como sabe?

              -Lembro-me bem do dia 13 de Agosto, porque é o dia dos meus anos. Nessa tarde fizemos uma pequena festa, no escritório, e bebemos uns cocktails. É verdade que Mr. Holgate esteve ausente quase toda a tarde, mas veio aqui pouco depois das quatro e fez-nos companhia durante alguns minutos. Bebeu qualquer coisa e partiu de novo. Devia ter algum compromisso, pois via as horas com muita freqüência. O que queria dizer, Donald, é que reparei no carro dele quando se foi embora, cerca das quatro e meia... e não tinha amassadela nenhuma.

         -Quer dizer que o acidente foi forjado? que o carro não chocou e...

         -Não, não! O elemento tempo é que não bate certo. Não tenho a certeza  que... Donald, você presenciou o acidente e eu gostaria que me dissesse se não poderia se ter enganado.

         - Podia, podia ter-me enganado - respondi-lhe.

         -Obrigada. Era só isso que queria saber.

         -Não acha que seria melhor fecharmos a janela e apagarmos a luz?

         - E fecharmos o escritório à chave.

          Acenei afirmativamente.

         -Creio que sim,-murmurou, a andar de um lado para o outro e a observar a balbúrdia.-Que desordem!

         - Não vale a pena tentar arrumar as coisas esta noite. Além disso, se Mr. Holgate desejar avisar as autoridades, será conveniente que tudo fique como encontramos.

         -Tem razão.

         -E o outro gabinete? Estás às escuras.

         - É o gabinete particular de Mr. Maxton.

         -Não acha melhor dar por lá uma vista de olhos?

         -Creio que sim.

         -Tem a chave?

         - Há uma chave no cofre, na sala de entrada.

         - E você sabe a combinação do cofre?

         -Claro.

         -Vamos lá ver, então, só por uma questão de segurança. O cofre não parece ter sido mexido.

         Saímos do gabinete e Lorraine parou, a olhar para a máquina de escrever, de testa franzida.

         - Não consigo compreender o que sucedeu. Quem diabo se teria servido da máquina?

         - Mr. Holgate sabe escrever a máquina?

         - Devagar e com um dedo.

         -Nesse caso, das duas uma: ou esteve aqui alguém que sabia escrever à máquina, ou Holgate tentou datilografar um documento.

         -Não imagino quem mais poderia servir-se da máquina!, a não ser ele.

         -O sapato da mulher... - recordei-lhe. Lorraine acenou com a cabeça.

         - Isso sugere-nos outra hipótese - prossegui. - Holgate esteve aqui com a tal mulher, talvez a vender-lhe um lote. Feito o negócio, é possível que ela tenha exigido um documento qualquer. Holgate ter-lhe-ia perguntado se sabia escrever à máquina, ela responder-lhe-ia que sim...

         - Bate certo, Donald - comentou Lorraine, de lábios franzidos.-Continue que está muito bem lançado.

         - Holgate apontar-lhe-ia a sua máquina, ela destapá-la-ia, ligá-la-ia à corrente, meteria o papel e começaria a escrever.

         -E depois?

         - Depois de escrever, levaria o papel ao gabinete, para Holgate assinar, e no mesmo momento entraria o intruso e começaria a discutir com o seu patrão. Ao ver as coisas feias e os dois homens chegarem a vias de fato, a mulher descalçaria o sapato e tentaria bater na cabeça do agressor...

         Lorraine franziu a testa e abanou a cabeça.

         -Por que lhe desagrada a idéia?-perguntei.

         -Quem ganhou a batalha?

         -O outro, segundo tudo parece indicar.

         - Nesse caso, que é feito de Mr. Holgate e da tal mulher, quem quer que ela seja?

         - Isso é uma coisa que temos de descobrir. O homem apoderou-se do papel que queria. Ao ficar com a rapariga, Holgate pode ter decidido que, antes de notificar as autoridades ou de fazer fosse o que fosse, precisava de ir a qualquer lado, por qualquer motivo, e a rapariga foi com ele.

         -Avance mais um passo: nesse caso, a luta deve ter sido por causa do seu depoimento.

         -Aparentemente, relacionou-se com o depoimento, mas não creio que quem remexeu nessa papelada o fizesse para procurar esse documento.

         - No entanto, é o único que falta.

         -Tentemos outra hipótese. A mulher chegou, Holgate precisava de qualquer coisa relacionada com o depoimento... uma cópia, qualquer coisa. Foi ao fichário, tirou o depoimento do sobrescrito, a rapariga saiu para o escritório de entrada, começou a copiá-lo e...

         Lorraine deu um estalo com os dedos.

         - Ajusta-se? - sondei.

         - Muito bem! Foi isso que sucedeu, Donald. Eles estavam a trabalhar com o seu depoimento.

         - Então o importante não era o depoimento. É certo que este saiu do escritório, mas pode ter saído em poder de Holgate e da rapariga. O que o intruso procurava era outra coisa.

         - Se o intruso teve ensejo de proceder a uma busca tão minuciosa, fê-la quando estava mais ou menos à vontade, o que significa que levara a melhor na luta.

         - Claro que levara a melhor. Não podia ter sido de outro modo, se nos basearmos nestas hipóteses.

         -Vamos ver o gabinete do Maxton, Donald. Se estiver tudo em ordem, fechamos a porta e procuramos Mr. Holgate. Pode acompanhar-me, durante um bocado?

         - Durante um bocado, posso.

         -A propósito, acerca de que lhe queria falar?

         - Para lhe ser franco, estava preocupado com o elemento tempo. Não tinha a certeza de que fora às três e meia. Comecei a pensar que talvez tivesse sido mais tarde e lembrei-me de perguntar a Mr. Holgate, para tirar dúvidas.

         -O tempo está errado, Donald, mas eu sei que o acidente se deu, porque vi o carro.

         - Quando?

         - Quando estava na garagem, para arrumar. Creio que esteve lá uma semana. Tiveram de lhe pôr um radiador novo e de arranjar algumas peças da frente.

         -Quando lhe falou ele no acidente? No dia 14?

         - Falou no assunto casualmente e não pareceu atribuir-lhe muita importância. Escreveu à companhia de seguros, a relatar o sucedido, e eu aconselhei-o a avisar também a Polícia. Isto passou-se na tarde do dia 14.

         - Detestaria fazer uma afirmação inexata. Fixei o tempo nas três e meia porque o Dudley Bedford me disse que foi a essa hora, segundo consta nos registros da Polícia.

         -Quem é o Dudley Bedford, Donald?

         -Sei apenas que é o namorado de uma rapariga que conheço.

         - Conhece-a bem?

         -Só a vi duas vezes.

         -E espera vê-la mais?

         - Provavelmente.

         - Muito mais?

         - Depende.

         - É uma rapariga chamada Doris Ashley?

         -É.

         - E o Bedford é o seu namorado?

         - Creio que sim. Por que pergunta?

         - Porque Bedford comunicou com Mr. Holgate, e Mr. Holgate não me disse de que falaram. Geralmente, diz-me, pois isso faz parte do modo como dirige o escritório. Diz-me tudo acerca das pessoas que aparecem, confia-me a sua opinião a respeito delas e explica-me o que pretendem, para que eu saiba atendê-las, se porventura aparecerem numa ocasião em que ele esteja ausente. Assim, sei sempre se vale a pena tentar tudo para o encontrar ou se o melhor é correr diplomaticamente com elas. Mas Mr. Holgate não me disse nada acerca do Bedford e, evidentemente, eu também nada lhe perguntei.

         -Vejamos então o gabinete de Maxton, para depois procurarmos Holgate. Quanto mais depressa fecharmos isto e apagarmos as luzes, melhor.

         Lorraine abriu o cofre e tirou uma chave. Abrimos a porta do gabinete de Maxton e acendemos a luz. Estava tudo arrumado e em ordem.

         -Aqui não mexeram em nada-observou Lorraine.

         Ficou um momento parada, pensativamente, e depois apagou a luz e fechou a porta. O trinco de mola deu um estalinho.

         Guardada a chave no cofre e fechado este, Lorraine desligou a máquina de escrever e tapou-a com a cobertura de plástico. Em seguida fechou a janela e apagou a luz do gabinete de Holgate.

         Saímos, metemo-nos no meu carro e ela mandou-me seguir para o apartamento do patrão.

         As luzes estavam apagadas e ninguém respondeu.

         Experimentamos em dois clubes, onde ele costumava jogar às cartas, mas em vão.

         -O tipo tem de estar em qualquer lado!-exclamei, irritado.

         -Pois tem, Donald, mas nós não sabemos onde. É tarde e eu vou-me deitar. Amanhã de manhã veremos o que havemos de fazer.

         Olhei-a e não me convenci com a sua expressão de inocência. Sabia perfeitamente que não se ia deitar nem dormir, assim como sabia que se queria livrar de mim para procurar noutro lugar qualquer, onde pensava que talvez Holgate se encontrasse. Era uma boa secretária. Não queria que ninguém soubesse onde era esse lugar.

         Fingi que me deixava enganar, levei-a ao apartamento, dei-lhe as boas-noites e afastei-me.

         Contornei o quarteirão, voltei e arrumei o carro. Não tinham passado dois minutos, saiu um carro do parque de estacionamento, a toda a velocidade.

         Aproximei-me o suficiente, e quando o automóvel passou pelo cruzamento iluminado vi que era Lorraine quem ia ao volante e que ninguém a acompanhava.

         Não a segui.

         Voltei ao «Perkins Hotel», onde me esperava um recado de Doris, para lhe telefonar assim que chegasse, fossem que horas fossem.

         Fiz a ligação e, pouco depois, ouvi a voz de Doris.

         -Alô-disse em tom cauteloso e inexpressivo.

         - Como vai isso?

         -Donald!-exclamou, ao reconhecer a minha voz.

         -Não ficou combinado que estaria no hotel, de modo a poder comunicar consigo quando fosse preciso?

         - Meteram-me uma rasteira. Depois lhe explico o que se passou. Que queria de mim?

         -Esperava que comunicasse comigo, esta noite, antes de ser demasiado tarde.

         - Demasiado tarde para quê?

         - Respeitabilidade.

         -Temos de ser respeitáveis?

         - Eu tenho, neste prédio.

           - Porque não se muda?

         Doris riu-se.

         - Falando a sério, Donald, pensei que voltaria a vê-lo.

         - E volta.

         - Quando?

         -Esta noite.

         -É muito tarde, Donald. Fecham a porta da rua à chave.

         -E amanhã?

         -Amanhã seria ótimo. Quando?

         -Quanto mais cedo, melhor. Esta noite, telefonei-lhe, mas não estava.

         - Telefonou-me?

         -Telefonei.

         -Só uma vez?

         -Sim.

         -Quando?

         -Não tenho a certeza da hora exata, mas era aquilo a que você chamaria uma hora respeitável.

          -Oh, Donald! Deve ter sido quando fui num instantinho comprar cigarros, ali à esquina. Que pena! Estava com esperança de que telefonasse... Uma moça não deve dizer estas coisas, parece... Com a breca, Donald, seremos obrigados a respeitar as convenções?

          - Não. Posso, então, ir aí?

         - Esta noite, não. Punham-me na rua

          - Referia-me a amanhã, muito cedo.

           Hesitou um momento, antes de responder:

         -Amanhã tenho de ir ao aeroporto esperar uma pessoa amiga. Por que não vai comigo, no carro?

         -As vezes os seus amigos são um bocadinho violentos... Ainda me dói o queixo.

         -Estou muito aborrecida por causa disso e, creia, ele sabe. Mas desta vez não se trata de um amigo e,  sim, de uma amiga. Se tivesse juízo, nem o deixaria ir vê-la! É uma autêntica beldade, uma loura com uma  figura maravilhosa. Está no leste, há uns tempos,  regressa no primeiro avião e quer que a espere.

         - Conheço-a?

         - Creio que não, embora deva ter ouvido falar a  seu respeito. É Vivian Deshler... a rapariga que foi vítima no choque de automóveis.

           -Ah, sim!-exclamei, cauteloso.-Do acidente que eu presenciei, no dia 13 de Agosto.

         - Exatamente.

         -Tenho estado a pensar no elemento tempo do acidente, Doris. É possível que o seu amigo se tenha enganado, pois creio que o choque se deu uma hora e meia depois de...

         -Não consinta que ninguém o intruje, Donald o acidente foi às três e meia.

         -Como sabe?

         -É que , amigo vimos o carro da Vivian às quatro horas e já tinha a amassadela na retaguarda. Ela veio direita aqui, depois do choque.

         -Tem a certeza das horas?

         -Claro que tenho.

         -Está bem, Doris. Por que não a vou buscar por volta das oito da manhã? Tomávamos o pequeno almoço e seguíamos para o aeroporto.

         -Das oito da manhã?!

         -Sim. É muito cedo?

         - É cedíssimo! Ela só chega às dez e quarenta e cinco. Venha às oito e meia, Donald. Bebemos uma chávena de café, aqui, no apartamento, seguimos para o aeroporto e tomamos lá o pequeno almoço, enquanto esperamos pelo avião.

         - Pronto, está combinado. Tem a certeza de que é muito tarde para a visitar esta noite?

         -Tenho, Donald. Fica para outra noite.

         -Pois sim.

         Desliguei e telefonei a Bertha Cool.

         - Fala Donald. Novidades?

         -Onde está?

         -Perkins Hotel, Colinda.

         - Descobri um número para onde podia telefonar de noite ao Lamont Hawley e dei-lhe uma trepa. O tipo ficou positivamente espantado. Não fazia idéia nenhuma de que andava outra agência a investigar o caso. Jura que não tentou atirar uma contra a outra e que lidou conosco com absoluta seriedade. Pareceu-me preocupadíssimo e pediu-me que lhe recomendasse cuidado, pois havia neste assunto coisas que não compreendia.

         - Isso é um eufemismo.

         -Disse que só nos contratou quando pressentiu que a história era mais complicada do que parecia.

         -Que lhe respondeu?

         - Nem queira saber! Entre outras coisas disse-lhe que, se sabia que o assunto era mais complicado do que parecia, não fora honesto conosco, ao levar-me a fixar o preço, e que teria de aumentar a parada.

         -E ele?

         -Engoliu, que não teve outro remédio! Prometeu acrescentar mais mil dólares aos nossos honorários, por não ter sido, segundo as suas próprias palavras, «inteiramente franco».

         -Subiu mais mil dólares com essa facilidade toda?

         -Com essa facilidade toda? Que quer dizer-perguntou Bertha, irritada. - Devia ter ouvido o que cantei àquele salafrário!

         -Ele perguntou-lhe como soubera da outra agência de detetives?

         - Disse-lhe que víramos os relatórios.

         - E, naturalmente, ele quis saber como os víramos?

         - Claro.

         - Que lhe respondeu?

         -Que não tinha nada com isso, que não tínhamos obrigação de explicar os nossos métodos de trabalho a ninguém, que nos contratara para obter resultados e que lhe daríamos as informações que obtivéssemos, mas a maneira como as obtínhamos só a nós respeitava.

         - Muito bem. Julgam que fico em Colinda esta noite, mas, aqui entre nós, vou passá-la ao meu apartamento. Quero dormir descansado.

         -E aí não dormiria?

         - Pressinto que talvez me interrompessem, e quero ganhar um pouco de tempo, antes de ter de enfrentar as interrupções. Além disso, tenho empenho em dormir, pois desconfio que durante algum tempo não terei possibilidade de o fazer.

         -Como queira. Eu também me vou deitar. Estava à espera do seu telefonema, que tardou. Que diabo esteve a fazer?

         -A trabalhar.

         -Aposto que teve alguma bonequinha a ajudá-lo!

         -Oh, Bertha, as coisas que você diz!-exclamei, e desliguei, antes que disparasse outra seta.

         Saí do hotel, segui de automóvel para o apartamento, onde tinha uma garagem particular, arrumei o carro, subi e deitei-me.

         Mas uma coisa era dizer a Bertha que queria dormir descansado, e outra era conseguir dormir descansado. Passava das três horas da manhã quando, finalmente, adormeci. Por muitas voltas que lhe desse, aquele maldito imbróglio não fazia sentido.

         Holgate e uma mulher encontravam-se a conversar, no escritório, quando chegara alguém. O mais certo era terem chegado duas pessoas, pois Holgate era um homem forte e corpulento e, com o auxílio de uma mulher, chegaria bem para dominar um indivíduo sozinho ... a não ser, evidentemente, que este tivesse uma arma. Mas, se a tivesse, não haveria luta e alguém ficaria ferido.

         Dei voltas e reviravoltas na cama, ora para um lado, ora para o outro, a tentar adormecer.

         Acordei às seis da manhã, um bocadinho mais cansado do que quando me deitara e um bocadão mais frustrado.

         Tomei uma ducha, barbeei-me, bebi três chávenas de café forte, meti-me na campana da agência e segui para o Perkins Hotel », onde me esperava outro recado: devia telefonar a Lorraine Robbins, para o « Edifício Miramar ».

         Hesitei, receoso de lhe telefonar tão cedo, mas lembrei-me de que era uma moça que trabalhava e, portanto, já devia estar a pé.

         Atendeu-me imediatamente:

         -Donald?

         - Sim.

         -Estou preocupada com Mr. Holgate, Donald.

         -Ainda é muito cedo para se preocupar, Lorraine. Ele tem alguns compromissos para esta manhã?

         -Sim, tem entrevistas marcadas com clientes importantes.

         - Espere, para ver se ele aparece às horas marcadas. É muito capaz de estar no apartamento, a dormir descansadamente, depois de uma noite bem passada.

         - Não está. Não está em lado nenhum.

         -Que quer dizer com isso de « em lado nenhum », e como sabe que não está no apartamento? Talvez não lhe apeteça atender o telefone.

         - Estive no apartamento dele, Donald. Ninguém dormiu na cama.

         -Como entrou?

         -O gerente conhece-me. Disse-lhe que tinha uns papéis importantes para entregar ao meu patrão e perguntei-lhe se me podia abrir a porta.

         -Que faria se o encontrasse aconchegadinho na cama com uma pequena bonita?

         -Não sei. Tinha o pressentimento, quase a certeza, de que ele não estava aconchegadinho em nenhuma cama, com nenhuma pequena bonita. Sabia o que encontraria.

         -Que encontrou?

         -A cama intacta. Não estava ninguém... e, claro, não cometi a asneira de entrar no quarto enquanto o gerente esteve presente. Mr. Holgate tem um excelente apartamento de três divisões.

         -Pareceu-lhe tudo em ordem? Encontrou algum indício de terem bisbilhotado no apartamento?

         - Não. Estava tudo em ordem.

         -Muito bem. Agora diga-me uma coisa: quando a deixei, a noite passada, foi direita para a cama?

         - Porquê?

         -Quero saber.

         - Porquê?

         -Para saber o que lhe devo aconselhar. Ontem perguntou-me se devia avisar a Polícia. Podia ser embaraçoso para o seu patrão se a Polícia fosse avisada e viesse a descobrir-se que ele estivera apenas nalguma função social.

         -Está bem, Donald, serei franca consigo. Havia um sítio, um apartamento, onde pensei que ele podia estar.

         -E obrigou a pequena a levantar-se da...

         - Não seja idiota. Fui apenas procurar o carro dele. Se Mr. Holgate lá estivesse, o seu carro estaria estacionado perto do prédio. Procurei minuciosamente, mas não estava.

         -E depois?

         - Telefonei duas ou três vezes, para o apartamento de Mr. Holgate, durante a noite, e não obtive resposta. Estou preocupada.

         -Espere até à hora das entrevistas que ele tem marcadas para hoje, tanto mais que são importantes. Se não aparecer, então será melhor avisar a Polícia.

         -A primeira entrevista está marcada para as dez horas- observou, com certa relutância. - Não me agrada muito esperar até lá, mas... Bem, acho que é o melhor que tenho a fazer. Estará por aí hoje, Donald?

         - Umas vezes por outras. Manter-me-ei em contacto consigo. Estará no escritório?

         -Sim, depois das nove horas.

         -Se não passar por lá, para falar consigo, telefono-lhe.

         Desliguei, esperei pelas oito e vinte e dirigi-me ao « Edifício Miramar ». Arrumei o carro sem dificuldade e às oito e meia, em ponto, bati à porta de Doris Ashley. Vestia um negligé finíssimo, quando abriu a porta, e os contornos do seu corpo viam-se através das pregas diáfanas e tufadas da vestimenta.

         - Donald! Veio cedo!

         -São oito e meia...

         - Eu disse-lhe que viesse às oito e meia, mas são apenas oito horas e...

         -São oito e meia.

         - Não pode ser! O meu despertador tocou há bocadinho e eu regulei-o para as 7.45 h.

         Olhei para o relógio, que estava junto da cama, e verifiquei que marcava, realmente, oito horas e dois minutos.

         - Por onde acertou o relógio, ontem à noite? - perguntei.

         -O despertador? Regulei-o para as sete e...

         -Não. Quando deu corda ao relógio, por onde se regulou?

         -Pela televisão. Estava a ver um programa e...

         - Deixou-o meia hora atrasado.

         -Não pode ser! Deixe-me ver o seu relógio. Parou ao meu lado e levantou-me o braço, para ver

         as horas no relógio de pulso.

         Comprimiu-me o braço contra o negligé, deixou-o ficar assim, e exclamou:

         -Imagine a estupidez! Tenho de vestir qualquer coisa, Donald. Importa-se de vigiar a máquina do café, na cozinha, enquanto me arranjo? Não me demoro nada.

         Entrou no armário, a despir o negligé enquanto abria a porta, vi-a de relance, tentadoramente, de calcinhas e soutien. Pouco depois reapareceu, vestida e calçada para sair.

         Dei um assobio, aprovador.

         -Donald, preste atenção ao que está a fazer!

         -É um pouco difícil... Esses sapatos são bonitos. De que são feitos? Pele de crocodilo?

         - Sim. Gosto muito de sapatos de pele de crocodilo e de meias de tom acastanhado.

         Levantou um pouco a saia, olhou para mim e perguntou, a sorrir:

         -Gosta?

         - Gosto.

         -Estou esfomeada. Tencionava beber apenas café, mas creio que tenho de comer torradas e uma tirinha de bacon. Acha que temos tempo?

         -Sem dúvida. Chegaremos muito a tempo. Se quiser, podemos tomar o pequeno almoço aqui.

         - Não. Gosto de comer no aeroporto, enquanto esperamos. Mas podemos petiscar um bocadinho, aqui.

         Enquanto ela foi para a cozinha, aproximei-me do armário, onde se vestira. Do varão pendiam diversas peças de vestuário feminino e havia uma gaveta aberta, cheia de lingerie íntima. Encontrei uma prateleira de sapatos, ao fundo, e peguei apressadamente num sapato de crocodilo. O fabricante era de Chicago, Illinois. .

            Peguei noutro. Este era de Salt Lake City, da mesma sapataria de onde viera o sapato encontrado no gabinete de Holgate.

         -Onde está você, Donald?

         -Já vou-respondi, e saí apressadamente do armário.

           - Quer fazer as torradas enquanto cozinho o bacon? Tenho um grelhador elétrico, que o deixa na perfeição, está aqui também uma torradeira elétrica. O pão está ali.

         Tirei o pão da lata, meti duas fatias na torradeira, liguei-a.

         Pouco depois, o aroma apetitoso do bacon misturava-se ao do café, no pequeno nicho da cozinha destinado as refeições.

         - Donald, lamento o que se passou com o Dudley.

         - Não tem importância.

         -Ele... ele aproveitou-se de si. Não gostei de que isso acontecesse... Sei que o colocou numa situação em que teve de dizer que viu o acidente.

          -Tenho notícias para si, Doris.

         -Que notícias?

         -Vi o acidente.

          A travessa que Doris segurava por cima do fogão, para aquecer, quase lhe caiu das mãos.

          -Viu o quê?!

         -Vi o maldito acidente. Foi uma daquelas estúpidas e peculiares coincidências, que não acontecem num milhão de anos. Claro que não fazia a mínima idéia de que você estava interessada no assunto, ou viria a estar, mas... enfim, aconteceu! Vi, pronto.

         Doris hesitou um momento, refez-se do espanto, pôs o bacon na travessa e deu uma gargalhada gutural.

         -Você é um número, Donald? Tranquilize-se, não precisa de me intrujar. A Vivian é que foi vítima do acidente e... enfim, provavelmente interrogá-lo-á a esse respeito.

         - É por isso que quer que a conheça?

         -Céus, não! Eu quis apenas vê-lo, mais nada! Porque não me telefonou mais de uma vez, ontem à noite?

         -Telefonei, mas você não estava em casa.

         -Já lhe disse que saí para comprar cigarros.

         -Telefonei diversas vezes, mas nunca respondeu.

         - Deve ter-se enganado no número, pois estive sentada ao pé do telefone, toda a santa noite! Até inventei uma desculpa, para me livrar do Dudley.

         - Ele não esteve aqui?

         -Não.

         -Não estiveram juntos?

         -Já lhe disse que não. E digo-lhe mais, Donald: creio que de futuro não o verei muito. Associei-me a ele, mas... enfim, estão a acontecer coisas que não me agradam. O Dudley é muito autoritário e cruel, como com certeza já teve ocasião de notar.

         -Tem uns pés muito bonitos- observei, a olhar-lhe para o sapatos.

         Riu-se e fingiu que me dava um pontapé.

         - Não é capaz de fixar a atenção no que tenho mais acima do que os meus pés?

         -Compra esses sapatos aqui?

         -Não. Estes deu -mos uma amiga. Por que pergunta?

         -A sua amiga de Salt Lake?

         -Sim, viveu lá uns tempos- admitiu, surpreendida. - Porquê, Donald?

         - Gosto de sapatos.

         - Não me diga que é um daqueles desgraçados que perdem a cabeça por vestuário feminino, calcinhas e coisas assim? Ouvi dizer que quando os homens estão presos adquirem estranhas manias. Fale-me nisso, Donald.

         -Em quê?

         - No que é viver sem mulheres.

         -É um inferno.

         - Ficam doidos, quando saem? Sexualmente doidos, quero dizer?

         -Sim.

         -Você não parece.

         -Já me esqueci como é.

         -Dar-lhe-ei lições, para lhe reavivar a memória. entretanto, temos de ir esperar um avião. Agora, pegue uma fatia de bacon e ponha-a em cima de uma torrada tape com outra torrada. Vê? É um sanduíche de torrada e bacon, um maravilhoso pequeno almoço. Mas nós comeremos outro, no aeroporto. Este é, por assim dizer, pequeno almoço hors d’oeuvre, uma espécie de preliminar. Gosta de preliminares, Donald?

         - Adoro.

         -Às vezes- murmurou, com certa melancolia-, creio que os preliminares são melhores e mais interessantes do que... hesitou, à procura da palavra adequada.

         - Do que o prato forte?

         Desatou a rir.

         -Oh, Donald, você tem cada saída! Quer leite e açúcar no seu café?

         -Agora não. Mais tarde, quando tomarmos o pequeno almoço no aeroporto, está bem. Agora bebo café simples.

         -Está com um aspecto maravilhoso, esta manhã, Donald. Dormiu bem a noite?

         -Como um prego! E você?

         - Repousei maravilhosamente.

         - Por isso está fresca como uma flor.

         - Sério?

         - Sério.

          -Ainda bem que nos conhecemos, Donald. Gostava de fazer coisas por si. Tenho a impressão de que tem remado contra a maré e de que é... bem, tímido.

         -Tímido?

         - Há pedaço, quando lhe agarrei no braço para ver as horas... muitos homens nas mesmas circunstâncias ter-me-iam esmagado contra eles.

         -Não trabalho desse modo.

         -Quer dizer que não aperta mulheres contra si, impulsivamente?

         - Não. Desagrada-me tentar conquistar uma mulher com um olho no relógio despertador e o pensamento num avião que está a chegar. Gosto de luzes suaves, música para sonhar, um ambiente de calma e intimidade e...

         -Acabe com isso, Donald!

         -Está bem-respondi, a olhar para o relógio.- Lavamos a louça antes de ir para o aeroporto?

         - Com certeza! Detesto voltar a casa e encontrar pilhas de pratos para lavar. Conservo sempre o apartamento impecavelmente limpo e arrumado. Para lavar a louça basta-me água quente e uma pitadinha de detergente. Graças a Deus, a água deste apartamento é realmente quente. Escalda.

         Abriu a torneira da água quente, deitou no lava-louça uma pitada de detergente, pegou num esfregão, lavou e passou os pratos e estendeu- mos.

         -Você limpa.

          E limpei.

         Às nove e doze estávamos prontos para sair. Doris deu uma vista de olhos pelo apartamento, enquanto dizia:

         -Vai gostar da Vivian... Mas não se embeice por ela, Donald! Não estou disposta a compartilhá-lo... por enquanto.

         -É bonita?

         - De perder a cabeça! Loura e com abundância disto e daquilo e mais disto e daquilo...

         -Vai no meu carro, Doris?

         -Sim.

         - Está lá em baixo, defronte da porta. Vamos. Doris olhou para o despertador e riu-se.

         -Já pensou na minha estupidez? - Adiantou-o meia hora e perguntou: -Assim está certo, Donald?

         - Está.

         - Pronto, vamos.

         Abri-lhe a porta e ela passou por mim, de queixo levantado e com um sorriso provocante. Descemos no elevador, metemo-nos na campana da agência e seguimos para o aeroporto. O avião em que Vivian viajava era esperado à hora.

         Sentamo-nos no restaurante e comemos salsichas e ovos mexidos e bebemos mais café. Depois fomos ao encontro de Vivian.

            O avião chegou, de fato, à tabela, os passageiros começaram a sair e eu localizei Vivian sem precisar que Doris ma indicasse.

          Era uma loura estonteante, de vestido curto, de seda crua, cor de rosa vivo, muito decotado. Numa mulher menos desenvolvida, o vestido seria um saco sem jeito, mas Vivian emprestava-lhe o necessário para o encher.

            - Lá vem a Vivian! - exclamou Doris, a dar saltinhos de falso contentamento.

          Quando Vivian transpôs a barreira, Doris deu um gritinhos de prazer, correu ao seu encontro e abraçou-a.

          -Oh, Vivian, estás maravilhosa!

         Vivian acolheu-a com um sorriso lento e indolente

         E um: -Olá, devoradora de homens!

          -Não me chames isso, Vivian. Estou... estou acompanhada.-Virou-se para mim e procedeu às apresentações: - Donald, esta é a Vivian. Vivian, apresento-te Donald, um amigo meu.

           - O mais recente? - perguntou a recém-chegada.

          -Absolutamente o mais recentíssimo!

          Vivian mediu-me de alto a baixo e estendeu-me, devagar a mão.

         -Como está, Donald? - cumprimentou, em voz profunda e aveludada.

          Estendeu a mão num movimento lento e deliberado, que pareceu emprestar significado ao gesto. Dir-se-ia uma stripteaser experiente a descalçar as luvas, de um modo tão carregado de dinamite que um braço nu do cotovelo às pontas dos dedos parecia uma exibição imoral de carne nua.

         -O Donald trouxe-me de automóvel - explicou-Meu Deus, Vivian, deves ter partido muito  cedo.                                               

            -Há uma diferença de três horas, como sabes, e a caranguejola parou em Chicago, Denvers e Salt Lake. -neste momento, são duas horas em Nova Iorque. Confesso-te querida, que saí de casa às primeiras horas da manhã.

          - Como te conseguiste levantar?

                                   -Foi fácil: não me deitei!

         Abriu a malinha, tirou o bilhete do avião, separou os talões da bagagem e começou a estenderme. Depois mudou de idéia e disse-me:

         - Donald, por que não vai buscar o carro enquanto arranjo um carregador para me reunir a bagagem? Pode parar defronte da zona de descarga e abrir o porta-bagagens. Mesmo que se demore lá vinte minutos não lhe dirão nada, desde que tenha o porta-bagagens aberto e uma expressão expectante.-Os seus profundos olhos azuis mergulharam nos meus, preguiçosamente. - É capaz de parecer expectante, Donald?

         - Não sei. Nunca olhei para mim próprio, nas ocasiões em que estive na expectativa.

         -Ele diz coisas engraçadíssimas! - exclamou Doris.

         Vivian continuou a fitar-me.

         -Mostre-se expectante a meu respeito, Donald.

         -Podia ficar decepcionado.

         -Lá isso, podia!

         -Vá buscar o carro, Donald- disse-me Doris.

         - Não precisa de se apressar muito - acrescentou Vivian. - Eles levarão dez ou quinze minutos a desembarcar a bagagem e eu um minuto ou dois a localizar as minhas malas e a arranjar um carregador que as leve para o carro.

         -Entretanto, contar-lhe-ei tudo a seu respeito, Donald- disse Doris  Ashley.-Quero dizer, tudo, não;quase tudo. E dir-lhe-ei, também, que é proibido caçar furtivamente na minha reserva.

         Sorriu a Vivian, cordialmente, e acrescentou:

         -Podes entrar na propriedade, mas ficas proibida de caçar.

         -Onde está a vedação?

         Fui buscar o carro.

         A distância era grande, até ao lugar onde o deixara, e depois levei alguns minutos para retroceder e estacionar onde descarregavam a bagagem.

         Era evidente que tinham sido mais expeditos do que Vivian calculara. As raparigas esperavam-me com um carregador, quatro malas de viagem e uma maleta.

         Dei a chave do porta-bagagens ao carregador e contornei o carro, a fim de abrir a porta às pequenas.

          -Podemos ir todos à frente -disse Vivian, e apressou-se a assegurar o lugar do meio.

          Virei-me e deparei com o homem especado e de  olhos arregalados. Deu outro grito e desatou a correr,  o mais depressa que podia.

         -Que diabo aconteceu?-perguntou Doris.-Que lhe  fez você, Donald?

         Dirigi-me para a retaguarda do carro. Dentro do porta-bagagens estava algo escuro, que  me pareceu a  perna de umas calças. Aproximei-me e olhei melhor. O corpo de Cárter J. Holgate estava dobrado na  mala, com os joelhos encostados ao peito.  Bastou-me olhar uma vez para saber que estava já morto.

         Ouvi Doris gritar e, a seguir, o apito de um polícia. Começou a juntar-se gente, repetiram-se os gritos das mulheres e um polícia agarrou-me num braço.

         - Este carro é seu, camarada?

         -É, sim.

         -Cheguem-se para trás -ordenou o polícia aos curiosos.-Não quero aqui ninguém.

         Apitou, de novo.

         Um homem fardado, que devia pertencer ao aeroporto, aproximou-se a correr e, pouco depois, soou uma sereia e um carro patrulha chegou a toda a velocidade. Apearam-se dois outros polícias, de um pulo, e quando  dei comigo estava dentro do carro e, passados dois minutos, encontrava-me num gabinete do aeroporto, a ser interrogado pelos polícias, enquanto um indivíduo à paisana tomava notas da conversa.

         -Como se chama?-inquiriu um dos polícias.

         Disse-lhe como me chamava.

         -  Mostre-nos a sua carta de condução.

          Entreguei-lhe a carta de condução.

         -O carro é seu?

         -É da agência.

          - Que veio aqui fazer?

          -Esperar uma moça, que chegou num avião.

          - Como se chama ela?

          Disse-lhe.

          - Qual era o número do avião?

          Informei-o do número do avião.

         -Quem é o homem que está no seu porta-bagagens?

         -Segundo me pareceu, é Cárter J. Holgate, mas não tenho a certeza.

         -Quem é Cárter J. Holgate?

         - Um negociante de bens imóveis.

         - Conhecia-o?

         - Se não o conhecesse, não saberia dizer quem era.

         -Quando o viu a última vez?

         -Ontem, ao fim da tarde.

         - Como foi o cadáver parar ao seu porta-bagagens?

         -Quem me dera sabê-lo!

         - Mais alguma coisa?

         - Muito mais coisas. Falei com Lorraine Robbins, que...

         -Quem é Lorraine Robbins?-interrompeu-me o polícia.

         - É a secretária de Cárter Holgate.

         -Onde mora?

         -No « Edifício Miramar », em Colinda.

         -Acerca de que falou com ela?

         -Acerca de Holgate. Estava preocupada a seu respeito.

         -É evidente que tinha boas razões para isso. Que lhe disse ela?

         -Holgate não passou a noite em casa e Miss Robbins estava preocupada.

         -Vivia com ele?

         - Não. Sabia que desaparecera.

         -Como sabia que desaparecera?

         - Tentamos localizá-lo, ontem à noite.

         - Tentamos?

         -Sim.

         -Esteve com ela?

         - Parte do tempo.

         -A fazer o quê?

         -A tentar encontrar Cárter Holgate.

         -Porquê?

         - Porque lhe tinham entrado no escritório.

         -A que horas foi isso?

         -A que horas o procuramos? Não sei; não reparei nas horas. Mas sei que era tarde. Talvez já passasse da meia noite.

         - Como souberam que tinham entrado no escritório?

         -Estivemos lá.

         -A fazer o quê?

         -À procura de Holgate.

         -Para quê?

         - Precisava de falar com ele acerca de um assunto.

         -Que assunto?

         - Um acidente de trânsito.

         - Que gênero de acidente?

         - Não creio que deva prestar declarações acerca do acidente, neste momento.

         - Ouça, camarada, está em maus lençóis. É detetive particular e suficientemente esperto para perceber o problema em que está metido. É melhor despejar o saco todinho.

         - É o que estou a fazer.

         -Se não fala no acidente, não está.

         -Que aconteceu às garotas que estavam no automóvel comigo?

         -Aqui, no aeroporto?

         -Sim.

         - Estão a ser interrogadas.

         - Uma delas, a loura, está relacionada com o acidente.

         - Como se chama?

         -Vivian Deshler.

         -E a outra?

         - Doris Ashley.

         -Quando se juntou a ela?

         -Esta manhã.

         -A que horas?

         -Às oito e meia.

         -Onde?

         - No apartamento dela.

         -Para quê?

         - Para virmos de carro esperar Miss Deshler.

         -Que tem a dizer acerca de terem entrado no escritório de Holgate?

         -Está tudo em desordem, como se lá tivesse havido uma luta.

         -O fato foi comunicado às autoridades?

         -Creio que não.

         -Porquê?

         -A secretária de Mr. Holgate pensou que talvez fosse melhor esperar.

         -Esperar o quê?

         -Esperar para ver o que acontecia, esta manhã.

         -Já sabemos todos o que aconteceu, esta manhã. Agora temos umas coisas que fazer e outras que confirmar. Quero que se sente a esta secretária e escreva tudo quanto sabe acerca do assunto.

         - Conhecem o sargento Frank Sellers? - perguntei.

         -Claro que conhecemos.

         - Também o conheço. Chamem-no, para falar com ele. Entretanto, não escreverei nada.

         -O quê?

         - Não escreverei nada.

         -Sabe o que isso quer dizer, camarada? Está a complicar as coisas.

         -Estarei, mas enquanto não falar com o sargento Sellers não escrevo nada.

         - Está bem, chamaremos Sellers. Provavelmente levá-lo-emos à presença dele.

         Um oficial levantou o fone do gancho e falou durante alguns momentos, em voz baixa. Não com segui ouvir o que dizia. Depois deixaram-me sozinho, talvez uns vinte minutos.

         Por fim entraram dois polícias, com Doris Ashley e Vivian Deshler.

         -Sentem-se ali, as duas - ordenou um dos polícias.

         Doris sorriu-me, de modo tranqüilizador, e Viviane olhou-me de alto a baixo, enigmaticamente.

         -Presenciou um acidente de automóvel, em Colinda, no dia 13 de Agosto, não é verdade, Lam?

         - E depois?

         - Descreva o acidente.

         - Foi apenas um acidente em que alguém chocou com a retaguarda do carro da frente.

         -Quem foi esse alguém?

         -Carter Holgate.

         -Quem viajava no carro da frente?

         - Miss Deshler.

         -Tem a certeza?

         - Claro que tenho a certeza. Então, não a conhecia, mas agora vi-a e sei que era ela.

         -Descreva o acidente.

         -Praticamente já o descrevi. Pouco mais há a dizer.

         - Descreva. Como sucedeu?

         -Bem. ia a passar uma fila de carros...

         -Quantos veículos compunham a fila?

         - Creio que iam dois à frente do de Miss Deshler e logo atrás o de Holgate.

         -Quatro carros, ao todo?

         - Sim.

         -Que sucedeu?

         -Aproximavam-se do cruzamento...

         - De qual cruzamento?

         - Da Seventh e da Main, em Colinda.

         -Onde estava você?

         -No lado oeste de Main Street.

         A que distância do cruzamento?

         -Entre Vinte e dois a trinta metros, talvez.

         -Que se passou?

         -Creio que Holgate tentara acelerar, para fazer uma ultrapassagem, e quando viu que não tinha tempo tentou reincorporar-se na fila, mas ia muito depressa.

         - Porque não conseguiu ultrapassar?

         -Creio que guinou para a esquerda, a fim de passar enquanto o sinal estava a seu favor, e...

         - E verificou que não tinha tempo?

         -Suponho que sim, mais não li os seus pensamentos. Só pude conjecturar, com base no modo como o vi conduzir o carro.

         -Provavelmente não pôde fazer a ultrapassagem em virtude de a luz do sinal estar a mudar?

         - Provavelmente.

         - Nesse caso, ia atento ao sinal?

         - Não sei.

         -A única outra razão que o impediria de fazer a ultrapassagem seria a presença de outros carros à sua frente, no lado esquerdo.

         -Não me lembro de ter visto carros à sua frente, do lado esquerdo.

         -Que sucedeu quando o sinal mudou?

         -O carro que estava mais perto do cruzamento podia ter passado com a luz amarela, mas o motorista parou, de súbito. O carro seguinte parou também, bruscamente, e quase chocou com ele. Miss Deshler conduzia um carro ligeiro, que também travou, e Holgate só o deve ter percebido no último momento. Meteu freios a fundo, apenas a noventa centímetros de distância, mas isso só serviu para diminuir um pouco a velocidade do seu carro. Deu um « encosto » bom ao carro de Miss Deshler, cujo pescoço vi saltar para trás.

         O polícia olhou para Vivian, que mie mediu de novo de alto a baixo, lenta e pensativamente, e acabou por dizer:

         -Ele é um mentiroso.

         - Porquê?

         - Porque o acidente não aconteceu assim.

         -Como aconteceu, então?-perguntei-lhe.

         -Aproximavam-se duas filas de automóveis do cruzamento. Eu ia na da esquerda e Mr. Holgate estivera na da direita. Iam quatro ou cinco carros na fila da direita e apenas um à minha frente na da esquerda. Mr. Holgate tentou passar para a esquerda, a fim de conseguir ultrapassar os carros da direita. Levava muita velocidade. Guinou para a esquerda, mesmo atrás de mim, o sinal mudou e embateu no meu carro.

         -Quantos carros iam à sua frente, quando chegou ao cruzamento?-perguntou o polícia.

         - Nenhum. Do lado esquerdo só ia eu; no direito iam cinco ou seis automóveis. Foi por isso que Mr. Holgate tentou mudar de faixa. Deve ter acelerado quase até ao momento de me tocar. Vi-o aproximar-se pelo retrovisor.

         -Muito bem, Lam, você não viu o acidente -disse-me o polícia.-Por que declarou que o vira?

          Doris Ashley quebrou lanças por mim:

         - Eu digo-lhe porquê: porque Dudley Bedford o obrigou a fazer essa declaração!

         -O obrigou? Que quer dizer?

         -Podem matar-me, se lho disser - respondeu Doris.

         - Ninguém a matará se nos disser seja o que for -afirmou o polícia.-Que sucedeu?

         - Donald Lam é uma jóia de rapaz. Esteve em San Quentin, saiu e tentou arranjar um emprego, para levar uma vida decente. Mas Dudley Bedford, por razões pessoais, obrigou Donald a declarar que vira o acidente.

          O polícia olhou-a, pensativo.

         -Agora sou eu quem lhe vou dizer uma coisa:

         Donald Lam é um detetive particular, sócio da agência de investigações «Cool & Lam. Intrujou-a. Nunca esteve em San Quentin... por enquanto. Tentou conquistar a sua compaixão, Miss Ashley, e não sei o que pretendia de si. Miss Deshler, mas...

         A porta abriu-se e Frank Sellers entrou.

         - Olá, Frank! - cumprimentei-o.

         -Olá, meia leca. Em que diabo se meteu, desta vez?

         -Tentei apenas ganhar a vida.

         -Não devia incluir o homicídio nas suas atividades.-Virou-se para o colega e perguntou-lhe; -Vamos lá a saber, o que se passa?

         -Acabamos de o apanhar numa mentira, sargento.

         -Isso não é nada. Podem apanhá-lo numa dúzia delas, que o lingrinhas consegue sempre safar-se. E, se não se precatam, deixa-os a agarrar o saco vazio.

         - Sempre que o deixei a agarrar o saco - intervim-, encontrava-se dentro dele qualquer coisa que você queria.

         -Não entremos agora nesses pormenores- replicou Sellers, e fez sinal ao polícia: - Levemos as pequenas daqui. Conversemos um instante e, depois, você dá-me o lamiré e eu voltarei e interrogarei o tipo.

         Saíram todos. Sellers só voltou passados uns bons vinte minutos. Sozinho.

         Mamava na ponta amolecida de um charuto apagado, e olhou-me, pensativo.

         -Você faz cada uma, Lam!

         -A mim é que me fazem cada uma!

         -Viu o acidente de trânsito?

         -Não.

         - Por que disse que viu?

         -Porque esse tal Bedford me obrigou a fazer a declaração.

         -Obrigou-o como?

         -Para começar, agrediu-me.

         -E depois?

         - Bem, o tipo convenceu-se de que eu estivera em San Quentin e eu não o desmenti.

         -Porquê?

         - Queria descobrir que interesse tinha ele no caso.

         - Falemos agora de outro tipo, um tal Chris Maxton,, sócio de Carter Holgate. Você declarou-lhe que viu o acidente e recebeu duzentos e cinquenta dólares.

         -É verdade.

         - Porquê?

         -Queria saber por que motivo ofereciam duzentos e cinqüenta dólares a testemunhas e quem os pagava. Sellers abanou a cabeça, desdenhoso.

         -Surpreende-me que um tipo esperto como você aceitasse os duzentos e cinqüenta dólares. Isso equivale a obter dinheiro com falsos pretextos.

         -E obter dinheiro com falsos pretextos tornar-me-á culpado de homicídio?

         -Não. Mas há outras coisas que o culpam disso.

         -Como, por exemplo?

         -Como ter estado no escritório do Holgate, saltado pela janela, corrido para o seu carro, onde já estava o cadáver do Holgate, no porta-bagagens, e fugido.

         -Quem o disse?

         -Disseram-no as suas impressões digitais.

         - De que está a falar?

         - Nas impressões digitais que deixou no escritório de Holgate. Lorraine Robbins esforçou-se por o encobrir. Declarou que esteve lá consigo e que foi então que você viu o que se passava. Mas as suas impressões digitais provam que lhe mentiu.

         -Que quer dizer, sargento?

          Sellers sorriu.

         - Foi habilidoso, Donald. Você voltou segunda vez e fingiu descobrir o que se passava. Foi muito prestável com Lorraine e tocou em tudo, para que as impressões digitais que deixou da primeira vez perdessem todo o significado. Mas esqueceu-se de uma coisa.

         -O quê?

         - O sapato da mulher.

         -Que se passa com o sapato da mulher?

         -Quando a maquete de papier mâché caiu da mesa, acertou no sapato. Ainda se vê a marca do cabedal, a indicar que ficou metade debaixo da maquete.

         -Não sei nada a esse respeito.

         -Levantou a maquete, para tirar o sapato e examiná-lo.

         Abanei a cabeça.

         -E prosseguiu Sellers-, quando o fez, deixou a impressão do seu dedo médio, sublinhada com o pó de arroz que apanhara do chão, na parte de baixo da maquette de papier mâché. Iniciou-se uma investigação,no escritório, às nove da manhã.

         Sellers calou-se, um momento, e passou a ponta do espapaçado charuto para o outro canto da boca.

         - Vejamos agora como se sai desta, meia leca.

         Não disse nada.

         - Então?

         -Está a sonhar, sargento. Podia ter deixado as impressões digitais na maqueta em qualquer altura.

         -Não podia, não. Depois de retirado o sapato e de a maqueta ficar assente no chão, não tinha espaço para meter os dedos. Nem sequer a poderia levantar, a não ser que se servisse de qualquer objeto como alavanca. O modelo pesa mais de cinqüenta quilos, Lam.

         Nós não o pudemos levantar e você também não.

         -Compreendo. E, por isso, sou culpado como o diabo, não é verdade?

         -  Não sabemos. Estamos a investigar.

          -Grande investigador me saiu! Lá porque encontrou uma impressão digital minha na base de uma maquete de papier mâché com o peso de cinqüenta quilos, chegou à conclusão de que irrompi pelo gabinete de Holgate, lhe dei uma cacetada que o deixou inconsciente, o atirei pela janela, o arrastei pelo relvado, o meti no porta-bagagens do meu carro e depois voltei ao escritório por qualquer motivo. Por que voltei eu, sargento? Outro cadáver?

          -Talvez procurar a declaração jurada que assinou, depois de descobrir que não pegava.

         - Se não pude levantar a maqueta de papier mâché,

         que pesa cinqüenta quilos, como pude levantar os cento e tal quilos de Holgate, saltar da janela com ele,arrastá-lo pelo relvado e metê-lo no porta-bagagens do meu carro?

         -Não sabemos, mas tencionamos descobri-lo.

         -Deve valer a pena.. Se consegui saltar a janela com um homem de mais de em quilos nos braços e metê-lo na mala do carro, também conseguiria levantar os cinqüenta quilos da maqueta, não lhe parece?

         - Pode ter tido um cúmplice e, nesse caso, só precisava de carregar com metade do peso.

         - Ótimo! E quem foi o meu cúmplice?

         -Estamos a procurar-replicou Sellers a mamar, pensativamente, na ponta do charuto.

         -Em resumo, em que situação me encontro? Sou acusado de homicídio?

         -Ainda não.

         -Que se passa, então?

         -Está detido, para interrogatório.

         Abanei a cabeça e respondi-lhe:

         - Não me agrada. Ou me acusa ou me solta.

         - Podemos detê-lo para interrogatório.

         -Já me interrogou. Quero servir-me do telefone.

         -Às ordens.

         Liguei para a agência e pedi à telefonista que chamasse, depressa, a minha sócia.

         -Que temos desta vez?-perguntou-me Bertha Coou depois.

         -Estou a ser interrogado, no aeroporto, acerca do assassinato de Cárter Holgate. O corpo dele foi encontrado no porta-malas do nosso carro. Tenho que fazer e quero...

         -O corpo de Holgate!-interrompeu-me Bertha.

         -Exatamente- expliquei, cheio de paciência. - O seu corpo assassinado. Foi encontrado na mala do carro da agência.

         - No carro da agência! - berrou.

         -Exatamente- repeti.-O Sellers está aqui a interrogar-me e eu tenho que fazer. Já lhe disse tudo quanto sabia e quero que me acuse de homicídio ou que me solte, mas ele não se decide por uma coisa nem por outra. Portanto, procure o melhor advogado da cidade e encarregue-o de apresentar o pedido de habeas corpus.

         - Deixe-me falar com o Frank - disse Bertha. Estendi o telefone ao sargento e disse-lhe:

         - Ela quer falar consigo. Sellers sorriu e respondeu-me:

         - Diga-lhe que não é necessário. Já me deu cabo do tímpano direito e agora tenho que poupar o esquerdo. Vamos soltá-lo.

         -O Sellers declara que não é necessário- disse, ao telefone.-Vão soltar-me.

           -Que significa isso?

         -Que vou para o escritório.

         -Não pode ir no seu automóvel, Donald- avisou-me o sargento. - Fica em nosso poder, para procurarmos vestígios, manchas de sangue, etc.

         - O Sellers fica com o carro - expliquei a Bertha.

         -Vou de táxi.

         -Qual táxi, qual carapuça! Meta-se num desses malditos autocarros e poupe quatro dólares.

         -Houve um assassinato, Bertha. Os minutos contam.

         -Ao diabo com os minutos! Os dólares também contam.

         -Chame o nosso cliente ao escritório- ordenei.

         -Quero-o aí, quando chegar.

         - E prepare uma cadeira para mim - recomendou Sellers.

         -Que quer dizer?-perguntei-lhe.

         -O que disse. Vou consigo. Se tenciona contratar um advogado esperto para apresentar o pedido de habeas corpus, não seremos nós que lhe facilitaremos a vida. Não o acusaremos de assassínio, antes de sabermos com o que podemos contar contra si, mas eu não o largarei, serei como um irmão gêmeo.

         - Diga-o à Bertha.

         -Diga-o você.

         -O Sellers vai comigo. Não têm base para acusar-me de homicídio, mas o sargento não me largará. Pelo menos é o que ele diz.

         - Podemos impedi-lo? - perguntou Bertha.

         - Provavelmente não. Já sabe como a Polícia procede. Ou insiste em acompanhar-me, ou prende-me por suspeita de assassinato. Pode deter-me uns tempos, com esse pretexto.

         Bertha pensou, um instante, e depois replicou:

         -Se esse filho de uma cabra vier consigo, obrigá-lo-ei a pagar metade da conta do táxi!

         - Talvez possamos fazer ainda melhor do que isso: creio que ele tem um carro da Polícia. Chame o nosso cliente Bertha, pois preciso de falar com ele.

         -E eu quero ouvir-exclamou Sellers, sorridente. - Cada vez melhor, cada vez melhor!

         - Quanto tempo se demora? - perguntou a minha sócia.

         - Vou já para aí. Prepare a entrevista.

         Desliguei.

         Sellers continuava a sorrir.

         -Disse-lhes que você faria precisamente isso- declarou.

         -O quê?

         -Ameaçaria apresentar um pedido de habeas corpus, para forçar-nos a largá-lo, mas que poderíamos dar-lhe toda a corda que desejasse, pois levar-nos-ía às pessoas que nós queríamos.

         Reunimo-nos no gabinete de Bertha: Frank Sellers, a mamar um charuto novo e com um ar de quem se sentia muito satisfeito com a sua esperteza; Bertha Cool, de olhos atentos como os de um furão, cautelosa, a « jogar com as cartas bem chegadas ao peito », e Lamont Hawley, calmo , digno e reservado, com todo o ar de quem desejava conservar-se o mais possível fora de toda aquela sujeira.

         - Muito bem, meia leca, a festa é sua - preambulou Sellers.-Você convocou a reunião, portanto a palavra cabe-lhe.

         Sorriu a Bertha Cool, que lhe lançou um olhar virulento e barafustou:

         -Que idéia a sua, Frank Sellers! Se passa na cabeça de alguém tentar acusar o Donald de homicídio!

         -Quem tenta acusar-se é ele. E quanto mais se debate, mais se enterra. Não tarda a estar atolado até aos olhos.

         -  Já o ouvi falar assim de outras vezes - declarou Bertha. - E quando o fumo se dissipou, o Donald estava limpinho e você agarrado às abas do casaco dele, para obter créditos que não merecia. A propósito, esse maldito charuto fede. Deite-o fora!

         - Eu gosto do gosto dele, Bertha.

         - Mas esse fedor dá-me náuseas.

         - Levo-o lá fora, se assim o deseja.

         -Pois leve!-gritou Bertha.

         Sellers levantou-se e dirigiu-se para a porta.

         -Eh, mais devagar! Aonde vai deitá-lo? Não há lugar para despejar esse charuto...

         -Quem lhe disse que ia deitá-lo fora?-perguntou Sellers, com um ar muito inocente.-Você disse que o levasse lá para fora, e era o que eu ia fazer.

         -E ia com ele?

         -Claro!

         -Sente-se nessa cadeira, preste atenção durante um minuto e não se arme em espertinho! Vamos lá a ver o que se passa, Donald.

         Voltei-me para Lamont Hawley e perguntei-lhe:

         - Não contratou a Ace High Detective Agency » para investigar o assunto?

         - Não. Já disse a Mrs. Cool que não o fiz.

         - Por que me contratou a mim?

         -Não vejo motivo para repetir tudo isso. Lam, sobretudo na presença de testemunhas e correndo o risco de os jornais repetirem o que eu disser. No entanto, sempre lhe digo que a minha companhia encara com muito desagrado a inevitável publicidade que resultará de o termos encarregado de investigar o acidente em causa. Como deve compreender, ou compreenderá facilmente, se pensar no assunto, não gostamos de publicidade nestes casos e...

         -Isso é conversa fiada interrompi-o.-Porque se serviu de nós, em vez de servir-se dos seus investi- gadores?

         -Já lho expliquei uma dúzia de vezes- retrucou Hawley.

         -Tente explicar mais uma. Talvez o sargento Sellers esteja interessado.

         Hawley suspirou, pacientemente.

         -Sargento, não sei o que pensa a este respeito, mas parece-me que Mr. Lam tenta ganhar tempo.

         - Deixe-o tentar - redarguiu-lhe Sellers. - Tempo é uma coisa que não nos falta... e talvez também não lhe falte a ele... Se tiver sorte, é possível que o condenem apenas a prisão perpétua.

         - Estamos à espera - disse a Hawley.

         - Pensamos que uma agência que não estivesse relacionada com a companhia poderia fazer melhor trabalho.

         -Repita.

         -Ouviu-me bem.

         -Pois ouvi, mas o que disse não faz sentido. Quiseram uma agência de fora por qualquer motivo especial... Seria por recearem um processo por difamação e calúnia?

         Hawley semicerrou os olhos, mas não respondeu.

         - Seria? - insisti.

         Hawley fez menção de dizer qualquer coisa, mas mudou de idéias.

         Sellers, que estivera a observá-lo com os olhos manhosos de um polícia farto de assistir a interrogatórios, interveio:

         -Disse que não gosta de notoriedade, Hawley, e concordo consigo. Mas, agora, fizeram-lhe uma pergunta justa e não se decide a responder. Porquê? Prefere fazê-lo no gabinete do promotor de justiça, com os jornalistas à porta, à espera de informações e a perguntarem-se por que diabo a sua companhia de seguros se deixou arrastar para este assunto?

         - Essa é uma das irritantes características do caso - replicou o interpelado, muito vermelho.

         -Na minha opinião, a coisa tornou-se demasiado quente para lhe pegarem - disse a Sellers. - Queriam fazer acusações contra o Holgate e não desejavam responsabilizar-se por elas. Valia a pena gastar algum dinheiro, para que fosse uma agência independente a comprometer-se.

         Sellers tirou o charuto da boca, apontou-o a Hawley e perguntou-lhe:

         -Tem alguma coisa a dizer? Hawley, que tivera tempo de pensar, achou conveniente mudar de táctica:                           -Não existiu a intenção que ele aponta. No entanto, é verdade que certos pormenores, isto é, que o modo como Vivian Deshler apresentou a reclamação nos levou a crer estarmos perante uma manobra de profissionais.                                        .

         -Que quer dizer com « manobra de profissionais »?

         -Os sintomas foram descritos com grande minúcia, o acordo por ela proposto, com a discriminação da amplitude de dor e sofrimento, nervosismo, etc., etc., deu-nos a impressão de estarmos perante um caso de falsos danos, perante uma falsa vítima.

         -Só porque ela reclamou?

          - Pela maneira como reclamou. A pessoa que costuma conciliar estas coisas, na nossa companhia, foi um nadinha rude, pouco diplomático, e fez uma declaração, na presença de testemunhas, que nos preocupou. Tal declaração podia dar origem a um processo de qualquer espécie, a não ser que ele conseguisse provar a insinuação que fizera... e, aparentemente, não havia muitas esperanças de o conseguir, com as informações de que, então, dispúnhamos ou de que esperávamos vir a dispor, com um pouco de sorte.

          -Isto responde à sua pergunta, meia leca?-perguntou-me Sellers.

          -Isso esquiva-se à minha pergunta-afirmei.

          -Partamos desse princípio- decidiu o sargento.

         -Qual é a sua opinião, Lam?

          -A minha opinião é que não houve acidente

          - Não houve acidente nenhum? - repetiu Lamont Hawley. - Houve, sim senhor! Investigamos na garagem  que reparou o carro do Holgate e na que reparou o da Deshler. Até nos mostraram um bocado do guarda-lamas do carro da Deshler, com tinta do automóvel do Holgate! Isso não chega, Lam, é preciso melhor?

         -Continue a debater-se, Lam- disse Sellers, a sorrir.-Gosto de vê-lo. Parece uma grande truta que  pesquei o Verão passado! Apanhei-a na rede e a bicha Bem, bateu com a cauda, sei lá... Mas não ganhou nada com isso. Estava na rede!

          Sellers soltou uma gargalhadinha.

          -Ainda não compreendeu? - perguntei. - Não houve acidente nenhum! Cárter Holgate embriagou-se começou por cocktails, à tarde, na festa de aniversário da secretária; foi a qualquer lado jantar e acabou por  ficar bem toldado. No caminho, foi culpado de qualquer acidente, mas não se atreveu a parar; fugiu, porque sabia  que estava bêbado. Mas o seu carro ficara amassado e, para não arranjar complicações, era preciso inventar uma justificação.

         Conhecia Vivian Deshler. Esta, na minha opinião, já estivera envolvida em qualquer outro caso em que a vítima sofrera a chamada « chicotada » estivera envolvida ou conhecia muito bem alguém que estivera). Sabia que, uma vez declarada a « chicotada », era quase impossível um médico poder confirmá-la ou negá-la. Por isso, assim que os fumos do álcool se dissiparam e Holgate foi capaz de pensar, recorreu a Vivian, provavelmente por volta da meia noite do mesmo dia. Ter-lhe-á dito:

         «Ouça, Vivian, estou metido em apuros. Deixe-me dar um toque na retaguarda do seu carro. Depois inventaremos uma hora e um lugar para o acidente, de preferência antes de eu beber o primeiro cocktail. Você declarar-se-á vítima de uma chicotada e processar-me-á, eu fingirei que não a conheço, mas admitirei, envergonhado, que sou culpado, e a companhia de seguros pagará. Safar-me-ei  da acusação de ter atropelado e fugido, e você levará a companhia de seguros a pagar e...”

         Lamont Hawley deu um estalo com os dedos.

         - Bate certo? - perguntou-lhe Sellers.

         - Pode ter a certeza que sim! Agora começo a perceber. Com mil raios o tipo tem razão!

         -Não pragueje-recomendou-lhe Sellers, a sorrir, -Está uma senhora presente.

         - Tem muita razão, está uma senhora presente! - sentenciou Bertha. - E agora deixemo-nos de trapos quentes. Que sabe acerca disto, Hawley?

         - Nós não sabemos nada, mas começa a fazer sentido. Como é costume, tentamos encontrar testemunhas do choque, mas em vão. Claro que a história do Holgate era crível e, por isso, não atribuímos muita importância a esse pormenor. O que nos pôs de sobreaviso foi a maneira como Vivian Deshler apresentou a queixa. Ou fora ensinada por algum advogado muito esperto, que conhecia todos os cordelinhos, ou por alguém que fora... É isso!

         -Diga à Elsie que venha cá- pedi a Bertha. Bertha ligou para o meu gabinete e, pouco depois, Elsie Brand apareceu.

         - Como vão os teus livros de casos insolúveis, Elsie?-perguntei-lhe.-Tens algum caso de atropelamento e fuga, nos últimos dois ou três meses?

         -Diversos. Volume G, classificação 200. Queres ver?

         - Quero

         Olhou-me, apreensiva, depois encaminhou-se para a porta, virou-se, olhou-me de novo, agora de modo tranquilizador, e saiu.

         -Que diabo anda você a fazer?-inquiriu Sellers. -Tem alguma biblioteca de crimes?

         - Mais ou menos.

         -Perde tempo de mais com ela- abespinhou-se Bertha.-Quero dizer, quem perde tempo é a sonsa da secretária dele.

         -Não percebo-confessou Sellers.-A não ser que queira fazer concorrência à Polícia... Não respondi. Sellers mamou, um bocado, na ponta do charuto.

         -Claro que pode ser engodo...-resmungou.- Sempre que tentamos apanhá-lo em falta, tem o condão de relacionar o que está a fazer com algum caso por resolver, em que a Polícia está interessada. Damos-lhe corda, na esperança de que desencante alguma coisa que nos interesse... Se não me engano, recorreu a esse estratagema nos dois últimos casos...-Sellers semicerrou os olhos.-O mal é esse, Lam. Você é um meia leca e, por isso, torna-se facílimo subestimá-lo.

         Elsie voltou, ofegante e nervosa, com o livro debaixo do braço.

         -Aqui está, Donald- disse, inclinada por detrás de mim, e senti-lhe o hálito na cara e o seio comprimido contra o meu ombro.

         Quando pôs o livro no meu colo, apertou-me tranquilizadoramente o braço, com a mão esquerda.

         -Há alguma coisa no dia 13 de Agosto?-perguntei-lhe.-Tens os recortes datados?

         Os seus dedos ágeis viraram as páginas.

         -Aqui está.

         - Houve algum caso de atropelamento e fuga no dia 13 de Agosto?

         -Houve. Está aqui.

         Li o recorte e depois passei-o ao sargento Sellers.

         -Aí tem, sargento. Na auto-estrada, entre Colinda e Los Angeles, um carro fez uma ultrapassagem, desgovernou-se, numa paragem de autocarros, matou duas pessoas e não parou. Todas as tentativas para o encontrar foram improfícuas.

         -Quero fazer duas perguntas- declarou Sellers. - Elsie, é a secretária deste tipo?

         -Sou, sim.

         -Esta cena foi ensaiada?

         -Que quer dizer?

         - Isto é verdade, não houve combinação? Você já lhe tinha falado neste caso de atropelamento e fuga?

         -Oh, não! Nem sequer reparara nele, antes. Limito-me a ter os livros de recortes em dia. Sellers voltou-se para mim e perguntou:

         -Tem algumas provas a este respeito, Lam, ou está apenas a improvisar e teve sorte?

         -Tenho provas que relacionam os dois casos. Afirmou-me que o acidente se verificou às três e meia, mas eu posso apresentar uma testemunha que jurará que o carro de Holgate estava incólume às quatro e meia da tarde. O atropelamento e fuga na paragem dos autocarros foi às seis e vinte.

         -Essa história não é da minha alçada, mas tenho a certeza de que os rapazes do trânsito gostarão de esclarecer esse assunto. Desagrada-os deixar escapar, incólumes, os autores de atropelamentos que ainda por cima fogem. Constituem um grave encorajamento para os que conduzem embriagados.

         -Um momento!-exclamou, de súbito, Hawley.- O Holgate é nosso cliente, Lam. Afinal você tira-nos de uma e mete-nos noutra pior!

         - Não sou eu que faço os fatos - repliquei. - Limito-me a revelá-los.

         - Mas está a revelar algo de que não vamos gostar. Sellers observou-o, demoradamente, e por fim perguntou-lhe:

         -Quer cometer um delito?

         - Evidentemente que não!

         -Nesse caso, se o Lam tem razão acerca deste assunto, é de toda a conveniência esclarecê-lo e o senhor e a sua companhia terão todo o interesse em proporcionar-nos a necessária cooperação.

         -Sem dúvida Sargento. O meu comentário relacionou-se apenas com o aspecto evidente da questão.

         - Pois não faça comentários ao que é evidente. É desnecessário- aconselhou Sellers, e depois olhou para mim e recomeçou a mamar no charuto.

         - Então? - perguntei-lhe.

         - Não sei que pensar a seu respeito - respondeu-me.-Quando começa a falar, é capaz de encantar os passarinhos e... Com os diabos, não sei!

         O sargento olhou de novo para o recorte e depois levantou o fone de Bertha Cool e marcou um número.

         - Fala o sargento Sellers. Ligue-me ao capitão Andover, da Secção de Trânsito.

         Passado um momento, disse:

         -Fala Frank Sellers, Bill. Estou na pista de uma coisa que talvez esclareça um caso de atropelamento e fuga, verificado no dia 13 de Agosto entre Colinda e Los Angeles. Morreram duas pessoas, numa paragem de autocarros, cerca das sete e vinte da tarde. Motorista embriagado... Tens algumas testemunhas que nos possam ajudar?

         Sellers escutou, durante alguns momentos, e depois prosseguiu:

         -Não me interpretes mal. Disse-te apenas que estava a trabalhar num caso que pode esclarecer... Escuta, daqui a bocado estou aí e levo um tipo comigo. Prepara tudo.

         Sellers desligou, olhou para mim e abanou a cabeça.

         -Todas as vezes que penso que o tenho nas cordas, você levanta-se. Se está a intrujar-me com esta história, eu... bem, prometo-lhe uma lição que não esquecerá tão depressa.

         Sellers viu as horas, olhou para Bertha e acrescentou:

         - Disse a um colega que mandasse aqui Chris Maxton, o sócio de Holgate. Tenho de sair antes de ele chegar, mas quero que você...

         O telefone tocou e Bertha atendeu. Passado um momento, disse a Sellers:

         - Acabam de chegar.

         -Mande-os entrar. Falaremos com eles, antes de irmos mais longe.

         -Mande-os entrar-repetiu Bertha, e desligou. Um dos polícias que chegou estivera no aeroporto comigo.

         -Entre, Maxton- disse, no limiar da porta. O indivíduo que entrou era o tipo atarracado que eu

         conhecera no apartamento de Elsie Brand e que me dera os duzentos e cinqüenta dólares.

         Ao ver-me, avançou para mim, beligerante, e rosnou:

         -Vigarista !

         Sellers estendeu um pé, numa rasteira a preceito, e aconselhou-o:

         - Calma, camarada. Não gosta dele? Que se passa?

         -Se não gosto dele!-repetiu Maxton, desdenhoso.-O vigarista barato! Apanhou-me duzentos e cinqüenta dólares!

         -Conte-nos lá isso, ande-pediu o sargento.

         -Não há muito que contar. O meu sócio...

         -Como se chama o seu sócio?

         -Carter Jackson Holgate.

         - Continue.

         -Bem, o meu sócio estava implicado num acidente de viação e eu tentei encontrar testemunhas. Pus um anúncio...

         -Utilizou o seu nome?-perguntou Sellers.

         -Não. Utilizei uma caixa postal.

         - Prossiga.

         -Pus um anúncio no jornal a oferecer duzentos e cinqüenta dólares a quem tivesse visto o acidente. Este vigarista barato respondeu a dizer que vira e indicou um número de telefone. Disse-se irmão de uma mulher chamada Elsie Brand, que tem um apartamento aqui na cidade. Contou-me uma história convincente e eu entreguei-lhe os duzentos e cinqüenta dólares. Depois descobri que o acidente não aconteceu como ele contou, que é um mentiroso e não viu nada.

         Sellers olhou-me e eu perguntei a Maxton:

         - Para que queria a testemunha do acidente?

         -Sabe muito bem porquê. São sempre precisas testemunhas quando há acidentes.

         -O seu sócio estava seguro?

         - Claro que estava. A sociedade está segura contra todos os riscos. Nenhum de nós conduzia um carro se não estivesse seguro contra terceiros e contra todos os riscos, até o limite máximo.

         -E o seu sócio admitiu que a culpa do acidente foi dele?

         - E se admitiu, que lhe interessa isso?

         - Para que queria as testemunhas?

         - Não tenho nada que responder às suas perguntas.

         -Como o seu primeiro anúncio a oferecer cem dólares não deu resultado, aumentou a parada para duzentos e cinqüenta- observei.

         -É polícia?-perguntou Maxton a Sellers.

         -Não se nota?

         -Nesse caso, deve saber que não sou obrigado a consentir que este vigarista me interrogue.

         -Bem, faço-lhe a mesma pergunta que ele: por que aumentou a parada?

         - Porque queria encontrar uma testemunha.

         - Porquê?

         -Para não existirem dúvidas acerca do que sucedera.

         - Sabia que a companhia de seguros contratara uma agência de detetives?

         -Não. Tentei apenas esclarecer as coisas, mais nada.

         -O seu sócio sabia que pusera um anúncio no jornal?

         -Claro que... Bem, não sei se sabia. A nossa sociedade é unida, puxamos os dois para o mesmo lado, e o Cárter sabia que eu o ajudaria em tudo quanto fosse possível.

         - Sabe onde está o Holgate?

         -Não. Não apareceu no escritório e a Polícia tem lá estado, a meter o nariz em tudo. Parece que nos assaltaram, a noite passada, mas não creio que o assunto esteja relacionado com isto... ou estará?

         Maxton virou-se para mim, mas Sellers fez sinal ao polícia e ordenou-lhe:

         -Leve-o lá para fora. Não lhe diga nada, por enquanto.

         -Mas que vem a ser isto?-perguntou Maxton, irritado.-Vim aqui para me queixar de um vigarista que me apanhou dinheiro com falsos pretextos, e afinal procedem como se eu é que tivesse cometido algum crime.

         Sellers fez de novo sinal ao polícia.

         - Por aqui - disse o homem a Maxton, e agarrou-lhe num braço.

         Maxton quis recalcitrar, mas o polícia aumentou a pressão e não teve outro remédio senão acompanhá-lo,

         Sellers recomeçou a mamar no charuto.

         -Que raio de caso! - lamentou-se Hawley, amuado.

         -Vamos, meia leca - disse-me o sargento. - Venha passear.

         O capitão William Andover, da Secção de Trânsito, foi conosco visitar Mrs. Eloise Troy, segundo ele a única testemunha digna de algum crédito do caso de atropelamento e fuga.

         -Posso ser eu a fazer as perguntas, Bill?-perguntou Sellers a Andover.-Estou a trabalhar num caso muito mais importante do que este acidente, num homicídio.

         - Pois sim - condescendeu o capitão. - Tenho uma pista, a este respeito, mas ainda não estou preparado para tomar qualquer decisão.

         Mrs. Eloise Troy era uma viúva franca e a atirar um pouco para o gordo, dos seus cinqüenta e dois ou cinqüenta e três anos. Usava óculos e parecia calma e sensata.

         O capitão Andover identificou-se e apresentou-nos.

         -Queríamos falar consigo acerca daquele atropelamento e fuga de Agosto- começou Sellers.

         - Meu Deus, já disse tudo quanto sabia a esse respeito meia dúzia de vezes!

         - Importa-se de repetir mais uma vez? Gostava de a ouvir em primeira mão, pois estou a trabalhar numa pista que pode esclarecer tudo.

         -Oxalá!-exclamou Mrs. Troy.-Foi a coisa mais brutal e cruel que jamais vi. Deixou-me doente e durante muito tempo não consegui dormir uma noite sem ter pesadelos.

         - Importa-se de nos contar?

         - Pois sim. Entrem e sentem-se. O apartamento era confortável e acolhedor e da cozinha vinha um cheiro apetitoso, de boa comida. Mrs. Troy fechou a porta da cozinha e explicou:

         - Estou a assar um frango no espeto e o cheiro é delicioso, mas muito penetrante. Não esperava companhia...

         - Não tem importância; não nos demoraremos.

         -Não me importo que se demorem-afirmou a viúva.-Pareceu-me apenas que a casa estava um pouco... enfim, um pouco perfumada.

         Depois de nos sentarmos, Mrs. Troy começou:

         - Creio que eram cerca de seis e meia da tarde, logo depois da hora de pico. Ia no meu carro na direção de Los Angeles e o automóvel em questão vinha atrás de mim. Tenho sempre o cuidado de olhar para o retrovisor, de tempos a tempos, para estar ao corrente do que acontece atrás de mim. É sempre aconselhável fazê-lo, pois de repente pode ser preciso parar e convém saber se o motorista que nos segue domina bem o carro ou se é capaz de nos dar um « encosto ». Não seria a primeira vez que isso me acontecia!

         Sellers acenou com a cabeça, compreensivo.

         - Bem, vi o tal carro um bocado atrás e não tive dúvidas de que o indivíduo estava embriagado.

         -Pode descrever o automóvel?

         - Infelizmente, não. Sei que era um carro grande, escuro, um automóvel moderno e reluzente... Não se tratava de um modelo velho; era novo e muito grande.

         -Vinha aos ziguezagues?-perguntou Sellers.

         -Vinha. Quase roçou por outro carro, ao ultrapassá-lo, depois passou pela frente de outro e escapou por um triz. « Meu Deus », disse para comigo, « o homem está embriagado e sabe-se lá o que fará! Vou abrandar e chegar-me para o lado da estrada.» Abrandei e cheguei-me para o lado da estrada, mas ele avançou com tanta velocidade que julguei que ia chocar com a retaguarda do meu carro. Guinou em sentido contrário, demasiado, e a parte de trás do seu automóvel raspou pela frente do meu. O incidente pareceu desgoverná-lo por completo. Guinou para a esquerda, depois para a direita... e passou pelo meio do grupo de pessoas que esperavam o autocarro.

         - Não tirou o número da matrícula?

         - Não. Estava preocupada a tentar dominar o meu próprio carro e a parar. Devido ao choque, a parte da frente do meu carro resvalara e quando tentei endireitá-lo tive dificuldade e fui obrigada a parar. Creio que estava um pouco nervosa...

         -Escusa de falar nisso- aconselhou o capitão Andover.-Se alguma vez tiver de depor em tribunal, não diga que estava nervosa, pois o advogado contrário é capaz de se agarrar a isso e embaralhar as coisas de maneira a parecer que estava histérica e não pode, portanto, saber do que fala.

         -Mas eu não estava histérica! Abalada e preocupada, sim, mas...

         -Não sabe mais nada acerca do tal carro, a não ser que era grande?

         -Não.

         - E raspou, de lado, pelo seu carro?

         - Sim.

         O capitão Andover interveio:

         - Colhemos a tinta que ficou retida no guarda-lamas e procedemos a um exame microscópico e espectroscópico. Proveio de um Buick de último modelo.

         -O carro de Holgate era um Buick do último modelo-   declarei.

         Sellers semicerrou os olhos e perguntou a Mrs. Troy:

         - Não notou nada no carro susceptível de constituir uma pista? Pense bem. Havia alguma coisa particular, que ajude a identificá-lo?

         - Não me lembro de nada. Mas vi bem o motorista. Sellers endireitou-se, interessado.

         -Viu-o bem?

         - Sim.

         - Que sabe dizer a seu respeito?

         -Parecia ...bem, era um homem forte, com um daqueles chapéus do Oeste, lembro-me de que tinha bigode, cortado curto, e usava um daqueles trajes de tecido grosso, estriado... devem saber, aquele tecido usado por alguns polícias, cow-boys, agentes florestais e pessoas que vivem muito ao ar livre.

         Sellers e Andover entreolharam-se.

         -Acha que o reconheceria, se visse uma fotografia sua?-perguntou o sargento.

         - Não sei. É dificílimo identificar pessoas por fotografias. Se o visse de perfil, talvez...

         -Se visse o indivíduo identificá-lo-ia?

         -Creio que sim. O seu aspecto ficou gravado na minha memória.

         -Talvez lhe causemos um choque, Mrs. Troy, mas gostávamos que visse um homem que... bem, para ser franco, está na morgue. É natural que lhe cause abalo, mas interessaria muito à Justiça se o visse.

         -As pessoas mortas não me abalam. Vê-lo-ei. Sellers tirou uma fotografia da algibeira e acrescentou:

         -Vou-lhe mostrar a fotografia do perfil de um homem, mas recomendo-lhe que não se deixe influenciar por ela. Se o identificar, muito bem; se não identificar, não desejo que olhe depois para o morto e pense que é o motorista, só por ter visto esta fotografia.

         -Compreendo.

         Sellers estendeu-lhe a fotografia.

         -Bem... sim, creio que é ele. Parece ele. Sellers guardou o retrato e disse:

         -Se não se importa, terá de nos acompanhar à morgue, Mrs. Troy. A distância é curta. Levamo-la e depois mandamos um polícia trazê-la.

         -Não tem importância. Quando desejam que vá?

         -Agora mesmo... isto é, o mais depressa que puder...

         -Tenho o frango no espeto e...

         -Não pode pedir a uma vizinha que tome conta dele?-Sugeriu o sargento.                .....

         -Bem, se é assim tão importante.;. Tiro-o do fogo; não prejudicará muito o sabor. Acabarei de o cozinhar quando voltar. Não nos demoraremos muito; pois não?

         -Não.

         -Esperem só um minuto.

         Mrs. Troy foi à cozinha e Sellers e Andover entreolharam-se.                                

         - Ficaria encantado se o assunto ficasse resolvido -confessou Andover.

         Sellers olhou para mim e disse:

         -Sempre me saiu um filho da mãe cheio de sorte!

         Se conseguir esquivar-se desta, não há dúvida de que nasceu bafejado pela fortuna.

         -Não pretendo esquivar-me de nada-afirmei.- Estou apenas a dar-lhe fatos, mais nada.

         -Está a dar-me fatos! - exclamou Sellers, a abanar a cabeça.-Mesmo que quisesse, não seria capaz de dizer mais nada que fosse tão característico da sua personalidade como isso! Está a dar-nos fatos!

         Seguimos para a morgue. Os dois polícias no banco da frente, eu e Mr. Troy no da retaguarda.

         -Qual é o seu interesse nisto, Mr. Lam?-perguntou-me a viúva.

         -Lam é detetive- respondeu-lhe Sellers, por cima do ombro. - Embora aprecie tudo quanto a senhora está a fazer a favor da justiça, não deseja discutir o que pensa.

         -Compreendo, compreendo. Perguntei apenas por delicadeza.

         -A senhora sabe como as coisas são, neste meio... Temos de nos calar, de guardar segredo.

         -Compreendo-repetiu Mrs. Troy.-Não precisa de me dar explicações.

         Não fez mais perguntas. Quando chegamos à morgue Sellers disse:

         -Você espera aqui no carro, meia leca. Passamos bem sem a sua ajuda.

         Voltaram quinze minutos depois. Sellers abanava a cabeça.

         - Que sucedeu? - perguntei-lhe.

         - Que sucedeu? Você sabe o que sucedeu. Ela fez uma identificação. Não se pode dizer que fosse cem por cento positiva, mas foi uma identificação. Olhou para o bigode, de lado, e declarou que sabia ser o homem, por causa do bigode... Claro que um advogado argumentaria que ela não identificou o homem e, sim, o bigode... Mrs. Troy diz que o homem estava bêbado, tinha os olhos empapuçados, de pálpebras pesadas, e ia meio caído sobre o volante. Mesmo assim, viu-lhe a cara e lembra-se do bigode. Aqui entre nós, meia leca, não seria a primeira vez que um maldito bigode era culpado de um erro de identificação... No entanto, o fato é que Mrs. Troy o identificou... positivamente.

         -Vamos levá-la á casa?

         -Não. Quem a vai levar é um policial. Desde já o aviso que se o apanho a tentar falar com ela ou a influenciar a sua opinião seja de que maneira for, prego consigo numa cela onde não saberá quando é de dia nem quando é de noite e onde viverá a pão e água durante trinta dias. Estou tão farto de o ver imiscuir-se nos meus assuntos e armar-se em espertalhão, que só eu sei o esforço que tenho de fazer para não lhe pôr as mãos em cima! Nós, polícias, trabalhamos metódicamente, resolvemos os nossos problemas mercê de bom, duro e intensivo esforço, mas você aparece em cena e, por artes de berliques e berloques, tira um coelho do chapéu.

         - Presumo que vamos,agora, visitar Vivian Deshler?

         - Que gênio! - exclamou o sargento, sarcástico. - Quem se lembraria de semelhante coisa, hem? Puro gênio, Lam! Temos duas pessoas que declaram ter havido um acidente de trânsito, mas você aparece com a brilhante idéia de que tal acidente jamais se verificou e foi tudo um pretexto para encobrir um atropelamento e fuga. Para cúmulo, aparece uma testemunha que parece dar-lhe razão. Mas eis que, depois, você adivinha ou deduz que vamos falar com a outra pessoa implicada no acidente... Inteligentíssimo, hem?

         -Escusa de ser tão sarcástico - repliquei. - Como Mrs. Troy disse, tentava apenas ser delicado.

         -Não precisa de se incomodar-replicou Sellers, e mordeu o espapaçado charuto.

         -Já reparei que não perturba nada o seu estilo.

         -O quê?

         -Tentar ser delicado.

         -Oh, pois não! Vamos visitar Vivian Deshler, meia-leca, antes que algum filho da mãe lhe passe a palavra e ela resolva calar o bico ou consultar um advogado.

         Vivian Deshler abriu uma greta da porta, ao ouvir-nos tocar, espreitou e viu Frank Sellers.

         -Oh, Sargento, como está? Meu Deus, estava a vestir-me e... Ah, o Donald também vem! Está tudo esclarecido?

         - Gostávamos de entrar e de conversar um momento consigo-disse Sellers.

         -Lamento, mas não estou apresentável. Estava... estava a vestir-me.

         -Não tem um roupão? - perguntou-lhe o sargento.

         - É o que tenho vestido.

         -Então porque espera? Abra a porta. Não nos demoramos.

         -Não estou apresentável.

         - Não vimos julgar nenhum concurso de beleza - resmungou Sellers.-Tentamos esclarecer um homicídio.

         Vivian fingiu-se amuada e replicou:

         - Gosto de parecer o melhor possível quando recebo a visita de homens bem-parecidos, mas... Enfim, entrem.

         Abriu a porta e entramos. Sellers apontou com o charuto apagado para uma cadeira e disse-lhe:

         - Sente-se. Não nos demoramos nada. Vivian sentou-se e o roupão deslizou docemente ao

         longo de uma perna nua. Com um gestozinho felino, a garota agarrou no tecido e cobriu-se.

         -Está a ver o que queria dizer?-perguntou.

         -O quê?-indagou o sargento, admirado.

         -Acerca de não estar vestida...

         - Não percebo.

         Vivian começou a dizer qualquer coisa, mas olhou para mim e sorriu.

         - O Donald percebeu - afirmou.

         -Está bem, deixemo-nos de palavras cruzadas. Quero que me fale no acidente de automóvel.

         -Outra vez? Já contei a história tantas vezes!

         -Que horas eram?-prosseguiu Sellers.

         - Não tenho a certeza absoluta acerca das horas - respondeu, de olhos baixos, a brincar com os dedos. - Foi de tarde e deviam ser... enfim, no sei! Tenho tentado recordar-me do que aconteceu nesse dia, mas não consigo acertar com a hora. Compreende, Sargento, fiquei muito abalada, embora não avaliasse bem a gravidade do que me acontecera. Segui para o meu apartamento, mas creio que desmaiei, no caminho. Quando dei por mim estava em casa e... bem, comecei a compreender que estava abalada e que sofrera qualquer coisa, mas não pensei que fosse tão grave. Julguei que era apenas nervoso e... Enfim, tenho lido coisas acerca de desmaios e reações a abalos emocionais, e pensei que era isso que me apoquentava.

         -Já que assim o quer, vou fazer-lhe a pergunta sem rodeios - disse Sellers. - Houve algum acidente de automóvel?

         -Se houve um acidente de automóvel? Mas... que quer dizer? Claro que sim!

         - O que quero saber é apenas isto: Holgate chocou com a retaguarda do seu carro ou trata-se apenas de uma capa?

         -De uma capa?

         -Há provas de que Holgate esteve implicado num atropelamento com fuga e ficou com a frente do carro amassada, que você e ele engendraram uma história que lhe permitiria justificar a amassadela do carro e a si apresentar uma reclamação à companhia de seguros, a pedir...

         - De que demônio está a falar? O acidente deu-se exatamente como eu descrevi! Não me passaria pela cabeça defraudar uma companhia de seguros, e só vi Mr. Holgate, pela primeira vez, quando ele chocou com a retaguarda do meu carro e trocamos nomes e endereços, pelas licenças de condução.

         Sellers olhou-me, pensativo.

         -Quer fazer alguma pergunta, meia-leca?

         -Quem preparou a reclamação que apresentou à companhia de seguros, Miss Deshler?

         Olhou-me de alto a baixo e a sua atitude modificou-se imediatamente.

         -Isso não tem nada a ver com o acidente. Em resumo: não é da sua conta, Mr. Lam.

         -Far-lhe-ei outra pergunta- redargui.-Já alguma vez sofrera um acidente de trânsito?

         -Sou obrigada a tolerar este gênero de interrogatório? - perguntou Vivian ao sargento. - No fim de contas, os senhores pretendem resolver um homicídio. Que diferença pode fazer que eu tenha sofrido mil acidentes de trânsito?

         - Ele limitou-se a perguntar.

         -E eu limito-me a responder que não tem nada com isso! E agora, cavalheiros, tenho mais que fazer do que passar aqui a tarde toda, em trajes menores, a dizer tolices. Preciso de me vestir, pois vou sair, esta noite. Tive um dia muito difícil e quando saio gosto de ir o melhor possível.

         - Não estamos a fazer acusações de espécie nenhuma- redarguiu-lhe o sargento-, mas a senhora sabe que as coisas podiam ficar muito feias se começasse a complicar-nos a vida num caso de assassinato. Responda-me ao seguinte: encarregou uma agência de detetives de fazer alguma coisa?

         - Meu Deus, não!

         - Nem de vigiar Lamont Hawley, agente da « Consolidated Interinsurance Company »?

         -Já lhe disse que não! Não, não e não! Dez mil vezes não! Não contratei nenhuma agência de detetives. Agora façam o favor de sair.

         O telefone tocou.

         Vivian levantou-se e foi atender, sem se preocupar com o roupão, que se abriu e revelou que estava apenas de calcinhas e soutien.

         Sellers olhou-a de alto a baixo, virou-se para mim e inquiriu;

         -Quer experimentar e continuar com o interrogatório?

         -Com certeza! Você ainda nem aflorou o assunto. Que esperava? Que ela se fosse abaixo e lhe dissesse logo às primeiras que sim, que inventara tudo, a fim de defraudar a companhia de seguros, e depois a historia descambara em assassinato? Costuma obter confissões com essa facilidade toda?

         - Há qualquer coisa em tudo isto que não me soa bem... Não me agrada. Tenho a sensação de patinar em gelo fino.

         -O telefonema é para si Sargento- disse Vivian. - É um tal capitão Andover, da Secção de Trânsito, e diz que precisa de lhe falar imediatamente, acerca de um assunto importantíssimo.

         Sellers pegou no fone, passou o charuto para o outro canto da boca e disse:

         - Fala Sellers... Dispare! E após um momento:

         -Oh, diabo!

         Calou-se de novo, à escuta.

         Vivian Deshler começou a olhar-me, a medir-me, e esboçou um sorriso.

         - Espero que saia de apuros, Donald. Mudou de posição e o roupão voltou a deslizar-lhe pela perna nua. Puxou-o, devagar, e acrescentou:

         - Acredite que o lamento e compreendo. Se houver alguma coisa que possa fazer... legalmente... O sargento desligou e disse-me:

         -Toca a andar, meia-leca!

         -Gostava de acabar...

         -A caminho!

         O sargento virou-se para Vivian e acrescentou:

         - Lamento o incômodo que lhe causamos Miss Deshler, mas o assunto era importante e tive de averiguar. Como calcula, temos de andar sempre a correr e a...

         - Não tem importância, sargento. Foi um prazer. Se voltarem noutra ocasião em que não me apanhem desprevenida, oferecer-lhes-ei uma bebida.

         -Quero fazer mais umas perguntas e...-insisti, mas o sargento agarrou-me num braço e arrastou-me, literalmente, para fora do apartamento.

         Vivian sorriu, a despedir-se, e fechou a porta.

         -Você e as suas teorias!-resmungou Sellers.

         - Que temos agora?

         -Eu bem lhe disse os sarilhos que os bigodes podem arranjar! Palavra que se usasse bigode havia de o rapar antes mesmo de entrar no automóvel! Se fosse preciso, cortava-o com o canivete!

         - Mas, afinal, que temos agora?

         - Erro de identificação.

         - Quem?

         - Mrs. Troy.

         -Explique-se, sim?

         - Lembra-se de o Andover dizer que andava a trabalhar numa pista que lhe parecia importante? Não que ria arriscar-se a estragar tudo, com um procedimento prematuro, mas depois da identificação feita por Mrs. Troy achou que não perderia nada se tirasse as coisas a limpo. Sabe qual foi o resultado?

         - Não sei nada! - respondi, irritado.

         -Para sua informação, meia-leca, o automóvel que matou as duas pessoas não era conduzido por Cárter Holgate. Era, de fato, um grande Buick, muito recente, mas quem o guiava era um tipo chamado Swanton, que vinha muito toldado de um cocktail party. Como o carro não ficou muito danificado, pensou que se safaria e calou a boca. Quando Mrs. Troy identificou o Holgate, Andover achou melhor ir falar com o tipo e pôr as cartas na mesa.

         -Que e sucedeu?

         -Que sucedeu? O tipo foi logo às lonas! A consciência andava a roê-lo, e assim que Andover atirou o barro à parede ele despejou o saco, começou a torcer as mãos e a dizer que lamentava muito, a lamentar-se do mal que isto ia causar à família, a confessar que não sabia como fizera semelhante coisa, contrária à sua natureza, que nunca imaginara que estivesse tão bêbedo, etc.

         - Existe alguma semelhança entre ele e o Holgate?

         -Uma semelhança extraordinária! São ambos alentados, usam ambos bigode e este tipo gosta de chapéus à texano e de fatos como Mrs. Troy descreveu. A sua historia foi-se ao ar, como vê. Se vocês jovens gênios, se metessem no raio da sua vida e nos deixassem a nós, representantes da autoridade, governar o barco da Polícia de acordo com as teorias aceitas de investigação sistemática, poupariam muitos aborrecimentos. Talvez até, com o correr do tempo, eu aprendesse a dominar o sentimento de irritação que me domina todas as vezes que você se mete onde não é chamado e vem com uma das suas idéias. Vamos para a esquadra.

         - Posso fazer mais uma sugestão?

         -Não!-berrou.-Não estou para o ouvir mais, nem às suas teorias. Você é um suspeito importante, num caso de homicídio, e vou levá-lo para a esquadra. Se o ajudante do promotor de Justiça estiver de acordo, fica à sombra e nada o tirará de lá.

         -Não sei que influência exercem em si os tipos da « Ace », mas gostaria de descobrir. Que lhe dão eles? Uma caixa de charutos, no Natal?

         -De que diabo está a falar?

         -A « Ace High Detective Agency » também andou metida nisto e você não a molesta. Se fosse a Cool & Lam, não nos deixaria em paz e..

         - Deixe-se disso! Tem a mania da perseguição, homem!

         -Talvez. Mas uma coisa é certa: a «Ace» andou a investigar o Holgate e, provavelmente, o acidente. Sabe Deus o que terão descoberto! Não espera que peguem no telefone, por sua própria iniciativa, e lho digam, pois não? Continue a ser amiguinho deles, mas da próxima vez que quiser informações nossas...

         Sellers mastigou o charuto, furiosamente, e depois perguntou-me:

         -Ouça, seu meia-leca, já alguma vez lhe passou pela cabeça que não haverá uma próxima vez? Será pronunciado por assassinato nas próximas quarenta e oito horas e passará um mau bocado a tentar sacudir a água do capote. Admito que existem neste caso algumas coisas que não parecem certas, mas será tudo esclarecido a tempo e horas. Pessoalmente, não creio que você tenha matado o Holgate, mas a verdade é que meteu tanto o nariz onde não era chamado e se comprometeu de tal maneira que vai ser muito, muito difícil, se não impossível, convencer o júri de que é um doce cordeirinho inocente.

          Sellers calou-se, mas passado um minuto sorriu-me e acrescentou:

         -O trocadilho não saiu nada mal, pois não?

         -Saiu muito bem. Não se esqueça, porém, de que lhe disse que a Ace » andou a investigar o Holgate e o acidente e o senhor não fez caso.

         -Que quer você dizer com isso?

         -Avisei-o. Quando me defender, tirarei todo o partido desse pormenor. Nada me deterá.

         -Por outras palavras, tentará tirar proveito do fato de eu não... Muito bem, vamos lá! Quem paga a gasolina é a cidade. Se quer dar um passeio até à « Ace », daremos um passeio até à « Ace »... e depois não terá nada de que se queixar.

         Recostei-me no banco do carro e repliquei:

         -Só quero ver a sua meiguice com algumas das outras agências.

         - Verá - respondeu, taciturno.

         Morley Patton, gerente da Ace High Detective Agency », olhou-nos com uma expressão que estava longe de ser cordial.

         - É um assunto oficial - declarou Sellers.

         -E, por isso, o senhor trouxe um dos meus concorrentes, para ouvir a conversa?-redargui-lhe Patton.

         -Não seja assim, homem! Quem governa o barco sou eu, mas tenho de trazer o Lam comigo porque há certas coisas de que ele está ao corrente.

         - E provavelmente quer saber muitas outras - resmungou Patton.

         - Vamos ao que interessa - cortou o sargento. - Como explica terem seguido o Donald Lam?

         - Não creio que sejamos obrigados a discutir esse assunto, nem tampouco admito que tenhamos seguido o Lam.

         -Digamos antes, Patton, que vocês vigiavam uma tal Doris Ashley, residente no « Edifício Miramar », em Colinda, e quando eu entrei em cena e me relacionei com ela me vigiaram também sugeri.

         -O que deve ficar desde já esclarecido é que não tenho de responder às suas perguntas.

         -Mas terá de responder às minhas- declarou Sellers, irritado.-Vigiavam ou não Doris Ashley?

         -Depende do que queira significar por...

         - Sabe muito bem o que quero significar. Responda sim ou não, e depressinha.

         -Sim.

         -Vigiavam o carro dela, nas imediações do « Mira mar »?-indaguei.

         - Está a falar para o meu ouvido surdo - respondeu Patton

         -Vigiavam? Quem faz agora a pergunta sou eu, e falo para o outro ouvido.

         -Sim.

         -Quem era o seu cliente?

         - Não temos de lhe responder a isso.

         -Creio que têm...

         - Eu não.

         - Para sua informação, o caso relaciona-se com um homicídio.

         - Homicídio! - repetiu Patton, surpreendido.

         -Ouviu-me bem.

         -Quem foi assassinado?

         -Cárter Holgate. Sabe alguma coisa a seu respeito?

         -Ele... enfim, está relacionado com o assunto, de um modo geral - respondeu Patton, a escolher cautelosamente as palavras e com uma expressão apreensiva.

         - Creio que a identidade do vosso cliente terá qualquer relação com a nossa investigação- disse Sellers. -Quero, pois, saber quem os contratou.

         - Um momento, deixe-me consultar a ficha. Foi a um fichário, tirou uma pasta, abriu-a, consultou alguns papéis, guardou a pasta e ficou parado, de testa franzida.

         -Estamos à espera-lembrou-lhe Sellers.-Para sua informação, esclareço-o de que a Polícia espera um pouco mais de cooperação ativa de uma agência particular de investigação, quando surge um caso de assassinato.

         -A« Cool & Lam » dá-lhe alguma cooperação?

         -Toda quanta peço-respondeu Sellers, e acrescentou, a sorrir: - Mais, até.

         -Só lhe posso dizer que o nosso cliente era apenas um número de telefone de Salt Lake City. Mandavam-nos o dinheiro para pagamento dos nossos serviços e despesas e recomendavam-nos que comunicássemos tudo quanto acontecesse, com toda a rapidez, a quem quer que atendesse o referido telefone.

         - E não investigaram a quem pertencia o número?

         -Investigamos, evidentemente. Não somos assim tão ingênuos. Era o número do telefone de um apartamento de hotel alugado a um homem chamado Oscar Bowman. O indivíduo pagara um mês de renda adiantado. Umas vezes era uma voz masculina que nos atendia, quando telefonávamos a pedir instruções, outras uma voz feminina. Vigiamos Doris Ashley durante cerca de uma semana, isto é, vigiamos o seu apartamento, ou melhor, o seu carro, arrumado nas imediações do apartamento. Quando ela saía ou entrava, registravamos as horas de partida ou chegada. Comunicamos o aparecimento de Lam, e quando ele acompanhou a rapariga ao apartamento informamos o cliente e recebemos ordem para abandonar a vigilância, mandar um relatório pelo correio e encerrar as nossas atividades.

         - Enviaram o relatório para o apartamento de Salt Lake?-indagou Sellers.

         - Não. Enviamo-lo para Oscar Bowman, Posta Restante, Colinda.

         - Diabo! E os vossos honorários?

         - Recebêramos um sinal, em dinheiro enviado pelo correio, num sobrescrito. Ainda há um saldo a favor do cliente, mas recebemos instruções para considerar a conta saldada.

         - Por outras palavras, quando Lam entrou em cena, os pássaros assustaram-se e levantaram vôo?

         -Não sei. Apenas tenho conhecimento do que lhe disse.

         - Quem lhes mandou encerrar o caso, quando telefonaram? Foi uma mulher ou um homem que falou?

         - Uma mulher. Lembro-me perfeitamente.

         -Num assunto desta natureza, sargento, eles protegeram-se, com certeza- disse a Sellers.

         -Que quer dizer?

         -Quem telefonou disse à mulher que aguardasse um momento e ligou um gravador, a fim de registrar a conversa. Devem ter a gravação em qualquer lado.

         Sellers olhou para Patton, e este disse-me:

         -Vá-se matar!

         -Irá, um dia- declarou o sargento.-Neste momento, porém, estou interessado em saber se têm uma gravação da conversa.

         - Temos.

         -Vamos ouvi-la.

         -O senhor pode ouvi-la, se insistir, mas Lam não a ouvirá. Nada nos obriga a revelar as nossas gravações a um indivíduo de uma agência concorrente, sobretudo quando esse indivíduo está implicado no caso e...

         -Tem razão, eu vou insistir-interrompeu-o Sellers.-E começo a pensar um bocadinho, por minha conta... Donald, ponha-se a andar. Sei onde o poderei encontrar, se precisar de si. Recomendo-lhe que não tente nenhum esperteza nem saia da cidade.

         - Quer dizer que ele é suspeito? - perguntou Patton, encantado.

         -Exatamente. E é muito possível que, antes de sair do seu escritório, o nosso meia-leca esteja mais implicado do que nunca no assassinato.

         Patton transformou-se na cordialidade em pessoa.

         - Faça favor de me acompanhar, sargento. A conversa foi toda gravada. Telefonamos a comunicar o aparecimento de Donald Lam e recebemos ordem para interromper a vigilância, encerrar o caso, enviar um relatório final a Oscar Bowman, Posta Restante, Colinda, e considerar a conta saldada, fosse qual fosse o crédito... Tudo isto está gravado.

         Sellers tirou o charuto da boca e ordenou-me:

         -Suma-se, meia-leca. Comunicarei consigo quando precisar de si, o que talvez seja muito em breve. Se tem algum assunto a tratar, aconselho-o a despachar-se.

         Meti-me num táxi, mandei seguir para o escritório de « Coo & Lam », subi no elevador, entrei na recepção, acenei com a cabeça à telefonista e disse-lhe:

         -Não diga, por enquanto, à Bertha que cheguei. Quero...

         -Mas ela recomendou que a avisasse assim que chegasse, Mr. Lam. Disse que queria falar imediatamente consigo.

         -Está bem, diga-lhe que vou a caminho. Transpus a porta em cujo vidro se lia « B. COOL PARTICULAR ». A minha sócia acabava de desligar o telefone.

         - Então, Donald, que aconteceu?

         -Arrancaram-me o tapete debaixo dos pés. O chão abateu.

         -Que sucedeu à sua teoria?

         -Esfumou-se. Foi bonita enquanto durou, mas depois...

         -Não presta?

         -Para nada.

         - Em que situação isso o deixa?

         - Numa situação muito crítica.

         -Que está o Sellers a fazer?

         -A ouvir muitas coisas na « Ace High Detective Agency ».

         - A ouvir ou a ver?

         -Ambas as coisas. Ficou a ouvir as gravações de umas conversas telefônicas. Quem quer que os contratou assustou-se assim que percebeu estar outra agência de investigação em campo, e mandou encerrar o assunto.

         - Porquê?

         - É isso que tenho de descobrir.

         -Não há dúvida de que pode limpar as mãos à parede, com o que já descobriu! Engendrou uma hipótese, tentou impingi-la ao Sellers mas a hipótese falhou e ficou numa situação crítica. Se tivesse metido a viola no saco e dito apenas que competia à Polícia provar as acusações que lhe faziam, não estaria em tão maus lençóis. Como diabo se convenceram de que você conseguiu pegar no corpo de Holgate e metê-lo na mala do carro da agência?

         -Pensam que talvez tenha tido um cúmplice. Essas coisas às vezes acontecem...

         - Balelas! Teria de ser um cúmplice forte como um boi e... Quem diabo se interessaria tanto pelo caso ao ponto de se comprometer num assassinato consigo?

         Mergulhei os olhos nos dela e respondi:

         -Você.

         -Eu?-gritou Bertha.

         - Você.

         - De que diabo está a falar?

         - Estou a falar do que a Polícia pode pensar. Depois de engendrarem uma acusação contra mim e de procurarem um cúmplice capaz de me ajudar num assassinato, alguém suficientemente interessado para não recuar diante de tal extremo, começarão a pensar em si.

 

         -Estou frita!-explodiu Bertha.

         -Talvez a fritem, talvez...

         -Como sabe se essa tal Mrs. Troy não mentiu? Pode...

         - Mentiu. Já encontraram o tipo que matou as duas pessoas, na paragem do autocarro. Não foi o Holgate. Mrs. Troy fez uma identificação errada; em vez de identificar um homem identificou um bigode e algum vestuário característico do Oeste.

         Os diamantes de Bertha cintilavam, enquanto ela tamborilava com os dedos sapudos no tampo da secretária,

         - Que raio de caso nos havia de calhar pela porta! Não pude deixar de sorrir.

         - Este foi você que o escolheu, lembra-se? Queria um trabalho bonito, respeitável, estava farta dos casos espetaculares e perigosos, em que eu escapava por um triz...

         -Onde está o Sellers?

         -Na « Ace».

         -Vá para o seu gabinete e deixe-me falar com o sargento. Se me vem para aí falar em teorias, arranco-lhe as orelhas rentes!

         -Lembre-se de que podem usar contra si o que disser...

         Olhei para trás, antes de sair, e vi-a de boca aberta, mas tão furiosa que nem conseguia falar.

         Elsie Brand esperava-me, no meu gabinete.

         -Deu resultado, Donald?-perguntou-me, ansiosa mente.

         -Não-respondi, desconsolado.-Mas, com os diabos, podia ter dado! Parecia que se ajustava tudo tão bem..

         -Porque terá falhado? Pensava...

         - Falhou porque um tipo chamado Swanton tinha a consciência pesada e assim que a Polícia lhe apontou um dedo desabafou. Confessou tudo.

         -O assassinato?

         -Não. A história do atropelamento e fuga. Podes tirar o caso do livro; já está resolvido.

         -Oh, Donald, tenho tanta pena! Estava quase a chorar, pobre pequena.

         -Não te preocupes, Elsie, Enquanto há vida, há esperança, e o melhor é começar a pensar de modo construtivo.

         -Posso ajudar?-perguntou, e a sua voz dizia-me que queria ajudar, que desejava desesperadamente ajudar-me.

         -Não sei.

         - Perguntaste-me pelos acidentes de atropelamento e fuga na tarde do dia 13 de Agosto, e assim que te falei naquele, no da paragem do autocarro, agarraste-te a ele, mas na realidade houve dois e...

         Olhei-a, um instante, e depois arranquei-a da cadeira, envolvi-a nos braços e comecei a dançar pelo gabinete.

         -Donald! Que estás a fazer?

         -Queridinha, amo-te! Eu...

         -Oh, Donald!

         - Por que diabo não pegaste na cadeira e não me deste com ela na cabeça quando me viste cometer semelhante tolice?

         -Que tolice?

         -Aceitar um caso e não perguntar se havia mais. Depressa, Elsie, de que trata o outro?

         -Quem escreveu a notícia fê-lo em forma de anedota. Não tem grande importância, mas o motorista transgressor fugiu e...

         -Onde está, onde está? - Depressa, Elsie, depressa!

         -A vítima foi, nem mais, nem menos, o chefe da Polícia de Colinda! Alguém lhe roçou pelo carro, O atirou para a valeta e seguiu o seu caminho.

         -O chefe da Polícia de Colinda? Que interessante! Como se chama?

         -Deixa ver... É um nome cômico, para um polícia. Parece mais apropriado para um ator de cinema. É... espera... é Montague A. Dale! O carro atingido não foi o seu carro particular, mas, sim, o da Polícia, o que a corporação entrega ao chefe... Parece que aconteceu tudo tão depressa que Dale só teve tempo de ver que se tratava de um carro grande. Parece-me que disse julgar tratar-se de um Buick. Mas não viu o número da matrícula e isso deu origem a certos sarcasmos...

         -Querida, não contes mais! Isso aconteceu no dia 13?

         -Aconteceu.

         -A que horas?

         -As cinco e meia da tarde. Puxei-a para mim e beijei-a.

         - És uma querida, Elsie, salvaste-me! És a pequena mais doce que jamais inventaram! És uma combinação de melaço, açúcar, sacarina e mel! Se alguém perguntar por mim, diz-lhe que vá para o Inferno.

         Saí do gabinete, como se levasse o Diabo atrás de mim.

         Encontrei Montague Dal precisamente quando ele saía do escritório, ao fim do dia. Como se compreende, não se mostrou muito bem-disposto.

         -Tem de ser breve, Lam -disse-me, quando lhe entreguei o meu cartão.-Já estou atrasado. Estive a trabalhar naquele caso do Holgate e a minha mulher convidou uns amigos para Jantar... Estou atrasado, e você sabe o que acontece quando um homem chega atrasado a essas coisa... Além disso, do gabinete do xerife e da Polícia de Los Angeles comunicaram-me que você estava muito implicado nessa história. Considero, portanto, meu dever adverti-lo de que tudo quanto disser pode ser utilizado contra si. Pessoalmente, porém, não tenho qualquer má vontade a seu respeito. Graças a Deus o crime está fora da minha jurisdição e nas mãos do xerife e da Polícia Metropolitana de Los Angeles, em virtude das condições em que o corpo foi encontrado. Aparentemente, ninguém sabe onde mataram o tipo. Mas diga-me o que pretende.

         - Não creio que tenha nada que ver com o assassinato de Holgate, pelo menos diretamente.

         - De que se trata?

         -Há uns meses, o seu carro levou um « encosto » que o atirou para a valeta ...

         Dale ficou, de súbito, escarlate.

         -Ouça, Lam, já discuti tudo quanto tinha a discutir a esse respeito, e não há necessidade de tentar espicaçar-me...

         -Suponho que talvez o possa ajudar a resolver esse enigma.

         Fitou-me, muito sério, e perguntou:

         - Julga que pode encontrar o autor da proeza?

         -Julgo que o senhor o pode encontrar. Eu posso dar-lhe uma pista.

         O seu rosto tornou-se mais calmo. Dale levantou o fone, marcou um número e disse:

         -Querida, surgiu uma emergência... Sim, sim, bem sei... Jantem; eu talvez chegue um pouco atrasado... Está bom, querida, isto é assim mesmo.

         Desligou, apontou uma cadeira e disse-me:

         -Sente-se, Lam, esteja à vontade. Agora conte-me tudo.

         -Porei as cartas na mesa, chefe.

         -É essa a melhor maneira de proceder. Não hesite.

         -Julgo fazer uma idéia do que aconteceu no dia 13 de Agosto. Tentei levar a Polícia de Los Angeles a testá-la e o sargento Sellers investigou-a comigo. Ao princípio, julgamos que acertáramos em cheio, mas depois a coisa rebentou-nos na cara e ele correu comigo e não quis saber da idéia para nada.

         -Se a coisa lhe rebentou na cara, como diz, não o pode censurar.

         -Só uma fase é que falhou. Escolhemos o lado errado dai estrada...

         -E qual é o certo?

         -O senhor.

         -Não fale por enigmas, Lam. Disse que poria as cartas na mesa.

         -Muito bem. O Holgate teve um acidente com o automóvel, no dia 13 de Agosto. Informou a companhia de seguros de que colidira com a retaguarda de um automóvel conduzido por Vivian Deshler, residente no « Edifício Miramar », e que se considerava culpado do acidente. A frente do seu automóvel ficou amassada, mas não tanto que o impedisse de andar, e os danos causados no carro de Vivian Deshler foram ligeiros.

         -Continue-pediu o chefe Dale, de olhos semicerrados.

         -Vivian Deshler afirmou que sofrera a chamada « chicotada » e apresentou reclamação na companhia de seguros. Pela maneira como a reclamação foi apresentada, a companhia seguradora desconfiou da existência de mão profissional, nos bastidores...

         -Um advogado sabido?

         -Talvez.

         -Continue, Lam.

         -O singular é que não apareceram testemunhas do acidente e que a frente do carro de Holgate ficou muito amassada, enquanto a retaguarda do de Vivian Deshler, um carro ligeiro e que, portanto, devia apresentar maiores danos, pouco sofreu. Mas outros pormenores começaram a parecer peculiares. Depois vim a saber que às quatro e meia da tarde do dia 13 o automóvel de Holgate parecia estar incólume, embora se dissesse que o acidente ocorrera às três e meia... Creio não haver dúvida de que o automóvel de Vivian Deshler foi danificado às três e meia da tarde, pois Doris Ashley, uma amiga dela. viu o carro mais ou menos a essa hora e reparou que a retaguarda estava amassada, embora pouco...

         - Prossiga, Lam.

         - Nos registros da Polícia só no dia seguinte entrou o relatório de um acidente ocorrido na véspera, no ponto de Colinda em causa. Dadas as circunstâncias, pensei que talvez o Holgate estivesse implicado nalgum acidente verificado ao fim da tarde, que tivesse fugido e não soubesse que fazer. Talvez tivesse dito à sua amiga, Vivian Deshler, o que se passava, e ela lhe respondesse: «Imagina que o meu carro levou um encosto, esta tarde. Porque não dizes que as avarias do teu são provenientes do choque com o meu e não apresentas um relatório nesse sentido? Assim poderias pôr o carro na oficina, sem preocupações, e comunicar o ocorrido à companhia de seguros. Mandariam um avaliador examinar o teu automóvel, depois iriam falar comigo e eu contaria a minha história. Justificarias, deste modo, a amassadela do carro e ficarias ilibado de teres chocado com esse outro carro e fugido.”

         O chefe sorriu e perguntou-me:

         - Tem alguma coisa em que baseie a sua dedução?

         - Creio que podemos arranjar provas. Se às quatro e meia da tarde o carro do Holgate não estava amassado e se o carro de Vivian Deshler estava amolgado às três e meia, é evidente que o relatório do acidente não corresponde aos fatos.

         - Assassinariam o Holgate por causa disso?

         -Não sei. Não creio que Holgate imaginasse que a sua amiga, Vivian Deshler, exigisse uma grande indenização à companhia de seguros, com o pretexto de que sofrera a chamada « chicotada ». Suponho que, no momento em que teve conhecimento disso, Holgate compreendeu que estava implicado num conluio criminoso, na tentativa de obtenção de dinheiro com falsos pretextos, que podia ir parar à prisão  que fora pior a emenda que o soneto. Talvez começasse a ter medo e quisesse desistir. Na minha opinião, quando percebeu que a companhia de seguros não estava convencida com a explicação que dera, acerca do modo como ocorrera o acidente, ficou apreensivo. Ora como uma corrente nunca é mais forte do que o seu elo mais fraco, as pessoas conluiadas com ele...

         -Quer dizer que Vivian Deshler o assassinou, para o impedir de falar?

         - Não sei quem o assassinou. O assassínio pode não ter relação nenhuma com o acidente... mas também pode estar tudo relacionado. O que me interessa, a mim, é unir pontas soltas, e ao senhor resolver o enigma do choque e fuga de que foi vítima.

         -O que me interessa? Essa maldita ocorrência ainda me pode custar o emprego, se não a esclareço!

         - Importa-se de me contar como as coisas se passaram? - perguntei.

         - De modo nenhum. Ia para casa, de carro, quando reparei no automóvel que se aproximava, pela retaguarda. Não me agradou o modo como o conduziam, mais não pensei que o motorista estivesse embriagado. Julguei apenas que era temerário. Afastei-me para a margem da estrada e quando o tipo se aproximou estendi o braço, a mandá-lo parar. Tencionava dar-lhe uma vista de olhos à carta, meter-lhe um susto e aplicar-lhe, talvez, uma multa. Em vez de obedecer ao meu sinal, o indivíduo guinou precisamente na minha direção, chocou com o lado esquerdo da retaguarda do meu carro, empurrou-o para a valeta e escapou-se. O empurrão para fora da estrada foi tão grande que me virou. Durante segundos vime aflito com o volante, e como o pneu da retaguarda rebentara, devido ao choque, não o pude seguir e nem sequer reparei em nada que me permitisse descrevê-lo. Foi uma daquelas coisas que acontecem... Ninguém, em idênticas circunstâncias, o conseguiria descrever, mas como sou chefe da Polícia e estou sempre a bramar que não devemos perder a presença de espírito e temos o dever de examinar qualquer carro cujo procedimento seja suspeito... Enfim, não preciso de por mais na carta!

         -Compreendo. É natural que se sinta ansioso por esclarecer o enigma. Arranjou provas, com; certeza...

         -Sem duvida.

         -Muitas?

         -Algumas. Quando o carro « tocou » no meu, espatifou o farol direito, o que nos permitiu recolher parte do vidro. Temos, também, um bocado de tinta e um fragmento da grelha. Tudo pertencente a um Buick. Se conseguíssemos localizar o maldito carro, tínhamos por onde lhe pegar, mas não conseguimos...

         - Investigou nas oficinas de reparação?

         - Com certeza! Exigi a todas as oficinas que reparassem algum carro, especial mente um Buick, o envio à Polícia de um relatório pormenorizado!

         -Portanto, o acidente foi investigado?

         - Exatamente.

         - Tem um relatório do trabalho feito no automóvel de Holgate?

         Olhou-me, um instante, e depois começou a rir.

         - Lam, há uma possibilidade, uma possibilidade apenas, de que você seja um enviado do céu! Não creio que me deixasse influenciar pelas suas palavras se não estivesse pessoalmente envolvido no caso. A idéia é tão disparatada que talvez você pretenda apenas safar-se de uma acusação de assassínio... Antes de procurar o relatório, quero fazer-lhe uma pergunta, para a qual peço uma resposta franca. É opinião das autoridades que você esteve no escritório do Holgate antes de lá voltar com a secretária dele. Esteve ou não esteve lá?

         Fitei-o nos olhos e respondi:

         - Estive.

         - E voltou segunda vez para desmanchar a pista?

         - Exato.

         - Porquê?

         - Porque não sabia o que acontecera, mas assinara uma declaração jurada de que vira o acidente com o carro do Holgate...

         - Porquê?

         -Porque queria obrigá-los a vir a campo descoberto. Pensei que se declarasse que presenciara o acidente talvez isso começasse a exercer certa pressão. Compreende, alguém andara a pedir testemunhas, nos jornais, e a oferecer primeiro cem dólares e, depois, duzentos e cinqüenta, a quem tivesse visto o acidente.

         - Holgate, em desespero de causa, a tentar comprar uma testemunha perjura?

         -Foi o que pensei, ao princípio, mas depois de assinar a declaração convenci-me de que alguém tentava encobri-lo.

         -Quem poderia querer encobri-lo?

         Duas pessoas: uma delas, o sócio; a outra, Vivian Deshler.

         -O sócio? Chris Maxton?

         -Sim.

         - Parece-lhe possível?                                     

         -As provas assim o indicam. Pagou-me duzentos  e cinqüenta dólares, quando o convenci de que assistira ao acidente.

         Dale meditou, por momentos.

         - Você procede de modo muito pouco convencional e muito ousado, Lam. Meteu o pescoço numa quantidade de laços, para tentar ajudar um cliente.

         -Se a minha opinião acerca do que aconteceu está certa, conseguirei tirar o pescoço dos laços.

         -E se não está?

         -Partem-me  o raio do pescoço!

         -Pode ter a certeza disso.

         Dale levantou-se, foi a um fichário e tirou um sobrescrito. Voltou para a secretária, abriu-o e começou a observar os papéis que continha.

         -Cá está, o relatório do acidente do Holgate foi entregue, mas a nossa Secção de Trânsito não investigou.

         - Porquê?

         -A reparação foi feita numa garagem de Los Angeles e procedeu-se à confirmação pelo telefone. Da garagem informaram que se tratava, de fato, de um Buick, mas os estragos estavam todos justificados e encontravam-se lá ambos os carros, a ser inspecionados por representantes da Consolidated Interinsurance Company ». Tinham sido examinados todos os pormenores do acidente, a companhia de seguros admitira a obrigação de pagar e mandara reparar os veículos.

         - Descreveram, em pormenor, os estragos?

         - Descreveram. O Buick tinha a parte da frente toda metida para dentro e ambos os faróis desfeitos. Quanto à grelha do radiador, desaparecera.

         -Quando se quer impedir alguém de identificar um buraco numa peça de roupa, não há melhor solução do que pegar numa tesoura e fazer um buraco maior. Holgate precisou apenas de pegar num martelo e aumentar os estragos.

         -Você fascina-me, Lam! Não compro de olhos fechados a sua louca teoria, mas pode ter a certeza de que a vou investigar... e, homem, como desejo que tenha razão!

         -Quando começa a investigar?

         -Quando começo? Imediatamente!

         Pegou de novo no telefone e marcou um número.

         -Desculpa, querida, mas não vou para casa... Não, isto é importante. Não te posso dizer pelo telefone e... Portanto, tens de ter paciência e apresentar as minhas desculpas aos convidados. Eles sabem que tenho de estar a postos vinte e quatro horas por dia, e esta é uma daquelas coisas... Excelente, já sabia que colaborarias! Faz o melhor que puderes.

         Desligou e perguntou-me:

         - Por onde começamos?

         - Chris Maxton. Foi ele que publicou o anúncio a oferecer duzentos e cinqüenta dólares.

         -Que mal há nisso? Tentava ajudar o Holgate.

         -Ajudar o Holgate porquê?

         - Era sócio dele.

         - Mas ajudar em que sentido? Holgate confessara à companhia de seguros que era culpado; a companhia de seguros admitira que tinha obrigação de indenizar Vivian Deshler. Ora qualquer testemunha que aparecesse só poderia confirmar que a culpa fora do Holgate. Para que pretenderia ele, então, ajudar o sócio arranjando-lhe uma testemunha? Se pensava que assim ajudaria Holgate era por saber que o acidente fora forjado. Oferecia um suborno avultado, para arranjar alguém que cometesse perjúrio...

         -Vamos, Donald -interrompeu-me Dale.

         -Sabe onde encontraremos Chris Maxton?

         -Claro que sei. Tem um apartamento aqui, na cidade,

         -É casado?

         -Passa uns bons bocados. Diverte-se, tem umas pequenas bonitas...

         -E, entre elas, Vivian Deshler?

         -Sei lá, homem! Nunca me dei ao trabalho de averiguar, mas agora tratarei disso. Vamos, Lam, não percamos mais tempo.

         Metemo-nos no automóvel do chefe da Polícia, que conduziu cautelosamente durante três quarteirões. Percebi que meditava na minha idéia, e que cada vez gostava mais dela.

         Ao fim de três quarteirões acendeu a luz vermelha. Ao fim de cinco ligou a sereia.

         O chefe Dale estava com muita pressa. Quando chegamos a um belo prédio Dale arrumou o carro defronte de uma boca de incêndio e disse-me:

         -Vamos, Lam.

         Subimos num elevador e, no patamar, o chefe premiu o botão de madrepérola da campainha.

         Chris Maxton abriu a porta e, ao princípio, só viu Dale.

         -Viva, Chefe!

         -Quero falar consigo. Maxton » perturbou-se.

         -Eu... não estou só... estou...

         -Quero falar consigo-repetiu Dale.

         -Estou... estou com uma rapariga.

         -Quero falar consigo.

         -Dê-me apenas dez segundos para ela... Dale entrou.

         -Vai para o quarto, querida-disse Maxton, por cima do ombro.-Pronto, Chefe, mas... Quem demônio vem consigo?

         -Donald Lam. Conhece-o?

         -Se o conheço? Um vigarista barato, reles Por que não disse logo que a sua visita se relacionava com a acusação existente contra Donald Lam? Farei tudo para que esse aldrabão...

         - Calma - recomendou Dale, avançando pela casa dentro.-Limite-se a responder às perguntas que lhe fizer.

         -Estou a fazer uma queixa! Quero que prenda Donald Lam por ter extorquido dinheiro com falsos pretextos e...

         - Não se canse. Chris. Responda às perguntas, apenas. Que diabo se passa aqui?

         -Nada - gaguejou Chris. - Apenas uma festazinha...

         Dale olhou à sua volta. No chão via-se uma garrafa de uísque, gelo, dois misturadores, dois copos vazios e uns sapatos de mulher. Nas costas de uma cadeira estava um soutien e, a um canto, uma saia amarrotada.

         -Acabava de desligar a telefonia quando ouvi’ a campainha -murmurou Chris.

         -Não é verdade disse Dale, e aproximou-se da janela aberta. - Desligou a telefonia, quando ouviu a sereia. Que diabo de casa é esta, Maxton?

         -Acalme-se, Chefe, acalme-se...-pediu o outro.

         Percebi que Dale o estava a amaciar, a colocar na defensiva, para obrigá-lo a desembuchar tudo quanto sabia. Era um bom trabalho.

         Dale baixou-se, apanhou a saia de mulher e observou-a. Depois, dedicou a sua atenção ao soutien. A seguir aproximou-se do sofá e pegou numa caixa quadrada, que acabava de ser desembrulhada. O papel estava caído no chão.

         Dale meteu a mão na caixa e tirou um par de calcinhas de seda, cheias de letras. Na parte inferior, lia-se:

         « LONGE DE MAIS »; « PÁRA! »; DOU-TE UMA BOFETADA ». Na parte de cima: « BEM, TALVEZ”; SIM, SIM, SIM! “

         -Que diabo é isto?

         -Mandei-as vir-respondeu Maxton.-Vêm anunciadas numa revista de homens, como a prenda ideal para  namorada...

         -Compreendo. E você convenceu a pequena a experimentá-las, para ver como lhe ficavam?

         Maxton sorriu, envergonhado, e o chefe Dale perguntou-lhe, de súbito, em tom acusador:

         - Que raio de idéia foi essa de publicar um anúncio a pedir testemunhas do acidente?

         -Eu... eu quis... bem, quis ajudar o meu sócio.

         - Deixe-se de histórias da carochinha, se não quer que vá abrir aquela porta  e os leve aos dois, por serem surpreendidos numa reunião imoral.

         Chris não se fez rogar.

         -O Chefe sabe como é... O meu sócio teve um acidente e... Ouça, não pode meter a pequena nisto. Aliás, este apartamento é meu, pago aluguel e...

         - Deixe-se de conversas e volte ao que interessa. Porque tentou encontrar uma testemunha?

         Maxton respirou fundo, antes de responder:

         -Está bem, dir-lhe-ei porque tentei arranjar uma testemunha. Pensei que o acidente era forjado.

         O chefe Dale sentou-se e a expressão do seu rosto tornou-se mais suave.

         - Agora começa a dizer qualquer coisa! Porque pensou que o acidente era forjado?

         - Sabia perfeitamente que era! O carro do Holgate estava incólume às quatro e meia da tarde. O que quer que se passou foi depois dessa hora. O meu sócio estivera a beber. Deduzi que tivera qualquer desastre e tentava encobri-lo.

         -E que fez você?

         - Resolvi descobrir o que se passava.

         -Tentando subornar uma testemunha para dizer que vira o que não se passou?-perguntou Dale, desconfiado.

         -Não percebeu Chefe. Eu queria provar que não havia testemunha alguma. Assim, poderia provar também que não existira o acidente, pelo menos como o meu sócio dizia que existira. Estava disposto a pagar nem que fossem cinco mil dólares a quem me convencesse que vira o acidente, mas não queria arriscar-me logo de uma vez. Jogaria pelo seguro e de modo tão dramático que deitaria por terra os planos do Holgate. Decidi começar por oferecer cem dólares, passá-los para duzentos e cinqüenta, se não aparecesse nenhuma testemunha, depois para quinhentos, depois para mil, dois mil... Quando chegasse a essa soma sem ter aparecido nenhuma testemunha, estaria seguro do terreno que pisava e teria despertado tanta atenção que a companhia de seguros e toda a gente começariam a desconfiar.

         - Por que queria levantar suspeitas? - perguntou Dale.

         -Porque o Holgate julgava que sabia algo a meu respeito e tentava obrigar-me a vender a minha parte na sociedade por menos do que ela valia. Achei conveniente ter, também qualquer coisa de que acusar o filho da mãe, para que deixasse de me arreliar. Pronto, é esta a verdade.

         -Como soube que o carro do seu sócio estava incólume às quatro e meia da tarde?

         - Prefiro não falar nisso

         -E eu prefiro que fale.

         - Muito bem, foi a secretária dele que mo disse.

         -Como o soube ela?

         - Era o dia dos anos dela. Houve uma pequena festa no escritório e...

         -Cocktails?

         - Cocktails.

         -Continue. Que aconteceu?

         -Aconteceu que esse vigarista barato, esse intrujão desse Donald Lam, entrou em cena e contou-me uma história tão convincente que cheguei à conclusão de que as minhas suspeitas eram infundadas e desisti. Levantei as mãos, considerei-me vencido e ainda por cima paguei ao pulheco duzentos e cinqüenta dólares!

         Dale ficou pensativo, uns momentos, e depois começou a rir.

         Levantou-se e disse a Maxton:

         - Continue com a sua festa. Lamento tê-lo interrompido... e espero que as calcinhas sirvam.

         Descemos e metemo-nos no automóvel. Dale ligou o motor. Meditava, de olhos semicerrados.

         Ligou o rádio e transmitiu uma mensagem:

         -Fala o chefe Dale, no carro número um. Estou a investigar um assunto. Há alguma novidade acerca do assassinato de Holgate?

         A resposta não tardou:

         -Chegou um boletim da Polícia de Los Angeles, há minutos. Procuram Donald Lam. Completaram o caso contra ele e estão preparados para acusá-lo do assassinato de Cárter Holgate.

         -Obrigado. Comuniquem, se surgir mais alguma coisa.

         Desligou o rádio e sorriu-me.

         -O seu amigo da Polícia de Los Angeles não tem muita fé em si, pois não?

         - Não. Posso fazer um telefonema?

         -Com certeza. Tudo quanto quiser, Lam.-Sorriu de novo e repetiu: - Tudo quanto quiser. Basta pedir !

         Começou a rir baixinho.

         -Havia algum motivo para o Holgate não querer assumir a responsabilidade do choque com o seu carro, Chefe?

         - Havia, pode ter a certeza. É uma longa história. O Holgate era um vendedor que recorria a uns métodos especiais. Bom tipo, de um modo geral, mas com as suas manias de expressão. Uma amiga minha tinha umas terras nas montanhas. Holgate sugeriu-lhe que as trocasse por dois lotes seus e ela acedeu da melhor vontade. Sessenta dias depois da troca, descobriu-se que uma nova auto-estrada passaria pelas montanhas, mesmo através da propriedade que a minha amiga possuíra. Não sei quanto ele ganhou com isso, mas deve ter sido muito.

         - Ela fez alguma coisa?

         - Não. Mas eu tive uma conversa com ele.

         -E então?

         - Riu-se na minha cara.

         -Por isso, se o Chefe tivesse oportunidade de metê-lo na cadeia por conduzir embriagado, chocar e fugir... Começo a ver uma grande luz.

         -E eu também. Para sua informação, Lam, esta noite há uma reunião especial do conselho municipal, às inove e meia, e um dos assuntos da agenda é a nomeação de um novo chefe da Polícia. Você caiu-me no escritório como um maná do céu. Não tinha dito nada à minha mulher, para não a preocupar, e tencionava ir para casa, beber cocktails e jantar... Arranjara as coisas de maneira a receber um telefonema, a fim de poder comparecer à reunião, embora não me tivessem convidado. Trata-se de uma sessão especial e suponho que já devem ter até escolhido o meu sucessor... Olhe, aqui está uma cabina telefônica... Faça o seu telefonema. Tem o dinheiro necessário?

         -Tenho um cartão de crédito.

         -Vá, então. Eu espero-o aqui. O chefe recostou-se e acendeu um charuto. Sorria, como um gato anafado e satisfeito. Liguei para o escritório.

         -Onde diabo esteve metido? - perguntou-me Bertha Cool. - Meu Deus, sabe o que aconteceu? O filho de uma cadela do Frank Sellers deixou-se dominar pelo bastardo da Ace». Sabe Deus que provas engendraram, mas a verdade é que o sargento me telefonou e me disse que o mandasse entregar-se imediatamente.

         -Que lhe respondeu?

         -A verdade. Disse-lhe que você saíra e não sabia onde estava, e ele respondeu-me que me dava quinze minutos para o encontrar. Se não o conseguisse, mandaria procurá-lo por toda a parte, pois estava farto de bancar o palhaço.

         - Mais alguma coisa?

         -Não... Espere, a Elsie quer falar consigo... Onde diabo está ela? Disse que descobrira mais qualquer coisa que talvez lhe interessasse. Creio que saiu.

         - Está bem. Eis o que quero que faça, Bertha; meta-se no carro e siga o mais depressa que puder para o « Edifício Miramar », em Colinda. Localize a Elsie e se não a vir deixe-lhe um recado em casa, a dizer que pegue no livro de recortes de acidentes de automóveis e vá para lá a toda a velocidade. Eu também irei .

         - Quando?

         -Ao mesmo tempo que você.

         - Posso jantar primeiro?

         - Não, com os diabos! Vá o mais depressa possível e diga à Elsie que faça o mesmo.

         Desliguei e comecei a representar. Fingi que metia uma moeda na caixa e marcava um número, depois falava e ouvia. Deixei passar, assim, cerca de dez minutos.

         O chefe Dale continuava no carro, a sorrir. Quando começou a mostrar indícios de desassossego, saí da cabina.

         - Demorou-se.

         -Fiz diversas chamadas.

         -Tratou de tudo?

         - Tudo.

         - Bem, Donald, não quero que me acusem de conspirar para proteger um criminoso... É procurado por assassínio. Estenda os pulsos.

         Obedeci e o chefe algemou-me.

         - Considere-se preso, sob a minha custódia. Quero que saiba que enquanto for meu hóspede, na cadeia de Colinda, farei tudo quanto desejar para lhe ser útil. Refeições especiais, telefone na cela, visitas, tudo quanto quiser... exceto pequenas. Isso não lhe posso arranjar.

         - Obrigado.

         - Não me agradeça.

         -Vai levar-me para a cadeia antes de...

         - Antes de falar com Vivian Deshler? Não, homem! Não me julgue parvo nem se arme em parvo, Lam. Pus-lhe as algemas apenas simbolicamente. É meu prisioneiro e é demasiado esperto para tentar fugir. Pode estar inocente do assassinato de que o acusam., mas fugir, depois de ser preso, é crime e... bem, Donald, não gostaria que o fizesse. Sou capaz de ser muito duro, quando acontecem coisas que não me agradam.

         -Compreendo. Não sairei daqui.

         -As algemas estão demasiado apertadas?

         - Não. São muito confortáveis.

         -Vamos lá, então.

         Seguimos para o « Edifício Miramar », e o chefe levou-me no elevador, com algemas e tudo.

         Dale apoiou o indicador no botão da campainha do apartamento de Vivian Deshler, e não o retirou enquanto ela não abriu.

         -Polícia, Miss Deshler informou.-Sou o chefe Dale, da Polícia de Colinda.

         -Em que lhe posso ser útil, Chefe?

         -Quero falar consigo.

         -Entre e sente-se, Chefe Dale, esteja à vontade. Tenciono sair, daqui a momentos, mas...

         O chefe entrou no apartamento e eu segui-o Ao ver-me, Vivian exclamou:

         -Um momento! Não sabia que trazia um convidado..

         -Não é meu convidado e, sim, meu prisioneiro. Está preso pelo assassínio de Cárter Holgate.

         - Meu Deus, está preso! Sabia que andavam a investigar a seu respeito e...

         -Está preso-repetiu Dale.

         - Lamento muito, Donald! Não queria ser desagradável... Bem!, você compreende.

         - Não se preocupe - respondi-lhe e sentei-me, com os cotovelos apoiados nas pernas, para que a luz forte do candeeiro se refletisse nas algemas.

         - Estou a investigar o acidente que sofreu - informou Dale.-Aquele em que se supõe que o carro de Cárter Holgate chocou com a retaguarda do seu e... Vivian levantou-se  declarou:

         - Não estou disposta a continuar a ser interrogada acerca desse acidente Chefe Dale. Já respondi a tantas perguntas que estou farta, cheia até aos olhos! Exigi uma indenização à companhia de seguros, contratei um advogado e decidi intentar uma ação. O meu advogado aconselhou-me a não dizer mais nada.

         - Compreendo - disse Dale, pacientemente. - Ele deu-lhe esse conselho do ponto de vista da ação cível, mas eu agora estou a ver o caso do ponto de vista criminal.

         -Que quer dizer?

         -Que tenho sobejas provas de que o automóvel de Cárter Holgate chocou com o meu, ao fim da tarde do dia 13 de Agosto. Holgate conduzia embriagado.

         - Meu Deus!

         -O acidente a que me refiro verificou-se pouco depois das cinco e meia da tarde -prosseguiu Dale.

         -Quem diria!

         - Pois é. Sei muitas coisas, mas quero saber mais algumas. Para ser franco, quero saber muitas mais...

         Vivian raciocinava depressa.

         - Pêlos vistos, Mr. Holgate estava condenado a ter acidentes de trânsito, nesse dia...-comentou.

         -Quero que me fale do acidente com o seu carro. A que horas foi?

         -Se quer que lhe seja franca Chefe, não tenho a certeza da hora. Estou certa da data, mas...

         - Foi depois de escurecer?

         -Não, não. Foi de tarde. Foi... enfim, não sou capaz de me recordar da hora exata.

         -A amiga dela- informei-, Doris Ashley, viu o carro entre as três e meia e as três e quarenta e cinco e disse que já estava amassado. Portanto, o acidente deve ter sido antes dessa hora, Chefe.

         Vivian lançou-me um olhar carregado de veneno.

         -Está de acordo Miss Deshler?

         -Não sei, mas se a Doris o disse... É uma rapariga muito verdadeira e boa observadora.

         -Vou ser leal consigo, Miss Deshler- disse Dale.

         -Se Holgate chocou com o meu carro, o empurrou para a valeta e fugiu, cometeu um crime. Compreende?

         -Sim, com certeza.

         - E, se alguém conspirou com ele para encobrir esse crime, ou o ajudou a escapar ao castigo, essa pessoa foi sua encobridora e é culpada de muitas coisas. Não foi só encobridora, mas também cúmplice num crime. Compreende?

         Vivian umedeceu os lábios com a ponta da língua, antes de responder:

         -Sim.

         -Agora que lhe expliquei tudo e que me compreendeu, tem; alguma declaração a fazer, Miss Deshler?

         -Eu... eu sei que... Um momento, deixe-me pensar... Desculpe, mas dá-me licença só por um minuto? Não me tenho sentido bem, ultimamente, e preciso de ir à casa de banho. Volto já.

         Levantou-se e saiu por uma das portas.

         Dale piscou-me o olho e dirigiu-se em bicos de pés para a mesma porta. Tirou da algibeira um pequeno microfone, encostou-o à porta, meteu os auriculares nos ouvidos, ligou um interruptor e escutou.

         Sorriu e piscou-me de novo o olho. Depois escutou mais dois ou três minutos. De súbito, tirou os auriculares,  soltou o microfone da porta, meteu tudo na algibeira e voltou para o seu lugar, em bicos de pés.

         A porta abriu-se e Vivian desculpou-se:

         - Lamento a interrupção, mas os meus intestinos não andam bem e... Espero não ter sido malcriada...

         -De modo nenhum- assegurou-lhe Dale.

         -Que desejava saber Chefe?

         -Acerca do acidente...

         -Ah, sim! Prestei declarações à companhia de seguros, prestei declarações à Polícia, prestei declarações a investigadores... Enfim, fiz tantas declarações que já deito o acidente pelos olhos! Sabe o que vou fazer, Chefe Dale? Fiquei magoada, devido ao choque, sofri aquilo a que chamam « chicotada », coisa que, segundo me consta, pode ser muito grave. Mas, como lhe disse, estou tão farta que decidi desistir e resignar-me aos prejuízos sofridos. Vou retirar a queixa contra a companhia de seguros e esquecer tudo. Partirei para qualquer lado e tentarei descansar. O meu médico pensa que um período de repouso completo, sem preocupações, ajudará a restaurar a minha saúde.

         Olhou para mim. Mexi os braços, para que a luz brilhasse nas algemas, que pareciam fasciná-la.

         -Muito bonito - disse Dale. - Espero que recupere a saúde. Devo dizer-lhe, Miss Deshler, que a solução deste caso significa muito para mim, pois o meu carro foi empurrado para a valeta por um motorista que fugiu. Tenho agora motivos para crer que esse motorista foi Cárter Holgate, e que ele se serviu do acidente puramente imaginário, com o seu automóvel, para encobrir...

         -Acidente puramente imaginário? Que quer dizer? -perguntou a rapariga, em tom de fria dignidade.- Ele pode muito bem ter causado dois acidentes. Se estava embriagado...

         -Repito o que disse-interrompeu Dale.-O acidente com o seu automóvel foi puramente imaginário.

         - Gosto disso! Está a acusar-me de mentir?

         -Sinceramente, Miss Deshler, estou a acusá-la de mentir. Acuso-a de ter forjado um acidente com o seu carro e de ter conspirado com Holgate para dizerem que o carro dele chocara com o seu, a fim de o livrar, a ele, de uma situação desagradável. Caso lhe interesse, utilizei um aparelho auditivo, um pequeno microfone, quando disse que ia à casa de banho por causa dos seus intestinos telefonou a alguém e perguntou-lhe o que devia fazer. A quem telefonou?

         -Telefonei ao meu advogado, e o senhor não tem absolutamente direito algum de escutar as minhas conversas com o meu advogado. Peço-lhe que saia do meu apartamento.

         -Sairei, se insiste, mas a minha saída será uma declaração de guerra. Estou a dar-lhe uma oportunidade de safar-se.

         -Que quer dizer?

         -Que lhe estou a dar uma oportunidade de dizer a verdade.

         -E se se explicasse?

         -Se me contar a história agora, deixá-la-ei em paz;

         Se não contar, não a pouparei.

         Vivian mordeu os lábios, hesitou um momento e depois abanou a cabeça.

         -Não tenho nada a dizer.

         -Creio que tem. Hesitou de novo.

         -Muito bem, se quer a verdade, dir-lhe-ei a verdade.

         - Assim já me parece melhor.

         -Relaciona-se tudo com esse homem que trouxe consigo, com Donald Lam.

         -Sim? E como?

         - Ele tenta proteger a companhia de seguros que o contratou. Subornou Lorraine Robbins, a secretária de Mr. Holgate, para que ela dissesse que viu o automóvel do patrão depois das quatro horas, e que nessa altura estava intacto. Donald Lam deixou um rasto sujo e viscoso de corrupção em todo este assunto. Recorreu à intimidação de testemunhas, ao suborno, ao perjúrio puro e simples. Jurou ter testemunhado o acidente e não testemunhou coisa alguma. O choque deu-se exatamente como eu descrevi e, se quer valer-se da sua autoridade e meter medo a alguém, procure Lorraine Robbins e comece a apertá-la. Verá que ela e Donald estiveram de panelinha, desde o princípio. E se quer saber mais,ele esteve no escritório de Holgate, antes de comunicar com Lorraine e, depois, atraiu-a lá com o pretexto de que deviam procurar Cárter Holgate. Creio quê ele tem um cúmplice. Não sei quem é, mas estes são os fatos e eu não estou disposta a ser pau mandado de um assassino que tenta sacudir a água do capote a expensas minhas. Perdoar-me-á, Chefe Dale, mas esta foi a última declaração que fiz. Não tencionava ir tão longe, porque não queria acusar ninguém de crime; o meu lema é viver e deixar viver. Mas abusaram e não pude conter-me. Agora, consultarei o meu advogado e não direi mais nada, nem ao senhor nem a ninguém, a não ser com ele presente.

         Levantou-se e acrescentou:

         -Lamento ser brusca Chefe Dale, mas a entrevista terminou.

         -Não se enerve dessa maneira, Miss Deshler. Estou apenas a tentar...

         - Lamento, mas duvidou da minha palavra. Agora, estou convencida de que tudo isto foi provocado por Mr. Lam, que obteve dinheiro sob falsos pretextos, que jurou falso e que tentou todos os truques sujos e velhacos para desacreditar-me e favorecer a companhia de seguros que o contratou. Surpreende-me que um polícia com a sua experiência, Chefe Dale, se tenha deixado intrujar a tal ponto Devia considerar os interesses de Mr. Lam no caso e o que ele tenta fazer. É um assassino que tenta embaralhar a pista, e o senhor deixou-se embromar, caiu numa das mais velhas esparrelas da história da investigação. Agora, se me desculpa, vou... vou outra vez à casa de banho.

         Correu para a porta, bateu-a com força e fechou-a à chave.

         Dale olhou-me e eu vi a duvida insinuar-se no seu espírito.

         -Vai consentir que ela o ludibrie?

         -Que quer que faça?-resmungou Dale.-Ela disse que ia à casa de banho e, desta vez, terá a esperteza de ir mesmo. Fechou a porta à chave. Não posso arrombar a porta e ir buscá-la à casa de banho, não tenho nenhum mandado... Na realidade, não tenho nada, além da sua palavra.

         Olhou de novo para mim e acrescentou:

         -Vamos, Lam, vamos para a esquadra. Tenho de avisar Los Angeles de que o prendi. Levantamo-nos e abrimos a porta.

         - Venha.

         Segui-o até ao corredor.

         - Pensando bem, a sua teoria tresanda,

         - Porquê?

         - Que incentivo teve Vivian Deshler para forjar um acidente entre o seu automóvel e o do Holgate?

         -Uma « chicotada ». Investigue o seu passado e estou certo de que verificará que já esteve envolvida num acidente de automóvel, que se queixou de ter sofrido uma « chicotada » e recebeu uma boa maquia de indenização, de alguma companhia de seguros.

         -Talvez- admitiu Dale, sem parecer muito interessado.

         Encaminhou-se para o elevador e prosseguiu:

         -Vou estudar a sua teoria, Lam, e falar com essa tal Lorraine Robbins.

         -Ela está aqui, neste prédio. Pode aproveitar a oportunidade e matar dois coelhos de uma cajadada.

         -Ela mora aqui?

         - Mora.

         -Está bem, falaremos com ela. Mas desde já lhe confesso, Donald, que estou arrependido de ter posto o carro adiante dos bois, nesta história. Devia ter falado primeiro com Mis Robbins, antes de ir apertar os calos a Vivian Deshler. Agora deixei-a com a possibilidade de fazer um grande alarido, se arranjar um advogado. Acusei-a de forjar um acidente, baseado apenas numa idéia sua, idéia que se baseia no que me disse ter-lhe contado Lorraine Robbins. Creio que o meu interesse pessoal perturbou um pouco o meu raciocínio.

         - Está bem, vamos falar com Lorraine.

         -Você, Lam, vai lá para baixo e fica no meu automóvel, algemado ao volante. Não quero que tente nenhuma gracinha. Para sua informação, a sua cotação desceu a pique, nos últimos quinze minutos.

         Levou-me para o automóvel, algemou-me ao volante e voltou ao apartamento.

         Passado um quarto de hora, aproximou-se um carro, à procura de lugar para estacionar. Finalmente encontrou-o e parou.

         Virei-me, tanto quanto as algemas me permitiam, e vi Bertha Cool e Elsie apearem-se e.

         Elsie trazia um livro de recortes.

         -Bertha! - gritei, mas a minha sócia não me ouviu. - Elsie!

         Elsie virou-se, a olhar.

         -Aqui, Elsie!

         A minha secretária viu-me e correu para mim.

         -Que aconteceu, Donald?

         Bertha aproximou-se também, viu as algemas e comentou:

         -Encontraram-no, então.

         -Encontraram. Que querias dizer-me, Elsie? Que novidades tens?

         - Uma coisa que vi num dos livros de recortes, Donald... Oh, espero que te ajude!

         -O que é?

         - Um assalto a um banco no lado norte de Hollywood. Levaram quarenta mil dólares. O carro em que fugiram era de desporto e, embora ninguém o tivesse visto bem, uma das testemunhas declarou que tinha uma amassadela qualquer na retaguarda.

         -Quando foi isso, Elsie, quando?

         -Pouco antes da hora de fechar, no dia 13. Virei-me para Bertha e disse-lhe:

         -Vá depressa ao apartamento 619 do « Edifício Miramar ». Vivian Deshler está lá e, das duas, uma: ou ela própria está implicada no roubo do banco, ou esteve o seu carro. Isso esclarece o mistério, foi por isso que acedeu a colaborar com o Holgate. Lembre-se que tem de haver qualquer relação. Alguém que sabia que o carro do Holgate estava machucado tinha de saber também que a retaguarda do carro dela estava amassada e Vivian precisava de arranjar, depressa, uma explicação para isso. Portanto, ou ela ou o carro participaram no roubo do banco.

         Bertha pestanejou duas vezes, antes de se voltar e se dirigir para o prédio...

         -Quer levar a Elsie consigo?-perguntei-lhe.

         - Não, com a breca! Não preciso de ajudas nem quero testemunhas.

         - Pobre rapaz! - lamentou Elsie. Abriu a porta e sentou-se ao meu lado.

         Passados cinco minutos, o Chefe Dale saiu do prédio e aproximou-se, pensativo.

         Ao ver-nos, parou bruscamente e levou a mão ao quadril.

         -Que vem a ser isto?

         - Isto, Chefe Dale, é a minha secretária, Elsie Brand. Coleciona recortes interessantes, de crimes insolúveis.

         -Sim, e depois? Um momento, Miss Brand, este homem é meu prisioneiro. Não tente dar-lhe nada nem libertá-lo das algemas.

         -Oh, o senhor é horrível!-barafustou Elsie.- Imaginem, suspeitar...

         -Tem calma, Elsie - recomendei. - Mostra ao Chefe Dale o recorte de que me falaste.

         Elsie saiu do automóvel, abriu o livro dos recortes e apontou a notícia a Dale.

         O chefe inclinou-se, leu o recorte uma vez, endireitou-se, franziu a testa e leu-o segunda vez.

         -Macacos me mordam!-exclamou.

         Passados instantes de pesado silêncio, perguntei-lhe:

         -Como correram as coisas com Lorraine Robbins?

         - Ela é sincera, Lam, é boa pequena. Não há dúvida de que o maldito acidente tem qualquer coisa muito esquisita... É, de fato, verdade: o automóvel do Holgate estava intato às quatro e meia do dia 13.

         -E o carro de Vivian Deshler tinha a retaguarda amolgada, às três e meia do dia 13-lembrei-lhe.

         - Meu Deus, se tudo bater certo! Se foi o Holgate que chocou comigo e fugiu e se o carro da Deshler foi o que serviu para a fuga, no roubo do banco... Meu Deus!

         -Seria interessante resolver todos esses enigmas e entrar triunfante na reunião do conselho, às nove e meia, não seria, Chefe? Podia mostrar-lhes que decifrou o mistério do choque com fuga do culpado, que decifrou o mistério do roubo do banco...

         -Está bem, caí uma vez, também posso cair duas. Vou outra vez lá acima.

         -É melhor levar-me. Dale abanou a cabeça.

         -Talvez precise de uma testemunha. Ficou a pensar.

         -De duas testemunhas- interveio Elsie.

         -Sabe estenografia?

         Elsie acenou afirmativamente.

         -Está bem, venham.

         Abriu a algema que me prendia ao volante, hesitou um momento e fechou-a no pulso.

         - Lembre-se de que continua preso, Lam. Vou investigar esta maldita história, o que não significa que a acredite. Por enquanto, não compro nada, limito-me a ver pistas.

         Dirigimo-nos para a entrada do prédio. Demorei o mais que pude, mas acabamos por entrar no elevador e subir ao sexto andar.

         No corredor, ouvi pancadas e uma mulher a gritar,

         -Que foi isto?-perguntou Dale.

         Fiz a minha última manobra de retardamento:

         -O barulho veio daquele apartamento, ali.

         - Pareceu-me que vinha mais lá de baixo.

         -Não, tenho a certeza que foi daquele apartamento - insisti e fitei Elsie Brand.

         - Sim, também me pareceu que veio deste - afirmou a rapariga.

         Dale hesitou um momento, mas depois parou e bateu à porta que indicávamos.

         Ninguém respondeu.

         Bateu de novo.

         Passados momentos, uma mulher com um robe rapidamente deitado sobre os ombros, e que parecia estar completamente nua por baixo dele, abriu uma greta da porta.

         - Que se passa? - resmungou.

         - Polícia - respondeu-lhe Dale. - Investigamos uma perturbação da ordem.

         - Aqui não há perturbação nenhuma.

         -Não gritou?

         -Com certeza que não!

         -Peço-lhe...

         A mulher bateu-lhe com a porta na cara.

         - Começo a compreender os sentimentos dos meus colegas de Los Angeles para consigo Lam - resmungou Dale - Você sabia perfeitamente que o barulho não veio deste apartamento. Por que está a querer ganhar tempo?

         - Posso ter-me enganado.

         - Mas também pode ter-me pregado uma partida.

         Encaminhou-se para o apartamento 619 e premiu o botão da campainha.

         Não aconteceu nada.

         Passados momentos, bateu à porta, com os nós dos dedos, de modo autoritário e peremptório.

         -Abra!

         - Pouco depois, a porta abriu-se de repelão e Bertha Cool, muito afogueada, convidou:

         - Entre, homem não fique aí parado, de boca aberta.

         Vivian Deshler estava de pé, a um canto, a soluçar histericamente. A saia tinha-lhe sido arrancada do corpo e estava de soutien e calcinhas. Nestas liam-se diversas frases bordadas: « LONGE DE MAIS »; « PÁRA »; DOU-TE UMA BOFETADA »; « BEM, TALVEZ »; « SIM, SIM, SIM!”

         -Quem é você?-perguntou Dale à minha sócia.

         -Bertha Cool, sócia de Donald Lam. Esta bicha tem uma confissão a fazer-lhe, acerca da sua cumplicidade com um homem chamado Dudley Bedford, num assalto a um banco do norte de Hollywood. Apanharam cerca de quarenta mil dólares em dinheiro, que estão aqui no apartamento, em qualquer lado. Onde está a « massa », queridinha?

         Vivian Deshler tapou os olhos com as mãos e gritou:

         - Pare!

         Bertha avançou e repetiu:

         -Onde está a « massa », queridinha?

         - Na mala, no armário! - esganiçou-se a outra. - Não me toque! Não se atreva a tocar-me!

         -Veja na mala, no armário  -ordenou a minha sócia, no tom mais prático deste mundo, e pegou num casaco, que atirou a Vivian.

         - Embrulhe-se nisso, no caso de sentir-se constrangida.

         Dale olhou para Bertha, depois para Vivian e finalmente para mim, e perguntou:

         -E quem assassinou Holgate?

         -Precisa de perguntar?-redargui-lhe.-Já viu umas calcinhas iguais àquelas, não viu? Ela podia obter muitas informações por intermédio do Maxton: os cocktails no escritório e tudo o mais que lhe fazia falta.

         -Pode evitar que ela fuja?-perguntou Dale a Bertha.

         -Posso evitar, até, que pestaneje! Se tentar pregar-me alguma partida, ponho-a a dormir à bofetada!

         -Nomeio-a minha ajudante- gritou o chefe Dale. -Vou dar uma vista de olhos à tal maleta.

         Voltou dois minutos depois, com a mala aberta e a olhar para o dinheiro, arrumado em maços iguais. Foi nesse momento que girou uma chave, na fechadura.

         Vivian Deshler respirou fundo, a preparar-se para dar um grito de aviso, mas Bertha deu-lhe uma palmada no estômago que a deixou sem fôlego. Dobrou-se, como um acordeão.

         A porta fechou-se, com um estalido, e Dudley Bedford apareceu, sorridente e bonacheirão;

         Ao ver o que se passava, tentou sacar a arma, mas Dale foi mais lesto e gritou-lhe:

         -Considere-se preso. Levante as mãos. Bedford levantou as mãos, devagar.

         -Vire-se para a parede -ordenou o chefe da Polícia.-Agora ponha as mãos atrás das costas.

         Bedford obedeceu.

         Dale tirou-me as algemas, colocou-as em Dudley, sorriu-me, viu as horas e disse a Bertha:

         - Nomeio-a minha ajudante. Vista qualquer coisa a essa presa e leve-a para a esquadra. Estou com pressa, quero ter uma confissão completa dos dois às nove e meia.

         -Tire roupa do armário, queridinha -ordenou Bertha a Vivian e dispa essas calcinhas ornamentais. No sítio para onde vai, ninguém liga importância a frases marotas estampadas no traseiro.

         Eram dez e um quarto quando o chefe Dale saiu da sala da reunião, pegou no telefone e pediu:

         - Ligue-me para a esquadra da Polícia de Los Angeles. Quero falar com o sargento Frank Sellers. Olhou para mim e piscou-me o olho. Dois minutos depois a chamada estava feita.

         -Sellers?... Aqui fala Montague Dale, chefe da Polícia de Colinda. Tenho o Donald Lam, que vocês procuram.

         Escutou um momento, a sorrir.

         -Antes de comprometer-se Sargento, tem toda a conveniência em saber que no houve nenhum acidente com o automóvel do Holgate. A história foi forjada. Holgate deu um pinhão num carro da Polícia, ao fim da tarde do dia 13 de Agosto, quando conduzia sob os efeitos do álcool, e quis fugir à responsabilidade. Um homem chamado Bedford, que o conhecia, soube do caso e aconselhou-o a forjar um acidente com o carro de uma amiga, uma tal Vivian Deshler, de maneira a que Holgate pudesse explicar os danos sofridos pela frente do seu Buick. Vivian também era amiga de Maxton, o sócio de Holgate. Este achou a idéia boa, mas não sabia em que se metia. Vivian Deshler, que já anteriormente apresentara pedidos de indenização a duas companhias de seguros, alegando-se vítima de um desastre em que sofrera a chamada « chicotada », tentou apanhar trinta mil dólares à companhia de seguros do Holgate. O carro dela ficara amassado, horas antes, quando perdera o controle do mesmo e chocara com um poste de iluminação ornamental, no norte de Hollywood, no momento em que ia com o seu amigo Dudley Bedford assaltar um banco da referida localidade. « Limparam » mais de quarenta mil dólares.

         «Graças à colaboração de Donald Lam, que me deu as pistas que levaram ao esclarecimento de tudo, acabo de recuperar esse dinheiro e de obter confissões completas de todos os implicados. Não creio que o Holgate soubesse que estavam a implicá-lo no roubo de um banco, mas, quando descobriu que a rapariga pedira uma indenização grande à companhia de seguros, ficou assustado. Quando Lam apareceu, disposto a fazer uma declaração jurada, percebeu que ele mentia e que devia ter sido abordado por Bedford. Pensou então, que o depoimento assinado por Lam o implicaria no crime de subornar uma testemunha perjura e, por isso, decidiu confessar tudo. Foi ao escritório, ligou a máquina elétrica de escrever, telefonou a Lam, a pedir a sua presença, e começou a datilografar uma confissão.

         «Entretanto, Dudley Bedford descobriu o que se passava. Assim que a agência de detetives que contratara o informou de que Donald Lam não era um ex-condenado, recentemente solto de San Quentin, percebeu que as coisas estavam feias e mandou Vivian Deshler vir de avião de Salt Lake City. Foram juntos ao escritório de Holgate e encontraram-no a datilografar a confissão. Travou-se luta, puseram a Holgate inconsciente, leram a confissão e confiscaram-na. Depois arrastaram a vítima para o automóvel.

         «Procuraram e encontraram o depoimento de Lam, procederam a uma busca, a fim de verem se Holgate escrevera outras declarações, e foram-se embora, a rapariga no carro de Holgate e Bedford no seu, com o homem inconsciente. Depois de o amarrarem de pés e mãos, Bedford deixou-o com a rapariga e voltou ao escritório, a fim de reaver o relatório da agência de detetives, que caíra da mala partida de Vivian e que ela se lembrou de que não apanhara.

         «Bedford encontrou Lam no escritório, a examinar a desordem, mas Lam conseguiu fugir pela janela. Compreenderam, então, que estavam atolados até ao pescoço e só podiam fazer uma coisa: matar Holgate. colocar o corpo no carro de Lam e implicá-lo no crime.

         «Creio que não podemos censurá-lo por ter-se deixado enganar, Sargento, pois o trabalho foi muito bem feito. No entanto, Lam procurou-me e deu-me uma ajuda tão grande que se esclareceram todos os mistérios.

         «Claro que Vivian Deshler não queria comprometer-se no assassínio e regressou de avião a Salt Lake City. Aí, meteu-se no avião transcontinental e fingiu que acabava de chegar de Nova Iorque, arranjando assim um álibi.

         «Tenho confissões completas.

         «Doris Ashley, que sabia que o carro da Deshler estava amassado às três e meia, pois vira-o logo a seguir ao assalto ao banco, era uma testemunha inquietante. Contrataram uma agência de detetives, para vigiá-la, a fim de saberem se ela suspeitara de alguma coisa e comunicava com a Polícia. Além disso, Dudley Bedford travou relações íntimas com ela, para se certificar de que não suspeitava de nada. Tenho aqui o Donald Lam, como lhe disse, e se o Sargento insiste em prendê-lo, retê-lo-ei, mas...»

         Dale escutou, durante cerca de dois ou três minutos.

         Depois riu-se e disse:

         -Claro que isso se deve ao seu azar, Sargento. Por coincidência, eu estava a precisar de um bocado de sorte. Estava em apuros, aqui com o conselho municipal... Não, não é nada de grave. Até já está tudo arrumado. Renovaram o meu contrato, há bocado, com um considerável aumento de ordenado, e deram-me a entender que um arranjarão os cinco novos polícias que tenho pedido, os dois carros-patrulha e praticamente tudo quanto precisar... Posso, também, ficar com a recompensa de dez mil dólares oferecida pelo banco a quem descobrisse os autores do roubo. Como vê, não posso estar melhor... Quer que diga ao Donald Lam alguma coisa da sua parte?

         Escutou, de novo, e um sorriso rasgou-lhe a cara, de orelha a orelha.

         -Está bem-disse por fim, e desligou. Voltou-se para mim, estendeu a mão e apertou a minha, com força.

         -O sargento deu-lhe algum recado para mim?- perguntei-lhe.

         -Deu: vá-se matar.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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