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ARMADILHAS / Roderick Gordon & Brian Williams
ARMADILHAS / Roderick Gordon & Brian Williams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Ondas de chamas em tonalidades vermelhas e brancas. O cabelo chamusca, a pele se contrai. O uivo de uma ventania quando todo o oxigênio é sugado do lugar, depois, os respingos de água de Rebecca Dois se atirando no poço, levando a irmã. Atordoado e pouco consciente, o corpo de Rebecca Um é flácido como uma boneca de trapos, mas nem a água fria consegue fazê-la recuperar os sentidos.
Elas afundam sob a superfície. Abaixo do calor intenso.
Rebecca Dois coloca a mão na boca e no nariz da irmã, numa tentativa de fechá-los. Depois se obriga a pensar. Só tenho sessenta segundos para sair, diz a si mesma enquanto seus pulmões começam a ficar extenuados. E agora?
Ela olha o inferno em fúria no alto, ondas carmim refratadas pelo movimento da água. Incitada pelos explosivos de Elliott, a vegetação seca como osso alimenta o incêndio, obstruindo a superfície do poço com cinzas pretas e densas. E, para piorar, Elliott ainda está lá em cima – aquela vadia! –, olhando e esperando, pronta para pegá-las no momento em que aparecerem. Como Rebecca Dois sabe disso? Porque é exatamente o que ela faria nessa situação.
Não, não há como voltar. Não se elas quiserem sobreviver a isto.
Remexendo, atrapalhada, o bolso da camisa, ela pega um globo luminoso sobressalente. Perdeu mais alguns segundos, mas precisava enxergar aonde ia.
Devo decidir logo... Agora... Enquanto ainda posso.
Por falta de alternativas, ela decide mergulhar mais fundo na meia-luz turva, puxando a irmã. Rebecca Dois pode ver que a menina sangra pelo ferimento na barriga, a trilha de sangue espiralando como fitas vermelhas e finas atrás dela.

 

 

 

 

Cinquenta segundos.

Vertigem. O primeiro sinal de privação de ar.

Em meio ao tumulto de bolhas e à torrente de água nos ouvidos, Rebecca Dois escuta os gritos da irmã. A falta de ar impulsionou a menina à tona, e suas palavras indistintas são de pânico. Fraca, ela começa a lutar, mas Rebecca Dois crava os dedos com força em seu braço – a irmã parece entender e fica flácida novamente, deixando-se ser levada.

Quarenta segundos.

Reprimindo a compulsão para abrir a boca e respirar, Rebecca Dois continua a mergulhar. O halo lançado por seu globo luminoso revela uma superfície vertical coberta de plantas. Um cardume de peixes minúsculos foge em disparada, as escamas azuis metalizadas refletindo as luzes de arco-íris do globo.

Trinta segundos.

Rebecca Dois localiza uma abertura escura. Enquanto esperneia e empurra a irmã e a si mesma para dentro dela, sua mente volta num átimo a uma vida anterior: todas as aulas de natação que teve em Highfield.

Vinte segundos.

Percebe que é um canal. Talvez, ela se atreve a ter esperanças. Talvez. Seu peito arde – não conseguiria segurar por muito mais tempo, mas continua nadando pelo canal, olhando em volta ao prosseguir.

Dez segundos.

Ela está desorientada – não sabe mais distinguir o lado de cima do lado de baixo. Depois, percebe um reflexo. A alguns metros, a luz do globo é refletida em ondas a partir de um trecho cambiante, como de um espelho. Com suas últimas forças, ela leva a si mesma e a irmã para lá.

As cabeças rompem a superfície da água, explodindo em um bolsão de ar preso no teto do canal.

Rebecca Dois enche os pulmões torturados, grata por não ser metano nem o acúmulo de outro gás prejudicial. Depois que cessam a tosse e os balbucios, vai ver como está a irmã. Embora a cabeça da menina ferida esteja fora da água, ela pende para a frente.

– Vamos! Acorde! – grita Rebecca Dois, sacudindo-a.

Nada.

Ela passa os braços pelas costelas da menina e aperta com força várias vezes.

Ainda nada.

Ela aperta o nariz da irmã, fechando-o, e faz respiração boca a boca.

– Isso! Respire! – grita Rebecca Dois, a voz trovejando no espaço fechado enquanto a irmã solta um pequeno gorgolejo e a água é expelida por sua boca. Em seguida, ela inspira plenamente, mas isso só a faz engasgar ainda mais, começando a se debater, num pânico cego. – Calma, calma – diz Rebecca Dois. – Agora estamos bem.

Depois de um tempo, Rebecca Um se acalma e sua respiração fica regular, embora superficial. Com a mão na barriga sob a água, ela sente claramente uma dor terrível em seu ferimento. O rosto está mortalmente pálido.

– Você não vai desmaiar de novo, vai? – pergunta Rebecca Dois, olhando-a com preocupação.

Rebecca Um não responde. As duas meninas se olham, sabendo que estão em segurança – pelo menos por ora. Sabendo que sobreviveram.

– Vou dar uma olhada no que há mais para a frente – diz Rebecca Dois.

Rebecca Um lhe lança um olhar vago. Depois faz um esforço imenso para falar, mas só consegue formar um “P” com os lábios.

– Por quê? – articula por ela Rebecca Dois. – Olhe acima de você – diz, incitando a irmã a focalizar o que ela, por instinto, tentava usar como escora. Vários cabos grossos como serpentes estão fixados no teto do canal – antigas linhas de força torcidas, com invólucros quebrados, e o núcleo visível e encrostado de uma ferrugem pegajosa e marrom. – Estamos numa espécie de escavação. Pode haver outra saída.

Rebecca Um assente de leve e fecha os olhos, mal conseguindo manter a consciência.


Capítulo Dois


Depois de mais de dois dias no rio subterrâneo, Chester conduziu a lancha até o longo cais.

– Use sua luz! Veja o que tem ali! – gritou ele para Martha acima do rugido do motor de popa.

Martha ergueu o globo luminoso, dirigindo seu facho para as estruturas escuras no fundo do cais. Enquanto reduzia a velocidade e a lancha costeava, Chester observou as construções e o guindaste das docas. Esse porto, certamente, era muito mais substancial do que qualquer um dos menores por que passaram, onde pararam para reabastecer e tirar uma ou duas horas de descanso. O coração de Chester martelava de apreensão quando se atreveu a pensar que finalmente tinham chegado ao final de sua jornada.

A lancha esbarrou na lateral e Chester desligou o motor. Martha segurou um dos postes, prendendo nele o cabo de amarração. Depois lançou a luz novamente, e Chester viu uma grande arcada destacada na tinta branca. Lembrou-se do que Will havia lhe dito sobre a entrada emparedada para o porto, que tinha largura suficiente para permitir a passagem de um caminhão. Tinha que ser a mesma.

Embora estivesse encharcado e sentisse muito frio, Chester ficou eufórico. Consegui! Eu consegui, caramba!, gritava ele por dentro, mas não pronunciou uma só palavra enquanto eles saíam da lancha e pisavam em terra firme.

Voltei à Crosta de novo!

Mas, apesar do fato de estar quase em casa, a situação não era ideal.

Ele lançou um olhar a Martha, que arrastava alguns passos desajeitados pelo cais. A mulher rotunda, com suas muitas camadas de roupas sujas, grunhia como um urso selvagem prestes a atacar. Isso não era novidade alguma – seu comportamento sempre foi errático –, mas agora ele notou que ela virava a cabeça para o escuro e xingava como se houvesse alguém ali. E não havia.

Chester só queria que Will tivesse voltado com ele. Ou com um dos outros. Quando a sorte foi lançada, Chester ficou preso a essa mulher. Ela grunhiu de novo, dessa vez ainda mais alto, depois abriu a boca num bocejo tão grande que ele teve um vislumbre de seus dentes manchados. Chester sabia que ela devia estar exausta da viagem e que a força total da gravidade não ajudava em nada. Ele mesmo sentia a gravidade puxando seu corpo para baixo, por isso, imaginava que devia ser muito pior para Martha, que não vivia nada parecido em anos.

Também ocorreu a Chester o quanto o momento devia ser estranho para ela. Criada na Colônia, Martha nunca esteve na superfície e estava prestes a ver o sol pela primeira vez na vida. Certamente, não teve a melhor vida do mundo: ela e o marido foram Banidos pelos Styx para as Profundezas, oito quilômetros abaixo da Colônia. Lá fizeram parte da brigada errante e fora da lei de renegados, que podiam matar uns aos outros com a mesma probabilidade com que sucumbiam aos perigos daquelas terras sombrias. Por incrível que pareça, ela deu à luz um filho, Nathaniel, ainda nas Profundezas, mas o marido tentou matar os dois, atirando-os à beira do Poro.

Embora tenham sobrevivido à queda, Nathaniel mais tarde morreu de febre, e Martha teve que se virar sozinha. Por mais de dois anos ficou totalmente isolada, sem ver vivalma. Trancando-se numa barricada em uma velha cabana, ela sobreviveu montando armadilhas e comendo as criaturas bizarras que compunham um farto suprimento lá embaixo.

Quando Will, Chester e uma Elliott muito ferida chegaram ao local, ela de imediato se apegou aos meninos, como se fossem substitutos do amado filho que perdera. Na realidade, essas ligações eram tão fortes que ela estava mais do que preparada para a morte de Elliott se isso significasse manter os dois meninos a salvo. Ela não lhes contou que havia um suprimento de remédios modernos em um submarino que afundara em outro dos poros. Mas depois que Will descobriu a verdade, Martha se redimiu, levando os dois ao submarino e efetivamente salvando a vida de Elliott. Então os meninos perdoaram sua atitude.

E foi assim.

Nesse momento Chester não tinha a mais remota ideia do que fazer. Precisava lidar com Martha, além da eterna ameaça dos Styx, que o perseguiam sempre que ia à Crosta. Não tinha para onde ir e ninguém a quem pedir ajuda, exceto Drake: sua única esperança, seu único bote salva-vidas.

Drake, por favor, por favor, esteja aqui!, pensou Chester enquanto vasculhava a escuridão turva do cais, desejando que o homem aparecesse. Chester queria gritar seu nome, mas não podia, porque, sem dúvida, Martha levaria a mal se soubesse que ele tentara entrar em contato com Drake. Sabia que ela era superprotetora e possessiva, e a última coisa que precisava era que ela mergulhasse em um de seus prolongados aborrecimentos. Chester não tinha como saber se Drake recebera o recado que ele havia deixado no servidor remoto. Nem mesmo se ele ainda estava vivo.

Ainda sem falar, Chester e Martha seguiram as instruções de Will e tiraram a lancha da água. Trabalhando arduamente sob a pressão da gravidade, os dois logo ficaram sem fôlego. Porém, com muitos gemidos e palavrões de Martha, conseguiram por fim arrastar a lancha até um dos prédios vazios, onde a deixaram encostada de lado.

Chester se curvou sobre os joelhos para se recuperar e percebeu que tudo o que queria era ir a Londres e ver seus pais, independentemente dos riscos. Talvez a mãe e o pai conseguissem consertar aquela bagunça. Talvez pudessem escondê-lo em algum lugar. Ele não se importava – tinha que encontrá-los e contar que estava bem.


Rebecca Dois nadou rapidamente de volta para a irmã. Ficou aliviada ao descobrir que ainda estava com os dedos enganchados nos cabos de eletricidade. A menina Styx conseguira se manter acima da água, mas suas forças se esvaíam rapidamente. A cabeça estava deitada contra o braço erguido, e os olhos firmemente fechados. Rebecca Dois precisou de vários segundos para erguê-la. Agora era imperativo que a levasse para um lugar seco e a aquecesse antes que ocorresse o choque.

– Tome o máximo de ar que puder. Vou tirar nós duas daqui – disse Rebecca Dois. – Tem um lugar mais à frente.

– Que lugar? – murmurou Rebecca Um, sem prestar muita atenção.

– Segui uns trilhos estreitos pela base do túnel – respondeu Rebecca Dois, passando os olhos pela água pouco abaixo do queixo. – Cheguei a uma parte que não está inundada. É mais larga do que um bolsão de ar qualquer...

– Vamos – interrompeu Rebecca Um. Respirou fundo e soltou os cabos do alto.

Rebecca Dois arrastou a irmã até que chegaram ao lugar descrito. Enquanto Rebecca Um flutuava de costas, Rebecca Dois a puxava como uma salva-vidas.

Logo a água se tornou rasa o suficiente para andar, embora Rebecca Dois fosse obrigada a sustentar a irmã a cada passo. Elas cambalearam e chapinharam até chegarem enfim a um terreno seco.

Rebecca Dois percebeu que os trilhos continuavam no túnel à frente, mas, por mais que quisesse descobrir para onde levavam, precisava primeiro cuidar da irmã. Deitou-a e com muita delicadeza levantou sua blusa para examinar o ferimento. Havia uma pequena perfuração na cintura, pouco acima do quadril. Embora à primeira vista o ferimento não parecesse grave, uma quantidade alarmante de sangue saía dele, deixando uma camada vermelha e transparente na barriga molhada da menina.

– Como está? – perguntou Rebecca Um.

– Vou rolar você de lado – avisou Rebecca Dois. Em seguida, com cuidado, ergueu a irmã para verificar suas costas. – Como pensei... – disse ela à meia-voz ao encontrar uma segunda ferida, por onde a bala tinha saído.

– Como está? – repetiu Rebecca Um, entredentes. – Pode me dizer.

– Podia ser pior. A má notícia é que você está perdendo muito sangue. A boa é que a bala a atingiu de lado na barriga, na parte carnuda...

– Como assim, “parte carnuda”? Está me chamando de gorda? – grunhiu Rebecca Um, indignada, apesar do estado enfraquecido.

– Você sempre foi a fútil, não é? Deixe-me terminar – disse Rebecca Dois, virando a irmã de costas. – A bala a atravessou, então, pelo menos não terei que escavar. Mas preciso estancar a hemorragia. E você sabe o que isso significa...

– Sim – murmurou Rebecca Um. De repente, ficou loucamente furiosa, cerrando o punho. – Nem acredito que aquele bostinha fez isso comigo. Ele atirou em mim! Will atirou em mim! – Ela espumava. – Mas que audácia!

– Acalme-se – disse Rebecca Dois, tirando a própria blusa. Roeu a bainha até conseguir rasgar uma tira, em seguida rasgou várias outras.

Rebecca Um ainda esbravejava.

– O maior erro dele foi não acabar comigo. Ele devia ter terminado o serviço quando teve oportunidade, porque eu vou me vingar. E vou me empenhar, pode ter certeza, para que ele sinta essa dor, só que mil vezes pior.

– É melhor acreditar nisso – concordou Rebecca Dois, unindo duas tiras num nó e dobrando as restantes para que formassem chumaços.

– Quero cortar e sangrar aquele porquinho, mas lentamente... Muito lentamente... Durante dias... Não... Semanas – fervilhava Rebecca Um, quase delirando. – E ele nos roubou o vírus Dominion. Ele vai pagar, mer...

– Vamos recuperar o Dominion. Agora pode se calar, por favor? Precisa poupar suas forças – disse Rebecca Dois. – Vou colocar ataduras em seus ferimentos, depois apertar bem.

Rebecca Um se contorceu quando a irmã colocou os chumaços de tecido por cima dos dois ferimentos de bala. Quando Rebecca Dois passou uma tira pela cintura da irmã e puxou com força, os gritos terríveis de dor, da menina Styx, ecoaram pelo túnel escuro.


– Não se apresse, queridinho. – Martha pressionou Chester enquanto ele tentava decidir o que queria levar. Ele não respondeu, mas por dentro estava a ponto de explodir.

Ah, me deixe em paz, sim?

Martha realmente parecia uma tia intrometida e irritante, sempre o atormentando e lhe lançando dedicados olhares tristes. Além disso, ela suava profusamente desde que eles haviam tirado a lancha da água, e Chester tinha certeza de sentir um odor acre emanando da mulher.

– Não tem sentido embromar por aqui, queridinho – disse ela numa voz enjoativa.

Já bastava. Ele não suportaria mais Martha pairando ao redor dele. Ela sempre ficava perto demais, e isso o deixava muito pouco à vontade. Chester pegou alguns objetos ao acaso e os enfiou no saco de dormir de sua mochila.

– Pronto – anunciou ele, colocando a mochila nos ombros para que Martha fosse obrigada a recuar e evitar que esbarrassem. Depois marchou rapidamente pelo cais, para longe dela.

Mas em segundos ela estava atrás dele de novo, como um cão perdido.

– Aonde, então? – perguntou Martha incisivamente, enquanto Chester tentava se lembrar das instruções de Will. Ele podia ouvir a respiração dela ficar mais ruidosa, como se estivesse irritada com ele ou com a situação em que agora se via.

Embora o comportamento de Martha fosse uma fonte constante de irritação para Chester, volta e meia o outro lado dela se revelava. Repentinamente, Martha perdia a cabeça e se tornava completamente perversa. Chester ficava muito apavorado nessas ocasiões.

– Não sei – respondeu ele com a maior civilidade que pôde –, mas se Will disse, é por aqui que vamos encontrar.

Eles olhavam entre os prédios de um andar só, estruturas rústicas de concreto, nenhuma com vidros nas janelas. Não havia nada que explicasse para que serviam – não tinham placas, apenas números em estêncil com tinta branca. Havia algo nas construções que dava arrepios em Chester. Ele se perguntou se em algum momento do passado as construções tinham sido usadas para alojar soldados, que viveram aqui embaixo, no escuro e no isolamento. Mas agora não havia nada nos prédios, a não ser entulho e peças de metal retorcido.

Enquanto Martha começava a respirar ainda mais pesadamente, o prelúdio para outro resmungo, a luz de Chester recaiu sobre a abertura que ele procurava.

– Arrá! É isso! – anunciou ele rapidamente, na esperança de silenciar a mulher. Os dois olharam a passagem que Will abrira ao remover vários tijolos de cimento.

– Sim – disse Martha, sem emoção nenhuma.

Chester teve a impressão de que ela se decepcionara. Erguendo a besta como se esperasse problemas, ela entrou primeiro. Chester não a seguiu de imediato, balançando a cabeça antes de ir atrás dela. Do outro lado, seus pés se molharam numa água de cheiro ruim, e o fedor era ainda mais intensificado pela agitação criada pelo movimento dos dois.

– Argh! – Ele fechou a cara, consolando-se com a ideia de que pelo menos não podia mais sentir o cheiro de Martha. Viu umas tábuas de madeira meio submersas, depois vários tambores de óleo enferrujados. Um dos tambores estava vazio e flutuava de lado. Quando a água em volta dele era perturbada, batia na parede e soltava um ruído oco e metálico, como um sino tocado no mar.

Mas havia outro ruído – um tap tap constante. Chester localizou uma lata de Coca Diet vazia, batendo no tambor de óleo. Ele a olhou, atônito com seu desenho vermelho e prateado – tão limpa, clara e moderna –, e seu estado de espírito foi às alturas. A lata era inconfundível: viera da superfície e para ele representava algo de seu próprio mundo. Chester se perguntou se talvez Will a tivesse jogado ali quando ele e o dr. Burrows voltaram a esse porto subterrâneo, pouco antes de fazer a viagem de volta ao abrigo nuclear. Ele gostou da ideia de que a lata era uma ligação com seu amigo.

Martha percebeu que Chester parou para olhar a lata e grunhiu para ele seguir em frente. Aquilo não significava nada para ela. Passaram por uma porta e entraram em uma sala ladeada de armários de metal. Exatamente onde Will disse que estaria, encontraram uma escada numa pequena sala adjacente que permitia que eles subissem a curta distância até a superfície. Martha testou alguns degraus engastados na parede de concreto e então, movendo-se lentamente, começou a subir.

Estou realmente aqui? Nem acredito!, pensou Chester, enquanto Martha ia na frente, em direção à luz. Embora estivesse protegendo os olhos, o brilho do céu foi demais para Chester e ele tropeçou às cegas ao sair do alçapão. Caiu de quatro, engatinhando para trás de um espinheiro, onde Martha já se instalara. Os dois continuaram escondidos ali e, pouco a pouco, os olhos de Chester se adaptaram à luz do dia. O tempo não estava tão claro – era o final de uma tarde melancólica, o céu estava nublado.

– Então aqui estamos, queridinho – disse Martha, querendo conversar.

Se este era o grande momento de Chester, o momento em que ele saía das profundezas da Terra e voltava para casa, depois de mais meses do que conseguia se lembrar e depois de tudo o que teve que suportar, então aquilo era um anticlímax terrível. Para dizer o mínimo.

– A terra do cruel povo da Crosta – acrescentou Martha num tom depreciativo.

Chester a viu enrolar um cachecol sujo na cabeça, deixando apenas uma fenda para os olhos. Martha tentava olhá-lo, e ele percebeu que ela ia precisar de um bom tempo para se acostumar com a luz.

Uma ideia lhe veio à mente.

Eu podia abandoná-la!

Deveria sair correndo? Com a visão ainda prejudicada, Martha teria dificuldade de alcançá-lo. Agora é a sua chance, disse ele a si mesmo, enquanto ela fungava com todo o corpo. O muco em suas narinas chocalhou e ela levantou uma parte do cachecol, apertando cada uma das narinas alternadamente, como se tentasse extrair o que restava de creme dental de um tubo.

Chester se lembrou de quando chegou com Will e Cal à Estação dos Mineradores, nas Profundezas, e precisou fazer algo igualmente nojento. Bom, pelo menos aquilo tinha enojado Will. Recordou-se do amigo e das vezes em que estiveram juntos – nos bons e maus momentos – e percebeu que não podia mais sentir raiva dele. Ele não sabia se Will sobrevivera ao salto no poro chamado Jean Fumarenta ao seguir o pai. Tampouco Elliott, já que preferira seguir o mesmo caminho.

Chester estremeceu.

Todos se foram, talvez estivessem mortos, e aquela fora a última vez que os vira.

Ou talvez eles estivessem dando sequência à grande aventura em que ele e Will embarcaram naquele dia no porão da casa dos Burrows, quando partiram pelo túnel. Chester percebeu que descrevera em sua mente o que aconteceu como uma aventura e sentiu uma pontada de dor por perdê-la agora.

Ele pensou nos três fazendo coisas extraordinárias... Will, o dr. Burrows e Elliott... Elliott... Elliott... Ele a imaginou com tal clareza que podia vê-la parada diante dele... Exatamente como no momento em que ela bebeu o líquido do globo ocular do lobo... Ele viu seu sorriso malicioso e implicante quando ela se virou e sugeriu que ele também experimentasse. Chester só tinha admiração por Elliott – ela o manteve vivo com suas habilidades incríveis. Mas, sobretudo, era aquele sorriso que persistia em seu olho mental, preenchendo-o com uma enorme sensação de perda e exclusão.

Chester suspirou, lembrando-se de que estaria melhor na superfície. Já havia tido encontros suficientes com a morte para várias encarnações... Tinha que ser mais seguro ali em cima.

Pelo menos era o que ele tentava dizer a si mesmo quando Martha conseguiu arrancar um bolo cinza de muco da narina, limpando-se com o casaco já sujo.

Por favor, pensou Chester.

Então tudo se reduzia a isso – ele precisou escolher entre Elliott... e essa velha revoltante?

– Sim, estamos aqui – respondeu ele a Martha por fim, desviando os olhos rapidamente dela. – Estamos na Crosta, é verdade.

A luz diminuía rapidamente com o cair da noite e era mais fácil para Martha enxergar. De onde estavam escondidos, eles podiam ver vários prédios, quadrados e de aparência funcional.

Assim, depois de várias horas e agora sob o manto da escuridão, decidiram sair de trás do espinheiro. Com cuidado, pegaram o caminho entre os prédios abandonados no antigo campo de pouso. Will dissera a Chester que ficava em Norfolk, a uns bons cento e cinquenta quilômetros de Londres.

Eles atravessaram o que parecia ser o antigo campo de exercícios, um lugar sinistro em que mato crescia nas rachaduras do asfalto. Ao passar por trás, Chester inspecionou um caminhão de carroceria aberta que, a julgar pela aparência, devia pertencer a construtores ou algum tipo de comerciante. Ele percebeu que estava certo quando viu andaimes em volta de um dos prédios – os acontecimentos, obviamente, mudaram desde que Will e o dr. Burrows estiveram aqui, e a obra já estava em andamento. Depois, ao longe, viu uma cabine de obra. Suas janelas eram iluminadas e um Land Rover estava estacionado ao lado. Will o alertara sobre os seguranças que patrulhavam a pista, e a base deles devia ser ali. Chester podia ouvir seus risos e as vozes altas, carregados pelo vento.

– Podemos pedir ajuda a eles – sugeriu Chester.

– Não – respondeu Martha.

Ele não se deu o trabalho de discutir com ela, mas quando estavam mais afastados da cabine Martha de repente o deteve.

– Nós não vamos pedir ajuda aos Pagãos! Nunca! – Ela se enfureceu, sacudindo-o. – O Povo da Crosta é mau!

– Tudo bem... Sim... Sim – disse ele, ofegante e completamente assombrado com a ferocidade de sua reação. Depois, de modo tão abrupto quanto havia começado, a fúria de Martha pareceu evaporar, e um sorriso bajulador se alojou em seu rosto gorducho. Chester não sabia o que preferia. Mas, depois disso, pensaria com muito mais cuidado no que diria a ela.


Com todo o peso da irmã nas costas, Rebecca Dois estava grata pela baixa gravidade ao subir com dificuldade o túnel inclinado. Embora a menina ferida tivesse perdido a consciência de novo, Rebecca Dois mantinha uma conversa unilateral com ela.

– Vamos pensar em alguma coisa... Você verá. Vamos ficar bem – disse ela. Na verdade, estava freneticamente preocupada com o estado da irmã. O curativo improvisado parecia ter funcionado, mas Rebecca Um já perdera sangue demais. Não parecia nada bom.

Porém, Rebecca Dois ainda não ia desistir de suas esperanças, carregando seu fardo humano por quilômetro após outro enquanto pisava a poeira entre os corroídos trilhos da ferrovia. Embora tenha deparado com a abertura de outras passagens, manteve-se no túnel principal, acreditando que por fim ele a tiraria da mina.

E ela ficou animada ao passar por peças de maquinário antigo, prova da civilização responsável por esta obra no subterrâneo. Não parou para examinar o equipamento, que parecia ser de bombas e geradores. Embora o projeto fosse um tanto datado, ela deduziu serem variações da tecnologia da Crosta usada em mineração profunda. De vez em quando também via picaretas, pás e capacetes descartados pelo caminho.

Sua prioridade máxima era voltar à abertura, especialmente porque ela mesma começava a ficar tonta devido à carência de comida e água. Mas também queria substituir o curativo temporário da irmã por algo mais eficaz assim que possível. Rebecca Dois xingou ao se lembrar dos curativos de batalha na jaqueta que foi forçada a deixar para trás quando Will e Elliott as pegaram numa emboscada.

Depois de vários quilômetros com a única companhia do esmagar constante das botas, ela começou a tomar consciência de outro ruído.

– Ouviu isso? – perguntou, sem esperar uma resposta da irmã. Parou para escutar. Embora fosse intermitente, parecia um gemido distante. Ela partiu novamente e, à medida que a ferrovia aos poucos a levava para um canto, sentiu uma lufada de vento no rosto. Era ar fresco. Cheia de esperança, ela apertou o passo.

O uivo ficava mais alto e a brisa, mais forte, até surgir um brilho vindo de cima.

– Luz do dia... Acho que pode ser – disse ela. Depois, seguindo os trilhos para uma parte ainda mais íngreme do túnel, a origem da luz entrou em seu campo de visão.

O trilho continuava, mas perto da lateral do túnel, onde devia haver pedra talhada, havia uma luz ofuscante. Pelo que ela podia ver, não era artificial. Mas depois de tantas horas no escuro, com apenas o brilho verde lançado pelo globo luminoso, era difícil olhar diretamente para a luz.

– Vou deixar você aqui por um segundo – disse ela e, com cautela, baixou a irmã ao chão.

Protegendo os olhos com o braço, avançou para a luz. As lufadas de vento sopravam com tanta intensidade que a empurravam para trás.

Rebecca Dois disse a si mesma para ser paciente até que sua visão pudesse lidar com o clarão e, depois de algum tempo, ela conseguiu retirar o braço. Pela abertura irregular, via um céu branco. Combinado com o vento, o efeito geral era de que estava em algum lugar muito alto, pouco abaixo das nuvens, se houvesse alguma.

– Então... Esse tempo todo... Estive subindo o interior de uma montanha ? – perguntou a si mesma.

Dando de ombros, ela se aproximou mais da abertura.

E gritou de assombro.

– Precisa ver isso! Você vai adorar! – gritou Rebecca Dois para a irmã inconsciente.

Bem abaixo dela havia uma cidade cortada no meio por um rio. Ao seguir seu curso, Rebecca Dois viu que ele corria para uma área de águas que se estendia até onde a vista alcançava.

– Um oceano? – perguntou ela.

Mas era a cidade que a enchia de assombro. Era imensa, e seus prédios também pareciam proporcionalmente grandes. Mesmo a essa distância era possível distinguir a olho nu o que parecia ser um arco enorme, não muito diferente do Arco do Triunfo de Paris, com largas avenidas irradiando-se a partir dele. Embora o arco fosse, de longe, a estrutura mais volumosa, havia numerosas outras construções, todas de proporções clássicas e dispostas em blocos regulares. Os olhos de Rebecca Dois deixaram o centro da cidade e viram áreas extensas de prédios menores, que ela supôs que fossem casas.

E esta, certamente, não era uma cidade fantasma e deserta.

Se olhasse com muita atenção, algo parecido com veículos se movia na avenida e nas ruas, menores ainda do que moscas a essa distância.

Ela pegou a batida constante de um motor e viu um helicóptero pairando sobre a cidade – era diferente de qualquer outro que tivesse visto na Crosta, com rotores dos dois lados da fuselagem, em vez de um em cada extremidade.

– Mas o que é isso ? – disse ela.

Rebecca Dois voltou sua atenção para o oceano além da cidade. Se ela protegesse os olhos, onde o sol cintilava na superfície da água, podia enxergar toda sorte de embarcações, grandes e pequenas.

Mas o que mais a impressionou foi a aura de ordem e poder que emanava daquela imensa metrópole. Ela assentiu consigo mesma, aprovando-a.

– Um lugar feito para mim – disse ela.


Capítulo Três


Apesar de cansados, Chester e Martha viajaram durante a noite, vagando por incontáveis campos, evitando prédios desabitados ou estradas. Martha fez questão de ir na frente, embora Chester soubesse que ela não tinha a mais remota ideia de seu destino. Ele também não, mas resolveu segui-la temporariamente – não havia nem mesmo um plano alternativo naquele exato momento, não com Martha em seu cangote.

Enquanto andava, Chester pensou em Drake, decidindo que deveria tentar deixar outro recado para ele. Se nada acontecesse, enfrentaria o inevitável e telefonaria para os pais. Mas para fazer qualquer ligação Chester precisava de um telefone, e estava preparado para aguardar a hora de conseguir um. Ele sabia muito bem que Martha faria o que pudesse para impedi-lo de falar com o “cruel Povo da Crosta” e, por isso, ele teria que escapulir dela. Essa decisão o sustentou em sua jornada – mais do que qualquer coisa, ele só queria se livrar daquela mulher.

Quando os primeiros sinais de luz matizaram o céu, eles pararam em uma clareira no meio de uma pequena área arborizada cercada de campos. O coro do amanhecer começava e Chester nem acreditava em como as aves eram barulhentas e numerosas. Havia tagarelice e atividade por toda parte. Era gritante o contraste com os ambientes subterrâneos com que se acostumara, onde, se um animal aparecia, ele tentava comer você, ou você podia tentar comê-lo.

E ele, certamente, nunca testemunhou tal profusão de aves em Highfield. Sou um garoto urbano, refletiu Chester, ouvindo a cacofonia do canto dos passarinhos, mas depois reconsiderou. Parecia que sua vida em Highfield acontecera há muito tempo, e Chester não sabia mais o que ele era.

Alvoroçada na beira da clareira, Martha cortava galhos, usando-os para construir dois abrigos de cada lado de um grupo de freixos. Os abrigos ficavam próximos demais para o gosto de Chester, mas ele não tinha o que dizer a respeito. Além disso, estava completamente exausto – ansiava por se deitar e dormir. Ele e Martha haviam pegado sacos de dormir nos depósitos do intendente do abrigo nuclear, e ele puxava o dele do fundo da mochila quando ouviu um silvo.

– Foi você? – perguntou Chester, preocupado, sem se dar o trabalho de levantar a cabeça.

– Silêncio! – ordenou Martha em voz baixa.

– O que você disse? – respondeu ele.

Ainda acocorada, Martha avançou como um caranguejo até ele. Chester acabara de se virar para ver do que a mulher falava quando ela o derrubou no chão.

– Quieto. Quieto. Quieto – dizia ela repetidamente ao cair por cima dele, tentando colocar a mão em concha sobre sua boca.

Apanhada no feixe do globo luminoso, a cara de Martha estava a centímetros da dele, a ponto de Chester precisar encarar os pelos vermelhos e enroscados que cresciam no queixo dela.

– Não! – gritou ele, conseguindo empurrá-la.

Agora os dois estavam lado a lado no chão, e ela ainda se recusava a soltá-lo. Chester gritava para Martha, que tentava contê-lo com as mãos.

Ele a desviava de sua cara e os dois respiravam com dificuldade pelo esforço do embate enquanto se xingavam. Chester ficou surpreso com a força de Martha. A luta evoluiu para uma troca de tapas, ambos descrevendo círculos pelo chão do bosque, espalhando galhos e folhas por seu caminho.

– Pare com isso! – gritou ele.

Recuou o braço com o punho cerrado, pronto para esmurrá-la, quando seu pânico se abrandou por uma fração de segundo. As palavras severas do pai lhe voltaram.

Nunca bata em uma dama.

Chester hesitou.

– Dama? – murmurou ele, perguntando-se se Martha corresponderia a essa descrição.

Mas precisava fazer algo para acabar com aquela luta ridícula.

Ele girou para Martha, acertando-lhe o queixo. O golpe jogou sua cabeça de lado, e ela de imediato o soltou. Chester não conseguiu se levantar com rapidez suficiente, afastando-se dela aos tropeções.

– Mas qual é o seu problema? – gritou ele da beira da clareira, com medo de que ela o atacasse de novo. Estava sem fôlego e tinha dificuldades para pronunciar as palavras. – Ficou completamente louca?

Ela começou a engatinhar para ele, mas se colocou de joelhos. Não parecia ter raiva. O pavor apareceu em seus olhos quando ela segurou o queixo e olhou o alto das árvores em volta da clareira.

– Ouviu isso? – cochichou ela com urgência.

– Ouvi o quê? – perguntou Chester, pronto para correr, se ela avançasse.

– Esse barulho – disse ela.

Chester não respondeu de pronto.

– Só o que estou ouvindo são passarinhos... Milhões dessas porcarias de passarinhos – respondeu ele. – Só isso.

– Não era um passarinho – disse ela, quase balbuciando, de tão assustada. Ainda olhava para cima, vendo o céu cinzento entre as árvores. – Era um Farol. Ouvi a batida das asas dele. Um deles nos seguiu até aqui. Eles fazem isso... Eu já lhe disse que um deles me perseguiu nas Profundezas. Depois que cismam com você, não desistem...

– Um Farol? Isso é loucura! – interrompeu Chester. – Você ouviu algum pardal ou pombo voando ali em cima. Não existem Faróis aqui, sua idiota.

Ele já estava farto desse absurdo. Os Faróis eram predadores imensos, parecidos com mariposas, com um incomparável apetite para carne, em particular carne humana. Embora tenham sido uma das piores ameaças nos níveis mais profundos da Terra, onde Martha viveu, ele simplesmente não aceitava que um deles pudesse tê-los perseguido até a superfície.

– Você está louca! – gritou ele para ela.

Ela massageava o queixo, onde Chester batera.

– Eu só estava tentando salvar você, Chester – disse ela mansamente. – Tentando proteger você. Assim, se ele mergulhasse, pegaria a mim... E não você.

Chester não sabia o que pensar.

Sentia-se mal por ter batido nela – se Martha realmente acreditava que um Farol estava prestes a atacar, ele compreendia por que ela agira daquele jeito, e devia ficar agradecido. Mas como pode ser um Farol? Martha, obviamente, se convenceu de que ouvira um, mas não conseguiu vê-lo direito. Seu rosto estava abatido e apavorado e, ao olhá-la, Chester notou que Martha tinha uma atitude estranha. Seus olhos disparavam continuamente de um lado a outro, como se ela visse coisas nas árvores.

Levantando-se, ela voltou aos abrigos para terminá-los, depois preparou algo para comer. Quando a comida estava pronta, Chester a aceitou sem dizer nada – estava faminto e cansado demais para discutir com Martha. E comeu em silêncio, perplexo com o incidente. Com ou sem Farol, decidiu que não queria ficar perto dela por mais tempo do que o necessário. Precisava dar o fora o quanto antes.


Rebecca Dois cambaleava em direção ao sol. Não baixou a irmã prontamente, parando um momento a fim de avaliar onde se encontravam. Um platô estreito e rochoso se estendia à sua frente, limitado à esquerda por uma série de picos escarpados. Os picos eram íngremes demais para ela pensar em escalá-los, embora seu senso de orientação lhe dissesse que a cidade que avistara devia ficar do outro lado.

Bem à sua frente, os trilhos da ferrovia continuavam por várias centenas de metros, culminando numa construção baixa. Aparecia uma estrada de terra, seguindo até perder de vista. Ela se perguntou se aquele seria o caminho para a cidade.

O vento ganhava força, soprando seu cabelo comprido sobre o rosto, e ela se virou para a direita.

– Eu subi mesmo uma montanha – murmurou ela, olhando as copas das árvores imensas que se estendiam até o horizonte. – Estamos numa espécie de saliência acima da selva – disse ela à irmã inconsciente, que segurava nos braços.

Rebecca Dois não estava muito surpresa. Estivera subindo continuamente desde a visão espetacular da metrópole e mesmo ali se encontrava numa altitude considerável.

– Acho que devemos seguir a estrada de tijolos amarelos – suspirou ela, sentindo o calor causticante na pele enquanto acompanhava os trilhos e caminhava pelo leve declive até a construção. O platô estava completamente exposto ao sol e não havia sinal de vegetação. – Tenho que colocar você na sombra – disse ela à irmã.

Um gemido fraco saiu de Rebecca Um.

O prédio era simples, feito de madeira embranquecida pelo sol e chapas de metal esburacadas. Mas pelo menos era um refúgio do calor. Depois de colocar a irmã no chão, Rebecca Dois explorou um pouco mais. Havia vários vagões de trem em um canto, e ela foi até o mais próximo, pegando um punhado do material que havia nele.

– Mineração – disse ela, virando pedrinhas na palma da mão.

Era evidente que os vagões já haviam sido usados para levar os despojos dos trabalhos na montanha.

Ela rapidamente vasculhou o restante do prédio, mas não havia nada que lhe fosse útil. Ao se aproximar de uma porta no fundo da construção, bateu com o pé numas garrafas vazias de cerveja.

– Só água me serviria – murmurou ela, enquanto as garrafas paravam de rolar no piso de concreto.

Passou por uma porta e percebeu que estava ao ar livre de novo. Ali descobriu um velho caminhão de três toneladas, cujos pneus haviam se desgastado até se tornarem pilhas escuras em torno das rodas. Ela tocou o emblema na grade amassada do radiador do veículo – embora tivesse sido danificado, o logotipo esmaltado do fabricante se assemelhava a um foguete espacial antiquado, e abaixo dele havia um nome.

– BLIT...? – leu Rebecca Dois em voz alta, mas faltava o restante das letras. Ao lado do caminhão havia quatro grandes tanques de combustível, provavelmente, cada um era capaz de conter várias centenas de litros.

– Óleo diesel – concluiu ela ao sentir o cheiro.

Seus olhos seguiram a trilha suja até um canto um pouco mais à frente, uma curva.

– Então é por aqui que descemos – disse ela. Tinha razão: era evidentemente o único meio de subir ou descer a montanha, seja de caminhão ou a pé.

Pela rajada de vento, ela ouviu a irmã chamando. As duas estavam desidratadas e precisavam desesperadamente de água, mas, mais que isso, Rebecca Um precisava de cuidados médicos urgentes. Se não os recebesse, Rebecca Dois não tinha ilusões: dificilmente a menina sobreviveria a esta provação.

Rebecca Dois tinha começado a se virar para a irmã quando viu algo pelo canto do olho. Ficou imóvel.

Um rastro de luz subiu acima das árvores numa trajetória vertical. Cortou o branco perfeito do céu numa fina linha avermelhada, como o bisturi de um cirurgião ao fazer a primeira incisão na pele de um jovem.

Não era apenas um sinal de vida – não se tratava de uma chama antiga. Sua cor era de extrema importância para a menina Styx.

– Isso! – disse ela, com os lábios secos começando a se curvar num sorriso. – Três... Dois... – Ela contou os segundos, apreensiva, mal conseguindo respirar de tão animada.

– UM! – gritou.

O fio de luz continuou sua trajetória, e a linha vermelha abruptamente ficou preta. O mais puro preto. Depois, numa explosão silenciosa, transformou-se momentaneamente em uma nu vem esférica. A nuvem rapidamente se dissipou, sem deixar vestígios de que estivera ali.

– O vermelho e o negro! – exclamou ela, batendo palmas. – Deus abençoe seus POPs. – Referia-se aos Procedimentos Operacionais Padrão dos Limitadores, porque acabara de ver um de seus sinalizadores.

Ela agora estava radiante.

Em algum lugar na selva devia haver pelo menos um de seus soldados altamente treinados e engenhosos, e um Limitador tentava se comunicar com outro Styx na área. Os Limitadores normalmente operavam com completa dissimulação e nunca sonhariam em revelar sua presença, a não ser nas circunstâncias mais excepcionais. E esta era certamente uma delas. Rebecca Dois tinha poucas dúvidas de que o sinal fora emitido para ela e a irmã.

De algum modo, precisava responder ao sinal. Precisava informar sua localização. Desesperada, ela procurou uma forma de fazer isso, até que avistou um tanque de combustível.

– É isso – disse ela, sua determinação deixando a voz rouca.

Valia a pena tentar. Enquanto olhava o horizonte, viu algumas colunas brancas de fumaça, vindas de fogo comum, subindo acima da selva, mas estavam muito longe. Se pudesse acender seu próprio fogo, poderia ser o suficiente para enviar um contrassinal.

Mas Rebecca Dois percebeu que não tinha nada, só as roupas em suas costas. Mesmo que restasse combustível suficiente nos tanques, como o acenderia?

– Pense, pense, pense! – gritava. Olhando o sol, ocorreu-lhe uma ideia. – Vidro! As garrafas! – exclamou.

Ela disparou para o prédio.

– Você precisa ficar em um lugar seguro – disse à irmã, carregando-a apressadamente pelos trilhos até a entrada da mina. Voltou sozinha ao prédio e pegou uma das garrafas de cerveja que tinha chutado. Levando-a para fora, examinou os tanques de combustível.

O único meio de verificar o nível de combustível dentro dos tanques era abrindo as tampas no alto de cada um deles. Armando-se de um pedaço de madeira, ela subiu no primeiro tanque, que guinchou e por muito pouco não sustentou seu peso. A ferrugem corroera todo o metal, por isso ela conseguia ver o interior do tanque. Todo o combustível tinha evaporado há muito tempo, e isso não era nada bom. Ela xingou.

Saltou o metro de distância até o outro tanque. Parecia estar em melhores condições, ressoando solidamente quando ela pousou sobre ele. Ela tentou virar a tampa, que não se mexia.

– Vamos lá! – gritou. O tempo era essencial, ela precisava sinalizar sua resposta o quanto antes. Golpeou a tampa com a madeira, para afrouxá-la, depois tentou abrir de novo. Com muito esforço, finalmente começou a girar. Ao tirar a tampa, ouviu o silvo da pressão mais elevada dentro do tanque, e o cheiro de vapor de óleo diesel a fez torcer o nariz.

– Perfeito – disse, depois mergulhou a madeira no tanque e a puxou. Ficou molhada de combustível. Rebecca Dois ficou aliviada ao descobrir que o tanque estava quase cheio. Repetidamente mergulhou a madeira, deixando derramar óleo em volta da abertura, e depois desceu do tanque rapidamente.

No chão, quebrou a garrafa em uma pedra e escolheu um caco – o círculo côncavo de sua base. Limpou-o, esfregando na blusa. Depois se ajoelhou com o pedaço de madeira. Inclinou o caco de vidro, focalizando os raios de sol diretamente na madeira, que ainda estava saturada de óleo diesel.

O sol estava tão forte que ao ser concentrado na rodela de vidro ateou fogo no óleo em segundos. Rebecca Dois se colocou de pé e preparou-se, certificando-se de que o archote improvisado ardia bem. Não podia errar o alto do tanque. Mirou e atirou o archote aceso. Depois girou o corpo e correu o mais rápido que pôde.

Só havia atravessado uns vinte metros quando o combustível se acendeu com um estalo alto. Um milissegundo depois houve uma explosão ensurdecedora, que arrancou todo o alto do tanque, arremessando-o para o céu, e ela se atirou no chão. Sentiu o calor arder na nuca, mas continuou engatinhando. Os dois tanques adjacentes se inflamaram, explodindo quase simultaneamente e cobrindo o caminhão e o prédio com uma cortina de fogo.

Quando Rebecca Dois alcançou a irmã na entrada da mina, o caminhão e o prédio estavam engolfados numa massa de chamas, e a fumaça começava a subir ao céu. Era uma densa fumaça negra, que se distinguiria do fogo da selva.

Rebecca Um havia se erguido ao ouvir as explosões.

– O que é isso? – perguntou, tentando focalizar o clarão.

– Reforços – respondeu Rebecca Dois.

– Hein? – murmurou a irmã.

– Nosso povo sabe que estamos aqui e enviou ajuda – disse-lhe Rebecca Dois, rindo. – Temos Limitadores!

Os Limitadores que tinham subido nas partes altas da selva para atuar como vigias viram a fumaça emanando da distante cadeia montanhosa. Como um hematoma escuro no céu, o vapor subia no horizonte e era impossível não avistá-la com binóculos de alto alcance. Os três vigias gritaram para os camaradas, mas se concentraram na origem da fumaça, observando-a por vários segundos para ter certeza. Embora a extensão fosse grande demais para distinguir o que seria responsável pelo fogo, o volume de fumaça parecia aumentar, como se o incêndio só tivesse começado.

Os vigias sinalizaram entre si e rapidamente desceram ao chão, onde o restante do esquadrão os esperava. Nenhuma palavra foi pronunciada enquanto cães de ataque Rastreadores eram desamarrados das árvores na beira da clareira. Então a companhia de cinquenta Limitadores partiu pela relva na direção da montanha.

Até essa altura eles não tinham para onde ir. Não haviam conseguido localizar o rastro das gêmeas Rebecca em nenhum lugar da selva. Mas agora viam o contrassinal e continuariam até chegarem à montanha e à origem da fumaça. E mais além, se fosse necessário.

Agora nada os deteria.

Se alguém os tivesse visto, teria confundido os homens e os cães que corriam a toda pela relva com uma sombra densa lançada no chão.

A sombra de uma nuvem de tempestade muito violenta.


Capítulo Quatro


– Como se chega a essa droga de cidade? – resmungou ela. Sabendo que não podia esperar que aparecesse ajuda, Rebecca Dois decidira descer a montanha. Estimava ter percorrido pelo menos uns cinco quilômetros da estrada de terra, que se estendia no fundo de uma vala de laterais escarpadas. Estas há muito atrapalhavam sua visão da selva e, mais importante, impediam que visse o quanto ainda precisava descer ou quão distante estava da cidade. E a combinação de calor implacável com o peso da irmã em seus braços começava a solapar o que restava de suas forças.

Ela estava pensando no quanto de água precisavam quando viu que a trilha diante dela aplainava e, na realidade, começava a subir.

– Ah, dá um tempo! – gritou.

Isto pareceu surtir efeito em Rebecca Um, que entrava e saía da consciência.

– Will – grasnou ela. – Vou quebrar o pescoço dele. Vou matá-lo.

– Que bom... Continue com os pensamentos positivos – estimulou-a Rebecca Dois. Embora os curativos improvisados ajudassem a reduzir o sangramento da irmã, não o estancavam inteiramente. – Agora não falta muito. Você está indo muito bem – mentiu para ela, ciente da umidade pegajosa que ensopava a própria blusa.

A trilha corria, sinuosa, por uma série de curvas fechadas, e Rebecca Dois sentiu um alívio além de qualquer palavra por ter começado a descer novamente. Depois de alguns minutos, finalmente saiu da vala, o que lhe permitiu ter plena visão dos arredores.

Então parou subitamente, piscando para tirar o suor dos olhos.

– Olhe só isso!

Havia descido a montanha, mas não foi apenas isso que alegrou seu espírito.

Diante dela estava uma estrada – uma estrada de verdade. Corria ao lado de um muro incrivelmente alto, em cujo topo havia um emaranhado de arame farpado. Rebecca Dois vislumbrou algo muito mais importante. Do outro lado do muro havia uma fila de imensas chaminés industriais, quadradas e regulares. Estendiam-se ao longe.

– Você precisa ver isso – insistiu ela com a irmã. – Estamos no finalzinho!

Gemendo, Rebecca Um levantou a cabeça do peito da irmã e tentou ao máximo focalizar.

– Civilização – sussurrou ela.

– É. Mas que civilização? – perguntou Rebecca Dois, ainda maravilhada com a escala das chaminés.

– Deixe para lá... Rápido, por favor – pedia a irmã. – Estou péssima.

– Desculpe – disse Rebecca Dois, avançando pela estrada. Não era feita de asfalto, que teria ficado pegajoso ou até derretido sob o sol que nunca cessava, mas de um concreto claro. Com a aparência de giz macio, era perfeitamente plana e de construção precisa. Pode ter sido uma estrada de serviço menor junto a um parque industrial, mas alguém deve ter se orgulhado muito de seu trabalho. Alguém que gostava das coisas certinhas.

Rebecca Dois começou a distinguir mais chaminés ao longe e então, cerca de vinte minutos depois, viu que assomava um segundo complexo industrial. O sol brilhava em estruturas bulbosas de aço inox, entre as quais havia colunas finas e uma treliça complexa de canos, também de aço inox muito polido. Pequenas nuvens de vapor ou gás branco escapuliam por várias válvulas em volta da instalação, sibilando fortemente, como se reclamassem consigo mesmas por ter que trabalhar no calor opressivo.

Agora capaz de se locomover mais rapidamente em superfície sólida, Rebecca percebeu que o muro terminava pouco antes desse novo complexo. Ao chegar ao canto, descobriu que à esquerda havia uma estrada muito mais larga. Era uma espécie de rodovia de duas pistas, com palmeiras crescendo no canteiro central.

O ar logo acima da superfície de giz da estrada ficou tão superaquecido que tinha a aparência de poças tremeluzentes de mercúrio. Rebecca Dois forçou a vista, mas não conseguia ver ninguém, só a sugestão de um solitário veículo estacionado a pouca distância. Ela correu para ele, notando que a rodovia era limpa e não tinha escombros e que o canteiro central era bem cuidado. Isto, além do fato de que o parque industrial parecia estar em operação, indicava que ela encontraria alguém em breve. E gente significava ajuda para a irmã.

– É um carro – disse Rebecca Dois, ao chegar até ele. – Mas de que tipo?

Baixando a irmã delicadamente no pavimento, ela começou a examiná-lo.

– Parece um Fusca – refletiu, embora fosse maior e mais quadrado do que qualquer Volkswagen da Crosta que tivesse visto e tivesse pneus muito mais largos. Era pintado de prata e, apesar de não haver ferrugem na carroceria, não parecia muito novo. Erguendo a mão para melhorar a visão, ela espiou pelos vidros escurecidos e tentou observar o interior. Era muito pouco sofisticado, com um painel de metal pintado em que havia os habituais mostradores e o velocímetro. Ela experimentou a porta do motorista, mas estava trancada, e ao passar na frente do carro parou perto do capô. – É um Volkswagen – disse, estudando o emblema cromado. – Mas nunca vi esse modelo na vida.

Ouvindo um estrondo, ela girou para o trecho de estrada à frente. Pela névoa de calor teve o vislumbre de um veículo grande, possivelmente um caminhão, que trocava de marcha e acelerava pela rodovia em um cruzamento.

– Vamos, garota – disse ela, pegando a irmã, que murmurava algo ininteligível. A cara de Rebecca Um era branca como papel, excetuando as olheiras escuras. – Não falta muito. Aguente aí – disse-lhe Rebecca Dois, rezando para que a ajuda estivesse à mão quando chegassem ao final da estrada. E logo.


Chester se esgueirou devagar para fora do saco de dormir. Embora o sol estivesse alto, ele não sabia que horas eram. Ao espiar pelos galhos de seu abrigo, pensou distinguir a forma adormecida de Martha em seu saco de dormir. Em silhueta, parecia uma pilha grande de roupa suja, o que não era muito diferente da percepção que Chester tinha dela. Por alguns minutos observou-a com atenção, procurando algum sinal de movimento.

A vadia maluca ainda está apagada. Hora de dar no pé, ele finalmente disse a si mesmo, lembrando-se com muita clareza de como Martha o atacara sob o pretexto de que um Farol estava prestes a investir. Foi a gota d’água – e ele não ia ficar por ali e aturar outros surtos de seu comportamento demente.

Até parece que lhe devo alguma coisa, concluiu ele e, tentando ao máximo não fazer barulho, terminou de sair do saco de dormir, deslizando. Ela não precisa de mim. Pode cuidar de si mesma.

Chester olhou Martha mais uma vez. Seu plano era simples. Voltaria à sua casa em Londres, mesmo que tivesse de ir a pé. E, como não tinha dinheiro nenhum, sua única alternativa era caminhar, a não ser que conseguisse uma carona. Ou que se entregasse às autoridades, coisa que sabia que não podia fazer, porque Will o alertara de que os Styx tinham agentes por toda parte. O futuro parecia sombrio e incerto, mas qualquer coisa era melhor do que ficar com a doida da Martha.

Suas articulações estavam rígidas quando ele colocou a mochila e partiu de quatro pelo chão do bosque, desconfortável com as folhas secas que farfalhavam embaixo dele.

Estava a alguns metros dos abrigos quando deu uma última olhada para trás para averiguar se ela não se mexera.

– Dormiu bem? – disse Martha, animada.

Chester girou o corpo, suas mãos escorregaram nas folhas e ele quase caiu de cara no chão.

Ela estava na sombra dos galhos baixos de um sabugueiro. No chão, ao lado dela, penas voavam na leve brisa, e os corpos rosados e depenados de três aves pequenas estavam dispostos em fila. Como um bebê obscenamente gordo brincando com suas bonecas medonhas, Martha estava sentada, as pernas jogadas à frente, trabalhando na quarta ave. Pelo tamanho, Chester imaginou que seria um pombo silvestre.

– Er... sim – disse ele, ofegante, vendo-a arrancar as últimas penas do corpo flácido do animal.

– Fáceis de pegar, esses bichos burros da Crosta – disse ela simplesmente, colocando o pombo junto dos outros. – E achei uma colônia inteira de cogumelos – acrescentou, indicando a pequena pilha ao lado das aves.

Enquanto ela acendia o fogo e começava a cozinhar a primeira das aves, Chester viu que Martha não tinha problemas para se adaptar àquele novo ambiente. E se perguntou se ela percebeu que ele estava prestes a abandoná-la.


Rebecca Dois continuou pela área industrial até dar em um portão aberto em outro muro. Não era exatamente o final da estrada de duas pistas que seguia e parecia se estender por uma distância considerável. Bem no finzinho dela, Rebecca Dois tinha certeza de que voltaria a ver o arco imenso, apesar da dificuldade de enxergar através do ar vítreo e aquecido demais.

Ela passou pelo portão.

Trovejou, começando a chover. Rebecca Dois podia ouvir a água caindo no solo quente. Sua irmã mexeu a cabeça.

– Que bom – sussurrou Rebecca Um, enquanto a chuva caía em seu rosto. Ela abriu e fechou a boca repetidas vezes, como se tentasse beber as gotas.

Mas Rebecca Dois mal percebia a chuva, que logo se transformou num aguaceiro. Estava no meio do portão, em transe ante a visão do que havia depois dele.

Fileiras de casas.

Carros ao longe.

Gente.

– Meu bom Deus! – suspirou ela.

Podia ser qualquer cidade europeia – a arquitetura não era exatamente moderna, mas as sacadas das casas e lojas de cada lado da rua estavam limpas e em bom estado de conservação. Ela carregou a irmã pelo portão aberto, olhando em volta e se mantendo no meio da avenida. Ouviu trechos de ópera vindo de algum lugar. Era agudo e penetrante, como música ambiente, e Rebecca Dois achou ter visto de onde vinha: uma janela aberta mais além na rua.

– Sem luzes – disse ela a si mesma, percebendo que os postes de rua eram desnecessários nesse mundo de dia permanente.

Avançou até a construção mais próxima. Por sua aparência, supôs que fosse uma espécie de escritório, com todas as janelas com as cortinas fechadas. Perto da porta havia um painel de cobre gravado com um nome e alguma coisa escrita. “Schmidts”, ela leu, “Zahnärzte. Nach Verabredung.”

– Alemão... Um dentista – murmurou Rebecca Um, semicerrando o olho. – Para consertar meu dente quebrado.

Rebecca Dois estava prestes a responder quando se virou e viu alguém. Uma mulher acabara de sair da propriedade ao lado da do dentista, rebocando dois meninos. Descia o pequeno lance de escada até a calçada e tentava manter as crianças protegidas por um guarda-chuva. Vestia uma blusa creme e uma saia cinza na altura da panturrilha, e usava um chapéu de aba larga. Parecia ter saído de um documentário de cinquenta anos atrás. Não é a moda atual, observou Rebecca Dois. Os meninos não tinham mais de seis ou sete anos e se vestiam de forma idêntica, com casacos e calças curtas castanho-claros.

– Hmmm... Olá – disse Rebecca Dois num tom simpático. – Preciso muito de sua ajuda.

A mulher girou o corpo. Ficou parada por um instante, boquiaberta de pavor. Depois gritou e deixou cair o guarda-chuva, que foi apanhado por uma lufada repentina de vento e levado pela rua. Segurando os dois meninos pela mão, ela quase os arrancou do chão ao fugir. Ainda gritava, alarmada, mas os meninos tentavam olhar para trás, os olhos arregalados de curiosidade.

– Acho que não estamos com roupas apropriadas – disse Rebecca Dois, notando que ela e a irmã deviam parecer muito desconcertantes. Tinham o rosto sujo e as roupas queimadas, rasgadas e sujas de lama e sangue.

– O que está havendo? Vai conseguir ajuda para mim? – perguntava Rebecca Um com a voz fraca, enquanto a irmã a sentava no primeiro degrau da escada do prédio que a mulher acabara de deixar.

– Tenha paciência – respondeu Rebecca Dois. Certificou-se de que a irmã estivesse bem escorada na grade da lateral da escada, depois foi ao meio-fio. Olhou a sarjeta, onde a água da chuva se acumulava e corria para os bueiros. – Não teremos que esperar muito para ter atenção – acrescentou ela, tirando o cabelo ensopado da cara.

E em menos de trinta segundos começaram a soar sirenes na metrópole, um uivo baixo que ressoava entre os prédios. Uma pequena multidão tinha se reunido num canto distante para olhar as gêmeas Rebecca, mas com o cuidado de manter distância.

Um veículo zuniu pela rua molhada e derrapou até parar. Era um caminhão militar. Da porta traseira desembarcou um esquadrão de soldados com rifles engatilhados. Rebecca Dois estimava que fossem cerca de vinte homens. Outro soldado saltou da cabine do caminhão, aproximando-se com a pistola apontada para ela.

– Wer sind Sie? – ladrou o jovem soldado para Rebecca Dois.

– Ele quer saber quem somos nós – murmurou Rebecca Um. – Parece nervoso.

– Sim, eu sei... Eu falo alemão, como você – respondeu bruscamente Rebecca Dois.

– Wer sind Sie? – exigiu o soldado de novo, dessa vez destacando cada palavra com um movimento da arma.

Rebecca se virou de frente para o soldado, que supôs ser o oficial encarregado. Olhou seu uniforme cor de areia, que assumia um tom mais escuro ao ser molhado pelo temporal.

– Meine Schwester braucht einen Arzt! – enunciou ela impecavelmente.

– Sim... Preciso de um médico – murmurou Rebecca Um.

O soldado demonstrou surpresa com o pedido de Rebecca Dois e não respondeu. Em vez disso, deu uma ordem a seu esquadrão, que se enfileirou atrás dele com os rifles apontados para as meninas. Depois, liderando-os, avançou lentamente em formação.

Houve um clarão ofuscante de raio, seguido por mais trovões.

E então, de repente, os soldados pararam.

Rebecca Dois percebeu que não conseguia mais ouvir a ópera aguda que tocava na rua.

E se, antes, o soldado parecia ansioso, agora ela via claramente o medo gravado em seu rosto. No rosto de todos os soldados.

Um medo verdadeiro e desenfreado.

– Einem Arzt – repetiu ela, perguntando-se o que teria tal efeito sobre eles. Ouviu um murmúrio e girou para a rua às suas costas. À medida que avançavam, era quase como se os homens estivessem se materializando a partir da chuva forte. A camuflagem parda se fundia com perfeição no dilúvio, deixando-os parecidos com sombras humanas cambiantes.

– Um timing impecável – disse Rebecca Dois no mesmo momento em que a brigada de Limitadores parou de avançar. Havia quarenta deles, posicionados por toda a largura da rua, com os rifles apontados para os soldados alemães. A intervalos regulares pela fila, havia adestradores de cães, que lutavam para manter sob controle os rastreadores. Esses cães de ataque soltavam ruídos sobrenaturais, ganidos baixos que vibravam em sua garganta, enquanto os lábios se repuxavam e revelavam presas ferozes, contorcendo-se de apreensão.

Mas o soldado mais novo e seus homens não olhavam os cães. Estavam paralisados pelas caras de caveira dos Limitadores, de olhos tão negros que pareciam ter sido perfurados.

Não houve movimento de nenhum dos lados. A não ser pela chuva que despencava, era como se a cena tivesse sido congelada.

Rebecca Dois andou até o meio da rua e parou entre as duas linhas.

– Offizier? – perguntou ela ao soldado alemão. Estava tão confiante e relaxada como estaria se pedisse informações a um policial da Crosta.

Desviou os olhos dos Limitadores e, concentrando-se na menina magra com a roupa esfarrapada, assentiu, em silêncio.

– Ich... – começou ela.

– Eu falo sua língua com perfeição – interrompeu ele com um leve sotaque.

– Que bom, então eu preciso... – continuou ela.

– Diga aos soldados para baixarem as armas – interrompeu-a bruscamente.

Rebecca Dois não respondeu, cruzando os braços e encarando firme o oficial.

– Não vou fazer isso – disse ela firmemente. – Não faz ideia do que está enfrentando aqui. Esses soldados são Limitadores. Farão o que eu mandar. E, embora você talvez não veja, há um destacamento de atiradores de elite posicionado nos telhados. Se você ou seus homens ao menos pensarem em abrir fogo...

Ela não se incomodou em terminar a frase, ciente do leve tremor no braço dele, que mantinha a pistola apontada para seu peito.

– Vou mandar que dois homens venham aqui – disse ela. – Um será um médico para minha irmã, que está com um grave ferimento na barriga. Não é um ato de agressão, então diga a seu esquadrão para não atirar.

Ele hesitou, lançando um olhar a Rebecca Um, caída contra a grade, onde a irmã a deixara. O oficial alemão era a imagem da saúde: cabelos louros rebeldes, olhos azul-claros e a pele de seu rosto e dos braços abaixo das mangas dobradas era bronzeada.

– Tudo bem – concordou ele, voltando-se para seus homens e ordenando que não disparassem.

– Obrigada – disse Rebecca Dois graciosamente e, com algumas palavras na língua Styx, ergueu a mão.

Dois Limitadores saíram da formação. O primeiro foi direto a Rebecca Um e a levantou da escada para examiná-la. O segundo parou a alguns passos ao lado de Rebecca Dois, onde ficou aguardando. Ele era um general, o mais velho e mais experiente dos Limitadores presentes, e tinha uma cicatriz branca e nítida em forma de S na face e fios de cabelo grisalho nas têmporas.

Rebecca não o olhou ao voltar a falar com o oficial alemão.

– Diga-me... Como se chama esta cidade?

– Nova Germânia – respondeu ele, passando os olhos pelo general Limitador.

– E em que ano vocês vieram para cá? – perguntou ela.

Ele franziu o cenho antes de responder.

– O último de nós se instalou aqui em... em... neuzehm... ähm... vierzig... – interrompeu-se ao procurar pelas palavras certas.

Um dos soldados do esquadrão o ajudou.

– Em 1944 – disse voluntariamente.

– Antes do fim da guerra. Foi o que imaginei – disse Rebecca Dois. – Sabemos tudo sobre as expedições do Terceiro Reich aos Polos para investigar a teoria da Terra Oca. Mas não sabíamos que tinham conseguido.

– Não somos o Terceiro Reich – disse o oficial alemão categoricamente, eriçando-se, apesar da situação em que se via.

Rebecca Dois continuou, apesar disso.

– Bom, quem quer que sejam, imagino que tenham um rádio ou meios de comunicação em seu caminhão. E se você e seus homens quiserem sair vivos deste impasse, fale com seu comandante. Pergunte a ele se sabe do... – Só agora ela se voltou ao general Limitador, que estava à vontade, com o rifle aninhado nos braços. – Anexo 66 da Unternehmen Seelöwe... Operação Leão-marinho. Era o projeto nazista de invasão da Inglaterra, elaborado entre 1938 e 1940.

O oficial alemão não respondeu, o olhar demorando-se no longo rifle do general Limitador, com sua mira noturna.

– O nome almirante-mor Erich Raeder significa alguma coisa para você? – perguntou-lhe o general Limitador.

– Sim – confirmou o oficial alemão.

– Há alguém nesta cidade que seja da equipe dele ou tenha acesso a registros de suas operações da época?

O oficial alemão secou a água da chuva do rosto, como se quisesse esconder o fato de que não estava gostando nada daquela situação.

– Ouça com atenção... Isto é importante – vociferou o general Limitador, falando com o oficial alemão como se estivesse se dirigindo a um de seus subordinados. – Você vai consultar seus superiores sobre o Anexo 66 do plano de invasão, em que as referências a “Mefistófeles” serão proeminentes.

– Somos nós... Mefistófeles era o codinome de meu povo, os Styx – acrescentou Rebecca Dois. – As tropas Styx na Inglaterra e na Alemanha estavam trabalhando com vocês... Veja só, nós éramos, na época, aliados dos alemães, e somos seus aliados agora.

O general Limitador apontou o caminhão com a mão enluvada.

– Ande, homem, apresse-se! Localize alguém que tenha conhecimento da Operação Leão-marinho e o Anexo 66.

– Precisamos resolver esta situação, antes que você e seus homens morram desnecessariamente – disse Rebecca Dois. Lançou um olhar à irmã, deitada numa manta que o Limitador médico abrira na calçada molhada. Ele já administrara uma injeção no braço da menina ferida, mas Rebecca Dois sabia que ela precisava ir para um hospital. – É fundamental que faça isso logo. Pelo bem de minha irmã.

O oficial alemão assentiu solidariamente. Falou com os homens de novo antes de correr ao caminhão.

Rebecca Dois sorriu.

– É sempre bom reencontrar velhos amigos, não? – disse ela ao general Limitador.


Chester mal tinha adormecido quando foi acordado por violentas cólicas no estômago. No início só permaneceu deitado, dizendo a si mesmo que iam passar, mas não passaram. A dor aos poucos se agravou, e ele foi obrigado a engatinhar para fora do abrigo e correr para as árvores, onde vomitou. E continuou vomitando, até não restar nada no estômago. Ainda assim, a pavorosa ânsia de vômito persistia, deixando sua garganta irritada.

Quando finalmente voltou ao abrigo, trôpego, cinzento e suado, Martha esperava por ele.

– Problemas no estômago? Eu também. Quer tomar algo para isso? – disse ela. Sem esperar que ele respondesse, ela continuou: – Preparei um chá... Deve ajudar.

Estavam sentados em volta do fogo, e Chester se obrigava a beber o chá morno quando as cólicas recomeçaram. Ele correu, mas dessa vez teve diarreia além do vômito.

Martha ainda estava junto ao fogo quando ele voltou, quase sem energia para falar.

– Estou me sentindo podre – disse-lhe ele.

– Vá dormir um pouco... Deve estar com um vírus – respondeu ela. – Muito descanso e fluidos quentes fazem milagres.

No fim, Chester precisou de quase dois dias para se recuperar. Toda esperança que tinha de escapar foi abandonada – no estado em que se encontrava, não iria muito longe. Enquanto transitava entre um sono febril e uma vigília delirante, ele odiou ter de ficar completamente dependente de Martha, mas não tinha alternativa. Quando finalmente foi capaz de comer sólidos e sentiu suas forças começarem a voltar, eles se prepararam para voltar à sua jornada sem rumo.

– Martha, não podemos andar a esmo desse jeito. O que vamos fazer? – disse Chester. – E eu comi mais que o suficiente da porcaria dessas aves que você apanha nas armadilhas. Na verdade, acho que é isso que está me deixando doente.

– Mendigos não podem ser seletivos – retorquiu ela. – E elas me deixam doente também.

Chester a olhou de esguelha. Embora Martha alegasse que também fora afetada, ele não se lembrava de vê-la correndo para as árvores, nem mesmo reclamando de dores na barriga. Mas, também, ele não notara muita coisa ultimamente.

Ao cair do sol, eles se colocaram a caminho novamente, mas Chester ainda estava fraco e incapaz de caminhar a noite inteira. Assim, depois de entrar em outro bosque algumas horas antes do amanhecer, eles armaram acampamento. E ele nem acreditou quando, menos de meia hora após terem comido, seu estômago começou a gorgolejar e as cólicas voltaram. Dessa vez foi ainda pior, e Martha teve de ajudá-lo a sair de perto da fogueira até um grupo de árvores, onde ele teve alguma privacidade enquanto vomitava violentamente.

Nos dias que se seguiram, ela até foi obrigada a lhe dar comida na boca, porque as mãos de Chester tremiam demais para que se alimentasse sozinho. Ele perdeu a noção do tempo, ficando letárgico pela desnutrição, até que Martha o acordou certa noite. Estava agitada, tagarelando alguma coisa a respeito de precisarem ir embora. Ele tentou perguntar o motivo, mas ela não respondeu. Ele se perguntou se talvez ela tivesse ouvido o Farol imaginário de novo.

Mas Chester percebeu que se recuperara o suficiente para caminhar por algumas horas. No chuvisco que caía, eles seguiram pela margem de um campo após outro, até que depararam com um celeiro desmoronado. Embora faltassem telhas e o interior tivesse pilhas de equipamentos agrícolas enferrujados, Martha limpou um dos cantos para os dois se abrigarem. Pelo menos isso significava que ficariam protegidos dos elementos e teriam oportunidade de se secar.

Além de sua doença persistente, Chester estava farto de estar permanentemente molhado – as calças arranhavam suas pernas, e a pele entre os dedos dos pés adquirira uma palidez alarmante e descascava em pedaços quando a tocava. Ele e Martha precisavam muito vestir roupas limpas e tomar um bom banho. Chester percebeu que nos últimos dias Martha não parecia feder tanto, provavelmente porque seu próprio odor corporal encobria o dela.

Quando se aconchegaram nos sacos de dormir no canto do celeiro, Chester estava no fim de suas forças.

– Já suportei o que pude – disse ele, com os olhos vagos, segurando o saco de dormir no pescoço com as mãos sujas. – Nunca fiquei tão doente e estou morrendo de medo de piorar. Martha, não aguento mais. – Parou ao engolir as lágrimas. Dizia a verdade quando falou que não podia continuar. – E se houver alguma coisa realmente errada comigo e eu precisar de um médico? Posso ir atrás de algum? E não estamos indo a lugar nenhum, não é? Não temos nenhum plano. – De fato, Chester alimentava forte desconfiança de que eles andavam em círculos, mas não tinha como provar.

Ela ficou em silêncio por um momento, depois assentiu. Ao olhar o teto dilapidado, o tique em seu olho assumiu uma velocidade surpreendente.

– Amanhã – disse ela. – Veremos isso amanhã.

Chester não sabia o que ela pretendia dizer com isso, mas depois de passar o dia todo no celeiro eles partiram na noite branda. Pela primeira vez não estava chovendo, o que elevou o moral de Chester. Ele se convenceu de que deviam estar quase no litoral; havia um forte cheiro de umidade no ar, e podia-se ouvir o ocasional guincho de gaivotas no alto. Lembrou-lhe muito fortemente das férias da família na praia e o fez pensar mais do que nunca que precisava se livrar de Martha e procurar os pais.

O céu noturno estava claro como cristal durante a caminhada. Chester olhava o alto de um morro e milhares de estrelas que pendiam como uma tapeçaria cintilante e magnífica acima dele quando deu de cara com uma cerca viva. Perdeu Martha de vista até que uma mão disparou para pegar seu braço, puxando-o da sebe.

Enquanto ele cambaleava alguns passos e recuperava o equilíbrio, o contraste o atingiu. Só o que ele havia visto por semanas foram intermináveis campos de plantações e relva alta, e agora estava diante de um gramado bem cuidado. Era tão perfeito sob seus pés que o luar o fazia parecer um carpete de feltro escuro. Chester olhou em volta, notando os canteiros de flores e plantas cultivadas. Martha sibilou para que ele a seguisse, e os dois se esgueiraram pela lateral do jardim, passando por uma estufa e um telheiro grande, diante do qual havia cadeiras de madeira e uma mesa. Martha mudou de rumo no meio do jardim, e Chester percebeu que eles estavam entre duas colunatas de coníferas, em cuja extremidade havia um pequeno portão. Enquanto o atravessava, abaixando-se para passar sob os galhos de um salgueiro-chorão, avistou a silhueta escura da construção.

– É um chalé – murmurou ele ao parar do outro lado do salgueiro. Parecia bem conservado, mas não mostrava sinais de ser habitado. Não havia luzes acesas em seu interior e as cortinas de todas as janelas estavam abertas. Eles contornaram a lateral do chalé e foram para a frente, onde havia um pequeno pórtico acima da porta, com uma roseira trepadeira crescendo sobre ele, e um caminho de cascalho sem nenhum carro estacionado.

Chester não tentou dissuadir Martha quando ela disse que ia invadir. O chalé era isolado, e não parecia haver um alarme contra ladrões. Eles voltaram aos fundos do chalé, onde Martha quebrou a vidraça de uma das janelas corrediças e, abrindo o fecho, levantou-a. Ao subir nela, Chester sentiu-se meio inquieto com o que estavam fazendo, mas já estava farto da vida ao ar livre. E, quer eles percebessem isso ou não, os efeitos da gravidade normal da Terra ainda os castigavam – particularmente Martha. Eles precisavam de um lugar onde pudessem descansar direito.

Descobrindo que havia uma despensa bem abastecida e uma geladeira na cozinha, Chester recusou a oferta de Martha de preparar comida para ele. Em vez disso, serviu-se de uma lata de feijões cozidos, que comeu frios. Ele olhou com ânsia as camas arrumadas com lençóis brancos e imaculados nos quartos do segundo andar e tomou um banho rápido depois de ligar o aquecedor.

No começo, nem acreditava em como doía o toque da água ao lavar a sujeira de muitos meses. Depois, à medida que sua pele se acostumava com a limpeza e parava de arder, ele continuou sob a torrente de água, deleitando-se com seu calor. Começou a relaxar, sentindo que não se livrava só da sujeira, mas também de seus problemas. Depois de se enxugar e atacar o guarda-roupa de um dos quartos, vestindo um jeans e uma camiseta que não ficaram tão ruins, Chester se viu vasculhando uma gaveta da parte inferior do guarda-roupa.

– Meias. São só meias – disse a si mesmo com uma risadinha. Porém, ao se sentar na cama e vestir um par de meias limpo, depois de trocar as botas, ele mexeu os dedos dos pés com um largo sorriso. Sentia-se muito melhor. Pronto para encarar qualquer coisa. – Sim! Meias secas! – proclamou, ao se levantar.

Voltou para o térreo, tentando encontrar Martha para dizer que pretendia tirar um cochilo numa das camas quando entrou na sala de estar. Parou abruptamente ao avistar um telefone.

Era isso. A oportunidade que ele esperava.

Podia ligar para Drake novamente, ou até para sua mãe e seu pai. Chester pensou nos pais. Tinha que informar a eles de que estava vivo, e bem – não falava com os dois há meses, desde que ele e Will desceram o túnel abaixo da casa dos Burrows naquela noite fatídica.

Com a respiração suspensa, Chester pegou o fone e ouviu o tom de discagem. Mal conseguia conter a empolgação ao começar a discar o número de sua casa. Estava louco para falar com os pais. “Oi, pai, oi, mãe”, ele ensaiou em voz baixa, rezando para que não tivessem saído, ou pior, não tivessem se mudado.

Não!, ele se repreendeu.

Seja otimista.

Só conseguiu discar alguns dígitos quando o telefone caiu de sua mão e ele foi derrubado por um golpe na nuca.


Capítulo Cinco


Os olhos de Drake se abriram levemente, e num instante ele rolou da cama e ficou de pé.

Estava num quarto escurecido – inteiramente estranho. Por mais que estivesse acostumado a acordar em lugares novos toda manhã, ele não conseguia deduzir como tinha chegado ali, nem que sua vida dependesse disso. A atmosfera do quarto era limpa e fria, e ele pegou o ronco de um aparelho de ar-condicionado.

Como seu crânio latejava de dor, ele colocou a mão na testa e cambaleou de volta à cama. Foi nessa altura que percebeu que, embora ainda estivesse completamente vestido, não estava de meias nem sapatos. E sob as solas dos pés havia algo que parecia um carpete grosso e luxuoso.

– Meu Deus!... Onde estou?

Era muito diferente de qualquer uma das propriedades vagas ou trancadas em que costumava dormir.

Tateando às cegas ao lado da cama, ele se chocou com uma mesa lateral e derrubou um abajur no chão. Ajoelhou-se para localizar o objeto e se atrapalhou com o interruptor, tentando ligá-lo. Quando a luz atingiu seu rosto, ele gemeu e piscou.

Will e Elliott teriam ficado assombrados com sua aparência – não teriam reconhecido este homem. Com uma barba de uma semana, seu rosto estava inchado e havia hematomas escuros sob os olhos cansados. E seu cabelo, em geral bem aparado, tinha crescido e estava achatado no lado da cabeça sobre o qual dormira.

Com o abajur ainda na mão, encontrou a beirada da cama e arriou nela. Passou a língua pelo interior da boca seca, sentindo o gosto de um resíduo amargo de álcool.

– Vodca? – grasnou ele, quase engasgando. – Mas o que eu fiz? – perguntou a si mesmo ao tentar se lembrar da noite anterior. Tinha a vaga lembrança de entrar num bar, possivelmente no Soho, com a missão de esgotar as bebidas do lugar. Isso fazia sentido. Parecia que sua cabeça ia explodir.

Mas a dor que a ressaca lhe provocava não era nada comparada com o vazio que o preenchia, o vazio que era sua vida.

Pela primeira vez em muito tempo ele estava completamente perdido. Não tinha direção, nenhum plano em que devesse trabalhar. Anos antes fora recrutado por uma organização clandestina, cujo propósito era lutar contra uma raça chamada Styx, que se escondia abaixo de Londres em uma cidade subterrânea de nome Colônia. Mas a influência dos Styx se espalhava para bem além dessa cidade: seu propósito maligno permeava a sociedade da Crosta como ramificações de um fungo pernicioso crescendo pelo solo. Por séculos os Styx estiveram tramando subverter a ordem do mundo da Crosta, enfraquecê-lo o suficiente para que um dia pudessem assumir suas rédeas.

E a última iniciativa de Drake contra eles terminou numa esmagadora e completa derrota. Fingindo que tinha o único frasco do vírus letal Dominion, a ideia era atrair um dos mais importantes Styx para céu aberto e pegá-lo. A entrega do vírus aconteceu no Highfield Common, com a mãe de Will, a sra. Burrows, tomando a frente para dar credibilidade. Mas, longe de serem apanhados no esquema, os Styx estavam um passo à frente e incapacitaram Drake, seu braço direito, o Homem de Couro, e o restante de seus mercenários com algum dispositivo subsônico.

Drake sinceramente duvidava de que o Homem de Couro ou qualquer dos outros tivesse conseguido sobreviver – os Styx eram brutais e implacáveis quando lidavam com os que se atreviam a se opor a eles. E a sra. Burrows também ficou perdida na operação. Drake só podia imaginar que ela também estava morta. Pelo que sabia, ele era o único sobrevivente, salvo pela ajuda de uma parte muito inesperada.

– Beber... Preciso de algo para beber – murmurou ele, tentando expulsar esses pensamentos de sua mente. Não achava que merecia estar vivo. A perda terrível de todas aquelas pessoas, pelas quais ele e somente ele se sentia responsável, era demais para Drake. Estalando os lábios, colocou o abajur na cama e andou com dificuldade até a janela do quarto desconhecido.

– Mas que diabos...?! – exclamou ao abrir a cortina. Semicerrou os olhos, a dor de cabeça se exacerbando quando a luz do dia inundou o quarto. Ficou inteiramente aturdido ao ver a vista. Do alto de três ou quatro andares, podia-se ver um trecho do Tâmisa, enquanto ao longe o sol pendia luminoso sobre o Canary Wharf, um importante centro comercial de Londres.

Ele girou para examinar o quarto. Era espaçoso, as paredes escarlate estavam enfeitadas com molduras douradas e decoradas com antigas gravuras militares, principalmente de soldados da Guerra da Crimeia. Além da cama de casal havia uma mesa e um guarda-roupa, tudo de madeira escura, que podia ser mogno. Isso sugeria um quarto de hotel – de um hotel caro.

– Eu morri e fui para o Hilton – murmurou ele consigo mesmo, perguntando-se se haveria um frigobar metido em algum canto do quarto. Precisava de uma bebida para se anestesiar, para deter as autorrecriminações perpétuas por ter deixado que tantos caíssem. Olhou a porta fechada, mas não se aproximou dela, virando-se para a janela e encostando a testa no vidro frio. Suspirando alto, seus olhos injetados acompanharam o movimento de uma lancha da polícia que subia o rio, para onde ele sabia que ficava a Tower Bridge.

Houve uma batida na porta.

Drake endireitou o corpo.

A porta se abriu, e seu salvador do Highfield Common entrou no quarto com um copo na mão. Disse a Drake que era um ex-Limitador, um dos soldados do regimento de elite dos Styx, com reputação de impiedade total.

Era estranho ver um daqueles assassinos selvagens e magros completamente fora de contexto, vestido com uma jaqueta esportiva cinza, calças de flanela e sapatos marrons. Apesar de seu estado, Drake conseguiu abrir um sorriso.

– Ah, um Styx só para mim – disse ele, depois gesticulou, indicando o quarto. – Que lugar legal você conseguiu aqui.

A voz do Limitador era nasalada, e o modo como falava era curto e antiquado.

– Sim, tive vários lares em Londres, mas prefiro passar meus dias aqui.

Drake girou para a janela de novo.

– Aposto que os outros não têm essa vista. – Ele ficou em silêncio por um segundo, depois se voltou para o Limitador. – Então foi assim que cheguei aqui. Você me tirou daquele bar ontem à noite. Acha que é meu anjo da guarda ou coisa parecida? – O Limitador não respondeu ao entregar o copo a Drake, que o cheirou. – Um bom suco de laranja? – disse, com uma expressão fugaz de decepção, depois tomou um gole. – Mas está bom, mesmo assim – suspirou, enquanto o líquido batia em suas papilas esgotadas.

– É fresco – disse o Limitador.

Beliscando a ponte do nariz, Drake tentou ordenar os pensamentos.

– Sei que acha que me deve alguma coisa porque cuidei de Elliott, mas... É sério... Agora estamos quites. Você salvou minha vida no Common. Fez sua parte, e estamos acertados.

O Limitador assentiu.

– Sim, estou grato pela ajuda que deu a minha filha. Ela não teria durado muito tempo sozinha. As Profundezas são um lugar perigoso... Sei muito bem disso, de minhas jornadas por lá – disse ele ao se sentar na beirada da cama. – Mas... – interrompeu-se.

– Mas o quê? – rugiu Drake, perdendo a paciência enquanto a dor de cabeça continuava a martelar seu crânio.

– Se você não se recompuser, Drake, meu povo o pegará. Eles o neutralizarão – disse o Limitador, sem emoção alguma, apagando o abajur que Drake deixara na cama, para enfatizar suas palavras.

Drake soltou um pigarro desagradável.

– Não tenho o hábito de me embebedar desse jeito... Como na noite passada. Foi um caso isolado.

– Parece que você tem tido alguns casos isolados ultimamente – disse o Limitador à meia-voz. – Depois que o barman se recusou a lhe servir, você o maltratou. Gritou com ele, chamando-o de Styx. Todos no lugar ouviram.

Drake fez uma careta, mas se colocou na defensiva.

– O que eu decido fazer de minha vida é problema meu. Se eu quiser... – disse ele, depois parou, perguntando-se por que estava se dando o trabalho de se explicar àquele homem. – De qualquer forma, o que isso tem a ver com você? Não entendo.

– Por causa de Elliott. Você disse que ela está em algum lugar no fundo do Poro. Preciso de sua ajuda para tirá-la de lá e cuidar para que esteja em segurança. Em troca, eu o ajudarei. E agora acho que você está precisando de alguma ajuda.

Drake passou os olhos pelo rosto encovado do homem, encontrando suas pupilas negras e penetrantes. Era o rosto do inimigo contra o qual lutou com unhas e dentes por muitos anos, e neste exato momento Drake estava parado a alguns metros de um deles, bebendo seu suco de laranja recém-preparado. Mais do que isso, o homem pedia a ajuda dele. Uma novidade e tanto.

Drake soltou um riso seco.

– E por que eu deveria confiar em você? Pelo que sei, esta pode ser outra de suas artimanhas espertinhas de Styx. Vou acabar sendo usado, depois mastigado quando você e seus conspiradores arrancarem tudo o que querem de mim. – Drake balançou a cabeça. – Já vi esse filme.

– Não, eu já lhe disse. Não participo do que eles estão fazendo. Fingi minha morte para me desligar disso – respondeu o Limitador.

– Ora, que bom para você. Descanse em paz – respondeu Drake com sarcasmo. – Então você desertou de um bando de megalômanos homicidas. Lamento, mas, mesmo que esteja me dizendo a verdade, o que isso prova? Que você é um traidor e não merece confiança?

– Elliott prova tudo – respondeu o Limitador, com uma frieza na voz que indicava que Drake o enfurecera. – No momento em que tive uma filha com uma colonista, fui marcado. Eu era um homem morto aos olhos de meu povo.

– Como pode ser?

– Até onde vão os livros de história, temos sido uma raça à parte. Mesmo antes do Império Romano, nós nos insinuávamos nas classes governantes e influenciávamos os acontecimentos a nosso favor – disse o Limitador, colocando as mãos nos bolsos da jaqueta. Ele podia ter sido membro da elite assassina Styx, mas tinha algo vagamente professoral, o ar de um acadêmico discutindo sua mais recente pesquisa.

– Você pode não ter consciência disso, mas nem sempre nos escondemos em lugares como a Colônia. Em várias épocas, espalhamo-nos pelos continentes, jamais nos reunindo em grupos que teriam nos evidenciado... Nunca em guetos... Porque, então, podíamos ter sido localizados e perseguidos. Mas, embora estivéssemos escondidos à plena vista, a lei determina que jamais nos miscigenemos... Nós nunca temos filhos com forasteiros. Como decreta o Livro das Catástrofes: “A pureza é sagrada.”

– E aonde você quer chegar com isso? – interrompeu Drake.

– A miscigenação resulta no que chamamos de Diluição... Significa que as fronteiras ficam turvadas. E foi precisamente o que eu fiz. Infringi uma de nossas leis mais sagradas. Se Molly... a mãe de Elliott... e eu fôssemos descobertos, poderíamos ter sido mortos tanto por um linchamento dos colonistas como pelos Styx. E, naturalmente, o mesmo aconteceria com Elliott, porque ela é mestiça. Molly teve que fingir doença para acobertar sua gravidez, e sua família levou Elliott depois de seu nascimento. Mas, à medida que crescia, ficava evidente demais que ela era diferente.

Drake assentiu, e o Limitador continuou:

– A realidade é que, se Elliott não tivesse fugido para as Profundezas, era uma questão de tempo até ser localizada devido ao que era. O sangue Styx flui em suas veias.

O olhar do Limitador estava na janela, num jato que voava acima da silhueta da cidade.

– Ela precisava sair. Com o passar dos anos, foram vários casos de filhos entre meu povo e os colonistas. Eles os chamam de Bebês do Ralo.

– Por que Bebês do Ralo? – perguntou Drake. – Nunca ouvi falar disso.

– Porque, com muita frequência, são abandonados nos canos de esgoto abaixo da Caverna Sul. Então, o que me diz? – O Limitador agora olhava para Drake, esperando por uma resposta. – Vamos cooperar... Trabalhar juntos?

– Preciso lhe dizer, sr. Limitador, que agora estou fora dessa – respondeu Drake numa voz tensa. Seus ombros baixaram, e de repente ele parecia exausto. – Tudo o que tentei foi destruído por seu povo. E você está desperdiçando fôlego ao tentar me levar a um de seus jogos elaborados de Pescoço Branco.

– Tudo depende de que jogo está falando – disse o Styx. – Pergunte a si mesmo o que pode realizar com um Limitador a seu lado. Alguém que conhece todos os segredos Styx, alguém de dentro.

Um sorrisinho brincou na cara de Drake, como se não levasse nada disso a sério.

– Então está me dizendo que você se uniria à luta contra sua própria raça? – sugeriu ele. – Me ajudaria a destruí-los?

O Limitador se levantou da cama e fez um pequeno movimento com o pé no carpete grosso.

– Não, só porque discordo do rumo que eles escolheram não significa que queira que meu povo seja prejudicado. Não apoiarei uma ação letal contra os Styx. Nem permitirei que qualquer colonista seja prejudicado... E isso inclui Molly.

– Não, claro que não – grunhiu Drake à meia-voz. – Por que espécie de homem você me toma?

O Limitador continuou, apesar da interrupção:

– Não preciso lhe dizer que aqueles do topo da hierarquia Styx, inclusive as gêmeas chamadas Rebecca, propuseram essa política, mas nós acreditamos que seja uma abordagem coercitiva e desnecessária.

– Nós? – perguntou Drake.

– Eu sou um de vários Styx que não concordam com as inciativas mais radicais contra o Povo da Crosta, por exemplo, a liberação de um reagente biológico como o vírus Dominion. Acreditamos que o Povo da Crosta será responsável por sua própria destruição, sem nenhuma intervenção nossa. Depois, o caminho estará limpo para que entremos.

– Então acha que vamos nos matar sem a sua ajuda? – disse Drake. – E se você discorda tanto dos mandachuvas Styx, por que não se manifesta contra eles?

A expressão do Limitador dizia tudo ao fitar Drake.

– Não, essa é uma má ideia – murmurou Drake.

O Limitador levantou o braço e cerrou os dedos num punho.

– Nós dois queremos deter essas iniciativas, então, estranhamente, nossos objetivos estão alinhados. Podemos trabalhar juntos em sua sabotagem.

Enquanto refletia sobre a proposta do Limitador, a luz aos poucos voltou aos olhos opacos de Drake. Ele passou a mão nos cabelos, tentando ajeitá-los, olhou o Limitador e assentiu de leve.

– Tudo bem – decidiu –, eu estaria mentindo se dissesse que não me interessa. Fale mais.

– Limpe-se primeiro. Será mais fácil se eu lhe mostrar – disse o Limitador ao encaminhar-se para a porta.

Agora sozinho no quarto, Drake foi ao banheiro contíguo, onde tomou um banho e se barbeou. Bebeu vários copos de água, vendo-se no espelho enquanto enchia o copo na pia. Encarou seu reflexo por vários segundos.

– Já basta... Hora de voltar ao trabalho – disse ele, retornando ao quarto para encontrar suas botas. Quando estava pronto, passou pela porta e desceu um curto corredor que levava a um cômodo muito maior. De uma imensa claraboia no meio do teto o sol iluminava o que, à primeira vista, parecia ser uma mesa de bilhar. Mas, no lugar da superfície plana de feltro verde que Drake esperava encontrar, todo o tampo da mesa era ocupado por uma maquete de um vale, pontilhado de exércitos de pequenos soldados arrumados em uma formação complexa. O Limita dor ajeitava a posição de alguns soldados numa ponta, mas agora se afastou dali.

Os olhos de Drake percorreram rapidamente a cena enquanto ele avaliava os vários exércitos, suas fardas de cores vivas nítidas contra o verde da paisagem.

– Sim... Então temos os britânicos e os holandeses ali, na escarpa do monte Saint Jean – disse ele, andando de lado ao longo da mesa –, e aqui vêm os prussianos. – Avançou na maquete, depois parou. – E nas encostas aqui... Estes soldados de infantaria de farda azul devem ser as forças francesas. Então esta é a véspera da Batalha de Waterloo, em março de 1815, não é?

Se o Limitador ficou impressionado com a rapidez com que Drake identificou a campanha, não deixou isso transparecer.

– Correto – respondeu meramente.

Drake ainda observava a cena.

– Você realmente conhece seus negócios, não? Mas por que um Styx teria interesse em algo que aconteceu na superfície quase duzentos anos atrás?

– Parte de nosso treinamento na Cidadela era nos familiarizar com as táticas militares da Crosta ao longo dos séculos – respondeu o Limitador. – E a Batalha de Waterloo sempre foi minha preferida.

Drake assentiu.

– A minha também, porque o resultado dependia de muitos componentes em movimento... Muitos fatores tinham que se reunir para que Napoleão, a maior mente militar de sua geração, finalmente encontrasse um oponente à altura. Era como se a mão do destino finalmente se movesse contra ele.

– A mão do destino? – repetiu o Limitador, depois balançou a cabeça. – Discordo. O golpe de mestre de Wellington foi conquistar o apoio das forças holandesas e prussianas quando encenou o ataque... Foi o que lhe garantiu a vitória. A sorte... ou o destino, como chama... nada tem a ver com isso. Wellington era um gênio militar... Ele foi superior a Napoleão.

Drake o olhou.

– Então o mérito da vitória da Sétima Coalizão é das habilidades de Wellington como general... Ou como político?

– Que diferença faz? – respondeu o Limitador.

Drake franziu o cenho porque algo na cena de batalha não fazia sentido para ele.

– Estou vendo Napoleão aqui – disse ele, apontando a figura flanqueada por seus generais. – Mas onde está Wellington? – Andando em volta da mesa, Drake examinou mais atentamente as forças britânicas. – Não o vejo em lugar nenhum.

– É porque estou dando outra olhada nele – disse o Limitador, indo a uma escrivaninha junto da parede, onde pegou uma única figura. – Ainda não estou inteiramente satisfeito.

– Posso? – perguntou Drake, estendendo a mão.

– Certamente. – O Limitador lhe passou a figura.

– O Duque de Ferro – disse Drake enquanto examinava a figura, que parecia escrever num mapa. Ele a ergueu para a luz, vendo seu comprido casaco azul e a faixa vermelha amarrada na cintura. – Você disse que não está satisfeito com ele... Mas estes detalhes são de tirar o fôlego. – Ele elogiou o Limitador, depois olhou a mesa onde a figura estivera. Nela havia pequenos potes de tinta, pincéis numa caneca, uma lente de aumento grande e vários soldados inacabados. – Não me diga que pinta tudo você mesmo! Você fez todas as figuras da cena?

– Ajuda a passar o tempo – respondeu o Limitador.

– Não, é muito mais do que isso... É uma obra de amor – declarou Drake. – Importa-se se eu...? – perguntou, curvando-se sobre a mesa, onde o exército britânico estava posicionado.

– À vontade – respondeu o Limitador.

– Assim está melhor. Agora está onde deveria – disse Drake, ao colocar Wellington cuidadosamente na frente de uma pequena barraca de campanha com os outros generais britânicos.

Em seguida, Drake olhou o restante da sala. Havia prateleiras de livros e uma fila de armários envidraçados em que estavam capacetes do exército inglês de Waterloo, da Guerra da Crimeia e de outras batalhas do século XIX, com insígnias de bronze polido e plumas. Quando Drake desviou o olhar, viu que o Styx o examinava e encontrou seus olhos impenetráveis.

– Tem algo em mente? – adivinhou o Styx.

Havia mil perguntas que Drake queria fazer àquele homem, mas resolveu não bombardeá-lo imediatamente.

– Sim, há uma coisa. Você sabe meu nome, mas como devo chamá-lo? Estou ciente de que os Styx não têm nomes... Bom, não um nome que o Povo da Crosta consiga pronunciar – disse Drake com certo constrangimento.

O Limitador refletiu por um momento.

– O locatário deste depósito é Edward James Green – respondeu ele. – Tenho outras identidades, como...

– Não, esta vai servir – interrompeu-o Drake. – Edward... James... Green. – Esfregou a testa enquanto pensava. – Então o chamarei de... Eddie... Eddie, o Styx. – A ideia de se dirigir a um desses soldados selvagens, ainda que aposentado, por um apelido comum da Crosta era tão absurda que Drake não conseguiu reprimir uma risadinha.

– Como quiser – respondeu o recém-batizado Eddie, confuso por Drake se divertir tanto.

Eles foram para a extremidade da sala, onde uma série de monitores de circuito interno exibia cenas da rua e de vários locais que Drake não reconheceu de pronto – parecia ficar no interior de túneis de tijolos. Eddie percebeu o interesse de Drake.

– Os esgotos debaixo deste prédio. É uma medida preventiva... Todo cuidado é pouco – disse ele.

– Sim, muito pouco, com os Styx – concordou Drake.

No final de um pequeno corredor havia uma pesada porta de aço. Eles passaram por ela e desceram uma escada de ferro batido quando Drake parou de repente.

– O que é este lugar? – perguntou ele. O contraste com o luxuoso apartamento que acabara de deixar não podia ser mais acentuado.

Dessa perspectiva elevada, ele olhava o que parecia um depósito, uma área de cerca de cem metros de uma ponta à outra e cinquenta de largura. As janelas altas estavam sujas e mal deixavam passar alguma luz, mas a pouca luminosidade que havia revelava que o espaço do térreo era pontilhado de máquinas. Drake desceu a distância restante e as viu mais de perto, e sua condição sugeria que não eram usadas há décadas.

– Esta é uma engarrafadora vitoriana, uma empresa familiar – disse Eddie. – Quando os concorrentes roubaram sua participação de mercado, eles fecharam a fábrica. Simplesmente desativaram todas as instalações e lacraram as portas. Deixaram tudo aí, apodrecendo.

– E você alugou e construiu uma habitação no segundo andar – disse Drake, olhando o piso de cima. Ao passar a ponta dos dedos numa esteira transportadora, pedaços de sua borracha esfarelaram ao toque.

Eddie o levou por um corredor, ladeado por máquinas cobertas de lonas apodrecidas.

– O que tem ali? – perguntou Drake, tentando enxergar o que havia nas sombras perto da parede mais distante. – Motocicletas?

– Sim... Eu as uso para dar uma volta por aí – disse Eddie. – Mas o que quero mostrar fica por aqui.

Perto do canto do depósito ele parou diante de um antigo torno coberto por uma ferrugem laranja e esfarelada.

– Primeiro passo no desarmamento – disse ele a Drake enquanto apertava um botão vermelho e sujo em seu painel de controle.

Depois prosseguiu atrás do torno até uma pequena estrutura bem no canto do prédio. Era feita de andaimes e coberta por lonas de polietileno grosso. Ele ergueu a lateral da lona e revelou uma porta de metal no chão, engastada em concreto.

Era evidente para Drake que aquilo era um acréscimo recente ao prédio, uma vez que a superfície da porta não exibia nenhum sinal de corrosão e o concreto em volta dela ainda não estava manchado pela umidade. Eddie se curvou e abriu a capa de um teclado na lateral da porta. Começou a digitar uma série de números, parando para falar quando estava na metade.

– Se não seguir isto com exatidão, todo o lugar está armado para explodir.

– Uma alma gêmea – disse Drake enquanto Eddie digitava os últimos números e a porta grossa se abria em uma fresta com um estalo. Ele a abriu totalmente e Drake o seguiu de perto ao descerem um curto lance de escada.

– Acho que vai gostar disso – disse o homem magro.


Capítulo Seis


– Estou lhe dizendo, era um avião – insistiu o dr. Burrows. – Bom, eu não ouvi nada – respondeu Will, aproximando-se um pouco da cobertura das árvores imensas para olhar o céu branco e luminoso. – Você ouviu? – perguntou a Elliott, que se juntara a eles, examinando o céu. Ela balançou a cabeça.

– Ora, não adianta nada procurar agora – grunhiu o dr. Burrows. – Ele voou para o leste.

Will se virou para o pai.

– E acha que era o quê?

– Eu já disse... Um Stuka... Um bombardeiro alemão da Segunda Guerra Mundial.

Will franziu a testa.

– Tem certeza?

– Claro que tenho – retorquiu o dr. Burrows.

– Pai, talvez você tenha cochilado na lateral da pirâmide e sonhou com a coisa toda. Quer dizer, você ficou no sol por muito...

– Não seja condescendente comigo, Will! – gritou o dr. Burrows. – Eu não estou cansado e não estou sofrendo de insolação. Conheço meus limites e sei o que vi. Eu vi um Stuka, nítido como o dia, voando a uns seiscentos metros daqui.

Will deu de ombros. Onde eles estavam, neste “mundo dentro de um mundo” no meio do planeta, com seu próprio sol que sempre ardia, não havia muita coisa que pudesse surpreendê-lo.

Além do fato de que a gravidade mais baixa fazia com que ele, Elliott e o dr. Burrows tivessem poderes quase sobre-humanos e fossem capazes de saltar distâncias inviáveis e levantar pesos fenomenais, ele estava preparado para acreditar em quase qualquer coisa. Grande parte das terras deste mundo aparentemente virgem era coberta por uma floresta tropical como a Amazônia, com árvores da altura de arranha-céus, ou por campos relvados em que pastavam rebanhos livres de animais. Will vira quaggas, criaturas fantásticas, meio cavalos, meio zebras, extintas há mais de cem anos no mundo exterior, e só alguns dias antes ele e o pai depararam com um rebanho do maior gado que ele já vira. “Auroques!”, proclamou o dr. Burrows, passando a lhe contar como as últimas dessas criaturas magníficas morreram na Polônia no século XIII. Mas, ainda mais incrível do que isso, também havia tigres-dentes-de-sabre, se é que Elliott podia acreditar no que vira.

Porém, esses animais pré-históricos estavam a uma grande distância do que o dr. Burrows agora teimava ter visto. Will respirou fundo e coçou a cabeça.

– Mas pai, um Stuka? Tem certeza? Como ele era? Tinha marcas ou algum tipo de camuflagem? – perguntou ele.

– Estava longe demais para que eu distinguisse algum detalhe – respondeu o dr. Burrows. – Só se pode perguntar como entrou neste mundo e o que ainda está fazendo aqui. E você precisa considerar todas as implicações... Essa aeronave é só a ponta de um curioso iceberg.

– Iceberg? – perguntou Elliott. Toda a sua vida foi passada no subterrâneo e a palavra não tinha significado nenhum.

– Sim, iceberg – repetiu o dr. Burrows, sem parar para explicar. – Deve haver uma pista para o avião decolar e pousar, combustível para movê-lo e engenheiros para mantê-lo voando. É um monte de gente além do piloto.

– Engenheiros? – murmurou Will.

– Claro, Will. O Stuka é um avião de mais de sessenta anos! Qualquer avião precisa de manutenção constante, em particular um dessa idade.

– Então é da Segunda Guerra Mundial – disse Will, meio estupefato ao tentar assimilar o que ouvia. – Do exército alemão.

– Sim, a Luftwaffe os usava como bombardeiros de curto alcance, e... – disse o dr. Burrows, mas não terminou a frase. Seu rosto de repente se anuviou com as diferentes explicações que lhe ocorriam.

– Não parece muito bom – disse Will, tremendo apesar do calor tropical do ambiente.

– Não, não parece mesmo – murmurou o dr. Burrows.

– E o que vamos fazer? – perguntou Will. – Mudar para outro lugar? Sair daqui?

Elliott pigarreou, e Will e o dr. Burrows a olharam.

– Por que faríamos isso? – disse ela. – Estou familiarizada com essa parte da selva. Além disso, nosso abrigo fica aqui. – Olhou de soslaio a estrutura que construíra nos galhos mais baixos de uma das árvores gigantes.

Will abriu a boca para discordar, mas Elliott continuou:

– Já sabemos que talvez não sejamos os únicos aqui. E os três crânios que encontramos em estacas perto da pirâmide? Eram antigos, mas nem tanto. E aquele abrigo que explodimos, Will, quando atacamos as gêmeas Rebecca e o Limitador? Alguém deve tê-lo construído.

Will assentiu devagar, lembrando-se do abrigo fabricado com metal corrugado, do qual não restou nada depois das explosões de Elliott e o incêndio que se seguiu e devastou a área.

Elliott olhou estudadamente para Will e o dr. Burrows.

– Se houver outras pessoas aqui, é provável que seja uma questão de tempo até que as encontremos.

– Sim – concordou o dr. Burrows.

– E qual é a alternativa? – refletia Elliott. – Nos enterrar ainda mais na selva?

– Não, ainda há muito o que fazer aqui – disse o dr. Burrows com firmeza, virando-se para a pirâmide. – Eu mal arranhei a superfície.

Elliott não tinha terminado:

– Ou viajamos de volta ao cinturão de cristal, depois tentamos subir a Jean Fumarenta até as Profundezas para chegarmos ao mundo exterior? Quais são as chances de conseguirmos alcançar a Crosta? E o que estaria esperando por nós depois de chegarmos lá?

– Os Styx – sussurrou Will.

O dr. Burrows cruzou os braços e ergueu o queixo agressivamente. Ninguém precisava lhe perguntar o que estava pensando – ele não ia embora.

– Então ficamos – resolveu Elliott, erguendo as sobrancelhas, como se dissesse: “Por que todo esse estardalhaço?” – Mas pre cisamos tomar precauções: não vamos entrar em nenhuma selva inexplorada e temos que nos manter alertas. Talvez até tenhamos que nos revezar na sentinela, se encontrarmos sinais de mais alguém por perto, e também devemos ter cuidado ao acender qualquer fogueira. – Franziu a testa como se algo lhe ocorresse. – Se acontecer o pior e tivermos que nos esconder, talvez eu possa achar um lugar seguro por aí, armazenar comida pa...

– Excelente ideia – interrompeu o dr. Burrows. Pelo tom de voz, Will sabia que o pai estava disposto a permitir que Elliott fizesse o que bem entendesse, desde que o deixasse livre para continuar seu trabalho.

Bartleby apareceu, andando rigidamente, como se tivesse acabado de acordar. Will percebeu que uma de suas orelhas estava voltada para dentro e ele tinha folhas presas na pele calva – ele, claramente, havia cochilado num local confortável no chão da floresta e as vozes elevadas devem tê-lo acordado. Parou ao lado de Elliott, balançou a cabeça para endireitar a orelha, depois farejou o ar duas vezes, como se tentasse adivinhar por que os humanos estavam tão sérios. Graças ao tamanho imenso do felino, Elliott não precisou se curvar para alcançar sua cabeça sem pelos e começou a afagá-la distraidamente.

– Vou continuar patrulhando a periferia com Bartleby. Assim, se alguém hostil se aproximar, podemos alertá-los com antecedência.

– Hostil – repetiu Will em voz baixa. – Acho que tem razão. Quer dizer, se tivermos muito cuidado, como poderão nos encontrar?


Eddie fechou a porta depois de eles passarem, e Drake foi na frente. Ao pé da escada havia um grande porão, que parecia tomar toda a extensão e a largura da fábrica acima. E em volta dele, nas paredes, havia arcos abobadados de tijolos amarelos e sujos. Ele semicerrou os olhos numa tentativa de enxergar a extremidade do porão, onde havia uma área iluminada. Ao se dirigirem para lá, Drake distinguiu vários armários e bancadas. Mas, antes que chegasse, ele avistou outra coisa.

Em um dos nichos pela lateral do porão havia uma mesa. Estrelas, emitindo uma luz verde e fraca, estavam montadas em colunas de bronze em cada um de seus quatro cantos. A luz era parecida com a dos globos luminosos encontrados em toda parte na Colônia, porém muito mais refinada. Drake já vira essas estrelas antes, eram usadas pelos Styx em suas igrejas e templos. Sem se voltar para Eddie, Drake avançou para a mesa, intrigado ao ver o que havia em seu tampo.

O título de um volume encadernado em couro e impresso em letras douradas. Drake não precisava ler para saber do que se tratava. Ele o conhecia muito bem.

– O Livro das Catástrofes – murmurou ele, balançando a cabeça com desdém.

Eddie ficou em silêncio.

Para Drake, simbolizava tudo o que havia de podre nos Styx e seu regime demagógico. Aquele livro falava de uma doutrina que submeteu os colonistas a séculos de um tipo de encarceramento e a uma vida de servidão em sua cidade subterrânea, com a promessa de que um dia, no futuro, a superfície seria deles de novo. A imensa maioria dessas pessoas oprimidas seguia os ensinamentos do livro sem questionar, acreditando sem reservas que os Styx eram seus guardiões espirituais. A realidade era que o dogma religioso a que os colonistas aderiam com tanto fervor era simplesmente um meio de mantê-los em xeque. Um mecanismo para garantir sua obediência completa e inquestionável.

Quando Drake enfim falou, foi com tal veemência que era difícil saber se ele realmente fazia uma pergunta.

– Você rejeitou os procedimentos dos Styx, mas ainda guarda isto? Este cálice de veneno.

– Guardei porque me foi dado por uma pessoa que vocês, da Crosta, diriam que é meu pai. Ele era um Limitador igual a mim, mas, como é costume em nossa sociedade, eu mal o conheci. Ele passou a vida toda garantindo o cumprimento das leis do livro.

– Das mentiras do livro – cuspiu Drake.

– Depende de sua interpretação do Livro – contra-argumentou Eddie. – Se acredita que o Povo da Crosta um dia provocará sua própria morte e que nós e os colonistas estaremos lá para recolher os pedaços e repovoar a Terra, então seremos os salvadores deste planeta e da humanidade.

– Os Styx... Salvadores? – disse Drake, balançando a cabeça.

Eddie suspirou.

– Não o trouxe aqui para debater minhas convicções. Antes de me julgar, por que não dá uma olhada no que estou lhe oferecendo?

Drake o seguiu até a extremidade do porão. A primeira coisa que avistou foi uma fila de fardas penduradas em ganchos. Ele reconheceu os trajes de combate cinza e verdes que usavam os soldados da Divisão Styx, e ao lado deles alguns casacos listrados de marrom dos Limitadores.

– A galeria dos selvagens – comentou Drake, depois viu máscaras de gás e até um traje de Coprólito completo. – O que isso está fazendo aqui? Um suvenir? – perguntou, mas sua atenção já fora atraída por outra coisa em uma das bancadas.

– Uma Luz Negra! – exclamou Drake, passando por cima dela. Assemelhava-se a uma arcaica luminária de mesa, com uma lâmpada roxa-escura em um anteparo na ponta de uma vara flexível. Ao tocar a pequena caixa com fios conectados na base da luminária, ele assentiu consigo mesmo: os Styx usavam essas Luzes Negras para interrogar e fazer lavagem cerebral em seus cativos, e Drake ficou empolgado com a perspectiva de abrir uma delas e ver como funcionava.

Depois, no chão ao lado do banco, ele percebeu um objeto retangular do tamanho de uma máquina de lavar, mas sobre quatro rodas.

– Isso é...? – começou ele a perguntar, imaginando ser uma versão um pouco maior do dispositivo subsônico que os Styx usaram nele e em seus homens no Highfield Common.

– Um protótipo primitivo – respondeu Eddie. – Como você viu por si mesmo, é menos compacto do que o modelo atual.

Drake se agachou ao lado dele. Aquele do Common inicialmente era disfarçado por painéis de tecido pardo, e, de qualquer modo, ele estava longe demais para distinguir qualquer detalhe. O exemplar diante de si não tinha cobertura, e as partes côncavas, com seu brilho prateado, eram visíveis nas faces opacas.

– Então é uma espécie de gerador de som de alta potência? – presumiu ele.

Eddie assentiu.

– E emite frequências muito baixas, sintonizadas para perturbar os padrões cerebrais? – arriscou-se Drake.

– Dito com simplicidade, sim – confirmou Eddie. – É um desdobramento da tecnologia da Luz Negra, utilizando apenas o elemento sonoro. Produz um feixe de frequências oscilantes, sintonizadas para deixar a maioria das criaturas vivas inconscientes.

– Eu gostaria muito de desmontar um equipamento desses... E descobrir o que exatamente faz o truque – disse Drake, olhando a Luz Negra.

– É todo seu – respondeu Eddie.

– Terei que pegar meu equipamento de teste... – interrompeu-se Drake quando outra coisa atraiu sua atenção. Ele se pôs de pé e se aproximou de um suporte na parede. Ele cantarolava de prazer ao ver o amplo leque de armamentos da Crosta ali. Depois seu olhar se iluminou ao ver uma coisa na extremidade do suporte. – Ei, isso está meio deslocado aqui. Um rifle Styx com uma de minhas miras! – disse ele, indo ao rifle longo, que tinha uma mira bulbosa de bronze escurecido. – Sabia que seu povo me raptou para...

– Trabalhar em nossa visão noturna – concluiu Eddie para ele.

– Sim. Combinei um globo luminoso com eletrônica de intensificação. Não foi lá muito complicado – disse Drake, passando os dedos pela mira. – Sabe de uma coisa, se eu tivesse patenteado o projeto do globo luminoso aqui na superfície, como fonte de energia ou de luz, teria ganhado uma fortuna.

– E estaria morto no momento em que colocasse os pés fora do escritório de patentes – disse Eddie categoricamente. – Mas é essa sua especialidade, não? Eletrônica?

– Sim, foi nessa área que me especializei... Principalmente optoeletrônica... Embora agora pareça ter sido em outra vida – respondeu Drake num tom distante. – Há um milhão de anos...

Eddie não tinha expressão, mas inclinou a cabeça de leve, o que Drake entendeu como surpresa.

– Era o que queríamos de você... Sua expertise – disse Eddie. – Mas você também queria ser raptado, não é?

– O plano era esse. Para que pudesse reunir informações sobre como os Styx operavam enquanto estivesse preso na Colônia. Veja só, o problema foi esse... É quase impossível se infiltrar na Colônia, porque é uma sociedade fechada, então, qualquer forasteiro se destaca, como um polegar inchado. Mas enquanto eu estava no subterrâneo seu bando dizimou minha rede e eu acabei nas Profundezas – respondeu Drake, depois respirou fundo. – Agora, já falamos o suficiente de mim. Eddie, diz aí, como tudo isso veio parar aqui? – perguntou, sem querer dizer mais nada. Ele não sabia ainda se podia confiar naquele homem e não queria ser levado a explicar como sua rede funcionava no passado. Tudo que o ex-Limitador lhe oferecia parecia bom demais para ser verdade, e Drake não queria jogar a cautela no lixo.

– Eles não sabem que nada disso existe. Depois das operações da Crosta, quando tive oportunidade, não destruí o que deveria. Em vez disso, trouxe cautelosamente esse aparato para cá – respondeu Eddie.

– Para o tempo das vacas magras. – Drake riu, passando os olhos pela gama impressionante de equipamento. Era uma tecnologia Styx que nunca vira na vida, e ele estava louco para começar uma investigação completa dela. Avançando para uma bancada próxima, começou a analisar os planos abertos em sua superfície. Soltou um suspiro involuntário ao perceber o tema da primeira.

– Um esquema do sistema de circulação de ar da Caverna Sul – disse ele, lendo e levantando um canto para ver qual era o plano de baixo. – E aqui está o layout dos Laboratórios, andar por andar – sussurrou, tentando não demonstrar sua empolgação. De cenho franzido, olhou o Limitador. – Uma coisinha... Como você paga por esse lugar? O depósito não pode ser barato, e você disse que tem outras propriedades.

Os calcanhares de Eddie estalaram no piso de pedra enquanto ele ia a um armário alto e cuidadosamente abria a primeira gaveta. Seu conteúdo estava coberto de um quadrado de veludo, que ele afastou de lado.

Drake se aproximou e foi recebido pela visão de centenas de pedras pequenas e cintilantes.

– Diamantes – observou ele.

– Uma vantagem de minhas idas às Profundezas – informou-lhe Eddie.

– Mas esses diamantes são muito diferentes dos espécimes rústicos que encontramos lá – disse Drake.

– Sei de um homem em Hatton Garden que lapida e lhes dá polimento, depois os vende quando preciso de fundos... Sem fazer perguntas. Sirva-se do que quiser. Tenho mais do que aquilo que vou precisar. – Eddie cobriu as gemas com o veludo, mas deixou a gaveta aberta. – Vou verificar os monitores lá em cima, mas pode ficar aqui, se preferir.

– Está preparado para fazer isso? – perguntou Drake. – Para me deixar sozinho aqui?

Eddie não respondeu ao colocar a mão no bolso e largar algumas chaves na bancada.

– Estas são do depósito e do apartamento. – Depois pegou uma caneta. – Você vai precisar do código para sair daqui e voltar para cima. – Ele começou a digitar uma sequência numérica no canto do plano que foi de tanto interesse para Drake. – Mas tenha cuidado... Se digitar errado, o sistema detonará e...

– Não se incomode. Memorizei a sequência quando você a digitava – disse-lhe Drake.

Eddie começou a se afastar.

– Como eu imaginava – disse ele, sem virar a cabeça.


Capítulo Sete


Na face vertical do penhasco, Will subia, usando as trepadeiras, atrás de Elliott. Já haviam percorrido uma boa distância, e as mãos de vez em quando escorregavam, quando as folhas se soltavam, mas eles não estavam muito preocupados. A vida no ambiente de baixa gravidade se tornara uma segunda natureza para eles, e os dois sabiam que, se caíssem, não seria desastroso como na superfície da Terra.

– Chegamos – anunciou Elliott, depois pareceu sumir nas trepadeiras.

Will partiu atrás dela, abrindo caminho pelos caules.

Ele examinou o espaço em que se viu, com cerca de dez metros de extensão e várias vezes isso em largura. Uma luz esverdeada se infiltrava pelas trepadeiras da entrada, e o ar era frio.

– Mas como foi que descobriu isso aqui? É uma caverna! – exclamou ele.

– Lá vem você de novo... Declarando o óbvio – disse ela com um falso cansaço.

Will suspirou.

– Você está começando a ficar parecida com meu pai, de tanto tempo que passa com ele.

Ela abriu um sorriso, e Will sorriu também, depois ele foi examinar uma pilha de frutas que tinha notado no fundo da caverna. Elliott, evidentemente, começou a estocar comida para o caso de uma emergência.

– Você andou ocupada. E também guardou alguma carne – disse ele, olhando o pernil que ela pendurara no teto.

– Sim. E espero que as formigas não cheguem aqui – falou ela.

– Muito provável... Elas chegam a toda parte – observou Will.

O pai as chamava de formigas Siafu ou Safari, e eram uma irritação constante. Depois que descobrem onde está armazenada a comida, formam comboios vermelhos de vários centímetros de espessura, capazes de tirar a maior parte da carne da carcaça de uma gazela jovem ou um pequeno mamífero numa única noite.

– Só resta verificar se temos água suficiente – disse Elliott, enquanto Will ia à pilha de peles animais e lenha que ela trouxera para a caverna. – E armar uns catres com essas coisas – acrescentou ela.

– Sabe que pode pedir a minha ajuda – ofereceu-se Will, impressionado com o quanto Elliott já havia feito.

Ela balançou a cabeça, concentrando-se no chão.

– Não, não se preocupe. Sei que você tem seu trabalho com o doutor.

Havia um levíssimo quê de decepção em sua voz. Apesar do fato de achar Elliott difícil de entender, Will compreendeu de imediato.

Houve várias ocasiões em que ele ficou dividido entre trabalhar com o pai e ficar com Elliott, mas o tirano dr. Burrows sempre ganhava. E sempre que Will via Elliott se afastar, deixando-o continuar com seus desenhos das inscrições entalhadas na pirâmide ou limpando a sujeira de algum artefato menor, a seguia com o olhar, ansiando por ir com ela. Essas eram oportunidades, momentos, dias que nunca se repetiam, e às vezes ele sentia que toda a impaciência e frustração dentro dele o fariam implodir. Mas nada dizia e se atirava às tarefas que o dr. Burrows lhe estabelecia, furioso consigo mesmo e infeliz com seu trabalho.

– Seu pai sempre tem muito a fazer – acrescentou Elliott, olhando de passagem para Will.

– Sim – concordou ele num tom desanimado. Mas Will fez um esforço para melhorar o clima entre eles. De maneira nenhuma ia deixar que o pai dele estragasse o pouco tempo que tinham juntos. – E este lugar é o esconderijo perfeito, se precisarmos. Você é simplesmente genial.

Elliott pegou um rolo de pele animal que tinha caído do alto da pilha e colocou em seu lugar.

– Obrigada. E lembre-se de usar a mesma rota para entrar ou sair daqui. Senão, deixará um rastro de cheiro.

– Eu sabia... Por isso você nos trouxe pelo córrego – disse Will, levantando um pé e plantando-o no piso rochoso com um ruído. – Mas não precisamos nos afastar mais ainda do acampamento base? – pensou em voz alta, ao voltar à entrada. Separando as trepadeiras para olhar a paisagem abaixo, avistou o córrego raso na base do penhasco. – Estamos um pouco perto demais aqui. – Franziu o cenho. – E, de qualquer forma, você não me disse que tínhamos que andar muito? Praticamente não cobrimos distância nenhuma.

Elliott se juntou a ele na boca da caverna.

– Não pode ser longe demais, se precisarmos chegar aqui em pouco tempo. E quanto à sua segunda pergunta, ainda não chegamos.

– Não? – disse ele, olhando interrogativamente para ela.

– Não – respondeu Elliott. – Preciso perguntar uma coisa, Will.

Ele se virou para ela.

– É? O quê?

– Depois de cuidarmos das gêmeas Rebecca, não lhe ocorreu nada? – indagou Elliott.

Will ficou em silêncio por algum tempo.

– Para falar a verdade, estive tentando esquecer a história toda. Foi horrível demais – respondeu ele por fim. Começou a mexer com a alça da Sten Gun no ombro com uma expressão perturbada.

– Está tudo bem – disse ela, colocando a mão momentaneamente no braço de Will, para aquietá-lo. – Não estou falando do que fizemos... Não precisa pensar nisso. Mas você nunca se perguntou, nem uma vez, como os três Styx chegaram aqui? Quer dizer, quais são as chances de eles terem pulado daquele submarino e flutuado, como nós fizemos? – Bateu no cano da Sten Gun. – E, de qualquer modo, como eles se impeliram pelo cinturão de gravidade zero? Pelo que sabemos, eles nem tinham armas de fogo.

Will franziu o cenho.

– Mas que droga... Você tem toda razão. Nunca pensei nisso. Como é que eles conseguiram atravessar?

– Sobe aí – disse ela, extraordinariamente parecida com Drake ao girar com agilidade e escalar para fora da abertura e depois começar a descer as trepadeiras.

Assim que desceu, Will andou pelo córrego até a margem. Ao sair e pegar a Bergen debaixo do arbusto onde a tinha deixado, a cabeça de Bartleby de repente despontou de uma moita próxima. Suas faces estavam inchadas, como um trompetista prestes a soprar uma nota gorda em seu instrumento.

– Oh, não! Tem um rabo saindo pela boca dele – Will balbuciou. – E está se mexendo.

– Achou um rato do mato – disse Elliott com admiração. – Ele é um caçador nato.

Will ergueu uma sobrancelha.

– É, é verdade mesmo... Ele é um caçador. Lá vem você...

– Ah, cala a boca, Will. – Ela riu, empurrando-o delicadamente com o ombro antes de se afastar.

Will sorriu consigo mesmo, curtindo o momento.

Eles seguiram pelo córrego por vários quilômetros, e Elliott e o felino iam na frente de Will. Quando a água ficou pela cintura e deixou Bartleby apenas com o focinho para fora, eles foram para a margem. Depois de saírem, Elliott não os levou de volta à selva, mas os manteve ao longo da margem, coberta de um grosso manto de gimnospermas. Agora o córrego havia se avolumado tanto que Will concluiu ser mais preciso descrevê-lo como um rio.

Elliott impôs várias paradas, erguendo o punho. Agachando-se bem, usou a mira do rifle para verificar os arredores, concentrando-se em particular na margem oposta. Em uma dessas ocasiões, Will se esgueirou ao lado dela.

– Qual é o problema? Por que fica parando?

– Estou com uma sensação... – sussurrou ela, sem desviar os olhos da outra margem. – Parece que tem alguém ali.

– Não estou vendo nada – disse Will.

– É como se... Como se as árvores estivessem nos observando – respondeu ela, ainda num tom baixo.

Will ficou confuso.

– As árvores?

Elliott assentiu.

– Sei que parece loucura. Tive a mesma sensação antes... Em outras partes da floresta.

Eles ficaram em silêncio e examinaram atentamente a margem oposta do rio. Era ladeada de gimnospermas de vários metros de altura, depois a selva começava, com suas árvores gigantescas. Era para lá, entre as árvores, que Elliott olhava. E Will também percebeu que ela lançava um olhar ocasional a Bartleby, para ver se ele sentia alguma coisa. Mas o felino parecia inteiramente preocupado com os enxames de libélulas verdes iridescentes, brincando de tentar derrubá-las com as patas imensas quando elas passavam em disparada. Isso deixou Will mais confiante de que não havia motivo para alarme. Mas ele também sabia que os instintos de Elliott não deviam ser ignorados.

– Não pode ser só um animal nos observando? – sugeriu ele. – Além daqueles crânios antigos na pirâmide e o aeroplano que meu pai alega ter visto, não acho que haja alguém perto de nós. Quer dizer, não vimos nenhum sinal de gente em nossa parte da floresta, vimos?

Ela não respondeu, seu corpo tenso sob a pressão dos sentidos.

– Não é nada – disse ela por fim, partindo novamente.

Um pouco mais adiante, Will ouviu um ronco distante. Ele examinava o céu para saber se uma das tempestades súbitas e tumultuosas estava prestes a cair sobre eles. Mas embora o céu estivesse com seu branco transparente de sempre e não houvesse nenhuma nuvem à vista, o ronco ficava mais alto. E era contínuo, dizendo a Will que não podia ser de trovões, como supusera. O barulho só foi explicado quando eles fizeram uma curva no rio e entrou em seu campo de visão uma escarpa alta, de onde caíam torrentes de água branca em uma lagoa coberta de espuma.

– Mas isso é o que eu chamo de uma cachoeira de verdade – disse Will, olhando o alto da escarpa, de duzentos ou trezentos metros. Ele observou que dois rios se bifurcavam da lagoa: aquele que os levou ali e um segundo, que saía pelo outro lado.

Will e Elliott avançavam para a lagoa, saindo de um denso matagal de gimnospermas e entrando em um trecho de lama pisoteada. Will percebeu que o chão devia ter sido muito revirado porque a lagoa era um bebedouro para a vida selvagem local. Começou a procurar rastros interessantes, mas Elliott manteve o passo, levando-os para o lado da queda-d’água. Will não conseguia entender para onde ela ia até que viu que Elliott subia numa saliência rochosa que parecia se estender por trás da cachoeira. Eles seguiram com cuidado pela saliência, tendo o manto de água de um lado e uma face rochosa vertical do outro. Segundos depois entraram em uma grande caverna, completamente escondida pela cascata, onde uma garoa profusa enevoava o ar.

– Mas que legal! – exclamou Will, encantado com a cascata interminável. O sol penetrava intermitentemente a água e pintava em Will padrões que sempre mudavam. Se não fosse pelo barulho de trovão, o efeito teria sido hipnótico. – Como encontra esses lugares? – gritou Will ao enxugar a garoa do rosto. Desviando os olhos da cachoeira, viu Elliott na extremidade da caverna, pronta para subir um lance de degraus talhados na rocha.

Tomado de curiosidade, Will foi atrás dela. À medida que sua vista se adaptava à pouca luz, ele distinguiu o arco acima dos degraus. Depois viu que, entalhado na pedra angular no ápice do arco, havia um símbolo de três barras irradiando-se um pouco para fora. Era o mesmo símbolo do pingente que tio Tam lhe dera e estava em seu pescoço naquele exato momento. Esse símbolo era a marca deixada pelos Antigos, como seu pai se referia a eles, o povo que fez a primeira peregrinação das Profundezas para este mundo interior.

Cheio de empolgação, ele tirou a Bergen e desprendeu a lanterna Styx. Enquanto ele e Elliott subiam os degraus e entravam na passagem, Will acendeu a lanterna por ali, examinando a rocha, que mostrava sinais inconfundíveis de que fora trabalhada à mão. Ao progredirem mais no interior da passagem, o barulho da água diminuiu tanto que eles conseguiam conversar sem elevar a voz.

– Então as duas Rebecca vieram por aqui? – perguntou Will.

Elliott assentiu.

– Elas devem ter localizado a outra ponta do túnel depois de saírem do submarino. Chegaram aqui sem todo aquele... – interrompeu-se para agitar os braços no ar. – Sem ter que sair boiando, como fizemos.

– Sair boiando? – repetiu Will, mas sua mente disparava com as implicações da descoberta de Elliott. – Então este é o caminho para casa – disse ele. – Mas como você descobriu? Fica a muitos quilômetros da pirâmide.

– Segui os rastros dos Styx até aqui, depois que os pegamos de tocaia. Eu não teria feito meu trabalho se não pudesse verificar de onde eles vieram.

Will ainda franzia o cenho.

– Então você sabia disso há semanas, mas não me disse nada?

A voz de Elliott mal era audível quando ela girou o corpo e voltou para o arco.

– Tive medo – disse ela.

– O que disse? Você teve medo ? – perguntou Will ao segui-la. – Por quê?

Ela parou.

– Pensei que se contasse a você e a seu pai, você podia decidir ir para casa. E eu não quero sair deste mundo... Não tenho mais para onde ir. Além do mais, eu adoro isto aqui, com... – Sua voz sumiu quando o facho da lanterna de Will correu pelo chão aos pés dela.

– Aqui! Ilumine bem aqui! – ordenou ela com urgência ao se acocorar. – Rápido! – vociferou, com pânico evidente na voz.

Elliott apontou para três pedrinhas. Estavam dispostas em fila.

Will logo ficou preocupado.

– O que é?

Ela pegou a lanterna dele e atravessou o arco, descendo os degraus. Num segundo descobriu o que procurava na saliência rochosa atrás da cachoeira. Mais três pedras que foram colocadas na base da parede.

– Eu sabia! Olhe! – exclamou ela.

– E daí? – perguntou Will.

Elliott balançou a cabeça.

– É procedimento dos Limitadores. É assim que eles marcam a trilha para outros soldados. Coisa de manual.

– Mas as duas Rebecca e o primeiro Limitador podem ter deixado iss... – tentou sugerir Will.

– De jeito nenhum! Eu vasculhei cada centímetro deste lugar quando o encontrei. Investiguei-o completamente e também a área em volta. Não teria deixado passar uma coisa dessas. – Tirou o rifle do ombro e o destravou. – Will, sabe o que isso significa, não é?

Ele não queria ouvir o que ela estava prestes a dizer.

– Significa que temos mais Limitadores conosco neste mundo. Ainda não acabou.


Carregando uma bandeja, Eddie se aproximou do final do porão, onde Drake trabalhava. Empoleirado numa banqueta, Drake arrumara na bancada diante dele as peças da Luz Negra, que separara cuidadosamente. Depois de passar a manhã avaliando os itens que Eddie reunira no porão, Drake concentrou todos os seus esforços no dispositivo de interrogatório dos Styx. Saiu para pegar o equipamento de teste e o usou no exame de cada componente à medida que o desmontava. Até agora, o exercício tomara a maior parte da tarde.

– Pensei que podia estar com fome – disse Eddie ao colocar a bandeja na bancada.

– Sim... Obrigado – murmurou Drake.

– Fazendo progressos? – perguntou Eddie.

– Devagar e sempre – respondeu Drake, enxugando a testa. – Este é um aparelho muito engenhoso. Nunca vi nada parecido com esses componentes. – Estendeu a mão sobre a bancada e pegou um pequeno cilindro de metal de pontas arredondas. – Há quatro destes na base da Luz Negra. Tem alguma ideia do que fazem?

– Não. Meu trabalho era usar a Luz Negra nos interrogados... E mais nada – disse Eddie. – Já recebeu a Luz Negra?

Mas Drake não respondeu, completamente absorto nos cilindros, sem atentar para todo o resto.

– Quando passo uma carga por eles, esses tubos ionizados emitem diferentes comprimentos de onda. O espectro de cada tubo é incrivelmente estreito, incrivelmente específico. Quando todos os tubos estão na potência máxima, a combinação dos quatro espectros é única, e calculo que possa montar alguma coisa para detectá-los.

– Com que fim? – perguntou Eddie.

– Se estiver na superfície, eu saberei quando e onde a Luz Negra é usada. – Ele baixou o tubo de metal e endireitou o corpo, esticando os braços.

Eddie não mostrou sinal algum de que ia sair, dirigindo-se para o outro lado da bancada. Drake lhe lançou um olhar.

– Parece que você quer me perguntar alguma coisa.

– Sim, sobre Elliott. Você disse que há uma rota descendo para a área abaixo das Profundezas. Quero saber mais sobre isso e sobre como vamos proceder.

– Claro. Conversaremos sobre isso depois – disse Drake, sem nenhum interesse. Descendo da banqueta, foi até uma bancada adjacente. – Eddie, me fale destes. Encontrei uma caixa deles. – Ergueu um punhado de frascos por seus cordões. Eram idênticos ao par que Will recebera da gêmea Rebecca, embora as tampas prateadas destes não tivessem sido pintadas.

– São recipientes para agentes virais – respondeu Eddie. – O líquido claro que vê neles é um composto fabricado pelos Cientistas. Eles chamam de estático... Mantém o vírus vivo, mesmo fora do corpo do hospedeiro.

– Sim, mandei analisar um deles quando não conseguimos entender como conseguiram fazer isso – disse Drake, indo rapidamente a alguns itens que colocara na ponta da bancada. – E estes? – perguntou, indicando um grupo de frascos de vários centímetros, com tampas lacradas. Dentro de cada um deles havia um pequeno objeto suspenso em fluido amarelo. – Não sou zoólogo, mas parecem lesmas. O que significam? – perguntou Drake.

– São lesmas... Lesmas da Peste. Seu habitat natural é a vegetação no perímetro da Cidade Eterna. Eu costumava ir à cidade com patrulhas da Divisão. Em algumas ocasiões, fazíamos o apoio, cuidando de grupos de Cientistas. Veja só, eles coletavam as lesmas pelas cepas virais que abrigam.

– Está me dizendo que esta é a fonte original do vírus Dominion? Eles são o vetor? – perguntou Drake ansiosamente.

– Não estas lesmas especificamente, porque estão mortas há muito tempo. Mas, sim, espécimes frescos carregam muitos vírus diferentes, e os Cientistas os coletam para obter as cepas mais letais. Depois de isolarem esses vírus, modificam-nos em agentes infecciosos mais eficazes nos Laboratórios.

Drake assentiu.

– Cuidadosamente embalados e prontos para lançá-los em nós, da Crosta... Estou certo?

– Correto – confirmou Eddie. – Os Cientistas os convertem em patógenos de guerra.

Drake examinava com evidente empolgação o frasco com o espécime que segurava.

– Então essas pestinhas... essas Lesmas da Peste... são as culpadas. – Seus olhos se iluminaram com uma ideia. – E se as eliminássemos, cada uma das lesmas restantes, os Styx perderiam sua fonte de patógenos.

Eddie assentiu com ceticismo.

– Mas a Cidade Eterna é muito grande. Seria uma tarefa impossível erradicar todas.

– Não, não é impossível – respondeu Drake. – Não se você conhecer um bioquímico de primeira que tem uma queda por pesticidas.


Soltando gemidos lamentáveis, Chester retesou as cordas em seus pulsos, esticando os dedos, tentando fazer o sangue fluir para as mãos. Suas pernas estavam com cãibras de novo, porque as amarras nos tornozelos eram muito apertadas. Ele ficou em silêncio por algum tempo, sem saber se queria chorar ou voltar a seu ataque a Martha. Escolheu a última – pelo menos fazia com que se sentisse um pouco melhor.

– SUA VADIA, VELHA, LOUCA E IDIOTA ! – gritou ele a todo volume. – ESTÁ ME PRENDENDO AQUI HÁ SEMANAS, DROGA! ME DEIXE SAIR!

No espaço confinado, seu grito fez seus ouvidos retinirem.

Ele esperou para ver se haveria resposta, mas só ouviu o silêncio.

– Ah, meu Deus! – choramingou, olhando a luz que entrava pelas frestas da porta do armário estreito e completamente às escuras em que Martha o trancara, debaixo da escada. – Harry Potter, eu sei o que você passou – disse ele.

A lembrança de como sua vida era há não muito tempo... com sua mãe e seu pai... imerso em seus livros preferidos... desfrutando de sua casa maravilhosa... jogando no PlayStation... Tudo sem medo, tudo tranquilo e previsível – tudo isso atingiu-o em cheio.

No último ano, Chester percorreu um longo caminho numa jornada de centenas se não milhares de quilômetros, nos recessos mais profundos da Terra, voltando à superfície para que acontecesse isso. Ele pensou em quando partiu do abrigo nuclear com Martha na lancha. Apesar de seus receios com relação a ela, estava cheio de esperança e otimismo.

Por que saiu tudo tão mal?

Ele não via a hora de acordar desse pesadelo.

Por quê? Por quê? Por quê?

Mas não era pesadelo nenhum.

O que eu fiz para merecer isso?

Era a realidade.

Não vem ninguém me salvar?

Ele gemeu de frustração.

No momento em que o dr. Burrows, Will e Elliott pularam na Jean Fumarenta, ele devia ter previsto o que aconteceria. Ocorrera uma mudança acentuada no comportamento de Martha. Quase imediatamente, ela passou a agir de forma muito estranha, seguindo-o como um balão inflado, exasperando-o e importunando-o para comer o que preparara à sua moda nada higiênica. E, pior de tudo, ela tentava constantemente tocar nele de um jeito monstruoso e exageradamente maternal.

– Vovozinha psicótica e pervertida – murmurou Chester consigo mesmo, tremendo ao pensar nisso. Ele ouviu um vago farfalhar do outro lado da porta, sabendo muito bem que ela espreitava por ali.

Depois de Martha o flagrar tentando usar o telefone e nocauteá-lo, ele recuperou a consciência no armário debaixo da escada. E era onde ela o aprisionara, sabe-se lá por quantas semanas, permitindo apenas que ele saísse um pouco a cada dia para fazer exercícios. Mesmo assim, não lhe era permitido sair da mira da faca, com as mãos ainda amarradas.

No começo, ele tentou ser razoável com Martha, implorando que ela o desamarrasse. Ela meramente balançava a cabeça em resposta. “É para o seu bem”, era só o que dizia, repetidas vezes. O tique nervoso no olho esquerdo também ficara progressivamente pior, como se ela estivesse sempre piscando para ele por alguma piada particular. Só que não havia nada de remotamente engraçado na situação em que ele se encontrava. Francamente, ele ficava petrificado perto da mulher, acreditando que ela era capaz de enfiar a faca nele a qualquer instante, sem dúvida “para seu próprio bem”.

Agora que estava prostrado no armário apertado, ele ouvia cada barulhinho. Ouviu outro movimento do outro lado da porta. Sem dúvida, ela estava ali, mais provavelmente sentada no chão, as pernas largadas, como sempre. Ele a imaginava com a besta pousada no colo, mexendo no facão, como uma tia maluca de um filme de terror antigo. Mas isto não era um filme, e era muito injusto. Ele só queria ir para casa. Todos os seus sentimentos voltaram a efervescer em seu íntimo até que ele não suportou mais e começou a gritar a plenos pulmões. Ainda gritando, rolou até bater a cabeça contra a porta, martelando com tanta força que se feria.

– EI, SUA MALUCA, EU SEI QUE ESTÁ AÍ! ME DEIXE SAIR, DROGA!

De repente, com um estalo, a porta se abriu, e ele avistou um par de tornozelos com meias. Ele olhou para cima – ali estava ela, uma senhora bem acima do peso, com o cabelo frisado e vermelho, envolvida nas camadas grossas e habituais de roupas sujas.

– Ora, ora, queridinho, não fique assim, todo agitado – disse ela, com os músculos em volta do olho enlouquecendo em sua própria dança de São Vito.

Mas Chester estava furioso demais para ainda se importar com as consequências. Enquanto ela se agachava ao lado dele, recomeçou a gritar e tentou dar cabeçadas em seu joelho.

– QUERO VER MINHA MÃE E MEU PAI – gritou ele. – ME DEIXE IR PRA CASA! ISSO ESTÁ MUITO ERRADO!

– Menino bobo. Não precisa de toda essa algazarra... Agora a sua família sou eu – disse ela calmamente, pegando a cabeça dele, baixando-a no chão dentro do armário. – Agora é Martha que cuida de você, e não a gente imunda da Crosta.

Ela sacou uma flanela amarela e enfiou na boca de Chester.

No início ele pensou que ela estivesse tentando asfixiá-lo e lutou com intensidade ainda maior. Mas não havia muito o que pudesse fazer – seus braços e suas pernas amarrados e o espaço restrito dentro do armário o prejudicavam. E ela era impressionantemente forte.

– UA ADIA! – gritou ele através do tecido, sacudindo a cabeça numa tentativa de se livrar dele.

De súbito, Martha o estapeou cruelmente na face. Ele gritou, não de dor, mas do choque pelo que ela fez. Sentia-se muito vulnerável.

– Menino bobinho, bobinho – disse ela sem fôlego, ainda segurando a flanela na boca de Chester, para abafar sua voz. – Não tem ninguém aqui para ouvi-lo, e você não deve ficar tão alvoroçado. – Ela parecia estar disciplinando um cachorrinho por mau comportamento.

A luta tinha esgotado Chester, que parou de brigar e de tentar gritar. Na calma que se seguiu, ela tirou a flanela. Ele a olhou com um horror crescente enquanto ela sacava a faca e a agitava na frente dele.

– E se insistir em usar esse linguajar, serei obrigada a cortar sua língua. Quer realmente que eu faça isso?

Chester cerrou a boca com força e balançou a cabeça, soltando um “Hmmmm” frenético para mostrar que obedeceria. Por um instante ela semicerrou os olhos, e sua expressão ficou vaga, como se esperasse instruções de alguém. Só que não havia ninguém ali além dos dois. Em seguida, ela se reanimou e falou:

– Se sabe o que é bom para você, fará exatamente o que a velha Martha mandar.

Rígido de medo, ele continuou a encará-la, com as lágrimas escorrendo pelo rosto. Ela tirou o cabelo de sua testa e afagou sua face com os dedos curtos e imundos. Ele não se deu o trabalho de resistir ao toque.

Inclinando a cabeça para ele, ela sorriu como se nada tivesse acontecido, mas aquele olho se debatia como se fosse saltar da órbita.

– Martha vai cuidar de você. Martha sempre estará a seu lado... para todo o sempre – disse ela, enxugando as lágrimas dele com o polegar.


Capítulo Oito


O médico resmungava consigo mesmo, e este era o único som na sala além do tique-taque do grande relógio no canto. Ele se curvou sobre a sra. Burrows enquanto iluminava diretamente um dos olhos com um globo luminoso mínimo engastado em um tubo cromado. A atitude do médico dizia tudo – ele não tinha esperanças. Mas por um momento, ao mover a luz de um lado a outro de seu rosto, ele parou de resmungar e pareceu ficar mais otimista.

– Ah, sim... Isso foi...? – sussurrou ele, mas continuou o exame por vários segundos e balançou a cabeça.

– Pensei ter visto uma centelha... Uma reação, mas devo ter me equivocado – concluiu finalmente, soltando a pálpebra da sra. Burrows, que se fechou novamente. Depois ele pegou um alfinete e segurou o braço da sra. Burrows pelo pulso. Virando sua mão, enfiou o alfinete várias vezes na palma. Passou para a ponta dos dedos, onde fez o mesmo, cada alfinetada produzindo pequenas manchas de sangue. O tempo todo examinava atentamente o rosto da sra. Burrows, tentando discernir se haveria alguma reação aos estímulos. – Nada – murmurou, e concluiu o exercício cravando o alfinete fundo nas costas da mão dela, onde o deixou.

Pareceu meio desnecessário ao Segundo Oficial, que abriu a boca para dizer alguma coisa, mas achou melhor continuar calado.

Dando um passo para trás, o médico fez uma careta.

– Não, é como eu esperava... Não há sinal nenhum de melhora.

Um velho mirrado, de barba grisalha, o médico vestia um manto preto por cima de um colete quase da cor de sua barba. E suas roupas tinham várias manchas, que podiam muito bem ser de sangue seco. Ele começou a soltar resmungos ao recolocar o globo luminoso, um termômetro e um jogo de martelos de reflexo na maleta. Estava claro que o exame havia terminado.

Ao lado do médico, o Segundo Oficial balançou-se nos calcanhares, fazendo ranger as tábuas do piso sob seu peso nada desprezível. Esteve observando o desempenho do médico nos procedimentos sem compreender nada, como um cão olhando um truque de cartas.

– Mas não há mais nada que possa ser feito por ela? – arriscou-se a perguntar, olhando o corpo imóvel da sra. Burrows.

O cômodo, antes uma sala de estar, fora convertido para os cuidados dela e uma cama fora instalada num canto. A sra. Burrows estava escorada em uma cadeira de vime, uma antiga geringonça sobre três rodas.

O bater regular do relógio de pêndulo continuava enquanto o médico enrolava lentamente o estetoscópio e o colocava na maleta. Ficou em silêncio ao fechá-la, pressionando os fechos, um de cada vez. Depois de terminar, colocou a mão no bolso do casaco e assumiu a pose de quem está prestes a se dirigir a uma plateia de colegas.

– Não há mais nada que possa ser feito pela paciente? – entoou ele, voltando-se para a sra. Burrows.

A saliva que se acumulava por trás do lábio inferior ligeiramente projetado da mulher escolheu aquele exato momento para transbordar, e um filete longo e pegajoso escorreu da boca até o peito.

– Bem, podemos nos certificar de que a paciente esteja confortável, e continue a administrar o Tônico de Pinkham duas vezes ao dia – disse o médico, olhando a saliva se empoçar na frente da sra. Burrows, espalhando-se pela blusa de algodão grande demais para ela. O médico respirou fundo ao girar a cabeça para o Segundo Oficial. – Se precisar de mais Tônico de Pinkham da botica, posso lhe prescrever uma receita.

– Não, ainda temos alguns frascos – respondeu o Segundo Oficial.

– Muito bem. E aqui está a conta por meus serviços. Pague quando puder – disse o médico, arrebatando uma folha de papel dobrado do bolso do paletó e entregando-a ao Segundo Oficial.

O Segundo Oficial estava a ponto de olhar a conta, mas uma tosse forçada o fez virar para o corredor, onde sua mãe e sua irmã estiveram ouvindo os procedimentos. Fora de vista do médico, elas começaram a gesticular loucamente, incitando o Segundo Oficial a abordar a questão que evitara até então. Ele pigarreou.

– Doutor, ela sobreviveu por tanto tempo, não foi, com pouquíssimas esperanças. Não acha que ela pode melhorar um pouco, com o tempo?

O médico afagou a barba pensativamente.

– É um milagre que a paciente ainda esteja entre nós, posso lhe garantir isso – respondeu ele. – Mas não se pode questionar os fatos. Embora a paciente seja capaz de respirar sozinha, não há a mais remota possibilidade de recuperar as funções cognitivas. Ela não demonstra reações de reflexo... Nenhuma... Suas pupilas são inteiramente não reativas. – O médico fechou bem um dos olhos, como se estivesse prestes a dizer alguma coisa difícil. – Presumo que tenha pensado que era uma caridade trazê-la para cá. Mas poderia ter sido mais gentil deixar que ela se esvaísse pacificamente depois dos interrogatórios.

– Eu não podia deixar que morresse no Cárcere – disse o Segundo Oficial. – Isso já aconteceu por vezes demais.

O médico assentiu severamente.

– Mas, às vezes, a natureza deve seguir seu curso. Você me disse que a provação desta mulher foi uma das mais severas que já testemunhou?

– Sim – confirmou o Segundo Oficial. – Usaram sete Luzes Negras nela.

– Você está em melhores condições do que a maioria para saber os danos que esses aparelhos provocam. As Luzes Negras, evidentemente, castigaram bem esta mulher. É como se... Como posso dizer...? – Interrompeu-se o médico, procurando por uma analogia adequada, depois apontou o indicador para cima. – É como se todas as ervilhas tivessem sido arrancadas da vagem.

O Segundo Oficial franziu a testa, confuso.

– Sim – continuou o médico, muito satisfeito consigo mesmo. – A paciente foi inteiramente debulhada, e não restou muita coisa... Apenas a casca. E as ervilhas não crescem de novo, não é? Não importa a força que ela tivesse antes, não há como voltar.

– Nada de ervilhas novas – disse o Segundo Oficial ao compreender do que ele falava, e fitou a sra. Burrows com seus olhos tristes. – Sim, ela era dona de uma incrível força de vontade, é verdade. Ela lutou feito o diabo – continuou, depois colocou a mão no braço do médico. – Mas, por favor, doutor, preciso de sua ajuda. Estou desesperado. Se estivesse no meu lugar, o que o senhor faria?

– Eu a devolveria aos Styx – respondeu o médico abruptamente, puxando o braço. Pegou a maleta e o chapéu borsalino e foi para o corredor com exagerada pressa. Cumprimentou a idosa e a mulher mais nova com um gesto de cabeça. Em seguida, colocando o chapéu, saiu da casa o mais rápido que suas pernas finas permitiram, ainda observado pelas duas mulheres que pairavam no corredor.

– Bom, ele parecia pensar que o lugar tava pegando fogo. Nunca vi tanta pressa – observou a idosa, fechando a porta da frente. – Ele acha que a mulher da Crosta já tá mortinha.

O Segundo Oficial chegou ao corredor.

– Mãe, ela... – começou a responder ele, mas o semblante da mãe era tão antipático que ele se virou para a irmã, procurando seu apoio. – Eliza, só estou fazendo...

– Fazendo o quê ? – interrompeu-o a irmã bruscamente. – Ele é médico de nossa família desde que o mundo é mundo... Até fez o nosso parto... Mas agora quer lavar as mãos – disse inequivocamente. – E você pode culpá-lo? Somos um constrangimento, pelo amor de Deus! Uma merda de piada!

Ouvir a irmã xingar desse jeito teve o efeito de um tapa na cara do Segundo Oficial. Ele ofegou.

Mas Eliza não se arrependia. Com os olhos azul-claros, a cara larga e o cabelo quase branco amarrado na nuca, ela era uma típica mulher da Colônia. E o Segundo Oficial, com seu couro cabeludo esparsamente coberto por cerdas grisalhas, a cara oblíqua e o corpo atarracado, era igualmente típico do contingente masculino. Na realidade, eles tinham imenso orgulho de suas origens, descendendo dos “Fiéis” – os empregados leais que Sir Gabriel Martineau convidou para viver em seu novo reino subterrâneo quase trezentos anos antes.

O Segundo Oficial e sua família eram membros muito respeitados da comunidade e obedientes aos Styx. Além disso, o trabalho do Segundo Oficial na central de polícia implicava lidar com os Styx quase diariamente, obedecendo às suas ordens, por mais desagradáveis que fossem. Mas agora sua conduta errática ajudando aquela mulher da Crosta colocara em risco sua posição e alienara os três da comunidade unida em que viviam. Os três sabiam disso.

– Eliza, o médico é um homem ocupado – disse o Segundo Oficial. – Talvez tivesse alguma coisa urgente a fazer... Outra visita domiciliar.

– Claro, e meu melhor amigo é um cogumelo – bufou ela de desdém.

– Colocou a todos nós em uma trapalhada e tanto, não foi, filho? – explodiu a idosa. Ela e Eliza avançaram para o Segundo Oficial, que fez a única coisa que podia e se retirou para a sala de estar. – Olha pra ela. Esta mulher da Crosta tá devorando nossa casa e nem vai ficar melhor. Na minha idade, não posso cuidar dela, limpando-a e empurrando comida à força. A gente pode até ficar doente de meter comida pela goela dela. E agora vamos ter que pagar outra conta. Onde é que você tava com a cabeça, filho?

Eliza se uniu ao ataque.

– E o falatório corre solto. As pessoas querem saber o que o levou a rebocar uma Pagã semimorta para nossa família, uma Sobre a Relva do mal que não conhecemos nadinha. Estou lhe perguntando!

– Eliza... – O Segundo Oficial tentou, mas a irmã ainda não tinha terminado.

– Ontem, nas lojas, a sra. Cayzer e a sra. Jempson me ignoraram completamente. Atravessaram a rua para me evitar, foi o que fizeram – disse ela, indignada.

O Segundo Oficial não tinha mais para onde ir – as duas mulheres o encurralaram perto da cadeira de rodas da sra. Burrows. E elas partiam para o ataque, como cães de caça atrás de uma raposa manca.

– Exatamente quem você acha que somos? Os santos padroeiros dos doentes da Crosta? – pressionou-o Eliza. – Porque o que somos é... é motivo de riso na Caverna Sul!

Encurralado, o Segundo Oficial soltou um gemido curto de angústia. Coçou a nuca curta e estirada que sustentava sua enorme cabeça sobre os ombros igualmente largos, mas não tentou dar nenhuma explicação.

A idosa percebeu a baba na blusa da sra. Burrows e passou pelo filho. Pegando o lenço, começou a limpar rudemente, engolindo as palavras no ritmo da limpeza.

– Também tão falando no mercado que os Styx agora têm um interesse especial em nós... Por causa do que você fez – disse ela. Depois, ao jogar o lenço numa mesa lateral, elevou a voz e gritou: – Você trouxe eles pra cima de nós!

Ouviu-se um miado na porta.

– Colly – disse Eliza, virando-se.

A gata viera investigar o que era todo aquele estardalhaço. Era uma Caçadora, felinos gigantes e exclusivos da Colônia, criados por sua perícia na caça aos ratos. Ela lançou seus grandes olhos acobreados para os três humanos, farejou ruidosamente na direção da sra. Burrows, depois deitou-se perto da lareira. Ali, banhando-se no calor das brasas, cravou as garras no tapete e se espreguiçou voluptuosamente.

A idosa viu a gata se ajeitar para tirar uma soneca e apontou um dedo artrítico para a porta da sala.

– Não, Colly! Sai!

– Deixe-a, mãe – disse Eliza gentilmente, enquanto o relógio começava a repicar, aumentado a tensão na sala. – Nós podemos ser banidas para a cozinha, mas por que ela não desfrutaria do fogo, como esta mulher-preguiça da Crosta?

Colly era um pouco menor do que Bartleby, o Caçador, que estava agora no centro da Terra com Will e Elliott, mas diferia dele porque sua pele sem pelos era do mais puro preto.

Colocando-se à vontade ao lado da sra. Burrows, ela se enroscou com um bocejo satisfeito.

– Colly – disse a velha novamente, mas a gata não lhe dava a mínima atenção.

O relógio ainda soava, e o Segundo Oficial tirou proveito da distração criada por Colly.

– Mãe, deixe-a ficar aqui. O que acha de uma xícara fresquinha de café? Vou preparar para você – propôs ele, passando os braços pelos ombros recurvados da mãe ao conduzi-la para fora. – Toda essa excitação não faz bem ao seu coração.

Eliza ficou na sala, fuzilando com os olhos a forma comatosa da sra. Burrows. Não entendia o que dera no irmão. Essa gente era o inimigo, e esta em particular tinha escondido alguma coisa dos Styx – daí o tratamento que recebeu nas mãos deles. Eliza não era uma mulher má, de maneira nenhuma, mas agora sua amargura chegara a tal ponto que ela não conseguia mais reprimir.

Curvou-se e bateu na face da sra. Burrows, um forte tabefe, que deixou uma marca vermelha na pele descorada da mulher. Foi tão alto que Colly se levantou, surpresa. Depois Eliza, literalmente, guinchou de frustração e saiu da sala num rompante.

Enquanto as vozes elevadas continuavam na cozinha no final do corredor, o décimo segundo e último repique soou, e os olhos da sra. Burrows se abriram.

– A mortinha está vivinha – disse ela num tom de desafio, depois mexeu o maxilar e tocou o rosto, onde apanhara. – Calma, calma, Eliza – repreendeu em voz baixa a mulher ausente. Enquanto limpava a saliva dos lábios, ela se lembrou do alfinete que ainda estava cravado nas costas da mão. Por um momento riu, estendendo a mão e abrindo os dedos ao examinar o alfinete, que não tentou retirar.

Depois sentiu a parte molhada da blusa.

– Entendeu o truque da baba, Colly? – disse ela, sorrindo para a gata, que a olhava atentamente. – Acho que foi um toque elegante.

O interrogatório com as Luzes Negras provocou danos inenarráveis ao cérebro da sra. Burrows, e seu corpo teve que ficar inativo. Ela não morreu graças apenas a seu sistema nervoso autônomo ainda intacto. Felizmente, manteve o funcionamento dos principais órgãos, assim o coração continuou a bater e os pulmões aspiravam ar. E embora ela tenha ficado em estado catatônico e à beira da morte por várias semanas, recebeu os cuidados do Segundo Oficial e de sua família. Com a nutrição e os cuidados constantes, ela conseguiu um tempo a mais, e durante esse tempo aconteceu algo excepcional.

Semana após semana, as vias nervosas do cérebro, tão rompidas, começaram a se refazer e se reconectar, como um computador rodando sozinho um programa de recuperação. Um pequeno canto dos lobos frontais – a morada de suas lembranças e sua vontade consciente – embarcou na tarefa hercúlea de reagrupar o restante da massa cinzenta.

Mas as vias nervosas não se reconectaram como antes. Sua visão ficou tão prejudicada que ela só conseguia distinguir entre luz e escuridão. Porém, como se compensasse esta incapacidade, havia benefícios surpreendentes à nova sra. Burrows Versão II.

Ela descobriu que praticamente dominava muitos aspectos de seu corpo, como nunca. Embora sentisse cada alfinetada dada pelo médico, era capaz de isolar a dor e não demonstrar nenhuma reação. Mas isto era só uma fração do que era capaz: ela podia reduzir todos os processos fisiológicos, inclusive o batimento cardíaco, a um nível tão baixo que mal precisava respirar. E, somado a isto, podia elevar ou diminuir a temperatura corporal, obrigando-se a transpirar profusamente, ou expirar em nuvens de condensação. Ela disse a si mesma que era como se tivesse superado os níveis de controle que seu mestre de ioga lhe dissera que só os praticantes mais avançados podiam alcançar.

Mas havia mais. Algo verdadeiramente inexplicável. Embora sua visão estivesse muito fraca, em lugar dela a sra. Burrows adquiriu outra faculdade. Se era consequência do olfato aprimorado, ou da ativação de alguma capacidade animal há muito esquecida e oculta nos recessos do cérebro, ela não sabia. Mas descobriu que tinha algo semelhante a um sistema de alerta antecipado de pessoas. Literalmente, sentia o cheiro delas.

Ela era capaz de distinguir entre pessoas conhecidas e estranhos, mesmo que só passassem pela rua, fora da casa. E sabia em que estado de espírito se encontravam – chateadas, tristes, entediadas, felizes –, não importava, ela detectava todo o leque de emoções humanas. Um biólogo especularia que ela desenvolvera a capacidade de ler os feromônios emitidos pelas pessoas – os sinais químicos propagados pelo ar que têm um papel fundamental na vida de outras espécies animais, que os utilizam para comunicação e em seus padrões de comportamento. Mas a sra. Burrows não era bióloga e não tinha conhecimento disso; limitou-se a ficar satisfeita em desenvolver seu novo sentido, que parecia mais potente a cada dia. Também tinha certeza de que um dia ele a ajudaria a escapar da Colônia. E pelo modo como as coisas iam na casa do Segundo Oficial, esse dia não deveria estar longe.

Então, agora ela não precisou ouvir a discussão que acontecia na cozinha para saber que ainda estava a todo vapor. Sentia o cheiro da exasperação e da frustração irradiando da mãe e da irmã do Segundo Oficial – era tão forte que a fazia estremecer. E também sentia a indignação e a leve emanação de medo do Segundo Oficial, que tentava valentemente se defender do ataque verbal.

Levantando-se da cadeira de rodas e esticando os braços e as pernas, um de cada vez, a sra. Burrows suspirou.

– Ah, assim é melhor – disse ela, acrescentando: – Vem, Colly.

A Caçadora de imediato se colocou a seu lado. A sra. Burrows passou muito tempo com esse felino, e era como se Colly reconhecesse que as capacidades humanas singulares equivaliam às dela própria, chegando até a ultrapassá-las – porque o olfato da Caçadora era também incrivelmente bem desenvolvido. O laço entre as duas pode ter sido forjado por isso, ou por algo num nível mais selvagem, mas a felina fez exatamente o que a sra. Burrows mandou.

A sra. Burrows estendeu a mão até encontrar a cabeça grande da gata.

– Vamos dar uma volta nesta sala. Preciso me exercitar – disse ela.

Tendo Colly como guia, a sra. Burrows andou ao lado dela, evitando os móveis e falando-lhe o tempo todo. Era solitário, para a sra. Burrows, fingir que ainda estava em coma sempre que havia um colonista por perto.

E, é claro, a gata não podia contar a ninguém sobre as mudanças impressionantes que afetaram a nova mulher na casa.


Capítulo Nove


Chester mudou de posição para aliviar os membros. Tinha certeza de que estava quase na hora de Martha lhe trazer alguma comida e água. Não sabia quanto tempo se passara desde que ela abrira a porta para ver como ele estava – as horas se arrastavam lentamente, sem nada que as diferenciasse além de suas crises de desespero e choro.

Só que havia uma coisa.

Barulhos que ele não conseguiu identificar – o esmagar de cascalho do lado de fora, como se um carro tivesse parado, depois uma batida. Mas os ruídos tiveram vida muito curta e eram tão abafados pela porta que não lhe deram nenhuma ideia do que acontecia fora de sua minúscula prisão. Ele supôs que a captora monstruosa aprontava alguma coisa que fizesse sentido em seu mundo distorcido. Gemendo de fome e sede, ele expulsou os sons de sua mente e tentou voltar a dormir.


Drake entrou de rompante no apartamento do depósito e correu por seu quarto, voltando alguns segundos depois com a mochila e uma Bergen. Eddie vira a urgência com que ele se movimentava e se levantou da cadeira.

Drake virou a mochila e a Bergen, derramando todo o conteúdo no chão, e começou a vasculhar, escolhendo o que precisava.

– Aconteceu alguma coisa? – perguntou Eddie.

– Sim, tenho que ir a Norfolk. Acabo de procurar os recados no servidor remoto... É acessado por um número da Crosta que dei a Elliott, para entrar em contato comigo em caso de emergência – disse ele.

– Ela está em perigo? – perguntou Eddie.

– Não, o recado é de Chester e não fala nela – respondeu Drake, colocando parte de seu equipamento na Bergen. – Não estava muito claro, mas pelo que pude entender ele pode estar na superfície agora. – Balançou a cabeça, furioso consigo mesmo. – Que idiotice a minha! Não verifiquei o servidor regularmente... O recado tem semanas. – Pegou uma pistola e alguns pentes de bala, um dos quais encaixou na arma. Enquanto a destravava e metia no cinto às costas, parou para olhar para Eddie. – Espero que o menino tenha tido o senso de se esconder e não tenha tentado ir para casa. Se ele voltar a Highfield, seus camaradas o pegarão rapidamente.

– Mas ainda há uma possibilidade de Elliott estar com ele – raciocinou Eddie, vestindo a jaqueta. – Sendo assim, vou com você.

– Estacionei a algumas quadras – disse Drake, olhando na direção de seu Range Rover, enquanto ele e Eddie saíam do depósito.

– Vamos usar o meu – sugeriu Eddie, partindo para o lado contrário.

Por um momento Drake não se mexeu para segui-lo, ajeitando a alça da pesada Bergen para que ficasse mais confortável no ombro. Depois, mais à frente na rua, viu as setas de um Aston Martin novo em folha piscarem quando Eddie acionou o controle do alarme.

– Carro de classe – disse Drake ao se aproximar, apreciando a pintura preta reluzente. Eddie abriu a porta do motorista e esperou por Drake, que pareceu hesitar. – Mas não é meio chamativo? – acrescentou. – A não ser que você seja James Bond. Não acha melhor usarmos o Range Rover?

Eddie não respondeu.

Depois Drake repensou.

– Tudo bem, vamos no seu, mas eu dirijo – disse ele.

Era o final da tarde e o trânsito não representou um problema para Drake, que disparou para fora de Londres, arrancando depois para Norfolk. Quando a via de pista dupla chegou ao fim e a estrada se estreitou em uma só pista, Drake não diminuiu a velocidade. Por um tempo eles ouviram o noticiário no rádio, mas quando este chegou ao fim nenhum dos dois falou, enquanto a última luz do sol desaparecia em uma paisagem noturna sem lua. Um vento forte soprou e volta e meia os faróis pegavam os olhos reluzentes de um cervo pastando junto ao acostamento.

Vendo um carro vindo no sentido contrário, Drake baixou as luzes. Como esperado, o motorista do outro carro fez o mesmo, mas quando estava quase na mesma altura de Drake, acendeu o farol alto de novo, buzinando como um louco. Uma lata de cerveja vazia bateu na lateral do Aston.

– Idiota, desgraçado! – exclamou Drake para as luzes que o cegavam.

Eddie foi atirado de lado no banco enquanto Drake executava um cavalo de pau perfeito, manobrando para que o carro voltasse pela pista contrária. O V8 rugiu enquanto Drake pisava fundo, e ele acelerou em perseguição ao outro veículo.

– O que está fazendo? – perguntou Eddie com muita calma.

– Alguém precisa dar uma lição nesse babaca! – disse Drake.

Alcançando e ultrapassando o carro, deu uma fechada tão repentina que o outro foi obrigado a parar com uma roda sobre a relva do acostamento.

– Não acho que seja uma boa... – começou Eddie, mas Drake saltou do carro.

O outro motorista tinha saído de seu veículo e encarava Drake com insolência, recostado na porta aberta e fumando seu cigarro. Tinha uns vinte anos, cabelos compridos e uma camiseta regata preta com um pentagrama branco desbotado na frente. No banco do carona sua namorada bebia uma lata de cerveja, rindo, embriagada, ao ver a aproximação de Drake.

– Acha que é da polícia ou coisa assim? – disse o motorista com insolência, numa voz arrastada, quando Drake parou diante dele. – O que vai fazer agora? – Atirou o cigarro com um peteleco em Drake, que deu um passo para o lado a fim de evitar sua trajetória. Caiu na estrada com uma chuva de faíscas. Drake o apagou com a bota.

Outros dois homens mais ou menos da mesma idade do motorista estavam na traseira do carro e disputavam um concurso de provocações de bêbado. A cada instante soltavam uma gargalhada vulgar, como uma dupla de asnos zurrando. Drake os ouviu dizendo “É da polícia” e “Cai fora, cana”.

Em seguida, ao ver que o carro estacionado na frente era um Aston Martin último modelo, o motorista endireitou o corpo, com o desdém ressentido se espalhando pela cara.

– Riquinho babaca! – gritou ele. – Volte para a cidade da sua escória. – Ainda usando a porta do carro como escudo, ele brandiu o punho para a cara de Drake.

Em menos de um piscar de olhos Drake cobriu o espaço até o motorista e pegou o homem pelo braço, torcendo-o tanto que ele girou e foi pressionado contra seu carro. O motorista tentou revidar com o cotovelo do braço livre, mas Drake bateu sua cabeça com força no teto do veículo, produzindo um baque satisfatório. A namorada do motorista parou de rir com um grito, depois soltou um guincho penetrante ao largar a lata de bebida no colo.

– Ei, cara! Não pode fazer isso! – protestou o motorista, ainda preso na chave de braço de Drake. – Isso é agressão e lesão corporal!

Ele tentou usar o braço livre novamente, desta vez para esmurrar. Drake retaliou batendo a cabeça do homem no teto com mais força ainda. Os passageiros agora estavam num silêncio completo e esticavam o pescoço para ver. Drake colocou a boca muito perto da orelha do motorista e falou num sussurro ameaçador.

– Quer mais?

– Mas o que foi que eu fiz? – gemeu o motorista.

– Você sabe o que fez e a partir de agora vou ficar de olho. Se sair da linha de novo, Deus me ajude, eu vou matar você – rosnou Drake. A cara já lívida do motorista ficou ainda mais branca. – Agora dê o fora daqui – gritou, atirando o motorista em seu banco. Olhou o carro sair lentamente, numa velocidade mais sóbria.

Drake voltou ao Aston e se sentou ao volante, segurando-o com tanta força que o nó de um dedo estalou. Olhando para a frente, parecia estar petrificado pela cena que via pelo para-brisa. Iluminados pelos faróis, os galhos das árvores eram açoitados pelo vento numa agitação frenética.

Sentados lado a lado no carro, Eddie não pôde deixar de perceber que Drake tremia de fúria.

Eddie rompeu o silêncio, pigarreando.

Drake continuava a encarar o para-brisa à frente, sua voz tensa ao falar.

– Vamos lá, Eddie, desembuche. Diga que sou um imbecil por fazer isso e que eles vão dar queixa na polícia. Aston Martin envolvido em incidente de fúria na estrada – disse ele, como quem recita uma manchete de jornal.

Eddie balançou a cabeça.

– Não estou preocupado com isso. Eu ia dizer que temos mais em comum do que você gostaria de admitir.

– E se eu dissesse que não quero saber, isso o impediria de dizer o porquê? – respondeu Drake bruscamente.

Eddie continuou mesmo assim:

– Nós dois somos movidos pela mesma coisa... Somos ambos incrivelmente coléricos. E essa cólera sempre está presente, nos devorando.

– Eu nunca o vi perder a cabeça – contrapôs Drake.

– Nós a controlamos de maneiras diferentes. Ou tentamos – disse Eddie. – E o paradoxo é que, embora ela nos destrua, também nos define... E nos torna quem somos. – Parou por um momento, procurando as palavras certas. – É como se estivéssemos perpetuamente na ponta da faca, sempre em movimento, lutando por alguma coisa, mas o gume da faca só faz nos penetrar ainda mais. – Respirou fundo. – Você sabe como eu fiquei assim, mas não me disse nada a respeito de si mesmo. O que houve que o deixou desse jeito?

– Vocês fizeram isso – respondeu Drake. – Vocês, os Styx.

Uma raposa soltou um uivo quase humano em algum lugar na mata ali perto, mas Drake continuou encarando o para-brisa.

– Há uma vida – começou ele, depois engoliu em seco. – Eu era aluno de graduação da Imperial... Éramos três: Fiona, Luke e eu, e não nos misturávamos muito com os outros estudantes. Não tínhamos tempo para eles, embora nos chamassem de Meninos-Prodígio – disse, fechando os olhos por um momento. – Morávamos juntos, mas passávamos quase todo o nosso tempo na universidade... A faculdade nos dava rédeas soltas... Tudo o que pedíamos... O que quiséssemos dos laboratórios. Não interferiam em nossos vários projetos de pesquisa, já que a universidade acabaria por se beneficiar do que fazíamos.

– Em optoeletrônica? – perguntou Eddie.

– Sim, era esse meu campo. Luke era matemático e Fiona, o gênio do software, e nós nos completávamos com perfeição. Mas, dos três, o gênio era mesmo Fiona... Sabia gerar códigos como ninguém. E no segundo ano ela escreveu um software que assimilava novos eventos, empregando algoritmos únicos para analisá-los. Depois que a comunidade de negócios e os serviços de segurança descobriram o que ela estava fazendo, todos tentaram contratá-la. Todos queriam o programa, a qualquer custo. Mas ela aguentou e continuou trabalhando no projeto. Quando o programa absorveu dados suficientes e atingiu a massa crítica, funcionou melhor do que ela imaginara. Mas Fiona começou a achar uma coisa estranha... Uma anomalia. O software começou a alertar para eventos que não pareciam se encaixar. Padrões de eventos que eram incoerentes, mesmo com a teoria do passeio aleatório. – Drake deslizou as mãos para baixo do volante. – E imagino que você tenha deduzido o motivo.

– Éramos nós... Os Styx. Esses alertas eram intervenções nossas? – disse Eddie.

– Isso aí – respondeu Drake. – Uma semana antes da formatura, ela se despediu de Luke e de mim pela manhã e pedalou para o laboratório da universidade, como sempre fazia. Foi a última vez que a vimos... Nunca a encontraram, nem a bicicleta. E ninguém entendeu por que todo o seu trabalho desaparecera com ela... O laptop, os discos de backup que mantinha no quarto, tudo na rede da universidade. Qualquer coisa vagamente relacionada com o programa simplesmente desapareceu, sem deixar vestígios. – Engoliu em seco. – Depois meu amigo teve um colapso nervoso.

– Está falando de Lukey? – disse Eddie.

– Sim, ele era um desses jovens incrivelmente inteligentes, mas muito sensíveis... Ficou arrasado com o desaparecimento de Fiona. Largou a universidade e voltou a morar com a mãe. Morreu de tanto beber, um ano depois. – Só agora Drake se virou para Eddie. – Pelo que sei, você podia estar envolvido no rapto. Pode ter sido um dos Limitadores que pegou Fiona.

Eddie balançou a cabeça lentamente; como sempre, sua expressão não revelava nada do que ele pensava.

– Não, e não sei o que dizer. Posso pedir o perdão pelos atos de meu povo, mas seria insignificante para você, não?

– Completamente – murmurou Drake, girando a chave na ignição. Depois manobrou o carro e o recolocou na direção original.


A porta de meu quarto está fechada e meu roupão pendurado nas costas – é azul-escuro e tão grosso que parece que estou usando um pedaço de tapete, mas é bem quente. Minha mãe comprou para mim antes do Natal porque o meu antigo estava ficando pequeno demais. Chester moveu a cabeça de leve. Ali, ao lado da porta... Os pôsteres na minha parede... Sim, estou vendo... Todos estão onde deviam estar. Eu os conheço muito bem porque às vezes, quando não consigo dormir, fico deitado na cama e só olho para eles. A cena de floresta com os pinheiros é o meu preferido. Alguns estão meio tortos na parede, porque eu os coloquei quando era pequeno – tenho a maioria desde que me entendo por gente, e estive pensando em arrumar uns novos. Chester vira um pouco mais a cabeça. E, sim, ali está a luminária Anglepoise que meu pai me deu... É pintada de laranja... Meu avô deu a ele, mas era preta na época, e muito lascada, então papai pintou de laranja quando tinha a minha idade. Vejo onde ele colocou tinta demais na base e ela escorreu um pouco, mas não ligo, porque era do meu pai e eu gosto de como as molas alteram a luz sempre que mexo nelas. Às vezes, quando fecho um pouco os olhos, sua cúpula parece a cápsula espacial da Apollo... Uma vez vi um programa ótimo sobre a Apollo pousando na Lua em um canal da Sky. Chester coloca a cabeça inteiramente de lado e sorri. Ah, sim, ali estão meus livros. Todos de lombadas de cores diferentes. Adoro meus livros e nunca os empresto a ninguém, para que não estraguem as capas. Li a maioria deles mais de uma vez. Sempre quis ter todas as séries e sempre, sempre mantive todas na ordem cert...

– Comida para você, queridinho – disse Martha com sua voz enjoativa ao abrir a porta do armário. Chester foi arrancado abruptamente de seu mundo ilusório e voltou ao real. Para passar as longas horas no escuro e escapar da horrível situação em que estava aprisionado, ele ficava um tempo cada vez maior imaginando que se encontrava em sua casa, em Highfield. Podia trazer à mente as diferentes partes da casa com demasiado realismo, lembrando-se até dos menores detalhes. Além de seu quarto, costumava perambular pelo primeiro andar ou por seu jardim ensolarado, onde tudo seria perfeito, como deve ser.

– Quer um pouco da comida ou não? – Martha o pressionou porque ele não havia respondido.

Ainda bem grogue, ele murmurou que sim. Ela estava em silhueta contra a luz oscilante que vinha de trás. A primeira coisa que Chester pensou foi que Martha devia ter acendido umas velas, mas parecia haver muita fumaça para ser apenas isso – era como se uma fogueira ardesse ali perto. Ele teve que lembrar a si mesmo que eles estavam num chalé moderno, embora a iluminação inconstante e as nuvens de fumaça dessem ao lugar uma aparência primitiva. Com a fumaça, ele também sentiu cheiro de carne queimada.

– Martha, por favor, pode me soltar um pouco? Não pode me desamarrar, só para eu comer? – perguntou ele mansamente. – Minhas pernas estão muito rígidas. Prometo que vou fazer tudo o que você mandar.

Ela o olhou com um sorriso paralisado nos lábios e o olho louco debatendo-se em sua órbita. Chester prendeu a respiração por vários segundos, depois ela girou a cabeça de repente, olhando para trás.

– Neste momento, não... Limpar... Tenho uma limpeza para fazer – murmurou ela, virando-se de novo para Chester. – Coma sua comida – ordenou, adotando um tom desagradável.

– Sim, sim. Estou com muita fome, sim – tagarelou Chester de imediato, sem querer provocar outro de seus ataques de insanidade. Não ia recusar nada para comer, mesmo que ela tivesse cozinhado com seus métodos anti-higiênicos.

Ela escorou a cabeça dele ao lhe dar uma colherada na boca.

– Nham – disse Chester, engolindo a carne quase crua. – Está ótima. Obrigado... – Mas ele não pôde falar, porque ela meteu outro naco em sua boca.

– Pronto – disse ela quando Chester terminou, baixando a cabeça dele no chão. – Bom menino. – Simplesmente jogou o prato e a colher no chão, limpou a mão na saia e grunhiu ao se colocar de pé.

Chester pensou rapidamente. Precisava fazer alguma coisa. Tinha que tentar fazer contato com alguém lá fora.

Mas como?

Então teve uma ideia.

– Martha – começou ele.

O olho louco estava fixo nele, mas Chester não ia deixar que isto o intimidasse.

– Martha, por favor, posso ficar com minha mochila?

O olho louco se estreitou um pouco enquanto o fitava com desconfiança.

– Por quê? – chiou ela, mal mexendo os lábios. Depois repetiu, desta vez com estridência.

– Hmmm... Estou tão acostumado a descansar a cabeça nela... E só ficar deitado no chão assim é muito desconfortável – explicou Chester. Como Martha não respondeu, ele se preparou para o que ia dizer em seguida. – Mãe... Mamãe, por favor, posso ficar com a mochila... Por favor? – pediu ele.

Isto teve um efeito imediato sobre a mulher.

– Ora, sim, claro – disse ela, a voz quase normal. – Fique bem aqui, meu queridinho, que vou pegá-la. – Afastou-se, e Chester tentou se arrastar para fora do armário o suficiente para ver o que havia do lado de fora. Ele tinha certeza de ter vislumbrado fogo de verdade na sala de estar; não na lareira, mas no meio do chão. E também havia manchas escuras por todo o carpete castanho-claro no corredor, como se algo tivesse sido arrastado por ali. Lama?, perguntou ele a si mesmo.

Chester a ouviu voltando e rapidamente recuou para dentro de sua prisão.

– Muito obrigado, mamãe – disse ele.

Ela colocou a mochila sob sua cabeça, depois se levantou para olhá-lo.

– O que você quiser, meu filho maravilhoso – cantarolou ela, antes de bater a porta do armário.

Ele esperou até que tudo se aquietasse, rolou de lado muito devagar e colocou as mãos no alto da cabeça para sondar dentro da mochila. Foi difícil, porque seus pulsos estavam amarrados, mas depois de algum tempo encontrou o que esperava ainda estar ali.

– Peguei! – sussurrou, segurando o objeto à fraca luz que entrava por baixo da porta.

Era uma pequena caixa plástica do tamanho de um baralho com um fio numa ponta, que funcionava como uma antena. Ele segurou a caixa com a boca enquanto tateava, procurando o interruptor. Encontrando-o, ligou o aparelho. Depois, rapidamente, devolveu a caixa à mochila, empurrando bem para o fundo e vendo se suas roupas sujas a cobriam.

Rolando de costas e deitando a cabeça na mochila, ele estendeu as mãos.

– Por favor, meu Deus, eu não pedi muito ao Senhor antes, mas estou pedindo agora. Por favor, que alguém perceba meu sinal – rezou ele, num sussurro tenso. – Por favor!


Depois de passar por um vilarejo com uma loja que também era agência postal, Drake reduziu a velocidade, procurando um lugar onde deixar o carro. Encontrou uma trilha que levava a uma área arborizada e parou sob as árvores, onde o Aston Martin não seria visto da estrada.

– Vamos a pé a partir daqui – disse ele a Eddie, e no silêncio da noite eles pegaram o equipamento que iam levar.

Eddie optou por duas pistolas semiautomáticas, uma com silenciador, como se esperasse encontrar problemas. Drake não sabia por que ele considerava aquilo necessário, mas não o questionou.

Ele colocou o dispositivo de visão noturna, certificando-se de que a faixa estava posicionada corretamente na testa. Baixou a lente sobre o olho direito antes de ativar a unidade de força no cinto. A cena através da lente bruxuleou com uma neve alaranjada, clareando em um segundo, dando-lhe uma visão dos arredores que não diferia muito da luz do dia.

Enquanto pendurava a Bergen nos ombros e eles partiam pelo mato molhado, Drake pensava no que poderiam encontrar quando chegassem ao porto subterrâneo abaixo do campo de pouso. Da última vez que esteve ali, viu Will e o dr. Burrows partirem na lancha. Foi uma jornada de muitas centenas de quilômetros descendo para o profundo abrigo nuclear. E foi de onde Chester ligou quando deixou o recado. Embora o recado já tivesse mais de duas semanas, não havia dúvida de que o garoto ainda podia estar escondido em algum lugar perto do campo, ou mesmo esperando por ele no porto.

Ele e Eddie continuavam paralelamente à pequena estrada rural e pararam ao lado de uma plantação de cevada. Pelo dispositivo, parecia a Drake que era a superfície ondulante de um grande lago batido pelo vento. Mas ele mal percebia isto ao se perguntar quem poderia ter acompanhado Chester na lancha. Era uma viagem pelo rio para duas pessoas – uma para manobrar o motor de popa, outra, para reabastecê-lo e agir como navegador. Chester não dera nenhuma indicação no recado, embora parecesse muito desesperado.

Um chuvisco fraco começou a cair, e Drake e Eddie atravessaram uma estrada estreita e saíram na margem oposta.

– Norfolk. – Drake riu. – Chove, sempre chove... Sempre está chovendo neste condado.

Embora Eddie não tivesse dado qualquer tipo de resposta, Drake sentiu a reprovação do homem por ter falado em voz alta.

Em pouco tempo deram com um buraco na cerca do campo de pouso e se espremeram por ele, notando uma cabine de obras ao longe, iluminada por dentro. Depois passaram por um grupo de casas dos anos 1960, dispostas em um terreno pequeno. Drake supôs que essas propriedades tinham sido originalmente usadas pelos homens recrutados e suas famílias. Mas agora pareciam desocupadas e em vias de reforma, a julgar por todo o material de construção ali deixado.

Enquanto ele e Eddie iam para um dos prédios maiores, Drake descobriu que olhava continuamente para saber se o outro ainda estava com ele. Embora alegasse fazer anos desde que estivera ativo em campo, o ex-Limitador se movimentava em completo silêncio. Era como se a audição de Drake estivesse ruim – ele via Eddie andando por uma área de samambaias secas ou abrindo caminho por trechos de mato sem que produzisse o mais leve ruído. O mesmo acontecia com sua filha, Elliott.

Eles penetraram em uma moita de espinheiros, e ali Drake retirou alguns pedaços de madeira podre de sobre o alçapão, revelando um poço revestido de concreto de cerca de dois metros quadrados. Descendo por ele, usaram os degraus enferrujados engastados num lado, para chegar ao fundo. Logo começaram a andar por uma sala cheia de armários e inundada de uma água marrom e suja, funda o bastante para cobrir as botas.

Drake abriu uma porta no final da sala, e eles passaram rapidamente por um corredor em que flutuavam tambores de óleo vazios e madeira mofada. Chegaram então à parede de tijolos que Will tinha quebrado para passar.

Eddie sacou uma das pistolas enquanto ele e Drake subiam pela abertura irregular. Os dois caíram agachados, escutando e olhando o porto dos dois lados. Ninguém à vista. Com um gesto, Drake orientou Eddie a investigar uma ponta do cais enquanto ele se ocupava da outra.

Drake deu com a lancha no local onde tinha sido arrastada para fora da água e, perto dela, uma mochila militar e duas bolsas. Ele revirava o conteúdo de uma delas, encontrando latas de aerossol que dera a Will para repelir as aranhas-macacos, ração militar e um feixe de sinalizadores, quando sentiu a presença de Eddie a seu lado.

– Tudo certo – disse o homem, depois olhou de soslaio para o rio que corria veloz no escuro. – Então é por aqui que descemos até Elliott?

Drake não respondeu ao Limitador, levantando a bolsa para que ele visse.

– Quem veio do abrigo nuclear deixou muita coisa para trás. Mas onde está Chester? – refletiu Drake.

– Em algum lugar em que se sinta seguro? – sugeriu Eddie. – Você achou que ele pode ter ido para Londres, então talvez esteja a caminho de lá.

– Talvez, mas Chester sabia que seu pessoal estaria esperando por ele no momento em que aparecesse por lá. E ele não tem como entrar em contato comigo, a não ser por recados no servidor remoto.

– Bem, você conhece o garoto – disse Eddie.

– Conheço, mas isso também depende de quem estiver com ele... Se for Will, eles podem ter arriscado uma volta a Highfield juntos. Chester... sozinho... seria mais cauteloso. Não, imagino que tenha se enfiado em algum lugar não muito longe daqui.

Eddie apontou um de seus dedos finos e brancos para cima.

– Então temos que fazer uma busca nos prédios – sugeriu – e ficar de olho nos rastros.

Drake assentiu com uma expressão preocupada.

– Mas se ele saiu daqui há uma ou duas semanas, o clima pode ter eliminado qualquer vestígio – disse ele.


Capítulo Dez


– Ah, aí está você. Venha ver isto – gritou o dr. Burrows.

Will tinha acabado de sair da sombra das árvores e se dirigia ao pai, que trabalhava em uma mesa improvisada sobre cavaletes junto à base da pirâmide.

Erguendo a cabeça do crânio que tinha nas mãos, o dr. Burrows só olhou o filho quando ele estava quase na mesa.

– O que houve com seu cabelo? – perguntou ele. – Alguém tentou escalpelá-lo?

– Elliott cortou para mim – respondeu Will, indignado. Ele coçou o cabelo muito curto, e alguns tufos saíram em sua mão. – Na verdade, doeu muito, porque a faca de Elliott não é muito afiada. – Ele olhou as árvores. – Agora ela está cortando o dela... Deve ter algo a ver com este lugar ou o sol, mas o cabelo dela cresce muito mais rápido do que o meu. Eu juro que deve ser um centímetro por dia. Talvez seja uma coisa dos Sty...

– Fascinante – interrompeu o dr. Burrows, como se não estivesse ouvindo uma só palavra do que dizia o filho. Colocou o crânio num espaço que limpara na mesa abarrotada. Will viu que havia um total de três crânios, arrumados numa fila.

– Onde arrumou isto? – perguntou Will.

O dr. Burrows abriu os dedos para tocar o alto do crânio que estivera examinando e o que estava ao lado.

– Este par estava em um pequeno compartimento perto do alto da pirâmide. Desloquei uma tampa de pedra com uma inscrição, uma tradução rudimentar das Origens. Os dois estavam ali dentro.

– Em um pequeno compartimento? – disse Will. – Você não me contou. Onde eu estava quando os achou?

– Por aí, com sua amiga cabeleireira – respondeu o dr. Burrows causticamente.

– Ah, é? – perguntou Will, franzindo o cenho. Ele tinha uma boa ideia de que dia fora, mas se ressentia porque o pai tentava fazer com que se sentisse culpado. Will dedicava quase todo o seu tempo a ajudá-lo e achava que merecia um descanso de vez em quando.

– Sim, ela lhe mostrava o cafofo dela ou coisa assim. Lembra?... Foi a memorável ocasião em que ela alegou que as árvores a observavam – respondeu o dr. Burrows sem nenhum interesse, mas toda a sua atitude se transformou quando ele colocou a mão no terceiro crânio. Era desbotado pelo sol e muito branco. – E este camarada era um dos três que estavam empalados nas estacas.

– Pai! Não devia ter tirado de lá! – exclamou Will. – Estavam ali por algum motivo. Não me parece certo mexer neles.

– Não me venha com suas superstições – retorquiu o dr. Burrows.

Will via que os olhos do pai cintilavam de excitação e decidiu não insistir mais na questão. Era evidente que o dr. Burrows pensava ter chegado a alguma coisa, e Will sabia que não teria que esperar muito para descobrir o que era. E tinha razão.

– Não há dúvida nenhuma de que o crânio da estaca é humano. Homo sapiens, como você e eu – anunciou o dr. Burrows. – O mesmo vale para este outro, do par no compartimento.

– A cor é mais escura – observou Will.

– Isso não importa... Concentre-se no crânio menor ao lado, que os Antigos pensavam ter importância suficiente para preservá-lo na pirâmide. Me diga o que você vê – instruiu o dr. Burrows, pegando o crânio e colocando-o nas mãos do filho.

– É pesado. Claramente, é um fóssil – observou Will, avaliando o peso. – E parece diferente de um crânio human...

– Pois afirmo que não é – interrompeu-o o dr. Burrows. – E a testa destacada e o maxilar que se projeta muito mais do que o dos outros?

– Não é humano? – perguntou Will.

– Fiz apenas alguns cursos de antropologia, então, não sou um especialista nisso. Porém, a meus olhos, tem feições que não são nem humanas, nem inteiramente de um primata – falou o dr. Burrows com entusiasmo.

– Primata? – disse Will. – Então não é nem de um macaco, nem de um símio?

– Não, não em minha opinião, porque... – interrompeu-se o dr. Burrows, gesticulando com entusiasmo. – Lembra em Highfield, quando você era novo... Eu lhe falei sobre o elo perdido e o Homem de Leakey?

– Histórias para dormir sobre o Homem de Leakey – recordou-se Will, permitindo-se uma risadinha. – Sim, eu lembro... O crânio que foi desencavado em um rio da África.

– Exatamente! Era a prova cabal de um dos mais distantes ancestrais do homem. Mas só foram descobertos crânios do estágio Homo erectus e de várias outras fases anteriores e não há absolutamente nada que demonstre os passos da transição de primata antropomorfo a humano. Absolutamente nada. Não foi encontrado nenhum fóssil do chamado hiato hominídeo, que tem milhões de anos. Não acha isso estranho?

– Sim... Muito – respondeu Will.

– Claro que é. Sempre houve esse mistério inexplicável do buraco no registro evolutivo humano.

– E? – Will estimulou o pai.

O dr. Burrows pegou o pequeno crânio da mão do filho e o recolocou na mesa.

– Isto pode parecer meio excêntrico... Mas e se eles nunca foram encontrados na superfície porque...

Ele agora tinha o dedo levantado no ar, instando Will a terminar sua declaração.

Como Will não respondeu com rapidez suficiente, o dr. Burrows continuou, impaciente:

– Porque todos desceram para cá.

– Ah! – murmurou Will, mas o pai agora estava a todo vapor.

– E se esse mundo interior foi o caldeirão da evolução humana e possivelmente até da evolução de várias outras espécies animais? – O dr. Burrows abriu os braços para a selva que os cercava. – Quero dizer, todas as plantas e árvores que podemos ver diante de nós são especialmente adaptadas para fazer fotossíntese e ativar mudanças fotoperiódicas.

– Foto o quê? – perguntou Will.

O dr. Burrows ignorou a pergunta, falando rapidamente.

– Minha teoria é de que o sol que brilha vinte e quatro horas por dia neste ecossistema fechado promove a evolução acelerada. E também promoveu nossa evolução acelerada.

– Está dizendo que os símios evoluíram até se tornarem humanos aqui neste mundo interior e depois, de algum modo, voltaram à superfície? – disse Will.

– Exatamente! – exclamou o dr. Burrows de novo. – O que é incrível... E os Antigos, o povo que morava aqui, eram informados o suficiente para se interessarem por isso também. Pelo que está escrito na pirâmide, eles estavam perto de descobrir. – Ele suspirou. – E isso também significa que eu devo ter feito a descoberta mais importante do século.

– Outra? – murmurou Will, balançando a cabeça para os crânios antigos.


Drake olhou o relógio enquanto estava agachado junto da lancha no cais.

– O sol nasce lá pelas seis horas – disse ele. Embora pudesse ter usado seu dispositivo de visão noturna para procurar qualquer rastro que Chester pudesse ter deixado no antigo campo de pouso, ele e Eddie decidiram que seria melhor esperar até o amanhecer. Para passar o tempo, Drake fazia um inventário das rações nas mochilas. Sepultado sob os pacotes, encontrou algo que pegou muito lentamente.

Parecia uma arma muito rudimentar.

– Arma? – perguntou Eddie, logo interessado.

Drake balançou a cabeça.

– Não, é um protótipo de detector de baixa frequência. Ainda não foi adequadamente testado, mas, se tivermos as especificações certas, pode funcionar como sistema de rastreamento... Mesmo a grandes distâncias no subterrâneo.

Eddie ficou intrigado.

– Pela crosta da Terra? – disse ele.

Drake examinava o mostrador no alto da unidade.

– Sim, pela pedra... Por mais grosso que seja o estrato.

– Útil – disse Eddie.

– É, e eu dei a Will dois destes e um lote de radiofaróis para ele encontrar seu... – interrompeu-se Drake. Levantou-se e apertou o gatilho do dispositivo.

Ao apontá-lo rio abaixo, ouviu-se um estalo muito fraco e o ponteiro no alto do dispositivo realizou um movimento mínimo.

– Isso deve ser o abrigo nuclear, a não ser que ele tenha marcado uma das estações de passagem.

Em seguida, quando girou por acaso para onde o rio surgia do outro lado do porto, o detector emitiu estalos muito mais altos, e o ponteiro enlouqueceu.

– Gozado – disse ele. Focalizou o sinal, descobrindo que levava à abertura nos blocos de concreto. – Fica ainda mais forte aqui – observou, com uma expressão pensativa. – Será que...


Rebecca Dois e o general Limitador eram levados em uma limusine preta e grande, com veículos militares à frente e atrás, além de dois batedores de moto abrindo caminho.

– Por quem me tomam? – grunhiu a Rebecca Dois, ao olhar a saia do vestido de algodão branco que lhe deram, enfeitado de fitas creme. – Pelo menos você não está parecendo a Fada do Açúcar – murmurou ao taciturno general Limitador a seu lado. Ela ficaria muito mais à vontade numa versão da farda militar cinza-escura com que ele foi munido.

Eles tiveram vislumbres do mar enquanto o comboio margeava a área das docas, dando uma guinada para o centro da metrópole. Pelo vidro escurecido da traseira da limusine Rebecca Dois viu pessoas nas ruas e diferentes paisagens. Ao passarem por uma escola, uma fila de crianças saía pelos portões, todas com chapéus de abas largas para protegê-las do sol. Rebecca Dois ficou assombrada com a escala da cidade; filas intermináveis de casas passaram voando, intercaladas com bulevares de lojas. Estas, por fim, deram lugar a prédios com o tamanho de hangares: imponentes estruturas neoclássicas, de granito ou de uma pedra mais leve e semelhante a giz, trazendo nas fachadas nomes como Institut der Geologie e Zentrum fuer Medizinische Forschung.

Então o comboio entrou em uma passagem subterrânea e saiu em uma avenida de três pistas. Rebecca Dois viu que depois das árvores, bem em frente, havia uma imensa praça. Do outro lado do enorme espaço aberto as ruas transversais zumbiam com o trânsito pesado. Mas seus olhos foram atraídos pelas estátuas entre as árvores na margem da avenida – figuras altivas de homens postados em bases de granito. “Frederico, o Grande”, ela leu em um deles.

– E, em lugar de honra, Albert Speer – disse o general Limitador.

Rebecca Dois esticou o pescoço para ver a grande figura de terno com planos abertos nas mãos. Era a última estátua da fila e, ao contrário das outras, sua cabeça não estava voltada para sua contraparte no outro lado da rua, mas olhava o gigantesco arco do qual se aproximava rapidamente a limusine. Também havia veículos blindados estacionados por toda a praça, e o general Limitador ficou particularmente interessado em uma longa fila de tanques, alguns pintados de um cinza neutro e outros em uma camuflagem de selva.

– Panzers? – perguntou ele a si mesmo, à meia-voz.

– Ei, eu conheço este arco... Dava para ver das montanhas – disse Rebecca Dois, entendendo por que lhe era tão familiar.

O comboio parou perto de uma das pernas monolíticas do arco e as portas da limusine foram abertas para ela e o general Limitador. Os soldados da escolta militar rapidamente desembarcaram e os cercaram, em um cordão protetor. O arco era construído em uma larga ilha no meio da praça, cercado pelo trânsito, e os soldados se organizaram de modo que as faces curiosas nos veículos que ali circulavam não pudessem ver muito dos dois Styx.

Ao andar pela calçada, Rebecca Dois reconheceu um dos soldados em sua escolta – era o jovem oficial que estivera no comando do esquadrão nos portões da cidade. O oficial verificava se seu destacamento estava corretamente posicionado e parecia muito mais à vontade do que naquela primeira ocasião.

– Voltamos a nos encontrar – anunciou Rebecca Dois.

Abrindo-lhe um sorriso fugaz, o oficial acenou uma vez em resposta. Era evidente que ele queria que ela continuasse indo em direção ao arco, mas ela permaneceu onde estava.

– Quero lhe agradecer por ordenar a seus homens que baixassem as armas – disse ela. – Tudo teria virado um bangue-bangue, mas você manteve a frieza e salvou a vida de seus homens. E, mais importante, ajudou a salvar a vida de minha irmã. É algo que nunca vou esquecer.

Ele acenou novamente, depois indicou que ela e o general Limitador seguissem até a entrada da perna mais próxima do arco. Ao olhar o alto da imensa estrutura, ela viu fila após fila de janelas de vidro escurecido em seus muitos andares. Começou a avançar, mas parou.

– Que lugar é este? – perguntou ela ao oficial.

– Das Kanzleramt... Acho que em sua língua chamam de Chancelaria – respondeu ele.

– É verdade – disse ela.

Depois de passarem por um conjunto de portas giratórias de vidro e bronze maciço, Rebecca Dois e o general Limitador foram conduzidos a um elevador por um saguão de mármore. Sua escolta militar ficou para trás enquanto os dois Styx subiam cerca de trinta andares sozinhos. Foram recebidos no alto por uma mulher de traje escuro. Rebecca Dois torceu o nariz para o perfume invasivo da mulher. Embora fosse jovem, sua maquiagem era pesada e o cabelo louro platinado era tão rígido que podia ter sido envernizado.

– Bem-vindos – anunciou a mulher numa voz simpática, depois girou para Rebecca Dois: – E você não ficou linda nesse adorável vestido? – Abriu um sorriso afetado. Os modos da mulher eram tais que ela podia estar elogiando a filha de um dignitário em visita. Mas, certamente, não teve a resposta que esperava.

– É um nojo – rosnou Rebecca Dois, mexendo os ombros desconfortavelmente sob o algodão leve. – Na primeira oportunidade vou rasgar em farrapos e queimar.

– Oh! – exclamou a mulher, arregalando os olhos. – Si... sigam-me por aqui, por favor – gaguejou, e os levou por outro corredor, andando com rapidez exagerada, batendo os saltos altos no piso de pedra polida. Evitou cuidadosamente olhar para Rebecca Dois enquanto batia em duas portas de madeira, depois as abria.

– Entrem – uma voz ordenou.

Com o general Limitador vários passos atrás, Rebecca Dois entrou na sala. Avistou uma longa mesa de uma madeira escura muito laqueada, em torno da qual havia numerosas cadeiras. No meio da mesa havia uma grande águia de aparência feroz surgindo de um globo de bronze espatifado, que num exame mais atento Rebecca Dois percebeu representar o mundo.

– Olá. – Um homem se levantou junto à cabeceira da mesa e começou a se aproximar deles. Como Rebecca Dois tentava não encarar seu bigode um tanto pequeno, ela não podia adivinhar sua idade, mas estimava que beirasse os sessenta anos. Era corpulento e respirava com dificuldade ao andar. Seu cabelo preto era penteado para trás com gel fixador, e ele vestia uma farda de cor bege com dragonas riscadas de adornos dourados.

– Sou Herr Friedrich, chanceler da Nova Germânia – apresentou-se ele. Sua voz era calorosa e, a não ser por um leve sotaque, falava um inglês impecável. Estendendo a palma macia da mão, cumprimentou Rebecca Dois e o general Limitador, gesticulando em seguida para a cabeceira da mesa, onde estivera sentado. Mas Rebecca Dois reduziu o passo ao se aproximar de uma vidraça. De sua posição elevada, a vista da metrópole era de tirar o fôlego, e ela e o general Limitador pararam a fim de admirá-la.

– É notável, não? – disse o chanceler com orgulho. Apontou para uma foto em preto e branco na parede ao lado da janela. – Quando chegamos neste novo mundo, há pouco mais de sessenta anos, tudo isso era... uma faixa de terra entre o mar e as montanhas, apenas com árvores e algumas ruínas. – A fotografia mostrava uma área da selva em processo de limpeza: turmas de trabalhadores sem camisa brandiam machados e conduziam troncos caídos, enquanto em volta deles ardiam muitas fogueiras. Rebecca localizou barracas ao fundo, ao lado das quais havia alguns dos helicópteros incomuns.

– Sessenta anos – repetiu Rebecca Dois ao voltar o olhar para a metrópole pela janela.

– Tudo começou nos anos 30, quando Himmler enviou expedições aos quatro cantos do mundo, ao Tibete e aos dois polos. Estava em busca de conhecimento milenar que auxiliasse o Partido Nazista em sua perseguição do poder. Entre outras coisas, Himmler acreditava na teoria da Terra Oca. O fato de que estamos aqui, numa cidade com uma população de quase quinhentos mil habitantes, é prova de que Hitler queria garantir que o Terceiro Reich durasse os mil anos que prometeu à nossa nação. A Nova Germânia seria seu refúgio, seu último posto avançado, caso ele perdesse a guerra.

– Mas ele nunca desceu aqui – disse Rebecca Dois. – Morreu em seu bunker.

O chanceler estava a ponto de responder quando um criado apareceu de uma pequena porta no canto da sala, e ele sorriu e bateu palmas.

– Pensei que poderíamos almoçar. Como nossa reunião é um evento tão auspicioso, teremos plesiossauro – disse ele ao partir para a mesa, onde foram arrumados três pratos.

– Plesiossauro? – perguntou Rebecca Dois com um franzido na testa. Assim que pronunciou a palavra, percebeu por que estava tão familiarizada com ela: Will e o dr. Burrows tagarelavam interminavelmente sobre restos fósseis que sonhavam em descobrir em suas viagens juntos. Os plesiossauros e ictiossauros eram dois deles. – É um dinossauro extinto, como um lagarto imenso de pescoço comprido?

– Muito impressionante e inteiramente correto – elogiou-a o chanceler –, exceto por um detalhe. A criatura não está extinta em nossos mares, e os melhores cortes vêm do quarto traseiro. Meu chef é o mais refinado da cidade... Grelha levemente cada posta e serve em um leito de arroz com manga. – O chanceler lambeu os lábios brilhantes. – Terão um raro prazer, posso garantir.

Eles assumiram seus lugares, e o criado serviu nos copos água gelada de um jarro de prata.

– Aprendemos rapidamente que para nos adaptarmos a este mundo e suas altas temperaturas devemos beber muito líquido e comer bem – anunciou o chanceler, servindo-se de um pãozinho e o abrindo num prato pequeno. – Não estamos habituados a receber visitantes da crosta externa, mas confio que estão sendo bem tratados, não? Está tudo a contento? – perguntou. Ele, evidentemente, fora informado de que a jovem estava no comando, mas talvez não acreditasse nisso, certificando-se de também dirigir suas perguntas ao general Limitador.

– Muito a contento, obrigada – respondeu Rebecca Dois educadamente. – Devo dizer que todos os banhos que seus oficiais médicos insistiram que eu tomasse e as doses intermináveis de iodeto que tive que engolir tornaram-se um tanto tediosos depois de um tempo.

O chanceler assentiu, solidário.

– Estou de pleno acordo. É uma lástima que tenham chegado à nossa cidade através das minas de urânio, mas fui informado de que sua exposição à radiação não foi excessiva. Receio que os banhos e o iodeto tenham sido medidas cautelares, mas muito necessárias. Como sei que lhe disseram, limitamos nosso tempo naquelas montanhas e em determinadas áreas da selva devido à alta contagem de radiação.

Rebecca Dois assentiu.

– E sua irmã? Está se recuperando bem? – perguntou o chanceler.

– Seus médicos fizeram maravilhas – respondeu Rebecca Dois. – Ela perdeu muito sangue, de início não se sabia se sobreviveria. Mas conseguiu, e se recupera bem, e estou muito agradecida a vocês por isso. E ela também está nas nuvens por terem enviado um dentista para consertar seu dente quebrado.

O chanceler gesticulou com desdém.

– Essa assistência é o mínimo que se espera entre antigos aliados como nós – disse. Ele olhou uma pasta em uma escrivaninha atrás do general Limitador. – E então... Mefistófeles. Estive lendo os arquivos sobre vocês... Foram armazenados fotograficamente e demoramos a localizá-los, mas agora estou bem informado. E peço desculpas por não me reunir com vocês antes, mas estive em contato direto com minha equipe o tempo todo em que foram nossos hóspedes.

– Hóspedes? – respondeu Rebecca Dois incisivamente enquanto o chanceler bebia água.

Houve um momento em que o homem engoliu ruidosamente – não estava acostumado a falarem com ele daquela maneira. Depositou o copo na mesa com muita precisão e se recostou na cadeira, esperando que Rebecca Dois continuasse.

– Hóspedes ou prisioneiros ? Ficamos confinados em um complexo murado, onde nos mantiveram sob guarda armada. Além desta visita ao senhor, agora, não tivemos permissão de ir a lugar nenhum – disse Rebecca Dois com franqueza.

O chanceler entrelaçou os dedos.

– A proteção foi para seu próprio bem. Não queremos alarmar os civis na cidade, que não estão acostumados com a presença de forasteiros. Vocês são livres para partir da cidade quando desejarem... Mas, enquanto estiverem dentro de seus muros, insistiremos que permaneçam sob nossa supervisão.

– Então nos deixariam fazer isso? Vocês nos permitiriam partir? Não receiam que revelemos sua existência ao mundo exterior quando voltarmos para lá? – disse Rebecca Dois.

– Não creio que o façam – respondeu o chanceler sem hesitação. – Parece-me que os Styx valorizam sua privacidade tanto quanto nós. De qualquer modo, a fissura na Antártida pela qual entramos foi lacrada com explosivos por nossos engenheiros. Embora não saibamos que rota vocês usaram para entrar em nosso mundo, podemos encontrá-la, se quisermos, e lacrá-la também.

– Não há necessidade disso – confirmou Rebecca Dois. – Seu segredo está seguro conosco. – Sem parar para respirar, continuou: – Mas preciso de sua ajuda.

– Depende... – começou o chanceler.

– Não, não depende de nada. – interrompeu-o Rebecca Dois. – Antes da invasão da Polônia, fechamos um acordo com o Alto Comando alemão. Forneceríamos informações inestimáveis para a conquista de vários objetivos militares em sua campanha na Europa. Essas informações não foram baratas... Os Styx perderam a vida para obtê-la. E o acordo era... como posso dizer?... uma via de mão dupla. Cumprimos nossa parte, e em troca prometeram-nos um lugar na elite governante se vocês vencessem a guerra. Embora não tenham vencido, estou cobrando a dívida agora.

O chanceler tentou ler os olhos escuros de Rebecca Dois ao falar.

– Deve me perdoar, mas isso foi muito tempo antes de minha época. Além disso, ninguém do Alto Comando chegou a este mundo – contra-argumentou ele.

O criado escolheu esse momento para entrar com um carrinho de comida, mas o chanceler gesticulou para que saísse da sala.

Rebecca Dois olhava friamente o chanceler.

– Não tente burlar o acordo. Não estou pedindo demais. Estou lhe pedindo para nos ajudar na busca de algo que queremos recuperar... Algo que nos foi roubado. Vocês têm uma dívida para com os Styx. E quando cobramos nossos favores, não esperamos contrariedades. Não me rebaixarei a fazer ameaças, mas vocês realmente não vão querer nos aborrecer.

As sobrancelhas do chanceler se ergueram um pouco enquanto Rebecca Dois falava, e assim continuavam.

– Os generais com quem vocês fizeram o acordo foram-se há tempos – disse o chanceler. – Foram mortos no fim da guerra ou enfrentaram julgamentos em Nuremberg. Mas, embora sigamos a tradição militar prussiana na manutenção da ordem na Nova Germânia, somos de estirpe muito diferente. Não perseguimos mais aquelas raças. Não fomentamos a guerra. Nós não somos nazistas.

Rebecca Dois acenou para a águia de bronze que surgia de um globo destruído no centro da mesa.

– E o que é isso, então? Mera decoração? Vocês encontraram um lugar lindo e aconchegante para se esconder quando seu país foi derrotado e depois amoleceram? – disse ela com escárnio.

Fez-se um silêncio que durou vários segundos.

– Sim, se quiser ver a questão desse jeito – admitiu o chanceler. – Soubemos do que aconteceu com a mãe pátria depois da guerra e não estamos interessados no que ocorre no mundo exterior. Nos primeiros meses deste posto avançado, os membros do Partido Nazista que acompanharam os comboios de helicópteros da Antártida... como direi?... perderam-se en route. Os oficiais da SS e todo o pessoal técnico trazidos para cá por ar com suas famílias queriam esquecer o passado e construir uma nova vida. Muitos estiveram em Stalingrado e na Frente Oriental e, depois de cinco anos de carnificina despropositada, ficaram fartos de morte e destruição.

– O leão parou de rugir... – Rebecca Dois sorriu amargamente. – Então é isso... Vocês simplesmente fugiram e deixaram sua nação perecer? Vocês são fracos e dignos de pena. Podem muito bem se chamar neogerânios. – Sacudiu a cabeça com insolência.

O chanceler ajeitou-se na cadeira como se não soubesse o que responder.

– Bem, nós, como povo, não desistimos. Se vocês não cumprirem com suas obrigações para conosco, haverá sérias consequências – continuou Rebecca Dois.

O general Limitador falou em seu tom despreocupado, quase amigável.

– Atendam a nosso pedido ou vários milhares de Limitadores... como eu... serão enviados para cá para matar cada homem, mulher e criança da cidade.

As sobrancelhas do chanceler agora estavam tão altas na testa que parecia que jamais voltariam a descer.

Rebecca uniu os dedos em punho e o baixou lentamente na mesa, depois respirou fundo e fixou as pupilas negras no chanceler.

– Então, vocês nos darão homens de seu melhor regimento e transporte. E depois de obtermos o que viemos procurar, partiremos em paz. Entendeu?

Houve uma pausa, e o chanceler assentiu.

A menina e o general Styx se levantaram da mesa exatamente no mesmo instante.

– Vão embora? E nosso almoço? – perguntou o chanceler em voz baixa.

– Voltaremos ao complexo. Faço minhas refeições com meus homens – disse Rebecca Dois. Olhou o carrinho que o criado abandonara e sorriu com afetação. – Mas não deixe que isto o impeça de comer a sua bunda de lagarto.


Capítulo Onze


– Quer que eu leve parte destas coisas para o esconderijo? – propôs Elliott enquanto amarrava a Bergen, pronto para sair. – Pode ser mais seguro lá.

Na base que construíra na árvore, ela observava Will verificar distraidamente seus pertences. Não havia um motivo real para ele estar ali – só queria ficar com Elliott.

Ela se levantou e se aproximou, porque ele não respondeu.

– Você deve manter algumas armas e munição por aqui, mas o restante só está atravancando este lugar – disse ela.

– Sim, claro, tudo bem – respondeu ele. Começou a escolher alguns objetos, depois parou para olhar Elliott. – Eu não falei sobre o túnel a papai, sabia? – disse-lhe.

– Não? – perguntou ela.

Embora o dr. Burrows não demonstrasse nenhum interesse pelo esconderijo, Will sabia que o túnel atrás da cascata seria algo que ele insistiria em ver. Como se provou pelo entalhe na entrada, os Antigos o haviam construído, e, sem dúvida, ele ia querer fazer uma exploração completa.

– Devia contar a ele – disse Elliott, ajoelhando-se ao lado de Will e escolhendo alguns objetos para levar, como se ele fosse incapaz de fazer isso sozinho. – Se voltar até o nível de Martha... o que é bem provável... então é o caminho para sua casa. E isso é importante.

Will assentiu.

– É, mas, como você, eu não quero sair daqui. Um dia, em breve, papai vai voltar e contar suas descobertas a todos. Ele quer ser reconhecido. Não para de falar nisso. – O conflito interno de Will ficou evidente quando ele franziu a testa. – E vai me obrigar a ir com ele, porque vai precisar de ajuda para carregar todos os crânios, pedras e outros artefatos, para sustentar suas alegações.

– Talvez ele queira que vá junto para ficar de olho em você e saber que está bem – comentou Elliott.

Will respondeu a essa rapidamente.

– Não, você sabe que com ele as coisas não são assim. – Esfregou o rosto e suspirou. – Algumas ideias são grandes e importantes demais para que as pessoas atrapalhem – disse, citando o que o pai declarara pouco antes de se atirar na Jean Fumarenta, um salto no escuro que por fim levou todos a este mundo secreto. Will olhou incisivamente a menina que tinha a seu lado. – Não há dúvida de que o trabalho dele vem em primeiro lugar. Antes de mim, até.

Elliott concordou com a cabeça.

Will fingiu examinar uma unha quebrada.

– E eu não vou deixar você aqui... Não sozinha – disse ele com a voz trêmula.

– Veremos – respondeu Elliott com indiferença. Pegando nos braços parte dos pertences de Will, ela se ergueu. – Veja o lado positivo... Talvez alguma coisa nos mate antes que tenhamos de tomar alguma decisão – disse, voltando à sua Bergen.

Will estava num turbilhão. Tentou dizer a Elliott o que sentia por ela da única maneira que sabia, sem constranger nenhum dos dois, mas ela não reagiu como ela esperava. Na realidade, Will sentiu que a resposta dela equivalia a uma rejeição.

Talvez isto se reduzisse a algo muito simples – talvez ela não gostasse dele tanto assim. Talvez ele não fosse especial o bastante aos olhos dela. Elliott via quem ele realmente era – não havia muito mistério nele, porque os dois viviam em grande proximidade. E não havia muito que pudesse fazer para impressioná-la – ela é que era equipada com todas as incríveis habilidades que permitiam que ela sobrevivesse naquele ambiente. Não havia nada que ele pudesse fazer para impressioná-la que ela não fizesse dez vezes melhor.

Eles foram jogados juntos nessa situação irreal devido a circunstâncias extraordinárias e, quem sabe, não restasse mais nada além disso. Dada a oportunidade certa, provavelmente ela preferiria outra pessoa. “Chester”, Will suspirou à meia-voz.

E, mesmo que não fosse assim, Will não podia deixar de pensar que o dr. Burrows estava estragando tudo para ele, com seu egoísmo e sua obcecada busca pelo conhecimento. Will voltou a cabeça para a pirâmide. Pela cobertura de folhas só conseguia ver o pai correndo por um dos níveis, suas pernas esqueléticas carregando-o como uma aranha errante enquanto ele continuava em seu estudo exaustivo das inscrições entalhadas. Uma aranha tecendo uma teia em que, quer gostasse ou não, Will estava enlaçado.


Quando o primeiro toque do sino encheu a Caverna Sul com seu som baixo e lúgubre, a sra. Burrows saiu do canto escuro de sua mente em que passava os dias. Mas, embora estivesse retornando ao corpo como a mão que desliza para uma luva, não mexeu um músculo que fosse. Ouvia a comoção no corredor, onde Eliza e a mãe vestiam chapéu e casaco e trocavam implicâncias.

– Ela está bem – contou Eliza bruscamente à mãe ao meter a cabeça pela porta para ver a sra. Burrows. Depois as duas saíram alvoroçadas da casa, cacarejando como duas galinhas velhas.

Era a hora marcada das vésperas – o serviço religioso que acontecia infalivelmente toda noite por toda a Colônia –, e elas não deviam chegar atrasadas. Nesta noite o Segundo Oficial ainda estava de serviço no Quartel e não acompanharia a mãe e a irmã, compareceria a uma cerimônia em uma igreja mais próxima da delegacia. Isto se não tivesse um pobre coitado no Cárcere para vigiar.

Enquanto o sino soava pela sétima e última vez, alguém de pés pesados correu pela calçada, depois caiu um silêncio completo. A não ser pelos fracos e por aqueles doentes demais para se mexerem, era obrigatório que todos que não cumprissem deveres oficiais comparecessem às vésperas. Esses serviços davam instrução religiosa do Livro das Catástrofes ao povo da Colônia e dava também aos Styx a oportunidade perfeita de monitorar a congregação. Dizia-se que as duplas de Styx postadas nas entradas de todos os templos sabiam exatamente quem deveria comparecer e mantinham uma vigilância especial sobre qualquer um que considerassem um possível desordeiro.

Quando o Segundo Oficial levou a sra. Burrows para casa, Eliza insistiu em cumprir seus deveres e a levou de cadeira de rodas a um serviço religioso. Mas, à medida que Eliza se aproximava do templo, uma pequena multidão de colonistas ressentidos se reunia na calçada, fazendo o que podia para obstruir seu caminho. Ignorando os resmungos de “Nojenta da Crosta” e “Pagã”, Eliza desistira de tentar ziguezaguear pelas pessoas e foi da calçada para a rua. Mas, quando finalmente chegou à entrada, um cordão de colonistas formado às pressas recusou-se terminantemente a deixar que ela entrasse. Virando a cabeça, ela viu que a dupla de Styx dos dois lados da porta da igreja nada fez para ajudá-la.

Embora o cérebro da sra. Burrows ainda estivesse muito embaralhado pela Luz Negra e a qualquer espectador parecesse estar inconsciente, ela era sensível às ondas de puro ódio que emanavam da turba furiosa. Sentindo que sua cabeça estava a ponto de explodir, ela de repente desenvolveu um sangramento nasal. Não era qualquer sangramento – era muito sangue escorrendo pelo rosto e no peito, como se uma artéria tivesse sido rompida.

Enquanto Eliza tentava estancar a hemorragia, a turba deliciada entoava “Sangre, mulher da Crosta, sangre!” e “Sangre a porca, sangre a porca!”. Abandonando qualquer esperança de comparecer ao serviço, Eliza finalmente empurrou a sra. Burrows de volta para casa, com os gritos da multidão ecoando pela rua às suas costas.

Depois desse incidente a sra. Burrows ficou aliviada por Eliza a deixar sem assistência na casa vazia. E desde então a sensibilidade da sra. Burrows às emoções dos que a cercavam tornara-se ainda mais acentuada, e ela realmente não sabia se era capaz de suportar outra vez a fúria de todos aqueles colonistas descontrolados. E isso podia significar o desastre. A sra. Burrows sabia que se deixasse a falsa inconsciência e mostrasse qualquer reação – por menor que fosse –, seria fim de jogo. Seria levada de volta ao Cárcere num átimo, e com toda probabilidade os Styx a submeteriam a outras rodadas de interrogatório com a Luz Negra.

E assim, agora na casa desocupada, onde não havia ninguém que a observasse, a sra. Burrows abriu os olhos e se sentou ereta. Ela jogou no chão a toalha pendurada em seu peito para absorver a baba e se levantou.

– Assim está melhor – disse ela, estendendo bem os braços em seu vestido volumoso e bocejando como se tivesse acordado de um sono profundo.

Ela arriou no chão e fez uma rotina rápida de ioga para alongar os membros enrijecidos, depois se levantou feito uma mola.

– Colly – chamou suavemente. – Onde você está?

A Caçadora entrou, e a sra. Burrows afagou a pele preta e macia de sua cabeça.

– Boa menina – disse ela, indo para o corredor com a gata a seu lado.

Apesar de a visão da sra. Burrows ainda estar severamente debilitada, ela não dependia mais de Colly como sua guia. Nas horas noturnas, quando o restante da casa adormecia, ela afiava e experimentava seu peculiar sentido extra, testando seus limites crescentes. E a cada novo dia parecia que eles ficavam mais poderosos.

A sra. Burrows podia ver, mas de um jeito diferente dos outros.

Foi para a porta da frente e a abriu, para a rua deserta. Depois, liberou seus dons. Era como se estivesse enviando ramos invisíveis que lhe traziam informações com o mesmo grau de precisão de quem vê ou toca em qualquer coisa que encontre. Iam para todo lado, para as casas do outro lado, para as extremidades da rua e além dali, sempre sondando, sentindo. Não havia gente por perto – isto ela adivinhava –, e só quando estendeu um ramo para mais além deu com um salão apinhado onde aconteciam as vésperas. Do imenso grupo de pessoas em seu interior veio uma mescla de emoções – fastio, cansaço e o frisson do medo –, o pregador Styx estaria fazendo seu sermão bombástico e apocalíptico de costume. Mas quando ela rapidamente recolheu o ramo, sentiu alguma coisa.

– Não! – exclamou, saindo inteiramente da casa e andando rapidamente pelo caminho no jardim, de nariz empinado. Não conseguia evitar, atraída pelo cheiro que descobrira, como uma mariposa pela chama. Colly miou um queixume, como se pensasse que a sra. Burrows estivesse errada em sair de casa.

– Está tudo bem – garantiu a sra. Burrows à felina. – Olhe... não tem ninguém por perto.

Ao chegar à extremidade da rua a sra. Burrows virou a esquina, depois passou por várias outras vias até localizar o lugar que sentira. Era uma casa no meio de um aclive. Farejando para se certificar de que era a casa certa, foi à porta da frente e empurrou. Estava trancada, então ela experimentou as janelas dos dois lados da porta, descobrindo que podia empurrar uma do batente.

Trepando no peitoril, ela entrou. Descobriu que estava em uma sala de estar onde ardiam os restos de um fogo na lareira, e pratos ainda com alguma comida tinham sido deixados na mesa de jantar. Ela ignorou tudo isso, levantando a cabeça para sentir o ar novamente. Foi diretamente aos fundos da casa. Ali, encostado na parede perto da porta dos fundos, estava o objeto que a atraíra ao lugar.

– Will – disse ela, estendendo a mão para tocar a amada pá do filho. Não compreendia como ela viera parar ali, mas precisava ficar com ela. A sra. Burrows a pegou, passando a mão pela lâmina de aço inox e lembrando-se do cuidado com que Will a mantinha. No fim de cada dia, depois de suas escavações em Highfield, ele nunca deixava de limpá-la e lhe dar polimento antes de ir dormir.

Mas não foi a sensação da lâmina e do cabo de madeira que a atraiu até ali. Mesmo depois de todos esses meses na Colônia, o cheiro que ainda permanecia na pá invocava uma imagem nítida de seu filho em sua mente. Ela sorriu, mas seu sorriso teve vida curta. À medida que o cérebro aos poucos se curava e refazia suas conexões, ela percebeu que tinha se desligado do principal motivo por que terminou na Colônia. Estivera tentando ajudar Will em sua luta contra os Styx e neste exato momento não sabia onde ele se encontrava, nem mesmo se estava vivo. A última vez que o vira tinha sido no Little Chief, a caminho de Norfolk, e ela se perguntou como ele teria se saído nas entranhas da Terra na busca que Drake estabelecera.

– Não posso ficar muito tempo aqui. Preciso sair da Colônia – murmurou ela à gata, que a seguira e a olhava atentamente. – Mas precisamos sair desta casa agora mesmo! – disse com urgência enquanto um de seus ramos olfativos a alertava para uma explosão de atividade na igreja, a várias ruas dali. A sra. Burrows disparou para a janela e saiu, deixando a pá cair. – Droga! – praguejou ao pegá-la, depois desatou a correr. – Comigo, Colly! – chiou. Podia sentir a presença de pessoas em toda parte, voltando a ocupar as ruas. Ela não estava longe da casa do Segundo Oficial quando percebeu que alguém se aproximava com rapidez demasiada, vindo pelo outro lado, e podia encontrá-la. Ela sentiu dois colonistas. Não podia se deixar ser vista. Puxando a Caçadora, protegeu-se numa viela entre duas casas. Embora sua cegueira não lhe permitisse ter certeza, esperava que estivesse fora da luz lançada pelos globos luminosos da rua. Os colonistas que se aproximavam eram apenas duas crianças – um menino e uma menina – e passaram por ela correndo, rindo e gritando.

Assim que eles se foram, a sra. Burrows saiu da viela e disparou pela calçada para casa. Depois de entrar, escondeu a pá atrás do aparador na sala onde dormia. Colly ofegava, excitada demais com a correria louca que fizeram juntas.

– Agora fique quietinha – ordenou a sra. Burrows à gata. – Vá para seu cesto. – A Caçadora saiu obedientemente da sala, e a sra. Burrows assumia seu lugar na cadeira de rodas quando ouviu a porta da frente se abrir. Lembrou-se da toalha que estivera aberta em seu peito. Oh, não!, pensou. Sua idiota! Estendendo a mão para pegá-la no chão, colocou a toalha no peito e arriou na cadeira bem na hora em que Eliza e a mãe entraram na sala.

Com seus chapéus e casacos, elas olharam a sra. Burrows por vários segundos, reprovação irradiando das duas.

– Ainda tá aí, seu peso morto desgraçado? – disse a velha por fim, com a voz demonstrando ressentimento.

– Claro que está. Ela nunca vai a lugar nenhum – disse Eliza, depois hesitou. – Mas ela não parece muito bem, não? Meio corada, eu diria. Quem sabe está ficando com febre? – acrescentou, esperançosa, indo até a sra. Burrows e sentindo sua testa.

A sra. Burrows de imediato reduziu sua respiração e baixou a temperatura corporal – não podia deixar que percebessem que estava sem fôlego ou quente devido a seu recente esforço.

– Não, ela não está quente – concluiu Eliza com evidente decepção.

A velha baixou a voz.

– Talvez a gente precise dar uma empurradinha nela para ajudar em seu caminho – sugeriu ela. – Ela nunca vai ficar boa mesmo, então seria como soprar um pavio queimado numa vela de sebo.

– Não podemos continuar assim – concordou Eliza.

– Não, não podemos, e tempos desperados pedem medidas desperadas – sussurrou a velha, batendo o chapéu. – A gente pode parar de dar comida a ela ou coisa assim? Ou temperar a comida dela com veneno de lesma?

Eliza não respondeu enquanto permanecia de frente para a sra. Burrows, mas sua falta de resposta dizia muito.

Veremos, pensou a sra. Burrows consigo mesma enquanto se esgueirava de volta ao recesso escuro de seu cérebro, ainda acalentando a imagem de Will invocada pela pá. Experimentem só, suas bruxas velhas!


Capítulo Doze


Eddie estava ao volante do carro que voava pelo interior de Norfolk. Com o detector na mão, Drake rastreava o sinal do radiofarol, consultando ao mesmo tempo a unidade de navegação por satélite do carro para descobrir a rota mais curta.

– Pegue a esquerda – falou para Eddie, mas ao rolar pelas estradas no navegador acrescentou: – Não, esqueça... continue em frente e pegue a segunda à esquerda. – Olhou a estrada à frente e viu uma placa. – Walsingham – leu. – Nesse ritmo, vamos parar no litoral.

Dez minutos depois o sinal estava tão forte que os estalos do detector eram quase contínuos. Drake colocou o aparelho no mudo.

– Muito bem, estamos bem perto. Vamos deixar o carro e inspecionar a área a pé.

Eddie encontrou um lugar para estacionar, e eles saíram. Depois de pegar o que precisavam na mala, Drake levou alguns segundos para conseguir uma localização fixa do sinal antes de colocar o dispositivo de visão noturna e o ligar. Em seguida, eles cruzaram a estrada para um campo de colza, mantendo-se numa trilha à margem e andando num passo acelerado.

Pela lente do dispositivo o campo de colza parecia a Drake um mar de ouro branco, agitando-se lentamente ao ser atingido pelo vento. Eddie vinha a seu lado, movimentando-se sem ruído em passadas largas e tranquilas. Com seu traje de Limitador e o rifle Styx nas mãos, havia algo de atemporal na forma escura do soldado contra o fundo do mar dourado. Parecia o guerreiro heroico de uma história épica. Sempre ser o melhor e elevar-se acima dos demais, pensou Drake consigo mesmo, lembrando-se da frase de Homero.

Ocorreu a Drake o quanto estava grato pela companhia do Styx. Passou grande parte de sua vida isolado e sozinho na batalha aparentemente absurda contra seu inimigo e agora, enfim, tinha um aliado e, atrevia-se a pensar, um amigo. Essa camaradagem com alguém que estivera no lado adversário ainda lhe era estranha, mas Drake admitia que Eddie tinha razão sobre o que dissera no carro: os dois eram parecidos de muitas maneiras.

Um quilômetro depois um pequeno outeiro entrou no campo de visão enquanto os dois se aproximavam de uma sebe no final de uma campina verdejante. Eddie ergueu o punho, indicando que Drake parasse. Os dois se agacharam.

Avaliando a sebe pela lente, tentando discernir o motivo para a preocupação de Eddie, Drake viu que o Styx estava mais interessado no chão diante dele. Drake sacou a pistola e observou Eddie pegar uns galhos quebrados e tufos de capim seco. Drake não entendia o que ele estava fazendo, mas depois viu o porquê. Eddie tinha retirado galhos e relva suficiente para revelar que ocultavam uma barreira de varetas cruzadas, por baixo da qual havia uma trincheira. Drake via que no fundo da trincheira uma fila de estacas fora cravada na terra recém-escavada. Estacas pontiagudas.

Ele olhou nos olhos de Eddie. Era uma armadilha de paliçada – não se esperaria por uma dessas na área rural de Norfolk. Embora eles não falassem, a pergunta que ocorreu a ambos era se a armadilha fora feita para um animal – e um animal relativamente grande – ou para um ser humano. Seu tamanho e posição certamente sugeriam o último.

Eddie deu o sinal, e eles contornaram a trincheira, verificando com cuidado cada centímetro do chão no caminho até a sebe. Drake achou um ponto na sebe onde o crescimento era menos denso e sondou com a mão. Deu com um fio esticado na altura do ombro e teve o cuidado de não movê-lo. Podia ser inteiramente inofensivo, mas ele não queria correr o risco.

Mantendo-se junto da sebe, eles passaram à esquerda, vendo o telhado de um galpão do outro lado. A sebe assumia um ângulo reto, e o pequeno outeiro se estendia diante deles. Eddie apontou o rifle para o alto do morro – Drake entendeu que ele procuraria um campo de visão elevado para usar sua mira noturna.

Enquanto isso, Drake continuou pela sebe, encontrando outro lugar onde podia atravessá-la. Saiu em um canteiro de flores e continuou ali por um instante, mantendo-se abaixado ao examinar o jardim. Tudo parecia bem inocente – uma pérgula, algumas cadeiras, um banco e um comedouro para pássaros –, nada fora do comum e tudo muito piegas. A ideia que um morador de cidade tinha de um jardim rural.

Mas quem cavou aquela trincheira queria desestimular os visitantes e não se importava de matá-los para isso. Era improvável que fossem os Styx – a armadilha era rudimentar demais para eles. O cérebro de Drake disparava com as alternativas. Sugeria-lhe renegados, mas era apenas uma conjectura maluca. Ele começava a se perguntar se chegaria a encontrar Chester no final da trilha – para Drake, alguém podia ter apanhado um dos radiofaróis e plantado ali.

Ele avançou um pouco, sentindo um cheiro desagradável. Ficava mais forte à medida que ele se aproximava do galpão do jardim. Ao chegar, Drake esperou um momento, escutando e se certificando de que não havia nenhum movimento no jardim, depois colocou o dedo atrás da porta e a abriu suavemente.

Moscas furiosas zumbiram com sua invasão, e o fedor era indescritível.

Ele arquejou de horror.

Contou quatro corpos seminus no chão do galpão. Uma mulher e três homens, e, pela calça escura e a camisa azul-clara, o cadáver que estava por cima dos outros, e era o mais recente, devia ter sido um carteiro. Uma coisa era ver soldados que foram mortos há pouco em um ambiente de combate – era algo com que ele aprendera a lidar –, mas aqueles eram civis, e civis terrivelmente decompostos.

Depois ele percebeu mais uma coisa.

– Ah, meu Deus! – grasnou.

Levou a mão à boca e tentou não fazer nenhum ruído em sua ânsia de vômito.

Não foi apenas pelo fedor de decomposição no galpão e o espetáculo da carnificina.

Faltavam pedaços de corpos, pois a carne fora escavada dos ossos.

Drake recuou rapidamente, fechando a porta ao sair, e foi para a alameda de árvores pouco além dos móveis de jardim. Podia estar se deslocando com uma pressa excessiva, mas não suportava mais aquele cheiro.

Então, agora não havia dúvidas de que ele lidava com alguém completamente descontrolado, alguém selvagem. Pelo menos nenhum dos corpos era o de Chester, mas quem sabia em que situação ele fora apanhado? Se ainda estivesse vivo, Drake precisava encontrá-lo, já.

Controlou a respiração enquanto aguçava seus sentidos. Podia ver o chalé claramente pela lente, mas não desceu a alameda de árvores – esta e o pequeno portão do jardim no final eram um local óbvio para uma tocaia ou uma armadilha.

Ele atravessou o gramado à esquerda, dirigindo-se à lateral do chalé. Chegando, saiu da trilha, pisando com cuidado a terra macia do canteiro, depois trepou por uma cerca baixa de madeira. Na entrada de carros na frente do chalé um carro estava estacionado descuidadamente, como se tivesse sido deixado ali às pressas. E havia duas malas no chão, sob a traseira do veículo. Uma delas fora aberta, e algumas peças de roupa se derramavam para fora. Drake não se arriscou a se aproximar mais – não queria ser entregue pelo ruído das botas no cascalho.

Abaixando-se ao máximo, ele avançou para a frente do chalé e se agachou sob uma janela, levantando-se devagar para espiar pelo peitoril. Havia um brilho de fogo dentro da sala, mas ele não via movimento algum. Drake desejou que ele e Eddie tivessem unidades de comunicação. Ficou dividido entre entrar na casa ou procurar Eddie, que ainda devia estar no alto do outeiro, vigiando a área com sua mira noturna. Embora estivesse desesperada mente preocupado com Chester e seu primeiro impulso fosse de invadir logo o chalé, Drake sabia que a atitude certa era chamar Eddie. Se era para promover um assalto à construção, melhor que eles entrassem pela frente e pelos fundos simultaneamente para confundir o ocupante ou seus ocupantes. Então ele voltou à lateral do chalé, indo para a abertura na sebe.

Estava quase alcançando a cerca viva quando teve um vislumbre fugaz de alguma coisa – era uma pessoa, uma mulher. Tinha os cabelos desgrenhados e crespos, e sua cara carnuda brilhava de suor. Havia uma arma em suas mãos.

Ele ouviu um silvo.

Não teve tempo de reagir quando o projétil pegou a lente sobre seu olho. Foi o suficiente para derrubá-lo de costas, e ele teve o bom senso de rolar no chão, afastando-se alguns metros. Estava posicionado com a pistola, mas a visão pela lente do dispositivo brilhou num laranja intenso e se apagou. Cacos de vidro caíram em seu rosto. Qualquer que tenha sido o projétil, golpeou-o com força suficiente para quebrar a lente.

E sem a visão noturna ele não tinha esperanças de ver a mulher nas sombras densas.

Nos arbustos à sua esquerda, ele ouviu um estalo.

Uma besta?

Drake foi atingido por uma flecha? Lembrava-se do que Will lhe contara sobre a ex-renegada que tomara Elliott e os meninos sob sua asa. Tinha certeza de que Will falara que ela usava uma besta.

– Martha? – chamou.

Um estalo alto foi emitido da colina, e ele ouviu um palavrão numa voz gutural de mulher. Depois houve outro estalo enquanto Eddie disparava mais uma vez, com o eco da detonação do rifle.

Drake abaixou-se atrás de um arbusto e continuou escondido pelo que pareceu uma eternidade, escutando, procurando qualquer movimento. Depois partiu para o chalé. Corria às cegas no escuro e queria algo sólido às suas costas, para se proteger de um ataque pela retaguarda. Ao chegar à construção, espremeu-se contra ela, ainda procurando ouvir qualquer som e observando. Foi quando ouviu os gritos de pânico vindo de dentro. Encontrou a porta dos fundos e experimentou a maçaneta, mas estava trancada.

Ouviu mais gritos.

– Chester! – disse Drake, reconhecendo de quem eram.

Abriu a porta com um pontapé e encontrou o menino deitado no corredor.

– STYX! SOCORRO! – gritava Chester enquanto, ainda amarrado, lutava e se contorcia no carpete, como uma larva em uma chapa quente. Ele viu Eddie entrar pela porta da frente.

– Diga a ele que sou um amigo – disse Eddie.

– Chester, está tudo bem. Ele está do nosso lado. E graças a Deus você está bem – gritou Drake.

Os olhos assustados de Chester encontraram Drake, depois se encheram de lágrimas de gratidão, que começaram a se derramar.

– Está seguro agora – disse Drake, cortando as cordas que amarravam o menino com sua faca.

Chester não se soltou de Drake, agarrado a seu braço. Ainda chorava e tentava falar, mas o que dizia não fazia sentido.

– A mulher? – perguntou Drake a Eddie.

– Eu a feri no braço, mas não consegui um tiro perfeito. Ela fugiu para o lado da casa e pegou a estrada. Não havia sinal dela quando cheguei lá, a não ser por isto – disse Eddie. Ergueu a besta, que Drake percebeu estar coberta de sangue, e Eddie foi à porta da frente olhar a entrada. – Não há dúvida de que ela é uma renegada... Vi os corpos das pessoas no galpão, que ela esteve comendo. Já vi canibalismo assim ant...

– Não... Não! – gritou Drake, tarde demais.

Chester ficou rígido ao entender do que Eddie falava. Olhou os vários pratos e colheres sujos que Martha jogara no carpete do corredor – ainda com pedaços de carne seca ali grudados.

– Corpos... Pessoas...? – choramingou ele e começou a tremer. – Não eram aves? Não eram aves? – Então entendeu, entendeu exatamente com o que Martha o estivera alimentando. A náusea veio violenta e incontrolável.

– Ah, Chester, me desculpe. – Drake tentou consolar o garoto.


– Era isto que eu queria lhe mostrar – disse o dr. Burrows enquanto Will saltava os níveis até onde o pai esperava.

À altura da cabeça, e destacando-se por uma pequena saliência, havia uma fileira de dez pedras, todas com cerca de cinco centímetros quadrados e símbolos entalhados na face. Estavam levemente projetadas da superfície, e quando o dr. Burrows empurrou a mais próxima, ela se mexeu.

– Caramba! – exclamou Will. – Talvez haja alguma coisa escondida atrás delas, como aqueles crânios que encontramos, não é?

– Foi o que pensei de início, mas alguma coisa as mantém no lugar. – O dr. Burrows demonstrou a Will que o bloco de pedra só se deslocava um pouco, depois empurrou para trás de novo. – E todas são assim. – Ele foi à pedra seguinte na fila e fez o mesmo, movendo-a de um lado a outro.

– O que está escrito nelas? – perguntou Will, semicerrando os olhos para os hieróglifos na pedra mais próxima. – Letras?

– Sim, cada uma delas tem uma única letra, e se as ler da direita para a esquerda, como em todos os registros dos Antigos, o resultado é ininteligível. Tentei, inclusive, misturar as letras, para ver se é um anagrama, mas dá no mesmo – respondeu o dr. Burrows. – Não significa porcaria nenhuma. – Curvando-se para pegar o diário, ele começou a assoviar entre os dentes ao abrir na página onde copiava as letras.

– Terá que arrumar um diário novo – comentou Will, notando que restavam poucas páginas para o pai.

– Vou me preocupar com isso quando precisar – murmurou o dr. Burrows com impaciência ao examinar atentamente a sequência de dez letras. – Não, eu não entendo. Tudo o que vi nesta pirâmide me diz que os Antigos eram altamente inteligentes e, sobretudo, uma raça lógica. O que eles deixaram é um resumo de sua erudição nos campos da filosofia, medicina e matemática e, posso lhe dizer, nessas áreas, eles estavam muito mais avançados do que os gregos, que vieram séculos depois.

– E aquela coisa sobre astronomia? – perguntou Will.

– Sim, é muito significativo, porque mostra que estiveram no mundo exterior por tempo suficiente para realizar um levantamento detalhado do céu noturno de lá. E se eles podiam ir à superfície e voltar, imagino que tinham meios melhores de viajar para lá do que nosso passeio a esmo pelo cinturão de cristal.

Tomado pela culpa, Will baixou os olhos para os pés. Ainda não contara ao pai sobre a entrada do túnel, descoberta por Elliott, e se sentia péssimo por esconder uma informação que seria fundamental para a pesquisa do pai. Respirando fundo, estava a ponto de mencionar o assunto quando o dr. Burrows de repente levantou a cabeça para o céu branco, com a expressão distante.

– Will, se você quisesse deixar um registro para a posteridade, algo para contar sobre si mesmo às gerações futuras, como faria?

– Como assim? – perguntou Will, aliviado porque o pai mudou de assunto e porque a necessidade de revelar o túnel não parecia tão premente. Dar com a língua nos dentes seria como trair Elliott.

– Vede minha obra, ó poderosos, e desesperai! – declamou o dr. Burrows num tom teatral, gesticulando como um ator diante de Will.

– Hein? – disse Will, perguntando-se se o pai tinha tomado sol demais.

– É de um poema chamado Ozymandias – explicou o dr. Burrows. – Estou falando da vaidade de raças poderosas – acrescentou ele, agora olhando para o filho, mas sem realmente vê-lo. – Como você deixaria um testamento, um registro, que vencesse a fúria do tempo? O papel não serve... Com a estranha exceção dos Manuscritos do Mar Morto, esse material não sobrevive. As bibliotecas queimam. Na realidade, as construções também não duram, não é? São destruídas por desastres naturais ou por saques. E pelo tempo.

Will deu de ombros.

– Sei lá... O que você faria?

– Estamos de pé nele, Will – disse o dr. Burrows. – Você construiria um edifício tão grande, tão sólido, que nada poderia varrê-lo da face da Terra. – Balançou a cabeça, corrigindo-se. – Ou das entranhas da Terra interior, neste caso. A não ser pelos efeitos do clima, esta pirâmide durará eras, como as do Egito, que, cronologicamente falando, são apenas bebês se comparadas com estas.

A expressão do dr. Burrows, de repente, assumiu um aspecto frustrado.

– E eu só tenho um terço do quadro aqui. Nem mesmo vi as outras duas pirâmides, certo? Quem sabe o que pode haver ali e se há uma solução para isto? – Inclinou a cabeça para a fila de pedras. – Talvez seja um código, e a chave esteja na outra...

Will o interrompeu.

– Mas não podemos ir às outras pirâmides... Não agora, quando pode haver Limitadores nesta região. Elliott disse que seria...

O dr. Burrows virou-se para o filho:

– Não dê ouvidos ao que ela diz. Não acredito que ela por acaso tenha deparado com esse sinal Limitador dela no meio da selva. Não, isto é muito mais importante. E é uma completa insanidade que ainda não tenhamos tentado explorar as pirâmides restantes. – Ele fechou o diário com um baque. – Na realidade, não há melhor hora do que agora. Pegue o que precisarmos no acampamento e vamos pegar a estrada... Já!

Will hesitou. Não era a reação que o dr. Burrows esperava.

– Vamos... A mais próxima não fica longe daqui. A viagem será moleza – disse ele.

– Tudo bem – respondeu Will. Embora não estivesse com vontade de dar uma longa caminhada pela selva, sabia que era inútil discutir. Estava descendo a lateral da pirâmide quando o dr. Burrows gritou para ele:

– E não esqueça de minha bússola!

– Tá, tá – disse Will consigo mesmo, arrastando os calcanhares ao atravessar a clareira para a base na árvore.


– Vamos dar o fora daqui – disse Drake, levando Chester pela porta da frente, atravessando a entrada até a estrada.

Drake ficou apavorado com a aparência do garoto. Ao limpar as semanas de sujeira acumulada no rosto de Chester, ficou alarmado com sua magreza e seu eczema, que ele nunca vira tão vermelho e inflamado.

– Devagar agora – orientou-o Drake, ajudando-o passo a passo. Tinha apanhado um cobertor em um dos quartos e com ele enrolou o garoto, que se encostava muito em Drake para se apoiar.

– Que frio! – disse Chester entre os dentes, que batiam. Tremia muito enquanto Drake falava gentilmente, estimulando-o a continuar. Mas Chester não parecia estar apreendendo nada. – Sabe de uma coisa? Antes de virmos para este lugar eu fiquei doente por semanas... Muito doente... – disse, resistindo às tentativas de Drake de guiá-lo para a estrada, parando por um momento para olhar o chalé. – Pensei muito nisso quando estava naquele armário e imagino que ela tenha me envenenado... Com cogumelos do bosque. Assim eu não podia fugir dela.

– Procure não pensar nisso agora – disse Drake, conseguindo recolocar Chester em movimento.

Depois de avançarem um pouco mais, o menino jogou a cabeça para trás e cheirou.

– Isso é o mar? Estou ouvindo as ondas.

– Sim, fica um pouco mais além – disse-lhe Drake, enquanto eles começaram a subir a beira do outro lado da estrada.

– Agora você está trabalhando com um Styx? – perguntou Chester ao tentar processar tudo o que acontecera.

– Ele é um ex-Limitador – respondeu Drake. – E é pai de Elliott.

– É mesmo? – murmurou Chester, descendo com Drake a um desnível de cascalho.

Embora uma neblina rolasse sobre o mar do Norte, o sol despontava acima do horizonte e a dissipava.

– Já estamos bem longe – disse Drake, e ele e Chester se sentaram na praia.

O menino olhou as ondas com uma expressão impassível.

– Às vezes eu vejo coisas que me lembram de como era antigamente... De minha antiga vida, e tento fingir que não mudou nada – disse ele. – Mas mudou, e eu mudei também, não foi? Todas aquelas coisas por que passei me transformaram em outra pessoa. Eu... – Pôs a mão na boca, e Drake mal ouviu o que dizia entre os dedos. – ... Sou uma espécie de aberração que comeu... – interrompeu-se ao deixar a cabeça pender sobre os joelhos.

– Eu a peguei – anunciou Eddie, sobressaltando Chester. Ele não ouvira o Styx se aproximando e agora via que o homem mirava em alguma coisa com o rifle. – Ela andou muito pela praia, está perto do pontal – acrescentou Eddie.

– Deixe-me ver – pediu Chester, jogando o cobertor de lado ao se colocar de pé.

Eddie lhe passou o rifle, e ele usou a mira telescópica para localizar a figura mínima ao longe.

– Sim, é ela mesma... E anda como se estivesse machucada – disse Chester, observando a figura que oscilava de um lado para outro, num andar sinuoso. Cerrou o maxilar, e sua voz tornou-se dura e inflexível: – Ela merece morrer. Acha que consigo acertá-la daqui? – perguntou ao puxar a alavanca da arma para colocar uma bala na agulha.

– Não, está longe demais – disse Eddie. – O vento desviaria o tiro.

– Não me importa. Vou arriscar – falou Chester num tom estridente. Ficou em silêncio por um momento, depois começou a rir de um jeito estranho.

– O que foi, Chester? – perguntou Drake, preocupado com a possibilidade de o menino ter enlouquecido depois das recentes experiências.

– Nem acredito! – respondeu Chester, ainda rindo. Viu alguma coisa acima de Martha, que agora corria como um coelho assustado em zigue-zague. – Ela não estava totalmente maluca. Um Farol realmente a seguiu até aqui em cima. – Ele via a criatura imensa, parecida com uma mariposa, sobrevoando a cabeça de Martha, embora estivesse se movendo numa velocidade bem menor do que em seu habitat natural. Chester sabia que isso era devido à gravidade crescente na superfície.

Enquanto ele olhava, o Farol abriu bem as asas, cujas escamas pegaram o sol da manhã. Faiscaram com uma brancura ofuscante, fazendo a criatura parecer um gigantesco cisne em voo. Depois o Farol as puxou para junto do corpo e se virou para um mergulho, disparando direto para Martha. Ela se jogou na areia, conseguindo evitá-lo no último segundo.

– Ela não tem nada para se defender. Não tem chance nenhuma – disse Chester, tendo grande prazer com o espetáculo do Farol arremetendo em outro mergulho. – Está fixado nela porque ela está sangrando. Ele conhece o cheiro do sangue dela. Vai pegá-la.

– Se preferir, posso ir até lá e garantir que o serviço seja feito – disse Eddie casualmente, como se oferecesse a Chester uma xícara de chá.

Chester baixou o rifle e se virou para o Styx.

– Obrigado – recusou ele ao homem educadamente. Havia uma dureza nos olhos do menino quando acrescentou: – Mas ela tem mais medo dos Faróis do que de qualquer coisa no mundo... E não quero que seja rápido. Quero que ela morra bem devagar.

– Tudo bem, Chester... Por que não devolve o rifle a Eddie e se senta de novo? – instou-o Drake gentilmente.

Chester desviou o olhar de Drake para Eddie, depois novamente para Drake.

– Sinceramente, não sei o que é mais perturbador... O que aquela bruxa velha me fez passar... ou o fato de que você é amigo de um Styx... E o nome dele ser Eddie.


Capítulo Treze


Will pegou água e suprimentos e estava prestes a voltar para o pai quando Elliott apareceu. Carregava um pouco de lenha nos braços, com Bartleby a galope atrás dela.

– Vai a algum lugar? – perguntou ela, vendo a Bergen nas costas de Will e a Sten Gun em sua mão.

Will a olhou, a resignação em seus olhos dizendo tudo.

– Eu lhe deixei um bilhete. Papai acha que chegou aonde podia com esta pirâmide e quer ver uma das outras. Você sabe como ele é... Acabou de decidir isso.

Elliott estalou a língua nos dentes.

– E depois de tudo o que tentei dizer a ele.

– É, eu sei – Will suspirou.

Ela colocou no chão as achas de lenha.

– Tudo bem, também vou nesse passeio.

Will ficou deliciado.

– Vai mesmo?


O dr. Burrows não ficou nem um pouco satisfeito quando viu Elliott com Will. Mas não disse nada, porque sabia que não dera ouvidos aos conselhos dela de não se afastarem demais do acampamento.

Era incomum para os três estarem juntos numa excursão. Na realidade, além de uma ou outra incursão às ruínas da cidade na selva, o dr. Burrows não havia ido a lugar algum durante certo tempo, concentrando todas as energias na pirâmide perto do acampamento base.

Eles seguiam um rumo que consideraram o mais próximo das duas novas pirâmides, andando pela selva em fila. Como esperado, o dr. Burrows decidira liderar o grupo e andava à frente, com Will depois dele e Elliott e Bartleby na retaguarda. Lembrava muito a Will do momento em que eles entraram neste mundo secreto pela primeira vez, sem ter ideia nenhuma do que encontrariam nem de seu destino. Agora isso parecia ser um século para ele.

Além de um ou outro canto de ave ou o estalo de um graveto quebrado pelos pés, tudo era silêncio quando eles atravessaram a plataforma de detritos de folhas no chão da floresta. Os três logo estavam cobertos de suor devido à umidade elevada; o imenso peso da folhagem das árvores prendia uma camada de ar onde eles andavam, e havia pouca brisa no caminho.

E, então, eles começaram a perceber que o terreno tornava-se mais úmido e que as árvores gigantescas não lhes proporcionavam tanta proteção contra o sol. Entraram em uma floresta rala de ciprestes atarracados, com troncos baixos e desproporcionalmente largos, como se estivessem inchados. E tudo em volta, a uma altura de quatro metros, estava sujo de lama e coberto de mato ressecado.

– Bacia de alagamento – propôs o dr. Burrows, ao pararem para olhar os arredores.

– O que tem ali? – disse Elliott, apontando para uma área de água parada à frente, cuja superfície ondulante era esverdeada pelas algas.

– Um pântano? – sugeriu Will.

– Vamos descobrir – disse o dr. Burrows, indo para lá.

– Eu sabia que ele diria isso – resmungou Will.

Eles chapinharam pela água, que chegava às coxas, atentos a cobras e crocodilos. Mas o lugar parecia ser povoado inteiramente por lagartos, cujo tamanho variava de pequenas lagartixas a iguanas de um metro, mas nada mais ameaçador do que isso. A pele iridescente dos lagartos brilhava, azuis, vermelhos e verdes vivos, enquanto eles se banhavam ao sol. Mal se mexendo, os animais abriam a boca para soltar silvos quando Will ou qualquer dos outros se aproximava demais e para lançar a língua comprida em libélulas de passagem. Bartleby parecia não se deixar perturbar por eles e se manteve junto de Elliott.

O dr. Burrows pisava na água com uma expressão sonhadora.

– Pode-se imaginar facilmente o começo de toda a vida em um pântano desses. – Ele gesticulou para o alto. – Tem luz solar ultravioleta o dia todo e muita água, na temperatura certa. Pense bem... Talvez este pântano seja a sopa primordial... O lugar exato onde nasceram os primeiros organismos unicelulares, que depois evoluíram.

– Eu teria evoluído muito rápido se fosse preciso para sair deste lugar – disse Will, dando um tapa num mosquito na nuca.

Ao saírem do pântano e voltarem a terreno firme, descobriram que estavam numa floresta de acácias cobertas de espinheiros. Entre eles havia um emaranhado de mato denso, que tornou a jornada muito mais difícil, até que finalmente deram no que parecia uma trilha.

Com largura suficiente para um veículo, a trilha era reta demais para ser natural. Will franziu o cenho ao examinar a relva curta que a cobria.

– Isso não foi feito pelo homem, não é? Um antigo leito de rio? – perguntou ele, olhando preocupado em volta enquanto Elliott os alcançava.

– Eu diria... Nenhum dos dois – respondeu o dr. Burrows.

Will ainda não gostava daquilo. Olhou para Elliott, mas ela parecia inteiramente relaxada.

– Ah! – exclamou o dr. Burrows, ao espiar alguma coisa adiante na trilha e partir para lá.

Will e Elliott se uniram a ele e viram que era uma imensa pilha de fezes animais, aparentemente recentes, a julgar pelas nuvens de vapor que subiam dela. – Isto, evidentemente, é uma passagem importante para a fauna local – concluiu o dr. Burrows. – Uma trilha animal muito utilizada.

– Sim. Vê as marcas neste tronco – disse Elliott, apontando –, onde a casca foi arranhada?

Will e o dr. Burrows transferiram a atenção do esterco para o tronco de árvore. Um arranhão em diagonal seguia até a madeira branca por baixo, e a seiva escorrera pela casca, endurecendo em gotas âmbar. Mas o dr. Burrows ficou mais interessado na monstruosa pilha de esterco, e agora voltava a ela.

– O que pode ter feito isso? – perguntou Will, enquanto o pai se agachava e sondava com uma vareta. – Uma vaca muito grande? Um auroque?

– Não é carnívoro... Estou vendo as sementes de uma espécie de fruta e celulose... pedaços de vegetação não digeridos – respondeu o dr. Burrows. – Precisamos investigar isso mais a fundo.

– Quer dizer, procurar mais cocôs gigantes? – perguntou Will com ironia.

Elliott mal conseguiu reprimir o riso.

– Não seja idiota. Quero dizer que devemos procurar o animal em si – respondeu rispidamente o dr. Burrows. Levantando-se, abriu sua bússola com uma força desmedida e olhou o rumo. – E se tivermos sorte, está mais ou menos na direção certa para nós – anunciou.

Will e Elliott trocaram um sorriso, enquanto o dr. Burrows, deliberadamente, evitava olhar os dois, partindo depois pela trilha.

Bartleby foi o primeiro a localizar a fera de movimentos lentos a alguma distância à frente. Com um miado apreensivo, ele parou e se achatou no chão. Will, o dr. Burrows e Elliott se esgueiraram para fora da trilha e se esconderam nos arbustos.

Houve um som de trombeta, e um grande animal de pele cinza desceu a trilha na direção deles. Com seus membros pesados e andar vagaroso, Will de imediato supôs que era uma espécie de elefante. E havia outros desses animais, que o seguiam em procissão.

Will e o dr. Burrows trocaram um olhar maravilhado.

– Deve ser um grupo familiar – cochichou o dr. Burrows. – Os que estão atrás são os mais novos.

– Mas as orelhas deles são estranhas, e qual é o problema da tromba? – perguntou Will. – Têm metade do tamanho de uma tromba de elefante normal.

– Não há nada de errado com elas... São assim mesmo. Não vê os dois pares de presas? – disse o dr. Burrows, sem fôlego de tanta empolgação. – Will, você não entende o que são essas criaturas e como isto é importante? Estas criaturas ou são gomphotherium ou paleomastodontes. Sim, creio que são paleomastodontes... Ancestrais primitivos dos elefantes, do início do Oligoceno. Outros fósseis vivos!

– Mas eles são mansos? – perguntou Will, enquanto o paleomastodonte mais próximo, que também por acaso era o maior de todos, continuou a se aproximar. Ao fazer isso, ergueu sua tromba curta como se farejasse o ar.

– Está sentindo nosso cheiro – cochichou Elliott, erguendo o rifle.

A fera gigantesca continuou a se aproximar e a cerca de vinte metros escolheu um toco de árvore para exibir sua força. Com um berro, jogou a cabeça de lado, batendo a presa superior mais proeminente contra o toco apodrecido, que virou com um baque surdo.

Olhando de trás de Elliott, Bartleby soltou um rosnado fundo e gutural.

– Shhh! – disse ela.

Talvez estivesse muito alarmado com a visão do animal, mas o Caçador de repente fez a última coisa que se esperava dele. Saltou do mato e pousou bem no meio da trilha. Suas costas estavam arqueadas e os músculos dos ombros tensionados enquanto ele sibilava alto para o paleomastodonte.

– Bartleby! – gritou Will.

Houve um momento em que Bartleby, embora fosse um anão perto do animal maior, olhou fixamente nos olhos do paleomastodonte. Depois, o paleomastodonte soltou um berro e, movendo-se mais rápido do que Will já vira, ergueu a cabeça e partiu em fuga.

– Instinto de preservação – riu o dr. Burrows. – Aposto que a coisa mais próxima que ele pode comparar com Bartleby é um jaguar ou um tigre-dentes-de-sabre, e não quer se meter com ele! Ele pensa que é uma ameaça muito grande.

Will não se divertia com isso.

– Volte aqui, agora, seu gato maluco! – repreendeu ele o Caçador.


O restante da viagem foi tranquilo. Quando saíram das árvores e a pirâmide assomou diante deles, todos estavam acalorados e exaustos. Por um segundo os três simplesmente olharam a construção gigantesca, que parecia idêntica àquela perto do acampamento base.

Will enxugou o suor da testa.

– Então... pirâmide dois. Pensei que você tivesse dito que a viagem até aqui seria moleza – resmungou ele para o pai.

Mas o dr. Burrows não permitiria que a fadiga o afetasse. Tinha aquele fervor nos olhos – só estava interessado em uma coisa. Ele disparou para a pirâmide e, ao chegar, sacou o diário e começou a examinar o primeiro nível.

– É a felicidade dele – disse Elliott, enquanto ela e Will se largaram no chão, lado a lado. Ela abriu a mochila.

– Trouxe comida, se estiver com fome.

– Faminto – disse Will.

Elliott pegou um pacote bem embrulhado em camadas de tecido para bloquear o cheiro de qualquer animal inquisitivo demais.

– Esta é uma experiência minha – disse ela, retirando o tecido e revelando vários embrulhos verdes. – Cozinhei a carne em folhas de palmeira e acho que ficou muito boa.

Will pegou um dos pacotes e, ao começar a descascar as folhas ansiosamente, um grito ecoou nas árvores.

– Will! Aqui! Preciso de você aqui! – exigia o pai. – Agora!

Will agiu como se não tivesse ouvido, mordendo um pedaço da carne.

– Hmmm! Que delícia – disse ele.

– Will! Will! – insistiu o grito.

– É antílope, não é? Desta vez você se superou mesmo – elogiou Will, mastigando lentamente ao saborear a porção.

– O doutor está chamando você – disse ela, divertindo-se com o jeito como Will ignorava inteiramente os chamados.

– Sabe de uma coisa? – murmurou ele, balançando a cabeça com uma expressão falsamente séria.

– O quê? – respondeu ela, incapaz de fazer uma cara séria porque o dr. Burrows ainda gritava freneticamente, como se o mundo fosse acabar.

– Nos velhos tempos em Highfield só o que eu queria era fazer escavações com ele. Eu não pensava em mais nada.

– E? – perguntou ela, enquanto Will enchia a boca com mais antílope.

– Acho que eu era meio patético na época. Não admirava que não tivesse amigo nenhum. – Ele grunhiu ao se levantar e, ainda mastigando a comida, foi até a pirâmide. Viu o pai em um dos níveis superiores, pulando de empolgação.

– O que foi? – perguntou Will sem nenhum interesse ao chegar ao pai.

– Veja você mesmo! – O dr. Burrows estava radiante, gesticulando vigorosamente para a parede diante dele.

Nas pedras do revestimento havia os frisos e as inscrições de sempre, mas havia algo diferente nelas. Will não conseguia perceber o que era.

O dr. Burrows apontou o dedo para uma linha de inscrições entalhada na base da parede.

– “Ao jardim do segundo sol um povo guerreiro chegou, com...” – Ele titubeou um pouco a essa altura. – Não entendo essa palavra, mas depois diz “... como aves que voam e...” – Hesitou novamente, depois continuou: – “Carretas... ou carroças... que andam sozinhas. O povo tirava a vida de nossas terras e fez fogo e fumaça em seu lugar.” – O dr. Burrows virou a cabeça e olhou para Will fixamente. – Olhe isso! Olhe o entalhe!

Tirando um fiapo de carne de entre os dentes, Will deu de ombros.

– Então os seus Antigos fugiram de medo porque alguém, outra tribo talvez, se colocou em seu caminho?

– Não, seu tolo – gritou o dr. Burrows. – Eu disse, olhe o entalhe ! Veja como a pedra está muito pouco gasta.

Will ainda não entendia o significado.

– Não é antiga? Não foi entalhada há milhares de anos?

– Não, mais provavelmente décadas atrás – disse o dr. Burrows. – Podemos saber agora o momento em que os primeiros aeroplanos e outros veículos chegaram aqui. – Começou a assoviar desa finado, depois parou, como se lembrasse de alguma coisa. – Tem mais. Diga o que entende disto. – Correu pelo nível e, achando o lugar, gesticulou para a parede.

Will contemplou as imagens, concentrando-se em uma em particular.

– Sem dúvida, isso parece um aeroplano – disse ele.

– Sim... E tem uma semelhança extraordinária com um Stuka – anunciou o dr. Burrows, num tom de “Eu não disse?”.

Will tinha passado a outros entalhes – representações rudimentares de um avião de aparência estranha com duas hélices de rotor.

– E helicópteros? – acrescentou ele.

– É o que penso. E olhe o nível acima de nós – orientou-o o dr. Burrows.

– Caramba! – exclamou Will. – Está inteiramente em branco!

Algumas pedras do revestimento estavam rachadas e esburacadas devido aos séculos de calor e chuva, mas não havia nada entalhado ali.

– Então podemos supor que esta pirâmide é uma obra em andamento, como as páginas em branco de meu diário que ainda faltam ser preenchidas – teorizou o dr. Burrows. – O que significa que se esse povo estava aqui para testemunhar o aparecimento de tecnologia da Crosta em seu mundo... e documentar na pirâmide... talvez ainda esteja vivo hoje em dia.

– Que loucura! – disse Will. – Mas, se for verdade, onde estão agora? E, mais importante, onde estão os outros, com seus aviões Stuka... e helicópteros?


Embora ela não pudesse ler o letreiro que proclamava “Buttock & File”, nem apreciar o que estava na placa acima dele – uma caricatura muito curiosa de um demônio de pele vermelha sorrindo consigo mesmo na cabine de um trem a vapor –, a sra. Burrows não tinha dúvidas de que lugar era aquele. A taberna vazia fedia fortemente a cerveja choca e urina velha, e a calçada diante de suas vidraças pintadas de preto estava pegajosa quando ela correu por ali.

– Fique perto, Colly – falou ela, enquanto a gata farejava as portas do estabelecimento. – Não temos muito tempo.

Desde a primeira vez que a sra. Burrows saiu da casa do Segundo Oficial e exercitou seu superolfato ela só se atreveu a se aventurar nas ruas da Colônia em algumas poucas ocasiões. Mas, devido ao seu novo dom, ela sentiu um lugar que a intrigava. E a imagem que formou desse lugar enquanto o sondava a apavorou. Embora ficasse a uma boa distância da casa e tivesse de correr para chegar lá e voltar antes do encerramento das vésperas, ela sentiu-se impelida a investigar.

Era grande, disso ela sabia.

E cheirava como o fundo do inferno.

Agora, enquanto andava por uma sucessão de ruas largas, evitando facilmente as poças e mergulhando para o lado quando jatos esporádicos de água caíam do teto alto da caverna, ela se aproximava de seu destino.

Atravessou a rua, parando diante de um muro alto – pelo cheiro de argamassa, sabia que era uma construção recente. Começou a explorar a superfície do muro usando seu tato.

– Alto demais para pular – disse ela, e o acompanhou. Chegando a um trecho que não fora concluído, passou sob uma barreira de madeira e atravessou uma brecha cavada para as fundações do muro. Não parou ali, passando a uma área coberta por entulho solto até que os pés encontraram paralelepípedos.

Postou-se inteiramente imóvel ao soltar seu dom. O cheiro predominante era de cinzas – muitas – de vigas e tábuas de piso queimadas, e havia pedra calcinada. Mas em meio a tudo isto havia o cheiro da morte e de uma crueldade imensurável. Concentrando-se, era como se vozinhas chamassem por ela de uma grande distância, exigindo sua atenção. Sua cabeça girava de um lado a outro enquanto ela localizava onde pereceram, ossos jovens e velhos deixados onde os corpos caíram nos destroços. Onde as pessoas haviam sido incineradas.

– Ah, meu Deus! – ofegou, dominada pelo grande número delas. Era como se o lugar fosse um imenso túmulo para os que morreram ali, queimados vivos. Sua imaginação trabalhava febrilmente; ela quase podia ouvir os gritos de pânico das vítimas, que não tiveram para onde ir, sem meios de escapar.

De repente, ela sabia exatamente onde estava.

Drake lhe falara de passagem sobre um incidente. Ele não se aprofundou, como se ainda fosse doloroso recordar o que vira. De qualquer modo, o tempo que ela teve com Drake foi limitado nos dias que levaram à operação no Highfield Common, quando eles pretendiam raptar o velho Styx.

Mas a sra. Burrows sabia que agora devia estar no distrito a que ele se referia como os Cortiços: favelas superpovoadas, que abrigaram os elementos mais marginalizados da Colônia, aqueles na base da sociedade microcósmica. E foi ali que Drake testemunhou a carnificina sistemática.

– Os Cortiços – sussurrou ela, como se os mortos a pudessem ouvir, e deu um passo à frente. Seu sapato bateu em algo nas cinzas. Ela se curvou para pegar o objeto, que explorou com os dedos. Era a cabeça de porcelana de uma bonequinha. O restante da boneca, seu corpo de pano e o vestido, não sobreviveram às chamas. A sra. Burrows sacudiu a poeira da cabeça e a levou ao nariz; havia algo retido nela – a mais leve impressão das gerações de crianças que brincaram com a boneca. Eram pobres, e este brinquedo deve ter sido passado de pais para filhos ao longo dos séculos, só para que sua última dona perdesse a vida nesse massacre terrível.

E nos serviços religiosos por toda a Colônia os responsáveis por esse crime estavam, neste momento, pregando aos colonistas sobre como conduzir sua vida. Os Styx!

A sra. Burrows colocou delicadamente a cabeça da boneca numa pilha de alvenaria quebrada e voltou para a abertura no muro.


Depois de encerrar o dia de trabalho na nova pirâmide, eles voltaram ao acampamento base. Mas ao saírem na trilha relvosa novamente o dr. Burrows ficou para trás de Will e Elliott. Assoviando entre os dentes, ele tentava ler seu diário enquanto andava. Will e Elliott viram os pés do dr. Burrows entrarem por um buraco, e ele cambalear alguns passos. Mas, depois de recuperar o equilíbrio, voltou ao diário como se nada tivesse acontecido.

– Olhe só o seu pai... Ele pode andar direto até um tigre-dente-de-sabre sem perceber o que há ali – observou Elliott com reprovação. – Vive num mundo só dele.

– É mesmo – respondeu Will, virando-se para Elliott. – Mas é isso que ele faz melhor... Fica no auge da felicidade quando cisma com um problema e tenta resolvê-lo.

Um bando de aves passou voando preguiçosamente por eles e pousou nas árvores ao lado da trilha.

– Ai! – disse Elliott.

Os corpos das aves eram gorduchos e flácidos – pareciam homens muito velhos com protuberantes barrigas de cerveja. As cabeças e os pescoços carecas só ajudavam a enfatizar esta impressão, porque careciam de penas. A pele enrugada era coberta, em vez disso, por remendos. Fixando os olhos de conta em Will e Elliott, as aves reunidas ficaram em silêncio, a não ser por um estranho grasnido, como se não soubessem o que fazer com aqueles intrusos humanos em sua selva e conferenciassem entre elas.

– Como são feias. O que são essas coisas? – perguntou Elliott.

– Quem sabe uma espécie de abutre? – arriscou Will.

Bartleby entrou na trilha, e as aves começaram a bater as asas mirradas e a grasnir ainda mais alto, mas não fugiram voando. Era evidente que elas estavam cautelosas com o Caçador, cujo maxilar começou a tremer enquanto vagueava de um lado a outro, cobiçando-as com os grandes olhos âmbar. Ele soltou um miado baixo de frustração porque as aves estavam muito no alto das árvores para que pudesse alcançá-las.

– Sim, elas são mesmo de arrepiar – disse Will, tirando as aves da cabeça enquanto ele e Elliott partiam pela trilha nova mente, conversando. Will percebeu que não era só o dr. Burrows que estava feliz: as semanas que passaram neste mundo interior foram as melhores de sua vida. Ele olhou para Elliott. Ela também parecia estar inteiramente feliz e satisfeita em seu elemento na selva.

Nas Profundezas, Elliott tinha uma expressão de permanente assombro, e sua pele branca – que trazia as marcas da época que passou no mais selvagem dos ambientes – fazia-a parecer um espectro perdido esvoaçando pelo lugar. Mas, com a exceção do corte no braço, as cicatrizes agora mal eram visíveis, e sua pele bronzeada e o cabelo preto e liso tornavam-na radiante e transformada. De vez em quando Will se dava conta do quanto Elliott era incrivelmente bonita e da sorte dele por tê-la como amiga.

Ela falava alguma coisa, mas Will não ouvia.

– Hoje foi simplesmente demais – anunciou ele abruptamente.

– Hein? – disse ela, surpresa com a explosão dele.

– Quis dizer que foi muito divertido... Pelo menos, se nós dois sairmos nessas expedições com papai, teremos algum tempo juntos, né? – Will se atrapalhou ao tentar se explicar. – Sabe? Sem que ele nos interrompa a cada dez minutos – acrescentou ele, ciente de que seu rosto ficava ruborizado.

Will virou a cabeça e fez uma careta, frustrado consigo mesmo. Descobriu que não conseguia expressar o que realmente queria dizer – o que sentia por ela. Seu léxico era de um menino de quinze anos, e as palavras simplesmente não lhe ocorriam. Ele cerrou o queixo, perdendo a confiança para dizer mais alguma coisa, pois seus sentimentos talvez não fossem recíprocos. Neste caso, ele estaria parecendo um completo idiota.

Mas Elliott fez que sim com a cabeça em resposta, depois sorriu radiante para ele. Will sentiu um alívio esmagador por ela aparentemente compreender o que ele queria dizer. O olhar dos dois se fixou um no outro, mas o momento teve vida curta, porque o dr. Burrows os interrompeu.

– Mas que droga! – gritou ele. – Que sujeira desgraçada!

Will e Elliott se viraram. O dr. Burrows pulava num pé só. Evidentemente, pisara numa pilha de estrume. Will e Elliott não conseguiram reprimir o riso quando ele tentou limpar sua bota esfregando-a na relva.

– Não era um bom espécime de paleomastodonte? – Will ria ao se aproximar do pai, que de repente ficou mudo ao se distrair novamente.

– Será? – começou ele, ao pegar o volumoso diário debaixo do braço e abri-lo, folheando as últimas páginas. – Aquelas pedras... aquelas pedras... – murmurou ele.

Will não sabia do que ele falava.

– Que pedras, pai? – perguntou.

– Encontrei outro jogo daquelas pedras móveis... Sabe? Como as da fila em nossa pirâmide...

– Você não me falou nada – queixou-se Will.

– Eu tentei, mas... como sempre... você estava ocupado demais com sua amiga – disse o dr. Burrows, depois coçou o queixo, pensativo. – Essa segunda série de pedras, evidentemente, é mais recente, e todas as letras são diferentes... Estou tentando descobrir se podem ser combinadas com a primeira sequência e gerar algum significado.

– Pode haver mais na pirâmide número três – observou Will. – Quando formos ver, a resposta poderá estar lá.

– É possível – repetiu o dr. Burrows várias vezes. Ele estava imerso numa página do diário e, ao dar um passo de lado, plantou o pé num monte ainda maior de estrume, que chegou à metade da panturrilha. Apesar do ruído e do intenso cheiro, ele estava completamente distraído.

– Pai! Você não vai chegar perto da base esta noite. – Will riu. – Elliott vai obrigá-lo a... – Ele parou no meio da frase quando lhe ocorreu que ela não havia se juntado a eles. Procurou por ela, encontrando-a exatamente onde a havia deixado, apontando o rifle para as árvores depois da trilha. – Ela viu alguma coisa – sussurrou ele, correndo rapidamente.

Elliott o silenciou com um olhar quando ele apareceu ao lado e continuou a examinar as árvores com a mira do rifle.

O dr. Burrows os alcançou e espiava a mata que parecia atrair tanta atenção de Elliott.

– Mais daquelas árvores barulhentas nos observando? – perguntou ele num tom de zombaria.

– Não entendo... Tive aquela sensação... como se houvesse alguma coisa ali – disse ela devagar, franzindo a testa. – Mas não consigo ver nada... Nada mesmo.

– As únicas formas de vida aqui são esses carniceiros abomináveis – disse o dr. Burrows, gesticulando para os abutres. – E corrija-me se eu estiver enganado, mas ainda não somos carniça, então, elas não representam nenhuma ameaça para nós. – Ele se curvou para pegar um graveto e o atirou nas aves. Errou por muito, caindo no mato abaixo dos galhos.

Bartleby foi o único que percebeu.

Um par de olhos lampejou, alarmado, e o que pareceu ser uma árvore pequena moveu-se rapidamente de lado para evitar o graveto que caía. Mas Bartleby não reagiu, porque não fazia sentido nenhum para ele. Embora tivesse visto movimento, não havia nenhum cheiro que conseguisse discernir. Nada que cheirasse, mesmo remotamente, como um animal – ou um humano.


PARTE DOIS

Contato


Capítulo Catorze


Uma tenda baixa fora erguida na beira da pista de decolagem, onde lufadas de vento agitavam redemoinhos de poeira. Quando parou um pequeno comboio de caminhões angulosos com vidros escurecidos, as portas se abriram e a brigada de Limitadores desembarcou. Depositando suas mochilas e o equipamento na entrada da tenda, eles partiram em fila para dentro. Os tratadores de cães entre eles seguravam seus rastreadores, que rosnavam, claramente preferindo olhar o espaço aberto depois de ficarem confinados por tanto tempo.

Sem nenhuma ordem de seus superiores, os Limitadores começaram a se sentar de um lado da tenda. Os assentos do outro lado foram igualmente ocupados por soldados da Nova Germânia. Sob a lona que se debatia havia um silêncio tenso, enquanto esses jovens louros de cabelos curtos e impecáveis fardas de combate olhavam suas contrapartes. Os Limitadores grisalhos, muitos veteranos que tinham cicatrizes como prova, não mostravam nenhum interesse, olhando à frente e esperando que começassem as instruções.

Do lado de fora da tenda uma limusine preta, sob escolta militar, parou cantando pneu. Em trajes de combate, saíram dela as gêmeas Rebecca. Foram seguidas pelo general Limitador, que durante um instante observou a fila de helicópteros estacionados na pista.

– Fa 223. Também conhecidos como Drache Achgelis – disse ele, olhando o mais próximo, examinando o arranjo peculiar de dois rotores instalados de cada lado do que parecia ser pouco mais do que uma fuselagem padrão de avião.

O general Limitador então olhou os hangares para além dos helicópteros, em que podiam ser vistas várias aeronaves. Muitas ele não reconheceu, mas então seu olhar caiu em dois aeroplanos de cor caramelo.

– ME 263! – exclamou ele, ao perceber qual era o avião atarracado e com as asas inclinadas para trás.

Tendo chegado em outra limusine, o Chanceler por acaso ouviu o Styx.

– Sim, nossos caças interceptadores. Movidos a jato – anunciou ele com orgulho. – Demos continuidade a seu desenvolvimento depois que chegamos aqui. A aeronave mais rápida e mais manobrável dos céus – gabou-se.

– Talvez aqui embaixo. As coisas progrediram no mundo real – respondeu o general Limitador. E partiu para a tenda, deixando o Chanceler com uma aparência um tanto infeliz.

Enquanto o general Limitador assumia seu lugar ao lado de seus homens na primeira fila, as gêmeas Rebecca continuavam na frente da tenda, onde foram armados uma mesa de campanha e um cavalete.

O Chanceler arrastou-se para lá. Com um olhar de viés para os Limitadores reunidos, parou diante das meninas Styx. Sem saber com qual das gêmeas idênticas tinha falado antes, ele hesitou, acenando rapidamente a cada uma delas. Depois, para não parecer um completo idiota na frente da plateia, rompeu o silêncio e tomou sua decisão, escolhendo corretamente Rebecca Um.

– É um grande prazer conhecê-la, minha jovem. E como está se sentindo? – perguntou ele com uma jovialidade forçada.

Rebecca Um balançou levemente a cabeça para mostrar que não estava de todo satisfeita com a forma como o Chanceler se dirigiu a ela.

– Devo dizer que você surpreendeu meus médicos – acrescentou o Chanceler rapidamente, percebendo que tinha dito algo errado. – Curou-se muito mais rapidamente do que eles esperavam... Muito mais rápido do que a maioria das pessoas.

Rebecca Um abriu um sorriso seco.

– Eu sou Styx – disse ela. – Não somos como a maioria das pessoas.

– Não, não, claro que não – gaguejou o Chanceler. Era evidente que se sentia demasiadamente desconfortável na presença das garotas e que esperava a primeira oportunidade para se livrar daquela situação. – Eu gostaria de apresentar... – começou a dizer.

De repente, houve um ruído abafado no fundo da tenda e quatro soldados na Nova Germânia apareceram conduzindo uma forma escura. Estava amarrada por cordas, como um animal selvagem capturado por eles.

– Ah, sim, uma patrulha de segurança pegou este... este... – titubeou o Chanceler antes de continuar. – Este homem. Andava à espreita pelos arredores da cidade, roubando comida.

Enquanto os soldados tentavam contê-lo, a forma escura – envolta da cabeça aos pés em tecido – arrastou-se para a frente, retesando as cordas. Estendeu o braço fino e retorcido e puxou de lado uma aba de tecido sebento, revelando uma face muito deformada, coberta por tumores do tamanho de laranjas, com olhos parecidos com ovos descascados.

– Ele alega conhecer vocês – disse o Chanceler.

– Coxy! – exclamou Rebecca Um. – Mas o que está fazendo aqui?

Tom Cox fungou alto e repuxou os lábios tortos antes de falar.

– Ah, minhas amigas... Sabia que cês ainda tavam vivas. Fui enviado para protegê-las.

– Para nos proteger? – repetiu Rebecca Dois com ceticismo.

Rebecca Um franziu o cenho.

– Você desceu ao Poro e atravessou milhares de quilômetros voluntariamente?

– Claro. Segui os Limitadores, foi o que eu fiz – disse Cox.

Rebecca Dois balançava a cabeça, sem se convencer.

– E fez toda essa viagem até esta cidade, a pé?

– E não derreteu com a luz do sol? – gracejou a irmã.

– Sim... E não gosto nada disso. Não gosto do sol – murmurou Cox. – É como a Crost...

– Então presumo que vocês conhecem esta pessoa – interrompeu o Chanceler, limpando a palma das mãos no lenço como se simplesmente a visão de Cox o fizesse se sentir sujo.

– Sim, de certo modo – confirmou Rebecca Dois. – E ele não precisa da escolta. Soltem-no.

Puxando as cordas das mãos de seus captores, Cox de repente avançou como um vigoroso novilho. Ainda arrastando as cordas, prosseguiu pelo corredor entre os soldados sentados.

– Camaradas novos? – disse ele em sua voz áspera ao inflar as narinas cancerosas para o contingente de soldados desconhecidos. Aproximando-se em silêncio das gêmeas, voltou seus olhos cegos para o Chanceler, que ainda o olhava com um nojo patente. O Chanceler procurou reatar os procedimentos de praxe e estava a ponto de dizer alguma coisa às gêmeas Rebecca quando Cox grasnou “Olá, garotão”, soprando um beijo para ele através dos lábios escurecidos.

– Este... este... este é o coronel Bismarck – gaguejou o Chanceler.

Todas as cabeças se voltaram para o homem que surgia da primeira fila de neogermanos sentados. Tinha um bigode delicado, era alto e careca e se portava com muita altivez. Fez uma mesura formal às gêmeas Rebecca com um estalo das botas de montaria engraxadas.

– Eu as deixarei a seu encargo – balbuciou o Chanceler, e saiu da tenda com a maior rapidez que suas pernas podiam levá-lo.

– Sou seu oficial de ligação – disse o coronel Bismarck, andando até o cavalete. Esperou que um de seus soldados desenrolasse e prendesse ali um mapa. – Antes de falarmos do protocolo e como nosso pessoal cooperará na operação de busca, quero analisar o terreno com vocês. – Bateu o dedo e apontou para um traço no mapa ao se voltar para as gêmeas Rebecca. – Este é o antigo poço... A entrada para a mina abandonada de urânio onde vocês sofreram a emboscada. – Passando o dedo pelo mapa, ele estava prestes a continuar quando Rebecca Dois se manifestou.

– Ali, na selva... O que são? – disse ela, indicando os três triângulos dourados.

– São grandes monumentos, visíveis a certa distância – respondeu ele. – As pirâmides antigas... Mas nós não...

– Pirâmides! – exclamou Rebecca Dois, trocando olhares com a irmã. – Há mais alguma coisa desse tamanho na selva?

– Não que possa ser vista acima da linha das árvores – respondeu o coronel Bismarck.

– Se as víssemos, teríamos ido direto para lá, porque elas vão atrair o dr. Burrows como um rato das cavernas ao queijo – disse Rebecca Um.

– É lá que encontraremos as pessoas que queremos – disse com absoluta convicção Rebecca Dois ao coronel. – E é lá que devemos começar as buscas.

Uma onda de agitação varreu os soldados da Nova Germânia.

O coronel Bismarck olhou o mapa.

– Como eu ia dizer, não tendemos a nos aventurar nesse quadrante. É uma área de alta radiação e não contém nada de valor estratégico. – O coronel respirou fundo. – E há mais uma coisa.

– O quê? – perguntaram as gêmeas Rebecca em uníssono.

Ele afagou o bigode e pareceu relutar em responder.

– Perdemos soldados ali. Embora nunca tenhamos tido nenhum avistamento direto deles, acredita-se que os indígenas ainda subsistam nessa região... Escondidos de algum modo.

– Ah, um mistério. Eu gosto de mistérios – zombou Cox, sacudindo suas mãos deformadas sob o manto.

O coronel Bismarck franziu a testa.

– Não é motivo de riso. A julgar pelo número de homens que se perderam ali com o passar dos anos, todos treinados para o combate e equipados operacionalmente, esses nativos devem ser considerados altamente perigosos. De vez em quando enviamos um avião de reconhecimento para varrer o quadrante. Nunca descobriram nada. – Ele fitou Rebecca Dois com os olhos cinza. – Então, considerando a probabilidade, sua presa já terá perecido.

– Mas quem exatamente são esses nativos, como os chama? – disse Rebecca Um. – Guerrilheiros?

– Não, ao contrário... Se tiverem armas, devem ser muito rudimentares. Nossos arqueólogos acreditam que são descendentes de uma raça antiga que, muitos séculos atrás, vivia em cidades imensas em todos os principais continentes deste mundo. De fato, os arqueólogos acreditam que sua sociedade seria a origem do mito da Atlântida.

Rebecca Um soltou um “Bah”.

– Se fizer amizade com eles, o velho e chato dr. Burro estará no sétimo céu.

– Sétimo? – perguntou o coronel Bismarck, sem entender a expressão.

– Não se preocupe com isso. – O semblante de Rebecca Dois era determinado quando ela se aproximou do mapa para examinar onde estavam assinaladas as pirâmides. – Independentemente do que tenha dito sobre o risco, precisamos iniciar as buscas bem aqui – disse ela. – É lá que estarão as pessoas que roubaram nosso vírus.

– E se Will Burrows ainda não estiver morto, logo estará – acrescentou Rebecca Um, colocando a mão na barriga ao se lembrar da dor do ferimento a bala. – Quando eu arrancar suas tripas para fora.


Eliza encheu a colher com a papa e com a outra mão puxou para baixo o queixo da sra. Burrows a fim de que sua boca ficasse escancarada. Ao olhar o conteúdo da colher, Eliza hesitou por um momento. Depois assentiu consigo mesma e depositou a papa no fundo da língua da mulher inconsciente.

– Você pode ser burra feito um Coprólito, mas isso não a impede de devorar nossa comida, não é mesmo? – disse Eliza.

Mas parecia haver algo errado com a deglutição da sra. Burrows: sua garganta se retesou, e a papa foi cuspida de volta.

– Pelo amor de Deus, sua vaca suja! – Eliza fervilhou. – Caiu tudo em cima de mim! – Levantando-se de um salto, rapidamente limpou os respingos em seu rosto e na blusa.

– A segunda vez é a da sorte – disse Eliza, voltando à cadeira e tentando dar outra colherada à força à sra. Burrows. Mas ela também rejeitou esta. Eliza insistiu repetidas vezes, mas o resultado era o mesmo: a sra. Burrows os tossia com um espasmo que parecia emanar do fundo de seu peito. Derrotada, Eliza largou a colher na tigela e a colocou na mesa lateral.

– Bem, se não se alimentar, vai mesmo se meter em problemas – proclamou ela à cara frouxa da sra. Burrows. Deu uma limpada rápida no queixo da mulher, depois pegou a tigela e partiu para a porta.

– Ela sabe – disse a velha, aparecendo do corredor. Estava agitada, torcendo as mãos artríticas.

– Não seja estúpida... Olhe para ela... Como pode saber? – respondeu Eliza à mãe.

– Ela sempre engoliu a comida... Por que não agora? Ela sabe, ela sabe – sustentava a velha com absoluta convicção.

– Mas que conversa fiada! Ela está com tosse... Um pouco de febre... É só isso – disse Eliza. – Mas se parar de comer, não vai durar muito, e teremos o mesmo resultado. – Olhou a tigela nas mãos. – É melhor eu me livrar disto... Não queremos que ninguém se sirva desta coisa. Vou despejar no esgoto. – Foi à cozinha para jogar fora a papa, que fora levemente salpicada com veneno de lesma, enquanto a velha permanecia na soleira da porta.

– Tem mais em tu do que tu deixas ver – acusou a velha a forma largada da sra. Burrows na cadeira de rodas. Ela podia estar caducando, mas a idade não embotou a intuição. Sua cara enrugada era temerosa: ela quase foi cúmplice de um crime que contrariava tudo em que acreditava. – Tu sabes o que távamos preparando... Sabe que tentamos te dar veneno, não sabes? – Com um gemido, a velha disparou para fora dali.

É claro que eu sei, pensou a sra. Burrows enquanto se recolhia para o refúgio escuro de seu cérebro. E se tentar novamente, estarei pronta para você também.

Contrariando todas as expectativas, ela sobreviveu o tempo todo e não ia deixar que duas mulheres atrapalhassem sua fuga para a Crosta.


No silêncio do porão sob o depósito Drake trabalhava num computador que instalara em uma das bancadas. Seus dedos se moviam num borrão pelo teclado e ele falava sem desviar os olhos da tela.

– Como ele está indo? – perguntou.

Eddie apareceu à luz.

– Está meio abalado, como você esperava – disse ele ao se aproximar da bancada. – Tive que lhe dar algo para dormir.

– Não me surpreende. O coitado não teve muito descanso ultimamente – respondeu Drake, ainda sem desviar os olhos da tela do computador. – Poderia ter sido um pouco mais fácil para ele se você não tivesse contado sobre as refeições que Martha preparou no galpão.

Eddie deu de ombros levemente.

– É mesmo uma ironia, já que sua antiga turma... o chamado Esquadrão de Hobb... tem a fama de comer cadáveres. – A expressão de Drake não se alterou, e ele continuou a trabalhar no teclado. – E como ele se comportou com você? Pensei que teria problemas, depois do que os Styx o fizeram passar.

– Ele simpatizou comigo depois de eu ter dito que compraria um Playstation e arranjaria cheeseburger e fritas para ele quando acordasse.

– Pelo menos ele não está rejeitando comida, então – murmurou Drake, preocupado com o que Will fazia.

– Posso dar uma olhada? – perguntou Eddie, já contornando a bancada para ver.

– Claro – respondeu Drake. – Só estou compilando a última linha, e... voilà, acabou-se! – exclamou, ao bater no “Enter” com um floreio grandiloquente. Uma caixa de caracteres que rolavam rapidamente se abriu na tela, dando lugar a um cursor e uma linha de texto proclamando que o programa estava “Localizando...”.

– Já faz algum tempo que não escrevo um código desses, mas... Vamos ver o que vem por aí – disse Drake a meia-voz enquanto esperava pelo programa. – Ah, prontinho. – Abriu-se um mapa em uma nova janela. – Este é o norte de Londres... Em algum lugar em Highgate – observou. Depois outro mapa se abriu, por cima do primeiro. – Central London... O West End. Vamos ver mais de perto este aqui, está bem? – disse, maximizando a janela e dando um zoom onde pulsava um ponto vermelho. – Te peguei! – anunciou quando apareceu o nome de uma rua. O ponto claramente se localizava dentro de um determinado prédio. – Mas que surpresa... É a Wigmore Street.

– Posso perguntar o que você está fazendo? – aventurou-se Eddie.

– Lembra-se do que eu lhe disse sobre os tubos que desmontei da Luz Negra? Como cada um deles emite determinado comprimento de onda e como a emissão cumulativa de todos os quatro confere uma assinatura única? Bom, hoje de manhã me conectei sem fio a várias antenas que instalei em prédios perto daqui, então posso triangular qualquer emissão com esta frequência exata. – Drake deu um tapinha na lateral do monitor. – Com este equipamento, posso localizá-lo em qualquer lugar na Grande Londres.

– Então está me dizendo que uma Luz Negra está sendo usada neste exato momento – supôs Eddie, indicando o ponto que piscava.

– Sim, e quem será a vítima? – disse Drake com uma expressão pensativa.


O carro estacionara em uma faixa dupla amarela à plena vista de um guarda, mas o motorista não se importou – o passageiro na traseira era importante e influente demais para ele se preocupar com algo tão banal como uma multa.

– Posições de ação – murmurou o musculoso agente de segurança ao lado do motorista ao sair do carro. Depois de olhar os dois lados da calçada, fez sinal ao motorista e foi abrir a porta traseira do carro.

– Hmmm... Chegamos, senhor – disse ele, inseguro.

O primeiro-ministro desviou os olhos de seus papéis.

– Já? Sim, é verdade – reconheceu ele. – Eu estava a quilômetros daqui. – Fechando a pasta no colo, deslizou pelo banco e saiu do carro. Ao se erguer, endireitou o paletó, puxando uma das mangas. Era um urso de homem e sempre ficava meio desajeitado de terno, como se tivesse se esquecido de retirar o cabide. – Não tenho tempo para isso – grunhiu ele, passando a mão na testa para colocar a franja de lado.

O agente de segurança escoltou o primeiro-ministro pela calçada e pelos degraus do prédio.

– Desculpe-me pelo atraso... Fiquei preso na Câmara – anunciou ele à recepcionista, sem parecer se lamentar nem um pouco.

– Bom-dia, senhor – disse ela, abrindo seu sorriso mais alegre. Não a surpreendia que o primeiro-ministro estivesse atrasado, pois ele sempre se atrasava, então ela tomou a precaução de cancelar a consulta seguinte para ter certeza de que os outros pacientes não sofressem inconveniências.

– Aqui dentro? – começou o primeiro-ministro, virando-se para a sala de espera.

– Não, não é necessário, senhor. O dr. Christopher o verá imediatamente. – Ela apertou um botão de discagem rápida no telefone e o assistente do dr. Christopher já descia a escada georgiana quase antes de ela desligar.

– Acompanhe-me, senhor – disse o assistente, girando os calcanhares para a escada novamente.


O segurança não acompanhou seu encarregado escada acima, posicionando-se no saguão de entrada, onde podia monitorar quem entrasse no prédio. Pegou o rádio para verificar com o motorista no carro.

– O chefão acaba de subir para os exames. Hora estimada de partida às...

Ele parou ao ouvir a porta se abrir às suas costas. Girando o corpo, viu uma mulher sair de uma sala no final do saguão. Era magérrima e vestia um elegante terninho preto sobre uma blusa branca de gola larga.

“Prossiga, Vinte e Três”, o rádio grasnou, mas o segurança não ouvia. Enfeitiçado pela mulher, ele mal respirava. A geometria de seu rosto – a inclinação nada natural de suas maçãs altas – tornava-a quase inumana, quase uma felina, mas, ao mesmo tempo, feminina e fascinante. No instante em que seus olhos pretos e deslumbrantes se fixaram nos dele, o agente sentiu a força pura que tinham, e uma frieza se espalhou por seu corpo. Ele estremeceu. O olhar dela era de autoridade – e de uma autoridade tão completa que o agente foi sobrepujado por ela.

E embora não houvesse como saber disso, ele era um dos pouquíssimos habitantes da Crosta que tinha deitado os olhos em uma mulher Styx adulta.

“Vinte e Três, repita”, o rádio insistia.

Enquanto a mulher Styx se afastava e começava a subir com leveza a escada, o agente de segurança finalmente respirou.

“Vinte e Três”, o rádio exigia. “Algum problema aí?”

– Não, tudo bem... Eu só vi uma, hum, senhora – respondeu o agente sem pensar.

– Uma senhora, hein? Divertindo-se aí, não é? – disse o motorista com malícia.


No primeiro andar, o assistente bateu de leve na porta do consultório e a abriu para o primeiro-ministro, dando um passo para o lado.

– Gordy, como tem passado? – perguntou o dr. Christopher, levantando-se de sua mesa.

– Ah, nada mal. O de sempre, sabe como é?! – respondeu o primeiro-ministro ao trocar com ele um aperto de mãos. – É muito bom vê-lo novamente, Edward. Espero que a família esteja bem.

– Estão, obrigado. Sei que tem uma agenda apertada, então se importaria se fôssemos diretamente à sala de exames?

– Por mim, tudo bem – grunhiu o primeiro-ministro. Estava a ponto de se sentar na cadeira junto da mesa, mas então mudou de rumo e endireitou o corpo.

– Algum problema com sua visão? – perguntou o dr. Christopher.

– Não anda muito boa ultimamente, à noite, mas acho que é só cansaço. Documentos de gabinete demais para ler à luz de velas. – O primeiro-ministro riu, seguindo o médico pelo corredor e entrando em outra sala, cheia de equipamentos.

– Vamos dar uma olhada. Sente-se aqui, por gentileza – disse o dr. Christopher, indicando uma cadeira atrás do sistema de escaneamento de retina. – E, por favor, retire a lente de contato... Há um recipiente para elas à sua esquerda. Depois, se pousar o queixo no suporte, poderemos ver como está seu olho.

– Sim, não precisa se incomodar com o outro, não é? – disse o primeiro-ministro. Referia-se ao olho esquerdo, que era completamente cego. O dr. Christopher se preparou para a piada de sempre e o primeiro-ministro não o decepcionou. – Devia me cobrar metade dos honorários... Especialmente com todas as críticas que recebemos por nossos gastos – acrescentou ele.

– É bem verdade, é bem verdade – disse o dr. Christopher, rindo educadamente. – Agora, olhe bem à frente, por favor. – Estava sentado de frente para o primeiro-ministro, examinando seu olho pelo que parecia uma peça de microscópio.

– Hoje em dia tudo é alta tecnologia – comentou o primeiro-ministro, enquanto o dr. Christopher mexia no aparelho.

– Sim, só o melhor para meus pacientes – respondeu ele. – Vou acender uma luz... Pode achar meio forte no início. – Ativou um interruptor, e o olho do primeiro-ministro foi inundado por um feixe de luz roxa. Seu corpo ficou rígido.

Observando o primeiro-ministro com cuidado, o dr. Christopher se levantou.

– Hora de dormir, hein, gorducho? – disse com antipatia. Contornou o homem e beliscou sua bochecha para ter certeza absoluta de que ele não estava consciente. – Pelo menos não terei que ouvir sua tagarelice oca por algum tempo.

A mulher Styx entrou na sala.

– Ele está sob Luz Negra... É incrível a rapidez com que o tem afetado ultimamente – comentou o dr. Christopher. – Não há resistência nenhuma.

– Esta é a beleza das emissões frequentes – respondeu ela enquanto os dois contemplavam o primeiro-ministro.

O dr. Christopher bateu palmas e partiu para a porta.

– Mas, então, é com você agora. Estarei em minha sala, no final do corredor, quando for a hora de trazê-lo de volta.

– Sei onde você estará – disse a mulher com um sorriso sedutor, trancando a porta depois da saída do médico.


– Então, se você tiver razão nisto e meu povo estiver usando a Luz Negra em alguém, o que vamos fazer? Correr até a Wigmore Street e pegá-los no ato? – perguntou Eddie. – E depois?

Drake considerou a situação.

– Quando chegarmos lá, provavelmente já estará terminado. Não, vamos esperar que não morra o coitado que está sofrendo lavagem cerebral. Soube que não é incomum, em particular se o interrogado tem o coração fraco ou um grave problema médico que seja desconhecido dos Styx.

– Ou esteja grávida, como sua amiga da universidade – lembrou Eddie.

Drake balançou a cabeça com uma expressão triste ao recordar.

– Sim, Fiona – disse ele em voz baixa. Por um momento olhou fixamente o ponto vermelho que continuava a pulsar no mapa, depois socou abruptamente a tecla Esc para fechar o programa. – Não, não há tempo para isso agora... Já temos com o que lidar. De qualquer modo, deve ser alguma autoridade menor tendo sua vontade subjugada.


As gêmeas Rebecca estavam sentadas uma de frente para a outra nos bancos de alumínio que se estendiam pelas laterais do helicóptero. Acompanhando as meninas estava o general Limitador e outros soldados Styx, com Tom Cox espremido na ponta. Com todo o pessoal e seu equipamento a bordo, não restava muito espaço.

– Atirador – observou o general Limitador enquanto um soldado da Nova Germânia assumia posição no banco atrás de uma arma de grosso calibre instalada perto da porta principal. – Parece que estão prontos para a ação.

– Eles são muito cautelosos – concordou Rebecca Um. – Pensei que aquelas instruções não fossem terminar nunca.

– Apertem os cintos – gritou o piloto de seu cockpit, vasculhando uma série de chaves, uma por uma, com o polegar. Todos afivelaram os cintos de segurança enquanto ele ativava a última chave e os rotores começavam a rodar lentamente. Ganharam velocidade até que toda a aeronave vibrava como uma velha máquina de lavar.

– Lá vamos nós – disse Rebecca Dois, mas se passou um minuto e eles ainda não estavam no ar. Enquanto ela olhava pela porta de trás, pôde ver que nenhum dos outros dez helicópteros tinha saído da pista. – Algum problema? – perguntou por fim, gritando para que o general Limitador pudesse ouvir com aquela barulheira.

– Leva algum tempo para o motor esquentar – respondeu ele.

– Mas que lata-velha! – exclamou ela, rindo.

E então, quando o motor Bramo chegou à temperatura certa, o helicóptero sacolejou, e eles finalmente estavam no ar. As gêmeas olhavam os outros helicópteros que também começavam a subir.

– Decolamos – disse o general Limitador, e o nariz do helicóptero deles se inclinou. Depois eles avançaram, sobrevoando a vasta metrópole.

Rebecca Dois gesticulava para a irmã a fim de dizer que elas passavam pela Chancelaria quando uma aeronave passou feito um foguete na direção contrária. Parecia um morcego preto e liso.

– Olha só essa coisa! – gritou Rebecca Um.

Elas não tinham visto nada igual no campo de pouso. Era uma grande asa voadora sem fuselagem nem cauda e, a julgar pelas chamas que saltavam dos propulsores, claramente movida a jato. A coisa mais próxima com que as gêmeas podiam compará-la eram os aviões espiões do Exército dos Estados Unidos – algumas das aeronaves tecnologicamente mais avançadas da Crosta. Aquela asa voadora atingia tal velocidade que em menos de um segundo não passava de um pontinho acima do mar.

– Mas o que foi isso? – perguntou Rebecca Dois.

As gêmeas olharam o general Limitador, esperando uma resposta. Ele assentia consigo mesmo.

– Desconfio de que é um Horten 229... construído pelos irmãos Horten para os nazistas na década de 1930, pelo menos três décadas antes de os americanos começarem a desenvolver seus bombardeiros stealth – disse ele. Embora o general não sorrisse, as rugas em torno dos olhos se apertaram como se ele se divertisse. – Devo ter ferido o orgulho do Chanceler com sua capacidade aérea, e ele está tentando nos impressionar com seu equipamento.

O motor que impelia o helicóptero continuava a martelar, e eles deixaram o espaço aéreo sobre a metrópole, elevando-se acima da cadeia de montanhas que se estendia lá embaixo.

Rebecca Dois ficou de olho nos outros helicópteros que os seguiam numa formação precisa, enquanto a irmã estava mais interessada no que vinha pela frente. Olhava para além do piloto, que direcionou o manche, inclinando lateralmente o helicóptero e colocando-o em um novo curso. Diante dela, pela grande área de acrílico na frente do cockpit, entrou em seu campo de visão um panorama incrível da selva – um mar de verde que parecia continuar para sempre.

– Um mundo virgem – disse ela a si mesma. – Imagine o que poderíamos fazer com isso.

Rebecca Dois começou a se interessar pelo que fazia o navegador, do outro lado do cockpit. Metido atrás do piloto, ele evidentemente estava em contato constante com ele por um fone ao examinar uma tela circular no painel do equipamento. Soltando o cinto de segurança, ela usou um corrimão para se equilibrar ao se aproximar dele.

Dando-lhe um tapinha no braço para ter sua atenção, ela apontou a tela.

– O que são estes trechos escuros aqui? – gritou ela.

Ele pareceu surpreso ao vê-la, mas tirou os fones para ouvi-la melhor.

– O que são estas áreas escuras? – gritou ela novamente.

– Ein Sturm ist im Kommen – respondeu ele aos berros.

Ela deu de ombros – embora seu alemão fosse bom, o barulho do motor dificultava a compreensão.

– Tempestade à frente – disse ele, encontrando as palavras certas em inglês. – Teremos que contorná-las nestes helicópteros porque as correntes de vento e as descargas elétricas... são muito fortes. Este é um rastreador...

– É um sistema de radar para padrões climáticos – antecipou Rebecca Dois, assentindo. – Mas o que é isto? – disse, apontando uma área pequena e indistinta de luz que aos poucos se acendia, depois com a mesma lentidão desbotava na tela monocromática.

Rebecca Um agora se unia à irmã e ouvia o diálogo.

– Wir wissen nicht... Não sabemos. Semanas atrás enviamos um avião de reconhecimento, mas ele não descobriu nada. Pode ser um campo magnético... Como vocês dizem... Eine Abweichung von der...

– Uma espécie de anomalia – traduziu Rebecca Um, olhando a irmã nos olhos.

Rebecca Dois franziu o cenho.

– Será... só estou especulando... que é uma das geringonças de Drake? – sugeriu ela e virou-se para o navegador. – Está perto de alguma coisa... Algum marco ou acidente geográfico?

O navegador girou na cadeira para consultar um mapa em uma prateleira de metal ao lado da tela, abrindo um transferidor sobre ele.

– O marco mais próximo é a terceira pirâmide... A mais distante de nossa posição inicial.

– Fica perto de uma pirâmide! Por que não nos contou sobre isso? – exigiu saber Rebecca Um.

O navegador deu de ombros.

– Vocês verão que a área é o último ponto de pouso programado para esta operação – respondeu ele.

As gêmeas não precisaram se olhar – ambas pensavam exatamente a mesma coisa.

– Não, não é – disse Rebecca Dois sem deixar dúvidas.

– Vamos para este primeiro – ordenou Rebecca Um. – Diga a seu piloto para refazer o curso... Já.


Capítulo Quinze


– Estarei ali no carro, se precisar de mim. Só fale nisto – disse Drake ao se certificar de que o microfone estava ligado ao interior da manga de Chester, com Drake no banco traseiro enquanto Eddie estava ao volante. – E Eddie vai assumir posição na traseira – continuou.

– O quê... no meu jardim? – disse Chester, sem acreditar. Pela janela lateral do Range Rover, seus olhos estavam colados na casa mais distante da rua. Desgrudou os olhos dela para ver o microfone na manga e a pistola no colo de Drake. – Precisamos mesmo de tudo isso? – perguntou.

Eddie girou para Chester.

– Sim, precisamos. Esteja preparado para qualquer coisa – disse ele num tom agourento. Olhou a rua pelo retrovisor lateral. – E não podemos ficar muito tempo aqui. Não é seguro.

– Olha, Chester, eu entendo perfeitamente por que quer fazer isso – começou Drake, depois suspirou. – Você quer tranquilizar seus pais de que está bem. Mas, como estou lhe dizendo o tempo todo, não é uma boa ideia.

Chester amarrou a cara decididamente, mas não respondeu.

A inquietação de Drake era evidente, enquanto ele dobrava os dedos e os abria novamente.

– Você tem no máximo dez minutos com eles... De maneira nenhuma vai ficar mais tempo. Os Styx virão, e eles não vão pegar só você... pegarão também sua mãe e seu pai. Todos... e quero dizer todos mesmo... com quem você entrar em contato correrão perigo.

– Eu entendo isso – murmurou Chester. – Vou cuidar para que eles entendam também.

Balançando a cabeça, Drake fez uma última tentativa de dissuadir o garoto.

– Você precisa saber como isso vai se desenrolar. Seus pais não vão deixar você entrar alegremente e depois sair. Vão querer saber onde esteve esse tempo todo e com quem... Vão exigir uma explicação. Mas você não pode contar nada. Depois, quando você tentar ir embora, eles vão fazer um estardalhaço e provavelmente entrarão em contato com as autoridades, o que equivale a um telefonema direto para os Styx.

Chester começava a dizer alguma coisa, mas Drake o atropelou.

– E depois disso, quando o alarme soar e você desaparecer de novo, os Styx prenderão seus pais e os interrogarão para ver o que eles sabem.

– Não, eu vou fazer com que minha mãe e meu pai me ouçam – respondeu Chester com a voz rouca. – Eles vão fazer o que eu pedir, porque confiam em mim.

– Será preciso muito mais do que confiança – disse Drake. – É de seus pais que estamos falando. Eles vão lutar com unhas e dentes para impedir que você parta.

Chester soltou um suspiro trêmulo.

– Não, eu preciso que eles vejam que estou bem. Devo isso a eles, não é? – Ele olhou, suplicante, para Drake, que se limitou a balançar a cabeça de novo.

– Algumas coisas é melhor deixar como estão – respondeu o homem, mas Chester já se virara para olhar sua casa.

– Neste momento, aposto que meu pai está tomando sua xícara de café, vendo o noticiário da tevê. Minha mãe estará na cozinha, ouvindo rádio enquanto prepara o jantar. Mas o que quer que estejam fazendo, devem estar pensando em mim. Você vê, eu sou tudo o que eles têm. Minha irmã, Annie, morreu em um acidente quando era pequena, e só eu fiquei. Não posso deixar que continuem a sofrer, acreditando que algo horrível aconteceu comigo também. Nada pode ser pior do que... do que não saber.

Drake destravou a pistola.

– Bom, não diga que não tentei convencê-lo a não ir.

Eddie deu a partida no motor e desceu lentamente a rua. Quando estava a várias casas de distância da casa de Chester, ele parou.

– Vamos – disse ele, e todos desceram ao mesmo tempo.

Enquanto Drake assumia o lugar de Eddie ao volante, o Styx escoltou Chester pela calçada.

– É aqui – disse Chester, ao chegar em casa.

– Boa sorte – sussurrou Eddie, depois partiu para contornar a lateral da casa.

Dando alguns passos pelo caminho de pavimentação estranha, Chester parou para olhar a porta da frente. Depois percebeu que a cortina da janela da cozinha estava fechada e que havia movimento atrás dela.

– Mamãe – disse ele, radiante.

Andou lentamente o que restava do curto caminho. Tudo parecia exatamente o mesmo – os trechos pequenos de grama dos dois lados da calçada haviam sido aparados recentemente. Nos meses de verão, seu pai sempre pegava o aparador aos domingos, no final da tarde, quando ficava mais fresco.

Chester procurou o sapo de concreto que ficava no canteiro, com a língua se projetando como se esperasse que uma mosca de concreto passasse zumbindo. A cor cinzenta do sapo, manchada em certos lugares de líquen seco, era desbotada, em contraste com a cobertura de flores atraentes que o cercavam. Isso era obra de sua mãe – ela ia regularmente ao centro de jardinagem local e replantava completamente o canteiro a cada dois meses, quer fosse necessário ou não, escolhendo as flores de cores mais vivas e mais deslumbrantes. “Ora, isso me deixa feliz”, dizia ela ao pai de Chester quando ele inevitavelmente reclamava do custo. A isto ele não dizia nada, porque, se a fazia feliz, ele ficava feliz também.

Nada parou. Tudo continuou como sempre sem mim, percebeu Chester de repente. Os rituais que eram exclusivos da vida familiar dos Rawls, todas as rotinas e atividades que preenchiam o tempo enquanto ele crescia, ainda continuavam, embora ele não estivesse presente. Esses pilares de sua vida persistiram embora ele não estivesse ali para desfrutar delas. Parte dele sentia que de algum modo deviam ter cessado, ou pelo menos ficado em suspenso até que ele voltasse para casa, porque eram também os rituais dele.

Esses pensamentos o deixaram ainda mais desesperado para ver os pais. Queria que soubessem que ele ainda fazia parte da família, mesmo que não estivesse presente.

Entrou na varanda e, antes de apertar o botão, dedicou um tempo para passar a mão no cabelo e não parecer tão desgrenhado.

A campainha soou dentro da casa e acelerou seu coração. Ele conhecia muito bem aquele toque.

Ouviu vozes.

– Estou em casa! – disse ele em voz alta, com a cara dividida por um largo sorriso. – Estou em casa mesmo – acrescentou, ainda mais alto.

Ele viu alguém atrás do vidro mosqueado da porta da frente – uma inconstante silhueta humana.

Chester achou que ia explodir.

A porta se abriu, e sua mãe estava ali, secando as mãos num pano de prato.

Chester a fitou, tão dominado pelas emoções que foi incapaz de falar.

– Pois não, o que posso fazer por você? – perguntou a sra. Rawls, olhando-o despreocupadamente.

– Mã... – murmurou ele pelos lábios trêmulos enquanto as lágrimas começavam a encher seus olhos. Ela estava exatamente a mesma: o cabelo castanho-escuro muito curto e óculos de leitura que sempre se equilibravam no alto da cabeça. – Mã... – tentou novamente, absorvendo seu rosto, que era exatamente como ele imaginava durante todas aquelas semanas e meses em que esteve nos subterrâneos. Talvez estivesse um pouco mais velha do que da última vez que a viu, com rugas de preocupação recém-adquiridas em torno dos olhos, mas Chester não percebeu isto porque estava diante de alguém que amava mais do que qualquer outra pessoa. Ele ergueu os braços, querendo se atirar para ela e abraçá-la.

Mas ela não mostrou nenhuma reação, a não ser pelas sobrancelhas, que se baixaram num cenho franzido.

– Pois não? – repetiu a sra. Rawls, dando-lhe um daqueles olhares desconfiados que ele a vira lançar a pessoas na rua que lhe pediam dinheiro. Depois, ainda mais inacreditável, ela recuou um passo. – Ah, já sei... Você veio pegar as roupas, não é? – anunciou animadamente. – Está tudo pronto para você levar. – Gesticulou para um saco plástico branco atrás das garrafas de leite no canto da varanda. Estava cheio, e havia um nome impresso, mas Chester não conseguiu ler com clareza porque seus olhos estavam tomados de lágrimas.

– Quem é? – chamou o sr. Rawls de dentro.

– Pai. – Chester engoliu em seco.

A sra. Rawls estava distraída demais para ouvi-lo.

– Só alguém da instituição de caridade que veio pegar nossas roupas velhas – gritou ela para o corredor.

– Espero que você não esteja se livrando de meu cardigã preferido de novo – veio a réplica de dentro, seguida por uma risada alta. A risada foi tragada por uma repentina explosão de música. Chester tinha razão; o pai, uma criatura de hábitos, via televisão na sala de estar. E, ironicamente, a música parecia uma banda marcial tocando uma bombástica melodia de boas-vindas.

Só agora a sra. Rawls percebeu que Chester chorava. Ele se aproximou meio passo, mas ela se deslocou defensivamente para trás da porta, que começou a fechar.

– Você é da caridade, não é? – perguntou a sra. Rawls, ficando desconfiada.

Chester encontrou sua voz.

– Mãe! – saiu num grasnado feio. – Sou eu!

Mas ela ainda não mostrava sinais de tê-lo reconhecido. No máximo, a preocupação em seu rosto tornou-se mais pronunciada.

– Você não veio pegar as roupas, veio? – concluiu a sra. Rawls, agora pronta para fechar a porta.

Sem saber o que fazer, Chester meteu o pé para dentro da soleira para impedir que se fechasse.

– O que foi, mãe? Não me reconhece? – perguntou ele.

– Jeff – disse a sra. Rawls com a voz fraca, sufocada pelo pânico ao chamar o marido.

– Mas sou eu... Chester! – insistiu Chester.

Por um momento a raiva suplantou o medo, e o rosto da sra. Rawls se avermelhou.

– Vá embora! – vociferou ela. Pôs o peso de seu corpo contra a porta, mas Chester empurrou, resistindo às tentativas da mulher de fechá-la.

– Mãe, eu não posso ter mudado tanto – gemeu ele. – Não vê quem eu sou? Sou eu... seu filho.

Enquanto a sra. Rawls o xingava, a insanidade da situação foi demais para Chester, e algo estalou em sua cabeça.

– Me deixe entrar – rosnou ele, empurrando a porta com o ombro. A mãe foi jogada para a entrada da cozinha, onde se segurou no batente para recuperar o equilíbrio.

Chester andou pelo corredor e meteu o dedo em uma foto grande na parede. Ele não a vira antes – era do último passeio da família, algumas semanas antes de Chester desaparecer.

Na foto, eles estavam juntos em uma cabine na London Eye, com o Big Ben visível por trás. Ele lembrava que um turista japonês havia tirado a foto dos três usando a câmera do pai dele. O passeio foi um presente especial para ele, e os pais o pegaram logo depois da escola. E ali estava ele na foto, ainda de uniforme.

– Olhe... sou eu! Com você e papai! – gritou Chester. – Qual é o seu problema?

– Saia... de... minha... casa! – disse a sra. Rawls, enfatizando cada palavra, soltando um riso estrangulado e estranho. – Você não é meu filho! – Chamou novamente pelo sr. Rawls, mas desta vez gritou seu nome a plenos pulmões.

Chester nunca a vira assim. Nem acreditava no que acontecia ali.

Houve um estrondo quando o sr. Rawls apareceu voando da sala, com uma mancha escura na camisa branca, do café que derramara. Dessa vez ele ouviu o pedido de socorro da mulher, mais alto do que a televisão.

– O que está havendo? – gritou o sr. Rawls.

– Este menino é perturbado ou coisa assim! Está dizendo que é Chester – gritou a sra. Rawls enquanto o marido avançava para ele.

– Ele é o quê?! – exclamou o sr. Rawls, lançando um olhar à esposa.

Ainda agarrada ao pano de prato, ela o torcia ansiosamente entre as mãos.

– Ele está dizendo que é o nosso filho – confirmou ela.

O sr. Rawls se virou para Chester. Normalmente, ele era um homem muito tímido, mal olhava nos olhos das pessoas que não conhecia bem, mas agora estava colérico e encarava Chester.

– Como se atreve? Seu... seu doente! – Ele espumava de raiva. – Como se atreve a vir aqui e dizer uma coisa dessas? Nosso filho está desaparecido, e você não é nada parecido com ele.

– Mas pai... – pediu Chester. Havia se retraído com a fúria do pai, mas apontou a foto de novo. – Sou eu... sou eu! Não vê que sou eu?

– Saia de minha propriedade agora mesmo, ou vou chamar a polícia. Aliás, Emily, vá ligar para eles. Diga que temos um louco à solta no bairro. – Enquanto a mãe de Chester corria à cozinha, o sr. Rawls pegou um guarda-chuva que estava encostado na parede e o brandiu para Chester. – Sua escória! – rosnou ele. – Atrás de dinheiro para drogas, não é?

– Pai, pai – implorava Chester, estendendo as mãos.

– Saia já daqui... ou, Deus me perdoe... eu vou usar isto em você! – gritou o sr. Rawls.

Mas Chester não se mexeu.

– Muito bem, você pediu! – Quando o sr. Rawls começava a brandir o guarda-chuva para Chester, Drake puxou o menino de lado. Pegando o sr. Rawls pelo pulso, torceu seu braço, obrigando-o a cair de joelhos.

– Eu fico com isto – disse ele enquanto arrancava o guarda-chuva da mão do sr. Rawls, depois girou para Chester. O menino olhava, aturdido, o pai, que ainda esbravejava ameaças, mas era incapaz de se levantar, porque Drake o pegara numa chave de braço. – Dá o fora daqui, Chester – disse Drake. Como Chester não reagia, ele elevou a voz. – Volte para o carro... agora! – ordenou.

Eddie de repente estava ali, carregando Chester.

Drake deitou o sr. Rawls de costas, depois jogou o guarda-chuva pelo corredor.

– Desculpe pelo incômodo. Casa errada – disse ele ao sair, batendo a porta da frente.

Enquanto eles partiam a certa velocidade, Chester estava largado junto à porta do carro. Tremia ao murmurar incessantemente “Não entendo”.

Drake pôs a mão em seu ombro e o menino se encolheu.

– Eles não sabem o que estão fazendo, Chester. Seus pais foram vítimas da Luz Negra... Por isso, não o reconhecem. Não é isso, Eddie?

– Sim, é verdade – respondeu o Limitador, sem hesitar nem por um instante.

– O padrão de comportamento deles foi modificado... Reprogramado, se preferir... E aposto que foram condicionados a entrar em contato com um agente Styx no momento em que você mostrasse a cara – disse Drake. – Eles vão pensar que estão chamando a polícia, mas será um número diferente. Eles não têm consciência do que fazem. Lamento, mas tenho que dizer que os Styx já os pegaram, Chester.

– O que significa que precisamos sumir daqui – disse Eddie, passando, acelerado, por um sinal vermelho.


Capítulo Dezesseis


Will viu o clarão de um raio através dos olhos fechados. Enquanto toda a árvore se sacudia com um estalo de trovão quase simultâneo, ele e o dr. Burrows foram arrancados do sono.

– Esse foi forte – declarou o dr. Burrows, levantando-se e espreguiçando os braços.

– É, outra megatempestade – concordou Will. Além do alcance dos galhos da árvore, onde esperava que o céu estivesse escurecido pela cobertura densa de nuvens, ele viu com certa surpresa que havia luz. – Mas parece ter sido soprada para longe... Devo ter dormido durante o pior dela.

Apesar da folhagem inacreditável da árvore gigantesca acima da base, uma ou outra gota de chuva abria caminho por entre os galhos e caía em Will. Ele ficou espantado ao ver como as gotas terminavam sua maratona, respingando no chão e deixando manchas escuras ao penetrarem na madeira áspera.

– Hora de continuar – anunciou o dr. Burrows. – Mas, primeiro, acho bom tomarmos o café da manhã.

Embora Will estivesse com vontade de voltar a dormir, sua fome levou a melhor. Ele seguiu o pai e andou, trôpego, até a Bergen, que Elliott pendurara por uma corda num galho alto numa tentativa de manter a comida longe das formigas. Will e o dr. Burrows se serviram de uma manga da colheita que Elliott fizera no dia anterior. Não havia sinal dela nem de Bartleby, e Will supôs que ela saíra para caçar.

Sentado de pernas cruzadas junto da mesa, o dr. Burrows escrevia em seu diário e mordia um pedaço de manga. Will sabia que era improvável obter uma resposta se perguntasse ao pai no que estava trabalhando, então se sentou na beiradinha da plataforma. Olhou para a pirâmide por entre os galhos. Sob o sol intenso, a pirâmide e a margem de relva que a cercava cintilavam das recentes monções. O calor já surtia efeito na umidade, transformando-a em nuvens de vapor d’água, varridas por uma brisa ocasional.

– Gozado como nada nunca muda por aqui, não é? – disse Will, ainda não inteiramente desperto e já transpirando de calor. – Quer dizer, sempre tem sol... sempre o mesmo clima, a não ser por essas tempestades, e não há inverno, nem estações, nem nada. É como se o relógio tivesse parado num verão de torrar.

De boca cheia, o dr. Burrows murmurou algo ininteligível.

Will começou a chutar, balançando os pés alternadamente. Lembrava muito os passeios a um parque bem básico em Highfield, quando ele era muito mais novo. Coberto de uma camada de filtro solar, ele sempre ia direto aos balanços na esperança de não terem sido destruídos por vândalos. Mas mesmo que estivessem funcionando bem, a sra. Burrows muito raramente se propunha a empurrá-lo, preferindo folhear suas revistas de cinema e tevê em um banco próximo. Então ele não tinha alternativa a não ser aprender a se balançar sozinho ou ficar sentado ali, enquanto outras crianças eram empurradas por suas mães ou por seus pais.

– Como será que a mamãe está? – pensou Will na última vez que a vira, no restaurante de beira de estrada. – Será que ela e Drake conseguiram? Espero que ela...

– Ah, cale a boca – rebateu o dr. Burrows. Seu rosto ficara arroxeado, e Will percebeu que ele esmagara na mão um pedaço da manga que estivera comendo. O suco pingou enquanto ele se levantava num salto. – Não pode viver no presente? Não consegue aproveitar a incrível oportunidade que lhe foi dada aqui? Você está sempre falando no passado, e isso não é saudável, em especial para alguém da sua idade! – Andou pisando forte até o tronco da árvore que usavam para entrar e sair da base, depois parou. – Neste mundo, nenhum de nós tem sombras – disse, começando a descer para o chão.

– O que isso quer dizer? – murmurou Will para o espaço onde o dr. Burrows estivera, mas sabia muito bem que tinha tocado num nervo sensível quando mencionou a sra. Burrows. Era claramente doloroso para o pai pensar na esposa que o rejeitara quando ele e Will voltaram à Crosta. Mas de maneira nenhuma Will ia dar as costas à mãe, ele vira um novo lado dela, e ela estava constantemente em seus pensamentos. O breve tempo que teve com a mãe o fez perceber, bem no fundo, o quanto a amava.

Embora ultimamente não fosse lá com a frequência que gostaria, Will se viu num ponto reservado perto de uma pequena fonte onde fixou cruzes para homenagear os familiares perdidos. E enquanto ficava ali, deitado na relva e lembrando-se do tio Tam, de Sarah Jerome e de Cal, ele também pensava na mãe e rezava para que ela estivesse a salvo dos Styx. Tinha um lembrete permanente deles por perto porque ele enterrara os frascos do vírus Dominion e da vacina do outro lado da fonte, lacrados dentro de um antigo vidro de remédio para protegê-los da umidade.

Então essa fonte era um local de contradições para ele – de um lado, tudo o que foi bom em sua vida, e do outro, o vírus letal que os assassinos Styx prepararam para cometer genocídio e dizimar a população da Crosta.

Ao contrário do pai, Will não queria esquecer o passado. Sentia-se em dívida com as pessoas que haviam perdido a vida, possivelmente como resultado de uma cadeia de acontecimentos desencadeada quando ele entrou pela porta da Colônia com Chester. Will refletiu se deveria visitar a fonte agora, mas decidiu ajudar o pai. Se o aborrecera, então precisava consertar as coisas entre eles, e oferecer sua assistência era uma maneira segura de fazer isso. Então Will lavou o rosto com a água de um dos cantis, pendurou a Sten Gun no ombro e partiu para o tronco a fim de descer da base.

Atravessou a relva e subia a lateral da pirâmide quando ouviu um som de arrepiar os pelos da nuca. Certo de ter ouvido o ronco de um motor distante, ele parou por um momento. Escutou com mais atenção, depois balançou a cabeça. Se houve alguma coisa, agora parecia ter parado, mas ainda assim ele começou a dar saltos maiores até os níveis acima, tentando freneticamente localizar o pai. Ao chegar à metade da pirâmide, correu pelo nível enquanto varria a clareira com os olhos, caso o dr. Burrows estivesse trabalhando em suas recentes descobertas ali. Contornando o canto no final do nível, finalmente localizou o pai. Estava na extremidade da pirâmide, onde examinava as pedras móveis.

Parecia que o dr. Burrows já superara sua irritação com o filho ao olhar de lado para ele.

– Ah, aí está você – gritou, com a mão em uma das pedras ao empurrar o máximo que ela permitia. – Estou vendo se...

– Pai! Ouviu isso? – gritou Will para ele, apontando com urgência o céu.

– Só um minuto – disse o dr. Burrows, confundindo os gestos do filho com uma saudação e acenando rapidamente. Quando Will o alcançou, o dr. Burrows tinha se apoderado da pedra seguinte na fila e ajeitava sua posição. – Estou tentando uma nova estrat...

Nesse momento, trazido por uma lufada de vento, o som voltou por alguns segundos. Dessa vez Will não teve dúvidas de que o ouvira, embora o dr. Burrows tivesse abstraído tudo o que não fosse as pedras móveis.

– Pelo amor de Deus, deixe isso de lado! Não ouviu nada? – pressionou-o Will.

– Ouvi o quê? – perguntou o dr. Burrows, retraindo a mão das pedras e tombando a cabeça de lado.

Dessa vez não precisou se esforçar muito para ouvir.

Um helicóptero apareceu com estrondo, voando tão baixo que espalhava a água da chuva da copa das árvores. Ele subiu, parando diretamente acima da pirâmide. Com a força de um pequeno tornado, a intensa corrente de ar das hélices soprou no rosto de Will e do dr. Burrows, agitando os detritos ensopados de chuva e a poeira da pirâmide. Pai e filho se agacharam bem, tentando evitar que eles mesmos fossem varridos de lado.

– Mas quem é? – gritou o dr. Burrows, ao tentar engatinhar até a beirada para ver melhor.

– Não, seu idiota! – gritou Will, puxando o pai confuso de volta à lateral da pirâmide, numa tentativa de esconder os dois.

– Mas quem está nele? – perguntava o dr. Burrows.

– Cala a boca! – ordenou Will. Agora que estavam metidos no canto e menos visíveis para qualquer um do alto, Will não tinha uma linha de visão do helicóptero e, de qualquer modo, não se importava com quem estivesse nele. Não havia dúvida de que era uma aeronave militar. E somada ao fato de o dr. Burrows já ter visto um Stuka, sua chegada ao local não devia ser boa coisa.

Entretanto, Will se arriscou um pouco para fora da parede. Piscando contra a poeira e o vento dos rotores, teve um breve vislumbre do piloto de capacete e óculos escuros de proteção. Depois, enquanto o helicóptero rodeava devagar a área, Will viu que a porta lateral estava aberta. Um soldado manejando uma arma de grande porte estava ali posicionado.

Ele ainda olhava quando rolos de corda foram pendurados dos dois lados do helicóptero e se desenrolaram completamente.

Então Will viu outra coisa que fez seu coração parar por um segundo. Atrás do atirador distinguiu as faces descarnadas de Limitadores vestidos com seus característicos trajes de camuflagem. Depois viu um deles mirando o rifle – e apontava diretamente para Will.

– Styx! Tem Styx ali dentro! – balbuciou Will, atirando-se contra a parede e sacando a Sten Gun do ombro. Destravou-a e se preparou para atirar.

Temos que sair daqui!

Will passou os olhos apressadamente pela selva do outro lado. Procurava calcular se teriam alguma chance de atravessar a clareira para chegar lá, quando pensou ter visto Elliott. Ela parecia estar trás de um dos imensos troncos das árvores.

Ele não teve mais tempo para olhar.

Nesse instante, toda uma horda de helicópteros apareceu sobre as árvores, parando em um padrão circular em torno do primeiro. Mantiveram a altitude baixa, pouco acima das copas, com as hélices agitando os galhos e provocando um turbilhão de folhas espalhadas.

Acima do clamor dos imensos helicópteros Will ouviu o estalo inconfundível de um tiro de rifle. Lascas de pedra caíram sobre ele e o pai. Estavam sendo encurralados por um tiroteio preciso. Ele entendeu então que os Styx os queriam vivos – os Limitadores não erravam.

Will lançou outro olhar à selva. Não havia como chegar lá, mesmo que ele e o pai se aproveitassem da baixa gravidade e se atirassem da lateral da pirâmide. A distância era muita – os atiradores de elite Styx teriam muito tempo para pegar qualquer um que fugisse pela clareira. Essa não era uma opção.

O dr. Burrows estava completamente perdido, encolhido contra a parede e agarrado a seu diário com os dois braços, como se só sua conservação importasse. Will olhou novamente o helicóptero bem acima deles. Desejou não ter feito isso, pois pegou as silhuetas escuras de Limitadores contra o céu branco descendo de rapel pelas cordas. Eram seis, todos escorregando velozmente para o alto da pirâmide.

Agindo por impulso, Will apontou a Sten Gun para os soldados Styx, mas choveu uma saraivada de balas. Os tiros eram disparados pelos Limitadores dos outros helicópteros, atingindo o nível a poucos metros dele. Ele baixou a arma e arriou contra a parede. Para que todo esse poder de fogo e tantos soldados?

– Estamos ferrados – murmurou Will para o pai.

Não havia escapatória, e ele se sentia apático, como se toda sua energia tivesse sido drenada.

Ouviu um grito do alto da pirâmide. Era um Styx orientando os outros soldados à plataforma onde ele e o pai ficaram encurralados.

Os Limitadores pousaram.

Agora estavam muito perto.

– Acabou, pai.

Will pôs o braço no rosto e fechou os olhos, esperando pelo inevitável.

Esperando pela captura.

E então o inexplicável aconteceu.

A parede em que estavam espremidos e o piso de pedra abaixo deles cederam.

– Oooopaaaa! – gritou o dr. Burrows.

Os dois mergulharam na escuridão.


– Ei! – exclamou Rebecca Dois, enquanto continuavam a sobrevoar a pirâmide. – Para onde eles foram?

– O quê? – vociferou Rebecca Um de dentro do helicóptero, onde era incapaz de enxergar tanto quanto a irmã. Espremeu-se entre o atirador e a irmã a fim de ter uma visão melhor. – Não me diga que os perdemos! Como é possível?

A primeira onda de Limitadores a chegar ao platô no alto da pirâmide já dava uma busca pelo nível onde haviam estado Will e o dr. Burrows. Outros helicópteros pousavam na clareira, os homens saltando assim que se aproximavam o suficiente do chão. E os latidos de rastreadores ecoavam pelas árvores enquanto seus tratadores começavam a pegar os muitos rastros de cheiro.

– Eles não irão muito longe – disse Rebecca Dois.


Na escuridão ininterrupta, Will rolava sem parar ao cair num declive. Tentou não gritar enquanto seus cotovelos e joelhos se chocavam em vários cantos – percebeu que eram as bordas de um lance de escada, e felizmente cada degrau era relativamente baixo, ou a dor teria sido muito pior.

Ao cair de cara para baixo em um piso de pedra, o ar lhe foi completamente arrancado. Conseguindo colocar os pulmões para funcionar novamente, ele logo procurou por sua Sten, que tinha deixado cair ao descer aos trambolhões. Com a imagem dos Limitadores descendo as cordas ainda fresca nas retinas, Will sabia o quanto era essencial que localizasse a arma.

Mas o que aconteceu?

Os soldados Styx estavam quase em cima dos dois, e por um inacreditável golpe de sorte eles conseguiram escapar.

Mas onde ele estava agora? E onde estava seu pai?

Tendo recuperado o fôlego, rolou de lado e começou a gritar.

– Pai, pai, está aí?

Houve um gemido, e algo bateu no alto da cabeça de Will. Ele estendeu a mão e pegou. Descobriu que era o pé do dr. Burrows.

– Cuidado, pai – avisou e, tateando a perna acima dele, apoiou-se ao lado do dr. Burrows, que estava de costas e clara mente atordoado. – Você está bem? – perguntou Will, sacudindo-o pelo braço.

– Ai! – exclamou o dr. Burrows depois de um instante, em seguida falou, num tom descontente: – Por favor, me solte, Will... Este braço está muito dolorido.

Satisfeito porque o pai não parecia estar gravemente ferido, Will o soltou, tentando colocar seus pensamentos em ordem.

– Essa foi por pouco... Pensei que estávamos lascados.

Sua escapada não foi nada menos do que um milagre, e ele ainda não entendia o que tinha acontecido.

– Entramos na pirâmide, pai! Como você conseguiu decifrar o código das pedras?

– Eu não fiz nada – admitiu o dr. Burrows ao se sentar, apalpando cautelosamente a perna. – E estou ficando velho demais para isso. Meus pobres joelhos.

– Se não foi você, então... então como terminamos aqui dentro? – perguntou Will, tentando ver o que havia na escuridão em volta deles.

– Sei lá – respondeu o dr. Burrows, gemendo ao se levantar e vasculhar os bolsos.

Os instintos que Will aprimorara nos meses que passou no fundo da Terra estavam voltando, e ele bateu palmas, avaliando a extensão do eco resultante.

– É bem grande aqui – observou ele.

O dr. Burrows ainda procurava algo nos bolsos.

– Sim, mas temos que dar uma boa olhada, e para isso precisamos de uma luz. Tem alguma com você?

– Hmmm... Acho que não – disse Will, também se levantando para verificar as calças, embora soubesse que era improvável: ter a permanente luz do dia tornava inteiramente desnecessário carregar um globo luminoso.

– Aha! – disse o dr. Burrows, ao dar com um pequeno cilindro de fósforos que pegara nos depósitos do abrigo nuclear. – Fósforos à prova de vento. Material do bom e velho Exército. Prontinho – declarou ele enquanto tirava um e riscava na base do cilindro.

Will viu que estavam numa câmara, com o teto a uns dez metros. Só duas das paredes eram visíveis à luz bruxuleante lançada pelo fósforo, e naquela bem atrás ele pôde ver a escada por onde tinham caído.

– O chão – sussurrou o dr. Burrows. – Olhe para ele.

Eles estavam em pé sobre o que pareciam formas entalhadas no chão, mas, ao contrário dos relevos simples no exterior da pirâmide, estes eram coloridos.

O dr. Burrows começou a investigar, dando vários passos e baixando o fósforo.

– Acho que é um mapa. Há acidentes, como rios e montanhas, e o que devem ser cidades. Olhe... Certamente, é um mapa! É do mundo exterior! Aqui está a Ásia. E aqui, a Europa. – Ao tentar ver mais do mapa, ele andava de lado tão rapidamente que quase perdeu o equilíbrio. – Todos esses continentes descritos com tanta precisão... Como é possível? – Correu para mais adiante. – E aqui a América do Norte! – Assoviou alegremente. – Não! Então essas pessoas... os Antigos... chegaram lá milênios antes de Colombo!

– Antes de Colombo? – repetiu Will, preocupado demais para assimilar plenamente o que o pai dizia.

– Sim... E conseguiram alcançar todos esses continentes porque não tiveram que navegar pelos oceanos... Vieram de dentro do globo. Tinham o mundo todo aos pés deles!

– Pai, eu preciso de uma luz aqui – disse Will, sua paciência se esgotando com o pai, que tagarelava sem parar, todo animado. Nesse exato momento a prioridade de Will era localizar a Sten Gun, mas não havia sinal dela em lugar nenhum.

– Droga! – disse o dr. Burrows quando o fósforo queimou seus dedos e se apagou. A escuridão os envolveu de novo, e Will o ouviu se atrapalhar com o cilindro.

Com outro fósforo aceso, o dr. Burrows moveu-se pelo mapa na direção da parede mais distante. O que havia nela chamou sua atenção imediatamente. Eram mais entalhes pintados, mas, dessa vez, não era um mapa.

Uma longa procissão estava ali representada. As figuras tinham pelo menos duas vezes o tamanho real e, pelas roupas vistosas e coroas complexas na cabeça, tinham que ser soberanos. Atrás do rei – se fosse verdadeiramente um rei – estava a rainha, carregada em uma liteira. Depois vinham soldados ou possivelmente a guarda real, alguns em bigas, cada uma puxada por quatro garanhões brancos.

Com essa descoberta, até Will esqueceu que tentava encontrar a Sten quando viu o espetáculo. Depois percebeu uma coisa na cena.

– Pai – sussurrou ele. – É o símbolo de meu pingente de novo.

– Sim, está na cártula do governante – disse o dr. Burrows, apontando o painel abaixo da figura real, onde o emblema de três dentes se destacava em ouro, junto de outros pictogramas.

– Não só ali... Está em todo canto – Will o corrigiu, localizando-o nas coroas do rei e da rainha, bem como em um cetro que o rei segurava.

Na verdade, o símbolo do tridente também enfeitava os escudos e as armaduras peitorais de grande parte da guarda real, seu dourado refletindo o que restava da luz do fósforo moribundo do dr. Burrows.

– Extraordinário – sussurrou ele, mas ao avançar pela parede a chama bruxuleou e se apagou.

– Porcaria! Preciso ver mais! – disse ele, procurando outro.

Enquanto imergiam mais uma vez na escuridão, Will despertou para a realidade.

– Pai, é loucura. Não temos tempo para isso. Temos Limitadores lá fora, e eles tentarão descobrir onde estamos. Eles não vão parar. Tentarão de tudo para nos pegar aqui dentro. E Elliott também está totalmente sozinha. Temos que alcançá-la de algum jeito. – A voz de Will ficou abafada quando ele se virou para olhar o escuro atrás dele. – Preciso achar minha Sten Gun. É nossa única arma.

– Poupe-me do sermão, Will – respondeu o dr. Burrows. – Tenho uma caixa de fósforos cheia, e não faz mal nenhum dar outra olhada rápida nessas cenas. Depois vamos achar uma saída. Está bem?

Will não disse nada enquanto o pai tentava riscar outro fósforo. O dr. Burrows não conseguiu acender na primeira nem na segunda tentativa.

– Ah, ande logo – disse ele.

Mas quando finalmente conseguiu, a câmara de repente se encheu de mais luz do que podia vir de um único fósforo.

Will e o dr. Burrows estavam cercados de archotes acesos. E atrás dos archotes estavam o que, à primeira vista, podiam ser árvores, cobertas de uma casca dura.

Isso até Will perceber que elas tinham membros – braços e pernas – que se aproximavam da forma humana. E embora estivessem inteiramente cobertos de casca de madeira escamosa, rostos eram discerníveis por baixo. Will distinguiu bocas e olhos pequenos com pupilas marrom-escuras, que cintilavam à luz dos archotes.

Com um farfalhar, as figuras se aproximaram de Will e do dr. Burrows.

– As á-á-á-árvores de Elliott – gaguejou Will, morto de pavor.


Várias patrulhas de Limitadores tomaram posição pelos quatro lados do platô no topo da pirâmide, enquanto as gêmeas Rebecca andavam atrás deles, inspecionando a atividade no nível do chão. O general Limitador subiu no platô e conversou brevemente com um de seus homens, que lhe passou alguma coisa, depois seguiu diretamente para as meninas.

Ao alcançá-las, ele estendeu uma caixinha preta.

– Primeiro, este é o emissor de rádio registrado no sistema de radar climático. Estava escondido bem ali, alojado em uma fresta – disse ele, olhando atrás das gêmeas.

Rebecca Dois o pegou e examinou o tamanho do fio pendurado.

– Não abrimos para avaliar a tecnologia porque não queremos interromper o sinal – informou o general Limitador.

– Sim, deixe funcionando – concordou Rebecca Um. – É bem provável que Drake esteja por trás deste dispositivo... Deve ter conseguido com um de seus amigos nerds.

– E o que mais? – instou Rebecca Dois ao general Limitador.

– Fizemos uma avaliação dos rastros deixados nos arredores. São quatro jogos no total: três humanos, um dos quais é adulto, e os outros dois de jovens, às vezes acompanhados de um animal, que provavelmente é o Caçador – respondeu ele.

– Faz sentido... Então só estamos lidando com o dr. Burro, Will e Elliott – concluiu Rebecca Dois.

O general Limitador assentiu, depois voltou a falar:

– Os cães estão encontrando vários rastros em todos os pontos cardeais – disse ele, gesticulando para a selva que os cercava. – Localizamos o acampamento dos alvos em uma árvore, próximo da margem da clareira. – Virou-se para o lado e mostrou às gêmeas Rebecca o que queria dizer. – Fica no lado sul.

– Alguma coisa lá? – perguntou Rebecca Dois.

– Comida, água, roupas extras e uma quantidade limitada de munição, mas ainda não encerramos as buscas. Havia um dispositivo improvisado com um fio detonador atravessado na entrada principal, que já desarmamos. O explosivo utilizado no dispositivo era C4... O potente explosivo da Crosta.

– Bate. Também fornecido por Drake, sem dúvida – deduziu Rebecca Um.

– E isto nos diz que Elliott ainda usa seus velhos truques – acrescentou a irmã. – Mas que coisa previsível.

O general Limitador continuou seu relatório:

– Há numerosos objetos... Ossos, moedas, cacos de cerâmica e vidro... que não parecem ter sido desenterrados há muito tempo.

– O dr. Burro – bufou Rebecca Um. – Certas coisas não mudam nunca.

– Também encontramos alguns crânios humanos, três dos quais de aparência bem recente que parecem ter sido empalados em estacas, e um deles possui danos na têmpora consistente com um ferimento à bala, possivelmente infligido à queima-roupa. – O general Limitador olhou para o coronel Bismarck, fora de alcance. – Talvez pertençam aos neogermanos que se perderam aqui.

– Deixemos que nossos amigos descubram por si mesmos. Não é problema nosso – disse Rebecca Um, sacudindo a cabeça com impaciência. – Fale sobre o dr. Burro e Will. Onde estão agora? – perguntou.

– Se me acompanharem – pediu o general Limitador, levando-as do alto da pirâmide ao nível seguinte. – O último avistamento dos alvos foi aqui, neste nível. A poeira levantada pelo helicóptero restringiu a visibilidade, mas depois de alguns movimentos rápidos os dois simplesmente sumiram de vista – reportou. – E os cães foram incapazes de pegar qualquer rastro fresco saindo da área.

As gêmeas digeriam essa informação ao começarem a andar pelo nível.

– Então, tínhamos os dois de bandeja... a céu aberto... E ainda assim, de algum jeito, nós os perdemos – disse Rebecca Um num tom irado.

A irmã bufou entre os lábios, sacudindo a cabeça com censura.

– Levem-nos onde eles estavam – ordenou ela. – Ao local exato.

O general Limitador mostrou o lugar às duas, e a patrulha de quatro soldados designados para proteger as meninas Styx saiu apressadamente de seu caminho.

Rebecca Dois examinou a parede, enquanto a irmã se ajoelhava, passando a ponta dos dedos por uma abertura estreita entre dois blocos de pedra no nível. Estalou os dedos para o Limitador mais próximo, indicando que queria uma faca de combate que estava em seu cinto. Ele a desembainhou e entregou.

– Acha que seus homens podem ter se distraído... Talvez eles não tenham percebido como nossos dois amigos correram pela lateral da pirâmide? – perguntou Rebecca Um, usando a ponta da faca para sondar vários lugares pela abertura, mas incapaz de penetrar muito. – A gravidade mais baixa teria ajudado os dois a fazer uma saída rápida.

– E não há nenhum sinal evidente de uma abertura oculta nesta velharia – observou Rebecca Dois ao olhar a irmã.

O general Limitador pairava, inquieto, atrás das gêmeas Styx. Não gostava que a confiabilidade de seu relatório estivesse sendo questionada.

– E, então, o que me diz? – perguntou Rebecca Um ao general Limitador, mostrando sua insatisfação ao virar o rosto quando se dirigiu a ele.

Ele deu de ombros, confiante de suas informações.

– De três pontos de vista diferentes, em três helicópteros, meus homens focalizaram nos dois alvos. Como sabe, meus homens dispararam em um padrão de contenção, para garantir que os alvos permanecessem em seu lugar. Eles não foram vistos escapando pela selva – declarou com clareza. – E não tenho dúvida de que esta era sua última posição conhecida.

Aparecendo do nada, Cox deslizou e parou junto da parede. Erguendo o manto da face, inclinou sua cabeça disforme e começou a agitar o ar para o nariz com a mão. Farejando ruidosamente, arrastou-se por alguns passos no nível e novamente testou o ar, repetindo a ação até estar diretamente acima das pedras móveis do dr. Burrows. Mas Cox não estava interessado nas pedras. Farejou profundamente uma última vez, como se quisesse ter absoluta certeza.

– Bem aqui, minhas meninas – proclamou ele, raspando o pé no chão como uma galinha antes de dilacerar uma minhoca infeliz com o bico.

Cox estava precisamente onde Will e o dr. Burrows ficaram espremidos na parede ao tentarem se esconder do helicóptero.

– Bem aqui, sinto cheiro de medo... Foi aqui que a presa desceu pelo chão.

– Eu vos apresento Cox... – anunciou Rebecca Um dramaticamente, com um gesto amplo do braço. – ... Melhor do que qualquer rastreador.

A irmã se voltou para o general Limitador, que assentiu para a ordem muda das meninas.

– Traremos a munição – disse ele. – Vamos desentocá-los, mesmo que tenhamos que despedaçar toda esta pirâmide.


As figuras estranhas cercaram completamente Will e o dr. Burrows.

– Pai, as árvores... elas têm armas... E não parecem nada amistosas – avisou Will num cochicho incrédulo enquanto via que elas sacaram espadas e que algumas estavam armadas com lanças.

O ferro das armas cintilava um pouco nas mãos bizarras das figuras, examinadas por Will à medida que se aproximavam. Era como se a pele tivesse crescido tão profusamente que foi erguida de seus dígitos em espirais, tornando os dedos inchados e desajeitados.

– Não entre em pânico... Não faça nada que alarme estes... hmmm... – murmurou o dr. Burrows então, hesitando ao pensar num nome para os seres estranhos – ... Esses bosquímanos.

– Alarmá-los ? – respondeu Will, percebendo agora algo que o fez prestar mais atenção. – Pai, aquele ali está com minha Sten e parece que sabe usá-la! – Will tinha razão. O bosquímano segurava sua Sten corretamente com as mãos desajeitadas e a apontava para Will e o dr. Burrows.

– Hum – disse o dr. Burrows, tentando dar ao filho a impressão de calma. – Sim, eles parecem humanoides... Quem sabe sua aparência se deve a algum tipo de mutação cutânea? E concordo com você que eles sem dúvida parecem ser inteligentes. Terei que me arriscar a uma comunicação com eles.

O dr. Burrows abriu o diário lentamente, para não sobressaltá-los e depois de alguns segundos começou a falar em uma língua que não se parecia com nada que Will tivesse ouvido na vida. As palavras soavam ríspidas e epiglóticas.

Os bosquímanos farfalharam um pouco, mas, tirando isso, não houve reação.

– Talvez minha pronúncia esteja errada, se são mesmo capazes de linguagem – observou o dr. Burrows.

– O que quer que esteja fazendo, continue! – insistiu Will.

O dr. Burrows tentou novamente. Dessa vez não houve farfalhar, mas em algum lugar da roda de bosquímanos veio uma resposta, na mesma língua feia que o dr. Burrows usara.

– Sim, sim, sim! – o dr. Burrows estava fora de si de empolgação, pegando o coto de lápis e escrevendo em seu diário. – Vê aquele que falou? – cochichou a Will, enquanto traduzia a resposta. – Ele, ou ela, disse que... invadimos e se não sairmos do templo... os guardas... ou, mais precisamente, guardiões... irão... – O dr. Burrows olhou nervoso para Will. – Nos matar. Meu Deus, Will, eles vão nos matar!

Os bosquímanos começaram a se arrastar lentamente, aproximando-se dos dois Burrows.

– Posso entrar em pânico agora? – perguntou Will, olhando freneticamente a roda de bosquímanos para ver se havia algum lugar por onde pudessem passar.

O dr. Burrows não deu uma resposta, mas engoliu em seco ruidosamente.

Will teve uma inspiração.

– Os símbolos na parede... Vou tentar uma coisa – cochichou com urgência. Ele colocou a mão por dentro da camiseta e arrancou do pescoço o pingente que o tio Tam lhe dera. Depois o brandiu para os bosquímanos, mostrando-o ao maior número possível deles, como se rechaçasse com um crucifixo uma gangue de vampiros sedentos de sangue. – Rápido... diga alguma coisa a eles, pai... Diga que sou seu governante, seu rei ou coisa assim e que eles têm que nos obedecer e nos deixar ficar aqui.

O dr. Burrows não foi de ajuda nenhuma.

– Hum – murmurou ele apenas, quando um dos bosquímanos investiu, fazendo o pingente voar da mão de Will. Outro deles disse algo que pareceu ríspido, mesmo em sua língua rude.

– Ah! – foi só o que Will conseguiu soltar, percebendo que os olhos dos bosquímanos agora eram ainda mais hostis e que eles erguiam as armas.

– Isso não está adiantando nada – disse o dr. Burrows. – Ele simplesmente o xingou... Chamou-o de ladrão. Agora de jeito nenhum vão nos deixar ficar aqui.

– Muito obrigado, tio Tam – murmurou Will.

Enquanto uma das árvores avançava e erguia a espada, houve um baque maciço, que fez os dentes de Will se chocarem. Toda a câmara pareceu tremer, chovendo poeira nos Burrows e na roda de bosquímanos.

– Mas que diabos foi isso? – perguntou o dr. Burrows.

Alguns pedaços de alvenaria caíram no chão. Depois, um grande bloco de pedra se desprendeu do teto e atingiu a cabeça de um bosquímano um pouco mais baixo. Ele simplesmente tombou para trás. Seu companheiro se virou para olhar, mas nenhum deles foi em seu socorro.

– Madeira? – ironizou Will. A angústia de sua situação atual começava a afetá-lo. Ainda não acreditava que ele e o pai tinham escapado dos Limitadores e da morte quase certa só para se meterem em outra situação igualmente perigosa. Isso é que é ficar entre a cruz e a espada. E embora os bosquímanos agora parecessem recuar um pouco enquanto falavam entre si em diálogos rápidos, ele não via como ele e o pai escapariam e se uniriam a Elliott.

– O que foi isso ? – repetiu o dr. Burrows, piscando para o teto. – Uma explosão?

– Sim, pai – respondeu Will com resignação. – São os Limitadores... Estão tentando abrir um buraco para nos pegar. – Suspirou. – Então, se estas árvores esquisitas não nos matarem primeiro, os Styx matarão. Que ótimo. Não poderia ser melhor.


Sob a gravidade reduzida, a explosão fez com que partes da pirâmide voassem tão longe no céu que parecia que jamais desceriam. E mesmo antes que a fumaça e a poeira baixassem as gêmeas Rebecca saltavam os níveis da pirâmide com o general Limitador colado às suas costas. Ao chegarem ao nível superior, examinaram os danos causados pelos explosivos. As pedras de revestimento com seus entalhes tinham sido inteiramente destruídas, mas a estrutura por baixo ainda permanecia intacta.

O general Limitador não se deixou perturbar.

– Há o contorno de uma abertura – observou ele. – Tom Cox tinha razão. Agora que sabemos onde é, vamos abrir uns buracos na estrutura ao redor e plantar mais algumas cargas. – Gesticulou para seus homens. – Mais uma e teremos o dr. Burrows e o menino.


Da linha das árvores Elliott estivera observando o helicóptero que pairava sobre a pirâmide. Estava na selva quando ouviu o barulho de seu motor e imediatamente correu de volta. Mantendo-se sob a proteção da mata, ela por fim localizou Will e o dr. Burrows agachados no nível superior.

– Oh, não – disse ela. Eles não podiam estar em pior posição, apanhados em um lugar irremediavelmente exposto. E ela estava longe demais para ajudar. Sabia que caso se arriscasse a céu aberto ficaria visível para quem estivesse no helicóptero.

Ela viu Will olhar para seu lado e avançou um pouco, acenando loucamente para chamar sua atenção. Mas ele estava preocupado demais com a máquina barulhenta no alto e não pareceu dar por sua presença. Ela retornou para a selva, verificando se Bartleby estava onde dissera para ele esperar – ele não podia sair correndo pela clareira. O Caçador soltou um miado para que Elliott soubesse que queria se juntar a ela, mas ela balançou a cabeça.

– Vamos derrubar essa coisa do céu – disse ela, tirando o rifle do ombro e passando a alça no braço para estabilizar o disparo. Apontou a mira telescópica para o helicóptero. Embora nunca tivesse visto nada parecido com aquela máquina voadora em sua vida, a primeira coisa que localizou foi o piloto. Não sabia se ele era realmente quem manobrava a coisa, mas pelo menos tinha um alvo humano. E logo ele estava praticamente morto, apanhado bem em sua mira.

Respirando fundo e prendendo o ar, ela estava a ponto de apertar o gatilho quando o helicóptero girou. Pela mira, viu rapidamente um Limitador. Seu sangue gelou. Elliott fez uma careta, pensando então que devia pegar o soldado Styx. Depois viu outra coisa que fez o sangue gelar ainda mais. Uma diminuta figura estava ao lado do Limitador. Elliott podia vê-la com tanta clareza que não teve dúvida nenhuma.

– Rebecca – cuspiu ela, incapaz de acreditar que uma das meninas Styx tivesse sobrevivido à emboscada. – Não pode ser! – Ainda tentava entender esse fato quando outros helicópteros trovejaram no alto. Segundos depois uma saraivada de disparos de rifle caiu em volta de Will e do dr. Burrows, impedindo que fossem a qualquer lugar. Cordas foram lançadas do primeiro helicóptero, e o Limitador começou a descer de rapel para o alto da pirâmide.

– Não posso pegar todos! O que vou fazer? – perguntou a si mesma, baixando o rifle.

Sabia que as chances de retirar Will e o dr. Burrows eram quase nulas, e que ela própria deveria ir para um local seguro, de onde pudesse planejar o que fazer. Dando ordem a Bartleby para que a seguisse, ela avançou pela selva, percorrendo a borda da clareira na direção do acampamento base.

Disparando entre os imensos troncos de árvore, Elliott continuou em movimento até chegar ao acampamento. Ouviu gritos da pirâmide, mas não parou para ver o que acontecia. Em vez disso, pegou alguns objetos para levar e rapidamente ativou um explosivo numa armadilha antes de partir novamente. Disse a si mesma que tomara a decisão certa ao se retirar da área, e qualquer dúvida que ainda tivesse foi completamente dissipada quando ouviu os uivos dos cães rastreadores em seu encalço. Ela refez seus passos várias vezes para deixar rastros falsos e foi diretamente ao córrego, chapinhando no meio, onde os cães não poderiam farejá-la.

No esconderijo, apressadamente pegou algumas pistolas Browning Hi-Power e munição extra que guardara ali. Também colocou o que lhe restava dos explosivos de Drake na Bergen, junto com comida e água suficiente para um dia – se ia sair em campo, teria que poupar forças.

Ao descer as trepadeiras do esconderijo para o córrego abaixo, Bartleby estava onde ela o deixara, parecendo decididamente infeliz. Ela o levou ao mato junto da margem.

– Desculpe – disse ela. – Você vai ficar bem aqui. – Repetiu “Fique aqui” várias vezes, apontando o chão. O Caçador arriou com relutância nas patas traseiras, batendo a cauda, impaciente. Ele sabia que estavam com problemas, mas não entendia por que era excluído da fuga. Seus olhos estavam em Elliott quando ela afagou sua cabeça com carinho. – Não pode enfrentar uma briga com um rastreador. E eu ainda não sei se posso confiar em você com os Styx por perto. Você recebeu a Luz Negra... Lembra o que aconteceu da última vez?

Ao voltar chapinhando pelo córrego, Elliott ouviu um miado triste do Caçador. Ela ficou imóvel. Sentia-se completamente só. Ontem mesmo sua vida parecia perfeita e agora teria que enfrentar um inimigo quase insuperável para salvar seu amigo. Era tão desesperador... Parecia uma causa perdida.

Olhou as árvores imensas dos dois lados do córrego. Nada mudara – a selva era a mesma de um dia antes, a vegetação profusa pulsando de vida – mas, para ela, agora estava diferente. Era um teatro de guerra, um lugar de vida ou morte.

Elliott se permitiu imaginar o que o amigo estaria vivendo naquele exato momento... captura... tortura... morte.

– Will – falou baixinho, tentando não chorar ao pensar nele nas garras dos Limitadores. – Não – disse. – Não posso desmoronar agora... Tem que haver um jeito de sair dessa. – Aprumou-se, endireitando os ombros. – Preciso pensar como você, Drake.


Capítulo Dezessete


– Eles querem que a gente os acompanhe – disse o dr. Burrows, observando como os bosquímanos se comportavam. – Eles sabem quais sãos as condições do lado de fora e vão nos levar a um lugar seguro!

Will ouvia o otimismo na voz do pai enquanto a roda de seres estranhos farfalhava de atividade. Olhou por sobre o ombro quando eles avançavam rigidamente para ele e o dr. Burrows como uma cerca viva animada, arrastando os pés no piso de pedra. Ao mesmo tempo, os bosquímanos da frente também se moveram. E, no meio da roda, esperava-se claramente que os dois Burrows os seguissem.

– Sim – cochichou Will. – Mas para onde vão nos levar?

Com a falange ao redor, eles chegaram ao canto mais afastado da câmara, onde a luz dos archotes revelou uma passagem. Levava a uma escada, que começaram a descer.

Depois de algum tempo o dr. Burrows falou:

– Esta escada continua para sempre. Me parece que vamos terminar em algum lugar abaixo da pirâmide – conjecturou ele, preocupado.

Will não sabia se era verdade ou não, e em alguns minutos ele e o pai descobriram que tinham chegado ao último degrau e estavam novamente numa área plana.

Pela luz bruxuleante dos archotes, Will percebeu que estavam numa espécie de cruzamento. Mas não pararam por muito tempo ali, já que os bosquímanos os conduziram a outra passagem, de paredes adornadas com mais relevos de cores vivas. Will e o pai viram de relance uma cidade litorânea, com um palácio majestoso no centro. O palácio lembrava vagamente o Taj Mahal, com um grande teto abobadado e minaretes finos nos quatro cantos. E, na baía em si, havia uma estátua colossal de um homem de manto de frente para o mar, segurando o que parecia um telescópio.

– Veja a escala deste lugar... É extraordinária o bastante para ser a oitava maravilha do mundo. De uma coisa eu tenho certeza, Will – anunciou o dr. Burrows, virando-se para seu filho.

– Do quê?

– Depois que isto tudo acabar e estivermos fora de perigo – disse o dr. Burrows –, ah, rapaz, vamos ter que voltar aqui.

– Claro, pai – respondeu Will, mas sem entusiasmo. Não pensava em nada além de alguns segundos à frente, que dirá num futuro distante. Tinha uma sensação muito ruim com relação aos acontecimentos. Seus temores se intensificaram quando, repentinamente, os archotes à volta foram apagados, e eles foram de novo tragados pela escuridão. – Por que paramos aqui? – perguntou Will ao pai num sussurro. – Eles não estão se mexendo.

Não havia mais farfalhar em volta deles. Os bosquímanos estavam inteiramente imóveis.

– Vamos ficar bem. Você verá – disse o dr. Burrows ao filho. – Estes são os descendentes de uma grande civilização. Reconhecem o que somos... Que buscamos o conhecimento, como eles. Vão nos tratar com respeito. Não somos uma ameaça a eles e não lhes fizemos mal algum. – Ele genuinamente não parecia estar preocupado com a situação dos dois. Depois de um instante de silêncio, voltou a falar: – Sabe de uma coisa... Esperando aqui no escuro desse jeito lembrei que eu tinha uma coisa para lhe perguntar.

– O que é, pai? – respondeu Will, distante, sem dar muita atenção a ele.

– Tente se lembrar de quando você estava nas Profundezas... Na Grande Planície... Por acaso você topou com uma barcaça de Coprólito no sistema de canais? Com três Coprólitos a bordo?

– O quê? Acho que não é hora nem lug... – começou a protestar Will.

– Não, escute... No início, vocês eram três, não é? Você, Chester e aquele, como é mesmo o nome? Col... Colin?

– Cal – disse Will, com a voz tensa porque achava indesculpável que o pai nem mesmo guardasse direito o nome de seu irmão morto. – Sim, estávamos todos juntos quando vimos uma barcaça de Coprólitos – explicou com um suspiro.

– Eu sabia! Eu simplesmente sabia! – exclamou o dr. Burrows, a voz subindo um tom de empolgação. – Era eu na barcaça, com um traje de Coprólito. Agora que penso naquele momento, tenho certeza de ter visto vocês três! Eu vi você!

– Não! – respondeu Will, verdadeiramente admirado ao se recordar do incidente. Cal observou que um dos Coprólitos agia de um jeito completamente estranho. – Não acredito! Estivemos tão perto e eu nem sabia disso. Se nós soubéssemos...

O dr. Burrows riu.

– Sim, mas estamos juntos agora, e é isso que importa. Will, sinceramente, posso dizer que trabalhar com você neste mundo incrível tem sido, sem sombra de dúvida, uma das épocas mais felizes de minha vida. Se não a mais feliz. Tenho muito orgulho de você.

– Pai – começou Will, dominado pela emoção ao absorver as palavras do pai. Ele não sabia responder a essa demonstração franca de afeto. – Sim, tem sido... Muito... – continuou, mas se interrompeu porque, de repente, houve um farfalhar frenético em volta deles. Ansioso, Will se esqueceu inteiramente do que ele e o pai conversavam. – Por que estão fazendo isso? – perguntou, num sussurro tenso. – Você devia acender um fósforo para podermos ver.

– É melhor não... Pode incendiar um deles. Controle-se, Will – respondeu o dr. Burrows. – Aposto minha reputação como há uma rede subterrânea conectando estas pirâmides, e é para onde vão nos levar, daqui a pouco. Para algum lugar longe dos Styx.

Will ficou ainda mais nervoso quando o farfalhar chegou a um ponto febril.

– Não, não vou ficar parado aqui, sem fazer nada. Me dê os fósforos, pai, agora – insistiu ele.

Mas não recebeu uma resposta do pai. Ouviram um rangido por perto e foram envolvidos por uma luz ofuscante. Ao mesmo tempo, foram impelidos para a frente com tanta força que os dois perderam o equilíbrio, tombando. Mas, em vez de cair na superfície dura que Will esperava, encontraram terreno macio e sentiram a relva sob as mãos.

– Luz demais – gemeu ele, ao tentar abrir os olhos no clarão do sol. Teve um vislumbre da beirada da selva a certa distância.

– A pirâmide! – exclamou o pai, alarmado. – Estamos de novo do lado de fora da pirâmide!

Will girou a cabeça. O pai tinha razão. Eles estavam ao pé da pirâmide. Ele distinguiu umas formas vagas ali – de homens –, que vinham na direção dele. Depois ouviu uma voz que conhecia muito bem, e seu coração quase parou.

Era uma voz que ele pensou que nunca mais ouviria na vida.

– De onde vocês dois brotaram? – gritou ela para eles.

– Rebecca! – ofegou Will.

E então outra voz, idêntica à primeira, mas de uma parte diferente da pirâmide.

– Ah, olha só, acho que é a dupla dinâmica!

– NÃO! – gritou Will, enquanto percebia que não só uma, mas as duas ainda estavam vivas.

Tentando engatinhar para longe, deu com sua Sten Gun na relva. Os bosquímanos a atiraram quando ele e o pai foram ejetados. Agarrando-a, Will girou o corpo e apertou o gatilho. Conseguiu disparar alguns tiros, alvejando às cegas a pirâmide, na esperança de atingir uma Rebecca ou outra. Os tiros ricochetearam para todo lado da construção.

Havia usado metade do pente quando foi atingido na nuca pelo cano da pistola de um Limitador.

Já não havia mais a luz ofuscante.


– Preciso me acalmar – disse Elliott, obrigando-se a andar mais lentamente enquanto os uivos dos rastreadores vinham de todo lado. Ela não queria deparar por acaso com um dos cães de ataque nem cair na emboscada de uma patrulha de Limitadores. Havia coisas demais dependendo dela. Não fora diretamente à pirâmide porque havia algumas coisas que precisava fazer primeiro, para se preparar. Mas agora, ao seguir para lá, ouviu o disparo de uma arma automática.

Parou de pronto.

– Sten... A Sten de Will? – perguntou-se em voz alta, indagando-se se o som realmente tinha se originado da arma dele, ou se os Limitadores estavam usando metralhadoras leves semelhantes, o que teria sido muito estranho. Mas não fazia sentido ter sido Will. Se ele e o dr. Burrows já haviam sido capturados, por que haveria uma troca de tiros agora? Precisava chegar mais perto para descobrir precisamente qual era a situação. Mas como ia fazer isso, com tantos soldados Styx na área? Foi nesse ponto que por acaso olhou os galhos no alto.

– As árvores! Use as árvores! – disse a si mesma. Escolheu um tronco e se impeliu para cima.

Depois de algum tempo, Elliott parou de escalar e começou a se mover paralelamente ao chão, saltando de galho em galho, sempre na direção da pirâmide. Sua ideia funcionava: ela sabia que era muito improvável que um rastreador, mesmo com seu olfato ultrassensível, a detectasse ali em cima.

Pousando no galho nodoso de uma das maiores árvores, ela começou a escalar novamente, cada vez mais para cima, até que um ou outro raio de sol se infiltrou pela folhagem acima dela. Subiu ainda mais e ficou maravilhada ao encontrar borboletas grandes como livros batendo suas asas de cores vivas e lagartas do tamanho de estojos de lápis banqueteando-se nas frutas abundantes.

Em certo ponto, ao se impelir para um galho, ela se viu cara a cara com algo coberto de pelo marrom e revolto. Três olhos piscaram simultaneamente para ela enquanto o animal, tão surpreso como Elliott com o encontro, abriu a boca lentamente. O dr. Burrows o teria identificado como uma espécie de preguiça, a julgar pelas garras em gancho que agora usava para se afastar pesadamente de Elliott.

Ela não tinha tempo para admirar a incrível vida silvestre que encontrava, mas percebeu que no chão só via uma pequena parte do ecossistema. Todo um outro mundo existia acima do solo.

Depois de mais vinte minutos de escalada, ela estava a tal altitude que podia ver o que restava da selva. Escorando-se num galho, mirou o rifle no alto da pirâmide.

E não gostou nada do que viu.


Will recuperou a consciência. Levantou a cabeça e descobriu que era colocado de pé por dois Limitadores.

– Olá, der-ro-ta-do – zombou Rebecca Um dele, rebolando ao se colocar na sua frente.

– Pai? – disse ele, grogue.

– Papaizinho está ali – indicou a menina Styx com um gesto de cabeça.

Will tentou focalizar o pai. Os Limitadores o levaram ao topo da pirâmide, e ele só conseguia ver um grupo de figuras na extremidade do platô. Sua cabeça doía do golpe que levara, e ele também podia sentir o calor do sol em seus braços e ombros. Will olhou o próprio corpo.

– Sim, achei que ia querer se banhar em alguns raios de sol – disse Rebecca Um, forçando um sorriso. – Eu tirei sua camisa. O visual pálido e interessante é ultrapassado.

Will sentia a pele começar a arder – a menina Styx sabia muito bem que ele não tinha proteção natural contra o ultravioleta.

– Sua vadiazinha – grunhiu ele.

– Concordo plenamente – concordou ela. – Mas calculo que já terei evoluído para megavadia quando você e eu terminarmos. Quando você meteu aquela bala em mim, não tem ideia do quanto doeu.

O jeito de falar de Rebecca Um fez o sangue de Will gelar. Ele sabia melhor do que ninguém o quanto ela era vingativa. Devia ter alguma coisa horrível planejada para ele. Todavia, não ia deixar que ela visse como ele estava incrivelmente assustado.

– Chato, chato, chato – respondeu ele com um bocejo exagerado.

Ela ignorou a provocação.

– Will, como você já deve ter deduzido a essa altura, nós, os Styx, agimos de um modo muito Antigo Testamento. – Ela dobrou os joelhos quase como bailarina, depois se endireitou, lembrando a Will das horas de balé que praticava na casa em Highfield, usando o jardim porque não havia espaço no interior. – Acreditamos em olho por olho, dente por dente, coisas assim – disse ela, depois puxou o ar como se estivesse loucamente animada com algo e não quisesse que acabasse tão cedo.

– Do que você está falando? – disse Will, lutando contra o aperto dos Limitadores e tentando soltar o braço para lidar com a garota diante dele.

– Estou lhe dizendo que você não deve se surpreender se eu cobrar de você agora e com juros – continuou ela.

– Como eu disse... chato – murmurou Will.

– Vá em frente, Coxy – anunciou ela abruptamente, depois sorriu para Will.

Ele percebeu alguém que apareceu ao lado dela. Já vira aquele rosto enervante nas Profundezas, os olhos sem pupilas e os vários tumores.

– Tom Cox? – ofegou ele.

– Em carne e osso – concordou a voz distorcida. Depois Cox deslizou até Will, cortando com uma foice o lado da barriga exposta do menino.

Talvez fosse um ferimento superficial, infligido precisamente para não causar muitos danos, mas ainda assim a dor foi torturante. Will gritou até ficar sem fôlego.

– Uma provinha do que está guardado para você, meu querido irmão. – Rebecca Um riu, curvando-se para ele. – Dói? Espero que sim. Imagine isto, só que mil vezes pior, e saberá o que eu passei quando atirou em mim.

O suor escorria pelo rosto de Will enquanto os Limitadores continuavam a segurá-lo com firmeza.

– Sua... sua... – começou ele, mas, incapaz de encontrar uma palavra forte o suficiente para expressar a raiva que sentia, limitou-se a cuspir na cara de sua antiga irmã.

– Animadinho, né? – disse Cox, lambendo o sangue de Will da lâmina muito polida da foice. Parte dele escorreu por seus lábios escurecidos e rachados, as gotas carmim cintilando no sol intenso. – Quer que eu corte fora a língua dele? – propôs.

Enquanto limpava com a manga a saliva de Will em seu rosto, Rebecca Um pensou no assunto.

– Não, talvez mais tarde. Precisamos que ele fale conosco primeiro – disse ela, depois acenou para a irmã trazer o dr. Burrows.

– Will, você está sangrando! O que fizeram com você? – explodiu ele quando lhe permitiram se aproximar do filho. Ao contrário de Will, ele não era contido pelos Limitadores, mas estava na mira da segunda menina Styx, que portava uma pistola da Nova Germânia.

Will viu que o pai ainda abraçava seu diário como se sua vida dependesse daquilo.

– Eu estou bem, pai – respondeu ele secamente.

– Oi, maninho – cumprimentou-o Rebecca Dois ao contornar o dr. Burrows. – Quer facilitar a vida de todos nós e me dizer o que fez com nossos frascos de Dominion? O dr. Burro aqui jura que não sabe nada deles... Ele mente tão mal que acredito que esteja dizendo a verdade. Estão com Elliott?

– Que Elliott? – rosnou Will para ela.

– Por que não nos devolve os frascos, e deixamos vocês em paz com suas pedras idiotas e velhas e os homens-árvores, que evidentemente também não querem vocês.

O dr. Burrows abriu a boca como se fosse falar, mas Will o interrompeu.

– Tá. E vocês vão nos deixar ir? Acha realmente que vou engolir essa? Outra mentira sua? – perguntou ele, revirando os olhos para o céu.

– Tudo bem. Então vamos pelo jeito difícil. Por mim, está ótimo – disse Rebecca Um com frieza. – Vou gostar de cada minuto disso.

Com a foice na mão enrugada, Cox se aproximou de Will.

– Ainda não, Coxy – disse-lhe Rebecca Um. – Aliás, tenho uma novidade para você. Seu amigo Drake tentou fazer uma armadilha no Highfield Common. Então nós eliminamos toda a equipe dele.

– Ele morreu? – perguntou Will em voz baixa. – Não, está mentindo de novo.

– O Homem de Couro quer dizer alguma coisa para você? – rebateu Rebecca Um, piscando para Will ao deixar que o nome entrasse em sua cabeça. – E soubemos que há uma nova moradora da Colônia... Um repolho fininho.

– Celia, o Repolho – intrometeu-se Rebecca Dois.

– Mamãe? – disse Will.

– Minha mulher? – murmurou o dr. Burrows, lento para entender o que ouvia. – O que houve com ela?

– Até parece que você se importa – respondeu Rebecca Dois friamente. – Soubemos que ela tentou resistir ao interrogatório. A Luz Negra fez um bom estrago nela.

– Um estrago e tanto. – Rebecca Dois sufocou o riso. – Na realidade, repolho fatiado é uma descrição melhor... Lembra, Will, daqueles kebabs nojentos que costumávamos comprar no restaurante e você comia de jantar, nos bons e velhos tempos de Highfield?

– Chucrute, sempre – sugeriu Rebecca Dois ao pensar nisso.

– É melhor falar baixo – aconselhou a irmã. – Esses neogerânios podem pensar que você está falando deles.

– Neogerânios? – perguntou o dr. Burrows, olhando os helicópteros estacionados e os soldados reunidos em volta deles. – Quem são? Não são Styx, são?

As duas meninas se calaram ao verem o general Limitador dirigindo-se a elas. Estava acompanhado do coronel Bismark e um de seus homens, que carregava um equipamento volumoso.

– Acho que precisam de nós por alguns segundos – disse Rebecca Um. – Mantenha os prisioneiros aquecidos para nós, Coxy.

– Bem quentinhos – confirmou ele, piscando para o sol ao se balançar de um pé para o outro com expectativa.


Enquanto o coronel Bismarck e o soldado neogermano aguardavam, o general Limitador foi até as gêmeas, apressado.

– Precisam ver isto – disse ele, falando em voz baixa para não ser ouvido por Will e pelo dr. Burrows. Mostrou um saco e esvaziou seu conteúdo na mão enluvada. Havia cacos de um frasco e de uma garrafa de vidro marrom, junto com folhas de mato ressecadas.

– Tampa branca – observou Rebecca Dois, trocando olhares com a irmã. – Mas o que é isto? – Pegou cuidadosamente um rótulo ainda preso a um caco de vidro marrom e o ergueu.

– Está em russo, então deve ter vindo da enfermaria do submarino que vocês encontraram – respondeu o general Limitador. – Arrisco-me a supor que os dois frascos foram mantidos num vidro, envolvidos por um bocado de capim para protegê-los.

Rebecca Um pensou no assunto.

– Então, se só o que resta do frasco com a tampa branca é isso, perdemos a vacina. E não há sinal nenhum de nosso vírus?

O general Limitador continuou seu relatório:

– Não. Nossos rastreadores logo descobriram onde isto foi enterrado no chão. Alguém esteve lá recentemente... Estimamos que nas últimas duas horas. A terra foi cavada há pouco, e a turfa foi recolocada numa tentativa de esconder de nós.

– Então podemos presumir que Elliott tentou pegar os dois frascos, e, ao fazer isso, a idiota quebrou um deles. Ou por acidente ou de propósito. E que ela deve estar com o Dominion agora – concluiu Rebecca Um. Contemplou a tampa branca na palma da mão do general Limitador. – Uma pena, mas não importa muito... Podemos produzir mais vacinas depois de recuperarmos o vírus. – Depois ela olhou para onde o soldado neogermano conectava um grande alto-falante de cor cáqui na ponta de um tripé e para um de seus camaradas, que ligava uma caixa com botões a uma bateria grande. – O sistema de som está pronto? – perguntou, dirigindo-se ao coronel Bismarck.

– Quase – confirmou ele. – Estamos trazendo os outros alto-falantes agora.


Elliott olhava do ponto de observação no alto da árvore quando ouviu a voz amplificada:

“Elliott... Não sei se nos tem no visual, mas sabemos que estará ouvindo.”

Foi tão alto que assustou um bando de pássaros, que voaram de uma árvore próxima. Elliott focalizou a gêmea Rebecca que segurava o microfone. Uma gama de alto-falantes como megafones tinha sido instalada no topo da pirâmide, não muito longe de onde Will e o dr. Burrows eram mantidos presos.

Elliott estivera observando Cox atacar Will com a foice, e seu dedo apertou o gatilho. Mas não disparou, sabendo que deveria deixar as coisas se desenrolarem um pouco mais, talvez uma oportunidade aparecesse. Se Will e o dr. Burrows se mexessem, ela talvez pudesse pular e resgatá-los. Sabia que os Styx não os perseguiriam de helicóptero, não antes de terem nas mãos o vírus Dominion. Nesse meio-tempo, ela pensou que era improvável que algum dano real fosse infligido aos dois. Não enquanto as gêmeas Rebecca tentassem negociar e precisassem de dois reféns como trunfo. E os instintos de Elliott lhe diziam que ela não teria que esperar muito tempo para ouvir qual era o acordo. Sempre havia algum acordo com essas duas meninas Styx conspiradoras.

Elliott assentiu consigo mesma quando uma das gêmeas continuou: “Traga-nos o vírus Dominion e os três serão poupados. Você tem cinco minutos para nos dar um sinal de que concorda com isto... Só o que precisa fazer é disparar sua arma duas vezes. Depois queremos o vírus Dominion aqui na pirâmide em uma hora. É bem simples.”

– Sei, sei – murmurou Elliott.

“Para mostrar que estamos falando sério, seu namorado aqui, com esse bronzeado encantador, fará um karaokê... Especialmente para você”, disse Rebecca Dois.

Elliott viu a gêmea cobrir o microfone com a mão para falar com Cox, em seguida os dois se aproximaram de Will. Ao se postar diante dele, a gêmea Rebecca falou no microfone de novo: “Elliott, queremos que escute isto. Chama-se O Rap dos Nove Dedos.” A gêmea riu, depois estendeu o microfone para Will.

“Fique longe daqui, Ell...”, ele conseguiu soltar antes que um dos Limitadores apertasse com o braço seu pescoço.

– O que eles estão aprontando? – perguntou-se Elliott. Via que o dr. Burrows gesticulava loucamente e suplicava às gêmeas Rebecca, mas as duas o ignoravam. Um dos Limitadores que segurava Will pegou seu braço e o estendeu. Will lutava, tentando se livrar do soldado, mas era inútil – o Limitador era forte demais.

“Se ainda não entendeu, vamos cortar o dedo dele”, anunciou a gêmea Rebecca. “E a cada dez minutos que você demorar para aparecer aqui, ele vai perder outro.”

– Ah, meu Deus! – Elliott soltou o ar. Não podia ficar ali parada, vendo Will sofrer daquele jeito. Sabia que as gêmeas Rebecca não deviam ter a mais leve intenção de deixar que um deles ficasse livre – não era assim que os Styx cuidavam das coisas. Ela se lembrou do momento na Grande Planície, nas Profundezas, quando ela e Will pensaram em pôr fim ao sofrimento de Drake atirando. Ela não conseguiu dar o tiro, mas agora estava preparada. Mirou na cabeça de Will, com o dedo postado no gatilho.

Cox pegou a mão de Will e ergueu a foice acima da base do dedo indicador.

– Não! Eu não posso! – exclamou Elliott ao ver o rosto de Will se contorcer de medo.

Quando ele abriu a boca para gritar, ela mudou de alvo e apertou o gatilho.


Capítulo Dezoito


Todos na pirâmide ouviram o distante disparo de uma arma. Houve um retardo de fração de segundo antes que a bala acertasse seu alvo.

O rosto de Cox explodiu com o som de um melão muito maduro sendo aberto. O manto sujo sobre sua cabeça inflou como se o vento o tivesse apanhado de repente. Ele oscilou sobre os pés por um instante, depois tombou para trás e a foice caiu de sua mão.

Todos com treinamento militar se atiraram no chão ou se agacharam, deixando apenas as gêmeas Rebecca e o dr. Burrows, perplexo, ainda de pé.

– É bom ter notícia de você, Elliott – disse Rebecca Dois no microfone ao olhar o corpo a vários metros dela. A gêmea estava completamente calma ao se aproximar e se curvar para pegar a foice. – Pobre Coxy. Isso foi gratuito. E também estou muito decepcionada com você, Elliott, porque eu tinha certeza de que conseguiríamos chegar a um acordo. Nós duas queremos o...

Rebecca Dois foi interrompida por um segundo tiro da selva. O contingente militar reagiu novamente, e soaram disparos dos Limitadores na base da pirâmide.

– Alguém atingido? Alguém se feriu? – gritou o general Limitador várias vezes, mas todos estavam intactos.

Os olhos das meninas Styx se encontraram, e Rebecca Um riu.

– Acho que foi o segundo tiro que estávamos querendo. Imagino que Elliott tenha nos dado o sinal de que temos, sim, um acordo.

Rebecca Dois se juntou à irmã nos risos.

– Imagino que sim. É muito divertido, mas não podemos deixar que essa falta de educação fique sem castigo. – Ela pegou o microfone e falou nele.

– Muito bem, temos um acordo, mas foi muita grosseria sua. Você matou um de nossos amigos sem nossa permissão... E, assim, alterou os termos do acordo. E, estou avisando, se está pensando em atingir mais alguém aqui, vamos executar Will e o dr. Burro. – Ela respirou fundo. – Muito bem, o novo acordo é de que vamos fazer a troca por um dos reféns... Repito... Um dos reféns, e estou apostando que você quer o Toupeira aqui, a não ser que tenha desenvolvido uma queda por homens mais velhos. Damos nossa palavra de que cumpriremos o novo acordo. Basta vir com o vírus, está bem?

O dr. Burrows pareceu se recuperar do choque do tiro em Cox.

– Isto é inteiramente desnecessário – exortou ele às gêmeas Rebecca. – Podemos conversar antes que mais alguém perca a vida? – Olhou o filho, que era mantido de joelhos. Os olhos de Will estavam arregalados de medo.

– Quer conversar? – disse Rebecca Um, numa voz que parecia algo saído de um desenho animado quando ela abriu e fechou a mão erguida para imitar uma boca batendo. Depois baixou a mão e voltou à sua voz normal. Seus olhos eram frios e sérios. – Talvez nós não queiramos conversar com você – acrescentou ela. – Porque você é muito velho e chato.

– Não, eu falo sério... Sei que podemos entrar em acordo. Me dê o microfone e vou convencer Elliott a trazer o frasco para vocês – ofereceu-se o dr. Burrows.

Will encontrou sua voz.

– Não faça isso, pai. Por favor. Não sabe com o que está lidando.

O dr. Burrows estava decidido ao se aproximar de Will e colocar seu diário no chão diante dele.

– Cuide disto para mim. – Depois pegou o microfone da mão de Rebecca Dois e falou. – Está ligado? – perguntou, com a voz retumbando na selva.

– Está ligado – respondeu Rebecca Dois num tom de enfado.

O dr. Burrows continuou:

– Muito bem. Elliott, sou eu. Quero que faça exatamente o que vou lhe dizer. – Ele hesitava, sem saber o que dizer.

– Diga a ela que vamos executar um de vocês – disse Rebecca Um despreocupadamente, examinando as unhas.

– Eu não faria tal coisa! – rebateu o dr. Burrows, bem no microfone. – Isso é tolice. O que se pode conseguir com isso?

– Vingança. Vamos nos vingar por causa do que ela fez. Caso não tenha percebido, Elliott abateu o pobre Coxy. Ela machucou um dos nossos camaradas e não gostamos nem um pouco disso – continuou Rebecca Um com a voz dura. – Ande... Diga a Elliott o que acabamos de lhe dizer.

O dr. Burrows soprou pelos lábios, sem acreditar.

– Ah, está bem. Se vai matar alguém, que seja eu – ofereceu-se ele, sem levar a ameaça a sério.

Will gritou para o pai ao ver a mão de Rebecca Dois com a pistola começando a se mover.

– Pai, pelo amor de Deus, devolva o microfone a elas e pare de...

– Não, filho, já estou farto deste faz de conta. Elas não estão falando sério. Elliott trará o vírus para cá, e todos poderemos seguir nossa vida. O trabalho que estamos fazendo juntos é muito importante para que essa bobagem nos atrapalhe. – Ele levou o microfone à boca. – Elliott, acabo de dizer a elas que podem me matar, já que um de nós tem que morrer. Sei que elas estão blefando, então...

– Não estamos, não – disse Rebecca Dois.

Ela levantou a pistola e, sem piscar, esvaziou-a nas costas do dr. Burrows.

Os vários tiros foram transmitidos pelo sistema de som, reverberando pela selva como se um colosso pisoteasse um tambor.

Por um momento o dr. Burrows permaneceu de pé, oscilando.

– Will? – disse ele, ofegante.

Depois suas pernas se dobraram e ele caiu para a frente.

– Ah, não! Pai! PAI! – gritou Will, livrando-se da mão dos Limitadores e caindo por cima do diário do pai. Estendeu a mão para onde jazia o dr. Burrows. – NÃO!


Capítulo Dezenove


Will não estava em condições de perceber os acontecimentos à volta. Estava deitado junto ao corpo do pai, que ficou onde tinha caído. Ainda sem camisa, ele não pareceu se importar com o sol nos ombros. Na realidade se afastara apenas uma vez do lado do pai, para pegar os óculos do dr. Burrows, que voaram de seu rosto depois dos tiros. Will agora os segurava em uma das mãos, com o amado diário do dr. Burrows na outra.

De tempos em tempos, sacudia a cabeça. Simplesmente não conseguia acreditar no que acontecera. Menos de uma hora antes eles estavam dentro da pirâmide e o pai tagarelava com entusiasmo que voltariam para um exame apropriado dos murais que haviam descoberto.

Podia ser incerto, mas ainda assim era um futuro, e nele o pai teria um papel importante. Tudo isso se acabou com a morte do dr. Burrows. Todo o compromisso, a paixão e a energia que o pai revelara em sua obcecada busca pelo conhecimento, em geral com pouca consideração pela própria segurança, tudo foi interrompido no milissegundo em que a menina Styx apertou o gatilho.

Olhando de lado o céu, Will percebeu que tudo ia continuar sem seu pai; o tempo ainda seguia seu caminho inexorável sem que ele estivesse presente para testemunhar.

Nada mudou.

Tudo mudou.

Ele chorou no início, mas já não tinha lágrimas nem qualquer interesse pelo que aconteceria a partir dali. Um único Limitador estava à sua esquerda, para vigiá-lo, enquanto as gêmeas Rebecca passaram a um nível mais abaixo na pirâmide.

Ele ouviu passos constantes de alguém se aproximando por trás, mas não se virou para ver quem era. Se as gêmeas queriam voltar para torturá-lo ou matá-lo, não havia nada que ele pudesse fazer. Ele tinha poucas dúvidas de que o fariam, quando fosse conveniente para elas.

– Cubra-se com isto – disse uma voz de homem, e uma toalha verde foi colocada nos ombros de Will. – Caso contrário, terá uma insolação. – Uma segunda toalha caiu ao lado dele, junto com um cantil de alumínio, que fez um ruído de que estava cheio de água ao cair em cima da toalha. – Seu ferimento ainda está sangrando... Talvez queira limpar e fazer um curativo com isto, ou die Fliegen... as moscas... vão aparecer.

A voz era eficiente e falava inglês com um sotaque que de algum modo parecia muito correto e antigo, como nas gravações de arquivo da BBC que o dr. Burrows costumava ouvir em Highfield. Não parecia soar certo para Will. Só agora ele se virou para ver quem era. Protegendo os olhos, viu a cara do coronel Bismarck, seu bigode militar e os olhos cinza e gentis.

– Eu também vi meu pai morrer – disse o coronel Bismarck, endireitando os ombros ao respirar fundo. – Eu tinha mais ou menos a sua idade. Estávamos em uma cidade fortificada do outro lado do mar quando ela foi tomada por piratas. A maioria dos colonos foi abatida, só escapei porque me escondi nas vigas do telhado de nossa casa. – Ele se conteve, como se estivesse falando demais, depois bateu os saltos de sua bota de couro marrom com uma curta mesura. – Aceite meus pêsames.

Will viu o homem caminhar até o alto da pirâmide, depois se virou para o pai.


Por insistência do general Limitador as gêmeas Rebecca tiveram cobertura na descida seguinte da pirâmide. Ele estava preocupado com a segurança das duas se elas continuassem no alto, onde ficariam sob a mira de Elliott.

Um por um, os grupos de busca Styx fizeram seus relatórios ao general Limitador. As patrulhas de quatro homens, a maioria usando cães rastreadores, seguiram padrões de busca precisos na selva, mas voltavam sem nenhuma notícia do paradeiro de Elliott.

As gêmeas Rebecca entreouviam esses relatórios enquanto o coronel Bismarck se aproximava delas.

– Meus soldados estão de prontidão, se quiser mobilizá-los... basta me dizer – disse ele a Rebecca Um, indicando com um gesto de cabeça os soldados na clareira abaixo.

Até então os Limitadores haviam feito todo o trabalho, enquanto os soldados da Nova Germânia ficavam ociosos. Rebecca Um olhou para onde ele indicava. Um punhado de seus soldados recebera a tarefa de guardar os helicópteros, mas os demais se protegiam do sol no abrigo das árvores à margem da selva, onde se sentavam em roda, jogando cartas e fumando.

– Obrigada. Veremos como isso se desenrola – respondeu a menina Styx, mas continuou a encarar o coronel, como se sentisse que ele quisesse dizer mais alguma coisa.

Ele franziu o cenho.

– Importa-se se eu lhe disser uma coisa?

– Vá em frente – respondeu ela.

– Em minha opinião, vocês agiram precipitadamente quando atiraram no pai. Deram sua palavra sobre a troca, mas depois a traíram.

Rebecca Um ajeitou o cabelo preto e liso com a mão. Respeitava aquele homem e estava preparada para perder algum tempo lhe explicando.

– Não, para ser correta, Elliott alterou as regras quando tirou a vida de um dos nossos. O que ela fez com Coxy não podia passar em branco, sem represália.

O tom do coronel ficava mais enérgico e mais convicto ao falar; ele, claramente, acreditava que era uma questão de princípios.

– Nós não teríamos nos portado como vocês. Pertencemos à Ordem Bayard e temos orgulho de nossas origens prussianas. Seguimos um código moral rigoroso, dentro ou fora do campo de batalha. Ehre vor Allem... A honra acima de tudo. Essa menina na selva baleou seu camarada porque vocês estavam prestes a ferir o companheiro dela. Você lhe deu motivos para fazer o que fez. – Uma mosca zumbiu por seu rosto, e ele a afugentou ao continuar: – Então, por que agora pensa que ela vai acreditar em alguma coisa que você disser?

Rebecca Um assentiu.

– A menina Elliott não deve ser subestimada. Ela viveu num dos ambientes mais perigosos imagináveis... Ela é jovem, mas é uma sobrevivente, uma combatente astuciosa e habilidosa. Para conseguir levá-la aonde nós queremos, temos que elevar os riscos... Precisamos ameaçar alguém que realmente importe para ela. Precisamos encurralá-la, como um roedor faminto, porque, assim, ela começará a ter atitudes previsíveis. Quando ela pensar que não tem alternativas, vai se esconder na selva ou pensar em algum plano. No caso do primeiro, vamos caçá-la, e se for o último, ela terá que fazer contato... E, então, nós jogaremos com ela. Seja como for, venceremos a batalha – disse Rebecca Um. O coronel estava prestes a falar novamente quando ela girou para o general Limitador. – Estamos perto da hora das bruxas, não é mesmo? – perguntou. – A hora limite deve estar próxima.

– Faltam cinco minutos – disse ele, consultando o relógio.

– E, então, adeus, Will Burrows – disse Rebecca Um, esfregando as mãos. Voltou-se novamente para o coronel: – Quando se trata dos que se opõem a nós, acreditamos em tolerância zero. Não fazemos concessões...

Houve uma explosão trovejante na selva, do outro lado da pirâmide. Folhagem e galhos quebrados foram arrancados das árvores e lançados ao céu.

– O que foi? – gritou Rebecca Dois. – Droga! Não enxergamos nada daqui.

– Sigam para o lado norte – gritou o general Limitador para algumas patrulhas de Limitadores, que saíam da linha das árvores.

– Venha. Teremos uma vista melhor lá de cima – disse Rebecca Um.

As gêmeas giraram como se estivessem prestes a subir ao topo da pirâmide.

– Não, não é uma boa ideia – aconselhou-as o general Limitador. – Isto pode ser um ardil para levá-las a céu aberto novamente. É melhor que fiquem neste nível.

As gêmeas aquiesceram, mas correram pelo piso da pirâmide. Contornaram o canto e estavam a meio caminho do trecho seguinte quando houve uma segunda explosão. Mais folhagem explodiu no ar, seguida de um estalo de árvore caindo na clareira. Dessa vez foi muito mais perto e ao sul da pirâmide – do lado que as gêmeas Rebecca tinham acabado de deixar.

– Parece uma dança das cadeiras. – A Rebecca Um fechou o rosto enquanto elas derrapavam, paravam e davam meia-volta.

Enquanto os Limitadores corriam para diferentes lados abaixo, as gêmeas Rebecca refizeram seus passos. O general Limitador ainda estava no mesmo lugar quando elas chegaram.

– Não há dúvida de que é Elliott – disse-lhes ele. – Fazendo truques de salão com seu C4.

– Mas que exibidinha. O que ela espera conseguir com esse teatrinho? – disse Rebecca Um.

– Por que não pergunta a ela? – respondeu Rebecca Dois, apontando para a pequena figura que andava decididamente para a pirâmide, vindo do sul. – Lá vem a Bebê dos Esgotos original em pessoa.

Elliott parecia estar desarmada. Tinha a Bergen às costas e estendia uma das mãos, segurando algo.

– Que gentileza sua se juntar a nós! – gritou Rebecca Um alegremente, depois adotou um tom frio. – Agora pare bem aí!

– Não me diga o que fazer! – retorquiu Elliott, enquanto os Limitadores na clareira se reagrupavam e começavam a se reunir em volta dela, com os rifles apontados para a garota. – E diga a seus valentões que, se um deles chegar perto demais, vou soltar isto. E... – Ergueu o punho bem no alto. – E... bangue! – disse, com um sorriso malicioso se formando nos lábios. – O explosivo em minha mochila vai detonar, e vocês podem dizer adeus a seu vírus. Enrolei o frasco nuns bons dez quilos de explosivo.

– O que aconselha? – perguntou Rebecca Dois pelo canto da boca ao general Limitador. – Abatê-la com um tiro na cabeça?

– Se fizermos isso, e ela estiver usando um detonador do morto, sua mão vai relaxar e o C4 explodirá. Como diz ela, nosso vírus será incinerado – respondeu ele.

– Detonador do morto? – repetiu Rebecca Um.

– É um mecanismo ativado por falha – explicou-lhe o general Limitador. – Se ela perder o controle motor por um segundo que seja, sua mão solta o detonador e o contato é feito. É o preferido dos homens-bomba.

– Então vamos descobrir o que ela quer – decidiu Rebecca Dois. – Venha cá para cima! – gritou à menina.

Elliott andou com passos tranquilos para o lado leste da pirâmide, depois usou os degraus para subir – não queria se arriscar a saltar pelos níveis, poderia escorregar e soltar o gatilho.

As gêmeas Rebecca, o general Limitador e o coronel Bismarck a esperavam no alto da pirâmide quando Elliott chegou lá. Ela mal os olhou, indo diretamente a Will.

– Me desculpe – disse ela numa voz enternecida ao se colocar ao lado dele.

Ele sacudiu a cabeça para olhar para Elliott, piscando como se acordasse de um sono profundo.

– Elliott! O que está fazendo aqui? Você devia ter fugido – disse ele com a voz rouca. – Sabe que não podemos vencer.

Como Elliott não dava resposta alguma, ele deu de ombros levemente, depois virou o rosto.

Por um momento ela continuou ao lado dele, olhando o dr. Burrows, prostrado de rosto para baixo, numa poça cada vez maior de sangue. Depois girou o corpo com uma expressão decidida. Semicerrou os olhos para as meninas, depois para o general Limitador, enfim permitindo que caíssem no coronel Bismarck.

– Mas quem diabos é você? – exigiu saber ela.

– Sou um coronel do exército da Nova Germânia – respondeu ele.

– Então as máquinas voadoras são suas. Como se misturou com esses açougueiros... Esses assassinos? – perguntou Elliott. E continuou, sem lhe dar tempo para responder: – Quero que mande um de seus homens trazer um curativo e cuidar desse ferimento – disse, inclinando a cabeça para Will.

– Vou chamar um médico – confirmou o coronel Bismarck, já avançando para a beira da pirâmide.

– De jeito nenhum! – interveio Rebecca Um. – Fique onde está, coronel.

– Ah, francamente – retorquiu Elliott. – Você não está em condições de...

– Nada... Eu repito... Nada acontece antes de fecharmos um acordo – interrompeu-a Rebecca Um.

Elliott olhou as duas dezenas de Limitadores espalhados pela lateral do platô, todos esperando ordens para atacá-la. Eram como molas retraídas, prontas para explodir em ação. Seu número aumentava cada vez mais enquanto outros soldados Styx subiam pelas laterais da pirâmide. Apesar de aquelas caras secas, tão cheias de violência, serem apavorantes, Elliott sacudiu a cabeça com uma risadinha abafada.

– Ah! Olhe só para vocês. Estão doidos para me matar, não estão? Mas a situação agora está invertida... Eu tenho a vida de vocês bem aqui... bem na palma de minha mão – declarou ela, erguendo o punho. – Se eu soltar isto, cada um de nós explodirá para o além. – Mantendo uma distância segura dos soldados Styx, desfilou na frente deles, agitando o punho em suas caras.

– Está se divertindo demais com isso – disse Rebecca Dois. – Muito Styx de sua parte. Aliás, você nos disse que seu pai era um Limitador, mas não sabemos se acreditamos em você. Quem era ele, exatamente?

– Ora essa, era o Mosca – respondeu Elliott com um brilho de malícia nos olhos.

– Não, não pode... – começou Rebecca Dois.

– Meu pai está morto e não tente me distrair – disse Elliott, diretamente à gêmea.

– Você não tem coragem de explodir a si mesma – contra-atacou Rebecca Um.

– Não? – respondeu Elliott. Sem hesitar nem por um segundo, abriu o dedo mínimo. – Bom, esse porquinho aqui tem. Ele está entediado e quer sair para brincar.

Fez-se completo silêncio enquanto o sol batia no alto da pirâmide. Todos estavam hipnotizados por Elliott, que esticava o segundo dedo.

– Ah, olhe só isso... Outro porquinho se juntou a ele – disse ela simplesmente. – Podem ver o dispositivo agora? – Espiava o objeto preto visível em sua mão, agora que retirara dois dedos. – E acho que está se esquecendo do que aconteceu no submarino da última vez que nos encontramos, não é? Lembra que armei uma carga dos explosivos de Drake? Eu não hesitei na época e sei que não hesit...

Will escolheu esse momento para falar.

– Faça isso, Elliott! – gritou ele, sem se incomodar em se virar. – Frite essas piranhazinhas.

Elliott e Rebecca Um se olharam nos olhos com uma expressão firme.

– Como eu estava dizendo, você não está em condições de ditar os termos – rosnou Elliott.

Rebecca Um não respondeu.

– Mas isso é uma novidade. Eu não ouvi uma de suas respostinhas cretinas? – provocou-a Elliott. – Um rastreador comeu sua língua?

De trás da irmã, Rebecca Dois olhava o fio enrolado no braço de Elliott, que ia de seu punho cerrado à Bergen. Ela assentiu.

– Vamos nos acalmar. Pode chamar um médico para Will – disse ela a Elliott.


Capítulo Vinte


Quando Drake saiu da área do quarto para voltar à sala principal do apartamento do depósito, Eddie estava à mesa, trabalhando em um dos soldadinhos de chumbo. Olhava por uma grande lente de aumento instalada em um braço retrátil ao pintar cuidadosamente o soldado, mas parou no momento em que ouviu Drake entrar.

– Como está o Chester? – perguntou ele.

– Nada bem – respondeu Drake. – Eu o avisei sobre qualquer aproximação dos pais. Nunca há um final feliz.

Eddie assentiu ao empurrar de lado a lente de aumento.

– Será uma boa hora para falarmos de como vamos agir a partir de agora? O aparecimento de Chester na cena alterou nossos planos, e meu povo, sem dúvida, fará o que puder para nos encontrar, então, há uma pressão a mais. – Eddie pousou o pincel no prato que usava como paleta e limpou a tinta da mão. – Quero cumprir meu lado do acordo e ajudar você no que pretende fazer, depois precisamos ir atrás de Elliott.

– Gozado você dizer isso... Estou armando umas coisas e tenho uma reunião agora mesmo – respondeu Drake ao olhar o relógio de pulso. – Preciso falar com um homem sobre uma lesma.

Eddie o olhou com desconfiança.

– O quê? – perguntou.

– Meu gênio dos pesticidas está preparando algo especial para mim – respondeu Drake, pegando a chave do carro no bolso e a sacudindo na mão. – Volto em no máximo duas horas. – Virou-se para sair, depois parou. – E esta noite seria útil se você me mostrasse o caminho para descer à Cidade Eterna, que mencionou. Perto da catedral.

– St. Paul ou Westminster?

– Pessoalmente – disse Drake –, prefiro o som da entrada da Westminster.


– E o que vamos fazer agora? – perguntou Rebecca Um em voz baixa ao general Limitador.

Do outro lado da pirâmide Elliott estava ajoelhada ao lado de Will, que mal parecia perceber o jovem médico que limpava seu ferimento e colocava um curativo. E Will só cooperou e vestiu uma camisa e um chapéu neogermânicos porque Elliott insistiu. Mas, embora Elliott agora lhe falasse, ele estava inteiramente alheio, como se não ouvisse uma palavra do que ela dizia.

– Suas opções são limitadas, e ela sabe disso – respondeu o general Limitador à gêmea Styx. – No momento em que ela entregar o frasco, perderá seu trunfo, a não ser que planeje levar um refém para ter uma saída segura daqui.

– O quê... Como uma de nós? – disse Rebecca Dois, trocando olhares com a irmã, e sorriu. – Se ela escolher uma de nós para acompanhá-la, então sabe exatamente o que fazer. Mate Elliott e Will, não importa quem mais vá se ferir. Todos somos descartáveis quando se trata de recuperar o vírus.

– Sei disso – confirmou o general Limitador.

– Ah, lá vamos nós... Alguma atividade – observou Rebecca Um.

Elliott tentava colocar Will de pé, mas só na segunda ou terceira tentativa ele se levantou, trôpego. Ainda agarrada ao detonador, ela usou a outra mão para conduzi-lo.

Ao parar diante das gêmeas Rebecca e do general Limitador, Will tinha um olhar distante. Segurando o diário do pai junto ao peito, ele se voltava sem cessar ao corpo do dr. Burrows. Parecia que toda a energia tinha se esvaído dele, como se nem mesmo conseguisse invocar qualquer animosidade contra as gêmeas Styx.

– Estamos ficando muito cansados de zanzar por esse monte de pedra velha – disse Rebecca Um. – Nos diga qual é o trato.

– Dizer qual é o trato? – repetiu Elliott, rindo com secura. – Não confio em absolutamente nenhum Styx – disse. – Ei, você! Aqui! – gritou de repente para o coronel Bismarck.

Ele imediatamente fez o que ela pediu.

– Não sei nada de você, nem de onde vem, mas quero que testemunhe isto – disse ela.

O coronel acenou com a cabeça.

– Estou disposta a fechar um acordo, mas tenho minhas condições – continuou Elliott. – Eu lhes darei seu Dominion...

– Primeiro nos diga uma coisa... O que houve com a vacina... O frasco de tampa branca? – intrometeu-se Rebecca Um.

– Eu não consegui tirar a tampa do vidro de remédio. Estava com pressa, então o quebrei com uma pedra. Exagerei um pouco na força, mas, para sorte de todos nós, só o frasco da vacina se danificou – explicou Elliott. – Como eu estava dizendo antes de você me interromper, estou disposta a entregar o vírus Dominion se...

– Não! – explodiu Will. – Não, não vai porra nenhuma! – Ele parecia consciente do que acontecia pela primeira vez desde a morte do pai. – Elas vão levar para a Crosta e usá-lo!

– Deixe isso comigo, Will – disse Elliott.

– Você não pode estar falando sério! Não vai dar o frasco a elas, vai? – Will agora pegava fogo, como se Elliott fosse a inimiga, e não as gêmeas Rebecca. Deixando cair o diário do pai, avançou para ela.

Elliott recuou um passo, chocada com a ferocidade de sua explosão.

– Will...

Mas ele não reduziu o passo.

– Solte o gatilho agora, Elliott! Destrua o Dominion! Lembra o que Drake disse que tínhamos que fazer? Elas – apontou ele com o polegar para as meninas Styx – não vão colocar as mãos sujas nele. Todas essas pessoas... Drake e minha mãe... morreram tentando impedi-las – vociferava. – E nós também vamos morrer!

Enquanto Elliott se afastava outro passo, ele investiu, derrubando-a no chão. Agora por cima dela, segurou-a pelo braço.

– Socorro! – gritou a menina, enquanto Will concentrava todos os esforços em sua mão, tentando abrir os dedos dela e ativar o detonador.

– Não pode deixar que elas fiquem com isso! – Ele fervia. – Sua traidora desgraçada!

Elliott golpeou Will na cara com o cotovelo, mas precisaria fazer mais do que isso para detê-lo. O coronel Bismarck era o mais próximo da luta dos dois e reagiu antes de qualquer outro. Pegou Will pelo pescoço e pelo braço, tentando afastá-lo de Elliott. Percebendo que tinham a oportunidade perfeita para desarmá-la, Rebecca Um e o general Limitador também entraram no tumulto. Se um deles conseguisse segurar a mão de Elliott e mantê-la fechada, teria recuperado o controle da situação.

Mas enquanto o coronel Bismarck afastava Will, Elliott manteve os Styx ao largo. Ela os rechaçou a pontapés e socos com o braço livre e, bem a tempo, recuou pelo chão para escapar deles.

– Não tão rápido! – gritou ela, sem fôlego, ao se colocar de pé aos tropeços.

Eles se afastaram.

– Boa tentativa, Pescoços Brancos! – zombou ela.

Will estava fora de si de tanta fúria.

– Vamos, Elliott! Destrua o maldito vírus!

Mas o coronel se certificava de manter preso o menino, que se debatia.

– Essa foi por pouco. – Elliott se recompôs para o que diria a seguir. – Muito bem, minhas condições são... vocês devem nos colocar, Will e eu, em uma das máquinas voadoras...

– Chamam-se helicópteros – informou Rebecca Um.

– Em um desses helicópteros e, quando estivermos no ar, eu lhes devolverei o Dominion. Estaremos acompanhados no helicóptero pelo coronel e seus homens... Mas nenhum Styx.

– E quando exatamente você irá...? – começou Rebecca Dois, mas revirou os olhos na direção de Will.

Já queimado de sol, seu rosto, agora, assumia um tom de vermelho mais escuro enquanto ele começava a berrar a plenos pulmões.

– Coronel, pode, por favor, impedir a gritaria desse idiota? Não consigo ouvir nem a mim mesma – disse Rebecca Dois.

Dois Limitadores foram em auxílio do coronel.

– Não! Eles não! Traga dois de seus homens aqui! – vociferou Elliott para o coronel. – Não quero Limitador nenhum tocando nele. E ele vai ficar do meu lado... Não o tire de minha vista. E você também, coronel. Ao meu lado.

– Então, como eu estava dizendo... quando realmente teremos o vírus? – perguntou Rebecca Dois.

– Já lhe disse... Vou entregar quando estivemos no ar, depois Will e eu voaremos para longe daqui e baixaremos em outro local na selva. É simples – terminou Elliott.

– Tudo bem – concordou Rebecca Dois. – Vamos colocar o circo na estrada.


Will foi levado para a lateral da pirâmide, lutando a cada centímetro do caminho com os dois soldados neogermanos encarregados de levá-lo. Elliott e o coronel seguiam atrás, e ela teve o cuidado de não tropeçar, para não escorregar e soltar o gatilho do morto. Os dois alcançaram Will e seus carregadores neogermanos no instante em que chegavam ao primeiro helicóptero na fila. Ainda xingando aos berros, Will foi entregue a outros dois soldados no interior da aeronave.

– Segurem-no – disse-lhes Elliott. – Amarrem, se precisar.

O coronel Bismarck estendeu o diário do dr. Burrows a Elliott.

– O menino pode se arrepender de ter deixado isto. Era do pai dele.

– Obrigada – disse Elliott. – Sei que ele gostará de tê-lo depois que se acalmar... Se um dia ele se acalmar.

O coronel subiu a bordo. Elliott estava bem atrás.

– E onde está nosso frasco? – exigiu Rebecca Dois, entre a irmã e o general Limitador.

– Suba esta coisa – disse Elliott ao coronel, depois se virou para os três Styx, que esperavam como uma delegação ao lado do helicóptero. Ela apontou a clareira ao lado da pirâmide. – Quero todos os seus Limitadores fora dali. Os rastreadores também.

– Evacuar o lado oeste? – perguntou o general Limitador.

– Por que está pedindo isso agora? – disse Rebecca Dois, com uma expressão de diversão. – Não faz parte do acordo.

Elliott ergueu a mão com o gatilho.

– Faça isso, se quiser seu frasco intacto.

O general Limitador emitiu ordens a seus homens, que rapidamente se retiraram. Enquanto o piloto girava as chaves e o motor Brama tossia e ganhava vida, as duas Rebecca e o general Limitador começaram a retroceder para uma distância segura. Eles não estavam longe quando Elliott pôs os dedos da mão livre na boca e soltou um assovio penetrante.

Rebecca Dois girou o corpo.

– O que está aprontando? – gritou ela. – Dê-nos o frasco.

Rebecca Um estava visivelmente agitada.

– Se estiver tentando nos engan...

Nesse momento Bartleby disparou na clareira evacuada pelos Limitadores. Parando numa derrapada, ele olhou para Elliott. Ficou distraído com um dos rastreadores do outro lado da pirâmide, que o viu e latiu furiosamente.

Os rotores ganhavam velocidade, e Elliott assoviou de novo. Ao localizá-la, as orelhas de Bartleby se eriçaram, e ele galopou a toda para ela.

– O que o Caçador está fazendo aqui? – disse Rebecca Dois. – Para que você precisa dele? Tem alguma coisa suspeita nessa história.

– Tem toda razão – concordou a irmã. Ela gritou a plenos pulmões. – Bartleby, aqui!

Ouvindo-a, o felino hesitou, depois mudou de rumo e se afastou do helicóptero.

– Vem, garoto! Vem para mim! – gritou Elliott.

Rebecca Um tinha uma expressão preocupada. Alguma coisa não estava batendo. Por que Elliott se incomodava com o Caçador quando tanto dependia de conseguir escapar com Will? De algum modo, e a gêmea Rebecca não sabia bem como, o animal era fundamental para os planos de Elliott. Ela agora começou a gritar na língua Styx, emitindo uma série de palavras ininteligíveis. Tentava controlar o felino, usando a programação de Luz Negra a que ele fora submetido durante seu tempo na Colônia. E esperava obediência incondicional. Mas ficaria decepcionada.

Elliott também sabia falar a língua Styx e repetiu as palavras de Rebecca, acrescentando: “Bartleby, estou dizendo para vir a mim.”

O felino parou.

Passara a ser uma batalha por sua vontade.

Rebecca Um fez outra tentativa de chamar o Caçador usando as palavras-gatilho Styx.

Mas Elliott o chamou de novo, e o cabo de guerra teve um fim repentino quando Bartleby tomou sua decisão. Ele disparou para Elliott. Hesitou à porta do helicóptero, intimidado pelo vento dos rotores.

– Entre, Bartleby! – ordenou Elliott. O gato subiu a bordo num salto, e ela o pegou nos braços. – Nos coloque no ar! – gritou ela ao coronel Bismarck.

Tarde demais para fazer alguma coisa, as duas Rebecca perceberam o tamanho da corda ao redor do pescoço de Bartleby. Elliott retirou um embrulho dele.

– Esse tempo todo... E nem estava com ela! – percebeu Rebecca Dois.

– O Caçador carregava o frasco – disse a irmã.

O helicóptero estava a dez metros do chão e subia.

– Jogue para nós – gritou Rebecca Dois, avançando. – Ou o acordo está desfeito!

Os Limitadores saíam de trás das árvores, e outros estavam posicionados na pirâmide, cada homem com seu rifle apontado para Elliott no helicóptero.

Elliott balançou sedutoramente o pequeno embrulho diante de si.

– Tudo bem, é todo seu... É melhor não deixar cair – disse ela, atirando-o para as gêmeas.

Rebecca Dois o apanhou, e o helicóptero ganhou mais altitude.

– Uma das meias fedorentas de Will – disse a gêmea com uma voz enojada, mas ainda assim não perdeu tempo em rasgar a meia puída. Dentro dela havia um frasco de tampa preta, que ela segurou contra a luz para examinar. Um sorriso imenso se espalhou por seu rosto ao mostrar o polegar para cima à irmã e ao general Limitador. – Conseguimos! – uivou, triunfante.

O helicóptero estava a cinquenta metros do chão quando Rebecca Um girou para os Limitadores que aguardavam, prestes a dar a ordem de abrir fogo.

– Eu não recomendaria isso – disse o general Limitador, colocando a mão em seu braço. – Olhe ali.

Os soldados da Nova Germânia saíram para ver o que acontecia. Sentindo que o oficial comandante poderia estar com problemas, muitos sacaram as armas, e os que estavam em volta dos helicópteros restantes apontavam-nas para as gêmeas.

– Não se preocupe – disse o general Limitador. – Esses helicópteros velhos bebem muito combustível, então, mesmo que o general não leve Elliott e o menino Burrows para a cidade, não pode ir muito longe com eles.

Rebecca Um assentiu, acenando para os Limitadores baixarem as armas.


– Acabou – sussurrou Elliott ao se curvar na porta para ver a pirâmide se encolhendo ao longe, os Limitadores rapidamente se tornando pontinhos inofensivos. Ela expirou de alívio, depois se sentou no piso do helicóptero.

– Era o artigo genuíno? Era o frasco de Dominion que eles queriam? – perguntou o coronel. – Eles pareciam satisfeitos, mas preciso saber... ou serei obrigado pela honra a levá-la de volta.

– Era o verdadeiro – confirmou Elliott. – Cumpri minha parte do acordo.

O coronel assentiu para o navegador, que informou ao piloto que deviam continuar no curso. Enquanto o helicóptero subia acima das copas, Elliott abriu o punho cerrado e colocou alguma coisa no chão, antes de usar a mesma mão para enxugar o suor da testa.

– Mas como?! – exclamou o coronel Bismarck, curvando-se para olhar o objeto de metal preto. – Pensei que fosse um dispositivo detonador!

– Lamento, mas não era – respondeu ela, pegando a bússola do dr. Burrows e abrindo-a para que o coronel pudesse ver. – Eu não tinha um gatilho do morto, então precisei blefar com isto.

O coronel Bismarck riu.

Elliott sorriu para ele, cansada.

– E também não tenho nenhum explosivo na mochila. Usei tudo o que tinha para minha grande entrada na pirâmide. – Ela desenrolou o fio do braço e soltou a mochila das costas. – Além de algumas pistolas, está cheia de roupa suja.

O coronel riu ainda mais alto, mas Will não se divertia nem um pouco. Tentou se levantar, mas foi contido pelos dois neogermanos a seu lado no banco de metal. Os soldados eram mais fortes do que ele; além disso, seus pulsos estavam amarrados, então, ele não tinha como lutar.

– Pelo amor de Deus! – espumava ele ao fuzilar Elliott com os olhos. – Você deu o Dominion a elas. Por quê?, depois de tudo o que fizemos para impedir que o pegassem? Ou você está completamente louca, ou é uma traidora desgraçada! Ou as duas coisas!


PARTE TRÊS

Reparação


Capítulo Vinte e Um


– Eddie, vou levar Chester para dar uma volta de carro – disse Drake. – Só o que ele faz é choramingar no quarto, zapeando naquele PlayStation que você comprou.

Eddie baixou o pincel e empurrou de lado a lente de aumento.

– Uma mudança de ares pode fazer bem a ele – concordou. – Quer que eu vá também?

– Não, não precisa – respondeu Drake.


Drake atravessava o Tâmisa pela ponte de Londres, e Chester estava no banco do carona, curtindo a brisa no rosto pela janela aberta, olhando o rio. Mas ao se aproximarem da série de câmeras no perímetro da City, o distrito financeiro de Londres, Drake fechou todas as janelas. Chester viu o vidro escurecido subir, lacrando-os no carro.

– Fique de cabeça baixa por aqui – aconselhou Drake a Chester. – Tem câmeras de vigilância por todos os lados, e agora tem programas de reconhecimento facial. Parece até que o país todo é governado pelos Styx.

– Estou começando a sentir que é – murmurou Chester num tom de dar pena.

Drake o olhou incisivamente.

– Pode parar de bancar o Bisonho do Ursinho Puff. A não ser que Eddie tenha grampeado o carro... o que ele não fez... não precisa continuar com o disfarce.

– Tudo bem – disse Chester, com a voz se animando. – Mas por que toda essa simulação? O que há com ele?

– Com o tempo, tudo vai se esclarecer – disse Drake, vendo um táxi preto que tinha dado uma guinada na frente do Range Rover.

Eles iam para o noroeste, saindo de Londres, entrando nos subúrbios intermináveis. Olhando a multidão de gente nas ruas, Chester ainda não se adaptara à visão de tantas pessoas depois de seus meses nos subterrâneos. Sua cabeça logo começou a doer, tentando examinar cada um deles, perguntando-se quantos eram Styx disfarçados, ou foram condicionados com a Luz Negra e eram seus agentes. Talvez ele estivesse ficando paranoico, mas – disse a si mesmo – talvez isso fosse bom.

Ao passarem no final de uma fila de lojas de aparência miserável, Drake entrou em uma propriedade industrial arruinada, cuja lateral formava uma fila de antigos arcos de ferrovia. Construídos com tijolos vitorianos, sujos da fuligem negra de décadas de poluição, os arcos estavam cobertos de tábuas ou haviam sido instaladas neles fachadas baratas de vidro e alumínio com placas que proclamavam “Móveis de Pinho – Não Vai Encontrar Mais Barato!" ou “Equipamento de Escritório – Os Melhores Preços de Londres”. Drake seguiu até uma unidade que parecia uma espécie de oficina mecânica e parou na frente.

– Por aqui – disse ele, e Chester o seguiu por um portão de metal.

O interior era apinhado de painéis de carro descartados e no meio do salão havia um furgão em um suporte, com um homem trabalhando debaixo dele, batendo vigorosamente num cano de descarga com um martelo.

– Bom dia – disse Drake em voz alta, e o homem parou o que fazia, saindo de baixo do veículo.

Vestido com um macacão azul desbotado, ele era de compleição forte e inteiramente careca.

– Sr. Smith – cumprimentou ele, guardando o martelo no cinto de ferramentas.

– Está tudo pronto? – perguntou Drake.

O homem não respondeu, olhando longamente para Chester.

– Está tudo bem... ele está comigo – garantiu-lhe Drake, depois pegou dois objetos cintilantes da carteira. Colocou-os na palma da mão do homem, suja de graxa, e Chester viu que eram dois diamantes grandes. – Como lhe disse, tenha cuidado ao dispor deles.

– Vendê-los? Nem pensar, parceiro, vou ficar com eles. – O homem sorriu, revelando que um dos dentes da frente era de ouro. – Fundo de pensão para mim e a patroa é o que eles são. – Partiu para o fundo da loja, e Chester o seguiu, depois de Drake, penetrando mais fundo na caverna arqueada.

– Se tudo sair conforme o planejado, posso precisar de outro veículo em breve – disse Drake, enquanto eles passavam por um escritório combinado com depósito, com caixas de peças automotivas em pilhas altas cercando uma mesa com um telefone.

– Alguma coisa esportiva dessa vez? – perguntou o homem. – Algo com sex appeal?

– Não, um station wagon básico está bom pra mim. Um carro de família com muita quilometragem... Como um BM ou Merc. Que não possa ser rastreado, é claro, como o Range Rover – respondeu Drake.

– Tudo bem. Deixa comigo, parceiro – confirmou o homem, enquanto entravam em uma sala mal iluminada, com armários.

Em um caixote, numa pilha desordenada, Chester viu algo familiar.

– Meu uniforme da escola! – exclamou ele. – O que ele está fazendo aqui?

O homem destrancou outra porta no final de uma sala de armários e a abriu. Pelos ecos, parecia haver um espaço muito maior por trás dela. Ao passar a chave a Drake, ele disse:

– Vou deixar que cuide de seus assuntos, sr. Jones.

– É Smith – corrigiu-o Drake. – O nome é Smith.

– Desculpe, sim, sr. Smith. – O homem riu, mostrando o incisivo de ouro de novo. – E vou ficar de olho. Se aparecer algum estranho, toco a campainha. Tá legal?

– Legal. Obrigado – confirmou Drake. Depois que o homem saiu, Drake se virou para Chester, que estava junto ao uniforme da escola. – Quero que vista isso. Depois venha comigo.

– Mas por quê? – disse Chester.

Ao erguer o blazer para olhar a calça cinza por baixo, várias fotos grandes escorregaram no chão. A de cima era uma cópia da foto de família tirada na cabine da London Eye, que ele vira pela primeira vez quando tentou ir para casa. E outra era do time de futebol da Highfield High School, mostrando Chester muito mais novo com o uniforme de goleiro.

– E, Drake, por que isso está aqui? – perguntou ele.

– Ah, sim, traga as fotos com você – respondeu Drake.

Chester começava a ficar muito pouco à vontade com a situação.

– Não pode me dizer o que está havendo? Minhas roupas da escola... essas fotos... Tudo isso é meio esquisito.

– Fique calmo e faça exatamente o que eu lhe disser – respondeu Drake. – Vai ficar tudo bem, eu garanto.

– Acho que sim – concordou Chester, inquieto. Ao pegar a gravata listrada de azul e verde da escola, foi como se estivesse segurando algo de uma outra vida.

Drake passou pela porta e a fechou.

– Totalmente biruta – murmurou Chester ao começar a se trocar. Agora que estava sozinho, sentiu um vazio na boca do estômago. Não sabia o que Drake reservava para ele – pelo que viu rapidamente da sala ao lado, estava preocupantemente escuro ali. E ao se arrumar com a maior rapidez possível, não ajudava em nada ouvir ruídos estranhos na sala – um grito, depois o som de algo sendo arrastado pelo chão. Ele crescera desde a última vez que usara aquele uniforme – as calças estavam ridiculamente curtas, era difícil subi-las até a cintura, e o blazer mal cabia nos ombros. Andando um pouco como Frankenstein em suas roupas apertadas, ele foi à porta e bateu, antes de empurrá-la com cautela. Depois entrou.

– Venha – chamou-o Drake das sombras.

O espaço era largo – era surpreendente até onde ia a caverna –, mas Chester não conseguiu avaliar toda a sua extensão, porque só havia uma lâmpada com quebra-luz iluminando uma pequena área aproximadamente a vinte metros de onde ele estava. E bem sob o cone de luz havia uma pessoa recurvada numa cadeira. Sua cabeça estava baixa, mas se movia de um lado para outro aos solavancos.

Drake apareceu do escuro para afrouxar uma mordaça na boca do homem.

E Chester percebeu quem era.

– Pai – grasnou ele, esbarrando numa segunda cadeira que não percebera no escuro.

Chester avançou para a penumbra lançada pela luz. Seu pai levou um momento para registrar que havia alguém ali, depois levantou a cabeça e olhou diretamente o filho.

Chester avançou um passo.

– O... – interrompeu-se ele.

O sr. Rawls lhe lançou um olhar de tal ódio que Chester fechou a boca. Era ainda mais chocante para ele porque o pai normalmente era uma das pessoas mais gentis e reservadas que se podia esperar conhecer.

Mas o olhar que o sr. Rawls lançava a Chester o fez sentir que o pai era um completo estranho. O desespero se espalhou por ele, como se o amor do pai por Chester tivesse minguado até se tornar nada.

– O que vocês fizeram com Emily, seus animais? – gritou o sr. Rawls. Ele se retesou nas cordas que prendiam seus braços nas costas da cadeira e tentou chutar, mas era inútil.

– Não lute, Jeff, ou é sua esposa que vai pagar – ameaçou-o Drake.

– Minha mãe! Onde está minha mãe? – perguntou Chester a Drake.

Drake foi até Chester e se curvou na direção dele, mas não tentou baixar o tom, como se quisesse que o sr. Rawls ouvisse cada palavra.

– Ela está num cubículo nos fundos, e está bem, desde que Jeff aqui coopere. Agora puxe essa cadeira e fique nela.

Chester hesitou.

– Faça o que eu mandar – grunhiu Drake.

Perplexo, o menino assumiu seu lugar na frente do pai, que continuava a encará-lo com fúria.

– O que está querendo, seu bandidinho? Tentando arrancar dinheiro de mim? – perguntou o sr. Rawls. Sua voz ficou aguda e levemente histérica. – Olha, não sabe que eu sou contador... Trabalho em uma seguradora pequena... Não ganho muito. Está desperdiçando seu fôlego!

A essa altura Drake interferiu.

– Se é contador, Jeff, é de se esperar que tenha uma mente altamente lógica e analítica. Preciso que a use agora, para o seu bem e de Emily.

Chester quis tapar os ouvidos para a horrível torrente de ofensas que saiu da boca do pai. O sr. Rawls tentou virar a cabeça para ver Drake direito, que o agarrou e o forçou a olhar para a frente.

– Mostre a primeira foto, para que Jeff possa ver – ordenou Drake a Chester, passando para o lado do sr. Rawls, agora que ele olhava a fotografia da London Eye. – Diga-me, quem está com você e sua mulher?

O sr. Rawls cuspiu com desdém, depois respondeu:

– Meu filho. Este é meu filho e...

– E quem é este? – Drake acendeu uma lanterna e a lançou na cara de Chester. O facho era forte, fazendo o menino piscar.

– NÃO SEI! – gritou o sr. Rawls. – COMO É QUE VOU SABER, MERDA?

Chester ainda não acreditava. Ele até estava usando o uniforme da escola que usava na foto, e ainda assim o pai era incapaz de reconhecê-lo.

– Olhe bem para ele, Jeff, porque você sabe quem ele é e, se não me disser, vou matar Emily. Ela está numa sala aqui atrás, vou entrar lá e cortar a garganta dela. Na verdade, vou obrigar você a ver...

– Não, Drake! – explodiu Chester, espantado. – Não faria isso!

Apagando a lanterna, Drake se aproximou de Chester.

– Cale a boca – grunhiu ele ao garoto.

Chester obedeceu, não ia discutir com ele.

– Quem são vocês? – perguntou o sr. Rawls. – Estão caçando votos de eleitores do Partido Nacional ou coisa assim? – Ele riu cruelmente.

– Parece que você não entende o quanto esta situação é séria – disse-lhe Drake, desembainhando a faca. Era uma arma apavorante, com uma borda serreada. Drake virou a lâmina para que pegasse a luz, refletindo-a nos olhos do sr. Rawls. – Se não cooperar, e rápido, nem você nem sua mulher deixarão este lugar com seus órgãos internos.

O sr. Rawls piscou como quem tem um pesadelo e quer acor dar. Começou a pedir socorro aos berros.

Drake foi diretamente a ele e lhe deu um forte tapa no rosto, depois encostou a ponta da faca em seu pescoço. Chester pulou da cadeira, mas não disse nada.

– Pode gritar até ficar azul, mas ninguém vai ouvir você. Ninguém virá socorrê-lo. Então, vamos, desembuche, Jeff – desafiou-o Drake.

Enquanto o sr. Rawls permanecia mudo, Drake recolocou a faca na bainha.

Drake ordenou a Chester que voltasse a se sentar e mostrasse outra foto. Ele fez o sr. Rawls descrever o menino em cada uma delas, depois descrever Chester diante dele. Obrigou-o a fazer isso várias e várias vezes, forçando-o a olhar as fotografias e, depois, o próprio Chester. Se o sr. Rawls se recusava, Drake o ameaçava com a faca ou o esbofeteava, até que sua cara ficou vermelha e machucada.

Eles continuaram nessa rotina, e Chester começou a entender o plano de Drake. Tentava desprogramar o pai, livrá-lo dos padrões cognitivos que os Styx haviam implantado nele com a Luz Negra. E como entendia que Drake precisava ser tão brutal, Chester começou a se sentir um pouco melhor quanto aos maus-tratos a que o homem sujeitava seu pai.

Depois, quando Drake esbofeteou o sr. Rawls mais uma vez, tudo mudou.

– Vá para o inferno! – gritou o sr. Rawls, claramente esgotando suas forças. – Pode fazer o que quiser comigo, mas não vou ouvir mais essa besteira. – Depois olhou para o próprio colo, recusando-se terminantemente a responder a qualquer outra pergunta.

– Não vamos chegar a lugar nenhum assim – vociferou Drake.

Ele foi a Chester e passou o braço por seu pescoço, apertando tanto que o menino mal conseguia respirar, que dirá reclamar.

– Agora vou estrangular seu filho, Jeff. Este é Chester, bem aqui na sua frente.

Os saltos dos sapatos escolares de Chester rasparam no piso de concreto e as fotos escorregaram de seu colo. A cadeira se inclinou enquanto Chester tentava desesperadamente se libertar do aperto sufocante de Drake.

– Vou estrangulá-lo – prometeu Drake, com a voz tão fria e sem emoções que Chester realmente acreditou que ele iria até o fim.

O sr. Rawls ainda olhava o colo, balançando a cabeça. Depois a levantou, e seus olhos se arregalaram.

– Chester! – disse ele, no início mal podendo ser ouvido.

Chester começava a ficar azul.

– Desculpe, mas não ouvi, Jeff – provocou-o Drake numa voz cantarolada.

Os olhos de Chester se esbugalhavam, e ele não tinha mais forças para espernear.

– Tem alguns segundos antes que ele morra, Jeff – disse Drake. – Você pode salvá-lo. Diga quem ele é. Diga, quem você vê?

– CHESTER! – gritou o sr. Rawls.

Drake soltou Chester e, endireitando a cadeira, ajudou o menino ofegante a voltar a ela.

– Chester! É você! – O sr. Rawls agora chorava, as lágrimas escorriam por seu rosto.

Ainda não plenamente recuperado, Chester ria e tossia ao mesmo tempo, cambaleando para o pai e atirando os braços para ele.

– Pai, acabou... Estamos juntos de novo... Eu sonhei tanto com isso – disse Chester, rouco, enquanto Drake cortava as amarras do sr. Rawls com a faca. – Meu pai voltou. Como posso agradecer a você por tê-lo trazido de volta? – Chester se virou para Drake.

– Não agradeça tão rápido – disse Drake, pegando as fotos no chão. – Ainda temos que cuidar de sua mãe e talvez, dessa vez, eu tenha mesmo que matar você.


Elliott percebeu que o helicóptero mudara de rumo e que o voo parecia estar se tornando mais turbulento. De imediato olhou o coronel Bismarck, que falava com o navegador no cockpit. Balançando a cabeça, o coronel voltou-se para ela.

– Temos um problema – disse ele. – Estamos no curso da selva a leste da pirâmide, como você quis, mas uma tempestade apareceu na tela do navegador. Está soprando para o nosso lado rapidamente, e é das grandes. Já fizemos uma ação evasiva para contorná-la, mas não podemos ficar neste novo curso por muito tempo. Não podemos correr o risco de sermos apanhados por ela.

– Quais são as alternativas? – perguntou Elliott.

– Há um corredor desimpedido que leva diretamente à cidade. Por que não levamos vocês para lá, onde ficarão em segurança?

– Não pode fazer isso, coronel – respondeu Elliott. – Precisamos ficar a leste da pirâmide.

O coronel Bismarck saía para consultar o navegador e o piloto quando o helicóptero entrou na margem do temporal, e a chuva começou a chicotear pela porta aberta. O coronel teve que se segurar nas laterais ao voltar a Elliott, tal era a turbulência que já vinha das fortes correntes de vento.

– O piloto vai procurar uma área em algum lugar perto daqui, onde houve um recente incêndio florestal... Podemos desembarcar vocês lá – disse-lhe o coronel Bismarck. – Receio que terão que fazer o restante da viagem a pé.


Ao sentir as primeiras gotas de chuva caindo no rosto, as gêmeas Rebecca olharam furtivamente os soldados neogermanos, que se preparavam para embarcar nos helicópteros. As duas meninas andaram com indiferença para o general Limitador.

– Espalhou a novidade? – perguntou-lhe Rebecca Um, enquanto as duas propositalmente ficavam de costas para os neogermanos. Elas não queriam que os soldados suspeitassem do que viria a seguir.

– Sim. Meus homens foram instruídos a poupar as tripulações dos helicópteros, mas o restante dos soldados será eliminado se resistir – respondeu o general Limitador em voz baixa.

– E aquele jovem oficial que nos ajudou – intrometeu-se Rebecca Dois. – Eu o quero ileso.

O general Limitador observou o céu, que escurecia rapidamente.

– Entendido, e se isto for uma tempestade que se aproxima, nosso trabalho será muito mais fácil. Esses pássaros velhos não podem decolar num clima inclemente, e nunca se sabe... Talvez possamos assumir o controle dos soldados neogermanos sem derramamento de sangue.

Rebecca Dois esfregou as mãos de contentamento.

– Isso seria bom. Mais recrutas para a primeira fase de nossa nova ofensiva.

A irmã tinha um largo sorriso.

– Sim, com algumas mudanças pequenas, mas cruciais, acho que seremos felizes em nosso novo lar. De fato, muito felizes.


No helicóptero que acelerava, o coronel Bismarck lutava para pronunciar alto suas palavras contra a chuva.

– Ali! Está vendo?

Elliott estava ao lado dele, pendurada em uma trave de segurança perto da porta aberta, enquanto a selva zunia abaixo dela.

– Sim... Estou vendo – confirmou Elliott, tendo o primeiro vislumbre do trecho de selva recém-destruído pelo fogo, como uma cicatriz carbonizada em meio a todo o verde exuberante.

O piloto partiu a toda para a clareira. Por um momento pareceu que eles chegavam à frente da tempestade, e as correntes de ar tornavam-se menos turbulentas.

– Coronel – começou Elliott, agora que os dois tinham recuado da porta. – O senhor tem sido muito correto comigo e gostaria de fazer o mesmo pelo senhor.

O coronel franziu o cenho.

– Direi uma coisa só: cuidado com os Styx... Não subestime do que são capazes. Eles não ficarão nada satisfeitos por ter nos deixado partir. E, pelo que eu soube de sua cidade, eles podem decidir que gostam de lá – disse Elliott.

– Obrigado, mas com o efetivo deles não acho que representem uma grande ameaça para nós – respondeu o coronel Bismarck, embora algo em seus olhos revelasse a Elliott que ele levava seu alerta a sério.

O helicóptero começava a descida final, e Elliott lançou um olhar a Will, que tinha a cabeça baixa. Ela voltou sua atenção à vista pela porta. O incêndio recente reduzira a densa selva a nada mais do que um manto de cinzas, que o vento dos rotores agora erguia no ar. Era como se estivessem no olho de um tornado cinza-escuro, uma densa cortina de fumaça que praticamente bloqueava o sol.

Com um baque, eles finalmente tocaram o solo, mas o piloto não desligou o motor – o coronel, claramente, não pretendia ficar muito tempo. Enquanto Elliott saltava do helicóptero, seguida por Bartleby, Will foi desamarrado e conduzido.

– E se eu não quiser ir com ela? – disse ele ao coronel, esfregando os pulsos para restaurar a circulação. – Prefiro ver essa cidade de vocês. Todos vocês são alemães da Segunda Guerra, não são?

– Sim, de antes do final da guerra – respondeu o coronel Bismarck. – Como sabe disso?

Will inclinou a cabeça para a arma do coronel.

– Isto é uma Luger. – Depois se voltou para os outros soldados. – E eles têm Schmeissers, não é? Quero ver o que mais há na sua cidade. Meu pai ia querer isso também.

Will se recusara a olhar para Elliott, mas agora a olhou com frieza.

– E não quero ficar perto dela.

Elliott sabia que ele ainda estava em choque devido à perda do pai, mas já estava farta dos comentários dele.

– Will Burrows, você pode ser um saco. – Ela espumava. – Claro que dei o Dominion a elas... Tive que dar, mas só porque você foi capturado. Você me obrigou a isso. E parece estar se esquecendo de que eu acabo de salvá-lo de suas malditas irmãs. Mais uma vez.

– Tá, mas a que custo? – gritou ele para ela.

– Ainda não acabou – respondeu ela em voz baixa, mal sendo audível com o motor.

– O que quer dizer? – perguntou ele, saltando do helicóptero e avançando com agressividade para ela. – Ah, pelo visto você tem um grande plano para voltar rapidamente e pegar o vírus de volta, não é? Como se isso fosse funcionar! Elas nunca o deixarão fora de vista, e também temos que passar por um zilhão de Limitadores. – Socou a palma aberta com um resmungo. – Não entendo. De todas as pessoas, você simplesmente o largou nas mãos delas daquele jeito. Drake ficaria envergonhado de você!

Elliott ficou pálida por um momento, como se estivesse prestes a chorar, depois descarregou em Will, dando-lhe um tabefe.

Ele ofegou de choque enquanto Bartleby, perturbado com a briga dos dois, soltou um miado hesitante.

– Como se atreve a dizer isso? – disse ela numa voz baixa e trêmula. – Parece até que Drake está morto, e você não tem a mais remota ideia do que ele teria feito na mesma situação. E por que não me dá ouvidos? Eu disse que não terminamos. Ainda não acabou.

– Ah, cai fora! – gritou Will. – Não quero saber.

– Você está procurando alguém para culpar pelo que aconteceu com seu pai. Bom, não me culpe! Fiz tudo o que pude para salvá-lo! – gritou Elliott. – Eu mesma posso culpar você pela morte de Drake. Se você não tivesse aparecido na Grande Planície daquele jeito, nada disso teria acontecido. Talvez ele ainda estivesse vivo.

Will cuspiu nas cinzas.

– Pode acreditar nisso, se quiser. Você jamais gostou de mim mesmo. Desde o começo era você e Chester, você e Chester... Saindo em patrulha juntos o tempo todo, como amiguinhos íntimos – gritou ele para ela, tão fora de si que nem sabia mais o que dizia.

– Talvez porque ele precisasse aprender mais do que você – retrucou ela.

– Ou talvez você só gostasse mais dele do que de mim – falou Will no mesmo tom.

– Longe de mim me intrometer em sua... como vocês chamam mesmo... sua briguinha com a namorada, mas... – começou a dizer o coronel a Will, porém foi interrompido por outra explosão dele.

– Ha! Deve estar brincando! – falou Will atabalhoadamente, tocando o rosto dolorido, onde Elliott havia batido. – Ela não é minha namorada, e nunca vai ser!

Isto provocou risos dos soldados dentro do helicóptero, que silenciaram quando o coronel os olhou criticamente.

– E você nunca será meu namorado, porque Chester tem razão! Você é um anormal! – contra-atacou Elliott.

– Desculpe por apressá-los, mas temos que partir – acrescentou o coronel Bismarck. – A tempestade está vindo para cá, e não temos muito combustível nos tanques de reserva.

Bafejando como um touro furioso, Will andou a passos duros pelas cinzas secas. Mas não foi longe, parando para olhar o horizonte com as mãos nos quadris. O coronel entregou alguma ração a Elliott, depois tentou lhe dar algumas armas.

– Tenho umas pistolas em minha mochila – disse ela, declinando a oferta.

Mas ele não ouviu e lhe entregou duas Luger e uma das Schmeisser que Will admirara, junto com mais munição.

– Caso encontre algum animal inamistoso – disse ele, com uma piscadela.

– Obrigada. Não vou me esquecer disso – disse Elliott, depois gritou para Will: – Decida logo! Vai ficar? Ou vai com eles?

Embora estivesse de costas para ela, ele balançou a cabeça.

– Não – grunhiu em resposta.

O coronel desejou boa sorte a Elliott e lhe fez uma saudação enquanto o helicóptero voltava ao ar. Ela o viu partir, protegendo os olhos das grossas nuvens de cinzas que as hélices varriam do chão. Só quando o helicóptero tinha sumido de vista e tudo ficou em silêncio, a não ser pelo uivo do vento, foi que Will finalmente se virou para Elliott. Ele parecia ter se acalmado um pouco ao seguir lentamente até ela.

– Então me diga... por que disse que ainda não acabou? Qual é o seu plano genial?

Ignorando Will, Elliott foi mexer em Bartleby, limpando a camada fina de cinzas de sua cabeça careca.

– Lá na pirâmide você foi um gato muito bom. Fez o que mandei, não foi? – disse ela, acariciando sua têmpora.

Will ouvia o ronronar grave do Caçador e ficava cada vez mais frustrado por Elliott o ignorar.

– Por que não me responde? É o mínimo que pode fazer! – gritou ele, com seu gênio se inflamando de novo. – Eu tenho o direito de saber o que está planejando, droga. Se é verdade o que eles disseram, agora perdi minha mãe também. Ela deve estar morta, e aquela escória nojenta acaba de matar meu pai.

– Eu sei, eu vi – disse ela, olhando de lado para Will. – E você deve saber que lamento, mas agora não é hora de pensar nisso. Pode fazer isso depois.

– Tem alguma carta na manga, não tem? – perguntou Will. – Me diga o que é.

Elliott acenou com a cabeça uma vez.

– Tudo bem, eu vou para a Crosta... Por aquele túnel que encontrei perto da cachoeira.

– Para a Crosta? Pra quê, diabos? – disse Will com a testa franzida ao tentar entender o que ela pretendia fazer. – Isso não faz sentido nenhum. O Dominion está aqui... Neste mundo.

– Vou para a Crosta porque, esteja Drake vivo ou não, tenho que levar a vacina a alguém de lá.

– Mas... mas... não entendo. – Com uma expressão de puro assombro, Will deu alguns passos em direção a Elliott, hesitando por um momento, antes de avançar mais. – Mas você não quebrou o frasco da vacina... Aquele da tampa branca?

– Sim, quebrei – confirmou Elliott, usando a bússola do dr. Burrows para verificar sua posição. Depois se afastou de Will, que correu para alcançá-la, levantando uma trilha de poeira. – Mas não antes de engolir o conteúdo – acrescentou ela, quase como se pensasse nisso só agora.

Will parou de repente quando a ficha caiu.

– Então... então temos a vacina! – exclamou ele. – Está dentro de você!


Capítulo Vinte e Dois


Chester estava completamente exausto e não prestava muita atenção no que havia à sua volta. Mas, enquanto Drake os levava pelas ruas de Londres no caminho de volta ao depósito, o menino estava tão alegre que parecia flutuar. Seus pais haviam voltado para ele.

– Mamãe e papai – murmurou consigo mesmo, depois começou a cantarolar com a música do rádio.

O processo de desprogramação da mãe foi muito menos problemático, em grande parte graças à participação do sr. Rawls. Chester não conseguia parar de sorrir consigo mesmo ao pensar no momento em que os olhos da mãe se iluminaram e ela finalmente o reconheceu.

Depois disto, Chester ficou sentado com os pais pelo tempo que Drake permitiu, contando-lhes como ele e Will chegaram à Colônia e os acontecimentos posteriores. No começo, eles só olharam com uma incredulidade apavorada, mas suas próprias experiências os ajudaram a se convencer de que Chester falava a verdade. Embora estivessem muito nebulosas em sua mente, eles tinham vagas lembranças de serem subjugados e de homens aterrorizantes jogando fortes luzes roxas em seus rostos. Suas recordações dos acontecimentos depois desse incidente também não eram muito claras, como se eles fossem incapazes de dizer o que era real e o que tinham sonhado.

Mas os dois ficaram tão eufóricos com o fato de o filho ainda estar vivo que estavam dispostos a acreditar em qualquer coisa – além do mais, morriam de medo de Drake e não se atreviam a questionar nada que ele dissesse.

Agora que o feitiço da Luz Negra havia sido rompido, Drake não queria se arriscar. Quis que o sr. e a sra. Rawls ficassem trancados a chave pelo menos pelas próximas quarenta e oito horas, e o mecânico careca acabou por concordar em dormir nas instalações para ficar de olho neles. Na realidade, depois de Drake lhe oferecer outro diamante, ele disse que ia transferir sua “patroa” para os arcos a fim de cuidar pessoalmente dos pais de Chester.

– É estranho – disse Chester a Drake. – Pensei voltar para meus pais o tempo todo que fiquei nos subterrâneos, mas, sabe de uma coisa?, eu quase tinha perdido as esperanças. – Depois agradeceu ainda mais a Drake.

Drake assentiu.

– Sem problemas. Eu não podia deixar que ficassem sob o controle dos Styx.

– Mas eles realmente vão ficar bem? Estão livres da Luz Negra mesmo? – perguntou Chester.

– A terapia de reversão não é uma ciência... Nunca se sabe o que mais foi mexido na psique. Mas talvez os Styx não tenham ido fundo demais, e nós cuidamos de tudo o que sabemos sobre isso.

– Você fez o mesmo por Will, não foi? – disse Chester.

– Sim, com ele era um desejo de morte incitado pela altura, então veio bem a calhar que eu percebesse isso quando estávamos no telhado na Martineau Square. Eu o obriguei a visualizar as consequências de cair... Fiz com que ele enfrentasse seus demônios ocultos... E deu certo, no fim das contas – respondeu Drake. – Ele rompeu com o impulso. É um garoto forte.

– É mesmo – concordou Chester. – E é a pessoa mais teimosa que já conheci. – Apesar do cansaço, ele começava a pensar com clareza. – Mas o que vai acontecer com mamãe e papai? – perguntou. Embora por ora os pais estivessem seguros, não podiam ficar trancados indefinidamente.

– Vou transferi-los para outro lugar amanhã. Eles agora estão no mesmo barco que a gente... De maneira nenhuma podem voltar para casa – disse Drake, depois olhou de lado para Chester. – Acha que eles podem levar o tipo de vida que levamos?

– Eles não têm alternativa, têm? – respondeu Chester. – Até que derrotemos os Styx.

Drake assentiu.

– E por falar nos Styx, não diga uma palavra que seja a Eddie sobre nada disso. Como está o seu pescoço? Fiz o máximo para não deixar hematomas. Deixe-me dar uma olhada.

Chester abriu a gola para Drake olhar.

– Não, você está bem – disse Drake. – Não quero que Eddie saiba o que estivemos fazendo.

– Então você não confia inteiramente nele? – perguntou Chester.

– Eu não confio inteiramente em ninguém – respondeu Drake. – E temos que combinar uma história, para o caso de ele perguntar alguma coisa. Andamos de carro por algum tempo... Isso explicará a quilometragem no carro, se ele verificar... Depois paramos no Regents Park para dar uma caminhada, onde você almoçou, depois tomou sorvete. – Curvou-se para abrir o porta-luvas na frente do garoto. – Pegue esta embalagem e pingue um pouco do sorvete derretido na sua camisa... Para deixar visível a mancha.

Drake continuava a dirigir, e Chester seguiu suas instruções, esfregando a embalagem nas roupas que tinha recolocado depois de tirar o uniforme escolar.

– Você disse que eu almocei? – perguntou Chester, desejoso. Percebeu que, com tudo o que acontecera durante o dia, não comia nada há horas.

Drake gesticulou para o porta-luvas.

– Vai encontrar alguns sanduíches aí também. Sirva-se, mas, lembre-se: quando chegarmos ao depósito, você deve voltar a seu disfarce e agir como se o mundo tivesse acabado. Entendeu?

– Bisonho em força máxima – confirmou Chester, pegando os sanduíches.


Ao continuarem pelos campos estéreis, Will e Elliott começaram a ter uma ideia do tamanho do incêndio que se espalhara pela selva. Em certos lugares, onde o vento tinha reunido as cinzas e a madeira calcinada em montes, era complicado andar, e eles afundavam nas cinzas até os joelhos.

De vez em quando deparavam com o que restava de troncos das imensas árvores. Desprovidos de seus galhos e com uma fração de sua altura original, tinham a aparência de varetas gigantescas de carvão derrubadas ao chão.

O que começou como uma brisa leve rapidamente se transformou em uma ventania. Grandes gotas de chuva começaram a cair, batendo nas cinzas em volta deles e provocando pequenas nuvens, como se bombas liliputianas tivessem sido jogadas.

E, então, eles mergulharam na meia-luz lúgubre, com o sol encoberto pelas nuvens. Não admirava que o coronel Bismarck estivesse preocupado; a maior de todas as tempestades estava sobre eles. O arco abrasador de um raio rachou um dos troncos calcinados a várias centenas de metros, e com um gemido ele começou a tombar, como em câmera lenta. Quase de imediato, eles ouviram o estalo de um trovão, tão alto que era como uma força física, tirando-os do rumo que tomavam.

– Corra! – gritou Elliott.

– Estou correndo! – respondeu Will aos berros.

Apesar de os trovões o deixarem ansioso, Bartleby parecia se divertir, galopando pela chuva e se cobrindo de cinzas, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

Eles chegaram a uma ladeira íngreme e desceram. A chuva agora era torrencial, e a combinação de água e cinzas soltas era traiçoeira. Eles perdiam o equilíbrio constantemente e escorregavam na ladeira cinzenta.

Ao pé da ladeira eles se viram numa espécie de vale, onde muitos outros troncos de carvão estavam depositados. Corriam entre eles quando ouviram um guincho.

– Bartleby! – gritou Will, e os dois pararam. – Onde ele está?

A chuva os castigava com tal intensidade que os dois tiveram que proteger o rosto ao examinarem as cercanias, à procura do Caçador.

Houve outro guincho.

– Ele está com problemas – gritou Will, gesticulando para onde achava ser a origem do som.

Ambos refizeram os passos por entre os troncos carbonizados e viram movimento.

Os dois agacharam-se bem.

Criaturas pretas um pouco maiores do que bolas de rúgbi se arrastavam pela carcaça de um búfalo morto. Sua barriga estava aberta e os intestinos se espalhavam pelo chão. As criaturas se alimentavam das entranhas, acotovelando-se nos rolos de tripas e de outros órgãos internos enquanto cravavam probóscides feito pregos e sugavam.

– Pulgas? Megapulgas? – murmurou Will a Elliott.

Assemelhavam-se a imensas versões desses insetos, com pernas traseiras tortas e carapaças segmentadas que brilhavam levemente sob a luz reduzida. Mas essas criaturas pareciam ser carniceiras e não parasitas, alimentando-se do búfalo morto. Will estimava haver cerca de trinta delas no bando, e um zumbido baixo emanava dali, como se elas se comunicassem. O som parecia sair de suas pernas dianteiras, que elas esfregavam.

Outro ganido.

A dez metros do búfalo, Bartleby rolava de costas, com uma das pulgas presas entre as suas patas, estendendo e retraindo o espigão escuro de suas peças bucais. Tentava morder ou picá-lo. E outras pulgas, aos poucos, deixavam a carcaça do búfalo e iam para o felino, que se debatia. Elas claramente não eram só carniceiras – também eram predadoras.

Elliott percebeu que Will estava desarmado – depois da discussão, ela ficara com as armas. Pior ainda, a Browning Hi-Powers estava no fundo de sua Bergen, e Elliott só tinha as armas neogermanas à mão.

– Tome! – sibilou ela, sacando uma das pistolas que enfiara no cinto.

Will se virou a tempo de pegar a Luger que ela lhe atirava.

Ele apontou a arma para a pulga nas patas de Bartleby, fixou a mira e apertou o gatilho.

Nada aconteceu.

– Está travada! – grunhiu ele entre os dentes, mexendo no ferrolho da arma desconhecida quando Elliott disparou sua pistola.

A pulga nas patas de Bartleby foi arremessada pelo tiro como se tivesse sido atingida por um bastão invisível.

Com as antenas se retorcendo, as outras pulgas se viraram lentamente, as pernas unidas se contorcendo e zumbindo, até que ficaram de frente para Elliott. E começaram a avançar para ela.

Correndo entre os troncos escurecidos, Will deu a volta por trás do búfalo morto para alcançar Bartleby. O Caçador estava confuso e desequilibrado, mas, fora isso, incólume. Agarrando-o pelo cangote, Will o colocava de pé quando uma das pulgas na beira do bando o viu.

– Vamos, Bart! – instou Will ao felino.

Bartleby agora estava de pé, mas não se recuperara o suficiente para se mexer.

A pulga saltou, caindo bem na frente de Will. Aconteceu tão rápido que ele reagiu por instinto. Disparou nela à queima-roupa. Seu exoesqueleto duro se abriu, expondo sua carne branca enquanto um fluido leitoso se espalhava pelo chão. Quando o abriu com um martelo, Will lembrou-se do coco que ganhara na barraca de tiro do parque itinerante em Highfield.

Ele tentava arrastar Bartleby para longe no instante em que ouviu Elliott gritar seu nome e os disparos. Trocando a pistola pela Schmeisser, ela disparava rajadas curtas para a horda de pulgas que avançava. De vez em quando uma delas pulava em Elliott, que conseguia eliminá-la no ar antes que a alcançasse.

– Vai! – gritou ela, ao ver Will e Bartleby, que agora andava por iniciativa própria, mas feito um bêbado. Ela girou o corpo, e eles fugiram juntos. Minutos depois, subiam pelo outro lado do vale e estavam de volta ao campo de cinzas. A margem da selva assomava diante deles: estavam torturantemente perto dali.

– Elas estão vindo! – Will ofegava, enquanto lançava um olhar para trás.

As pulgas não haviam desistido da perspectiva de pegar uma presa fresca. Agora que não tinham as limitações dos troncos calcinados, elas começaram a mostrar do que eram capazes. Davam saltos tremendos.

Mesmo com o barulho da chuva e do vento, Will ouvia o baque de suas potentes pernas traseiras no chão quando elas se lançavam em arcos altos. Caíam do céu e pousavam por todo lado.

Will e Elliott corriam dez metros, depois paravam para lidar com as pulgas que os perseguiam, repetindo a manobra sem parar, e fazendo um progresso agonizante de tão lento em direção à linha das árvores. Torciam para que quando chegassem à selva conseguissem tirar os insetos de seu rastro.

Elliott despachava a maior parte das pulgas com a Schmeisser, e Will abatia qualquer uma que passasse por ela com sua Luger. Ele acreditava que tinham a situação sob controle quando uma das pulgas se grudou em suas costas. De imediato se prendeu à camisa com as garras em pinça. Will tentou se livrar dela, mas perdeu o equilíbrio e caiu de cara nas cinzas.

O ganido de Bartleby alertou Elliott que alguma coisa estava errada. Will rolava sem parar, tentando golpear o inseto com a coronha da pistola, mas o bicho estava resolutamente grudado nele. Pior ainda, a pulga aos poucos se aproximava de sua nuca exposta.

E, então, retraiu o probóscide, preparando-se para mordê-lo.

Elliott não teve tempo de pegar a pistola, o que lhe teria permitido um tiro mais preciso.

– Fique de cara para baixo! – gritou ela para o garoto no meio da luta. – E fique parado!

Agachou-se, mirou e soltou uma rajada com a Schmeisser.

Com um estalo alto, Will tomou um banho de gosma branca. Colocou-se de pé, sacudiu a cabeça e começou a correr de novo. Elliott cuidou de várias outras pulgas, mas depois lhe pareceu que elas desistiram da perseguição. Olhando por sobre o ombro, Will viu as pulgas sobreviventes dispararem de volta ao vale, provavelmente para voltar à carcaça do búfalo.

E vinte minutos depois Will e Elliott estavam sob a cobertura da selva, onde pararam para recuperar o fôlego.

– Obrigado – agradeceu Will, ofegante, arrancando algumas folhas para limpar os restos do inseto de seu cabelo e do pescoço.

– Tudo bem – respondeu Elliott, batendo na lateral da Schmeisser. – Foi meio ao acaso... Essas coisas não são muito precisas.

– Você usou isso ? – disse Will, ainda tentando controlar a respiração.

– Deu certo – disse ela.

– Deu mesmo – concordou ele, ofegando e erguendo as sobrancelhas. – Mas... uma coisa.

– Sim? – perguntou ela.

Will olhou, desconfiado, para a selva em volta deles.

– Se umas dessas árvores olhar para você com olhinhos maus... manda bala nelas também, tá?

– O quê? – perguntou Elliott.

Will chutou as raízes de uma árvore próxima.

– Aqueles bosquímanos só se importaram com sua maldita pirâmide... eles não nos ajudaram... e nunca vou perdoá-los pelo que fizeram a meu pai e a mim.

– Não tenho a mais remota ideia do que você está falando! – disse Elliott, verificando sua posição com a bússola. – Mas sei que vai me contar – acrescentou –, quando tivermos tempo.


Depois de mais uma hora de caminhada eles chegaram ao esconderijo na face do penhasco.

– Graças a Deus você cuidou para que os Styx não pusessem as mãos em nada disso – disse Will com gratidão. Ele estava muito cansado, mas seu estado de espírito melhorava ao fazer um inventário do equipamento que Elliott guardara na caverna. – Calculo que temos equipamento suficiente para lidar com qualquer coisa pelo caminho – acrescentou, ao começar a preparar a Bergen. Depois chegou ao dispositivo de rastreamento semelhante a uma pistola que Drake lhe dera. – E isto é mais importante do que qualquer coisa... É nossa passagem para casa – anunciou ele, erguendo-o.

– Espero que sim – disse ela, enfiando um pente novo de balas numa Sten e destravando-a. – Realmente espero.


O coronel Bismarck foi conduzido à sala pela secretária particular do Chanceler, que bamboleava em seus saltos incrivelmente altos.

– Ah, Bismarck, tudo encerrado com aquela gente pavorosa, devo deduzir? Um resultado de sucesso. Então podemos lavar nossas mãos com relação a eles? – perguntou o Chanceler. Estava recostado em uma poltrona enquanto um barbeiro dava os últimos retoques em seu cabelo e uma mulher de jaleco cinza lhe fazia as unhas.

– Sim, os Styx recuperaram o vírus. Houve uma pequena troca de tiros e, embora não tenhamos sofrido perdas, os Styx tiveram uma única baixa. Porém, um dos três alvos da busca foi desnecessariamente abatido durante a operação... Era um civil do mundo exterior.

– Desde que não seja um dos nossos – disse o Chanceler, suspirando.

– Não. E embora não haja nenhum avistamento direto deles, parece que os indígenas de algum modo se envolveram com os alvos. Levaram dois deles para dentro da pirâmide, depois os expulsaram.

Sem a mais leve curiosidade sobre isso, o Chanceler fungou com desdém.

– Bom, eles não têm sido nenhuma ameaça para nós, não como foram os piratas e os inquisidores. E, de qualquer forma, esta área não tem valor algum. Mas os acadêmicos querem saber o que aconteceu. Darei a eles motivo para se divertirem – afirmou o Chanceler com um sorriso indiferente. – É tudo?

– Estou preparando um relatório completo, senhor – respondeu o coronel Bismarck. – Mas precisa saber...

– Um momento – disse o Chanceler, erguendo a mão enquanto o barbeiro aparava cuidadosamente seu bigode. Depois que o barbeiro terminou, o Chanceler voltou a falar: – Continue.

O coronel Bismarck pigarreou.

– Os Styx concordaram com uma troca pelo vírus, e como parte dela um jovem e uma menina teriam permissão para seguir livres. Receio dizer que os Styx não parecem ser pessoas de palavra, razão por que não tive alternativa a não ser retirar o menino e a menina em um dos Fa 233s e deixá-los em um local remoto. O restante de nosso destacamento e os outros helicópteros ficaram na pirâmide, com ordens de voltar ao campo de pouso depois que eu partisse.

O barbeiro segurou um espelho na frente do Chanceler para que ele admirasse seu bigode e o cabelo superensebado.

– Muito aceitável. Obrigado – disse ele, e o barbeiro tirou a toalha de seus ombros com um floreio. – Isso parece... AI!

A manicure se retraiu com o grito do Chanceler.

– Cuidado, mulher... que descuido de sua parte! – reclamou ele, esfregando o dedo onde a mulher inadvertidamente tinha lhe cortado a pele. Virou-se com impaciência para o coronel: – E isso é tudo?

– Sim, exceto que acabo de saber que perdemos contato por rádio com os helicópteros – disse o coronel Bismarck. – Suspeito de que os Styx tenham alguma coisa a ver com isso. Eu estava...

– Não, creio ser improvável... Eles conseguiram o que procuravam – interrompeu-o o Chanceler. – Não, é a tempestade imensa que soube que vem para o nosso lado ou uma falha de equipamento novamente. – Fechou os olhos por um instante, como se estivesse exausto. – Creio que vá me importunar para aumentar o orçamento militar, assim pode ter um novo sistema de comunicação, não? Coloque tudo em seu relatório, coronel.

– Mas devemos ter cuidado com os Styx – disse o coronel.

A manicure se levantou da banqueta e se arrastou ruidosamente pelo piso de mármore para trabalhar na outra mão do Chanceler.

– Sim, sim, como eu disse... gente horrível. E agora tenho que voltar aos meus afazeres. Obrigado, Bismarck. Excelente trabalho – disse o Chanceler, abrindo o jornal com uma sacudida.


Capítulo Vinte e Três


A Tower Bridge passou num átimo quando dois motoqueiros de couro dispararam com suas potentes motos pelas ruas vazias de Londres. Eles atravessaram outras pontes sobre o rio, disputando a primeira posição.

Na Parliament Square foram obrigados a parar com uma derrapada em um sinal de trânsito. Drake abriu o visor do capacete e gesticulou para a muito iluminada sede do Parlamento.

– Dizem na Colônia que há passagens levando diretamente para lá a partir da Cidadela Styx. Dizem que dão acesso direto às galerias do porão.

Eddie ergueu o visor.

– Não depois que Guido Fawkes assumiu a responsabilidade por nossa operação secreta abortada.

– Como é? Quer dizer a Conspiração da Pólvora ? – disse Drake rapidamente. – Tá brincando!

– Os túneis foram fechados depois disso – respondeu Eddie, em seguida baixou o visor. O sinal abriu, e ele foi o primeiro a disparar, deixando Drake para trás, indagando-se sobre sua resposta. Enquanto o Big Ben começava a soar às cinco horas, ele balançou a cabeça uma vez, incrédulo, engrenou a moto e soltou a embreagem para acelerar atrás do Limitador.

Depois de estacionar na St. Anne’s Street, eles seguiram a pé, pegando a direita e a esquerda e dando na Victoria Street. Embora a fachada oeste da abadia de Westminster assomasse diante deles, Drake não sabia para onde Eddie o levava. O Styx quase o levou à abadia, depois mudou de rumo. Agora andando mais devagar, ia para uma série de construções de arenito que pareciam tão velhas quanto a própria abadia. Entre os prédios havia uma viela curta, e ao dar uma olhada Drake viu uma praça mais adiante. Embora faltasse uma hora para o nascer do sol, as luzes da praça lhe permitiram distinguir árvores e vários carros estacionados. Ele localizou uma placa na entrada da viela.

– Dean’s Yard – leu ele em voz alta. – Acho que nunca estive aqui.

– Fique atrás de mim, calado – disse-lhe Eddie em voz baixa enquanto, a meio caminho na viela, alguém uniformizado parou diante deles.

Drake se retesou, pensando que era um policial, mas depois viu, pelo uniforme, que era uma espécie de porteiro. O homem estava ao lado de um cavalete vermelho e branco colocado ali para impedir a entrada de veículos na praça.

– Boa noite, cavalheiros – disse o porteiro.

Enquanto ele olhava os dois de cima, Drake sabia, pelo modo como endireitou os ombros e segurava o walkie-talkie já ligado, que ele esperava ter problemas. De maneira nenhuma ia permitir que dois motoqueiros vestidos de couro entrassem na praça àquela hora da manhã, não sem uma boa explicação.

Eddie não hesitou em seguir diretamente para o homem carrancudo e, quando estava bem perto dele, falou algumas palavras em seu ouvido. O porteiro não respondeu nada, mas pareceu baixar a guarda de imediato. Colocou o walkie-talkie no bolso, depois esfregou as mãos, abrindo-as um pouco para assoprá-las, como se sentisse frio. Em seguida, para surpresa de Drake, virou-se para a Victoria Street pela viela, olhando fixo à frente como se ele e Eddie nem existissem. O homem cantava “I Did it my way” de um jeito tristemente desafinado e simplesmente voltou à sua cabine, continuando a assoviar a música antes de entrar e fechar a porta.

Drake se colocou ao lado Eddie ao entrarem na praça.

– Ele recebeu a Luz Negra, não foi? Você lhe disse algumas palavras como gatilho para nos deixar entrar. Quais eram? Frank Sinatra?

– Não, eram palavras que você não conseguiria pronunciar. Pode não ter percebido, mas eu estava preocupado que a sequência tivesse sido alterada. Felizmente, não foi – respondeu Eddie, atravessando a área gramada no meio da praça.

– Acho que já ouvi falar deste lugar – Drake refletia, passando os olhos pelas muitas portas de construções georgianas em volta deles. – Tem uma escola famosa perto daqui, e o pai da verdadeira Alice no país das maravilhas não foi diretor dela em certa época?

Eddie não respondeu ao seguir direto para uma das portas e abri-la. Dentro do prédio havia um corredor sombrio, com um esburacado piso de laje. Eles continuaram por ali até outra porta, na extremidade, onde Eddie pegou um globo luminoso para usar a chave. Depois de destrancada, a porta se abriu, e Drake sentiu o cheiro de bolor do porão úmido. Eles desceram um lance de escadas de pedra e descobriram que o lugar estava apinhado de caixotes cheios de livros escolares mofados.

Eddie se espremeu entre eles para chegar à parede no fundo do porão, onde localizou um gancho enferrujado à altura da cabeça e o puxou. Drake examinava uma antiga garrafa de cerveja no alto de um dos caixotes quando, aos pés de Eddie, um painel de cerca de um metro quadrado se abriu na metade inferior da parede.

Ao ver o tamanho da abertura, Drake riu consigo mesmo.

– E nem mesmo diz BEBA-ME no rótulo – murmurou ele, jogando a garrafa de volta ao caixote.

Eddie lhe lançou um olhar inquisitivo.

– Como?

– Nada, nada – respondeu Drake. – Só estava pensando como este portão é pouco sofisticado. Baixo orçamento... Nada espalhafatoso.

Eddie concordou com a cabeça.

– Na época em que isto foi escavado, no início do século XIX, éramos poucos aqui... Os acontecimentos na Rússia eram nossa prioridade.

Eles se esgueiraram pela abertura, e, do outro lado, Drake pôde se colocar de pé novamente. Descobriu que estavam em uma passagem caiada de vários metros que levava a outro lance de escada de tijolos esfacelados.

Drake ia descer a escada quando percebeu que Eddie não o acompanhava. O Styx esperava no alto, sem dar sinais de estar preparado para seguir adiante.

Na luz lançada pelo globo luminoso de Eddie, gotas de umidade cintilavam como diamantes em uma teia de aranha complexa entre a parede e uma coluna de madeira esfacelada. Percebendo a teia acima de sua cabeça, Drake a soprou com delicadeza. Uma aranha verdadeiramente obscena com um abdome inchado saiu de uma rachadura na parede, rastejando entre os exoesqueletos de moscas há muito mortas e presas na teia.

– Devo deduzir que não vamos em frente? – perguntou ele, olhando a aranha, que, desapontada por não haver uma nova vítima para sugar, voltava a seu esconderijo.

– Não tem muito sentido... Agora sabemos que temos acesso por essa rota. E é assim que continua pelo restante do caminho – respondeu Eddie. – Só mais escadas e passagens.

– Ótimo, desde que nos leve à Cidade Eterna com umas Bergen totalmente carregadas – respondeu Drake.

Eddie assentiu novamente.

– Então ficamos aqui – disse ele.


Enquanto andavam junto ao rio, Will e Elliott avistaram a cachoeira. Eles continuaram por uma curta distância pela margem até que Will parou.

– Bom, acho que é isso – anunciou ele, com um ar de fatalidade.

Ele olhou a água cristalina e as libélulas exóticas sobre sua superfície.

– É muito especial aqui, não? – disse ele, dirigindo o olhar para os galhos mais baixos das imensas árvores, onde tagarelava um bando de aves cor de esmeralda. – E esta deve ser a última vez que vamos ver este lugar – acrescentou.

Will girou e olhou a cachoeira. Embora estivesse oculta nas sombras, a passagem esperava por eles. A passagem que por fim, assim eles esperavam, os levaria à crosta exterior.

Ele se abaixou para pegar uma folha de grama e a torceu entre os dedos.

– Sabe, eu nunca contei a papai que havia um túnel aqui – disse, desconsolado.

Elliott cutucou uma pedra com a bota até que ela caiu no rio, mas continuou em silêncio.

– Acha que, se eu tivesse contado, as coisas agora poderiam ser diferentes? Se ele tivesse agarrado a oportunidade de voltar à superfície... ainda estaria vivo – refletia Will com a testa se vincando de culpa e remorsos.

– Não, o doutor, não – respondeu Elliott, sem hesitar. – Ele não iria a lugar nenhum, não antes de terminar seu trabalho. Você sabe disso.

Will deu um sorriso abatido para ela.

– Sim, é verdade. – Ele respirou fundo. – Tudo bem, Pequena Miss Vacina, precisamos levar você a um hospital da Crosta para que os médicos engarrafem seu sangue. – Sacou a Bergen e pegou o dispositivo de visão noturna, passando a faixa na testa e verificando se a lente estava corretamente posicionada, pronto para virá-la sobre o olho. – E como você é tão superimportante agora, estou no ponto. Assim, se alguma coisa tentar me comer, pelo menos você estará segura.

Elliott ergueu as sobrancelhas, fingindo seriedade.

– Parece um bom plano – disse ela, sem conseguir deixar de rir.

– Espere... Esqueci o Bartleby! – exclamou Will. Eles procuraram o Caçador. Permanecia mais abaixo no córrego, onde tentava pegar um dos peixes pequenos e prateados com a pata no instante em que passavam nadando. – Pensando bem, devíamos deixar o Bozo ir na frente – disse Will, rindo.


– É esquisito estar aqui – disse Chester, lambendo o sorvete que Drake comprara num quiosque perto do Royal Festival Hall. Os dois andavam num ritmo lento pela margem do Tâmisa, no meio de uma multidão. – Parece tão normal, como se eu nunca tivesse ido embora – acrescentou, olhando a água, uma ou outra marola cintilando ao refletir a luz do sol de meio-dia.

Eles seguiram pela calçada e passaram para a sombra proporcionada pela ponte de Waterloo, onde os vendedores de livros usados armavam suas barracas.

– Todas essas pessoas, de tantos lugares diferentes... – comentou Chester, ao pegar trechos de conversas de quem passava. – E ninguém tem a menor ideia do que está embaixo delas – continuou, olhando a calçada.

– Talvez seja melhor assim – respondeu Drake. – A maioria das pessoas já acha este mundo complicado do jeito que é.

Um grupo de crianças de skate passou disparado numa rota sinuosa entre os turistas sonâmbulos, como se estivesse numa pista. Chester os olhou, observando um jovem alto de boné com um grande “D” parar de repente. Ele pisou habilidosamente na parte de trás do skate, para que girasse no ar e fizesse várias voltas antes de o pegar.

– Que legal. Sabe, eu pedi a Papai Noel um skate pouco antes de Will e eu descobrirmos a Colônia – disse Chester pensativamente. – Nunca aprendi a andar nisso.

– Também não posso dizer que sei – admitiu Drake. Foi à mureta junto da beira da água e se curvou, tirando os óculos escuros para desfrutar do calor do sol no rosto. – Mas pense nas outras coisas que você aprendeu.

Chester se uniu a ele na mureta.

– Então minha mãe e meu pai estão mesmo bem? – perguntou, mudando de assunto.

– Com todo o luxo. Coloquei-os em um hotel com serviço de quarto. Desde que fiquem por lá, você não tem motivos para se preocupar... Eles estão seguros – assegurou-lhe Drake. – Sei que quer vê-los novamente, mas precisa ter paciência. Precisamos terminar umas coisas primeiro, depois vou transferi-los para outro local, onde pode vai se encontrar com eles.

– Com Eddie também? – disse Chester. – Depois que você terminar a operação com ele na Cidade Eterna, ele ainda fará parte da equipe?

– Isso quem decide é ele – respondeu Drake, virando a cabeça para a outra face pegar os raios de sol.

Chester franziu a testa ao pensar.

– Devo entender por seu silêncio que você quer perguntar mais alguma coisa? – adivinhou Drake.

– Hmmm... Sim – respondeu Chester. Percebeu que um pouco do sorvete tinha escorrido pelo queixo e o limpou com a mão antes de falar: – Nunca entendi por que você ficou nos subterrâneos por tanto tempo... Podia ter vindo para a Crosta quando quisesse, não podia?

– O plano original era que eu me infiltrasse na Colônia e coletasse o maior número de informações que pudesse sobre nossos caros amigos – explicou Drake.

– Sim, sei disso – disse Chester.

– Descobri que a rede daqui de cima fora desbaratada quando um dos Cientistas me disse que os Styx capturaram e mataram um membro de minha célula. Isso significava que a coisa toda tinha se desfeito e não havia motivo nenhum para que eu voltasse à Crosta. Como os Styx arrancaram tudo o que quiseram de mim para o desenvolvimento de suas miras de rifle, eu não tinha mais utilidade, e eu sabia que meus dias estavam contados. Era perigoso demais ficar mais tempo na Colônia. – Drake limpou as lentes dos óculos e os recolocou. – Assim, depois de um teste de armamento nas Profundezas, eu fugi. Decidi ficar lá por algum tempo e continuar a coletar o máximo de informações. E, para ser franco, quando Elliott apareceu, tive um motivo real para continuar lá. Não podia deixá-la sozinha.

Um homem alto e magro com uma barba desgrenhada de repente parou na calçada a vários metros, olhando Drake, depois Chester.

Chester logo ficou desconfiado.

– Não gosto do jeito dele – cochichou. – Styx?

Drake riu.

– Não, ele não é Styx... Está dando bandeira demais. Além disso, não está vendo os exemplares de Big Issue debaixo do braço...? Ele está pensando se somos possíveis clientes.

Ainda assim Chester continuou a observar o barbudo até que ele se mexeu. Agora chegando à casquinha do sorvete, Chester mastigou ruidosamente.

– E tem outra coisa que não consigo entender.

– O que é? – perguntou Drake.

– Você pode colocar as mãos em explosivos quando precisa deles – disse Chester.

Drake assentiu.

– Então eu estava pensando... Com os mapas de Eddie da estrutura dali debaixo, por que não entramos de fininho e fazemos uma bela demolição na Cidadela? – propôs Chester. – Você podia pegar todos os Styx de uma cajadada só.

Drake assentiu novamente.

– Boa pergunta, mas não é assim tão simples. Já entrou numa sala com uma infestação braba de baratas... quero dizer das brabas... e acendeu a luz?

– Não, nunca – disse Chester.

– Bom, eu já, várias vezes. Mesmo que estejam todas no chão, você só pode pisar em algumas, porque elas desaparecem, assim – disse Drake, estalando os dedos. – Elas disparam para seus esconderijos, onde você não pode encontrá-las de jeito nenhum.

– É verdade – respondeu Chester lentamente enquanto imaginava a cena.

– Bom, aconteceria o mesmo com os Styx. Você pode até matar alguns, mas o restante simplesmente sumiria. E de qualquer forma, como sabe, existem muitos deles operando na superfície o tempo todo.

– Então não daria certo – disse Chester.

– Não é melhor saber que eles estão lá na Colônia, em vez de espalhados por todo o país, onde podem se tornar mais ativos... Se isto for possível? Além de tudo, como você viveria consigo mesmo se algum colonista fosse apanhado no ataque? É inevitável que pelo menos um civil perca a vida com a explosão do tamanho que está falando.

Chester colocou o que restava da casquinha na boca.

– Sim, mas ainda assim não valeria a pena?

– Então pode viver com o que os políticos chamam de “danos colaterais”? A morte de inocentes? – perguntou Drake ao garoto.

Chester mastigou pensativamente. Ele entendia o que Drake dizia, embora não soubesse bem se concordava.

– Mas se evitarmos talvez milhões de mortes na Crosta porque os impedimos de espalhar alguma coisa como o Dominion, então eu não me sentiria tão culpado com isso. É claro que seria horrível se algum colonista fosse morto, mas no geral seria uma boa ação. O certo a fazer.

– O certo – repetiu Drake, depois olhou para Chester. – Houve um tempo em que eu concordaria com você, mas não concordo mais.

– Ah! – murmurou Chester, inquieto com a intensidade da voz do homem.

– Isto é para você. – Drake colocou a mão no bolso e entregou um celular a Chester. – Esconda-o e, faça o que fizer, não deixe que Eddie o veja – disse ele. – Agora vamos voltar ao depósito e no caminho vou lhe dizer o que quero que faça.


Capítulo Vinte e Quatro


A porta da frente se sacudiu nas dobradiças com uma pancada tão exagerada que ninguém pôde deixar de ouvir – nem mesmo nos cômodos dos fundos da casa.

– Que foi isso? – queixou-se da cozinha a mãe do Segundo Oficial.

A sra. Burrows, escorada em sua cadeira de rodas, já sabia que não podia ser um vizinho àquela hora, numa manhã de domingo.

A pancada na porta soou novamente, desta vez mais impaciente.

– Tô ocupada aqui! Alguém atende... Pode ser a sra. Evans com as costuras que ela quer fazer – gritou a mãe do Segundo Oficial. Sempre se levantava antes do filho ou da filha toda manhã, mas ainda mais cedo aos domingos, um dia especial em toda a Colônia, quando eles podiam se regalar com um bom corte de carne para sua refeição do meio-dia, em vez de sua comida da semana, os pegajosos cogumelos porcini.

De fato, a sra. Burrows sentia o cheiro de rato fresco começando a ser preparado na cozinha. Eliza teria comprado no mercado no dia anterior e provavelmente não seria da variedade cega, mas o rato de esgoto padrão, porque eram mais baratos. E a sra. Burrows colheria seus benefícios porque, em vez da lavagem de fungo de sempre, teria o banquete de um caldo fino feito da fervura das carcaças.

– Já vai... já vai – gritou Eliza ao descer a escada, irritada por ser interrompida enquanto arrumava o cabelo. Ainda tentava ajeitar alguns fios indóceis quando abriu a porta.

– Oh! – disse ela, mansa como um suspiro.

O velho Styx estava de pé ali, o queixo erguido enquanto olhava à direita e examinava as outras casas pela rua. Seu jovem assistente pairava logo atrás, e na calçada havia mais Styx – dez deles, todos tão parecidos que Eliza não conseguia distinguir um do outro. Pelo modo como observavam as cercanias com movimentos curtos e ríspidos da cabeça, eles pareciam um bando de aves que acabara de pousar. Mas aquelas eram terríveis aves de rapina. Eliza também não pôde deixar de notar cortinas se movendo nas casas do outro lado da rua, dos vizinhos tentando ver o que estava acontecendo.

O velho Styx voltou-se para Eliza, que curvou a cabeça e recuou um passo. Não se podia olhar nos olhos de um Styx, em particular um tão importante como aquele homem. Na Colônia, essa era a coisa mais próxima de uma visita da realeza. Na realidade, diziam os boatos que o velho Styx agora era a pessoa mais importante em sua hierarquia, mas ninguém tinha certeza disso.

Seu casaco de couro preto, longo até o calcanhar, rangeu quando ele passou suavemente pela soleira e entrou no hall.

Seu jovem assistente o seguia, nos calcanhares.

– Seu irmão está em casa – disse ele abruptamente.

Eliza não sabia como responder a isso – não tinha certeza se era uma pergunta ou uma afirmativa. Em um estado de indecisão terrível sobre o que dizer, ela começou a murmurar, mas foi salva pela mãe, que saiu da cozinha e andava tropegamente pelo corredor.

– Se é a sra. Evans com os remendo dela, diz pra ela que tá um dia adiantada – gritou ela. – A gente combinou que seria ama...

Seus olhos remelentos viram o velho Styx, e ela soltou um grasnado que não diferia muito do de um sapo asmático. Também evitou os olhos dele, cruzando as mãos na cintura.

– Viemos ver a mulher Burrows. Ela está aqui – disse o jovem assistente, já entrando na sala de estar.

Novamente, era impossível saber se ele estava indagando onde estava a sra. Burrows ou se já sabia, mas as duas mulheres acreditavam que devia ser a segunda alternativa. Os Styx pareciam saber de tudo o que acontecia, nos mínimos detalhes, mesmo que mantivessem distância dos colonistas.

Enquanto o jovem assistente abria a porta e se postava de lado para deixar o velho Styx passar, Eliza roubou um breve vislumbre da mais importante das pessoas. Ela percebeu que sua pele pálida era vincada como um papel amassado, e o cabelo preto-obsidiana tinha vestígios de prata nas têmporas. Mas quando a luz fraca da sala caiu em seu rosto foi um choque ver as cavidades de suas bochechas e os olhos afundados nas órbitas, que o deixavam parecido com um cadáver animado.

Embora fosse o primeiro na sala, ele esperou enquanto o jovem assistente ia até a sra. Burrows e erguia seu pulso flácido. Por um momento o jovem assistente o segurou em sua mão enluvada, depois simplesmente o deixou cair. Olhou o velho Styx, que lhe deu um único aceno de cabeça em resposta.

Nessa hora o Segundo Oficial chegou ao pé da escada. Com as mangas da camisa dobradas, o grandalhão viu os Styx na calçada e também a mãe e a irmã paradas e mudas, de cabeça baixa. Sem hesitar nem por um momento, atravessou o corredor e entrou na sala de estar.

Viu o velho Styx e seu jovem assistente, mas não se anunciou, esperando do lado oposto à soleira da porta. Em seu trabalho como policial no Quartel, o Segundo Oficial diariamente lidava com os Styx, então não demonstrava o mesmo grau de assombro dos colonistas comuns quando confrontava um deles.

O jovem assistente reconheceu a presença do Segundo Oficial com um olhar rápido.

– Jamais esperaria que essa mulher sobrevivesse ao primeiro dia, que dirá por todas essas semanas. Ela vai continuar em estado vegetativo... Não há nenhuma perspectiva de melhora.

O Segundo Oficial pigarreou.

– Sim, o médico nos disse isso, mas creio que ela está ficando um pou...

O jovem assistente continuou como não tivesse ouvido uma só palavra do que o Segundo Oficial tinha dito.

– É claro que é extraordinário que ela tenha conseguido resistir à bateria de Luzes Negras... Muito mais do que costumamos usar em um suspeito em muito tempo... Mas o fato ainda mais extraordinário é que ela, de algum modo, continua viva – disse o jovem assistente. – Você deve levá-la aos Cientistas – acrescentou abruptamente.

– Os Cientistas? – repetiu o Segundo Oficial, dando outro passo para dentro da sala.

– Eles examinarão o cérebro dela. Estão interessados em sua fisiologia neural e como adquiriu resistência a nossas técnicas de interrogatório. Ela será levada para dissecação quando eles estiverem prontos para recebê-la – disse o jovem assistente. – Você fez um bom trabalho.

O Segundo Oficial não conseguiu se conter. Pronunciou a palavra “Mas”, quase seguida de um “Não”, um ato de insubordinação contra os Styx que provavelmente lhe garantiria a cadeia, na melhor das hipóteses – ou, na pior, o Banimento para as Profundezas.

Sentindo talvez a intensidade dos sentimentos do Segundo Oficial, o velho Styx fixou o olhar nele e falou pela primeira vez:

– Quando você se ofereceu para cuidar dessa mulher em sua casa, assumiu uma carga grande demais sobre si mesmo e sua família. Considere isto uma bênção.

O velho Styx e seu assistente caminhavam para a porta, já saindo, no momento que o Segundo Oficial conseguiu falar:

– Obriga... do – disse, mas só porque era o que se esperava dele. Por dentro, ele gritava: “Tire suas mãos sangrentas dela, seus Pescoços Brancos sujos! Já não tiveram o bastante? Deixem-na viver os dias dela aqui, em paz!”

Ele levou alguns segundos para se recompor antes de ir para o hall. O velho Styx e seu jovem assistente já haviam saído e seguiam pela rua com o restante de sua comitiva, as cortinas nas janelas das casas se torcendo à passagem deles.

Eliza fechou a porta e bateu a cabeça nela como se o mundo tivesse acabado.

– Mas o que foi que tu fizeste ? Tu os trouxeste pra nossa casa! Pra nossa casa! – acusou-o a mãe do Segundo Oficial. – Oooohhhh – gemeu, afundando no primeiro degrau da escada e se abanando com a mão. – Eu tô esquisita. Tô tendo um fogacho. Acho que meu coração manhoso tá desistindo.

– Espero que esteja satisfeito... Você deixou a mamãe doente! – disse Eliza, girando para longe da porta. Ela gemeu como se também estivesse sofrendo de alguma aflição dolorosa. – Que vergonha... os Styx em nossa casa, como se fôssemos criminosos comuns ou arruaceiros. O que as pessoas vão dizer? – acrescentou, balançando a cabeça. – Todo mundo vai saber... Já imagino todas as línguas se mexendo no mercado amanhã.

A velha bufou, depois olhou indagativamente o Segundo Oficial.

– Mas o que foi que eles te disseram, aliás? – perguntou ela.

Com desespero evidente em seu rosto, o Segundo Oficial não respondeu de pronto.

– Eles vão levar Celia para um exame médico – respondeu ele por fim.

– Que tipo de izame ? – perguntou a mãe.

O Segundo Oficial não conseguiu mais conter seu desespero.

– Eles vão colocá-la na tábua e cortá-la toda! – retrucou ele.

Houve um momento em que os olhos de Eliza encontraram os da mãe enquanto absorviam essa informação. Depois seus rostos se abriram em sorrisos imensos, e a velha, aparentemente esquecida de seu “coração manhoso”, colocou-se de pé num salto. Ela e Eliza começaram a dançar, entoando “Ela vai embora, ela vai embora”. Pareciam duas crianças que tinham acabado de saber que não iriam à escola no dia seguinte porque ela estaria fechada.

Quando o Segundo Oficial voltou a se sentar com a sra. Burrows, os sons de júbilo ainda vinham do corredor.

– Desculpe, Celia – disse ele. – Agora não está mais nas minhas mãos.


– Tem mais um deles – observou Will, reduzindo o passo ao apontar o símbolo de tridente entalhado na lateral da passagem de pedra. Automaticamente, pôs a mão no pescoço, embora o pingente do tio Tam não estivesse mais ali.

Ele se virou para Elliott:

– O esforço que deve ter sido necessário para cavar essa passagem simplesmente é espantoso. Acho que os Antigos queriam uma ligação entre seu “Jardim do Segundo Sol” e a crosta exterior. Talvez para uma rota de comércio entre os dois mundos.

– Não tem ideia do quanto fica parecido com seu pai quando você me vem com essas coisas – observou Elliott.

– Fico, é? – respondeu Will, silenciosamente satisfeito que ela pensasse assim. Pendurou a Bergen nas costas. – Pelo menos estou com o diário de papai aqui... Graças a você. Você o salvou. Depois que ele foi baleado, eu não estava pensando direito... Na verdade...

Will estava constantemente ciente de que agora era o guardião do diário do dr. Burrows, o único registro de todas as investigações dele. Se pudesse levar às pessoas certas na superfície, garantiria o lugar do pai na história como um dos maiores exploradores de todos os tempos e, de certo modo, asseguraria sua imortalidade. E esta ideia ajudava Will a lidar com o imenso sentimento de perda que enfrentava, do homem que foi a pessoa mais importante de sua vida.

– ... Na verdade, eu não estava pensando em nada – murmurou ele, com a expressão vazia.

– Ninguém culpou você por isso – tranquilizou-o Elliott.

Will saiu de seu curto devaneio e franziu a testa.

– E sabe de uma coisa, nem chegamos tão longe e eu já começo a me sentir mais leve. A gravidade, definitivamente, é menor.

– Definitivamente – concordou ela. – Agora podemos continuar? Temos muito a andar, e não quero pensar nisso.


Capítulo Vinte e Cinco


O general Limitador cronometrou tudo com perfeição. Enquanto a tempestade cedia, a frota de helicópteros reduziu a velocidade e posou no meio do estádio. O imenso complexo fora construído nos limites da cidade, várias décadas antes, para um comício comemorativo. Mas agora a área antes bem conservada estava tomada de mato – e era um local perfeito para o Fa 233 pousar sem ser visto por ninguém da cidade.

O general Limitador supervisionava seus homens que escoltavam os prisioneiros neogermanos dos helicópteros, encurralando-os numa ponta do campo, onde três estandartes compridos se agitavam ao vento moribundo. Cada um deles antigamente exibia com orgulho o símbolo nacional da Nova Germânia – uma águia contra um fundo vermelho e preto gritante. Porém, nos anos que se passaram, ficaram tão esfarrapados e desbotados pelo sol que a águia e as cores gritantes quase haviam desaparecido.

Os prisioneiros estavam de pé com as mãos na cabeça, os olhos baixos, à espera de instruções.

– Bando de molengas – comentou Rebecca Dois.

Não houve uma única baixa na pirâmide quando, de surpresa, os Limitadores tomaram todo o contingente de soldados da Nova Germânia e assumiram o controle de sua frota de helicópteros. As gêmeas Rebecca não ficaram nem um pouco impressionadas com a disposição dos soldados de baixar as armas e se renderem.

– É falha de liderança – concordou Rebecca Um, torcendo o lábio com desdém. – Uma coisa que podemos consertar.

– Liderança? Que dizer o gordo que mora no arco, com o cabelo brilhante e gosto pela boa vida? – perguntou Rebecca Dois, erguendo a sobrancelha.

Rebecca Um riu com a ironia.

– Sim, ele... O Chanceler gordo. Mas Coxy parecia ter um fraco por ele.

– Pobre velho Coxy. Trouxemos o corpo dele conosco? – disse Rebecca Dois.

– Trouxemos. Por quê?

Rebecca Dois ficou pensativa por um momento.

– Porque eu acho que o primeiro compromisso oficial que o Chanceler gordo deve presidir... como nossa marionete, isto é... deve ser um funeral com honras de Estado para Cox. Sabe, com uma banda tocando, honras militares, aviões sobrevoando e...

– Sim, e uma estátua. Uma estátua natural e bem grande, naquela praça onde fica a Chancelaria – propôs Rebecca Um, depois riu. – E deve ficar na frente da janela do Chanceler gordo, onde o palerma terá que vê-la todos os dias. Coxy acharia isso divertido.

A alegria de repente deixou seu rosto, e ela resmungou, como se estivesse irritada.

– Que foi? – perguntou a irmã.

– Will e Elliott. Nem acredito que deixamos que eles escapassem por entre nossos dedos de novo. Foi divertido despachar o dr. Burro, mas estávamos entrando no ritmo quando Elliott cedeu daquele jeito e nos devolveu o vírus. Que pena... Tínhamos Will bem aqui. – Olhando sua mão, cerrou-a num punho pequeno e firme. – Tínhamos Will bem aqui e deixamos escapar.

Rebecca Dois sorriu com esperança.

– Não perca o ânimo. Conseguimos o principal objetivo e haverá tempo suficiente para resolver as pequenas inconveniências depois. Uma pessoa precisa de um objetivo... É o que faz a vida valer a pena. – Ela parou de falar ao olhar o jovem oficial louro sendo afastado dos outros soldados neogermanos. Ele ficou entre dois Limitadores, o terceiro seguindo de perto com um estojo pequeno nos braços.

– E assim começa o processamento – observou Rebecca Um.

A irmã acenou na direção do oficial.

– Esse foi o soldado que nos encontrou quando entramos na cidade. Ele é um bom homem... Usou a razão quando o ameacei. Salvou sua vida com seu raciocínio rápido.

– Sim – disse Rebecca Um de um jeito arrastado, com um leve sorriso brincando nos lábios enquanto olhava de lado a irmã.

– Espero que não sejam rudes demais e não o estraguem – falou Rebecca Dois com gravidade, ainda vendo o grupo ir para um dos arcos armados nas rampas de assentos na lateral do estádio. – Sabe, se não se importa, acho que gostaria de assistir à sessão dele... Para que tudo saia corretamente.

Com um riso malicioso, Rebecca Um cutucou a irmã.

– Não me venha com essa seriedade toda, fingindo que isso não passa de trabalho... Você gosta mesmo dele, não é? Tem uma queda pelo capitão Cachinhos Dourados ali.

– Capitão Franz – disse a irmã, depois se arrependeu.

– Ah! Você até sabe o nome dele! – grasnou Rebecca Um, depois se dissolveu em risos.

– Não seja boba – murmurou Rebecca Dois, soltando um muxoxo constrangido ao andar rapidamente para onde os Limitadores levavam o oficial.


Devido à leveza cada vez maior, Will e Elliott moviam-se pela passagem dos Antigos em ritmo acelerado.

Tinham apenas que se impelir e, literalmente, voavam por ali. Em sua maior parte, a passagem era reta, com algumas curvas suaves, que eles percorriam desviando-se das laterais. Quando Will avistava uma curva acentuada pelo visor, gritava um aviso a Elliott para reduzir o ritmo.

Era como se estivessem caindo, só que de lado, ou talvez de cabeça para baixo. Will não sabia mais diferenciar para cima de para baixo.

E, certamente, era útil que os dois dominassem uma forma semelhante de locomoção espacial durante os meses que passaram no nível de Martha, no Poro.

O único risco pelo caminho era esbarrarem numa nuvem de poeira ou em algum dos destroços que flutuava livremente no ar. Não era uma ocorrência comum, mas, na velocidade em que iam, o choque poderia ser doloroso.

E para se manter ocupado Will tentava calcular a velocidade em que viajavam. Calculou que podia ser de uns cinquenta quilômetros por hora.

– Raio da Terra... Seis mil e trezentos quilômetros... Mas este túnel será mais curto... Por causa do espaço que o mundo interior ocupa... E, assim, podemos ter uma distância total de... Ah, sei lá... quatro mil quilômetros pela frente – disse ele em voz alta, enquanto pensava bem. – A essa velocidade – gritou a Elliott –, vamos chegar lá rapidinho!

– Não coloque a carroça na frente dos bois – aconselhou-o Elliott.

Algum tempo depois Will viu que Bartleby tinha parado mais à frente.

– FREAR! – gritou ele a plenos pulmões para alertar Elliott. Estendeu a mão para se segurar na lateral da passagem enquanto tentava reduzir seu ritmo.

Mas isso não saiu de acordo com os planos, e ele girou pelo ar até chegar perto da lateral novamente, conseguindo se segurar e parar.

Ele ouviu o grito de Elliott atrás e estendeu a mão para segurar a menina, que passava feito um foguete. Conseguiu pegá-la, mas o impulso de Elliott o arrancou da lateral de novo.

– Não me ouviu? – perguntou ele, enquanto os dois finalmente paravam.

– Não, não ouvi. Da próxima vez, grite mais alto, está bem? – rebateu ela.

Estavam tão cansados que o clima entre eles de vez em quando esquentava e acabavam discutindo pelas menores coisas, mas dessa vez os dois se distraíram com o que havia à frente.

Pouco além de Bartleby, que fazia lentas cambalhotas no ar, parecia haver algo bloqueando a passagem.

Will se aproximou, descobrindo que não era pedra, mas filamentos grossos e levemente brilhantes se projetando das paredes. Não eram tão densos, mas, pelo que pôde distinguir, continuavam por alguma distância pela passagem.

Ele usou o cano da Sten Gun para investigar. Os filamentos eram flexíveis, ondulando quando os empurrava.

– Não tenho ideia do que seja isso – admitiu, arrancando um único filamento de onde estava ancorado. Era de cor cinza e tinha uns sete centímetros de diâmetro. – Talvez algum tipo de planta? Planta morta? Ou, quem sabe, algum mineral, que se formou aqui devido à gravidade baixa? – Ele assobiou entre os dentes por um momento enquanto o examinava. – Mas, seja o que for, pode reduzir nosso passo – disse.

– Não reduziu muito o passo das duas Rebecca quando elas vieram por aqui, não é? – discordou Elliott. Tomou impulso até os filamentos e puxou outro da pedra. Depois voltou e tirou a Bergen. Em seguida, tentou colocar fogo no filamento, gritando para Will quando conseguiu.

– Isso! Ele queima bem! Comida quente! – anunciou ela.

– Brilhante. Eu adoraria – respondeu Will, tirando o rastreador e ligando-o. Ao apontá-lo para direções diferentes, notou que ele emitia uma variedade de estalos, depois examinou o mostrador no alto do dispositivo. – O sinal é fraco, mas ainda estamos no curso – disse, assentindo consigo mesmo.

Várias passagens se ramificavam da rota principal, mas, em geral, eram menores, então havia pouca confusão sobre que caminho deveriam tomar. E embora estivesse curioso para descobrir onde davam as passagens laterais, Will sabia que sua prioridade era terminar a jornada antes que o suprimento de comida e água se esgotasse. Precisavam considerar também que os Styx talvez não estivessem muito longe no túnel ao correrem de volta à superfície para usar o vírus Dominion. Will não gostava muito da ideia de esbarrar com eles, e isso tornava essencial levar Elliott para a Crosta o quanto antes.

Bartleby passou flutuando por ele a caminho de Elliott, com uma trilha de gotas cintilantes de saliva derramando de sua boca aberta, e Will sentiu o cheiro de carne cozinhando.

– Meu Deus, estou faminto! Não deixe o gato comer a minha parte – disse ele, desligando o rastreador.


Um dia depois Will começou a perceber minúsculas centelhas. No início pensou que seu dispositivo de visão não estivesse funcionando bem, mas ao virar a lente para cima e reduzir a velocidade viu que pequenas faíscas azuis subiam pelo alto de sua Sten.

Elliott parou ao lado dele. Quando seu rifle se aproximou da Sten, uma fina faísca azul saltou entre os canos.

– O que é isso?! – exclamou ela.

– Desligue sua lanterna – disse ele.

Ela tirou a lanterna Styx, presa na alça do ombro da Bergen, e apagou a luz.

Qualquer objeto feito de metal, inclusive a lanterna Styx, tinha ondas lúgubres de luz azul.

– Acho que é alguma descarga elétrica. Quem sabe não é estática? – disse Will. – E está ouvindo isso?

No escuro, eles ficaram de ouvidos alertas. Sem dúvida nenhuma havia um ronco baixo, uma vibração enchendo a passagem.

– Sim, ouvi – disse Elliott, religando a lanterna no ajuste mais fraco.

– Será que...

– O quê? – perguntou ela enquanto Will olhava à meia distância, de cenho franzido.

– Não, eu só estava pensando... Será que agora estamos no mesmo nível do cinturão de cristal? Esse acúmulo de eletricidade pode ter alguma coisa a ver com a triboluminescência... Aqueles cristais imensos e faiscantes por que passamos antes, a caminho do mundo interior – sugeriu ele. – Então, agora, podemos estar bem ao lado do vazio. – Olhou a pedra da parede. – Talvez em algum lugar do outro lado disso aqui.

– Está me dizendo que podemos estar na metade do cinturão? – perguntou ela.

– Pode ser – respondeu ele.


PARTE QUATRO

Na Ofensiva


Capítulo Vinte e Seis


Havia dois jogos de equipamento espalhados pelo chão, e Drake verificava atentamente cada item de uma lista enquanto Eddie observava.

– Nós dois vamos carregar quinze destas – disse Drake, apontando com a caneta algumas latas prateadas, cada uma do tamanho de uma pequena garrafa térmica. – Contêm pesticidas em pressão e concentração incrivelmente altas – explicou ele. – Vamos plantá-las a intervalos regulares nas margens da Cidade Eterna, presas a explosivos detonados por rádio. À medida que explodirem, o pesticida será liberado em forma de aerossol e as correntes de convecção garantirão que se dispersem plenamente. Pelos meus cálculos, toda a área deve receber um manto com força suficiente para fazer o trabalho.

– Bombas de pesticidas – refletiu Eddie.

– Exatamente – disse Drake. – E adeus, lesmas... Então, os Cientistas não terão mais viruzinhos desagradáveis para colher.

Chester estava agachado na sala, com a camisa saindo por um lado do jeans como se tivesse se vestido às pressas. Drake olhou de lado para ele, mas continuou sem parar, cutucando um rolo de corda volumoso com o pé.

– Eddie, você disse que devemos levar isso... Deve haver mais aqui do que vamos precisar, mas prefiro pecar pelo excesso de cautela. – Drake indicou duas caixas pretas e pequenas, curvando-se para levantar com a caneta os fios que saíam da mais próxima. – Microfones de pescoço. Estaremos em contato constante durante a operação com isso aqui... São o último lançamento do kit das Specfors.

– Specfors? – perguntou Eddie.

– Forças Especiais – intrometeu-se Chester.

Drake e Eddie o olharam, um tanto surpresos por ele saber disso. Ele inclinou a cabeça para o quarto.

– Do game de PlayStation que joguei hoje de manhã – grunhiu ele.

– Muito bem – disse Drake, voltando a falar. – De qualquer modo, essas unidades são muito menos volumosas e mais confiáveis do que os fones convencionais.

– E isso? – perguntou Eddie, indicando as duas pilhas de fardas verdes dobradas. No alto de cada uma delas Drake colocou uma máscara antigás. – Já tenho meu respirador e os trajes de Limitador.

– Estes são melhores... O mais recente lançamento do kit NBQ – respondeu Drake.

– Ah, esse eu não conheço – intrometeu-se Chester.

– Significa Nuclear, Biológico e Químico, mas os militares se referem a eles como trajes Noddy – explicou Drake, com um breve sorriso. – E são essenciais na Cidade Eterna... Sabe o que aconteceu com Will quando ele passou pela cidade da primeira vez sem respirador?

– Ele e Cal conseguiram escapar por pouco de serem mastigados por um rastreador? – disse Chester com amargura. – Ou você está falando de ele quase ter sido agarrado por aqueles assassinos da Divisão?

Drake o encarou para que ele entendesse que estava passando dos limites.

– É... Eu sei... Ele ficou muito doente – disse Chester por fim.

– Existem alguns patógenos muito desagradáveis passeando lá embaixo, por isso todo esse exercício – disse Drake, agora olhando as máscaras de gás. – E, para ser franco, se estiver usando um desses trajes Noddy e formos localizados, é menos provável que você seja reconhecido por seus antigos camaradas. E por falar nisso... – acrescentou, indicando os pares de pistolas e rifles. – Dispare dardos tranquilizadores caso encontremos alguém da Divisão depois de entrarmos. A dose nos dardos é suficiente para derrubar um homem por umas boas quinze horas. – Drake olhou para Eddie. – E não é letal, como combinamos. O pior que pode acontecer é seus antigos camaradas acordarem com uma dor de cabeça de cegar.

– Obrigado – disse Eddie.

– Não entendo, Drake – vociferou Chester, de cabeça baixa ao olhar duro para Eddie. – Só porque você está trabalhando com um Styx está preparado para deixar que os outros se safem?

– Ora, espere aí um minuto – protestou Drake.

– Não, deixe que ele diga o que quiser. – Eddie estava em seu jeito calmo e implacável de sempre. – Posso ver que ele precisa desabafar.

Chester ficou vermelho ao continuar:

– Se tiverem que fazer, eles não hesitariam antes de nos matar... Nem meus pais, aliás... Mas para você não tem problema que eles se safem porque se envolveu muito com seu novo amigão. – Ele olhou para uma das armas de dardos no chão. – Devia usar balas de verdade, e não esses brinquedos de criança.

Eddie assentiu.

– Não sei o que dizer para mudar seus sentimentos, não depois do que você passou – disse ele.

– É, o que você pode dizer? – Chester fechou a cara.

Eddie andou até a parede de janelas e olhou a vista do Tâmisa, depois os prédios na margem oposta.

– Mas o que lhe direi é que este mundo que vocês construíram está condenado. Não é sustentável. Vocês lutam para se desenvolver a qualquer custo... Mais tecnologia, mais pessoas, mais liberdade, e o tempo todo sufocam o planeta, a base de toda vida.

– Mas fazemos coisas para salvar o... – começou a protestar Chester.

– Salvar o ambiente? – rebateu Eddie, depois riu alto. Chester e Drake ficaram pasmos com isso; nenhum dos dois o ouvira rir antes. – Seus políticos são fracos e não têm nem vontade nem poder para promoverem as mudanças a tempo, porque as próprias pessoas são fracas e não abrem mão de seus luxos. Mas meu povo, os Styx, assumiria controle imediato e completo da indústria para reduzir os níveis de poluição, também implementaria um sistema feudal, para que cada membro desta nação saiba exatamente qual é sua posição.

Chester franziu o cenho.

– Um sistema feudal?

– Sim, como o que havia no passado. Todo mundo trabalharia pelo bem comum e não haveria desemprego, porque os que se recusassem a trabalhar seriam despachados para os guetos e seriam excluídos. Mudaríamos tudo. Salvaríamos tudo. Salvaríamos vocês de si mesmos.

Chester ficou completamente pasmo com tudo isso, olhando Drake, que não dizia nada.

– Mas isso é besteira. Se vocês realmente querem salvar meu povo, por que o matam o tempo todo?

– Porque é a única maneira de conseguir nossos objetivos. Garanto que usar o vírus Dominion não é a abordagem correta, por isso estou aqui, mas lembre-se... – Eddie se voltou para Chester e o olhou fixamente nos olhos – ... Temos que partilhar este mundo com vocês, então vocês estão poluindo nossa casa também. Por que ficaríamos parados, deixando que façam isso? Se somos obrigados a eliminar algumas vidas para resgatar este planeta de uma morte asquerosa e demorada, você não diria que estamos agindo em defesa própria?

Chester balançou a cabeça enfaticamente.

– Não, o que você está dizendo é loucura. Está distorcido. Tudo vai ficar bem sem toda essa história que está sugerindo. Ninguém precisa morrer.

Eddie fez um gesto para a vista pelas janelas.

– Diga isso daqui a vinte anos, quando os níveis dos oceanos subirem e tudo isso estiver sob trinta metros de água. Quando começarem os tumultos por comida e vocês tiverem que matar para ter a próxima refeição.

– Drake, diga a ele que está errado – implorou Chester.

– Foi você que começou – respondeu Drake.

Eddie afastou-se da janela e foi até sua cena de batalha, pegando alguma coisa do canto da mesa.

– Chester, eu comprei aqueles filmes para você ver. – Ele olhou o DVD de cima. – Este parece interessante... É sobre robôs gigantes que vêm do espaço para a Terra e têm que combater sua população para salvá-lo... para evitar um desastre ecológico.

Chester não sabia reagir a isto e simplesmente se aproximou de Eddie para pegar os filmes com ele.

– Hmmm... Ótimo... Obrigado – murmurou. Virou-se para Drake, parecendo um pouco mais tímido. – Essa operação... Tem certeza de que não quer que eu vá com vocês? Eu podia ser o vigia. Ou posso ajudar a carregar parte dos kits.

– Não precisa, Chester... Temos tudo sob controle – respondeu Drake. – Bastam dois de nós... Vamos entrar rapidamente e terminar o trabalho... Não deve levar mais de algumas horas para voltarmos à superfície.

– Acho que vou ver meus filmes, então – disse Chester, arrastando-se pela sala.


– Aleluia! – gritou Eliza ao ouvir o bater de cascos de cavalo nas ruas de paralelepípedo. Ela correu para a janela e espiou. – Sim, eles chegaram! – Confirmou com outro grito exultante enquanto a carroça parava na frente da casa.

– Enfim, eis o dia que eu esperava e rezei tanto pra que chegasse – proclamou a mãe, saindo às pressas da cozinha, enxugando as mãos no avental.

Um colonista parrudo com um guarda-pó cinza ao lado do condutor pulou para baixo, balançando a carroça que era aliviada de seu volume nada insignificante. De um jeito rotineiro, ele partiu para a casa. Depois de alguns passos, parou de repente, xingando como se tivesse se esquecido de alguma coisa, e voltou à carroça.

Eliza ainda olhava pela janela.

– Não... O que é agora? Não volte! Não pode acabar logo com isso? – instava ela enquanto ele ia à traseira da carroça. Curvando-se para o lado, ele pegou uma prancheta, depois voltou a andar pesadamente para a casa. Ergueu a mão carnuda como uma maçã e estava prestes a bater na porta quando Eliza a abriu.

– Oh! – disse ele.

Eliza não pôde deixar de olhar as sobrancelhas do homem: eram tão vastas e brancas que a lembravam das lagartas gigantes que infestaram as áreas rurais da Caverna Norte anos antes. Surpreso com a prontidão com que a porta foi aberta, agora as sobrancelhas do homem pareciam se mover de forma independente e Eliza fez o que pôde para resistir à tentação de dar um tapa nelas.

– Bom dia – murmurou ele, com a mão ainda postada no ar. Ele a baixou lentamente, e as lagartas gêmeas terminaram seu número de levitação ao se acomodarem na crista de sua testa. Depois ele semicerrou os olhos para os papéis impressos na prancheta. – Esta é a residência do Segundo Oficial? – perguntou.

– Sim – respondeu Eliza ansiosamente. – Mas ele não está. Está no trabalho.

– Não importa. Posso dar essa notificação assim mesmo – disse o homem e, pigarreando, começou a ler. – Sob a Ordem 366, Édito 23, para a promoção do conhecimento dos Cientistas, vocês são solicitados a fornecer...

A mãe do Segundo Oficial colocou a cabeça por trás da filha.

– Você veio pegar a mulher da Crosta – interrompeu-o ela.

– Hmmm... Vim – confirmou o homem.

– Então deixa de lado toda essa lenga-lenga oficial. Ela tá aqui mesmo – disse a velha. Embora seu corpo envelhecido fosse pequeno e encolhido, ela puxou o braço do homem com força, levando-o à sala de estar, onde a sra. Burrows estava em sua cadeira de rodas. – Leva ela logo.

– É esta a pessoa? – perguntou ele.

– Ela não é uma pessoa, é uma mulher da Crosta. Agora, por favor, tire-a daqui – disse Eliza com impaciência. – Mas deixe a cadeira de rodas porque não é nossa e temos que devolver.

Colocando os papéis no aparador, o homem enrolou as mangas do casaco. Soltava estalos com a língua enquanto olhava a sra. Burrows, tentando deduzir o quanto ela pesava, como se fosse um móvel pesado. Porém, o vestido imenso que cobria seu corpo magro dificultava uma avaliação. Com um último estalo, ele se aproximou dela, erguendo seu braço, hesitante, na manga bufante do vestido.

– E queremos ficar com as roupas, as íntimas e tudo – informou-o Eliza.

Espantado com a exigência, o homem se virou para ela com uma das lagartas quase plantando bananeira em sua testa oblíqua.

– O que espera que eu faça... Que tire dela? Não posso fazer isso... Não seria decente.

– Não, não agora – disse Eliza, rindo. – Meu irmão pode pegar depois.

Aliviado, o homem continuou sua avaliação da sra. Burrows.

– Ela não anda?

– Não – confirmou Eliza, rindo com amargura. – Ela está mais morta do que uma lesma num caneco de New London... Onde ela está agora não tem volta. Então, tire-a daqui e jogue na sua carroça!

Concordando com a cabeça, o homem passou os braços pela cintura da sra. Burrows e levantou seu corpo flácido da cadeira.

Houve um rosnado de ameaça do canto da sala e Colly se aproximou do homem, arreganhado os dentes.

Enquanto o homem girava a sra. Burrows para se proteger da felina, a mãe do Segundo Oficial ficou surpresa.

– Colly... Qual é o seu problema?

– Ela está no cio ou coisa assim? – disse o homem, parecendo decididamente preocupado.

– Para seu cesto! Agora! – A velha repreendeu a gata.

Sob a pele frouxa, os músculos de Colly incharam como nós em cordas quando ela se preparou para atacar o homem.

– Colly! – gritou Eliza, erguendo a mão para bater no animal. Ainda assim, ela não mostrou a intenção de recuar, então Eliza a pegou pelo cangote e a arrastou para o corredor. As garras estendidas da felina se agarraram num tapete persa puído no chão e o levaram para fora da sala. Mas Eliza por fim conseguiu trancar o animal na cozinha, onde ele ficou sibilando.

– Não sei o que deu na Caçadora – desculpou-se a mãe do Segundo Oficial. – Ela normalmente é um anjo, e nunca é assim com ninguém.

– Não importa – disse homem, apressadamente pendurando a sra. Burrows no ombro, como se ela fosse um saco de batatas, e indo para a porta. Ele parou com um palavrão baixo. – Quase esqueci de novo... Me passe meus papéis, por favor.

A velha meteu a prancheta embaixo do braço dele, que continuou seu caminho.

Eliza e a mãe foram à porta ver o homem depositar a sra. Burrows no fundo da carroça. E o tempo todo houve um arranhar frenético, intercalado com gemidos baixos e sinistros vindos da cozinha.

– Mas o que deu nesse bicho? – disse a velha. – Não entendo.

– Talvez ela sinta o mesmo pela mulher da Crosta que meu querido e desorientado irmão – respondeu Eliza com malícia. – Ele vai ficar magoado por não ter tido a chance de se despedir de sua querida aleijada. E logo, logo os Cientistas vão abrir sua cabeça como uma ostra.

– Ostra? – repetiu a velha, sem entender bem.

– Sim... Sabe como é... CRAC! – disse Eliza, movendo as mãos como se usasse um martelo e um cinzel, a única maneira de abrir um daqueles crustáceos duros.

Ela e a mãe mal seguraram os uivos de gargalhadas histéricas. O barulho que faziam incitou os vizinhos do outro lado da rua a chegarem à janela para ver o que era toda aquela alegria.

– CRAC! CRAC! CRAC! – gritava Eliza, com lágrimas nos olhos.


Capítulo Vinte e Sete


Enquanto os estalos se aceleravam e ficavam mais fortes no rastreador, Will e Elliott pararam junto a uma passagem lateral. Ela indagou com o olhar, e em resposta ele abriu um largo sorriso.

– Por aqui... em algum lugar... está o submarino – disse ele. – Plantei um radiofarol na torre de comando. – Seu rosto se iluminou quando algo lhe ocorreu. – Quer dar uma olhada? No submarino? Podemos descobrir como as gêmeas Rebecca conseguiram pegar essa passagem...

– De jeito nenhum, EU NÃO QUERO – rebateu ela, com a voz se transformando em um grito.

– Ah, tudo bem – disse ele mansamente.

Os olhos de Elliott eram duros e inflexíveis enquanto ela o encarava.

– Tenha dó, Will... E se um de nós escorregar e ficar perdido no meio do nada de novo, flutuando à toa, como da última vez?

Will estava prestes a dizer que se isso acontecesse eles podiam usar o método do pai de disparar uma arma para impeli-los de volta à lateral, mas pensou melhor.

– Vamos continuar, então – murmurou ele.

À medida que a gravidade voltava, seus saltos pela passagem ficavam cada vez mais curtos, até que eles cobriam a distância mais lentamente do que antes.

Chegaram, então, a um lugar onde a rocha tinha se fraturado e deslocado e não tiveram escolha a não ser se espremer por um pequeno espaço antes de poder continuar no caminho. E logo depois encontraram um veio que se abria e dividia a rocha em toda a passagem. Não havia nada além de um abismo escancarado e escuro. Embora tivesse cerca de trinta metros de um lado a outro, eles ainda conseguiram pular a abertura e voltar à sua jornada.

– Há outros indícios de movimento tectônico nesta área – disse Will a Elliott. Não falou mais nada, perguntando-se se ocorrera a ela que os dois podiam ter entrado num beco sem saída. Se ele tivesse razão sobre terem passado pelo submarino russo, as gêmeas Rebecca não haviam descido por esse trecho do túnel. E com toda a probabilidade, em algum lugar à frente, o arqueamento da crosta terrestre com o correr dos séculos pode ter sido tão extremo que a passagem foi completamente bloqueada.


Muitas horas depois a gravidade tornou-se ainda mais pronunciada, e eles foram obrigados a restringir os passos. Às vezes, até tinham que se impelir com dificuldade em partes da passagem, que se transformava numa série de curvas alternadas.

– Oh, não – ofegou Will quando contornaram uma dessas curvas.

Eles toparam com o maior temor dele.

O caminho à frente estava completamente bloqueado por um desmoronamento.

Ele pegou o rastreador e verificou o sinal que vinha do radiofarol seguinte.

– Está tão perto! – disse ele.

– E eu estou tão cansada! – sussurrou Elliott. Sentou-se, de cabeça baixa, enquanto Bartleby se acomodou ao lado dela, arquejando fortemente.

– Mas o sinal... – começou Will.

– Não me diga. Não quero saber – murmurou ela, depois fechou os olhos.

– Elliott – disse Will, mas não houve reação.

Ela adormeceu rapidamente.

Pesando suas opções, Will se aproximou para examinar os destroços que obstruíam a passagem. Eles podiam tentar encontrar um jeito de contorná-los, pegando uma das vias laterais menores, mas, pelo que ele podia se lembrar, passaram pela última dessas alguns quilômetros atrás. E, mesmo que tentasse uma rota alternativa, a perspectiva de refazer seus passos agora que estavam tão perto era a gota d’água.

Ou eles podiam tentar abrir caminho cavando, embora fosse impossível saber quanta rocha havia pela frente.

– Reescavar – murmurou Will consigo mesmo, decidindo-se a ver até onde iria. Ele olhou novamente para Elliott, que dormia. Não queria acordá-la. Deslizando a Bergen dos ombros e enrolando as mangas, ele começou a deslocar as pedras, jogando-as de lado, uma por uma. Pelo menos a gravidade reduzida permitia que ele conseguisse se deslocar até as lajes maiores, algo que seria impensável na superfície.

Depois de várias horas Will estava ensopado de suor e ainda não conseguira abrir caminho. Estava tão cansado que suas pernas pareciam gelatina. Se abaixando, fechou os olhos e experimentou a sensação de cair através do chão, que ele sabia vir da fadiga crônica.

– Pare por uns minutos – disse a si mesmo. – Depois continue.

– Este é um daqueles momentos de vida ou morte. Fique aí e talvez você nunca mais se levante – afirmou uma voz grave. – Você e Elliott não dormiram nem comeram o bastante. Nem estão em boa forma. Talvez não tenham forças quando finalmente você acordar.

– Cala a boca, Tam – sussurrou Will, pegando o contorno de algo sentado ao lado dele ao se esforçar para manter os olhos abertos. – Não é real... eu sei... você... não é... real.

– Sou tão real quanto você quer que eu seja – respondeu o tio Tam com certa indignação, depois soprou um pouco de fumaça de cachimbo. Ela vagou para a cara de Will e ele tossiu.

– Isso fede pra caramba – murmurou Will. – E faz mal a você.

A resposta de tio Tam foi soprar outra nuvem no menino.

– Estou morto, Will. Dificilmente vai me fazer algum mal – disse ele, rindo. – E se você abandonar o trabalho agora, logo se juntará a mim. Will, não pare agora. Muita gente na Crosta depende de você.

Algo ocorreu a Will, deixando-o extremamente irritado.

– Ah, sim! Aquele pingente que você me deu era uma piada. Não ajudou em nada... Os bosquímanos...

Ao se sentar reto, Will pensou ter ouvido o eco fraco de um riso, mas não havia sinal do grandalhão. Porém, ele agora estava bem desperto, e as palavras de Tam ficaram com ele.

Muita gente na Crosta depende de você.

– Ah, então, vamos lá – incentivou Will a si mesmo ao se ajoelhar, depois se levantar, meio trôpego. Renovou seu ataque aos destroços assoviando consigo mesmo e às vezes contando cada pedra que retirava, até chegar a cem, recomeçando então a contagem.

Uma hora depois, começava realmente a enfraquecer ao soltar uma placa grande e provocar uma pequena avalanche. Ele pulou para trás, sem querer ser apanhado pelas pedras que rolavam. Depois, ao voltar lentamente ao local onde trabalhava, descobriu que não havia sido uma avalanche de fato. Em vez disso, viu uma abertura.

– Estou sonhando, não estou? – disse ele ao buraco. – Você não é real... Como o Tam.

Mas ao estender a mão pela abertura e abrir os dedos arranhados e sujos não encontrou nada. E seu dispositivo de visão noturna lhe permitiu ver que havia um espaço maior do outro lado.

– ISSO! Consegui! – exclamou ele, socando o ar.

Arrastou-se pela abertura, com o cuidado de não perturbar as pedras em volta, saindo em uma passagem nivelada. Era coberta de fungos. Ao se ajoelhar para tocá-los, ele foi levado às semanas que passara com Martha – tinha pouca dúvida de que era o mesmo tipo de fungo que crescia no nível dela, mas poderia estar tão perto da superfície novamente?

Tirou o rastreador do bolso e descobriu que o sinal era forte. Muito forte.

Ele sabia que devia voltar e dizer a Elliott o que pretendia fazer, mas não voltou; em vez disso, seguiu a origem do sinal. Não que fosse sensato – ele não estava nem com a Sten, nem com a Bergen –, mas no momento estava decidido a continuar e descobrir de onde vinha.

Soprou uma lufada, gelando o suor em sua testa.

E diante dele havia um lugar que ele reconheceu.

Era um rochedo alto que Will conhecia muito bem. Ele subiu, localizando a face com o símbolo do tridente ali entalhado.

Avançando pelo rochedo, chegou à beira de uma saliência, onde olhou o poro gargantuesco batizado por ele de Jean Fumarenta. A água caía em cascatas e o vento era forte.

Ele estava de pé no local exato do qual seu pai dera o salto. E Will e Elliott fizeram o mesmo, seguindo-o.

– Pai – disse Will, lembrando-se.

O dr. Burrows teve razão em pular – como ele dissera a Will, uma pessoa precisava ter fé em suas convicções. E, como consequência, ele fez a descoberta que derrotaria todas as descobertas, outro mundo no centro da Terra.

Mas qual foi a recompensa dele?

Ser assassinado a sangue-frio por duas meninas loucas, que antes se disfarçavam de filhas dele.

A raiva de Will ferveu, sem encontrar outra saída que não as lágrimas.

Piscando para afastá-las, ele olhou o alto do poro.

Ao pegar o clarão de algo branco movendo-se ao longe, sua raiva se evaporou, e ele de imediato recuou da abertura. Tinha se esquecido inteiramente dos Faróis. Este era o covil deles.

– Ah, meu Deus! – disse, percebendo que não tinha uma arma, nem nenhuma das latas de aerossol que Drake lhe dera.

Ele voltou, no início conseguindo manter a calma, depois partindo num trote. Não queria ter que passar por tudo aquilo para ser apanhado por um Farol.

Ao se esgueirar pela abertura e reentrar na passagem onde tinha deixado Elliott, ela ainda dormia a sono solto, com Bartleby enroscado a seus pés.

Will estava completa e inteiramente exausto. Arriou no chão ao lado de Elliott e lhe deu uma cutucada.

– O qu...? – disse ela por fim.

– Achei a Jean Fumarenta – disse ele, bocejando, mal sendo capaz de pronunciar uma frase inteira. – E o rochedo... O lugar de onde pulamos...

– O quê? – respondeu ela, grogue, depois levantou a cabeça de repente. – Como?

– Tam esteve aqui... Eu... abri a passagem... – disse Will.

– Tam? – perguntou Elliott, agora de olhos arregalados. – Mas se você passou para a Jean Fumarenta... Então conseguiu! Você é um herói! Conseguiu! Vamos logo!

– Sim... Mas... Faróis – murmurou ele. – Borrife... a gente... com... a... la...

Ele não terminou ao pousar a cabeça na pedra dura e dormir imediatamente.


Esperando que Eddie se preparasse, Drake por acaso olhou a cena de batalha na mesa. Aproximou-se dela, tentando distinguir o que havia de diferente.

– O desenho mudou. Isto deve ser depois, quando as forças de Napoleão estavam sendo derrotadas?

– Sim, é o último dia da batalha – respondeu Eddie.

Drake franziu o cenho.

– Mas está faltando Wellington de novo. Para onde ele foi?

– Está na minha mesa. Ainda não estou satisfeito com ele – disse Eddie, pendurando a Bergen no ombro.

– Ele me parecia muito bom. – Drake deu de ombros. – Muito bem, hora de pegar a estrada. – Foi até a porta que levava aos quartos e chamou em voz baixa: – Chester, estamos indo. Voltaremos no final da manhã. – Esperou por uma resposta, mas não veio nenhuma. – Adolescente típico... dormindo feito morto. Não quero perturbá-lo – disse a Eddie. Afastou-se da porta, e os dois saíram do apartamento.

A última coisa de que precisavam era serem identificados por um policial zeloso demais, então fizeram a jornada a uma velocidade muito mais comedida do que da última vez. De qualquer modo, graças às Bergen sobrecarregadas, pilotar as motos não era a mais fácil das tarefas.

Eles estacionaram no mesmo lugar na St. Anne’s Street.

– Para dentro e para baixo – disse Drake, pegando o estojo do rifle na traseira da moto.

Depois eles andaram pela curta distância até a vila que os levaria pelo Dean’s Yard. Estavam em trajes Noddy idênticos, com grossos casacos de capuz e calças da mesma cor. Isso, combinado com a corda de alpinismo e outro equipamento que carregavam, dava-lhes uma ligeira semelhança com dois montanhistas partindo para um novo desafio. Não era exatamente o que se esperava ver nas proximidades da abadia de Westminster a qualquer hora do dia, que dirá a essa hora da manhã.

Não surpreendeu que o porteiro entrasse em ação no momento em que colocou os olhos neles.

– Parem bem aí! – ordenou, correndo para eles de palmas erguidas. Ele estava prestes a segurar Eddie quando o Styx repetiu seu truque. Ao pronunciar as palavras-gatilho, a expressão do porteiro ficou vaga, e toda a preocupação foi eliminada. Depois o grandalhão simplesmente girou nos calcanhares e, metendo as mãos nos bolsos, rumou indiferente para a praça vazia.

– Ainda bem que o velho Frankie estava de serviço esta noite – cochichou Drake, guardando a pistola enquanto olhava o porteiro transformado.

Passando pelo pequeno alçapão, Drake e Eddie prepararam-se para a longa descida à cidade esquecida bem abaixo de Londres. Ao passarem pelos numerosos lances de escada de tijolos e correrem por quilômetro após quilômetro de vias retas, nenhum deles falava, suas botas numa batucada regular pelas lajes úmidas.

Quando chegaram ao início de uma escada circular, com água escorrendo pelos degraus e traiçoeiramente escorregadios, eles pararam para a rotina habitual de qualquer soldado antes de entrar em campo. Verificaram um ao outro, procurando “clarões” – qualquer coisa reflexiva que pudesse entregá-los se apanhada pela luz – e, de forma parecida, pularam várias vezes no mesmo lugar ao fazerem o “teste do ruído”, para garantir que as Bergen e os kits nos cintos estivessem bem acondicionados.

Drake tirou os dois rifles do estojo que carregava, entregando um a Eddie. Como as pistolas, essas armas só disparavam dardos tranquilizantes, e Drake tinha adaptado miras noturnas às duas. Por fim, colocaram as máscaras de gás e ligaram os microfones de pescoço.

– Mais uma vez pela brecha, caro amigo, mais uma vez – disse Drake, falando num sussurro, testando o link de rádio.

Eddie virou-se para ele, as pupilas escuras mal visíveis pelas lentes da máscara.

– Sim, escutando em alto e bom som – reconheceu.


Ao contrário do que Drake dissera, Chester não dormiu nada. E no instante em que Drake e Eddie saíram do apartamento, ele entrou na sala principal e foi à série de monitores de circuito interno. Viu os dois empurrarem as motos para a rua, depois montarem e partirem na noite.

– Muito bem... Coisas para fazer – disse a si mesmo, enquanto se sentava no sofá com o celular que Drake lhe dera. Suas mãos tremiam de excitação ao ligar o número na memória. O pai atendeu ao primeiro toque.

– Chester... Graças a Deus! – deixou escapar o sr. Rawls.

Chester se sentou ereto – era evidente que alguma coisa estava errada.

– Pai, que foi? Drake lhe disse para esperar minha ligação, não f...

– Sim, sim – o pai balbuciava. – Mas sua mãe... Ela saiu.

– Como assim, saiu ? – disse Chester. – Ela saiu do quarto?

– Pior... Ela saiu do hotel.

– Tem certeza? – pressionou-o Chester.

– Sim, eu desci ao saguão para verificar. Sei que Drake nos disse para não colocar o pé fora do quarto por nada, mas tive que fazer isso... Falei com a recepção e disseram que viram Emily sair do hotel, pela entrada principal. Ela simplesmente saiu pela porta.

– Mas por que mamãe faria isso? – perguntou Chester. – Ela sabia que era importante ficar escondida.

– Sim, claro, nós dois sabíamos. Mas ontem ela estava esquisita... Não parecia normal. Depois de Drake passar aqui à tarde, ela pareceu aceitar que ele precisava falar comigo em particular... E que eu não podia dizer a ela do que se tratava... Foi um... sabe como é... Como Drake fala mesmo?

– É o procedimento “você precisa saber” – disse Chester, ajudando-o. – Não se preocupe... Drake fez o mesmo comigo... Para o caso de os Styx pegarem vocês e fazerem...

– Ontem à noite ela ficou muito calada de novo – interrompeu-o o sr. Rawls. – Parecia ter alguma coisa em mente, algo que a perturbava. E quando eu me levantei há uma hora, dei as costas a ela só por um segundo, e ela se foi.

– Oh, não – sussurrou Chester.

Houve um momento de silêncio, pois nenhum dos dois falava.

– Pai, não pode ficar aí – disse Chester decisivamente. – Tem a chave do carro que Drake lhe deu... Vá para lá agora mesmo e me encontre onde ele disse. Não pare por nada.

– Mas... não posso sair... sem saber onde Emily está – discordou o sr. Rawls, com a voz tremendo. – O que podemos fazer?

– Nada, pai. Não há nada que possamos fazer. Ou ela só está irritada com alguma coisa e vai voltar quando tiver vontade, ou... – Chester não conseguiu terminar o que estava prestes a dizer, as palavras morrendo em sua língua. – Saia daí agora e faça o que Drake lhe disse... Me encontre no ponto combinado.


O sr. Rawls seguiu suas instruções e, meia hora depois, parou a várias quadras de distância do depósito no velho station wagon que Drake comprara recentemente. A cara do sr. Rawls era amarga, mas ele ainda conseguiu abrir um sorriso fraco ao ver o filho esperando por ele.

– Então, qual é o plano? – perguntou assim que Chester subiu ao banco do carona.

– O mesmo de antes. Não mudou nada. Temos que fazer exatamente o que Drake nos disse – respondeu Chester.

O sr. Rawls abriu a boca para protestar, depois a fechou, balançando a cabeça como se tudo aquilo fosse demais para ele.

– Mas há uma coisa – percebeu Chester. – Não pode chegar perto do hotel depois de me deixar.

– Não, eu... eu... E se Emily voltar? – respondeu o sr. Rawls. Ele agora estava realmente aturdido.

– Escute, pai, se estiver tudo bem, ela vai esperar por você. Mas se alguma coisa estiver errada e os Styx assumiram o controle dela de novo, este é o último lugar em que vai querer estar. – Chester tentava parecer o mais controlado possível, quando pouco abaixo da superfície vivia o mesmo turbilhão do pai.

Mas Chester também sabia que Drake era a única pessoa que podia ajudar, e não havia como deixá-lo na mão agora.

– Precisamos ir. Pegue à direita aqui para eu poder mostrar o depósito. Mais tarde, quando terminarmos, você deve voltar ao apartamento e ficar aqui, onde estará seguro. Vai precisar disto – disse Chester, entregando as chaves ao pai.


– Podíamos vender ingressos para esta aqui – comentou um dos Cientistas com o outro, os dois ao lado da mesa de exames em que a sra. Burrows estava deitada. Ambos usavam jalecos escarlate com adornos pretos, e nos bolsos na altura do peito havia números pelos quais se referiam um ao outro.

Um-Meia-Quatro, o Cientista que estivera falando, era um homem recurvado, com uma comprida cara rosada e maneiras lúgubres.

– Esta mulher da Crosta é um pequeno milagre. Foi torrada sob toda uma série de Luzes Negras e aqui está ela, o coração ainda bate... ainda puxa o ar... Extraordinário.

Ele ajeitou os óculos e olhou o colega por cima do corpo da sra. Burrows. Dois-Três-Oito, mais novo do que ele uns vinte anos, era um homem mais baixo, com uma disposição muito maior. Sempre que falava, era em explosões rápidas, como se estivesse articulando seus pensamentos no momento em que lhe ocorriam. E ele era, pelo que diziam, uma estrela em ascensão nos Laboratórios.

– Surpreendente – concordou o Dois-Três-Oito ao examinar a sra. Burrows com os olhos pequenos, que deixavam passar pouca coisa.

As roupas da sra. Burrows tinham sido retiradas, e um lençol cinza a cobria. Dois-Três-Oito se curvou para a frente a fim de examinar seu braço, depois passou à panturrilha murmurando freneticamente ao apalpar e futucar com os dedos grossos, tão rudemente que deixava marcas vermelhas na pele.

– Para alguém que ficou cataléptica pelo tempo que estão alegando, a mulher exibe perda mínima de tecido muscular. Eu teria esperado um grau muito maior de atrofia muscular consistente com seu estado atual, não concorda? – Dois-Três-Oito soltou tudo num fluxo ininterrupto. Ao puxar o ar, olhou para Um-Meia-Quatro, que torcia seu nariz de porco com desprazer, como se não gostasse do que via. – Será que os colonistas que cuidaram dela a submeteram a alguma forma de manipulação ou tratamento, porque eu teria dito que alguma fisioterapia deve ter sido administrada para que ela estivesse nessas condições.

Um-Meia-Quatro deu um passo para trás, perguntando-se se a saraivada verbal do outro homem chegara a um fim, ou se vinha mais por aí. Dois-Três-Oito agora murmurava consigo mesmo de novo, e o homem mais velho tomou isso como um sinal de que ele tinha dito tudo o que tinha para dizer, por ora.

– Duvido muito disso – respondeu Um-Meia-Quatro vagarosamente. – Afinal... são apenas colonistas... Um policial do Quartel e sua família... O que saberiam dessas coisas?

– É bem verdade, é bem verdade – admitiu Dois-Três-Oito tão rapidamente que parecia estar espirrando. – A explicação pode ser, talvez, que ela estava no auge da forma física quando os Styx a levaram e assim a degradação é menos acentuada do que ocorre em um sujeito normal.

Um-Meia-Quatro esfregou a testa como se estivesse desenvolvendo uma dor de cabeça.

– Desista! Toda essa conjectura é perda de tempo – rebateu ele a Dois-Três-Oito, cansado do outro homem, que se esquecia de sua posição. Não cabia a Dois-Três-Oito especular sobre essas questões; ele levaria anos antes que seu aprendizado fosse concluído. – Como sabe, vamos abrir seu crânio esta manhã... Para realizar uma investigação de cortes múltiplos dos tecidos cerebrais. Será intrigante ver que áreas de seu cérebro foram destruídas ou desorganizadas pela intensidade da exposição à Luz Negra.

– Vou apostar no lobo occipital virando papa – trinou Dois-Três-Oito. – Depois que fizermos a primeira incisão haverá uma gosma escorregando por cada mesa de exames, então será necessária uma bandeja de coleta já que não queremos pisar em matéria encefálica por todo o chão ou perdê-la pelo ralo antes que possa ser plenamente analisada.

Já bastava. Dessa vez Dois-Três-Oito de fato tinha passado dos limites – a fisiologia neural e a aplicação de tecnologia de interrogatório era área de especialidade de Um-Meia-Quatro –, e ele não gostava que um jovem tagarela e insignificante tentasse solapar sua autoridade. Em particular se ele tivesse razão.

– Chega... Prepare-a para a dissecção – ordenou Um-Meia-Quatro friamente. – Raspe o cabelo dela e coloque-a no soro. Não quero que ela bata as botas antes de amanhã... Prefiro dissecar minhas cobaias enquanto ainda estão frescas e o coração ainda bate.

Disciplinado, Dois-Três-Oito assentiu de um jeito adequadamente subserviente, depois disparou para os armários de instrumentos que ladeavam a parede. Ele não se importava muito com a postura arrogante de Um-Meia-Quatro com ele, mas dessa vez estava preparado para aquiescer. Um dia seria diferente. Ele teria sua própria especialização, seus próprios aprendizes para atormentar e seus próprios corpos para picotar.


A sra. Burrows estava perfeitamente ciente de onde se encontrava. Saiu o suficiente do refúgio escuro de seu cérebro para ouvir o diálogo entre os dois Cientistas. Embora não pudesse saber como eles eram, por algum motivo imaginou uma dupla de dr. Burrows parada ali, discutindo sobre ela, como se não passasse de um pedaço de carne que estavam prestes a retalhar. Essa gente acadêmica ficava tão absorta em seus estudos que lhe lembravam demais do marido, com sua paixão absoluta e egoísta por sua maldita arqueologia.

Ela sentiu Dois-Três-Oito mexer em sua cabeça de forma rude enquanto cortava aleatoriamente seu cabelo com uma tesoura. Depois ele jogou uma tigela de água em seu couro cabeludo, passou um pouco de sabão e começou a raspar com uma navalha. Outra humilhação – perder todo o cabelo –, mas ela ainda não faria nada. Ainda não.


Drake desceu a escada em espiral nos calcanhares de Eddie. Ele suava tanto por baixo do grosso traje Noddy que suas lentes ficavam embaçadas. E não ajudava muito também o fato de que sua respiração era limitada pela máscara de gás. Assim, quando o Styx parou de repente, Drake quase se chocou com ele.

– O que foi? – perguntou no link de rádio, retesando-se para ver o que havia à frente.

– Veja você mesmo – respondeu Eddie, separando umas meadas escuras de vegetação. Podia ser hera, só que as numerosas folhas lobuladas e cada ramo emitiam um brilho verde e sinistro. – Eu vos apresento o antigo reino dos brutões – anunciou o Styx. – A raça mais temida de toda a Eurásia no século XII antes de Cristo.

Drake se colocou ao lado dele, empurrando mais a vegetação e regulando a respiração para que as lentes desembaçassem.

– Santo Deus! – exclamou ele, ao avaliar onde ele e Eddie estavam.

Eles olhavam de uma abertura em uma parede da caverna de laterais escarpadas, a cerca de cem metros acima do nível do chão. À primeira vista, era difícil perceber a imensa escala da caverna. Para Drake, era como olhar Londres de um dos prédios mais altos ao amanhecer ou anoitecer de um dia de verão com nevoeiro. Ao se inclinar um pouco mais para fora, ele pôde ver a largura inimaginável e o esteio torcido da pedra que se lançava do chão e se estendia até o dossel no alto, como pilares bêbados.

A vegetação, que ele precisava manter afastada porque tendia a voltar e bloquear sua visão, estava por toda parte. Não só cobria as paredes da caverna, mas também invadia a lamacenta planície que cercava a cidade. E também emitia seu brilho suave, cuja intensidade geral ele percebeu que tornava desnecessárias as lanternas que eles levaram, por toda parte.

E no meio desse halo colossal de luz erguia-se a massa escura da Cidade Eterna. Drake usava outras rotas para entrar e sair da Colônia e nunca precisou investigar nenhuma outra que o teria levado por essa cidade deserta. Assim, até aquele momento, ele nunca a vira. E embora Will lhe tivesse falado em detalhes sobre ela, pelo que ele via, mesmo a essa distância, quase desafiava qualquer descrição.

Ansioso para ver mais, ele pegou o rifle e usou a mira para dar uma olhada panorâmica pela cidade, localizando prédios incrivelmente imponentes para onde quer que focalizasse.

– Impressionante – sussurrou ele. Para todo lado ele via templos gargantuescos com colunatas e construções com torres, como algo saído de um conto de fadas, mas um conto que ma taria de medo qualquer criança. Viu filas de estátuas e rios que cortavam a cidade como serpentes pretas e indolentes. E entre as construções havia amplas avenidas, precisamente onde Eddie focalizava sua atenção ao usar a mira do rifle.

– Não estou vendo nenhuma patrulha a pé da Divisão, mas isso não quer dizer que não estejam aí – disse ele. – A maior parte do tempo eles têm uma rotina: verificam brechas na fronteira, mas de vez em quando...

– Acompanham grupos de Cientistas em suas saídas para coleta de espécimes – completou Drake por ele, lembrando o que Eddie tinha dito antes. – Corria um boato na Colônia de que seu povo pretendia transferir todo mundo para cá – acrescentou. – Parecia ter algum sentido, mas há alguma verdade nisso?

– A Panóplia nunca desprezou inteiramente a ideia... É uma opção, se acontecer a Revelação.

– Quer dizer o dia fatídico em que a Colônia se atracará com o povo da Crosta? – perguntou Drake.

Eddie assentiu.

– Deve acontecer, mais cedo ou mais tarde. Mas a realidade é que a Colônia não tem mão de obra para tornar esta caverna habitável. – Ele baixou o rifle e olhou o teto, a várias centenas de metros. – O dossel ali é formado de uma cobertura de granito excepcionalmente denso, por isso os geólogos da Crosta nunca detectaram esta cavidade. Também significa que um movimento sísmico grande pode um dia levar a cobertura a se fraturar e desabar, o que seria desastroso para a Cidade Eterna... E para a Londres da Crosta.

– Não suporto pensar nisso – concordou Drake, ao olhar para baixo e perceber um aro grosso de metal enferrujado engastado na pedra, perto de seu pé. Embora estivesse quase inteiramente coberto pela folhagem cintilante, ele via que tinha uma corrente pesada presa ao aro, que se estendia sobre a beira da abertura e descia a parede da caverna abaixo deles. Ajoelhou-se para puxar a corrente, mas não conseguiu mover nem um centímetro, a mão enluvada escorregando pelos pesados elos.

– A corrente não é viável, por isso trouxemos isto – disse Eddie. Tirou a corda enrolada do ombro e amarrou uma ponta no aro de ferro. Atirou o restante na abertura. – Eu irei primeiro – acrescentou, preparando-se para descer de rapel.

Drake esperou até não sentir mais a tensão na corda e seguiu Eddie. Assim que tocou o fundo, Drake ficou consciente do chuvisco que caía do alto. Não eram constantes as lufadas ocasionais de vento que varriam a leve chuva para um lado ou outro. Enquanto ele levava um instante para entender onde estava, distinguiu estruturas retangulares no chão em volta dele, tomadas pela vegetação brilhante e por outro mato mais escuro e não luminoso. Foi a uma das estruturas que não estava inteiramente encoberta pela folhagem. Erguia-se do chão por quatro pernas de pedra, e o objeto em si tinha aproximadamente o tamanho de uma cabine telefônica que tivesse sido virada. Ao passar a mão sobre a superfície fosca de seu lado mais longo, ele pensou poder distinguir uma luz fraca saindo dela ou atravessando-a.

A voz de Eddie crepitou no fone de ouvido.

– Chapa de mica – disse ele.

Drake ouviu um chapinhar ao lado, e Eddie apareceu do nada, entrando em seu campo de visão. Drake ficou tão assustado que por instinto sacou o rifle.

– Calma – disse Eddie.

– Desculpe – respondeu Drake. – Mas se quer me pegar desprevenido...

– Não quero – afirmou Eddie.

Drake percebeu depois que Eddie, provavelmente, não pretendia pegá-lo de guarda baixa; o Styx estava em seu elemento – fora treinado para operar em ambientes como aquele, e ser furtivo era sua segunda natureza.

– Você disse alguma coisa sobre mica? – Drake indagou.

– Sim, é um mineral transparente – respondeu Eddie. – Estes são túmulos... Os brutões enterravam seus guerreiros mortos atrás da coisa mais próxima que tinham do vidro, possivelmente para que seus parentes de luto pudessem vir e ver a decomposição dos corpos.

– Que ideia original... Parece TV dos Mortos – disse Drake, olhando os túmulos que, pensando bem, pareciam um monte de televisores de tela plana dando para lados diferentes. Ele riu. – Certamente uma consequência bem-vinda do Big Brother, mas acho que não vai pegar. A não ser que haja mais participação do público. – Ele olhou a cidade. – Voltando ao que interessa... Algum sinal de atividade da Divisão?

– Nada... Parece liberado – respondeu Eddie ao se curvar para pegar um punhado do mato escuro de uma depressão lodosa no chão. – Esfregue um pouco em você para cobrir seu cheiro. Vai ajudar a afastar os cães de nosso rastro.

– Tudo bem – respondeu Drake, seguindo seu exemplo. Quando terminou, pegou o que pareciam relógios de pulso no bolso. – Aqui estão os localizadores para que possamos nos encontrar – disse, ativando os dispositivos antes de entregar um a Eddie, que o colocou no pulso.

Drake examinou a telinha.

– Tenho seu marcador.

– Certo... Também tenho o seu – confirmou Eddie.

– Tudo bem... Então vamos usá-los para nos encontrar no ponto combinado do outro lado da cidade – disse Drake. – Como discutimos, faça o que puder para plantar as latas a intervalos regulares ao prosseguir... Embora não importe muito se tivermos intervalos errados e elas coincidirem. – Limpando as lentes, ele olhou a chuva acima deles. – As correntes de ar daqui são mais fortes do que eu pensava... Farão um trabalho excelente na dispersão do pesticida. – Olhou para Eddie, parado ali com seu traje Noddy. – E se não der certo e alguma Lesma da Peste sortuda sobreviver, podemos tentar outra coisa.

– Vai dar certo – disse Eddie com confiança. – Boa sorte, Drake. Verei você do outro lado.

– Tá, desde que um de seus ex-colegas não entre de penetra na nossa festa – brincou Drake.

Depois, com um último aceno, eles partiram pelas margens da cidade, tomando direções opostas.


Capítulo Vinte e Oito


Chester e o pai carregavam uma mala juntos ao entrarem na viela que dava no Dean’s Yard.

– Bom dia – anunciou o porteiro ao se colocar no caminho deles.

– Bom dia para o senhor também – respondeu o sr. Rawls com uma animação forçada. – Eu estava levando meu filho à escola. Espero que nos perdoe, é que nosso voo fretado da Suíça teve vários problemas de motor e tivemos que fazer um desvio no aeroporto de Orly, em Paris, para reparos de emergência. Por isso só tivemos contato há uma hora, e meu filho está pavorosamente atrasado para a escola. Não está, Rupert?

– Sim, pai – respondeu Chester, tentando dar a impressão de que a boca estava cheia de bolas de gude.

– Pavorosamente atrasado – repetiu o porteiro. Ele passou os olhos pelo sr. Rawls, depois em Chester, vendo a camisa de rúgbi listrada e os jeans que o menino vestia. Não parecia estar convencido.

O sr. Rawls tossiu, erguendo a cabeça para a praça em um gesto de impaciência.

– Posso perguntar seu sobrenome, senhor? – disse o porteiro.

– Prentiss – respondeu o sr. Rawls.

Tendo notado as iniciais RP pintadas na mala, esta informação foi suficiente para aquietar as desconfianças do porteiro.

– Claro, cavalheiros, devem estar esgotados. Passem, por favor – disse ele –, posso ajudá-lo com isso, senhor? Parece pesada.

– Não – respondeu o sr. Rawls com certa pressa excessiva, depois se acalmou. – Obrigado... É muita gentileza sua... Mas podemos levar nós mesmos.

– Muito bem, senhor – disse o porteiro, dando um passo para o lado e deixando-os passar. Enquanto Chester e o pai entravam na praça e saíam do alcance do porteiro, ele murmurou bem baixo – Jatos particulares... Orly em Paris... mas que coisa u-lá-lá. Malditos riquinhos. Para alguns, tudo vai bem enquanto fico empacado aqui a noite toda, congelando meu traseiro.

Ao carregar a frente da mala, Chester olhou o pai de soslaio.

– Muito bom, pai, mas Rupert? Rupert? De onde tirou esse nome? – cochichou ele.

– Tinha que começar com R e, de qualquer modo, era como eu queria chamar você quando nasceu. Sempre achei que Rupert Rawls cairia muito bem – respondeu o sr. Rawls, depois balançou a cabeça. – Mas sua mãe não quis saber.

– Ainda bem que ela o impediu. A boa e velha mamãe – disse Chester, muito preocupado ao pensar nela. – Espero que ela esteja bem.

Chester não teve problemas para reconhecer a porta que Drake descrevera, e eles carregaram a mala para dentro. Foram diretamente à segunda porta, que levava ao porão.

– Não precisa de chave para isso? – perguntou o sr. Rawls ao ver a tranca.

– Não. Drake disse que cuidou de tudo – respondeu Chester, colocando a mão na velha porta de madeira e empurrando. Quando ela girou para dentro, ele olhou onde a trava da fechadura devia ter entrado pelo batente. – Às vezes as soluções mais simples são as melhores – sussurrou Chester, lembrando-se das palavras de Drake quando lhe falou do plano. Chester tirou a pequena cunha de metal que Drake inserira no buraco do batente e a colocou no bolso.

O sr. Rawls assentiu.

– Ele deve ter estado aqui antes e a arrombou.

Chester piscou para o pai.

– Trate de não fechar, ou nunca vai sair deste lugar – alertou – o ele.

Eles levaram a mala pela escada abaixo e ao fim do porão, onde a colocaram fora de vista, atrás de caixotes empilhados. Chester se voltou para o pai:

– Pronto, pai. Drake não quer que você veja mais nada, só por segurança...

– Sim, eu sei, eu sei... Caso eu seja raptado de novo – deduziu o sr. Rawls. Olhou com desolação para o filho. – Chester, eu não fui feito para isso. Passei a maior parte de minha vida atrás de uma escrivaninha, trabalhando em relatórios de seguro. E estou tão preocupado com sua mãe que mal consigo pensar em outra coisa. – Suspirou com desânimo. – Sei que nunca serei bom nessa história de andar disfarçado. E não sei como você consegue fazer isso.

– Tudo bem, pai, podemos falar disso depois? – disse Chester, sentindo-se péssimo por estar interrompendo o pai. – Tenho um programa a cumprir.

– Sim, claro – respondeu o sr. Rawls com resignação. – E tem absoluta certeza de que não posso fazer mais nada por você? Eu me sinto um inútil.

– Você já fez mais do que o suficiente, pai. Vai me ajudar se voltar ao depósito e esperar por nós lá – disse Chester. – Assim que eu encontrar Drake vou contar a ele sobre mamãe.

– Muito bem, filho – murmurou o sr. Rawls.

Chester viu o pai se virar para sair do porão, andando entre os caixotes, cabisbaixo e infeliz. Ele parecia muito frágil e vulnerável, e Chester percebeu como se sentia protetor com relação a ele. Era como se a relação pai-filho tivesse sido completamente invertida, e agora Chester é que tinha que cuidar dele e lhe dizer o que fazer.

E por mais que Chester quisesse poder fazer alguma coisa para livrar o pai daquela tristeza, não havia, e não podia deixar que o que aconteceu com a mãe lhe tirasse a concentração. Não agora.

Abrindo a mala, tirou do alto o rifle e o kit de cinto. Em seguida, ergueu duas Bergen pesadas pelas alças e colocou uma nas costas.

– Pesam uma tonelada... O que será que Drake colocou nelas? – perguntou a si mesmo, depois sacudiu a cabeça, resmungando “Procedimento você precisa saber” várias vezes. – Eu jamais gostei de Noddy – comentou para o porão vazio, ao alcançar o traje NBC bem no fundo da mala.


Drake e Eddie precisaram de umas boas duas horas para contornar as margens cobertas de mato. Plantaram a última das latas e se encontraram, como tinham combinado.

– Essa é nossa passagem – disse Eddie pelo rádio, enquanto ele e Drake se aproximavam do muro largo que cercava a cidade. Drake viu o que ele queria dizer: imensos blocos de alvenaria tinham desabado, deixando uma abertura pela qual se via uma grande construção sem janelas, do tamanho de um hangar de aeroporto. Drake teria reservas quanto a atravessar a cidade sem Eddie como guia, mas o Styx conhecia seu traçado, e aquela era a rota mais direta de volta à entrada da caverna.

Já depois da abertura eles caíram num canal cheio de água. Andando por ali, Drake olhou a parede do prédio ao lado. Com uns bons três andares de altura, toda a sua superfície tinha sido entalhada com um imenso relevo de uma procissão de barbudos de aparência feroz. Seus cabelos compridos flutuavam às costas como cobras descontroladas, eles estavam vestidos de tanga e carregavam lanças.

– Ainda bem que não temos que nos misturar com esse pessoal – comentou Drake a Eddie, saindo da água escura. Drake parou enquanto Eddie ia ao canto do prédio, onde se agachou para verificar o caminho à frente com o rifle.

– Liberado – disse Eddie, e eles entraram em uma das largas avenidas que Drake só vislumbrara de longe. Mas agora que estava realmente dentro da cidade ele prendeu a respiração ao perceber o que o cercava.

– Jesus Cristo! É a Terra dos Gigantes! – exclamou ele. Drake nem acreditava no incrível tamanho do lugar. As soleiras dos prédios tinham várias vezes a altura de qualquer homem normal. Todos os templos e palácios pareciam ter sido construídos por uma raça de seres tremendamente altos. E nas áreas protegidas ao longo das margens da avenida, onde o vento não penetrava, trechos de névoa vagavam pelo chão, movendo-se como fantasmas há muito perdidos dos antigos habitantes da cidade.

Drake e Eddie passaram por várias avenidas, mantendo-se nas laterais, onde eram obrigados a escalar pedaços de alvenaria caída dos prédios. De vez em quando, Eddie parava para verificar à frente. Numa dessas ocasiões, Drake viu algo em uma clareira, a várias centenas de metros deles.

– É a Plataforma dos Condenados de que Will me falou? – perguntou ele, indicando uma estrutura alta, erguida sobre vários pilares de pedra. Em cima havia formas vagamente humanas, todas em várias poses contorcidas, como se tivessem sido modeladas em pedra de cor clara. – Ele disse que são pessoas de verdade, que de algum modo ficaram fossilizadas – acrescentou Drake, usando a mira telescópica para examinar os corpos petrificados e os restos de algemas e pedaços de corrente enferrujada ainda presos a eles.

Eddie não respondeu e acenou para Drake continuar. Eles entraram em um prédio ecoante com piso de mármore, subindo um lance após outro de escada, até que não puderam prosseguir, porque o caminho estava bloqueado. Eddie então os levou por um corredor até uma sacada.

– Este é o posto de observação preferido da Divisão. Costumam posicionar alguns homens aqui em cima. Dê uma olhada – propôs ele.

– Posso entender por que – disse Drake. De seu ponto de observação ele podia ver o projeto da cidade e novamente ficou pasmo com sua extensão. Olhou o grande prédio abobadado, que Will também mencionara: parecia mesmo uma segunda St. Paul, embora esta tivesse sido construída muitos séculos antes da versão da Crosta que Drake conhecia.

– Posso? – perguntou Eddie, e Drake recuou para deixar que o Styx examinasse as avenidas abaixo. Quando ficou satisfeito por não ver mais ninguém, eles voltaram pela escada para o ar livre novamente, onde Eddie levou Drake a uma espécie de passagem subterrânea inundada. – Cuidado aqui – alertou, pegando a lanterna Styx.

Drake não perguntou por quê, mas ligou sua lanterna e a segurou ao lado do rifle. Queria estar com uma de suas lentes de visão noturna, mas teria sido pouco prática por baixo da máscara de gás. Eles percorreram várias centenas de metros quando algo rolou para eles pela água, levantando pingos. Feito raio, Eddie reagiu e saltou para trás. Como a coisa continuava a se aproximar dos dois, ele pisou-a.

Ela se rompeu em uma massa de carne, como se uma lesma do tamanho de uma abóbora tivesse sido esmagada. Por um rasgo em sua pele preta e grossa os órgãos expostos eram visíveis – deles escorria um líquido roxo-escuro, que se misturou com a água estagnada.

– Caramba! Mas o que é isso?! – exclamou Drake.

Eddie o rolou com a bota, para que vissem seus dentes ferozes.

– Os Cientistas acreditam que é uma espécie singular de fungo que evoluiu nesta cidade. É carnívoro e pode se locomover.

– Não diga – disse Drake, ofegando. – Mais alguma coisa que eu deva saber? Cogumelos voadores, por exemplo?

– Não, eles não voam – respondeu Eddie numa voz inexpressiva, como se pensasse que Drake falava sério.

Eles voltaram à jornada, por fim dando no muro da cidade, onde Drake decidiu parar.

– Imagino que este seja um lugar tão bom quanto qualquer outro. Hora de ver se meu detonador sem fio faz o que deve fazer. – Soltando uma bolsa do cinto, ele pegou uma caixa pequena, depois estendeu a antena. Ergueu uma capa na frente da caixa para revelar o painel e apertou um dos botões. Acendeu-se uma luz verde de LED. – Armado. Por que não faz as honras? – disse, entregando-o a Eddie. – Como era de se esperar, é o botão vermelho.

Eddie o estendeu diante de si e depois apertou o botão.

Com explosões abafadas, houve clarões de luz por todo o perímetro da caverna. Nuvens de vapor subiram de cada uma das trinta latas rompidas, iluminadas momentaneamente pelo forte brilho das explosões e então, com a mesma rapidez, se apagaram.

Drake deu de ombros ao se virar para Eddie.

– Não foi muito impressionante... Não parece compensar o esforço, não?

– Desde que surta efeito – observou Eddie. – Agora precisamos evacuar. Se houver alguém da Divisão aqui, vai querer saber quem foi o responsável por isso.

– Pode apostar que vai – respondeu Drake, e eles começaram a avançar rapidamente por uma arcada no muro da cidade e pela planície, em um rumo que os levaria à corda pendurada.

Ao chegarem aos túmulos que pareciam caixas, um tiro soou.

– Contato! – gritou Drake.

Passando direto entre eles, a bala bateu na lateral de um dos túmulos e rasgou em fissuras a chapa de mica. Quase de imediato o túmulo se espatifou em mil pedacinhos, revelando algo escuro e podre ali dentro.

Drake e Eddie se atiraram para lados contrários, rolando para trás dos túmulos a fim de se protegerem.

– De onde veio? – perguntou Drake com urgência pelo rádio. Ele ouviu a voz de Eddie; não tinha emoção nenhuma.

– Na sua frente, na cidade, uma patrulha de quatro homens a sessenta graus. Eu...

A voz de Eddie de repente cessou, e Drake não conseguiu vê-lo em lugar nenhum ao usar a mira noturna do rifle. Ele levou um momento para limpar as lentes da máscara. Não enfrentava amadores aqui e precisava de todos os seus sentidos. O problema era que o capuz do traje Noddy restringia sua audição – ele assumiu o risco de baixá-lo. A máscara de gás ainda o protegeria de qualquer patógeno no ar.

Ele ficou de ouvidos abertos e observou. Os segundos se transformaram em horas enquanto ele se esforçava para distinguir o mínimo que fosse, mas só havia o vento e o gotejar constante da água em volta dele.

Depois ouviu um ruído.

Mal era audível, o som de uma respiração. Drake girou a tempo de ver um imenso rastreador caindo sobre ele, seus olhos em fenda refletindo a luz verde e sinistra.

Quase perdendo o equilíbrio no mato ao recuar escorregando, Drake disparou do quadril. O dardo tranquilizante pegou o cachorro pelos flancos, onde se alojou. O imenso animal passou derrapando de lado enquanto suas patas se arrastavam pelo mato. Mas não parecia ter sido detido pelo tranquilizante, foi mais pela surpresa por ser alvo do dardo. Drake percebeu que ainda teria problemas ao ver o rastreador bufar e sacudir sua imensa cabeça como um touro na arena. Contorcendo seu corpo pesado ele investiu, novamente na ofensiva.

Depois, com um rosnado, as várias centenas de quilos do cão infernal estavam no ar, atacando Drake. Mas ele estava preparado – disparou, pegando-o no olho. Dessa vez o tranquilizante pareceu ter mais efeito, e o corpo do rastreador logo ficou flácido. Mas o ímpeto do cachorro era tanto que ele atropelou Drake, que, como um pino de boliche, bateu com força no chão empoçado, sem ar nos pulmões.

Embora não sentisse dor, ele ficou no chão, procurando refúgio sob o túmulo coberto de mato mais próximo.

– Um rastreador abatido – disse ele, bufando, no rádio, depois de recuperar o fôlego.

Apesar do silenciador encaixado no cano, o disparo do rifle ainda produzia um som semelhante a uma bola de futebol furada, e Drake estava preocupado que pudesse ser o suficiente para que os soldados Styx percebessem sua posição. Ele precisava trocar de lugar, e rápido. Olhou o outro lado do túmulo. Como a barra parecia limpa, esgueirou-se para fora. Percebeu a sorte que ele e Eddie tiveram – pelo menos a patrulha da Divisão não teve tempo de preparar uma emboscada completa – pelo menos a situação ainda era elástica.

Olhando as imediações por sua mira noturna, Drake viu um movimento fugaz a não mais de quinze metros dali – como se uma sombra tivesse passado rapidamente. Ele verificou o localizador em seu pulso. Não queria atingir Eddie por acidente. Vendo que ele não estava perto dali, Drake sussurrou em seu microfone:

– Acho que tenho um alvo... Está perpendicular em relação à cidade – disse ele. – Está atrás de sua posição... Estão tentando nos impedir de chegar à saída.

Drake olhou para onde havia visto movimento.

Os segundos se passaram.

O soldado Styx saiu de trás de um túmulo e Drake reagiu instantaneamente. O dardo pegou o homem no braço. Arrancando-o, o soldado cambaleou alguns passos, depois desabou. Quando Drake alcançou o soldado, chutou o rifle do homem para longe de seu alcance.

O soldado vestia um casaco longo, e Drake de imediato reconheceu a camuflagem verde-acinzentada característica da Divisão. Tinha óculos de proteção grandes e circulares nos olhos, e uma máscara de respiração Styx cobria a parte inferior de seu rosto.

– Você vai dormir por um bom tempo – sussurrou Drake, e disparou outro dardo na perna do homem, à queima-roupa. Não queria correr o risco de o soldado não ter recebido uma dose completa do tranquilizante. – Um soldado da Divisão abatido – reportou a Eddie pelo microfone, perguntando-se por que não ouvira nada do parceiro.

Drake se deslocou novamente, numa corrida agachada para o muro por onde ele e Eddie tinham entrado na caverna e onde esperava que a corda ainda estivesse pendurada. O plano dependia de ela estar lá.

– Verificando área entre cento e oitenta e duzentos e setenta graus – informou ele a Eddie pelo link de rádio. Ao olhar o localizador, ficou surpreso ao descobrir que o marcador de Eddie estava quase em cima do seu.

– Tive que cuidar dos outros – disse Eddie, aparecendo atrás de Drake, depositando três dos longos rifles Styx no chão a seus pés. – Mas o...

Soou um tiro, e os dois se jogaram no chão.

– Veio de cima – disse Eddie, olhando a parte superior das paredes da caverna.

Mas Eddie não teve tempo para isso, porque os dois viram uma figura a pouco mais de vinte metros. Estava esperando por eles, perto de onde a corda estava suspensa. Eddie colocou a mão no ombro, desabou sobre os joelhos e depois caiu de cara.

– É um Limitador. Me dê cobertura – disse Eddie, enquanto os dois partiram para o corpo deitado.

Drake viu que Eddie tinha razão ao virar o homem. Seu casaco era diferente dos usados pela Divisão – este tinha um padrão de camuflagem que consistia em blocos de uma tonalidade marrom diferente. Havia sangue no peito, de um ferimento no ombro.

– Ele foi baleado com um projétil... Um dardo de tranquilizante não teria feito isso. E eu conheço este homem... É um oficial Limitador. – Eddie lançou um olhar a Drake. – Eles não costumam acompanhar as patrulhas da Divisão por aqui.

– Você acompanhava – respondeu Drake.

Mas Eddie não estava ouvindo ao tatear o pescoço do homem para tomar sua pulsação.

– Ainda está vivo – disse ele e de pronto apontou o rifle para a abertura onde a corda estava amarrada. – Mas quem está ali?

Antes que Eddie percebesse, Drake estava atrás dele com o braço em seu pescoço.

Eddie lutou, tentando acertar o cotovelo na cara de Drake.

– Não, nada disso! – grunhiu Drake, aplicando mais pressão na traqueia de Eddie para que ele mal pudesse respirar e, ao mesmo tempo, torcendo seu pescoço quase ao ponto de quebrá-lo.

– Não tem como sair desta. Largue o rifle ou vou matar você – disse-lhe Drake num tom que não deixava dúvidas. – Depois levante as mãos onde eu possa vê-las.

Eddie sabia que não tinha alternativa e aquiesceu.

– Por quê? O que é isso? – disse ele, ofegante.

Drake sussurrou em seu ouvido:

– Você cometeu dois erros. O primeiro foi que ninguém... eu quero dizer ninguém... sabia que Fiona estava grávida. Era cedo demais para ela contar a alguém. Então, como você poderia saber disso? Eu posso ter lhe dado o benefício da dúvida e suposto que você soubesse disso graças à vigilância na Crosta, mas depois você deixou escapar outra coisa. Referiu-se a meu amigo na universidade como “Lukey”.

Drake aumentou o aperto enquanto Eddie tentava falar.

– Não, cale a boca e escute! – Drake estava furioso. – Só Fiona o chamava de Lukey... É o apelido que ela deu a ele. E eu só tomei conhecimento disso porque por acaso os ouvi algumas vezes no quarto deles. – Cheia de raiva, a voz de Drake era baixa e fria. – Mas você sabia, porque ela disse isso quando estava sob coação, não foi? Foi quando ela estava sendo interrogada. Você estava presente quando ela recebeu a Luz Negra... quando morreu de hemorragia interna. E aquele apelido é a coisa mais banal do mundo, e eu duvido que até vocês, Styx, tenham se dado o trabalho de contar aos outros.

Drake suspirou e se calou por um momento, como se tentasse recuperar o controle.

– É mesmo engraçado... Embora você antigamente fosse meu inimigo, pensei ter encontrado alguém em quem podia confiar.

Eddie gemeu, e Drake aumentou a pressão em sua traqueia.

– Pensei ter encontrado alguém com quem podia trabalhar. Um amigo.

Enquanto Eddie perdia a consciência, Drake o deitou o chão.

Endireitando-se, Drake pegou a unidade de rádio no cinto e mudou a frequência.

– Chester, está me ouvindo?

– Sim – confirmou Chester da abertura na parede da caverna acima, onde estivera vendo Drake pela mira do rifle. O menino, obviamente, estava tremendo depois de disparar no Limitador e falava com tanta rapidez que Drake mal o compreendia. – Foi tudo bem? Aquele Limitador estava a ponto de atirar em você... Eu não podia deixar isso acontecer. E o que foi aquilo com o Eddie? Eu vi o que você fez com ele.

– Calma... Você agiu bem... Está tudo sob controle. – Drake olhou a hora. – Precisamos passar pelo Labirinto e entrar na Caverna Sul antes do amanhecer. Quero pegar a Colônia dormindo. – Usou a mira do rifle para localizar onde a cabeça de Chester se projetava da vegetação na abertura. – Desça as armas primeiro – disse ele. – Depois baixe as Bergen. E, faça o que fizer, cuidado com elas.

– Tá... Tudo bem – concordou Chester, depois olhou as duas Bergen carregadas no chão a seu lado. Ele foi obrigado a fazer duas viagens descendo do porão na Crosta, porque de maneira nenhuma podia ter carregado as duas mochilas ao mesmo tempo. Eram pesadas demais.

Drake olhou para Eddie, esparramado a seus pés.

– Eu devo estar ficando mole... Deixando você viver – murmurou ele, ao mirar seu rifle e disparar um dardo no braço do homem. – Mas, de qualquer modo, de maneira nenhuma você ia deixar que eu fizesse o que pretendo fazer agora – disse ao homem inconsciente.


Enquanto eles rapidamente contornavam a Cidade Eterna, Chester contou a Drake que a mãe tinha saído do hotel. Drake lhe garantiu que ele fizera bem em dizer ao pai para esperar no depósito. Mas podia oferecer pouco conforto com relação aos apuros da sra. Rawls, a não ser que cuidasse disso no momento em que eles voltassem à Crosta. E Drake relutou em falar do que aconteceu com Eddie, dizendo apenas que ele atrapalharia a segunda fase da operação e precisou ser “removido da equação”, como colocou.

Agora, enquanto eles andavam por um banco lamacento na extremidade da caverna, Chester tremeu.

– Ainda bem que não tivemos que passar por ali. Que lugar sinistro – disse ele. Eles estavam numa posição um tanto elevada, onde Chester podia ver, por cima do muro da cidade, a própria Cidade Eterna. Tremeu novamente e soltou um uuuuuu de fantasma ao olhar para ela. Embora soubesse que os habitantes haviam partido muito antes, as construções tinham tal aura de poder e ameaça que faziam com que se sentisse distintamente inquieto. De repente ocorreu a Chester que ele esteve tão preocupado com o desaparecimento da mãe que nem pensou muito em sua própria situação. Drake se recusava a dizer o que pretendia fazer na Colônia, mas provavelmente seria perigoso. Chester nem sabia se ele mesmo ia chegar ao fim daquele dia e rever seu pai.

– Ande, garoto! Acorde! Está sonhando acordado com o quê? – A voz de Drake estalou em seu ouvido. – Eu estava falando com você.

– Desculpe – disse Chester ao se voltar para ver Drake esperando na boca de uma caverna.

Drake gesticulou em direção à abertura como um showman.

– Por aqui, senhor. Está prestes a passar por um dos mais complexos labirintos do mundo desconhecido.

– Estou? – Chester engoliu em seco, apressando-se para se juntar a ele. – Mas como sabe o caminho?

– Seu parceiro, Will... Ele me deu o esquema que o tio Tam desenhara para ele. Isso, combinado com vários mapas de Limitadores extremamente úteis no porão de Eddie, foi reunido nesse exemplo de... – Drake agitou algo teatralmente no campo de visão limitado de Chester – ... tecnologia de ponta. – Chester viu a luz fraca saindo da tela do iPod.

– O quê? Vamos ver uns clipes de música? – brincou ele, com o estado de espírito melhorando.

– Não, não antes de tudo isso estar encerrado. Veja bem, uma bússola é inútil no Labirinto devido aos depósitos de ferro, e é claro que o GPS está fora de cogitação, então tive que ser criativo. Reuni os mapas aqui, depois os liguei a um pedômetro. Até tenho as orientações narradas em meus fones de ouvido. Então deve ser moleza chegar ao outro lado, mas vamos ter que nos mover muito rápido. Espero que esteja com os tênis de corrida.

– Ah, que ótimo – gemeu Chester de modo engraçado, ajeitando a Bergen pesada nas costas. – Eu sabia que isso não ia ser fácil.


E eles correram, voando pelas passagens de pedra vermelho-cereja, entrando tanto à direita e à esquerda que não era só o esforço que deixava Chester tonto. E de nada ajudava que eles estivessem subindo constantemente uma suave ladeira, seus pés esmagando a areia fina por horas a fio.

Drake percebeu que o menino começava a enfraquecer.

– Alto! – ordenou ele pelo rádio. – Muito bem, você pode tirar esse respirador... Já estamos longe o suficiente para ser seguro.

Lembrando-se de como Will tinha ficado doente, Chester não estava tão certo disso, mas Drake não mostrou nenhuma hesitação ao tirar a máscara de gás do rosto. Depois Chester fez o mesmo, percebendo que seu cabelo estava ensopado de suor.

– Beba alguma coisa ou vai começar a ter cãibras – aconselhou-o Drake.

Chester pegou o cantil no cinto e tomou vários goles, depois suspirou.

– Mas isso é que é treinamento de rúgbi – disse ele.


Após mais uma hora de corrida, facilitada porque eles podiam respirar melhor, Drake parou novamente.

– É uma porta? Já chegamos? – conseguiu pronunciar Chester ao baixar-se sobre o cão, bufando muito, absolutamente exausto.

Drake, por outro lado, mal tinha a respiração alterada.

– Quase, mas esta porta é bem soldada – disse ele, depois tirou a Bergen dos ombros e num dos bolsos laterais pegou o que parecia ser uma tira de salsichas, certamente para a visão turva de Chester.

– O que é? Comida? – perguntou Chester.

– Ainda não. – Drake a estendeu no peito. – Colar explosivo. É direcional, então, a força é maximizada, ao passo que o som da explosão deve ser mínimo. – Prendeu-a em volta da base da porta numa forma quadricular, depois se ergueu. – Hora de recuar – avisou a Chester. – Vou detonar as salsichas.

– Já estou entendendo de onde Elliott pegou o hábito de explodir as coisas – comentou Chester secamente.

Eles se protegeram numa curva da passagem, onde Drake usou um detonador sem fio. Houve pouco mais que um uunf e depois uma explosão completa, seguida pelo estrondo de ferro na pedra.

– Entramos – disse Drake. – Armas de prontidão, caso alguém tenha ouvido.

Eles passaram abaixados pela abertura ainda fumacenta na porta e deram numa passagem que levava a uma pequena rua circular.

– Ai... Que cheiro é esse? – disse Chester, fazendo uma careta ao pisar no chão, coberto de uma camada de material semelhante a palha.

Drake apontou alguns currais baixos.

– A pocilga da Colônia.

Chester ouvia os grunhidos nos currais de ferro enquanto eles passavam pela área. Estavam a meio caminho quando um porquinho mirrado colocou o focinho para fora de um monte de palha e viu Chester. Deve ter levado o maior susto da vida, porque guinchou, queixoso, e disparou para um dos currais.

Chester ficou igualmente assustado com o guincho do leitão e pulou de choque.

– Cala a boca! – disse ele com raiva, depois meteu o pé em um monte grande de fezes de porco, que fizeram um ruído desagradável sob sua bota. – Que nojo – murmurou enquanto Drake pulava uma cerca. Chester o seguiu, e eles andaram por uma curta passagem que se abria para outra, mais larga.

– Este é o curso principal... Você deve ter vindo por aqui quando o trouxeram do Quartel. Está vendo as marcas na pedra ali? – disse Drake. – Vem dos séculos de carruagens que percorreram essa rota de um lado a outro. Uma ideia estranha, não?

Chester olhou os sulcos idênticos no leito de rocha.

– Estou mesmo na Colônia de novo – percebeu ele, respirando o ar.

– Sim, o Portal da Caveira fica por ali – informou-lhe Drake, apontando à direita.

Chester não ouvia. De repente, o fedor do ar muito reciclado o atingiu. Era a essência de todos os milhares de pessoas que moravam na Colônia.

– Nunca pensei que sentiria esse cheiro de novo. Prefiro cocô de porco, sempre – murmurou ele. Um tremor incontrolável tomava seu corpo. Ele estava familiarizado demais com aquele cheiro do Quartel, onde passou meses trancado no Cárcere. Evocava lembranças nítidas de um dos períodos mais sombrios e desolados de sua vida. As coisas pareciam tão ruins que ele começou a se preparar para a possibilidade real de morrer.

Mas ele nunca desistiu de Will. Chester rezou sem parar pelo resgate e, quando por um milagre o amigo apareceu, tirando-o da prisão, o destino foi cruel com ele. Sua fuga foi frustrada, e ele foi recapturado pelos Styx, só para ser levado, amarrado, diretamente de volta ao Cárcere. Todas as suas esperanças se elevaram e depois foram esmagadas – era quase pior do que se não tivessem dado a ele a oportunidade de escapar antes. Embora isso não tivesse acontecido havia tanto tempo assim, ele, de algum modo, conseguira deixar de fora de sua mente, pelo menos até agora.

– Você está bem? – perguntou Drake, notando o silêncio do garoto.

– Acho que sim – respondeu Chester. – Podemos acabar logo com isso e ir para casa o mais rápido possível?

– Este é o plano – disse Drake. – Próxima parada, Estação de Ventilação.


Capítulo Vinte e Nove


Com a sra. Burrows fora da casa, Eliza e a mãe trocavam os móveis de lugar e devolviam à sala de estar a arrumação que tinha antes da chegada de sua indesejada hóspede. Com muito esforço, luta e grunhidos, Eliza conseguira arrastar a cama do primeiro andar ao andar seguinte, mas ali ela desistiu, derrotada por seu peso. Ela não era tão forte assim. E não podia esperar ajuda da mãe, ainda mais com seu “coração manhoso” do qual Eliza era lembrada constantemente. Eliza ficava cada vez mais irritada pelo fato de o irmão não estar ali para dar uma ajuda.

– Sabe onde ele foi, não sabe? – grunhiu ela ao se espremer por trás da cama, agora empacada ao pé da escada.

A mãe franziu o cenho para ela.

– Ele disse que ia dar uma passadinha na taberna.

– Ah! Muito improvável... Ele nunca leva Colly quando vai ao Tabards – disse Eliza.

A velha a seguiu para a sala de estar.

– Então me diz... aonde é que ele foi? – perguntou ela.

– É meio óbvio, não? Foi se despedir da aleijadinha dele. Não percebeu que ele ainda estava de uniforme quando saiu correndo? Desde quando ele vai à taberna de uniforme?

– Mas ora veja só...! – disse a velha, ao pensar no assunto. – Nunca termina essa maluquice dele.

– Vai terminar muito em breve – disse Eliza, gargalhando de um jeito desagradável e carregando a mesinha para o canto da sala. Depois, enxugando o suor da testa, olhou o aparador. – Acho que podemos fazer isso juntas, não é? Só temos que empurrar o móvel alguns passos pela parede, depois posso colocar o tapete no lugar.

Elas assumiram posição dos dois lados do aparador.

– Afaste da parede primeiro... Não vamos arranhar o papel de parede – disse Eliza. – Um, dois, três...

As pernas rasparam no piso de tábuas enquanto elas deslizavam o aparador.

Houve um estrondo. Eliza supôs que uma das pernas do aparador instável tinha se quebrado, quando a velha soltou um grito penetrante.

– Jesus, meu pé! Caiu alguma coisa no meu pé!

Eliza correu até a mãe, que pulava. Não havia dano nenhum ao aparador, mas depois ela viu a pá cintilante de Will deitada no chão. Abaixou-se para pegá-la, olhando o rótulo do fabricante na lâmina.

– Isso me parece da Crosta. – Ela balançou a cabeça com uma expressão confusa. – Que diabos isso está fazendo aqui? Deve ter sido enfiada entre a parede e o aparador.

– Ai! Meu pé! Meu pé! – continuava a gritar a velha, ainda pulando de dor.

Eliza estava mais concentrada na pá.

– Mas como isso veio parar aqui? A não ser que o miolo mole do meu irmão quisesse esconder de nós por algum motivo, não?

– Não ligo pra como veio parar aqui! Deixa essa droga de picareta pra lá, e venha ver o meu maldito pé! – gritou a velha, indignada.

– Não há necessidade de blasfemar – repreendeu-a Eliza. – De qualquer modo, não é uma picareta. É pontuda... veja – disse, segurando a lâmina para mostrar à mãe. – A ponta é fina. É uma pá, para cavar.

– Não dou a mínima para como você chama essa merda, sua vaca idiota – grunhiu a mãe, indo à cozinha com uma combinação de saltos e manqueira, xingando às cegas ao andar.


– É por ali que vamos. Subindo – sussurrou Drake, enquanto ele e Chester se metiam na lateral da passagem. – Sala de controle principal das Estações de Ventilação.

Chester esticou o pescoço, localizando o zigue-zague de degraus de ferro batido aparafusados na parede, parecendo uma antiga escada de incêndio. Depois olhou mais uns cinquenta metros acima, para o alto da caverna, cheio de nuvens densas. Ao ver as ondas constantes de fumaça cinza e poeirenta, ele teve a impressão de que olhava uma espécie de mar invertido. Também percebeu onde as ondas se quebravam, em estruturas afuniladas fixadas no teto da caverna. Dentro de cada uma delas algo girava.

– Então esses são os ventiladores? – conjecturou ele.

Drake assentiu.

– Ouviu o zumbido baixo? Essas coisas ali em cima são como exaustores gigantes. Este é um dos vários locais onde o ar viciado é retirado da Caverna Sul e descarregado na superfície por chaminés disfarçadas.

– Então nós é que recebemos toda a fumaça suja na Crosta? Isso não está certo – concluiu Chester, de cenho franzido. – Pensei que Eddie fosse contra a poluição. Lembra tudo o que ele me disse?

– Esqueça... Ele estava lhe pregando peças. Nunca confie em nada que um Pescoço Branco diga – respondeu Drake. Com um “Shhh”, ergueu a mão. – Como um relógio... A troca de turnos está exatamente na hora – cochichou. – Abaixe-se. Cuidado para ele não ver você.

Ainda espremido na parede atrás de Drake, Chester teve um vislumbre de um homem atarracado andando pelo caminho. O homem não podia vê-los escondidos ao seguir para a escada, depois subir para a sala de controle.

– Vamos agora? – perguntou Chester.

– Ainda não – disse Drake.

Chester viu que um outro homem descia a escada. Ele parou ao pé para acender um cachimbo de haste longa antes de partir.

– Muito bem... A troca de turnos acaba de acontecer, então podemos ir – anunciou Drake. Com Chester bem atrás, correu para a escada e a subiu de dois em dois degraus, portando a pistola de tranquilizante. Parou ao chegar à porta no alto. – A sala de controle sempre está ocupada. O colonista está aí dentro e pode haver mais gente, então fique de olhos bem abertos.

A velha porta de ferro estava destrancada e Drake a abriu delicadamente para que eles pudessem entrar silenciosamente. Chester descobriu que estavam numa galeria longa, com uma fila de janelas emolduradas em madeira de um lado. Era semelhante a um vagão de trem de uma era passada, embora fosse mais larga e mais comprida do que qualquer vagão da Crosta. E, do outro lado, a parede era formada por uma treliça incrível de canos arcaicos, todos de bronze e presos a anéis de carvalho escuro. Não só havia numerosas alavancas e válvulas nos canos, mas também mostradores e contadores que estalavam e se agitavam em uníssono.

O ruído que Chester ouviu abaixo era muito mais alto aqui – uma batida constante e muito grave, que fez seu crânio reverberar. A impressão de que ele estava dentro de uma fera gargantuesca o lembrou sua história preferida da Bíblia, Jonas e a baleia. Mas isto era diferente – era como se ele tivesse achado o caminho não para a barriga da fera, mas para seus pulmões.

Drake avançou lentamente pela galeria.

Depois, metendo-se num nicho em meio a todo o encanamento, eles deram com o colonista.

Com um grito, o homem atarracado saltou de uma mesa, e um baralho voou de suas mãos. Com um macacão cinza-escuro, ele tinha o cabelo branco eriçado e um cachecol vermelho no pescoço. Ele gritou novamente, pegando uma chave-inglesa ridiculamente exagerada ao lado da mesa.

– Desculpe – disse Drake, depois disparou a pistola, derrubando o homem com um dardo tranquilizante. De imediato o colonista caiu para a frente na mesa, que se espatifou sob seu peso considerável. Drake o rolou para se certificar de que ele não se ferira na queda. O dardo ainda estava em seu imenso peito.

– Colonistas – murmurou Chester, com o lábio se torcendo de nojo. – Esperava sinceramente nunca mais ver um desses malucos de novo na minha vida.

– Este homem não é nosso inimigo – disse Drake, percebendo que as mãos do garoto se fecharam no rifle. – E ele só está fazendo o trabalho dele.

– É... Como aquele nojento do Cárcere. – Chester fechou a cara. – Chamava-se Segundo Oficial... E também estava fazendo o trabalho dele.

Pegando uma folha dobrada de papel de dentro do casaco, Drake a abriu com uma sacudida e a passou a Chester, que ainda olhava o homem inconsciente.

– Isso é importante. Preciso que se concentre – ordenou Drake ao garoto. – Olhe este desenho.

– Do que é? – perguntou Chester, relaxando a mão no rifle e voltando sua atenção ao desenho. Mostrava um painel com cinco contadores grandes e toda uma série de canos abaixo dele.

– Isso mede a pressão do ar bombeado na caverna. – Drake girou para a parede de canos. – Vamos começar cada um numa ponta e seguir para o meio até que nos encontremos – disse ele.

Chester levou alguns minutos para finalmente localizá-lo. E chamou Drake.

– Que bom, é isso mesmo. Muito bem... Tire a Bergen e coloque-a aqui – disse ele, apontando o chão ao lado do painel. Depois abriu a Bergen e, com todo cuidado, tirou dois objetos enrolados em um tecido que parecia cobertor.

– São cilindros de gás? – perguntou Chester.

Drake assentiu ao atarraxar canos de plástico transparente nas válvulas do alto de cada um dos cilindros, os dois com cerca de trinta centímetros de extensão. Colocou ambos sob o painel, depois parou ao pensar em algo.

– Você devia ficar com estes... Por segurança – disse ele, pegando alguns tubos verde-cáqui do kit no cinto e entregando a Chester.

Chester examinou o que estava escrito nas laterais dos tubos, mas não sabia o que significava.

– Atro... Atrop...

– São injeções de atropina. Se alguma coisa der errado e você for exposto ao que está dentro dos cilindros, arranque a ponta de uma desses agulhas hipodérmicas e meta na coxa. Você receberá uma injeção de composto de atropina que vai contra-atacar os efeitos do gás nervoso.

– Gás nervoso? – disse Chester, olhando os cilindros, apreensivo. – Eu estava carregando gás nervoso nas costas?

– Estava, e sob uma pressão monstruosamente alta também – respondeu Drake, vendo a expressão apavorada de Chester. – Mas a outra Bergen que você levou para a Cidade Eterna é muito pior... Explosivo plástico suficiente para pulverizar cada molécula de seu corpo. Se tivesse detonado, não restaria nada de você para enterrar – acrescentou com um sorriso malicioso.

Chester sacudiu a cabeça, e Drake pegou uma caixa da Bergen, abrindo a tampa. Chester viu que continha braçadeiras. Abaixando-se, Drake deslizou para trás do painel e começou a prender as braçadeiras nos canos de bronze, atarraxando cada uma delas.

– Estou interrompendo as linhas de ar agora. Fique de olho na porta, caso alguém decida aparecer – disse Drake com a voz abafada ao continuar a trabalhar sob o painel.

Ele precisou de alguns minutos para se certificar de que as braçadeiras estavam bem firmes, depois encaixou os canos transparentes dos dois cilindros ali.

– Hora de colocar a máscara de gás de novo, Chester – disse ele, saindo de baixo do painel. – E não vamos tirá-las por nada neste mundo. – Depois que os dois colocaram os respiradores, ele afrouxou as válvulas dos cilindros de gás nervoso. A cada vez se ouviu um pequeno silvo, porém nada mais enquanto o ruído da maquinaria na galeria continuava inabalável.

– É só isso? – disse Chester, esperando mais.

– Sim, só isso – confirmou Drake. – Despejamos o gás nervoso diretamente no suprimento de ar da Caverna Sul... Vai circular por todo lado, menos na Cidadela Styx e na Guarnição, que têm seu próprio abastecimento. Veja bem, só algumas partes por milhão dessa coisa na atmosfera aqui debaixo será suficiente. E não tem cheiro, então ninguém vai saber o que está ali.

– Mas o que isso vai fazer com os colonistas? – perguntou Chester. – Vai fazer mal a eles?

– Não, nada grave, exceto talvez uma náusea e vômitos em alguns casos. Não, em menos de meia hora os colonistas estarão acordando com sintomas de gripe... olhos lacrimejando cronicamente e coriza... E isso vai durar pelo restante do dia. A principal questão é que eles não vão conseguir enxergar muita coisa e certamente não estarão em condições de deter dois habitantes da Crosta invadindo sua casa.

Drake olhou a pistola.

– E se por acaso esbarrarmos em alguém, usamos os rifles e pistolas com tranquilizantes – disse ele a Chester. – Não estamos aqui para ferir nenhum colonista. – Colocou a Bergen nas costas. – Muito bem, Chester, meu velho, vamos nos divertir um pouco.


– Mas que diabos você está fazendo aqui tão tarde? – perguntou o guarda na guarita de sentinela, levantando-se. Ele franziu o cenho para o Segundo Oficial, depois percebeu Colly a seu lado. – Ah, entendi. Levou a Caçadora para dar um passeio e perambulou para meio longe demais de casa? Você se perdeu!

Os ombros largos do guarda se sacudiram, mas seu riso não produziu som algum. A ideia de alguém que passou a vida toda nessas cavernas subterrâneas se perder o divertia, embora também houvesse preocupação em seus olhos ao fitar o Segundo Oficial.

– Eu estava andando há algum tempo... é verdade – admitiu o Segundo Oficial, coçando a barba branca e rala no queixo. Evitava olhar nos olhos do guarda, como se tivesse vergonha do que estava a ponto de fazer. – Tenho um favor a lhe pedir, velho amigo – começou ele mansamente.

– E o que pode ser?

O Segundo Oficial levantou a cabeça para olhar para o que havia depois do portão de ferro, onde ficavam os Laboratórios, um par quase idêntico de construções retangulares ligadas por uma passarela. Ambos tinham dois andares e eram feitos de um granito cinza que parecia sujo. A principal diferença entre eles era que, por trás do prédio da direita, conhecido como Bloco Sul, um grande duto de chaminé de tijolos subia pela parede da caverna. Assemelhava-se a uma veia inchada no modo como se destacava, altivo, na pedra lisa, e diziam que transportava os eflúvios de um incinerador do porão para a superfície. Um incinerador onde os Cientistas queimavam os experimentos que não davam certo.

E pessoas também.

E, segundo os boatos na Colônia, às vezes até uma combinação das duas coisas.

Porém, os boatos não eram assim tão fantasiosos, porque era no Bloco Sul que os Cientistas praticavam eugenia e manipulação genética – especificamente, a criação controlada de Styx e a modificação de seu genoma para o aprimoramento da raça.

– Preciso que me deixe entrar – arriscou-se o Segundo Oficial, finalmente olhando nos olhos do guarda. – Preciso entrar no Bloco Norte.

O guarda soprou pelos lábios.

– Deixar você entrar? Deixar você entrar? Ora, por que eu arriscaria meu emprego... e minha vida, e deixaria você fazer isso? – perguntou ele.

– Porque eu tenho isto. – O Segundo Oficial abriu o botão de um bolso no manto e pegou sua permissão. – Para todos os efeitos, vim aqui a negócios e, se houver algum contratempo, eu assumirei a culpa.

– Bom, neste caso... suponho que posso... – O guarda refletiu, depois balançou a cabeça. – Veja, não pense que estou criticando você, mas sei por que quer entrar aqui. Eu vi a mulher da Crosta sendo carregada para dentro. – Saiu da guarita e foi até o Segundo Oficial. – Mas me deixe dizer uma coisa. – Pôs a mão no braço do amigo. – Maeve e eu estivemos conversando sobre você no fim de semana. Sei que em seu trabalho você viu e ouviu muito do que acontece, como eu tenho que fazer neste palácio de açougueiros... Mas você não deve deixar que isso o afete. Ainda tem tempo para encontrar uma esposa, uma boa esposa de debaixo da grama, e se acomodar... E ter uns filhos. Você precisa disso... Algum bem para equilibrar toda essa maldade. Não deve passar sua vida assim... carregando a culpa por causas perdidas e gente da Crosta semimorta.

O Segundo Oficial deu um tapinha na mão do amigo antes de afastar seu braço.

– Obrigado. – Depois colocou a permissão no bolso. – Se alguém perguntar, diga que estou aqui para pegar umas roupas para minha irmã. – Ele olhou para Colly. – E talvez eu deva deixar a velha Gata de Botas aqui com você.

O guarda abriu um sorriso leve.

– É melhor que sim. Está tarde e não há ninguém no Bloco Norte, mas se houver e derem com uma Caçadora solta, provavelmente vão atirá-la na laje e abri-la só por diversão. É o que esses malditos fazem lá dentro.

O Segundo Oficial pareceu indisposto.

– Você está bem? – perguntou-lhe o guarda.

– Ficarei, com o tempo... talvez – respondeu o Segundo Oficial ao olhar o prédio austero.

Depois de entrar, ele pegou a escada para o segundo andar. Estivera no Bloco Norte muitas vezes, quando tinha a tarefa de escoltar gente da Crosta para lá, a maioria raptada da superfície pelos Styx. Na realidade, elas eram mantidas no Cárcere por algumas semanas enquanto eram amaciadas pela Luz Negra, para torná-las mais “receptivas” (no jargão dos Styx) a empregar suas habilidades para o bem da Colônia. Em geral, ele descobria que transportava cientistas da Crosta, porque eram as pessoas com a perícia que os Styx queriam explorar, mas a jornada quase sempre era de mão única – elas raras vezes voltavam à superfície depois, se é que um dia isso aconteceu.

Ele andou pelo amplo corredor, olhando pelas janelas de observação nas portas dos dois lados. Não parecia haver ninguém nas salas à direita, onde as pessoas da Crosta raptadas em geral eram trancadas enquanto labutavam nos projetos dos Styx. Nos últimos seis meses, desde o incidente em que o filho da sra. Burrows e seu irmão mais novo fugiram, os Styx trancaram a Colônia, e não houve quase nenhum ir e vir da superfície. Mas ele não tinha certeza disso.

Depois ele chegou às salas aonde pensava que podiam ter colocado a sra. Burrows – os centros de operação na extremidade daquele andar. Ao colocar a mão na porta e entrar na primeira delas, ele a viu deitada na mesa no meio da sala. Suas botas estalaram no piso de ladrilhos brancos quando ele se aproximou dela.

A sra. Burrows tinha uma variedade de tubos inseridos nos braços. Ele ofegou quando viu que haviam lhe raspado todo o cabelo e que linhas pretas interrompidas haviam sido pintadas em seu couro cabeludo, mostrando onde iriam fazer as incisões em seu crânio.

– Eu sinto tanto – sussurrou, tocando seu rosto. Não havia absolutamente nada que ele pudesse fazer por aquela mulher que conhecia há tão pouco tempo, mas que causara tanta impressão nele.


Capítulo Trinta


Auxiliados pelo declive, Chester e Drake dispararam para onde o chão aplainava e as construções começavam. Eles não tentaram se esconder ao passarem pelas ruas desertas, todas repletas de casas. Nunca ocorreu a Chester que a Colônia funcionava num horário diferente da Londres acima. Por seus cálculos, devia ser por volta das sete ou oito horas da manhã na superfície, mas, aparentemente, ainda era madrugada na Caverna Sul.

Chester olhava as bizarras filas de luzes de rua – postes de ferro encimados por globos luminosos do tamanho de uma bola de futebol, presos por garras de metal.

– Sabe de uma coisa... eu vi essas luzes no Quartel e em alguns prédios daqui... mas nunca vi realmente a Colônia antes – tentou dizer Chester a Drake enquanto eles corriam. – Eles me encapuzaram... quando me levaram... para a Estação dos Mineradores – falou ele, arquejando.

– Eles não se incomodaram em me vendar – respondeu Drake. – Talvez porque eu seria um homem morto no momento em que conseguisse o que eles queriam.

Chester agora olhava todas as sacadas das casas de pedra enquanto ele e Drake continuavam a correr. As casas eram todas básicas, mas bem construídas. Davam a Chester a mesma sensação que ele tinha com as áreas mais antigas de Londres, a sensação de que cada superfície, cada tijolo e cada parte da alvenaria tinham sido cuidadosamente feitos para suportar a ação do tempo. E, mais do que isso, essas casas tinham sido cuidadas, reformadas e limpas por século após século, com as gerações de pessoas que viveram nelas. Pessoas que nunca experimentaram o calor do sol.

– Tudo isso parece um sonho estranho – disse ele a Drake.

Foi quando um homem empurrando uma carroça de duas rodas virou a esquina e andou pela rua bem na frente deles. Usava uma boina e um dos casacos de aparência cerosa dos colonistas. Ele não notou Chester e Drake imediatamente porque estava de cabeça baixa e espirrava intensamente.

– O gás nervoso. Já está irritando as membranas nasais – observou Drake.

O homem levantou a cabeça, enxugando os olhos. Evidentemente, conseguira limpar os olhos o suficiente para ver Chester e Drake, os dois de máscaras de gás e arma apontada, seguindo na direção dele. Seu queixo caiu, e ele parecia estar prestes a gritar quando Drake o derrubou com um dardo tranquilizante. Drake nem mesmo parou para ver como ele estava.

– Isso é tão legal – disse Chester. Ajudado pelo fato de que sua Bergen, agora sem os cilindros de gás, pesava significativamente menos e que ele tinha recuperado o fôlego, Chester achava mais fácil acompanhar Drake. – Juro que parece um videogame de tiro em primeira pessoa. Vai me deixar cuidar do seguinte? Por favor? – pediu ele.

– Claro... Derrube você – concordou Drake.

Chester não precisou esperar muito.

Dois homens de chapéu-coco e aventais azul-escuros saíram de uma passagem na frente deles. Os dois esfregavam os olhos e cambaleavam às cegas.

E eles nem tiveram ideia do que os atingiu quando Chester disparou nos dois com dardos em rápida sucessão.

– Bom trabalho – elogiou-o Drake.

Chester ria consigo mesmo enquanto olhava os colonistas caírem um por cima do outro numa pilha bagunçada no calçamento.

– Nesse ritmo, o recorde será meu – anunciou ele, girando a pistola na mão como um pistoleiro do Oeste. – Todo meu.

– Às vezes eu me preocupo com a geração mais nova – murmurou Drake.


Eles entraram furtivamente no quarto e, pisando levemente o carpete grosso, postaram-se em volta da cama. Estava escuro, as janelas cobertas para manter o dia permanente do lado de fora. Um casal dormia na cama king-size, o homem roncando suavemente.

Uma forte luz foi acesa.

A mulher acordou de pronto. Um Limitador a segurou, colocando a mão em concha sobre sua boca para impedir que ela fizesse algum barulho.

– Ele deve ter a consciência limpa... Olhe só para ele, dormindo como um bebê – cochichou Rebecca Um, olhando o Chanceler.

– Um bebê muito mimado – disse a irmã, avaliando o mobiliário extravagante do quarto. – Isto aqui parece um palácio.

Rebecca Um sentiu os lençóis de seda da cama imponente do Chanceler.

– Certamente. Mas o que é isso na cara dele? Algum tipo de máscara para os olhos? – Ela farejou. – Tem cheiro de fruta... manga.

– Não! Não uma máscara de manga para os olhos! O Chanceler gordo quer conservar a aparência da juventude! – exclamou Rebecca Dois, tentando sem sucesso reprimir o riso.

– Hora de um despertar rude – decidiu Rebecca Um. Ela segurou a máscara e a puxou da cabeça do Chanceler o máximo que o elástico permitia, depois a soltou. Bateu nos olhos dele com um estalo.

Ele soltou um grito e se sentou ereto.

– Gott im Himmel! – gritou ele, arrancando a máscara e semicerrando os olhos devido à forte luz que incidia nele.

Depois distinguiu as meninas Styx ao lado de sua cama, as duas parecendo achar graça de seu pijama de cetim cor de limão e o K bordado no bolso da camisa.

– Was machen... O que estão fazendo aqui? – Ele girou a cabeça rapidamente para a esposa, que ainda era contida pelo Limitador. Voltou a cabeça para as gêmeas Rebecca, ofegante, de raiva e medo. – Vocês perderam o juízo? O que estão fazendo na minha casa? – exigiu saber. – Que atrevimento!

Rebecca Um empoleirou-se na cama ao lado dele.

– Decidimos que queremos ajudá-lo e que você e sua nação perdida nos ajudarão. A chave é a cooperação.

O Chanceler limpou parte do suco de manga dos olhos e bufou.

– Saiam de meu quarto! E diga a seu soldado para tirar as Hände... as mãos dele de minha esposa! Não vou ajudar vocês! Nunca!

– Ah, vai, sim – disse Rebecca Dois calmamente, acenando.

Um Limitador avançou do canto do quarto e colocou uma caixa grande aos pés da cama. Abriu os fechos e levantou a tampa.

– O que é isso? – perguntou o Chanceler, olhando a caixa cor de revólver com mostradores. – O que está fazendo? – disse ele com o pânico aparecendo na voz e ainda olhando o Limitador endireitar a haste flexível, ligada à parte de trás da caixa. Na ponta da haste havia um quebra-luz que abrigava uma lâmpada roxa.

– Isto se chama Luz Negra. É nosso último modelo, portátil e muito mais potente do que seus predecessores – respondeu Rebecca Um de um jeito animado, como se anunciasse o novo produto de um canal de compras. Depois seu tom mudou, tornando-se gélido: – Se relaxar, será mais fácil para você... E também fará maravilhas para sua tez de bebê.

– Mas se tentar resistir, você fará parte do passado – intrometeu-se Rebecca Dois. – Não precisamos realmente de você. Só o estamos preservando porque você é divertido.

– Seja o que for, não vão usar isso em mim! – gritou o Chanceler, deslizando sob os lençóis brilhantes para se encostar na guarda estofada de cetim roxo da cama. – E como entraram na minha casa? Como sabiam onde encontrar...?

– Ah, isso foi graças a nossos melhores amigos, o capitão Franz e os homens dele – disse Rebecca Dois. Ela estalou os dedos e o capitão e três soldados neogermanos entraram no quarto. – Na realidade, já temos um de seus regimentos e não vai demorar muito para que o restante de seu exército siga o mesmo caminho.

– Was machen Sie da? – berrou Chanceler ao capitão Franz.

O soldado mais jovem continuou em silêncio, submetendo-se a Rebecca Dois.

– Ele não responderá mais a você – disse Rebecca Dois. – Ele já viu a luz.


Logo Drake e Chester tinham os Laboratórios à vista. Drake os fez atravessar a rua em que se localizavam os dois prédios enquanto investigava a área. Chester ainda não sabia o que iam fazer ali – Drake se recusara a contar, caso eles fossem capturados pelos Styx –, mas a Bergen cheia de explosivos era uma bela dica.

– O guarda da noite ainda está de serviço – sussurrou Drake, apontando o colonista andando fora de sua guarita.

O gás nervoso começou a fazer efeito, e o homem tossia e cuspia, mas ainda assim tragava baforadas decididas de um charuto, como se a fumaça fosse aliviar os sintomas.

– Isso não é comum... Embora ele esteja de serviço, tem uma Caçadora com ele – disse Drake, observando o guarda que se aproximava de Colly e lhe afagava a cabeça.

– Parece um pouco com Bartleby – cochichou Chester.

Depois o guarda pegou um lenço e passou nos olhos, antes de se voltar para dar uma olhada no Bloco Norte.

– Vamos nessa – declarou Drake, saindo na mesma hora em direção à entrada, com Chester bem atrás dele. – Pode derrubá-lo?

O guarda só os viu no último segundo. Cuspindo o charuto e erguendo a mão, alarmado, ele parecia não saber o que fazer enquanto as duas figuras de roupas estranhas apareciam diante dele, armados com pistolas e rifles.

Chester pode ter sido exibido ou pode apenas ter tido uma mira pouco precisa, mas disparou o dardo no meio da palma erguida do homem. Ele tombou como uma árvore derrubada.

– Não enfeite demais – alertou Drake. – Mire no tronco... A possibilidade de errar é menor.

– Tudo bem. Desculpe – concordou Chester, enquanto eles reduziam o passo na frente de Colly, que não se mexera, ainda sentada. Ela tombou a cabeça de lado ao olhar os dois com curiosidade. – Gatinho bonito – disse.

– Mantenha distância... Esses animais podem ser volúveis, e você pode ter acabado de abater seu dono – avisou Drake.

Colly também parecia ter sido afetada pelo gás, tentando esfregar os olhos do tamanho de pires com as patas, enquanto bolhas de muco espumavam de suas narinas.

Ao contorná-la, Chester observou:

– Esse é menor do que Bartleby. E tem uma aparência melhor.

– Isso porque é fêmea – disse Drake.

– Fêmea? Como sabe disso? – perguntou Chester, olhando para Colly atrás dele, ao se aproximar da escada do Bloco Norte.

– Chester – respondeu Drake, como que exasperado –, os Caçadores não têm pelo nenhum... Dá para ver tudo... Você não percebeu realmente que falta a ela algumas coisas que Bartleby tem?

– Hmmmm... não... na verdade, não – murmurou Chester constrangido, enquanto eles entravam no prédio e viravam à esquerda. Dispararam por um curto corredor e passaram por algumas portas de vaivém. Chester descobriu que estavam numa sala imensa – as paredes eram cobertas de ladrilhos brancos, e o linóleo era tão encerado que parecia um manto de água escura. A sala era fortemente iluminada não pelos globos luminosos de sempre, mas por versões longas e fluorescentes deles, arranjados em várias filas pelo teto. E em uma parede havia cubículos com frentes de vidro, cada um com tamanho suficiente para acomodar uma bancada, algumas cadeiras e prateleiras de placas de Petri e tubos de ensaio.

– Câmaras de isolamento – informou Drake, ao perceber para onde Chester olhava. – Dá para ver as unidades de exaustão no alto... É ali que eles manipulam agentes infecciosos e preparam as culturas. E estas são as câmaras frias onde guardam todos os espécimes – acrescentou ele, ao se virar para a parede do outro lado. Havia três portas de aço muito pesadas envoltas no que parecia uma névoa clara.

– E o que acontece neste lugar? – perguntou Chester.

– É o laboratório principal... Há um menor, no andar de cima, mas é aqui que eles modificam os vírus e as bactérias, desenvolvendo-os em patógenos de guerra, como o Dominion.

Drake tinha tirado a Bergen e a colocara numa bancada. Nela pegou uma série de pacotes do tamanho de listas telefônicas. Estavam totalmente enrolados em fita adesiva preta, cada um com um pequeno teclado, em que ele começou a digitar uma série de números.

– Ajustando a hora das cargas – informou a Chester. Quando terminou o último, Drake levou três para a câmara fria mais próxima. Abrindo a porta, foi engolfado numa nuvem de névoa congelante ao colocar um explosivo no piso coberto de gelo. Depois bateu a porta e estava prestes a passar à seguinte quando parou. – Chester, faça alguma coisa de útil, por favor, e coloque uma dessas em cada canto da sala, sim?

Depois que todos os explosivos estavam em seus lugares, Drake e Chester voltaram à entrada principal.

– Muito bem, temos vinte minutos até este lugar ser reduzido a nada. Fique de olho em qualquer um enquanto eu distribuo algumas cargas por aqui. – Drake olhou outro par de portas, que levavam ao lado oposto do prédio. – Depois disso, vamos dar uma busca rápida lá em cima e depois, concluído – disse ele. – E vamos dar o fora daqui!

– Legal – respondeu Chester.


O Segundo Oficial tinha puxado uma banqueta e estava sentado ao lado da sra. Burrows. Sem saber o que fazer – e sabendo que não poderia fazer nada –, ele uniu as mãos e começou a rezar. O Livro das Catástrofes, que falava principalmente de vingança e reparação, não proporcionava muita inspiração quando se tratava da misericórdia e da compaixão. Mas, como a maioria dos colonistas, ele conhecia a maior parte do livro de cor e era capaz de pinçar algumas passagens que agora murmurava na esperança de fazerem alguma diferença. Mas, por mais que tentasse, não conseguia deixar de verter lágrimas ao refletir na grande injustiça da situação da sra. Burrows.

Depois de algum tempo, ele começou a tossir e seus olhos ficaram vermelhos e inflamados. Sabia que não se devia à sua angústia e supôs que um dos produtos químicos usados pelos Cientistas tivesse provocado isso. Entretanto, resolveu ficar mais um pouco. E continuou a rezar.


Ao chegarem ao alto da escada, Drake gesticulou para a esquerda.

– Vou por aqui. Você pegue o outro lado. – Ele ia partir, mas hesitou. – E, olha, Chester, se por acaso esbarrar com algum sujeito com cara de nerd e jaleco vermelho de laboratório, fique à vontade para usar munição letal. São Cientistas.

– Sério?... Mas não são colonistas também? – perguntou Chester, olhando-o indagativamente. – E como é que você conhece tão bem a planta deste lugar?

Apesar do fato de seu rosto estar coberto pela máscara de gás, Chester viu que os olhos de Drake semicerraram de raiva.

– Você esteve aqui – percebeu o garoto, lembrando-se do que Drake contara a ele e Will nas Profundezas. – Os Cientistas o obrigaram a trabalhar para eles neste lugar.

Drake ficou em silêncio por um momento e assentiu.

– E se achar algum coitado nas salas pelo lado direito, me avise. É ali que os Styx torturam gente da Crosta até que concorde em trabalhar em suas armas de destruição seletiva. Uma daquelas salinhas sujas foi tudo o que vi durante um ano.

– Então vamos libertar qualquer um nelas antes de todo o lugar explodir – sugeriu Chester.

– Você entendeu – disse Drake, partindo.

Chester abriu algumas portas de vaivém. Descobriu que todas as salas a que Drake se referiu estavam destrancadas. Mas examinou cada uma delas rapidamente para ter absoluta certeza de que estavam desocupadas. Descobrindo que todas estavam vazias e só continham equipamento de laboratório, ele avançou pelo corredor.

Foi quando ouviu uma voz.

Por um segundo pensou em buscar Drake, mas decidiu que investigaria sozinho.

Sua arma de dardos estava preparada, e ele partiu furtivamente para a origem da voz. Parecia vir de uma sala perto do final do corredor. Ele empurrou uma pesada porta de aço apenas uma fração e espiou.

Foi recebido por uma visão muito peculiar.

Era evidentemente uma sala de cirurgia. No meio da sala havia uma mulher numa mesa de exames. Chester primeiro pensou que devia estar morta, mas se corrigiu quando viu a série de sacos de fluidos em um suporte ao lado dela. Os sacos alimentavam tubos inseridos em seus braços.

A cena lhe trouxe lembranças de uma visita que ele fizera à irmã na UTI, depois do acidente de carro. Foi a última vez que a viu. Então ele não se prendeu à mulher, mas voltou sua atenção ao homem atarracado em uma banqueta de alumínio a seu lado. Os cotovelos do homem estavam apoiados na mesa, e sua cabeça estava aninhada entre as mãos. Vestia um uniforme azul-escuro e, por algum motivo, pareceu um tanto familiar a Chester.

O homem, claramente um colonista e não um Styx, enxugava os olhos sem parar. E, continuando a espioná-lo, ele viu que os ombros do homem tremiam. Chester não sabia se era devido ao gás nervoso ou se o homem estava realmente perturbado e chorava. Parecia soltar pequenos soluços, pontuados por uma ou outra fungadela e grunhidos ininteligíveis.

Chester ouviu o homem falar novamente – não entendeu exatamente o que ele dizia, mas parecia recitar algo da Bíblia. Dava a impressão de estar rezando.

A mão de Chester apertou a arma de dardos. Pela descrição de Drake, não era um Cientista, então nem ele, nem a pessoa deitada na mesa, merecia perecer na explosão.

Com a arma apontada para o homem, Chester abriu mais a porta e entrou na sala. O homem deve ter ouvido, virando-se um pouco para olhar. Sua cara estava vermelha e certamente parecia que estivera chorando.

E, nesse momento, Chester reconheceu exatamente quem ele era.

– Você? – disse Chester, ofegando.

O Segundo Oficial se colocou de pé num átimo, deixando a banqueta cair com ruído.

– Você! – berrou ele para Chester. – Eu conheço essa voz desgraçada!

Ele se atirou para o menino, que conseguiu apertar o gatilho, mas, no calor do momento, errou o tiro. O dardo se espatifou no vidro de um armário de aço atrás do Segundo Oficial, que avançava com a beligerância de um touro num estouro de boiada.

Chester não teve oportunidade de dar um segundo tiro ao ser derrubado e a arma voar de sua mão. O Segundo Oficial caiu por cima de Chester com tanta força que o menino achou que sua costela tinha se quebrado.

Enquanto os dois se debatiam no chão, o Segundo Oficial tentava segurar Chester pelo pescoço e no processo deslocou sua máscara de gás. Pela primeira vez Chester descobriu o que era respirar gás nervoso.

– Vou matá-lo, seu filho da-tchim! – cuspiu Chester ao espirrar. Ele falava sério. Com o peso do Segundo Oficial em cima dele, Chester não conseguia pegar seu rifle nem a pistola, mas a faca era outra questão. Ele a tirou da bainha no cinto. Não tinha remorsos em ferir aquele homem que – acreditava ele – tinha sido cúmplice na horrível provação de todos aqueles meses no Cárcere.

Chester movia a faca para uma posição que lhe permitiria apunhalar o Segundo Oficial nas costelas, e eles gritavam, xingavam e lutavam, quando uma voz de mulher cortou o ar.

– Parem! Os dois! – ordenou a sra. Burrows, sentando na mesa.


Drake ouvira o alvoroço e disparava o mais rápido que suas pernas podiam transportá-lo. Passando pela escada no poço central, ele acabava de entrar no lado de Chester no prédio quando viu alguém girar a tranca de uma grande porta de aço inox.

E então a última pessoa que esperava ver foi para o meio do corredor.

– Eddie? – disse Drake, parando com os pés guinchando no piso muito polido.

Com muita calma, o Styx se postou diante de Drake. Ainda com o traje Noddy, Eddie tinha um rifle Styx pendurado no ombro mas, fora isso, estava desarmado – suas mãos estavam vazias. E Drake percebeu que ele não estava de máscara, mas parecia não ser afetado em nada pelo gás nervoso.

Talvez porque não acreditava nos próprios olhos, Drake tirou o respirador ao apontar a pistola para o homem. E não era sua arma de dardos, mas uma Beretta, carregada com munição letal.

– Se eu fosse você, não faria isso, Drake – disse Eddie, vendo Drake retirar o respirador.

– O gás? – perguntou Drake. – Por que você não...

– Você não é o único com acesso a atropina – interrompeu-o Eddie.

– Mas... mas o que está fazendo aqui? – perguntou Drake.

– Pensei em dar uma olhada no que vocês estão aprontando – disse Eddie com indiferença. – Sei que você se sentiu no direito de desfazer nossa aliança, e pelo que aconteceu com Fiona, mas você me traiu. E não sou do tipo que dá a outra face.

Os olhos de Drake começaram a arder devido ao gás nervoso.

– Você está muito confiante – disse ele – para alguém que tem uma arma apontada para si. – Sem baixar a pistola, Drake procurou a seringa de atropina no bolso. Tirou a tampa com o polegar antes de apertar a agulha na coxa. – E, obviamente, tomou alguma coisa para contrabalançar meu tranquilizante, esperando que eu usasse o dardo em você.

Eddie assentiu.

Drake piscou com as lágrimas, já sentindo a atropina contra-atacar os primeiros sintomas do gás nervoso.

– Mas não vai se levantar depois que eu atirar em você com balas de verdade – disse ele.

Eddie balançou a cabeça.

– Você não faria isso.

Drake pressionou o dedo no gatilho.

– É mesmo? Você está no meu caminho e temos muito pouco tempo antes de o chão deste prédio explodir sob nossos pés. Não pretendo ficar por aqui até que isso aconteça.


Chester e o Segundo Oficial pararam de lutar de pronto.

– Sra. B...? – perguntou Chester, o olhar arregalado para a mulher careca que tirava os tubos dos braços, depois girava as pernas de modo a se sentar na beira da mesa de exames. – É a senhora mesmo, sra. Burrows?

– Celia? – disse o Segundo Oficial, ofegando, com as mãos ainda no pescoço de Chester. – Você pode falar... e se mexer... Você está boa de novo! Como isso aconteceu? É um milagre... É o Livro das Catástrofes fazendo suas boas obras, é isso mesmo!

A sra. Burrows parecia completamente calma e composta ao segurar o lençol cinza em volta de si.

– Pode ser um milagre, mas não se deve ao seu Livro das Catástrofes – disse ela. – Na verdade, eu me recuperei há um bom tempo, graças ao modo como cuidou de mim... Você me manteve viva.

– Você... Eu? – balbuciou o Segundo Oficial, completamente confuso.

– Sim. E eu sabia que meu tempo estava se esgotando quando fui trazida para cá. Estava prestes a tentar escapar quando você apareceu. – Ela parou de repente, colocando a cabeça para trás ao sentir o ar com uma longa farejada. – Um Styx – anunciou ela.

– Como assim? – disse Chester rapidamente, girando a cabeça para a porta. – Onde?

– Está muito perto, mas não tenho como saber com exatidão. Há algo no ar que estorva meus sentidos. – A sra. Burrows se virou para o garoto, mas seus olhos não estavam nele enquanto ela lentamente passava a mão pelo rosto, como se visse algo que Chester e o Segundo Oficial não viam. – Sabe o que é isso? Não estava aqui há algumas horas.

Chester olhou o Segundo Oficial, sem saber se devia dizer alguma coisa na frente dele, mas decidiu que a essa altura não faria muita diferença.

– Gás nervoso... Nós o colocamos no encanamento do sistema de ar da Colônia.

– Se eu deixar, esse seu gás destruirá meus olhos e minhas membranas nasais – disse a sra. Burrows.

– Você fez o quê? – explodiu o Segundo Oficial ao entender as implicações do que Chester acabara de dizer.

– E tem explosivos armados por todo este prédio – disse Chester ao Segundo Oficial, com prazer. – Então é melhor sairmos daqui o mais rápido possível. Ou vamos todos virar fumaça.

O Segundo Oficial ainda estava em cima de Chester ao começar a bufar de raiva. Chester, de repente, percebeu como o colonista era pesado.

– E saia de cima de mim, seu monte de banha! – cuspiu ele.

Sem dizer nada, o Segundo Oficial saiu – ao fazer isso, viu a faca na mão de Chester.

– Você ia usar isso em mim, não ia, seu pivete? – disse ele.

– Pode apostar que s... – começou Chester, eriçando-se de novo.

– O Styx está aqui – anunciou a sra. Burrows.

Foi nesse momento que a porta bateu, e Eddie a trancou por fora.


– Não quero ter que machucar você, Eddie – disse Drake. – Mas, se tentar me impedir, eu o derrubarei e deixarei que morra aqui.

Eddie descruzou os braços ao ver o dedo de Drake no gatilho se mover.

Disse alguma coisa à meia-voz.

– O que foi? – perguntou Drake, dando um passo para ele.

Agora com muita clareza, Eddie pronunciou algumas palavras na língua Styx.

Drake ficou inteiramente rígido, como se tomado por um espasmo. Ao fazer isso, a arma disparou, mas Eddie estava preparado, dando um passo habilidoso para o lado e evitando a bala.

Oscilando sem sair do lugar e rígido feito uma tábua, Drake começou a tombar para a frente. Eddie moveu-se rapidamente para pegá-lo.

– Ainda pode me ouvir, não pode? E sabe por que ficou paralisado, Drake, não sabe? – perguntou Eddie. – Eu o submeti a algumas sessões de Luz Negra planejadas por mim enquanto você ainda era nosso hóspede aqui. Implantei alguns padrões de comportamento em você que pensei que um dia me seriam úteis.

Eddie soltou os dedos de Drake da pistola, retirando-a da mão e jogando-a pelo corredor. Depois colocou Drake no chão, sentado. A cabeça de Drake arriou para a frente e pousou no peito, embora seus olhos ainda estivessem abertos.

– Veja bem, eu jogo em longo prazo. Agora que isso não importa, posso lhe dizer que fui responsável pelo fim definitivo de Tam Macaulay e do pai de Sarah Jerome. Reconheci no irmão e na irmã a propensão para causar problemas... Queria que os dois e todos os outros fugissem para se tornar rebeldes e agitassem a população da Colônia de seu torpor. – Ele assentiu consigo mesmo. – Veja bem, nós, Styx, ficamos acomodados demais, complacentes demais, em nosso feudo subterrâneo. Precisávamos de um chamado de alerta para nos fazer olhar para fora de novo, para a superfície, e fazer o que o Livro decreta que é nosso dever.

Houve um martelar na porta, e Eddie olhou despreocupadamente para Chester e o Segundo Oficial, que se acotovelavam para vê-lo pela janela de observação. Depois ele simplesmente virou o rosto.

Eddie deu de ombros para a silhueta reclinada de Drake.

– Mas, se todo o meu trabalho fez alguma diferença, serei o primeiro a admitir que julguei mal como os acontecimentos se desenrolariam. Pode ter servido para colocar a liderança Styx em ação, mas por uma via extremista, que não é a via correta para seguirmos. – Ele suspirou. – Eu entendi mal.

Dando alguns passos como se estivesse saindo, Eddie se recompôs e parou. Sem olhar para Drake, colocou a mão no alto de sua cabeça.

– E depois que aquela família desencaminhada... aquelas gêmeas Rebecca, como vocês as chamam, e seu avô, o velho Styx... mostraram como são tolos... Depois que forem derrotados por semelhantes seus e de Will Burrows... um mero garoto... então perderão o poder e voltarei à Colônia para assumir o leme... Eu sou paciente... estou preparado para esperar por esse dia. – Ele colocou as mãos nos bolsos e andou até a escada. – Adeus, Drake – disse.


Chester correu à porta no momento em que Eddie a fechou, mas não conseguiu abri-la.

– Estamos trancados aqui! Cadê Drake? – Ele tentou usar o microfone de pescoço para falar com ele, mas o rádio tinha sido danificado na luta e estava completamente silencioso. – Todo este maldito lugar vai sumir em min... – interrompeu-se ao ver algo pela janela de observação. – Mas o quê! – exclamou, depois enxugou os olhos, que lacrimejavam, para ver melhor. Viu Eddie no corredor e Drake aproximando-se dele com uma pistola. – Ah, não, é ele de novo! – gritou Chester. – A sra. Burrows tem razão. É um Styx!

Depois de tirar o manto e colocá-lo nos ombros da sra. Burrows, o Segundo Oficial se juntou a Chester. Viu Eddie do outro lado da porta e começou a bater para chamar sua atenção.

– Ah! Agora sua hora chegou – declarou ele a Chester. – O Styx cuidará de você e de seu amigo. Ele vai me tirar daqui.

– Nada disso – respondeu Chester, dando uma cotovelada no Segundo Oficial para olhar Eddie. – Este era o nosso Styx... Ele não está mais do seu lado.

– Então ele está do seu lado – disse o Segundo Oficial, com surpresa.

Chester balançou a cabeça.

– Bom, de que maldito lado ele está, afinal? – quis saber o Segundo Oficial, a cara larga era a imagem da confusão.

– Sinceramente, não sei – admitiu Chester.

Eles não conseguiram ouvir o diálogo entre Drake e Eddie, mas Chester engoliu em seco ao ver Drake paralisado feito uma estátua e sua pistola disparando a esmo. Engoliu em seco de novo quando Eddie foi até ele e tirou a arma de sua mão, depois o colocou no chão, fora de vista.

– A Luz Negra... Drake recebeu a Luz Negra – murmurou ele, ao perceber o que tinha acabado de testemunhar. – Estamos com um problemão. Não podemos ficar mais do que alguns minutos antes de a carga explodir!

– Mas...? – disse o Segundo Oficial, apontando o polegar para Eddie.

– Não, por que não me ouve? Ele não está a fim de nos ajudar. Não depois do que fizemos com ele – vociferava Chester. – Vamos virar farinha!

– Então temos que pensar em uma solução sozinhos – declarou a sra. Burrows. Ao se levantar, o colete do policial era quase um casaco para ela.

Chester e o Segundo Oficial trabalharam juntos, fazendo o máximo para abrir a porta à força, mas era de construção sólida. Agora Chester tossia tanto quanto o Segundo Oficial, e seus olhos ficaram tão irritados que ele mal conseguia enxergar.

– Podemos quebrar isso aqui – sugeriu Chester, ao bater na janela de inspeção circular da porta. Ele sabia que as chances eram poucas. A janela tinha menos de dez centímetros de diâmetro e era alta demais para que um deles alcançasse a maçaneta, mas valia a pena tentar.

– Saia da frente – disse o Segundo Oficial.

Chester recuou enquanto pegava a banqueta de alumínio e a atirava na janela de vidro. Depois de várias tentativas a banqueta se desfez em pedaços, e o vidro nem mesmo ficou arranhado.

– Veja o que mais tem aqui – instruiu Chester o Segundo Oficial, ao começar a vasculhar sua Bergen, procurando por algo que pudesse usar para abrir caminho. – Eu não tenho nenhum explosivo, mas... sim... isto pode servir – disse, pegando um dos rifles no chão. – Abaixem a cabeça... Vou usar balas de verdade! – avisou. Ele apontou a arma e tentou mirar na janela, mas sua visão estava tão obstruída que se deteve. – Isso não está bom – murmurou. Depois se lembrou das seringas de atropina no bolso, jogando uma para o Segundo Oficial. – Isto vai ajudar você a enxergar de novo. Use assim! – disse ao colonista ao baixar o rifle e, retirando a tampa da seringa, aplicá-la na coxa.

Ele se curvou para pegar o rifle e se levantou novamente.

– Caramba! Agora eu fiquei bem tonto! – disse ele. Respirou fundo algumas vezes, até sua mente clarear, depois mirou na janela de observação e disparou. O som foi ensurdecedor na sala. Embora o primeiro tiro tivesse causado danos mínimos à janela, apareceu uma pequena rachadura na beira do vidro. – Deve ser blindado ou coisa assim! Droga! – xingou Chester, e disparou duas vezes rapidamente. Na terceira tentativa o vidro se espatifou.

O Segundo Oficial logo estava ali, socando os cacos restantes com uma das pernas da banqueta.

– Aquele Styx foi embora – observou ele, depois meteu a mão pela janela agora sem vidro. – A maçaneta... não consigo alcançar... É baixa demais – grunhiu ele.

– Deixe-me tentar, eu sou mais magro – disse Chester, tirando-o do caminho.

Mas ainda não adiantou nada – mesmo com todo o braço para fora da porta, a mão de Chester ficou uns bons vinte centímetros distante, e era preciso segurar bem a barra para girá-la e abrir. Enquanto o Segundo Oficial saqueava os armários junto das paredes para ver se havia algo que os ajudasse a alcançar a maçaneta, Chester tentou despertar Drake gritando sem parar, embora só conseguisse ver seus pés pela janela. Ele ainda gritava quando a sra. Burrows apareceu a seu lado.

– Não sei o que Eddie fez com ele... pode até tê-lo matado – disse Chester com a voz rouca de desespero.

A sra. Burrows respirou fundo.

– Não, não sinto cheiro de sangue – disse ela.

Chester percebeu o que havia de errado com ela.

– Ah, não! Você está cega! Aqueles desgraçados a cegaram! – explodiu ele.

– Diga-me o que está vendo por aí – pressionou-o ela.

Ele obedeceu enquanto o Segundo Oficial voltava com um pedaço de cateter cirúrgico de borracha e estendia a Chester. Chester pegou e esticou, depois balançou a cabeça.

– Isso não está bom, não é? – gritou ele.

– Calma, Chester – disse a sra. Burrows. – Temos que estabelecer prioridades. Precisamos recolocar Drake em ação. Como faremos isso?

O Segundo Oficial veio bamboleando com o que parecia um fórceps de metal estendido.

– Não é tão comprido... Não vai alcançar – disse Chester, voltando-se para a sra. Burrows de novo. – Bom – começou, pensando –, meu pai recebeu a Luz Negra, e Drake lhe deu um tratamento de choque... Drake bateu nele e...

– Sim, isso... Use a dor para trazê-lo de volta – interrompeu a sra. Burrows. – Pode dar certo.

– Mas como? Devo atirar nele? Ou atingi-lo com um dardo tranquilizante? – disse Chester num fôlego só. – Mas de que isso adiantaria?

A sra. Burrows girou para o Segundo Oficial, que ainda vasculhava os armários, jogando seu conteúdo no chão.

– Colly! – disse ela. O Segundo Oficial parou. – Sua Caçadora está aqui perto, não está? – perguntou.

– Deixei do lado de fora com meu amigo – respondeu ele. – Como sabia diss...

Ele foi interrompido pela sra. Burrows, que colocou dois dedos na boca e soltou um assovio penetrante pela janela de observação.

– Isso não vai adiantar nada. Colly é uma figurinha desobediente – grunhiu o Segundo Oficial.

Mas, em segundos, ouviram um miado do lado de fora da porta.

– Colly! Boa menina! – disse a sra. Burrows. – Agora me escute... Está vendo esse homem aí fora? Quero que o morda.

Com a sra. Burrows na janela de observação, Chester não sabia o que estava acontecendo no corredor. Mas ouviu outro miado, e a entonação era tal que parecia ter um ponto de interrogação.

– Sim, estou lhe dizendo para morder o homem. Faça isso – insistiu a sra. Burrows à Caçadora.

No corredor, Colly contornou Drake várias vezes. Não era de sua natureza prejudicar um ser humano, e ela estava decididamente pouco à vontade com o que haviam mandado ela fazer. Mas também sabia, pelo tom da sra. Burrows, que era de extrema importância. A Caçadora se aproximou de Drake, depois lhe deu uma mordiscada rápida na coxa, pouco acima do joelho.

A sra. Burrows farejou.

– Não, tem que ser mais forte... Morda mais forte! – gritou ela.

– Meu Deus!... Acho que não temos mais tempo – disse Chester, ocorrendo-lhe quanto tempo tinha se passado. – Não vamos conseguir. – Ele e o Segundo Oficial se olharam nos olhos, e Chester pensou na ironia que era trabalhar com alguém que minutos antes ele queria matar. Agora os dois estavam em perigo, se a ideia da sra. Burrows não desse certo.

– Ande... MORDA O HOMEM! – gritou ela.

Colly se arriscou a voltar a Drake, com o rabo abanando, inquieto, ao baixar o focinho. Depois fechou as mandíbulas na parte de baixo da perna e mordeu com força.

– MAIS FORTE! – gritou a sra. Burrows.

Ainda agarrada à perna de Drake, Colly sacudiu a cabeça como se estivesse despachando um rato grande.

Ouviu-se um rugido quando a cabeça de Drake se ergueu. Colly ficou tão assustada com a reação dele que suas patas escorregaram e ela derrapou no piso encerado ao tentar fugir.

Drake se levantou, trôpego.

– Chester – gritou ele.

Viu a porta trancada e correu até lá.

Ao girar a barra e abrir a porta, ele deparou com os rostos agradecidos da sra. Burrows, do Segundo Oficial e de Chester.

Só então olhou o relógio.

– Não temos tempo para amabilidades – disse ele. – Temos um minuto para dar o fora daqui.

Sem hesitar nem por um momento, o Segundo Oficial pegou a sra. Burrows e a jogou no ombro.

Drake lhe deu um aceno. Não sabia o que esperar quando viu o colonista, mas pelo menos o homem não seria problema. Drake viu a Bergen de Chester e os rifles no chão.

– Pegue seu kit... E não se esqueça da máscara de gás! – gritou ele para o menino.

Depois eles dispararam pelo corredor, desceram a escada e saíram do prédio. Ao chegarem à guarita do guarda, o Segundo Oficial viu seu amigo esparramado no chão, e Drake falou com ele:

– Eu tirarei Celia daqui – disse ele. – Você, cuide dele. Ele é pesado demais para mim.

O Segundo Oficial fez o que Drake mandou, e eles atravessaram a rua. Desciam a mais próxima quando o primeiro explosivo detonou. Não foram detonados simultaneamente, mas em uma onda, como uma série de fogos de artifício na Noite de Guy Fawkes. O som das explosões ecoou à volta deles enquanto a rajada súbita de ar os fez cambalear para a frente. Quando a última explosão reverberou pela caverna, eles pararam para ver o prédio afundar numa nuvem de poeira.

O Segundo Oficial baixou o amigo e se postou na frente de Drake, erguendo os ombros para ele.

– Se eu cumprisse meu dever, deveria prender você neste instante.

Chester estava preparado para este momento, com a arma de dardos pronta nas costas dele.

– Mas se deixar que vocês, da Crosta, escapem significa colocar Celia em segurança, então, assim será – continuou o Segundo Oficial.

– Por que não vem conosco? – perguntou a sra. Burrows. – Não há nada para você aqui embaixo.

– Há minha mãe e minha irmã – Ele deu de ombros. – Eu não poderia deixá-las. – Olhou a fumaça subir do que sobrara do prédio dos Laboratórios. – Terei que pensar em alguma coisa convincente para dizer aos Styx e me proteger.

Drake passou os olhos pelas ruas em volta com uma expressão preocupada.

– Temos que correr – disse ele. – Já devíamos ter ido muito antes de as cargas explodirem. Os Styx estarão aqui fora procurando por nós agora.

– Ah, meu Deus! – murmurou Chester.

Mas a sra. Burrows não pareceu muito preocupada.

– Obrigada por me salvar – disse ela ao Segundo Oficial, curvando-se para lhe dar um beijo. – Você é um bom homem, um homem verdadeiramente bom.

Ele pousou a mão na bochecha onde ela beijou, e Chester podia jurar que ele corava.

Drake e a sra. Burrows começavam a se afastar, mas Chester continuou ali por um segundo.

– É, talvez você não seja tão ruim... Para um completo cabeça de bagre – disse ele ao colonista.

– Chispe daqui, garoto da Crosta – disse o Segundo Oficial, fingindo socar o menino e sorrindo. – Agora, para onde foi aquela Caçadora? Só espero que ela não tenha se ferido na explosão – acrescentou ele, com o sorriso desaparecendo ao começar a procurar por ela.


Recusando qualquer ajuda, a sra. Burrows não teve problemas em acompanhar os dois, que disparavam pelas ruas na direção das Estações de Ventilação.

Apesar dos temores de Drake em relação aos Styx, ainda não haviam aparecido muitos deles, e aqueles que já patrulhavam as ruas podiam ser facilmente evitados quando a sra. Burrows usava seus sentidos a toda.

– Por aqui, não – disse ela. – Com todo esse gás pelo lugar, não tenho o grau de precisão que deveria, mas acho que tem um Styx andando por ali.

Drake olhou pela esquina e rapidamente recuou. Assentiu para Chester.

– Como você faz isso? – perguntou ele à sra. Burrows, enquanto os três logo voltavam pela rua.

– A Luz Negra fez alguma coisa comigo... Acho que eles reprogramaram meu cérebro – disse ela, depois riu. – Eu posso estar cega e não ver tevê nunca mais, mas, de um jeito ou de outro, não pretendia fazer isso mesmo.

Não havia tempo para conversar quando eles entraram em uma estrada cheia de pessoas sonolentas se reunindo como gado confuso. Chester quase achou engraçado – os homens com toucas e camisolões ridículos e as mulheres com camisolas floridas pareciam uma festinha de pijama que tinha dado errado. Eles, evidentemente, foram acordados pelas várias explosões – teria sido impossível não ouvi-las nos limites da caverna gigante.

Drake e Chester não tiveram que usar os dardos tranquilizantes nem uma vez. Os colonistas foram tão afetados pelo gás que não representaram ameaça nenhuma. E Drake aproveitou a oportunidade para pegar um par de chinelos com uma mulher rotunda, que gritou alto. Foi só então, um pouco mais adiante, quando os entregou à sra. Burrows, que Chester percebeu que até aquela altura ela estava descalça.

Eles foram obrigados a se desviar mais uma vez quando a sra. Burrows de novo os alertou da presença de Styx. Depois, antes que Chester se desse conta, eles estavam na via pública com os sulcos de carroças, vendo a passagem lateral onde ficava a pocilga.

– Nunca pensei que ficaria tão agradecido por sentir cheiro de bosta de porco de novo – disse Chester.


Ao entrarem no Labirinto, Drake pegou o iPod para guiá-los. A sra. Burrows se agarrou à Bergen de Chester para ajudá-la a se manter na rota. Mas, depois de uma hora de caminhada, Drake percebeu que ela se arrastava com o garoto. Ele supôs que sua provação na Colônia devia estar começando a pesar sobre ela.

– Precisamos descansar – disse ele.

Ao se sentarem na areia vermelha, eles beberam um pouco de água dos cantis.

– Me fale de Will... Me fale de meu filho – pediu a sra. Burrows de repente.

Drake olhou para Chester, incitando-o a responder.

– Hmmm... Ele estava bem... muito bem... quando ele... hmmmm... saiu. Veja bem, ele foi atrás do dr. Burrows, mais fundo na Terra – explicou Chester, sem sentir que este era o momento de contar a ela que os dois tinham pulado de cabeça na Jean Fumarenta, um vazio colossal, e que ele não sabia se sobreviveram à queda ou não. Chester nunca esteve na situação de ter que contar a alguém que seu marido e seu filho podiam estar mortos.

A sra. Burrows pareceu insatisfeita com a resposta. Virou os olhos cegos para Chester, e, quase imperceptivelmente, suas narinas inflaram.

– Não está me contando toda a história, está? – disse ela gentilmente.

– Talvez a gente deva fazer isso mais tarde – interferiu Drake. – Estamos meio apertados com o tempo agora.

Chester percebeu que Drake parecia preocupado e deu de ombros um pouco.

– Pode haver uma complicação – disse Drake por fim, fazendo uma careta ao mexer no respirador.

Depois de toda a excitação, Chester se sentia completamente esgotado e só queria voltar para a superfície.

– Como assim? – perguntou ele, percebendo então o que estava na mão de Drake. – As máscaras de gás! Não temos o suficiente para a jornada pela Cidade Eterna!

– Não, não é isso. Tem uma a mais na minha Bergen – respondeu Drake numa voz vencida. – É Eddie. Ele estava disposto a deixar que todos nós morrêssemos ali e se, como desconfio, voltou à Crost...

– O depósito! – exclamou Chester, colocando-se de pé. – Meu pai! Ele está lá. Se Eddie o alcançar primeiro...!

– Sim, então precisamos dar no pé – disse Drake.

– Se o problema sou eu – falou a sra. Burrows –, não quero atrasar vocês. Estive esperando que alguém nos alcançasse.

Chester e Drake simplesmente a olharam.

– Ela agora alcançou, mas você a assustou, Drake, e está guardando distância. – A sra. Burrows virou-se para a passagem de onde tinham saído. – Está tudo bem... pode vir agora – chamou.

– Por que não estou surpreso? – suspirou Drake, mas sorria.

Chester não sabia de quem a sra. Burrows ou Drake estavam falando.

– Bom, como eu podia deixá-la para trás, naquela casa, com aquelas duas mulheres medonhas? – disse a sra. Burrows, depois gritou de novo. – Venha para cá, Colly!

A felina saiu das sombras parecendo uma pantera negra ao olhar Drake com os olhos âmbar cautelosos.

– Era só o que nos faltava... Quando voltarmos à superfície em Westminster! – disse Drake, rindo.


Capítulo Trinta e Um


Will e Elliott pularam juntos por outra das ravinas amplas. Ao pousarem do outro lado, seus pés patinaram pelo lodo até eles pararem. Elliott cambaleou alguns passos, depois olhou para Will.

– Ainda temos muitos destes? – perguntou ela, enquanto Bartleby, decidindo que era hora de pular, atirou-se do outro lado da ravina. Infelizmente avaliou mal onde cairia e bateu nas pernas de Will, empurrando-o para a frente.

– Ei! Cuidado, vira-lata! – repreendeu Will o felino, que se afastou lentamente para investigar o novo trecho do veio.

– Bom, tem ou não outros? – perguntou Elliott de novo, mal movendo a boca, como se estivesse dormente.

Will a olhou, reconhecendo que ela sofria outra queda de energia. Os efeitos do cansaço vinham em ondas; na maior parte, era um desligamento dominador de tudo o que havia em volta. Mas de vez em quando descia de montanha-russa no desânimo e no desespero mais esmagadores, quando até a menor tarefa parecia uma realização hercúlea e se tinha a sensação de não haver luz nenhuma no final do túnel. Will desconfiava de que era nesse ponto que estava Elliott.

– Não, acho que foi o último salto grande. E, graças a Deus, existe baixa gravidade – disse ele, tentando parecer o mais otimista possível. – Não sei como teríamos atravessado se não fosse por ela.

Elliott bocejou.

– Estou tão cansada. E com tanta fome que comeria uma vaca-das-cavernas... Duas vacas-das-cavernas.

– É, eu também, mas não iria tão longe. Espere até chegar ao abrigo nuclear... Não tem só camas boas e limpas, mas também um monte de comida – disse-lhe Will, com o estômago roncando ante a perspectiva de espalhar carne nos biscoitos que, neste exato momento, pareciam-lhe um banquete dos céus.

Menos de um quilômetro depois eles chegaram ao final do veio e entraram pela passagem apertada que saía dele. Espremendo-se entre as paredes de pedra áspera, Will desligou o rastreador e o colocou no bolso; agora era impossível se perderem. Mas era estranho não ter os estalos repentinos para pontuar o ritmo lento e cansado de suas botas batendo e raspando o chão.

Uma hora se passou antes que Will e Elliott pudessem falar novamente.

– Agora não falta muito – anunciou ele.

– Ah, tá – suspirou ela.

Reconhecendo que Elliott ainda parecia muito deprimida, Will fez outro esforço para melhorar seu estado de espírito.

– É. Não falta muito mesmo. Já viu esses sinais no alto? – disse ele. Parando, ergueu o globo luminoso para que iluminasse a parte superior da parede. – Veja... Estamos quase conseguindo.

Elliott se recostou na parede da passagem e virou a lanterna para cima.

– Um triângulo vermelho – observou, enquanto o círculo de luz revelava a tinta vermelha descascando de um dos símbolos.

– Eles aparecem a intervalos de quinhentos metros – disse Will, partindo de novo. Mas no momento em que pronunciou estas palavras elas ressoaram em sua cabeça, como se um diapasão tivesse sido golpeado.

Com Elliott atrás, Will continuou a andar mecanicamente. Sem ter consciência disso, ele assoviava distraidamente entredentes, como o pai fizera quando eles estiveram nesta mesma passagem, meses antes. O dr. Burrows foi o primeiro a perceber as marcas de direção, apontando-as para Will.

Will parou de assoviar.

– Elas aparecem a intervalos de quinhentos metros – repetiu em voz muito baixa, mas em sua mente ouvia a voz do pai, distintamente, como se o dr. Burrows estivesse andando ao lado dele.

Começou a reduzir o passo ao lembrar que o pai foi obrigado a convencê-lo a seguir este trecho. Na época, Will estava se criticando por não ter se esforçado mais para encontrar Chester e Elliott, para que eles se reunissem depois da explosão do submarino. Ele discutia por qualquer coisa e descarregava no dr. Burrows, jogando nele toda a sua frustração e ressentimento, quando na realidade estava furioso consigo mesmo. Furioso e extremamente confuso com o que devia fazer.

Will parou de repente, fazendo Elliott bater contra ele.

– O que foi? – perguntou ela.

– Eu...

Antes que se desse conta, Will caiu em prantos. Não conseguiu reprimir as lágrimas, chorando tanto que mal conseguia respirar.

– Papai, ah, papai – gemia ele, e se contorcia para se afastar de Elliott, espremendo-se contra a parede. Estava muito constrangido e envergonhado por ela o vir perder o controle de suas emoções daquele jeito.

Voltando para descobrir por que seus companheiros de viagem não o estavam acompanhando, Bartleby fitou Will com seus grandes olhos acobreados, sem entender o que estava errado. O felino tentou empurrar o focinho entre Will e a parede para chamar sua atenção. Como Will não se mexeu, Bartleby se sentou ao lado dele, com a cabeça tombada de lado ao começar a soltar miados baixos em solidariedade pelo menino que chorava.

– Estou sendo tão idiota – murmurou Will, enquanto Elliott se aproximava dele.

– Não, não está – disse ela com brandura. Abraçou-o, depois deitou a cabeça no ombro dele.

– Não sei que... Por que agora... – Ele soltou em meio a um soluço, ainda incapaz de recuperar o controle.

Eles continuaram assim por algum tempo, com Elliott abraçada a ele.

– Que palhaço – conseguiu dizer ele, com o peito ofegante.

– Está tudo bem. Você só está triste – disse ela, e o apertou, reconfortando-o. – Não devia reprimir isso. Lembra o que eu disse a Cal na ilha: que as experiências horríveis o tornam mais durão e mais capaz de sobreviver?

Will murmurou um “Sim”.

– Não é bem verdade. Só o tempo torna as coisas melhores – admitiu ela.

Enquanto Will se acalmava, Elliott levantou a cabeça. Ela estava prestes a lhe dar um beijo na bochecha quando ele se afastou da parede, desvencilhando-se dela.

Sem saber o que ela estava prestes a fazer, Will encarou os próprios pés. Sua voz era tensa e rouca ao tentar se expressar:

– Antigamente, eu vivia brigando com papai. Eu era muito seguro de mim, absolutamente certo de que tinha razão. Velho bobo, eu pensava. Seu velho bobo, idiota e ultrapassado... Entendendo tudo errado... Fazendo uma confusão danada – disse Will, enxugando o rosto com a manga. – Às vezes eu era horrível com ele e agora nem posso dizer a ele que eu é que estava errado, e o quanto lamento. – Will tentou rir a usar o polegar para esfregar as lágrimas dos olhos, mas não soou muito alegre. – Bom, dizer a ele que eu estava errado em parte do tempo – acrescentou. Começou a suspirar fortemente, mas isto se metamorfoseou num soluço, tão alto que as orelhas de Bartleby se levantaram.

– Quer um pouco de água? – ofereceu Elliott. – Podemos ficar um tempo aqui, se preferir.

– Não... Eu já estou bem – disse Will. – Obrigado. – Partiu pela passagem, fungando de vez em quando e seguindo na frente, ainda pensando no pai.


– Conseguimos! – Will gritou a Elliott ao sair da fenda com tanta pressa que quase caiu na plataforma de concreto. Com o globo luminoso postado diante dele, estava prestes a se virar para a direita quando Bartleby disparou pela abertura, galopando a toda.

– Nããããão! – alertou Will com um grito, mas era tarde demais. Ouviu-se um mergulho quando Bartleby caiu da plataforma de concreto e atingiu a água do porto.

Quando Elliott chegou, ela e Will viram o Caçador. Suas orelhas estavam achatadas na cabeça e ele mantinha o focinho largo rigidamente fora da água, nadando cachorrinho de volta à lateral.

– Não tinha ideia de que ele sabia nadar. E ele parece gostar disso... Não parece lá muito com os gatos comuns, né? – disse Will.

Enquanto Bartleby se aproximava, Will se ajoelhou para estender a mão ao animal para que subisse à terra seca. Depois que Bartleby se sacudiu, molhando Will e Elliott, Elliott orientou o facho da lanterna para a lagoa de água clara e a parede da caverna à esquerda.

– Então é isso? – disse ela.

– Ainda não viu nem a metade. Precisamos acender os refletores – respondeu Will, secando as mãos na frente da roupa. – Vamos, é por aqui.

Eles andaram pela plataforma, subiram numa pilha de entulho e viraram à esquerda no cais. Logo chegaram ao prédio baixo, com as janelas empoeiradas.

Will se aproximou da pesada porta azul-acinzentada.

– Já está aberta! – exclamou ele.

Elliott tirou o rifle do ombro e o apontou.

– Tem alguém lá? – perguntou ela.

Will segurou o mecanismo de tranca circular e puxou a porta alguns centímetros.

– Estava muito bem fechada quando saímos daqui – disse ele. Franzindo a testa, virou-se para Elliott: – E eu sei que estava trancada... Papai me disse para verificar.

Elliott se agachou, com o dedo no gatilho.

– Não, não acho que haja motivos para se preocupar, não neste lugar. Não seria um Styx – disse Will a ela. – Mas isso quer dizer... acho... que Chester voltou aqui, com Martha. – Sorriu. – Então ele está bem. – Balançou a cabeça. – Sabe, com todo o resto, eu nem pensei muito nele ultimamente. Só supus que deve ter voltado à Crosta com aquela maluca e que está lá em cima, em algum lugar na superfície.

Mas, observando Bartleby, Elliott não ficou tão relaxada com a atual situação.

– O Caçador está sentindo alguma coisa, fale baixo – sussurrou ela a Will. – E puxe mais a porta para eu poder ver lá dentro.

Will obedeceu e, depois de ela verificar o interior com a mira do rifle, os dois entraram. Will não perdeu tempo e foi ao painel de comutadores.

– Este é o painel de controle principal das luzes. Devo acender... Acha que é boa ideia? – disse ele a Elliott, que assentiu.

– Só não gosto da atitude de Bartleby – declarou ela em voz baixa.

O felino avançava, cauteloso, parecendo preocupado com alguma coisa.

Lembrando-se de que o primeiro comutador não fez nada quando o pai o experimentou, Will escolheu o seguinte e baixou a alavanca. Os contatos faiscaram e por um segundo a sala foi iluminada por um clarão de lâmpadas azuis, depois as luzes nos anteparos ganharam vida.

– Ai! – exclamou Will. – Esqueci que era muito forte. – Mas, apesar do brilho, ele ainda conseguiu virar as chaves que controlavam as luzes do lado de fora do porto. – Papai disse que todo o lugar é abastecido por turbinas no rio – informou a Elliott.

– Cuidado – sibilou ela, acenando para o canto da sala.

Will olhou a porta antiexplosão de um metro de espessura.

– Também está aberta – observou ele, indo para lá.

– Espere – cochichou Elliott. – Está molhado.

Will procurou o que ela olhava. No caminho para a porta havia um pequeno objeto de aparência suja, com marcas cinza no piso de concreto.

Bartleby se aproximou, e Will não entendeu por que ele estava tão nervoso.

– Papai e eu não deixamos nada ali – disse Will a Elliott, sussurrando. – Mas é só um trapo sujo, né?

Enquanto a menina mantinha o rifle apontado para a porta antiexplosão, Will se aproximou e sondou o objeto com a ponta da bota.

– Sim, um trapo – falou ele, depois o chutou. – Não, cuidado... porque é perigoso... muito perigoso! – exclamou, mal sendo capaz de falar com as gargalhadas. – Olhe só... não é um trapo... é uma cueca suja! Chester deve ter largado aqui!

Enquanto Elliott vinha para seu lado, ela viu que era inconfundivelmente uma cueca puída e muito suja.

E depois os três, Will, Elliott e Bartleby, foram na ponta dos pés para a porta antiexplosão e entraram na passagem. Tinha uns quinze metros de altura e era fortemente iluminada por lâmpadas fluorescentes no meio do teto. Will lançou um olhar para a cabine de operação de rádio, assegurando-se de que ainda estivesse ali. Pretendia fazer uma visita depois.

Ele indicou a próxima cabine.

– Vai adorar o que tem ali – disse ele, sem tentar baixar a voz. – É o arsenal... É...

– Bartleby ainda está agindo com cautela. E sinto um cheiro estranho – alertou-o Elliott incisivamente.

Will farejou várias vezes.

– Detergente... É só isso – afirmou ele. – Deve ser isso – acrescentou, esfregando o pé em uma trilha úmida que corria pelo linóleo da passagem, que sem isso estaria imaculado. – Chester ou Martha devem ter arrastado alguma coisa por aqui.

Mas Elliott tinha razão – Bartleby ainda se comportava de maneira estranha enquanto eles avançavam, embora Will atribuísse sua atitude a ambientes desconhecidos, cheios de cheiros novos.

Junto à porta do final da passagem havia alguns pacotes de comida que foram rasgados em pedacinhos.

– Sempre deixe um lugar como gostaria de encontrá-lo – disse Will num tom de reprovação, citando a máxima do dr. Burrows.

– Seu pai? – perguntou Elliott, reconhecendo que as palavras do garoto não pareciam dele.

– Meu pai – confirmou Will. – Mas estou surpreso que Martha e Chester tenham feito toda essa bagunça.

– Tem mais alguma coisa aqui – cochichou Elliott, torcendo o nariz. – Esse cheiro que...

– Não, está tudo bem – insistiu Will. – Você se preocupa demais. Estou dizendo... Ninguém mais desceu aqui. Fica muito longe da Colônia ou das Profundezas, a quilômetros de tudo.

– Mas não acha que os Pescoços Brancos podem ter se interessado em saber como você e o doutor voltaram a Highfield? E se Chester e Martha foram apanhados e submetidos à Luz Negra... Eles teriam contado tudo, inclusive sobre este lugar. – Elliott raciocinava. – E sua mãe? E se os Styx realmente aplicaram a Luz Negra nela?

– Não, minha mãe não... Drake cuidou para que papai e eu não falássemos muito na frente dela, em especial sobre onde o rio dá, sob o campo de pouso – respondeu Will. – Mas acho que você pode ter razão.

Eles entraram na área principal, com suas filas e mais filas de beliches. Era do tamanho de um campo de futebol, e pelas margens havia outros cômodos. Com todas as luzes acesas, eles rapidamente viram que não havia ninguém ali.

– O que foi que eu disse? – falou Will a Elliott. – Não tem ninguém. Não tem ninguém. Vem comigo. – Disparou a correr, atravessando a área de beliches. Elliott o seguiu cautelosamente, com o rifle ainda a postos. Ao alcançar Will do outro lado, ela apontou uma porta azul-clara com um número em estêncil.

– Os chuveiros ficam ali – informou ele. Depois, chegando à próxima porta, soltou um uivo de alegria. – E é isso que estávamos esperando! A cozinha fica aqui! – anunciou.

Ele abriu a porta e entrou.

Toda a sala parecia se mexer.

Depois parou.

Centenas de olhinhos estavam nele.

Bigodes se torceram.

Depois vieram num enxame.

Uma massa negra de ratos.

– Meu Deus do céu! – gemeu Will quando todo o bando, como um derramamento de óleo, fugiu pela porta. Preso na entrada, Will se segurou nos batentes. Fechou os olhos, escorando-se contra a torrente de bichos daninhos que passava numa inundação. Até entre suas pernas.

Ele ouviu o rifle de Elliott disparar enquanto ela atirava em um rato, depois num segundo, mas nada comparado com Bartleby, que nunca tinha se divertido tanto em sua vida. Parecia um tornado ao saltar e pegar um rato depois de outro com os dentes. Ele não os matava a mordidas, mas os pegava pelo cangote e, com uma sacudida habilidosa da cabeça, despachava cada um dos roedores, quebrando seu pescoço.

– JEEEEEEEESUUUUUUSSSSSS! – uivava Will, cambaleando para trás. Só então abriu os olhos e viu a trilha de carnificina que levava à porta principal. Ratos mortos e sangrando tomavam o caminho, mas não havia sinal de Bartleby.

Elliott se dobrava de rir.

– Devia ter visto sua cara! – exclamou ela.

Will não achou a menor graça.

– Que nojo! – Ele ofegava.

– Eram só ratos... E agora temos o que comer – conseguiu dizer Elliott, ainda às gargalhadas.

Will estava extremamente resignado ao entrar na cozinha e avaliar o caos que os ratos haviam deixado. Pacotes de ração aos farrapos, sacos de chá rasgados – tudo em que puderam meter os dentes fora rasgado. Ele olhou um recipiente plástico de detergente no chão que eles de algum modo conseguiram derrubar do escorredor de pratos ao lado das pias. Isso explicava por que o cheiro estava por toda parte.

Ele voltou sua atenção para as prateleiras, onde as latas estavam empilhadas.

– Pelo menos não pegaram minha carne enlatada – disse Will, tentando se consolar, mas sem sentir tanta fome.


– Tire todo o seu equipamento e coloque na mala com suas armas – disse Drake a Chester. – Vamos buscá-los depois.

A sra. Burrows e Colly esperavam no porão enquanto Chester tirava a Bergen e o cinto de kit, colocando-os na mala aberta. Depois ele olhou sua arma, relutando em se separar dela.

– Não vamos precisar de armas quando chegarmos ao depósito? – perguntou ele.

– Não percebe que é hora do almoço aqui? Haverá gente por todo lado. E policiais. Não queremos ser apanhados com nada que nos incrimine... Não vale a pena correr o risco – respondeu Drake. – E eu tenho algum equipamento no Range Rover, não muito longe da casa de Eddie. Vamos passar lá primeiro.

– Tudo bem – concordou Chester.

Drake cortou um pedaço de corda e fez uma trela improvisada para a gata. Colly parecia estar com menos medo dele quando Drake fez um laço e o colocou em seu pescoço, entregando a ponta à sra. Burrows.

– Pelas aparências – disse ele. Fechou a mala com um baque, cerrou os fechos, e a escondeu, colocando alguns caixotes de livros velhos na tampa. – Hora de pegar a estrada – anunciou.

Drake subiu a escada para a porta no final do porão e tentou abri-la. Como esperava, estava trancada.

– Isto pode fazer algum barulho, mas vamos ficar bem – disse ele.

Ele desceu vários degraus, depois meteu um chute lateral perfeito na tranca. Houve um estrondo da madeira sendo lascada, ele abriu a porta e passou, com a sra. Burrows e a Caçadora atrás e Chester na retaguarda.

A rua estava cheia de gente. Havia uns trinta alunos da escola próxima. Alguns chutavam uma bola de futebol na área gramada no meio, enquanto outros estavam sentados em pequenos grupos. Além disso, semicerrando os olhos para a luz do dia a que estava desacostumado, Chester viu turistas aqui e ali portando câmeras e dois idosos de batina. Ele respirou fundo e reduziu o espaço que o separava da sra. Burrows.

O silêncio caiu na praça quando as pessoas notaram sua presença.

A quietude inicial deu lugar a uma onda de murmúrios de surpresa, a bola de futebol rolando até parar enquanto os meninos perdiam o interesse no jogo. Todos olhavam o estranho grupo que seguia pela lateral da praça. Chester percebeu que, se, por um lado, ele e Drake, com seus trajes Noddy verdes enlameados, não eram o bastante para chamar a atenção, por outro, uma mulher careca com linhas pretas desenhadas no couro cabeludo, vestida de colete azul e usando chinelos vermelhos, era garantia de receberem mais do que olhares de passagem. E Colly, igualmente careca como a sra. Burrows e do tamanho de um cão dinamarquês, era o glacê do bolo para os espectadores hipnotizados enquanto ela os farejava inquisitivamente.

Ao se aproximarem da saída da praça, o porteiro os olhava com uma curiosidade hostil. Era um homem diferente daquele porteiro noturno que Drake vira duas vezes, mas, evidentemente, tinha o mesmo comprometimento com seu emprego. Sabendo que o trio de aparência suspeita com seu animal de estimação teria que passar por ele na saída, ele esperou, batendo o pé no chão.

– Tarde – disse ele de um jeito abreviado para Drake, ajeitando o peso dos calcanhares como se estivesse se preparando para um confronto.

– É mesmo uma linda tarde – concordou Drake de todo coração, com os olhos entreabertos, dando uma olhada para o céu azul. E antes que o porteiro pudesse dizer alguma coisa, proclamou: – Se está se perguntando, somos um grupo de arte performática.

– Aaaah! Artistas – disse o porteiro. Reduzindo sua escala de alerta pessoal, ele relaxou e assentiu maliciosamente, como se não precisasse de mais nenhuma explicação.

Eles passaram pela viela e chegaram à rua, onde Drake foi ao meio-fio para chamar um táxi. Mas as pessoas ali eram ainda mais numerosas do que na praça e paravam, boquiabertas, para observar o estranho quarteto. Dois punks japoneses com roupas idênticas e moicanos imensos e exagerados de um azul elétrico aproximaram-se da sra. Burrows.

– Visual bem style, mana – disse o punk ao olhá-la com uma admiração franca.

– Demais, dona – guinchou a punk.

– Obrigada – disse a sra. Burrows. Ela estivera falando com Colly, tentando acalmá-la neste novo ambiente. A combinação do rebuliço de todas as pessoas com o trânsito movimentado que passava na Victoria Street perturbava a Caçadora, e sua cabeça disparava de um lado a outro, tentando apreender tudo.

– Gato bacana também – disse o punk para a garota, apontando para Colly com uma expressão maravilhada.

A Caçadora farejou-os com curiosidade.

A menina punk bateu palmas de alegria e pulou.

– Aí! É o Doraemon... Como no mangá!

– Sim, o gato robô Doraemon na vida real! – disse o punk. Ele tirou uma foto rápida da Caçadora enquanto tinha um diálogo animado em japonês com sua namorada, depois eles finalmente se afastaram.

Colly podia estar completamente confusa, mas a sra. Burrows mesmo não parecia lidar bem com tudo aquilo. Quando Drake por fim encontrou um táxi preto, ela pareceu extremamente grata ao afundar no banco traseiro.

– Está tudo bem, sra. Burrows? – perguntou-lhe Chester.

– Sobrecarga sensorial – respondeu ela apenas, depois pediu que fechassem a janela.

Ao pararem em alguns sinais, o taxista olhou de soslaio para Colly, enroscada no assoalho.

– Isso é mesmo um cão-guia? Nunca vi um desses na vida – disse ele.

– Claro que é. Agora estamos com pressa, então, por favor, pise fundo – pediu Drake.

O táxi parou ao lado do Range Rover de Drake, que deu o dinheiro a Chester para pagar a corrida, depois conduziu a sra. Burrows e Colly diretamente do táxi para seu carro.

– Não quer que eu vá também? – propôs a sra. Burrows. – Eu posso ajudar.

– Celia, você parece arrasada, e acho que, nesse caso, podemos cuidar de tudo sem seu sistema de alerta antecipado. Se conheço Eddie, ele deu no pé – respondeu Drake, depois foi à traseira do carro e abriu a mala para pegar uma bolsa. – Fique com uma Beretta – disse ele a Chester, passando-lhe uma arma antes de meter uma segundo no cinto.

Sem falar nada, Drake e Chester desceram várias ruas até chegarem ao depósito, onde se espremeram contra a parede para evitar as câmeras de vigilância.

– Cuidado com as sombras – disse Drake, destrancando a porta e abrindo uma fração para verificar se tinha alguma armadilha. Depois os dois entraram e sacaram as armas. – Se ele estiver aqui, nos verá nos monitores – alertou a Chester, sussurrando. – Vai saber que estamos chegando.

Eles se deram trinta segundos para se adaptarem à fraca luz da área principal do depósito, depois Drake subiu na frente o lance de escada, olhando continuamente os vários montes de maquinaria abaixo, vendo se Eddie estaria escondido neles.

Ao chegarem ao alto, encontraram a porta do apartamento escancarada.

– Devagar e com calma – sussurrou Drake, esgueirando-se para a soleira.

A primeira coisa que viram foi que o carpete tinha sido retirado do saguão de entrada, deixando o concreto nu. Ao prosseguirem, com as Berettas a postos, descobriram que o piso da sala principal estava da mesma forma.

– Ele se mandou e levou tudo – disse Drake em voz baixa.

A sala era uma casca vazia: sumiram a mesa com a cena de batalha de Waterloo, a série de monitores de circuito interno, todos os móveis e até o papel de parede fora arrancado.

Mas algo continuava no chão no meio da sala, e os olhos de Drake e Chester caíram ali ao se aproximarem.

A forma se agitou.

– PAPAI! É o MEU PAI! – gritou Chester. Ele correu para tirar a mordaça do pai, que estava amarrado com uma corda.

– Chester! Graças a Deus é você – balbuciou o sr. Rawls. – Não sei o que houve! Simplesmente acordei assim.

– Não se preocupe, pai – disse Chester, procurando ferimentos no pai, afrouxando as cordas. – Ele está bem. Eddie não o machucou – disse a Drake, que tinha ido à outra ponta da sala para investigar os quartos.

Drake voltou em segundos.

– Nada. Não sobrou nada. – Ele ergueu as sobrancelhas. – Tenho que reconhecer isso nele... Impressionante, em tão pouco tempo.

– Mas como ele conseguiu? – perguntou Chester ao desfazer o último nó da corda em volta dos tornozelos do pai e ajudá-lo a se levantar.

– Talvez ele tivesse um bando de ajudantezinhos... uns elfos... para fazer a mudança dele. Quem sabe? – Drake riu. – Mas estou aliviado que Jeff esteja aqui, incólume. – Olhou o sr. Rawls e percebeu uma coisa. – Espere um minuto – disse. E estendeu a mão para o bolso da camisa do sr. Rawls e pegou um bilhete, abrindo-o.

“Um gesto de boa vontade para o futuro. Seu amigo”, Drake leu em voz alta.

Chester franziu o cenho.

– Parece que é para você, Drake. Então ele esperava que você saísse da Colônia?

Drake parecia se divertir.

– Talvez. Talvez ele não seja tão preto no branco como pensei que fosse. Afinal, ele estava preparado para deixar o policial colonista morrer conosco na explosão, mas decidiu poupar o Jeff aqui.

– Explosão? Policial? O que vocês andaram fazendo? – perguntou o sr. Rawls, olhando para Drake e para o filho.

– Por que não o leva para o carro, onde pode contar tudo a ele? – sugeriu Drake a Chester. – Vou deixar vocês em algum lugar, depois voltar ao hotel para descobrir se sua mãe apareceu. – Pensou por um segundo. – Mas primeiro há uma coisa que preciso ver.

Drake saiu do apartamento para descer a escada. Ao passar pelo depósito, viu algo no chão. Ele cutucou com o pé. Era uma gosma cinza, parecida com um mingau velho. Não havia sinal das motos, mas ele não esperava que estivessem ali, já que ele e Eddie as haviam deixado em Westminster.

Viu o andaime coberto de lonas grossas de polietileno que ainda estavam no canto do depósito. Indo para lá, Drake parou para apertar o botão vermelho no painel de energia do torno e desarmar os explosivos – já tinha uma boa ideia do que ia encontrar.

Ergueu as lonas de lado e viu que, embora o concreto em volta permanecesse, a porta de metal tinha sumido. Três ou quatro degraus ainda eram visíveis, mas toda a abertura estava cheia de uma gosma cinza – a mesma substância que fora derramada no chão da fábrica. Drake procurou um pedaço de madeira, que meteu na papa densa, depois puxou. Tocou parte do material que estava na madeira, rolando-o entre os dedos.

– Cimento de secagem rápida – disse ele e olhou a abertura bloqueada, assentindo consigo mesmo. – Então todo o porão está cheio dele... Muito inteligente. Você cuidou mesmo para que ninguém descesse aqui de novo... Mas aposto que levou todo o equipamento Styx, não foi, Eddie?


PARTE CINCO

O Reencontro


Capítulo Trinta e Dois


Will mostrava o porto a Elliott quando deram com Bartleby, que tinha sossegado no píer de concreto com uma de suas recentes vítimas presa entre as patas. Mastigava ruidosamente a cabeça ou o traseiro – Will não sabia dizer, pelo estado da carcaça ensanguentada. Como qualquer felino, o Caçador estava totalmente concentrado em sua presa, excluindo todo o resto. Ele nem se deu o trabalho de erguer a cabeça para olhar Elliott, que andava pelo píer e examinava os destroços de barcos afundados no fundo da água clara.

Will olhava distraidamente o outro lado da lagoa, onde a velha barcaça vagara livremente, quando percebeu o que chamava a atenção de Elliott. Ele deu um tapa na testa.

– A lancha! Que idiota! Por que não pensei nisso antes? – Ele de repente correu ao píer. No cais, andou rápido pela curta distância até o prédio do gerador.

– Sim, sumiu! Chester levou a lancha com o motor de popa que papai e eu deixamos aqui – disse ele, espiando ao lado do prédio.

– Então não há dúvida de que ele foi para a Crosta. Mas onde ficamos nessa? – perguntou Elliott, ao alcançar Will.

– Talvez eu consiga outro motor de popa que funcione, e tem uns galões de combustível nos tanques ali embaixo, mas o problema é que... – disse Will, coçando o queixo. – O problema é a lancha. – Ele deu uma olhada no prédio baixo onde os barcos eram guardados. – Não tem nenhuma.

– Sem barcos – disse Elliott.

– Bom, tem, mas a fibra de vidro está muito estragada... Sei disso porque dei uma boa olhada neles. Verifiquei duas vezes depois de papai escolher um. Se eu o deixasse por conta própria, talvez eu não estivesse aqui hoje.

– Bom, você está, e parece que estamos aqui para ficar, não é? Estamos encalhados – disse Elliott mal-humorada, descendo o cais.

É tão ruim assim?, pensou Will consigo mesmo antes de cair em si. A linguagem corporal de Elliott não lhe passou despercebida enquanto ela andava desanimada, sem se interessar muito pelo que havia em volta. Talvez ela odeie estar aqui comigo. Talvez só queira ficar com Chester. Will fechou bem os olhos. E talvez eu esteja sendo um imbecil completo. Você não devia se importar muito... Por que você se importa tanto?, perguntou ele a si mesmo com um pequeno dar de ombros.

– Mas eu me importo, e muito – respondeu gravemente, falando alto enquanto abria os olhos.

Elliott pareceu reduzir o passo nesse instante, e Will se perguntou se ela o ouvira. Esperava que não. Ela estava bem longe para que o som do rio subterrâneo na ponta abafasse sua voz. Pelo menos, ele torcia por isso.

Corando, ele deu meia-volta e correu ao abrigo nuclear, depois entrou, indo direto à cabine de operação de rádio.

– O preto, não o vermelho – disse ele, lembrando-se das instruções que dera a Chester de qual dos telefones na parede, por milagre, ainda funcionava. Will pensou no amigo e na última vez que o vira. Foi pouco antes de Will seguir o dr. Burrows com um salto na Jean Fumarenta, um salto para o desconhecido.

Só fazia alguns meses, mas parecia consideravelmente mais tempo. Tanta coisa aconteceu desde então! Will agora estava sem pai – perdera outra pessoa fundamental em sua vida. E, muito possivelmente, também perdera a mãe. Tantos morreram! Nesse ritmo, ele pensou consigo mesmo, só sobraria ele, completamente só – sem amigos, um órfão ressentido, sempre fugindo dos Styx. Isto se ele mesmo sobrevivesse.

Ao desabar em uma das cadeiras de encosto de lona, Will lembrou-se de como esteve sentado no mesmo lugar quando o dr. Burrows o surpreendeu com biscoitos e uma lata cheia de um chá horrivelmente doce.

Ao saborear o momento com o pai, Will percebeu como ele era feliz na época, apesar de todas as incertezas sobre o futuro. E apesar do fato de o dr. Burrows ter se preparado para sacrificar tudo, inclusive sua relação com a esposa e o filho, por sua busca tenaz e obcecada do conhecimento, havia, sim, um lado carinhoso e prestativo nele. Talvez estivesse bem no fundo do dr. Burrows havia muito tempo – como uma de suas valorizadas relíquias enterradas –, mas ainda assim Will tivera vislumbres ocasionais dele.

– Pai. Meu velho e querido pai – murmurou Will com tristeza, ao ligar o antigo rádio na bancada diante dele, vendo as válvulas no alto se acenderem. Ele não sabia se o rádio sequer precisava ser ligado para o telefone funcionar, embora tivesse superstições com relação a isso, dizendo a si mesmo que não podia fazer mal algum. Depois de um minuto, quando as válvulas emitiam uma luz rosa-alaranjada, ele se levantou da cadeira e pegou o telefone preto. Sabia o número de emergência de Drake sem nem precisar pensar – depois da febre de Elliott, quando ela o repetiu vezes sem conta, era um número que estaria para sempre e indelevelmente gravado em sua memória.

Embora não soubesse se Drake ainda estava vivo ou se alguém pegaria os recados, Will discou e deixou vários para ele no servidor. Tentou fazer com que fossem sucintos, dizendo a Drake que ele e Elliott chegaram ao abrigo e que não tinham meios de fazer a viagem de volta à Crosta. Como da última vez que usou o telefone, ele ouviu alguns estalos e ruídos, mas, tirando isso, nada que confirmasse que a chamada fora recebida.

Apesar do que as gêmeas Rebecca disseram no alto da pirâmide, Will tentou o celular da mãe. Embora não soubesse se ainda estava conectado, deixou-lhe um curto recado.

– Telefonemas dados – anunciou quando terminou e recolocou o fone no gancho. Pode ter sido uma completa perda de tempo, mas no momento ele não estava exatamente nadando em opções. Claro que ele e Elliott podiam voltar pelo veio inclinado, mas eles simplesmente terminariam na terra dos Faróis de novo. E depois? Tentar atravessar até a cabana de Martha e passar o restante dos dias comendo carne de aranha?

– Talvez eu deva tentar construir um barco – refletiu Will consigo mesmo. Pensando bem, não parecia uma ideia tão forçada. Ali havia material suficiente para trabalhar e até uma oficina completa em um dos anexos no cais. – É, talvez eu faça um barco – decidiu Will. Ao sair da cabine de operação de rádio ele percebeu que deixara a porta antiexplosão aberta. Foi até ela e a empurrou. Depois do incidente com os ratos, não ia se arriscar mais.

Foi para o alojamento principal e no meio dos beliches deu com a mesa onde o pai tinha reunido os documentos e a papelada que conseguira encontrar no lugar. As plantas detalhadas do abrigo nuclear e da área circundante que o dr. Burrows deixara ali ainda estavam abertas. E por cima de tudo havia uma pilha de manuais de equipamento e uma surrada brochura.

Will a pegou para ler o título, Estação Polar Zebra, ele disse. Depois examinou a foto em cores na capa, que parecia ser a cena de um filme. Nela havia um submarino se projetando por um bloco de gelo.

– O submarino que encontramos era real – murmurou Will, trazendo o livro mais para perto para ver os homens de parca, no túnel de comando, portando armas. Os homens pareciam heroicos e seguros de si. Will soltou um humpf e jogou o livro sobre a mesa. Não sabia mais o que era um herói e, certamente, não precisava ler sobre os fictícios.

Embora isso fosse pouco característico dele – nunca na vida se oferecera para ajudar em nenhuma forma de limpeza em seus dias em Highfield –, ele depois foi trabalhar na cozinha. Varreu todos os pacotes esfrangalhados e o lixo deixado pelos ratos, e com luvas de borracha que pegara nos depósitos do intendente jogou-os numa lixeira, que arrastou até o prédio do gerador.

Ao examinar o que restara na cozinha, descobriu que os ratos tinham aberto buracos na maioria dos caixotes empilhados contra a parede e devorado seu conteúdo. Mas havia alguns no alto que não haviam sido rompidos e, para seu prazer, continham um bom número de bolachas em pacotes verdes de estanho e também caixas de rações, cada uma com uma barra de chocolate. A maior parte das barras não era comestível, mas, ao continuar sua busca pelas caixas, descobriu uma ou outra em que o chocolate não estava coberto de uma camada de pó branco e tinha o cheiro e o gosto bons. E o doce preferido de Will de sua última visita – pedaços de abacaxi em calda – também fora poupado pelos roedores famintos, porque estava enlatado.

– Então eu tenho carne enlatada e bolachas de prato principal e, de sobremesa, abacaxi em calda e chocolate. A vida não é tão ruim – suspirou ele, tentando ao máximo se convencer.

Mas, enquanto pesava uma das latas retangulares de carne na mão e procurava sinais de corrosão pelos lacres, sua mente não estava ali. Ele entreouvia Elliott perguntando-se quando ela voltaria ao abrigo.

E se perguntando se ela estaria tão insatisfeita quanto aparentou porque estava presa naquele lugar com ele.


Ao lado da sra. Burrows, no banco traseiro do Range Rover, Chester estava tão exausto que caiu num sono profundo quase na hora em que Drake ligou a ignição. Os olhos da sra. Burrows estavam fechados, mas ela ainda parecia acordada – seu braço estava nas costas do banco e ela afagava Colly. Deitada na traseira do veículo, o ronronar constante da Caçadora era audível mesmo com o ruído do motor do carro.

Eles saíam do centro de Londres quando o sr. Rawls, no banco do carona ao lado de Drake, enfim falou:

– Quais são as chances de minha esposa, na sua opinião? – perguntou. – Fale com franqueza.

– Tudo bem, Jeff, mas não será fácil para você – disse Drake ao trocar de marcha. – Ela tem um valor estratégico menor para os Styx, por causa de sua ligação com Chester e, portanto, com o restante de nós. Assim, como uma isca numa armadilha, espero que a essa altura ela esteja de volta à sua casa em Highfield.

– É mesmo? – disse o sr. Rawls, com evidente alegria em sua voz.

– Mas não fique tão esperançoso. As opções são duas: a primeira é que eu tente tirá-la de lá de novo. Mas se eu falhar e eles me pegarem vivo, então todos vocês estarão em perigo. Então você não perderia só a Emily, mas você e seu filho também cairiam nas mãos deles.

– Certo... E a segunda opção? – perguntou o sr. Rawls com a voz oca.

Ao pararem num cruzamento, um pequeno terrier começou a latir alto na calçada. Drake olhou pelo retrovisor.

– A gata! – exclamou ele.

A cabeça de Colly subiu como uma mola de caixa-surpresa. Ela fixou os olhos penetrantes no cachorro e rosnava baixo, com o lábio superior repuxado para exibir os incisivos cintilantes.

– Tire a Caçadora de vista! – ordenou Drake.

– Calma, garota – disse a sra. Burrows, e a felina de imediato aquiesceu, aquietando-se novamente.

– Você estava dizendo... – O sr. Rawls dirigiu-se a Drake. – A segunda opção?

– Sim. Fiz tudo o que pude para desprogramar sua esposa, mas ela, evidentemente, é muito suscetível à Luz Negra. Ela pode ser útil aos Styx no futuro como um de seus “zumbis” ou “sonâmbulos”, ou como quiser chamá-los. Creio que eles a manterão aqui por algum tempo.

O sr. Rawls pensou nisso por um momento.

– Então devemos deixá-la de lado. E não há mais ninguém que possa nos ajudar a pegá-la de volta... e fazer alguma coisa quanto aos Styx?

– Receio que não, a não ser que exista outro grupo autônomo em algum lugar de que nunca ouvi falar, e pode muito bem haver. Mas, se pensar bem, se eles forem bons, eu não os encontrarei.

– É verdade – concordou o sr. Rawls, agora olhando para Drake. – Então você nem mesmo vai tentar pegar Emily, vai, por causa do risco?

– Olha, não estou dizendo que isso está fora de cogitação. Vou diretamente a Highfield depois de deixar vocês. Darei uma olhada... de longe... Mas preciso dizer, Jeff, que acho que devemos deixar as coisas caminharem, pelo menos pelos próximos quinze dias – disse Drake.

– Sim, entendo a lógica disso – disse o sr. Rawls. – Vida e morte... Os controles de minha nova existência – acrescentou em voz baixa. – Como suporta viver assim, Drake? – perguntou.

– Porque, muito tempo atrás, os Styx não me deram alternativa – respondeu Drake.


No meio de um conjunto habitacional anônimo Drake parou na frente de uma fila de garagens. Enquanto todos desembarcavam do Range Rover, ele levantou a porta de uma das garagens o suficiente para que eles entrassem abaixados. Havia pilhas altas de caixas de equipamento e, dentre elas, Drake pegou duas cadeiras dobráveis, uma cama de campanha e alguns sacos de dormir. Dizendo a todos que não saíssem por nada, ele fechou e trancou a porta, depois partiu no carro.

Deixando o carro nos arredores de Highfield, Drake percorreu o restante do caminho a pé, sempre pelas ruas secundárias. De óculos escuros, enfim saiu na High Street. Com uma olhada no museu onde o dr. Burrows trabalhara, ele continuou, reduzindo um pouco o passo ao ver o antigo mercadinho dos Clarke do outro lado da rua, que se transformara numa cafeteria. Não fazia parte de uma das cadeias principais, mas era um humilde esforço local, que se proclamava um tanto curiosamente “O Café da Vila”, oferecendo “Acesso à Internet a Baixo Preço”, segundo os cartazes colados nas vitrines.

Ao girar nos calcanhares para entrar na banca de jornais, ele tirou os óculos escuros e fingiu olhar as revistas.

O jornaleiro lançava olhares desconfiados a Drake enquanto trabalhava em uma lista no balcão. Concentrando-se em sua tarefa e desviando o olhar de Drake, ele começou a cantar distraidamente “Dem bones, dem bones, gonna walk around”.

Drake passou ao estande central da banca, onde havia uma seleção de brinquedos baratos e material de escritório. Ao fingir examinar um envelope acolchoado, ele ao mesmo tempo tateou a parte de baixo da prateleira no estande. Pegando um bilhete que estava colado ali, ele o prendeu na palma da mão.

– Connected to the tight bone... – O jornaleiro de repente parou de cantar. – Precisa de alguma ajuda? – ofereceu. – Procura alguma coisa?

Drake se aproximou dele com o envelope.

– Encontrei o que quero, obrigado. Vou levar este.

Do lado de fora da loja Drake colocou os óculos escuros, hesitou por um momento, depois atravessou a rua para a cafeteria, onde pediu um cappuccino e meia hora de acesso à internet. Não tinha a intenção de entrar mais em Highfield. Nem precisava.


– Ele voltou – disse o sr. Rawls ao ouvir a chave na fechadura e a porta da garagem se erguer.

Drake entrou, depois baixou a porta.

Drake tinha duas sacolas. Passou uma à sra. Burrows.

– Roupas novas para você, Celia, para não ter que andar por aí com esse colete de policial. E também um chapéu para deixá-la menos evidente.

– Você a viu? – perguntou Chester com ansiedade.

Drake passou o outro saco ao sr. Rawls, que estava de pé, olhando-o com expectativa.

– Café e salgados – disse Drake.

– E, então, minha mãe estava lá? – perguntou Chester novamente.

Drake assentiu severamente.

– Ela está em casa, mas não pude chegar perto. Todos os indícios são de que eles a estão vigiando. Desculpe... não vou tentar nada por ora. É perigoso demais, para todos nós.

Ele esperou que eles assimilassem a informação, depois voltou a falar:

– Mas também tenho boas-novas para vocês. Will e Elliott estão bem. Eles voltaram do... – Drake franziu a testa antes de continuar – ... do outro mundo no centro do planeta.

– Como é? – murmurou o sr. Rawls.

– Foi o que Will disse nos recados que acabei de ouvir. Eles estão presos no abrigo subterrâneo, sem ter como fazer a jornada rio acima.

Apesar das notícias sobre sua mãe, Chester sorria de orelha a orelha.

– Will! Elliott! Ah, isso é incrível! – exclamou ele.

– Graças a Deus! – disse a sra. Burrows, suspirando, e se sentou de repente, como se a notícia fosse mais do que esperava ouvir. – E meu marido? – perguntou em voz baixa.

– Havia dois recados, e a qualidade não era muito boa. Posso ter deixado passar alguma coisa, mas Will não menciona o doutor, só que Bartleby estava com eles.

A sra. Burrows assentiu.

Drake bateu palmas.

– Muito bem. Podem beber esses cafés no caminho. Vamos para Norfolk.

Eles saíram e ficaram surpresos ao encontrar um micro-ônibus amassado no lugar do Range Rover.

– Fez uma troca com seu amigo da oficina? – perguntou Chester, olhando o veículo. – Não é bem seu estilo, é?

– Eu devia anotar essas suas críticas – respondeu Drake enquanto pensava no local para onde os levaria.


Vinte e um quilômetros antes do campo de pouso abandonado em Norfolk, Drake de repente saiu da estrada principal, levando o micro-ônibus a um campo descoberto e lamacento. Por suas margens, havia uma série de trailers, com barracas de lona muito remendadas e até o que pareciam tendas de peles improvisadas aqui e ali entre elas. Uma fogueira grande ardia no meio do campo e em volta dela corriam várias crianças esfarrapadas e cães.

– Uma fogueira? – disse o sr. Rawls. – Temos que parar aqui para quê?

– Não é uma fogueira, é um carro que foi incendiado – observou Chester, inquieto.

– É aqui que vocês vão ficar enquanto eu desço ao abrigo nuclear subterrâneo – disse Drake. – Sei que não é o que esperavam, mas a viagem de ida e volta do abrigo leva alguns dias, na melhor das hipóteses, e não posso colocar todos vocês em uma pousada rural, posso? Ainda mais com a Caçadora.

– Hum, não, eu vou com você – disse Chester ao olhar os vários trailers com nojo. – Além disso, vai precisar de ajuda com a lancha, e eu conheço o caminho. Já fiz isso. Sou o homem perfeito para o trabalho – acrescentou o garoto.

– Não preciso de ajuda nenhuma e também não é prático você vir comigo. Além do fato de que estarei carregando uns galões a mais de combustível para a viagem de volta, não sei quantos passageiros vou trazer. Mesmo que sejam só Will e Elliott a bordo, não deve haver muito espaço, não é?

– Acho que tem razão – concordou Chester.

– E você precisa ser mais mente aberta – disse Drake, olhando-o fixamente com uma encarada firme. – Só porque eles preferem um jeito diferente de viver e ninguém os quer perto de suas casas, não quer dizer que não sejam boas pessoas. Já lidei com eles no passado e nunca me decepcionaram. Se puder negociar um preço para que todos vocês sejam colocados em uma de suas casas, eles cuidarão muito bem de vocês. Eu garanto. – Passou os olhos pela cena diante deles. – E vocês devem ficar seguros aqui. Eles evitam a polícia como uma peste, o que é uma vantagem e tanto, mas o melhor é que é improvável que os Styx tenham se infiltrado entre eles. Por que se incomodariam? Não há nada que os Pescoços Brancos possam ganhar com eles.

Chester assentiu.

– Mas, por favor, deixe Colly longe dos cães – acrescentou Drake, pensando melhor. – Eles não vão aceitar bem se ela mexer com um de seus amados greyhounds.


Soou um grito, mais alto que o vento. No declive que levava ao Poro, foram armadas algumas barracas, e três oficiais Limitadores agora saíam apressadamente de uma delas. Reduziram o passo para olhar onde as montarias estavam atreladas. Os cavalos estavam agitados e relinchavam enquanto uma vaca-das-cavernas, um dos imensos insetos nativos das Profundezas, servia-se da aveia de seu cocho. A vaca-das-cavernas era apenas uma novilha, parecida com aquela com que o dr. Burrows fizera amizade, mas ainda tinha as dimensões de um pequeno carro de passeio. O par frontal de seus três pares de pernas articuladas estava enterrado no grão do cocho enquanto as peças bucais estalavam famintas; era difícil encontrar comida por essas terras de noite constante, e ela não ia desperdiçar a oportunidade de se fartar.

O mais alto dos três oficiais Limitadores ergueu o rifle para o domo grande de sua carapaça, usando a mira para procurar pela cabeça menor. Distraída do perigo que corria, a vaca-das-cavernas continuou a se alimentar freneticamente, suas antenas de varetas oscilando com tal rapidez que eram um borrão.

– Deixem... Ela não é ameaça para os cavalos – disse um de seus camaradas. – Vamos cuidar dela depois.

Caía uma chuva constante que se intensificava enquanto o trio se aproximava da beira do Poro e andava por toda a plataforma de madeira, construída uns trinta metros sobre o vazio titânico. Na ponta da plataforma dois de seus subordinados manejavam telescópios de longo alcance e visão noturna enquanto vasculhavam a escuridão abaixo.

Os três oficiais agora falavam com eles.

– Você gritou. Pegou alguma coisa?

O Limitador em um dos telescópios ergueu a cabeça.

– Sim. Vimos uma chama.

– Tem certeza?

– Afirmativo – disse o outro observador, sem se afastar do telescópio. – Estávamos esperando para ver se há uma segunda. – Passaram-se vários segundos, depois os dois observadores a localizaram.

Embora suas caras aterrorizantes não demonstrassem, uma sensação palpável de alívio emanava dos três oficiais Limitadores ao se reunirem.

– Duas chamas. Então alguém conseguiu voltar. Precisamos transmitir a notícia pela cadeia de comando – disse o Limitador alto. – Imediatamente.

– E talvez precisemos de mais balões, porque já perdemos quatro em acidentes – observou outro oficial.

– Sim, e se tivermos de resgatar nossos homens em turnos entre os balões, levará muito tempo – comentou o terceiro oficial. – O arranjo atual está longe de ser perfeito. Odeio depender de tecnologia tão ultrapassada.

Indo à grade de madeira ao lado da plataforma, os três oficiais olharam a escuridão ininterrupta do vazio abaixo. Mas não tinham esperanças de ver o balão de ar quente a milhares de metros abaixo deles, ou os muitos outros, numa corrente que descia todo o Poro, por centenas de quilômetros.

– Só podemos rezar para que em algum lugar aí embaixo um de nossos homens tenha recuperado o vírus Dominion – disse o oficial Limitador alto, verbalizando a preocupação de todos.


– Ainda não está pronta? – chamou Will, rindo enquanto esperava que Elliott saísse dos depósitos do intendente. Localizado em uma das salas na área de alojamentos no abrigo nuclear, era a Caverna de Aladim de fardas e equipamento militar.

Por várias horas Will metera o nariz num livro que encontrara sobre barcos de fibra de vidro. Tendo terminado o capítulo sobre conserto de cascos, revelou a Elliott que pensava ser capaz de remendar a menos danificada das lanchas entre as que restavam no anexo. Ao saber disso, Elliott se empolgou, e ela sugeriu que ele fizesse uma pausa para que experimentassem alguns trajes militares das prateleiras do depósito.

E agora, enquanto Elliott ainda não fazia sua grande aparição, Will ajeitou suas roupas. Foi o primeiro a se vestir e exibia uma farda tropical castanho-clara ridiculamente larga, completa, com um chapéu de safári.

– Não consegue achar nada? – gritou Will, perguntando-se por que as mulheres levam tanto tempo para se vestir.

– Pronta – gritou de volta Elliott ao sair pela porta. Com um cachecol de malha amarrado na cabeça como uma bandana, ela vestia short verde-escuro, uma camiseta de ginástica branca e a mais incrível jaqueta de aviador da Força Aérea Americana de couro preto. O único toque cômico era um par de botas de combate muito grande, no que ela agora lutava para andar.

Depois de todo o tempo que passou ao ar livre no mundo interior, a pele de Elliott ainda estava bronzeada e o cabelo, comprido e sedoso – aos olhos de Will, ela simplesmente estava estonteante com sua roupa.

– Uau! – Will ofegou.

– O que quer dizer com “Uau”? – disse ela, rindo ao dar dois passos desajeitados e quase tropeçar. – Não estou engraçada nisso?

– Bom, não mesmo, acho que está ótima – disse ele.

Ela parou de tentar andar e sorriu para ele.

– Você deixou a porta da frente escancarada! – anunciou uma voz.

Acompanhado por Bartleby, que abanava o rabo excitado, apareceu uma figura contornando um dos beliches.

Estava ensopado e deixava poças de água em seu rastro.

– Drake! – Elliott gritou. Ela correu à toda para ele, tropeçando em si mesma.

– Ufa! – Drake perdeu o ar quando ela o atropelou.

Ela abraçou Drake com força, chorando de alívio.

– As gêmeas disseram... Pensei que você estivesse morto – disse ela, ofegando. – Mas não acreditei que fosse verdade.

– Bom, ainda não é verdade – brincou Drake. E estendeu a mão para Will. – Nunca vi vocês dois tão bem. Este lugar em que estiveram... esse “mundo secreto”... deve ter combinado muito com vocês. – Quando Elliott se desprendeu dele, Drake abraçou o garoto, depois o afastou para ver sua roupa. Sorrindo, ele balançou a cabeça. – Não estou convencido por esse estilo... Não é bem a sua cara, é? – Olhou para Elliott. – Mas adorei essa jaqueta de aviador. Espero que tenha uma do meu tamanho. – Parou de sorrir e virou-se para Will. – E o doutor? Ele está...?

– Ele não conseguiu – disse Will abruptamente. – Uma das gêmeas Rebecca atirou nele. Nas costas.

– Droga! – disse Drake em voz baixa, inclinando a cabeça por um momento. – Eu imaginava que tinha acontecido alguma coisa com ele... Por seu recado. – Enxugou o rosto e levantou a cabeça de novo. – Quero que me conte tudo enquanto tomamos uma xícara de chá. Espero que tenham um pouco de chá neste lugar. Preciso de alguma coisa quente depois dessa viagem rio abaixo.

– Temos um monte de rato fresco na câmara fria, se quiser – ofereceu Elliott com entusiasmo.

Drake hesitou, olhando nos olhos de Will.

– Não, talvez seja melhor se eu preparar alguma coisa para você – intrometeu-se Will rapidamente. Tirou o capacete e o jogou pela porta do depósito, depois todos foram para a cozinha.


Will e Elliott contaram a Drake toda a cadeia de acontecimentos na pirâmide.

– Será que fiz a coisa certa? – perguntou Elliott, referindo-se ao vírus Dominion e à troca que foi obrigada a fazer com as gêmeas Rebecca.

Drake assentiu.

– Temos a vacina, o que significa que o vírus é muito menos útil para eles – respondeu. – Vocês agiram bem, os dois. – Ele respirou fundo. – Muito bem, agora é a minha vez – anunciou, passando a contar a Elliott sobre o pai dela.

Ela ficou perplexa.

– Mas o que é isso, ele está tentando derrubar o regime? Um Styx contra os Styx?

– Sim, ele está numa jogada pessoal – disse Drake. Depois contou sobre sua ida à Colônia com Chester e como eles trouxeram a sra. Burrows.

Will engasgou com o chá.

– Mas ela está cega?

– Acho que agora ela é uma coisa completamente diferente – respondeu Drake. – Não explorei o que ela é capaz de fazer, mas é como se tivesse um dom inacreditável. Um sentido novo e poderoso.

Will abriu a boca para fazer mais perguntas, mas Drake balançou a cabeça.

– Olha, em vez de ficarmos sentados aqui fofocando, por que não levo você para casa a fim de que pergunte a ela pessoalmente?

Will e Elliott rapidamente concordaram.

– Mas depois que a operação no Highfield Common foi por água abaixo, nunca tive tempo de dar uma olhada por aqui – disse Drake. – Então, antes de irmos, quero que me mostrem tudo.


Após Will e Elliott terem mostrado a área dos alojamentos e as salas adjacentes a Drake, eles o levaram ao arsenal. Ele parecia uma criança em uma loja de doces ao escolher alguns itens para levar.

– Operador de Rádio – leu Drake na porta da cabine ao lado quando eles voltaram ao corredor. – Tem que ser onde fica toda a comunicação e a conexão de telefone que você usou para falar comigo.

– Certamente – respondeu Will, abrindo a porta.

Entrando, Drake deu uma espiada na sala.

E ficou paralisado.

– O que é isso? – disse ele de repente.

– Isso o quê? – Surpreso por Drake ter sacado a arma, Will saiu de trás dele para ver aquilo a que se referia.

Os olhos de Drake estavam fixos na bancada. Na frente do rádio principal estava um soldadinho de chumbo com pouco mais de um centímetro de altura.

– Você sabia que isso estava aqui? – perguntou Drake com urgência.

– De jeito nenhum – respondeu Will. – E não sei de onde veio.

Drake se aproximou.

– E você, Elliott? – perguntou ele. – Sabe alguma coisa disso?

– Eu, não – disse ela.

Will estendeu a mão para o soldado.

– Não! Não toque nisso! – alertou-o Drake enquanto se abaixava sob a bancada. Depois de estar satisfeito, levantou-se e verificou a área em volta do soldado. – Não tem fios, nem armadilhas – disse em voz baixa, e com muito cuidado o pegou.

Enquanto Drake o levava para a luz, Will pôde ver que não era um soldado moderno, mas de uma antiga campanha, exibindo uma espécie de capacete de almirante, com uma espada de cavalaria pendurada no cinto. Parecia estar escrevendo num mapa ou talvez num plano de batalha.

Mas o mais estranho era que o casaco longo da figura e suas calças tinham sido pintados na cor da camuflagem de combate de Limitador. E era uma cópia perfeita da camuflagem – o desenho desordenado, consistindo em trechos retangulares de marrom-claro e escuro.

Sem compreender, Will franziu o cenho. Só podia ser um soldado de chumbo, mas certamente era ameaçador.

– Parece um Limitador, mas é... – começou a dizer ele.

– É o Duque de Ferro. A Batalha de Waterloo é sua grande paixão – interrompeu Drake. – Este é o Duque de Wellington, mas ao estilo de Eddie.

Elliott respirou rapidamente.

– Não foi assim que chamou o meu pai?

– Não entendo. Então Wellington era um Styx? – perguntou Will.

Drake se virou para ele.

– Não, acho que não... Só um estrategista brilhante, e Eddie o admirava por isso e pelo modo como ele derrotou Napoleão. Mas me diga... preciso saber quando foi a última vez que você entrou aqui.

– Há mais de dois dias... Quando fiz as ligações para você – respondeu o menino, tentando lembrar. – Mas, não... Espere... Eu vim uma vez depois disso.

– Quando, exatamente? Isto é importante – disse Drake rapidamente.

– Talvez dez ou doze horas atrás. E tenho certeza absoluta de que o soldado não estava aqui – respondeu Will.

– Então, enquanto dormíamos, meu pai esteve aqui... E deixou isto – raciocinou Elliott, depois fechou a cara. – E Bartleby não o ouviu?

Drake lhe passou o soldado.

– Ele é um Limitador, não é? – disse ele apenas, como explicação. – Muito bem, os dois, peguem uma arma... – começou ele, depois se deteve. – Elliott, você precisa me dizer agora, está tudo bem para você? Não sou grande amigo de seu velho e, se eu topar com ele aqui, vou usar força letal. Vou atirar para matar.

Elliott não hesitou em sua resposta.

– Claro, força letal. Ele não significa nada para mim – confirmou ela.

– Que bom – disse Drake com um breve sorriso, mas seus olhos eram mortalmente sérios. – Agora vamos passar um pente fino nesta porcaria de lugar.


Eles, primeiro, foram ver se havia outro barco escondido no cais ou no porto, já que Eddie precisaria de um para a jornada rio abaixo. Mas, além da lancha que Drake usou para chegar, não encontraram nada. Depois verificaram sistematicamente o abrigo nuclear, cada um dos anexos e cada canto do porto, duas vezes. Trabalhando como equipe e armados até os dentes, eles levaram várias horas para concluir o trabalho. E, embora tivessem colocado Bartleby para usar seu olfato aguçado, o Caçador pareceu incapaz de encontrar alguma coisa.

Ao voltarem ao abrigo, Drake ainda olhava em volta, nervoso.

– Só porque não conseguimos achá-lo não quer dizer que ele não esteja aqui – disse ele. – Sugiro guardar as coisas e dar o fora deste lugar.

– Pode apostar – disseram Will e Elliott em coro.


Capítulo Trinta e Três


Em um dos níveis superiores da Cidadela Styx o corredor dos aposentos do velho Styx estava tomado por uma longa fila daqueles que foram convocados para lhe prestar contas. Este era o mais importante andar de todo o prédio, de onde eram orquestradas as principais operações Styx. Apesar disso, era praticamente indistinguível do resto da Cidadela; com suas paredes brancas sem enfeites e pisos de pedra e apenas um ou outro globo luminoso o iluminando parcamente, tinha ainda assim um ar monástico.

E os Styx, esperando em fila no corredor, ouviam gritos furiosos de trás da porta do chefe. Enfim saiu um jovem oficial da Divisão. O sangue tinha se derramado na pele clara de seu rosto de um corte na têmpora, mas ele mantinha os olhos resolutamente erguidos ao marchar pelo corredor.

O velho Styx ainda estava a todo vapor, embora agora estivesse só.

– Eu não vou tolerar um fracasso nessa escala – vociferava ele ao ouvir o som agudo e um ruído dos canos de bronze polido na parede atrás de si. Saltou da cadeira e foi a um dos canos, abrindo uma portinhola e pegando um cilindro em forma de projétil. Abriu a tampa e tirou um rolo de papel amarelado, que ele rapidamente desenrolou.

Era dos Cientistas, e o que estava escrito ali só o enfureceu ainda mais.

– NÃO! – Ele atirou o porta-mensagem pela sala, só que dessa vez não havia ninguém ali para ser atingido. – NÃO! – gritou novamente, varrendo tudo de sua mesa para o chão. – NÃO! NÃO! NÃO!

Seu jovem assistente apareceu na porta, pigarreando para anunciar sua presença.

O velho Styx estava de costas para ele ao gritar:

– Perdemos metade de nossas instalações de laboratório em um só golpe... E agora meus piores temores foram confirmados. Aquele maldito Drake também desinfetou e eliminou a fonte de qualquer vírus novo na Cidade Eterna. Por que não conseguimos encontrá-lo e matá-lo? Por que nunca tenho boas notícias?

– Creio que talvez possamos ajudar com isto – disse Rebecca Dois, e ela e a irmã entraram na sala.

O velho Styx girou. Não houve sorriso nem nada que se aproximasse de alívio em seu rosto ao ver que as duas netas ainda estavam vivas, mas seus olhos brilharam de expectativa.

– Quer a boa notícia primeiro ou nossa notícia ainda melhor ? – perguntou Rebecca Um ao se sentar na cadeira do outro lado da mesa. – Vamos começar pela boa notícia – disse sem rodeios, enquanto pegava o frasco de Dominion e colocava na mesa agora vazia.

O velho Styx assentiu.

– E a notícia ainda melhor? – perguntou ele.

– Temos um novo exército à nossa disposição. Chamam-se neogermanos, passaram por várias sessões de Luz Negra e estão prontos para a mobilização – respondeu Rebecca Dois. – Aqui está o que preparei mais cedo. – Estalou os dedos. O capitão Franz entrou na sala e se colocou em posição de sentido. – Há muitos outros como ele... Milhares, na verdade. E também temos o controle de sua força aérea e frota naval, e todo equipamento que quiser para armar uma guerra terrestre total. Uma parte está desatualizada, mas é bastante confiável.

Rebecca Um se manifestou:

– Só temos que pensar em como trazer tudo para cá. Está no centro do planeta, onde existe outro mundo – explicou ela.

O velho Styx assentiu, como se nada do que estivesse ouvindo – nem mesmo a existência de um mundo interior – fosse uma revelação para ele.

Ele respirou fundo.

– Vamos pelo começo – disse. – Vejo o vírus em minha mesa, mas não vejo o segundo frasco. Onde está a vacina?

Rebecca Um fez uma careta ao erguer o polegar e o indicador, mantendo-os separados por bem pouco.

– Temos uma noticiazinha má, mas não queríamos cair na rotina de “boa notícia, má notícia”.

– Não – disse Rebecca Dois ao dar alguns passos pela sala, depois se virar graciosamente e ficar de frente para o velho Styx. – O frasco da vacina supostamente quebrou, e seu conteúdo se perdeu. Mas quando pensamos melhor percebemos que Will, Elliott, ou os dois, podem ter engolido... Mais provavelmente Elliott, já que ela estava ausente quando chegamos à cena.

– Mas não temos certeza absoluta disto – acrescentou Rebecca Um. – Mas se aquela mestiça ou o idiota tiverem a vacina e de algum jeito conseguirem colocá-la nas mãos certas, digamos, com Drake, o...

– Sabemos exatamente aonde Drake tentará levá-la, então temos apenas que antecipar seus passos – interrompeu o velho Styx, gesticulando para o assistente se aproximar.

– Ah, e eliminamos o dr. Burrows, então há menos um estraga-prazer – disse Rebecca Dois, depois de pensar melhor.

– Ótimo – respondeu o velho Styx num tom distante, escrevendo em uma folha de papel e entregando-a a seu assistente, que saiu apressadamente da sala. – Agora voltem ao início. Quero todos os detalhes sobre esse seu novo exército.


A jornada pelo rio subterrâneo não teve contratempos. Por grande parte do caminho Will manejou o motor de popa, enquanto Elliott servia como piloto na proa da lancha, permitindo que Drake descansasse um pouco. Sempre que eles paravam nas estações de reabastecimento ao longo da rota, certificavam-se de fazer uma refeição quente antes de dormir por uma ou duas horas.

Depois de um dia e meio eles chegaram a seu destino, o longo cais, e foram para o campo de pouso abandonado na superfície.

Às três horas da tarde subiram do poço e, sob um céu carregado, Elliott deu os primeiros passos na crosta exterior do planeta. Depois de seu tempo na selva virgem do mundo interior, ela não parecia se impressionar ao proteger os olhos para olhar os prédios abandonados. Depois levantou a cabeça para ver o círculo fraco do sol pelos olhos semicerrados.

– Então este é o seu lar? – perguntou ela.

– É – respondeu Will. – É este mesmo.


Drake os levou de carro ao acampamento dos nômades, parando perto de um dos trailers. Todos saíram, exceto Bartleby, que ficou preso no veículo com o focinho apertado contra a janela. Olhando, ansioso, os muitos cães que andavam soltos pelo campo, filetes de baba começaram a se estender de sua boca, e ele soltava ganidos em vibrato.

Will e Elliott ficaram parados, sem saber o que fazer. Drake foi à porta do trailer e percebeu que Will não o seguia.

– Sua mãe está aqui – disse ele, batendo duas vezes na porta.

Will não reagiu enquanto Elliott, parecendo muito insegura, aproximou-se dele um passo.

– Era num lugar assim que você morava? – perguntou ela a Will.

Ela vira as cidades e as aldeias por que eles passaram a caminho dali e agora franzia a testa ao ver o local. Uma fogueira, dessa vez uma fogueira de verdade, fora acesa ao lado da carcaça do carro incendiado e um grupo de pessoas estava sentado em volta dela. Do grupo, Will ouvia os acordes de uma música: uma mulher cantava o que parecia uma balada enquanto alguém dedilhava um violão, acompanhando.

– Não, nada parecido com isto – respondeu ele. – Eu morava numa cidade. Isto é muito diferente. Lama demais – acrescentou, e tentou rir.

Assentindo uma vez, Elliott deu outro passo para ele.

Will mordeu o lábio. Não sabia se estava interpretando a situação corretamente, mas sentia que ela queria dizer mais alguma coisa ou talvez quisesse que ele falasse algo. Este pequeno capítulo da vida dos dois – em que só tiveram um ao outro como companhia – se encerrava, e parecia a Will que era necessário algum tipo de reconhecimento.

Mas ele não sabia o que dizer e, mesmo que soubesse, não saberia como falar. Era como se ainda não estivesse preparado para a situação. E o timing de certo modo era ruim, em particular na presença de Drake.

O momento, se é que foi um momento, perdeu-se quando uma voz de mulher saiu do trailer. Drake estava prestes a abrir a porta quando Elliott virou a cabeça de repente ao ver alguma coisa.

– Chester! – exclamou ela, com a empolgação evidente na voz. – Não é ele ali? Junto da fogueira?

– É, ele está com o pai, Jeff – disse Drake.

Elliott olhou para Will.

– Eu vou... hmmmm... Vejo você depois – murmurou ela, partindo.

– Tá, a gente se vê depois – respondeu Will em voz baixa.

– Aqui, Will – disse Drake, ao abrir a porta e conduzir o garoto para dentro, mas sem entrar ele mesmo. A porta se fechou às costas de Will, e ele achou difícil enxergar muita coisa, porque todas as cortinas estavam fechadas.

– Will – disse uma voz. – Eu sabia que era você.

– Mãe! – exclamou Will, correndo para a sra. Burrows, sentada em uma almofada na janela.

A sra. Burrows abraçou o filho com as lágrimas caindo dos olhos cegos.

– Você conseguiu – disse ela.

– Nós dois conseguimos. – Will sufocava, depois recuou ao tentar ver o rosto da mãe na quase escuridão. – Drake me contou o que fizeram com você.

Segurando as mãos de Will, a sra. Burrows as apertou.

– Foi um preço pequeno a pagar. Roger pagou um muito maior.

– Ah, mãe, foi horrível... ele... – começou a dizer Will, depois se deteve. – Mas como sabe o que aconteceu? Como sabe que ele não veio conosco e não está esperando lá fora?

– Porque eu sei quem está lá fora – respondeu ela.

– É mesmo? Mas como? – perguntou Will.

Ela suspirou.

– E eu senti a tristeza em você assim que saiu daquele micro-ônibus.

Nesse momento Drake voltou, arrastando Bartleby pela trela. As garras do Caçador estavam estendidas, e seus olhos, desvairados. Assim que Drake tirou a trela, ele disparou para a porta, batendo de cabeça, como se tentasse passar por ela.

– Ele vai enlouquecer com os cães. Talvez seja melhor se ficar preso no quarto com Colly – disse Drake.

– Não, por que não deixa que ela venha para cá? – sugeriu a sra. Burrows. – Colly esteve entocada por muito tempo e ela terá que conhecer Bartleby, cedo ou tarde.

Naquele mesmo instante Bartleby tinha sentido o cheiro de outro Caçador. Logo começou a andar em círculos ao farejar o carpete puído dentro do trailer.

Drake abriu a porta do quarto e Colly saiu em disparada. Os dois Caçadores se encararam, dando farejadas inquisitivas, mas não se aproximaram demais. Depois se lançaram um para o outro e tocaram os focinhos, enquanto Bartleby arranhava o carpete. Com um rosnado grave, ele arreganhou os dentes. De repente, Colly deu uma mordida forte na lateral de sua cabeça. Ele soltou um miado indignado.

Mas, longe de retaliar, Bartleby lambeu afetuosamente a orelha da felina.

A sra. Burrows riu.

– Só está mostrando quem é que manda.

– Sei como ele se sente – murmurou Will.

– Vou sair para que os dois coloquem as novidades em dia – disse Drake, deixando Will e a mãe juntos no trailer.


Will por fim saiu para o campo. Foi para a fogueira, onde um homem agora cantava. Chester e o pai estavam sentados em um fardo de feno, ouvindo a música, mas não havia sinal de Drake ou Elliott. Will supôs que ele a levara para tirar amostras de seu sangue. Ele falou em ir com ela a vários hospitais de Londres, para pelo menos prepararem a produção da vacina, para o caso de os Styx decidirem liberar o vírus Dominion.

Chegando de mansinho atrás do amigo, Will pôs as mãos em seu pescoço.

– Buuuu! – disse ele.

– Não! – gritou Chester, saltando do fardo em que estava recostado.

Ficou apavorado até ver quem era.

– Você! – Ele riu, empurrando Will, mas sem agressividade. – É melhor ter cuidado. Estamos meio nervosos por aqui – acrescentou em voz baixa.

– Tudo bem? – gritou um dos garotos maiores para Chester, demonstrando preocupação.

Will percebeu então que o cantor tinha se calado, e alguns ciganos e seus filhos se levantaram. Eles o olhavam de um jeito nada amistoso.

– Sim, está tudo bem. Eu conheço esse palhaço – respondeu Chester. Ele se virou para Will. – E este é o meu pai – acrescentou, indicando o homem ao lado.

Parecia ser incrivelmente formal e deslocado, mas Will e o sr. Rawls trocaram um aperto de mãos e se cumprimentaram.

Chester se curvou para Will.

– Este lugar é mesmo muito legal. Não me sinto seguro assim há meses.

O cantor voltava à sua música, e Will olhou as pessoas em volta do fogo. Era um grupo de personagens tão incríveis que ele de repente pensou na turma do tio Tam, que conheceu na frente da taberna da Colônia. Will não sabia o que evocou essa lembrança, mas concluiu que devia ser porque havia um homem no círculo que era Imago Freebone cuspido e escarrado.

Balançando a cabeça, Will sorriu para o amigo.

– Veja só a gente, num acampamento cigano. Se nossos professores da escola nos vissem agora – disse ele.

– Se – respondeu Chester.

E então os dois riram, deliciados por se reencontrarem.


Quando chegou a hora de deixar o acampamento, Drake abriu a porta do micro-ônibus. Agora que estavam mais interessados um no outro do que nos cães que zanzavam pelo campo, Drake conseguiu colocar os Caçadores para dentro sem nenhuma dificuldade. Certificou-se de que os dois ficassem na traseira, onde Colly pulou para o banco. Isso não deixou nenhum espaço para Bartleby, que ficou relegado ao chão, onde Drake tinha estendido um cobertor velho. Mas os dois pareciam muito felizes, espreguiçando-se e se colocando à vontade.

– Celia – disse Drake à sra. Burrows –, por que você e Jeff não vão na fila seguinte? – Guiou a sra. Burrows pelo braço, mas ela o repeliu.

– Não preciso de ajuda nenhuma – respondeu ela, com firmeza, mas gentil. – E por que os outros não entram primeiro?

– Claro. Elliott, você é a próxima, então – sugeriu Drake.

Will estivera esperando pacientemente no final da fila com Chester, mas para sua surpresa o amigo de repente avançou e seguiu Elliott para se sentar com ela. E dentro do carro Chester tirou a Bergen e a colocou ao lado, de forma que não havia espaço para mais ninguém no banco.

Enquanto a sra. Burrows e o sr. Rawls embarcavam e se acomodavam na fila seguinte, Drake olhou brevemente nos olhos de Will.

– Parece que seremos eu e você na frente, meu velho – disse.

Drake deu a partida no micro-ônibus, e eles foram para Londres. Os dois Caçadores logo dormiram, em completo contraste com Elliott e Chester, que conversaram sem parar, trocando suas histórias. Embora respondesse sempre que eles lhe dirigiam um ou outro comentário, Will começou a se sentir totalmente excluído.

O sr. Rawls e a sra. Burrows não falaram nada, mas, como se sentisse o estado de espírito de Will, a mãe se curvou para a frente e apertou seu braço, para reconfortá-lo.

– Agora estamos seguros, Will – disse ela. – É isso que importa.

Drake abriu a janela um pouco e ligou o rádio.

– Estou ficando com sono. Preciso acordar – confidenciou a Will.

Will ficou feliz em ouvir as músicas, mas enrijeceu quando começou uma nova. “You are my sunshine, my only sunshine”, entoava o cantor.

– Posso mudar de estação? – perguntou Will a Drake, com uma careta.


No início da rodovia Drake parou no posto de gasolina e girou no banco para se voltar para todos.

– Muito bem, já bateram muito papo. Quero que todos estejam de olhos fechados e receio precisar colocar isto. – Ele estendeu a mão ao piso na frente de Will e pegou um saco, do qual tirou alguns capuzes.

– Então não podemos ver para onde está nos levando? – perguntou Will, examinando o capuz que Drake lhe entregava. – Por que isso é necessário?

– Com os Caçadores será obviamente difícil manter a discrição em qualquer lugar de Londres – explicou Drake. – Não posso esperar que eles fiquem dentro de casa o tempo todo. Além disso, nós somos muitos para ficar em um dos meus esconderijos. Daí que planejo levá-los à casa de alguém capaz de acomodar a todos, mas deve ser de modo que eu não os exponha a qualquer perigo.

– Assim, se não soubermos onde estamos, não poderemos levar os Styx a eles, se cairmos na Luz Negra – raciocinou Will.

– Procedimento “você precisa saber” – intrometeu-se Chester.

Drake assentiu.

– Vamos fazer uma viagem misteriosa – disse a sra. Burrows com malícia ao colocar o capuz.

Drake riu.

– Hmmm... Celia... Espere um minuto... Isso não vai funcionar com você, vai?

– Não... Na verdade, não – admitiu ela. – Posso pegar algumas pistas pelo caminho.

– Como pensei – disse Drake, pegando um pequeno pote de Vick no bolso do casaco. – Então, quero que passe um pouco desse descongestionante sob o nariz. Não sei qual é a intensidade do seu novo sentido, mas espero que isso funcione.

– Você pensa em tudo – disse ela.


Capítulo Trinta e Quatro


Drake dirigiu por várias horas, finalmente deixando a via principal e pegando uma sucessão de estradas de mão única. Os cruzamentos por que passava não tinham placas, mas ele estava tão familiarizado com a rota que não precisava deles. Enfim parou diante de dois portões de metal entre sólidas colunas de pedra. Empoleirados no alto das colunas havia grifos desgastados de expressão feroz, como se desafiassem alguém a entrar.

– Gog e Magog – disse Drake a eles, como se cumprimentasse amigos há muito perdidos, depois lançou um olhar ao ônibus cheio de passageiros encapuzados, que dormiram a maior parte da viagem. Os portões se abriram lentamente e ele passou, continuando do outro lado. Os pastos ondulantes de relva áspera à esquerda e à direita eram pontilhados aqui e ali de carvalhos retorcidos ou faias batidas pelo vento.

Quando os portões estavam fora de vista, ele falou em voz alta:

– Todo mundo acordado! Tirem os capuzes! Chegamos!

Eles começaram a se mexer e acordar de seu sono, retirando os capuzes enquanto a sra. Burrows limpava o descongestionante do lábio superior.

– Vai levar algum tempo até que eu me livre desse cheiro – resmungou ela.

A visão de Will levou um momento para se adaptar à luz e lhe permitir ver com clareza o que o cercava.

– Estamos no campo! – disse ele.

Como se obedecesse a uma ordem, o sol saiu de trás das nuvens, banhando a paisagem com seu brilho suave e conferindo ao pasto uma forte luz dourada. Acelerando por uma ladeira na estrada, Drake levou o micro-ônibus para um mata-burros. Depois, uma pequena ponte curva entrou no campo de visão, mas Drake não reduziu a velocidade ao disparar por ela. Parecia que o micro-ônibus ia decolar – e decolou, caindo com um baque de abalar os ossos.

– Essa foi no meu estômago! – brincou Chester, enquanto ele e os outros passageiros se seguravam para não serem atirados pelo interior do carro.

– Ei! Um lago! – exclamou Will, avistando um trecho de água à esquerda da estrada, as margens densas de junco. Em uma pequena ilha no meio do lago, aninhando-se entre uma trama de plátanos, havia a réplica de um templo oriental. A combinação disso com a ponte curva que se estendia por uma curta distância da ilha dava a impressão de que alguém tentara recriar o desenho de um prato Wedgwood Willow.

E então o micro-ônibus começou a subir um morro e, ao chegarem ao cume, assomou diante deles uma magnífica casa de pedra clara.

– Vamos ficar aqui? – perguntou a sra. Burrows, colocando em palavras o que todos pensavam. – Parece uma mansão.

– E é – disse Drake, girando o volante e fazendo o micro-ônibus contornar em disparada a fonte de pedra no meio da entrada circular. Depois pisou o freio, e o veículo parou, derrapando no cascalho.

Todos saíram num silêncio extasiado, gratos por esticar as pernas depois de tanto tempo na estrada. Os dois Caçadores, quando Drake finalmente conseguiu acordá-los, dispararam para fora do carro com uma rapidez impressionante. Quase o atropelaram ao sair pela porta e irem direto para os declives gramados, correndo para o lago à toda, como dois potros brincando.

– Por aqui – anunciou Drake, gesticulando para a casa. Ele subiu a escada para a porta principal e não parou para tocar a campainha, abrindo-a como se fosse o dono do lugar.

– Olá! Chegamos! – chamou ele ao entrar, a voz ecoando no interior.

Sem saber o que esperar, Will e os outros o seguiram para dentro. Agora pisavam, hesitantes, o piso de mármore preto e branco com um brasão no meio.

Nenhum deles disse nada ao olhar o revestimento de madeira escura das paredes e a imensa escadaria que levava ao segundo andar. Acima deles, um complexo lustre pendia do teto, ele mesmo entrelaçado com reboco decorado, e nas paredes havia uma multiplicidade de pinturas.

– São demais – murmurou Will.

Diante dele havia uma grande lareira de mármore, flanqueada por duas armaduras idênticas que seguravam maças decoradas à frente dos peitoris. Chester se juntou à admiração do amigo.

– Que legal, parece o Marlinspike Hall! – concordou ele. – Mas quem mora aqui? Algum lorde?

Drake balançou a cabeça.

– Não – suspirou ele, como se o que Chester falara não pudesse estar mais distante da verdade. Foi a uma porta fechada na lateral do hall. – Estas são as regras desta casa. O escritório fica do outro lado disto aqui – disse, batendo na porta com a palma da mão com tanta força que ela sacudiu nas dobradiças. – De maneira nenhuma vocês podem entrar aqui, porque podem ver algo que permite a identificação deste lugar. Entenderam?

Ele fitou o grupo, fixando os olhos em cada um até que concordassem com a cabeça.

– Todo o restante da casa não tem problema... Podem ir aonde quiserem... Mas não saiam da fazenda nem...

– Fazenda? – interrompeu Will. – Qual é o tamanho deste lugar?

– Grande o bastante – respondeu Drake enigmaticamente. – Na realidade, talvez seja melhor nenhum de vocês perder a casa de vista. Pode haver gente nos chalés dos trabalhadores, que ficam a um quilômetro e meio nessa direção. – Apontou o polegar para o fundo do hall. – Ainda que estejam por aqui agora, vão ficar na deles. Não são do tipo de gente que se permite ser vista.

– Parece misterioso – disse o sr. Rawls.

Ao balançar a cabeça, a expressão de Drake era mortalmente séria.

– Não vai querer se meter com eles – disse. Depois se abrandou: – Mas vocês talvez esbarrem no Velho Wilkie, o jardineiro, que mora na casa do caseiro. Trabalha para a família há anos, mas se conversarem com ele digam apenas que estão aqui como hóspedes do proprietário. E mais nada, nada de nomes e nada pessoal. Mais uma coisa... Vocês não devem tocar no telefone da casa. E não usem celulares nem qualquer equipamento eletrônico, para nada. Não quero que nos localizem aqui. – Ele deu alguns passos para o fundo do hall, onde olhou um corredor. – Mas onde ele se meteu? – perguntou, gritando: – Olá, chegamos!

– Não precisa gritar – respondeu uma voz rabugenta, e um homem saiu de outro corredor. – Ainda não estou surdo e eu sabia muito bem que vocês estavam aqui. Abri o portão para você, não foi?

O homem usava um paletó de tweed por cima de um colete marrom-claro, e suas calças tinham remendos de couro nos joelhos. Will não sabia se ele estava nos sessenta ou setenta anos, mas andava com facilidade, apesar de usar uma bengala. Seu rosto era áspero, ele tinha uma barba cheia e cinza, e o cabelo era surpreendentemente comprido, embora fosse careca no alto da cabeça. Seus olhos eram animados e cintilavam ao se aproximar de Drake. Parou na frente dele, olhando-o de cima a baixo. Soltando o ar pelos lábios, como se estivesse um tanto exasperado, começou a examinar o restante do grupo. Havia algo no modo como os media que falava de uma experiência conquistada com muito esforço, como se nada no mundo pudesse surpreendê-lo. Ele se demorou na sra. Burrows, a única no grupo que não o olhou nos olhos.

Percebendo que Will fitava o retrato de corpo inteiro de um homem de farda militar acima da lareira, ele se aproximou do garoto.

– Esse era meu pai. Bela figura, não é mesmo? – disse ele.

Will assentiu, agora olhando o kilt xadrez e a boina bege que a figura usava, e também o fato – um tanto incomum nesse tipo de retrato – de que o fundo não era uma sala escura nem os campos da Inglaterra, mas um deserto banhado pelo sol, com um oásis margeado por algumas palmeiras.

– Isso é um Land Rover? – perguntou Will, indicando o veículo estacionado perto do oásis.

– Sim... Chamava-se Pantera Cor-de-rosa... Muito antes de existir o desenho animado. Eram guarnecidos para operações de reconhecimento de longa distância no deserto. Meu pai ajudou nas especificações dos veículos. Foi um dos primeiro recrutas de David Stirling em sua antiga equipe do Comando nº8, quando ele formou O Regimento, em 1941.

Will franziu o cenho.

– O Regimento?

O homem assentiu.

– Sim, e aposto que não preciso dizer o que significa a adaga alada na boina de meu pai, não é mesmo, amigo? – Ele apontou o retrato com a bengala.

– Hmmmmm, o SAS? – respondeu Will.

– Sim, isso mesmo... O Serviço Aéreo Especial. Era meu regimento também. Chama-se O Regimento porque é o melhor regimento do mundo, mesmo nestes tempos de fracotes.

O velho não olhava mais o retrato, mas encarava distraidamente a lareira limpa.

– Stirling costumava trazer os homens aqui para treinar em segredo antes de serem deixados atrás das linhas inimigas, em missões de sabotagem. – Ele riu. – Para tornar os exercícios mais realistas, todos os empregados da propriedade na época tinham que fazer o papel de soldados chucrutes. Vai descobrir que o Velho Wilkie, o único membro da equipe que restou daqueles dias, ainda é extraordinariamente proficiente em alemão. – O homem pigarreou com um grunhido, percebendo que falava demais, e girou a bengala despreocupadamente no ar. – Mas imagino que todos precisem de algo para comer e beber depois de sua viagem. Se passarem à sala de jantar eu lhes levarei chá e uns sanduíches – disse ele.

– Ainda fazendo toda a sua comida e lavando os pratos? – perguntou Drake, sorrindo. – Por que não tem uma empregada, ou não se...

– Bobagem! – retrucou o homem. – Um desperdício de dinheiro. Quando chegar a hora de eu precisar de uma bruaca velha por aqui, envenenando-me com sua gororoba, espero já ter abotoado o paletó de madeira. – Afastou-se de Drake e se voltou para Will e o restante do grupo: – A propósito, podem me chamar de Parry, porque este é meu nome verdadeiro, ao contrário de alguns por aqui. – Girou para Drake, erguendo uma sobrancelha como se lhe ocorresse algo absurdo. – O que, em nome de Deus, deu em você para adotar o nome de um pato?

Antes que alguém entendesse, ele investiu como um boxeador e bateu em Drake, pegando-o na barriga com um soco certeiro. Will, Chester e Elliott avançaram para Drake, pensando que ele precisasse de ajuda, mas logo o velho recuou.

Drake estava quase dobrado em dois ao tentar recuperar o fôlego. Mas, para surpresa de todos, quando endireitou o corpo, ele ria e arquejava ao mesmo tempo.

– Você bate como uma mulher, seu brutamontes geriátrico! – disse ele, ofegante.

– Ei! Cuidado com o que diz! – exclamou Elliott. – Ou vou mostrar a força que esta mulher pode ter!

– Ah, por favor! – disse Drake, erguendo a mão como se a rechaçasse, ainda rindo. – Não posso cuidar de vocês dois ao mesmo tempo. – Virou-se para Parry. – Por que isso, aliás?

– Isso – trovejou o homem – foi por não me mandar nem um maldito cartão de aniversário em cinco anos, depois me telefonar inteiramente do nada ontem para pedir ajuda, seu cretino ingrato. Sabe, como eu não tive notícias de você, pedi a alguns velhos amigos para perguntar por aí e descobrir o que você andava aprontando. – Parry examinou a mão que usou para golpear Drake, flexionando os dedos. – Disseram que não conseguiram encontrar pistas suas e que você devia estar morto – disse ele.

Drake tinha recuperado o fôlego e ainda não parecia levar a mal o fato de ter sido esmurrado. Longe disso – para Will, ele estava mais feliz do que nunca.

Drake balançou a cabeça.

– Desculpe... Entre uma coisa e outra, eu andei meio ocupado – disse. – Mas eu vou compensar, papai.


Capítulo Trinta e Cinco


– Almoço de domingo! – exclamou Chester, olhando o pai do outro lado da mesa. – Nunca pensei que nos sentaríamos para um almoço de domingo de novo.

– Não sei mais o que esperar – respondeu o sr. Rawls, desconsolado.

Houve um segundo de silêncio até a intervenção de Drake:

– Sim... A propósito, quero que ergam as taças comigo. – Ele se levantou, pegando a taça de vinho na mesa, enquanto todos os outros seguiam seu exemplo. – Vamos fazer um brinde a todos os que não estão aqui conosco hoje... O doutor, a sra. Rawls, Sarah Jerome, Tam Macaulay, Cal, o Homem de Couro... Aos amigos ausentes... e muito corajosos.

Todos beberam com ele e voltaram a se sentar.

– E, Chester, tenho uma coisa para você – disse Drake. Ele pegou um pacote ao lado da cadeira, que passou pela mesa ao menino.

– O que é? – perguntou Chester, ao rasgar o papel. – Um skate! Drake... Você se lembrou de que nunca me deram um de Natal! Isso é demais!

Drake sorriu.

– Pode experimentar nas quadras de tênis. A superfície não é muito boa, já que ninguém joga ali há anos, mas deve servir para o skate. Olhe no fundo da bolsa... Tem umas joelheiras. Não quero que se machuque. – Enquanto Will e Elliott admiravam o skate de cores berrantes, Drake olhou o relógio. – Mas de onde ele vem com a comida? A mula velha e teimosa não quis minha ajuda.


Na cozinha, Parry encostou a bengala ao lado do fogão enquanto calçava um par de luvas e abria a porta do forno. Duas postas de carne assada chiavam numa assadeira, que ele pegou e examinou.

– Perfeito – disse ele.

De repente, Bartleby e Colly apareceram ao lado dele. Cada um avançou para as postas, pegando-as com as mandíbulas e correndo para a porta aberta dos fundos da cozinha, ganhando os campos com seus prêmios.

– Malditos carniceiros! – gritou Parry, brandindo a bengala para as traseiras dos dois Caçadores, que se retiravam. – Da próxima vez vou usar minha espingarda em vocês!


O grupo reunido na sala de jantar não ouvira nada, já que a cozinha ficava a vários corredores de distância.

– Vou ver o que ele está fazendo – decidiu Drake. – Deve ter queimado a comida ou coisa assim.

– Eu não me incomodaria – dizia a sra. Burrows quando Parry apareceu na soleira com uma expressão furiosa. – Nosso prato principal está indo agora pelo campo atrás da casa, e com velocidade – acrescentou antes que Parry tivesse oportunidade de falar.

– Como faz isso? – perguntou Parry. – Como pode saber?

A sra. Burrows bateu o indicador na lateral do nariz.

– PEO – disse ela, como se contasse um grande segredo a ele.

– PEO? – repetiu Perry, depois afundou na cadeira à cabeceira da mesa e secou uma taça de vinho de um gole só.

– Poder Extraolfativo – disse a sra. Burrows, rindo, ao se levantar. – Vamos, Drake e Jeff... Podem me dar uma ajuda para preparar outra coisa para o almoço.

– Hum... Posso dizer uma coisa? – começou Chester, e a sra. Burrows se sentou de novo.

Drake assentiu para Chester continuar.

– Bom, foi o que a sra. Burrows acabou de dizer sobre seu superpoder... Isso me deu uma ideia. Estamos todos aqui por causa dos Styx... E realizamos coisas incríveis, não foi? – Ele olhou para Drake. – Eliminamos a fonte daqueles vírus e destruímos seus laboratórios. – Depois olhou para Will e Elliott. – E também temos a vacina do vírus Dominion. Então, somos bons no que fazemos... Somos uma equipe especial que, junta, pode enfrentar os Styx, não é? Como aqueles grupos de super-heróis que combatem o crime que a gente vê nos quadrinhos e nos filmes. E se somos tão bons, não devíamos ter um nome? Tipo X-Men ou o Quarteto Fantástico?

– Bom discurso, Chester – parabenizou Drake.

– No que está pensando? – perguntou a sra. Burrows. – Algo na linha de Aliança Rebelde, só que mais moderno?

– Ninjas Mutantes Adolescentes da Crosta? – sugeriu Will.

O sr. Rawls rapidamente contou quantos estavam à mesa.

– Ou os Sete de Drake? – disse ele, rindo.

Com isso, Drake revirou os olhos.

– Vou dizer uma coisa... vocês bolam um nome enquanto eu assalto a cozinha – disse ele.


A sra. Rawls se sentou para ver o noticiário. Tinha acabado de encerrar uma conversa ao telefone com a irmã. Foi uma daquelas ligações de parentes preocupados, em que o outro não tem nada a dizer, mas leva muito tempo para falar. Pior ainda, a irmã ameaçou lhe fazer uma visita, para “cuidar” dela.

Não agradava à irmã que a sra. Rawls ficasse sozinha na casa e já fazia algum tempo que o marido, Jeff, decidira viajar sozinho ao exterior.

A sra. Rawls não gostava de mentir para a própria família, nem a qualquer outro, mas é preciso que se diga que quando ela explicou a ausência do marido contando isso às pessoas, ninguém pareceu muito surpreso. Todos sabiam quanto estresse ela e o sr. Rawls vinham suportando desde que Chester desaparecera, e esses conhecidos tão preocupados invariavelmente murmuravam as costumeiras palavras de conforto “Ele deve precisar de um tempo para si mesmo” e “Ele vai voltar logo, você verá”.

É claro que a sra. Rawls sabia que era diferente. Ou, mais precisamente, ela não sabia onde ele estava, nem o filho, mas tinha certeza de que nenhum dos dois estava no exterior.

Ela se recostou na poltrona, tentando ao máximo se concentrar na televisão, mas sua mente insistia em vagar.

Disse a Drake que não suportava ficar parada enquanto seu filho e, depois, o marido faziam sua parte na briga contra os Styx. Com o celular que Drake lhe dera, cuja existência o marido nem sabia, ela conversou longamente sobre seu compromisso e contou estar enlouquecendo aos poucos no hotel, até que Drake concordou e pensou em algo que ela podia fazer.

E o plano era que ela agisse como se ainda estivesse nas garras da programação da Luz Negra e simplesmente voltasse à sua casa em Highfield. Dali, contaria a Drake sobre qualquer contato com os Styx ou seus agentes, usando o procedimento da caixa morta. Isso envolvia deixar bilhetes para ele na banca de jornais quando passasse lá toda manhã para pegar o jornal do dia.

É claro que o plano não era infalível.

Os Styx podiam simplesmente “dar um sumiço” nela, como Drake colocou. Ou podiam decidir lhe aplicar uma bomba de Luz Negra, assim ela realmente voltaria ao controle deles.

Por outro lado, os Styx poderiam pensar que ela ainda estava totalmente programada. Seu elo com Chester, e, portanto, com Drake, lhe era útil o bastante para receber algum papel. Posição que daria a ela acesso a informações preciosas. E isso, como Drake explicou, era difícil de obter quando se tratava dos Styx.

Com o término do noticiário e início do boletim do tempo na televisão, a sra. Rawls ouviu um ruído a suas costas. O som de alguém andando pelo carpete.

Seu coração parou por um segundo.

Acabou?, pensou ela consigo mesma. De onde estava sentada, de costas para a porta, não tinha como ver quem estava ali. Apesar do impulso de se virar, ela não moveu um músculo. Tentou continuar calma – precisava se comportar como se ainda estivesse sob o efeito da Luz Negra.

Uma voz falou em seu ouvido – uma voz grave e sussurrada. Tinha um sotaque – talvez um toque cockney.

– Há uma coisa que queremos que você faç... – dizia.

A frase não foi concluída porque ela ouviu um baque surdo.

A sra. Rawls girou a tempo de ver um homem corpulento cair no chão, seus óculos escuros caindo de rosto. Vestia um casaco com um acabamento ceroso e um gorro. Carregava uma caixa, que agora estava caída ao lado dele.

E de pé junto dele havia outro homem, de compleição muito mais leve – alguém parecido com o Styx que Drake descrevera. Mas aquele homem usava um paletó esporte e calças de flanela, e, embora seu rosto fosse cadavérico de magro e os olhos intensos, a impressão geral era de que ele não era um dos assassinos da cidade subterrânea de que ela foi informada.

– Sra. Rawls... Emily – disse ele, estendendo a mão, o que era um tanto curioso, considerando que ele tinha acabado de derrubar um homem em sua sala de estar.

– Sim – respondeu ela, cumprimentando-o.

Ele deu a volta e se sentou no braço do sofá, ao lado dela.

– Drake me enviou. Não sei se a senhora se lembra de mim, mas eu o acompanhei aqui antes.

Ela franziu o cenho.

– Foi quando a senhora e o sr. Rawls não conseguiram reconhecer Chester, porque estavam sob o efeito da Luz Negra. A propósito, já superou completamente sua programação?

Ele não esperou por uma resposta, pronunciando algumas palavras numa língua estranha e áspera que a sra. Rawls não compreendeu. Ela deu de ombros um pouco para ele.

– Parece que sim – concluiu o homem, e se levantou. – Precisa vir comigo agora. O plano de Drake não deu certo. – Olhou a figura caída no carpete. – Este é um colonista e foi enviado para ativá-la.

A sra. Rawls também se levantou, olhando o homem desacordado.

– Me ativar? Para quê? E o que tem nessa caixa? – perguntou ela, apontando a caixa cinza de uns vinte centímetros quadrados.

– Não sei o que a obrigariam a fazer, mas a caixa deve conter algo prejudicial. Provavelmente, não é uma arma biológica, mas pode ser uma bomba – disse ele, pegando a caixa e colocando-a debaixo do braço. – De qualquer modo, é perigoso demais a senhora ficar mais tempo aqui. Terá que vir comigo, sra. Rawls.

– Sim, hmmm, senhor... – disse ela, franzindo o cenho ao se perguntar como se dirigir àquele homem que entrara em sua casa e a salvara.

– Mas que grosseria a minha. Meu nome é Edward Green – disse-lhe o homem. – Mas, por favor, me chame de Eddie. Como todo mundo.


Capítulo Trinta e Seis


Will, Chester e Elliott desceram à beira do lago quando Will ouviu seu nome sendo chamado.

– Acho que Drake quer ver você – disse Elliott, vendo como ele acenava para Will.

Will subiu a ladeira até a casa, juntando-se a Drake perto da mesa e das cadeiras da varanda.

– Já voltou? – disse Will.

Drake vinha saindo por dois ou três dias seguidos, mas nunca contava a ninguém o que fazia.

Drake assentiu.

Will viu que ele ainda tinha a bolsa de viagem pendurada no ombro. Por algum motivo Will supôs que Drake trouxera um presente, como fez quando deu o skate a Chester.

– Tem alguma coisa para mim? – perguntou Will cheio de expectativa, apontando a bolsa de viagem.

Mas Drake não respondeu. Will viu que o homem estava estranhamente hesitante e percebeu que não era este o caso, ficando bastante alarmado.

– Qual é o problema? – disse ele, mas de novo Drake não respondeu, tirando a bolsa dos ombros e colocando-a na mesa. Ele abriu o zíper e a vasculhou.

– Não sei como contar isso, Will – disse Drake ao tirar uma sacola branca, mas ainda a segurando. – Vamos nos sentar?

Will puxou uma das cadeiras de sob a mesa e se sentou, esperando que Drake continuasse.

– Você me pediu para entregar o diário de seu pai ao British Museum. Queria que ficasse nas mãos de alguém qualificado para entendê-lo, alguém que apresentasse ao mundo as incríveis descobertas de seu pai.

– Sim – murmurou Will, sem gostar de como aquilo tudo soava.

– Não preciso dizer que o grande problema é que não existem provas materiais acompanhando o diário. Quer dizer, você não trouxe nenhum artefato nem espécimes em apoio a todas as alegações que seu pai fez.

A essa altura Will estava a ponto de ter um ataque. Precisava saber o que estava acontecendo.

– Drake, pode me dizer... Não ligo se for má notícia. Estou preparado para isso. – Olhou a sacola branca. – O que tem aí?

Drake ergueu a mão.

– Por favor, me deixe terminar.

– Tudo bem. – Will fechou a cara.

– Ao que parece, o diário de seu pai foi examinado por vários especialistas em vários departamentos de antiguidades no museu, depois, de algum modo, foi parar nas mãos do professor White, da Universidade de Londres.

– Professor White – murmurou Will várias vezes, e de repente se levantou. – Eu conheço esse nome! – exclamou. – Não! Ele é o desgraçado que levou crédito pela casa romana que papai descobriu em Highfield. Ele roubou a descoberta do meu pai. Não, ele não!

– Sente-se, Will – disse Drake com firmeza. – Ainda não terminei.

Will estava vermelho e sem fôlego de indignação. Mas se sentou novamente enquanto Drake voltava a falar:

– Por acaso o professor White gostou muito do que leu e o entregou a dois de seus alunos. E eles escreveram um livro.

– Que tipo de livro? – perguntou Will.

Drake abriu a sacola e olhou seu interior.

– É o primeiro romance publicado da dupla. Você sabe melhor do que ninguém que o que sobreviveu do primeiro diário do doutor ainda deve estar na cabana de Martha, onde você o deixou. E no início do segundo diário... aquele que você trouxe... o doutor tentou recriar um registro diário dos acontecimentos que levaram à descoberta da Colônia e tudo o que veio depois disso. – Drake respirou fundo. – De qualquer modo, esses dois alunos ficaram tão inspirados com o que leram que criaram uma história baseada nisso.

– Eles fizeram o quê? – disse Will, embora mal conseguisse falar, de tão tenso. – Então é um texto acadêmico?

– Hum... Não é bem assim – respondeu Drake, tirando o livro da sacola e entregando-o a Will, que o pegou e olhou a capa.

– O toupeira de Highfield – leu Will. – O toupeira de Highfield? – repetiu várias vezes. Virou o livro para ver o que estava escrito atrás.

– Veja só... É um livro infantil – disse Drake. – Eles transformaram o diário de seu pai em uma história de aventura, para jovens leitores.

Embora ainda estivessem perto do lago, Chester e Elliott ouviram o grito de Will do alto do aclive:

– NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOO!


Epílogo

Avoz de Parry ecoava pela casa, convocando todos. Parecia urgente.

– Por que todo esse estardalhaço? – disse Will quando Chester o encontrou no corredor de seus quartos.

– Não sei. – Chester deu de ombros e viu que o amigo estava com seu novo livro nas mãos. – Está mesmo lendo isso... Pode me emprestar depois? É bom? – perguntou.

Will fez uma careta.

– Parece um sonho estranho. Pode ler o quanto quiser depois que eu terminar – disse.

Chegando ao alto da escadaria, os meninos deram com Elliott, que saía voando do quarto. Estava de roupão e uma toalha enrolada na cabeça – depois de uma vida nas instalações mais básicas, ela concluíra que o banheiro era seu lugar preferido. Muito parecida com qualquer adolescente, ela passava horas trancada ali, relaxando na banheira ou fazendo o cabelo no espelho.

Agora, entravam juntos na sala de visitas e viram Drake e Parry diante da televisão, abismados com o que assistiam. Chester olhou o corredor para ver se o pai estava vindo, mas não havia sinal dele. Nesse momento, a sra. Burrows apareceu.

– Por que toda essa comoção? – perguntou ela ao se colocar ao lado de Will.

– Meu pai recebeu uma dica de um contato dos serviços de segurança. Algo está acontecendo em Londres – respondeu Drake, aumentando o volume com o controle remoto. – Algo grande.

“... entre essas iniciativas estava a ordem de fechamento imediato de três departamentos de epidemiologia e a transferência de sua equipe principal para uma única ‘superunidade’ no University College Hospital”, dizia o locutor do noticiário. “Essa ordem veio diretamente do topo, do primeiro-ministro em pessoa, segundo fontes próximas ao número 10 da Downing Street.”

O primeiro-ministro apareceu em uma coletiva. “Nestes tempos de dificuldades econômicas, todos estamos cientes da necessidade premente de cortar os gastos públicos”, disse ele. “Em consequência de nossa análise detalhada do orçamento da saúde, identificamos vários setores em nossos hospitais que se beneficiarão da centralização e da racionalização. Isso gerará uma economia substancial para o país, sem redução nos altos padrões de atendimento médico e tratamento que estabelecemos.”

A voz do locutor do noticiário voltou com um vídeo do primeiro-ministro, o rosto cansado e abatido, entrando em seu carro com motorista. “O anúncio de hoje, de que importantes instalações estão destinadas à desativação, foi uma completa surpresa, mesmo para muitas autoridades de saúde. A Associação Médica Britânica apresentou um protesto formal esta manhã por não ter sido consultada quanto à decisão do governo de fechar, em particular, as unidades de epidemiologia...” Seguiram-se cenas de homens carregando recipientes lacrados de um prédio de hospital e colocando-os num caminhão. “... e a velocidade com que os fechamentos já estão ocorrendo.”

– Não acredito. É o St. Edmund’s. – Drake percebeu. Depois apareceram mais dois hospitais, com suas entradas surgindo rapidamente na tela. – Ora, que novidade... São o St. Thomas e o London. Que coincidência! – acrescentou, depois se virou para Elliott e os meninos: – Numa época em que o surto de uma epidemia grave é tão temido, o governo decidiu cortar a capacidade do país de lidar com uma? Por que fariam isso?

– Mas o que exatamente isso significa? – perguntou Chester.

– Significa os Styx – respondeu Will.

– Tem que ser – concordou Drake. – É coincidência demais que tenha acontecido precisamente com os três hospitais a que entreguei amostras do sangue de Elliott para guardar em seus bancos de vacina. Os Styx estão agindo e recuperando a vacina contra o Dominion... Vejam só, sem dúvida, aqueles espécimes desaparecerão misteriosamente no caminho para a nova “superunidade”.

– Mas ainda temos nosso espécime aqui, não temos? – disse Will, dando um tapinha no ombro de Elliott.

– Isso faz de você uma pessoa muito importante – acrescentou Chester, olhando para Elliott em seu roupão.

– Pensava que já era importante, independente disso – queixou-se ela.

Drake, pensando nas implicações, não ouvia os três.

– É claro que enfraquecendo nossas instalações na Crosta a barra estará limpa para os Styx. Pode apostar que eles têm outras surpresas na manga... Mais algumas doenças desagradáveis para disseminar... porque é exatamente o que vêm fazendo há séculos.

– Mas, se o primeiro-ministro realmente aprovou essa decisão, acha que ele mesmo foi submetido à Luz Negra? – perguntou a sra. Burrows.

A pergunta dela não chegou a ser respondida, porque, nesse momento, Parry apontou com a bengala para a televisão.

– Aí está – anunciou ele, enquanto a reportagem sobre os hospitais foi interrompida, e apareceram ÚLTIMAS NOTÍCIAS no alto da tela.

Will franziu o cenho.

– Quer dizer que não nos chamou aqui por causa dessa história dos hospitais?

Drake balançou a cabeça.

– Só soubemos disso agora.

– Silêncio, todos vocês! – berrou Parry. – Aí vem.

Will e Chester se olharam, confusos, depois voltaram a atenção para a tela da tevê, onde a imagem sumiu por um segundo, antes do aparecimento de uma repórter. Era evidente que ela não estava no estúdio e que o incidente era coberto por uma transmissão apressada, local.

A repórter estava em uma rua ladeada por prédios altos de vidro, enquanto atrás dela pessoas assustadas corriam para todo lado. A maioria trabalhava em escritório, mas havia também alguns policiais armados. A repórter parecia perplexa e despreparada ao falar. “Eu... eu estou aqui na Cidade de Londres, no coração do distrito financeiro, e a menos de meio quilômetro do Banco da Inglaterra, onde parece que está havendo um tiroteio.” Alguém em off falou com ela. “E acabo de saber que obtivemos imagens obtidas por um espectador pelo celular.”

Um vídeo tremido e de péssima qualidade mostrava uma rua bloqueada por viaturas da polícia. Ao som de disparos automáticos, os policiais se protegiam apressadamente atrás de seus carros.

Depois a câmera deu um zoom para além desses veículos, para o cruzamento normalmente movimentado no centro da City, onde ficava o Banco da Inglaterra, num prédio chamado Royal Mint. De repente, houve uma imensa explosão, e janelas foram lançadas para longe do prédio, acompanhadas de mais disparos. A repórter começou a falar por cima do restante do vídeo, que mostrava a fumaça elevando-se na rua deserta. “Essas imagens, feitas há menos de vinte minutos, parecem mostrar um ataque ao Banco da Inglaterra por uma gangue de homens armados.”

A repórter estava de volta à tela. “Também soubemos que estouraram outros conflitos em vários outros locais da City e que...”

Houve outra explosão, e a repórter se abaixou. A tela se encheu de estática até se apagar. Um segundo depois, voltou o locutor do estúdio.

“Parece que perdemos o contato com nossa unidade móvel. Espero que Jenny esteja bem”, disse ele, de cenho franzido. Limpando a garganta, ele fingiu olhar seus papéis e se recompôs, depois levantou a cabeça. “Aos espectadores que acabaram de se juntar a nós, recebemos numerosos relatos de ataques armados ao Banco da Inglaterra e a vários locais próximos, além de pelo menos duas grandes explosões.” Ele levou a mão ao fone de ouvido. “Acabo de ser informado de que uma reunião do presidente do Banco da Inglaterra e seu comitê consultor acontecia no banco na hora em que o ataque começou... E que são previstas várias baixas, que podem incluir o próprio presidente. Mas devo observar que no momento esta informação não foi confirmada.”

Drake balançou a cabeça.

– Então isto é o começo de tudo. Os Styx estão tentando desestabilizar o país, atacando suas instituições financeiras – disse ele em voz baixa. – Isso pode nos jogar em outra onda de recessão, como nunca vimos.

O locutor continuava: “Temos algumas imagens de câmeras de segurança enviadas a nós pela polícia. Mostram os ocupantes de dois veículos que entraram na City pouco antes dos incidentes. A polícia pede que quem tiver informações sobre esses homens que entre em contato com...”

– O coronel Bismarck! – Elliott deixou escapar. – Will, olhe, é o coronel!

Avançando um passo, Will olhou as imagens meio nebulosas de dois rostos pelo para-brisa dos carros. Um dos homens não significava nada para ele, mas, com seu cabelo claro e queixo quadrado, certamente seria um soldado neogermano. Porém, o outro rosto era conhecido – o homem era mais velho do que o primeiro e tinha um bigode muito peculiar.

– Pode ser ele – disse Will. – Mas não está muito claro, e eu não prestei atenção em muita coisa depois que papai morreu.

– É ele – insistiu Elliott. – Eu sei que é.

– Então, agora estão usando soldados do mundo interior para fazer seu trabalho sujo – sugeriu a sra. Burrows.

– O que quer dizer que eles podem ter toda a máquina de guerra neogermana à sua disposição – disse Drake. – Todo o maldito exército.

– E as gêmeas Rebecca podem estar de volta à cidade – acrescentou Will com raiva.

Mas todos na sala ficaram num silêncio chocado com a foto que apareceu em seguida.

– Drake! É você! – exclamou Elliott, ofegando.

Drake afastou-se um passo do televisor.

“Acredita-se que esse indivíduo”, dizia o locutor, “está por trás do grupo responsável pelos ataques, e a polícia chegou a ponto de dizer que ele é o ‘cérebro’ da organização. Atendendo pelo codinome de Drake, pensa-se que ainda esteja no país, e as forças policiais nacionais iniciaram uma busca nacional por seu paradeiro.”

– Uma manobra clássica... Já era de se esperar – disse Parry com irritação. – Os Styx estão dificultando sua mobilidade.

Drake assentiu.

– Parece que a partir de agora não serei eu que vou às compras.

De olhos baços, o sr. Rawls escolheu esse momento para fazer sua entrada. Reprimiu um bocejo, como se tivesse acabado de acordar de um cochilo.

– Começou o jogo de críquete? – perguntou ele, coçando a cabeça. – Qual é o placar?

– Não sei, pai – respondeu Chester –, mas parece que os Styx estão dando uma surra.

 

 

                                                   Roderick Gordon & Brian Williams         

 

 

 

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